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A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875-1914).
ANDRÉ GUSTAVO BARBOSA DA PAZ MENDES
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS
A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875-1914).
ANDRÉ GUSTAVO BARBOSA DA PAZ MENDES
NATAL, AGOSTO DE 2008
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ANDRÉ GUSTAVO BARBOSA DA PAZ MENDES
A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875-1914).
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em
História, Área de Concentração em História e Espaços,
Linha de Pesquisa II Cultura, poder e representações
espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
sob à orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque
Júnior.
NATAL, AGOSTO DE 2008
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
NNBSE-CCHLA.
Mendes, André Gustavo Barbosa de Paz.
A invenção da terra da luz / André Gustavo Barbosa de Paz Mendes. -
Natal, RN, 2008.
180 f.
Orientador: Prof.
Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior.
Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal do Rio Gran-
de do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-
Graduação em História. Área de Concentração: História e Espaços. Linha de
Pesquisa II: Cultura, Poder e Representações Espaciais.
1. Hisria regional - Ceará Dissertação. 2. Literatura cearense Dis-
sertação. 3. Espaço paisagístico Dissertação. I. Albuquerque Júnior, Durval
Muniz de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 913(813):82-94
ANDRÉ GUSTAVO BARBOSA DA PAZ MENDES
A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875-1914).
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão
formada pelos professores:
_________________________________________
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior
Orientador UFRN
__________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha
Avaliador Interno UFRN
________________________________________
Prof. Dr. Frederico de Castro Neves
Avaliador Externo UFC
____________________________________________
Prof. Dr. Renato Amado Peixoto
Suplente UFRN
Natal, 29 de Agosto de 2008
À minha querida família e amizades.
Com todo o meu carinho e apreço.
AGRADECIMENTOS
Desejo expressar a minha gratidão não as pessoas que participaram da construção
efetiva deste estudo, mas também as que me rodeiam e foram de grande importância para a
conclusão do trabalho.
Uma delas é o professor e meu orientador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, pela
sua postura paciente e compreensiva diante dos prazos. Além disso, deixo o meu
reconhecimento em relação as suas orientações, verdadeiras aulas particulares. -lo como
orientador foi aprazível e se constituiu, desde a época da graduação, numa rica troca de
experiências acadêmicas.
Ao professor Raimundo Pereira Alencar Arrais, com quem tive importantes aulas para
realizar as discussões exigidas pelo tema deste trabalho, pessoa por quem tenho grande
estima.
Ao professor Raimundo Nonato Araújo da Rocha, amigo que sempre esteve disposto a
ajudar no que fosse necessário, suas opiniões e reflexões estão presentes nas páginas deste
estudo.
Ao professor Renato Amado Peixoto, com as suas apropriadas observações durante o
exame de qualificação.
Agradeço também ao professor Almir de Carvalho Bueno, Hélder do Nascimento
Viana e outros docentes do mestrado que enriqueceram a minha aprendizagem durante a pós-
graduação.
Agradeço aos meus pais, Onildo Mendes sempre lembrando a necessidade do término
do estudo e a minha querida mãe Glória que sofreu junto comigo as minhas angústias e
medos, carregando literalmente parte do fardo. Devido a vocês, senhor e senhora de força em
minha vida, tive a oportunidade de realizar esse trabalho, agradeço por me apoiarem em todos
os momentos, dos mais tranqüilos aos mais difíceis.
À minha irmã, Ângela, por escutar as minhas reflexões, lendo e me ajudando a traçar
alguns caminhos do texto.
Ao meu irmão Henrique que agora é pai zeloso e, mesmo distante, sempre apostou na
conclusão deste trabalho. Assim como à minha cunhada Karinny e minha recém-nascida
sobrinha Lunna, a qual devo satisfação por não ter ainda a oportunidade para vê-la.
Aos familiares de João Pessoa, sempre preocupados e curiosos com o caminhar do
trabalho, em especial minhas tias Carmem e Sônia e, a minha querida avó, Dona Tudinha.
À minha madrinha e tia-avó Paula Mendes, senhora acolhedora e amável. Apoiou-me
juntamente com toda a sua bela família, possibilitando a minha permanência em Brasília
durante a pesquisa nos Anais da Câmara e do Senado Federal.
Aos parceiros de trabalho do dia-a-dia na Escola Estadual Belém Câmara, dentre eles:
Patrícia Evangelista, sempre preocupada com o Português dos discentes. Danniella Lopes,
artista e fazedora de arte na prática de sala de aula. Norma Lima, cuidadosa com a
Matemática e animada para a vida. Silvanise Araújo, responsável pela iniciação de crianças e
jovens aos cuidados oriundos da área das Ciências.
Paulo Júnior, não grande amigo da escola, mas de cada um ao seu redor, senhor de
conduta respeitosa e educada. Selma Dutra, coordenadora zelosa, preocupada com o melhor
para alunos. Fátima Bezerra, diretora e mãe da escola, um coração maior impossível. Sandra
Borges, vice-diretora responsável e grande incentivadora para o término do trabalho.
Por último, mas não menos importante, Even Oliveira, coordenadora compreensiva,
afável e preocupada com o caminhar dos estudos, pessoa com que tive o prazer de desfrutar
vários diálogos, seja de cunho escolar, acadêmico ou pessoal. Todos muito prestativos e
preocupados com o ensino das crianças e jovens que passam por aquela instituição. Agradeço
a paciência, a solicitude que todos tiveram para comigo.
Aos amigos, não tenho palavras para descrever o quanto agradeço o apoio e o
incentivo de cada um de vocês, em especial, Gustavo de Barros, Eric Fonseca e Ls Cláudio.
A Ricardo Aquino Machado, amigo compreensivo e prestativo. Um braço forte no meu dia-a-
dia, sempre me cobrando a conclusão do texto. Agradeço demais a você!
Aos colegas da academia, em destaque Isabel Barreto, amiga, companheira e revisora
gramatical arguta e rápida, não mediu esforços para me dar a segurança necessária para
defender o texto. A Cétura, sempre receptiva na secretaria do PPGH. Preocupada com os
prazos e com os avisos a cada um dos mestrandos.
A Ricardo Vilar, amigo e companheiro, com quem não só refleti os rumos do trabalho,
mas apreendi a como mudar algumas idéias e rever certos pontos de vista. Uma pessoa de
caráter, responsável e, ao mesmo tempo, de um humor generoso e perspicaz, sempre em prol
de uma crítica construtiva. Enfim, um exímio camarada!
À Mara, zelosa companheira, obrigado pela demonstração de apoio e compreensão ao
respeitar a necessidade dos meus momentos de ausência.
Agradeço, sinceramente, a todos.
RESUMO
Este trabalho é um estudo de caso que analisa a construção literária da paisagem sertaneja
cearense entre fins do século XIX e início do século XX. Para tanto, algumas obras ícones da
produção literária do Ceará foram selecionadas, como os seguintes textos: O sertanejo (1875),
de José Martiniano de Alencar; Os retirantes (1879), de José Carlos do Patrocínio; A fome
(1890), de Rodolfo Marcos Tfilo; Luzia-Homem (1903), de Domingos Olímpio Braga
Cavalcanti; Terra de sol: natureza e costumes do Norte (1912), de Gustavo Dodt Barroso e,
por último, Aves de arribação (1914), de Annio Sales. Essas obras além de tomarem a
natureza como personagem, representam três momentos da produção literária cearense:
romântica, realista e naturalista. A invenção da Terra da Luz está relacionada à idéia de uma
literatura que ênfase na paisagem diurna do sertão do Ceará, elaborada por meio desses
homens de letras em seus discursos sublimes, belos e materiais emergidos de suas relações
com o mundo natural. Para realizar tal empreendimento, as idéias de Edmund Burke e Gaston
Bachelard se constituíram em balizas do estudo. A partir desses autores é possível pensar que
a descrição, o devaneio e a imaginão andam lado a lado na fala desses literatos ao
construírem um espaço simlico específico: o sertão cearense. Dessa maneira, certos temas
se tornaram nones na forma de pensar, representar e imaginar o espaço sertanejo do Ceará.
Assim, a paisagem é muito mais do que a contemplação, uma vez que ela é ligada tamm ao
devaneio poético, à memória e a imaginação. Daí a invenção da paisagem, pois esses literatos
não concebem e nem tem acesso a paisagem puramente natural porque as suas percepções e
sensibilidades sobre o mundo sertanejo foram constrdas historicamente, isto é, em um dado
tempo e espaço.
Palavras-chave: história regional literatura cearense espaço paisagístico
RÉSUMÉ
Ce travail est un étude de cas qui analyse la construction litéraire du paysage du « Sertão» du
Ceará entre la fin du siècle XIX et le début du siècle XX. Pour cela, quelques oeuvre simbole
de la production litéraire du Cea ont été sélectionnés, comme les textes qui suivent: O
sertanejo (1875), de José Martiniano de Alencar; Os retirantes (1879), de José Carlos do
Patrocínio; A fome (1890), de Rodolfo Marcos Tfilo; Luzia-Homem (1903), de Domingos
Olímpio Braga Cavalcanti; Terra de sol: natureza e costumes do Norte (1912), de Gustavo
Dodt Barroso et finalement, Aves de arribação (1914), de Antônio Sales. Ces oeuvres non
seulement prend la nature comme personage, elles représentent aussi trois moments de la
production litéraire du Ceará : romantique, réaliste et naturaliste. A invenção da Terra da Luz
se rapporte à lidée d’une littérature qui fait remarquer le paysage diurne du Sertão du Ceará,
élaborée par ces hommes des lettres dans ses discours formidables, beaux et des matériaux qui
viennent de ses rapports avec le monde naturel. Pour réaliser une tel entreprise, les idées de
Edmund Burke et Gaston Bachelard se sont constitués en référence de cet étude. Et cette
réflexion sur la description, la rêverie et limagination marchent côte-à-côte au discours de ces
litreurs qui ont construits un espace simbolique spécifique : le sertão du Ceará. Comme ça,
quelques thèmes deviennent canonique à la forme de penser, repsenter et imaginer lespace
du sertão du Ceará. De cette manière, le paysage est beaucoup plus que la contemplation, une
fois qu’elle est liée aussi à la rêverie poétique, à la mémoire et limagination. C’est de là
linvention du paysage, car ces litreurs nont pas laccès au paysage purement naturel parce
que ses perceptions et sensibilitées sur le monde du sertão ont été historiquement, c’est-à-dire,
dans un certain temps et espace.
Mot-clés : histoire gionale littérature du Ceará Espace dans le paysage.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Paisagem e espaço: na história e literatura sertaneja cearense ............................................ 10
CAPÍTULO I
O sublime e o belo na paisagem alencariana do sertão cearense ........................................ 21
1.1 O romance e o rontico lançam um olhar sobre o sertão ................................... 24
1.2 A Luz e suas paisagens........................................................................................... 43
1.2.1 A estiagem: visões sublimes ....................................................................... 45
1.2.2 Espaços da resistência: várzeas e serras ..................................................... 49
1.2.3 O beijo de amor trocado entre o céu e a terra: a água e o mundo natural ... 51
1.3 Os sentidos do luar ................................................................................................ 60
CAPÍTULO II
A imaginação material na paisagem da literatura da seca cearense ................................... 65
1.1 O romance regional e o senso do real na contemplação do sertão ........................ 68
1.2 Os elementos materiais na paisagem da literatura da seca .................................. 100
1.2.1 Terra e fogo: território dos estios ....................................................... 103
1.2.2 Terra e ar: atmosfera tresandada a sonho e morte ..............................110
1.2.3 Terra e água: resistência e harmonia ................................................. 118
1.3 Os elementos materiais e o fogo morto: a paisagem noturna .............................. 127
CAPÍTULO III
Leituras da tradição: o sublime, o belo e a matéria na paisagem sertaneja cearense .......... 131
1.1 Sales e Barroso: os remanescentes mosqueteiros intelectuais do sertão............. 134
1.1.1 Aves de arribação e suas paisagens ................................................... 145
1.1.2 Terra de sol: paisagens do norte ........................................................ 154
CONCLUSÃO
As paisagens da Terra da Luz ............................................................................................... 169
FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................................................................ 175
A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875- 1914)
INTRODUÇÃO
Paisagem e espaço: na hisria e literatura sertaneja cearense
sse antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas.
E nem deles posso afirmar que efectivamente me recorde. O hábito me
leva a criar um ambiente, imaginar factos, a que atribuo realidade. Sem
dúvida as árvores se despojaram e enegreceram, o açude estancou, as
porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre assim. Contudo ignoro
se as plantas murchas e negras foram vistas nessa época ou em sêcas
posteriores, e guardo na memória um açude cheio, coberto de aves
brancas e de flores. A respeito de currais há uma estranha omissão.
Estavam na vizinhança, provavelmente, mas isto é conjectura. Talvez a
o mínimo necesrio para caracterizar a fazenda meio destruída não tenha
sido observado depois. Certas coisas existem por derivação e associação;
repetem-se, impõem-se e, em letra de rma, tomam consistência,
ganham raízes. Dificilmente pintaríamos um veo nordestino em que os
ramos não estivessem pretos e as cacimbas vazias. Reunimos elementos
considerados indispensáveis, jogamos com eles, e se desprezamos alguns,
o quadro parece incompleto. (Grifos meus)
1
Essa passagem trata de lembranças, recordações de um passado distante e quase
esquecido. Curiosamente, é assim que Graciliano Ramos, em sua obra Infância de 1945, se
refere às suas experiências vividas no sertão nordestino. O autor evidencia na parte inicial de
sua fala a contradição existente entre a sua memória e a sua prática de escrita. A sua prática de
escrita é cerceada pelo hábito, que lhe confere a certeza de dizer a verdade sobre o espaço
sertanejo. O hábito é o marasmo da imaginação, é a repetição do dizer e ver as coisas e o
mundo. Ele se constitui nesse caso no dizer de Graciliano sobre sero por meio do costume,
da utilização de um arquivo de imagens que o antecedem e o induziram a (re)criar fatos que
pudessem ser encarados como reais, pois são enunciados consagrados pela literatura que trata
do sertão do Nordeste. Uma vez que o próprio autor reconhece que há certo discurso bem
cristalizado sobre o espaço sertanejo, o levando, a princípio, a se conformar com as imagens
deste, pois é sempre assim”.
Entretanto, Graciliano questiona a sua prática de escrita ao trazer à tona a sua memória
do sertão em tempos de infância, tenta lutar contra as amarras da tradição literária existente
que o coage a dizer apenas o que é tido como crível e verossímil sobre o sero do Nordeste.
1
RAMOS, Graciliano. Infância: memórias. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. José Olympo, 1952. p. 22.
11
Assim, o autor de Vidas Secas parecia ter consciência do processo de simulação, da
construção da paisagem literia do sertão ser vinculada sempre à seca. Para manter a sua
condição de escritor era necessário repetir, se associar e ser fiel a essa forma de dizer e ver o
Nordeste, pois se fugisse disso correria o risco de sua narrativa não ser considerada
verossímil. Como diria Foucault, Graciliano segue nesse caso regras do ver e do dizer que
foram criadas social e historicamente, por instituições e relações de poder que deram
legitimidade ao que ele dizia.
2
A partir dessa situação de Graciliano, pode-se vislumbrar como um olhar é permeado
de significados outros, ou seja, na realidade não há um olhar neutro. Por mais que se tente
realizar uma réplica do natural a própria natureza do olhar é cultural. Nesse sentido, o autor
esteve nitidamente preso a uma visibilidade e dizibilidade sobre o espaço sertanejo nordestino
que o antecedia. Dessa forma, é necesrio pensar que as “visibilidades não se definem pela
vio, mas são complexos de ações e de paixões, de ações e de reações, de complexos
multissensoriais que vêm à luz”, enfim, como afirma Deleuze o que se pode concluir é que
cada formação histórica vê e faz ver tudo o que pode, em função de suas condições de
visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em função de suas condições de enunciado.
3
Ora, a queso é: de onde se originou essas condições de enunciado no dizer e ver do
sertão nordestino? A hitese que motiva esse trabalho vai ao encontro dessa questão.
Graciliano é preso a formação discursiva da literatura da seca dos anos de 1920 e 1930.
Todavia, os temas e enunciados presentes em sua escrita não possui suas raízes no
Modernismo, mas sim na literatura romântica, realista e naturalista que trata do espaço do
Ceará durante a passagem do século XIX para o século XX.
Pensar diferentemente o sentido do termo Terra da Luz também é parte da leitura
proposta por este estudo. O sertão representado na literatura que trata do Ceará ganhou foros
de verdade e acabou por criar regrascitas no ver e dizer da paisagem sertaneja do Nordeste,
devido a condições históricas específicas. O sertão cearense foi objeto, personagem e espaço
de práticas literárias que propuseram revelar a alma sertaneja em sua relação com o mundo
natural. Dessa maneira, o sertão foi alvo de contemplão, de um olhar demorado, que
revolvia a memória e o presente dos literatos românticos, realistas e naturalistas de fins do
culo XIX e início do século XX. Em paralelo a construção política e literária do Ceará como
espaço da liberdade como ficou conhecida a província a primeiro libertar oficialmente os
seus escravos (1883) em nome da herança do movimento Ilustrado europeu do século XVIII
2
Ver FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10 ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2004.
3
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 68
12
, há também a elaborão de um discurso imagético em relação ao espaço cearense a partir de
sua natureza, de suas paisagens. O importante é perceber um deslocamento do sentido da
terminologia Terra da Luz que, apesar de inaugurado pelo movimento abolicionista, também
se constituiu como uma representação espacial identitária, capaz de mover a semântica do
termo para uma leitura a partir da natureza.
Partindo dessas premissas, algumas questões são importantes para encaminhar o
trabalho: como se deu leitura desses homens de letras a respeito do sero do Ceará? Em que
momento se estabeleceu um none para se pensar tamm o Nordeste? Quais as paisagens
construídas? Qual identidade espacial se estabeleceu para o sertão cearense?
É a partir dessa idéia que o objetivo central desse estudo de caso se esboça: analisar a
construção literária da paisagem sertaneja cearense durante a transição do século XIX para o
culo XX, mais especificamente no período de 1875 a 1914. Uma vez que é durante esse
momento histórico que se dão os primeiros passos para o processo de consolidação e
institucionalização do que conhecemos como Nordeste.
4
Todavia, não só isso justifica o
objetivo dessa proposta de estudo, como concebe-se ainda que nesse momento a própria
emergência dos enunciados e temas caracterizadores do que viria a ser constitdo a paisagem
sertaneja nordestina, principalmente no tocante aos da literatura regionalista de tenncias
românticas, realista e naturalistas.
Para melhor entender o termo paisagem é preciso ter em mente o seu sentido em sua
própria história como palavra. Segundo Schama, o termo paisagem tem raízes germânicas
(landschaft), significava tanto uma unidade de ocupação humana jurisdição, na verdade
quanto qualquer coisa que pudesse ser o aprazível objeto de uma pintura".
5
Todavia, Paul
Claval, remete as origens da palavra paisagem ao século XV, nos países Baixos, sob a forma
de landskip. Além disso, a relaciona intimamente com o desenvolvimento das artes plásticas,
principalmente a partir do desenvolvimento da perspectiva por Brunelleschi por volta de
1420. O termo ficou relacionado aos quadros que pintam um pedaço da natureza a partir de
um enquadramento, como por exemplo, uma janela. Daí em diante, o alemão forjou o termo
landschaft, e o inglês, landscape, para traduzir o novo termo hondes, cujo emprego se
impõe com a difusão do novo nero pictural. O italiano transcreve a iia de exteno de
4
Ver ALBUQUERQUE NIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN/ Ed.
Massangana. São Paulo: Cortez, 1999.
5
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 20.
13
pays, proveniente da raiz land, criando paesaggio, de onde deriva o termo francês, empregado
a partir de 1549.
6
Nesse sentido, a paisagem é um olhar sobre um mundo exterior, uma maneira de ver,
até mesmo um olhar distanciado, um olhar subjetivado, um olhar humano. Entretanto, a
paisagem e o espaço não devem ser pensados pela iia de um conceito, pois este carrega
em si uma natureza que não interessa, como afirma Bachelard, os conceitos são gavetas que
servem para classificar os conhecimentos; os conceitos são roupas de confecção que
desindividualizam conhecimentos vividos. Para cada conceito há uma gaveta no móvel das
categorias. O conceito é um pensamento morto, já que é, por definição, pensamento
classificado
7
(grifo do autor). Assim, não se pensa em realizar uma taxionomia em relação as
noções de paisagem e espaço, a porque se parte da iia de que ambas as categorias são
dimicas, vivas, como afirma Certeau, são transumantes
8
, ou seja, recebem uma natureza
humana, com todas as suas incertezas e virtualidades.
Uma das questões cruciais da abordagem desse estudo sobre a paisagem é tomá-la
como uma produção social e, como tal, passível de ser situada historicamente. É nesse sentido
que o historiador Simon Schama analisa paisagens européias em sua obra Paisagem e
memória. Para ele é importante mostrar a força dos elos que unem cultura e natureza no
Ocidente e revelar a riqueza, a antiguidade e a complexidade da tradição paisastica de um
dado espaço. Além disso, conforme o autor as paisagens podem ser conscientemente
concebidas para expressar as virtudes de uma determinada comunidade política ou social”.
9
Todavia, a paisagem vai am da organização dos espaços, ela emerge na memória e
na história através de uma forma poética. Como afirma Bachelard a paisagem é “[...] um
estado da alma. Mesmo reproduzida em seu aspecto exterior, ela fala de uma intimidade.
10
E
como produção espacial é importante porque
É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de duração
concretizados por longas permanências. O inconsciente permanece nos
locais. As lembranças são imóveis, tanto mais sólidas quanto mais bem
espacializadas. Localizar uma lembrança no tempo não passa de uma
preocupão de biógrafo e corresponde praticamente apenas a uma
espécie de história externa, uma história para uso externo, para ser
6
CLAVAL, Paul. A paisagem dos geógrafos. IN: CORA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (orgs.).
Paisagem, textos e identidade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004. (Colão Geografia Cultural). p. 14.
7
BACHERLARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Coleçãopicos). p. 88.
8
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. Petropólis, RJ: Vozes, 1994. p. 172.
9
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, p. 26.
10
BACHERLARD, Gaston. A poética do espaço, p. 84.
14
contadas aos outros. Mais profunda que a biografia, a hermenêutica deve
determinar os centros de destino, desembaraçando a história de seu tecido
temporal conjuntivo que não atua sobre o nosso destino. Mais urgente que
a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a
localização nos espaços de nossa intimidade.
11
O espaço formado pela paisagem não é um dado a priori, assim como tamm o
espaço não é uma matéria inerte, um mero suporte das relações travadas entre os indiduos,
mas parte constitutiva das relações sociais, incorporando significados que lhe são atribuídos
por determinadas representações, revestindo-se de simbologias e participando da construção
de certas identidades.
12
O espaço paisastico real, assim como suas representações estéticas
nas obras artísticas e literárias, assinalam, tanto quanto informam, as conscncias coletivas,
emocionais e territoriais. De fato, essas práticas são partes integrantes de uma territorialidade
simlica pela qual os grupos afirmam e reivindicam sua identidade cultural e potica em
relação com o seu lugar próprio.
13
É possível pensar a paisagem como um relato e, como diz
Certeau, os relatos “[...] atravessam e organizam lugares; eles os selecionam e os reúnem num
só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaços.
14
A literatura nessa relação entre paisagem e espaço vai surgindo como fonte de análise
por ser uma linguagem que não apenas representa o real, mas institui reais. Como diz
Albuquerque Júnior, “os discursos não se enunciam, a partir de um espaço objetivamente
determinado do exterior, são eles próprios que inscrevem seus espaços, que os produzem e os
pressupõem para se legitimarem.
15
Além disso, como destaca Shama, a literatura possui [...]
a proeza de transformar uma topografia inanimada em agentes históricos com vida própria.
Devolvendo à terra e ao clima o tipo de imprevisibilidade criativa convencionalmente
reservada aos atores humanos, esses escritores criaram histórias nas quais o homem não é
tudo”.
16
Além disso, como afirma Castro, “paralelamente à prática social que organiza o
11
BACHERLARD, Gaston. A poética do espaço, p. 29.
12
ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formão do espo público no Recife do século XIX. São
Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004. p. 11.
13
LE BOSSÉ, Mathias. As questões de identidade em geografia cultural algumas concepções contemporâneas.
IN: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Paisagem, textos e identidade, p. 168.
14
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes de fazer, p. 199.
15
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN,
Ed. Massananga; São Paulo: Cortez, 2001. p. 23.
16
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, p. 23.
15
espaço, desenvolve-se um imaginário fundado nesta prática que tem no discurso científico,
político e literário uma forma de expressão e de visibilidade.
17
Se é possível relacionar a paisagem com a história, uma vez que ela é produzida
socialmente e num dado momento, também é viável vincular a paisagem a uma produção
literária. Obras como Paisagem e memória, de Simon Schama, O campo e a cidade
18
, de
Raymond Williams e O homem e o mundo natural,
19
de Keith Thomas, fazendo uso de uma
vasta literatura, permitem perceber que a produção literária exprime uma sensibilidade
paisagística particular, ela simula, representa e inventa paisagens através do uso da memória
ou de outros arquivos de enunciados e imagens de uma dada cultura. A literatura é uma
grande produtora e veiculadora de signos espaciais e as paisagens são constitdas de signos
que transmitem “mensagens intencionais, geralmente muito fáceis de serem decifradas pelas
pessoas familiarizadas com a cultura local. Mas não para os outros. A mensagem não se torna
clara a não ser que conheçam os textos que ela procura transcrever.
20
Não é à toa eno que
Simon Schama, Raymond Williams e Keith Thomas tratam de regiões por eles intimamente
conhecidas.
Esse pensamento sobre o espaço pode também nos possibilitar a pensar a paisagem
com um relato de espaço, e como relato, um relato de viagem, uma prática do espaço. Nesse
sentido, a paisagem tamm é uma construtora de fronteiras, pois segundo Certeau “[...] não
existe espacialidade que não organize a determinação de fronteiras.
21
Se isso é da ordem do
espaço, retorno um pouco as discussões anteriores sobre a paisagem como participante da
construção e consolidação de identidades, sejam elas locais, regionais ou nacionais.
Daí ser pensada a análise da construção paisagística do sertão do Ceará a partir da
invenção. Ao utilizar o termo invenção se parte da iia de que o homem não concebe e
nem tem acesso ao puramente natural. Todas as percepções humanas sobre o mundo são
eventos construídos espacial e temporalmente. Nesse sentido, a palavra invenção é
empregada na sua remissão a “[...] dimeno genética das práticas humanas, independente do
que considerem ser as ações determinantes ou fundantes da realidade ou de suas
17
CASTRO. Iná Elias de. Natureza, imagirio e a reinvenção do Nordeste. IN: CORRÊA, Roberto Lobato;
ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Paisagem, imagirio e espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. (Colão
Geografia Cultural). p. 103.
18
Ver WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
19
Ver THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos
animais, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
20
CLAVAL, Paul. A paisagem dos geógrafos. IN: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (orgs.).
Paisagem, textos e identidade, p. 67.
21
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes de fazer, p. 209.
16
representações.
22
Isto é, esta expressão remete a uma temporalização dos eventos, dos
objetos e dos sujeitos, podendo se referir tanto à busca de um dado momento de fundação ou
de origem, como a um momento de emergência, fabricação ou instituição de algo que surge
como novo, como é o caso dessa análise, a inauguração literia do temas e enunciados que
definem a paisagem do espaço cearense.
23
Assim, o termo invenção se remete a uma dada ruptura, a uma dada cesura ou a um
momento inaugural de alguma prática, de algum costume, de alguma concepção, de algum
evento humano. Nesse sentido, o momento da invenção da paisagem sertaneja é como própria
de um passado e visa-se dar conta dos agentes dessa invenção, definindo quais práticas, que
relações sociais, que atividades sociais produziram esse evento. A literatura cearense em
questão é tomada como documento histórico, capaz de possibilitar um rastreamento do
momento desta invenção e dos interesses que se encontravam na raiz de dado acontecimento,
os conflitos e as contradições que levaram a sua emergência.
24
Portanto, o momento de invenção, como de irrupção de qualquer evento histórico,
nesse estudo que se relaciona com a paisagem sertaneja, é um momento de dispersão, que
ganha contornos definidos no trabalho de racionalização e ordenamento que o estudo se
propõe a realizar no decorrer dos capítulos.
Dessa maneira foi definido o recorte cronológico do estudo que obedece aos anos de
publicação das obras literias selecionadas, uma vez que elas o tomadas como
inauguradoras de uma forma de ver e dizer o espaço sertanejo cearense. As obras elencadas
para o estudo, em ordem de publicação, o as seguintes: O sertanejo, do cearense José de
Alencar (1875); Os retirantes (1879), do fluminense José do Patrocínio; A fome (1890), do
baiano Rodolfo Tfilo; Luzia-Homem (1903), do cearense Domingos Olímpio; Terra de sol:
natureza e costumes do Norte (1912), do cearense Gustavo Dodt Barroso; e por último, Aves
de arribação (1914), do também cearense Antônio Sales. Apesar de dois desses literatos não
serem nascidos no Ceará, cada um deles em suas obras tratam do sero cearense, seja por
móveis profissionais ou identitários, todavia, essas questões serão apresentadas no decorrer do
estudo.
A inauguração de um ver e dizer o sertão se devido a essa produção literia
cearense ser imbda de uma ânsia por identidade, de diferencião das demais províncias
e/ou estados do Brasil. Por essas, segundo Ivone Cordeiro Barbosa, o sertão é um lugar-
22
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Hisria: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc,
2007. (Colão História). p. 19.
23
Ibid., p. 20.
24
Ibid., p. 24
17
incomum porque é “um espaço de ambigüidades, de diferentes experiências e de variadas
possibilidades de leituras.
25
Para a autora é no seu conteúdo cultural, ao designar um
determinado espaço como lugar de tradições e costumes antigos, enfim, naquilo que é
concernente às experncias históricas vividas nesse espaço, que a força simlica do sero
mais se faz sentir.
26
As obras analisadas possuem uma unicidade temática calcada na descrição do mundo
natural. Todas elas o ricas em relatos paisagísticos porque centram a sua escrita regionalista
na terra. Ver-se-á no decorrer do estudo que nos discursos do rontico Jode Alencar há
recorncia aos ideais de sublimidade e beleza para construir um sertão de pura Natureza. Isso
se porque os autores-fonte da formação rontica de Alencar são dos séculos XVIII e
XIX, um período em que surgiu tanto o Romantismo e o Iluminismo quanto as iias sobre o
Sublime e o Belo, sistematizadas pelo fisofo anglo-irlandês Edmundo Burke (1729-1797).
Em 1757 Burke lançou a sua principal obra An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the
Sublime and the Beautiful (Uma Investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do
Sublime e do Belo) e com ela influenciou a leitura rontica do mundo, principalmente
quando se tratava da Natureza.
os realistas naturalistas da literatura da seca buscam imaginar o real por meio dos
elementos materiais. Uma vez que os autores José do Patrocínio, Rodolfo Tfilo e Domingos
Olímpio foram perpassados pelas revoluções históricas e intelectuais do final do século XIX.
Sendo assim, experimentaram os anos de 1870 que marcam no mundo uma revolução nas
idéias e na vida, despertando o interesse e a devoção dos homens pelas coisas materiais.
Fizeram parte de uma geração que se apossou da direção do mundo, possda daquela fé
especial nas coisas materiais. Nesse sentido, essa literatura da seca cearense implica uma
imaginação e, no caso dos literatos realistas e naturalistas da “materialista geração 70” ,
uma imaginação a partir do real. Sendo esse real buscado nos próprios elementos materiais
têm-se, então, a elaboração de uma imaginação material, tal como pensada por Gaston
Bachelard. Enquanto os realistas e naturalistas tardios, Antônio Sales e Gustavo Barroso,
transitam entre essas duas leituras do sertão cearense. Assimilam tanto a sensibilidade sublime
e bela romântica como a imaginão da matéria dos realistas e naturalistas da literatura da
seca. As concepções teóricas e metodológicas de Edmund Burke e Gaston Bachelard serão
esposadas no decorrer dos capítulos.
25
BARBOSA, Ivone Cordeiro. Sertão: um lugar incomum; O sertão do Ceana literatura do século XIX. Rio
de Janeiro: Relime Dumará; Fortaleza:Secretaria de Educão e Desporto do Estado, 2000. (Coleção Outros
Diálogos;5). p. 25.
26
Ibid., p. 33.
18
Diversos estudos tram a famosa História das Secas, nos quais diferentes autores
analisam a cronologia e os efeitos da estiagem, principalmente em termos poticos,
econômicos e sociais. Por exemplo, o estudo de José Américo de Almeida, As secas do
Nordeste, a obra de Joaquim Alves, História das Secas (culos XVII a XIX), ou ainda a
famosa Seccas contra as seccas, de Phelipe e Theófhilo Guerra, além dos textos mais recentes
como Vida e morte no sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX, de Marco
Antônio Villa, e A tragédia do mil dias: a seca de 1877-79 no Ceará, de Cicinato Ferreira
Neto, representam esses formatos de análises, entre outros. Além de muitos outros estudos
técnicos sobre o fenômeno natural propondo soluções ao “problema, seguidos pelos que
analisam o banditismo social, principalmente os referentes ao cangaceirismo ou a vadiagem,
engendrados pela estiagem, entre outras teticas similares.
Entretanto, parece não haver estudos que pensem a idéia da paisagem sertaneja
cearense como caracterizadora e representante de um espaço em plena construção, o
Nordeste. Ainda mais quando se vislumbra que essa constituição identitária regional foi
marcada pela particularidade de um território assolado pelo sol. Assim, as experiências
nordestinas são mais vidas e contundentes quando vistas de dia. A invenção da Terra da
Luz é relacionada a uma leitura do sertão cearense como essencialmente diurno, de
preemincia paisagística solar, enfim uma espacialidade da luz.
Os trabalhos relativos à iia de identidade regional são os de Albuquerque Júnior, A
invenção Nordeste e outras artes, no qual o autor analisa a formulão e emergência da
identidade nordestina entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX.
27
Assim
como, a sua dissertação de mestrado, Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário
nordestino de problema à solução (1877-1922)
28
, em que há a análise do processo de
problematização da seca e sua conseqüente asceno como responvel pelos problemas
políticos, econômicos e sociais da região. Outro estudo relevante, e próximo da tetica
proposta, é a obra de Ivone Cordeiro Barbosa, Sertão: um lugar incomum
29
, na qual a autora
analisa a construção do sertão a partir da literatura cearense do século XIX, chegando
conclusões interessantes, como por exemplo, a de que essa literatura constrói um sero
plural, multifacetado, com sua gente e seu espaço repleto de vários possíveis. Por fim, o texto
de Frederico de Castro Neves, Imagens do Nordeste: a construção da memória regional,
30
no
qual o autor questiona o Nordeste como um já dado e analisa as imagens mais pertinentes à
27
Ver ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.
28
Id. Falas de ascia e de angústia: a seca no imaginário nordestino de problema à solução (1877-1922).
29
Ver BARBOSA, Ivone Cordeiro. Sertão: um lugar incomum; O sertão do Ceará na literatura do século XIX.
30
NEVES, Frederico de Castro. Imagens do Nordeste: a construção da memória regional. Fortaleza: SECULT,
1994. (Colão Teses Cearenses).
19
memória social que, por essa mesma razão, dão a iia de unidade, homogeneização da região
e almas nordestinas.
Pensar a história pelo viés da cultura é o que torna possível a alise dessa literatura
cearense como uma representação espacial do sertão. Uma vez que a História Cultural, ou
Nova História Cultural,
31
trouxe para o campo epistemológico da disciplina, a partir da década
de sessenta, vários contatos com áreas afins, acabando por abrir um leque de objetos passíveis
de análise histórica no âmbito cultural. Como afirma Chartier, o objetivo da história cultural é
“identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade
social é constrda, pensada, dada a ler.
32
Assim, a literatura analisada nesse estudo é uma
produção cultural e tomada nesse aspecto como uma forma de expressão e tradução da
realidade que se faz de forma simlica. Nesse sentido, como diria Pesavento [...] admiti-se
que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ões e aos atores sociais se apresentam
de forma cifrada, portando já um significado e uma apreciação valorativa.
33
Portanto, este trabalho é pensado como mais uma mínima contribuição a história do
Ceará e do Nordeste, pois quando se trata de estudos históricos as assertivas de Paul Veyne
falam da clara e certa incompletude da análise geometral do historiador.
34
Este trabalho
pretende pôr em ênfase o olhar e a imaginação, detendo suas análises em passagens, trechos
literários capazes de dar a plena sensação de uma viagem pelo espaço sertanejo, falas
poderosas em criar uma sensibilidade espacial no leitor.
Quanto à estrutura do trabalho, constará de três partes. No capítulo I O sublime e o
belo na paisagem alencarina do sertão cearense, será analisada a construção paisagística
sertaneja cearense na obra O sertanejo (1875), de José de Alencar, buscando imbricar o
momento nacionalista da produção do autor, sua formação intelectual e suas posturas potico-
literárias juntamente a sua leitura e sensibilidade sublime e bela do mundo natural sertanejo
cearense. O capítulo II A imaginação material na paisagem da literatura da seca cearense,
tem como intuito investigar a paisagem dos literatos da seca cearense Os retirantes (1879),
de José do Patrocínio, A fome (1890), de Rodolfo Tfilo e Luzia-Homem (1903), de
Domingos Olímpio, pensando esses homens de letras em sua dada condição de escrita e
31
Ver HUNT, Lynn. A nova hisria cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992 (O Homem e a História).
32
CHARTIER, Roger. A hisria cultural: entre pticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. p.16-17.
33
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Hisria & Hisria Cultural. 2 ed. 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica,
2005. p. 15.
34
Paul Veyne afirma que a história possui uma “natureza lacunar” devido os temas serem subjetivos, ou seja,
mesmo que inconscientemente, acabam sendo escolhidos pelos historiadores e, isso refleti claramente na
narração histórica, pois a importância dada algumas temáticas levará a criação de lacunas em outras, quer seja
pelo interesse, quer seja pela falta de fontes para o trabalho historiográfico. No entanto, nem por causa das
variadas lacunas deixa-se (...) de escrever algo que se dá, ainda assim, o nome de história (...). Ver VEYNE,
Paul. Como se escreve a hisria. 4 ed. Brasília: Ed. UNB, 1998. 27.
20
atrelados a um discurso da verdade presa ao olhar que os seduziram a uma leitura da natureza
interiorana cearense a partir dos elementos naturais e suas correlações: terra, fogo, ar e água.
Por fim, o capítulo III Leituras da tradição: o sublime, o belo e a matéria na paisagem
sertaneja cearense, se centralizará em estudar a consolidação da paisagem do sertão do Ceará
nas obras Aves de arribação (1914), de Annio Sales e Terra de sol: natureza e costumes do
Norte (1912), de Gustavo Barroso, a partir da retomada do enunciados e temas das distintas
paisagens do sertão do Ceará já constrdas pelas gerações de literatos anteriores, mas que
foram remodelados, reafirmados e atualizados, acabando por compor a emergente paisagem
do Nordeste.
A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875-1914)
Capítulo I
O sublime e o belo na paisagem alencarina do sertão
O intuito deste capítulo se constitui em analisar a construção da paisagem sertaneja
cearense a partir da obra O sertanejo, publicada em 1875, sob autoria de Jo Martiniano de
Alencar. Nessa construção se busca perceber o uso de elementos poéticos presentes numa
sensibilidade relacionada ao Sublime e o Belo, assim como a representação do sertão
alencarino como espaço da luz.
José de Alencar revelou a fonte de sua inspiração para escrita de O sertanejo logo nas
primeiras passagens da obra, localizadas no primeiro capítulo, intitulado O comboio. Vê-se aí
um ponto de partida para se pensar Alencar e sua obra:
Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de
minha terra natal.
Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei muitos
anos na aurora serena e feliz da minha inncia?
Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes,
nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?
De dia em dia aquelas remotas regiões vão perdendo a primitiva rudeza,
que tamanho encanto lhes infundia.
A civilizão que penetra pelo interior corta os campos de estradas, e
semeia pelo vastíssimo deserto as casas e mais tarde as povoações.
o era assim no fim do século passado, quando apenas se encontravam
de longe em longe extensas fazendas, as quais ocupavam todo o espaço
entre as raras freguesias espalhadas pelo interior da província.
1
A memória de José Alencar se constituiu como o elemento impulsionador da obra O
sertanejo, de 1875. Márcia Naxara afirma que o autor se valeu da “memória da infância como
recurso que permite marcar a diferença e a distância entre o passado e o presente.
2
Indo em
busca de uma retomada ao passado, de uma experiência muito distante não no tempo, mas
tamm no espaço.
1
ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo: Martin Claret, 2005. p.11.
2
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade rontica: em busca de um sentido
explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004. p. 239.
22
À época de produção da obra, o autor não mais vivia no campo. Alencar se tornara um
homem citadino, radicado definitivamente na capital brasileira desde 1851: espaço da potica
nacional e das literaturas ronticas européias. Essas primeiras passagens esclarecem o
sentimento noslgico do autor, ou seja, revelam saudades de algo, de um estado, de uma
forma de exisncia que se deixou de ter, certo desejo de voltar ao passado, talvez até mesmo
por sua perspectiva de vida estar no fim.
3
Nesse sentido, Alencar apresenta, de certa maneira, na trama um relato do espaço
sertanejo fortemente impregnado por suas sensações da infância e de uma intimidade pessoal
com o torrão natal, do tempo em que residia no interior cearense. Segundo Naxara, presencia-
se na obra alencarina os significados registrados a partir da subjetividade do artista que
constrói imagens tamm da subjetividade em que se considera, privilegiadamente, as
sensações e sentimentos ambivalentes dos homens, da sua vivência e do seu imaginário.
4
Alencar escreve a obra num momento histórico do Brasil em que a formação da
identidade nacional estava sendo pensada e, ao mesmo tempo, o vislumbre tímido de um ideal
de modernidade estava se apresentando no que se constituiria, posteriormente, a cidade Luz, o
Rio de Janeiro. Uma cidade que representava para Alencar proveniente de Mecejana,
interior do Ceará o espaço mais civilizado da não, com um princípio de vida urbano-
industrial, com alguns movimentos da nascente indústria e dinâmico em sua essência
cosmopolita, enfim uma cidade ilustrada, onde os debates intelectuais se davam de forma
mais sistêmica e aprofundada. Alencar se percebia como parte desse espaço civilizado e
moderno, foi daí que partiu seu discurso sobre o Outro espaço, o campo. Portanto, para pensar
o sertão alencarino se faz necessário ter em mente esse contraste, provocado por um olhar
citadino e que revela uma paisagem do campo, mais especificamente do sertão.
O romântico retorno ao passado do sertão, a partir da cidade, daria acesso às legítimas
fontes da identidade individual, de Alencar, e nacional, para o Brasil. O afastamento, a
distância do torrão natal seria condição sine qua non para constr-lo a posteriori. Uma vez
que, segundo Raymond Williams, raramente uma terra em que se trabalha [ou vive] é uma
paisagem. O próprio conceito de paisagem implica separação e observação.
5
Era importante
criar a terra natal como lugar de origem em relação ao qual se estabelecia uma noção de
3
José de Alencar era acometido de tuberculose desde novembro de 1848, tendo os primeiros sintomas de
agravamento da doença em 1875. O autor faleceu de hepato-enterite em 12 de dezembro de 1877. Ver Atestado
de óbito de José de Alencar”. In: MENEZES, Raimundo de (Org.). Cartas e documentos de José de Alencar.
2. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília: INL, 1977. p.181.
4
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade rontica: em busca de um sentido
explicativo para o Brasil no século XIX, p. 241.
5
Ver WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras,
1989. p. 197.
23
pertencimento. Além disso, no discurso alencarino a exaltação, a descrição grandiosa da
paisagem sertaneja se fazia necessário para traduzi-la. A verossimilhança se fez também
presente nessa construção do sertão cearense, pois ela era a responsável por instaurar uma
noção de exemplaridade que criava um vínculo simlico estreito entre o texto e o público a
quem ele se destinava.
Segundo Luciana Murari, Alencar consti a paisagem a partir de um olhar civilizado,
o que tamm pode ser percebido no seu discurso sobre o sertão cearense. Assim, a
capacidade de contemplar, admirar e encontrar na natureza exuberante dos trópicos uma fonte
de inspirão poética é exclusiva do homem civilizado, que se sentiria capaz de vencer as
forças naturais, convertê-las a seu serviço e assimilá-las como fonte de criação poética.
6
Contudo, por não viver as asperezas da natureza do agreste a obra concluída de
Alencar, foi alvo de críticas em sua contemporaneidade e depois dela, no sentido de possuir
traço marcante de um absoluto idealismo. Todavia, ainda que o impacto da natureza sobre a
sensibilidade tenha sido inerente ao talento do escritor, apenas através da própria literatura
essa inflncia, obscurecida pela civilização, teria sido capaz de manifestar-se na escrita de
Jose de Alencar.
7
Enfim, o olhar de Alencar sobre o sertão cearense dependerá da sua cultura
livresca, em especial das obras de cronistas e literatos americanos, assim como da literatura
romântica francesa.
Como o sertão em Alencar foi constrdo a partir de uma perspectiva memoriastica,
possa um ideal de reviver, evocar um passado distante, originário e puro de sua terra natal,
intimamente vinculado a um período colonial, como no caso de O sertanejo, o século XVIII
no interior nortista. A melancolia também se fez presente no sentido da formação de um
sentimento de vaga e doce tristeza que o comprazia e que favorecia o devaneio e a meditação.
O enaltecimento do homem e da natureza são temas importantes para reviver esse
passado na obra O sertanejo. O mundo natural tomando por esse termo tudo que é
relacionado aos aspectos geográficos, físicos, os elementos básicos da natureza (terra, água,
fogo e ar), bonicos, faunianos, climatéricos, sonoros, odoríficos e celestiais foi passível de
um olhar capaz de construir uma perspectiva paisagística, nesse caso, um espaço específico, o
sertão cearense.
Há na obra O sertanejo, uma exaltação das virtudes tropicais, pois Alencar como
sendo um dos representantes do nacionalismo romântico se calcou numa valorização da
6
MURARI, Luciana. Tudo o mais é paisagem: representações da natureza na cultura brasileira. 2002. Tese
(Doutorado em História Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2007. p.122.
7
Ibid.
24
paisagem e da natureza brasileiras como fonte de particularidade das letras nacionais. Assim,
a vio rontica da relação homem e natureza, em Alencar, se constituía numa atitude
contemplativa, comportando uma espécie de veneração com relação aos elementos da criação
e que, ao adquirir grandeza na representação, tornam-se capazes de tocar a alma e o coração
humanos, além da solidão, mesmo que eventualmente partilhada, fundamental à fruição
estética.
8
Sendo assim, podem-se pensar algumas questões norteadoras: como se deu a
construção dessa paisagem? De que era composta essa primeira leitura rontica sobre o
sertão do Ceará? É possível pensar outras paisagens? Essa paisagem constituiu uma
identidade para a área?
Tentando responder a essas questões é que a análise se direcionará a passagens
consideradas mais significativas quanto à descrão e/ou relão do homem com o mundo
natural na obra O Sertanejo. Neste capítulo se alternarão, um pouco como no romance, as
visões de conjunto resumidas, as cenas, ou análises detalhadas recheadas de citões, pausas,
onde o autor comenta o que acaba de acontecer.
1.1 O romance e o romântico lançam um olhar sobre o sertão
O século XIX foi o momento da formação de uma identidade brasileira. Diversos
setores sociais tentaram instaurar uma possibilidade dessa identidade, isso não deixando de
ocorrer perto das disputas poticas, ideogicas e intelectuais da época. Os discursos
construtores de uma identidade do Brasil se entrecruzavam em temas de matizes distintas.
Dentre elas, o movimento literário romântico foi mais uma voz a anunciar de que seria
constitdo esse Brasil.
Annio Cândido
9
afirma que depois da Indepenncia do Brasil, em 1822, a atividade
literária se aliou num esforço de construção de um país livre, em cumprimento a um programa
que visava a diferenciação e particularização dos temas e modos de exprimi-los. Houve certa
8
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade rontica: em busca de um sentido
explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2004. p. 251.
9
Antonio Cândido de Mello e Souza estabeleceu um dlogo com os interpretadores do Brasil, próximo por
exemplo de Sérgio Buarque de Holanda na Universidade de São Paulo a partir da década de 1930. Para Cândido
“a Literatura do Brasil faz parte das literaturas do Ocidente da Europa. No tempo da nossa independência,
proclamada em 1822, formou-se uma teoria nacionalista que parecia incomodada por este dado evidente e
procurou minimizá-lo, acentuando o que haveria de original, de diferente, a ponto de rejeitar o parentesco, como
se quisesse descobrir um estado ideal de começo absoluto”. Ver CÂNDIDO, Antônio. Iniciação à Literatura
Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Humanitas Publicações/FFLCH-USP, 1999.
25
“tomada de consciência dos autores quanto ao seu papel, e à intenção mais declarada de
escrever para a sua terra.
10
Ainda segundo Antônio Cândido, esse nacionalismo artístico, presente em Alencar, foi
fruto de condões históricas, em certos momentos, quase imposição de um Estado que
almejava se formar, adquirir fisionomia, dantes constituído por povos desprovidos de
autonomia ou unidade. O nacionalismo, teoricamente, independe do Romantismo, embora
tenha encontrado nele o aliado decisivo. O autor, portanto, deixa claro que o Romantismo
participou efetivamente do projeto de construção da nação brasileira:
O Romantismo brasileiro foi por isso tributário do nacionalismo; embora
nem todas as suas manifestações concretas se enquadrassem nele, ele foi
o espírito diretor que animava a atividade geral da literatura. Nem é de
espantar que assim fosse, pois sem falar da busca das tradições nacionais
e o culto da história, o que se chamou em toda a Europa “despertar das
nacionalidades”, em seguida ao empuxe napoleônico, encontrou
expreso no Romantismo. Sobretudo nos países novos e nos que
adquiriram ou tentaram adquirir independência, o nacionalismo foi
manifestação de vida, exaltação afetiva, tomada de consciência,
afirmão do próprio contra o imposto.
11
(Grifos do autor)
Nesse sentido, o Romantismo foi historicamente uma forma de expressão dos
movimentos nacionalistas,
12
tendo sua emergência primeiramente na Europa. O estilo literário
nasce e cresce no bojo de condições históricas bastante determinadas, entre a segunda metade
do século XVIII e a primeira metade do século XIX: as grandes revoluções inspiradas pelo
liberalismo, sobretudo a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Industrial, que
incrementou a indústria, o comércio e as grandes concentrações urbanas, habitat de uma
crescente burguesia.
13
O Romantismo teve um significado enorme para a formão das
identidades nacionais, como bem afirma Pereira:
Essas revoluções vão alterar profundamente as condições existenciais, do
ponto de vista material e espiritual. Como as instituições poticas,
10
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. v. 1. Belo Horizonte:
Itatiaia Ltda, 2000. (Literatura Brasileira: História e crítica). p. 26.
11
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. v. 2. Belo Horizonte: Itatiaia
Ltda, 2000. (Literatura Brasileira: História e ctica). p. 15.
12
Ver FALBEL, Nachman. Os fundamentos hisricos do Romantismo. In: GUINSBURG, J. (Org.). O
Romantismo. 2. ed. São Paulo: Perspectivas, 1985. p. 23-50.
13
PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. Um fabulador da nacionalidade: José de Alencar. In: Sitienbus, Feira de
Santana, n. 14, p. 95-122, 1996, p. 100.
26
também o equilíbrio entre as nações se altera, propiciando a ecloo de
fortes sentimentos nacionalistas. [...] Esses ideais, como não poderia
deixar de ser, ultrapassam as fronteiras das metrópoles e chegam às
colônias americanas, imprimindo também aqui os anseios libertários e
nacionalistas, tão ao gosto romântico.
14
Assim, encontra-se a soberania do tema local e sua decisiva imporncia em tais
países, como no Brasil. Descrever costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de
sentido nacional, era libertar-se do jugo da literatura clássica, universal, comum a todos,
preestabelecida, demasiado abstrata afirmando em contraposição o concreto espontâneo,
característico, particular.
15
Segundo Cândido, o Nacionalismo, na literatura brasileira,
consistiu basicamente, em escrever sobre coisas locais; no romance, a conseqüência imediata
e salutar foi a descrição de lugares, cenas, fatos, costumes do Brasil”.
16
O autor ainda define uma relação entre o romance brasileiro e a sua tenncia de
construção do espaço nacional. Havia, nesse sentido, ts graus na matéria romanesca,
determinados pelo espaço em que se desenvolve a narrativa: cidade, campo, selva; ou por
outra, vida urbana, vida rural, vida primitiva. Por isso mesmo, o romance brasileiro tem fome
de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país. Talvez seu legado consista menos
em tipos, personagens e peripécias do que em certas regiões tornadas literárias, a seqüência
narrativa inserindo-se no ambiente, quase se escravizando a ele. Assim, o que se vai formando
e permanecendo na imaginação do leitor é um Brasil colorido e multiforme, que a criação
artística sobrepõe à realidade geogfica e social. Esta vocação ecológica se manifesta por
uma conquista progressiva de território.
17
Cândido ainda comenta sobre esse projeto
nacionalista a partir do romance:
[...] e como além de recurso estético foi um projeto nacionalista, fez do
romance verdadeira forma de pesquisa e descoberta do país. A nossa
cultura intelectual encontrou nisto um elemento dinamizador de primeira
ordem, que contribuiu para fixar uma consciência mais viva da literatura
como estilização de determinadas condições locais. O ideal romântico-
nacionalista de criar a expreso de um país novo encontra no romance a
linguagem mais eficiente. Basta relancear em nossa literatura para sentir a
importância deste, mais ainda como instrumento de interpretação social
do que como realização artística de alto vel.
