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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
A CONSTRUÇÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE E DO HIV-AIDS
NO ESPIRITISMO KARDECISTA BRASILEIRO.
Javier Gutiérrez Marmolejo
Orientador: Prof. Dr. Flávio Braune Wiik
Co-orientadora: Profª. Dra. Esther Jean Langdon
Florianópolis, junho de 2007.
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2
JAVIER GUTIÉRREZ MARMOLEJO
A CONSTRUÇÃO SOCIOCULTURAL DA SEXUALIDADE E DO HIV-AIDS
NO ESPIRITISMO KARDECISTA BRASILEIRO.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Santa Catarina como
requisito parcial para a obtenção de título de
Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Flávio Braune Wiik
Co-orientadora: Profª. Dra. Esther Jean Langdon
Florianópolis, junho de 2007.
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4
En memoria de Octavio Acuña Rubio,
quien fuera brutalmente asesinado por la policía mexicana,
en la defensa del derecho a la diferencia.
5
RESUMO
Esta dissertação visa estudar a construção sociocultural da sexualidade e do HIV-Aids
no espiritismo kardecista brasileiro, através da literatura espírita sobre o tema, dos
saberes e das experiências recolhidas em entrevistas em profundidade e das informações
observadas em cursos e palestras em um centro espírita da zona leste de São Paulo e na
Federação Espírita do Estado de São Paulo.
Serão revisados os discursos espíritas relacionados à sexualidade, ao corpo, à
saúde e à doença que delimitam e carregaram de sentido o HIV-Aids, contextualizando-
se a produção de tais discursos em um processo ativo de adaptação às mudanças
históricas e políticas do Brasil moderno e contemporâneo. Observar-se-á o processo
saúde-doença espírita, assim como as tensões e os conflitos que, ao redor dos
significados da sexualidade e do HIV-Aids, existem entre os espíritas kardecistas. As
práticas terapêuticas espíritas direcionadas aos portadores do HIV também serão
revisadas nesta dissertação.
Palavras-chave: Sexualidade, Espiritismo, HIV-Aids, Saúde/Doença, Corpo.
6
ABSTRACT
This work aims to study the socio-cultural construction of sexuality and HIV-Aids in
Brazilian Kardecist Spiritism, through spiritist literature on the theme, the knowledge
and experiences collected by in-depth interviews and the information observed in
courses and lectures at a spiritist center in the eastern region of São Paulo city and at
Federação Espírita do Estado de São Paulo.
Spiritist speeches will be reviewed related to sexuality, body, health and disease
which delimitate and charge HIV-Aids with sense, contextualizing the production of
such speeches in an active process of adaptation to historical and political changes in
modern and contemporary Brazil. The spiritist health-disease process will be observed,
such as the tensions and conflicts which, around the meanings of sexuality and HIV-
Aids, exist among Kardecist Spiritists. The spiritist therapeutic practices directed to
HIV holders will also be reviewed in this work.
Keywords: Sexuality, Spiritism, HIV-Aids, Health/Disease, Body.
7
AGRADECIMENTOS
Aos trabalhadores do Centro Espírita A Caminho da Luz, em São Paulo e,
especificamente, ao grupo Solidariedade por abrir as portas do seu espaço para a
realização deste projeto. Às trabalhadoras da biblioteca Humberto de Campos, da
Federação Espírita do Estado de São Paulo, pelo seu apoio durante minha fase de
pesquisa bibliográfica. Em especial agradeço aos diferentes “informantes” que conheci
ao longo do trabalho de campo, particularmente a Felipe, Milton, Enéas e Andrei por
compartilhar suas histórias conosco.
À Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
do Ministério da Educação do Governo do Brasil, pelo apoio econômico, através do
Programa PEC-PG, para desenvolver a presente pesquisa. À Embaixada do Brasil no
México e ao Centro de Estudos Brasileiros, na cidade do México, pela sua ajuda no
encaminhamento da minha solicitação de bolsa para cursar estudos de mestrado na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no marco do programa PEC-PG.
Ao professor Flávio Braune Wiik e à professora Esther Jean Langdon pela sua amável e
esclarecedora orientação e co-orientação, respectivamente, durante todo o processo de
formulação, desenvolvimento e defesa da presente pesquisa. Ao professor Alberto
Groissman, do departamento de antropologia social da UFSC, por aceitar nosso convite
para participar da qualificação deste projeto e da defesa desta dissertação. À professora
Sônia Maluf por aceitar ser parte da banca de defesa.
Ao pessoal do departamento de antropologia social da UFSC, professores e
administrativos, particularmente a Karla Knierim, que amavelmente ajudou a resolver
minhas dúvidas e esquecimentos durante esse tempo no programa de Pós-Graduação.
A João, Thaís Travassos e Max Welcman pela revisão do português do projeto e de toda
a dissertação.
Aos meus amigos brasileiros e estrangeiros que conheci durante minha inesquecível
etapa de vida neste país: Inaê, Carol, Suzana, Vera, Adriano, Tiago, Viviane, Ediane,
Márcia e família, Fabrício, Vivi, Elder, Ric, Martin, Bruno, Guillermo, Meritxell,
8
Tanânia, Melissa, Fábio, Thaís, Felipe, João Barros, Gabriel, Adailton, Marcus
Vinicius, Ação Rebelde Dignidade Candanga e, em especial, ao meu pequeno grande
irmão Diogo Campos da Silva.
A Oscar e a María Josefina pelos diálogos e as reflexões cotidianas.
E, bem dentro do “coração”, aos meus amigos mexicanos, meus queridos pais (Silvia e
Jorge) e meus divertidos irmãos (Mariana e Jorge) pela sua constante presença, mesmo
a milhares de quilômetros de distância. A saudade, sem dúvida, ajudou a amá-los ainda
mais.
9
A AIDS é um meio de correção moral pela dor, pelo temor e pela morte do
próprio homem. Trata-se de um vírus originado de miasmas fluídicos vindos de
regiões espirituais trevosas, que foi materializado devido à libertinagem, à
promiscuidade moral-sexual do homem. E está, de fato, invadindo lares
terrestres, através da corrente sangüínea. Antes de penetrar no sangue, esse
miasma (AIDS) espiritual com forma fluídica etérea, em fração de segundo, se
infiltra no perispírito humano (corpo astral), pois que o prejuízo é duplo (no
corpo e na alma) (...) Por essa razão, o trabalho terapêutico dos Espíritos se
torna útil, pois se possibilidade em auxiliar, na parte que lhe compete (o
corpo astral), diante deste mal de origem extraterrestre. A cura da AIDS
depende não apenas de algumas normas e precauções, demarcadas pela
medicina convencional, mas principalmente de uma nova conduta moral.
Espírito Dr. Adolph Fritz através do médium Édson Cavalcante de Queiroz
Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são,
também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um existe que
esteja isento de desespero, que não tenha no fundo uma inquietação, uma
perturbação, uma desarmonia, um receio de não se sabe o quê de desconhecido
ou que ele nem ousa conhecer, receio duma eventualidade exterior ou receio de
si próprio; tal como os médicos dizem duma doença, o homem traz em estado
latente uma enfermidade, da qual, num relâmpago, raramente um medo
inexplicável lhe revela a presença interna. E de qualquer maneira jamais
alguém viveu e vive, fora da cristandade, sem desespero, nem ninguém na
cristandade se não for um verdadeiro cristão; pois que, a menos de o ser
integralmente, nele subsiste sempre um grão de desespero.
“O Desespero”, Sören Aabye Kierkegaard
10
SUMÁRIO
Resumo..............................................................................................................................5
Abstract..............................................................................................................................6
Agradecimentos.................................................................................................................7
Introdução......................................................................................................................13
1. Interpretações históricas e socioculturais sobre o espiritismo kardecista
brasileiro.
1.1 As mesas girantes parisienses e o surgimento de Allan Kardec................................19
1.2 A doutrina espírita à luz do positivismo e do evolucionismo....................................21
1.3 Continuum mediúnico, jogo de contraste ou reconfiguração cultural?.....................27
1.4 Magnetismo, homeopatia e espiritismo.....................................................................30
1.5 Chico Xavier, mediador cultural...............................................................................34
1.6 O espiritismo kardecista no contexto religioso brasileiro.........................................37
2. Gênero, sexualidade e homossexualidade no espiritismo kardecista brasileiro.
2.1 Gênero, Sexualidade e Homossexualidade...............................................................41
2.2 Sexualidade e Espiritismo.........................................................................................47
2.3 Sexo e Destino..........................................................................................................58
2.4 A descoberta e a significação do desejo sexual entre espíritas kardecistas de São
Paulo................................................................................................................................61
11
3. Corpo, saúde e doença no espiritismo kardecista brasileiro.
3.1 Corpo: campo de significados, experiências e práticas.............................................67
3.2 Um olhar à construção de corpo no espiritismo brasileiro........................................69
3.3 Saúde e doença como processo, experiência e construção sociocultural..................78
3.4 A construção sociocultural da doença entre os espíritas brasileiros..........................80
3.5 Obsessão e sexualidade.............................................................................................86
3.5.1 Experiências de obsessão em São Paulo.....................................................89
3.6 Técnicas de cura espírita............................................................................................96
3.7 Observações preliminares..........................................................................................99
4. HIV-Aids e espiritismo kardecista.
4.1 A reflexão e pesquisa acadêmica sobre o HIV-Aids...............................................101
4.2 HIV-Aids no espiritismo kardecista........................................................................105
4.3 Experiências e percepções ao redor do HIV-Aids...................................................109
4.3.1 A descoberta da sorologia positiva e a significação do vírus no contexto
espírita...........................................................................................................................109
4.4 Canção da Esperança..............................................................................................118
4.5 Visitando o Centro Espírita A Caminho da Luz......................................................126
4.6 Grupo Solidariedade................................................................................................132
4.6.1 Visita ao grupo Solidariedade...................................................................142
Considerações Finais.....................................................................................................146
Bibliografia....................................................................................................................152
12
Anexos
Anexo 1: Diagrama do corpo são espírita....................................................................160
Anexo 2: Diagrama do corpo doente espírita...............................................................161
Anexo 3: Cartão de assistência espiritual do Centro Espírita A Caminho da Luz.......162
Anexo 4: Cartão para o serviço de psicografia e “contato” com familiares falecidos do
Centro Espírita A Caminho da Luz...............................................................................163
Anexo 5: Eventos beneficentes de Nosso Lar, órgão de caridade do Centro Espírita A
Caminho da Luz.............................................................................................................164
Anexo 6: Publicidade da palestra “Reflexões sobre Sexualidade e Preconceitos”
realizada na Federação Espírita do Estado de São Paulo..............................................165
13
INTRODUÇÃO
Apresentação
Houve uma intenção desde o início. Tal intenção, desde a formação acadêmica do meu
novato olhar antropológico, residia, e ainda reside, no intuito de analisar as construções
de sentido em três áreas privilegiadas da experiência do social: a saúde, a sexualidade e
a religião.
1
O fato de abranger ditas dimensões levaria um método e uma
intencionalidade dupla: a análise do particular através da observação de sujeitos que
outorgam significados a um vírus e a uma doença, o HIV-Aids, assim como a análise
desse particular ancorado em um sistema de significados cultuais mais amplo, onde
sexualidade, moral sexual e religião modelam os corpos e as experiência dos sujeitos.
Assim, o espiritismo kardecista brasileiro foi escolhido para conduzir estas
inquietações de pesquisa por várias razões. Primeiramente, encontramos um conjunto
de saberes locais ao redor do HIV-Aids, através de romances espíritas, grupos
terapêuticos e as próprias experiências de espíritas kardecistas, que não tinha sido
sistematizado nem analisado pelas ciências sociais, portanto, o nosso esforço de
investigação poderia aportar algum conhecimento sobre o tema. Posteriormente,
encontramos um ambiente de receptividade nos primeiros grupos kardecistas
pesquisados, o que nos permitiu continuar com nosso projeto.
Em novembro de 2005 realizou-se uma primeira visita ao grupo Solidariedade,
do Centro Espírita A Caminho da Luz, na cidade de São Paulo. Este grupo,
especializado em terapias espíritas direcionadas a portadores do HIV, foi contatado
1
As fronteiras entre estas dimensões culturais não são claras, limitadas, limitantes e estáticas, pelo
contrário, elas são recriadas constantemente e em conjunto formando parte de um sistema cultural denso e
complexo.
14
através da internet no segundo semestre de 2005. A coordenadora do Centro Espírita,
assim como a coordenadora do grupo Solidariedade, conheceram nessa primeira visita o
nosso projeto permitindo a realização do trabalho de campo em 2006.
Objetivos e informantes
Inicialmente o objetivo principal de nosso projeto de pesquisa foi descrever as práticas e
representações que os espíritas kardecistas, do grupo Solidariedade, especializado em
terapias sobre HIV-Aids, outorgam ao vírus, tantos os facilitadores quanto os pacientes
portadores do HIV. Porém, ao longo do trabalho de campo percebemos que a
participação de portadores no grupo Solidariedade era baixa e inconstante. De fato,
uma pessoa participava com certa regularidade das terapias semanais, outras três o
faziam ocasionalmente e nenhuma das quatro pessoas se integrava às atividades do
Centro Espírita. O trabalho do grupo Solidariedade, portanto, enfoca-se principalmente
na atenção de espíritos “desencarnados” que teriam morrido em conseqüência do HIV-
Aids e que usariam” os corpos dos médiuns de Solidariedade, apresentando-se nas
terapias, para assim receber auxílio e consolo. Desta forma, nosso objetivo principal foi
parcialmente cumprido ao entrevistar quatro médiuns do grupo (Dona Juliana, Dona
Letícia, Seu João e Mário), e ao participar das terapias de tal grupo, conseguindo
conhecer os motivos, as representações e as práticas que os espíritas de Solidariedade
constroem no seu espaço terapêutico.
A dificuldade de conhecer espíritas portadores do HIV no grupo Solidariedade
levou-nos a pesquisar outros espaços. Assim, e perante a inexistência de terapias
espíritas direcionadas a portadores do HIV nos centros espíritas que conhecemos
durante o trabalho de campo em o Paulo, decidimos explorar espaços alternativos
15
como foi a internet. No espaço virtual visitaram-se salas de bate-papo”, sistemas de
relacionamento e grupos de discussão. Nas salas de bate-papo de UOL sobre HIV
conheceram-se cinco pessoas espíritas, quatro homens e uma mulher. uma delas, a
mulher, morava em São Paulo (a cidade onde foi feita a pesquisa) e não aceitou
participar de nossa entrevista. Finalmente, no sítio de relacionamento orkut
conheceram-se duas pessoas através das quais conseguimos chegar a nossos dois
informantes-chave, Andrei e Enéas.
O HIV-Aids, na cosmologia espírita kardecista, pelo menos na literatura
revisada e nos discursos dos espíritas entrevistados, está relacionado a uma quebra de
regras morais, relativas à sexualidade em sua maioria, que provocam uma desordem e
uma desarmonia nos corpos dos sujeitos. A homossexualidade, ainda hoje, é associada
diretamente com o HIV-Aids no meio espírita pesquisado. Por tal efeito, decidimos
entrevistar espíritas não heterossexuais, e também não portadores do HIV, como foi o
caso de Felipe e Milton, com o intuito de observar como são organizados os desejos, as
práticas, as representações e as identidades sexuais não heterossexuais no meio espírita.
Em ambos os casos, sem esperá-lo, encontramos a presença de uma sickness (Young,
1976) reconhecida como obsessão sexual” por Felipe e Milton, e para a qual, existe
etiologia e terapia espírita. Os nossos dois informantes já participaram da terapia, como
será observado neste trabalho. O contato com Felipe e Milton realizou-se do mesmo
jeito que no caso de Andrei e Enéas. Felipe foi contatado através de um grupo de
discussões sobre espiritismo e homossexualidade no servidor yahoo, Milton no sítio de
relacionamentos manhunt.
16
É importante assinalar que todas as entrevistas realizadas contaram com o
consentimento dos entrevistados, eles souberam desde o começo o caráter desta
pesquisa e aceitaram participar voluntariamente deste esforço acadêmico. Para proteger
a identidade dos entrevistados, decidiu-se trocar todos os nomes por outros fictícios.
Assim, perante as dificuldades e os achados no trabalho de campo, decidiu-se
continuar com a exploração dos significados outorgados ao HIV-Aids tanto no grupo
Solidariedade (facilitadores), como fora deste (portadores), desde a perspectiva de
sickness (Young). Ao mesmo tempo, optou-se por analisar a questão da obsessão sexual
no caso de Felipe e Milton; revisar a bibliografia espírita sobre corpo, saúde/doença,
sexualidade e HIV-Aids, inclusive romances espíritas como Sexo e Destino (Xavier e
Vieira, 2003) e Canção de Esperança (Pinheiro, 2002) e contextualizar os significados
e as práticas terapêuticas espíritas nas raízes históricas do kardecismo brasileiro sem
deixar de lado as análises que sobre este sistema religioso têm sido construídas pelas
ciências sociais.
Métodos e Técnicas de Pesquisa
Realizou-se uma pesquisa bibliográfica intensa sobre a história do espiritismo, o
espiritismo brasileiro e as noções de corpo, saúde/doença, sexualidade e HIV-Aids nas
obras de Allan Kardec, Chico Xavier e de outros intelectuais e romancistas espíritas
como Jorge Andréa, Carlos de Brito Imbassahy, Jacob Melo, Aureliano Alves Netto,
Américo Domingos Nunes Filho, Therezinha Oliveira, Robson Pinheiro, Herculano
Pires e Luiz Schvartz. Esta parte da pesquisa possivelmente seja excessiva no próprio
desenvolvimento da dissertação, contudo, o espiritismo kardecista é uma religião que se
17
baseia na produção literária e recorre cotidianamente a esta produção no seu processo de
evangelização.
Entre fevereiro e junho de 2006 realizou-se trabalho de campo nas diversas
atividades do Centro Espírita A Caminho da Luz, inclusive, cursou-se a matéria
semestral Curso Básico de Espiritismo, subministrada todas as terças-feiras, das 20h00
às 22h00. Os trabalhadores do grupo Solidariedade deixaram o pesquisador participar,
em duas ocasiões, das atividades terapêuticas do grupo realizadas as segundas-feiras de
tarde. Assim, esta participação permitiu realizar uma etnografia sobre o trabalho de
Solidariedade. Em um início haviam-se realizado etnografias, através da observação
participante (Guber, 2001), das diferentes atividades do Centro Espírita. Contudo,
preferiu-se somente apresentar aquelas relacionadas com o processo saúde-doença e
com a questão do HIV-Aids.
A entrevista e a entrevista em profundidade (Guber, 2001; Goldenberg, 1999)
foram utilizadas para dar conta das experiências, práticas e representações sobre
sexualidade, saúde/doença e HIV-Aids expressadas nos discursos dos informantes. A
maioria das entrevistas foi gravada com o consentimento dos interlocutores.
Os Capítulos
Para entender a construção das hierarquias de valores espíritas é importante analisar a
origem evolucionista e positivista do próprio kardecismo, portanto, o primeiro capítulo
deste trabalho visa analisar a origem, o surgimento e a configuração do espiritismo
kardecismo na França do século XIX. A apropriação e a ressignificação do kardecismo
no Brasil são revisadas, também neste primeiro capítulo, a partir dos trabalhos que
18
sociólogos, antropólogos e historiadores têm produzido sobre o tema no contexto
religioso brasileiro. as discussões sobre gênero, sexualidade e homossexualidade,
que são modeladas e modelam à moral sexual espírita, aparecem no capítulo segundo
junto às trajetórias sexuais de Felipe e Martin. O capítulo terceiro, por sua vez, discorre
sobre a construção sociocultural de corpo, saúde e doença no espiritismo kardecista,
enfatizando a questão da obsessão, em matéria sexual, através da experiência mediúnica
de Felipe e Martin. Por último, o capítulo quatro analisa a questão do HIV-Aids a
partir: 1) dos conhecimentos observados nos capítulos anteriores, 2) das experiências
dos próprios portadores (Andrei e Enéas), 3) das entrevistas (Dona Juliana, dona
Letícia, Dom João, Mári) e do trabalho terapêutico no grupo Solidariedade e 4) da
análise do romance espírita Canção da Esperança.
19
INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS E SOCIOCULTURAIS SOBRE O
ESPIRITISMO KARDECISTA BRASILEIRO
1.1 As mesas girantes parisienses e o surgimento de Allan Kardec.
Os salões nobres de Paris e Lyon abriram suas portas, em meados do século XIX, às
sessões de “mesas girantes”, ou “dança das mesas”, fenômeno e espetáculo importado
diretamente dos Estados Unidos. Nesses encontros, comerciantes prósperos, notários
bem sucedidos, senhoras de boa reputação” e todo tipo de curiosos testemunhavam,
com certa fascinação e divertimento, os giros, saltos e movimentos de mesas, cadeiras e
outros objetos manipulados por “espíritos desejosos de comunicação”.
Mas nem todo parisiense nem lionense confiava nas mesas girantes e tampouco
nas comunicações com os espíritos. Um desses céticos, Hippolyte-Léon Denizard
Rivail, anos mais tarde conhecido como Allan Kardec, via nelas uma história “de fazer
dormir”. Contudo, a sua curiosidade cética o levou ao estudo dos fenômenos
sobrenaturais. Depois de acreditar que as mesas eram veículo de comunicação primária
com os espíritos, Rivail decidiu ir mais longe ainda conseguiu construir uma doutrina
conhecida como espiritismo, que faria uma releitura da moral judaico-cristã à luz das
exigências da modernidade, amparada nos preceitos da razão, da ciência e do progresso
e inserida no movimento positivista e evolucionista da época.
Kardec foi um dos discípulos mais próximos de Pestalozzi, pioneiro da
pedagogia moderna, promotor da educação popular e, a sua vez, discípulo de Jean-
Jacques Rousseau. O método de ensino promovido pelo pedagogo suíço, onde se
começa do simples achegar ao complexo, é retomado pelo seu aluno na elaboração
20
das obras sicas da doutrina kardecista. Sem dúvida, a influência do mestre deixaria
uma forte marca no projeto de divulgação educativa de Kardec, verificável tanto na sua
pedagogia infantil, quanto no seu projeto doutrinário.
Após ter dedicado trinta anos de sua vida a um método educativo e pedagógico para
promover uma nova instrução escolar, em 1857, aos 53 anos, Rivail acabou tornando-se
Allan Kardec. O pseudônimo pelo qual Rivail ficou conhecido foi adotado depois que,
em uma das sessões espíritas, um médium lhe contou que em vidas passadas ele teria
sido um sacerdote celta (druida) de nome Allan Kardec.
2
Seis anos após ter começado o seu contato com os espíritos, em 1857, Kardec
decide seguir caso às sugestões de seus “guias espirituais” publica um primeiro livro,
O Livro dos Espíritos, com os ensinamentos que lhe teriam sido ditados para serem
transmitidos ao mundo, cumprindo a missão que lhe fora confiada pela Providência
(Doyle, 1960: 394). A recepção do livro na França provocaria polêmica, o que
aumentaria o vel de vendas da publicação e motivaria Kardec a continuar seus planos
literários. Em 1861 publicaria O Livro dos Médiuns; em 1864, O Evangelho Segundo o
Espiritismo; em 1865, O Céu e o Inferno e em 1867, A nese. Estas cinco obras
constituiriam o pilar básico da doutrina espírita.
Comprometido com o seu projeto, Kardec, junto a sua esposa Amélie Gabrielle
Boudet, funda a Sociedade Parisiense de Estudos Psicológicos em 1858. Os seus
2
De acordo com Léon Denis, um dos principais pensadores espíritas franceses e colaborador de Kardec,
seu mestre foi druida antes do ano 58 a.c. na Bretanha. Entre 1369 e 1415, antes do reencarne” em
Rivail, o espírito de Kardec tomaria forma no corpo de Jan Huss, reformador religioso de Boêmia que
iniciou um movimento de renovação católica, o que lhe valeu ser excomungado em 1410, condenado pelo
Concílio de Constança e queimado vivo tempos depois. Alguns espíritas brasileiros acreditam que Kardec
reencarnou no século XX em terras mineiras e no corpo do máximo dirigente espírita do Brasil: Chico
Xavier. Tanto Jan Huss como Kardec e Chico Xavier foram excomungados pela Igreja Católica.
21
participantes reuniam-se semanalmente na casa do “codificador” da doutrina espírita
para estudar os ensinamentos dos espíritos, incentivar a formação de novos grupos e
obter comunicações através da psicografia.
3
No mesmo ano, Kardec criou a Revue
Spirite, revista mensal que ele editou até 1869. Ainda hoje os espíritas franceses
publicam a revista, embora o espiritismo tenha perdido força na França e na Europa ao
longo do século XX.
Apesar de ser defendida como uma doutrina cristã, o espiritismo foi duramente
perseguido pela Igreja Católica. O episódio mais conhecido ocorreu em Barcelona, em 9
de outubro de 1861, quando, por ordem do bispo da cidade, foram queimados, numa
enorme fogueira, 300 livros sobre a doutrina espírita. Os ataques a Kardec também
vinham na forma de cartas ferinas, artigos em jornais e de suspeitas levantadas por
colegas da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas que diziam que Kardec teria
enriquecido à custa do espiritismo.
1.2 A doutrina espírita à luz do positivismo e do evolucionismo.
A doutrina espírita, em contraposição ao espiritualismo anglo-saxão, aceita a
reencarnação como parte do processo que cada ente atravessa na sua perfeição e
evolução espiritual. É no Livro dos Espíritos (1857) que se encontrarão os preceitos
3
Em O Livro dos Médiuns distinguem-se dois tipos de psicografia: a indireta e a direta. Nos dois casos é
o espírito que se manifesta através do dium, pensam os espíritas. A diferença entre as duas é o uso de
instrumentos como a cesta ou a prancheta na psicografia indireta. Na direta o espírito comunicante age
sobre o médium; este, assim influenciado, move maquinalmente o braço e a mão para escrever, não tendo
(pelo menos no comum dos casos) a menor consciência do que escreve” (Kardec, 1993:165). A produção
de obras espíritas psicografadas no Brasil é muito ampla, alguns destes livros ainda hoje se destacam
entre os mais vendidos, particularmente os publicados pelos médiuns Zibia Gasparetto e Chico Xavier.
Este último autor publicou mais de 300 obras psicografadas, a maioria delas com autoria dos espíritos
André Luiz e Emmanuel.
22
básicos do espiritismo: a existência do espírito e sua sobrevivência após a morte, as
reencarnações sucessivas, a comunicabilidade e relacionamento entre espíritos
encarnados e desencarnados, a lei de causa e efeito, assim como a evolução progressiva.
Já no Livro dos Médiuns (1861) e na obra A Gênese (1868) discorre-se sobre as
questões científicas” mediunidade e formação do Universo, respectivamente. Por
último, no Evangelho segundo o Espiritismo (1864) e no Céu e o Inferno (1865),
Kardec propõe um sistema normativo e moral, à luz da modernidade, a partir da sua
releitura dos ensinamentos cristãos enfocado na revisão do Novo Testamento.
As cinco obras básicas de Kardec, assim como a maioria de suas publicações,
foram escritas a partir dos “ensinamentos dados pelos Espíritos Superiores”, asseguram
os espíritas franceses da época: “entre os Espíritos que concorreram para a realização
desta obra muitos viveram em diversas épocas na Terra, onde pregaram e praticaram a
virtude e a sabedoria; outros, não pertencem, pelo nome, a nenhum personagem cuja
lembrança a História tenha guardado, mas sua elevação é atestada pela pureza dos seus
ensinamentos e sua união com aqueles que trazem nomes venerados” (Kardec,
1999:42). Entre os espíritos conhecidos que “ditaram” os ensinamentos espíritas
destacam-se: São João Evangelista, Santo Agostinho, o Vicente de Paulo, São Luís,
Sócrates, Platão, Fénelon, Franklin e Swedenborg.
Na última obra publicada por Kardec, A Gênese, marca-se a lógica do método
doutrinário baseado no positivismo:
(...) como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma
forma que as ciências positivas, aplicando o método experimental. Fatos novos
se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os
observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas, chega à lei que
os rege; depois, deduz-lhes as conseqüências e busca as aplicações úteis
(Kardec, 2005b:28).
23
Para o pai do positivismo, Augusto Comte, a sociedade humana é regulada por leis
naturais, ou por leis que têm todas as características das leis naturais, invariáveis,
independentes da vontade e da ação humana (Löwy, 1985:35-36). Os métodos e
procedimentos utilizados pelas ciências positivas para conhecer a sociedade são
exatamente os mesmos que são utilizados para conhecer a natureza, como bem aponta
Allan Kardec na sua proposta metodológica positivista: método experimental, processo
causa-efeito, construção de leis que regem um sistema que busca ser harmonioso.
Como Comte, Kardec também procura a defesa da ordem estabelecida perante uma
burguesia francesa distanciada dos movimentos revolucionários de 1789 e, a partir de
1830, transformada em dominante e conservadora (Löwy, 1985:40).