18
14
PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. Um fabulador da nacionalidade: José de Alencar. In: Sitienbus, Feira de
Santana, n. 14, p. 95-122, 1996, p. 100.
15
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. v. 2., p.15.
16
Ibid., p. 99.
17
Ibid., p. 101.
18
Ibid., p. 99-100
27
Caminhava, paralelamente a esse projeto nacionalista artístico, um projeto nacionalista
oficial com o intuito de construir uma identidade nacional, tendo à frente o IHGB Instituto
Histórico e Geogfico Brasileiro. O Brasil, em meados do século XIX, caracterizava-se por
ser uma nação rem independente em que era preciso criar uma iia de homem brasileiro,
de povo brasileiro, no interior de um projeto de nação brasileira.
19
O projeto nacional seria a
criação de um passado brasileiro do qual a nação pudesse se orgulhar e que lhe permitisse
avançar com confiança para o futuro. Daí a criação dos Institutos Históricos e Geográficos a
partir de 1838, os guardiões da história nacional. Analisando a formação desses institutos
Schwarcz afirma que
a fundação do primeiro Instituto Histórico e Geogfico em 1838
responde também à lógica do contexto que segue à emancipação potica
do país. Sediado no Rio de Janeiro, o IHGB surgia como um
estabelecimento ligado à forte oligarquia local, associada financeira e
intelectualmente a um monarca ilustrado, e centralizador. Em suas
mãos estava a responsabilidade de criar uma história para a nação,
inventar uma memória para um ps que deveria separar, a partir de
então, seus destinos dos da antiga metrópole européia.
20
Para Manoel Luís Salgado Guimarães
21
, era tarefa pensar o Brasil segundo os
postulados próprios de uma história comprometida com o desvendamento do processo de
gênese da Nação, a que tanto se entregavam os letrados reunidos em torno do IHGB. Alencar
fazia parte desse grupo de letrados oriundos das elites do país e, por mais que não tivesse
participado efetivamente da instituição, esteve vinculado a uma das linhas teticas mais
importantes dos estudos fomentados pelo IHGB para a construção de uma identidade nacional
brasileira no século XIX: a nova nação proposta se reconhece enquanto continuadora de
certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa.
22
Esse reconhecimento se faz presente na obra alencarina, a tomar como exemplo O
sertanejo. O autor descreve com pompas o capio-mor de ordenanças Gonçalo Pires
Campelo, ou seja, representante de uma estrutura militar do período colonial brasileiro e,
19
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 31.
20
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O especulo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil (1870-
1930). 5. reimp. São Paulo: Companhia da Letras, 2004. p. 24.
21
O professor Manoel Guimarães é um renomado historiador brasileiro, com ativa produção acadêmica das
últimas décadas do século XX até o presente momento. O autor pensa as identidades nacionais a partir de outros
referenciais, distintos dos de Cândido nos anos de 1930 e 1950. O IHGB se constitui em apenas mais uma
possibilidade de criação e difusão do ideal de nacionalismo histórico do século XIX.
22
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Não e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. In: Estudos Hisricos, Rio de Janeiro, n.1, 1988. p. 5-27.
28
portanto, da presença milico-administrativa portuguesa na colônia. Um homem de traços
muito pximos dos europeus, no qual honra e valentia cavalheiresca se sobrepunham.
23
Schwarcz afirma que foi, portanto, no interior desse processo de consolidação do
Estado Nacional, tão marcado por disputas regionais, que se constituiu com força um
programa de sistematização de uma história oficial, no intuito de consolidar uma identidade
nacional. Ao IHGB coube o papel de demarcar espaços e ganhar respeitabilidade nacional.
Aos demais, a função de garantir as suas especificidades regionais e buscar definir , quando
possível, certa hegemonia cultural.
24
Nesse sentido, o romantismo de Alencar em paralelo se
incumbia da missão de descrever as especificidades regionais por meio do discurso literário.
Assim, os ronticos, em especial, se achavam possdos, quase todos, de um senso
de missão, um intuito de exprimir a realidade específica da sociedade brasileira. E o fato de
não terem produzido grande literatura (longe disso) mostra como são imprescindíveis à
conscncia propriamente artística e a simpatia clarividente do leitor coisas que não
encontrou senão excepcionalmente no Brasil oitocentista. A vocação pública, o senso de
dever literário não bastam, uma vez que o próprio alcance social de uma obra é decidido pela
sua densidade artística e a receptividade que desperta em certos meios.
Esse sentido de missão em Alencar, como participante da construção de uma
identidade nacional, talvez não estivesse de acordo com a mentalidade dos intelectuais da
época, mas também à sua própria história familiar. O próprio autor se reconhecia descendente
de uma linhagem que participou de eventos importantes para a história nacional.
Em sua autobiografia, faz refencias diretas a isso quando descrevia a sua residência
a Chácara da Rua Mar, nº 7”
25
como espaço das discussões poticas e de asilo aos
refugiados das revoluções de que participara seu pai. De lá saíram os planos da Revolução
Parlamentar da Maioridade e a Revolução Popular de 1842.
26
Discutia-se nessas ocasiões a
antecipação da maioridade do imperador D. Pedro II, eno com apenas 14 anos, para que ele
pudesse assumir o trono antes do tempo determinado pela Constituição. O principal objetivo
era garantir a unidade do Estado imperial, abalada pelas constantes revoltas provinciais
ocorridas na década de 1830, no período das Regências. O senador José Martiniano de
Alencar, pai do romancista, era um dos principais líderes do Partido Liberal.
23
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.12-13.
24
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O especulo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil (1870-
1930), p. 99-100.
25
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista. Campinas (SP): Fontes, 1990. p. 32-33.
26
Ver SILVA, Daniel Pinha. Como e porque sou moderno: o lugar do passado no pensamento ctico de Jo
de Alencar. Dissertação (Mestrado em História) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
29
Entretanto, Alencar ao retomar esse tema da falia e dos eventos políticos, fixou um
desgosto pessoal referente ao não reconhecimento dado ao pai: [...] e todavia ninguém se
lembrou ainda de memorar o nome do Senador Alencar, nem mesmo por esse meio
econômico de uma esquina de rua”.
27
Portanto, talvez a sua participação na formão de uma
identidade nacional estivesse vinculada a uma procura por um reconhecimento, pessoal e
familiar, na história nacional.
Mesmo assim, esse sentido missionário presente em sua prática literária era, em
grande medida, impedido de vôos mais altos em relação a um absoluto idealismo, do qual foi
acusado Alencar. Segundo ndido,
não há literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcendê-lo pela
imaginão, os escritores se sentiram frequentemente tolhidos no o,
prejudicados no exercício da fantasia pelo peso do sentimento de missão,
que acarretava a obrigação cita de descrever a realidade imediata, ou
exprimir determinados sentimentos de alcance geral. Este nacionalismo
infuso contribuiu para certa renúncia à imaginação ou certa incapacidade
de aplicá-la devidamente à representão do real, resolvendo-se por vezes
na coexistência de realismo e fantasia, documento e devaneio, na obra de
um mesmo autor, como Jo de Alencar. Por outro lado, favoreceu a
expreso de conteúdo humano, bem significativo dos estados de espírito
duma sociedade que se estruturava em bases modernas.
28
Por isso, afirma Cândido, se de um lado o Romantismo trazia a água para o moinho do
eu, ia de outro preservando a atitude de objetividade e respeito ao material observado, que
mais tarde produziria o movimento naturalista. Como bem afirma Wilson Martins: José de
Alencar [foi], realista antes dos realistas e, por isso mesmo, realista entre os românticos.
29
O
realismo, aliás, é de todo romance, em todas as suas fases; pois o romance se constituiu
sobretudo na medida em que aceitou, como alimentação da imaginação criadora, o cotidiano e
a descrição objetiva da vida social.
30
Assim, Cândido complementa a sua idéia:
Esta exigência de realismo, que assinala a maior parte da novestica
moderna, conduz, no Brasil, ao romance de costumes e ao romance
regional, que dentro do Romantismo limitam o vôo rico do eu, em
proveito daquela consciência dos outros, que domina as concepções
27
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 32.
28
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, v. 1. p. 26.
29
MARTINS, Wilson. Hisria da Inteligência Brasileira (1877-1896). v. 4. São Paulo: Cultrix; Ed. Da
Universidade de São Paulo, 1977-78. p. 4.
30
CANDIDO, Antonio. Op. cit., v.2. p. 24
30
clássicas como a ppria esncia do decoro. Por isso, o romance, sob
certos aspectos, serve de contrapeso ao individualismo, enriquecendo o
panorama romântico,o rico, na verdade, que dele saiquase tudo o que
temos realizado aagora.
31
Portanto, seria ingênuo pensar José de Alencar como menos realista. Quando se fala
na irrealidade ou convencionalismo dos romancistas românticos, é preciso notar que os bons
dentre eles, não foram irreais na descrição da realidade social, mas apenas nas situações
narrativas.
32
Assim a consciência social dos ronticos imprime aos seus escritos esse cunho
realista que provém da disposição de fixar literariamente a paisagem, os costumes, os tipos
humanos. Este acentuado realismo estabelece no romance romântico uma contradição interna,
um conflito por vezes constrangedor entre realidade e sonho.
33
Assim, essa literatura é então
tomada como um documento específico, constituindo-se num ponto de vista de um autor
baseado em suas experiências reais.
Nesse sentido, José de Alencar apreendeu, representou e filtrou o mundo (de forma
ficcionante), por meio de sua memória, sensibilidade, sonhos e projetos, mas também
tomando como referência a observão do mundo ao seu redor. Segundo Naxara, a busca pela
verossimilhança
carrega em si o sentido daquilo que o romance pode ensinar e da sua
eficácia na transmissão de valores e vies de mundo que podem, por
exemplo, torná-lo mais atraente com relação à educação ética e moral que
a transmissão de conhecimentos objetivamente dados, justamente por
trabalhar com o que é interior aos homens, ou seja, suas paixões e
sentimentos.
34
Essa preocupação com a realidade, como afirma Peloggio, possibilita pensar um
Alencar historiador, mas como sendo “um historiador à sua maneira. Uma vez que a prática
do literato era buscar nas crônicas históricas o elemento básico do passado colonial, a fim de
que atue como pano de fundo na armação de seus romances. Assim convertendo os fatos
nacionais em representação literária, de modo a dramatizar a história descrevendo a cena na
31
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, v.2, p. 24.
32
Ibid.,p. 103.
33
Ibid., p. 102.
34
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido
explicativo para o Brasil no século XIX, p. 243.
31
qual se passaram os fatos mais importantes, e apresentando ao vivo seus personagens e sua
decorão. Para Peloggio,
a imaginação, assim recobre a história partindo dos acontecimentos reais
a serem tratados quer pela aridez do documento (cartas, decretos,
relarios), quer pela linguagem figurada da obra poética. O que não
impede o conhecimento do passado mediante uma das formas pelas quais
se lhe representa o conjunto de eventos.
35
José Martiniano de Alencar, partindo dessas práticas intelectuais e poticas, produziu
uma vasta obra, sendo até mesmo considerado um dos maiores ícones da literatura rontica
brasileira e o pai da literatura genuína do país. Seus escritos am de narrar os tipos
brasileiros, tamm caracterizou amiúde as diferentes áreas do Brasil, em grande medida, o
palco de seus romances.
A obra O sertanejo, publicada em 1875, foi um dos últimos romances do autor. Sua
trama se desenrola no interior do Ceará, constituindo uma representação do modo de vida e
dos tipos sertanejos. É importante lembrar Alencar como um autor diferenciado, devido a ter
sido um dos primeiros literatos preocupados com a construção de um Brasil, de uma
identidade nacional.
36
Assim, o olhar alencarino sobre as paisagens dos diferentes brasis se
deu de forma particularizada, numa busca por uma apropriação das partes para depois compor
um todo. O romântico sente a paisagem ligada a um panorama sendo, então, a escrita de
Alencar uma tentativa de domar e ter poder sobre o que se dizia a respeito do sertão cearense.
Ao pensar esse sertão cearense Alencar centralizou o discurso num culto à natureza.
Uma vez que o Romantismo a supervalorizava como um lugar de refúgio, puro, não
contaminado pela sociedade, lugar de cura sica e espiritual. A natureza surgiu então como
fonte de inspirão, inaugurada pelo frans ilustrado Rousseau um grande influenciador da
literatura romântica proveniente da Revolução Francesa , para tratar de paisagens exóticas e
incomuns.
37
Segundo Elvya Pereira
38
, esse Romantismo se apresentará como uma nova forma
de perceber o mundo, em que se dinamiza e amesmo se diviniza a Natureza. Essa nova
35
PELOGGIO, Marcelo. José de Alencar: um historiador à sua maneira. In: ALEA: Estudos Neolatinos, v.6,
n.1, ISSN 1517-106X. 2004. p.83.
36
Ver BORGES, Valdeci Rezende. Cultura, natureza e história na invenção alencarina de uma identidade da
nação brasileira. In: Revista Brasileira de Hisria, São Paulo, v. 26, n. 51, p. 89-114, 2006.
37
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 7 ed. rev. e atual. v. 3. São Paulo: Global 2004.
38
PEREIRA, Elvya Shirley Ribeiro. Um fabulador da nacionalidade: José de Alencar. In: Sitienbus, Feira de
Santana, n. 14, p. 95-122, 1996.
32
forma se converteu de um sentimento para uma iia, um programa artístico ou um
movimento histórico-cultural.
O tema da Natureza revela uma imporncia ímpar para pensar a paisagem. É a partir
dela que se teve a perspectiva do pano de fundo das cenas, dos movimentos representados
pela relação do homem com o mundo natural no sertão cearense. Como afirma Murari a
descrição da paisagem tornou-se um procedimento discursivo de grande importância para uma
aproprião do território, sua representação e sua própria formação.
39
Nesse sentido,
continua a autora, “a natureza e a paisagem adquiriram na vida cultural latino-americana
desde seu processo de indepenncia política uma elevada dose de formalização, pois os
intelectuais vislumbraram em sua representação mecanismos privilegiados de inseão na vida
blica e de construção de suas versões da história nacional”.
40
Essas questões o evidentes nas tramas românticas de José de Alencar, uma vez que
possram como palco do enredo, de forma coordenada, diferentes áreas do país. Como por
exemplo, O Gaúcho (1870), O tronco do I(1871), Til (1872) e O Sertanejo (1875), nas
quais se retratava, respectivamente, o interior gaúcho, fluminense, paulista e cearense. Como
foi dito anteriormente, o autor foi um dos primeiros literatos nacionalistas do país e para
tentar retratar o Brasil [...] buscou nas partes a compreeno do todo, já que se via [naquele
momento] a não como um organismo composto por diversas partes, que deviam ser
individualizadas e identificadas.
41
Alencar, portanto, construindo narrativas em suas obras sobre determinadas regiões do
país esteve vinculado a uma perspectiva interligada a noção de região. Para Silva, a região só
se entende, como parte de um sistema de relações que ela integra. Deve, portanto, ser definida
por refencia ao sistema que fornece seu princípio de identidade.
42
Não é a toa que a escrita
desses textos seja relacionadas a terceira fase do autor, a dos romances regionalistas. Nesse
sentido, Alencar apresentará mais uma vez um dos traços característicos do Romantismo: a
palavra ser considerada menor que a natureza, incapaz de exprimi-la, abordando-a por
tentativas fragmenrias.
43
39
MURARI, Luciana. Tudo o mais é paisagem: representações da natureza na cultura brasileira, p.70-71.
40
Ibid., p.71.
41
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN,
Ed. Massananga; São Paulo: Cortez, 2001. p. 41.
42
SILVA, Vera Alice Cardoso. Regionalismo: o Enfoque Metodológico e a Concepção Histórica. In: SILVA,
Marcos A. (Coord.). República em Migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero/ANPUH, 1990.
p. 43.
43
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, v. 1. p. 53.
33
No caso da construção de uma identidade para a região do então Norte do Brasil,
Alencar escolheu para sua obra, O sertanejo, o próprio torrão natal, o interior do Ceará, como
representante do espaço nortista, tributário de apenas uma das partes do seu projeto
nacionalista brasileiro. O autor em sua autobiografia, Como e porque sou romancista, escrita
apenas dois anos antes de O sertanejo, em 1873, confirma essa percepção do Ceará como
representante do Norte. Uma vez que toma, em 1848, a construção da paisagem do Ceará a
partir de uma memória de viagem. Segundo o autor, essa memória se originou da leitura dos
cronistas coloniais, pelas quais desenhavam-se a cada instante, na tela das reminiscências, as
paisagens de meutrio Cea,
44
enfim, cenas estas que eu havia contemplado com os olhos
de menino dez anos antes, ao atravessar essas regiões em jornada do Ceará à Bahia; e que
agora se debuxavam na memória do adolescente, e coloriam-se ao vivo com as tintas frescas
da palheta cearense.
45
Essas lembranças provinham de Mecejana, lugar do seu nascimento, em 1829,
próximo de Fortaleza, na Proncia do Cea. Ainda na infância Alencar se transferiu com a
família para o Rio de Janeiro, onde fez os estudos elementares e alguns preparatórios e onde o
pai desenvolveria a carreira política. Foi para São Paulo em 1843, acabando por lá os
preparatórios e cursando Direito, salvo o ano de 1847, em que fez o ano na Faculdade de
Direito de Olinda. Formado, comou a advogar no Rio de Janeiro e, logo em seguida, a
escrever para o Jornal do Comércio.
Estava iniciada uma vida operosa e variada de advogado, jornalista, potico,
romancista e autor dramático. Foi redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro em 1855.
Participou da potica regional e nacional por várias vezes como deputado geral conservador
pelo Ceará e, de 1868 a 1870, ministro da justiça; não conseguiu realizar a ambição de ser
senador, devendo contentar-se com o título do Conselho dos Negócios e da Justiça.
46
Segundo
Cândido, Alencar continuou ligado às suas funções de caráter público, não apenas como
forma de remuneração, mas como critério de prestígio social. Havia também uma tenncia
associativa que vinculava os intelectuais uns aos outros, fechando-os no sistema de
solidariedade e reconhecimento mútuos das sociedades potico-culturais, conferindo-lhes um
timbre de exceção.
47
44
ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista, p. 47
45
Ibid., p. 48.
46
Em maio de 1859, Alencar foi promovido a Consultor dos Negócios da Justiça, e, como consultor, com apenas
trinta anos, recebeu o título de conselheiro. Ver MENEZES, Raimundo de. José de Alencar: literato e político. 2
ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1977. p. 368.
47
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, v.1, p. 222.
34
Na política regional alcançou o icio das reivindicações nortistas quanto à seca que
devastava a área entre 1877 e 1879. Contudo, não se pode atribuir-lhe um discurso mais
apurado no sentido de participante efetivo da construção de um discurso da seca.
48
Entretanto, Alencar compunha a bancada nortista e encaminhava seus discursos em refencia
aos problemas climatéricos do momento. Nos pronunciamentos na mara o único se a
pesquisa não estiver ludibriada referente à Seca do Ceará, Alencar pede claramente ajuda
ao Império para soccorrer a provincia do Ceará flagellada pela secca, prática essa das mais
características e marcantes da constituição do discurso regional nortista, representada abaixo
pela fala do deputado Alencar:
Sr. Presidente, a câmara municipal da cidade da Fortaleza, da provincia do
Ceará, justamente preoccupada com os effeitos da secca e as consequencias
que acompanhão esta calamidade, incumbiu-me de trazer á camara dos Srs.
Deputados uma representação em que pede novas e mais enérgicas
providencias para, se não obviar, ao menos attenuar a crise por que está
passando aquella província.
49
Além disso, nesse mesmo discurso político, Alencar esboçou certa solidariedade com
os colegas deputados da bancada nortista quanto ao apoio de seu voto para a aprovação de
medidas com o intuito de minimizar as conseqüências do flagelo da seca:
Vou concluir, e o farei dizendo que se nestas breves considerações não
me referi ás outras provincias igualmente flagelladas pela secca, é poque
ellas m nesta camara tão ilustres representantes que elles não precisão
do auxilio que lhes podia dar a minha fraca palavra (não apoiados); mas
sabem que podem contar com todas as minhas sympathias e com o meu
voto muito sincero.
50
Contudo, Alencar não constituiu nem em sua atuação política e muito menos em sua
obra literia um discurso aguerrido, repleto de denúncias e reivindicações em relação ao que,
pouco depois da época destes seus discursos parlamentares, se constituiria num problema do
então Norte”: a seca. Nesse sentido, O sertanejo, de 1875, não deve ser considerado como
48
Ver ALBUQUERQUE NIOR, Durval Muniz de. Falas de ascia e de angústia: a seca no imaginário
nordestino de problema à solução (1877-1922). 1987. Dissertão (Mestrado em História) Departamento de
História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1987.
49
Discurso do deputado José de Alencar Annaes da Câmara, sessão de 3 de agosto de 1877. Tomo III, p. 17.
50
Ibid., p.18.
35
constituinte da literatura da seca. Não só pelos temas abordados fugirem do cânon do discurso
da seca, como tamm por questões temporais. Segundo Albuquerque Júnior, a seca se
tornou um problema da região a partir da seca 1877-79, quando se deu a emergência do
discurso da seca.
51
Portanto a obra, O sertanejo, romance ao qual este capítulo analisará, remonta sua
trama ao período de 1764. O autor narra uma história passada a mais de um culo do seu
presente, em 1875. A obra traça uma série de valores do sertão, mais especificamente da
região de Quixeramobim, interior do Ceará. A iia de honra, valentia, devoção religiosa,
heroísmo, respeito, conhecimento da natureza, perspicácia, intelincia rudimentar mas
infavel no sertão e lealdade perpassa todo o texto. Essas características irão marcar o
sertanejo e a sertaneja nesse primeiro momento. Essa era a imagem áurea dessa figura central
do sertão, que mesmo durante a seca conseguia viver das “vantagens naturais, da natureza
diversificada em que apenas um conhecedor das matas sabe extrair a sua subsistência
cotidiana.
É nessa perspectiva que o personagem principal aparece como constituinte da
natureza, pois, para Arnaldo todas essas meigas virgens do u lhe eram irs; conhecia-as
pela cintilação, como se conhece pelos olhos a menina faceira que se embuçou na sua
mantilha azul. A cada uma saudava pelo nome, não o que inventaram os sábios, e sim o que
lhe dera sua fantasia de filho do deserto.
52
Assim, para o sertanejo a floresta é um mundo, e
cada árvore um amigo ou um conhecido a quem saúda passando. A seu olhar perspicaz as
clareiras, as brenhas, as coroas de mato, distinguem-se melhor do que as praças e ruas com
seus letreiros e números.
53
A obra mistura elementos místicos e religiosos na figura da personagem principal:
Arnaldo um “sertanejo da gema, como expressa o autor. Am disso, o texto trata de um
romance utópico de um jovem vaqueiro e uma donzela, devido as personagens serem de
classes sociais distintas. Arnaldo, quando menino era traquino e de índole naturalmente
avessa à ordem e imposição. Na adolescência continua avesso à iia de mando. Pois, a
liberdade é o grande amor da sua vida, tanto que ao final da trama, tendo o respeito e
admiração do capitão-mor Campelo, seu padrinho, poderia pedir a sua filha, D. Flor, em
casamento como sempre desejara desde a infância. Contudo, a reflexão sobre o que lhe seria
mais importante o levou a renegar o sonho amoroso, devido a liberdade ser sua maior paixão.
51
Essas questões serão retomadas de forma mais sistematizada e aprofundada no Capítulo II A imaginação
material na literatura da seca cearense.
52
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.42.
53
Ibid., p. 63.
36
O ideal de liberdade presente em Arnaldo talvez fosse proveniente do próprio Alencar
urbanizado, ou seja, o autor criara uma representação de um espaço sertanejo da liberdade, um
sertão que possibilitava o homem ser livre. Um espaço da pureza, dos campos e florestas
abertos à exploração humana, um espaço da não-civilização, onde os códigos e regras sociais
citadinas se faziam menos presentes.
Antes de mais nada, O sertanejo possui duas linhas temáticas: a da descrição da terra
sertaneja revelada a partir de cenas particularmente expressivas relativas à paisagem das
épocas de estiagem; a outra, um relato da paisagem nos períodos úmidos. O mundo natural,
referido anteriormente, se comporta de maneira extremamente diferente quando interpelado
por esses dois momentos climáticos, na verdade centrais para se fazer compreender a
organização do espaço sertanejo na obra de Alencar.
O clima é um tema relevante na literatura nortista. A dicotomia seca/inverno é um
elemento presente na estética
54
da paisagem do sertão composta por Alencar. Uma relação de
alteridade capaz de potencializar sua visão rontica do torrão natal. Para o leitor fica o
contraste de paisagens antípodas, conflito esse que abre espaço para pensar outras paisagens
intermediárias.
Todavia, a ênfase do autor é centrada nas paisagens do sertão cearense da época
benfazeja, em que o dico, até mesmo o idílico, se faziam presentes. A seca pode ser pensada
na escrita de Alencar como elemento de verossimilhança, uma vez que a estiagem era uma
realidade do espaço nortista desde os tempos coloniais e não poderia deixar de compor a
paisagística do sertão cearense.
Entretanto, o tema maior da obra é a representação do sol, na verdade, uma
personagem principal da trama, acompanhada do seu oposto em termos semânticos, a lua.
Assim, mais presente do que a dicotomia seca/inverno O sertanejo apresenta a dualidade
Sol/Lua. As paisagens são constrdas a partir desses temas centrais do discurso alencarino,
calcado numa formação discursiva, respectivamente, eufórica-diurna e melancólica-noturna:
na primeira perspectiva, o autor apresenta o dia e o sol como dinamizadores da paisagem
sertaneja, capaz de criar uma sensibilidade expressa em alegria, vida, e também,
paradoxalmente, como em dor, tristeza, morte; na segunda, Alencar percebe a noite e a lua
como representantes do marasmo, medo, fim de uma expectativa, da tristeza, sombra e
54
Esse termo é empregado na percepção de Edmund Burke, ou seja, um estudo dos juízos por meio dos quais os
seres humanos afirmam que determinado objeto artístico ou natural desperta universalmente um sentimento de
beleza ou sublimidade. Ver BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias
do sublime e do belo. Campinas (SP): Papirus; Ed. Universidade de Campinas, 1993.
37
escuridão. Todavia, essas percepções do autor dependem e variam em sua essência de acordo
com momentos climáticos referidos seca e inverno.
O romance e o romântico lançam um olhar capaz de construir uma narrativa presa às
idéias do sublime e do belo, devido o discurso de Alencar ter sido perpassado pela sua
formação literária. O autor em sua autobiografia, Como e porque sou romancista, apontou
quais eram as leituras de sua época, dentre elas estariam as obras dos seguintes autores
europeus e americanos: François-René de Chateaubriand (1768-1848), Walter Scott (1771-
1823), Charles-Victor Prévost d'Arlincourt (1788-1856), George Gordon Byron (1788-1824),
James Fenimore Cooper (1789-1851), Alphonse Marie Louise Prat de Lamartine (1790-
1869), Alfredo Vigny (1797-1863), Alexandre Dumas, o pai (1802-1870), Victor Hugo
(1802-1885), Frederico Soulié (1800-1847), Eugène Sue (1804-1857). Além da leitura da
obra dos ilustrados Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778), os principais
enciclopedistas ilustrados Denis Diderot (l713-1784) e Jean D‟Alembert (1717-1783), e do
liberal François de Salignac de La Mothe-Fénelon (1651-1715).
55
Essa relação de autores e datas é importante não para iniciar uma analise literia
comparativa da obra O Sertanejo e as obras lidas por Alencar, mas para perceber o momento
da construção das obras desses autores que serviram de refencia na leitura de mundo de José
de Alencar. As informações esboçadas sobre o período em que viveram os autores-fonte de
Alencar demonstram uma centralidade no culo XVIII e XIX. Momento esse fundamental
para o surgimento do romantismo e do iluminismo, dois movimentos que andaram lado a lado
no tempo, almejando construir a nação e os ideais universais de liberdade, fraternidade e
igualdade.
Além disso, as iias sobre o Sublime e o Belo tamm foram sistematizadas nesse
período. Edmundo Burke, filósofo anglo-irlandês, viveu entre os anos de 1729 e 1797,
escrevendo a sua principal obra An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and
the Beautiful Uma Investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do Sublime e do
Belo em 1757. Constituiu-se num crítico dos excessos da Revolução Francesa, apresentando
essa leitura em sua obra de 1790, intitulada Reflexões sobre a revolução da França. Burke
manteve contato com a literatura iluminista e tamm foi lido pelos ilustrados. Dentre eles o
próprio Immanuel Kant, reconhecidamente influenciado em sua Ctica da Faculdade do
Juízo, de 1790, pelo conceito de sublime de Edmund Burke.
56
55
Ver ALENCAR, José de. Como e porque sou romancista.
56
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo, p. 7.
38
As fontes filosóficas e estéticas foram renovadas entre os autores românticos lidos por
Alencar como afirma Benedito Nunes:
No movimento romântico, que se desenvolveu entre as duas últimas
décadas do culo XVIII e os fins da primeira metade do século XIX,
quando num período de cronologia oscilente, vereificou-se a grande
ruptura com os pades do gosto clássico, prolongados através do
neoclassiscismo iluminista, fundiram-se várias fontes filosóficas,
estéticas e religiosas próximas, e reacriaram-se veios mágicos, míticos e
religiosos.
57
Essa renovação também se refletiu numa proximidade com Kant e suas concepções
acerca do jzo do Homem para com o mundo natural. Nesse sentido, tem-se aí a importância
de se analisar essas iias do sublime e do belo a partir de Edmund Burke, um dos autores-
fonte de Kant nesse aspecto. Ora, deve-se então concluir que àqueles literatos lidos por
Alencar tinham contato com as iias sobre o sublime e o belo, uma vez que viveram, leram e
produziram os clássicos românticos e filoficos de cunho iluminista e nacionalista. Assim,
Alencar, por intermédio de sua cultura livresca, tentou instaurar as sensações do sublime e do
belo na paisagística do sertão cearense ao trabalhar elementos teticos que são as fontes ou
causadores das iias do Sublime e do Belo, provenientes de uma sensibilidade universal,
incutida no Homem universalizado iluminista.
58
Para iniciar o estudo a partir dessas idéias
faz-se necessário ter em mente que a percepção humana em relação ao sublime e ao belo
segundo Edmund Burke está ligada ao gosto. O autor afirma que os homens possuem gostos
diversos, mas que há tamm princípios do gosto. Sendo estes responsáveis por instaurar uma
sensibilidade, uma imaginação e um juízo do homem para com os objetos exteriores.
59
Assim, para Burke, aquilo que parece ser luminoso para um olho deverá parecê-lo
tamm para outro e mais, os prazeres e as dores que cada objeto incita em um homem
devem ser os mesmos em todos.
60
Para concluir tais afirmações o autor se vale de diversos
exemplos, sendo um deles a discussão sobre agradabilidade das coisas todos os homens ao
experimentar algo do doce sentem uma sensação agradável, contudo, o mesmo não ocorre
com um objeto azedo. Para lançar as bases filosóficas de um gosto universal Burke se
contrapõe a percepção do hábito como provocador de muitos desvios quanto aos prazeres ou
57
NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.). O Romantismo. 2. ed. São Paulo:
Perspectivas, 1985. p. 52.
58
Ver CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. Campinas, SP: UNICAMP, 1992.
59
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo, p.
21-23.
60
Ibid., p. 23-24.
39
dores naturais relacionados aos vários gostos existentes”. Pois, assim seria pensado que os
homens são guiados por diferentes princípios no que concerne às relações de quantidade ou ao
gosto das coisas, e, portanto, aí se diria que o gosto não se discute.
61
Ora, para pensar os princípios de uma sensibilidade universal o esforço de Burke se
dava em encontrar certo padrão nos sentidos que se as coisas: “[...] Todos os homens
conservam uma memória suficientemente vida das causas naturais e originais dos prazeres
para que possam reportar a esse padrão todas as coisas oferecidas aos seus sentidos e por eles
pautar suas sensações e suas opiniões.
62
Portanto, para o autor, no que diz respeito à
imaginação o princípio do gosto é o mesmo para todos os homens, variando apenas quanto ao
grau, pois as causas do gosto podem se dar de uma sensibilidade inata maior ou de uma
observação mais atenta e prolongada do objeto.
63
Alencar trabalhou com temas de uma sensibilidade universal e mais, estabeleceu um
imaginário quanto à paisagem sertaneja cearense, nascida da dor ou do prazer proveniente das
propriedades dos objetos naturais narrados. A dor e o prazer, segundo Burke, o
fundamentais para a percepção do sublime e do belo. Sendo a dor muita mais próxima de uma
sensibilidade sublime e o prazer do belo. Todavia, o autor deixa claro que essas esferas podem
se combinar e, assim, variar dependendo das situações de dor e de prazer. Na obra O
Sertanejo, como comentado anteriormente, Alencar buscava a verossimilhança e, segundo
Burke, o imaginário encontra prazer na semelhança, na tentativa de imitão do original. Uma
vez que o espírito humano experimenta uma alegria e uma satisfação ina tas muito maiores
em encontrar semelhanças do que em procurar diferenças, porque, compondo-as, produzimos
novas imagens, unimos e criamos, ampliamos nossa reserva de iias.
64
(Grifo do autor)
Contudo, Burke apresenta uma diferenciação entre o prazer positivo, fonte do belo e o
deleite, causa do sublime:
As paixões relativas à autopreservão derivam da dor e do perigo; elas
o meramente dolorosas quando suas causas afetam-nos de modo
imediato; o deliciosas, quando temos uma idéia de dor e perigo, sem
que a elas estejamos realmente expostos; não chamei esse deleite de
prazer, porque ele nasce da dor e porque é muito diferente de uma idéia
de prazer positivo. Chamo de sublime tudo que incita esse deleite. As
paixões pertencenetes à autopreservação o as mais fortes de todas.
65
(Grifo do autor).
61
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo, p.
24.
62
Ibid., 26.
63
Ibid., p.30.
64
Ibid., p. 26.
65
Ibid., p. 58.
40
Nesse sentido, a paisagem alencarina se compõe de um olhar sobre o sertão cearense
que possui receptividade porque, como afirma Burke, o prazer na semelhança é aquele que
mais encanta a imaginação. Entretanto, o princípio desse conhecimento é extremamente
circunstancial, uma vez que depende da experiência e da observação. Assim, a circunstância
de Alencar ao construir uma paisagem do sertão é a da leitura rontica nacionalista, em
busca do prazer e da dor imanente neste espaço, uma vez que se baseou na sua experiência e
observação do sertão nos tempos da seca e do inverno.
O meio utilizado por Alencar, a literatura, para descrever a paisagem sertaneja é
importante no sentido de que, segundo Burke, a palavra possui equiparação, senão certo
privilégio, com relação aos objetos naturais ou artificiais para se pensar sobre as formas
sublimes e belas. O teórico diz que as palavras nos afetam de uma maneira muito diferente do
que o fazem os objetos naturais ou a pintura e a arquitetura. Contudo, as palavras são tão
capazes de incitar as iias da beleza e do sublime quanto àqueles objetos e às vezes com
poder muito maior do que qualquer um deles.
66
Para Burke, a palavra possui três grandes
efeitos no espírito do ouvinte: o primeiro é o som; o segundo, a imagem ou representação da
coisa significada pelo som; o terceiro é a afecção da alma causada por um dos dois anteriores
ou por ambos”.
67
A literatura, portanto, produz essas afetações no espírito do leitor porque se
baseia na palavra, pois a leitura, mesmo silenciosa, produz som na intimidade de quem lê.
A noção de paisagem é importante para essa interpretação do espaço sertanejo por que
sendo Alencar um escritor, a descrição narrativa forneceu-lhe o símile textual do efeito
pictórico, assim o autor construiu paisagens “conscientemente concebidas para expressar as
virtudes de uma determinada comunidade potica ou social”.
68
Não apenas isso, mas também
a própria criação simlica dos espaços dessa determinada comunidade. Assim, como afirma
Naxara a partir de sua leitura cultural e histórica contemporânea sobre o nacionalismo
romântico do século XIX,
a construção da paisagem como forma de construção da nação, a ênfase a
aspetos emblemáticos da natureza brasileira, por meio dos quais se
procurou das um sentido, de preferência original, delimitaram-se valores
éticos e morais, inauguraram-se pades estéticos que construíram os
lugares privilegiados e simbólicos de representação da nação e da
nacionalidade.
69
66
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.169.
67
Ibid., p. 172.
68
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 26.
69
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido
explicativo para o Brasil no século XIX, p. 298-299.
41
A paisagem sublime e bela do sertão cearense emergiu a partir de Alencar, em sua
historicidade, como uma construção social. Parafraseando Claval, “na verdade a invenção da
paisagem testemunha uma estetização, isto é, um refinamento pelas elites cultas, da relação
com o meio ambiente.
70
Ainda em referência ao discurso romântico e sua relação com o mundo natural,
Alencar não foge do padrão da estética literária: o autor deixa claro o seu sentimento de
fraqueza e mesquinhez perante a natureza sublime e bela do Brasil. Como afirma Naxara:
essas representações do Brasil e dos brasileiros cunhadas na segunda metade do XIX,
provocam sobretudo admiração e assombro, um sentimento de resignação e diluição e,
mesmo, de sujeição do indiduo face à grandiosidade daquilo que parece ultrapassá-lo e
exceder o seu entendimento àquilo que, de alguma forma, o contém.
71
(Grifo da autora)
Alencar, em uma passagem referente à fundação da herdade, demonstra o quão a
natureza é maior que o homem, fazendo-o venerá-la : Na ocasião da derrubada, sua majestosa
beleza [da frondosa oiticica] moveu o fazendeiro a respeitá-la, destinando-a a ser como que o
lar indígena da nova habitão fundada nesses ermos”.
72
(Grifo meu). Esse mesmo respeito e
reverência para com a natureza explica o nome dado à herdade: Na frente elevava-se no
terreiro, a algumas braças da estrada, a frondosa oiticica, donde viera o nome da fazenda. Esse
gigante da antiga mata virgem, que outrora cobria aquele sítio”.
73
Nesse sentido, interessa pensar essa produção das paisagens nO sertanejo, a fim de
compreender a identidade nortista em formação durante o século XIX. Portanto, situar
historicamente a paisagem é pensar seu sentido, o porquê da sua crião, suas funções e
momentos. Alencar, como foi dito anteriormente, esteve preso a formação discursiva da
identidade nacional brasileira e da corrente romântica no século XIX. Para melhor traduzir
aquela identidade sertaneja se valeu da representação dos mitos e lembranças do torrão natal.
Segundo Schama, esses mitos e lembranças partilham duas características comuns: sua
surpreendente permanência ao longo dos séculos e sua capacidade de moldar instituições com
as quais ainda convivemos.
74
Além disso, para Alencar a literatura era a linguagem privilegiada, senão a apropriada,
para construir essa identidade. Em uma das passagens de O sertanejo isso se torna bem
perceptível. Em certo momento da narrativa, o autor descreve o ato do olhar de uma de suas
70
CLAVAL, Paul. A paisagem dos geógrafos. IN: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (orgs.).
Paisagem, textos e identidade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004. (Colão Geografia Cultural). p. 59.
71
Ibid., p. 14-15.
72
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.30.
73
Ibid.
74
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, p. 26.
42
personagens e ao mesmo tempo deixa transparecer uma impossibilidade do pintor, artista
plástico, dar conta de tal imagem dada pela visão:
D. Flor,abriu as gelosias da janela e divagou os olhos pela floresta, que
arreava-se então de toda a sua pompa vernal com a estão das águas.
Naquele extenso painel de verdura, cada árvore debuxava-se com uma
forma e um matiz diverso. Viam-se todos os moldes da arquitetura desde
a coluna e a pimide até a cúpula e o zimbório. O pincel do mais fino
colorista não imitaria a gradação daquela admirável palheta desde o
verde negro do jacarandá até o verde gaio do espinheiro.
75
(Grifo meu)
Assim, o discurso alencarino inaugurou um doce sertão nortista, tomando como base a
sua memória e formação romântica nacionalista. O seu sero é a representação do Sublime e
do Belo, ou seja, da dor e do prazer. Há incrustado nele a relação paisagem e identidade
nacional, uma vez que, como afirma Schama, a identidade nacional, para mencionar o
exemplo mais óbvio, perderia muito de seu fascínio feroz sem a mística de uma tradão
paisagística particular: sua topografia mapeada, elaborada e enriquecida como terra natal”.
76
As relações estabelecidas entre o homem e o mundo natural criam os espaços. Por
mais que o homem, no caso o sertanejo, não componha a paisagem, a espacialidade se
constitui pelo olhar, mesmo distante, do próprio autor sobre um lugar
77
(sertão cearense) a ser
eleito como palco da trama literária. Enfim, não se procura aqui a relação homem e mundo
natural pela perspectiva de unicamente pensar a aparição do sertanejo na paisagem e seu
contato com os elementos naturais. Esse mundo natural ao ser descrito pelo autor institui
uma relação da natureza com a cultura, uma vez que o olhar é perpassado por esta, sendo
assim capaz de produzir uma dada espacialidade.
Pensando então essas características mais relevantes para este capítulo, como a
apresentação do autor, Jode Alencar, e sua obra, O sertanejo (1875), torna-se possível
agora uma leitura balizada da obra. As análises teticas se darão em refencia à
constituição da paisagem cearense nessa perspectiva rontico-nacionalista, sob os auspícios
do Sublime e do Belo.
75
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 217.
76
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória, p. 26.
77
Certeau conceitua o lugar com uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de
estabilidade. In: CERTEA U, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. Petropólis, RJ: Vozes,
1994. p. 201.
43
1.2 A Luz e suas paisagens
Assomando sobre o capitel da floresta erguida no oriente como o rtico
do deserto, o sol coroado da magnifincia tropical dardejava o olhar
brilhante e majestoso pela terra, que se toucara de toda sua louçania para
receber no tálamo da criação ao rei da luz.
78
Na obra O sertanejo o sol possui um papel de destaque na produção da paisagem do
sertão cearense. A relação desse rei da luz com outros elementos do mundo natural dinamiza
a paisagem, dando a ela movimentos e a transformando num espaço simlico, repleto de
sensibilidade. A paisagem assim é perpassada pelo que foi denominada anteriormente de
formação discursiva eufórica-diurna. A euforia se daria pelos movimentos capazes de mudar
os cenários descritos e dotá-los de características diferenciadas, tomando o dia como o
momento propício a essa atividade de mutação. O dia, metaforicamente representado pela luz,
marcava a temporalidade da trama de O sertanejo, aliando-se a isso, uma predomincia do
sol e seus efeitos na constituição da paisagem alencarina do sertão.
O poder dado ao sol por Alencar torna-o sublime, assim como pela sua proporção e luz
brilhante, ofuscante aos olhos mais insistentes. Por isso o olhar do sol foi representado como
brilhante e que a tudo encobria pela sua grandiosidade e magnifincia. uma reverência e
um sentimento de pequenez diante do rei da luz. Em uma a análise centrada nas nões de
paisagem percebe-se que o astro constituía a personagem principal da obra. A sua presença
constante possa significados variados que foram geralmente utilizados por Alencar como
fonte de sublimidade e beleza.
Outro papel do sol na obra O Sertanejo é seu significado temporal na trama. Alguns
capítulos começam e terminam sua narrativa descrevendo os momentos de aparão do astro:
O sol transmontara
79
; O sol descambava
80
; Tinha nascido o sol”.
81
Isso revela, em
grande medida, o interesse do autor em reforçar um dos marcos das práticas sertanejas quanto
a contagem do tempo através da observação dos astros: “Era por formosa manhã de
dezembro, a terceira que raiava depois da chegada do fazendeiro à sua casa da Oiticica.”
82
78
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 66.
79
Ibid., p. 129.
80
Ibid., p. 146.
81
Ibid., p. 217.
82
Ibid., p. 66.
44
A aurora é outro recurso discursivo para caracterizar o papel do sol na paisagem como
iluminador, aquele que retira o sertão das trevas pois, “[...] ao fluxo da luz, que sobe e a
inunda como a corrente de um rio caudal, aquela zona ensombrada vai rapidamente
imergindo-se nos esplendores da aurora.
83
Tamm perceptível em outro trecho: Já o
crepúsculo da manhã comava a bruxulear as formas indecisas das árvores, que todavia
ainda flutuavam pela várzea como visões noturnas embuçadas em alvos crepes.
84
Esse esplendor é capaz de animar os lugares e transformá-los, por exemplo, em
espaços fecundos: “com a irradião da manhã derrama-se a aura que anima a solidão. Dessa
terra combusta por longo e abrasado estio, já rumam os viços que anunciam a poderosa
expansão de sua fecundidade;
85
O surgimento da luz solar cria outra sensibilidade sobre o
espaço sertanejo pois, a frescura deliciosa das manhãs serenas do sertão no tempo do inverno
derramava-se pela terra, como se a luz celeste que despontava trouxesse da mansão etérea um
eflúvio de bem-aventurança.
86
Alencar ao descrever o raiar de uma formosa madrugada faz refencia as cores fontes
de uma sensibilidade do belo: Os primeiros vislumbres desmaiavam no u azul denso das
noites dos trópicos; e para as bandas do nascente já estampavam-se os toques diáfanos e
cintilantes da safira”.
87
Segundo Burke, a beleza se encontra nas cores claras e puras, não
devendo ser fortes. Para o autor, as que parecem mais adequar-se melhor à beleza são as de
tons mais delicados: verdes claros, azuis suaves, brancos esmaecidos, vermelhos rosados e
violeta.
88
Portanto, o sol produz os efeitos sublimes e belos ao mesmo tempo na paisagem
sertaneja: “Aos primeiros raios que partiam do Oriente e se desdobravam pela terra como uma
vaga de luz, a natureza, rorejante dos orvalhos da noite, expandiu-se em toda a sua pompa
tropical”.
89
A luz é importante no relato alencarino porque é por ela que se a percepção das
cores da paisagem. Segundo Burke, todas as cores dependem da luz. A luz é o oposto das
trevas e se torna capaz de gerar um sentimento sublime devido ser acompanhada de outras
circunstâncias além de sua mera faculdade de mostrar objetos. Para o autor, a luz, em si
mesma é comum demais para causar no espírito uma impreso forte, e sem uma impressão
83
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 66.
84
Ibid., p. 140.
85
Ibid., p. 66.
86
Ibid., p. 139.
87
Ibid., p. 139.
88
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.123.
89
ALENCAR, José de. Op. cit., p. 146.
45
forte nada pode ser sublime.
90
Todavia, uma luz como a do sol, incidindo diretamente sobre
os olhos, uma vez que subjuga esse sentido, constitui uma iia extremamente grandiosa e,
portanto, sublime.
Apresentado assim a importância do sol e seus efeitos na paisagem alencarina como
capazes de gerar o sublime e o belo, se analisará como essa imagem do sertão cearense da luz
foi constrdo por Alencar em decorrência dos diferentes momentos climáticos na área, ou
seja, a seca e o inverno.
1.2.1 A estiagem: visões sublimes
Nessa época o sertão parece a terra combusta do profeta; dir-se-ia que por
passou o fogo e consumiu toda a verdura, que é o sorriso dos campos e
a gala das árvores, ou o seu manto, como chamavam poeticamente os
indígenas.
91
A estiagem revela sua potencialidade no mundo natural de forma devastadora, criando
um espaço lúgubre, como anuncia Alencar: a chapada, que os viajantes atravessavam neste
momento, tinha o aspecto desolado e profundamente triste que tomam aquelas regiões em
tempo de seca.
92
A paisagem seca tem em sua essência uma referência à dor, sendo assim,
segundo Burke, capaz de produzir uma sensibilidade sublime.
A seca, portanto, desola uma terra que em sua essência possui vida, alegria e beleza. O
tom nostálgico perpassa o texto ao se descrever a situação do mundo natural:pela vasta
planura que se estende a perder de vista, se eriçam os troncos ermos e nus com os esgalhos
rijos e encarquilhados, que figuram o vasto ossuário da antiga floresta.
93
Assim, ao longo
do caminho, de um e outro lado, alvejavam, entre as maravilhas dos ramos queimados pelo
sol, as ossadas dos animais que tinham sucumbido aos rigores da seca.
94
Alencar continua
a descrever os efeitos da estiagem na paisagem:
90
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo, p.86.
91
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 14.
92
Ibid.
93
Ibid.
94
Ibid., p. 15.
46
O capim, que outrora cobria a superfície da terra do verde alcatifa, roído
até à raiz pelo dente faminto do animal e triturado pela pata do gado,
ficou reduzido a uma cinza espessa que o menor bafejo de vento levanta
em nuvens pardacentas.
O sol ardenssimo coa através do mormaço da terra abrasada uns raios
bos que vestem de mortalha lívida e poenta os esqueletos das árvores,
enfileirados uns as outros como uma gubre procissão de mortos.
95
A refencia à morte ainda mais potencializa a dor. Morte e dor caminham lado a lado
com o terror, construindo uma paisagem geradora de medo, pois se tratava de um espaço
morto e, portanto, inapto a sobrevivência humana. Com bem afirma Burke, as iias de dor,
e acima de tudo, as de morte causam uma impressão tão profunda que, enquanto
permanecemos em presença de tudo quanto se julga ter o poder de infligir qualquer uma das
duas, é impossível estarmos inteiramente livres do terror.
96
Além disso, para o autor, medo
ou terror, que é uma percepção da dor ou da morte, manifesta-se exatamente pelos mesmos
efeitos, com uma violência proporcional à proximidade da causa e à fragilidade do
indivíduo.
97
A morte também é representada pelos animais, ao tomar como exemplo a queda do
gado durante a seca. A morte do boi e da vaca gerava grande comão, devido esses animais
serem um símbolo do espaço sertanejo, uma vez que [...] inspiraram outrora as lendas
sertanistas dos bois encantados, que os antigos vaqueiros, deitados ao relento no terreiro da
fazenda, contavam aos rapazes nas noites do luar.
98
O gado compõem assim a paisagem
morta: “Às vezes ouve-se o crepitar dos gravetos. São as reses que vagam por esta sombra de
mato, e que vão cair mais longe, queimadas pela sede abrasadora ainda mais do que inanidas
pela fome.
99
Para reforçar essa idéia Alencar se valeu de certas imagens-força de
sublimidade, como a própria refencia ao escuro quando trata dos espectros e sua relação
com a morte: Verdadeiros espectros, essas carcaças que se movem ainda aos últimos
arquejos da vida [..].
100
A melancolia toma conta do relato ao se relembrar dos animais que tomavam conta e
davam movimento à paisagem interiorana: Estes ares, em outra época povoados dos
turbilhões de ssaros loquazes, cuja brilhante plumagem rutilava aos raios do sol, agora
95
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 14.
96
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo, p.71.
97
Ibid., p.137.
98
ALENCAR, José de. Op.cit.
99
Ibid.
100
Ibid.
47
ermos e mudos como a terra, são apenas cortados pelo vôo pesado dos urubus que farejam
carniça.
101
Nessa passagem do discurso alencarino se pode perceber várias características
sublimes. Dentre elas se percebe sublimidade, segundo Burke, como uma dor causadora do
deleite, uma vez que [...] a melancolia, o abatimento, o desespero e muitas vezes o suicídio
o conseqüências da nossa visão sombria das coisas quando nesse estado de relaxamento do
corpo.
102
Outros aspectos sublimes dessa paisagem sertaneja alencarina estariam presentes nas
referências feitas aos urubus, animais sombrios, de plumagem escura, relacionados à morte,
ao medo. Como tamm a citada carniça, uma vez que os odores provenientes do mau
cheiro gerariam uma dor moderada, devido serem desagradáveis.
103
A estratégia prossegue na
tentativa de envolver o leitor na comoção para com uma terra quase desfalecida: quem pela
primeira vez percorre o sertão nessa quadra, depois de longa seca, sente confranger-se-lhe a
alma até os últimos refolhos em face dessa inanição da vida, desse imenso holocausto da
terra.
104
O discurso vai recrudescendo para sensibilizar mais o leitor em relação à situação
calamitosa:
É mais fúnebre do que um cemitério. Na cidade dos mortos as lousas
estão cercadas por uma vegetação que viça e floresce; mas aqui a vida
abandona a terra, e toda essa região que se estende por centenas de léguas
não é mais de que o vasto jazigo de uma natureza extinta e o sepulcro da
ppria criação.
105
A paisagem seca presente em O Sertanejo se constituiu numa representação de um
espaço morto, propício a desastres, como por exemplo, a queimada: O incêndio, causado por
alguma queimada imprudente, propagava-se com fulminante rapidez pelas árvores mirradas
que não passavam então de uma extensa mata de lenha”.
106
A situação narrativa quanto à
queimada foi potencializada a partir criação do medo: A labareda, como a língua
sanguinolenta da hidra, lambia os galhos ressequidos, que desapareciam tragados pela fauce
hiante do monstro.
107
Para tanto, Alencar fez uso da metáfora da serpente no momento em
que descrevia o alastramento do fogo para imprimir terror, aspecto essencialmente sublime.
101
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 14.
102
BURKE, Edmund. . Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.140.
103
Ibid., p.92-93.
104
ALENCAR, José de. Op.cit.
105
Ibid., p.15.
106
Ibid., p.19.
107
Ibid.