As leis que comandam a natureza e seus conteúdos estariam ditadas por um
criador. Para o espiritismo existem dois mundos, o espiritual e o corporal ou material.
O mundo espírita é o mundo “normal, primitivo, eterno, preexistindo e sobrevivendo a
tudo”, enquanto o mundo corporal é “apenas secundário, poderia deixar de existir ou
nunca ter existido, sem alterar a essência do mundo espírita”. Ambos os mundos, assim
como os seres animados e inanimados, foram criados por um Deus “eterno, imutável,
imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom” (Kardec, 1999:18).
Segundo Kardec, entre as diferentes espécies de seres corporais, a espécie
humana foi escolhida por Deus para a encarnação dos espíritos que atingiram certo grau
de desenvolvimento, o que lhe daria a superioridade moral e intelectual sobre outros.
No ser humano, haveria três coisas fundamentais: 1) o corpo ou ser material semelhante
ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital; 2) a alma ou ser imaterial,
espírito encarnado no corpo; 3) o laço que une a alma ao corpo, princípio intermediário
24
entre a matéria e o espírito. Esse laço, também conhecido como perispírito,
4
seria uma
espécie de envoltório semi-material.
O espírito seria um ser real, definido, em alguns casos poderia ser reconhecido,
avaliado pelos sentidos da visão, da audição e do tato. Os espíritos pertenceriam,
seguindo a lógica evolucionista da época, a diferentes ordens e classes e o seriam
iguais em poder, inteligência, saber nem em moralidade. Todos os espíritos
melhorariam ao passar pelos diferentes graus de hierarquia espírita. Esse progresso
ocorreria pela encarnação, que seria imposta a alguns como expiação e a outros como
missão. A vida material seria uma prova que deveriam suportar várias vezes, até que
teriam atingido a perfeição absoluta. Seria uma espécie de exame severo ou de
depuração, de onde sairiam mais ou menos purificados.
A escala evolutiva espírita, dividida em dez classes progressivas, nunca
regressivas, considera uma série de virtudes e características julgadas como positivas
bondade, proteção, caridade, benevolência, sabedoria a partir de um marco moral
5
destinado a uma quase santificação e perfeição do indivíduo, semelhante ao sistema de
valores associados à vida de Cristo. Tais virtudes são acompanhadas de novos
elementos como a ciência, a técnica e o conhecimento, os quais teriam um papel
legitimador na ressignificação da moral judaico-cristã e na credibilidade da explicação
teológica espírita num mundo cada vez mais ligado à razão e mais “livre” da e da
religião. A iminência do materialismo, assim como a presença cada vez maior da
ciência e da cnica no espaço público e privado, possivelmente pressupunha, no
pensamento de Kardec, uma paulatina perda de solidariedade e desumanidade entre as
4
Sobre a noção de perispírito e corpo falar-se-á no capítulo 3.
5
A moral, para Kardec, é “a regra do bom proceder, ou seja, a que permite distinguir entre o bem e o mal.
Ela é fundada sobre o cumprimento da lei de Deus.” (Kardec, 1999:230).
25
pessoas, perante o qual se deveria reformular um novo projeto moral de acordo com os
novos tempos modernos.
As teorias evolucionistas do século XIX e começos do XX, representadas por
Herbert Spencer, Lewis Henry Morgan e Edward Tylor, entre outros, e baseadas na
teoria da seleção natural de Charles Darwin, teriam como pressuposto a evolução
gradativa de grupos e sociedades através do aperfeiçoamento da tecnologia. Para estes
teóricos, haveria vários estados na escala evolutiva, o mais alto seria o estado da
“civilização”, berço geográfico e cultural destes pensadores. Assim, uma técnica e uma
tecnologia avançadas levariam uma sociedade ao grau de civilizada, o que seria
refletido na sua organização social, econômica e política. As idéias evolucionistas,
como podemos testemunhar, formam parte da proposta do sistema moral de Allan
Kardec.
Em relação à lei do progresso, assinala-se que o estado natural é o estado
primitivo e que a civilização é incompatível com o estado natural, portanto, a lei natural
contribui para o progresso da humanidade. O estado natural seria a infância da
humanidade e, ao mesmo tempo, o ponto de partida de seu desenvolvimento intelectual
e moral. Tal estado natural seria transitório, “o homem liberta-se dele pelo progresso e
pela civilização” (Kardec, 1999:268). Apesar de que o homem se desenvolve
“naturalmente”, nem todos progridem ao mesmo tempo, é por isso que os mais
avançados ajudam pelo contato social o progresso dos outros, sugere Kardec. É
interessante observar que nessa ação de ensino realizada desde os mais “evoluídos” aos
menos “evoluídos”, aparece a noção de livre-arbítrio: o indivíduo teria a liberdade de
26
escolha inclusive depois de entender o significado de bem e mal oferecido pelos
espíritas e pelos espíritos.
dois tipos de progresso no pensamento kardecista: o intelectual e o moral. O
primeiro deles pareceria avançar com maior rapidez que o segundo, preocupando
sensivelmente aos espíritas: “entre os povos civilizados, o progresso intelectual recebeu,
neste século, todos os incentivos possíveis e atingiu um grau desconhecido até os nossos
dias. Falta algo ao progresso moral para que esteja no mesmo nível” (Kardec,
1999:270). Sem dúvida, uma inquietação palpável em relação à disparidade entre
progresso científico e convivência social para os espíritas fundadores da doutrina.
Possivelmente, o seu projeto e proposta moral, amparados nos pilares do prestígio
científico daquela época, eram considerados uma solução à provável crise produto de tal
disparidade, assim como uma justificativa moral para legitimar o papel civilizatório e
colonialista dos governos europeus em um mundo, particularmente o americano, cada
vez mais agitado na sua procura de independência e liberdade.
Como podemos ver, o positivismo e o evolucionismo, teorias amplamente
discutidas no meio intelectual europeu do século XIX, são os pilares da epistemologia
kardecista. Augusto Comte, na sua filosofia positiva, pretendia restabelecer a
primazia do poder espiritual diante da “falta” de ordem e da dissociação das leis, dos
costumes, das crenças e das idéias após a Revolução Francesa. A ordem, em Comte,
está ligada à idéia de hierarquia como sistema de subordinação rígida da parte ao todo,
do inferior ao superior, do processo ao resultado: pelo progresso à ordem”, sendo que
tal progresso consagrar-se-ia através da reforma moral oferecida pela nova “religião”
positivista. As preocupações e as propostas de Kardec, portanto, são próximas às idéias
27
de Comte e visam enfrentar as três grandes “ameaças” modernas: o protestantismo, o
ceticismo e o materialismo.
O positivismo não chegará a dominar completamente o panorama político
francês. Porém, ele consegue influenciar profundamente a América Latina,
particularmente o xico, o Chile e o Brasil. Neste último país a revolução de 1889
coloca, inclusive, a divisa de Ordem e Progresso na sua bandeira. Assim como Comte,
Kardec terá uma grande influência no pensamento brasileiro dos últimos anos do século
XIX e, à diferença de Comte, durante todo o século XX.
1.3 Continuum mediúnico, jogo de contraste ou reconfiguração cultural?
A pesquisa e o debate acadêmico sobre o espiritismo kardecista brasileiro são presentes,
pelo menos desde a década de 1960, no cenário universitário das ciências sociais e
humanidades (Bastide, 1960; Camargo, 1961; Cavalcanti, 1983; Machado, 1983;
Warren, 1986; Aubrée e Laplantine, 1990; Ortiz, 1991; Damazio, 1994; Giumbelli,
1997; Greenfield, 1999; Stoll, 2003; Lewgoy, 2004; Silva, 2005).
Sandra Stoll, na obra Espiritismo à Brasileira (2003), identifica dois ângulos a
partir dos quais têm-se construído uma perspectiva comparativa e relacional sobre a
história do espiritismo no Brasil:
(...) de um lado, o que define o Espiritismo “à brasileira” são diferenças que se
observam na sua prática, em contraposição àquelas que vigoraram inicialmente
na França; de outro, singulariza-o a forma como veio a se inserir no campo
religioso local, dialogando mais proximamente, conforme assinala a maioria
dos autores, com as religiões de tradição afro (Stoll, 2003:57).
28
A antropóloga destaca, primeiramente, os discursos tanto de pesquisadores como de
espíritas brasileiros em relação a um suposto contraste entre um espiritismo francês
“racional” e “científico” e um espiritismo brasileiro mais ligado ao espaço do “místico”
e do “religioso”; como se a doutrina kardecista tivesse se distorcido ao chegar às terras
brasileiras. Aliás, pode-se observar certa lógica excludente entre pensamento científico
e pensamento religioso nesse primeiro contraste.
Um segundo contraste observado por Stoll remete à inserção do kardecismo no
campo religioso local, tornando-se corrente o uso de contraponto em relação às religiões
afro-brasileiras. Nesta perspectiva, segundo a autora, consolidaram-se duas vertentes:
1) o espiritismo num continuum variação empírica de um mesmo princípio de
estruturação cosmológica e de produção de experiência religiosa e, por outra parte, 2) o
espiritismo em termos de simples oposição, como uma espécie de espelho invertido das
religiões afro-brasileiras, seja quanto às suas características sociais e étnicas, seja
quanto à estrutura ritual e doutrinária.
Para Stoll, este enfoque que faz dos cultos de possessão uma unidade, seja por
afinidade ou oposição, é pertinente; contudo, oculta ou relega as relações mantidas pelo
espiritismo com o sistema religioso hegemônico brasileiro, o catolicismo. Não se
dimensiona como o imaginário e as práticas católicas impactaram o espiritismo,
influenciando de forma significativa o modo de sua expressão no Brasil, portanto, o
se leva em consideração a complexidade das relações que caracterizam o campo
religioso, as quais envolvem necessariamente conflito, concorrência e disputas por
hegemonia e sobrevivência, sugere a antropóloga.
29
Com base na proposta de Clifford Geertz (Observando el Islam) sobre o
processo de universalização das religiões, no qual as diferenças no modo de se praticar
uma mesma religião decorrem de uma tensão que é inerente a tal processo de adaptação
da religião às realidades locais e preservação dos princípios religiosos garantindo certa
identidade, Sandra Stoll parte para assim analisar as especificidades do espiritismo
brasileiro propondo que:
(...) o Espiritismo define a sua identidade, elegendo como sinais diacríticos
elementos do universo católico (...) O espiritismo brasileiro assume um “matriz
perceptivelmente católico” na medida em que incorpora à sua prática um dos
valores centrais da cultura religiosa ocidental: a noção cristã de santidade.
(Stoll, 2003:61)
Por sua vez, Ubiratan Machado (1983) e Sylvia Damazio (1994) preocuparam-se em
construir a história do espiritismo brasileiro enfatizando uma de suas fontes de status: a
sua produção literária. Para Machado, o espiritismo entrou com o pé direito numa
sociedade em que o europeu carregava um forte status frente ao nativo, tendo na colônia
francesa, moradora do Rio de Janeiro, o principal berço de prestígio:
A adesão desses franceses ao espiritismo, longe de comprometer-lhes a
reputação, criava um certo halo de progressismo exótico ao redor de suas
cabeças. Assim, para os brasileiros, a doutrina de Kardec vinha sagrada por
sua origem européia (o que para a época, apesar de todo o propalado
nativismo, ainda era um forte argumento), sendo consagrada por emigrados
europeus perdidos nos trópicos (Machado, 1996:72).
para Damazio, o espiritismo conseguia aproximar, nos grupos da elite brasileira e das
camadas médias emergentes, a faceta explicativa das ciências positivas à crença
religiosa num destino transcendente da humanidade. Esta integração”, de um aspecto
fundamental do pensamento moderno a um aspecto fundamental do pensamento
30
“tradicional” foi, para Damazio, um dos fatores determinantes para a aceitação do
espiritismo num primeiro momento.
No seu livro Os Intelectuais e o Espiritismo, Machado analisa
historiograficamente a difusão do kardecismo no Brasil através das repercussões nos
meios intelectuais e de poder político carioca, baiano e pernambucano.
6
Machado
observa no “processo de abrasileiramento” do espiritismo a perda do caráter
experimentalista e científico que supostamente caracterizava o espiritismo francês, e o
realce do religioso no caso brasileiro. Por sua parte, Sylvia Damazio explora, na sua
obra Da Elite ao Povo: Advento e Expansão do Espiritismo no Rio de Janeiro, a
chegada e expansão do movimento espírita no Brasil e, especificamente, no Rio de
Janeiro. Damazio afirma que o aspecto taumatúrgico favoreceu o crescimento de
espiritismo em todas as classes sociais brasileiras. Retomaremos alguns pontos dos
desenhos historiográficos de Machado e Damazio, pois neles encontramos alguns traços
que remetem às primeiras noções sobre terapia e cura espírita.
1.4 Magnetismo, homeopatia e espiritismo.
Tanto o fenômeno do magnetismo, como a prática da homeopatia, ambos conhecidos
e realizados por alguns setores da sociedade brasileira do século XIX, abriram o
caminho para a chegada do espiritismo ao Brasil, propõe Damazio. Franz Anton
Mesmer, fundador do mesmerismo, acreditava na existência de um fluido invisível que
envolvia todo o universo e penetrava em todos os corpos. Assim, ele desenvolveu uma
6
Uma análise historiográfica análoga sobre a chegada do espiritismo e sua recepção no contexto
intelectual e político mexicano encontra-se em: LEYVA, José Mariano. El Ocaso de los Espíritus. El
espiritismo en México en el siglo XIX. México: Ediciones Cal y Arena, 2005.
31
concepção própria de saúde e de doença: a saúde era o estado em que a substância,
denominada magnética, fluía normalmente pelo organismo; a doença, uma decorrência
de algum obstáculo ao fluir constante da substância, o que comprometia o
funcionamento harmonioso do organismo. A aplicação prática de tais concepções de
Mesmer implicou a criação de um método de cura que buscava restaurar a saúde através
do restabelecimento do fluxo normal do fluido magnético. Para tanto, Mesmer e seus
seguidores utilizavam-se dos dedos, ou de varetas, como condutores do fluido,
apontavam para o local afetado, como isso provocando uma crise no paciente, em
virtude da carga fluídica adicional que projetavam. Para acelerar o efeito da
transferência do fluido, o mesmerizador”, ou “magnetizador”, poderia aplicar as mãos
de leve e massagear a parte doente, prática que, para Damazio (1994:79-80), é
precursora dos passes” aplicados por Hahnemann, fundador da homeopatia e,
posteriormente, pelos passes aplicados pelos espíritas.
No ano 1853 os fenômenos das mesas girantes, associados ao magnetismo,
foram praticados em diferentes partes do território brasileiro. Um ano depois, no Ceará,
as mesas girantes passariam a servir de intermediárias entre vivos e mortos. Os
experimentadores cearenses, conta Machado (1996:51), repudiavam o magnetismo
animal e atribuíam a origem do fenômeno à interferência dos espíritos.
Machado sugere que, com a divulgação crescente do magnetismo, viveu-se uma
espécie de substituição do feiticeiro pelo magnetizador, da magia com origem africana
pela “misteriosa ciência” européia, o que deixaria ao espiritismo campo fértil para sua
inserção na terra brasileira. Para Damazio, não apenas o magnetismo facilitou a rápida
32
aceitação do espiritismo no Brasil, também a homeopatia permitiria à prática espírita ter
um amplo leque de possíveis receitas mediúnicas.
Hahnemann construiu um conceito de saúde e de doença muito próximo ao de
Mesmer. O estado de saúde seria aquele em que os funcionamentos do corpo e do
espírito se fizessem harmoniosamente, em equilíbrio, com a força vital; o estado de
doença, a perda da harmonia.
7
Para Damazio (1994:86), a interpretação metafísica dos
conceitos de Hahnemann de organismo, espírito, força vital, saúde e doença facilitariam
a adesão de inúmeros médicos e leigos espiritualistas à doutrina médica não oficial.
Após o advento do espiritismo, tornou-se comum a prática da caridade pelo
atendimento médico homeopático aos necessitados. Entende-se a opção pela
homeopatia por parte dos espíritas se atentamos para a semelhança existente entre os
conceitos de Hahnemann e os de Kardec. A força vital, sugere Damazio, tem sua
equivalência na noção de perispírito de Kardec, que é a de um organismo fluídico que
relaciona o corpo e o espírito, passível de ser afetado por agentes imateriais, também
fluídicos.
Entre os principais brasileiros que aderiram ao espiritismo destaca-se o
historiador e médico baiano Melo Moraes, um dos pioneiros no estudo do magnetismo e
da homeopatia. Precisamente, foi na Bahia onde o espiritismo teve uma das maiores
receptividades na sua chegada ao Brasil. Machado pensa que talvez a aceitação prévia
7
O Dr. Bruckner, dico homeopata alemão, estabeleceu quatro princípios essenciais da homeopatia: 1)
empregar uma substância medicinal simples; 2) estudar a ão desta substância medicinal simples no
organismo humano, provocando doenças artificiais; 3) administrar estas substâncias medicinais simples
sob uma forma preparada seguindo novas regras farmacotécnicas; 4) tentar o emprego destas substâncias
medicinais simples estabelecendo uma relação (afinidade) entre as doenças artificiais que elas provocam
com as doenças naturais que elas curam.
33
da homeopatia e do magnetismo nos estratos letrados da sociedade baiana tivesse
ajudado a legitimização do espiritismo, incorporando médicos e escritores prestigiados.
Por causa da proximidade filosófico-conceitual, a homeopatia foi adotada pelos
espíritas como forma preferencial de tratamento de saúde, assim, constituiu-se em
veículo para a prática da caridade. Uma das figuras que exemplificam a união entre
homeopatia e a caridade é Adolfo Bezerra de Menezes, um dos maiores expoentes da
doutrina espírita no Brasil. Bezerra de Menezes foi médico alopata até se “converter” ao
espiritismo quando, “sob inspiração”, passou a receitar remédios homeopáticos
(Damazio, 1994:87).
Além dos médicos homeopatas havia, na chegada do espiritismo ao Brasil, um
número considerável e crescente de leigos que receitavam quando em estado de transe
mediúnico: eram os receitistas. A clientela desses médiuns era muito heterogênea,
incluindo desde gente pobre, que costumava recorrer aos curandeiros, até pessoas de
destaque na vida nacional, como o senador Quintino Bocaiúva e o então presidente
Prudente de Morais (Damazio, 1994:90).
Em 17 de setembro de 1865, funda-se o primeiro grupo kardecista, segundo os
registros históricos e literários consultados por Machado. O Grupo Familiar do
Espiritismo de Salvador começaria a receber as mensagens do “além túmulo”
inaugurando uma nova fase no cenário religioso brasileiro: a institucionalização dum
novo sistema religioso, trazido da Europa, que se modelaria e recriar-se-ia no contexto
cultural brasileiro.
34
1.5 Chico Xavier, mediador cultural.
Para entender o espiritismo kardecista brasileiro contemporâneo é preciso analisar a
figura espírita mais representativa do Brasil, Chico Xavier, que marcaria, junto à
Federação Espírita Brasileira, o rumo que o espiritismo tomaria na sua consolidação
como doutrina e prática. Para tal efeito de estudo, vamos recuperar algumas das
propostas de análise histórica e antropológica que Stoll (2003), Lewgoy (2004) e Silva
(2005) têm desenvolvido nos anos recentes em relação a Chico Xavier e seus textos.
Bernardo Lewgoy, na obra Chico Xavier, O Grande Mediador; Chico Xavier e a
cultura brasileira, oferece uma interpretação antropológica da trajetória e presença do
mestre espírita no cenário cultural brasileiro. Para Lewgoy, Chico Xavier é um
fenômeno religioso de características míticas (Lévi-Strauss, 1975) como o são alguns
santos e profetas fundadores de religiões que precisa ser estudado mais além dos seus
textos orais e escritos. Líder religioso, mediador cultural (reinterpreta a mensagem
espírita para o encontro entre uma religiosidade de letrados e os valores cultivados pelas
classes populares), cidadão modelar e profeta nacionalista intramundano são algumas
das frentes de atuação que, segundo Lewgoy, fazem parte da unidade do fenômeno
Chico Xavier. Trata-se, agrega o antropólogo, “de um personagem cercado de uma aura
de sacralidade, modelo de uma proposta religiosa de alta ressonância na sociedade
brasileira, tendo cumprido um papel central na criação de um espiritismo singularmente
“brasileiro”. Sua trajetória ilustra os dilemas do século XX, principalmente no que tange
ao sincretismo com a “cultura católica brasileira” (Sanchis, 1994) e com um modelo de
Estado Nação influenciado pelo nacionalismo das décadas de 1920 a 1930” (Lewgoy,
2004: 13-14).
35
Desta maneira, Lewgoy reconhece em Chico Xavier um mediador religioso e
cultural que incorpora elementos da influência católica e do evolucionismo rmico
reencarnacionista, dialoga e costura “sistemas éticos e cosmológicos opostos de carma e
da graça”, além de aproximar o catolicismo popular e o espiritismo. Lewgoy também
observa em Chico Xavier um mediador religioso entre tradição e modernidade, entre
religião e valores laicos, a recriação dos personagens culturais do renunciante” e do
“caixa”, seguindo a proposta de Roberto da Matta (1979). Finalmente, Lewgoy destaca
em Chico Xavier uma tentativa de articulação entre duas esferas distintas na sociedade
brasileira do século XX, a Religião e o Estado, o sagrado e a ordem secular, dissonantes
e desencontradas desde a Proclamação da República e que ganham novos conteúdos à
medida que o Brasil vai se tornando uma sociedade complexa, urbana e industrial”
(Lewgoy, 2004:16).
Antes de Lewgoy, Sandra Stoll já havia identificado certo modelo católico de
santidade na construção do mito Chico Xavier. Os votos monásticos de castidade,
8
pobreza e obediência obediência aos espíritos superiores foram os elementos
fundamentais observados por Stoll na elaboração da imagem pública de Chico Xavier.
Com bases em tais elementos, Chico Xavier “fundiu a prática da mediunidade espírita
ao modelo de virtuosidade característico da religião culturalmente dominante no país.
Com isso criou em torno de si uma aura de credibilidade que contribuiu para consolidar
sua liderança religiosa”, afirma Stoll (2003:173).
8
Sandra Stoll comenta que a castidade de Chico Xavier deu passo a uma série de especulações sobre sua
suposta homossexualidade. Para responder às insinuações sobre sua conduta sexual, Chico utilizava certas
frases como De que vale um perfume preso a um frasco?”, “Por que ficar preso a uma mulher?ou
“Minha família é a humanidade”. (Stoll, 2003:172).
36
Considerando as propostas teóricas de Edmund Leach sobre santidade, Stoll
(2003:193) afirma que esta “resulta de uma produção social; definida e regrada por
convenções, exprime-se como um modo de ser socialmente diferenciado.” O que
definiria a santidade, para a autora, seria o estilo de vida. No modelo de santidade cristã
a figura central seria o martírio e, no caso de Chico Xavier, ele recriaria sua vida em
torno da idéia do sofrimento ligado a um “rosário de sacrifícios”. Tanto o sofrimento
como a renúncia, adverte Stoll, reforçam o argumento de missão, um desígnio de
mediunidade livre de privilégios: “a mediunidade é vivida como algo que se impõe ao
indivíduo, obrigando-o à resignada doação”. Aliás, esse exercício levaria em si um
elemento-chave de diferenciação social: “enquanto os demais fazem e acumulam para si
(ou para os seus), o santo é aquele que acumula gestos e práticas de doação aos outros”
(Stoll, 2003:194); ideal que, para Stoll, é construído por meio de certas marcas de
“afastamento do mundo”: virgindade, celibato, desapego e renúncia a bens materiais,
assim como sujeição aos desígnios dos “espíritos superiores”.
No terreno da história, Fábio Luiz da Silva, em Espirtismo, História e Poder
(1938-1949), analisa desde uma perspectiva foucaultiana e bourdiana duas obras de
Chico Xavier: A Caminho da Luz e Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. A
análise do discurso, realizada por Silva em tais textos, leva o historiador a esclarecer as
práticas dos grupos espíritas a partir das representações contidas nas obras de Chico
Xavier, assim como os usos do discurso espírita como parte de uma estratégia de
legitimação do espiritismo frente aos campos religioso, científico e estatal.
Fábio Luiz da Silva (2005:125) considera que o livro Brasil, Coração do
Mundo, Pátria do Evangelho foi criado e utilizado como base da estratégia de
37
legitimação da Federação Espírita Brasileira (FEB) para assim obter reconhecimento e
autoridade em nível nacional e no interior dos vários grupos espíritas em disputa. O
livro narra uma história do Brasil pré-determinada pelos “espíritos superiores”,
incluindo a história da própria FEB. Cristo, segundo o espírito de Humberto de Campos,
determinaria o surgimento da Federação com a finalidade de implantar o Evangelho no
Brasil. Sendo assim, não é legítima qualquer outra instituição espírita que não esteja
subordinada à FEB”, propõe Silva.
1.6 O espiritismo kardecista no contexto religioso brasileiro
O processo de modernização, que anunciava o bem-estar social, a satisfação das
necessidades básicas e a superação do sagrado, não conseguiu expulsar ou eclipsar a
religião da vida social brasileira, ao contrário, fortaleceu-se o campo religioso, ampliou-
se a diversidade religiosa e constitui-se um novo mercado de bens simbólicos (Oro,
1992). Como aponta Ari Pedro Oro, as religiões centradas no indivíduo, adaptadas à
modernidade, caracterizadas por uma certa fragmentação e efemeridade das relações
sociais, preenchem ou tentam preencher um vazio existencial que a própria
modernidade provocou. Os contatos e os limites entre as várias religiões são mais
intensos e, respectivamente, menos rígidos. As idéias sobre evolução espiritual e
“transe”, “possessão” ou “mediunidade” (Velho, 1999:53), por exemplo, são observadas
no kardecismo, no candomblé, na umbanda e em algumas igrejas pentecostais,
refletindo uma rie de hierarquias sociais e políticas que cobram formas e significados
variados segundo sua pertença religiosa (Carvalho, 1999). A religião não é mais
herdada, mas algo a ser buscado, a ser conquistado numa sociedade pluralista, sincrética
38
e sujeita a profundas transformações sociais, políticas e econômicas, como observa José
Jorge de Carvalho. Para Gilberto Velho, as narrativas dos cultos mediúnicos espíritas
podem registrar virtude e pecado, a configuração mais ou menos maniqueísta de bem e
mal, mas invariavelmente a trajetória do médium ou do espírito cobra importância
ressaltando uma característica central da modernidade: a individualidade.
Lewgoy (2004:122) aponta que o espiritismo tem acompanhado a mobilidade
social e as novas influências culturais que atingiram às camadas médias urbanas nos
últimos cem anos. Para este autor, o sucesso espírita está relacionado a uma boa
capacidade de transformação e sincretismo, a partir de uma abertura republicana para o
pluralismo religioso, em 1891. O espiritismo re-traduziria em suas formulações
teológicas os efeitos das principais injunções ideológicas e políticas por que passaram
militares, funcionários públicos e profissionais liberais no século XX; além de
manterem-se numa dialética de oposição e sincretismo com a umbanda e,
especialmente, com o catolicismo. Ao mesmo tempo, Lewgoy detecta um jogo de
afastamento e aproximação do espiritismo em relação ao catolicismo, representado na
obra e na trajetória de Chico Xavier, mediador de ditas passagens:
(...) por vezes nacionalista, como no regime de Vargas, por vezes milenarista e
ecumênica como a partir dos anos 70, o distanciamento do espiritismo da
agência católica, ainda que sempre preserve e afirme sua identidade cristã, ora
se revestirá de uma tonalidade nacionalista, como no quadro de regimes
autoritários ora será milenarista, quando as antigas referências deixam de
ordenar sua cultura religiosa, a partir dos anos 80” (Lewgoy, 2004:123).
Para Silva (2005:146), o espiritismo brasileiro utilizou-se de duas estratégias básicas
para se legitimar na sociedade nacional: diferenciar-se das crenças afro-brasileiras,
tentando mostrar suas origens européias (“civilizadas”) e adotar representações
39
católicas, realizando um jogo ambíguo ao criticar a igreja católica e ao adotar-lhe os
termos, expressões e conceitos. No campo da ciência, o principal conflito do espiritismo
foi com o saber médico. Tanto a medicina oficial quanto o espiritismo disputavam o
direito de curar, mas pelo seu caráter não hegemônico o espiritismo sofreu acusações de
charlatanismo, curandeirismo e de provocar a loucura. Por conseguinte, o espiritismo
recorreu à opinião favorável de eminentes cientistas e procurou reafirmar a sua
religiosidade tendo como arma a exigência da liberdade religiosa, sugere Silva. Aliás, o
uso do argumento da liberdade religiosa reforçava uma outra estratégia frente a um
outro agente, a estratégia do uso da própria legislação frente a um Estado que garantia a
liberdade religiosa em lei.