48
Para muitos indivíduos (leitores), a serpente é tida como um dos animais mais asquerosos,
medonhos e perigosos da natureza: No seio do denso pegão do fumo, que submergia toda
a selva, rebolcava-se o incêndio como um ninho de serpentes, que se arremetiam furiosas,
enristando o colo, brandindo a cauda, e desferindo silvos medonhos.
108
Outro elemento sublime apresentado por Alencar durante a descrão da queimada se
fez presente em relação ao som. Burke afirma que os sons podem gerar o sublime quando
muito alto, capaz de intimidar a alma, aturdindo e perturbando a imaginação do homem,
109
ao
mesmo tempo esse som deu à paisagem sertaneja da seca uma iia de movimento,
dinamismo, veja-se a passagem abaixo:
Ao mesmo tempo parecia que a tormenta percorria a floresta e a
devastava. Ouvia-se o mugir o vento, agitado pelo ressolho ardente e
ruidoso das chamas; um trovão soturno repercutia nas entranhas da terra,
e cada instante, no meio do constante estridor da ramagem, reboavam
com os surdos baques dos troncos altaneiros os estertores da floresta
convulsa.
110
Assim se visualiza em Alencar vários elementos fonte de sublimidade durante a sua
descrição da paisagem da seca. Enfim, tratou-se de uma representação de um espaço da
tragédia da seca, espaço de uma dificuldade muito sabida sobre o sertão nortista. Sendo
assim, mais perturbadora porque se aproximava da realidade da área, portanto, o seu poder de
sublimidade foi maior. O sol nesse momento apresenta seu perfil sublime, pois sua relação
com restante do mundo natural gerava medo, dor e a até mesmo a concretização de uma
sensibilidade calcada na autopreservação, para Burke a base sentimento de sublimidade no
imaginário humano.
É importante também perceber que essas passagens sobre a paisagem seca do sertão se
localizam na parte inicial da obra, o primeiro capítulo do volume I, O Comboio. Isso não se dá
de forma ingênua. Tratou-se de uma estragia discursiva do autor para poder enaltecer
posteriormente o que viria a ser o verdadeiro sertão: espaço da beleza. As descrições de
Alencar vão tendo esse tom lúgubre. A terra em desfalecimento possui um valor simlico
enorme para se pensar o sertão nortista e seus problemas decorrentes da irregularidade
clitica da área. O leitor fica estarrecido perante a situação desse sero trágico e por esse
estarrecimento o sentido sublime se realça ao pensar o espaço sertanejo.
108
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 19.
109
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.88-89.
110
ALENCAR, José de. Op. cit.
49
1.2.2 Espaços da resistência: várzeas e serras
A paisagem alencarina também é representada por espaços resistentes aos períodos de
estiagem. Esses espaços, compostos pelas várzeas e serras, conteriam a esncia do sertão,
pois a vida neles nunca deixara de existir. Há neles um poder numinoso de regeneração ao
menor contato com a água, como também um poder de resisncia às secas, mesmo as mais
prolongadas. São espaços que durante a estiagem apresentam vestígios de um tempo
benfazejo, como afirma Alencar: Das torrentes caudais restam apenas os leitos estanques,
onde se percebe mais nem vestígios da água que os assoberbava. Sabe-se que ali houve um
rio, pela depressão às vezes imperceptível do terreno, e pela areia alva e fina que o enxurro
lavou”.
111
A várzea seria um espaço revelador das virtudes cearenses, como a sobriedade e
perseverança, segundo Alencar, espaço que luta contra as intempéries climáticas:
É nos estuários dessas aluviões do inverno, conhecidos com o nome de
várzeas, onde se conserva algum vislumbre da vitalidade, que parece
haver de todo abandonado a terra. Aí se encontram, semeadas pelo
campo, touceiras erriçadas de puas e espinhos em que se entrelaçam os
cardos e as carnaúbas. Sempre verdes, ainda quando não cai do céu uma
gota de orvalho, estas plantas simbolizam no sertão as duas virtudes
cearenses, a sobriedade e a perseverança.
112
Outra passagem reforça essa iia sobre a várzea como espaço da resistência: Do lado
oposto, oculto por uma grande touça de carnaúbas, o massapé fazia um ressalto, formando
uma coroa no alagadiço da várzea. Ali crescia entrelaçado com os estipes das palmeiras, um
arvoredo viçoso apesar da estação, e que abrigava sob a rama verdejante uma choça de
pegureiro.
113
(Grifo meu)
A descrição das serras na paisagem alencarina esteve ligada a construção do espaço
onde habitavam as personagens da trama O sertanejo, segundo Alencar a morada da Oiticica
assentava a meio lançante em uma das encostas da serra.
114
Talvez, para o autor, A herdade
deveria ser mesmo pxima da serra. Uma vez que esta representava um espaço resistente,
não só à estiagem, mas estrategicamente localizado na geografia da área:
111
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.15.
112
Ibid., p.15.
113
Ibid., p.36.
114
Ibid., p.30.
50
Erguia-se do centro de um terrado revestido de maraces de pedra solta.
Por diante, além do terreiro, descia a rampa com suave ondulação aà
planície; atrás da habitação, remontava-se ao dorso de uma eminência
donde caía abrupta sobre um vale profundo que a separava do corpo da
montanha.
115
Ivone Cordeiro Barbosa ao analisar um dos mais importantes ambientes em que se
passou a trama, A herdade, afirma que Alencar se valeu de certo mecanismo para criar uma
elite nobre no sertão cearense: tratar-se-ia de “construir uma imagem do sertão numa
constante analogia com a Europa Medieval, tomando a fazenda como feudo [...].
116
A autora
analisou a própria edificação da morada da Oiticica, tomando-a arquitetonicamente como
muito pxima das fortalezas medievais européias. Todavia, o sentido de defesa não se
encontraria apenas na construção em si, mas na própria localização geográfica da herdade
apresentada no trecho de Alencar anteriormente.
Alencar apresenta ao leitor algumas plantas genuínas do espaço sertanejo que, apesar
da estiagem, resistem de forma heica e esperançosa por novos tempos: apenas ao longe se
destaca a folhagem de uma oiticica, de um joazeiro ou de outra árvore vivaz do sertão, que
elevando a sua copa virente por sobre aquela devastação profunda, parece o derradeiro
arranco da seiva da terra exausta a remontar o u”.
117
Além disso, o autor relaciona essas
plantas a própria serra e as áreas mais úmidas:
Logo abaixo da eminência, o caminho dividia-se; uma trilha estendia-se
pelos tabuleiros, a outra serpejava pelo doce aclive que já ali formavam
as abas da pxima serra. Sobre essa lomba, cujo terreno estava menos
abrasado por causa das filtrações da montanha, as árvores ainda
conservavam a folhagem, que tornava-se mais embastida e virente, à
proporção que se avizinhavam das cabeceiras do Sitiá.
118
Alencar mantém uma estratégia de construção narrativa a fim de potencializar o seu
discurso junto ao leitor. Primeiro criou a paisagem seca, em seguida as paisagens compostas
pelas serras e várzeas na verdade paisagens intermediárias, pois possuem características da
paisagem seca e úmida e num terceiro momento a construção da paisagem bela, a paisagem
doce do sertão cearense, em que o elemento água a tudo transforma.
115
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.30.
116
BARBOSA, Ivone Cordeiro. Sertão: um lugar incomum; O sertão do Ceará na literatura do século XIX. Rio
de Janeiro: Relime Dumará; Fortaleza:Secretaria de Educão e Desporto do Estado, 2000. (Coleção Outros
Diálogos;5). p. 90-91.
117
ALENCAR, José de. Op. cit., p. 14.
118
Ibid., p.16.
51
1.2.3 O beijo de amor trocado entre o céu e a terra: a água e o mundo natural
A presença do elemento natural central para espaço seco sertanejo é a água. A vida se
deposita no contato dela com outros elementos do mundo natural. A terra do sertão para
Alencar possa em si um poder numinoso de regeneração. Por isso mesmo, esse sero é o
espaço em que, para o autor, as previsões do período chuvoso podiam ser pressentidas
prazerosamente pelos homens e o mundo natural ao seu redor:
Na noite seguinte à chegada, como previra Arnaldo, tinha caído a
primeira chuva. Desde então, com pequenos intervalos, passavam os
aguaceiros do natal que o os repiquetes do inverno.
Embora falhem muitas vezes essas promessas, o sertanejo, como os
animais e toda a natureza que o cerca, recebe sempre com intenso prazer
as alvíçaras de bom ano.
119
Além disso, Alencar via tamm a necessidade de explicar ao leitor a exisncia da
primavera no país, mais especificamente no sertão cearense:
A primavera do Brasil, desconhecida na maior parte do seu terririo, cuja
natureza nunca em estação alguma do ano despe a verde nica, existe
nessas regiões, onde a vegetação dorme como nos climas da zona fria.
a hibernão do gelo; no sertão a estuação do sol.
120
Alencar buscava instruir os leitores sobre a existência da época primaveril no sero
cearense. Para tanto, construiu uma narrativa comparativa com a realidade européia. Contudo,
as estações da primavera e do outono o mais visíveis nas zonas de clima temperado. Talvez
Alencar tentasse dotar o sertão de características climáticas presentes nos países europeus do
culo XIX, os espaços civilizados do mundo. A fim de também civilizar o sertão, entretanto,
o que ocorria no sertão cearense, situado numa zona tropical, era uma grande
imprevisibilidade clitica, assim, mudanças das estações na área durante o ano, ao senso
comum, eram tão sutis que chegavam a ser quase imperceptíveis: daí a tentativa de quebra da
dicotomia verão/inverno.
119
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.66.
120
Ibid., p.66.
52
Como foi dito anteriormente, a água é eleita por Alencar como o elemento natural e
essencial para a transformação da paisagem sertaneja. Esse espaço no discurso alencarino
ganhou outras formas, tornando-se agradável, prazeroso e alegre, enfim, segundo Burke,
potencialmente belo. A água se configura em um elemento purificador de um espaço antes
mórbido, como afirma Bachelard, a água é o objeto de uma das maiores valorizações do
pensamento humano: a valorização da pureza.
121
Nesse sentido, o intuito é perceber no
discurso alencarino os fundamentos de uma paisagem bela.
A água representa uma benção do u sobre a terra sertaneja esturricada: “A primeira
gota d‟água que cai das chuvas é para as várzeas cearenses como o primeiro raio do sol nos
vales cobertos de neve: é o beijo de amor trocado entre o céu e a terra, o santo himeneu do
verbo criador com a Eva sempre virgem e sempre mãe.
122
(Grifo meu)
A relação entre a terra e a água podia gerar resultados místicos, até mesmo
inacreditáveis na paisagem do sertão. Em primeiro lugar podemos pensar nisso por conta do
poder que emana da Terra Mãe, um discurso anterior que apresenta a Terra como uma
potência benéfica e criadora em sentido global e abstrato. Segundo Pádua, “[...] não se trata de
elogiar a fertilidade de uma região específica, mas sim de afirmar a fecundidade permanente
da Terra como uma totalidade, „a Mãe comum de todos os viventes‟.
123
Assim, o sero
tamm faz parte dessa entidade totalizadora, mas é um cadinho de terra em que esse poder
divino é acentuado devido à escassez de água, o elemento natural central para a fertilidade da
Terra Mãe.
A chegada da chuva no sertão, segundo Alencar, inicia um processo de mutação na
paisagem: “nunca vi o despertar da natureza depois da hibernação. Não creio, porém, que seja
mais encantador e para admirar-se do que a primavera do sertão. Aqui a transição se opera
com tal energia que assemelhava-se de certo modo à mutação.
124
A terra e os seres vivos
agitam o cenário ao ter as primeiras previsões nebulosas. Pois a “[...] vegetão incubada por
muito tempo desenvolvia-se com tamanho arrojo, que mais parecia uma explosão; sentiam-se
os ímpetos da terra abrolhar essa prodigiosa variedade de plantas que se disputavam o solo, e
acumulavam-se umas sobre outras.
125
121
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginão da matéria. São Paulo: Martins
Fontes, 1997. p. 15.
122
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.67.
123
DUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e ctica ambiental no Brasil
escravista (1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 35.
124
ALENCAR, José de. Op. Cit., p. 67.
125
Ibid., p.147.
53
A mudança da paisagem para Alencar se daria rápida e visivelmente nas áreas das
várzeas:Aquela várzea que ontem ao escurecer afigurava-se aos vossos olhos o leito nu,
pulverento e negro de um vasto incêndio, bastou o borraceiro da noite antecedente para cobri-
la esta manhã da virescência sutil, que veste a campina como uma gaze de esmeralda”.
126
(Grifos meus) Nessa passagem se pode perceber a refencia a um elemento de beleza na
paisagem alencarina. Os termos viresncia sutil e gaze de esmeralda carregam algo de
belo, devido apresentarem a cor verde clara, apontada por Burke como capaz de infundir a
beleza no espírito do homem.
127
No decorrer da mesma passagem o autor representa outro ideal, originário da beleza, a
pequenez dos objetos, para Burke, os objetos beloso comparativamente pequenos:
128
Não em cada uma das raízes do capim seco e triturado mais do que um
broto imperceptível; porém rebentam os gomos com tanto luxo e abundância
que, à guisa do tênues liços de uma teia cambiante, formam essa gaio matiz
da primavera.
129
(Grifo meu)
Assim, o sertão ganha novamente movimento, mas desta vez pela metamorfose de um
espaço dinamizado pela alegria e esperança do mundo vegetal: Aquela árvore também que
ainda ontem parecia um tronco morto tem um aspecto vivaz. Pelos gravetos secos pulula a
seiva fecunda a borbulhar nos renovos para amanhã desabrochar em rama frondosa.
130
O
discurso alencarino sobre a paisagem sertaneja continua, acrescendo o papel do dia nessa
construção paisagística:
Que prodígios ostenta a força criadora desta terra depois de sua longa
incubação! Dela pode se dizer sem tropo que -se rebentar do solo o grelo e
crescer, assistindo-se ao trabalho da germinação como a um processo da
indústria humana.
Nas abas da serra onde as árvores tinham conservado a verdura, sentia-se
passa pela floresta um estremecimento como de prazer. A brisa da manhã
enredando-se pela ramagem rociada não mais arranca murmúrios plangentes
da mata crestada. Agora o crepitar das folhas de doce e argentino, como um
harpejo sorridente.
Não eram somente as matas, os silvaçais e as várzeas que se arreavam com as
primeiras galas do inverno.
131
126
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 67.
127
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.123.
128
Ibid., p. 119.
129
ALENCAR, José de. Op. cit., p. 67.
130
Ibid., p. 67.
131
Ibid., p. 67.
54
O poder de regeneração embutido na natureza do Brasil se revela de forma tida a
partir do encontro da terra com a água. As descrições vão se repetindo a fim de cristalizar esse
discurso belo da natureza brasileira: os borraceiros do natal tinham continuado a cair por
volta da madrugada; e o sertão de Quixeramobim, o mais formoso de todo o dilatado vale da
Ibipiaba, vestia-se cada manhã de novas galas ainda mais brilhantes do que as vésperas”.
132
Além disso, o milagre de um novo verde em uma terra arrasada pela estiagem se explica
por elementos gicos:
A terra, que adormecia com o fechar da noite, já não era a mesma que
despertava ao raiar do sol. Como se a houvesse tocado o condão de uma
fada, ela transformava-se por encanto: e mostrava-se tão louçã e donosa
que parecia ter desabrochado naquele instante, como uma flor do seio da
criação.
via-se realizada a graciosa lenda árabe dos jardins encantados,
surgindo dentre os ermos e sáfaros areais à invocação de um nume
benéfico. A gentil feiticeira dos nossos sertões é a linfa, que, descendo do
u nos orvalhos da noite e nas chuvas copiosas do inverno, semeia os
campos de todas as maravilhas da vegetão.
133
Em outras passagens da trama a iia de renovação da natureza se prolonga: Eram
como cascatas de verdura a despenharem-se pelos vargedos, confundidas num turbilhão de
folhas e flores, e sossobrando não a terra, como as águas que a inundavam.
134
A
abunncia da água e a exuberância do mundo vegetal se tornam temas importantes para a
construção da paisagem alencarina: A supercie de cada uma dessas grandes lagoas
efêmeras, produzidas pelo inverno, tornara-se um solo fecundo, onde mil plantas palustres
erguiam seus mpanos formando uma floresta aquática.
135
Como tamm fica clara essa
perspectiva nesse outro trecho: Por toda esta vasta região, na qual um mês antes fora difícil
encontrar uma gota d‟água a não ser no fundo de alguma cacimba, rolam torrentes impetuosas
de rios caudais formados em uma noite.
136
O espetáculo da natureza foi se fazendo no discurso alencarino: “A terra combusta,
onde o se descobria nem mesmo uma raiz seca de capim, vestia-se de bastas messes de
mimoso, que a viração da manhã anediava como a crina de um corcel. E eram já tão altas as
132
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 122.
133
Ibid., p.122..
134
Ibid., p.147.
135
Ibid., p.147.
136
Ibid., p.147.
55
relvas do pasto, que inclinando-se descobriam as reses ali ocultas.
137
A vegetação e os
animais vão reaparecendo num cenário que com a presença da água deixa de ser um espaço
mórbido:
A vegetação incubada por muito tempo desenvolvia-se com tamanho
arrojo, que mais parecia uma exploo; sentiam-se os ímpetos da terra
abrolhar essa prodigiosa variedade de plantas que se disputavam o solo, e
acumulavam-se umas sobre outras.
Eram como cascatas de verdura a despenharem-se pelos vargedos,
confundidas num turbilhão de folhas e flores, e sossobrando não a
terra, como as águas que a inundavam.
138
Como afirma Alencar: “Era então a força do inverno.
139
No capítulo A montearia,
escrito no segundo volume da obra, o autor relata toda a riqueza esquecida do espaço
sertanejo devido à seca. O discurso do belo trouxe ao relato poético alencarino um sertão vivo
e bastante diversificado:
Do seio desse divio, surge uma criação vigorosa e esplêndida que
parece virgem ainda, tal é a seiva que exubera da terra e rompe de toda a
parte nos abrolhos e renovos.
Alio as carnaúbas que flutuam sobre as águas, como elegantes colunas,
carregadas de feses de trepadeiras, donde pendem flores de todas as
cores e aves de brilhante plumagem.
Mais longe as touceiras de cardos entrelam suas hastes crivadas de
espinhos e ornadas de lindos frutos escarlates, que atraem um exame de
colibris. dentro da selva espessa, fez a nambu seu ninho, onde piam os
pintinhos implumes.
140
(Grifos meus)
A passagem acima é repleta de propriedades da beleza apresentadas por Burke.
Alencar apresenta as carnaúbas, planta nativa e símbolo do espaço sertanejo nortista, como
elegantes colunas, a elegância para Burke seria um referencial de beleza devido a
existências de uma regularidade e mais, as carnaúbas são plantas que podem chegar a ter
quinze metros de altura, portanto o espécies do mundo vegetal que possuem um tamanho
137
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 147.
138
Ibid., p. 147.
139
Ibid., p.146.
140
Ibid., p. 146.
56
considerável. Segundo a leitura burkeana de beleza, as carnaúbas não seriam apenas belas,
mas também esplêndidas ou especiosas.
141
As flores são outra fonte de beleza presente no relato paisastico alencarino. Segundo
Alencar, via-se uma paisagem repleta de flores de todas as cores. Em outras passagens o
autor especificou algumas e suas cores: “Da outra banda um maracujazeiro dessa espécie
delicada que ali chamam suspiro, prendendo-se aos galhos das árvores, formava entre lindas
grinaldas de flores, um mimoso colar de seus lindos frutos dourados e fragrantes;
142
Próximo à casa havia uma árvore seca, mas a exuberância da seiva, não consentindo que no
seio da esplêndida transfiguração hibernal se destacasse um indício de ruína e perecimento,
cobrira aquele esqueleto de um manto de púrpura, tecido com as flores de uma
bignônia.
143
As flores são belas no discurso alencarino por representar a vida e fomentar um
prazer aos olhos, devido suas variações quanto à proporção e coloração.
A iia de proporção foi contestada por Burke quando tomada no sentido de medidas
fixas aos objetos para se pensar algo belo como causa da beleza em vegetais, animais e
humanos, mas o autor aceita a variação da proporcionalidade dos objetos e dos seres como
importante para a construção da beleza. Uma vez que [...] embora a beleza em geral não
esteja ligada a certas medidas fixas, comuns aos vários tipos de plantas e animais belos, no
entanto, em cada espécie, uma determinada proporção absolutamente essencial à beleza dessa
espécie em particular.
144
Assim o belo próprio a cada espécie será encontrado nas medidas
e proporções dessa mesma espécie [...] entretanto, nenhuma espécie estão rigorosamente
circunscrita a certas proporções fixas que não haja variação [...].
145
Portanto, para Burke, a
beleza encontra-se indiferentemente em todas as proporções que cada espécie pode admitir.
Todavia, Burke afirma que as flores nos dão tamm a noção de delicadeza. A beleza
está relacionada até mesmo à iia de fragilidade, tanto no mundo vegetal quanto no animal.
As flores são, particularmente, frágeis e efêmeras e por isso mesmo transmitem a nos a iia
mais vívida de beleza e de graça”.
146
Outro aspecto importante para as flores nos imprimir a
beleza é sua efemeridade, pois não é possível contemplá-la a todo o momento. Assim, o olhar
humano não se acostuma, habitua com esse objeto natural, tornando-o sempre uma novidade,
e, portanto belo por causar forte impressão.
141
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.126.
142
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.220.
143
Ibid., p.217.
144
BURKE, Edmund. Op. Cit., p.100-107.
145
Ibid., p. 107.
146
Ibid., p. 122-123.
57
As aves se constituem outro mote da beleza, como afirma Alencar, havia aves de
brilhante plumagem e pintinhos implumes. O autor se dedica a descrição dos pássaros como
os grandes representantes do retorno da alegria ao sertão: “Havia festas nos ares: a festa
suntuosa da natureza. No meio da orquestra concertada pelos cantos dos sabiás, das graúnas
e das patativas, retiniam os clamores das maracanãs, os estdulos das arapongas, e os gritos
dos tiés e das araras
147
(Grifos meus). Ora, os sons também são fonte de beleza e
sublimidade. O belo se encontra na referência a uma orquestra dos ares, capaz de produzir
de sons melodiosos e uniformes: “Já se ouviam grazinar as maracanãs entre os leques
sussurrantes da carnaúba e repercutirem os gritos compassados do cancã, saltando pela
relva
148
(Grifos meus).
Entretanto, Alencar tamm apresenta ao mesmo tempo elementos-fonte do sublime,
como os sons estridentes: Agora era um bando de jandaias que atravessava o espaço
grasnando e ralhando, em demanda de outra carnaúba onde pousar.
149
Para Burke o belo
musical não comporta os sons fortes e estrepitosos e nem uma grande variedade e transições
bruscas de um tom ou ritmo, portanto as aves e seus sons seriam fonte do sublime e do belo
na paisagem alencarina do sertão cearense.
150
Alencar apresenta um retorno das aves para o sertão após a estiagem, uma vez que O
espaço, até ali mudo e ermo na limpidez de seu azul diáfano, comava por igual a povoar-se
dos pássaros, que durante a seca se refugiam nas serras e emigram para climas amenos.
151
As
chuvas atraiam os pássaros novamente ao sertão, o literato reforça essa iia em outras
passagens: Não era somente na terra, mas também no espaço que a vida sopitada durante a
maior parte do ano, jorrava agora com uma energia admivel”;
152
O primeiro casal de
marrecas, naquele instante chegado das margens do Parnaguá, a centenas de léguas, banhava-
se nas águas de um alagado produzido pela chuva.
153
Esse retorno dos ssaros é acompanhado com os detalhes sicos e comportamentais
das diversas aves que compunham a paisagem sertaneja cearense, dão a impressão ao leitor
que definitivamente havia alegria e movimento no sero:
147
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 147.
148
Ibid., p. 67.
149
Ibid., p.147.
150
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.128-129.
151
ALENCAR, José de. Op. Cit., p. 67.
152
Ibid., p.147.
153
Ibid., p.67.
58
Nada, pom, mais gracioso e alegre do que os periquitos verdes, de bico
branco, e tamanhos de um beija-flor, que adejam em bandos, de cem e
mais, chilreando, como uns garotinhos, que o, dos ares.
Na cor parecem esmeraldas a voar; e no mimo e gentileza figuram os
silfos desses campos, que tomassem aquela forma delicada para
esconderem-se ao seio das magnólias silvestres.
154
(Grifos meus)
Esse trecho de O sertanejo é bastante significativo por retomar algumas propriedades
da beleza já esboçadas e aliá-las a outras. A cor verde dos periquitos e a metáfora das
esmeraldas voadoras reforçam o intuito do autor de gerar beleza na paisagem sertaneja. Assim
como a referência ao tamanho dos periquitos, equiparados a um beija-flor, a menor ave da
natureza e, conseqüentemente, uma das maiores representantes da pequenez, da fragilidade e
delicadeza no mundo animal. Outra fonte do belo presente na descrição alencarina é da
graciosidade. Para Burke a graça diz respeito à postura e ao movimento.
155
Perceba-se isso no
trecho a seguir: Um passarinho saltava do galho superior da árvore a outro mais baixo; e com
esse vôo compassado e alterno imitava perfeitamente o movimento da laçadeira, donde lhe
veio o nome de rendeira, com que o designaram os povoadores.
156
Alencar reforça a iia de graciosidade ao relatar outras situações em que as aves
voam e pousam de forma ordenada nas plantas, sobrepondo o Belo ao Sublime, pois os
pássaros representam a vida sobre as árvores mortas, dando-lhe nonimo um efeito de
beleza pela cor e graça exposadas:
Passava depois a trinar uma multidão de galos de campina, à cata do
milhal; ou um exame de xexéus que pousava em um jatobá seco, e
cobrindo-lhe os galhos mortos e nus de folhas, formava uma copa
artificial com a sua luzida plumagem negra marchetada de ouro e
púrpura.
157
(Grifos meus).
As janãs esvoavam por cima das lagoas e pousavam entre os juncos.
Os currupes brincavam nos galhos da cajazeira; e a industriosa colônia
dos sofrês construia os seus ninhos em forma de bolsas penduradas pelos
ramos da árvore hospitaleira.
158
154
ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 147-148.
155
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.126.
156
ALENCAR, José de. Op. Cit., p.217.
157
Ibid., p.147.
158
Ibid., p.148.
59
A paisagem sertaneja alencarina em tempos benfazejos tamm foi composta pelos
animais quadrúpedes, dentre eles os cavalos Os cavalos em bandos e os magotes de éguas,
soltos pela várzea, nitriam alegremente ao avistar a comitiva, e a seguiam por algum tempo
rifando de prazer, enquanto os poldrinhos curveteavam travessos à cola das mães.
159
e o
gado Ao tropel dos animais surdiam das touceiras de panasco os novilhos e garrotes
mansos, que deitavam a correr pelo campo; mas o gado mocambeiro esgueirava-se pelas
moitas, e escondia-se manhoso à vista dos vaqueiros.
160
Esses animais descritos por Alencar
não possuem nada de aterrorizador, muito pelo contrário, os cavalos e o gado são vistos com
graciosidade, docilidade. Os termos poldrinhos e novilhos fazem refencia a animais
imberbes e inofensivos ao homem, sendo essas características responsáveis tamm por
constituir a beleza desses outros representantes do mundo animal.
Percebe-se assim que o belo em Alencar esteve mais pximo da construção da
paisagem invernosa. Há uma multiplicidade de propriedades no discurso alencarino geradoras
de uma sensibilidade bela, uma vez que trabalhou, de acordo com a teoria burkeana, com a
verdadeira causa da beleza. Para Burke, o belo consiste, na maioria das vezes, em alguma
qualidade dos corpos que age mecanicamente sobre o espírito humano, mediante uma
intervenção dos sentidos.
161
Portanto, Alencar se valeu das idéias originais da beleza,
apresentadas anteriormente por Burke, as perfazendo numa paisagem solarizada.
Todas as características analisadas da paisagem sertaneja alencarina até o momento se
prenderam a um tempo em que o sol esteve presente. Esse rei da luz, como foi posto
anteriormente, predomina no discurso de José de Alencar. É o elemento indispenvel da
paisagem, tanto nas épocas secas quanto nas úmidas. Sem ele o quadro paisagístico pareceria
estar incompleto. Todavia, o autor também relata os momento do luar e seus efeitos na
paisagem e, nesse sentido, a proposta a seguir é analisar essa paisagem noturna.
159
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.147.
160
Ibid., p.147.
161
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.118.
60
1.3 Os sentidos do luar
A Lua é outro personagem de O sertanejo, não é tão visível quanto o sol, mas se
apresentada numa formação discursiva melancólica-noturna, ou seja, Alencar percebe a noite
e a lua como representantes do marasmo, medo, fim de uma expectativa e da tristeza,.
Perceber-se-á que o efeito do astro mais próximo da terra é de terror e assombro, enfim de
sublimidade. Alencar estrategicamente toma como ponto de partida a descrão do entardecer,
responvel por anunciar as primeiras mudanças da paisagem alencarina do sertão. O
surgimento da noite vai sendo acompanhada pela saudade do dia, daí seu tom melacólico:
Nessas horas do ocaso o sertão perde seu aspecto morno, acerbo e
desolador que toma ao dardejar do sol em brasa. A sombra da tarde
resvete-o de seu manto suave e melancólico; é também a hora em que
chega a brisa do mar e derrama por essa atmosfera incandescente como
uma fornalha, a sua frescura consoladora.
162
Ao final da tarde as sombras reaparecem com força sobre o espaço sertanejo: de
todo caíra a tarde; e as sombras da noite se desdobravam pelas costas da serra”.
163
Essas
sombras anunciam a escuridão e contaminam a paisagem sertaneja de tristeza, como afirma
Alencar: alegria e animação que sempre traz a manhã nessa estão ardente, ia-se
dissipando; e começava a calma da soalheira, que infunde no sertão indefinível
melancolia.
164
As trevas tomam amplitude e tomam conta de todo o sertão, acabando
definitivamente com a alegria criada pelo sol, pois “As sombras das colinas do poente
desdobravam-se pelos campos e várzeas e cobriam a rechã candor da tarde, que em vez da
alegria da alva matutina tem o desmaio, a languidez e a melancolia da luz que expira.
165
Para Burke, a escuridão é uma causa do sublime, uma vez que se torna dolorosa ou
terrível, principalmente para aqueles contaminados na infância por superstições,
166
caso muito
comum quando se pensa a profusão de lendas no sertão cearense. A tomar como exemplo a
162
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.15.
163
Ibid., p.34.
164
Ibid., p.96.
165
Ibid., p.129.
166
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.150.
61
lenda do lobisomem, da caipora, do gigante Gorjala, entre outras.
167
Todas lendas repassadas,
segundo Barroso, pelas velhas contadoras de histórias e os cantadores rústicos. Lendas
oriundas das superstições portuguesas, indígenas e africanas.
Burke percebe na escuridão o sublime porque todo o gênero humano pode transformar
as trevas em algo terrível, pois
na completa escuridão, não nos é possível determinar o grau de nossa
segurança: não sabemos quais objetos nos rodeiam, podemos a qualquer
momento deparar com algum obstáculo perigoso, podemos estar a um
passo de cair em um precipício e, se um inimigo se aproxima, não
sabemos como nos defender.
168
Assim, tem-se tamm outra fonte de sublimidade durante a ação do luar: a
obscuridade. Burke afirma que a noite contribui intensamente para o nosso temor em todos os
casos de perigo. Daí um elemento chave da sublimidade, a preocupação com a
autopreservação. Portanto, tudo que é escuro, confuso, terrível se torna absolutamente
sublime.
169
Alencar continua, em outras passagens, a se dedicar numa valorizão do
anoitecer, pois as sombras possuem o poder de conquistar o sertão, to-lo para si aos
poucos: Por aquelas devesas envoltas no umbroso manto, destacam-se as das árvores
altaneiras ainda imergidas nos fogos do arrebol, e que de longe parecem as chamas de um
incêndio rompendo aqui e ali do seio da mata.
170
Alencar cria então uma atmosfera misteriosa, temerosa, como se a noite revelasse
aspectos extraterrenos, os sons vão contemplando essa perspectiva: A campa tangida
vivamente soltava os repiques argentinos, sombreados pela surdina dos longos pios das aves
noturnas e dos ulos da brisa nas grotas da serra.
171
(Grifos meus). A paisagem se repleta de
características aterradoras, como diz Burke, são sons capazes de intimidar alma, em que os
temperamentos mais equilibrados mal podem pôr-se a salvo. Colocando-nos sob o efeito da
subtaneidade, em que a atenção é despertada e as faculdades postam-se à frente, por assim
dizer de sentinela, outra fonte de sublimidade.
172
167
Ver BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do norte. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha,
2003. p.266-280. A última parte da obra trata especificamente das lendas relativas ao mundo natural e
sobrenatural. No caso em questão, as lendas relativas ao mundo sobrenatural teriam um poder maior de
sublimidade, se relacionam aos aspectos noturnos.
168
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,
p.150.
169
Ibid., p. 66.
170
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.129.
171
Ibid., p.34.
172
BURKE, Edmund. Op. cit., p. 88-89.
62
Alencar estabelece uma relação saudosista com o sol. A noite aparece como momento
de uma tristeza imanente da alma humana, representando isso também quanto ao mundo
vegetal e animal: No meio, porém, desse concerto e do borborinho que ainda levantava a
labutação diária, atravessava o espaço uma nota dorida, plagente, ressumbo de saudade
infinda. Se a alma da solidão se fizesse mulher, ela não tiraria de seu mavioso seio um suspiro
tão melanlico e tocante como o arrulho da juriti ao cair da noite.
173
O gado dantes alegre encontra no luar o momento da sua melancolia:
O gado espalhado pelas várzeas solta os profundos e longos mugidos com
que se despede do sol, e que propagam-se pelo ermo, como os carpidos
da natureza ao sepultar-se nas trevas.
Respondem as vacas nos currais, e os bezerros misturam seus berros
descompassados com os balidos das ovelhas e borregos, também já
recolhidos ao aprisco.
174
Os pássaros não são representados por Alencar de forma diferente, a festividade de
outrora, quando O sol transmontara
175
se modifica e a tristeza também toma conta dos ares:
“Lá das matas reboa o surdo estridor em que se condensam os cantos de todos os pássaros e o
grito de todos os animais, para formar a grande voz da floresta, que exala-se, sobretudo nessa
hora, abafada e sombria das espessas abóbadas de verdura.
176
Essa tristeza representada por
Alencar contribuiu para a construção de uma paisagem sublime do sertão cearense.
Alencar elenca o dia também como o momento da labuta, da dinamicidade do espaço
sertanejo, pois Nessa hora a lida jornaleira das fazendas torna-se mais pressurosa, como para
aproveitar os últimos instantes do dia”.
177
Enquanto a noite seria período dos movimentos
desconfiados, temerosos e lentos.
Outra fonte de sublimidade presente na noite alencarina é a solidão. O autor representa
sua personagem Arnaldo, o letimo sertanejo, em momento de privação: “Era assim todas as
noites em que malhava ali, na sua pousada, quando as correrias da vida errática do sertanejo
não o levavam pelo mundo sem destino”.
178
173
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.129.
174
Ibid., p.129.
175
Ibid., p.129.
176
Ibid., p.129.
177
Ibid., p.129.
178
Ibid., p.42.
63
Apesar de Alencar afirmar a exisncia uma conversação entre Arnaldo, a lua e as
estrelas, isso se constitra apenas numa situação narrativa com o intuito de, paradoxalmente,
alimentar a solidão da personagem: “Essa lumiria, ele a amava como sua estrela. As almas
que vivem no campo, ao relento, sob um firmamento cravejado das mais brilhantes
constelações, todas têm um astro de sua particular devoção, um amigo no u com que se
entretêm e conversam nos serões das noites ermas”.
179
(Grifos meus). Outros aspectos do
sublime se encontram nos trechos grifados, pois fazem referência a intensidade da luz e a
grandiosidade do espaço celeste.
O infinito também come a perspectiva sublime. Para Burke a infinitude tem uma
tenncia a encher o espírito daquela espécie de horror deleituoso, que é o efeito mais natural
e o teste infalível do sublime”.
180
A passagem a seguir é bastante significativa nesse aspecto:
Nesse enlevo d‟alma, a fantasia arrebata-o com a pujança que ela
costuma adquirir nos ermos, em comunicação com o infinito que a
envolve e a concebe no seio imenso que se chama a natureza.
Compreendem-se os êxtases dos anacoretas nas solidões da Tebaida.
Como não se exaltarem ao céu, essas almas o desprendidas da
humanidade, que desparzem nos ares a fragrância de sua flor?
181
(Grifos
meus).
Além de Alencar ainda intensificar a iia da profunda solidão nas solidões de
Tebaida
182
a paisagem alencarina foi pensada pelo ideal da vastidão, outra fonte do
sublime, principalmente porque se trata de uma grandiosidade de dimensões em um plano
perpendicular, segundo Burke, capaz então de produzir um efeito maior de sublimidade.
183
Assim, na obra O Sertanejo, a noite e o luar foram representados como sublimes, por
serem essencialmente ligadas a uma cessação do prazer
184
proveniente de uma paisagem
solarizada, ou seja, a melancolia produziu dor na construção de uma sensibilidade paisagística
do sertão cearense.
179
ALENCAR, José de. O sertanejo, p.42.
180
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,p.78.
181
ALENCAR, José de. Op. cit., p.44.
182
Região do Egito, poeticamente utilizada como referência a lugares profundamente ermos.
183
BURKE, Edmund. Op. cit., p.77-78.
184
Ibid., p 46.
64
As palavras são capazes de transmitir as paixões humanas junto ao mundo natural com
uma grande intensidade. As estragias discursivas apresentadas por Alencar criaram uma
sensibilidade identitária do sertão cearense. Edmund Burke já alertara sobre esse poder das
palavras: a maneira adequada de transmitir os sentimentos de um espírito a outro é através
das palavras; todos os outros meios de comunicação ficam muito aquém do desejável”.
185
A análise do capítulo centrou seu olhar nos relatos-fonte de sublimidade e beleza.
Sendo assim, possível observar a composão de distintas paisagens alencarinas do espaço
sertanejo cearense. Houve na obra O sertanejo a construção das paisagens solarizadas
paisagens de estiagem, resistência e inverno e da paisagem noturna.
As paisagens solarizadas predominam na trama, dando a impreso de que o relato é
essencialmente diurno. Assim, a luz tão proeminente do sol se fez presente na maior parte da
obra. Nesse sentido, tem-se em Alencar uma construção romântica do sertão como uma
espacialidade da luz. Portanto, a identidade da Terra da Luz coma a ser edificada.
Para tanto, Alencar criou uma paisagem sertaneja relacionada tanto ao sublime quanto
ao belo. Todavia, segundo Naxara, o sublime se colocava, de forma sensível e frequentemente
não-consciente, o excesso e o exagero, a grandiosidade, o que amedronta e subjuga por ser
grandioso, o que contrasta sem mediações, com a exaltação e o transbordamento, o poder e a
submissão.
186
Para a autora, são predominantemente em tons sublimes as representações e imagens
acerca da singularidade da “natureza brasílica.
187
O sertanejo, não foge a essa lógica, seu
relato romanceado transporta o leitor para uma paisagem de um tempo colonial, num esforço
de verossimilhança ou da criação do espaço do sertão a partir do (re)arranjo de elementos
conhecidos do mundo natural. Na tentativa de produzir o que seja, ao mesmo tempo, inédito
original e verossímil.
Mas José de Alencar foi apenas um dos construtores do espaço sertanejo cearense com
uma paisastica da luz. É importante buscar outros referenciais de cristalização dessa
identidade da Terra da Luz, nesse sentido, o próximo capítulo se debruçasobre algumas
obras marcantes da chamada literatura da seca cearense.
185
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo,p.68.
186
NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade rontica: em busca de um sentido
explicativo para o Brasil no século XIX. p. 13-14.
187
Ibid., p.15.
A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875- 1914)
Capítulo II
A imaginação material na paisagem da literatura da seca cearense
O objetivo deste capítulo é analisar a construção da paisagem sertaneja cearense a
partir de ts obras ícones da literatura da seca Os retirantes (1879), de José do Patrocínio;
A fome (1890), de Rodolfo Tfilo; Luzia-Homem (1903), de Domingos Olímpio , buscando
perceber nessa crião paisastica outra leitura do sertão, mas que mesmo assim continua
sendo uma representação de um espaço da Luz.
As obras são vistas como ícones não por suas repercussões na época em que foram
produzidas, mas tamm devido à primeira, Os retirantes, de José do Patrocínio, inaugurar
em 1879 o discurso da literatura da seca de cunho realista.
1
O segundo livro, A fome, de
Rodolfo Tfilo, reforça em 1890 essa tradição literária da seca, todavia a alia
definitivamente com a vertente naturalista. O terceiro título, Luzia-Homem, de Domingos
Olímpio, fecha em 1903 o ciclo da literatura da seca cearense sob a tenncia realista e
naturalista. Portanto, a partir dessas três obras selecionadas se pode tamm perceber três
momentos distintos nessa literatura cearense no decorrer da transição do século XIX para o
culo XX.
Essa literatura da seca emerge justamente quando a seca é transformada em um
problema da área norte do país e sendo problematizada se necessitava dar-lhe solução. A
manifestação do discurso literário acabou por constituir um dos meios de difusão do discurso
da seca, surgido da própria problematização do fenômeno natural. A seca se tornou
problema apenas no final do século XIX, a partir da chamada ―grande seca de 1877-79.
Ocorrida no momento em que o espaço do Norte vivia uma grave crise econômica, potica
e social, gerada pelo decnio das exportações dos principais produtos da região, pela perda do
espaço político de sua classe dominante em termos nacionais e pelo descontentamento das
várias camadas sociais com a forma como estava se dando o processo de transição para uma
economia de mercado capitalista.
2
1
Quanto ao romance Os retirantes Araripe nior considerava os primeiros capítulos, principalmente, muito
imbuídos de zolaísmo e muito rebuscados. Malgrado os defeitos que lhe são apontados pelo eminente ctico, o
livro coloca, no entanto, o seu autor entre os precursores da literatura das secas em nosso ps. Ver
MAGALHÃES NIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patrocínio. 2. ed. São Paulo: LISA; Rio de
Janeiro: INL, 1972. p. 75.
2
ALBUQUERQUE NIOR, Durval Muniz de. Falas de ascia e de angústia: a seca no imaginário
nordestino de problema à solução (1877-1922). 1987. Dissertão (Mestrado em História) Departamento de
História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1987. p. 408.
66
Segundo Albuquerque Júnior, a conscncia desta crise foi despertada pela progressiva
desestruturão das relações econômicas e políticas tradicionais, pela intervenção crescente
do Estado no espaço nortista e pelas revoltas das camadas populares. Essa consciência
depertada fez com que a elite agrária nortista ensaiasse e articulasse, notadamente a partir da
década de setenta do século XIX, um discurso de cunho regionalista, que procurou
basicamente afirmar os valores culturais tradicionais, como forma de evitar, pelo menos no
plano do discurso, a destruição desta, vista como particularidade.
3
Assim, a medida que o problema foi sendo colocado, em torno dele comaram a
surgir diferentes manifestações discursivas, partidas de diferentes grupos e instituições
sociais da região, se somando àquele discurso popular ou tradicional já existente. Estas
manifestões discursivas partiam da visão tradicional e elaboraram diferentes compreensões
e imagens do fenômeno, que se intercruzaram de forma a dar origem a um outro discurso,
nascido de elementos destes discursos anteriores, o qual segundo Albuquerque Júnior, pode-se
chamar de discurso da seca.
4
Nesse sentido, a produção das obras Os retirantes, A fome e
Luzia-Homem caminhava lado a lado com a construção do discurso da Seca do Norte ou
Seca do Ceará, servindo até mesmo de lastro ao discurso jornalístico e oficial dos
parlamentares e presidentes de proncia do, então, Norte brasileiro.
Dentre as diversas imagens constrdas a partir da seca de 1877-79 é possível tamm
perceber a descrição da paisagem do sertão. Essa paisagem da seca acabou por constituir uma
força simlica incrível, capaz de se sobrepor em relão a outras possíveis paisagens
sertanejas. A descrição da terra ressequida e todas as mazelas surgidas da falta d‘água no
espaço sertanejo tiveram o poder de comover, sensibilizar os leitores para o que se acreditava
representar a seca no, então, Norte do país.
Assim, essa paisagem da literatura da seca foi organizada pela apreensão do olhar dos
escritores, que, por sua vez, foram condicionados por filtros sociais, políticos e culturais.
Nesse sentido, a paisagem desses literatos foi uma representão do existente ou do ansiado
para o espaço sertanejo cearense, apreendida segundo determinada perspectiva. É sabido que
esse espaço comporta coexistências que nem sempre são capturadas ou valorizadas no recorte
da paisagem efetuado, dependente desses filtros bem como dos interesses que regem a
apreeno do olhar dos escritores.
3
ALBUQUERQUE NIOR, Durval Muniz de. Falas de ascia e de angústia: a seca no imaginário
nordestino de problema à solução (1877-1922), p. 59-60.
4
Ibid., p. 409.
67
A construção paisastica sertaneja cearense, a partir dessas obras, estava relacionada a
autores presos ao olhar e à experiência vivida sobre o que escreviam. A seca foi um tema a
ser tratado por Patrocínio, Tfilo e Olímpio, até mesmo por que todos presenciaram o
fenômeno em 1877-79. Esse foi um dos móveis capazes de engendrar o discurso literário da
seca, tão intimamente relacionado a uma das premissas qualitativas do Realismo e
Naturalismo : o ver como garantia da percepção do real, tal qual ele se apresentava. Esses
autores, portanto, se depararam com uma queso, pois segundo Raymond Williams as
relações reais entre os homens e natureza, e exisncia real do observador e daqueles que ele
podia ver apenas dissolvidos numa paisagem, voltavam como um problema: de identidade, de
percepção e da própria natureza.
5
Não é a toa que o momento da escrita dessas obras, passagem do século XIX para o
culo XX, se ansiava a construção da identidade nacional e regional brasileira, culminando
tamm na definitiva distinção do Sul para com o Norte do país, tanto em termos econômicos
quanto em termos poticos, sociais e culturais. Esses homens de letras também eram os
homens que percebiam o mundo pela lente do progresso, do ideal de civilização e
modernidade. Literatos de tenncia crítica, essencialmente incutida pela própria formação
intelectual, uma vez que todos foram pertencentes à chamada Geração 70, de cunho
reformista e contestatório.
Outro ponto comum entre os autores é a atividade jornalística. O jornal era
considerado um importante meio de comunicação, espaço da crítica e da denúncia do real
acontecimento do dia-a-dia. A busca pela apresentação do real era a condição primeira da
atividade desses literatos-jornalistas. Assim, não é sem sentido que o Realismo e o
Naturalismo se constituíram na tenncia literária apropriada para esses homens. A literatura
realista foi pensada na década de 1850 na França, triunfando como tenncia literária a partir
da escrita de Madame Bovary, em 1857, sob autoria do frans Gustave Flaubert.
6
Aliando-se
ao Realismo, Émile Zola, também jornalista, inaugurou o Naturalismo com o livro Thérèse
Raquin de 1867. A crítica literária na época repercutiu de forma negativa para com essa obra,
que no ano seguinte à primeira publicação foi lançada a segunda edão prefaciada pelo
próprio Zola. O autor se valeu desse espaço para responder as críticas anteriores e acabou por
5
Ver WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras,
1989. p. 176.
6
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.2. Rio de Janeiro: Editorial do Sul Americana S.A., 1955.
p.20.
68
sistematizar nele os princípios da literatura naturalista, instituindo o que para ele era mais
importante no verdadeiro romance, o senso do real.
7
Partindo da análise das questões postas inicialmente, é possível direcionar algumas
perguntas a serem respondidas no decorrer deste capítulo: qual foi a leitura dessa literatura da
seca sobre a paisagem sertaneja cearense? Quais os anseios e as motivações desses homens
em suas obras? Houve a construção de uma identidade regional?
1.1 O romance regional e o senso do real na contemplação sertão
O projeto de construção de identidade nacional brasileira no decorrer do século XIX
obteve apoio do movimento regionalista literio. Essa vertente literária intentava construir
identidades regionais que davam a conhecer a terra, o homem e a cultura de diferentes
localidades, entretanto, acabava por colocar em jogo uma rivalidade entre as duas grandes
áreas do país: o Norte e o Sul. As características dessa tenncia literária se justificam na
medida em que, segundo Evaldo Cabral de Mello, representam, no período de 1871 a 1889, as
modificações fundamentais ocorridas no equilíbrio inter-regional e intra-regional brasileiro.
Devido, sobretudo, a centralização monárquica que absorvia os recursos e a ―vitalidade do
Norte.
8
Esse romance regionalista nortista teve como um dos seus pioneiros o autor Franklin
Távora, com O Cabeleira, de 1876. Ele defendia a iia de que a literatura do Norte
representa a letima literatura do Brasil:
As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte,
porém do que no Sul, abundam elementos para formão de uma literatura
brasileira filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido
como essendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro.
9
Maciel Pinheiro, citado por Mello, era, em 1876, um republicano da Paraíba, que
comentando a publicação de O cabeleira, de Franklin Távora, afirmava a diferenciação
crescente entre as duas grandes regiões do país. Segundo Maciel Pinheiro, a vida do Norte do
Brasil tem cunho diverso da do Sul, hábitos, índole, meios de subsistência constitram uma
7
ZOLA, Émile. Do romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt. São Paulo: Imaginário; USP, 1995. (Cticas
poéticas;3).
8
MELLO, Evaldo Cabral de. O norte agrário e o Império: 1871-1889. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks,
1999. p. 17.
9
VORA, Franklin. O cabeleira. 13 ed. São Paulo: Ediouro, [s.d.]. Prefácio p. 12. (Coleção Prestígio).
69
sociedade com feições diferentes. Ademais, continua Pinheiro, as ―inflncias de ordem
política m concorrido para que mais se caracterize e acentue a diferença entre o Norte e o
Sul do Brasil. No sul, está o governo, a cujo influxo imediato tudo se anima e desenvolve.
Outro elemento de diferenciação residiria na imigração européia, favorecida no Sul e
obstaculizada no Norte. Mesmo assim, é paradoxal o fato de que o ressentimento nortista
contra o governo central tinha-se aguçado precisamente no período em que se assistia ao
incremento da presença de políticos regionais na política nacional.
10
Com essas diferenças regionais se acentuando em fins do século XIX, a literatura
regionalista nortista tamm buscava formas de se diferenciar da literatura do sul do país.
Segundo Antônio Cândido, o regionalismo literário nortista se fundamentava em três
elementos que ainda hoje constituem, em proporções varveis, a principal argamassa do
regionalismo literário do Nordeste. Primeiro o senso da terra, da paisagem que condiciona
tão estreitamente a vida de toda a região. Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo
regional, orgulhoso das guerras holandesas, do velho patriarcado ucareiro, das rebeliões
nativistas. Finalmente, a disposição pomica de reivindicar a preemincia do Norte, como
o espaço mais reputadamente brasileiro.
11
A primeira base de fundamentação desse
regionalismo literário apontada por Cândido é a que mais interessa neste capítulo: o senso da
terra que revela a percepção que os literatos tinham do sertão cearense. Todavia, esse olhar
sobre o espaço sertanejo era proveniente de motivações diferenciadas entre os autores, em
decorrência do próprio trajeto de vida de cada um deles.
A tomar como exemplo Patrocínio, não sendo cearense e nem radicado na proncia,
dificilmente se constituiu num autor reivindicador de certo patriotismo regional. José Carlos
do Patrocínio, autor de Os retirantes, nasceu em Campos de Goitacases, na proncia do Rio
de Janeiro, em 8 de outubro de 1854, transferindo-se 1868 para capital imperial e por lá
passou a maior parte de sua vida adulta. Mesmo assim, foi o autor que inaugurou o romance
da seca cearense. Em 1877, Patrocínio escrevia para o jornal carioca Gazeta de Notícias,
segundo Magalhães Jr., um jornal vivo, popular, empenhado em dar aos leitores informações
colhidas por observadores diretos.
12
É com esse espírito jornastico que a Gazeta de Notícias
queria que um de seus redatores fosse ao Ceará para medir a extensão da tragédia coletiva que
se abatera sobre a província por conta da estiagem, podendo assim olhar in loco e apresentar a
realidade da seca e suas conseqüências à opinião pública sulista.
10
MELLO, Evaldo Cabral de. O norte agrário e o Império: 1871-1889, p. 18.
11
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. v. 2. Belo Horizonte:
Itatiaia LTDA, 200. p. 268.
12
MAGALHÃES NIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patronio, p. 55.
70
Patrocínio acabou sendo selecionado como correspondente por seu talento, vivacidade
e entusiasmo com a profissão. Além disso, não tinha problemas familiares, uma vez que era
moço e solteiro e a viagem lhe convinha até por motivos íntimos.
13
Sendo assim, foi enviado
pelo Jornal ao Ceará, entre maio e setembro de 1878, com a missão de enviar, especialmente,
à Corte informações qualificadas sobre a seca que assolava a proncia.
Ora, a Corte compunha um dos focos do objetivo do discurso jornalístico, pois nesse
momento as reivindicações dos parlamentares nortistas se faziam mais presentes. O problema
da seca se consolida como justificativa para o envio de verbas à área e, em conseqüência
disso, os recursos gastos com os socorros públicos aumentava de forma surpreendente.
Sendo assim, a Corte sentia a necessidade de outra informação que viesse a confirmar o
discurso dos parlamentares da bancada nortista, em especial do Ceará. Não é toa que pela
primeira vez no Brasil foi feito uso da fotografia na atividade jornalística, as fotos foram
produzidas por J. Correa e possibilitaram capturar algumas imagens da seca no Ceará em
1878.
14
A foto teria o poder de revelar a verdade, uma vez que ninguém discutiria a imagem
que havia sido fixada por um equipamento tido como preciso, uma engenhoca da tecnologia
moderna. Naquele momento do século XIX, como diria Berman, ―a fotografia é capaz de
reproduzir a realidade com mais precisão do que nunca para mostrar averdade‘.
15
Assim,
a foto possibilitaria o olhar direto do leitor, questioná-la ou contrariá-la como documento
fidedigno seria também negar sua própria faculdade natural da visão.
Segundo Castro Neves, o romance Os retirantes foi resultado de todo esse acúmulo de
experiências por parte de Jo do Patrocínio. Sendo publicado primeiro em estilo de folhetim,
no próprio jornal Gazeta de Notícias, concluído em 1879.
16
Vale a pena ressaltar a
imporncia da receptividade do gênero folhetinesco. Os retirantes, ao ser primeiramente
apresentado sob a forma de folhetim, se constituiu num romance publicado em jornal, por sua
vez, vendido a preço baixo e com grande tiragem, sofrendo grande inflncia da produção
jornalística voltada para o gosto do público urbano. Era essa a característica do folhetim,
gênero importado da França, e que com o gradual desenvolvimento das cidades, em especial o
Rio de Janeiro, encontrou amplo espaço de publicação na capital do Império, e no interior.
Portanto, pode-se concluir que a primeira leitura do sertão cearense sob a vertente da literatura
13
MAGALHÃES NIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patronio. p. 55.
14
Ver NEVES, Frederico de Castro. A miséria na literatura: José do Patronio e a seca de 1878 no Ceará.
Tempo, 2007, vol.11, n. 22, p.80-97.
15
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a ventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986. p.136.
16
Ver NEVES, Frederico de Castro. Op. cit., p. 89-90.
71
da seca instaurou no público sulista do Brasil, com ampla receptividade, uma sensibilidade
sobre àquele espaço sertanejo.
17
Rodolfo Tfilo am de elaborar, assim como Patrocínio, um senso da terra era
tamm um exemplar patriotista regional. A sua percepção da terra é perpassada pela sua
relação identitária com o Ceará. Rodolfo Tfilo, segundo seus biógrafos, nasceu na Bahia em
1853 devido a sua mãe Josefina Sarmento ter abortado durante a primeira gravidez.
Assim, outra gravidez de risco, como foi a de Tfilo, fez o pai e médico Marcos José buscar
cuidados mais avançados que garantissem o nascimento do primonito, encontrados na área
Norte do Imrio, apenas na proncia da Bahia. Segundo Lira Neto, era na Bahia onde se
formavam os melhores médicos, diplomados na melhor Faculdade de Medicina do país.
18
Marcos José, formado por essa mesma instituição, em caso de emergência poderia contar com
o apoio dos antigos mestres ou dos muitos colegas baianos da época de estudante. Rodolfo
Tfilo, após um mês e meio de nascimento, foi levado ao Ceará: espaço de sua infância,
juventude e velhice.
Assim, Tfilo nasceu na Bahia por uma ocasião adversa e ele próprio ao retornar ao
toro de origem, durante a sua formação acadêmica na Faculdade de Medicina da Bahia,
negava veementemente seu vínculo identitário com esta proncia. Quando questionado sobre
sua origem de nascimento, Rodolfo Tfilo se dizia cearense e que continuaria cearense,
pronunciando a frase conhecida e repetida pelos seus bgrafos: sou cearense porque quero!
Essa frase, acabou por ser tomada como uma revelação do sentimento de pertença de Tfilo
ao Ceará. Sendo assim, a identidade do torrão natal do autor se deu para com a Terra da Luz e
não a Bahia, como dissera o próprio Teófilo, em 24 de abril de 1927, numa carta endereçada
ao escritor Afonso Costa, organizador de uma antologia de escritores baianos: nasci baiano
por acidente, mas de coração sou todo cearense, como nenhum será mais do que eu‖.
19
Rodolfo Tfilo, assim como Patrocínio, também presenciou a seca de 1877-79.
Depois de fazer os preparatórios no Recife, matriculou-se na Faculdade de Medicina da
Bahia, de onde regressaria para o Ceará não como médico, mas como farmautico, em 1876.
Tfilo escreveu seu romance A fome em 1890, onze anos as o final do episódio da ―grande
seca, a partir de suas anotações mensais sobre a estiagem, notas que para o próprio Tfilo
17
Ver MEYER, Marlyse. Folhetim uma hisria. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; SODRÉ, Muniz.
Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1985.
18
NETO, Lira. O poder e a peste: a vida de Rodolfo Teófilo. 2. ed. Fortaleza: Edições Fundão Demócrito
Rocha, 2001. p. 25.; José do Patronio afirmara que o ensino na Faculdade de Farmácia do Rio de Janeiro era o
mais precário e mais desorganizado. Ver MAGALHÃES NIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do
Patrocínio. p. 20-21.
19
NETO, Lira. Op. cit., p. 80.
72
não passavam de observações gerais e testemunhos diretos a serem utilizados na composão
das personagens. O romance acabou por confundir as anotações reais e as tramas ficcionais
realizadas por Tfilo, tensão própria da tenncia literária realista-naturalista. Assim, o autor
se constituiu tanto em um espectador, uma testemunha do momento, como Patrocínio. Além
disso, viu de perto as mazelas ocasionadas por conta da seca na capital da Terra da Luz, a
tomar como exemplo o embate pessoal de Tfilo com o surto de varíola, propalado num
ambiente de inchaço populacional, que assolava Fortaleza no ano de 1878.
Domingos Olímpio Braga Cavalcanti foi um cearense por nascimento e resincia.
Olímpio nasceu em Sobral CE, a 18 de setembro de 1850, onde passou sua infância.
Fortaleza foi vivenciada na adolesncia, durante a década de 1860, em decorncia dos
estudos no Ateneu Cearense, convivendo na instituição com o próprio Rodolfo Tfilo. Após
esse momento foi realizar os preparatórios no Recife para cursar Direito, posteriormente, na
Faculdade de Direito do Recife, onde se bacharelou em 1873. Após diplomado, retornou à
Sobral CE, em 1875, atuando por lá como promotor público, até o ano de 1879.
Como Patrocínio e Tfilo, Domingos Olímpio esteve no Ceará durante a ―grande
seca de 1877-79, sendo seu romance Luzia-Homem mais uma leitura dessa estiagem. Quanto
ao jornalismo, Domingos Ompio também o exerceu como atividade profissional,
principalmente no Rio de Janeiro, escrevendo para periódicos como O Comércio, Jornal do
Comércio, Correio do Povo, Cidade do Rio, Gazeta de Notícias e O País, passando, assim,
em algumas das redações tamm visitadas e laboriadas por José do Patrocínio. Rodolfo
Tfilo também se constituiu num jornalista, entretanto, de atividade local, participou
essencialmente da imprensa cearense, como no jornal O Domingo, e contribuiu com o
movimento abolicionista, nO Libertador.
Portanto, percebe-se que os ts autores vivenciaram o Ceará entre 1877 e 1879.
Sendo, em grande medida, por isso que as tramas de todas as obras fazem refencia à
―grande seca, uma vez que essa estiagem foi tornada como um caso exemplar. Todavia,
apenas Patrocínio, concluindo Os retirantes em 1879, escreveu no fervor dos seus
acontecimentos, enquanto Tfilo e Ompio publicaram A fome e Luzia-Homem,
respectivamente, em 1890 e 1903. Para compreender isso, é importante pensar os momentos
de produção de cada literato. Segundo Lira Neto, a verve romancista de Tfilo nasceu entre
os anos de 1887 e 1891, sendo A fome o seu primeiro romance.
20
Caso parecido ocorreu com
Olímpio, apesar de escrever peças teatrais desde a década de 70, o seu primeiro e único
romance é Luzia-Homem.
20
NETO, Lira. O poder e a peste: a vida de Rodolfo Teófilo, p. 126-131.
73
Talvez tenha existido mais um motivo para a produção desses romances tardios: a
continuidade da realidade das secas.
21
A seca de 1877-79 não foi a primeira e nem a última a
assolar a proncia do Ceará. Tfilo viu e ouviu em Fortaleza outros tantos episódios
calamitosos oriundos de estiagens subseqüentes. A tomar como exemplo a seca 1888-89,
pouco antes da escrita de A fome. Quando da escrita de Luzia-Homem, Domingos Olímpio
não mais residia no Ceará, encontrava-se radicado no Rio de Janeiro desde 1891, onde
permaneceu até a sua morte em 1906. Mesmo assim, diante de sua agitada atividade
jornalística e seu contato com diversos intelectuais de todo Brasil, deve ter tomado
conhecimento não da seca de 1888-89 quando ainda residia em Belém do Pará , mas
tamm das de 1898, 1900, 1903-04. Esta última coincidindo com mesmo ano de publicação
de Luzia-Homem.
Assim, Tfilo e Olímpio presenciaram e/ou ouviram sobre uma continuidade das
antigas situações aviltantes durante estiagens no Ceará e nas províncias vizinhas, onde se
davam mais vezes as retiradas penosas, a fome e a morte. Essa lembrança reacendida fez com
que esses literatos, de verve reformista e contestatória, refletissem sobre o seu presente e se
sentissem impelidos a escrever e a denunciar a embrionária indústria da seca.
As obras de José do Patrocínio, Rodolfo Tfilo e Domingos Olímpio tratam
especificamente de um episódio da história das secas cearenses, a ―grande seca de 1877-79‖,
tendo-se uma unicidade temática entre as obras. Além disso, as motivações e situações que
levaram a escrita dos livros justificam suas exisncias como uma literatura sobre o Ceará. O
fato em comum da atividade jornalística revela um espírito da época da formação desses
literatos, que de forma mais eloqüente ou não, possam o intuito didático de educar sua
gente, buscavam que esta conhecesse a realidade de forma mais fidedigna, por isso a
procuravam descrever de forma sistemática e minuciosa.
José do Patrocínio, Rodolfo Tfilo e Domingos Olímpio em suas atividades
jornalísticas, comungavam do espírito ilustrado da liberdade, igualdade e fraternidade. E por
esse pensamento foram intelectuais importantes para o movimento abolicionista e republicano
em fins do século XIX. José do Patrocínio foi jornalista, orador, poeta e romancista, valeu-se
dessa sua verve intelectual variada para encabeçar a criação do ―Clube Republicano que
buscava o processo de abolição do escravismo no Brasil, fundando tamm a Confederação
Abolicionista e lhe redigindo o manifesto assinado tamm por AndRebouças e Aristides
Lobo. A sua participação abolicionista se deu em diferentes localidades, inclusive no Ceará,
21
Ver VILLA, Marco Antônio. Vida e morte no sero: História das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX.
São Paulo: Ática, 2000.
74
quando retornou no início dos anos de 1880 a Terra da Luz, não mais por conta da seca, mas
sim pela causa anti-escravocrata nesse momento sim um intelectual e potico reconhecido
nacionalmente , onde em Fortaleza possivelmente teve contatos com Rodolfo Tfilo.
22
Além disso, talvez o empenho abolicionista de Patrocínio tenha sido oriundo da sua própria
origem familiar, uma vez que era filho de uma escrava quitandeira, Justina Maria do Espírito
Santo e do cônego José Carlos Monteiro, que não o perfilhou, mas criou-o em sua casa.
23
Rodolfo Tfilo foi jornalista, abolicionista, poeta, romancista e admirador do
imperador. Assim como Patrocínio, participou efetivamente da campanha abolicionista no
Ceará, primeira província brasileira a declarar livres os seus escravos em 1883.
24
Domingos
Olímpio teve uma intensa vida jornastica, abolicionista, assim como José do Patrocínio e
Tfilo. Entretanto, seus discursos em prol do republicanismo e do abolicionismo partiam de
Belém, uma vez que havia se mudado para lá em 1879, continuando a vida jornalística e
política do mesmo modo que no Ceará, sendo tamm eleito para a Assembia Provincial do
Pará.
25
Esses homens vivenciaram a partir da extinção do tráfico negreiro, em 1850, a
acelerão da decadência da economia ucareira e o deslocar do eixo potico-econômico de
prestígio para o Sul. Assim como os anseios das classes médias urbanas que viriam a compor
um quadro novo para a nação, propício ao fermento de iias liberais, abolicionistas e
republicanas. De 1870 a 1890 foram essas as teses esposadas pela intelincia nacional, cada
vez mais permeável ao pensamento europeu que na época se constelava em torno da filosofia
positiva e do evolucionismo. Comte, Taine, Spencer, Darwin e Haeckel foram os mestres,
enfim, dos homens que viveram a luta contra as tradições e o espírito da monarquia.
26
É
nesse momento histórico, de condições sociais e educacionais específicas, que se formou a
chamada ―Geração 70, da qual a instrumentação intelectual de José do Patrocínio, Rodolfo
Tfilo e Domingos Olímpio foi tributária, tornando-os parte da elite ilustrada surgida na
segunda metade do século XIX.
Segundo Lilia Moritz Schwarcz, se essa elite ilustrada não era em sua maioria,
originária das camadas mais pobres, também não podia ser entendida como totalmente
oriunda ou até mesmo porta-voz exclusiva dos interesses das classes dominantes. Por outro
lado, se é certo que sua composição social os situaria como membros das camadas mais altas
22
MAGALHÃES NIOR, Raimundo. A vida turbulenta de José do Patronio. p. 119-125.
23
PATROCÍNIO, José. Os retirantes. v.32. São Paulo: Três, 1973. (Colão Obras imortais da nossa literatura,
v. 32-33). p. 9.
24
NETO, Lira. O poder e a peste: a vida de Rodolfo Teófilo, p. 114.
25
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 11-12.
26
BOSI, Alfredo. Hisria concisa da literatura brasileira, p. 163.
75
da sociedade, sua atuação não podia ser exclusivamente explicada em termos de pertinência
de classe. Por fim, apesar dos estreitos laços de parentesco que atavam certos intelectuais a
famílias de proprietários de terra, sua atuação se deu em um contexto urbano, o que já os
diferenciava de seu grupo de origem.
27
Nesse sentido, no Brasil de fins do Império, formou-se o movimento da "nova
geração", autonomeado numa referência à juventude de seus membros. Os intérpretes
passaram depois, convencionalmente, a identifi-lo como "movimento intelectual da geração
1870". Segundo Alonso, à primeira vista, a unidade geracional parece ser mesmo o único
cririo unificador deste movimento. Embora os intérpretes usualmente o subdividam
conforme a adesão a correntes intelectuais européias cientificismo, positivismo,
liberalismo, spencerianismo, darwinismo social , o retrato mais comum aponta um
sincretismo, quando não um caos teórico: intelectuais imitativos, deslumbrados com as modas
européias: suas preferências oscilando ao sabor delas.
28
A geração 70, como afirmado anteriormente, teve como parâmetros educacionais as
teorias positivistas e evolucionistas provenientes da Europa Ocidental durante o século XIX.
Quanto às teorias positivistas, baseavam-se no conjunto de idéias e princípios filosóficos,
políticos e religiosos elaborados pelo francês Augusto Comte (1798-1857). Para Comte, a
humanidade se desenvolve através de três estados ou modos de pensar: o teológico, o
metasico e o positivo. Este último, que nos interessa, é, pois, o rmino de uma evolução, na
qual o indivíduo alcança o saber definitivo, isto é, a ciência. Esse estado, positivo, só pode ser
atingido pelo método da observação e experimentação, o que levou o filósofo francês a
estabelecer uma diferença entre as cncias concretas e abstratas. Para estas, propôs uma
classificação estabelecida em ordem lógica e cronológica: matemática, astronomia, física,
química, biologia e sociologia, às quais mais tarde, acrescentou a moral. Segundo Comte, o
estudo da sociedade compreende dois aspectos, um estático, outro dinâmico. O primeiro
estabelece a ordem e o segundo, o progresso. Assim, um tempo, doutrina e método, o
positivismo forneceu os instrumentos para o funcionamento de qualquer sistema potico, ou
seja, a ordem e o progresso.
29
As teorias evolucionistas, calcadas nos postulados de Charles Robert Darwin (1809-
1882), a partir das interpretações sobre A origem das espécies, utilizaram os conceitos básicos
27
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O especulo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil (1870-
1930), p. 26.
28
ALONSO, Angela. Crítica e contestão: o movimento reformista da geração 1870. Revista brasileira de
Ciências Sociais. v.15, n. 44. p. 35-55, out. 2000. p. 35.
29
AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos hisricos. 3 ed. rev.
ampl. atual. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1999. p. 361-362.
76
dessa obra para a análise do comportamento das sociedades humanas. Conceitos como
competição, seleção do mais forte, ―evolução e ―hereditariedade passavam a ser
aplicados aos mais variados ramos do conhecimento: na sociologia evolutiva de Spencer; na
história determinista de Buckle, entre outros.
30
Segundo Schwarcz, no que se refere à esfera política, o darwinismo significou uma
base de sustentação teórica para práticas de cunho bastante conservadoras. São conhecidos os
nculos que unem esse tipo de modelo ao imperialismo europeu, que tomou a noção de
seleção natural‖ como justificativa para a explicação do donio ocidental, idealizando o
europeu como o ―mais forte e adaptado.
31
Paralelamente a esse evolucionismo social, duas grandes escolas deterministas tornam-
se influentes. Em primeiro lugar, a escola Determinista Geogfica, cujos maiores
representantes, Ratzel e Buckle, advogavam a tese de que o desenvolvimento cultural de uma
nação seria totalmente condicionado pelo meio. Outro tipo de determinismo, de cunho racial,
toma foa nesse contexto. Denominado de darwinismo social‖ ou ―teoria das raças‖, essa
nova perspectiva via de forma pessimista a miscigenão, já que acreditava que ―não se
transmitiriam caracteres adquiridos, nem mesmo por meio de um processo de evolução
social. As raças constituiriam fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo o
cruzamento, por princípio, entendido como erro. As decorrências lógicas desse tipo de
postulado eram duas: enaltecer a existência de ―tipos puros e portanto não sujeitos a
processos de miscigenação e compreender a mestiçagem como sinimo de degeneração
não só racial como social.
32
Outro grande profeta do determinismo foi H. Taine, para quem nenhum fenômeno
aconteceria sem uma causa exterior a motivá-lo. Partidário de um determinismo integral, no
qual caberia toda e qualquer manifestação humana, assim em suas alises. O autor invertia o
arbítrio dos filósofos das Luzes ao enxergar o indivíduo enquanto resultado imediato do grupo
constituidor.
33
Herbert Spencer pode ser considerado o fundador do racismo científico, a partir de
suas elaborações sobre o que denominou de evolucionismo social, quando transplantou, do
mundo biogico ao mundo cultural, o modelo das tipologias e dos sistemas classificatórios,
implementando a noção de diferenças entre os povos e as sociedades. Discorrendo sobre o
30
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O especulo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil (1870-
1930), p. 26.
31
Ibid., p. 56.
32
Ibid., p. 58.
33
Ibid., p. 63.
77
evolucionismo, Spencer afirmou que os elementos constitutivos da vida passam por
modificações, propiciadas pela redistribuição da matéria e do movimento, gerando mudanças
que operavam em um continuum do menos ao mais complexo, através de diferentes estágios.
Ele ressaltou que este processo era universal, englobando os organismos e as sociedades.
Assim, categorizou os povos como superiores e inferiores: os primeiros eram constitdos
pelos europeus e os segundos, por indianos e indígenas.
34
Além disso, Spencer classificou as sociedades, considerando a industrial como a mais
civilizada e evoluída, devido às suas formas de organização e divisão do trabalho. Nomeou as
demais de primitivas, especificando-as como homogêneas, graças à incapacidade dos seus
membros de alterar artificialmente as condições de exisncia e desse modo promover
diferenciações econômicas.
35
Ao defender a existência de transformações em todas as sociedades e em todas as
espécies, assegurou que, nas raças humanas, nem todas as mudanças implicavam em
progresso. Além disso, o autor afirmou que, no processo de evolução social, existia uma luta
pela supremacia entre os povos ou entre as pessoas, a qual estabelecia, de forma natural, a
superioridade, a persistência do mais forte e a subordinação do mais fraco.
36
As teorias expostas não foram utilizadas pelo movimento de 1870 de forma aleatória
como afirma Ângela Alonso:
O sentido principal do movimento intelectual da geração 1870 foi a
intervenção política. Argumento que grupos politicamente marginalizados
pela ordem imperial recorreram ao repertório estrangeiro e à própria tradição
nacional em busca de recursos para expressar seu descontentamento. Suas
opções teóricas adquirem, assim, uma dimeno inusitada: auxiliaram na
composição de uma crítica ao status quo imperial. O movimento intelectual
revela ser um movimento político de contestação. Suas obras exprimem
interpretações do Brasil críticas ao status quo monárquico e programas de
reformas. Por isso proponho nomeá-lo reformismo.
37
(Grifos meus)
Entretanto, Patrocínio e Tfilo apesar de suas posturas de cunho denunciador dos
problemas sociais, não eram contra o Império, eram simpatizantes do regime e de D. Pedro II.
O que não os impossibilitava de questionar a situação caótica do Norte seco. Para tanto, o
34
CHAVES, Evenice Santos. Nina Rodrigues: sua interpretão do evolucionismo social e da psicologia das
massas nos primórdios da psicologia social brasileira. Psicologia em estudo. vol. 8, n. 2. p. 27-37, jul./dez.
2003. p.30.
35
Ibid.
36
Ibid.
37
ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. Revista brasileira de
Ciências Sociais. v.15, n. 44. p. 35-55, out. 2000. p. 36.
78
romance foi para os literatos da seca o instrumento político ideal, uma possibilidade de escrita
calcada na estratégia narrativa de impacto social, em especial para Patrocínio e Tfilo.
A ―Geração 70 era composta de intelectuais que eram poticos e vice-versa, pois
segundo Alonso, não havia um grupo social cuja atividade exclusiva fosse a produção
intelectual. Percebe-se isso muito bem no decorrer do estudo sobre a vida dos próprios autores
das obras selecionadas para o capítulo. Para a autora, essa divisão seria um anacronismo, pois
a existência de uma única carreira pública centralizada no Estado, incluindo empregos no
ensino a candidaturas ao parlamento, fazia da sobreposição de elites política e intelectual a
regra antes da exceção.
38
Assim, a partição convencional da ―Geração 70 em positivistas, liberais, darwinistas
etc. é resultado do critério adotado. É o intérprete quem seleciona características intelectuais
em detrimento das políticas. Empiricamente, os grupos tanto se identificam por recurso a
termos doutrinários quanto a posições poticas. Nesse sentido, a autora complementa sua
argumentação afirmando que tanto os autores de "obras filosóficas" desenvolveram atividade
política contínua, quanto os "poticos" escreveram interpretações com base em recursos
doutrinários. Para ela, não tomar esse fato em conta significa decepar parte do objeto: a
atividade potica dos "intelectuais" ou a atividade intelectual dos "poticos".
39
José do Patrocínio, Rodolfo Tfilo e Domingos Olímpio se constituíram em emios
representantes dessa geração 70. Possam em paralelo tanto a atividade intelectual quanto a
atividade política em suas províncias de resincia. Além disso, contestavam de frente a
ordem imperial estabelecida ao defenderem as iias liberais abolicionistas e republicanas.
Foram também ts autores possuidores de formão acadêmica durante a década de
1870. Em 1868 José do Patrocínio partiu de Campos dos Goitacases (RJ), com apenas 14
anos e a educação primária, para a capital imperial, onde começou a trabalhar na Santa Casa
de Misericórdia e voltou aos estudos no externato de João Pedro de Aquino. Nessa mesma
época, fez os preparatórios para curso de Farcia da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, adentrando a instituição em 1872 e se formando na área farmacêutica, devido o curso
ser mais barato, em 1874. Rodolfo Tfilo, como dito anteriormente, depois de realizar os
preparatórios em Recife, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia, formando-se como
farmacêutico em 1876. Domingos Olímpio se formou pela Faculdade de Direito do Recife,
em Pernambuco, no ano de 1873. É importante destacar que sendo essas faculdades os
38
ALONSO, Angela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. Revista brasileira de
Ciências Sociais. v.15, n. 44. p. 35-55, out. 2000. p. 39.
39
Ibid.
79
espaços regulares de discussão das teorias cientificistas esposadas há pouco, Patrocínio,
Tfilo e Ompio tiveram uma formação intelectual muito próxima.
Além disso, como autores atravessados pelas suas experiências vividas, essa formação
intelectual cientificista esteve incutida também na produção literária desses homens. Uma vez
que junto às discussões científicas em época de estudante Patrocínio, Tfilo e Ompio
formavam parte das rodas de colegas de turmas que promoviam um diálogo com a produção
literária brasileira e européia do momento. Esse diálogo girava em torno da tradão
romântica e da moda literia realista e naturalista na época em destaque.
Nesse sentido, como afirma Afnio Coutinho, o século XIX foi o momento de uma
grande encruzilhada de correntes literias. O Romantismo não terminou e se faziam notar
os traços do Realismo; e mesmo certo de suas vivências, reforçadas, constitram
características realistas e naturalistas.
40
Para o autor, a segunda metade do século XIX foi o
período de construção e difusão do Realismo e Naturalismo com grande importância cultural
para o Brasil. Tanto por circunstâncias históricas, nacionais e internacionais, quanto pela
coincincia com o advento da civilização burguesa, democrática, industrial e mecânica.
Houve, assim, nova penetrão da ciência no mundo das iias e da prática por meio da
biologia, com valores que representaram e produziram um impacto enorme no espírito
ocidental, que o dominaram quase que por completo, especialmente no Brasil.
41
Segundo Antonio Candido, o eixo do romance oitocentista como um todo é o respeito
inicial pela realidade, manifesto principalmente na verossimilhança que procura imprimir à
narrativa. Há um ajustamento ideal entre a forma literária e o problema humano que ela
exprime. No Romantismo, o afastamento dessa posição ideal se fez na direção e em favor da
poesia; mais tarde, no Naturalismo, far-se-ia na direção da ciência e do jornalismo. Tanto um
quanto outro, permanecem pelo esteio da verossimilhança e, mais fundo, a disposão comum
de sugerir certo determinismo nos atos e pensamentos da personagem. A insisncia dos
naturalistas no determinismo inspirado pelas ciências naturais não deve fazer esquecer o dos
românticos, de inspiração histórica. Com matizes mais ou menos acentuados de fatalismo, uns
e outros se aplicavam em mostrar os diferentes modos porque a ação e o sentimento dos
homens eram causados pelo meio, pelos antecedentes, a paixão ou o organismo. Daí um
realismo dos românticos, que apenas seria desnorteante se não lhe correspondesse um patente
romantismo dos naturalistas, para o fazer da ficção literária no século XIX.
42
40
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.2., p. 14.
41
Ibid., p. 15.
42
CÂNDIDO, Antônio. Formão da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. v.2., p. 98-99.
80
O Realismo não pode ser tomado como um gênero literário acabado. É antes um
temperamento, uma tenncia. Mesmo assim, Afrânio Coutinho, apresenta algumas
qualidades dominantes nesse tipo de escrita. Primeiro foi notável a busca pela verdade, na
tentativa de se fugir do sentimentalismo ou da artificialidade. Sendo aqui, por exemplo, o
ponto de embate com a literatura de José de Alencar, vista pelos realistas brasileiros do século
XIX como irreal. Além disso, a tenncia buscava a verdade por meio de um retrato fiel das
personagens, no qual o autor não confunde seus sentimentos e pontos de vistas com as
emoções e motivos das personagens. O Realismo opera uma interpretação da vida
objetivamente, dando-lhe sentido. Acumulavam-se fatos, pelo todo da documentação, os
selecionava e os sintetizava, buscando um sentido para o encadeamento dos fatos. Essa vida
retratada e interpretada era contemporânea aos seus autores, a experncia de cada um deles
em seu próprio tempo possibilitaria uma proximidade maior com a realidade. Por isso, o
Realismo dependia da observação, dos fatos e seus detalhes, dos temperamentos e
comportamentos humanos.
43
Essa tenncia literária foi muito utilizada como instrumento de
denúncia da situação vivida em certas localidades, sendo esse caráter reclamador de mudanças
e transformações político-sociais. Percebendo o Realismo dessa forma, as obras selecionadas
apontam para essa tenncia literária, basta tomar como referência as suas tramas.
O romance Os retirantes (1876) de José do Patrocínio, é constitdo de três momentos:
a primeira parte A Paróquia Abandonada; a segunda parte A Retirada; e a terceira parte -
A Capital. No primeiro momento há a narração da vida sertaneja na Paróquia de B.V.
44
,
onde as pessoas viviam de forma muito singela e calcada na religiosidade. Ao iniciar o ano de
seca, em 1877, a vida da paróquia começou a se modificar, pois a seca trouxe para a
localidade o problema do momento: o retirante. No segundo momento, após a presença
maciça do ―flagelado
45
na região, tem-se a descrição da necessidade do êxodo, pois as
conseqüências da seca chegam à paróquia de forma assustadora e devastadora. A retirada, que
é o tema central nesse momento do texto, sempre visa as regiões litorâneas e, principalmente,
a capital, porque é lá que se encontrariam a ajuda governamental efetiva e sistematizada. O
último momento é marcado pela narrativa da situação da cidade central do romance, a capital
da Terra da Luz, Fortaleza. Todo o romance é traçado a partir da sua protagonista, Eulália,
que sofre o flagelo da seca em suas multifacetadas formas, desde a humilhação da perda da
43
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.2., p. 21-22.
44
―B.V., lugar onde foi o palco da trama, a Vila de Boa Vista, no interior cearense.
45
O termo flagelado é apenas institucionalizado durantecada de 1910, entretanto, a sua construção imagético-
discursiva tem origens na literatura da seca da passagem do século XIX para o século XX. Ver MENDES, And
G. B. P. A imagem do flagelado na literatura da Terra da Luz (1879-1903). 2005. Monografia (Graduão
em História) Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.
81
honra, pois fora seduzida por um clérigo (Padre Paula) ainda na Paróquia de B.V., a retirada
penosa, a perda de familiares, a prostituição, até mesmo o supcio final da morte em plena
praça pública da capital por descaso da populão e das autoridades públicas.
No romance A fome (1890) de Rodolfo Tfilo, como pano de fundo, tem-se a seca de
1877, em meio a qual o autor vai costurando um enredo marcadamente simples, que será
recorrente em toda a literatura sertaneja: a sorte tgica da família de um próspero fazendeiro,
Manuel de Freitas que perde tudo em decorncia da estiagem e se vê obrigado a abandonar
suas terras ressequidas e emigrar para a capital. No meio do caminho, vai colecionando
desventuras: fome, sede e morte. Muitos retirantes que seguiram o mesmo destino acabam
engrossando as fileiras da migração compulsória para a Amazônia.
46
Esse texto, assim como Os retirantes, também é constitdo de três momentos:
primeira parte O Êxodo; segunda parte A casa negreira; e por último a terceira parte
Misérias. A primeira parte, como diz o seu próprio título ―Êxodo, trata da retirada de
famílias sertanejas de Jacarecanga (um dos arrebaldes de Fortaleza) em decorncia da
destruição da região pela seca. No segundo momento do texto, ―A casa negreira o autor irá
analisar e dissecar as práticas clientesticas e escravocratas presentes na segunda metade do
culo XIX. O autor discute amplamente como se dava a luta pelo donio das comissões de
socorros públicos, o cotidiano do traficante negreiro, os castigos aos cativos, como ocorria a
compra e venda do escravo, a perícia médica a que estava sujeita a peça, entre outros temas.
Finalmente no último momento da obra, ―Mirias, m-se a representação do caos social nas
áreas urbanas, principalmente na capital, engendrado pelo problema chamado ―flagelado.
O romance Luzia-Homem (1903) de Domingos Olímpio, é um dos mais importantes
elos da cadeia do regionalismo nortista. A literatura sertaneja tem nele um pintor de paisagens
e um caracterizador de personagens, sua visão do interior cearense tostado pela seca adquire
tons de intensa dramaticidade, com a luta renhida entre o homem e o meio hostil, que o
esmaga e degenera.
47
O livro retrata o drama do retirante, e também, tal como em Os
retirantes, de José do Patrocínio, o cenário social e potico é representado com os
exploradores da miria popular e os parasitas e aproveitadores da situação. A obra é
subdividida em vinte e oito capítulos, contudo poder-se-ia também perceber três momentos
principais: A vida do retirante na região de Sobral (CE), dependente dos socorros públicos e
da ração diária para a sobrevivência em troca do trabalho braçal em obras públicas; O
cotidiano da vida de retirante, ―flagelado da seca, que tem de aceitar e se adaptar às
46
TEÓFILO, Rodolfo. A fome. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. (Coleção clássicos cearenses), p.11.
47
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, São Paulo: Martin Claret, 2003. p.13.
82
adversidades do dia-a-dia, como a fome, a doença, a injúria, o assédio sexual etc. Por último,
tem-se a representão do sonho de uma retirada mais feliz do que a inicialmente exposta na
obra (causadora de uma vida servil e aviltante), em que se pudesse galgar uma vida de paz e
abastança em uma região menos afetada pela seca.
A trama das obras Os retirantes, A fome e Luzia-Homem são exemplos da afiliação de
José do Patrocínio, Rodolfo Tfilo e Domingos Olímpio à tenncia realista. Todavia, os
críticos literários tamm percebem nessas obras traços marcadamente naturalistas.
48
O
Naturalismo, assim como o Realismo, se volta para a realidade. Entretanto, o Naturalismo
observa, documenta, analisa e disseca-a sob uma ótica muitas vezes científica. Os escritores
naturalistas, valendo-se de temas inovadores, mostram a decadência das instituições,
denunciam a hipocrisia, caracterizam as lutas sociais, com espírito participativo e reformista.
De modo geral, pode-se dizer que o Naturalismo é uma espécie de realismo científico.
A corrente naturalista foi estruturada pelo frans Émile Zola, notadamente em seu
texto O Senso do real.
49
Nele o autor nega a imaginação como qualidade e fonte do
romancista. O verdadeiro romance deveria partir da observação e análise, todos os esforços do
escritor tenderiam a ocultar o imaginário sob o real. Para Zola, o romancista deveria reunir
notas de tudo o que puder saber a respeito desse mundo que pretende tratar, sair a campo,
ouvir os homens que saibam sobre esse mundo a ser descrito, colecionar expressões, histórias
e descrições como tamm procurar documentos. Enfim, o autor afirma, metaforicamente,
que o verdadeiro romancista ―visitaos locais, viverá alguns dias num teatro para conhecer
seus nimos recantos, passará suas noites num camarim de atriz, impregnar-se-á o máximo
possível do ar ambiente.
50
A tenncia naturalista, segundo Zola, devia fazer mover personagens reais num meio
real, dar ao leitor um fragmento de vida humana. Assim, o senso do real se constituiria na
qualidade mestra do romancista, suplantando a imaginação. Na perspectiva zolaísta, o senso
do real é sentir a natureza e representá-la tal como ela é. O ver é importante na literatura
naturalista, mas esse olhar deveria estar de acordo com os procedimentos da tenncia
literária para captar a realidade sem deformações. Segundo Zola, caso o romancista possuísse
o senso do real ao se deparar com uma cena, conservaria dela uma imagem muito intensa, de
tal forma que podem passar os anos, o rebro conserva a imagem, o tempo, amiúde, faz
48
A proposta do trabalho não é analisar se os autores possuem mérito em suas obras em relação a se valerem das
qualidades da tendência realista e naturalista. Esse tipo de estudo fica a cargo dos profissionais da crítica
literária. O importante é perceber como essas tendências contribuíram para um olhar aguçado e específico desses
literatos sobre a paisagem sertaneja cearense.
49
ZOLA, Émile. Do romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt, p.23-48.
50
Ibid., p. 25.
83
aprofundá-la ainda mais. Ela acaba por se tornar uma obseso, é preciso que o escritor a
comunique descreva o que viu e fixou. Ocorre, então, um fenômeno, a criação de uma obra
original‖.
51
Assim, um romance verdadeiramente naturalista deveria possuir o senso do real e
a expressão pessoal do autor, uma vez que ambos eram responveis pela originalidade do
romance.
Segundo Afrânio Coutinho, o termo Naturalismo apareceu na crítica literária por volta
de 1850, na França. Todavia, a tenncia literária se afirma e irradia pelo mundo
definitivamente nas proximidades de 1880. Émile Zola elaborava, desde a década 1860, uma
aplicação das teorias cientificistas à literatura. O sucesso dessa proposta do autor se
concretizou com seu livro Le roman expérimental, de 1880, em que teorizava o romance
naturalista e afirmava que o método do cientista deveria tornar-se o do escritor, ou seja,
observar, coletar dados e experimentar. O escritor deveria realizar a prática de observar da
empiria do mundo a ser interpretado, podendo, assim, dar conta da realidade ao seu redor. As
condições do momento histórico propiciaram o triunfo do Naturalismo em fins do século
XIX:
O desenvolvimento da ciência, com sua fórmula biológica da evolução e
da ligação do homem à natureza, as reformas políticas, as tendências
realistas na literatura com Balzac, Stendhall, Flaubert, as teorias de Taine
sobre o ambientalismo na interpretação das origens da arte, tudo conduzia
a colocar o Naturalismo na ordem do dia, com a sua vio científica,
social, do homem em relão com o meio e com a herança.
52
As obras Os retirantes, A fome e Luzia-Homem possuíram em sua forma e conteúdo
parte dessas qualidades literárias da tenncia realista e naturalista. José do Patrocínio,
Rodolfo Tfilo, Domingos Olímpio possam a ambição de dar conta do real tal como ele se
apresentava, eles buscavam a objetividade das coisas. A busca por essa realidade fez com que
as idéias cientificistas do século XIX fossem debatidas nas agremiações e academias com
intuito de oferecer instrumentos objetivos para uma escrita literária preocupada com a
realidade social, como já foi afirmado, de crítica social. A missão era, então, tornar a estética
da palavra [...] equivalente à natureza, capaz de criar um mundo de formas ideais que
exprimissem objetivamente o mundo das formas naturais [...].
53
Por essa motivação as teses
51
ZOLA, Émile. Do Romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt, p. 31-32.
52
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.2., p. 23.
53
NDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. v.1. p. 53
84
esposadas na Europa obtiveram alto grau de aceitabilidade no meio literário brasileiro no final
do século XIX.
A crião dessas agremiações, academias e o próprio debate intelectual tinham o
intuito de renovar a produção dos literatos sendo, em grande medida, uma resposta ao
menosprezo sofrido pelo discurso literário desde o século XIX. Segundo Albuquerque Júnior,
o discurso literário foi desde o século XIX rebaixado para um ponto inferior
na hierarquia dos discursos, porque não havia nele lugar para a verdade. No
momento em que o pensamento racionalista burguês consegue se impor em
todas as áreas e o positivismo faz uma separação radical entre discurso da
verdade ou discurso da ciência e discurso literio ou discurso da fião, a
literatura e outras manifestações artísticas são vistas como instâncias
distintas e inferiores do saber.
54
Obras como Os retirantes, A fome e Luzia-Homem foram construídas com um
linguajar, positivista, às vezes tecnicista, determinista e darwinista (evolucionista), o intuito
era galgar um aspecto discursivo empírico, capaz de descrever a tão almejada ―verdade,
remanejando, assim, o discurso literário para um lugar superior na hierarquia discursiva. O
positivismo, por exemplo, foi comum ao enredo desses textos literários, podendo ser
percebido no desenvolvimento da trama linear de acontecimentos em decorncia da
estiagem. Na qual se constita a trajetória do retirante: o tgico préstito da seca.
55
Rodolfo Tfilo, em especial, sofreu outra inflncia, de ordem mais sistematizadora:
a participação em várias agremiações e academias literárias cearenses, encaminhadoras dos
debates sobre a produção literária regionalista cearense. Seu objetivo era contestar a
hegemonia do Romantismo no Brasil e a falta de engajamento potico e social dos literatos.
Assim, a trajetória da vida literia de Tfilo refletiu-se , em grande medida, na própria
trajetória da vida literia da província do Ceará de fins do século XIX, palco de efervescente
produção e discussão literia, nas quais as tenncias do Realismo e Naturalismo foram as
molas-mestras para se pensar o espaço cearense, Alfredo Bosi afirma que:
54
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Falas de ascia e de angústia: a seca no imaginário
nordestino de problema à solução (1877-1922), p. 218.
55
Ver MENDES, And G. B. P. O trágico préstito da seca: a imagem de uma trajetória de vida. IN: _________.
A imagem doflagelado na literatura da Terra da Luz (1879 -1903), p.38-68.
85
Fortaleza conheceu, nos primeiros anos do Realismo, uma vida literia
ativa, fermentada por ideais abolicionistas e republicanos: é sabido que o
Ceará foi a primeira província brasileira a libertar os escravos, 1884. Data
de 1872 a fundação de uma Academia Francesa e entre esta e o grupo
militante da Padaria Espiritual, reunido em 1892, formaram-se vários
grêmios políticos e literios, onde se colava a moda naturalista com as
lutas ideológicas do tempo.
56
A publicação dA fome (1890), de Rodolfo Tfilo, consolidou o Realismo na província
cearense. A obra representava na época discussões literárias estabelecidas nO Clube
Literário. Dentre os participantes do clube havia nomes consagrados como: Juvenal Galeno,
Antônio Bezerra, Antônio Martins, Justiniano Serpa e Virlio Brígido. Todavia, também
existiam estreantes como os literatos realistas: Annio Sales, Rodolfo Tfilo, Farias Brito,
José Carlos Júnior e Xavier de Castro. O Clube Literário teve como órgão na imprensa a
revista A Quinzena, que circulou de janeiro de 1887 a junho de 1888, perfazendo 30 números.
O periódico teve vários redatores e colaboradores da época. Os temas giravam em torno das
tenncias literias regionais e nacionais. Paralelamente as atividades jornalísticas d‘ A
Quinzena e de O Clube Literário se realizavam em seses noturnas, quando eram postas em
discussão as mais recentes tenncias da literatura estrangeira, especialmente as de tenncia
realista e naturalista. Dessa forma, o grêmio contribuiu para a renovação das letras no Ceará,
encaminhando aprendizes ao Realismo e ao Naturalismo.
57
Portanto, sendo esboçadas as interações entre os autores e suas obras a partir da
trajetória de vida, pessoal e literária, cabe aqui uma questão importante para o capítulo: por
que essa formação dos autores é importante para pensar a construção da paisagem sertaneja
cearense nos livros Os retirantes, A fome e Luzia-Homem? Para responder essa questão é
necessário pensar o sentido dessa época vivida pelos autores e a proposta de Gaston
Bachelard sobre uma análise da literatura por meio da imaginação material.
Os autores José do Patrocínio, Rodolfo Tfilo e Domingos Olímpio foram
perpassados pelas revoluções históricas e intelectuais do final do século XIX. Segundo
Afnio Coutinho, 1870 marca no mundo uma revolução nas iias e na vida, que levou os
homens para o interesse e a devoção pelas coisas materiais. Uma geração apossou-se da
direção do mundo, possuída daquela fé especial nas coisas materiais.
58
56
BOSI, Alfredo. Hisria concisa da literatura brasileira, p. 195.
57
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense. Fortaleza: Academia Cearense de Letras,1976. p. 90-92.
58
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.2., p. 15-16.
86
Assim a Geração 70, da qual participara os ts autores aqui estudados, é a geração
do materialismo. A revolução ocorreu primeiro no espírito e no pensamento dos homens e daí
passou à sua vida, ao seu mundo e aos seus valores. Essa Era do materialismo, entre 1870 e
1900, foi, em algumas perspectivas, uma continuação do Iluminismo e do Enciclopedismo do
culo XVIII e da Revolução, em que se acreditou no progresso indefinido e ascensorial, e no
desenvolvimento constante da civilização mecânica e industrial. A cncia, o espírito de
observação e de rigor, forneciam os padrões do pensamento, do estilo de vida, desde que se
julgava que todos os fenômenos eram expliveis em termos de maria e energia, e eram
governadas por leis matemáticas e menicas.
59
Patrocínio, Tfilo e Olímpio viveram, portanto, o desenrolar da modernidade do
culo XIX. Sentiam-se homens modernos, pois, como afirma Berman, ser moderno é
encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,
autotransformação e transformação das coisas em redor.
60
O que poderia ser mais
aventureiro para esses homens do que contestar de frente os problemas sociais existentes a
época imperial e a própria tradição literária romântica no Brasil do século XIX? O poder
estava incrustado nas ações desses homens de letras, ao ponto de serem tamm os homens da
política. A alegria estaria nas causas ganhas de cada um desses homens, seja na batalha anti-
escravocrata de Tfilo e Patrocínio este último na luta anti-clerical , ou mesmo na luta
anti-oligárquica de Domingos Ompio.
61
A autotransformação e o crescimento desses homens
se davam no meio dessa vida agitada, reativa à ordem vigente, que a tudo tentava transformar.
É importante ressaltar que aqui es se tratando de homens com uma mentalidade
moderna, não de um Brasil moderno. Segundo Luciana Murari, o país pós-1870 apresentava
uma ―modernidade que não havia ainda sequer estabelecido os princípios da promão do
controle do homem sobre a natureza por meio dacnica. Pelo contrário, a natureza dominava
ainda a maior parte do território, alheada do projeto modernizante que incendiava as mentes
dos intelectuais brasileiros.
62
Por essa razão, o sertão cearense se constituiu em objeto de
transformão daqueles literatos modernos. Era preciso dá-lo a conhecer, descrevê-lo com sua
paisagem e seus homens, para assim poder domá-lo, conquistá-lo num novo vir a ser, a
modernidade.
59
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.2., p.16.
60
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade, p. 15.
61
Em 1875 foi nomeado promotor público de Sobral e se tornou tamm opositor da oligarquia dos Acioli. Por
meio de denúncias à corrupção oligárquica, Olímpio galgou uma cadeira de deputado na Assembléia Provincial
do Ceará.
62
MURARI, Luciana. Tudo o mais é paisagem: representações da natureza na cultura brasileira. 2002. Tese
(Doutorado em História Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2007. p.10-11.
87
Todavia, para esses literatos instaurar o mundo moderno era necesrio combater a
tradição. Assim o ideal republicano se contrapôs a monarquia imperial, a ciência se contrapôs
a metasica, o progresso se daria em oposição ao atraso. O sertão cearense era representado
como mundo rural, ou seja, espaço da tradição, do atraso, da religião, da lentidão das coisas.
Portanto, um mundo a ser questionado por esses literatos que tinham o intuito de promover
mudanças sociais e poticas, por meio das interpretações científicas. Por essas razões o
Realismo e o Naturalismo foram tenncias-literárias-instrumento, pois seus fundamentos
coincidiam com o espírito dos modernos homens de letras da ―Geração 70. A crença era que
a razão científica promoveria transformações radicais e alçaria o país ao vel de
desenvolvimento cultural e material das nações avançadas,
63
tidas como civilizadas no
culo XIX.
Essa modernidade experimenta assim uma ruptura epistemológica, uma vez que
houve uma descontinuidade no desenvolvimento histórico dos saberes. Para Bachelard, essa
ruptura histórica no conhecimento científico significa uma negação de uma cncia anterior
por uma posterior, surgindo assim, um novo paradigma epistemológico. Bachelard divide,
mesmo a contragosto, em três momentos o desenvolvimento do espírito científico na história
humana: estado pré-científico, estado científico e o novo espírito científico. O primeiro
momento correspondeu, historicamente, da Antiguidade até o Renascimento e surgimento das
ciências modernas no século XVIII. O segundo, preparado no século XVIII, se estendeu pelo
culo XIX e chegou ao início do século XX. E, por último, momento do novo espírito
científico, fora iniciado em 1905, ano em que Einstein apresentou os três artigos
fundamentais da teoria da Relatividade.
64
Bachelard, como intelectual que rejeitava a fixidez dos conceitos ou mesmo de uma
idéia, acreditava que esses ts momentos são apenas norteadores, no tempo, de como se deu
um desenvolvimento do espírito científico. Amesmo porque, esse espírito nem sempre é
inteiramente substituído pelo novo. Para o autor, mesmo na mente cida, há zonas obscuras,
cavernas onde ainda vivem sombras. Mesmo no homem novo, permanecem vestígios do
homem velho.
65
Nesse sentido, Patrocínio, Tfilo e Olímpio vivenciaram um momento de transão
epistemológica, apesar de ter sido justamente o auge do estado científico. A partir das
décadas de 50 e 60 do século XIX o paradigma epistemogico no campo literário passou por
63
MURARI, Luciana. Tudo o mais é paisagem: representações da natureza na cultura brasileira, 78.
64
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do
conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 9.
65
Ibid., p.10.
88
fortes tensões na Europa, especialmente na França. Uma das tensões mais estruturais que se
pode elencar foi a aproximão da literatura do ramo das ciências biológicas e mesogicas de
cunho positivista como uma resposta ao menosprezo sofrido pela literatura, tida como
discurso inferior na hierarquia do saber. Surge então na produção literária desse período um
obstáculo epistemológico interno ao momento daquele estado científico, identificado por
Bachelard. A luta travada na literatura seguia em direção à busca da verdade, seja a partir do
realismo ou do empirismo naturalista. Essa disputa foi travada, em linhas gerais, entre o
Romantismo, o Realismo e o Naturalismo.
O bom romântico, por mais que não deixasse de tratar do real, era livre para fabular,
criar, até mesmo, situações narrativas idílicas sem ser condenado pelos seus pares. Entretanto,
o realista e, mais ainda o naturalista, eram presos à moda de procedimentos de escrita que
tentavam impelir a imaginação, uma vez que a realidade deveria ser o seu fulcro. Essa crise
entre as tenncias literárias provenientes da Europa, também pode ser percebida na produção
da literatura sertaneja cearense de final do século XIX.
José de Alencar representava uma primeira leitura do sertão, instaurando, como foi
visto no primeiro capítulo, elementos do Sublime e do Belo na paisagem sertaneja do Ceará.
A geração de Patrocínio, Tfilo e Olímpio precisou romper com a leitura alencarina, para
dizer o que para eles era a realidade sertaneja da proncia. Para esse grupo materialista,
mesmo que O sertanejo (1875) tenha sido um ponto de partida, no mínimo em termos de
alteridade, Alencar havia cometido erros subjetivos na leitura do sertão que o impediam de
um conhecimento objetivo sobre este espaço. Assim, esses homens se depararam com um
obstáculo epistemológico a ser vencido e, ao enfrentá-lo, acabaram inaugurando outra
leitura da Terra da Luz: um território das secas.
Como afirma Bachelard, o ato de conhecer -se contra um conhecimento anterior,
destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é
obstáculo à espiritualização.
66
Assim, para Patrocínio, Tfilo e Ompio a leitura alencarina
do sertão era um conhecimento mal estabelecido. Esses homens modernos, a partir do olhar
possibilitado pelos artefatos intelectuais modernos, traduziam a paisagem do sero cearense
de acordo com as próprias necessidades de sua época. O Império e a República precisavam de
respostas, de uma imagem tida como fidedigna desse espaço, a mesmo para justificar a
remessa de auxílios e recursos à área.
66
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do
conhecimento, p. 17.
89
O discurso da literatura da seca confluiu com discursos de outra natureza, como o
jornalístico, o técnico e o oficial. Talvez, por todas essas questões, a identidade sertaneja
cearense tenha sido tão arraigada à paisagem da seca. O discurso literário, como os demais,
era proveniente de uma Era diferente: a belle époque. Um momento de euforia e felicidade
humanas, devido à crença progressiva no desenvolvimento dos homens e das máquinas.
Credulidade essa balizada numa cncia até a formulação da Teoria da Relatividade de leis
fixas e inquestionáveis. Por esse motivo a idéia da paisagem da seca ganhou valor e foros de
domincia na leitura do sertão do Ceará e, segundo Bachelard, quando uma iia é
freqüentemente usada, ela se valoriza indevidamente, pois ―um valor em si opõe-se à
circulação de valores. É fator de inércia para o espírito. Às vezes uma iia dominante
polariza todo o espírito.
67
Assim, se criou e difundiu sob o status da verdade moderna, uma
dicotomia que foi se tornando fixa na leitura da paisagem sertaneja cearense, estabelecendo
um non: a paisagem da seca e sua oposta, a paisagem do inverno.
Esses literatos buscaram, durante a construção da paisagem sertaneja cearense da seca,
no Realismo e Naturalismo respaldo e autoridade para tratar da realidade ao seu redor. Como
foi visto a pouco, seguir essas tenncias literias era também comungar de certos
procedimentos na produção literária, a fim de se produzir um conhecimento objetivo.
Entretanto, por mais que aquelas duas correntes literias galgassem minimizar ao máximo,
senão extinguir, a imaginação do literato, se verificou que isso é impossível. Ítalo Caroni, em
seu texto A utopia naturalista, afirma categoricamente que essas tenncias recaíam em um
realismo ingênuo, imbdo da esperança moderna do milagre científico. Mesmo o realista
naturalista, seguindo os procedimentos da ciência na literatura, não deixa de imaginar.
Segundo Caroni,
O romancista naturalista não faz experiência alguma; ele reúne, apenas a
mais vasta documentão sobre o tema romanesco escolhido e, diante da
página em branco, deixa trabalhar as suas faculdades imaginativas, que
vão urdindo tramas e redigindo textos, como qualquer outro escritor de
fião.