No caso das obras Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho e A
Caminho da Luz, Silva observa um destino do Brasil previamente traçado sob
orientação de Cristo, executado pelo espírito Ismael e continuado na parte terrena sob a
direção da Federação Espírita Brasileira (FEB). Em ambas as obras literárias, a
formação do povo brasileiro mereceu destacada atenção, “em especial às qualidades de
seu povo português, pobre e trabalhador; dos indígenas, puros e simples e dos negros,
sofredores e resignados. Tais qualidades reunidas pela mestiçagem garantiriam a
formação de uma sociedade propícia para receber o “Cristianismo Redivivo”, ou seja, o
Espiritismo” (Silva, 2005:149). Para Silva, essa história espírita do Brasil retoma
antigas representações que apontam para possíveis diálogos com a produção intelectual
da época de sua publicação, inspiradora da política cultural do Estado Novo. O povo
brasileiro apresentado pelas obras de Chico Xavier é o povo eleito e constituído pela
vontade de Jesus, da mistura dos brancos, índios e negros; assim, o mito das três raças
aparece como característica providencial do brasileiro, destinado a ser fraterno e
40
pacífico. O branco, devido a sua cultura cristã, prevalece sobre os índios, tidos como
simples e bons, e negros, apresentados como sofredores e resignados: “o tipo brasileiro
ideal desejado é cristão, trabalhador, bondoso e que sabe sofrer com resignação;
características muito próximas dos desejos da política oficial de Getulio Vargas”,
conclui Silva (2005:150).
Stoll é enfática ao observar que a realização do ideal de santidade, no caso Chico
Xavier, concretiza-se a partir de determinados padrões culturais consistentes com o
modelo monástico da religião dominante no Brasil. Parafraseando Geertz, a autora de
Espiritismo à Brasileira assegura que, “a exemplo do que ocorreu com o Islamismo na
Indonésia, no Brasil o Espiritismo se consolidou, ao contrário do ocorrido na França,
porque não tentou construir uma espiritualidade radicalmente diferente daquela corrente
na sociedade brasileira. Apropriou-se dela”. (Stoll, 2003:196).
41
GÊNERO, SEXUALIDADE E HOMOSSEXUALIDADE NO
ESPIRITISMO KARDECISTA BRASILEIRO
2.1 Gênero, Sexualidade e Homossexualidade.
O conceito distintivo da antropologia, diante das outras ciências, é o conceito de cultura.
A pesquisa e o debate sobre cultura têm marcado o caminho da antropologia. Assim, um
dos seus principais objetivos tem sido esclarecer aque ponto certas características e
condutas humanas são aprendidas através da cultura ou aonde elas estão inscritas na
genética da natureza humana. Este debate tem levado a refletir sobre o que é
determinante na conduta humana, se os aspectos biológicos ou os aspectos
socioculturais (Lamas, 2003).
Desde a década de 1970, esta discussão tem cobrado especial força no referente
às diferenças entre homens e mulheres. Atualmente, propõe-se que as diferenças
significativas ente os sexos são as diferenças de gênero. Contudo, o conceito de gênero
ainda é um conceito em construção para a antropologia e para outras ciências sociais,
seu estatuto epistemológico é condicionado pela sua breve história no campo acadêmico
e pelas diferentes escolas teóricas que se interessam em analisá-lo.
Após os estudos da década de 1970 sobre os papéis sexuais em diversas culturas,
passou-se a problematizar o conceito de gênero, a construção sociocultural da diferença
sexual. A divisão de gêneros, baseada na anatomia das pessoas, supõe formas
determinadas freqüentemente concebidas como complementares e exclusivas de
sentir, atuar e ser (Lamas, 2003). Contudo, estas formas culturalmente definidas como
42
femininas e masculinas encontram-se presentes em pessoas cuja anatomia não
corresponde ao gênero dado. A maneira em que a cultura aceita ou rejeita esta falta de
correspondência entre sexo e gênero varia, inclusive dando lugar, em certas culturas, a
um terceiro e quarto gênero.
No terreno do simbólico, a psicanálise e a antropologia m analisado como a
diferença sexual cobra uma dimensão de desigualdade. Alguns autores consideram que
dita desigualdade tem sua origem nas estruturas de prestígio. Gayle Rubin (1996),
partindo da proposta de Lévi-Strauss sobre o intercâmbio de mulheres (primeiro ato
cultural que regulamentaria o incesto), sugere que o sistema sexo-gênero é o conjunto
de arranjos a partir dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em
produtos da atividade humana. A partir destes “produtos” culturais cada sociedade
organiza um conjunto de normas no qual o sexo e a procriação são moldados pela
intervenção social. Desta maneira, Rubin destaca a importância de estudar a forma em
que as transações matrimoniais são articuladas com arranjos políticos e econômicos no
contexto das relações de parentesco.
Sherry B. Ortner e Harriet Whitehead (1981), em Sexual Meanings: the cultural
construction of gender and sexuality, propõem que o gênero e a sexualidade são matéria
de interpretação e análise simbólica, estando relacionados a outros símbolos e com
formas concretas da vida social, econômica e política. Ortner e Whithead assinalam que
nem todas as culturas elaboram noções do masculino e do feminino em termos de
dualismo simétrico, porém, na maioria dos casos as diferenças entre homens e mulheres
são conceituadas em termos de conjuntos de oposições binárias. Para estas
43
antropólogas, os sistemas de prestígio estão relacionados às construções culturais do
gênero, e os sistemas de gênero são, primeiramente, um sistema de prestígio.
A discussão e a análise sobre sexualidade mantêm uma relação íntima com o
campo do gênero. Assim como o gênero, o debate teórico da sexualidade foi
impulsionado, em boa parte, pelo movimento feminista e pelo movimento de libertação
homossexual. Este debate tem sido marcado pelo enfrentamento entre duas posições: o
essencialismo e o construtivismo social. No essencialismo existe a convicção de que
algo inerente à natureza humana, inscrito nos corpos na forma de um instinto ou energia
sexual, que conduz as ões. Neste sentido, a sexualidade restringir-se-ia a um
mecanismo fisiológico, a serviço da reprodução da espécie, ou à manifestação de uma
pulsão de ordem psíquica. O construtivismo social, por sua vez, reúne abordagens que
problematizam a universalidade do “instinto sexual”. Os significados sexuais e a noção
de experiência ou comportamento sexual não seriam passíveis de generalização porque
estão ancorados em teias de significados articulados a outras modalidades de
classificação, como o sistema de parentesco e de gênero, as classificações etárias, a
estrutura de privilégios e de distribuição de riqueza etc. (Heilborn e Brandão, 1999:9).
Para as ciências sociais, a sexualidade depende da socialização, da aprendizagem
de determinadas regras, de roteiros e cenários culturais onde a atividade sexual é
significada e exercida (Gagnon e Simon, 1973). Portanto, os significados atribuídos ao
considerado como sexual registra uma variação cultural e, como assinala Richard Parker
(1994), o sexual o se restringe à dimensão reprodutiva, tampouco à psíquica, estando
impregnado de convenções culturais acerca do que consistem a excitação e a satisfação
eróticas, construtos simbólicos que modelam as próprias sensações físicas.
44
A abordagem do construtivismo social pode variar dependendo do grau de
autonomia conferido à sexualidade em relação à reprodução. Carole Vance (1995)
propõe dois modelos de construtivismo social. O primeiro, denominado modelo de
influência cultural, parte da premissa de que uma partilha fundamental entre corpo e
razão, na qual o corpo permanece como uma espécie de substrato ao qual a cultura se
superpõe, alterando e modelando os comportamentos, as experiências e as significações
relativas à experiência sexual. O segundo modelo, mais enfático que o primeiro, postula
que o domínio do sexual, do erótico ou das sensações do corpo é puro efeito de
construções culturais. o , neste último modelo, algo inerente à fisiologia ou à
psique humanas que possa ser considerado um substrato universal sobre o qual a cultura
opera, privilegiando-se o pressuposto da radical arbitrariedade do que venha a ser sexual
(Heilborn e Brandão, 1999:10).
No que se refere ao debate acadêmico sobre as homossexualidades, as ciências
médicas e as ciências sociais têm discutido a questão, desde diferentes perspectivas ao
interior delas e entre elas, a partir das últimas quatro décadas do século XIX. Desde uma
perspectiva essencialista, o médico Karl Heinrich Ulrichs argumentava que a
homossexualidade era congênita e resultava de uma combinação de traços masculinos e
femininos num corpo. Ele inventou o termo uranista para se referir a pessoas com
“uma alma feminina num corpo masculino”. Por sua vez, Richard von Krafft-Ebing
construiu uma taxonomia em que distingue “homossexuais” e “heterossexuais” na base
da orientação sexual, os primeiros estariam subdivididos em “pederastas ativos” e
pederastas passivos” refletindo a divisão binária de gênero entre masculino-ativo e
feminino-passivo (Fry, 1982:98). Os defensores pioneiros dos direitos homossexuais,
Magnus Hirschfeld, na Alemanha, e Edward Carpenter e Havelock-Ellis, na Inglaterra,
45
insistiram em pensar a homossexualidade desde a gênese biológica propondo, inclusive,
a existência de um “sexo intermediário”. Assim, tanto os moralistas como os médicos e
cientistas progressistas do final do século XIX e começo do XX partiam da
naturalização da homossexualidade para defender uma ou outra postura. Com a chegada
dos movimentos de libertação homossexual nos Estados Unidos e na Europa, no final da
década de 1960, o termo dico “homossexual” começará a ser substituído por um
outro cunhado pelos próprios sujeitos: o termo “gay”.
Assim como aconteceu com o movimento feminista, e graças a este, a questão
homossexual começou a ser problematizada, iniciou-se a análise da construção
sociocultural e histórica o apenas das práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo,
mas também das representações, dos significados, das identidades, das subjetividades,
do poder e das relações com outras ordens da vida social atribuídos às
homossexualidades. No caso brasileiro destacam os trabalhos precursores de Barbosa
da Silva (1959), Guimarães (1977), Fry (1982), Macrae (1983), Trevisan (1986) e
Perlongher (1987), assim como os trabalhos mais recentes de Parker (1991), Silva
(1993), Terto Jr. (1996), Silva (1998), Green (2000), Uziel (2002), Almeida Neto
(2003), Grossi (2003), Nunan (2003), Tarnovski (2003), Heilborn (2004) e Fachinni
(2005).
Pensando a sexualidade como uma construção histórica (Foucault, 1999) que
reúne uma multiplicidade de possibilidades biológicas, resultado de distintas práticas
sociais que dão significado às atividades humanas (Weeks, 1998) e na qual os
significados sexuais e as experiências estão ancorados em teias de significados
articulados a outras modalidades de classificação (Vance, 1995), visa-se analisar as
46
representações que sobre a sexualidade e a homossexualidade estabelecem, negociam e
questionam atores e instituições espíritas kardecistas brasileiros: a Federação Espírita
Brasileira, Chico Xavier, romancistas como Robson Pinheiro, intelectuais e oradores
espíritas e, particularmente, dois freqüentadores paulistas que se identificam como gays,
e outros dois como bissexuais. Estes últimos são portadores do vírus do HIV.
Desde as obras de Allan Kardec, passando pelas explicações sobre sexualidade
encontradas nas obras de Chico Xavier e Robson Pinheiro, assim como nas palestras
subministradas na Federação Espírita do Estado de São Paulo na época em que foi
realizada a presente pesquisa (2006), observamos em tais discursos a intenção de dar um
sentido essencialista à sexualidade, a qual teria como base uma sorte de “energia
sexual” que precisa ser domesticada e direcionada em prol do projeto de evolução
espírita proposto pelo kardecismo dentro dos marcos morais do seu sistema religioso.
Entanto, o discurso da sexologia é incorporado e ressignificado por médicos e oradores
espíritas especializados no tema da sexualidade. Assim, termos como
“heterossexualidade, “homossexualidade”, “bissexualidade”, “transexualidade” e
“intersexualidade” são explicados desde uma visão sexológica e adaptados à visão
kardecista de mundo. Outros conceitos propostos pelos próprios espíritas, como sexo
de profundidade” e “sexo de periferia”, delimitarão e avaliarão os atributos dados às
práticas sexuais. A sexualidade entre os espíritas, portanto, é construída a partir dos
discursos da ciência médica, fortemente prestigiados no espiritismo, e ressignificada
com base nas regras e normas morais kardecistas. Esta construção sociocultural da
sexualidade entre os espíritas não é estática, é negociada pelos seus protagonistas
conforme os avanços em matéria de direitos humanos e, especificamente, em direitos
sexuais e reprodutivos, ganham força e autoridade na sociedade brasileira geral. Desta
47
forma, encontramos nos discursos espíritas tensões e dissensos ao redor da sexualidade,
seja nas próprias contradições ao estabelecer hierarquias morais em relação às
orientações sexuais e, ao mesmo tempo, advogar pelo reconhecimento legal das uniões
civis entre pessoas do mesmo sexo; seja no questionamento que os sujeitos gays e
bissexuais formulam em relação ao modelo explicatório espírita de sexualidade e, ainda
mais evidente, na aceitação ou renúncia sobre a explicação espírita da etiologia e dos
significados dados às doenças sexualmente transmissíveis, como será mostrado no
capítulo quatro.
2.2 Sexualidade e Espiritismo.
Primeiro foi o espírito André Luiz na obra Sexo e Destino (1963), depois o espírito
Emmanuel
9
em Vida e Sexo (1970). Ambos, através dos médiuns Chico Xavier e Waldo
Vieira, delinearam os primeiros ensinamentos sobre sexualidade no espiritismo
brasileiro. Posteriormente, o debate sobre sexualidade espírita no Brasil mostrará não
poucas tensões e conflitos, os discursos irão se confrontando, transformando e
adaptando na medida em que os avanços em matéria de direitos humanos e direitos
sexuais expandem-se e institucionalizam-se na sociedade brasileira geral.
10
9
Segundo Chico Xavier, o espírito Emmanuel é a reencarnação do senador romano Publio Lêntulus, do
escravo grego Nestório (mártir do cristianismo), do padre jesuíta Manoel da Nóbrega (ligado à
evangelização do Brasil) e do padre Damiano da Espanha do século 17.
10
Os direitos humanos, segundo Adriana Vianna e Paula Lacerda, passaram a orientar a legislação
brasileira a partir da Constituição Federal de 1988, na qual se estabelece a obrigação do Estado brasileiro
com a implementação das recomendações e compromissos firmados nos tratados internacionais. O
Executivo federal, assim como o Legislativo, têm implementado uma série de leis e políticas públicas em
matéria de direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, como é analisado no documento Direitos e políticas
sexuais no Brasil: o panorama atual (Vianna e Lacerda, 2004).
48
Apesar de ser 1963 o ano em que aparece a primeira obra espírita brasileira que
explicitamente trata sobre sexualidade, o tema não tinha sido ignorado nem pelos
espíritas brasileiros anteriores a Chico Xavier, nem pelos seguidores de Allan Kardec na
França. De fato, Kardec aborda tangencialmente n’O Livros dos Espíritos uma série de
questões referentes à sexualidade e ao nero, particularmente à reprodução e à moral
sexual.
Segundo o pensador francês, os espíritos desencarnados não têm sexo, pois este
depende do organismo sico, porém, eles teriam “amor e simpatia” fundados na
“identidade dos sentimentos”. O espírito que animou na vida passada o corpo de um
homem poderia animar, numa nova existência, o corpo de uma mulher. Conforme a lei
de reprodução do próprio Kardec, o pedagogo mostra-se crítico diante do controle da
natalidade ao assinalar que tal controle provaria a predominância do corpo sobre a
alma. Para Kardec, a união permanente entre um homem e uma mulher através do
casamento “é um progresso na marcha da humanidade”, enquanto a poligamia
representaria simplesmente “sensualidade”, não afeição como no casamento, e seria um
estádio menor na escala evolutiva dos seres humanos.
na sua lei da igualdade, Kardec parece defender os mesmos direitos para os
homens e para as mulheres. Para ele, a condição de inferioridade da mulher é uma
condição social que responde a um domínio injusto e cruel que o homem impôs sobre
ela”, sendo também resultado das instituições sociais e do abuso da força sobre a
fraqueza: “para os homens pouco avançados, do ponto de vista moral, a força faz o
direito” (Kardec, 1999:281). Todavia, a explicação de Kardec sobre a suposta fraqueza
física das mulheres tem um objetivo concreto: assinalar as funções diferenciadas e
49
particulares de cada sexo e, a partir desta observação essencialista, consagrar-se-ia o que
ele propõe como igualdade dos direitos entre o homem e a mulher justificada em uma
espécie de lei divina:
Deus apropriou a organização de cada ser às funções que deve realizar. Deu-se
à mulher menos força física, dotou-a, ao mesmo tempo, de uma maior
sensibilidade em relação à delicadeza das funções maternais e a fraqueza dos
seres confiados aos seus cuidados (Kardec, 1999:282).
O autor do Evangelho segundo o Espiritismo reproduz a divisão histórica de gênero
(Rubin, 1975; Rosaldo e Lamphere, 1979; MacCormack, 1980; Moore, 1994) entre o
espaço público e o espaço privado. Para ele, é preciso que cada ser humano esteja no
seu devido lugar”: que o homem se ocupe do público e a mulher do privado, cada um
de acordo com sua aptidão”. A “emancipação” da mulher, desde o espaço do privado
proposto por Kardec, seguiria o progresso da civilização, enquanto sua subjugação
marcharia com a barbárie.
Com base na tímida abordagem que Kardec fez sobre gênero e sexualidade nas
suas obras doutrinárias, assim como nos livros que Chico Xavier e a Federação Espírita
Brasileira publicaram em 1963 e 1970, os espíritas brasileiros têm discutido o tema da
sexualidade tentando chegar a consensos nem sempre compartilhados pelas diferentes
correntes do espiritismo kardecista. Atualmente, existem vozes de prestígio e
autoridade, no interior do espiritismo brasileiro, que discorrem sobre o tema da
sexualidade tentando compaginar a proposta de moral sexual kardecista com o
fortalecimento da democracia sexual no Brasil. Duas destas vozes são Américo
Domingos Nunes Filho, fundador e presidente da Associação Médico-Espírita do Rio de
50
Janeiro (AME-RIO) e Wlademir Lisso, coordenador dos trabalhos de assistência
espiritual na Federação Espírita do Estado de São Paulo (FEESP).
Nunes Filho (2004:64) reconhece opiniões divergentes entre os próprios espíritas
no debate sobre sexualidade. Contudo, ele organiza e propõe uma série de saberes
biomédicos, psicológicos (particularmente Jung) e espíritas referentes a diversos temas
sexuais no livro Sexualidade à Luz da Doutrina Espírita. Nesta obra, o presidente da
AME-RIO afirma que “a energia sexual é uma força incomensurável que não pode ser
sublimada abruptamente, como aconselham religiosos radicais, tampouco ser liberada
sem controle ou disciplina”. Assim, o sexo teria como finalidade, além da reprodução
com amor e realizada no seno familiar, unir energeticamente dois seres. Durante o ato
sexual haveria um “acasalamento de vibrações espirituais, como se o perispírito aderisse
ao outro”. Através do amor sexual tornar-se-ia conhecido o “código vibratório” do
chacra
11
genésico de cada um; os parceiros assenhoreiam-se da chave que abre a porta
da intimidade espiritual, que a fechadura, representando a defesa vibratória de nossa
vestimenta espiritual, tornou-se acessível à entrada energética do outro”. A metáfora da
chave e da fechadura, utilizada por Nunes Filho, genitaliza o “amor sexual” e dá pé para
realizar uma análise estrutural, o qual não é objetivo do presente trabalho.
O espírito Emmanuel, “através” do médium Chico Xavier, apontaria a existência
da energia sexual, recurso da lei de atração, sendo inerente à própria vida e gerando
cargas magnéticas em todos os seres. Nos “seres primitivos”, situados nos “primeiros
11
Para Toledo (2005), os chacras no perispírito equivaleriam aos plexos no corpo, definidos estes últimos
como centros de força do corpo humano, pontos de junção entre espírito e corpo. Os chacras teriam a
função de absorver energia do ambiente para o corpo sico e espiritual. Para Edgard Armond, espírita
brasileiro autor do livro Passes e Radiações (1950), existiriam oito chacras principais: 1) fundamental o
básico, 2) genésico ou sexual, 3) gástrico ou umbilical, 4) cardíaco, 5) laríngeo, 6) testa ou frontal, 7)
coroa e coronário e 8) esplênico; além dos chacras secundários ou menores. O chacra genésico ou sexual
estaria localizado no baixo ventre sendo responsável pelo aparelho geniturinário e pelas funções sexuais e
reprodutivas.
51
degraus da emoção e do raciocínio”, a descarga de semelhante energia se operaria
“inconsideradamente”, custando-lhes “resultados angustiosos”. À medida que a
individualidade evolui, comenta Emmanuel, o ser humano passa a compreender que a
energia sexual envolve o impositivo de discernimento e responsabilidade em sua
aplicação sendo esta controlada por valores morais, “seja na criação de obras físicas,
asseguradora da família, ou na criação de obras beneméritas da sensibilidade e da
cultura para a reprodução e extensão do progresso e da experiência, da beleza e do
amor, na evolução e burilamento da vida no Planeta” (Xavier, 2003:26). Neste sentido,
Andréa (1987) propõe dois conceitos espíritas sobre sexualidade: “sexo de periferia”,
que faz referência à atividade sexual dos corpos físicos e sua genitália no mundo
material e, por outro lado, “sexo de profundidade” referindo-se à canalização positiva
das energias sexuais no processo evolutivo. A reprodução, seja de seres humanos ou de
obras beneméritas”, encontra-se com base, fundamento, ação e ideal de sexualidade
espírita.
Para Nunes Filho, os espíritos possuem, na vestimenta perispiritual,
12
órgãos
genitais dos dois sexos em potencial, uma “bissexualidade” latente ou bipolaridade,
porém, os seres espirituais experimentariam uma das duas polaridades sexuais com
maior intensidade de acordo com as inúmeras experiências reencarnatórias vivenciadas.
No caso dos seres menos evoluídos, eles tentariam ter relações sexuais no plano
espiritual sem conseguir êxito levando-os, pelo menos, aos mais atrasados, a
“compartilhar” com os encarnados, com os quais se afinizariam, na prática do “sexo
promíscuo”, através da “ação vampiresca” como é relatado nas experiências de nossos
informantes no capítulo quatro. Em contraste, os espíritos puros, em gozo da perfeição
12
O conceito de perispírito será explicado no próximo capítulo.
52
relativa, como Cristo, afastados das paixões e desejos terrenos, chegariam à
unissexualidade plena, imbuindo em completo as duas polaridades dentro de si, em
perfeita harmonia interior.
Em relação à concepção, Nunes Filho sugere que o espírito, estando presente na
matriz genital, influencia e seleciona, a partir de suas irradiações, o espermatozóide que
lhe é afim vibratoriamente definindo o sexo de que será portador. Deste modo, a
fecundação deixa de ter uma conotação casual passando a ser dirigida por uma força
energética determinante.
Quando o espírito “utiliza” o “sexo de periferia” de forma ultrajante”, lesando
seu corpo perispiritual de forma marcante”, as conseqüências poderiam ser observadas
na constituição genética e na construção da “identidade sexual” do espírito na sua
próxima reencarnação. Assim, as lesões perispiríticas desarmônicas refletir-se-iam em
um campo vibratório “distônico”, atraindo em algumas circunstancias, durante o
processo de “renascimento”, um espermatozóide portador de um cromossomo sexual
não compatível com o sexo preponderante em seu psiquismo, dando lugar ao que
Domingos considera como transexualismo: psiquismo diferente do sexo que é
portador”. No caso dos transexuais masculinos:
Em vida pretérita foram mulheres envolvidas em paixões aviltantes, produzindo
sofrimentos e tragédias, aprisionadas nas teias do sexo destoante, acarretando
males significativos na vestimenta perispirítica e dando causa a vibrações de
ordem sexual inteiramente desarmônicas, completamente diferentes do campo
sexual mais marcante no psiquismo de profundidade. Ao reencarnarem,
vibrando intensamente de forma desarmônica para o sexo masculino, fazem a
penetração para o sexo masculino, fazem a penetração no óvulo de um
espermatozóide contendo cromossoma masculino Y. Embora possuam psiquismo
preponderantemente feminino nascerão em corpos masculinos. (Nunes Filho,
2004:54).
53
Nunes Filho comenta que o indivíduo transexual traz dissociada a sexualidade de
profundidade (personalidade sexual registrada na mente) do sexo de periferia: “o seu
psiquismo não estaria harmonizado com o gênero de que é portador”. Neste sentido, o
médico carioca propõe três classificações de transexuais dependendo da causa da
reencarnação, seja esta por transição, missão ou expiação.
No caso da transexualidade por transição, o indivíduo teria vivido muitas
experiências continuas num mesmo sexo, animando numa nova reencarnação o corpo
do sexo oposto, o que não necessariamente significaque “canalizará suas emoções”
para a homossexualidade. Aquele espírito “acentuadamente masculino”, que nasce na
“polaridade feminina”, pode exibir tonalidades masculinas marcantes, entre elas pouca
sensibilidade e maneiras menos delicadas; algumas vezes com reações muito
embrutecidas”. No caso contrário, o espírito “acentuadamente feminino” nascendo na
“polaridade masculina”, poderá “exibir um temperamento mais sensível, sem que seja
necessariamente marcado como um efeminado e sequer um gay”. O nero,
naturalizado como podemos observar, encontra-se inexoravelmente ligado à sexualidade
e à orientação sexual na proposta de Nunes Filho.
Na transexualidade por missão, como seria o caso do Chico Xavier, segundo o
médico carioca, os espíritos evoluídos, presos a uma polaridade sexual determinada, não
necessitarão de corpos físicos que lhes satisfaçam “o íntimo”. Em conseqüência,
poderão participar da “castidade construtiva”, da solidão afetiva” e canalizar a energia
sexual aos “processos psicológicos de sublimação” para a boa concretização do trabalho
de missão. Sobre o co-autor de Sexo e Destino, Nunes Filho aponta: “Chico Xavier (...)
ainda deverá transitar por outras fileiras encarnatórias na faixa masculina, que se
54
apresentou, na passada existência, como um ser com mente essencialmente feminina,
praticando a castidade construtiva, necessitando de maior vivência e experimentações
na polaridade masculina” (Nunes Filho, 2004:107).
Os espíritos que reencarnam em corpo do sexo oposto à de sua polaridade
sexual, em processo de expiação, terão de aprender a respeitar a todos aqueles que estão
na sua polaridade oposta. Geralmente, são homens que “subjugaram sua mulher,
desrespeitando-lhe a natureza, utilizando o sexo de forma ultrajante”; ou mulheres que
“viveram paixões aviltantes, causando sofrimentos e tragédias” e que na nova
reencarnação poderá agir de forma devassa:
Poderá repetir o mesmo comportamento da existência passada, aprisionada que
estava nas garras da prostituição, saindo às ruas, agora, vestido de mulher,
procurando infelizes clientes, contudo sem desfrutar do sexo de periferia
anterior, feminino por excelência, sentido-se castrada já que não possui o órgão
sexual feminino, essencial e idolatrado por ela, em existência anterior (Nunes
Filho, 2004:113).
Enquanto a transexualidade espírita situa-se num jogo de pólos opostos, onde a inversão
e a contradição das características dadas como femininas ou masculinas entorpecem a
dinâmica magnética e a harmonia do masculino e do feminino; a intersexualidade
espírita problematizará tal dinâmica ao rejeitar ser restringido a uma exclusiva
polaridade. Para Nunes Filho, a intersexualidade trairia o desvio” da bissexualidade
“desenfreada” do passado, com os campos de força (chacras) em completo
desequilíbrio, “em decorrência do embrutecimento dos sentimentos”. Assim, o ser que
nasce com “genitália ambígua” encontra-se envolvido em plena expiação
desconhecendo, diante da evolução espiritual, a sua polaridade sexual, em que gênero
está inserido ou predomina em si, praticando o ato sexual com pessoas de qualquer
55
sexo” (Nunes Filho, 2004:120). A intersexualidade, ao questionar a divisão exclusiva
da diferença sexual a partir da dificuldade em diferenciar as características genitais de
homens e mulheres, cria um problema na visão essencialista da sexualidade do
kardecismo brasileiro refletido na sua própria definição sobre intersexualidade, situada
esta no campo dos desvios sexuais e relacionado-a com um conceito que parece não
satisfazer as exigências das classificações binárias kardecistas: a bissexualidade.
No que se refere à homossexualidade, Nunes Filho a considera contra a lei
natural da polaridade sexual, nela um desvio biológico importante, conseqüente a
uma individualidade espiritual que transita nos caminhos da evolução espiritual. Assim,
ele afirma que os “irmãos” que canalizam suas emoções nesse campo “estão passando
por uma fase assaz transitória e, no decorrer da evolução espiritual, encontrarão, sob as
luzes da misericórdia divina, o caminho da harmonia e da paz, porquanto a
reencarnação corresponde, sem dúvidas, a um divino instituto pedagógico de reparação”
(Nunes Filho, 2004:64).