68
Ora, se esses literatos da seca fazem uso da imaginação, mesmo que a verdade
moderna não a reconheça, são homens que criam, inventam realidades ao escreverem sobre o
67
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do
conhecimento, p. 19.
68
CARONI, Ítalo. A utopia naturalista. In: ZOLA, Émile. Do romance: Stendhal, Flaubert e os Goncourt, p.12-
13.
90
mundo que os rodeia. Nesse sentido, essa literatura da seca cearense implica uma imaginação
e, no caso literatos realistas e naturalistas da materialista geração 70 , uma imaginação a
partir do real. Sendo esse real buscado nos próprios elementos materiaism-se, então, a
elaboração de uma imaginação material, tal como pensada por Gaston Bachelard. Até mesmo
porque, como afirma Murari, a descrão da paisagem, imagem e impressão da natureza,
operaria o reencontro com as fontes primárias da inspiração e do devaneio poético.
69
Portanto, assim se formula o intuito à frente: analisar o reencontro do devaneio poético e da
imaginação material na leitura do sertão cearense a partir das descrições paisasticas de
Patrocínio, Tfilo e Olímpio. Para pensar essa imaginação material dos literatos da seca, é de
fundamental imporncia ter em mente as idéias de Gaston Bachelard.
Bachelard, ao sistematizar os princípios da imaginação material, apresenta a
existência de outra imaginação distinta, a imaginação formal, da qual o autor é
particularmente crítico, pois ela é presa apenas ao ver, ou seja, cuja índole é visual. Essa
imaginação, fundada em um conhecimento ocularista, faz do homem mero espectador do
mundo. Assim, a imaginação formal faz do mundo objeto de contemplão ociosa,
escamoteando a matéria viva das coisas e das próprias imagens.
70
Em oposto, a imaginação
material proposta por Bachelard quer analisar as relações de causalidade material das
imagens, recuperando o mundo como provocação concreta e como resisncia, solicitando a
intervenção ativa e modificadora do homem.
Para o autor, a imaginação material é tributária da imaginação como ―faculdade de
formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade e não da imaginação
sugerida pela etimologia, como a faculdade de formar imagens da realidade.
71
Nesse sentido,
a imaginação é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, tendo a
função de nos libertar das imagens primeiras, de mudá-las. Segundo o autor, ―se não há
mudança de imagens, união inesperada de imagens, não há imaginação, não ação
imaginante‖.
72
Na concepção bachelardiana, o vocábulo fundamental que corresponde à
imaginação não é a imagem, mas sim o imaginário. Esse imaginário cria imagens, mas
apresenta-se sempre como algo além de suas imagens, é sempre mais que suas imagens.
73
(Grifos do autor)
69
MURARI, Luciana. Tudo o mais é paisagem: representações da natureza na cultura brasileira, p. 328.
70
SIMÕES, Reinério Luz Moreira. Imaginação material segundo Gaston Bachelard. 1999. Dissertão
(Mestrado em Pós-Graduão em Filosofia) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999. p. 64
71
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins
Fontes, 1997. p.17-18.
72
Id. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.1.
73
Ibid., p.2.
91
O imaginário poético, segundo Bachelard, além de se relacionar com as formas
visíveis, tamm se vincula a uma matéria, inspiradora do devaneio poético. O devaneio não é
tomado pelo autor como uma dispersão da consciência ou a perda de contato consigo mesmo
ou com a realidade, mas como uma meditação solitária em contato com o mundo, culminando
em devaneio escrito, que se forma, de fato, no ato de escrever. O devaneio assume o inteiro
universo em suas imagens, sendo simultaneamente criativo e natural, tendo seu valor
indissoluvelmente ligado a estética e a ontologia.
74
Pensando dessa forma, o devaneio poético encontra na literatura a matéria-prima
susceptível para analisar a imaginação material. A preemincia das obras literárias é clara
no discurso bachelardiano: Posso apenas conhecer o homem através da leitura, maravilhosa
leitura, que me permite julgar o homem pelo que ele escreve.
75
Esta predileção é indicadora
da total confiança de Bachelard na emergência do homem através da linguagem. Assim,
segundo Bachelard, a literatura não é, pois, o sucedâneo de nenhuma outra atividade. Ela
preenche um desejo humano. Representa uma emergência da imaginação.
76
(Grifo do autor)
Ao estabelecer uma relão da imaginação material com a literatura, Bachelard
analisa o papel das imagens literárias. As imagens literárias são inteiramente novas ou se
apresentam como novas em determinado momento –, segundo o autor, ―vivem da vida da
linguagem viva. Experimentamo-las, em seu lirismo em ato [...]; essas imagens literárias dão
esperança a um sentimento [...].
77
A imagem literária impõe nones que especificam os
gêneros literários,
78
pois as imagens possuem um estilo. Sendo as imagens cósmicas estilos
literários, a literatura é um mundo lido, pois suas imagens são primeiras.
79
Os textos
literários que as contém são promovidos à categoria da imaginação criadora. Assim, a
esncia da poesia é a crião de novas imagens. A poesia expressa a constante re-criação da
natureza e da experncia através da fala humana.
80
Portanto, faz-se necessário situar a
imaginação literária na categoria de uma atividade natural que corresponde a uma ão
direta da imaginação sobre a linguagem‖.
81
(Grifos do autor). Consoante Bachelard, a imagem
literária em geral não é uma forma empobrecida da imaginação, muito pelo contrário, a ela é
74
SIMÕES, Reinério Luz Moreira. Imaginação material segundo Gaston Bachelard, p.69.
75
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p.11.
76
Id. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p.257.
77
Ibid., p.3.
78
Ibid., p.258.
79
Ibid., p. 261.
80
SIMÕES, Reinério Luz Moreira. Op. cit., p.80.
81
BACHELARD, Gaston. Op. cit., p.18.
92
a imaginação em sua seiva plena, a imaginação em seu máximo de liberdade.
82
Além disso,
essas imagens literias se localizam entre as imagens que preparam conhecimentos e as
imagens que preludiam devaneios, ou seja, tanto podem tender a conhecimentos racionais,
quanto evadir-se em remotas metáforas.
83
Segundo a concepção bachelardiana, para se merecer o título de uma imagem literária
se faz necessário um mérito de originalidade. Assim, a velha palavra recebe novo significado.
Mas isso ainda não basta: a imagem literária deve enriquecer de um onirismo novo.
Significar outra coisa e fazer sonhar diferentemente, tal é a dupla função da imagem
literária.
84
(Grifos do autor) Sendo assim, essas ―imagens instigam e expandem o devaneio
do leitor, elas repercutem nele.
85
As obras de Patrocínio, Tfilo e Olímpio possuem
imagens literárias, pois inauguraram em fins do culo XIX uma nova forma de sentir e
perceber o sertão cearense. Esses autores sonhavam um espaço diferente daquele já
consolidado pelo discurso alencarino, indo além dele e estabelecendo um cânone quanto à
forma e matéria do sertão cearense. Eles instauraram um despertar para o que eles concebiam
como realidade do espaço sertanejo, não deixando de lembrar em vários momentos a
paisagem sonhada de Alencar. Por essa razão, as obras Os retirantes, A fome e Luzia-Homem
se constituem em poesia, pois a verdadeira poesia é uma função de despertar. Ela nos
desperta, mas deve guardar a lembrança dos sonhos preliminares.
86
Conforme Bachelard, analisar a imaginação material é ir para além das seduções da
imaginação das formas, vai pensar, sonhar a matéria, viver na maria, ou eno o queno
mesmo materializar o imaginário.
87
A imaginação material não opera a partir do
distanciamento da visão, não é contemplativa. Ao contrário, desafia a resisncia e as forças
concretas, num corpo-a-corpo com a materialidade do mundo, numa atitude dimica e
transformadora. Mesmo assim, Bachelard reconhece que as duas forças imaginantes, formal e
material, em algumas obras, podem atuar juntas. Até porque é impossível separá-las
completamente.
88
Todavia, segundo Simões, a imaginação material de Bachelard é filiada a concepção
de imaginação produtora ou criadora e não à reprodutora. A imaginação reprodutora é
aquela meramente evocativa, a depender, substancialmente, das nossas sensações e da
82
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. 2. ed. o
Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 148.
83
Ibid., p. 188.
84
Id. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p.257.
85
SIMÕES, Reinério Luz Moreira. Imaginação material segundo Gaston Bachelard, p.81.
86
Ibid., p.18.
87
BACHELARD, Gaston. Op. cit., p.7-8.
88
Id. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p.2.
93
memória. A imaginação produtora se emancipa do sensível, embora se possa em parte
identificar a sua sensação originária, sendo essencialmente criadora, simbolizante,
poetificante, inventora de novas imagens ou sínteses originais de imagens. Assim, a
imaginação reprodutora é serva da percepção e da memória, enquanto a imaginação produtora
é fonte de invenção e originalidade.
89
Como identifica Simões, a imaginação criadora, a qual Bachelard relaciona à
imaginação material, tem o poder mental de apresentar energicamente uma cena ou uma
situação e sua aura emocional, com um forte impacto de realidade. Devido ao seu poder de
mudar/recombinar as impressões armazenadas pela experiência, é a fonte da invenção e da
originalidade. Além de ser base da compreensão afim, por meio da qual se pode penetrar nos
sentimentos dos outros homens e comunicar-lhes os do autor do devaneio poético.
90
A imaginação material, vincula-se às quatro raízes de todas as coisas apontadas por
Empédocles de Agrigento: o fogo, o ar, a terra e a água. Os quatro elementos da sica p-
soctica são fontes inesgoveis para os devaneios criadores, permanecendo para Bachelard
como esncias materiais recorrentes, como substâncias elementares que alimentam a
criatividade intermivel da arte.
91
A partir dessa filosofia pré-socrática, Bachelard
estabelece uma lei dos quatro elementos, no reino da imaginação que classifica as diversas
imaginações materiais conforme elas se associem ao fogo, ao ar, à água ou à terra. O autor
assume que se isso for verdade, se toda poética deve receber componentes de essência
material, é ainda essa classificação pelos elementos materiais fundamentais que deve aliar
mais fortemente as almas poéticas. Nesse sentido, é preciso que um devaneio encontre sua
matéria, é preciso que um elemento material lhe sua própria substância, sua própria regra,
sua poética específica.
92
Bachelard afirma que os primeiros fisofos associavam seus princípios formais a um
ou aos quatro elementos fundamentais, que se tornavam as marcas de ―temperamentos
filosóficos. Nesses sistemas filosóficos, o pensamento erudito está ligado a um devaneio
material primitivo, a sabedoria tranqüila e permanente se enraíza numa constância substancial.
Caso essas filosofias simples e poderosas conservam ainda fontes de convicção, é porque ao
estudá-las se encontram nelas as foas imaginantes totalmente naturais. Então, cada elemento
é profundamente um sistema de fidelidades poéticas.
93
89
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças, p.3.
90
SIMÕES, Reinério Luz Moreira. Imaginação material segundo Gaston Bachelard, p.36
91
Ibid.,, p.74.
92
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p.4.
93
Ibid., p.5.
94
A literatura da seca, representada pelas obras analisadas neste capítulo, é filiada de
forma mais intensa à matéria terra. Pois, segundo Bachelard, o temperamento ornico
proveniente dessa matéria é a melancolia, produtora de devaneios poéticos que dizem sobre
enterros, sepulcros, espectros, fugas, fossas, enfim, tudo quanto é triste.
94
Assim, esse
temperamento relacionado à terra é preeminente porque Os retirantes, A fome e Luzia-
Homem são obras que centralizam seus temas na morte, na retirada, na dor e na tristeza das
perdas humanas e naturais do espaço sertanejo em tempos de estiagem. Entretanto, os outros
elementos materiais tamm se fazem presentes nessas obras, associando-se, misturando-se a
terra. O fogo, a água e o ar são constantemente requeridos pelo devaneio poético dos autores
para compor a paisagística do sertão da literatura da seca. Como afirma Bachelard, ―sem
dúvida, vários elementos podem intervir para construir uma imagem em particular; existem
imagens compostas‖.
95
Mesmo que a paisagem da literatura da seca ofereça imagens em série,
dentre elas se designa uma matéria-prima, um elemento fundamental, a terra.
A literatura da seca consolida, na maior parte daquelas obras, uma imaginação
material do sertão em que há a ausência do elemento água, gerando assim mudanças na
paisagem sertaneja cearense. Segundo Simões, na filosofia pré-socrática os quatro elementos
materiais são sujeitos a mudanças alternadas, ora misturados pela força agregadora (Philias, o
amor), ora separados pela força desagregadora (Neikous, a disrdia).
96
A ausência do
elemento água na construção da paisagem sertaneja pode ser lida como essa força
desagregadora, pois devido a falta dessa maria os literatos acabam por circunscrever um
espaço da disrdia, da desarmonia, culminando em um espaço da morte. Até mesmo porque,
conforme Bachelard, sem a água ―a obra carece de vida, porque carece de subsncia.
97
Esses devaneios materiais são antecessores da contemplação, mesmo que Patrocínio,
Tfilo e Olímpio tenham contemplado pelo olhar a paisagem da seca, pois antes eles a
sonhavam. Segundo Bachelard, sonha-se antes de contemplar. Antes de ser um espetáculo
consciente, toda paisagem é uma experncia onírica. Só olhamos com uma paixão estética as
paisagens que vimos antes em sonho.
98
E mais, o autor afirma quea unidade de uma
paisagem se oferece como a realização de um sonho muita vezes sonhado. [...] Mas a
paisagem onírica não é um quadro que se povoa de impressões, é uma matéria que pulula.
99
94
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 5.
95
Id. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p.8.
96
SIMÕES, Reinério Luz Moreira. Imaginação material segundo Gaston Bachelard, p.75.
97
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 17.
98
Ibid., p. 5.
99
Ibid.
95
Portanto, pode se pensar a paisagem desses literatos composta tanto pelo onirismo quanto pela
contemplação.
O saber racional desses homens de letras modernos não exclui a criação poética em
suas obras. Na verdade, a reflexão racional e o devaneio poético de Patrocínio, Tfilo e
Olímpio se unem no momento da imaginação criadora e essa imaginação interage com a
matéria, daí esses homens possuírem uma imaginação material. Simões afirma que sendo os
quatro elementos materiais os arquétipos do universo poético, a lei dos quatro elementos é a
ordenação a priori da imaginação criadora, como investigação da estrutura transcendental do
imaginário humano e o devaneio é exemplo de imaginação ativa, criadora e inventora.
100
Como afirma Bachelard, caracterizar os quatro elementos como hormônios da imaginação é
tomá-los como a capacidade de pôr em ação grupos de imagens, ajudando desse jeito, a
assimilação íntima do real disperso em suas formas.
101
Todavia, mesmo que se pretenda tomar a teoria bachelardiana da imaginação material
para analisar a paisagem constrda pela literatura da seca, é necessário pensar um pouco
diferente do filósofo. A ressalva se dá em relação à idéia de arquétipos do universo poético,
lei e estrutura transcendental. Quando Bachelard estabelece padrões ou modelos
universais para se pensar os elementos materiais, acaba por definir, em paralelo, uma essência
da sensibilidade humana junto à matéria. Por essa perspectiva, todos os homens teriam
posturas próximas ou inticas ao se relacionar com os elementos materiais,
independentemente do tempo e do espaço de cada um deles. Em oposão a essa filosofia da
essência, a história pretende perceber tanto as continuidades quanto as descontinuidades das
práticas e sensibilidades sociais, em variados tempos e espaços. Portanto, para se pensar
historicamente, é importante relativizar a iia de arquétipos poéticos universais
sistematizados pelo filósofo Bachelard.
A contribuição do filósofo à imaginação material não deve ser descartada pelo
historiador. Para restituir o tempo e o espaço na imaginação material bachelardiana é
necessário reavaliar a proveniência das fontes de inspiração da poética material. O próprio
Bachelard deixou indícios da origem das fontes inspiratórias em sua seleção de autores e
obras literárias. O autor identificou a partir das mais variadas obras de filósofos, cientistas e
literatos ligados a diferentes estilos e gêneros os discursos relacionados à imaginação
material. Obras que foram escritas e publicadas no decorrer da história da humanidade, desde
a Antiguidade Clássica até o século XX.
100
SIMÕES, Reinério Luz Moreira. Imaginação material segundo Gaston Bachelard, p.45.
101
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p.12.
96
O intuito de Bachelard nessa longa pesquisa, em grande medida, era construir uma
filosofia que servisse para repensar a psicanálise. Para tanto, o autor elaborou a partir dos
arquétipos poéticos a iia de que há uma essência em todos os homens capaz de gerar a
imaginação material. Dessa forma, a teoria bachelardiana afirma que os homens m
inatamente posturas muito pximas ou mesmo inticas quando pensam ou sonham os
elementos materiais. Ora, o historiador deve tamm perceber na pesquisa de Bachelard a
existência de certa continuidade de um discurso sobre as matérias elementares na história da
literatura ocidental, a fim de explicar a relação do homem com a natureza.
Em decorncia disso, é possível perceber que dentre o vasto leque de textos
analisados por Bachelard algumas obras
102
e autores revelam o caminho percorrido pelos
discursos sensíveis à matéria na história literária ocidental. Os primeiros discursos sobre os
elementos materiais são identificados pelo filósofo ainda na Antiguidade Clássica, em textos
como História (escrito provavelmente entre 450 e 430 a.C.) e Os trabalhos e os dias (cerca de
750 a.C.), respectivamente dos gregos Heródoto (séc. V a.C.) e Hesíodo (séc. VIII-VII a.C.),
ou mesmo em a Enéida (século I a.C) e Geórgicas (divididas em quatro livros e compostas de
37 a 30 a.C.) do romano Públio Virlio Marão (70 a.C.-19 a.C.). É importante perceber que
Bachelard praticamente não analisa as obras do período medieval, senão aquelas que foram
produzidas na época do Renascimento. O movimento renascentista buscou parte de seus
ideais na literatura da Antiguidade Clássica e, acabou construindo nesse retorno ao passado
um elo entre obras renascentistas e a literatura clássica greco-romana. Por esse contato, o
discurso sobre os elementos materiais foram resgatados, reaproriados e ampliados na
renascença, como bem verificou Bachelard na obras A divina comédia (1321) do italiano
Dante Alighieri (1265-1321) e mais à frente, na época Moderna, sob inflncia da literatura
renascentista, Dom Quixote de La Mancha (1605) do espanhol Miguel de Cervantes (1547-
1616).
Todavia, a maioria das obras analisadas pelo filósofo para construir a teoria da
imaginação material foram produzidas entre os séculos XVII, XVIII e XIX. Para pensar a
psicanálise do fogo, por exemplo, Bachelard realizou ―intermiveis leituras de velhos livros
científicos dos séculos XVII e XVIII.
103
O autor balizou a teorização da imaginação material
essencialmente a partir das análises da literatura européia ocidental dos séculos XVIII e XIX.
102
Todas as obras citadas por Bachelard em seus livros sobre os elementos materiais estão com seus títulos em
francês, para torná-los homogêneos no corpo do capítulo se optou por aportuguesar todos.
103
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Lisboa: Estudios Cor, 1972. (Colecção Ómega). p.17.
97
Tal centralidade ocorreu na Era Iluminista,
104
que nesse momento a grande preocupação
era distinguir o Homem da Natureza.
105
A ênfase nesse problema acabou por tornar a
Natureza um dos mais significativos motes da produção literária ocidental. Por essa razão
Bachelard terminou por concentrar sua análise na literatura dos séculos XVIII e XIX, devido
encontrar nela uma profusão de relatos que tentavam explicar a relação homem/matéria. Além
do mais, essa literatura é proveniente, mesmo com todas as suas fissões, do movimento
iluminista que reinstaurou o elo por meio das revisões, traduções, publicações ou reedições
tanto com a literatura renascentista quanto com a herança literia da Antiguidade Clássica.
Dessa forma, não é a toa que as obras ronticas serviram de lastro para análises
bachelardianas. Até mesmo porque, como foi visto anteriormente, o Iluminismo e
Romantismo inaugurador da estética romanesca caminhavam lado a lado no tempo e em
suas propostas de mundo. Dentre essas obras analisadas por Bachelard vinculadas ao ideal
romântico se podem citar: Devaneios de um caminhante solitário (1778), do suíço Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778); Visões das Filhas de Albion (1793) e alguns dos Livros
proféticos, do inglês William Blake (1757-1827); Viagem a América (1827), do frans
François-René de Chateaubriand (1768-1848); O Reno (1842), Nossa Senhora de Paris, mais
conhecido como O corcunda de Notre-Dame (1831), Os miseráveis (1862), Deus (1891), O
homem que ri (1869), e a série dA lenda dos séculos (1859-1877-1883) do tamm francês
Victor Hugo (1802-1885); Confidências (1849) e Rafael (1849), do conterneo Louise Prat
de Lamartine (1790-1869); Fragmentos (1798) e Heinrich de Ofterdingen (1802), do alemão
Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, vulgo Novalis (1772-1801); Ode ao Vento do Oeste
(1819), do inglês Percy Bysshe Shelley (1792-1822); I Fausto (1806), II Fausto (1833) e
Máximas e reflexões (1842), do alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).
A seleção de obras analisadas pelo filósofo ainda se expande a outras tenncias
literárias do século XIX. Como a literatura de ficção científica e fantástica modernas, das
obras Viagem ao centro da Terra (1864), A ilha misteriosa (1875) do francês Júlio Verne
(1828-1905). Assim como, em Histórias extraordinárias (1840), A descida no Maelström
(1841), O poço e o pêndulo (1842), A máscara da morte vermelha (1842), O corvo (1845),
Novas histórias extraordinárias (1848), do norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849).
104
Para ROUANET há uma distinção entre Ilustração e Iluminismo. A primeira, enquanto corrente intelectual
historicamente situada, corresponde ao movimento de idéias do século XVIII, e Iluminismo, como uma
tendência transepocal, não situada, não limitada a uma época espefica, mas que se fez presente no século XIX.
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
105
Ver CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo. Campinas, SP: UNICAMP, 1992.
98
A literatura realista e naturalista tamm constituiu um dos focos das pesquisas de
Bachelard, em obras como: A primeira tentação de Santo Antônio (1849 -1856), Educação
sentimental (1869), do frans Gustave Flaubert (1821-1880); Luís Lambert (1832), Seráfita
(1834), O lírio do vale (1836), O filho maldito (1837), O primo Pons (1847) do tamm
francês Honode Balzac (1799-1850). Quanto a literatura naturalista, o autor analisou as
obras A falta do abade Mouret (1875), do francês Émile Zola (1840-1902) e dos livros
Cosmos: projeto de uma descrição física do mundo (1847), As experiências em galvanismo
(1799), do alemão Alexander von Humboldt (Friedrich Heinrich Alexander, 1769-1859).
Além de outras obras, como Curiosidades estéticas (1868) do eclético literato francês
Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867) e Princípios de sociologia (1876-1895) do inglês
Herbert Spencer (1820-1903).
Portanto, mesmo elencando apenas parte das obras
106
que fundamentaram a teoria da
imaginação material de Bachelard, é possível perceber a centralidade em sua pesquisa da
produção literária, científica e filosófica do mundo ocidental, com maior ênfase na literatura
européia. Tendo em mente esse fato, tamm se pode concluir que essas diversas tradões
literárias produziram discursos que entraram em contato no decorrer da hisria e acabaram
por repensar, reapropriar e reelaborar, de gerão a geração, os significados e a simbologia
dos elementos materiais (fogo, água, ar e terra) em diferentes espaços e tempos. A proposta de
arquétipos e leis para o universo poético é reavaliada uma vez que se verifica a falibilidade do
ideal de essência material nos homens.
Logo, Bachelard elaborou suas concepções sobre a relação homem-maria a partir da
continuidade com um passado literário. Várias de suas análises quanto à sensibilidade humana
em relação aos elementos materiais partem de livros clássicos da literatura romanesca,
filosófica e científica do Ocidente. Obras clássicas, segundo Calvino, o ―livros que exercem
uma inflncia particular quando se impõem como inesquecíveis e tamm quando se
ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou
individual‖.
107
se encontra a contribuição de Bachelard para o historiador, pois o autor
acabou por recuperar em clássicos de diversas tradições literárias os sentidos e as percepções
dos literatos dos quatro elementos materiais. Portanto, o autor estabeleceu as sensibilidades
que marcam significativamente a imaginação ma terial.
106
Bachelard também analisa obras literárias produzidas por autores durante o século XX, a tomar como
exemplo, entre tantos outros, a inglesa Virgínia Woolf (1882-1941). Além disso, o autor dialoga com diversos
tricos e filósofos que refletiram sobre a imaginação e a psicanálise, como o suíço Carl Gustav Jung (1875-
1961) e o austaco Sigmund Freud (1856-1939). Intelectuais contemporâneos do próprio Gaston Bachelard
(1884-1862).
107
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.10-11.
99
Os clássicos, elencados a pouco, analisados por Bachelard integravam o cabedal do
leitor razoavelmente culto do século XIX. Nesse sentido, eis o ponto de encontro entre os
discursos dos literatos da seca Patrocínio, Tfilo e Olímpio e o discursos da literatura
clássica sensível aos elementos materiais. Esses literatos da seca se enquadram perfeitamente
como leitores da literatura ocidental, em especial a européia francesa. Sendo assim, é certo
terem tido contato com vários dos mesmos autores e obras que deram suporte a teoria
bachelardiana da imaginação material.
Os literatos da seca vão, então, assimilar as imagens literias dessa literatura
ocidental, as reapropriando e reelaborando durante a construção de um espaço específico: o
sertão cearense. Por conseguinte, pode se concluir que o poder simlico da paisagem da seca
tenha tamm aí a sua proveniência, uma vez que esses literatos criaram imagens sobre como
os elementos materiais se apresentam no mundo sertanejo. Na verdade, tratou-se de uma
forma de traduzir a relação do homem com o mundo natural sertanejo.
A partir desse momento, como dissera Bachelard, é objetivo estudar as relações da
causalidade material com a causalidade formal.
108
Uma vez que os autores da literatura da
seca não se valem apenas do discurso constrdo por uma verdade moderna, relacionado ao
ver, mas tamm constroem a paisagem sertaneja pela signifincia e simbologia dos quatro
elementos materiais no espaço sertanejo.
Para estabelecer tal análise nos enunciados da literatura da seca, as próximas etapas se
centralizarão em trechos relativos ao que se via e sentia sobre a paisagem sertaneja durante a
retirada, pois é nesse momento que as tramas das obras Os retirantes, A fome e Luzia-
Homem descrevem o sertão, com ênfase no campo. Nesse sentido, não se busca analisar as
descrições paisasticas das cidades interioranas e muito menos das cidades litorâneas da
província do Ceará de fins do culo XIX, uma vez que um estudo sobre as cidades
demandaria um trabalho de outra natureza.
Tendo Patrocínio, Tfilo e Ompio como representantes da literatura da seca, os seus
discursos serão analisados como uma unidade construtora da paisagem sertaneja cearense
nessa literatura regionalista. Ao se dar prosseguimento a leitura, é necessário atentar para as
formas itálicas que indicam os termos fogo, água, ar e terra como elementos materiais.
108
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 3.
100
1.2. Os elementos materiais na paisagem da literatura da seca
A terra é o elemento material fundamental da paisagem da literatura da seca cearense.
Mesmo porque, é nela que se encontram os princípios de imagens em ação nos ts reinos
mineral, vegetal e animal‖.
109
Essas imagens em ação nos três reinos terrestres são elaboradas,
segundo Bachelard, pelo onirismo ativo, ou seja, devaneios que remetem ao trabalho que
fascina e abre perspectivas à vontade. Assim, Patrocínio, Tfilo e Olímpio sonham e m a
vontade de modificar a triste realidade da seca. Quando as imagens materiais se expressam
através de imagens terrestres parece que os sofrimentos humanos tornam-se mais pesados,
mais negros, mais duros, mais turvos, em suma mais reais.
110
A ferramenta desses homens
para mudar esta realidade percebida e sentida é a literatura, utilizada com destreza e poder:
destreza e poder não andam um sem o outro, no onirismo do trabalho, nos devaneios da
vontade.
111
A paisagem constrda por esses literatos da seca, portanto, é um estado da alma e,
sendo assim, recebe novos significados. Segundo Bachelard, o termo paisagem muitas vezes
se expressa como estado contemplativo, como se a paisagem tivesse por função ser
contemplada, como se fosse o mero dicionário de todas as palavras evasivas, vãs aspirações
para a evasão.
112
Para o autor, a partir dos devaneios da vontade se desenvolvem temas
necessariamente precisos e a construção da paisagem se torna um caráter.
113
Nesse sentido, a
paisagem é uma imaginação com todos os seus caracteres, que para Bachelard são ts:
formal, material e dinâmico.
114
E mais, para o autor, ―não há paisagens literias sem os
longínquos vínculos a um passado. O presente nunca basta para fazer uma paisagem literária.
É o mesmo que dizer que o inconsciente está sempre presente numa paisagem literária.
115
Portanto, a paisagem criada pelos literatos da seca traduz além de suas condições sócio-
intelectuais, tamm os seus sonhos e as leituras anteriores do sertão cearense.
Conforme a teoria bachelardiana, a paisagem desses literatos da seca partem
primeiramente do devaneio poético ou da admiração que é um devaneio instantâneo, pois o
mundo é admirado antes de ser verificado.
116
Depois, num segundo momento, vem a
contemplação: capaz de ressuscitar devaneios, recomeçar sonhos e reconstituir junto da vida
sensível à vida imaginária, uma vez que ―a contemplação une mais ainda lembranças que
109
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças, p. 23.
110
Ibid., p.102.
111
Ibid., p.42.
112
Ibid., p. 57-58.
113
Ibid., p. 58.
114
Ibid., p. 309
115
Ibid., p. 127.
116
Id. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p. 169.
101
sensações. É mais ainda história que espetáculo.
117
E, por fim, Patrocínio, Tfilo e Ompio
instituem a representação, autorizando a intervenção das tarefas da imaginação das formas,
com a reflexão sobre as formas reconhecidas, com a memória, desta vez fiel e bem definida,
das formas acariciadas.
118
Dessa maneira, não é incongruente pensar correlações entre o
devaneio poético, a contemplação e a imaginação formal.
Durante a análise da literatura, mais à frente, o importante é identificar essas práticas
na linguagem literária, isto é, nos discursos das obras desses literatos da seca. Outra tarefa,
mais árdua, será analisar a imaginação material nessa literatura que é em sua maioria
pensada, racionalizada, como foi discutido no icio do capítulo. Segundo Bachelard, a
literatura pensada prejudica a literatura povoada de imagens. Ela interpreta o caráter
humano, deixa de participar ativamente da vida de imagens.
119
Quando se trata da paisagem
a literatura da seca consti imagens literárias materializantes. Por último, se tenta analisar
bem o papel imaginante da linguagem e para isso é preciso procurar pacientemente, a
propósito de todas as palavras, os desejos de alteridade, os desejos de duplo sentido, os
desejos de metáfora.
120
Na paisagem da literatura da seca a terra é o elemento que sempre está presente se
associando com os outros elementos materiais. Entretanto, essa paisagem essencialmente
terrestre ora é passiva ora é ativa durante a união com outros elementos materiais porque na
imaginação material por mais que se misture dois elementos, um é sempre o sujeito ativo, o
outro sofre a ação.
121
(Grifo do autor) Essas correlações entre os elementos é
metaforicamente afirmada por Bachelard: ―As vozes da terra são consoantes. Os outros
elementos são as vogais.
122
Durante a união de elementos uma luta a ser travada entre
duas matérias, isso indicaria a existência da ambivalência material e, para o autor, não se
pode viver a ambivalência material senão dando alternadamente a vitória aos dois
elementos.
123
Dessa maneira, as combinações imaginárias reúnem apenas dois elementos,
nunca três. Conforme a teoria bachelardiana, a imaginação material une a água à terra; une a
água ao seu contrário, o fogo; une a terra e o fogo; vê por vezes no vapor e nas brumas a
união do ar e da água
124
. Contudo, o autor afirma categoricamente a impossibilidade da
união de três ou mais elementos numa mesma imagem:
117
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p.169.
118
Ibid., p. 170.
119
Id. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginão das forças, p. 154.
120
Id. Op.cit., p. 3.
121
Id. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças, p. 61.
122
Id. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003. p.151.
123
Id. Op. cit., p. 63.
124
Id. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 99.
102
Mas nunca, em nenhuma imagem natural, se vê realizar a tripla união
material da água, terra e do fogo. A fortiori, nenhuma imagem pode receber
os quatro elementos. Tal acúmulo seria uma contradição insuportável para
uma imaginação dos elementos, para essa imaginação material que sempre
tem a necessidade de eleger uma matéria e de garantir-lhe um privilégio em
todas as combinações. Se surgir uma união ternária, podemos estar certos de
que se trata apenas de uma imagem artificial, de uma imagem feita com
iias. As verdadeiras imagens, as imagens do devaneio, são unitárias ou
binárias. Podem sonhar na monotonia de uma substância. Se desejarem uma
combinação, é uma combinação de dois elementos.
125
(Grifos do autor)
As combinações elementares devem ser realizadas por subsncias contrárias, isto é,
na ordem da imaginação, de sexos opostos. Caso a mistura se operar entre duas matérias de
tenncia feminina, como a água e a terra, ―uma delas se masculiniza ligeiramente para
dominar sua parceira. sob essa condição a combinão é lida e duradoura, sob essa
combinação imaginária é uma imagem real. No reino da imaginação material, toda união é
um casamento e não há casamento a três.
126
Dessa combinação é que surge a elementação:
processo de ação de um elemento sobre o outro.
127
Pensando essa ambivancia material, terra e fogo travam disputas constantes na
paisagística do sertão cearense da seca, a não ser quando a paisagem constrda seja noturna.
A combinação da terra e do fogo é preeminente nos discursos dos literatos da seca, uma vez
que o elemento fogo é metaforicamente imaginado nessa literatura como o sol. O astro solar,
assim como o fogo, pode aceitar, segundo a teoria bachelardiana, duas valorações opostas: o
bem e o mal. Por essa concepção, o fogo pode ser tanto doçura quanto tortura.
128
O sol
quando combinado a terra, torna-se conotativamente responsável pela dor, tristeza e morte
construindo assim a paisagem da literatura da seca. Todavia, o sol também surge nesse relato
paisagístico apenas como objeto material ígneo, constituindo também as paisagens das
combinações dos demais elementos ar e água, representados na descrição paisagística dessa
literatura nas seguintes associações: terra e ar; terra e água.
Nesse sentido, o sol ou sua luminosidade se faz presente na maioria das descrições da
paisagem do sertão estiado ou mesmo chuvoso. Assim, como elemento (fogo) ou não, o sol é
o fiel sócio da terra na literatura da seca. Em conseqüência disso, a paisagem sertaneja dos
literatos da seca, tanto quanto a paisagem alencarina, é constrda majoritariamente pelo dia,
portanto, constituindo discursivamente o sertão cearense como espacialidade da Luz.
125
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 99-100.
126
Ibid., p.100.
127
As referências a esse processo de elementação se darão ao longo das análises pelos seguintes termos:
elementa, elementado ou elementada.
128
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo, p.21.
103
1.2.1 Terra e fogo: terririo dos estios
Para construir a paisagem da seca Patrocínio, Tfilo e Ompio vão se valer da
metáfora ígnea, isto é, esses literatos imaginam materialmente o sol como o elemento fogo.
129
Dessa maneira, o sol da paisagem da seca assume as propriedades do fogo e da terra,
elementada pelo astro, se modificando, pois o fogo sugere o desejo de mudança.
130
Por essa
razão o [...] implavel sol incandescente
131
a tudo desti, seca, cresta, tosta, queima e
petrifica. Esse sol torna a terra um ambiente impróprio a vida animal, vegetal e mineral. A
descrição da paisagem da seca se traduz numa contínua refencia a morte, tristeza,
melancolia e, mesmo, ao marasmo.
O sol dos literatos da seca é uma espécie de fogo violento.
132
Um sol que violenta a
paisagem do sertão cearense, acabando por se caracterizar como um fogo contra a
natureza,
133
uma vez que possui o poder de dissolver o que a Natureza unira fortemente.
Conforme Bachelard, o fogo não é o princípio da vida, mas sim [...] a água, esse líquido
condutor de todo alimento para os três reinos da natureza [...].
134
Portanto, a terra combinada
ao fogo solar produz um espaço da desarmonia e do lúgubre.
O sol da paisagem da seca surge rubro, sem pompas de nuvens, destoldado,
135
emerge ―vermelho como uma brasa, no meio da quietação mórbida da natureza.
136
Dissipador de calor insuportável, pois [...] o sol no meridiano lançava sobre a terra os raios
potentes, como o tigre as suas unhas tremendas nas carnes da presa. O solo irradiava o calor
de um ferro em brasa, e nem um sopro de vento refrescava a atmosfera [...].
137
A terra
elementada pelo sol experimenta [...] a inação e o profundo silêncio da natureza, que se
abrasava, muda e imóvel, nos raios ardentes do sol [...].
138
Quando o sol esteriliza a terra no período de estiagem, o resultado é a construção de
um espaço fomentador da solidão, como bem descreve Patrocínio, em Os retirantes: [...]
qualquer lado que se voltasse, via sempre a mesma perspectiva hostil da natureza: a
129
No decorrer das análises, a grafia em itálico do termo sol é uma referência direta ao elemento fogo.
130
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo, p. 37.
131
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 18.
132
BACHELARD, Gaston. Op. cit., p. 69.
133
Ibid., p. 96.
134
Ibid., p. 125.
135
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 62.
136
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 91.
137
Ibid., v. 32., p. 120.
138
Ibid., v. 33., p. 25.
104
esterilidade abraçada com a solidão.
139
Assim, a morte da natureza é responvel pelo
sentimento de solidão do sertanejo.
Tfilo, mais meticuloso na descrição, tamm relaciona o sol à morte da terra em A
fome: Os raios do sol, caindo verticalmente sobre a terra, aqueciam as rochas e os vegetais
mortos. O calor emitido por aqueles focos era, à sombra, de 38 centígrados. Os homens e os
rebanhos erravam á toa naquela natureza tocada de morte, procurando a vida. As searas não
tinham criado um grão para os celeiros.
140
Ompio, quando trata do tema, deixa a
imaginação trabalhar a combinação terra e sol:
Como que se percebia no abismo do espaço infindo a eterna gestão do
cosmos, operoso e fecundo, em flagrante crião de mundos novos. E, na
gloriosa harmonia dos astros, na expansão soberba da vida universal, a
terra cearense era a nota de contraste, um lamento de desespero, de
esgotamento das derradeiras energias, porque o sol sedento lhe sorvera,
em haustos de fogo, toda a seiva.
141
(Grifos meus)
A seiva é o sangue, é a viscosa vida dos vegetais que esvai com o calor do globo
celeste de fogo. Durante a estiagem o reino vegetal é o primeiro a sentir as mudanças e, dessa
maneira, a morte das plantas possui centralidade na paisagem da literatura da seca. Além
disso, em um mundo rural como era o Brasil e a província cearense no culo XIX a
representação do desfalecimento da vegetação se constituía num trunfo simlico capaz de
sensibilizar tanto os leitores urbanos quanto os campestres. Em A fome, Tfilo descreve que
O aspecto da floresta era lúgubre e desolador. Apenas alguns juazeiros esfolhados vegetavam
como representantes da vida, que havia cessado naqueles sítios.
142
A seca transformara a
floresta, reduzida a esqueletos enegrecidos, [que] bracejava desfolhada no espaço, confundia-
se muito além com o firmamento.
143
Em Luzia-Homem, Ompio tamm relata a morte vegetal ao relatar o olhar
melanlico de Luzia: Contemplou, com lágrimas comovidas, o lar apagado, o terreiro, em
torno, limpo, varrido, as árvores mortas, os mandacarus carcomidos aao alcance dos dentes
dos animais mais vorazes, a paisagem triste, coisas mudas e mestas, que se lhe afiguravam
companheiros de infortúnio, dos quais se despedia para sempre.
144
139
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 119.
140
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 18.
141
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 41.
142
TEÓFILO, Rodolfo. Op. cit., p. 18.
143
Ibid., p. 18.
144
OLÍMPIO, Domingos. Op.cit., p. 195.
105
Tfilo relaciona a morte vegetal com o despovoamento dos campos, pois as plantas
que resistiam à estiagem nem sempre eram favoráveis ao sertanejo: ―A floresta, tocada de
morte, bracejava no espaço. Compunha-se de plantas leguminosas na maior parte. A
perspectiva era desoladora. A seca havia torrado e despovoado os campos.
145
Sendo muitas
dessas leguminosas verdadeiras parasitas como afirma o autor:
As árvores tinham o aspecto dos indivíduos de climas frios no rigor do
inverno. Nem uma folha viva, um gomo, uma bráctea! O panasco desfeito
em , era levantado pelo vento e em nuvens espessas atufava-se na
mata. As hastes sarmentosas das parasitas, quebradas as gavinhas,
estendidas, desenrolavam as espirais na terra quente, como serpentes, que
fossem lançadas no rescaldo de um forno. Nem um inseto se aquecia ao
sol nascente. A vida animal desaparecera daqueles tios; os ínfimos
seres habitavam sadios e vigorosos aqueles lugares desolados.
146
(Grifo
meu)
Ao trabalhar a metáfora da serpente, Tfilo se vale de uma das imagens terrestres
mais simlicas aos homens. Conforme Bachelard, a serpente é o mais terrestre dos animais.
É a raiz animalizada e, na ordem das imagens, o traço de união entre o reino vegetal e o reino
animal‖.
147
A paisagem do sero vai assim se esvaziando de vida, o sol a pino durante a seca
esteriliza a terra, desolando os campos e os transformando em espaços mórbidos, como relata
Patrocínio:
[...] O deserto, com seu corpo pardacento, seco e ardente, havia-se
estendido a fio cumprido por toda a circunvizinhança. As casas tinham
sido abandonadas, e as portas e janelas, desconjuntadas pelas ventanias
freqüentes, agravavam ainda mais a tristeza desses mesquinhos
monumentos da prosperidade extinta da província. A nudez substituíra a
vegetação, e o veo deixara um rastro negro sobre os lugares outrora
cultivados, como se fora uma lápide sobreposta aos mortos plantios.
148
A morte das plantas desola os campos de tal forma que a vida animal tamm
desaparece da paisagem sertaneja, como bem afirma Teófilo na passagem em que o
personagem Manuel de Freitas procura algo para alimentar a si e sua falia:
145
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 34.
146
Ibid.,p. 65-66.
147
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade, p. 202.
148
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 104-105.
106
Errou pela mata e nada encontrou para alimentar-se. Despovoada e
soliria, tinha um aspecto desolador. Nem um inseto, uma revoada dos
verdes papagaios, que cantarolavam outrora, pousados nas frondes das
palmeiras. O pasto torrado parecia ter sido levado por uma inundação da
lavas e tinha agora ares de uma solfatara. Ao tronco das árvores o vento
havia encostado medas de capim seco. O sol tostara tudo! A terra, coberta
de uma floresta de esqueletos, com os tons da tristeza, vestia-se de uma
expreso lutuosa e desoladora, e além do seu perfil sombrio esbatia-se
na transparência do firmamento azul, todo nu e sereno, como a superfície
de um lago tranqüilo. Nem um vivente naquele sítio! As próprias aranhas,
recolhidas às tocas, morriam de fome, não saíam mais a caçar os insetos,
que tinham morrido ou emigrado.
149
(Grifos meus)
Tfilo, mais uma vez se vale de metáforas para imaginar a terra elementada pelo sol.
A primeira delas é a ―inundação da lavas, isto é, o sol age sobre a terra como se fosse uma
enchente de magma em fusão natural, resultante de uma erupção vulcânica. A outra metáfora
é relacionada à anterior, pois os ―ares de uma solfatara surgem do próprio terreno lavoso que
se exala os vapores de enxofre. Sendo assim, essas duas metáforas se constituem em imagens
literárias relacionadas ao elemento material fogo. Além dessas metáforas, a passagem
demonstra que a paisagem solar da seca é o inóspita que até os aracdeos, astutos
sobreviventes na natureza, não resistem devido à morte e fuga dos insetos.
Essa paisagem mórbida da terra é relacionada à tétrica de retirada do sertanejo:
Puseram-se a marginar a estrada, olhando fixamente para as folhas secas que atapetavam o
chão, rendilhado da sombra do arvoredo.
150
E, continua Patrocínio,
A marcha fadigosa continuou com tanta celeridade quanto era possível
obter depois de tão penosa jornada. As árvores, porém, pareciam ter
desaparecido todas da face do solo. o capoeirão, mordido pelas
soalheiras, amarelo, silencioso, quase despido de folhagem, estendia-se
para ambos os lados, repassando o coração da mísera família da mesma
tristeza da sua solidão e esterilidade‖.
151
149
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 80.
150
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 24.
151
Ibid., v. 33., p. 45.
107
Nesse sentido, durante a seca o sol é o algoz do sertanejo, pois [...] como o sol
esteriliza a terra, e estiolava as florações sadias de semente do bem [...]‖
152
o resultado era a
fome que oferecia espetáculos lúgubres aos retirantes, uma vez que se [...]viam à beira da
estrada cadáveres apodrecendo ao sol e servindo de pasto aos bandos de corvos.
153
Em época
de estiagem a estrada e o ambiente, saturados de sol e calor, formavam uma engrenagem de
onde os transeuntes saíam esmagados‖.
154
E por conta disso os retirantes [...] talvez
tombasse[m], como míseros, cujas ossadas alvejantes, descarnadas pelos urubus e carcarás,
iam marcando o caminho das vítimas de calamidade.
155
Esses retirantes ―[...] eram pedaços
da multidão, varrida dos lares pelo flagelo, encalhando no lento percurso da tétrica viagem
através do sertão tostado, como terra de maldição ferida pela ira de Deus.
156
A morte do gado, também, se constituiu em tema da paisagem da literatura da seca.
Patrocínio a trabalha da seguinte forma: [...] a terra está rachada de secura, e da gadaria não
resta mais do que a ossada branca [...].
157
Ora, a morte do gado é um tema importante para a
composição da paisagem sertaneja da seca, porque sendo a pecuária e todas as suas práticas
sociais uma atividade existente desde o século XVIII no sertão cearense, o animal possuía
grande significância no imaginário sertanejo. Ompio potencializa, em termos simlicos, a
imagem da morte do gado de Patrocínio ao relacionar os temas da emigração e morte da
gadaria. O gado morria, até mesmo, nos espaços tradicionalmente propícios à criação
pecuária, ou seja, nas serras. As serras que eram na paisagem sertaneja as áreas de pastagens
conservadas, acabaram perdendo seu papel de criatório devido à estiagem:
As pastagens de reserva, nos pés de serras, protegidas por essa faixa de
caatingas impenetráveis, onde se criavam famosos barbatões bravios,
haviam sido devoradas ou estruídas e pesteadas pela acumulação de
rebanhos em retiradas numerosas. E, a grande distância, sentia-se o fedor
dos campos infeccionados por milhares de corpos de reses em
decomposição.
158
152
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 85.
153
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 55.
154
Ibid.,v. 33., p. 42.
155
OLÍMPIO, Domingos. Op. Cit., p. 27.
156
Ibid., p. 26.
157
PATROCÍNIO, José do. Op. cit. v. 32., p. 54.
158
OLÍMPIO, Domingos. Op. Cit., p. 41-42.
108
Para Olímpio o sol da paisagem da seca afeta diretamente os cumes das serras, pois O
sol descambava, deixando as cumeadas áridas da Serra do Rosário [...].
159
As conseqüências,
tamm, são sentidas pelos sertanejos que durante o cortejo do êxodo pela estrada da serra, se
prostram ao sol que ―repontava no horizonte, como um rubro e enorme disco, surgindo de um
lago de ouro incandescente.
160
O estado contemplativo, presente em Tfilo, realiza uma síntese da paisagem
sertaneja da seca numa passagem em que a personagem Manuel de Freitas procura água na
terra abrasada pelo sol:
O matuto seguia com pressa, mas observando tudo. o perdia um só dos
traços do solo. A vegetação, entretanto, não podia servir-lhe de
orientação: semimorta, era a mesma por onde passava. O terreno, ora
baixo, ora acidentado, nu ou coberto de seixos, não dava indícios de fonte
pxima. Inquiria tudo e continuava no silêncio da expectativa. Havia
andado alguns quilômetros em todos os rumos, e sempre a natureza com
seu aspecto mórbido a desiludi-lo! Sentou-se para descansar, e olhando
para o sul notou que ao longe, lá onde a terra parece limitar com o céu,
havia um ponto mais saliente como um capacete sobre a linha da
floresta. Um outeiro, acreditou, e ansioso de uma eminência de onde
visse os horizontes se abrirem, encaminhou-se para .
161
(Grifos meus)
Mais do que uma imagem síntese, esse trecho trabalha uma personagem movida pela
imagem da imensidão terrestre, uma vez que a Terra é vista nesse caso como imensa. Ela é
―maior do que o céu que não passa de uma abóbada, de um teto.
162
A Terra tamm é maior
que o Sol visto pelo sertanejo todos os dias ao nascer saindo do horizonte terrestre e ao
morrer quando se esconde na montanha. Conforme Bachelard, durante um primeiro
contato com a imensidão, parece que a contemplação encontra o sentido de um repentino
domínio de um universo.
163
Esse anseio de donio, por meio da apreensão perceptiva da
paisagem sertaneja fez com que Manuel de Freitas buscasse um lugar elevado, acabando por
engrandecer o espetáculo a ser visto e o espectador.
159
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 45.
160
Ibid.,, p. 195.
161
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 35.
162
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças, p. 299.
163
Ibid., p. 300.
109
Em Luzia-Homem, Olímpio constrói uma imagem literária composta sobre a seca,
metaforicamente representada por um pedaço de madeira transportado pelas diversas águas na
terra. Por meio dessa metáfora o autor imagina a seca se valendo da maleabilidade, força e
agilidade da matéria água para cumprir a sua finalidade de se propalar como calamidade.
Poder-se-ia ter aí uma aliança, entre os elementos terra e água:
Ela [a seca], com efeito, peregrinara pelo vasto sertão, de miséria em
miria, rastolhando, perdida como um pedo de pau arrastado pela
correnteza do rio, caindo nas cachoeiras, mergulhando nos rebojos,
surgindo adiante, para bater de novo sobre as pedras, tornando a ser
arrebatado, aque, ao baixar das águas, pára, coberto de pau e ervas
secas, garranchos e flores, que transportou de longe, esperando a
enchente na próxima estação e continuando a trágica jornada, a
apodrecer em ribas desoladas, ou perder-se na imensidade do oceano.
164
A paisagem da seca, também, é constrda pela luta travada entre sol e água. O fogo é
o vitorioso do combate. Como bem afirma Patrocínio em passagem abaixo que traduz a
impotência da água em território dos estios:
[...] O rio Jaguaribe, perdida a abundância hibernal, estava reduzido a
algumas poças. As suas ribanceiras descobertas, altas como dois muros; o
seu leito despido em vastas coroas de areia, amarelas como o âmbar,
pareciam uma vala de cemitério, babando viva gula de cadáveres. Uma
nuvem de urubus, que, dividindo-se e subdividindo-se, ora pousava nas
capoeiras ou no solo, servia de outros tantos marcos à morte. É que o
gado caía por centenas, como num matadouro, ou, faminto e sedento,
cambaleava a fraqueza das suas ossadas a roer folhas mortas pela
intensidade da cacula.
165
(Grifos meus)
É importante visualizar que esse trecho tanto imagina a ambivalência material terra e
água quanto antecipa outro dueto material na paisastica sertaneja: terra e ar. Patrocínio
trabalha a imagem da nuvem de urubus. Aves que, com os seus vôos circulares soturnos no
céu e seus pousos lúgubres na terra, acabam por unir definitivamente a imaginão terrestre à
aérea na paisagem do sertão do Ceará.
164
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 84.
165
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 32., p. 25.
110
1.2.2 Terra e ar: atmosfera tresandada a sonho e morte
A paisagem da literatura da seca também imagina a ambivalência material terra e ar.
A imaginação rea oferece um domínio em que os valores de sonho e representação são
intercambiáveis em seu nimo de realidade.
166
O elemento material ar possui alguns objetos
materiais, a tomar por exemplo, os mais significativos para a construção da paisagem dos
literatos da seca: u, constelações, nuvens e ventos. Esses objetos representantes do ar foram
elaborados pelos autores Patrocínio, Tfilo e Olímpio nos seus mais diversos tipos, formas e
significados. A união das matérias pode determinar e explicar essas condições de emergência
das imagens reas, dependendo da ação domínio de uma matéria sobre a outra. Os ares são
espaços propícios aos sonhos e, por isso mesmo, não é a toa que os literatos da seca imaginam
o ar a partir dos sonhos das almas sertanejas.
Em decorrência disso, os literatos da seca construiram a paisagemrea explorando os
sonhos, as sensibilidades dos sertanejos. Em tempos de estiagem, a esperança é que move o
homem do sertão e, tendo em mente isso, Patrocínio, Tfilo e Ompio se valeram dessa
sensibilidade na construção da combinação dos elementos terra e ar. Dessa forma, os três
autores elaboraram a imaginação rea quando descreveram a paisagem celestial sertaneja
referente aos meses iniciais e finais dos anos da ―grande seca, ocorrida entre 1877, 1878 e
1879. Esses meses foram significativos para o imaginário sertanejo porque em tempos de
estiagem ou mesmo vislumbre da seca são osus que anunciam a continuidade ou não da
calamidade. Tfilo é extremamente detalhista nisso, observe-se:
Apelava para o dia de São Jo; nesse dia é que se saberia a sorte do
Ceará. Na noite de 18 de março [de 1877] poucos foram os que
dormiram. Ao quebrar das barras já todos estavam nos terreiros, com o
olhar fito no levante. O céu estava limpo e ponteado de estrelas, que
fuzilavam em todos os rumos. Um movimento de nuvens foi aparecendo
no nascente ao mesmo tempo que um vento frio soprava de floresta afora.
A luz do luar em plenilúnio ia enfraquecendo, à propoão que a
claridade crepuscular ia aumentando: não tardaria o aparecimento do sol.
As nuvens afastarem-se como um reposteiro, que fosse corrido, brilhou a
aurora, franjando de ouro o contorno dos estratos, depois apareceu o sol,
um globo de fogo, semelhante a cobre fundido. O vento de leste esfuziou
mais forte e foi uivando de mundo afora, torcendo a ramaria das árvores,
levantando do solo nuvens de folhas secas e de poeira. Os sertanejos, que
olhavam o nascer do sol, baixaram a vista, alguns chorando a sua
sentença de morte.
167
(Grifos meus)
166
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p.170.
167
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 17.
111
Além de tratar dos sonhos sertanejos, esse trecho possui uma imagem literária
composta. Apesar da predomincia ser da ambivancia ar e terra, pelo menos mais um
elemento material a compõe: o fogo. O sol emerge pela mefora ígnea metalista, no cobre
fundido pelo literato ferreiro. Entretanto, a força simlica da imagem se encontra no
movimento dos variados objetos materiais aéreos durante a mudança da paisagem noturna
para a da aurora, constituindo assim, como se verifica à frente, uma imagem síntese da
dimica da imaginão aérea.
Tfilo realimenta essa paisagem da esperança em outra passagem, referente ao ano de
1878, mas a potencializa no sentido de que o sertanejo vivia uma falsa impressão, leitura dos
céus: [...] As primeiras chuvas do falso inverno de 1878, o fuzilar dos relâmpagos e o
estampido dos trovões, em 5 de janeiro, trouxeram-lhe vivas recordações do sero. Vivia
como a planta exótica nos primeiros tempos da aclimatação.
168
Sendo assim,
O inverno tinha sido apenas uma ilusão, um sonho que a mente do infeliz
povo acalentara alguns dias. Os mais crédulos, animados com a idéia de
uma boa colheita, com um esforço heróico e supremo, semearam a terra.
Mal a germinação se completou, ainda bem os cotilédones do embrião
não se desuniram para deixar sair a hastícula, foram crestados pelo sol!
Tudo não passou de uma ilusão, mas de uma ilusão que custou muitos
sacricios.
169
Na obra A fome, novamente há recorncia à paisagem da falsa esperança, todavia, em
referência ao ano de 1879: em meio de tanto desalento, n‘alma havia uma esperança. Era o
novo sol que dourava o oriente, era uma nova época que começava e traria a redenção aos
torturados pelas leis irrevogáveis da natureza.
170
Por conta desse novo sol, todos se
julgavam salvos, quando a estação, que começara com probabilidades de ser regular,
transtornou-se. As chuvas escassearam de todo! O dia 19 de março [1879], o dia fatal trouxe-
lhes o desengano cruel. O equinócio de março acabou de desiludi-los! A limpidez do espaço
não toldou uma nuvem de chuva! Quanta esperança malograda! Quanta desilusão.
171
Em
Luzia-Homem, Olímpio tamm não deixa de descrever a paisagem desses meses cruciais
para a terra sertaneja:
168
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 213.
169
Ibid., p. 214.
170
Ibid., p. 266.
171
Ibid., p. 266-267.
112
Setembro de 1878 ia em meados e não apareciam no céu límpido, de
azul polido e luminoso, indícios de auspiciosa mudança de tempo. Não se
encastelavam no horizonte os colossais flocos a estufarem como iriada
espuma; nem, pela madrugada. Cirros, penachos inflamados, ou, em
pleno dia, nuvens pardacentas, esmagadas em torrões. À noite,
constelações de rutilante esplendor tauxiavam o firmamento, e a lua
percorria, melancólica, a silenciosa senda. [...] Olhares ansiosos
procuravam, em vão, o fuzilar de relâmpagos longínquos a pestanejarem
no rumo do Piauí, desvelando o perfil negro a Ibiapaba. Nada; nem o
mais ligeiro prenúncio das chuvas de caju.
172
(Grifos meus)
A passagem também revela o sertão muitas vezes como um espaço incomum, pois o
―fuzilar de rempagos‖ é ansiado pelo recado que é capaz de trazer a alma sertaneja,
enquanto que em diversas outras culturas da Europa Ocidental o relâmpago como observou
Bachelard , é um arremetimento direto ao medo ou mesmo castigo divino, ainda mais
quando ―fuzilado. Sendo assim, o sero da estiagem possui sua própria sensibilidade. Os
literatos da seca, por exemplo, representam o que há de particular nos sonhos sertanejos: a
esperança das primeiras chuvas da estação invernosa, as chuvas de caju‖. Em Os retirantes,
Patrocínio também relata a paisagem aérea durante a passagem do ano de 1877 para 1878,
relacionado-a à leitura sem esperança que a alma sertaneja faz das notícias produzidas pelos
ares e objetos terrestres:
A diferença era de fato enorme. Desde dezembro uma tristeza, densa
como um nevoeiro, tinha empanado os espíritos ao verem a florescência
dos cajueiros esperdiçada aos calores crus do estio. Nem um suor de
tempestade embaciou a atmosfera, sempre de limpidez cristalina.
Começou desta data a devoção solene, mas foi inteiramente vão o apelo
para o céu diante da misantropia da natureza. Os dias secos e ardentes
continuaram a devastar o gado, as plantações e as pastagens, ao passo que
os rios e os açudes empobreciam como fidalgos pródigos.
173
(Grifos
meus)
Patrocínio reúne na paisagem celeste de ―limpidez cristalina sol e ar. A terra
elementa ora pelo ar e ora pelo sol vai morrendo. Am de elaborar a paisagem aérea de 1877,
Patrocínio representa os us de 1878, direcionando seu relato neste momento para a crença
da realização dos sonhos sertanejos, isto é, de um retorno da época benfazeja:
172
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 41.
173
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 32., p. 23.
113
Foi, pois, com uma violência selvagem que, na véspera do outono, dia
de São José, a alegria irrompeu do seio da paróquia. O sertanejo não
desarmou a rede nem arranjou o mocó para partir; vestiu-se de gala,
porque o verão simulou chegar ao seu termo. Fria e sombrosa madrugada
quebrou a monotonia das auroras enfartadas de sol; uma bafagem úmida
bruniu a copa empoeirada das árvores e cochichou nos capoeirões
sussurros de temporal. As nuvens obesas de chuveiros alegravam como a
carranca mais feia na festa dos bobos, e a paisagem tomou o ar
descanoado do convalescente a respirar o ambiente oxigenado de uma
hora, ainda úmida da rega matutina‖.
174
(Grifos meus)
Nessa passagem, o sonho sertanejo é movido pelo vento úmido, pelos sons das águas
e, mais ainda, pelas nuvens nebulosas que indicam a tempestade iminente capaz de
transformar a paisagem da seca. Assim, a nuvem ajuda a sonhar a transformação e também
pode ser tomada como uma mensageira.
175
Tanto na passagem acima como nas anteriores a
nuvem, as névoas e o nevoeiros são precisamente objetos incessantemente contemplados pelo
devaneio hídrico, pois pressionam a água oculta no u. Segundo Bachelard, os sinais
precursores da chuva despertam um devaneio especial, um devaneio muito vegetal, que vive
realmente o desejo da pradaria pela chuva benfazeja. Assim, em certas horas da paisagem
sertaneja, o homem é uma planta que deseja a água do céu.
176
No entanto, quando o sol da
seca surge, como edificação em chamas, esse sonho sertanejo é extinto, como bem descreve
Patrocínio:
A populão nem mais ousou implorar; a última esperança terminou o
seu sonho de prosperidade no vestíbulo da miséria, e o u pareceu
impenetrável como um edifício bloqueado pelo incêndio. Para que
levantar preces, que não voltariam à terra convertidas na piedade divina,
como os vapores da terra em chuvas benfazejas? Os espíritos afizeram-se
ao horror do seu destino, semelhantes às revoadas dos corvos, os
hóspedes negros da podridão, ao mau cheiro da carna. A dor atrofiou
os corações, e a sensibilidade enlerdou-os com a anestesia nojosa dos
es, que morrinhavam a digestão de carnes podres, em sono pesado na
areia morna do terreiro.
177
(Grifos meus)
Ainda nessa passagem, Patrocínio trabalha a imagem dos pássaros presentes na
combinação terra e ar. Os corvos e os urubus são seres indesejáveis porque anunciam a morte
por onde pousam e voam. Os corvos e os urubus são aves de rapina e como tal, praticam
174
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 32., p. 25.
175
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p. 190-195.
176
Id. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 161.
177
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 32., p. 51.
114
roubo com violência, são os ladrões fúnebres, seres temidos que se alimentam da violação dos
corpos das vítimas da calamidade da seca. Dessa forma, essas aves têm poder no espaço
sertanejo, não pelo temor que causam nas almas do sero em tempos de estiagem, mas
tamm porque um poderoso vôo não é um vôo arrebatador, é um vôo rapinante.
178
E mais,
essas aves de rapina só possuem capacidade amedrontadora devido a uma fatalidade do poder
de vôo.
179
Nesse sentido, urubus e corvos com esse vôo ora nos ares ora em saltos terrestres,
aterrorizam tanto o ar quanto terra sertaneja, como bem relata Patrocínio: ―Uma nuvem
espessa de urubus pairava, parte na extremidade fronteira, parte pousava no solo e nos
arbustos do capoeirão.
180
Assim, árvores da paisagem alencarina povoadas de pássaros
coloridos são transformadas durante a estiagem em ponto de apoio ao olhar dos lúgubres
urubus:
O aspecto da floresta se tornava cada vez mais triste. Daquele panorama
escuro desapareciam os pontos verdes. Os urubus, pousados aos milhares
nos galhos das árvores num crocitar constante, tornavam a solidãotrica
e pavorosa. De uma gula insaciável, espreitavam as timas, que caíam
aos cantos mortas de fome e de peste, e banqueteavam-se naquele repasto
de pelangas. A atmosfera que enchia os campos era deletéria e podre‖.
181
A paisagem rea dos literatos da seca revela seus significados em cores e formas. A
tomar como exemplo o u azul que, quando meditado pela imaginação material, é
sentimentalidade pura.
182
O azul do u representa pureza e alegria, principalmente em uma
terra de chuvas regulares. No sertão cearense da seca a situação é inversa uma vez que sendo
esse espaço escasso de água tanto que o elemento é tido, muitas vezes, como uma nção
divina o azul celestial na terra sertaneja, sem nebulosas ou cores pardacentas, indicava a
continuidade das tristezas da calamidade terrestre: e o u mpido, sereno, de um azul doce
de líquida safira, sem uma nuvem mensageira de esperança, vasculhado pela viração
aquecida, ou intermitentes redemoinhos a sublevarem bulcões de amarelo, envolvendo,
como um nimbo, a tgica procissão do êxodo.
183
Dessa forma, no momento em que o u
lido clareava, e a aurora, que irrompia, punha nas coisas o rúbido fulgor das suas
178
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p. 155.
179
Ibid.
180
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 43.
181
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 21.
182
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p. 168.
183
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 26.
115
pompas,
184
as tristezas da terra faziam contraste com as alegrias do u que lhe servia de
pula. Nem um nimbo toldava a limpidez daquele imenso plano de safira! Apenas alguns
cirros de uma alvura argentina, tendo a forma de uma asa de gaivota, imóveis nas alturas,
escapavam do vento do leste, que soprava rijo.
185
Nessas duas passagens, tanto Olímpio quanto Tfilo incorrem na petrificação do azul
celeste ao se valerem da metáfora da safira. A safira é a pedra que muitas vezes é utilizada
para representar o azul celestial, pois parece que todo o azul do céu vem concentrar-se nessa
pedra.
186
Contudo, a comparação da safira com o azul do céu, segundo Bachelard, endurece a
impressão de limite indeterminado e parece deter a imensa virtualidade da contemplação do
céu azul.
187
Entretanto, Olímpio parecia saber do significado do azul safira e, então, tentou
relativizar esse endurecimento quando imaginou um ―azul doce de líquida safira. Ora,
Olímpio liquesce a safira para dar-lhe uma qualidade que não lhe é inerente, a dinamicidade.
Os literatos da seca e sua construção rea, a partir de uma possível classificação dos poetas
do tema do azul celeste proposta por Bachelard, são poetas que de fato não participam
completamente da natureza aérea. Dado que vêem no céu imóvel umquido fluente e se
animam com a menor nuvem, vivem o u azul como uma chama imensa e representam um
céu azul consolidado, uma abóbada pintada.
188
O céu azul na paisagem sertaneja da literatura da seca confirma a continuidade da
esterilidade da terra, a manter a imobilidade, é ―o mesmou azul a se arquear sobre um solo
estéril! As cenas se sucediam numa monotonia crescente. A sequidão da terra a constringir as
raízes das plantas, que morrem de fome.
189
Os sertanejos durante a estiagem viam o céu
límpido, o sol triunfante, e ao longe as maçarandubas desfolhadas, com os galhos pendentes
como os braços de um cadáver levantado pela cintura.
190
A paisagem rea dos literatos da seca tamm se compõe com os discursos sobre os
ventos e seus rdos. Como relata Tfilo: Não se ouvia o trinar de uma ave, o zumbir de um
inseto! Apenas rajadas dos asios, quentes aquela hora, faziam uma orquestra nos
esqueletos das árvores, e num diapasão lamentoso gemiam, rangiam, assobiavam.
191
Nessa
passagem é patente a ação elementar que o ar sofre do fogo, os ventos mudam de sentido por
184
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 34.
185
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 18.
186
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças, p. 241.
187
Id. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p.167.
188
Ibid., p. 163.
189
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 67.
190
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 32., p. 45.
191
TEÓFILO, Rodolfo. Op. cit., p. 35.
116
essa combinação, assim [...] onde o sol abrasador [estiver], os ventos impetuosos e áridos
[...]
192
tamm estarão presentes.
A luta travada entre o ar e a terra produz a paisagem dos ventos furiosos, violentos,
como consti Olímpio: o sertão ressequido estava quase deserto: campos sem gados,
povoações abandonadas. E a constante, a implavel ventania, varrendo o céu e a terra,
entrava, silvando e rugindo, as casas vazias, como fera raivosa, faminta, rebuscando a presa, e
fazendo, com pavoroso rdo, baterem as portas de encontro aos portais, num lamentoso tom
de abandono.
193
-se que, como afirma Bachelard, esse vento furioso é o símbolo da cólera
pura, o vento em seu excesso é a lera que esem toda parte.
194
Nesse momento, o vento
tamm é um relato sentido pela audão, construtor de uma paisagem sonora, uma vez que os
sons produzidos pelo vento revelam significados e espaços por ele percorridos.
Tfilo ao descrever a paisagem dou nebuloso, do tão sonhadou da alma
sertaneja em tempos de seca, tamm explora uma das propriedades do vento: o movimento,
o dinamismo. Dessa maneira, o vento é responsável pelo afastamento das nebulosas do céu do
sertão e, assim, pela quebra da esperança sertaneja, veja-se isso na passagem abaixo:
Solo tinha um aspecto de deserto. Árvores desfolhadas enchiam áreas de
léguas com uma monotonia de cemitério. Freitas errava pela mata.
Examinava o terreno, procurava indícios de aguada e nem uma
esperança! Sentia-se desalentar cada vez mais quando notou que o
firmamento se cobria de pesados nimbos, o vento emudecia e os vapores
escureciam o ar. Julgou-se salvo, a chuva em breve regaria a terra e
mataria a sede dos filhos. Afagava tão doce ilusão, quando ouviu que o
vento da seca desencadeava-se impetuoso e varria a terra e o espaço. Os
esqueletos das árvores rangiam batidos pelas rajadas, ao mesmo tempo
que as nuvens em vertiginosa desfilada corriam para oeste deixando após
si o espo límpido e azul.
195
(Grifos meus)
Noutras composões paisagísticas dos literatos da seca a terra é quem elementa o ar.
A tomar como exemplo, o vento que se torna visível quando juntado a poeira terrestre.
Conforme Bachelard, o vento ameaça e uiva, mas toma forma quando encontra a poeira e,
se tornando visível, o vento não exerce todo o seu poder sobre a imaginação senão numa
192
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 32., p. 81.
193
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 41.
194
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p. 231-232.
195
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 47-48.
117
participação essencialmente dinâmica.
196
Duas passagens são bem elucidativas em relação a
essa iia, uma em Luzia-Homem O sol dardejava, a pino, intensa luz sobre o largo da
feira, coalhado de gente. Redemoinhos intermitentes revolviam o lido, que se elevava
em espirais, envolvendo retirantes e mercadores em bulcões amarelados e sufocantes.
197
e a
outra em A fome:
A caravana chegou às portas da cidade, ao clarear do dia. A estrada
estava deserta; nem um passageiro encontravam e não ouviam o trinar de
uma ave. As árvores, despidas de folhas, reduzidas aos esqueletos,
enfileiradas nas orlas do caminho, parecia que abriam alas a um pstito
nebre. A brisa que ciciava não trazia um perfume: movia uma nuvem de
pó impalpável, que atirava aos olhos dos viandantes.
198
(Grifos meus)
Por fim, outro mote da paisagem da seca é relacionado ao sentido do olfato. Os maus
cheiros, odores, verdadeiros miasmas que lançam a morte ao ar. Patrocínio enfatiza o tema
durante as retiradas:A falia apertou o passo para mais depressa furtar-se das pútridas
emanações, mas não deixou de olhar para o lado onde os urubus assinalavam foco.
199
A
associação dos urubus com os miasmas é veemente, pois tantos essas aves quanto o ar da seca
o tresandados à morte. A terra tamm participa da paisagem dos miasmas, uma vez que
essas exalações pútridas são originadas do ar elementado pela morte da terra. A aliança
nefasta é descrita por Patrocínio: [...] O mundo da miséria, com as suas estradas tortuosas,
lamacentas e fétidas, os seus dias de mendicidade suplicante e abatida em face dos
insensíveis, dos maus e dos cruéis, rasgou-se-lhes diante com avareza cruciante de terra e de
céu, de risos e lágrimas, de estimas e maldições, monótono, sombrio, esmagador. [...].
200
Após pensar as relações da terra com o fogo e o ar, é possível analisar a ambivalência
material terra e água. A água é o elemento dos sonhos mais preciosos da alma sertaneja em
tempos de estiagem. Sonhos que revelam outra paisagem sertaneja: a benfazeja.
196
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginão do movimento, p. 232.
197
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 102.
198
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 83.
199
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 44.
200
Ibid., v. 32., p. 107.
118
1.2.3 Terra e água: resisncia e harmonia
A água é um elemento transitório e acaba agrupando as imagens, dissolvendo as
substâncias, isto é, ajuda a imaginação em sua tarefa de desobjetivação, em sua tarefa de
assimilação.
201
Dessa maneira, a água possui a aptidão de compor-se com outros elementos,
mas para Bachelard é na composão terra e água que estaria a verdadeira contribuição para a
imaginação material.
202
A água pode assumir papéis ambíguos e viver individualmente a sua
própria ambivalência. É possível, por exemplo, imaginá-la tanto como ideal de pureza quanto
de impureza. Todavia, essas e outras possibilidades imaginantes da água emergem dos sonhos
dos próprios poetas, dependendo de qual paisagem eles querem construir ou se referir.
A paisagem da literatura seca é essencialmente constrda pelas imaginações materiais
compostas terra e fogo, terra e ar. Sendo assim, segundo Bachelard, a imaginação material
da água está sempre em perigo, corre o risco de apagar-se quando intervêm as imaginações
materiais da terra e do fogo.
203
Entretanto, pelo o elemento água possuir um poder enorme
no espaço sertanejo, a imaginação material aquática resiste, mesmo sendo misturada em sua
ínfima parcela com a terra, o fogo ou o ar. Am disso, na paisagem sertaneja cearense água é
fonte de vida, de rejuvenescimento. A imaginação material da água leva os literatos da seca a
uma obrigação nova: a unidade de elemento.
204
Dessa forma é que a paisagem se transforma,
harmonizando-se pela unidade dos diferentes elementos.
A ambivalência material constituída por terra e água emerge na paisagem da literatura
da seca cearense justamente quando Patrocínio, Tfilo e Ompio relatam os espaços
resistentes à estiagem. Além desses espaços, a água é misturada à terra durante a descrição
das lembranças do passado benfazejo do sertão, em grande medida, durante o desfecho das
tramas que coincidem com o término da seca e o retorno da tranqüilidade no sertão cearense.
Os espaços de resistência à seca são as serras, as várzeas e a gruta. As serras nessa
literatura nem sempre resistem às intempéries cliticas, como fora analisado anteriormente
no item da ambivalência material terra e fogo. Mesmo assim, as serras surgem mais
constantemente na paisagem dos literatos da seca quando a tomam como símbolo de
resisncia, espaço de refúgio. Esses espaços, por exemplo, o citados como as terras
afortunadas da serra, que pareciam um grande oásis perdido no meio do imenso deserto da
201
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 13.
202
Ibid., p. 15.
203
Ibid., p 22.
204
Ibid., p17.
119
província‖.
205
As serras possuem o poder de rejuvenescer os retirantes que a experimentam,
como comenta Patrocínio na seguinte passagem: à medida que subia, Paula rejuvenescia e
revigorava-se. Os males dos meses passados dissolviam-se no verdor embalsamado dos
plantios, que lembravam uma parasita disforme vicejando às expensas da maioria da
vegetação morta da proncia.
206
E mais, as serras reviviam a lembrança da época benfazeja,
uma vez que aquele amontoado de morros, que se sucediam com a gradação dos cones de
uma pinha enorme, muito verdes, cintados pelos vastos leitos fulvos das estradas, afogados
numa abunncia palaciana de luz, acordavam no coração deprimido do vigário imagens em
que ele já nem ousava pensar.
207
Patrocínio novamente se prende a serra quando consti a paisagem da Serra de
Baturité. Mediante a contemplação de sua personagem Eulália, o autor descreve
continuidade da vida benfazeja nas serras mesmo em tempos de estiagem no sertão:
Seguiu quase a correr, descendo a íngreme ladeira como se fosse intento
seu não parar. Embaixo um panorama esplêndido desdobrou-se diante de
si. Uma situão perfeitamente cultivada estendia-se com os seus
canaviais viridentes, cheios de ruídos, com os seus cafezais e mandiocas
verde-negros, dominando um grande espo. Sobre um pequeno
tabuleiro, a casa, iluminada, surgia sonora de gargalhadas e gritaria de
crianças. Próximo a ela, num curral espaçoso, o gado meneava os
chocalhos, ruminando tranqüilamente. A pouca distância do curral, um
vasto telheiro mostrava-se inteiramente iluminado por uma enorme
fogueira.
208
Olímpio também consti a paisagem serrana quando decreve a Serra da Meruoca:
sua personagem em certa altura da trama de Luzia-Homem. Tome-se como exemplo o trecho
abaixo:
Depois de duas horas de marcha, interrompida a espaços, para descanso
dos carregadores, tornou-se o solo mais acidentado em sucessivas colinas
e contrafortes torturosos, dilatados, como raízes colossais pelo sertão,
partido em vales profundos, refrescados pelas filtrações da serrania,
sombreados por vegetação da folhagem pardacenta, retorcida e crestada.
Mais longe, uma descida íngreme, sobre estratificações da piçarra
cortante, os levou ao sopé da montanha, onde comava a ladeira, e
apareciam as primeiras árvores, os oitizeiros frondosos, cedros, paus-
205
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 168.
206
Ibid., v. 33., p. 168.
207
Ibid., v. 33., p. 168.
208
Ibid., v. 33., p. 170.
120
d‘arco e angicos em floração estiolada, contornando o riacho da Mata-
Fresca, do qual restava intermitente fio d’água a deslizar sobre lajes, e
gotejando de pedra em pedra, como vagarosagrima.
209
(Grifos meus)
A paisagem da serra é aquela da vida campesina benfazeja de outrora, uma vez que a
serra é tomada como um espaço onde a ínfima quantidade de água se potencializa. A água na
paisagem serrana sofre uma valorização substancial que torna a água um leite inesgovel, o
leite da natureza Mãe.
210
É então a água que possibilita a vida, a sobrevivência. Assim, como
o leite materno mantém a criança, dando a ela as forças necessárias para resistir ao mundo que
a rodeia, a água mesmo ínfima presente nas serras a força necessária para esse espaço
resistir à morte dos estios.
Em Os retirantes, Eulália experimenta a vida campesina benfazeja após a longa
jornada das paisagens mórbidas. Todavia, por meio de outra personagem citada por Patrocínio
como apenas velho, Eulália ouviu falar que a serra não abarcava todos os retirantes e assim,
essa conversação, como era natural, desfez a alegre impressão que o aspecto da serra, a sua
vegetação sadia e forte causara a Eulália.
211
(Grifos meus) Lendo e refletindo sobre essa
passagem, é possível perceber que a paisagem é sim um estado da alma sertaneja.
A paisagem dos literatos da seca também é constituída pelas imagens literárias das
várzeas. Tfilo, a partir de sua personagem Manuel de Freitas a caminho de Fortaleza,
discorre sobre as propriedades da Várzea do Meio, construindo uma composta imagem
material:
Manuel de Freitas chegou com a caravana a rzea do Meio, logo ao
amanhecer do dia. O solo tinha ali outro aspecto e a natureza um ar mais
sadio. Uma área de mais de dois quilômetros de exteno arborizada de
carnaubeiras seculares, todas verdes, limitada pela floresta semimorta,
constituía a várzea, aprazível pela vida de suas palmeiras. As brumas
crepusculares rarefaziam-se e os vapores sutis desapareciam diluídos
pelos raios solares, que chegavam à terra. Algumas espirais de fumo
enovelavam-se nos leques de carnaubeiras, desprendidas dos fogos nos
ranchos dos retirantes. Havia ali algumas centenas de viajantes fazendo
estação. Todos estavam magros, estropeados, cansados, e muitos
enfermos.
212
209
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 196.
210
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 131.
211
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 171.
212
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 53.
121
O último espaço de resistência identificado nessa literatura da seca é a paisagem da
gruta. A imagem literária da gruta e seu espaço de redor foram constrdos por Tfilo com
esmero, tornando-se uma das passagens mais significativas da obra A fome quando se trata de
uma nova imagem paisastica entre os ts literatos da seca. A imagem elaborada toma o
corpo de todo terceiro capítulo da obra. A paisagem da gruta é um refúgio, um espaço onde há
a possibilidade de se encontrar a tão sonhada água e, por essa razão, Tfilo a coloca em um
ponto de difícil acesso humano. Dessa forma, Tfilo valoriza a procura pela água quando
trabalha as imagens do rochedo: Em pouco tempo chegou ao sopé do outeiro, que era
formado por quatro grandes rochas superpostas. Aquele mole de granito de milhares de
toneladas era uma prova geológica dos cataclismos por que passou o globo. Talhadas a pique
em todas as faces, eram de ascensão dificílima senão impossível‖.
213
Tfilo começa a
descrição criando um desafio a sua personagem Manuel de Freitas. A ―função do rochedo está
em colocar um terror na paisagem‖,
214
uma dificuldade que ao mesmo tempo valoriza a ação
do homem sertanejo e engrandece a paisagem do sertão. Assim, o ―rochedo é enorme
moralista, [...] um dos mestres da coragem‖.
215
Dessa maneira, em A fome se tem constrda
uma personagem impelida a enfrentar o rochedo. Todavia, Tfilo é o ser imaginante que
percebe que a provocação vem do rochedo monstruoso, pois a identificação do rochedo
invencível é do próprio autor. Logo, é o rochedo quem tem a coragem. É ele o lutador.
216
Após a descrição da ágil ação da personagem para vencer o rochedo e conquistá-lo ao
pôr-se sobre sua estrutura a iia vencer, de conquistar a natureza era um anseio do homem
do século XIX , Manuel de Freitas é transformado no sertanejo contemplativo, um homem
todo paisagem:
[...] De sobre o alto pedestal, descortinava um panorama imenso; os
horizontes se alargavam e a vista perdia-se nos espaços habitados pela
floresta ou pela atmosfera. Naquela enorme tela o azul do céu era o tom
alegre sombreado pelas tristezas, pelas cores sombrias dos campos.
Perscrutava com um olhar inteligente tudo que o cercava. As pesquisas,
entretanto, eram improfícuas, as qualidades investigadoras de seu espírito
se nulificavam no descobrimento de um rumo que o levasse feliz ao porto
de destino. Nenhuma orientão descobria! Os olhos deslumbrados por
tanta luz e cansados de tanto ver, descansaram um pouco, velados pelas
pálpebras. De olhos fechados, examinava o enorme panorama que
descortinara. Sentindo dentro de si todo aquele mundo mais palpável
ainda do que há pouco, julgou assim poder melhor auscultar o solo e
ouvir a pulsação de alguma artéria dágua. Recolheu-se mais e meditou.
213
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 35.
214
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças, p. 153
215
Ibid., p. 159.
216
Ibid.
122
Nada ouviu que o guiasse à fonte! Abriu os olhos e uma surpresa
agradável deu-lhe novas esperanças. As retinas transmitiam agora ao
rebro as imagens de mais longe. Entre elas percebeu um ponto verde,
um pequeno oásis cravado no seio da floresta de árvores mortas. Esfregou
os olhos, pretendendo assim ativar a visão. A imagem continuou a
desenhar-se em tons mais vivos. Era um pedo de terra que a seca havia
respeitado.
217
(Grifos meus)
Além de Tfilo trabalhar com a imagem terrestre da imensidão, geradora de um
estado contemplativo, o autor metaforicamente reafirma a verdade ocularista do mundo, idéia
comum a sua própria formão e época. Mesmo assim, quando tenta interagir a terra e a
água, o autor admite a existência de um estado, de uma intimidade que assimilasse a
paisagem vista e a refletisse em profundidade. A resultante da reflexão e do olhar é a imagem
literária do oásis, composto pela terra e água. Ooásis é uma verdadeira miragem na
paisagem do sertão dos estios, uma imagem literária que segundo Bachelard não se desgasta:
―Ela explica o comum pelo raro, a terra pelo u‖.
218
A miragem na literatura aparece como
um sonho reencontrado: a paisagem harmônica do sertão. É seguindo essa idéia que Tfilo
continua a narrativa:
[...] Movido de curiosidade, caminhava em rumo do ponto verde,
desejoso de expandir a vista em um campo coberto de verdura. Não
pensava em outra coisa senão em ver daí a minutos ressurgir de entre a
enorme multidão de esqueletos uma colônia de indivíduos fortes e sadios
com todos os atrativos e belezas da vida campesina. Uma gota d’água e
uma folha verde naquelas paragens teria o encanto de uma ressurreão.
Foi-lhe preciso, entretanto, caminhar alguns quilômetros para chegar ao
oásis. Um grupo de oiticicas, seculares, sadias, vigorosas, opulentamente
enfolhadas, enchiam uma área de alguns decâmetros. Cada árvore era um
colosso vestido de verdura, a ostentar todo o luxo da vegetação tropical.
Sentiam-se ali as manifestações de vida e a harmonia dos seres da
natureza. Os fetos que bordavam o solo com as folhas arrendadas viviam
bem à custa da umidade e da sombra, livres das rajadas do vento da seca,
que com seu hálito quente tudo crestava. A brisa, que ciciava era fresca e
perfumosa.
219
(Grifos meus)
À medida que a caminhada do retirante Manuel de Freitas avança rumo ao
oásis ou seja, o espaço terrestre elementado pela água, a paisagem vai tomando outro
217
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 36-37.
218
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p. 176.
219
TEÓFILO, Rodolfo. Op. cit., p. 37-38.
123
aspecto. A água nessa passagem pode ser analisada na sua valorão mais comum: pureza e
purificação. Segundo Bachelard, a imaginação material encontra na água a matéria pura por
excencia, a matéria naturalmente pura e, por esse motivo, ela é capaz de realizar a
purificação.
220
A terra sertaneja se transforma em vida harmônica na presença da água pura.
A podridão da morte é purificada pela cristalina água que vida. Tfilo trabalha com essas
idéias poderosas do imaginário do sertanejo ao continuar o relato da expedição de Manuel de
Freitas:
[...] O tio tornava-se cada vez mais aprazível. As juritis gemiam nos
maciços de verdura, os insetos volitavam no espaço, as s coaxavam
baixinho comendo as algas da fonte. Freitas encontrou na superfície da
rocha, que julgava inteiriça, uma fenda com suficiente espaço à vista.
Deitou-se na pedra e olhou através da abertura. Uma fonte cristalina
alimentada por um fio d’água, que descia do alto da rocha e caía gota a
gota e no centro de uma pequena sala fracamente iluminada pelo sol,
viram os seus olhos. As estalagmites que se erguiam do solo, quase
encontravam com as estalactites que desciam do teto, refletindo a luz que
decompunham, e então os tons do íris ofereciam a Freitas um espetáculo,
novo e que deveras o maravilhava. [...] Era uma gruta digna de uma
lenda‖.
221
(Grifos)
A passagem trabalhada por Tfilo concebe poder à água cristalina. Uma vez que, na
imaginação material, a água quando valorizada pela moral da pureza pode agir, mesmo em
quantidade ínfima, sobre uma grande massa de outras substâncias.
222
Entretanto, o autor
inaugura, em comparão as obras de Patrocínio e Ompio, a imagem da gruta. A gruta,
conforme Bachelard, ―é um refúgio no qual se sonha sem cessar. Ela confere um sentido
imediato ao sonho de um repouso protegido, de um repouso tranqüilo. Passado um certo
limiar de mistério e pavor, o sonhador que entrou na caverna sente que poderia morar ali
223
(Grifos do autor). Sendo essa mesma idéia trabalhada por Tfilo, pois sua personagem
Manuel de Freitas ao tentar entrar na caverna se depara com o seu misrio: uma onça-
pintada. Após vencê-la em combate mortal aproveita a água da gruta e as carnes da fera
abatida para alimentar a sua falia retirante. Tfilo ainda acrescenta que era uma gruta
digna de uma lenda, ora assim que a linguagem ultrapassa a realidade, há possibilidade de
220
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 139.
221
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 39.
222
BACHELARD, Gaston. Op.cit., p. 149.
223
Id. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade, p. 143.
124
lenda
224
e a realidade da literatura da seca é a paisagem morta do sertão. Assim, a gruta de
Tfilo é uma lenda porque compunha parte dos sonhos da alma sertaneja em tempos de
estiagem. O autor parecia saber que as lendas transmissíveis, as lendas às quais se pode dar
um interesse, têm um cleo orico permanente.
225
A água na paisagem da literatura da seca também surge de ambivalência material com
o ar. A esperança das chuvas dinamiza as almas do espaço sertanejo, nesse mundo do interior
de época estiada os sinais celestiais são bem quistos, os relâmpagos e nebulosas são motivos
de alegria, festividade para o reino vegetal e, principalmente, animal. Os anúncios do céu
faziam com que mesmo a floresta tocada de morte, os rios sem uma gota d‘água, e entretanto
[os sertanejos] acreditavam estar muito pxima a vinda do inverno.
226
Assim, por esses
sinais ―tudo levava a crer na mudança da estação. Os rempagos clareavam a abóboda
celeste, os trovões ribombavam no espaço, a chuva regava a terra, era enfim o festival
imponente dos elementos que fazia com as saudações do povo à nova era que surgia.
227
Os
ventos fazem o papel de movimentar as águas reas para todas as direções, como descreve
Tfilo: Não se iludiram! O dia 14 de março veio realizar os seus pressentimentos. Logo ao
amanhecer, o trovão ribombou no espaço e chuva copiosa levou a terra! Os asios
emudeceram e o norte impelia as nuvens para o sul‖.
228
Sendo assim, imagem da época benfazeja começa a tomar contornos bem delineados
na paisagem dos literatos da seca, como relata Tfilo: uma manhã, saiu a passeio e ouviu ler
nos jornais do dia as notícias chegadas do interior. Eram por demais lisonjeiras; os campos
verdes, os rios cheios, as lagoas e udes a vazar e, em breve, a abastança por toda
parte[...].
229
Domingos Ompio é, dentre os três literatos, quem consegue construir uma imagem
literária síntese da paisagem benfazeja da literatura da seca. Desde a descrição da relação de
alteridade entre paisagem seca e paisagem invernosa até a sensibilidade da alma sertaneja
diante do espetáculo proporcionado pela água, leia-se o trecho abaixo:
Ao espetáculo do alvorecer sem alegria, o campo desolado, sem cânticos
de pássaros e rumores harmoniosos do trabalho venturoso e fecundante,
ela revia a inncia, na Fazenda Ipueiras: a campina verdejante
umedecida de orvalho congregado no côncavo das folhas em gotas
224
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade, p. 142.
225
Id. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginão das forças, p. 215.
226
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 363.
227
Ibid., p. 266.
228
Ibid., p. 363.
229
Ibid., p. 365.
125
trêmulas, os cabeças-vermelhas gorjeando nos mais altos ramos dos
juazeiros frondosos; caraúnas airosas papeando em volatas vibrantes nos
leques das carnaúbas esguias. Rolas arrepiadas e friorentas aguardando,
aos casais quietos, bem juntinhas, os primeiros raios do sol. Ouvia o
mugir lamentoso das vacas presas nos currais, o gemido soturno e tímido
dos bezerros e monjolos famintos; o balir das ovelhas irrequietas no
fumegante chiqueiro; o gaguejar dos bodes lúbricos, ébrios de luxúria; e
o relincho triunfante do fogoso cavalo castanho a galopar pelado das
mãos, de crinas eriçadas, de orelhas espetadas e de bidas narinas
acessas. E como o cheiro do pasto florido, dos aguapés flutuantes na
lagoa azulada, nefares de caçoulas entreabertas, sentia o fartum da
prodigiosa terra exuberante, e o bafio agro dos rebanhos fecundados.
Recordava-se do banho na lagoa, que espelhava o u, e a paisagem
pitoresca, e onde ela nadava como as marrecas ariscas; mergulhava e
voltava a flux, espadanando a água com o açoite de cangas acrobáticos,
espantando os paturis e janãs medrosos, os graves socós pousados
sobre uma perna e os bandos de alvas garças elegantes. Como era
saboroso o leite morno, espumando nas cuias; o tassalho de carne-de-sol
chiando no espeto, o cuscuz vaporoso e os queijinhos de cabra, em forma
de peito de moça; as merendas e o mel de rapadura e macaxeira, o
mungunzá com coco da praia, a coalhada escorrida e os fofos manuês
assados em folha de bananeira?!...
230
(Grifos meus)
Nesse trecho também é possível pensar que a personagem Luzia, a partir de seus
sonhos, volta à terra natal, regressa à casa natal.
231
A Fazenda Ipueiras é a casa onírica de
Luzia, espaço de repouso nas sombras dos ―juazeiros frondosos, de paz no escutar das vozes
dos animais sertanejos e de rejuvenescimento no ―banho na lagoa e alimentos típicos do
sertão.
Domingos Olímpio ainda consti, em Luzia-Homem, a paisagem do sertão das águas
violentas, das enchentes arrebatadoras a mudar o quadro pintado pela literatura da seca, pois
era assim que o sertanejo Raulino Uchoa matava o tempo, narrando a paisagem que naquela
época de seca parecia inverossímel:
[...] Contava das viagens extraordinárias, aventurosas, pelo sertão
inundado, da intrepidez com que afrontava o ímpeto dos rios
desbordantes, nadando em cavaletes de mulungu no tempo a parecia
sonho em que Deus ainda se lembrava, piedoso, do Cea, para dar-lhe
chuvas copiosas e fertilizadoras dos campos, trombas d‘água
devastadoras, rotas nas cumeadas das serras, descendo em catadupas
raivosas, invencíveis, pelos talhados, encostas verdejantes, arrastando
rochedos, árvores, plantações, ase espraiarem na planície, à maneira de
um mar, arrombando açudes, soterrando bebedouros, cavados durante a
230
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 60-61.
231
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade, p.93-95.
126
seca. Descrevia com linguagem fantasiosa, ardente, de vigoroso colorido,
com as imagens vivas, sugestivas do rude estilo sertanejo, o fragor das
correntes raivosas, de concerto com o ribombo ininterrupto da trovoada; o
relampear das nuvens negras e maciças, os ziguezagues fulvos a riscarem
o céu, com letras cabalísticas, ameaçadoras, traçadas pela ira de Deus; o
estrondo horrível dos coriscos, o pavor do gado, haurindo, a largos
sorvos, o ar saturado de ozona, reunidos, em magotes, nos cômoros da
planície encharcada.
232
Partindo dessa imagem, Ompio buscou demonstrar o quão sensível é a alma sertaneja
à paisagem benfazeja: Presos aos lábios do narrador imaginoso, os retirantes mal continham
lágrimas; ouvindo-o evocar entre episódios da vida sertaneja, fatos e coisas, dons do céu, para
sempre perdidos, água, verdura, rados, safras opimas, alegria e fartura, cortados os corações
pela amarga saudade de recordar tempos felizes.
233
É importante frisar que o investimento desses literatos da seca na paisagem benfazeja
possui motivações diversas. É possível estabelecer claramente duas delas: a relação de
alteridade que é necesria para a construção simlica da paisagem da seca e a preocupação
com a verossimilhança, pois era saber comum que nem sempre a paisagem sertaneja se
constita em território dos estios. Ainda há outro ponto a exaltar, todas as paisagens
analisadas até o momento foram de cunho diurno, isto é, solares. Todavia, o mundo natural
tamm é vivenciado por uma alteridade de luzes, assim, a realidade natural da Terra é
tamm composta por outra paisagem: a noturna. Por mais que Patrocínio, Tfilo e Olímpio,
resistissem à escrita das paisagens noturnas, os autores não as poderiam negar, sob pena de
faltarem com a verdade natural da Terra. Nesse sentido, o intuito a partir de então se
constitui em analisar as poucas descrições paisagísticas noturnas dos literatos da seca cearense
232
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 166.
233
Ibid., p. 166.
127
1.3 Os elementos materiais e o fogo morto: a paisagem noturna
A morte do fogo na paisagem dos literatos da seca se no momento do crepúsculo
solar. Ao decnio do globo de fogo a terra passa a se resfriar e nova paisagem vem a se
assomar: a noturna. A paisagem da noite possui um quê de marasmo porque perante o fogo
que morre, quem está a soprar desanima; não sente o entusiasmo suficiente para comunicar a
sua própria força.
234
Ora, esse desânimo é próprio da morte do fogo da paisagem da literatura
da seca, conforme Bachelard, o sol poente é uma imagem de nirvana, uma imagem de paz,
de aquiescência à vida noturna, e como tal essa imagem do sol se espalhando, se alargando,
do sol associando o universo ao seu repouso domina um grande setor do devaneio da
noite.
235
Na paisagem noturna de Patrocínio, Tfilo e Olímpio a lua possui a sua própria
ambivancia e mais, conforme Bachelard, a lua, no reino poético, é matéria antes de ser
forma, é fldo que penetra o sonhador.
236
Logo, a lua é um objeto material noturno, mas é a
noite por excelência a matéria noturna, pois a noite é apreendida pela imaginação material.
237
A noite dos literatos da seca em certo momento possui positividade, a tomar como
exemplo, a descrição de Patrocínio em Os retirantes: [...] o u desnublado vestia-se de um
luar deslumbrante; uma viração benfazeja refrigerava o ambiente lido ainda das irradiações
do sol; uns cajueiros esgalhados agitavam os ramos seminus como fazendo um sinal de
convite.
238
Em especial quando se vive em uma terra ainda queimando por causa do fogo
solar, como descreve Olímpio, em Luzia-Homem: ao cair da tarde, quando lida neblina
irradiava da terra abrasada, esbatia o recorte das montanhas ao longe, e adelgaçava o colorido
da paisagem em tons pardacentos e confusos [...].
239
Portanto, nessas horas as sombras são
bem-vindas a uma paisagem que foi crestada durante todo o dia. Em A fome, Teófilo
apresenta certa positividade da luz do luar:
A lua, nos seus últimos dias do crescente, fazia a trajetória no espaço,
que nublado, tornava pela sua morte-cor mais brilhante a superfície do
astro. Os seus raios iluminavam a terra, mas com um brilho que
deleitava. Os tons da tela, representando aquele pedo de solo com os
seres que o povoavam, confundiam-se em uma nuança escura. As rochas
234
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo, p. 84.
235
Id. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginão das forças, p. 130.
236
Id. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 126.
237
Ibid., p. 105.
238
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 32., p. 61.
239
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 19.
128
e os areais brancos se dilam na pretidão da floresta em uma aguarela
desmaiada e sombria‖.
240
(Grifos meus)
A passagem constrda por Tfilo possui raios lunares de um brilhante prazeroso,
mas que, paradoxalmente, se apresenta sombrio e marastico. Um luar quase petrificado,
pois a ―trajetória no espaço da lua tanto garante certa dinâmica na paisagem quanto revela a
lentidão nos are durante a percepção.
A paisagem noturna dos literatos da seca é aquela [...] onde o luar resplandecia em
toda a inteireza do seu brilho.
241
Um espaço em que a lua, alumiando com a sua claridade
elétrica,
242
―fazia um luar tropical, sereno como o desdém da natureza pelo orgulho do
homem‖.
243
Todavia, essa luz elétrica não iluminava toda a paisagem. Dessa maneira as
sombras dela produzidaso importantes na composição da paisagem noturna da literatura da
seca. Tfilo faz referência a uma sombra dominadora do espaço sertanejo: o dia findava-se,
as ondulações crepusculares esmoreciam nas cristas dos outeiros, e as sombras, se elevando
da terra, dominariam tudo.
244
as sombras noturnas imaginadas por Patrocínio geram
indiferença: o luar morno e indiferente, como se representasse a absoluta impassibilidade da
natureza, inundava o capoeirão.
245
Ou mesmo medo, pois a ―noite vem por si só, trazer um
devir aos fantasmas
246
: [...] a noite, pom, indiferente a tamanho sofrimento, avassalava
rapidamente os últimos claes do dia, e, de mistura com ela, a sombra do mato marginal
aumentava o temor das caminheiras‖;
247
(Grifos meus)
As sombras ainda podem ter outro sentido, principalmente se participam de uma
ambivancia material. A tomar como exemplo uma passagem constrda por Olímpio, em
que o autor descreve o cair da tarde. Nela há pelo menos duas imagens literárias, sendo uma
relativa à união da água e noite, e outra à mistura ar e noite:
Cada vez mais espessa, a neblina da tarde, com uns restos de calor,
entrava a redondeza. Casas, árvores mortas confundiam-se
desconformes, no esboço da paisagem, esfumada claro-escuro. As
manchas das sombras alastravam, como um líquido negro, devorando os
240
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 51.
241
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes. v. 33., p. 50.
242
Ibid., v. 33., p. 50.
243
Ibid., v. 33., p. 195.
244
Ibid., p. 72.
245
Ibid., v. 33., p. 49.
246
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginão da matéria, p. 107.
247
PATROCÍNIO, José do. Op. cit., v. 33., p. 45.
129
tons luminosos. No céu puríssimo, piscavam, espertas álacres, como uns
pequeninos olhos, estrelas e constelões. Papaceia, o astro da
melancolia, librava-se no poente ainda claro, como lúcida lágrima,
mensageira da dor ignota, oculta nas profundezas misteriosas do espo,
tremeluzia prateada como pólo das esperanças e das mágoas dos tristes, e
parecia vacilar atraída pelo sol, atufado em nuvens purpúreas.
248
(Grifos
meus)
Durante a união água e noite a imagem literária se encontra na expressão ―líquido
negro, relacionado diretamente com as sombras que dominam casas e árvores mortas.
Tem-se aí a água [que] comunga com todos os poderes da noite e da morte‖,
249
pois, a ―[...] a
lua impregna a substância da água com uma influência deletéria‖.
250
Além dessa imagem
literária, Olímpio trabalha a ambivalência material ar e noite quando pela paisagem noturna
se é possível perceber estrelas e constelações piscando alegremente, com seus pequeninos
olhos que fitam o sertanejo. Assim, o mundo das estrelas e constelações toca a alma
sertaneja: é o mundo do olhar. Por esse olhar recíproco a disncia se transforma em
aproximação, numa dinâmica lenta.
251
Ompio também cria outras duas imagens em
ambivancia idênticas na seguinte passagem: ―no u límpido, profundo e sereno, em
quietude de lago tranqüilo, sem manchas de nuvens errantes, tremeluziam, em esplêndidas
constelações, miades de estrelas‖.
252
Essas imagens são mais simples, se relacionam apenas
à iia da dinâmica lenta da noite em combinação com as águas dormentes e as constelações,
respectivamente objetos materiais aquáticos e aéreos.
No trecho anterior de Ompio, a lua surge como o astro da melancolia, pois a noite
é o momento da melancolia para os literatos da seca. Para Tfilo é [...] a hora das saudades.
A luz crepuscular baça e triste em mórbidos reflexos, derramava a mornidão pela natureza,
que parecia em êxtase, nos primeiros transportes de um desmaio. O vento emudecera e
algumas nuvens tangiam para oeste enfileiradas e imóveis no zênite, coloriam-se de rosa
refletindo os últimos raios do sol, que se escondia no ocaso.
253
A terra sente saudades da
época de fartura, como bem relata Patrocínio:
As últimas claridades do dia confundiam-se já com os primeiros brilhos
do luar. Pairava no ambiente uma tristeza sobrenatural, que se podia
chamar a melancolia de Deus. O carnaubal distante, já invadido pela
248
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 166-167.
249
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, p. 93.
250
Ibid.
251
Id. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento, p. 184-187.
252
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem, p. 19.
253
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 48-49.
130
noite, vergando com uma branda flexão aos assopros do vento vespertino,
espalhava uns frêmitos convulsivos e tristes, como se ele fosse a boca por
onde se espalhassem os soluços da esterilidade. Os bois magros e
trôpegos desciam para o leito do Jaguaribe à procura de água,
semelhantes a um bando de esqueletos recolhendo-se à vala mortuária, e
junto das poças, com as ventas muito dilatadas, bebendo a longos haustos
e ruminando a não satisfeita gula do pasto, mugiam longamente a sua
fome, entristecendo ainda mais a hora melancólica da tarde.
254
(Grifos
meus)
Portanto, a paisagem da melancolia na noite é imaginada pelos três autores da
literatura da seca para construir a paisagem sertaneja cearense. Mesmo assim, essa paisagem
noturna é efêmera, sendo esvaziada da literatura da seca da mesma forma como adentrou o
espaço sertanejo, para uns [...] a lua, já perdida para o poente alumiava com feixes de
argentina luz‖.
255
Enquanto que para outros a aurora assomava esplêndida como uma chuva
de brilhantes sobre um tapete solferino. A luz enfraquecida da lua punha o véu da virgindade
eterna da natureza sobre a face da terra e do céu e no horizonte a luz e o rubor do amanhecer
lembravam o pudor e a hesitação das noivas aldeãs.
256
As análises das obras Os retirantes, A fome e Luzia-Homem revelaram que a paisagem
sertaneja da literatura da seca é composta por várias imagens literárias, de diferentes matizes,
formas e tipos. Os autores José do Patrocínio, Rodolfo Tfilo e Domingos Olímpio
elaboraram um imaginário material da paisagem sertaneja, tanto durante a seca como nas
épocas invernosas. A preemincia solar é clara nas imagens produzidas e sua luz é elaborada
com um poder simlico ligado a matéria e à alma sertaneja. A terra é a matéria por
excencia da paisagem desses homens das letras do sertão, pois é o espaço dos reinos animal,
vegetal e mineral. Portanto, pode-se afirmar que esses literatos da seca inauguram outra
leitura da paisagem do sertão cearense em fins do século XIX e icio do século XX. Uma
leitura outra da paisagem alencarina.
Por fim, é preciso ter em mente que, apesar das rupturas na forma de conceber e
priorizar paisagens, a literatura da seca cearense deu continuidade à construção alencarina de
um sertão com centralidade na paisastica diurna, isto é, numa espacialidade da luz. A fim de
pensar a consolidação desse discurso paisastico da Terra da Luz na tradição literária
cearense, posteriormente se analisará duas obras ícones do Ceará do início do século XX.
254
PATROCÍNIO, José do. Os retirantes, v. 32., p. 56.
255
TEÓFILO, Rodolfo. A fome, p. 75.
256
PATROCÍNIO, José do. Op. cit., v. 32., p. 178.
A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875-1914)
Capítulo III
Leituras da tradição: o sublime, o belo e a matéria na paisagem sertaneja cearense
Este capítulo almeja analisar a consolidação da construção discursiva da paisagem
sertaneja em duas obras expressivas da literatura do Ceará no icio do século XX Terra de sol:
natureza e costumes do Norte (1912), de Gustavo Dodt Barroso e Aves de arribação (1914), de
Antônio Sales. Na intenção de perceber nesses textos a assimilão e atualização dos temas
paisagísticos elaborados pela tradição literária cearense rontica e da seca e, em especial, a
construção da espacialidade da Terra da Luz.
As obras Terra de sol: natureza e costumes do Norte e Aves de arribação - produzidas e
publicadas durante as duas primeiras décadas do século XX são significativas para pensar a
consolidação da paisastica literária cearense porque se constituem, praticamente, nos últimos
rebentos da produção regionalista que fala em nome do Estado do Ceará. Sendo assim, trata-se de
textos literários realistas e naturalistas tardios, responsáveis por cristalizar as especificidades da
paisagem sertaneja cearense. Uma vez que a partir da década de 1920 emerge uma nova produção
literária regionalista que passa a tomar a palavra em nome da nascente região Nordeste. Esse
novo regionalismo literário pode ser percebido em obras como A bagaceira
1
(1928), do paraibano
José Américo de Almeida, O quinze
2
(1930), da cearense Raquel de Queiroz e Vidas secas
3
(1938), do alagoano Graciliano Ramos.