Na grande maioria dos casos, segundo o dico carioca, a causa da
homossexualidade situar-se-ia numa reencarnação anterior na qual houve um exercício
heterossexual “em desalinho, contraindo débitos irrefletidos, exigindo as reparações
devidas”. Apesar de a homossexualidade ser, para os espíritas, um caminho de
reparação e ter sua origem em vidas passadas, Nunes Filho reconhece que em
determinadas encarnações, a mentalidade social predominante” pode “favorecer e
estimular a prática homossexual”, como seria o caso das antigas sociedades romana e
grega, assim como das cidades de Sodoma e Gomorra.
56
Mesmo que Nunes Filho pense a homossexualidade como reparação, o médico
carioca celebra o fato de esta não ser considerada mais como doença pelo Conselho
Federal de Medicina e pela Organização Mundial de Saúde. Inclusive, ele mostra-se
contra a homofobia e contra o preconceito ao redor da homossexualidade na sociedade
brasileira:
Na sociedade brasileira, os homossexuais ainda são excluídos. Um exuberante
preconceito é encontrado na maior parte da população, fazendo com que grande
número de gays mantenha sua identidade sexual em segredo (enrustidos
conscientes) utilizando o fingimento como escudo do ataque dos
preconceituosos (que podem ser enrustidos inconscientes) (...) A intolerância, no
Brasil, contra a homossexualidade, é intensa, inclusive se manifestando na
mídia. A televisão, em alguns momentos, abordou o comportamento invertido
de forma implacável. Ficou famoso o caso de uma novela, revelando um casal
de sbicas, num relacionamento bem harmonioso. Enfim, resolveram arrumar
um trágico final: morreram num incêndio (Nunes Filho, 2004:69-70).
O valor positivo que Nunes Filho outorga ao relacionamento “bem harmonioso” do
casal lésbico, mostrado na telenovela, leva a este autor a um debate e a um dissenso com
os autores espíritas ligados à parte “científica” da doutrina. Estes últimos afirmam que
na homossexualidade haveria uma troca de energias iguais, acarretando desequilíbrio
energético, desestruturando os campos vitais e produzindo distúrbios de ordem psíquica
(Imbassahy, 2000:32). O médico carioca difere desta postura. Para ele existem casais
homossexuais, tanto masculinos como femininos, ajustados à realidade, sem
apresentarem quaisquer distúrbios de ordem psíquica:
(...) são indivíduos bem integrados à sociedade, executando suas tarefas com
honestidade e bom desempenho. Revelam-se como pessoas normais, tranqüilas
e equilibradas, embora a conduta sexual seja diferente e marcante (...) Nas
ligações homossexuais, firmadas no amor e respeito recíprocos, mesmo
existindo polaridades energéticas semelhantes, a paz exteriorizada pelo casal
reflete harmonização e, conseqüentemente, equilíbrio energético. Portanto, dois
espíritos que se amam, mesmo encarnados em polaridades iguais, podem se
completar sob o ponto de vista energético e emocional (Nunes Filho, 2004:71).
57
Nunes Filho, crítico das religiões apegadas ao “literalismo” da Bíblia e “mergulhadas na
correnteza da perseguição e do ódio bíblico”, sugere que os homossexuais, assim como
todos os transgressores sexuais”, podem se beneficiar no espiritismo através: 1) de seu
conteúdo doutrinário fazendo a razão prevalecer sobre a “emoção impulsiva”, 2) da
recepção de passes, 3) da ingestão de água fluidificada, como também das 4) sessões de
desobsessão desde que haja “interferência extrafísica inferior”. Em relação aos
heterossexuais promíscuos e os transexuais em expiação, o autor de Sexualidade à luz
da doutrina espírita considera que estes são “enfermos da alma” aos quais os espíritas
têm que amar, respeitar e ter em compaixão. A compaixão deste autor pelos
homossexuais permite-lhe, inclusive, apoiar o reconhecimento legal das uniões entre
homossexuais sendo favorável à Lei de Parceria Civil Registrada apresentada em
dezembro de 1997, no Congresso Nacional, pela então deputada Marta Suplicy. Aliás,
ele reconhece como válida a reivindicação de adoção de crianças por casais gays: “o que
está acontecendo nos países, onde a ligação do casal homossexual é legalizada, é a
perfeita harmonia da família, com boa integração individual e social da criança,
porquanto o par homossexual tem necessidade de se revelar para a sociedade como
ótimo educador, oferecendo ao adotado as melhores escolas, ao lado de excelente
exemplo e conduta(Nunes Filho, 2004:101). Wlademir Lisso, da Federação Espírita
do Estado de São Paulo (FEESP), também é favorável à união civil de homossexuais e à
adoção de crianças por casais lésbicos e gays segundo seus comentários em diferentes
palestras públicas na própria FEESP.
A ação dos espíritos obsessores, como ficará explícito no romance Sexo e
Destino e Canção de Esperança, assim como nos relatos de nossos informantes,
também se encontra presente no terreno sexual. Na obsessão sexual, segundo Nunes
58
Filho, tanto os encarnados quanto as entidades viciadas estão unidos vibratoriamente,
entrelaçados em teias tenazes, em sinistra simbiose espiritual, atuando os espíritos,
verdadeiros vampiros, sugando a substância vital retirada dos campos de força,
principalmente o esplênico,
13
como também a energia exteriorizada do êxtase sexual”
(Nunes Filho, 2004:160). Na explicação espírita sobre a obsessão sexual, parecera que
o indivíduo encarnado não tivesse autonomia na experimentação do prazer sexual,
tirando dele a responsabilidade dos encontros e dando-a aos vampiros:
Os espíritos sexólatras se satisfazem intensamente, participando dos encontros
sexuais, principalmente de orgias, locupletando-se com a energia libertada
antes e após a complementação sexual orgásmica, utilizando-se dos encarnados
ligados a eles, completamente subjugados, inteiramente dominados, através dos
seus campos de forças perispiríticas, principalmente o genésico. (Nunes Filho,
2004:160)
2.3 Sexo e Destino.
Sexo e Destino, romance psicografado por Chico Xavier e Waldo Vieira em 1963, é
apresentando com prólogo do espírito Emmanuel à maneira de prece. Neste prólogo,
Emmanuel recupera a imagem cristã de Maria Madalena e a mensagem moral de
amparo aos pecadores.
André Luiz, autor” do romance em questão, adverte que sua história é real,
portanto, os nomes dos personagens seriam substituídos “por obvias razões”. O livro
consta de duas partes, a primeira corresponde ao médium Waldo Vieira e, a segunda, a
Chico Xavier. Cada parte contém catorze capítulos através dos quais se desenvolve a
história de duas famílias cariocas, os Neves e os Nogueira, atrapalhadas em uma série
13
O chacra o campo de força esplênico, situado no baço, teria com função captar o “fluido vital”.
59
de problemas éticos e morais onde a sexualidade e seu exercício são um dos três eixos
principais do enredo, já os outros dois eixos, enlaçados diretamente à questão sexual,
seriam o processo saúde-doença e a evangelização espírita focalizada na moral sexual.
A transição entre as duas partes psicografadas por Vieira e Chico Xavier,
respectivamente, estabelece-se quando uma das personagens principais da história,
Marita, é vítima de estupro no contexto de uma relação incestuosa. Cláudio Nogueira,
45 anos, bancário bem-sucedido, “ateu confesso”, fumante e bebedor, abusa
sexualmente de sua filha adotiva e consangüínea,
14
ajudado por espíritos vampiros,
recebendo as conseqüências diretas de sua ação na sua saúde física, emocional e
espiritual. Depois de meses de sofrimento, Cláudio encontrará no espiritismo o
“consolador prometido”, receberá a ajuda espiritual e magnética dos seus mentores
desencarnados narradores da história –, lerá as obras de Kardec e assistirá aos centros
espíritas do Rio de Janeiro. A partir deste novo sistema moral espírita, Cláudio se
tornará evangelizador especializado em ajudar os seus parentes afligidos por
perturbações na “área sexual”.
Pedro Neves, narrador principal do romance junto ao irmão Félix e ao “autor” da
obra (espírito André Luiz), apresenta-se como um espírito suficientemente evoluído
como para guiar, a partir dos conselhos de seus mentores, sua família ainda encarnada
no Brasil e na cidade do Rio de Janeiro. Quarenta anos atrás Neves haveria
“desencarnado” para chegar a morar na colônia Nosso Lar e, especificamente, ao
instituto de “psicologia sexual” Almas Irmãs.
14
Marita seria produto de um estupro cometido por Claudio contra uma trabalhadora doméstica. A
menina seria adotada por Cláudio e sua esposa.
60
O Instituto Almas Irmãs, assim como Nosso Lar, parece reproduzir a estrutura
arquitetônica, burocrática e hierárquica da sociedade urbana e industrial brasileira da
segunda metade do século XX. A descrição feita pelos autores de Sexo e Destino recria
um mundo rodeado de edifícios e “armamentos”, parques e jardins, funcionários e
servidores, cargos e hierarquias. Almas Irmãs teria como objetivo a reeducação de
espíritos pouco esclarecidos em moral sexual a partir de “estâncias purgatórias” nas
quais estudarão, meditarão e pesquisarão as causas e os efeitos das “quedas na natureza
afetiva” em que se haveriam “precipitado”. Além da escola, o instituto teria zonas
residenciais, administrativas, de “subsistência” e de hospitalização transitória.
Em relação à parte educativa do instituto, as matérias principais de estudo o:
Sexo e Amor, Sexo e Matrimônio, Sexo e Maternidade, Sexo e Estímulo, Sexo e
Equilíbrio, Sexo e Medicina, Sexo e Evolução, Sexo e “Penalogia”, esta última de
especial interesse para juízes e desencarnados. Quando os alunos estiverem prontos
para voltar ao mundo material, eles reencarnariam nos ambientes em que tivessem
falido e, tanto quanto possível, nas “equipes” consangüíneas “que lhes impuseram
prejuízos ou que lhes sofreram os danos”.
A partir do Instituto Almas Irmãs, Pedro Neves, servidor do Ministério de
Auxílio de Nosso Lar, observa os conflitos morais no mundo material em geral, e na sua
família em particular. Tal observação faz parte da preparação de Neves para o auxílio
espírita direcionado à procura de melhora moral dos seus familiares, todos eles
envolvidos em problemas da “área sexual”. Uma vez preparado para dita missão
salvadora, Neves, junto a uma equipe espiritual de resgate, “desce” ao mundo material
para assim poder atuar diretamente sobre seus familiares em “desgraça”.
61
2.4 A descoberta e a significação do desejo sexual entre espíritas kardecistas de
São Paulo.
Para efeitos da nossa pesquisa privilegiamos, como assinalamos na introdução, o
seguimento das trajetórias sexuais de espíritas kardecistas não heterossexuais por duas
razões. Desde a fase de construção de nosso projeto de pesquisa percebemos que a
questão do HIV-Aids, no contexto kardecista, está relacionada diretamente à quebra de
regras morais na arena sexual e, ainda hoje, vinculada diretamente às práticas
homossexuais e bissexuais. O trabalho de campo reafirmou esse vínculo entre práticas
sexuais não heterossexuais e HIV-Aids, de fato, das sete pessoas kardecistas e hiv-
portadoras que conhecemos durante nosso trabalho, e que ao longo da nossa pesquisa
situaram-se sob alguma categoria de identidade sexual, uma delas pensou-se como
heterossexual. A segunda razão, como conseqüência da primeira, foi nosso interesse
por analisar os significados que os espíritas kardecistas, que não cumprem com as
exigências do ideal heterossexual espírita, outorgam às suas experiências como seres
sexuados e à própria construção de gênero que eles modelam e significam no sistema
religioso kardecista. Portanto, decidimos não apenas ouvir as trajetórias sexuais de
portadores do HIV, mas também as trajetórias de sujeitos que não contraíram o vírus e
que tem uma prática sexual não heterossexual se identificando, na maioria dos casos,
ora como bissexuais, ora como homossexuais ou gays.
Nesse sentido, vamos analisar, em um primeiro momento, as experiências de
Felipe e Milton que se pensam como homossexuais. As experiências de Andrei e Enéas,
ambos hiv-portadores e identificados por si próprios como bissexuais, será abordada no
próximo capítulo.
62
Felipe sentiu-se “diferente dos outros garotos de sua idade desde criança,
contudo, ele não conseguia entender o que significava essa diferença. na
adolescência, foi se reconhecendo em “pessoas parecidas”, rejeitando os estereótipos
por ele observados na mídia e aceitando os “modelos de verdade”:
Eu sempre me achei muito diferente, sabia que havia uma coisa diferente em
mim. Tinha um garoto que morava próximo à minha casa, eu percebi que eu
não sentia atração pelas meninas, eu sentia atração pelos meninos. Não era
uma atração física intensa, era algo que até hoje não posso explicar o que é.
Você vai ficando mais velho e vai percebendo que existem pessoas parecidas
com você, que foi difícil porque você não tinha modelos, tinha modelos muito
caricatos, modelos tipo Clodovil, Edson Cordeiro, coisa do tipo. Eu não tinha
muito acesso a outros modelos (...). Quando eu fiquei mais velho sim, eu
comecei a ter modelos de verdade, comecei a ter professores que me
incentivaram (...)
15
A primeira crise depressiva de Felipe coincidiu” com a sua “saída do armário” no
contexto familiar:
Na minha primeira crise depressiva bebi muito, tentei suicídio, o pessoal me
trouxe para casa, começou a fazer umas brincadeiras comigo e minha irmã
percebeu o que tinha acontecido na festa (...). Minha irmã foi para a casa de
uma amiga minha e a gente conversou com ela, ela usou uma frase muito infeliz
que não vou esquecer nunca, preferia que o irmão dela fosse homossexual de
que fosse um ladrão.
16
Apesar da frase pouco afortunada da sua irmã, Felipe confessa ter recebido o apoio da
sua família ao socializar seu desejo sexual e sua identidade sexual gay. no
espiritismo, ele procurou informação ao respeito:
A primeira coisa que eu fiz foi pesquisar sobre homossexualidade. Eu tinha um
dos tópicos do curso preparatório que era sobre homossexualidade. Tinha
bibliografia complementar, tinha Sexo e Destino, Vida e Sexo, tinha uns
capítulos de O Livro dos Espíritos. Naquela época só tinha esses, hoje em dia
15
Felipe, 02/06/2006
16
Ibidem.
63
tem um romance que se chama O Preço de Ser Diferente, na casa espírita quase
ninguém o conhece, eu conheço o livro, o livro é muito bom.
17
Desta forma, Felipe encontrou na doutrina espírita um conforto para a construção de
sentido de seus desejos sexuais. Ele concorda com a classificação sobre
homossexualidade proposta por Chico Xavier e consegue se situar no segundo tipo
elaborado pelo autor de Nosso Lar:
Eu me encaixei ali, eu sentia que ali estava explicado o que eu sentia.
Emmanuel, ele explica que existem três tipos de homossexuais: aqueles que
pedem para vir assim para poder mudar a sociedade, aqueles que são
teoricamente forçados para vir assim para poder se melhorar porque fizeram
mal para alguém. Deus nunca pune, Deus sempre vai te educar. E existe um
terceiro caso que é muito raro, que é aquele de quem tem tendência
homossexual, ou tendência bissexual (...) e tem um processo obsessivo (...). O
terceiro caso é aquele que as igrejas dizem que curam, eles afastam o espírito
obsessor e fulano se cura porque a tendência dele vai ser reprimida, e o espírito
que estava obsedando vai ser mandado embora, não vai ser encaminhado como
a gente faz, não vai ser tratado.
18
Felipe as preferências e orientações sexuais como parte do projeto evolutivo de todo
espírito, segundo o que Allan Kardec teria sugerido:
Kardec é muito claro, Kardec fala que o espírito é bissexual. O espírito passa
pela experiência que precisa passar para poder evoluir. Ele não usa a palavra
homossexualidade, não usa a palavra homossexual, não existia a palavra
homossexual na época dele, foi inventada por um biólogo húngaro 20 anos
depois. A orientação que ele recebeu na época é muito clara: o espírito passa
por aquilo que precisa passar para evoluir, ponto, não importa se é bi, se é
homo ou se é hetero, se é homem ou se é mulher.
19
Para Milton, em contraste com Felipe, os jogos homoeróticos começaram desde criança,
porém, ele disse não ter estado consciente “do significado do orgasmo”. na
17
Ibidem.
18
Ibidem.
19
Ibidem.
64
puberdade, ele iria a descobrir “a função” da masturbação “um pouco mais tarde” em
comparação com os seus pares:
Quando eu era pequeno eu tive algumas experiências entre outros meninos da
mesma idade, de cinco, seis anos, então aquilo despertou meu interesse. Mas
quando você é criança tudo é diferente, porque eu nem sabia o que era orgasmo.
Eu fui descobrir as coisas um pouco tarde, porque fui ter meu primeiro orgasmo
(quando) eu tinha 13 anos, quando eu entendi para quê que servia a
masturbação, enquanto que os meninos da minha idade, com 10, 11 anos, se
masturbavam.
20
A comparação com seus pares acompanhou Milton durante sua adolescência. Ele situa
certa inveja, relacionada a uma carência, em relação aos corpos dos outros na sua
construção do desejo sexual:
Quando fui para o colégio começaram a acontecer algumas coisas, que era a
gente fazer educação física. Tinha que ir para o vestiário, eu sentia assim, acho
que mais uma inveja, porque via aos outros meninos com corpo formado,
carinhas mais gostosos, eu ficava muito ferrado com aquilo (...)
21
A exigência de gênero que o próprio Milton incorporou durante sua adolescência o
levou a mostrar” sua masculinidade, e provar que não era gay, procurando encontros
sexuais com mulheres em casas de sexo freqüentadas por seus colegas:
Eu fui num prostíbulo e escolhi uma prostituta. Fui para o quarto com ela, era
um lugar assim a boca do lixo, boca do lixo mesmo cara, tanto que os quartos
eram feitos de madeira. Quando cheguei lá eu estava tão nervoso que não
consegui ficar excitado. Daí a garota começou a me masturbar e daí ela
começou a me masturbar muito rápido e eu acabei gozando, teve uma
ejaculação precoce. tinha pago ela, e ela falou: “pronto, acabou!”, e eu:
“não!, não acabou!, eu quero transar com você, se não quero meu dinheiro de
volta!”, então ela falou assim: “ah!, quer seu dinheiro de volta?, vai pegar
com meu cafetão, ver se você tem coragem de buscar com ele”. Eu saí de
muito agredido, mas não pelo que tinha acontecido, porque daí eu comecei a
colocar em xeque tudo o que eu estava sendo oprimido para chegar aaquela
situação, porque vendo bem eu estava sujeito a talvez pegar uma DST, talvez
até acontecer alguma coisa porque era um submundo de pessoas marginais e
20
Milton, 27/05/06
21
Ibidem.
65
tava aí por causa do quê?, querendo provar para as pessoas que eu não era gay,
que eu podia transar com uma garota, que eu era um cara normal.
22
Após o conflito de prova de masculinidade realizada por Milton para seus pares, ele
decidiu vivenciar seus desejos eróticos com outros homens. A primeira experiência
sexual de Milton com homens durante a adolescência “definiu tudo” na “cabeça” dele.
Ele encontrou, no espaço urbano do metrô, a possibilidade de vivenciar seus desejos
sexuais quando utilizava este transporte para se locomover em direção ao trabalho:
Quando eu comecei a trabalhar, logo que eu saí do colégio (17 anos), eu pegava
o met lotado. Foi o primeiro contato que eu tive com outros garotos. No
metrô, principalmente da zona leste: lotação máxima. Eu comecei a perceber
que naquela lotação toda, muitos garotos ficavam se exprimindo, se passando a
mão, foi aí que começou. Todo dia eu pegava metrô, perto da porta, aí tinha um
cara bonito, ficava perto de mim, encostava a mão muito discretamente, a gente
saía do metrô e começava a conversar. Em uma dessas, eu acabei marcando
com um cara depois do trabalho, ele tinha mais experiência sexual, a gente
acabou indo para um motel no centro da cidade, eu acabei transando com o
cara, acho que foi aí que se definiu tudo na minha cabeça.
23
Milton procurou namorar outros homens. Teve alguns relacionamentos que ele lembra
como decepções amorosas. De fato, ele começou o tratamento de depressão na
Federação Espírita do Estado de São Paulo quando se sentiu “obcecado” por uma
pessoa que tinha namorado. Já como freqüentador da Federação, e à diferença de Felipe,
Milton não se interessou por saber o quê o espiritismo falava sobre a homossexualidade.
Contudo, ele tem achado “simpatia” sobre o tema e reconhece que, em alguns centros
espíritas, em contraste com a Federação, é recomendado levar os filhos homossexuais
para tratamento de desobsessão:
22
Ibidem.
23
Ibidem.
66
(...) sempre eu escutei sobre o assunto com muita simpatia por parte dos
expositores. Mas a gente não pode julgar o espiritismo pelas pessoas, tanto que
tem centro espírita que reprime, que fala que a pessoa está obsedada, que os
pais tem que levar para o tratamento o filho (...) tem certos coordenadores de
centro espírita que são totalmente atrasados.
24
É interessante observar como Felipe e Milton, com histórias e objetivos diferentes,
recorrem ao centro espírita kardecista para organizar suas experiências relacionadas à
sexualidade e também para encontrar saída aos seus conflitos de confronto entre o que
Philppe Áries (1985) e Anthony Giddens (1992) reconhecem com amor romance e amor
paixão. Ou seja, a religião e, particularmente, a comunidade religiosa apresenta-se como
um espaço de construção de significado da experiência sexual e também como um
espaço de tratamento dico, psicológico e espiritual na resolução das tensões e
conflitos provocados nas trajetórias sexuais e amorosas dos sujeitos. O conflito moral
espírita entre desejo e obsessão, nos casos de Felipe e Milton, será analisado no
próximo capítulo e no contexto do processo saúde-doença kardecista.
24
Ibidem.
67
CORPO, SAÚDE E DOENÇA NO ESPIRITISMO KARDECISTA BRASILEIRO
3.1 Corpo: campo de significados, experiências e práticas.
Byron J. Good, antropólogo estudoso das questões socioculturais e éticas ao redor da
saúde e da saúde mental, considera o corpo como sujeito, como a base da subjetividade
da experiência no mundo. Good (1994) discorda com o ordenamento da realidade
proposto pela epistemologia biomédica baseado na teoria dos três mundos de Karl
Popper: o mundo dos objetos ou estados físicos, o mundo dos estados mentais ou de
consciência e o mundo dos conteúdos objetivos de pensamento. Para Good, o corpo
como “objeto físico” não pode ser claramente distinguido dos estados de consciência
propostos por Popper, nem a doença pode ser localizada no corpo como objeto físico ou
estado psicológico, como é considerada pela biomedicina. Neste sentido, a consciência
precisa ser pensada inseparável do corpo consciente; enquanto o corpo doente não
simplesmente seria objeto de cognição e conhecimento, de representação de estados
mentais e de trabalho das ciências médica, também seria um agente desordenado de
experiência, fonte criativa de experiência.
Sehta Low (1994), por sua parte, observa nos processos saúde/doença a
construção de uma série de metáforas de aflição social, psicológica, política e
econômica. No caso de “nervos”, doença estudada por Low e que toma diferentes
nomes em várias partes do continente americano e europeu, haveria uma mediação
cultural entre a doença e a aflição “embodied” no corpo,
25
ambas em termos de aflição-
sofrimento e na suas expressões metafóricas. Os valores culturais da doença, para Low,
25
O termo original usado pela autora é “embodied”. Alguns autores o traduzem como “encarnado”, nós
preferimos usar “incorporado”, mas como na umbanda e no candomblé existe o conceito de
“incorporação”, preferimos deixar o termo original.
68
estariam corporalmente “embodied” nas metáforas, as quais seriam distintas a cada
contexto cultural. Estas metáforas seriam “embodied no corpo tanto em atos de
resistência quanto de cumplicidade.
Para Low, as metáforas podem ser geradas pela experiência do corpo e pela
cultura. Deste modo, as metáforas do corpo providenciariam uma possível solução para
a expressão vivida que pode comunicar sensações corporais, assim como significados
sociais, culturais e políticos (Low, 1994:143). Tais metáforas retêm a integração da
experiência corpo/mente e expressariam as bases físicas, sociais e políticas da doença.
Como metáfora “embodied” no corpo, esta carrega uma força comunicativa gerada
culturalmente providenciando expressões simbólicas de conflitos pessoais e controle
social através da experiência corporal.
Procurando olhar o corpo doente como agente desordenado de experiência, e
fonte criativa de experiência, como propõe Good, descreveremos o corpo inserido no
conflito espírita da ordem e da desordem, das ações “morais” e das ações “imorais”, ou
seja, nos códigos morais que regulam a conduta dos espíritas, assim como nos saberes
baseados na experiência de estar e ser no mundo material e espiritual dos espíritas
brasileiros. Quanto às metáforas de aflição social, psicológica, política e econômica
“embodied” no corpo e delineadas por Setha Low no seu artigo “Embodied metaphors:
nerves as lived experience”, nos interessará seguir o caminho traçado pela autora para
assim observar como a aflição moral, entre os espíritas brasileiros, torna-se uma
metáfora expressada no corpo comunicando expressões simbólicas dentro do contexto
religioso espírita.
69
3.2 Um olhar à construção de corpo no espiritismo brasileiro.
Os espíritas brasileiros enxergam três elementos na constituição do ser humano:
espírito, perispírito e corpo, os quais atuariam inseparavelmente visando harmonizar o
conjunto. Uma imagem análoga à que os espíritas recorrem para falar destes elementos
é aquela onde o espírito seria a centelha divina que atua no corpo através do perispírito,
assim como a eletricidade atua na mpada através do fio condutor. O espírito, em
conseqüência, ativa e é a própria agência do sujeito contido num corpo material
descartável reencarnação trás reencarnação e comunicado, como a eletricidade à
lâmpada, através de um veículo conhecido como perispírito. Cada um dos três
elementos teria composições, funções e características distintivas que, acionadas em
conjunto, dariam existência a um quarto e quinto elemento, a aura material e a aura
espiritual, ambas como resultado da “energia em movimento”.
As noções de perispírito, espírito, alma e corpo aparecem a partir da primeira
obra doutrinária de Allan Kardec, O Livro dos Espíritos. Neste texto, o autor apresenta
uma tríade constitutiva do ser humano: corpo, alma e perispírito. Contudo, a “tríade”
pareceria não contar só com três elementos e sim com quatro, pois a alma e o espírito às
vezes convergem representando uma mesma idéia e, em alguns momentos, pareceriam
divergir ao apresentar o espírito com atributos semelhantes à idéia de pessoa
(Cavalcanti, 1983) e a alma como substância vital circunscrita ao corpo físico e a sua
circunferência. Os três/quatro elemento apresentados por Kardec no início d’O Livro
dos Espíritos são definidos de forma esquemática: “há três coisas no homem: 1) o corpo
ou ser material semelhante ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital; 2) a
70
alma ou ser imaterial, espírito encarnado no corpo; 3) o laço que une a alma ao corpo,
princípio intermediário entre a matéria e o espírito” (Kardec, 1999:18).
O espírito é proposto por Kardec como um corpo indivisível, etéreo, invisível no
mundo material, mas que poderia se tornar algumas vezes visível e mesmo tangível,
como aconteceria nos fenômenos das aparições. O espírito é equiparado a “uma chama,
um clarão, uma centelha etérea” que “varia do escuro ao brilho do rubi, conforme seja o
espírito mais ou menos puro”. Kardec é enfático ao negar que o espírito seja um ser
abstrato, indefinido, que somente o pensamento pode conceber; ao contrário, para o
pedagogo francês o espírito seria um ser real, definido que, em alguns casos, pode ser
reconhecido e avaliado pelos sentidos da visão, da audição e do tato. Ao longo de sua
trajetória evolutiva, o espírito existe no estado de: 1) espírito encarnado; 2) espírito
errante, estado desencarnado, intermediário entre duas encarnações; 3) espírito puro,
estado desencarnado não mais sujeito à encarnação.
Por sua parte, a alma ora sinônimo de espírito, ora “fluido vital”, pode se
apresentar em três diferentes formas: 1) uma alma vital que designa o princípio da vida
material, comum a todos os seres orgânicos; 2) uma alma intelectual expressada no
princípio da inteligência, própria dos animais e dos seres humanos; assim como 3) uma
alma espírita “para o princípio da individualidade após a morte”, exclusiva para os seres
humanos. Se bem é certo que a alma tem dois envoltórios, o corpo e o perispírito, esta
não fica aprisionada a eles, pelo contrário, a alma manifesta-se irradiando luz no
exterior do corpo, ao seu redor. Apesar de que a alma pode se manifestar ao exterior do
corpo à maneira de como alguns autores espíritas brasileiros concebem a aura (Toledo,
71
2005), a alma parecesse que não tem a ampla liberdade de movimento e ação outorgada
ao espírito nas obras doutrinárias espíritas.