Como afirma Albuquerque Júnior, o Nordeste é filho da ruína da antiga geografia do
país, segmentada entre Norte e „Sul.
4
A paisagem sertaneja nordestina foi composta pelo
espaço natural” do antigo Norte que cedeu lugar a uma nova região, o Nordeste. Segundo o
autor, a invenção do Nordeste se deu a partir da reelaboração das imagens e enunciados que
constrram o antigo Norte. Essa tarefa foi realizada por um novo discurso regionalista e como
resultado de uma série de práticas que foi possível com a crise do paradigma naturalista e
dos padrões tradicionais de sociabilidade que possibilitaram a emergência de um novo olhar em
1
ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 34. ed. rev. Rio de Janeiro: José Olympio, [s.d.].
2
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. São Paulo: Siciliano, 1993.
3
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 51. ed. Rio,São Paulo: Record, 1983.
4
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN, Ed.
Massananga; São Paulo: Cortez, 2001. p. 39.
relação ao espaço.
5
Ou seja, a crise identitária do antigo Norte abriu os espaços para a emergência
do Nordeste.
Antônio Sales e Gustavo Barroso se localizam no hiato da transição da identidade
cearense para a construção da identidade nordestina. Como afirma Albuquerque Júnior, o olhar
regionalista anterior ao Modernismo, preso a uma visão naturalista da arte, voltava-se à descrição
pormenorizada dos diferentes meios e tipos regionais. O Brasil era apenas uma coleção de
paisagens sem síntese ou estrutura imagético-discursiva que dessem unidade. Como fora o
arquivo de imagens produzidas sobre o espaço sertanejo cearense por meio de distintas
tenncias literárias e gerações de intelectuais. O Modernismo tomou os elementos regionais
em especial os que caracterizam o mundo natural do interior do Ceará como signos a serem
arquivados para poder posteriormente rearrumá-los numa nova imagem, dando-lhe unicidade e
identidade regionalizada.
É nesse cenário que faz possível se compreender a paisagem de Aves de arribação e Terra
de sol. Para tanto, tamm é preciso ter em mente o momento de emergência dessas obras e seus
discursos: o início do século XX. Um período da história brasileira que valoriza o ideal de
modernidade. Desde a emerncia da República brasileira, garantida pelos governos militares
durante a década de 1890, nesse período se enfatizava a necessidade de transformações
modernizantes, como a implementação de educação voltada ao progresso e mudanças sicas das
cidades, principalmente na capital nacional, o Rio de Janeiro. Durante os primeiros governos
civis, instaurados a partir de 1894, a política nacional e regional fomentava ainda mais os ideais
de modernidade e progresso, tanto que a modernização das diversas capitais estaduais da
Federação se dava pela tomada do bonde do processo de urbanização do Rio de Janeiro. Ao
mesmo tempo em que a modernidade se instalava nas áreas urbanas do país, se tentava dar a ler
melhor os espaços interioranos. Isto é, era necessário institucionalizá-los porque nesse momento
se aguçava a tentativa de domar, conquistar a natureza através da técnica. A literatura regionalista
participa deste projeto ao tomar duas posturas: ora participa dele construindo os espaços
interioranos, ora o questiona por meio da valorização do sertão, espaço ameaçado em seus
significados ante a ascensão da cidade e do homem modernos.
5
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes, p. 40.
A literatura cearense parece também se estruturar através dessas leituras contraditórias do
moderno. Aves de arribação é um romance com ênfase na cidade interiorana, onde a vida
cotidiana é representada muitas vezes pelo marasmo das práticas sociais sertanejas. Antônio Sales
contraditoriamente valoriza o homem instrdo que retorna da cidade moderna do litoral Alípio
e ao mesmo tempo renega algumas práticas sociais provenientes desse espaço, como a
libertinagem. Em outras palavras, vislumbram-se nessas relações paradoxais as próprias relações
de alteridade entre o campo e a cidade. Assim, mesmo que Sales trate de uma cidade, essa cidade
é no interior, senão no sertão pelo menos próximo a ele. Já Terra de sol valoriza o espaço
sertanejo em seus aspectos naturais, Barroso sente, por exemplo, a necessidade de destacar aonde
começa e termina o sertão, a fim de diferenciá-lo do litoral e da cidade moderna. Mesmo assim,
ajuda a essa mesma cidade moderna a conhecer o sertão cearense em seus mínimos detalhes de
clima, flora, fauna e riquezas minerais.
Portanto, o sertão é pensado por esses literatos a partir dessa relação com a modernidade,
quando pensado como alteridade, contraposto ao seu Outro, a cidade, como bem explicita Gilmar
Arruda em seu Cidades e Sertões. O autor traça uma discussão sobre a dicotomia destinada a
representar essas áreas em espaços simlicos distintos. Sendo o sertão o lugar do arcaico, do
incivilizado e do atraso, enquanto a cidade representaria o moderno, o civilizado e o progresso.
6
Contudo, ao valorizarem o sertão, Sales e Barroso questionavam essa lógica incutida no campo.
Para entender como essas iias se estabeleceram é importante pensar quais foram as motivações
e intenções desses dois autores ao construírem a paisagem sertaneja cearense em Aves de
arribação e Terra de Sol.
6
Ver ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões: entre a história e memória. Bauru, SP: EDUSC, 2000. (Colão
História).
1.1 Sales e Barroso: os remanescentes mosqueteiros intelectuais do sertão
O icio do século XX era o momento em que transitar pelas regiões do país se tornava
mais rápido e rotineiro, devido aos vapores, ferrovias e estradas em construção. Dessa maneira,
Antônio Sales e Gustavo Barroso foram homens que conseguiram manter intensos contatos com
os literatos intelectualizados da geração de 1870, tanto do Ceará quanto do Rio de Janeiro.
Assim, é possível tomar a ambos como herdeiros da tradição da chamada Geração 70,
vinculados ao estilo literário realista naturalista de inspiração regional. Assim como os literatos
de 1870, os dois autores escreviam sob égide da ação social, uma literatura politicamente
engajada, como diz Sevcenko, tomando a literatura como missão,
7
denunciando, descrevendo e
ansiando mudanças para o espaço sertanejo, como também anunciando as riquezas particulares
desse espaço sertanejo cearense. Assim, esta literatura se esboça como um discurso de ação
social. Como afirma Sevcenko, essa literatura de ação social esteve vinculada durante
as duas primeiras décadas deste século [XX] experimentaram a vigência e o
predomínio de correntes realistas de nítidas intenções sociais. Inspiradas nas
linhagens intelectuais características da Belle Époque utilitarismo,
liberalismo, positivismo, humanitarismo faziam assentar toda a sua energia
sobre conceitos éticos bem definidos e de larga difuo em todo esse período.
Assim, abstratos universais como os de humanidade, não, bem, verdade,
justiça, operavam como os pades de refencia básicos, as unidades
semânticas constitutivas dessa produção artística.
8
Dessa maneira, o engajamento se torna a condão ética do homem de letras.
9
Além
disso, o caráter mais marcante dessas gerações de pensadores e artistas suscitou o florescimento
de um ilimitado utilitarismo intelectual tendente ao paroxismo de atribuir validade às formas
de criação e reprodução cultural que se instrumentalizassem como fatores de mudança social”.
10
Por essa razão o Realismo e o Naturalismo são presentes nas escritas de Aves de arribação e
7
Ver SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
8
Ibid., p. 22.
9
Ibid., p.79.
10
Ibid., p.80-81.
Terra de sol uma vez que, como se analisou anteriormente, essas tenncias literárias foram
constrdas pela verdade moderna que propiciava ao literato o engajamento político-social.
O Ceará é a terra natal dos autores de Aves de arribação e Terra de sol. Annio Sales
nasceu em Parazinho, município de Paracuru em de 1868, enquanto Gustavo Dodt Barroso
nasceu em Fortaleza em 1888. Vinte anos separam o nascimento de um em relação ao outro,
vinte anos significativos. Nas proximidades do nascimento de Sales e na época em que se deu a
sua aprendizagem das primeiras letras na terra natal Soure (Caucaia), vários dos participantes da
“Geração 70 como Patrocínio, Tfilo e Olímpio estavam se preparando para constituírem
um mundo movido pelo intelecto ativista. Annio Sales participa de um grupo de literatos que
floresceu no ano de 1886, fundado por João Lopes (um dos participantes da Academia Francesa
de Letras), chamado de O Clube Literário. Dentre os participantes do clube havia nomes
consagrados como Juvenal Galeno, Antônio Bezerra, Annio Martins, Justiniano Serpa, Virgílio
Brígido. Antônio Sales emerge no clube como um estreante junto a outros literatos realistas:
Rodolfo Tfilo, Farias Brito, José Carlos Júnior, Xavier de Castro.
11
Durante as reuniões do
clube (ora em casa de Tos Pompeu, ora de Rocha Lima) eram repassadas as iias do século, e
estudados os autores do dia, como os citados Comte, Taine, Darwin, Spencer, Buckle e Ratzel, e
mais Schopenhauer, Haeckel, Littré, e ainda Vacherot, Quinet, Burnouf, Jacolliot, Renan e outros
luminares das novas iias.
12
Em 1888, ano de nascimento de Barroso, Antônio Sales consegue a nomeação para um
cargo da Intenncia de Socorros Públicos de Fortaleza. Portanto, entrando para a vida política,
alcançou importantes cargos ao mesmo tempo em que realizava a sua atividade jornastica e
literária. a época do engatinhar de Barroso, Sales participa de outra agremiação literária no
Ceará: A Padaria Espiritual. Sabe-se que Antônio Sales e Rodolfo Tfilo fizeram parte do
movimento literário de forma expressiva, sendo Annio Sales o idealizador da sociedade e quem
lhe redigiu o Programa de Instalação
13
, tornando-se o primeiro-forneiro (cargo equivalente a
secretário), enquanto Rodolfo Tfilo galgou a função de “padeiro-mor, ou seja, presidente da
Padaria. Segundo Tristão de Athayde
14
, A Padaria Espiritual foi um movimento emero de
renascença literária proposta no Ceano final do século XIX, mas que tinha por objetivo discutir
11
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense. Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1976.p. 90-91.
12
Ibid., p.71.
13
Ibid., p.151-157.
14
SALES, Antônio. Aves de arribação. Fortaleza: Imprensa Universitária do Cea, 1965. p. 19-22.
leituras e produzir novas iias, longe dos ideais burgueses do período. O movimento defendia e
pregava, a partir do seu próprio estatuto de criação, uma produção literária de estilo simples em
que se proibia a utilização de termos estrangeiros ou animais que não fossem nativos do Brasil.
Além disso, o movimento se caracterizava por ser anti-clerical, pois recriminava as ações
da Igreja e se considerava libertário, porque tinha aversão às instituições com poder de represo,
como por exemplo, da polícia. Entretanto, a agremião tamm ambicionava criar uma literatura
genuinamente cearense, propunha a luta por uma ampliação do ensino à “infância desvalida,
através da promessa de trabalhar por tornar obrigatória a instrução pública primária e além dessas
propostas, defendiam transformações urbanas e a conservação da capital da Terra da Luz,
Fortaleza. Segundo nzio de Azevedo se pode dividir a exisncia da Padaria Espiritual em
duas fases: a primeira, cheia de verve, timbrando acima de tudo pela pilria, de 1892 a 1894; a
segunda, menos brincalhona e mais voltada para os trabalhos de maior fôlego, de 1894 a 1898,
ano da extinção do grêmio.
15
A Padaria Espiritual possa uma postura radical e nacionalista, características comuns
aos movimentos de fins do século XIX que tinham por base os ideais positivistas. A agremiação
foi importante, em termos literários, por conta da sua participação na consolidação do Realismo e
no surgimento do Simbolismo no Ceará. Am disso, o movimento conseguiu outras conquistas,
por exemplo, tinha como um dos principais objetivos a criação de um periódico que pudesse
veicular a difusão dos ideais da agremiação, concretizando esse ideal com o primeiro número do
jornal O Pão, em 1892. Contudo, a sua produção foi suspensa no sexto número, mas reapareceu
em 1895, tendo pouco tempo de existência, pois a agremiação, como afirmava Antônio Sales,
“morreu de caquexia pecuniária.
Após a participação na Padaria Espiritual Annio Sales parte para o Rio de Janeiro em
1897, trabalhando no Tesouro Nacional e no rem-fundado Correio da Manhã. Na capital
nacional, manteve contatos com rodas de intelectuais, chegando a mesmo a conviver com os
fundadores da Academia Brasileira de Letras. Em 1903, publica no jornal Correio da Manhã o
romance Aves de arribação como folhetim entre os 15 de janeiro e 6 de maio de 1903. O
romance apenas teve sua primeira edição em livro, impressa na capital portuguesa, em 1914.
16
Em 1920 retorna ao Cea, onde chegava bafejado pelo sucesso do lançamento de Minha Terra.
15
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense, p.158.
16
Id. Aspectos da literatura cearense, Fortaleza: Edições UFC, 1982. p. 16; MARTINS, Wilson. Hisria da
inteligência brasileira. v. V (1897-1914). São Paulo: T. A. Queiroz, 1996. p. 191.
Dois anos depois contribui para a reorganização da Academia Cearense de Letras. A partir de
então fixou moradia em Jacarecanga, em casa modesta, quando faleceu no dia 14 de novembro de
1940.
17
Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt Barroso da Cunha
18
passou sua infância e parte de
sua juventude no Ceará. Em 1906, enquanto Antônio Sales já possa prestígio no meio potico,
jornalístico e literário em vel regional quiçá nacional Barroso termina seus estudos sicos
no Liceu do Ceará. Todavia, nesse mesmo ano, Barroso utilizando o pseunimo Natulilus
escreve seu primeiro artigo no periódico cearense A República, órgão governamental que
sucedera O Libertador época em que tamm contou com a colaboração de Domingos Olímpio.
Ao comentar sobre o seu primeiro pseunimo literário, Barroso se inseria no universo literário
de sua formação: Maupassant deliciava-me. Eça de Queiroz deslumbrava-me. Recitava
Gonçalves Dias, Castro Alves, Bilac. Mas o pseunimo escolhido mostrava que meu espírito
não se desprendera de todo da admiração de Júlio Verne”.
19
Essa estia na imprensa cearense seria apenas o início de uma longa trajetória jornastica
que incluiria o posto de redator de jornais tanto de Fortaleza quanto do Rio de Janeiro. Outros
pseunimos, tais como João do Norte, Jotaenne e Cláudio França foram usados por Barroso em
suas atividades literárias. O autor participou da cena cultural de sua cidade, escrevendo para
vários jornais locais, ajudando inclusive a fundar os jornais O Garoto, O Equador, O
Regenerador e colaborando em outros, tais como: O Unitário, O Colibri, O Figança e O
Demolidor. Quando ainda redator do Jornal do Ceará de 1908 a 1909, escrevia para a imprensa
do Rio de Janeiro, sob pseunimo João do Norte, colaborando com as revistas O Malho (1902)
e Careta (1907) na época que ainda vivia em Fortaleza. Essas revistas também eram conhecidas
pelo interesse em produzir reportagens sobre eventos do mundo moderno.
20
17
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense, p.133; BÓIA, Wilson. Antonio Sales e sua época. Fortaleza: BNB,
1984.
18
Nome completo de batismo do autor. Ver BARROSO, Gustavo. Liceu do Ceará. Rio de Janeiro: Getúlio M.
Costa, 1940. p. 23.
19
BARROSO, Gustavo. Memórias de Gustavo Barroso. Ceará: Governo do Estado do Ceará, 1989. p. 253.
20
Ângela de Castro Gomes, por exemplo, identifica a cobertura jornalística da moderna Exposição Nacional
Comemorativa do centenário da Abertura dos Portos do Brasil ao Comércio do Mundo pelas revistas O Malho e
Careta em 1908. Ver GOMES, Ângela de Castro. Economia e trabalho no Brasil Republicano. In: GOMES, Ângela
de Castro, PANDOLFFI, Dulce Chaves e ALBERTI, Verena. (coord.). A República no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira: CPDOC, 2002. p.225-237.
Em 1907, durante a transição para a vida jornalística, Barroso iniciou a Faculdade Livre
de Direito do Ceará, entretanto, o autor se mudou para o Rio de Janeiro em 1910 em busca de
novos ares intelectuais. Sendo obrigado a transferir o curso da Faculdade de Direito de Fortaleza
para Faculdade Livre do Rio de Janeiro. Em 1912 concluiu seus estudos, colando grau como
bacharel em ciências jurídicas e sociais. Entre 1911 e 1913 trabalhou no Jornal do Comércio do
Rio de Janeiro outrora espaço de trabalho de José do Patrocínio e Domingos Ompio. Nesse
meio tempo, Barroso estreou na literatura, aos 23 anos, usando o pseunimo de João do Norte,
com o livro Terra de sol, ensaio sobre a natureza e os costumes do sertão cearense. Com a
publicação da obra em 1912 o autor se lançou no mundo literário e nesse mesmo se filia ao
Partido Republicano Conservador (PRC), pelo qual é eleito deputado federal do Ceará (1915-
1918).
Após esse momento regionalista Barroso se tornou um intelectual nacional. Ocupou
cargos políticos e administrativos e, como secretário da Superintenncia da Defesa da Borracha,
no Rio de Janeiro em 1913, fez parte ativamente também da Academia Brasileira de Letras e
outras academias de outros países a ele afins, Inglaterra e Portugal. Além disso, foi presente no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e em várias de suas seções estaduais. Escreveu uma
vasta obra composta de 128 livros, tratando dos mais diversificados temas: biografias, memórias,
política, arqueologia, museologia, economia, crítica e ensaios, além de dicionário e poesia.
Permaneceu com suas atividades potico-intelectuais até falecer no Rio de Janeiro em 1959.
21
Pensando as trajetórias de vida profissional e intelectual de Annio Sales e Gustavo
Barroso é possível estabelecer algumas conclusões. Ambos realizaram atividades jornalísticas,
políticas e literárias. No campo jornalístico trabalharam em importantes edões de jornais do
Ceará e do país. Quanto à potica, até o momento da emergência das obras Aves de arribação e
Terra de sol, a praticaram essencialmente na Terra da Luz. Entretanto, foi pela literatura que
galgaram visibilidade regional e nacional.
Todavia, algo mais pode ser percebido. Antônio Sales construiu sua formação de literato
por meio de sua participação em clubes e agremiações literias, mantendo estreito contato com
os representantes da “Geração 70 do Ceará, em especial Rodolfo Tfilo, a quem o autor dedica
o seu único romance editado: “A Rodolpho Théophilo, o fiel e poderoso intérprete da alma
21
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense, p.140-141.
cearense, com viva admiração e profundo afeto é dedicado este livro. A.S..
22
Assim, é possível
dizer que Sales herda da tradição regionalista realista naturalista a sua forma de conceber
literatura, até porque, como afirma a sua pupila Raquel de Queiroz, em prefácio à terceira edição
do livro em 1965, [...] êle que estava sempre informado do livro recente, das novidades
editoriais de Paris ou do Rio.
23
A obra Aves de arribação é motivo de discuso entre
intelectuais cearenses e nacionais no que diz respeito a sua afiliação estilística. Afrânio Coutinho,
por exemplo, a partir do posfácio de Tristão de Ataíde à segunda edição em 1929 de Aves de
arribação, afirma que Antônio Sales revela centelhas do gênio de Flaubert, imprimindo
universalidade às personagens desse romance sem, no entanto, perderem eles as características de
origem. Coutinho, partindo de Herman Lima, relata que Aves de arribação é uma fiel
interpretão literia da vida rural cearense em algumas cenas do sertão e das pequenas cidades
do interior.
24
Entretanto, é tamm pertinente se relativizar a presença das tenncias realista e
naturalista na obra, como faznzio de Azevedo.
25
O interessante é tomá-la como uma produção
herdeira dessas tradições literárias. Ora, se Sales possui seu lastro literário na “Geração 70, com
certeza o autor se inteirou da produção da geração anterior: a romântica. Um dos ideais mais
almejados pelos literatos modernos era destronar o movimento romântico no Brasil e, no Ceará,
em especial o de José de Alencar. Além disso, o romance possuiu dois momentos de emergência:
primeiro em 1903, em folhetim; outro em 1914, em edição livresca. Esse duplo surgimento do
romance representa que a temática regionalista abordada ainda é interessante ao público leitor
brasileiro. O sertão cearense de Sales aparece e reaparece em circunstâncias diferentes, com a
intenção de apresentar o Outro sertão: o da vida regular do campo.
O romance quando publicado em folhetim é passível de um a grande receptividade, pois o
folhetim é, desde o seu nascimento, o romance publicado no rodados jornais, por sua vez,
vendidos a preços baixos e com grande tiragem, sofrendo grande inflncia da produção
jornalística voltada para o gosto do público urbano. Segundo Muniz Sodré:
22
Ver SALES, Antônio. Aves de arribão.
23
Ibid.
24
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.2. Rio de Janeiro: Editorial do Sul Americana S.A., 1955. p. 173.
25
Ver AZEVEDO, Sânzio de. Aspectos da literatura cearense, p. 15-42.
A expressão (roman-feuilleton) origina-se no jornal La Presse, de Émile de
Girardin, por volta de 1836. O La Presse simboliza a imprensa
industrializada francesa do século XIX, pelo uso mais racional da publicidade
e de técnicas avançadas de impreso. A essa imprensa de grande tiragem,
germe da moderna indústria cultural, nasce atrelado o folhetim aquilo que
Flaubert chamaria (em Bouvard et Pécuchet) deliteratura industrial”. Trata-
se, na verdade vale acrescentar -, de uma literatura não legitimada pela
escola ou por instituições acadêmicas, mas pelo próprio jogo de mercado.
(Grifos do autor)
26
No Brasil de fins do século XIX e icio do século XX, os romances em folhetim
ganharam espaço e aceitação do público leitor de jornal. Por essa razão, Aves de arribação se
constitui em um romance importante para pensar o sertão cearense. A edição em livro em um
segundo momento, comprova a relevância do texto, até porque, segundo o próprio Sales,
27
não
houve mudanças significativas na trama apresentada no jornal Correio da Manhã do Rio de
Janeiro e a obra publicada em 1914.
Enfim, a trama de Aves de arribação se passa no sertão cearense, quando nos primeiros
anos da República, chegava a Ipuçaba, cidade do interior cearense, como promotor da Comarca o
Dr. Alípio Flávio de Campos, sobrinho do Padre Balbino; recebido festivamente, logo o coletor,
Asclepíades, deseja casá-lo com sua filha, Florzinha. Acontece que Bilinha, professora blica,
praciana como Alípio, tamm se interessa pelo bacharel, cujas simpatias pendem ora para uma,
ora para outra. Afinal, entrega-se a Bilinha o conquistador, e fogem ambos, como aves de
arribação, ficando Florzinha, que hesitara em aceitar o bacharel, esperando triste e inutilmente
pelo casamento que não se realiza. Tudo isso tendo como pano de fundo a paisagem interiorana
descrita amiúde e as intrigas da vida potica sertaneja.
28
Quanto a Gustavo Barroso, é interessante perceber que a sua formação como intelectual e
literato tamm comungou dos ideais da geração romântica e realista naturalista. O Romantismo
foi presente em suas leituras de mundo, no nimo, por herança familiar. Uma vez que o próprio
autor reconhece a inflncia que sofreu da tia que o criou, irmã mais velha de seu pai, “(Ela)
tinha bastante leitura e o espírito romântico da cultura de 1860. Falava muito em Lamartine, em
26
SODRÉ, Muniz. Best-seller: A literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1985. p. 10.
27
Ver AZEVEDO, Sânzio de. Aspectos da literatura cearense, p. 35-40.
28
Ibid., p. 16.
Victor Hugo, na Revolução Francesa, em D. Pedro II, Joaquim Nabuco e Maciel Pinheiro.
29
A
sua afiliação a “Gerão 70 realista e naturalista foi opcional e, mais ainda, hereditária, pois seu
pai Annio Felino Barroso fazia parte de um círculo de intelectuais constitdo nos anos setenta
do século XIX: a Academia Francesa de Letras.
Surgida da crítica rontica que havia se esvaziado, baseada na intuição e no
subjetivismo, e os pensadores europeus buscavam outros meios de interpretação mais coerente
com o século. Segundo Sânzio de Azevedo, a designação de “Academia Francesa nasceu de um
gracejo de Rocha Lima, talvez nos últimos tempos da agremião, inspirado no fato de todos
beberem as novas doutrinas principalmente na França, ao passo que a chamada Escola do Recife,
de Tobias Barreto e Sílvio Romero, era francamente germanófila. O movimento foi inaugurado
em 1873 com o lançamento do jornal Fraternidade e esteve intimamente ligado ao jornal maçom
e à Escola Popular, destinada a ministrar aulas gratuitas aos operários.
30
O pai de Barroso
juntamente com Capistrano de Abreu, Rocha Lima, Childerico de Faria, e Araripe Jr. fundaram
uma academia influenciada pelo positivismo, evolucionismo e materialismo, que questionava a
cultura herdada e o sistema vigente à época, isto é, contrária ao Romantismo e o Império.
Por essas razões é que Wilson Martins, em sua História da inteligência brasileira,
sublinha a forte impregnão do modelo realista e naturalista euclydiano no estilo de escrita da
obra Terra de Sol de Gustavo Barroso, situando a obra e o autor na encruzilhada comum em que
se encontraram o regionalismo, o nacionalismo, o folclore e a história. A proximidade do estilo
euclydiano se encontra na própria harmonização entre ciência e literatura e a identificação do
escritor com a natureza, além do apego a descrição, característica essa marcante em Barroso por
conta do seu olhar etnográfico, preocupado em registrar as especificidades da cultura nortista.
31
Terra de Sol de Gustavo Barroso foi escrito em 1911 e publicado em 1912. Para Menezes,
a obra se caracteriza como um ensaio sociogico sertanejo, sendo planejada em cinco partes: I
O meio; II Os animais; III O homem; IV A arte; e V A lenda. Subdivididas em subpartes
ou capítulos que vão compondo a tela panorâmica da natureza e costumes do então Norte, como
reza o subtítulo da obra. Sumariamente, a temática nuclear do livro tem como pano de fundo o
sertão cearense, retratados na terra, em seu peculiar e recorrente drama climático, com suas
29
BARROSO, Gustavo. Coração de Menino. Rio de Janeiro: Getúlio M Costa. 1939. p.13.
30
AZEVEDO, Sânzio de. Literatura cearense, p.71.
31
Wilson. Hisria da inteligência brasileira. v. V (1897-1914). p. 501-502.
seelas e marcas, estigma de migrações e sofrimentos; mas tamm em seus viventes, bichos e
gentes, com suas tradições, costumes, crenças e manifestações culturais e esticas. O autor é
muito preocupado em definir a singularidade e riqueza do povo cearense.
32
As obras Aves de Arribação e Terra de sol: natureza e costumes do Norte fazem parte da
tenncia literária regionalista, em que segundo alguns escritores do final do século XIX e início
do século XX, o verdadeiro Brasil era o sero, que ainda conservava intactos traços da cultura e
da natureza brasileiras. Procurava-se então fixar traços peculiares de determinadas regiões do
país. Segundo Alfredo Bosi, as várias formas de sertanismo (romântico, acadêmico e até,
modernista) que têm sulcado as nossas letras desde meados do século passado [século XIX],
nasceram do contato de uma cultura citadina e letrada com a matéria bruta do Brasil rural,
provinciano e arcaico.
33
Como afirma apropriadamente Eduardo Menezes, responvel pela
introdução da última edição do livro Terra de sol:
Percebo alguns motivos fortes para a gênese deste livro no espírito de seu autor.
Antes de tudo, é mister reconhecer que a Fortaleza, do período crucial e
primordial de sua infância ao final do culo XIX, era a bela e pequena capital,
de ares cosmopolitas, mas intensamente enraizada nas tradições interioranas e
populares de sua província, e espacialmente entremeada de sítios e chácaras que
faziam a transição próxima e imediata para o extenso mundo rural dominante,
assegurando-lhe contacto profundo com a cultura do sertão. Além disso,
compunha o horizonte cultural da inteligência brasileira das últimas décadas do
oitocentos e primeiras do século XX forte inclinação para os estudos de nossas
origens nacionais e, em especial, os referentes às nossas diversificadas
manifestações folclóricas.
34
A partir dessas idéias é possível concluir que Antônio Sales e Gustavo Barroso possram
contato tanto com a literatura romântica, realista e naturalista nacional quanto com a francesa.
Dessa maneira, a literatura de José de Alencar e dos literatos da seca José do Patrocínio,
Rodolfo Tfilo, Domingos Ompio foram não somente lidas, mas serviram de base ao
conhecimento do mundo sertanejo por parte de Sales e Barroso. As leituras do espaço sertanejo
cearense partem de discursos anteriores, seja para negá-los, afirmá-los ou mesmo atualizá-los.
32
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003.
p.13-14.
33
BOSI, Alfredo. Hisria concisa da literatura brasileira. 38 ed. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 141.
34
BARROSO, Gustavo. Op. cit. p. 10.
Nesse sentido, como os últimos mosqueteiros intelectuais que tomam a palavra pela
identidade do espaço cearense, Antônio Sales e Gustavo Barroso consolidam a paisagem
sertaneja cearense e, o fazem tomando como refencia a herança da literatura regionalista
cearense das gerações rontica, realista e naturalista de fins do século XIX e icio do século
XX. Todavia, isso não quer dizer que seus discursos sejam uma mera cópia de um discurso
anterior. Ambos produzem paisagens em suas obras, cada qual com sua especificidade,
individualidade até mesmo porque seus discursos possuem caráter acontecimental
35
,
entretanto, os temas abordados para descrever a paisagem sertaneja cearense, em grande medida,
já tinham sido imaginadas e sistematizas na paisagem alencarina e da literatura da seca. Dessa
maneira, no momento em que vem à tona Aves de arribação e Terra de sol o cânone paisastico
do sertão cearense estava estabelecido, mas isso não quer dizer que ele estivesse consolidado.
Nesse sentido, se observa que a produção do discurso literário de Sales e Barroso é
controlada, selecionada, organizada e redistribda, ou seja, interditada pelas formações
discursivas da literatura até então existentes que representavam a paisagem sertaneja cearense: a
romântica alencarina e a realista naturalista da geração de 1870.
36
Por essa razão, pode se
concluir que os dois autores em grande medida tiveram a ordem do seu discurso literário
cerceado devido as suas obras repousarem num “já-dito, pois conforme Foucault,
[...] todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que
este já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já
escrito, mas umjamais-dito, um discurso sem corpo, uma vozo silenciosa
quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro.
Supõe-se, assim, que tudo que o discurso formula já se encontra articulado
nesse meio-silêncio que lhe é pvio, que continua a correr obstinadamente
sob ele, mas que ele recobre e faz calar”.
37
Antônio Sales e Gustavo Barroso se calcaram no discurso formulado, em grande
medida, por José de Alencar, José do Patrocínio e Domingos Olímpio. Da formação discursiva
35
O discurso possui tanto individualização quanto o acontecimento, isto é, não se repete devido o tempo e o espaço
os tornar únicos. Ver VEYNE, Paul. Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história. 4. ed. Brasília:
UNB, 1998. p. 21-2.
36
Ver FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10 ed. São Paulo: Loyola, 2004.
37
Id. A arqueologia do saber. 6.ed Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. (Colão Campo Teórico). p. 28.
romântica herdaram em seus romances uma determinação espacial em três possibilidades: cidade,
campo, selva; ou por outra, vida urbana, vida rural, vida primitiva. Por isso suas obras, m fome
de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar o Ceará. O legado romântico consiste para esses
realistas e naturalistas tardios menos em tipos, personagens e peripécias do que em certas regiões
tornadas literárias, a seqüência narrativa inserindo-se no ambiente, quase se escravizando a ele.
Além disso, permaneceu a vocação ecológica manifestada por uma conquista progressiva do
território.
38
A formação discursiva realista e naturalista possibilitava a esses literatos colocar em
relevo a cor local, a inflncia ambiental, na formação da personagem local. A terra é a
verdadeira personagem dessa literatura. Considerava as diferenças entre os espaços do país como
um reflexo imediato da natureza, do meio e da raça. As variações de clima, de vegetação, de
composição racial da população explicavam as diferenças de costumes, hábitos, práticas sociais e
políticas. Assim, criou-se a convicção de um laço determinista entre a terra e a conduta humana,
que foi uma formulação brasileira da abordagem realista naturalista para o problema das relações
entre o homem e o ambiente. Nessa perspectiva, a literatura regionalista brasileira é uma
verdadeira saga da terra e da sua vitória sobre o homem.
39
Para estabelecer a alise das obras Aves de arribação e Terra de sol será dado destaque
as partes de suas tramas que constroem a paisagem do sertão cearense. O intuito aqui não é
pensar as paisagens das cidades interioranas, mas sim o campo. A etapa a seguir do capítulo
buscaperceber como os temas já discursivamente apresentados nas obras O sertanejo (1874),
Os retirantes (1879), A fome (1890) e Luzia-Homem (1903) são assimilados e atualizados nas
obras de Antônio Sales e Gustavo Barroso. Entretanto, os temas novos também serão destacados,
pois esses autores possuem individualidade e criatividade próprias, negar isso seria não tomá-los
como literatos e como sujeitos históricos.
As análises serão realizadas de forma separada porque Aves de arribação é um romance,
enquanto que Terra de Sol é um ensaio sobre a natureza e os costumes do norte. Isto é, são obras
de estruturas diferentes para se pensar nelas como uma unidade. Contudo, isso não quer dizer que
os temas abordados por cada um de seus autores sejam totalmente diferentes. Pelo contrário,
tratam de temas que na verdade já foram explorados pelas gerações de literatos anteriores do
Ceará. Enfim, o importante é perceber que todas essas vozes se uniram para construir o espaço
paisagístico cearense e, ao mesmo tempo, criar a identidade sertaneja do Ceará.
38
CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. v. 2. Belo Horizonte: Itatiaia
Ltda, 2000. (Literatura Brasileira: História e ctica). p. 101.
39
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. v.2. Rio de Janeiro: Editorial do Sul Americana S.A., 1955. p.32.
1.1.1 Aves de arribação e suas paisagens
A escrita paisagística de Aves de arribação é uma tentativa de relativização, senão
negação, da paisagem sertaneja cearense constrda pela produção literária da seca. Para realizar
tal empreendimento, Antônio Sales acabou por retomar os padrões paisagísticos de sublimidade e
beleza de O sertanejo (1875), de José de Alencar. Todavia, o autor tamm dialogou com a
imagística materialista produzida por José do Patrocínio, Rodolfo Tfilo e Domingos Olímpio a
partir do problema das secas por exemplo, com Os retirantes (1879), A fome (1890) e Luzia-
Homem (1903) , a mesmo para se contrapor a ela, pois segundo o próprio Sales: “não existe
a seca no sertão.
40
Sales revela a sua ojeriza à seca através de sua personagem Asclepíades:
Eu era bem criança, mas ainda me lembro dos horrores da sêca de 77, e não estou disposto a vê-
los outra vez. Colocando-me no Sul, virei ao Ceará a passeio.
41
Ora, é o próprio autor que se
relembra da seca, memórias de quando ainda criança presenciava os dramas da seca de 1877 em
Parazinho, sua terra natal. Am disso, é tamm Sales que se muda para o Rio de Janeiro em
1897, passando por lá uma longa temporada, voltando ao Ceaem 1920. No retorno, o
literato não mais residiria no torrão onde presenciou a seca, mas sim em Jacarecanga, área urbana
de Fortaleza.
As paisagens em Aves de arribação, assim como nas demais obras analisadas nesse
estudo, são constrdas em sua maioria pelo dia. O sol novamente é tido como um atuante nas
cenas sertanejas, tanto o sol elemento fogo provocador da seca quanto o sol que compõem a
paisagem harmônica, equilibrada do mundo natural sertanejo. Um sol que de todo jeito a
perceber e sentir a continuidade de uma espacialidade da luz.
A paisagem sertaneja de Aves de arribação se inicia com um sol que apresenta as serras,
como Sales afirma em certa parte do romance: “uma grande nuvem parda velava o sol, mas era já
intensa a claridade que banhava tudo, destacando-se ao longe os cabeços da Serra do Tripiá, num
fulvo poeiramento de ouro.
42
As serras foram um dos temas mais importantes na construção
paisagística do sertão cearense, tanto por Alencar quanto pelos literatos da seca. Não é a toa que o
40
CÍCERO, João da Costa Filho. A Padaria Espiritual: cultura e política em Fortaleza no final do século XIX
(1892-1898) 2007. Dissertação (Mestrado em História Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. p.160.
41
SALES, Antônio. Aves de arribação. Fortaleza: Imprensa Universitária do Cea, 1965. p. 287.
42
Ibid., p. 40.
autor retoma as serras na paisagem sertaneja com a mesma iia de espaços de resistência à seca:
O Ipuçaba nascia além, do seio da Serra Negra, cujos cabeços arrepiados e soturnos fechavam
ao longe aquêle imenso horizonte de matas novas, posteriores à grande seca, à cuja devastação só
resistiram poucas e venerandas árvores de imensas raízes que iam buscar umidade nas camadas
profundas do solo.
43
Entretanto, da mesma forma que o discurso da literatura da seca descreve, o
sertão serrano continua a sentir as conseqüências da seca: “Era nessa região encapoeirada que
demoravam as situações pastoris, mais raras agora, pois algumas tinham ficado abandonadas para
sempre, depois daquela espantosa catástrofe.
44
Todavia, o sertão surge no discurso de Sales como um ambiente benéfico, através do olhar
da personagem Apio que viaja em cavalgada a caminho de Ipuçaba:
Depois, pom, que montou a cavalo no dia seguinte e entrou a galopar
através dos campos por onde as pompas do verde já se anunciavam pela
folhagem nova das caatingas e pela babugem finas dos vargedos, começou o
seu organismo a vibrar à ação estimulante do ar livre, seu espírito foi-se
abrindo aos efvios capitosos das coisas, como se seu ser distendesse de
repente uma raiz aentão atrofiada e a mergulhasse com volúpia no seio da
Natureza.
45
(Grifos meus)
A Natureza descrita pelo autor é aquela de poder essencial, a Terra Mãe que com sua
energia inebriante possibilita o homem rejuvenescer. O sol emerge como um objeto reo capaz
de gerar a alegria no espaço terrestre. Tome-se como exemplo a criação do autor da imagem do
bonito dia de domingo: O dia estava radioso. Chovera à noite, e o u amanhecera fresco e
limpíssimo, com um brilho doce e úmido de cetim novo. Pouco depois o sol se velara sob uma
larga barreira de cúmulos flocosos que se dilatavam em mirantes de prata pelo horizonte acima;
mas depois um vento rijo varrera tudo, e nem a mais ligeira nuvem pincelara o firmamento.
46
É possível se identificar nessa literatura resqcios do desenvolvimento de um bucolismo
que introduz tons e imagens de um tipo ideal de sertão, há quase invariavelmente uma teno
43
SALES, Antônio. Aves de arribação. p. 112.
44
Ibid., p. 112.
45
Ibid., p. 55.
46
Ibid., p. 67.
entre outras formas de experiência: entre verão e inverno; entre deleite e perda; colheita e
trabalho; entre cantar e viajar; entre passado ou futuro e presente.
47
Esse dia benfazejo revela as emoções dos seres do mundo animal: a emoção só não
atingira às graúnas, que, do alto dos tamarindeiros, garganteavam ao cair da tarde notas sublimes
ressoando cristalinamente sob o céu purpureado que se arqueava sôbre a cidade com uma
majestade feita de serenidade e de mistério.
48
A água é descrita em sua significância de pureza, ou seja, com sua capacidade de
regeneração, de criação e união harmônica dos reinos vegetal, mineral e animal. As plantas e os
animais são percebidos com suas cores melicas, em especial o ouro sempre relacionado a uma
força imaginante da riqueza, como se vê abaixo:
Ia correndo abril, o mês das águas mil”, quando os botões se intumescem
para rebentar na esplêndida floração de maio. Os roçados sofriam a primeira
capina, que os desbravava do ervaçal daninho, alastrado invasoramente por
entre as carreiras do milho, afogando no embastido das suas hostes intrusas
os feijoeiros salpicados de fres roxas com feitio de borboletas e os
jerimunzeiros que se abriam em campânulas de ouro fulvo.
49
Na passagem anterior, as “flores e borboletas são grandes representantes do espetáculo
do belo. As flores pela sua efemeridade e fragilidade. As borboletas por serem insetos pequenos,
de coloridos variados, singelos, frágeis que geralmente não causam horror ou medo ao sertanejo.
A água também é descrita em mistura com o solo, transformando a natureza em toda a sua
potencialidade na seguinte passagem:
saturado d‟água, o solo não emitia êsse calor de cio que lhe irradia das
entranhas ao contato das primeiras chuvas. Os rios corriam rgidos, na
majestade soberana das grandes fôrças, atingindo a orla das altas ribanceiras,
de onde se debruçavam os mofumbos folhudos e os canoés alongavam as
raízes longas e retilíneas como os tubos de um órgão. O marulho surdo das
águas, rolando sôbre as lajes do leito, acompanhava o grande ro das aves,
47
Ver WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras,
1989. p. 33.
48
SALES, Antônio. Aves de arribação. p. 77.
49
Ibid., p. 109.
cujas vozes, diferentes de som e de expressão, se harmonizavam no mesmo
hosana festivo em honra da estação bendita.
50
A paisagem sertaneja de Sales explora ainda mais os elementos de sublimidade e beleza
da paisagem alencarina. Quando do equilíbrio do mundo natural, as aves vão sendo descritas em
sua multiplicidade e riqueza, no momento que vai alta e radiosa a manhã; estão a postos todos os
cantores da mata.
51
Por essas horas parece,
[...] que entre as aves o feitio físico corresponde a um dado temperamento
imutável para cada coletividade do mesmo tipo. Da ordem à família, da
família ao grupo os caracteres vão-se acentuando com uma precio infalível.
Por um pássaro se conhecem os requisitos e hábitos de sua comunidade; não
há que enganar-se com falsas aparências, como acontece na sociedade
humana. Nem precisa vê-los; basta ouvir-lhes a linguagem sempre a mesma e
sempre nova, na confusão maviosa de uma Babel musical.
52
A partir do que Sales concebe em suas descrições pormenorizadas dos tipos de aves e suas
características, é possível pensá-las por seus nculos à beleza ou sublimidade. Os sabiás são
representados como sublimes devido o canto saudoso ser capaz de gerar dor na alma sertaneja,
pois o sabiá é eminentemente rico, com o seu gorjeio tecido de melodias brandas sôbre um
tema de amor e de saudade partitura feliz para um poema dolorido e meigo de Casimiro de
Abreu”.
53
O galo-de-campina é pura beleza, uma vez que suas cores e canto jovial não motivam
terror algum: o galo-de-campina canta os sentimentos joviais e fortes dos que se vão pela via a
rir e a lutar sem desconfôrto nem desassosgo, da gente que tem o amor e o vinho igualmente
alegres, como se andasse sempre com um prisma côr-de-rosa sôbre os olhos.
54
O bem-te-vi,
segundo Burke, o símbolo maior de beleza no mundo animal. Essas iias foram trabalhada em
O sertanejo. Entretanto, Sales se centra mais no comportamento do pássaro, pois
[...] é maldizente e sarstico. Sempre pousado nos ramos mais altos,
inspeciona cuidadosamente tudo em redor, e, ao descobrir alguma coisa
extraordinária, abre o bico indiscreto para anunciar o caso com seu grito
irrevente de garoto. Quando lhe dá na veneta, encarapita-se com o maior
50
SALES, Antônio. Aves de arribação, p.109.
51
Ibid.
52
Ibid.
53
Ibid., p. 110.
54
Ibid.
desplante no dorso de um boi pacato, e, com o pretexto caridoso de limpá-lo
dos carrapatos, vai enchendo regaladamente o papo, isso no meio de
momices e palhaçadas que muito divertem a galeria.
55
A descrição das aves não termina por aí, a ave chamada de bom-é tem sua descrição
aproximada a sublimidade uma vez que gera medo, pavor: o bom-é, como um Pangloss da
espécie, apenas possui no seu registro vocal as duas notas com que enuncia a exclamação
aprovadora da qual lhe provém o nome. Qualquer que seja a circunstância, sendo mesmo sovado
pelos outros, ele articula indefectìvelmente - bom-é!.
56
Sales então faz uma longa descrição das
aves do espaço sertanejo, as especificando em seus nimos detalhes. Leia-a na íntegra:
O piririguá, com a sua carretilha de gritos, a voar de moita em moita, lembra
uma comadre tagarela, a contar de casa em casa bisbilhotices inesgoáveis.
O bico-de-latão é um misantropo, não se sabe se por filosofia ou por simples
preguiça. O certo é que passa horas inteiras imóvel, de olhos fechados, o
grande bico descaído bre o papo; e, para isolar-se mais, cava fundos
buracos em que mora, na sua aversão pela luz, pela convivência e pelo
barulho.
Consumadomico, o cancão se diverte em arremedar todos os pássaros
com uma perfeição de enganar os parceiros arremedados [...].
O papagaio grita parvamente e usa de andar em bandos, formando
assembléias ambulantes, cujas resoluções versam exclusivamente sôbre os
meios mais expeditos de devastar as plantações que os homens fazem com o
suor do rosto [...].
O xexéu tem um ar brutalmente marcial; mas, de uma valentia contestável,
não amedronta com suas pragas estridentes senão as rolinhas histéricas, que
dêle fogem apavoradas.
O azulão nada tem de novel senão a sua bela plumagem, de que cuida com
grande esmêro; não tem graça, não tem voz, e, quando se mete a fazer um
ninho, sai uma obrinha de causar lástima ou riso. Isso não o tolhe de ser
muito orgulhoso e de ter grande importância perante as meas do seu meio.
E agora, ouçam-me aquela voz magoada a modular gemidos de saudade, mas
de saudade sem esperança que se tem dos mortos, gemidos oriundos das
dores irremediáveis, das supremas desgraças! É a juriti que está a carpir o seu
eterno sofrer incompreendido e inconsolável. Ei-la que se afasta, mas o
gemido ganha maior dolência e parece agora um soluço longíquo de ser
errante a buscar em vão uma felicidade extinta para sempre...
57
(Grifos meus)
55
SALES, Antônio. Aves de arribação, p.110.
56
Ibid., p. 110.
57
Ibid., p. 110-112.
Dessa maneira, as aves descritas por Sales alternam seus sentidos de beleza e sublimidade
de acordo com os sons que emitem e se seus comportamentos são fontes de dor ou prazer.
Portanto, o autor acrescenta a paisagem sertaneja cearense novos seres aéreos, isto é, atualiza a
paisagem a eno elaborada pelas tradições anteriores, em especial a romântica alencarina. O
autor vai mais longe ao buscar descrever ainda mais outras aves da área, aves “menores a seu
ver. Veja-se:
Além desses indivíduos notáveis por diferentes característicos de
superioridade, pululava nas matas marginais do Ipuçaba riacho
transformado provisòriamente em rio caudaloso pelos aguaceiros de abril
uma turbamulta de passarinhos vulgares sem aptidão musical, sem
industriosidade, sem beleza, sem graça e a sem nome, formando a legião da
insulsa, mediocridade, respeitável pelo número e pela prudência regrada de
seus hábitos, enfim criaturas sisudas e por intermédio das quais não vem o
mal ao mundo.
58
Em Aves de arribação, o gado mais uma vez é abarcado como tema para a construção
paisagística do sertão. Entretanto, a descrição de Sales se prende a uma paisagem composta de
vários elementos, inclusive a seca e sua relação com o meio:
Era o tempo da ferra dos bezerros e da libertação do gado, para o qual o
vaqueiro abre comovido as porteiras do curral, a modular o saudoso aboio de
despedida. Em breve viria o sero áspero e implacável cortando os rios e
dessecando as grandes lagoas azuladas, empenachadas de pacaviras e
povoadas das infinitas aves aquáticas com a sua eterna música, que é como
um hosana perene da estação bendita. A terra ia despojar o seu manto verde
para gozar os bens em que se haviam transformado as esperanças vingadas, e
havia nesse declinar das coisas como uma repousada placidez de
maternidade.
59
(Grifos meus)
A paisagem dos literatos da seca é retomada de forma tão pida e sutil no discurso de
Antônio Sales que muitos intelectuais tomaram Aves de arribação como a única obra existente
58
SALES, Antônio. Aves de arribação. p. 112.
59
Ibid., p. 285-286.
sobre o sertão cearense sem tratar da seca.
60
Enquanto que outros perceberam na obra tanto a
retomada da paisagem da seca mesmo como apenas elemento de caráter simlico para a
estrutura do romance como à refencia ao fenômeno de metaforismo do desfecho da obra.
61
Talvez essas interpretações tenham se dado devido a passagens como essas ao final do romance:
[...] a natureza trocara o manto verde da esperança pelo burel amarelo do desespêro, e êsse logo
se desfazia em farrapos, que o vento espalhava em revoadas fúnebres pelo solo estorricado.[...]
62
Entretanto, sendo a clareza da retomada da paisagem da seca vista em outros momentos,
pode se afirmar que mesmo Sales querendo tratar do sero benfazejo cearense, é impelido a fazer
referências à seca. Não por ser o fenômeno e suas conseqüências em 1903 um conhecimento
do senso comum, mas também devido ao cânon estabelecido pelas gerações anteriores de
literatos que descreveram o espaço sertanejo do Ceará. Assim, a seca faria com que em breve
[...] da folhagem cairia como uma nica ta e apareceriam nuas,
requeimadas e angulosas, as árvores, feridas de morte aparente durante
longos meses de cacula. Fugiriamdas as aves joviais e delicadas que só
podem viver no frescor veludoso dos recessos virentes; e em formidáveis
revoadas fadicas, como gubres arautos da sêca, se despejaria sôbre os
campos combustos a praga das avoantes, famélicas e destruidoras. A
natureza chegara ao seu fasgio, e aquêle ouro que a cobria nesse momento
ia fundir-se ao sol inclemente para r a nu a sua desolada senilidade. As
lhas amarelas o as cãs da floresta: era fugir enquanto a sua cabeleira
começava apenas a patentear os primeiros sinais de velhice.
63
(Grifos meus)
A partir da descrição da seca Sales atualiza a paisagem da literatura da seca ao trabalhar
aspectos materiais através do sol como elemento fogo, fonte de combustão e inclencia no
espaço do sertão. Em outra passagem o autor consti uma paisagem síntese das combinações
alternadas entre os elementos materiais fogo, ar e terra:
A flora sucumbira de todo aos golpes da canícula. No céu, êrmo e flamejante,
apenas se divisavam ao cair das tardes as nuvens pressagas das pombas
60
Ver posfácio de Tristão de Athayde à segunda edição do livro Aves de arribação em 1929 e prefácio de Raquel de
Queiroz em à terceira edição da obra em 1965.
61
MARTINS, Wilson. Hisria da inteligência brasileira. v. V (1897-1914), p. 194; AZEVEDO, Sânzio de.
Aspectos da literatura cearense, p.22-23.
62
SALES, Antônio. Aves de arribação. p. 298.
63
Ibid., p. 286.
mensageiras da ca. Ao longo dos caminhos que traziam à cidade, rara
lhas verdes davam um sinal de vida da terra, sucumbida à hipnose do sol. O
rio já não corria sob a grande ponte vermelha, e mostrava o acolchoado dos
seus bancos de areia grossa cravejada de malacachetas fulgurantes. Bôcas
invisíveis e insaciáveis haviam sugado a linfa azul das lagoas transformadas
em extensões côncavas de argila gretada e cinzenta. mente a floração do
u ganhara em abundância e esplendor. Noites fantàsticamente estreladas se
arqueavam sôbre o sertão, que ofegava como uma alimária tombada de
estafamento. O céu negro e coruscante de sóis a pesar sôbre tudo, como
abóbada de uma gruta povoada de pirilampos, era cortado de quando em
quando pelo espasmo tilo dos bólices. O aracati, bafo noturno da terra
febricitante, vinha agitar as cinzas mortuárias da vegetação numa sarabanda
macabra, e ululavam pelos telhados as salmodias do grande
aniquilamento...
64
(Grifos meus)
O céu flamejante, as nuvens de aves, a terra em cinzas são todas meforas que constroem
o espaço sertanejo por imagens materiais. Além dessa iias elaboradas, é possível perceber que
timidamente a paisagem noturna vai surgindo no discurso de Sales. Até porque em apenas poucos
trechos da obra se encontra uma referência à noite no campo. Como a que autor elabora durante
uma comparação entre a cidadezinha de Ipuçaba e o campo: a temperatura descia um pouco
tôdas as noites, e a terra, farta d‟água, desprendia ligeiros vapores que punham um véu nue
sôbre as tintas sempre cruas da paisagem.
65
Ora, pode-se então concluir que Aves de arribação
ainda mais consolida o Ceará como espaço paisastico da luz, uma vez que suas descrições de
paisagens do campo são essencialmente diurnas.
Por fim, a paisagem síntese do sero cearense elaborada por Sales é localizada no
momento em que o autor pensa a passagem do inverno para a seca no sero do Ceará. O uso das
aves e todos os seus movimentos, sons e cores, vão compondo o jogo que Alencar trabalhara
no discurso romântico. A sublimidade e a beleza andam lado a lado no trecho abaixo:
Mas em redor dela [Florzinha] a natureza agonizava nos paroxismos dos fins
das águas. As jitiranas já não agitavam as suas campânulas de azul-lilás
dentre as ramas que subiam em volutas pelas colunas da varanda, e as
balsaminas, como no mês da Virgem, já não abriam suas boquinhas frescas e
perfumosas em sorrisos de garridice angélica. As graúnas ainda cantavam à
tarde no imenso tamarindeiro que ali bem perto subia para o céu êrmo
profundo; mas a copa da grande árvore se deplumava no alto, pondo a nu a
galharia intrincada e miudinha, na qual aquelas aves se destacavam, muito
64
SALES, Antônio. Aves de arribação. p. 299.
65
Ibid., p. 285.
negras e muito pequenas, a entoarem a nênia da estação morta. Esgarçara-se
a bruma levíssima que atenuava a crueza da luz; as serras vizinhas, tocadas
da claridade moribunda do sol, acusavam, nas saliências dos seus
contrafortes, as mínimas particularidades das rochas, dos caminhos, das
culturas, das vivendas lampejantes, e ao alto estampava, num fundo cinzento,
a linha dos cimos arrepiados de frondes e espetados de longe em longe pela
haste fina e direita de uma palmeira em ressalto. Um tom neutro e soturno
dominava o oriente, enquanto o poente, todo em fogo, corroia os contornos
caprichosos dos formidáveis torrões de nuvens por cujas seteiras se
derramava a luz como jorros de metal em fusão.
66
(Grifos meus)
Essa passagem é um relato de paisagem síntese porque possui diversas referências as duas
tradições de literatos anteriores a Sales. Desde a descrição de um sero dicotômico, ora seco ora
molhado, pelos paroxismos dos fins das águas até outros sentidos dados em alguns trechos: o
[...] imenso tamarindeiro que ali bem perto subia para o u êrmo profundo pode ser visto
como uma representação sublime, pois o infinito e a vastidão causam medo, terror na alma
sertaneja que não consegue traduzi-lo, assim como a própria árvore que sobe a esse céu. Os
corvos são “aquelas aves [que] se destacavam, muito negras e muito pequenas, a entoarem a
nênia da estação morta. O sol é tomado em matéria ígnea, Sales se apresenta como um ferreiro
em plena labuta ao tomar a luz como jorros de metal em fusão.
É possível estabelecer no discurso literário de Antônio Sales relações entre as
representações sublimes e belas da tradição romântica alencarina e as imagens materiais dos
literatos da seca. Além disso, é importante tamm destacar que muitos dos temas utilizados para
a construção da paisagem cearense anteriormente são retomados e atualizados como, por
exemplo, os enunciados sobre as serras, o gado, as aves, o céu, e as nuvens. Dessa maneira, Sales
contribuiu de forma significativa para uma leitura renovada da paisagem sertaneja, pois
acrescenta novos elementos ao espaço sertanejo por meio da representação de inovadores seres e
objetos terrestres, aquáticos e aéreos.
Entretanto, não quer dizer que seja uma leitura totalmente nova, uma vez que o ponto de
partida do autor provém dos literatos a ele anteriores. Portanto, Aves de arribação é uma obra que
inicia um processo de síntese da composição da paisagem sertaneja cearense até então constrda.
Todavia, a síntese se completa de forma mais ampla na obra Terra de Sol: natureza e costumes
do Norte, do então ambicioso estreante literato Gustavo Barroso.
66
SALES, Antônio. Aves de arribação. p. 295.
1.1.2 Terra de sol: paisagens do norte
A obra Terra de Sol “nasceu em sua maior parte da observação direta da vida sertaneja e
das vincias pessoais de seu autor.
67
O texto é fruto, em grande medida, de memórias de uma
temporada durante a juventude no sertão cearense. Como o próprio autor afirma em seu livro de
memórias intitulado O descobrimento do sertão: seguia para o sertão no começo do ano.
Voltava em abril, antes dos fins d‟água. Em janeiro de 1907, pela primeira vez me levou consigo.
Eu tinha estado gravemente enfermo e precisava de ar puro e de bom leite.
68
A obra é escrita por
Barroso se valendo do pseunimo João do Norte e nada mais coerente do que essa escolha para
redigir uma obra que “não é mais do que a narração verídica dos usos, dos costumes, dos
sentimentos e das tradições do Ceará e suas zonas limítrofes, da Terra do Sol; que não é e nem
pretende ser mais do que o depoimento de um nortista.
69
A análise de Terra de sol se dará em certas passagens da obra que eso localizadas
principalmente na sua primeira parte, denominada O meio. Pois, conforme Martins, Gustavo
Barroso devido ao seu determinismo geogfico estuda o Ceará através do Meio.
70
Sendo assim, é
justamente nessa etapa do texto que Barroso constrói seus discursos paisagísticos do espaço
sertanejo cearense. Barroso é nitidamente filiado a tenncia literária naturalista. Seus discursos
o muito mais materiais do que belos e sublimes. Mesmo assim, o Romantismo pode ser
entendido no seu demasiado e saudoso apego a terra natal. Am disso, o autor representa esse
espaço sertanejo apenas pela sua possibilidade diurna, em grande medida, tal como Antônio
Sales.
Pensando a construção de paisagem como uma organização espacial logo no primeiro
parágrafo do texto, percebe-se há uma preocupação de Barroso em diferenciar o litoral do
interior, fez isso se valendo de uma escrita muito próxima de um relato de viagem, leia-a:
Quem das brancas praias do Ceará demanda o interior das terras, nota que todo o
terreno sobe, muito sensivelmente, da orilha do Atlântico para o sertão. E,
quando se avistar uma argila vermelha ao invés da alva areia dos tabuleiros que
margeiam a costa o olhar não mais vir o cajueiro e o cauaçu, nem as crespas
67
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 12.
68
Ibid., p. 13.
69
Ibid., p. 270.
70
Wilson. Hisria da inteligência brasileira. v. V (1897-1914), p. 501.
moitas viçosas de murici, guajiru, guabiraba e murta oferecer seus frutos ao
descaso dos transeuntes; quando o pau-branco se esgalhar entre cerrados de
rompe-gibão, troncos altos de catandubas elegantes, e ao olhar se estenderem
vasta caatingas de juremas raquíticas, ensombrando touceiras de coroa-de-frade;
quando cortarem o terreno largas lajes de granito e xistos argilosos,
quartzitados, se esbarrondarem nas ribanceiras, por entre lascas de calcário
endurecido, lenta e silenciosamente se transformando em mármore, - aí coma
o sertão.
71
(Grifos meus)
A passagem acima revela bem um conhecimento geológico específico por parte de
Barroso, além de um estilo literário incorporado de uma espécie de animismo, que percorre suas
descrições, atribuindo a natureza gestos, atitudes, intenções e sentimentos. Wilson Martins atribui
passagens como essas tributárias, ou melhor, umsubproduto das leituras de Os sertões, de
Euclides da Cunha obra escrita em 1901 e publicada em 1902.
72
Toda a descrição paisastica do sertão pelo autor parte da diferenciação de duas
estações, quase sempre mentirosas e irregulares, [que] existem nessa região: a seca que vai de
junho a dezembro e o inverno que vai de janeiro a junho.
73
Sendo a situação climática o
problema motivacional da obra, não é a toa que a descrição se inicia pelo u sertanejo, muito
diferente do litoneo:
Morrem docemente os últimos dias de junho. Nunca mais chove. A concha do
céu é dum azul inclemente que ofusca, profundo e impenetrável como a
imensidade, sem uma nódoa branquicenta de cirrus, muito limpo, muito nu,
muito alto. O sol, rutilante, só, sem uma nuvem, flameja, joeirando centelhas nas
micas dos pedregais. Dias e dias não sopra a mais pequena aragem: não braceja
um galho, e pesa um silêncio de túmulo por sobre a vastidão das coisas.
74
(Grifos
meus)
Essa descrição é uma rica demonstração de um discurso materializante. Assim como os
literatos da seca, Barroso atualiza a imagem do céu azul. O sol é o fogo, responsável pelo clima
cáustico, abrasador, o globo de fogo que cria centelhas nas micas dos pedregais, sem
71
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 60.
72
Wilson. Hisria da inteligência brasileira. v. V (1897-1914), p. 501; Ver também CUNHA, Euclides da. Os
sertões. v. I Rio de Janeiro: Otto Pierrre Editores, 1979.
73
BARROSO, Gustavo. Op. cit.
74
Ibid., p. 61.
ventilão, apto à morte, revela o grande intuito de estabelecer o espaço da seca nessa paisagem.
Os literatos da seca continuam sendo reapropriados e a construção da paisagem sertaneja é
resultado do território modificado pelo clima, como afirma Barroso:
Quando o vento sopra, cai rajadas fortes, ardentes, gemendo e murmurando
nas catingas sem folhas, varrendo a terra nua de gramíneas, as clareiras
achanadas, escarnando-as, levando a areia, para deposi-la no alto sertão,
nas chapadas do centro, deixando emergir do solo raspado, desnudo, estrias
de folhelos endurecidos, pontas rijas de granitos.
75
(Grifos meus)
A temática dos ventos furiosos, tenebrosos também compõe o sertão do autor, e mais,
Barroso ainda acrescenta sentimentos aos animais e as plantas, até mesmo ao sertão como um
todo que é tido como um espaço intimamente ligado ao melanlico. Uma vez que todo o sertão
é de uma grande tristeza, na cor, no silêncio, no aspecto; e essa tristeza em tudo se infiltra e
impregna tudo”:
76
um galho que range de encontro a outro lembra um gemer de moribundo: o
estalar crepitante dos gravetos pisados por qualquer animal parece um
soturno falar de avantesmas; um canto de pássaro, um alto piu da ave de
rapina, um guincho de pixuna, tudo é triste, tudo é melancólico. Qualquer
som que quebra o silêncio parece mais triste que o pprio silêncio.
77
(Grifos
meus).
Barroso nesse trecho representa uma paisagem sonora sublime, pois a dor direciona o seu
relato melanlico, triste, silencioso e sombrio. Os sons são assustadores, causando comoção no
leitor, certo medo ou mesmo receio para com esse espaço sertanejo cearense moribundo. A
proximidade com o discurso sublime inaugurado por Alencar é perceptível em cada palavra
utilizada pelo autor.
75
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 61.
76
Ibid.
77
Ibid.
Aos poucos os animais e as plantas vão compondo essa paisagem específica do sertão,
seja “gemendo ou mesmo falando como um fantasma. Algo interessante de se notar é termo
pixuna, pois o autor ao escrevê-la indica uma nota de fim de texto explicando que se trata de
um pequeno rato selvagem. Ora, essa preocupação explicativa de Barroso está muito centrada no
sentido pedagógico do seu texto, como num relato etnográfico e histórico, afim de registrar
aspectos tanto naturais como culturais de uma área e sua sociedade. Ou seja, como afirma Stuart
Hall, as identidades locais, regionais ou mesmo nacionais são constrdas a partir das
características culturais língua, religo, costume, tradições, sentimento de lugar que são
partilhadas por um povo.
78
Toda a obra é atravessada por esse tipo de notas explicativas ao final
dos capítulos.
A descrição da terra ressequida é amplamente utilizada, uma vez que o meio, isto é, a
terra é o elemento de base de relações com as demais matérias. Daí a decorrência da retomada de
temas da literatura da seca. A terra é objeto central da contemplação de Barroso, a passagem
abaixo é bastante rica para pensar essa idéia:
Da terra cor de oca, avermelhada, da argila granitada de grossa sílica, dos
granitos rompendo a terra em pontas que se adunam e denteiam desajeitadas,
esparsas, às vezes rubras, outras branquicentas, outras sujas, torvas, quase
sempre inclinadas para resistir à erosão das águas, desprende-se um bafo de
quentura armazenada; e o barro de louça, o tijuco, o massapê cinzento das
rzeas, já todo estriado, abra-se, fende-se lasca-se, escancela-se ao calor.
Nos meses de inverno, o gado deixou-lhe na moleza visguenta a forma
profunda dos cascos. Veio o sol. Os moldes ficaram endurecidos, cosidos à
cacula; os bordos rijos espetam e cortam; só a planta rude e cascuda do
sertanejo pisa insensível por ali a fora.
79
(Grifos meus)
Barroso se revela um minerador nessa passagem, pois trabalha excessivamente os objetos
terrestres, como as diversas rochas do sertão. Am disso, atualiza o tema das várzeas, que
nesse momento do discurso do autor o sol elementar evapora e torra esses espaços de
reminisncia aquática. Há também o uso do recurso de antropomorfização da natureza e dos
animais. Por exemplo, para Barroso sob a inflncia da seca o “carnaubal, abandonado dos frutos
78
HALL, Stuart. A identidade cultural na s-modernidade. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. p. 62.
79
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 62.
e dos pássaros, sussurra dolorido, saudoso; entristece, murcha, acinzenta-se, como se o sol e o
vento o empoeirassem”
80
, as árvores vão-se destoucando e se vão despindo[...].
81
Assim, o
autor vai atribuindo ações e sentimentos eminentemente humanos também as plantas, instituindo
uma espécie de psicologismo terrestre.
A Terra de sol tem nela elencada todas as plantas resistentes às intemries, como a
oiticica, o juazeiro, a canastula, os cardos, o mandacaru, o xiquexique e o faxeiro. O autor
sintetiza o que houvera sido identificado literariamente desde a paisagem alencarina e, nesse
sentido, essas plantas se tornavam permanentes no cenário paisagístico sertanejo cearense.
A paisagem sertaneja também é composta pela presença animal e humana, principalmente
quando se trata da luta travada entre o homem e o meio, tema central para se pensar a construção
de um espaço modificado pela seca. Como afirma Barroso:
A natureza compungida tem o desolado aspecto da desgra e se recolhe no
grande silêncio do sertão combusto, somente quebrado pelo som de picaretas
que escavam a terra, perfurando poços, ao longe, na luta terrível do homem
pela água, que avaramente se esconde nas baixas camadas do subsolo, além
de piçarras desagregadas, de arenitos, fugindo à aproximação do sertanejo
sequioso em veios esquivos que fluem entre rochas e serpeiam em condutos
envesgados.
82
(Grifo meu)
A luta do homem pela busca da água se dava desde Os retirantes, de José do
Patrocínio: “[...] à tarde, em torno das cacimbas, travavam-se lutas ardentes de que
freqüentemente resultavam ferimentos e mortes. É que aqueles que conseguiam encher uma
pequena vasilha tinham por esta ração o cuidado de um avaro pelo seu ouro”.
83
Osertão
combusto, por exemplo, é uma expressão ígnea utilizada por Domingos Olimpio, em Luzia-
Homem. Todavia, a mesma expressão já aparecia na composição paisagística alencarina.
84
80
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 62.
81
Ibid.
82
Ibid., p. 64.
83
PATROCÍNIO, José. Os retirantes. v.33. São Paulo: Editora Três, 1973. (Colão Obras imortais da nossa
literatura, v. 32-33). p. 55.
84
ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 14.
Além dessas reaproriações discursivas, Barroso descreve uma série de animais como os
grandes ícones do espaço sertanejo ao contemplar o cachorro, o cavalo, o gado e as avoantes,
como componentes inelutáveis da paisagem do sertão, e seu zôo e em sua antropogeografia.
85
A maioria desses já tinham sido postos como participantes da paisagem sertaneja pelas gerações
anteriores, até mesmo por José de Alencar, contudo Barroso colocou em destaque o cachorro e o
cavalo, dando a eles capítulos específicos em Terra de sol. Dentre esses animais, como foi visto
em capítulos anteriores, o gado é um dos que mais possuiria significado para a alma sertaneja. O
autor ao psicologizá-lo potencializa ainda mais as imagens anteriormente concebidas pela leitura
alencarina e dos literatos da seca, em especial nesse passagem abaixo, repleta de plasticidade, de
movimento:
Por vezes uma rês horrivelmente magra arrasta o passo tardo, vagaroso,
apartando aos tropos os garranchos de mato seco, chagada, o lo a cair,
suja, muito triste, imagem viva da fome a buscar alimento, estátua animada
da sede a procurar água, resfolegando de cansaço e fraqueza, arquejando ao
calor, os olhos vítreos pregados ao solo e mugindo, dolorosamente
mugindo.
86
A paisagem sertaneja, explicita o autor, é imprevisível: “não é quase sempre, como se
pensa, a falta total de chuva que faz a miséria dos sertões do Norte. É antes a sua inconsncia e a
sua extemporaneidade, acrescidas das circunstâncias delas próprias decorrentes.
87
Além disso,
trata-se do relato de um espaço propício aos desastres, principalmente quando havia o contato do
homem desanuviado com o sertão, como exemplifica Barroso em relão as queimadas do pasto
seco:
Muito tempo dura o pasto, como reserva de alimento, quer em capoeiras, quer
em cercados adrede feitos, se o não fizer apodrecer uma chuva bita, fora de
tempo, se um camboeiro descuidoso ou um passageiro indiferente não atirar uma
ponta de cigarro acesa, um morrão fumegante de cachimbo no meio do
capinzal.
88
85
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 18-19.
86
Ibid., p. 64.
87
Ibid.
88
Ibid., p. 65.
Dessa forma, a queimada é retomada da paisagem alencarina
89
e denunciada de forma
explícita pelo autor, devido a sua formação ter sido bastante ampla. Talvez Barroso tenha tido
contato com teorias ambientalistas de início do século XIX, a partir de Jo Bonifácio de
Andrada e Silva e/ou seu contemporâneo Alexander von Humboldt, dois grandes críticos dos
males ocasionados pela degradação ambiental.
90
A ênfase dada aos resultados no meio após o
incidente pode demonstrar bem isso:
Depois da queimada, toda a zona onde o fogo lavrou é um imenso coivaral, um
vasto plaino coberto de cinza, com toros negros que emergem, de um feitio de
animais estranhos: os troncos retorcidos, com ramos que rompem esgaçhando-
se, semelham hidras; os toros decepado, atochados, curtos, parecem feros e
desconhecidos bichos acocorados, à espreita, e os galhos mortos se estiram,
como grandes serpes negras, carbonizadas, as escamas a se desprendem. O vento
ergue rodamoinhos de cinza e detritos leves, de uma finura de poeira, que
esvoaçam, toldam a luz ardente do sol, espiralam, dançam em farândola, depois
se dissolvem no ar.
91
(Grifos meus)
As metáforas da “hidraou da serpente são muito comuns tanto em Alencar quanto nos
literatos da seca. A narrativa segue e a paisagem no sertão continua seca, como afirma Barroso,
passa-se o mês de agosto, passa-se setembro, e outubro se passa. Nunca mais chove”.
92
Apesar
de apenas haver a possibilidade de parcas chuvas em outubro, a paisagem já ganhava significados
diferentes, pois a qualquer sinal de água do u a esperança do homem do campo reascende.
Entretanto, ao mesmo tempo que se descreve um espaço da esperança, se insere no discurso um
caráter religioso do castigo divino, como diz o autor: o u árido, sem manchas como se fora
varrido por um vento de maldição.
93
Outro aspecto da paisagem sertaneja se inicia quando a água
começa a faltar no mês de julho: os açudes mal cheios pelo inverno, quase sempre escasso, logo
secam; o mesmo já tem acontecido aos poços dos rios e às ipueiras dos matos.
94
89
Ver ALENCAR, José de. O sertanejo, p. 19.
90
DUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e ctica ambiental no Brasil escravista
(1786-1888). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. p. 132-134.
91
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 68.
92
Ibid., p. 69.
93
Ibid.
94
Ibid., p. 70.
A falta d‟água e a morte do gado faz surgir nessa paisagem a figura do valente sertanejo,
batalhador, viril, forte uma vez que [...] a seca é um fator de progresso, porque forma e molda
uma raça forte. Ora, Barroso demonstra em passagens como essa o seu contato com as teorias
deterministas biológicas darwinistas de Spencer e geográficas de Ratzel e Buckle , as quais se
abordou anteriormente neste estudo.
95
A relão homem-natureza se torna então insuportável,
tendo o homem que interferir no meio para poder sobreviver e manter os seus animais. Nessa
situação periclitante é que o autor recorre ao relato do último recurso na luta contra a seca, a
cacimba:
A cacimba é profundamente cavada no solo, toda cercada em torno para que, das
ribanceiras, os animais não tombem; a entrada é cavada em ladeira de suave
declividade, para que o gado já fraco, ao ir beber, não escorregue e caia de
quando em quando, ferindo-se e cansando-se. A água é sempre feia, sempre suja
e sempre má. Uma cerca leve divide-a quase ao meio, tendo ao das estacas,
estendida, uma longa caranaúba, de maneira que o gado somente pode beber em
um pequeno espaço de dois ou ts palmos, o que o impede sujar a água e de
toldá-la.
96
Nos meses de janeiro e fevereiro, sem chuvas, a situação fica mais difícil, tendo o
sertanejo a perda da sua crião, passado fome, sede e acabando, muitas vezes, morrendo.
Quando não, é obrigado a emigrar do seu torrão natal para o litoral com todas as aventuras e
desventuras da trajetória de vida do “flagelado.
97
A paisagem noturna de Barroso vai surgindo na paisagem sertaneja cearense, quando o
autor trabalha as imagens das serras e as matas. A noite não é bem quista como na literatura da
seca, é muito mais tida como sinistra tal como descrevia Alencar em algumas passagens de O
sertanejo. A passagem abaixo representa a noite surgindo em sublimidade, pois se relaciona a
morte, tristeza, enfim a dor.
95
Ver Capítulo II - A imaginação material na paisagem da literatura da seca cearense, p.12.
96
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 75.
97
Ver MENDES, AndG. B. P. A imagem do flagelado na literatura da Terr a da Luz (1879 -1903). 2005.
Monografia (Graduão em História) Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2005.
A lua surge, espia por trás dos agudos píncaros das altas serras o sertão que
dorme envolto em trevas; depois, acende e clareia-o todo; os esqueletos das
catingas perfilam-se hirtos e negros, destacados na brancura láctea da luz,
que se espraia, rasando o recosto, bombeado das colinas e as várzeas sem
fim, dando à paisagem um aspecto tumular de natureza morta.
98
(Grifos
meus)
Para Barroso, depois de findar junho começa novamente a estação seca e nesse momento
as amarguras voltam ao sertão e a paisagem noturna se relaciona aos momentos de esperança da
alma sertaneja: [...] os sertanejos humildes e crentes, à noite, no altar singelo da fazenda, rezam
de olhos nas luzes que clareiam os santos, pedindo a Deus e a S. José advogado das chuvas
que o inverno torne em dezembro, que não falte em janeiro, para alegrar de novo a face triste do
sertão.
99
Ora, o tema da esperança sertaneja representada na espera pelas chuvas e na crença de
certos dias santos já havia sido trabalhada pelos literatos da seca.
Outro tema abordado por Barroso é referente ao poder da água na paisagem sertaneja.
Para o autor, a água é o um elemento natural divinizado na paisagem literária de Barroso,
contribuindo assim para essa iia se consolidar no próprio imaginário sertanejo. A relação entre
a terra e a água pode gerar resultados sticos, até mesmo inacrediveis na paisagem do sertão.
Isso é perceptível em Barroso mesmo quando se refere ao pasto seco: de muita serventia,
substancioso e nutritivo que “num cantinho, numa frincha do terreno, numa greta da rocha,
ficam as sementes miúdas, invisíveis, com o seu poder de longa germinalidade, na muda
paciência dos inanimados, esperando que a chuva ensope a boa mãe das plantas, para brotarem de
novo.
100
A chegada da chuva no sertão, segundo Barroso, inicia um processo de mutação na
paisagem. A terra e os seres vivos agitam o cenário ao ter as primeiras previsões nebulosas, a
sertão ganha novamente movimento, mas desta vez pela metamorfose de um espaço dinamizado
pela alegria e esperança. Leia-se a passagem:
Enfim, um dia, o céu amanhece torvo, arrrepiado e escuro, o pesado, que
parece esmagar os vultos enormes das serras, no horizonte; às vezes
98
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 72.
99
Ibid., p. 88.
100
Ibid., p. 64.
envolvendo-os em uma neblina tênue, que lhes esfuma e esbate os contornos,
e por onde se coa a luz do sol em uma palidez de círio. Corre um vento
úmido, frio pelo sertão, sibilando nos galhos mortos que se chocam com um
som ósseo, sussurrando nas acinzentadas frondes murchas dos carnaubais,
numa doçura vagarosa e lassa de acalanto infantil. O gado muge e sorve
lentamente a umidade do ar. Aparecem os sertanejos, homens, mulheres,
crianças, no terreiro das casas. Trepam os jornaleiros, deixando o trabalho, à
barranca dos açudes, à crista dos outeiros. Os braços movem-se, apontam as
nuvens negras, os nimbos esfrangalhados que se arrastam com preguiça,
solenes, majestosos, como grandes águias sonolentas. Comentam a
possibilidade da chuva em desusada alegria.
101
Toda a descrição do céu é um evento miraculoso, estonteante, de dimensões apenas
comparadas com o divino, tem-se aí uma atualização dos discursos anteriores principalmente o
alencarino. Algo atordoador e ao mesmo tempo espetaculoso, como afirma Barroso:
Por trás do viso irregular e áspero de uma serra, desenhando-lhe instantânea e
rapidamente o rude perfil negro, o dorso arqueado, rugoso, as corcovas de
granito torvo, talhadas a pique em abruptos pendores, abre-se o vermelho
bocejo de um relâmpago. Segundo depois, reboa o trovão majestosamente
retumbamdo, a rolar com fragor estrupidamente pelas serranias, repetido pelo
eco até se perder de todo a última gradão percepvel do som. E a chuva cai
sob o açoite do vento, rabanando, pesada, forte bátegas brutais.
102
Nesse momento a chuva forte começa a mudar a paisagem do sertão, o autor descreve
minuciosamente a mudança no solo quando se dava o contato com a água:
Escorrem lágrimas na rudeza cinzenta dos granitos. Descem das serras
riachitos prateados, alumiando em filetes caprichosos. Cada sulco de velhas
erosões no descambar dos - altos é uma torrente; cada rego das estradas,
um regato; cada depressão, uma ipueira. A terra vai-se molhando e
argamassando; dela se evola um hálito quente, rescendendo a umidade,
trescalando a mofo. A areia grossa e sombria dos alagadiços liga-se, empapa-
se; e os rebordos afiados das pegadas de gado no barro das várzeas amolecem
aos poucos. Chove um dia inteiro; às vezes, chove sem intermitências dois,
três e mais. Ouve-se ao longe um marulho, gigantesco, um ulular de ressaca,
101
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 80.
102
Ibid.
um rugir, um como escachoar de imensa roda d‟água, que se vai
aproximando rapidamente. Toda gente corre para os serros pximos ao listão
de areia do rio seco. Os animais abandonam as várzeas que o margeiam. É o
rio que desce!
103
Surge um dos temas mais recorrentes na paisagem sertaneja, o descer do rio”. Isso ainda
hoje é comum nas regiões interioranas do nordeste brasileiro. Sendo uma atividade natural
representada e significada como uma simbologia da prosperidade, da abunncia, de novos
tempos e de boas novas no campo. Barroso sabia disso e se vale do seu repertório literio para
descrever belas passagens retratando toda a simbologia das enchentes que varrem tanto os
destroços quanto as lembranças dos tempos de estiagem. São as águas violentas repletas de
pureza que varrem o sertão, o purificando:
vem a água, a roncar, sertão abaixo. Na frente, na - cabeça” acachoada,
turbilhonam madeiros, garranchos, arbustos, troncos que se abarreiram de
encontro às pedras do leito, ribanceiras a se diluir sustidas por
entretecimentos de raízes de uma solidez de taipa, estacas pontudas de cercas,
longos paus de bebedouro, cadáveres de animais; tudo entre grossos frocos
de espuma suja, borbulhas barrentas, ondas, cachões, rodamoinhos,
torvelinhando de encontro a balseiros enormes, que para instantes, resistindo
à correnteza; correndo numa velocidade espantosa, adquirida no descer dos
mananciais das serras e aumentada pela grande declividade do terreno; indo
rebentar em grossas vagas moles nos troncos das caranaúbas, salpicando-os
de espuma. Esbarrondam-se as barreiras íngrimes, resvaliadas; diluem-se as
croas” de aluvião: e a cheia passa.
104
Após as chuvas se inicia o espetáculo miraculoso da natureza, a paisagem sertaneja
começa a mudar, dias depois das chuvas, de todos os galhos negros e ressequidos, num súbito
desabrochamento como um milagre dos céus brotam folhinhas verdes, medrosas,
transparentes ao sol. É a „rama‟”.
105
Barroso parecia compreender o quão seria importante incutir
um poder simlico as plantas do espaço sertanejo, acabou por constr-lo e cristalizá-lo ainda
103
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 81.
104
Ibid., p. 81-82.
105
Ibid., p. 83.
mais. Não é toa que ele deu ênfase especial às mudanças da paisagem a partir de uma descrição
botânica:
O sertão reflorido muda de fisionomia. Fica verde, todo verde, de um lindo
verde, novo e forte, que alegra a vista e o orvalho borrifa pela madrugada
clara. O bugi cresce velozmente sob as árvores; ao das cercas altas; as
tiriricas sorriem ao sol, emergindo ainda tenras, à margem dos
desfreqüentados caminhos, dentre crespos tufos de beldroega pequena; o
milhã, o mimoso, o panasco, o junco, o quebra-panela curvam-se à brisa
perfumada da manhã na vastidão das várzeas, onde os quandus já se enfeitam
com os feses verdes e as flores amarelas do melão-de-são-caetano. Da
ponta dos galhos, entre a folhagem pendem velhos ninhos, abandonados na
seca, que os sebites cusiosamente espiam e visitam com medo. Os tapetes da
relva se estendem e alongam, matizados de chananas brancas. As trepadeiras
grimpam nos troncos verdes, enfestoando-os. O sertão pobre de flores, se
arreia de quantas a avara natureza lhe deu. Nos prados, escondidas nos
ervanços, diminutas, mesquinhas flores de um branco cinza vivem sem beijos
da luz, morrem sem lágrimas de orvalho. À sombra das cercas das capoeiras,
nascem flores azuis, pequenas, de um feitio de mosca. Nos carcaes de
mofumbo, espanejam-se jitiranas roxas, de um roxo religioso de nica de
santo. Nas ribanceiras, desatam os boezinhos tristes, raquíticas florinhas
amarelas, sem nome, sem odor e sem beleza. Pobres flores!
106
Para o autor, o sertão adusto e selvagemo pode compreender a amenidade da sua
doçura.
107
O poder germinativo da terra sertaneja aliada à água possuía incríveis resultados,
como afirma o autor: a erva brota até das fendas dos diques toscos de pegmatite, nas covoadas e
nos mocosais das serras”.
108
A paisagem definitivamente mudou, tudo está alegre, seivoso, vivo. A terra como que
ressurgiu de suas próprias cinzas, miraculosamente.
109
Ora, na continuação dessa passagem
Barroso recai em um recurso do discurso nacionalista doculo XIX e início do XX. Preocupado
em construir uma singularidade da região se volta para história, nesse caso, para um passado
106
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 83-84.
107
Ibid., p. 84.
108
Ibid., p. 85.
109
Ibid.
mítico, afim de comparar os milagres do sertão aos de outros espaços consagrados pela sua
história religiosa.
110
Vejamos isso:
E essa ressurreição tem um quê de prodígio: - relembra um desses admiráveis
e doces milagres de outras eras, quando andavam no mundo os santos
emissários dos deuses: e os mortos ressurgiam erguendo com as descarnadas
mãos as tampas de mármore dos sarcófagos, e as estátuas moviam-se dos
estelos, pausadamente, e os trigais alouravam as espigas numa noite, e a água
límpida da fonte se tornava vinho escuro de Emaús.
111
Como foi visto na literatura da seca a harmonia proveniente da aliança entre a terra e a
água se torna um dos temas centrais dessa paisagem sertaneja cearense, faz com a vida terrestre
surja e se comunique em equilíbrio, numa plena conversação, como afirma Barroso:
Dias antes, a seca comburia o sertão. Veio a chuva, tudo se transformou.
Hoje, no céu se amontoam nuvens escuras e a água umedece a terra. A
margem das lagoas, à propoão que desmaia a barra de sangue do sol no
poente, os juncos sussurram, conversando com a água queda e limpa, onde os
girinos das s nadam velozmente, contando-lhe talvez toda a longa
amargura de sua sede, toda a demorada e constante saudade de sua
vizinhança e de seu carinho; e ela lhes paga a singela confidência com o doce
e fertilizante contato de seus úmidos lábios. Entre as serrotas, em esverdeadas
estagnações, nos atoleiros perigosos, borbulhando espumas, os sapos coaxam
soturnamente.
112
O sol, elemento natural constante na paisagem sertaneja, tamm muda de sentido. O sol
junto a água passa a ser benéfico. Ele não mais cresta as plantas e a terra, não mais cega e
queima, pela sua luminosidade causticante, o sertanejo. Apenas se torna mais um importante
elemento natural de uma paisagem em plena harmonia, alegria e prosperidade: “tudo sorri, a
selva, o prado; a várzea aos beijos do sol; o regato ao reflexo trêmulo e enrugado dos caniços; os
110
Ver HALL, Stuart. A identidade cultural na s-modernidade, p.47-65; HOBSBAWM, Eric. As
transformações do nacionalismo; 1870-1918. In: _________. Nações e nacionalismo de 1780: programa, mito e
realidade. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 125-157.
111
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 85.
112
Ibid., p. 85-86.
arvoredos ao rocio inconstante que passa; o céu azul à carícia dourada da luz”.
113
A harmonia dos
objetos terrestres, isto é, os animais e as plantas do espaço sertanejo é bastante enfatizado, como
se visualiza com o caso do retorno das aves após a estiagem, como afirma Barroso:
Os pássaros que foram acossados pela seca voltaram como por encanto:
saltam nas moitas, pousam nos carnaubais, andam em revoadas alegres;
gorjeiam, chalram, trinam, chilreiam, ruflam as asinhas, eriçam as penas do
pescoço débil e percorrem com grande alegria toda a gama dos sons, num
admirável perolar de cadências. o suspiro da juriti, remoto e demorado, é
eternamente triste e eternamente saudoso.
As nambus piam nos roçados de milho, escarafunhando à cata de insetos as
palhas secas, estralejantes. Os periquitos, que voltaram das praias, devastam
as plantações. As merrecas nadam aos bandos nos açudes e nos lagos.
114
Todos os elementos da paisagem descritos por Barroso estão em plena harmonia, as
lagoas eso calmas e em “[...]suas margens, andam peraltas de toda espécie, avoejam pássaros de
toda sorte.
115
Assim, nesses tempos benfazejos o retorno do sertanejo, no caso, os vaqueiros, é
algo comum uma que vez que as vacas podem também viver nesse novo cenário, tendo seus
bezerros e produzindo leite. Como diz o autor, é tempo da abunncia e da alegria.
116
Entretanto, essa paisagem é passageira, pois a irregularidade climática é uma questão cnica da
região. Portanto, pensar essas paisagens distintas é tamm perceber a sua natureza cíclica.
Portanto, Barroso construiu a partir do seu relato uma organização espacial do sertão,
valendo-se de um discurso que tenta dar um poder simlico da natureza, tão identitário às
sociedades campestres, para instituir uma realidade e um conhecimento sobre o sertão cearense.
Segundo Bourdieu, esse poder simlico da natureza presente na paisagem “[...] é um poder de
construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica [...]” E mais, os
símbolos são os instrumentos por excencia da integração social”. Além de cumprirem a função
política de instrumentos de imposição ou legitimação da dominação.
117
113
BARROSO, Gustavo. Terra de sol: natureza e costumes do Norte, p. 86.
114
Ibid.
115
Ibid., p. 87.
116
Ibid., p. 88.
117
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro; Lisboa: Bertrand; DIFEL, 1989. p. 9-11.
Barroso transformou o seu discurso sobre o sertão em uma espécie de identidade espacial.
Não é a toa que seu livro se tornou um clássico cearense. O público leitor se identificava, como
ainda se identifica hoje, com as belas palavras do autor. O sentimento de pertença ao lugar
sertanejo está incrustado na obra Terra de sol, que já revela isso em seu próprio subtítulo,
natureza e costumes do Norte. A construção de paisagens são um meio, um instrumento, para que
se reforce, cristalize e renove as identidades espaciais, sejam locais, regionais ou nacionais. Elas
o um capítulo da história da produção das espacialidades.
Portanto, Gustavo Dodt Barroso, a partir de sua obra Terra de Sol, participa da
consolidação de uma visibilidade e de uma dizibilidade para o espaço do sertão, realizando uma
síntese entre as paisagens tristes, melanlicas, mortuárias e ressequidas em oposição as outras
paisagens alegres, esperançosas, vivas, belas, repletas de harmonia entre a terra e os seus seres
viventes. Para o autor, o espaço sertanejo é então compreendido por uma dicotomia ou dualidade
encontrada no interior da própria natureza do sero. Barroso enfatiza o que une e engendra essas
paisagens: a relação entre a água e a terra. A relação entre estes dois elementos naturais ganham
simbologias complexas, desde significados ticos até explicações técnicas sobre fertilidade e
solo. Am disso, o autor definitivamente consolida a paisagem sertaneja cearense com uma
espacialidade da luz, a julgar pela presença minoritária das paisagens noturnas nas descrições de
Barroso que motiva o próprio título da obra Terra de sol.
Portanto, é possível concluir que tanto Antônio Sales como Gustavo Barroso se valeram
dos temas paisagísticos criados pelas gerações romântica, realista e naturalista. Assimilaram suas
metáforas, expressões e formas de concepção do espaço sertanejo cearense. Todavia, elaboram
outros tantos temas e enfatizaram outros elementos do mundo natural. Um intenso dlogo se deu
entre todos esses discursos que acabaram por se entrecruzar e formar a trama de uma identidade
para a paisagem do sertão do Ceará.
A invenção da Terra da Luz: história, literatura e paisagem (1875-1914)
CONCLUSÃO
As paisagens da Terra da Luz
A relação do homem com a natureza é fonte de sensibilidades específicas e podem ser
localizadas no tempo e espaço. As palavras são capazes de transmitir as paixões humanas
junto ao mundo natural com uma grande intensidade. Elas não são capazes de transmitir, mas
elas buscam, tentam, se esforçam por expressar as sensações, emoções e pensamentos dos
homens diante das coisas, diante da dispersão de elementos, que as narrativas, que os relatos
buscam organizar em paisagens. As paisagens são fruto da organização intelectual e sensível
que os homens procuram construir para o caos que é chamado de natureza, elas nascem dos
esforços humanos por nomear, ordenar, classificar, significar os elementos dispersos à sua
volta. Estes se tornam signos a que buscam dar significado, a que buscam compreender,
tornando-os humanos, projetando o seu rosto, os elementos de sua cultura sobre a natureza,
assim se constituem paisagens, fruto da ânsia de ordem e de racionalização do mundo
moderno. A paisagem é uma construção da modernidade, é o equivalente a busca da definição
das identidades individuais, essa construção é um esforço no sentido de individualizar, dar
singularidade e identidade a dados lugares, quase sempre como projeção das próprias
identidades individuais e coletivas que se quer construir.
Dessa maneira, a Terra da Luz é uma construção paisagística imagético-discursiva da
produção literária cearense de fins do século XIX e início do século XX. A paisagem do
sertão do Ceará é tida como uma espacialidade da luz devido à preeminência do sol. Seja
quando representada de forma sublime e bela ou mesmo imaginada materialmente. Os
literatos que construíram a paisagem desse sertão simbólico possuíam formações originadas
de três tendências distintas da intelectualidade brasileira: romântica, realista e naturalista.
Entretanto, mantinham um profundo contato entre si.
Por meio das obras O sertanejo (1875), Os retirantes (1879), A fome (1890), Luzia-
Homem (1903), Aves de arribação (1903/1914) e Terra de sol (1912) da fase de produção
literária regionalista cearense é possível perceber que a paisagem sertaneja é muito mais do
que resultado da seca ou inverno. A paisagem sertaneja cearense se transforma em múltiplas
paisagens, provenientes da própria relação do sertanejo com o mundo que o rodeia. Além
disso, esses três grupos de autores abordados pelos capítulos também correspondem a três
distintas paisagens da Terra da Luz, três diferentes identidades espaciais do Ceará.
170
José de Alencar, como representante dos românticos, elaborou o sertão não da luz,
mas da sua sensibilidade e da sua própria memória de infância. Um homem que se afastou do
torrão natal para poder enunciá-lo, que procurou no sertanejo e no sertão cearenses ícones de
brasilidade. Sua formação intelectual tanto o aproximou dos ideais civilizadores vigentes no
século XIX quanto das estratégias discursivas de construção de um imaginário sobre a nação
ainda do século XVIII. Daí a sua relação com as idéias sobre o sublime e o belo, uma vez que
Edmund Burke sistematizou esses elementos que se coadunaram muito bem com a formação
discursiva romântica dos séculos XVIII e XIX. Por essas razões, a leitura alencarina do sertão
foi a primeira a ordenar simbólica e discursivamente o espaço interiorano do Ceará, dando a
ele um primeiro formato, isto é, uma primeira dizibilidade e visibilidade de Norte e Sul do
Brasil.
Para tanto, as estratégias discursivas apresentadas por Alencar criaram uma
sensibilidade identitária do sertão cearense e revelaram a composição de distintas paisagens
do espaço sertanejo cearense. Alencar trabalhou com temas de uma sensibilidade universal e
mais, estabeleceu um imaginário quanto à paisagem sertaneja cearense, nascida da dor ou do
prazer provenientes das propriedades dos objetos naturais narrados. A dor e o prazer, segundo
Burke, são fundamentais para a percepção do sublime e do belo. Sendo a dor muita mais
próxima de uma sensibilidade sublime e o prazer do belo, parte do interesse do estudo foi
identificar na obra os elementos-fonte de sublimidade e beleza trabalhados por Alencar.
Partindo dessa perspectiva, houve na obra O sertanejo a construção das paisagens solarizadas
paisagens de estiagem, resistência e inverno e da paisagem noturna. As paisagens
solarizadas predominaram na trama, dando a impressão de que o relato é essencialmente
diurno. Assim, a luz tão proeminente do sol se faz presente na maior parte da obra. Portanto,
nO sertanejo o sol possui um papel de destaque na produção da paisagem do sertão cearense.
A relação desse rei da luz com outros elementos do mundo natural dinamiza a paisagem,
dando a ela movimentos e a transformando num espaço simbólico, repleto de sensibilidade. O
mundo natural é base da construção das paisagens alencarinas.
Dessa forma, o tema maior da obra é a representação do sol, na verdade, a personagem
principal da trama, acompanhada do seu oposto em termos semânticos, a lua. Assim, mais
presente do que a dicotomia seca/inverno O sertanejo apresenta a dualidade Sol/Lua. As
paisagens são construídas a partir desses temas centrais do discurso alencarino, calcado numa
formação discursiva, respectivamente, eufórica-diurna e melancólica-noturna: na primeira
perspectiva, o autor apresenta o dia e o sol como dinamizadores da paisagem sertaneja,
capazes de criar uma sensibilidade expressa em alegria, vida, e também, paradoxalmente,
171
como em dor, tristeza e morte. Na segunda, Alencar percebe a noite e a lua como
representantes do marasmo, medo, fim de uma expectativa, da tristeza, sombra e escurio.
Todavia, essas percepções do autor dependem e variam em sua essência de acordo com
momentos climáticos da seca e do inverno. Nesse sentido, Alencar construiu pelo viés
romântico a paisagem do sertão como uma espacialidade da luz, e, portanto, é na sua obra que
a identidade da Terra da Luz começa a ser edificada.
Nas obras da literatura da seca Os retirantes, A fome e Luzia-Homem constroem a
paisagem sertaneja através de várias imagens literárias, de diferentes matizes, formas e tipos.
Os autores José do Patrocínio, Rodolfo Teófilo e Domingos Olímpio elaboraram uma segunda
leitura do sertão a partir do imaginário material da paisagem sertaneja, tanto durante a seca
como nas épocas invernosas. Para tanto, esses homens de letras se valeram de um discurso
calcado na verdade moderna da década de 1870. Além de serem romancistas, também eram
políticos, inventores e cientistas como é o caso de Teófilo e jornalistas.
Patrocínio, Teófilo e Olímpio buscaram dotar a literatura regionalista de um linguajar
coerente com o que se via, numa crença ingênua de poder dizer a verdade tal qual ela se
apresentava. Homens de uma geração que repensava o Brasil e seu dia-a-dia, participantes da
chamada geração 70, de cunho reformista e contestatório. Aliando-se a verve dessa geração se
encontra as tendências literárias realistas e naturalistas que se encaixam perfeitamente numa
forma de discurso aguerrido, contestador do qual esses literatos procuravam efetuar por meio
de seus romances voluntariamente impactantes, penetrantes e capazes de comover o público
leitor do Norte ao Sul do país. Uma vez que dentre as diversas imagens construídas a partir da
seca de 1877-79 é possível também perceber a descrição da paisagem do sertão. Essa
paisagem da seca acabou por constituir uma força simbólica incrível, capaz de se sobrepor em
relação a outras possíveis paisagens sertanejas. A descrição da terra ressequida e todas as
mazelas surgidas da falta d’água no espaço sertanejo tiveram o poder de comover, sensibilizar
os leitores para o que se acreditava representar a seca no, então, Norte do país.
Por essas razões, o sertão cearense se constituiu em objeto de transformação daqueles
literatos modernos. Era preciso dá-lo a conhecer, descrevê-lo com sua paisagem e seus
homens, para assim poder domá-lo, conquistá-lo num novo vir a ser, a modernidade. Esse
espaço era representado como mundo rural, ou seja, espaço da tradição, do atraso, da religião,
da lentidão das coisas. Portanto, um mundo a ser questionado por esses literatos que tinham o
intuito de promover mudanças sociais e políticas, por meio das interpretações científicas. Por
essas razões o Realismo e o Naturalismo foram “tendências-literárias-instrumento”, pois seus
fundamentos coincidiam com o espírito dos modernos homens de letras da geração 70.
172
Assim como nas paisagens alencarinas há na literatura da seca cearense também uma
predominância das paisagens solares, como também é clara que as imagens produzidas e sua
luz possuem um poder simbólico que pretensamente estaria ligado a matéria e à alma
sertaneja. Para tanto, os literatos da seca vão, então, assimilar as imagens literárias dessa
literatura ocidental, as reapropriando e reelaborando durante a construção de um espaço
específico: o sertão cearense. Por conseguinte, pode se concluir que o poder simbólico da
paisagem da seca tenha também a sua proveniência, uma vez que esses literatos criaram
imagens sobre como os elementos materiais se apresentavam no mundo sertanejo. Na
verdade, tratou-se de uma forma de traduzir a relação do homem com o mundo natural
sertanejo.
A paisagem construída por esses literatos da seca, portanto, é um estado da alma e,
sendo assim, recebe novos significados. Na paisagem da literatura da seca a terra é o
elemento que sempre está presente se associando com os outros elementos materiais.
Entretanto, essa paisagem essencialmente terrestre ora é passiva ora é ativa durante a união
com outros elementos materiais. A terra é a matéria por excelência da paisagem desses
homens das letras do sertão, pois é o espaço dos reinos animal, vegetal e mineral. Portanto,
pode-se afirmar que esses literatos da seca inauguram outra leitura da paisagem do sertão
cearense, outra identidade do interior do Ceará entre fins do século XIX e início do século
XX. Por fim, é preciso ter em mente que, apesar das rupturas na forma de conceber e priorizar
paisagens, a literatura da seca cearense deu continuidade à construção alencarina de um sertão
com centralidade na paisagística diurna, isto é, numa espacialidade da luz. A fim de pensar a
consolidação desse discurso paisagístico da Terra da Luz na tradição literária cearense.
As obras Terra de sol: natureza e costumes do Norte e Aves de arribação foram
produzidas e publicadas durante as duas primeiras décadas do século XX e, em parte, por essa
razão são significativas para pensar a consolidação da paisagística literária cearense porque se
constituem, praticamente, nos últimos rebentos da produção regionalista que fala em nome do
Estado do Ceará. Esses textos literários realistas e naturalistas tardios foram responsáveis por
cristalizar as especificidades da paisagem sertaneja cearense. Uma vez que a partir da década
de 1920 emerge uma nova produção literária regionalista que passa a tomar a palavra em
nome da nascente região Nordeste.
Antônio Sales e Gustavo Barroso foram homens que conseguiram manter intensos
contatos com os literatos e intelectuais da geração de 1870, tanto do Ceará quanto do Rio de
Janeiro. Assim, é possível tomar a ambos como herdeiros da tradição da chamada geração 70,
173
vinculados ao estilo literário realista naturalista de inspiração regional. Como os literatos de
1870, os dois autores escreviam sob égide da ação social, uma literatura politicamente
engajada, a literatura como missão, denunciando, descrevendo e ansiando mudanças para o
espaço sertanejo, como também anunciando as riquezas particulares desse espaço sertanejo
cearense.
As obras Aves de arribação e Terra de sol apresentam temas e enunciados
discursivamente elaborados nas obras O sertanejo (1874), Os retirantes (1879), A fome
(1890) e Luzia-Homem (1903), na verdade, eles foram assimilados e atualizados nas obras de
Antônio Sales e Gustavo Barroso. Discursos que se entrecruzaram, vozes que se uniram para
construir o espaço paisagístico cearense e, ao mesmo tempo, criar a identidade sertaneja do
Ceará.
O discurso literário de Antônio Sales é calcado nas representações sublimes e belas da
tradição romântica alencarina e nas imagens materiais dos literatos da seca. Além disso, é
importante também destacar que muitos dos temas utilizados para a construção da paisagem
cearense anteriormente são retomados e atualizados como, por exemplo, os enunciados sobre
as serras, o gado, as aves, o céu, e as nuvens. Sales contribuiu de forma significativa para uma
leitura renovada da paisagem sertaneja cearense, pois acrescenta novos elementos ao espaço
sertanejo por meio da representação de inovadores seres e objetos terrestres, aquáticos e
aéreos.
Entretanto, o quer dizer que seja uma leitura totalmente nova, uma vez que o ponto
de partida do autor provém dos literatos a ele anteriores. Portanto, Aves de arribação é uma
obra que inicia um processo de síntese da composição da paisagem sertaneja cearense até
então construída. Todavia, a síntese se completa de forma mais ampla na obra Terra de Sol:
natureza e costumes do Norte, do então ambicioso estreante literato Gustavo Barroso.
Gustavo Dodt Barroso, o último dos paisagistas sertanejos analisados no trabalho, a
partir de sua obra Terra de Sol, participa da consolidação de uma visibilidade e de uma
dizibilidade para o espaço do sertão. Ele realiza uma síntese entre as paisagens tristes,
melancólicas, mortuárias e ressequidas em oposição as outras paisagens alegres, esperançosas,
vivas, belas, repletas de harmonia entre a terra e os seus seres viventes. Para o autor, o espaço
sertanejo é então compreendido por uma dicotomia ou dualidade encontrada no interior da
própria natureza do sertão. Barroso enfatiza o que une e engendra essas paisagens: a relação
entre a água e a terra. A relação entre estes dois elementos naturais ganha simbologias
complexas, desde significados míticos até explicações técnicas sobre fertilidade e solo. Além
disso, o autor definitivamente consolida a paisagem sertaneja cearense com uma espacialidade
174
da luz, a julgar pela presença minoritária das paisagens noturnas nas descrições de Barroso
que motiva o próprio título da obra Terra de sol.
Nesse sentido, é possível concluir que tanto Antônio Sales como Gustavo Barroso se
valeram dos temas paisagísticos criados pelas gerações romântica, realista e naturalista. Delas
assimilaram suas metáforas, expressões e formas de concepção do espaço sertanejo cearense.
Todavia, elaboraram outros tantos temas e enfatizaram outros elementos do mundo natural.
Um intenso diálogo se deu entre todos esses discursos que acabaram por se entrecruzar e
formar a trama de uma identidade para a paisagem do sertão do Ceará.
A forma como ainda hoje vemos e dizemos a paisagem sertaneja cearense, em grande
medida, é o resultado da construção literária feita por essas obras escritas durante a transição
do século XIX para o século XX. Dessa maneira, a contradição entre memória e escrita,
quando se trata de representar literariamente uma paisagem sertaneja, apresentada na
introdução a partir de Graciliano Ramos encontra as suas raízes. O cânon literário
constituído para ver e dizer o espaço sertanejo cearense, que depois é tomado como referência
para se falar da paisagem do sertão de todo o Nordeste, é proveniente de uma literatura
regionalista que buscava uma identidade provinciana e, após a República, estadual. Esse foi o
momento em que os literatos falavam em nome de suas localidades de origem, não por toda
uma região.
Graciliano Ramos é dos que escreve em nomeada região Nordeste instituída,
territorializada no início do século XX. O reconhecimento de que para a descrição de uma
paisagem do sertão nordestino fosse verossímil era preciso repetir certos temas, imagens,
enunciados, indicia a força que tem a visibilidade e a dizibilidade construída para esta
paisagem pela literatura das secas, notadamente a cearense. Assim, é importante notar que a
paisagem construída por aqueles literatos sejam românticos, realistas ou naturalistas ,
ganhou foros de verdade e se difundiu para compor, como mais um tropos discursivo a
formação da identidade nordestina. O Nordeste é também uma paisagem, teria uma paisagem,
única, identitária, construída por, entre outros, os autores regionalistas cearenses do século
XIX e início do século XX. Paisagem pretensamente natural e sem história, da qual se
procura, no entanto, mostrar a sua natureza histórica.
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