Kardec, na pergunta 144 d’O Livro dos Espíritos, aceita a idéia de “alma do
mundo” definindo-a como “o princípio universal da vida e da inteligência de onde
nascem as individualidades”; ao mesmo tempo, reconhece uma “alma da terra” que
seria “o conjunto dos espíritos devotados que dirigem as vossas ações no bom caminho
quando os escutais, e que são, de algum modo, os representantes de Deus em relação ao
vosso globo” (Kardec, 1999:87). Mesmo que para efeitos de nossa pesquisa as idéias de
“alma do mundo” e “alma da terra” não são indispensáveis para entender a construção
de corpo, saúde e doença no espiritismo, tais conceitos esclarecem a nossa observação
no sentido de encontrar em Kardec o conceito de alma ligado a uma substância vital que
age mas que não constrói identidade ao não ser, ainda, sujeito; e o conceito de espírito
não apenas com agência, mas também com individualidade e ligado às idéias de pessoa
e subjetividade. A alma, portanto, pareceria ser a substância que origem e sustento
ao próprio espírito, enquanto que o espírito, como assinala Maria Laura Cavalcanti
(1983:44), seria a essência do ser humano, lugar onde se localizariam os atributos do
livre-arbítrio, do pensamento e da vontade, que o constituem como subjetividade.
No caso de perispírito, Kardec o descreve como uma substância vaporosa que
pode se elevar na atmosfera e se transportar para onde quiser. Ao mesmo tempo, é
descrito como um envoltório “semimaterial” que cobre ao espírito como o perisperma
que envolve ao germe da semente. O perispírito seria semimaterial, pois pertenceria à
matéria pela sua origem e à espiritualidade pela sua natureza etérea. Adicionalmente, o
perispírito constituir-se-ia do “fluido cósmico universal” do mundo que o espírito esteja
72
habitando, portanto, as qualidades do perispírito dependeriam do fluido existente nos
diferentes mundos propostos pelos espíritas. O perispírito, laço entre alma e corpo, teria
uma natureza intermediária entre o espírito e o corpo com o objetivo de facilitar a
comunicação entre ambos e com a tarefa de fazer de um ser abstrato, do espírito, um ser
concreto, definido, apreensível pelo pensamento e atuante no mundo material: “torna-o
apto a atuar sobre a matéria tangível, conforme se com todos os fluidos
imponderáveis, que são, como se sabe, os mais poderosos motores” (Kardec,
2005b:245).
É no momento da concepção quando aparece, para os kardecistas, a primeira
ponte entre o material e o espiritual representada por um “laço fluídico”, extensão do
perispírito. Este laço é atraído com uma “força irresistível” pelo “gérmen” produto da
fecundação do óvulo pelo espermatozóide. À medida que o gérmen se desenvolve, o
laço se encurta. Kardec justifica a união, molécula a molécula, do perispírito à matéria,
assim com a “enraização” do espírito ao corpo em formação, via o perispírito, partindo
do que ele denomina mas não explica – como “princípio vito-material do gérmen”. A
união completa entre espírito e corpo somente se dano momento do nascimento. É
nesse instante que a encarnação consegue se realizar por completo, daqui em diante o
espírito tentará cumprir seu projeto de perfeição moral, gradual e evolutiva, “tomando”
um ente material através do qual se sofreriam “todas as tribulações da existência
corporal” via expiação, via missão.
A desorganização” do corpo, por um efeito contrário à união entre espírito e
matéria, causa o cesse do princípio vital e, em conseqüência, o desprendimento dos
laços que o espírito mantinha no corpo físico, ou seja, a morte do corpo. A separação
73
entre corpo e espírito pode ser rápida, suave, cil e insensível, ou lenta, laboriosa e
penosa conforme o “estado moral” do espírito. Se o espírito deu uma importância
substancial à matéria quando encarnado, maior se o tempo da separação do corpo
físico e o sofrimento de abandono do mundo material. Por outro lado, Kardec afirma
que a alma conservará sua individualidade, inclusive seus “pensamentos e sentimentos”,
mesmo após a morte. Dita individualidade estaria representada pelo perispírito, que
tomaria a aparência que esta teve na sua última encarnação. Todavia, a alma ao deixar o
corpo não recupera a consciência imediata, primeiro passará algum tempo em estado de
perturbação dependendo de seu progresso moral no plano terreno.
A obra Passes e Curas Espirituais (Toledo, 2005), um clássico do espiritismo
brasileiro para médiuns passistas,
26
oferece uma detalhada explicação espírita sobre
anatomia, fisiologia e “patologia” humana onde cada parte do corpo age de maneira
diferenciada aos fluidos universais. A partir de tal explicação, e retomando os
ensinamentos prévios sobre mesmerismo, o autor define o diagnóstico das doenças e as
ações terapêuticas a realizar segundo as características dos órgãos e aparelhos do corpo
humano e suas afeições espirituais. Neste sentido, exporemos algumas idéias da
proposta de Toledo pela sua importância e sua pertinência em relação ao sistema saúde-
doença espírita.
Para Toledo, o aparelho digestivo envolve um conjunto de órgãos muito
importantes para a mediunidade devido a sua intimidade com o sistema vegetativo e
26
O livro foi publicado em sua primeira edição no começo da década de 1950. No prefácio da obra,
“ditada” pelo espírito Emmanuel por intermédio” de Chico Xavier, aconselha-se continuar com o labor
de cura começado por Cristo através do magnetismo: “Jesus impunha as os para curar. Entreguemos a
Ele o nosso coração, afim de que as nossas lhe continuem a obra divina na regeneração humana, a
começar de nós mesmos, e então o serviço magnético ao alcance de todas as almas ricas de e boa
vontade – será a nossa vida uma fonte inexaurível de amor, transfundindo os dons do Céu para o
aperfeiçoamento e glorificação da Terra que o Senhor nos deu a lavrar e semear (Toledo, 2005:16).
74
com o nervo grande simpático e para-simpático. No caso dos intestinos, tanto o grosso
quanto o delgado, eles têm grande influência na mediunidade, pois é onde atuam os
“vampiros vermínicos, sugando a vitalidade orgânica dos médiuns sem preparo”.
27
Os
vermes intestinais podem ser materiais ou fluídicos, os primeiros agem juntamente com
a flora microbiana, enquanto os segundos, mais horrendos e venenosos” como, por
exemplo, as aranhas fluídicas, não precisam de materialidade para agir. algumas
formas que podem ser fluídicas e materiais, como seria o caso do miriápode sugador de
intestinos, geralmente localizado no cólon ascendente, próximo do apêndice. O
estômago e o fígado seriam dois órgãos vitais do aparelho digestivo, neste último
“agasalham-se” muitas enfermidades e “perturbações de caráter mediúnico”,
principalmente infecções quísticas amebianas e “giardises”. Não conforme com os
danos existentes em seu próprio conjunto de órgãos, o aparelho digestivo exerceria uma
forte influência, através de reflexos “enfermiços”, no aparelho urinário causando
múltiplos males em rins, canais uretrais e bexiga.
A medula espinhal cobra grande importância por ser o lugar onde se acumula
grande massa fluídica de “ação maléfica”. Igualmente importantes, as vértebras
cervicais, as vértebras lombares e o osso sacro receberiam a ação dos passes magnéticos
devido a sua relação com os diferentes plexos, estes últimos formados pelo sistema
nervoso simpático, “o principal sistema mediúnico” para os espíritas. Os vários plexos
(craniano, cervical, braquial, cardíaco, solar, mesentérico, sagrado e hipogástrico ou
prostático), têm grande influência nas relações com as enfermidades físicas ou
espirituais”.
27
A obsessão e o vampirismo serão explicados nos próximos itens.
75
Os plexos, redes de vasos sangüíneos e de nervos do sistema linfático,
representam os pontos de junção entre espírito e corpo. O perispírito, por sua vez, seria
o encarregado de acomodar com afinada exatidão ao espírito e ao corpo através dos
plexos (corpo), também conhecidos como chacras (perispírito). Para os espíritas, os
plexos importantes no trabalho terapêutico são aqueles correspondentes ao sistema
nervoso parassimpático que regulam as funções não volitivas.
Para Toledo, a aura humana é modificada pelas qualidades dos pensamentos
emitidos. Tais auras contêm nuanças de cores cambiantes, “fichas de identificação” dos
seres humanos perante seus mentores espirituais”, dependendo do tipo de pensamento
produzido pelo espírito; a cada cor, então, corresponderia uma ou várias características
(Toledo, 2005:43).
O espiritismo visa ao equilíbrio do corpo e, em conseqüência, a sua harmonia. A
“lei do equilíbrio” regeria o universo e os seus elementos, incluindo os espíritos, através
da “energia fluídica”. Paralelamente, a “lei dos contrários” coadjuvaria a manter tal
equilíbrio como acontece na produção da luz ao opor o pólo positivo contra o pólo
negativo. Desta forma, o corpo também sofreria a influência de forças magnéticas
contrárias em procura de equilíbrio, o qual seria mantido pela movimentação das
“correntes centrífugas” (de dentro para fora) e das “correntes centrípetas” (de fora para
dentro), através das “linhas de forças vitais” alimentadas pelo magnetismo positivo e
negativo, ambas provindas do “Céu” e da “Terra”.
Toledo (2005:86-87) reconhece ao alemão barão de Reichenbach como o
pioneiro no estudo dos fluidos através do magnetismo. Para o barão, o ser humano teria
76
uma aura definida, um eixo de polarização com um pólo positivo e outro negativo.
Desta forma, o indivíduo teria duas “naturezas” magnéticas: uma positiva, do lado
direito, descendente; e outra negativa, do lado esquerdo, ascendente, que formariam as
correntes centrífugas e centrípetas citadas como pode ser observado no esquema do
anexo 1.
A harmonia das correntes eletromagnéticas manteria o equilíbrio dos corpos
físico e espiritual. Do corpo físico emanaria uma luz clara, diáfana, levemente brilhante
em ondas vibratórias, representando a irradiação magnética da matéria. No caso do ser
humano, além dessa irradiação fluídica, juntar-se-iam outras. Do perispírito, por
exemplo, sairiam vibrações coloridas em variados matizes, produto da ação reflexa dos
sentimentos manifestados, formando uma zona ovóide, luminosa, em torno do corpo
físico, limitando assim a atmosfera em que vive o ser humano.
Como podemos constatar, o espiritismo vale-se da idéia de “fluidos”, seja para
descrever a constituição de alguns elementos do ser humano, como seria o perispírito,
ou para falar sobre uma substância que produz uma série de efeitos no mundo material e
no mundo espiritual, inclusive a saúde e a doença. N’A Gênese, Kardec (2005b:314)
define ao fluido cósmico universal como princípio elementar do Universo, como a
matéria universal primitiva”, suas modificações e transformações constituiriam “a
inumerável variedade dos corpos da Natureza”. O fluido cósmico universal, acrescenta
Kardec, assume dois estados distintos: o de eterização ou imponderabilidade,
considerado como o primitivo estado normal, e o de materialização ou de
“ponderabilidade”, que seria, de certa maneira, consecutivo àquele primeiro.
77
Os espíritos manipulariam os fluidos espirituais através do pensamento e da
vontade, ou seja, “para os espíritos, o pensamento e a vontade são o que é a mão para o
homem”, afirma o autor d’O Livro dos diuns. Através do pensamento, os espíritos
estariam “aglomerando, combinando, dispersando, organizando, modelando e
colorando” os fluidos espirituais. Algumas vezes, essas transformações resultariam de
uma intenção, outras, seriam produto de um pensamento inconsciente. Estes fluidos são
designados a partir de suas propriedades, seus efeitos e tipos originais. Adicionalmente,
os fluidos refletem todas as paixões, as virtudes e os vícios da humanidade e das
propriedades da matéria, correspondentes aos efeitos que eles produzem”. Sob o ponto
de vista moral, os fluidos trariam sentimentos de ódio, inveja, ciúme, orgulho, egoísmo,
violência, hipocrisia, bondade, benevolência, amor, caridade e doçura; sob “o aspecto
físico” seriam excitantes, calmantes, penetrantes, adstringentes, irritantes, dulcificantes,
soporíficos, narcóticos, tóxicos, reparadores e “expulsivos”.
O pensamento dos espíritos encarnados e desencarnados atuaria sobre os fluidos
espirituais e se transmitiria de espírito a espírito, sanearia ou viciaria os fluidos
ambientais conforme a qualidade moral do transmissor. Tais fluidos atuariam sobre o
perispírito, este, a sua vez, reagiria sobre o organismo material: “se são maus, a
impressão é penosa. Se são permanentes e enérgicos, os eflúvios maus podem ocasionar
desordens físicas; não é outra a causa de certas enfermidades” (Kardec, 2005b:327).
Por outro lado, existe a possibilidade de que o espírito encarnado ou desencarnado use
os fluidos para ões reparadoras do corpo deteriorado, ou seja, os espíritos seriam
agentes de cura através da manipulação dos fluidos espirituais.
78
3.3 Saúde e doença como processo, experiência e construção sociocultural.
Uma das principais contribuições feitas no campo da antropologia da saúde, a partir da
abordagem simbólica, tem sido a proposta de Arthur Kleinman (1973), que reúne uma
série de unidades de análise que buscam se aproximar às múltiplas interpretações que,
em torno à doença, são construídas pelos sujeitos nas suas realidades psicobiológicas,
sociais e físicas.
Para Kleinman, os sistemas médicos são tanto sociais quanto culturais, sem se
limitar a sistemas puramente de significado e de normas de conduta. Tais significados e
normas certamente formam parte de relações sociais particulares e dos aparelhos
burocráticos, porém é necessário abordar a relação de processos externos (fatores
sociais, políticos, econômicos, históricos, epidemiológicos e tecnológicos) e processos
internos (psicofisiológicos, de conduta e comunicativos) para situar, desta forma, as
práticas e crenças individuais em estruturas sociopolíticas e em ambientes particulares.
Cultura, em termos do autor, e no contexto de saúde-doença, é entendida como sistema
de significados simbólicos que modela tanto a realidade social quanto a experiência
pessoal, valorizando uma mediação entre os parâmetros externos e internos dos sistemas
médicos, resultando o maior determinante de conteúdo, dos efeitos e das transformações
(Kleinman, 1973:86).
Kleinman introduz uma série de conceitos teóricos e operacionais, permitindo
não apenas um melhor entendimento de sua proposta, mas também uma reformulação
da pesquisa antropológica na área de saúde. Entre seus principais conceitos há: disease
(enfermidade) e illness (doença), sendo que disease faz referência a um estado
79
patológico pertencente ao modelo biomédico e illness dá conta das preocupações e
experiências do indivíduo mediadas pela construção cultural. O conceito de sickness
(mal-estar, distúrbio), trabalhado por Allan Young (1976), envolve tanto a dimensão
biomédica quanto a experiência subjetiva e social da doença.
Quanto às crenças e às práticas médicas, Allan Young (1976) propõe desvendar
seus significados práticos e sociais através do entendimento dos episódios de mal-estar,
crise ou distúrbio em termos das expectativas dos atores, do caráter de construção
narrativa das etiologias das doenças e da natureza do processo de cura (Young,
1976:33). Como Kleinman, Young advoga pela construção de conceitos é o caso de
sickness – com os quais possam se realizar comparações cross-cultural.
A terapia, para Young, além de estar relacionada à cura do mal-estar, seria
também um meio através do qual certos tipos de crises são definidas adquirindo formas
culturalmente reconhecidas. O autor enfatiza o marco social do mal-estar e da cura,
observando algumas características, como o afastamento da pessoa em crise da rede de
relações sociais e/ou a legitimação das mudanças acontecidas numa comunidade, as
quais levam a um processo de reflexão subjetivo e coletivo sobre a ordem social. Outro
aspecto importante na proposta de Young é a etiologia (1976:18-19), onde o paciente e
o curador constroem uma etiologia relacionada com eventos, incluindo aqueles que são
socialmente importantes que ocorreram antes do aparecimento da indisposição. Os
sintomas seriam as expressões socialmente percebidas do mal-estar.
Young é explícito ao reconhecer dois níveis de realidade partindo do modelo de
Geertz (1989:69-70). O modelo de realidade realiza conexões e contrastes dos objetos
80
de seu mundo, estabelecendo tais percepções como verdadeiras e extrínsecas ao modelo
(Young, 1976:28). Modelos de realidade são tanto “modelos de” quanto “modelos para”
ou, em outras palavras, estrutura e prática. A práxis é a atividade que impõe uma ordem
no sentido de realidade, a qual o é apenas dada, mas também é modificável pelos
sujeitos.
Seguindo a proposta de Kleinman sobre cultura, visaremos analisar o sistema de
significados simbólicos no espiritismo brasileiro, o qual estaria modelando tanto a
construção da realidade espírita como a experiência dos espíritas no contexto saúde-
doença. A partir do conceito de illness de Kleinman, e de sickness proposto por Young,
observaremos como o espiritismo brasileiro delinha o processo saúde-doença desde dois
campos de saberes que pareceriam contrapostos, a ciência e a religião, mas que no caso
espírita atuariam em conjunto, outorgando-lhe a este processo uma série de significados
culturais mediados pela cosmovisão espírita de progresso, reencarnação e melhora
moral. Assim, descreveremos as etiologias das doenças e a natureza do processo de
cura espírita para poder desvendar os significados das crenças e das práticas médicas,
como sugere Young.
3.4 A construção sociocultural da doença entre os espíritas brasileiros.
Para os espíritas brasileiros da Associação Médico Espírita do Brasil, a saúde é mais
que a ausência de doença no organismo e mais que o estado de bem-estar físico, mental
e social do paciente. Enquanto o ser humano é considerado como um ser bio-psico-
sócio-espiritual, segundo a Carta de Fundação da Associação Médico Espírita do Brasil,
81
a saúde é definida como a harmonia integral do espírito. Esta última pode ser atingida
através do processo de expiação ou reparação de erros cometidos nas diferentes
reencarnações, assim como pelo seguimento das pautas morais espíritas na vida presente
ou na participação das terapias mediúnicas e cirurgias espirituais.
Em algumas das obras doutrinárias de Allan Kardec encontram-se explicações
sobre doenças e “perturbações” espirituais, assim como exposições de alguns métodos
terapêuticos empregados na cura de tais doenças. N’O Livro dos Espíritos aborda-se
timidamente a questão da saúde e da doença quando se explica o porquê da loucura e do
nascimento dos deficientes mentais,
28
ao abordar o tema dos feiticeiros,
29
ao aclarar o
conceito de possessão de espíritos desencarnados sobre espíritos encarnados,
30
ao falar
sobre a intervenção de Deus nas penalidades e recompensas humanas e ao descrever o
funcionamento das penalidades temporais dos espíritos. Sobre tais penalidades, Kardec
(1999:337-338) afirma, com base na sua própria proposta de lei de justiça e lei de causa
e efeito, que todos os sofrimentos e aflições da vida são a expiação das faltas de uma
outra existência, quando não são a conseqüência das faltas da vida atual”, idéia que
temos encontrado no estudo de alguns textos espíritas brasileiros sobre saúde-doença e
nas próprias entrevistas etnográficas com espíritas de São Paulo. Assim, a ação de Deus
sobre os infratores às “leis morais”
31
o significa, segundo Kardec, uma ão direta
28
A loucura e as deficiências mentais, segundo a doutrina espírita, são expiações obrigatórias em
conseqüência do abuso de certas “faculdades” (Kardec, 1999:158).
29
Na pergunta 556 d’O Livro dos Espíritos, Kardec reconhece que algumas pessoas têm o dom de curar
pelo poder magnético do toque aliado à “pureza dos sentimentos e um ardente desejo de fazer o bem”.
30
Kardec deslinda-se de algumas idéias cristãs sobre possessão ao rejeitar a possibilidade de que um
demônio (seres de natureza má) possa coabitar com algum espírito em algum corpo encarnado. A palavra
“possesso”, sugere Kardec, deve ser entendida como o processo onde a alma encontra-se em relação a
espíritos imperfeitos exercendo sobre ela o seu domínio, o que em outras obras desenvolverá como
obsessão.
31
Como foi comentado no capítulo 1, Kardec expõe uma rie de leis morais n’O Livro dos Espíritos.
Estas leis o as leis divina ou natural; de adoração; do trabalho; de reprodução; de conservação; de
destruição; de sociedade; do progresso; de igualdade; de liberdade; de justiça, amor e caridade; perfeição
moral.
82
sobre estes, pois as próprias leis trazem em si as suas punições: “as doenças e,
freqüentemente, a morte, são conseqüências dos excessos: eis a punição; ela é o
resultado da infração à lei” (Kardec, 1999:331).
N’O Evangelho segundo o Espiritismo, terceira obra doutrinária de Kardec,
discorre-se com maior soltura, em relação às obras kardecistas prévias, sobre a causa
das doenças e suas possíveis ações terapêuticas. Neste livro, as “vicissitudes” da vida,
como haviam sido expostas anteriormente por Kardec, teriam duas fontes de origem:
umas nas vidas passadas, outras na vida presente. Os males e as enfermidades estariam
dados a conseqüência da “intemperança” e dos “excessos de todos os gêneros” e, como
foi observado n’O Livro do Espíritos, as leis morais criadas por Deus punem aos
transgressores.
Citando a Santo Agostinho, “felizes aqueles que sofrem e que choram!, que suas
almas se alegrem porque serão abençoadas por Deus”, Kardec propõe como remédio ao
sofrimento a fé, “olhar para o céu”, acreditar no “Senhor” e na justiça divina ensinada
por Cristo, praticar os valores do amor e da caridade, assim como as virtudes da
humildade, da afabilidade, da paciência, da obediência, da indulgência, da misericórdia,
da piedade e da resignação. Como podemos ver, Kardec apropria-se do quadro moral
cristão ressignificando-o no seu projeto espírita reencarnacionista e evolucionista, o
qual teria como uma de suas propostas de cura a incorporação do código moral espírita
e a fé em um ente superior onipotente e onipresente.
no capítulo XXVI d’O Evangelho segundo o Espiritismo, Kardec reconhece
que Cristo e seus discípulos receberam a faculdade de curar aos doentes através da
83
mediunidade. Contudo, aqueles doentes que o recebessem diretamente o auxílio de
um médium com faculdade de cura faculdade tida por Cristo e seus discípulos
poderiam encontrar na prece e, sobretudo, na prece coletiva, o veículo de comunicação
com os bons espíritos para assim se beneficiar dos seus conselhos morais.
Finalmente, n’A Gênese, livro publicado em 1868 fechando o grupo de obras
básicas de Kardec, sugere-se que o fluido universal, condensado no perispírito,
forneceria princípios reparadores ao corpo. O espírito encarnado ou desencarnado,
portanto, seria o agente propulsor que infiltraria num corpo deteriorado uma parte da
substância do seu envoltório fluídico. A cura se operaria mediante a substituição de
uma molécula malsã por uma molécula sã. O poder curativo estaria, pois, na razão
direta da pureza da substância inoculada; mas dependeria também da energia da vontade
que, quanto maior for, tanto mais abundante emissão fluídica provocaria e tanto maior
força de penetração daria ao fluido.
Os efeitos da ação fluídica sobre os doentes seriam extremamente variados de
acordo com as circunstâncias (Kardec, 2005b:336). Algumas vezes a cura seria lenta e
reclamaria tratamento prolongado; outras vezes seria rápida, “como uma corrente
elétrica”. Todas as curas desse gênero seriam variedades do magnetismo e só difeririam
pela intensidade e pela rapidez da ação. O princípio seria sempre o mesmo: o fluido
desempenharia o papel de agente terapêutico cujo efeito se acharia subordinado à sua
qualidade e a circunstâncias especiais.
A ação magnética para a cura poderia produzir-se de três maneiras, segundo
Kardec: 1) pelo próprio fluido do magnetizador, 2) pelo fluido dos espíritos atuando
84
diretamente e sem intermediário sobre um encarnado e 3) pelos fluidos que os espíritos
derramam sobre o magnetizador que serviria de veículo para tal derramamento.
Para Kardec, a faculdade de curar pela influência fluídica seria muito comum,
poderia se desenvolver por meio do exercício; mas, a de curar instantaneamente, pela
imposição das os, essa seria mais rara e o seu grau ximo se deveria considerar
excepcional. No entanto, em épocas diversas e em quase todos os povos, teriam
aparecido muitos exemplos notáveis, cuja autenticidade não sofreria contestação, como
são os casos de cura praticados por Jesus, resenhados e analisados por Kardec n’A
Gênese. Seu autor sentença que o espiritismo “cura os males físicos, mas cura,
sobretudo, as doenças morais e são esses os maiores prodígios que lhe atestam a
procedência” (Kardec, 2005b:373).
Os espíritas brasileiros fundamentam seus conceitos de saúde e doença, assim
como suas práticas de cura, no corpo literário de Allan Kardec. Ao mesmo tempo,
alguns espíritas incorporam propostas posteriores a Kardec, ligadas ao movimento da
Nova Era,
32
como seria o caso da cromoterapia.
A doença, para Therezinha Oliveira (2006:59,60), destacada palestrante e
intelectual espírita de São Paulo, o acontece por acaso, ela tem uma origem espiritual
seja na existência atual ou em alguma das encarnações anteriores. A insuficiência ou
desequilíbrio do espírito, provocado pelo próprio doente ou por algum espírito obsessor,
prejudicaria o perispírito desarmonizando-o e deixando-o em “carência vibratória”. O
perispírito, em conseqüência, transmitiria ao corpo físico essa desarmonia. O corpo, por
32
Sônia Weidner Maluf (2002), no artigo “Mitos Coletivos e Narrativas Pessoais: Cura Ritual e Trabalho
Terapêutico nas Culturas da Nova Era”, discute o panorama de curas e terapias no contexto das culturas
da Nova Era no Brasil.
85
sua vez, ficaria prejudicado, apresentaria a doença ou permitiria a eclosão daquela que
traria em estado potencial. Nesse sentido, afirma-se que as doenças vêm do espírito
(Andrade, 1992:16), ainda mesmo as hereditárias (Toledo, 2005:70).
A doença, no entanto, guarda relação com o estado evolutivo, sugere Oliveira.
Para ela, o ser humano depara-se num estágio de evolução onde se habita um mundo, o
planeta Terra, que contém matéria grosseira e doenças; onde a hereditariedade causa ou
predispõe certas doenças quando se faz parte de determinada família; onde a
determinação ou predisposição para alguma doença, como conseqüência da ação
espiritual exercida em vidas anteriores, é contida no perispírito. Dessa maneira, e
conforme a evolução espiritual de cada indivíduo, exercer-se-iam efeitos fluídicos bons
ou maus sobre o perispírito, que repercutiriam no corpo físico; atrair-se-iam bons
espíritos que influenciariam com seus fluidos benéficos; ou espíritos maus, sofredores,
de fluidos maléficos ou enfermiços. Se bem as doenças são inevitáveis sendo inerentes
ao estado evolutivo dos seres humanos, estas seriam necessárias ao desenvolvimento
“intelecto-moral”, assegura Oliveira.
Wenefledo de Toledo adverte sobre as diferentes predisposições orgânicas, ou
“estados receptivos”, para contrair e atrair a doença: “funciona como por indução de
corrente elétrica” (Toledo, 2005:72). Para este autor, antes da predisposição orgânica
houve uma causa determinante, podendo ser: 1) rmica (o perispírito enfermo, ao
reencarnar, traz já o “nascituro” e transmite “os males que a matéria ou espírito tem que
sofrer”); 2) atraída (provêem das vibrações humanas no contexto da lei dos
“semelhantes atraem semelhantes”, pensamentos negativos atraem pensamentos
negativos); 3) hereditária (os pais transmitem aos filhos muitos males, mas mesmo
86
nessa herança, haveria causas de origem espiritual); 4) ambiente (no local onde se faz a
morada, na casa onde se reside, e preferencialmente na sala de refeições e no quarto de
dormir, condensam-se em nuvens os pensamentos emitidos).
3.5 Obsessão e sexualidade.
Em relação à obsessão, descrita n’A Gênese (Kardec, 2005b:347) como “a ação
persistente que um espírito mau exerce sobre um indivíduo”, desde uma simples
influência moral até uma perturbação completa do organismo e das faculdades mentais;
alguns espíritas brasileiros afirmam que esta é a causa de algumas doenças e mal-estares
no sujeito “obsedado”, para o qual se aplicariam uma série de tratamentos desobsessivos
que combinam a doutrinação evangélica, o passe coletivo, o passe individual e outras
“fluidoterapiasque poderão ter conseqüências benéficas tanto no obsedado como no
espírito obsessor.
Luiz Schvartz (1994:55), espírita brasileiro, define a obsessão como o domínio
que os espíritos inferiores exercem sobre algumas pessoas, com a finalidade de
submetê-las à sua vontade, satisfazendo assim seus caprichos ou interesses. Para
Schvartz a obsessão processar-se-ia como um abraço de urso” onde o espírito
desencarnado atua sobre o indivíduo, envolvê-lo-ia no seu perispírito como se fosse um
manto. Os fluidos, os pensamentos e as vontades do obsessor e do obsedado confundir-
se-iam, o espírito servir-se-ia do corpo do indivíduo (sem habitar nele) como se fosse
seu, fazendo-o agir de acordo com sua vontade. Este mesmo processo aconteceria com
os médiuns, só que neste caso os espíritos que rodeiam aos médiuns aconselham “boas”
87
ações, por tanto, não se consideraria uma obsessão. Na obsessão, o espírito mal-
esclarecido e inferior comprimiria sua vítima numa teia, lhe paralisaria a vontade e o
discernimento por meio do fluido e lhe compeliria a cometer “atos extravagantes ou
ridículos” transformando-o num instrumento cego de seus desejos.
Apesar dos danos causados pela obsessão, os espíritas brasileiros vêem nela um
chamado para a redenção, sendo esta a lei de ação e reação que impulsiona o livre
arbítrio para a mudança comportamental. Contudo, a obsessão não combatida poderia
levar à depressão, aos “desvarios sexuais”, às síndromes de angústias, às fobias e
“moléstias-fantasmas”, às desarmonias domésticas; também poderia causar a debilidade
intelectual, levar ao suicídio, induzir às tragédias passionais e acarretar desgastes no
campo físico. Os espíritos obsessores aparecem onde “alguma coisa os atrai”. Assim,
eles misturar-se-iam onde encontrassem simpatia ou, pelo menos, “lados fracos” que
esperam aproveitar.
Schvartz (1994:63-70) enumera algumas das causas das obsessões, entre outras
destacam: 1) vingança (a obsessão seria quase sempre a ação vingativa de um espírito
contra a pessoa que o magoou numa existência anterior e que agora, de certa forma, o
está “cobrando”); 2) prova e expiação (a obsessão, como as doenças e como todas as
atribulações da vida, é considerada como uma prova ou expiação, ou seja, como uma
possibilidade da reforma dos costumes); 3) punição (o obsessor puniria aquele que não
o perdoou); 4) melhora (a obsessão como oportunidade para que o médium melhore ao
obsessor); 5) progresso (aperfeiçoamento do obsessor e do obsedado); 6) fraqueza moral
(a obsessão decorreria sempre de uma imperfeição moral do obsedado ou pelos vícios
morais” duma sociedade ou região); 7) desejo de fazer o mal (o obsessor sentiria prazer
88
em estender seu sofrimento aos outros; 8) divulgação da doutrina espírita (a obsessão
atrairia a atenção visando reconhecer a ação do mundo invisível sobre os homens).
No caso do vampirismo, processo obsessivo sobre o qual se aplicariam as
mesmas ações terapêuticas trabalhadas na obsessão, o “espírito-vampiro” sugaria as
forças do indivíduo, inclusive seu fluido vital, podendo desencadear no obsedado
processos de desequilíbrio de saúde, inclusive a morte. Quanto maiores os hábitos de
uma pessoa fumar, ingerir bebidas alcoólicas, comer em “demasia” e usar drogas,
maiores seriam as chances de ser sugado por algum espírito “mal-esclarecido”.
Herculano Pires (1991:12), eminente espírita brasileiro que publicou 80 livros sendo
vários deles em parceria com Chico Xavier, define o vampirismo como um “fenômeno
de simbiose”, como a atuação consciente de um ser sobre outro, para deformar-lhe os
sentimentos e as idéias, conturbar-lhe a mente e levá-lo a práticas e atitudes contrárias
ao seu equilíbrio orgânico e psíquico.
Pires mostra-se crítico contra as novas” tendências da psicologia que
consideram “normais” as anormalidades, particularmente as sexuais (as “inversões” e os
“desvios” sexuais), sobre as quais os vampiros teriam forte interesse e influência:
33
O homossexualismo, nos dois sexos, por sua intensidade nas civilizações antigas
e sua revivescência brutal em nosso tempo, é a mais grave dessas
anormalidades que hoje se pretende declarar normais. E é precisamente nesse
campo, o mais visado pelo vampirismo desde os íncubus e súcubus da Idade
Média até os nossos dias , que incidem hoje os destemperos criminosos dos
libertinos diplomados (Pires, 1991:29).
33
Pires (1991:39) observa a Freud desta forma: “surgiu em Viena um judeu nebuloso que fabricava uma
alma artificial para o homem, com três peças distintas numa só alma verdadeira: o consciente, o
subconsciente e o inconsciente. Sigmund Freud, trazia ainda na sua ratoeira um bando de fantasmas
complexos, com nomes gregos. Esse judeu acabou com a alegria infantil dos comportamentistas. Frio
analítico, atribuía todas as perturbações humanas à libido e fazia concorrência deslavada aos padres
confessores, tirando a clientela dos confessionários para as poltronas e os sofás das clínicas psicanalíticas.
Os ratos começaram a sumir do mercado e foram substituídos por introjeções e recalques. Descobriu-se
que o homem nada mais era do que um judeu recalcado pelo moralismo desesperante dos rabinos do
Templo de Jerusalém”.
89
Para Pires, a relação entre vampiro, sangue, sexo e morte revelaria a dinâmica genésica
do vampirismo. O sangue seria o poder que nos conservaria vivos e ligados a toda a
realidade vital. O fluxo da vida ver-se-ia interrompido perante os desequilíbrios
orgânicos subsumidos na hipnose dos prazeres e das satisfações efêmeras; assim, os
vampiros cairiam sobre os seres humanos, “com suas garras e bocas vorazes”, guiados
pela indução mental e afetiva dos espíritos encarnados. Os “vampirizados” que se
queixam de falta de força para resisti-los, adverte Pires, mentem a si mesmos. É na
resistência ao vampiro onde se revela a prática do livre-arbítrio, a liberdade individual, e
a capacidade de querer e fazer. Quando os psiquiatras falam em ter resolvido algum
caso de homossexualidade convencendo a vítima de que esse é seu destino, tornam-se
cúmplices das conseqüências desse ato de ignorância e arrogância, sentencia o autor de
Vampirismo.
3.5.1 Experiências de obsessão em São Paulo.
Ao longo da pesquisa de campo encontramos uma rie de informantes que nos
confiaram ter passado por processos de obsessão, inclusive de obsessão sexual. A
maioria deles foi para algum centro espírita de sua comunidade para participar do
tratamento espiritual de desobsessão, construindo, nesse tratamento, ao lado dos
espíritas e dos “espíritos” que auxiliam na terapia, a cura da sua obsessão em termos de
Csordas (1983:333): criação de uma predisposição para ser curado, criação da
experiência de “empoderamento” espiritual e criação de uma percepção de
transformação pessoal. A cura, portanto, não necessariamente inclui a remoção dos
90
sintomas da doença, porém considera a ativação de uma transformação no significado
que o paciente atribui a sua illness.
Alguns de nossos informantes, após o tratamento, já trabalham como médiuns de
desobsessão, como é o caso de Felipe. Milton, por sua vez, pretende fazê-lo futuramente
e Enéas, em contraste, rejeita a possibilidade de usar seu corpo para receber qualquer
espírito.
Felipe disse sofrer de uma doença que interrompe seu fluxo de vida cotidiano:
obsessão e “transtorno de personalidade borderline”. De fato, o ex-sindicalista disse ter
estado internado já em um hospital psiquiátrico, lugar onde refletiu, auxiliado por um
romance espírita, sobre a possibilidade de encontrar uma saída ao seu sofrimento
através da desobsessão e da participação no espiritismo kardecista:
Quando me internei no hospital psiquiátrico eu estava sem fé, sem nada.
Comecei a ler um livro que eu tinha em casa. O livro tinha um personagem que
tinha meu nome. O livro se chama Despertar para a Vida. Aí tem um personagem
que se chama Felipe no livro, ele conhece a Márcia, ele é espírita muito
dedicado e a Márcia é uma pessoa muito agnóstica. Felipe insistia para ela
sobre o espiritismo até que ele consegue convencer a Márcia a procurar o
centro espírita. O Felipe é um lutador, de verdade, ele quase morreu. Quando
comecei a ler o livro, e percebi que a pessoa pode se recuperar mesmo no lugar
mais difícil, no buraco mais difícil, comecei a procurar a casa. Eu tinha feito
os cursos, me orientaram, comecei o tratamento, fiz quase oito meses de
tratamento de desobsessão porque era um caso muito complicado, eu estava
com o corpo muito debilitado.
34
O tratamento de desobsessão realizado no centro espírita é narrado por Felipe. Ele
acredita que, além do tratamento, precisa-se de uma “mudança de comportamento” para
se curar:
34
Felipe, 02/06/2006
91
Você entra numa sala mediúnica. Existe o grupo de interseção que faz a oração
junto com você pedindo para que você se fortaleça. você entra em um outro
grupo onde os irmãozinhos estão próximos a você e eles vão ser imantados para
que os médiuns de psicofonia possam conversar com eles. O mais importante
para a desobsessão, na verdade, não é isso, não é você ir lá, uso de energia,
passar ao outro grupo para que os espíritos sejam desimantados de você. O
mais importante é a mudança de comportamento. A mudança de comportamento
é a que mais demora. Eu tive alta do tratamento intensivo de desobsessão
quando mudei de comportamento, quando parei de pensar em suicídio, quando
parei de pensar que eu era a pior pessoa do mundo, quando parei de pensar que
ninguém gostava de mim. A medicação começou a diminuir, aí sim comecei a
mudar de verdade.
35
Felipe pensa que provavelmente os excessos que teria cometido em outra vida seriam a
causa do seu transtorno. Nesse sentido, ele teria pedido para vir com esse problema e
assim aprender a ter regras e controle. No caso da sua obsessão, uma obsessão múltipla
por sexo, comida e compras, também teria origem em uma outra vida:
Minha obsessão era um desvio sexual de vida anterior. Eu tinha impulsos
sexuais incontroláveis, a medicação servia para isso, para controlar o impulso
sexual. Não tinha explicação, a explicação estava numa vida anterior (...). Por
exemplo, em qualquer lugar eu sentia influência, eu estava no meio da rua, indo
para casa, eu sentia influência de algum irmãozinho que me mandava ir para
uma sauna, ou para um cinema. Eu ia sem controle nenhum, mesmo com a
medicação, mesmo internado. Entrava, passava a noite inteira, no dia seguinte
eu ia para o hospital que eu estava internado. A primeira coisa era procurar o
psiquiatra, ou o psicólogo que cuidava de mim, e pedir internação fechada.
que (para) o problema que eu tinha era impossível a internação fechada, porque
se os outros pacientes soubessem que eu tinha compulsão sexual, eu podia
sofrer algum tipo de ataque. Eles não me internaram, me aumentaram a
medicação e fiz terapia em grupo.
36
Desta maneira, Felipe lembra-se de um caso no qual os espíritos obsessores o
aconselhavam a fazer sexo, e ele acedia ao desejo deles:
Eu tinha saído da clinica já (...). Tinha uma vontade de fazer sexo maluca,
incontrolável. Eu tive de entrar num cinema do centro da cidade, só que sempre
é a mesma coisa: a vontade não é minha, o desejo não é meu. Depois que eu
35
Ibidem.
36
Ibidem.
92
entro encontro alguém, transo com alguém. Quando eu saio a sensação é
péssima, eu me sinto sujo. Hoje não passa mais isso, porque o controle é meu,
mas quando acontecia isso eu me sentia muito mal porque eu estava acedendo a
desejos queo eram meus. eu chegava, falava para minha instrutora o que
tinha acontecido, aí eu voltava para desobsessão (...)
37
Após vários meses de passar pela desobsessão, Felipe conseguiu ter controle sobre seus
desejos. Inclusive, ele trabalha atualmente na área da desobsessão, como médium de
psicofonia, em uma casa espírita de Cotia. Em conseqüência, ele parou de comer carne,
de beber e de sair à noite:
Depois que eu comecei a trabalhar na casa espírita, eu parei realmente de sair
à noite. Você vira um meio público e as pessoas ficam falando de você (...) você
vira um ponto de referência, um ponto de moral. Não que seja errado ir lá, mas
as pessoas não têm essa mesma visão de não te julgar. Eu também comecei a
não gostar de ir, a energia não faz mais bem, nem da boate, nem do bar. Depois
da questão da mediunidade eu percebi que tipo de espíritos circulam aí. Eu ia
para aqueles lugares, voltava para casa e me sentia sugado, vampirizado é a
palavra. Minha mãe, ela falava isso para mim todos os dias que eu saía, e eu
simplesmente negava isso, falava para ela que não, que ela estava exagerando.
Depois que eu estudei, percebi que era verdade o que ela estava falando. E hoje
não bebo mais (...)
38
O prestígio de ser trabalhador espírita, e a rejeição de conviver em um lugar onde
circulam espíritos vampiros, levaram Felipe a se afastar de todo tipo de boates e bares.
Nessa mesma procura ascética, Milton coincide com Felipe ao descrever os bares
noturnos como espaços cheios de “espíritos obsessores”, por um lado, e ao afirmar a
importância da mudança de comportamento no contexto do tratamento espiritual:
(...) eu fiz o tratamento por vários meses. Eu melhorei. Eu parei de ir porque já
tava me sentindo melhor, mais revigorado. Mas o tratamento depende muito do
seu comportamento no dia a dia. Não adianta, por exemplo, você ser um cara
que quer equilíbrio, você vai, faz o tratamento, você acaba de sair de e vai,
por exemplo, para um inferninho gay que é cheio de espíritos obsessores. Não
tratamento que conta, principalmente se você for uma pessoa que tem um
37
Ibidem.
38
Ibidem.
93
pouco de sensibilidade para ir nesses lugares, é meu caso, que quando eu vou
em lugares assim, que eu chamo inferninhos gays, que são lugares um pouco
mais pesados, nossa!, eu fico acabado no dia seguinte, na semana seguinte,
demorando para voltar ao cotidiano normal.
39
O processo de obsessão é descrito por Milton deste modo:
O ser humano tem alguns vícios, algumas pessoas se viciam em cigarro, em
bebidas, em drogas, em sexo, na promiscuidade em si. E esses lugares eles têm
isso fisicamente: muito culto às bebidas, à droga, ao cigarro, ao sexo. Não estou
falando que essas coisas são erradas, mas que existe um tipo de tortura viciosa,
existe uma doença (...), uma indução, esses lugares induzem você a algum
desses itens que eu estou citando. E os espíritos que viviam em vício desse tipo,
quando eles desencarnaram, eles não conseguiram ascender para se desapegar
da vida material, eles ficam aonde?, eles ficam geralmente nesses lugares. Os
espíritos desencarnados podem até plasmar uma garrafa de pinga, eles podem
até tomar, mas não é a mesma sensação de quando você está no físico. que
quando um espírito encarnado vai e toma uma bebida alcoólica e tem algum
espírito obsedando a ele, enquanto ele toma a bebida alcoólica o espírito que
está lá, junto dele, faz uma incorporação bem leve, fica bem junto da pessoa que
está viva para sentir o gosto da pinga, ou da droga, ou do cigarro, ou do sexo
em si.
40
Milton acredita ter sido obsediado por espíritos vampiros. Ele começou a freqüentar a
Federação Espírita do Estado de São Paulo para ser atendido no serviço de depressão,
pois não conseguia esquecer um antigo namorado:
Eu entrei numa perturbação muito devastadora que me desequilibrou
totalmente. Eu comecei a ficar doente e não sarava mais, vivia deprimido e vivia
chorando. Eu percebi que estava mesmo indo por um caminho que ia acabar.
Tava muito obcecado por essa pessoa. Foi definitivamente que eu fui ao
centro espírita, fiz uma entrevista e comecei a fazer o tratamento porque eu
sentia que não era normal, que tinha alguma força por trás, algum tipo de
obsessão, que hoje eu entendo perfeitamente que realmente havia.
41
39
Milton, 27/05/2006
40
Ibidem.
41
Ibidem.
94
Atualmente Milton acredita estar melhorando. Ele quer se aprofundar no estudo da
doutrina para assim ajudar aos outros:
Eu acredito que eu estou melhorando. Eu saí desse problema, aconteceram
outros. Eu vou me melhorando até tal ponto que eu quero estudar a doutrina,
mesmo que seja no Instituto (Internacional de Projeciologia), para poder
também ajudar às pessoas que um dia precisem. Com tudo isso que eu passei,
que eu aprendi, acho que dá para ajudar alguém.
42
Milton disse possuir “parapsquismo simples”, ou seja, “absorção de energia” e
fenômenos de “projeção astral”. Ele ainda o direciona sua mediunidade nos centros
espíritas para nenhum trabalho em específico. O caso de Felipe é diferente: ele faz parte
do colegiado de médiuns” de um centro espírita de Cotia e trabalha na área de
desobsessão. Nesse trabalho, o espírito consegue “passar” para ele o que essentindo:
“o espírito consegue se manifestar através de mim, que a minha (mediunidade) é de
perispírito a perispírito, então muda toda a feição”. O ex-sindicalista assegura estar
semi-inconsciente ou inconsciente quando tem contato com os espíritos, mas quando se
trata do mentor resulta-lhe impossível ficar inconsciente, ele seria muito sutil e
comunicar-se-ia de pensamento a pensamento e não de perispírito a perispírito.
Felipe lembra de uma experiência de desobsessão na qual o espírito de uma
prostituta sentiu e falou através dele. O médium de aconselhamento teria convencido
esse espírito para participar dos trabalhos da casa no mundo material. Quando o espírito
da prostituta foi embora, Felipe sentiu-se bêbado e percebia uma energia muito pesada:
Um espírito feminino se manifestou através de mim. Ela era uma prostituta e ela
dizia que ela queria destruir um casal, dizia que alguém estava dando
champagne, vodka para ela. O (médium) esclarecedor, que estava conversando
com ela, disse para ela por que ela fazia isso ainda. Ela explicou que estava
assim 200 e tantos anos, contou a história dela, acho que era prostituta na
42
Ibidem.
95
França, que ela estava assim muito tempo. Ela gostava de viver assim, mas
que ela não queria mais viver assim. E ele fez uma proposta para ela: perguntou
se ela queria ficar na casa para ajudar eles a recuperar os irmãozinhos que
estavam na mesma situação que ela. Ela perguntou se os outros do bando dela
iam se vingar dela, o esclarecedor falou que não. Quase uma meia hora de
conversa com ela, ela aceitou. Eu lembro que depois que ela foi embora a
energia era muito pesada, eu me sentia bêbado, como se tivesse bebido muita
champagne.
43
Outra ação que Felipe desenvolve no centro espírita é o desdobramento. Ele recebe a
ficha de uma pessoa que não está presente no centro e, na sala mediúnica, ele ligar-se-ia
onde a pessoa estiver. Ele conseguiria sentir “o que a pessoa está sentindo, se tem
problemas espirituais ou não”. Além de sentir, o estudante de relações internacionais
pode ver o estado de saúde e doença dos “centros de força” dos espíritos encarnados:
Eu vi no colegiado de médiuns assistido que estava com o centro de força
genésico completamente deturpado. A gente consegue enxergar todos os centros
de força. Aquela pessoa estava com todo o centro de força genésico, que é de
onde sai a energia essencial para a vida, comprometido com parasitas sexuais
(...). A sensação que eu tive é que ela estava com sífilis.
44
Nem sempre a obsessão é pensada, pelos nossos informantes, tendo como agente um
espírito “desencarnado”. Assim, Enéas tem visto os espíritos do seu pai e da sua mãe,
falecidos, em um contexto de “paz e tranqüilidade”. A oposição ao estado de bem-estar
percebido pelo economista nestes encontros, revela-se na presença de obsessores
encarnados que tentam agredi-lo:
Eu percebo a maldade vindo de uma forma muito forte. Eles vêem, mas eu
acostumo dizer que meu espírito é inviolável. Eles se apresentam encarnados
como pessoas do meu trabalho, do meu circulo de amizade, pessoas que tentam
43
Felipe, 02/06/2006
44
Ibidem.
96
me agredir. Isso até dentro da família, olha: tiraram sangue de mim para que eu
não estivesse aqui, eu tive obsessores dentro da minha família!
45
Enéas começou a freqüentar centros espíritas depois da morte do seu irmão. Ele assiste
a palestras, acompanha a literatura espírita de Allan Kardec e alguns romances
brasileiros, como Memórias de um Suicida, mas não está interessado em incorporar”
espíritos rejeitando a possibilidade da fragmentação de sua individualidade:
Eu tenho uma coisa muito diferente que eu não admito, não que não admito, eu
não tenho essa vertente de incorporar, não incorporo porque eu acho que eu sou
um ser único, inviolável, eu estou me posicionado desta forma Quem incorpora,
Chico Xavier (por exemplo), tem outras missões, ok, acho que a minha missão é
menor, encaro assim, primeiro, porque sou ignorante, mas não permito essa
idéia de que um espírito incorpore em mim.
46
3.6 Técnicas de cura espírita.
No que concerne ao processo de cura espírita, e seguindo a Kardec e a Chico Xavier, o
espiritismo brasileiro afirma poder curar pela ação fluídica ao reconhecer a
possibilidade do espírito agir sobre os fluidos. A cura espiritual, veiculada na ação
fluídica, poderia se dar pela via mediúnica, pelos passes, pela água fluidificada, pelas
irradiações ou pela ação da oração. O agente de cura, como foi estipulado pelo autor d’A
Gênese, poderia ser um espírito encarnado ou desencarnado.
Para os espíritas, a eficácia da cura operaria quando o fluido atingisse a matéria
orgânica a fim de repará-la, quando a corrente fluídica possa ser dirigida para o “local
45
Enéas, 13/05/2006
46
Ibidem.
97
enfermo” pela vontade do curador e, sobretudo, quando a cura possa ser atraída pelo
desejo e confiança do enfermo que possui fé, definida esta última como bomba aspirante
e força atrativa (Oliveira, 2006:67). Assim, o paciente em busca de cura precisa estar
preparado espiritualmente para receber os fluidos. Tal preparação deve observar
condições de mínima harmonia no ambiente familiar, de receptividade e boa disposição
na “posição mental” do paciente, assim como de compreensão evangélica no receptor.
Se o ambiente familiar do doente é hostil, rodeado de “forças poderosas das trevas que
estão agindo em sentido contrário ao bem e envolvem o medianeiro nas suas malhas de
fluidos pesados”, o médium terá de pedir conselho aos seus mentores espirituais e,
muito provavelmente, agir em conjunto com algum grupo de médiuns bem
harmonizados. No caso do paciente não ter disposição para ser ajudado, o médium
recorrerá ao auxílio dos guias espirituais “até que uma porta seja aberta à intervenção
direta”. Neste processo de preparação do doente, os espíritas reconhecem que o estado
espiritual seria a base de todo tratamento mediúnico, sendo o primeiro cuidado a
doutrinação evangélica: “a leitura do Evangelho segundo o Espiritismo, diariamente, à
noite, a meditação sobre os ensinos de Jesus Cristo, são fatores preponderantes no
preparo espiritual do doente e de todos os da casa” (Toledo, 2005:98-102).
O passe, principal técnica de cura espírita, é definido como um ato de amor na
sua expressão mais sublimada (Schubert, 1981:116), como uma transfusão de energias
psíquicas (Xavier, 1976:67) ou fluidos de uma pessoa para outra (Oliveira, 2006:119),
do médium curador ou passista para o doente (Toledo, 2005:114), e tem com função
alterar o campo celular (Xavier, 1976:169) visando ao reequilíbrio orgânico, psíquico,
perispiritual e espiritual do paciente (Melo, 1992:36), e ao melhoramento moral do
passista (Melo, 1992:40).
98
Jacob Melo (1992), especialista espírita no tema, propõe uma classificação do
passe espírita a partir da fonte de fluido, do alcance deste e da própria técnica do passe.
Em relação à fonte do fluido do passe, sua seqüência obedece àquela proposta por
Kardec n’A Gênese, onde se destacam três tipos de fluidos: magnético, espiritual e
misto. No passe magnético o fluido emanaria basicamente do passista; no passe
espiritual haveria uma “doação” direta dos espíritos ao paciente, o médium serviria
simplesmente como canal dos fluidos espirituais; o passe misto, predominante no
meio espírita, contaria com a participação fluídica tantos dos espíritas, quanto dos
médiuns.
Quanto ao alcance do passe, Melo explica que o magnético atenderia os
problemas orgânicos, físicos e/ou perispirituais do paciente; o espiritual os problemas
de ordem espiritual, especialmente os processos obsessivos ou os desvios morais e,
finalmente, o misto visaria a uma atenção holística do indivíduo: corpo, perispírito e
espírito. A classificação do passe a partir de sua cnica é dividida por Melo seguindo
os mesmos critérios das classificações prévias: magnético, espiritual e misto. O misto
combinaria as técnicas do magnético e do espiritual; no espiritual o passista utiliza
apenas a prece, a irradiação a distância ou, no ximo, a imposição de mãos sem
movimentos e sobre a cabeça e frente do paciente. a técnica do passe magnético
contém uma especialização mais complexa a partir da posição do paciente e dos
movimentos do passista. Toledo (2005) propõe uma classificação de passes magnéticos
onde se salientam o longitudinal, rotatório, transversal, perpendicular e de sopro.
99
Um outro elemento de cura, presente desde as obras de Kardec, é a água
fluidificada, ou seja, a água que receberia ação magnética (de encarnado) ou espiritual
(de desencarnado), adquirindo propriedades especiais, de forma a beneficiar a quem a
utilize (Oliveira, 2006:97). Quando a fluidificação da água é realizada pelo dium,
aconselha-se seguir uma série de técnicas (colocação de mãos a diferentes níveis e em
distintos tempos sobre garrafa, jarra ou copo) acompanhadas de orações e “súplicas”.
Inclusive, pode se fluidificar a água de banho para aliviar aos enfermos cansados e
fatigados”; neste caso, passar-se-iam ambas as mãos, com a ponta dos dedos, de um ao
outro lado dentro da água, repetindo muitas vezes a operação.
3.7 Observações preliminares.
O corpo doente, agente desordenado da experiência, expressa uma série de aflições
culturalmente reconhecidas pelos espíritas entrevistados. Estas aflições ou distúrbios
são conhecidos como “obsessão sexual” e teriam diagnóstico, etiologia e terapia
especial. Assim, a sickness situada na experiência de Felipe e Milton é descrita como
uma força ou impulso sexual “incontrolável” que os levaria a manter encontros sexuais
múltiplos. Para eles, o desejo sexual e a vontade de manter relações sexuais são alheios,
isto é, a presença de um espírito “viciado” em práticas sexuais estaria os levando a esse
tipo de encontros. A sensação após os episódios de obsessão é de perda de energia: “eu
fico acabado no dia seguinte” (Milton) e estaria relacionada à sujeira: “quando eu saio a
sensação é péssima, eu me sinto sujo” (Felipe).
100
A origem da obsessão sexual é situada em vidas passadas. Os espíritos
encarnados teriam uma predisposição aos “vícios” de outras vidas. Além de poder
exercerem essa predisposição, esta também chamaria aos espíritos desencarnados que os
visitariam para desfrutar dos prazeres do mundo terreno. A terapia, conhecida como
desobsessão, é efetuada em uma sala mediúnica onde preces e orações acompanham o
tratamento. O ponto culminante da terapia acontece quando os espíritos obsessores
aparecem na sala para receber ajuda espiritual dos médiuns especialistas. Contudo, a
parte mais importante da desobsessão, segundo nossos informantes, seria a “mudança de
comportamento”, o que significaria, para eles, a interiorização das regras morais
espíritas, a procura de uma conduta ascética e o afastamento de espaços considerados
perigosos e sujos (“inferninhos gays”). A eficácia da cura, em este sentido, estaria
ligada ao processo de evangelização espírita e, particularmente, à incorporação do
sujeito em crise na comunidade espírita geral.
Como observamos no discurso de Milton, ele oferece uma série de metáforas ao
incorporar o espírito de uma prostitua francesa que bebe champagne e procura a
destruição de casais e ao diagnosticar sífilis quando “vê” parasitas sexuais no “centro de
força genésico” de uma paciente. Assim, Milton dispõe de um conjunto de símbolos
culturalmente reconhecidos para indicar a presença de perigo e a presença de doenças,
já outros símbolos serão acionados no processo de cura espírita, particularmente, a
imagem de Jesus.
101
HIV-AIDS E ESPIRITISMO KARDECISTA
4.1 A reflexão e pesquisa acadêmica sobre o HIV-Aids.
A emergência do HIV-Aids, no começo da década de 1980, esteve acompanhada por
um seguimento não poucas vezes alarmista e sensacionalista produzidos por boa parte
dos veículos de informação brasileiros e internacionais. Assim, a Aids apareceu
primeiro como um fenômeno da dia, depois se tornou evidência médica. A
caracterização inicial da Aids enquanto doença contagiosa, incurável, mortal e ligada
principalmente à homossexualidade, fez associar à doença vários estigmas e
preconceitos advindos de certas posições perante a morte, a contaminação e a
sexualidade (Parker et al, 1994:31).
Uma das primeiras análises sobre as representações e os significados associados
ao HIV-Aids é a obra clássica Aids and its metaphors, escrita por Susan Sontag em
1988. Nesse trabalho, Sontag faz uma pesquisa histórica e literária ao redor da
construção sociocultural de doenças contagiosas e não contagiosas tendo como eixo
central de análise a Aids que têm aparecido na Europa e na América ao longo dos
últimos séculos. Para a escritora estadunidense, a Aids teria uma metáfora dual: ela é
descrita como invasão, do mesmo modo que o câncer, e como poluição, ao igual que a
sífilis. Aliás, a presença do HIV no corpo revelaria uma “identidade” que talvez tivesse
preferido se manter no anonimato, aquela associada ao “grupo de risco” mais atingido
no começo da doença nos Estados Unidos: os homossexuais. Desse modo, a doença
cobraria um matiz de culpa sexual:
102
La transmisión sexual de esta enfermedad, considerada por lo general como una
calamidad que uno mismo se ha buscado, merece un juicio mucho más severo
que otras vías de transmisión, en particular porque se entiende que el sida es
una enfermedad debida no sólo al exceso sexual sino a la perversión sexual (…)
una enfermedad infecciosa cuya vía de transmisión más importante es de tipo
sexual pone en jaque, forzosamente, a quienes tienen vidas sexuales más activas,
y es fácil entonces pensar en ella como un castigo (Sontag, 2003:112).
Sontag afirma que considerar uma doença como punição é a idéia mais velha que se tem
sobre a causa de uma doença. a sífilis, no século XV, teria sido considerada como
uma praga invasora da comunidade e, como a Aids no começo da década de 1980 e
ainda hoje entre algumas pessoas e comunidades, como um castigo contra aqueles que
transgrediram certas normas e regras morais.
47
Outra associação comum à doença, observada por Sontag, é a vinculação
realizada com o estrangeiro. Desde a década de 1980, a Aids começou a ser vista nos
países de capitalismo avançado como uma doença do “terceiro mundo”, um flagelo dos
“tristes tropiques” (Sontag, 2003:135); enquanto na África, a Aids apareceu como um
complô da CIA e do exército dos Estados Unidos, versão que teve uma importante
repercussão na então União Soviética, na América Latina e na Europa. No século XIX,
aponta Sontag, era comum associar as epidemias e as doenças tanto ao relaxamento
moral como à presença do estrangeiro e às decadências políticas.
Para Richard Parker (Víctora e Riva, 2002:254), a publicação dos primeiros
artigos sobre Aids, na revista Medical Anthropology Quarterly (1986, 1987), marcou o
nascimento dos estudos antropológicos sobre AIDS nos Estados Unidos. Todavia, o
47
A própria Sontag cita as declarações sobre a Aids formuladas pelo bispo Falcão de Brasília e pelo
cardeal do Rio de Janeiro, Eugenio Seles. O primeiro teria dito que a Aids é conseqüência da decadência
moral, enquanto o segundo a descreveria como punição de Deus e vingança da natureza (Sontag,
2003:144).
103
trabalho feito na antropologia sobre o tema, em contraste com outras áreas do
conhecimento como a psicologia, o foi muito significativo até o começo dos anos 90.
No início desta última década, uma nova geração de alunos de pós-graduação (Paul
Farmer, Stephane Kane, Teresa Mason, Richard Parker), e profissionais formados
(Brooke Schoepf), começaram a construir um campo de estudos antropológicos sobre
AIDS. Boa parte deste novo grupo de pesquisadores participou, no ano 1990, da reunião
que a Wenner Gren Foundation for Anthropology Research organizou sobre AIDS.
Dois anos depois, publicou-se um livro organizado por Gilbert Herdt e Shirley
Lindenbaum, produto da reunião da Wenner Gren Foundation, intitulado: In the Time of
AIDS social analysis, theory and method (Víctora e Knauth: 2002), publicação
pioneira na reflexão teórica e metodológica da AIDS.
No caso brasileiro, os primeiros estudos antropológicos sobre Aids
concentraram-se nas representações sociais (Galvão, 1992) e nas construções simbólicas
da doença desde uma perspectiva multidisciplinar (Víctora e Knauth, 2002:256). Antes
do surgimento de um campo de estudo específico sobre Aids no Brasil, os estudos sobre
sexualidade e saúde reprodutiva tinham uma longa tradição de pesquisa, o que permitiu
a conjugação de esforços e diálogos interdisciplinares. O projeto antropológico
brasileiro frente à Aids, nos primeiros anos da década passada, esteve engajado ao
projeto preventivo. Ao longo dos anos 90, o olhar antropológico foi colocado em outros
ângulos mais além da questão da prevenção, sendo a política da Aids e sua mobilização
social um dos interesses de pesquisa.
No final do século XX, Parker e Camargo Jr. (1999) avaliam as pesquisas sociais
que, sobre o HIV-Aids, têm sido realizadas ao redor do mundo no contexto da
104
pauperização, da feminização e da interiorização geográfica da epidemia da Aids.
Algumas pesquisas internacionais, que documentam os fatores estruturais que facilitam
a transmissão do HIV e sua concentração em áreas geográficas e populações
particulares, são destacadas pelos autores. Tal é o caso dos trabalhos de Decosas (1996)
em Gana, Farmer (1992) no Haiti, Kammerer (1995) e Symonds (1998) na Tailândia,
Schoepf (1992) no Zaire, Wallace (1988) e Singer (1998) nos Estados Unidos. Estas e
outras pesquisas levariam em consideração: o processo de globalização e reestruturação
social e econômica do sistema capitalista mundial; a reflexão transcultural sobre os
fatores ambientais e estruturais que conformam a epidemia do HIV-Aids no contexto de
vários países em desenvolvimento e a investigação detalhada das dimensões
geográficas, culturais e sociais do HIV-Aids nas populações empobrecidas e
marginalizadas encontradas nos centros urbanos mais importantes dos Estados Unidos.
Deste modo, Parker e Camargo Jr. (1999:30) propõem partir dos insights encontrados
nestas pesquisas para assim analisar, investigar e intervir com relação ao caráter do
HIV-Aids no Brasil. Como alguns anos atrás, Parker sugere um refinamento das
ferramentas teórico-conceituais que permitam estabelecer relações consistentes entre o
HIV-Aids, as distintas esferas da vida social particularmente a economia e fatores
estruturais como deslocamento especial, migração, poder associado ao gênero, violência
e discriminação sexual, desertificação urbana e tráfico de drogas.
Uma vertente a ser trabalhada pelas ciências sociais, e em particular pela
antropologia social, é o conjunto de respostas religiosas ao HIV-Aids. Nesse sentido, o
campo religioso contemporâneo oferece um grande leque de representações sobre a
doença, as quais respondem aos sistemas morais e normativos que sustentam o
pensamento, a prática e a doutrina religiosa. Assim como algumas denominações
105
religiosas vêm construindo processos de atenção terapêutica direcionados às pessoas
que vivem com HIV-Aids, estas últimas procuram espaços alternativos ou
suplementares na sua atenção terapêutica, sendo o campo religioso uma possibilidade de
escolha.
Nossa pesquisa o pretende analisar as diferentes esferas da vida social dos
kardecistas brasileiros em relação com a Aids, seja pelos limites de tempo para
desenvolver um estudo tão ambicioso, seja pelos problemas epistemológicos que
implicaria realizar tal projeto. O que se pretende expor neste capítulo são as construções
de sentido que os atores e as instituições espíritas outorgam ao vírus do HIV e à própria
Aids no contexto religioso kardecista e, no caso dos portadores do HIV, na sua própria
experiência de embodiment levando-os a questionar e rejeitar as explicações
hegemônicas kardecistas e ressignificando, desde sua própria vivência espírita, sua
visão sobre a Aids. Tais significações foram analisadas a partir de artigos de divulgação
e romances espíritas, como foi o caso de Canção da Esperança, com prólogo de Chico
Xavier, e autoria de Robson Pinheiro; da observação participante realizada no grupo
Solidariedade do Centro Espírita A Caminho da Luz, na cidade de São Paulo; e na
experiência de duas pessoas portadoras do HIV freqüentadores de centros espíritas de
São Paulo.
4.2 HIV-Aids no Espiritismo Kardecista.
A partir de nossa pesquisa bibliográfica e etnográfica temos percebido que o HIV-Aids
é geralmente considerado, tanto na literatura espírita sobre o tema (Rodrigues, 1999;
106
Netto, 2000; Imbassahy, 2000; Castro, 2000; Oliveira, 2000; Pinheiro, 2002; Nunhes
Filho, 2004), quanto no grupo Solidariedade do centro espírita A Caminho da Luz como
um “desajuste energético” e como uma conseqüência ao desrespeito do código de moral
sexual espírita. Ou seja, o HIV-Aids esinexoravelmente vinculado à sexualidade na
visão espírita, pelo menos no que se refere à literatura espírita revisada e ao centro
espírita onde se realizou o trabalho de campo. Ainda hoje, o HIV-Aids, na arena
espírita, também está associado à questão homossexual.
Para Nunhes Filho (2004:167), “o mau uso” das faculdades sexuais leva, pela lei
de causa e efeito, a conseqüências infelizes”, com repercussões bem negativas para o
corpo espiritual e físico. O sexo praticado sem racionalidade e humanismo,utilizando-
se de muitos parceiros”, exemplificando deslizes”, envolvido na “devassidão”, sem
controle dos impulsos genésicos e com o pensamento voltado para a viciação sexual,
acarreta máculas nas estruturas perispiríticas, as quais precisarão de reparação, adverte o
presidente da Associação Médico-Espírita do Estado do Rio de Janeiro.
Carlos de Brito Imbassahy (2000:24-25), conotado espírita brasileiro, aconselha
“banir da nossa mente essa idéia de castigo divino em relação ao HIV-Aids. Para
Imbassahy, a Aids, longe de ser um castigo, “nada mais é que o fruto das orgias em que
nosso planeta foi mergulhado”. Da mesma maneira, Therezinha Oliveira (2000:93)
considera que Deus não castiga jamais as suas criaturas e, em concordância com
Oliveira, Celso Martins (2003) estipula que o HIV-Aids é resultado da falta de higiene e
do desregramento moral da humanidade. Para de Brito a doença teria como finalidade
fazer a sociedade voltar ao equilíbrio dos atos, ao comedimento das formas e ao respeito
contra a libidinagem. O sexo, sendo “uma necessidade para equilíbrio energético dos
107
campos biológicos”, teria perdido sua função. Comenta Imbassahy: “(...) a criatura
humana passou a idealizar outros artifícios decadentes dos velhos tempos, das orgias
latinas e outros mais ressuscitando as bacanais do passado; foi provavelmente com a
inconspicuidade dos espíritos reencarnantes que vieram as velhas orgias” (Imbassahy,
2000:27). Nesse sentido, a natureza fez criar o vírus da Aids para alertar aos povos do
mundo para o verdadeiro sexo, com amor, com desejo e dentro das sabidas leis naturais,
adverte o autor. Para ele, a doença existe em quem deve tê-la: “quem esteja
programado para tê-la, mesmo não praticando a sodomia, acaba contaminado por uma
transfusão de sangue ou a adquire num ato sexual normal, o que é bem mais raro”.
para Netto (2000:22) as vítimas da Aids devem estar resgatando dívidas do passado,
enquanto para Castro (2000:85) a doença teria finalidades corretivas “nos chamados
grupos de risco”.
Imbassahy considera importante fazer a observação sobre um dos fatores
primordiais da existência da Aids, “o homossexualismo”, o que não implicaria em se
condenar seu praticante como “espúrio” da sociedade. Inclusive Oliveira (2000:18)
aceita a participação no centro espírita dos que, no mundo, “transitam atualmente pelas
experiências do homossexualismo”.
Aureliano Alves Netto, no artigo “AIDS, a Doença do Século” (2000:19-23),
assegura que o médium Édson Cavalcante de Queiroz teria recebido, em 1987, uma
mensagem do espírito dr. Adolph Fritz em relação à origem, à função e à cura do HIV-
Aids:
A AIDS é um meio de correção moral pela dor, pelo temor e pela morte do
próprio homem. Trata-se de um vírus originado de miasmas fluídicos vindos de
regiões espirituais trevosas, que foi materializado devido à libertinagem, à
promiscuidade moral-sexual do homem. E está, de fato, invadindo lares
108
terrestres, através da corrente sangüínea. Antes de penetrar no sangue, esse
miasma (AIDS) espiritual com forma fluídica etérea, em fração de segundo, se
infiltra no perispírito humano (corpo astral), pois que o prejuízo é duplo (no
corpo e na alma) (...) Por essa razão, o trabalho terapêutico dos Espíritos se
torna útil, pois se possibilidade em auxiliar, na parte que lhe compete (o
corpo astral), diante deste mal de origem extraterrestre. A cura da AIDS
depende não apenas de algumas normas e precauções, demarcadas pela
Medicina convencional, mas principalmente “de uma nova conduta moral”
(Netto, 2000:22-23).
Assim, estes autores rejeitam a relação entre punição de Deus e doença, pois a idéia de
livre-arbítrio proposta por Allan Kardec em suas obras do século XIX, a qual seria
consagrada no espiritismo brasileiro ao longo do século XX, outorga a responsabilidade
dos atos, incluindo as causas e as conseqüências de doenças e calamidades, aos próprios
sujeitos ao longo dos seus processos reencarnatórios e de seus planos evolutivos.
Contudo, a transgressão da norma continua sendo sancionada através de uma marca, um
flagelo, um sofrimento, uma penalidade e uma doença nos corpos dos sujeitos, mesmo
sem a intervenção direta de Deus, mas partindo dos preceitos morais que este Deus
estipularia através de uma série de leis expressas em O Livro dos Espíritos.
o “espírito” Dr. Fritz reproduz as caracterizações sinistras do orgânico para
descrever uma doença e sua causa, neste caso a Aids, partindo das antigas idéias do
século XIX expressas através do que Susan Sontag (2003:126) chama de “teoria das
emanações mefíticas provenientes de miasmas”. Determinadas doenças, como o cólera,
ou o próprio estado de propensão à doença eram atribuídos a uma atmosfera infetada ou
viciada, e considerados como emanações geradas espontaneamente por algo sujo. É
interessante observar como a idéia de miasmas, ambiente sujo, vermes e cheiros
desagradáveis encontra-se presente não apenas nas palavras do espírito Dr. Fritz, mas
também nos romances Canção da Esperança e Sexo e Destino, assim como nas próprias
109
narrativas dos sujeitos em processos de obsessão revisadas nos capítulos anteriores e
nos trabalhos realizados no grupo Solidariedade. Estas mesmas idéias, como será
apresentado no próximo item, são rejeitadas tanto por Andrei e Enéas, ambos portadores
do HIV. A maioria dos espíritas portadores que conhecemos ao longo de nosso trabalho
de campo tampouco aceita esta visão do vírus.
4.3 Experiências e percepções ao redor do HIV-Aids.
4.3.1 A descoberta da sorologia positiva e a significação do vírus no contexto
Espírita.
Andrei viveu um relacionamento sorodiscordante durante um par de anos, em
conseqüência, ele previa a possibilidade de contrair o HIV. Para ele o foi uma
surpresa a notificação do seu estado sorológico, contudo, ele não consegue lembrar o
momento exato da infecção:
Eu estava prevendo isso. o foi uma coisa que foi surpresa, porque venho
fruto de um relacionamento. A pessoa que era meu parceiro na época
desenvolveu antes, coisa de quatro meses antes. Ele me falou a respeito e, como
estava apaixonado, falei que não, que não o ia deixar por causa disso, que isso
era um mero detalhe, um grau de dificuldade. Claro, comecei a fazer testes, a
fazer uma monitoria. No primeiro mês foi tudo bem, todos os exames não
apontaram nada. No segundo foi tudo bem e, infelizmente, acabou acontecendo.
Até hoje eu não sei te falar de qual forma. Dizem que as pessoas sabem como,
no meu caso não sei como, mas de qualquer forma também não me revolto com
isso porque eu arrisquei, assumi a relação.
48
48
Andrei, 16/05/2006
110
Apesar de Andrei assegurar não se “revoltar” por causa do HIV, ele lembra a presença
de um sentimento de tristeza e sofrimento ao receber os resultados que confirmariam a
presença do vírus no seu corpo:
Foi triste (o dia da notícia) porque eu estava no auge de um momento da minha
vida: eu estava me formando, estava com um grande projeto na faculdade. Eu
adiei todos meus exames e o projeto de apresentação do curso porque eu sabia
que ia ficar mal, eu ia ficar recluso, então eu previ isso. Eu previ porque eu
senti, você sente no corpo. Logo que eu comecei a melhorar, eu segurei um
pouco para confirmar. Então tinha consciência que poderia ser, mas
assegurei, esperei passar. Consegui apresentar meu projeto e depois disso
comecei a cuidar de mim. Eu sofri duas vezes, porque num dos exames eu fui
indeterminado, eles falam que teu corpo está sendo soropositivado, então você
não consegue obter os números que os órgãos de saúde regulamentam para a
comprovação. Eu lembro que quando saíram os exames fiquei nervoso, liguei
para o laboratório, conversei com todos os médicos que estiveram, os
biomédicos, eles foram muito atenciosos comigo, me explicaram a respeito.
Porém, um deles falou: “você é transmissor”, “mas não existe chance de se
reverter?”, e falou: “muito difícil”. Nessas horas a gente se agarra em tudo, a
gente reza, faz promessa, fala que vai fazer assim um outro exame para ver se
era um erro laboratorial. Segurei, fiz tudo o que tinha que fazer na minha
vida, aí eu repeti o exame e aí confirmei.
49
Andrei recebeu a confirmação médica dois anos e meio atrás. Ele relata ter ficado
chocado durante uma semana: “as pessoas falavam comigo e eu não respondia, eu não
conseguia saber nada, ficava chocado, com os olhos vermelhos, tanto que eu cheguei a
pedir as contas do meu trabalho na época por medo, por medo que descobrissem”. O
publicitário revela ter recebido a ajuda do seu namorado da época e da sua mãe para sair
do estado de angústia causado pela notícia. Assim, com um núcleo de apoio, decidiu
procurar informação sobre o vírus. Dirigiu-se a uma livraria e comprou o romance
espírita Canção da Esperança, indicado pelo vendedor da livraria de um shopping
paulista:
49
Ibidem.
111
(...) foi um livro que eu li um s depois de ter sido diagnosticado. É um livro
que eu detestei, um livro que eu achei muito mentiroso. Então eu rasguei, eu
comprei, li, rasguei porque eu achei que mentia muito. Era um livro que trazia a
imagem muito negativa, e ele trazia o HIV como um castigo que leva as pessoas
a se deteriorarem como espíritas, como comunidade espiritual, então tem muitas
penas que eles retratam que eu acredito que não seja verdadeira. Eu fui buscar
literaturas mais rias a respeito, fui procurar aconselhamento e não batia com
o que estava escrito.
50
Para Andrei, o romance de Robson Pinheiro não atinge os preceitos filosóficos da
doutrina espírita, o livro retrata um mundo pavoroso, muitas pessoas que adquirem o
HIV o o pegaram de forma promíscua, o livro generaliza”. O publicitário procurou
assistência em um centro espírita do bairro de Santana, na zona norte de São Paulo:
(...) como ser humano, você que eles (os espíritas da assistência) têm uma
certa preocupação. Quando eles vêem um rapaz de 22 anos, com um tipo de
assunto como esse, você sente que eles têm uma tristeza. Muitas das pessoas de
são mães, tem filhos, e exatamente a pessoa com quem eu falei deveria ter.
Por um lado ela suspira, por outro ela tenta trazer uma luz, alguma palavra,
algum texto, alguma informação, sempre nesse sentido.
51
Andrei começou a fazer tratamento espírita apenas para o lado emocional”, não
especificamente para o HIV. O tratamento, que consistiu em passes energéticos, “ajudou
bastante”. Andrei confessa ter se “acalmado”: “me serviu como relaxante natural”. Ele
não procurou tratamento espírita direcionado ao HIV porque não conhecia a sua
existência, porque rejeita o estigma que pode ter esse tipo de atendimento e porque
atualmente afirma não precisar de sustentação:
Nunca me interessei (em fazer tratamento esrita para portadores do HIV)
porque eu nunca senti essa necessidade. Hoje minha forma de ver a patologia é
muito diferente da forma que as pessoas vêem. Eu vejo que isso é uma
característica que a gente adquire e vai depender muito mais de mim do que dos
outros. Acho que a busca de terapia é quando você precisa se sustentar. Hoje
50
Ibidem.
51
Ibidem.
112
eu me dou bem com isso (...) eu consigo levar minha vida, eu não fico 24 horas
pensando nisso porque isso é uma porcentagem muito pouca.
52
O estudante de relações internacionais faz um monitoramento periódico do vírus com
infectologistas especializados. Até hoje, ele não tem precisado de medicamentos para
controlar o avanço do HIV. Apesar de Andrei seguir os conselhos e as instruções dados
pela biomedicina, ele tem buscado em outros sistemas de saúde um bem-estar físico e
até a possibilidade de “negativizar”:
Eu procurei um tratamento o ano passado. A pessoa com quem namoro ficou
sabendo de uma pessoa em Santa Catarina, numa cidade bem no centro. Era
um curandeiro, parecia que ele curava pessoas (portadoras do HIV),
decidimos ir para lá. Eu não acreditava, mas podia valer a pena a viagem. A
gente foi para lá, a viagem foi muito longa porque depois de Florianópolis
alugamos um carro, ficamos um dia inteiro dirigindo até chegar à cidade do
curandeiro. Cheguei ao fim do mundo praticamente. Era um sítio, até fiquei
meio com medo, a gente tinha que deixar o carro, seguir uma ponte a pé. Eu
cheguei na casa deste curandeiro, ele fez umas bebidas e falou que meu
tratamento seria em dez meses, eu teria que estar todos estes meses tomando
essas bebidas que eram três colheres de manhã, três colheres na hora do
almoço, três colheres na noite. Tinha mais outra que era um copinho em cada
refeição. Tinha um outro produto que você pingava nos olhos, tinha um pozinho
que você misturava no leite. E tinha uma dieta enorme de coisas que você não
podia comer. Eu aderi a isso, fiquei no prazo certo de dez meses e, nesses dez
meses, eu consegui manter minha saúde impecável, consegui manter a carga
viral baixíssima, meu sistema imunológico em perfeito estado, uma saúde
incrível. No meio do tratamento, por fim, eu estava até acreditando que ia dar
certo, mas no final não deu, mas eu já tinha me preparado para isso.
53
A dieta aconselhada pelo curandeiro de Santa Catarina, que olhava fotos e analisava
o rosto dos pacientes para fazer seus diagnósticos, consistia em alimentos proibidos e
alimentos aconselhados. No primeiro grupo figuravam: o tomate, a manga, o morango,
a laranja, o maracujá, o vinagre, o frango, a carne de porco, o refrigerante e as bebidas
alcoólicas. Em contraposição, o arroz, o feijão, a carne de vaca, as verduras, o tempero
52
Ibidem.
53
Ibidem.
113
com limão e quase todas as frutas eram recomendadas. Segundo o curandeiro, as
bebidas que ele dava aos seus pacientes provinham da África e da Amazônia.
Independentemente da sua procedência, as bebidas do curandeiro, para Andrei, tinham
gosto de “barro”.
Andrei mudou seu estilo de vida a partir da presença do HIV no seu corpo:
começou a freqüentar a academia, parou de sair de noite, acostumou-se a dormir mais
cedo, procurou uma vida “mais caseira” e uma boa alimentação. Sem deixar de assistir
às palestras no centro espírita e de passar à assistência espiritual quando está muito
estressado, Andrei procurou tratamento na homeopatia:
(...) ele (o homeopata) prometeu grandes resultados, mas a consulta foi muito
chata: ele tinha um método muito incisivo, ele não queria ouvir, queria falar.
Hoje falar do HIV é muito complicado, porque o HIV é uma coisa, a Aids é
outra, e as pessoas somente te tratam como se fosse Aids, e a Aids é muito
diferente. Ele já achava que eu estava no ponto final, mas muito pelo contrário,
hoje eu não tomo medicamento, hoje consigo manter saúde normal, hoje sou
portador.
54
Ainda que Andrei já conhecesse o espiritismo antes de ser portador do HIV, foi somente
depois de ter sido notificado da infecção que ele começou a visitar o centro espírita
visando se segurar em Deus:
(...) não ia, não precisava, tava muito bem. Me aproximei, sim, depois do HIV,
mas por uma questão de planejamento. Preenchi essa lacuna religiosa daquilo
que mais eu acreditava e mais me fazia bem (...) Me aproximei mais porque eu
fui dividindo a minha vida em partes: saúde, religião, trabalho, dinheiro.
Religião eu precisava preencher essa lacuna, de alguma forma eu precisava
preencher, mesmo se eu não estivesse praticando nada eu precisava procurar
alguma coisa que me desse sustentação. Dizem que se você assegura em Deus
você não cai, então fiz o máximo para me segurar, para não cair.
55
54
Ibidem.
55
Ibidem.
114
Antes do HIV Andrei vivia com depressão, “uma depressão terrível”. Atualmente ele
disse não sofrer mais de depressão situando como motivo de mudança o medo de
perder a vida”. Neste contexto, ele cita o livro A Cura de Schopenhauer no qual o
filósofo polonês teria se curado de depressão quando descobriu que tinha ncer: “você
tem que ter um mal maior, uma desgraça maior, para curar as menores”.
O publicitário não acredita que o HIV-Aids tenha origem em “vidas passadas”
ou em “erros do presente”. Para ele, o HIV é simplesmente uma fatalidade:
Para mim a maior surpresa foi que o HIV, em específico, ele não é um carma,
ele é uma doença, uma fatalidade, o que acontece na vida de qualquer um. O
que vai depender, o que vai ser de você, é a forma que você leva a vida, e não
estar ou não infectado. Então foi uma coisa muito bacana que eu acabei
descobrindo, que eu acabei ouvindo, e que me fez muito bem porque você acaba
se desvinculando daquele pecado, daquele castigo que um autor pôs e você
começa a pensar de forma diferente (...). Antes era muito relacionado à vida
sexual das pessoas, ao comportamento, e hoje não, hoje é uma fatalidade,
acontece dentro de lares, famílias. No meu caso específico foi com uma pessoa
que eu amava, foi com uma pessoa que eu acreditava e não foi de forma
promíscua. Então, não tinha como acreditar que aquilo era um pecado, eu
entrei naquela questão: “fiz por amor, sem saber, sem ambos saber, isso foi um
pecado?, então o amor não é uma coisa correta”. Isso é minha maior arma
contra qualquer outro tipo de opinião que fale que isso provém da
promiscuidade, da falta de segurança, da inconseqüência.
56
Como podemos ver, Andrei menciona ter descoberto no centro espírita kardecista que o
HIV-Aids é uma fatalidade, e o uma doença produto da lei de causa e efeito como
propõem alguns autores e palestrantes espíritas como Robson Pinheiro, Américo
Domingos Nunes Filho e Wlademir Lisso. A interpretação de Andrei questiona a visão
hegemônica que sobre o vírus tem-se construído no espiritismo brasileiro e, a partir da
própria experiência de portador, dá um outro significado ao HIV-Aids.
56
Ibidem.
115
A presença da tragédia, e a experiência do sofrimento, aparecem na narrativa de
Enéas de maneira constante. Em conseqüência, ele assegura não ter vivenciado conflito
nenhum quando encarou a notícia de ser portador do HIV, pois outros eventos, mais
“delicados”, tinham anteriormente aparecido na sua vida. Em 2002 ele fez o exame para
detectar o vírus do HIV, pois tinha sido diagnosticado com tuberculose. No dia da
notícia Enéas começou a agir na procura de tratamento biomédico, ele confessa não ter
experimentado nenhum “trauma”:
Quando veio a notícia eu falei: “tudo bem doutora, o quê que nós fazemos
agora?, qual é o próximo passo?, o quê que eu tenho que fazer?” Foi isso, eu
não fiquei com traumas, a sorologia não é uma coisa pesada na minha vida. Eu
tomo os remédios que eu tenho que tomar, é como ir ao banheiro, escovar os
dentes, eu não fico pensando. Eu tive uma resposta muito positiva dos remédios
(...) como eu atrelo as minhas tragédias e superações eu não considero o HIV
uma tragédia. Na realidade é mais uma pena, porque eu tive tantas outras
tragédias. Tragédia para mim é perder alguém que eu amo espiritualmente e
não possessivamente: a minha família, meu pai, minha mãe, meu irmão (...)
Tragédia para mim não é o HIV.
57
O economista lembra o momento da infecção. Ele sempre foi “neurótico” com
camisinha, não deixava de usar. Contudo, nem sempre ele teve controle das camisinhas
que usava:
Eu estava num bar, com uma pessoa que eu estava saindo pouco tempo.
Apareceu uma garota vendendo camisinhas e eu falei: “ah!, não, não quero,
eu tenho”, tinha comprado umas na farmácia. Eu dei um real para ela, ela
jogou uma única camisinha em cima da mesa do bar onde nós estávamos e eu
pus essa camisinha no bolso. Foi a camisinha que eu usei e foi a camisinha que
estourou. Eu tenho certeza absoluta que foi aí que eu peguei.
58
Enéas pensa que talvez acertou no mundo espiritual contrair o vírus para fazer o
trabalho de voluntário em DST no hospital estadual, mas o tem certeza disso.
57
Enéas, 13/05/2006
58
Ibidem.
116
Contudo, e no mesmo sentido de Andrei, o economista o concorda com a idéia do
HIV-Aids ter alguma relação com carma:
Essa história de que: “ai porque não sei quem é ruim, nasceu dentro da minha
família, meu carma que eu tenho que carregar”. Eu o concordo com essa
história do meu carma. Eu pauto pela questão ética, tenho de ser compreensivo,
mas desvio moral, desvio de conduta, desvio ético não tem espiritualidade que o
explique.
59
Apesar de o HIV não ser considerado por Enéas como uma tragédia, mas sim como uma
pena, ele acredita ter-se aproximado muito a Deus, à espiritualidade e ao espiritismo
após a notícia de sua condição sorológica. Os livros de Allan Kardec e Chico Xavier
têm acompanhado Enéas nos últimos meses, ele já leu, pelo menos, O Livro dos
Espíritos e Nosso Lar. Ao mesmo tempo, ele ouve as palestras no centro espírita, toma
passe e faz um curso sobre espiritismo. Na semana prévia à nossa entrevista, Enéas
narra a percepção de uma palestrante do centro espírita que conseguiu ver o estado de
saúde dele enxergando, a sua vez, uma deficiência que poderia dar frutos no trabalho
espiritual:
Ontem eu fui (curso espírita) para assistir uma palestra e uma menina, que é
do centro, falou: “olha, a palestrante falou que você é especial, você tem
alguma deficiência”. Ela enxergou sorologia e falou: “é bacana, você tem muita
coisa para fazer”.
60
Apesar desse fato, Enéas não está interessado em participar de tratamentos espirituais
direcionados a pessoas portadoras do HIV, nunca bebeu água fluidificada, nem
participou de nenhum tipo de assistência espiritual, apenas do passe. Ele adverte certo
estigma em relação à atenção espiritual especializada em HIV:
59
Ibidem.
60
Ibidem.
117
Eu acho essa segmentação muito cruel. Sinceramente nós somos seres humanos,
tem alguns que nascem com defeito físico, sem alguma perna, outros vêem cegos
de um olho, outros adquirem qualquer outra doença. Eu acho que o ser humano
é ser humano independente de qualquer coisa.
61
Milton e Felipe, que não são portadores do HIV, têm uma visão menos crítica que
Andrei e Enéas sobre a leitura que a Federação Espírita de São Paulo realiza sobre o
HIV-Aids; de fato, eles acreditam que o HIV-Aids está relacionado a um desequilíbrio
ou a “ter brincado com a natureza”. Para Milton, as doenças sexualmente transmissíveis,
inclusive o HIV-Aids, correspondem a um desequilíbrio na lei de amor, lei proposta por
Kardec em O Livro dos Espíritos:
As pessoas entraram num tipo de patologia que não é o sexo, mas é uma
patologia moral, é uma patologia de as pessoas estarem cometendo um suicídio,
fugindo daquilo que o kardecismo fala “a lei do amor”. As pessoas colocam
culto ao sexo, à sexualidade, como algo mais importante na vida e não estou
generalizando, porque muitas pessoas que ficam doentes de alguma DST às
vezes não é nada isso, mas em alguns casos eu penso se não foi isso o que
aconteceu, a gente começou a ir por um caminho tão tortuoso que houve um
desequilíbrio, nessa lei maior do amor, tão grande que começaram a surgir
essas doenças tão devastadoras na sociedade.
62
Felipe, que rejeita a proposta de o HIV-Aids ter sido enviado ao plano material para pôr
um freio nas práticas sexuais, e rejeita também a idéia de que o vírus seja um castigo de
Deus, assegura que toda doença é um desvio do ser humano. A origem do HIV-Aids,
para ele, situar-se-ia no fato de o ser humano “ter brincado com a natureza”:
Eu acredito que toda doença é um desvio do ser humano. Deus não castiga
pessoas. Vão sempre existir doenças e o homem vai sempre descobrir métodos
para poder combater as doenças. Deus deu inteligência ao homem para que ele
pudesse inventar medicamentos. Por mais que as pessoas digam que a Aids é
uma doença que castiga, que castigou aos homossexuais na década de 80 e
agora castiga a outra população, eu não acredito nisso porque Deus não
castiga ninguém, Deus sempre educa (...) sempre existiram doenças por via
61
Ibidem.
62
Milton, 27/05/2006
118
sexual: sífilis no século XIX, gripe espanhola no começo do século vinte.
Sempre que existe uma doença que alarma a população traz a culpa a um grupo
de pessoas como castigo de Deus, o ser humano tem esse problema de querer
dar culpa a alguém de algo que acontece a ele, e o espiritismo não culpa do
que acontece com ele a ninguém, ele sabe que acontece com ele por ele mesmo.
Ninguém tem culpa do HIV porque ele existia, é comprovado cientificamente
que tem um macaco na África que tem o vírus, alguém trouxe o vírus ao ser
humano. Como o vírus da gripe aviária, alguém foi mexer com as avezinhas e
trouxe o vírus para o ser humano. O ser humano está brincando com a natureza,
brincar de Deus entre aspas, acaba mexendo com coisas que até então não
estavam tocadas, mas o ser humano tem inteligência para poder modificar
isso.
63
4.4 Canção da Esperança.
Robson Pinheiro, médium fundador da Sociedade Espírita Everilda Batista (Belo
Horizonte, Minas Gerais) e da Editora Casa dos Espíritos, é um dos autores espíritas
mais conhecidos e provavelmente lidos no cenário espírita contemporâneo. Em 1995
lançou a romance Canção da Esperança: Diário de um Jovem que Viveu com AIDS,
com autoria do espírito Franklim e participação especial do espírito Márcio e do espírito
Cazuza,
64
este último presente através de uma entrevista e, inclusive, da sica que
daria nome ao romance.
Canção da Esperança contém não apenas a história do espírito Franklim no seu
papel de auxiliar espiritual na área do HIV-Aids, também relata o encontro especial
entre o médium Pinheiro e o próprio espírito Franklim, encontro que marcaria o início
63
Felipe, 02/06/2006
64
Cazuza foi um dos cantores de rock-pop brasileiro mais famosos na década de 1980. Ele faleceu no
começo da década de 1990, vítima das conseqüências do HIV-Aids, não sem antes anunciar publicamente
sua condição soropositiva o que causou uma grande polêmica na mídia brasileira daquela época.
119
do romance. O espírito Dr. Bezerra de Menezes
65
teria comunicado ao espírito Franklim
a impossibilidade de Chico Xavier escrever a história em questão, contudo, Bezerra de
Menezes aceitaria escrever o prefácio, através de Chico Xavier, se Franklim arranjasse
um outro médium. Assim, Pinheiro psicografaria o romance com as luzes apagadas e,
uma vez terminada o obra, dirigir-se-ia a Uberaba na procura de Chico Xavier. O autor
de Nosso Lar entregaria a Pinheiro, além do prefácio, um aviso para procurar uma
mensagem psicografada: a letra da música Canção da Esperança ditada pelo espírito
Cazuza.
Depois que Pinheiro esclarece a origem do romance, e após sua busca de
legitimidade e contemporaneidade nas figuras de Bezerra de Menezes e Chico Xavier, o
leitor repara-se, a partir da edição revista, com uma nota explicativa da editora Casa
dos Espíritos, o que nos mostra a capacidade de adaptação do romance de Pinheiro aos
contextos dos discursos contemporâneos sobre direitos humanos e HIV-Aids:
Desde a 1ª edição de Canção da Esperança, em 1995, foi usada a palavra
“aidético” para designar o portador de aids ou do vírus HIV. Agora, 7 anos
após o lançamento do livro, essa designação foi substituída por outras, mais
apropriadas, de acordo com a consciência que hoje temos do caráter
discriminatório do termo “aidético” (...) mantivemos a palavra aidético apenas
em duas passagens, para não descaracterizar o contexto preconceituoso em que
a história se desenvolve (Pinheiro, 2002:29).
A história do romance narra o trajeto do espírito Franklim no mundo espiritual,
incluindo as tarefas de auxílio dadas e realizadas por este no mundo material. O ciclo
narrativo começa a partir da morte do corpo físico de Franklim por conseqüência da
Aids, com seu leito de morte acompanhado de sofrimento físico e moral, dor,
prostração, desequilíbrios orgânicos, angústia, solidão e vazio, rejeição por parte do
65
Bezerra de Meneses foi um dos mais destacados espíritas brasileiros no começo do século XX.
Acredita-se que atualmente ele é um doutor do mundo espiritual que auxilia espíritos encarnados.
120
irmão, silêncio por parte do pai; porém, solidariedade por parte da mãe e da irmã Beth.
“Se houver um inferno, é isso”, comenta o protagonista antes de abandonar seu corpo
material. Fecha-se o ciclo, depois de uma longa e profunda etapa de aprendizado, com a
reencarnação de Franklim como filho de sua irmã.
As primeiras atividades de Franklim no mundo espiritual são as lembranças de
sua outrora vida “devassa”. E é precisamente a lembrança do momento da notícia de ser
portador do HIV-Aids uma das passagens mais reveladoras dos questionamentos morais
do autor: “(...) revi o momento fatal em que soube haver contraído o vírus letal,
causador do meu desencarne. Vi-me chorando, quase enlouquecido. Presenciei o
desespero, o sentimento de culpa” (Pinheiro, 2002:58). Angustiado e procurando apoio,
Franklim conta para seu amigo Euzébio, colega da juventude espírita, sua angústia. A
resposta de Euzébio expõe uma crítica do autor do romance ao preconceito contra o
HIV-Aids no meio espírita:
- Ora, Frank, eu, na verdade, o convidei para sairmos, nos divertimos juntos, e é
claro que você pode contar comigo, mas, pra nós, não fui eu quem mandou
você se exceder tanto assim. Não venha querer jogar a culpa em cima de mim
não, que eu não sou aidético (...) Cada um colhe o que plantou, meu amigo (...)
Não é isso que você aprendeu na Mocidade? Afinal de contas, é você mesmo que
deve responder por seus atos, e mais ninguém (Pinheiro, 2002:58-59).
Franklim confessa haver abraçado as idéias de seu amigo Euzébio para assim refletir
sobre as suas ações e suas conseqüências. Desta maneira, a presença do HIV, sugere
Franklim, reformularia o sentido de sua vida fazendo da doença uma experiência de
“evolução espiritual” e espírita à maneira cristã de “calvário redentor”:
A aids foi meu calvário redentor. Somente agora consigo compreender o que a
doença foi para mim: funcionou como ponto final de um capítulo triste de minha
vida moral. A partir da aids, desenvolvi forças sobre-humanas, reformulei meus
padrões de vida, liguei-me intensamente a atividades de caráter social, busquei
121
aprofundar-me nas questões do espírito e desliguei-me definitivamente dos
ambientes e amizades de suspeita moral (Pinheiro, 2002:59-60).
No plano espiritual, o protagonista seria levado ao pronto-socorro de uma colônia
espiritual e induzido a sono magnético profundo por um período de três meses, tempo
no qual teria sido visitado por magnetizadores que ministrariam passes “auxiliando a
recuperação das células perispirituais que foram lesadas pela ação do vírus fatal”. Após
os três meses do “tratamento sonoterápico”, Franklim começaria a reler O Livro dos
Espíritos sob a direção duma tríade de mentores espirituais.
O pronto-socorro aonde seria enviado Franklim estaria habitado por espíritos
que, como Franklim, teriam desencarnado por conseqüência da Aids. Uma vez
cumprida a reabilitação do corpo espiritual nesse local, o espírito seria transferido ao
Hospital do Silêncio, onde se exigiria uma vigilância estrita dos pensamentos para assim
evitar cair em vibrações “densas”. O hospital manteria uma disciplina “estrita”
auxiliando aos espíritos com “aquisições morais suficientes”. A imagem da instituição
hospitalaria espírita, sua hierarquização e o jogo de favores e deveres nas múltiplas
relações sociais dessa hierarquização revelam uma ordem social não muito distante da
procura de ascensão social, no mundo terreno, efetivada a partir dos esforços dos
sujeitos e das estratégias acionadas nas diferentes redes sociais onde estes transitam:
“(...) se você não possui aquisições morais suficientes, alguém pode ter interferido em
seu benefício; alguém deve possuir amplas amizades junto à administração central,
senão você não estaria conosco” (Pinheiro, 2002:77).
122
Franklim agrupar-se-ia com três companheiros “desencarnados com o vírus da
Aids” em uma equipe no Pavilhão das Almas, lugar no plano espiritual habitado por
seres “recolhidos das furnas, das regiões das sombras”, para assim ajudar na
“reeducação moral” dos “menos esclarecidos”. Os espíritos do Pavilhão das Almas
desencarnariam “devido ao vírus da Aids”, contraído pela “viciação das forças sexuais”
e pela “ação destruidora de drogas fortes”. Esses espíritos, bastante desconformes
quando encarnados, “entregaram-se a toda espécie de desregramento, revoltados contra
Deus e o mundo, como se o fossem os únicos responsáveis pela própria desdita”.
(Pinheiro, 2002:99).
Os espíritos do Pavilhão das Almas expediriam uma série de substâncias e
cheiros desagradáveis, assim relata Franklim ao observar de perto um deles: “exsudava
dele, através de pústulas, de feridas, uma quantidade de matéria mórbida, de pus
misturado a um líquido esverdeado, que minava constantemente de seus poros,
causando o cheiro desagradável”. A impureza encontrada nesses espíritos começará a
ser removida por Franklim e seus colegas através da limpeza física, o trato “amoroso” e
ação do magnetismo, tarefas que lhes serão designadas, a Franklim e seus colegas, como
parte de seus processos de renovação moral.
A ação terapêutica e a caridade não seriam as únicas atividades espíritas
compartilhadas no mundo material e espiritual, existiriam também as conferências, tão
comuns no cenário espírita brasileiro. Franklim, ao entrar no auditório do mundo
espiritual onde se apresentaria uma palestra sobre o tema do HIV-Aids, descreve sua
experiência multi-sensorial na qual as paredes estariam revestidas de substância vítrea,
os equipamentos radiofônicos teriam a potência de atingir os vales sombrios, os odores
123
de flores e plantas silvestres relaxariam aos mais de dois mil assistentes e uma suave
brisa refrescaria ao público. A conferência seria precedida como acontece em muitos
dos centros espíritas do Brasil por apresentações musicais, as quais motivariam ao
público a cantar em conjunto deixando a Cazuza fazer o solo:
Mas a hora mais comovente se deu quando entrou no auditório uma equipe de
oito espíritos que haviam sido doentes de aids, acompanhados do coro de todos
os espíritos da platéia, mães, pais, parentes, trabalhadores e internos do
Hospital do Silêncio. De mãos dadas, cantaram a Canção da Esperança, feita
por Cazuza, no plano espiritual. Presente naquele momento, Cazuza fazia o
solo, enquanto a platéia cantava o coro (...) (Pinheiro, 2002:119).
Em relação aos efeitos físicos do hiv-aids no corpo espiritual, o palestrante descreve as
conseqüências:
Sabemos que, na estrutura magnética dos corpos espirituais, encontramos os
vórtices de energia, ou chacras, segundo a filosofia oriental, responsáveis pela
metabolização das energias. Funcionam particularmente no perispírito como
órgãos de importância transcendental para o equilíbrio psicossomático.
Quando ocorre desvio das funções da sexualidade, como em muitos de nós em
passado recente ou remoto, geram-se processos de sintonia com espíritos em
fase primária de evolução. Isso causa intensa atividade nos chacras inferiores,
principalmente no hepático e no básico, que se transformam em depósitos vivos
de parasitas energéticos, larvas astrais e outras criações mentais rbidas,
causando intoxicações nas sagradas correntes de energia que compõem o corpo
espiritual. Somente a reformulação radical da moralidade, aliada ao tratamento
magnético, poderá debelar as influências nocivas dos parasitas astrais,
particularmente quando surge a contaminação pelo supervírus HIV. é que
vemos completamente desfigurada a conformação dos chacras mencionados. E
quando o espírito não expurgou, por completo, de seu corpo espiritual, os
fluidos rbidos que adquiriu através de vícios e desregramentos morais, a
ação do vírus HIV é ainda mais desastrosa no psicossoma, pois encontra campo
fértil para estabelecer o caos. (Pinheiro, 2002:127).
Os chacras mais afetados por causa do HIV, em palavras do palestrante, seriam o básico
e o plexo solar. Assim, a descompensação magnética causada pelo vírus provocaria a
exaustão das forças, estados alterados de consciência, estados emocionais mórbidos e
124
depressivos. O chacra localizado à altura do baço seria o chacra mais diretamente
afetado pelo vírus, promovendo o caos orgânico, a decomposição das células
sangüíneas, intoxicando os fluidos do duplo etérico, “facilitando as graves infecções que
acometem o portador do vírus da aids”. O perispírito de um desencarnado com Aids
apresentar-se-ia coberto de chagas à altura do baço, do plexo solar e do cardíaco, “como
se estivesse expelindo pus”.
Alguns dias após a palestra, Franklim e seus colegas de trabalho seriam
chamados à Inspetoria de Esclarecimentos para designar-lhes uma nova tarefa: a
observação e o auxilio no Vale das Sombras. O Vale apresentaria uma atmosfera de
desolação e abandono, “árvores ressequidas, vegetação rala, espinheiros espalhados pelo
solo seco”. Os habitantes dessa paisagem “bucólica” arrastar-se-iam pelo solo, enquanto
outros se contorceriam em meio à lama viscosa. Estes espíritos teriam abusado das
“energias da vida” através da “sexualidade desregrada” ou da viciação pela droga
destruidora”. Eles estariam expurgando os fluidos mórbidos acumulados em seu
perispírito desde longo tempo, nessa zona espiritual exsudariam seus venenos
acumulados nas suas células. Assim, o solo astral, com sua matéria viscosa, funcionaria
como um exaustor, que sugaria do corpo espiritual a carga tóxica mental acumulada,
preparando o espírito para ser acolhido “pelos companheiros que servem sob a égide do
Cristo de Deus e que aqui vêem lhes trazer o bálsamo e o alívio”.
Depois de servir no Vale das Sombras, Franklim é enviado a uma nova missão,
desta vez ele irá à Crosta, isto é, à Terra. O auxílio teria sido solicitado por uma avó
aflita pela conduta imoral” de seu neto Carlinhos, jovem “entregado aos prazeres do
sexo”. Franklim, junto aos seus espíritos mentores, viajaria em “aparelho voador” até o
125
Brasil, rastreariam a Carlinhos a partir dos seus resíduos magnéticos encontrando-o
numa sauna masculina ou clube de sexo. A sauna, descreve o espírito Franklim, teria
enxames de larvas astrais absorvidas pelas trepadeiras e samambaias do local,
funcionando como exaustores naturais. O trabalho de Franklim começa quando
Carlinhos entra na sala de vapor, repleta esta de “matéria lamacenta” e “matéria pútrea”
contaminadoras do sistema nervoso central ao ser absorvida em “processo simbiótico”.
Carlinhos, em risco de contrair o vírus do HIV sem esse acontecimento fazer parte do
seu programa reencarnatório, recebe no seu plexo solar uma intensa aspiração
proveniente da boca de Franklim, causando-lhe espasmos, vômito e diarréia, obrigando-
o a sair do vapor e da própria sauna. Ele seria internado num hospital do mundo
material, o auxílio espiritual continuaria e seu processo de evangelização espírita não
demoraria em chegar.
como espírita, Carlinhos tenta conciliar sua dedicação ao espiritismo e sua
antiga vida social. Randolfo, sem nenhum interesse por questões espirituais”, tenta
convencer a Carlos a participar das antigas “farras”. Não o consegue. Franklim e sua
equipe dirigirão sua atenção a Randolfo para assim ajudá-lo no processo de obsessão
reconhecido pelos seus mentores espirituais. É numa festa onde estes últimos tentarão
lutar contra os obsessores de Randolfo:
(...) dois rapazes dançavam fazendo gestos sensuais, atraindo mais espíritos
vadios que se lhes afinizavam com as atitudes. Era um grupo de jovens que
traziam algo em comum no que se refere ao abuso no exercício das funções
sexuais, e a conversa girava em torno da temática da homossexualidade,
conforme era do gosto daqueles que estavam em casa (Pinheiro, 2002:178).
Os obsessores, relata o espírito Franklim, traziam caixas de formato retangular contendo
vários frascos, semelhantes a tubos de ensaio. Frente a eles encontrava-se um animal
126
parecido a um “lobo feroz”. Um dos obsessores afastaria Randolfo do grupo, induzi-lo-
ia ao sono e tiraria dum dos tubos de ensaio “algo parecido com uma lagarta, envolvida
em matéria viscosa”:
(...) a entidade perversa, demonstrando perfeita noção do que fazia, introduziu a
larva, que media aproximadamente uns dez centímetros, no interior do reto de
Randolfo, enquanto outra larva, em proporção maior, era fixada por outro
espírito na região sexual, onde se firmou com minúsculas ventosas, segundo o
desejo das entidades pérfidas (Pinheiro, 2002:180).
As larvas teriam o objetivo de manter o constante desejo e a excitação sexual “de forma
superior à normal”. Estas larvas, criações mentais inferiores e “viciadas em substância
espermática”, serão alimentadas a partir de conversações pouco elevadas e os atos
desequilibrados”. Com o efeito do “vampirismo”, Randolfo acorda e se junta novamente
à festa, “orgia demoníaca” que, para o autor do romance, faz-lhe lembrar as descrições
medievais do inferno pagão. Os obsessores lograriam seu cometido, já Randolfo teria de
aprender com as conseqüências.
4.5 Visitando o Centro Espírita A Caminho da Luz.
O bairro Água Rasa, na zona leste de São Paulo, abriga o Centro Espírita A Caminho da
Luz numa de suas principais vias, a Rua Sapopemba. Ao lado de um supermercado e
quase na frente de uma lanchonete antiga, a Casa Espírita destaca-se pelo seu tamanho:
ao redor de 20 metros de fachada, incluindo uma entrada de garagem para não menos de
30 carros. Os pedestres da Rua Sapopemba podem perceber, em tons azul e branco, as
paredes do lugar anunciando o nome do Centro.
127
Se você chega ao Centro pela sua primeira vez, pode se dirigir ao balcão de
informações onde receberá os horários das atividades a realizar na Casa ou, se seu
problema assim o precisar, pode ser direcionado à assistência espiritual para falar com
algum trabalhador especializado em atenção a recém-chegados. O balcão de
informações situa-se na entrada do Centro, justo ao lado da secretaria e da livraria. Na
secretaria concentram-se todas as questões administrativas do lugar, é especialmente útil
para se matricular nos cursos doutrinários, para retirar algum convite de atividade
beneficente ou para fazer alguma doação. A livraria reúne dois mil títulos de obras
espíritas e de “auto-ajuda” divididos em temas e autores. Além das obras de Allan
Kardec e Chico Xavier, o visitante pode encontrar seções especializadas de autores
como Zibia Gasparetto, Carlos Baccelli, Antonio Demarchi, Ramatis, Rochester, José
Carlos de Lucca, Vera Lucia Marinzeck, Divaldo P. Franco e Luis Sérgio. Não é
comum encontrar a livraria vazia, geralmente um constante movimento de curiosos e
clientes fazendo deste espaço um cleo de difusão doutrinário. A Caminho da Luz,
além de reunir livros, reúne material videográfico. O acervo consta de 150 fitas para 900
sócios cadastrados.
Também no rreo situa-se a lanchonete, lugar idôneo para conversar antes ou
depois de alguma palestra ou atendimento espiritual. Sem mesas nem cadeiras, mas com
um balcão comprido, a lanchonete oferece salgados, doces, bebidas quentes e bebidas
frias a preços comerciais. Em frente da lanchonete são colocadas informações e avisos
em uma parede que divide esse espaço de socialização do auditório. Assim, o aluno ou
visitante pode conferir seu nome em algum dos cursos ministrados no Centro nesta
parede; pode ver fotos de atividades das crianças, dos jovens ou dos idosos da Casa;
pode oferecer ou solicitar emprego; pode ler informação especializada sobre temas
128
trabalhados no lugar, como a dependência química ou o HIV-Aids. Sobre este último
tema, colocam-se notas de revistas e jornais, ou artigos próprios, difundindo informação
básica do HIV: as formas de transmissão do vírus, as formas de não transmissão do
vírus ou a importância do tratamento biomédico.
Passando a lanchonete e a parede de informações e anúncios encontra-se o
recanto das águas fluidificadas: uma prateleira onde são depositadas garrafas com água,
as quais receberiam a ação magnética e curativa do mundo espiritual enquanto as
palestras são ditadas no auditório contíguo. Atrás das águas, situam-se a videoteca, a
sala de assistência espiritual e a sala de passes. A única imagem pendurada das paredes
desta última sala é a imagem de Cristo, o que também acontecerá na decoração do andar
superior. A luz da sala de passes, como a luz do todo o Centro Espírita, mistura focos de
cor branca com focos de cor verde, esta última cor utilizada especialmente para fazer
preces e trabalhos espirituais. O segundo andar da Casa Espírita consta de seis salas,
algumas destas são usadas para os cursos doutrinários, os trabalhos específicos (como é
o caso do HIV), a assistência espiritual e os trabalhos de desobsessão. As salas maiores,
que podem albergar ao redor de cinqüenta cadeiras, dispõem de quadro preto, televisão
e sistema de ventilação.
O auditório, um grande galpão ventilado e iluminado, localiza-se no térreo do
Centro Espírita. Tem quatro entradas e saídas, uma delas conectada ao recanto das
águas fluidificadas, outra à sala de passes, outra ao estacionamento e outra ao vestíbulo
que comunica com a entrada principal do Centro. As paredes do auditório, compostas de
tijolos pintados em branco e azul claro, sustentam 15 ventiladores distribuídos ao longo
da sala. O palco, em torno de 50 centímetros mais elevado que a superfície da platéia, é
129
construído de madeira assim como o chão do auditório inteiro. Neste palco, observa-se
uma mesa de aproximadamente três metros de comprimento por um e meio de largura
enfeitada com flores brancas e rosas. De frente à mesa, e dando a lateral à platéia,
situam-se 25 cadeiras que, durante algumas palestras, são ocupadas por diuns
passistas. Do outro lado da mesa são colocados o computador e o som, desde onde são
programados e projetados textos e imagens que aparecerão em uma tela situada na
parede posterior ao palco. Uma imagem de Cristo, emoldurada em branco e dourado,
descansa no centro desta mesma parede.
A maioria das cadeiras de plástico branco estavam ocupadas. Entrei no
auditório e, antes de me sentar no lado esquerdo da sala, um trabalhador do Centro,
vestido com uma capa azul anunciando o nome e o logo do lugar, indicou-me para
ocupar alguma cadeira do lado direito e deu-me uma ficha com o número 121. A ficha,
após a palestra, serviria para organizar o recebimento do passe. Sentando em uma
cadeira das primeiras filas da platéia, podia observar um auditório, quase lotado,
ocupado majoritariamente por mulheres e por pessoas acima dos 45 anos.
A dirigente espírita, acompanhada da palestrante, deu as boas-vindas aos
estudantes e freqüentadores, anunciando alguns avisos de atividades do Centro. Após os
avisos, realizou-se a prece de abertura tendo como música de fundo uma versão
instrumental da Ave Maria. Em seguida, a palestrante de aproximadamente 50 anos
tomou a palavra para discorrer sobre o tema da cura. A primeira afirmação que ela
ofereceu aos freqüentadores e alunos foi que os pensamentos influenciam na cura, pois
finalmente não é o cérebro que pensa, e sim o espírito. O cérebro, então, codificaria o
130
que o espírito pensou ou solicitou, comprimiria a energia pura em pensamento. Este
último seria semelhante às ondas de rádio.
A palestrante é insistente ao afirmar que o ser humano é o único responsável
pelo seu pensamento: se ele pensar de forma muito negativa ele viverá rodeado e
cercado por fluidos negativos; mas se ele tiver bons pensamentos, se emitir boas
vibrações, se pretende o bem, então viverá mergulhado em fluidos positivos. “Nós
temos de raciocinar”, aconselha a oradora, que também pede para vigiar o pensamento e
ter cuidado com as coisas que são faladas sem pensar. A cura, a partir desta perspectiva,
estaria relacionada ao exercício do próprio pensamento e à sua disposão para receber
“intuição, inspiração, fluidos e passes”.
A exigência, portanto, seria manter um pensamento organizado, atento e
disposto para emitir ondas vibratórias “positivas” e receber fluidos energéticos os.
Jesus, neste sentido, ajudaria à concentração e motivação no processo de
“mentalização”:
(...) aí terminou a palestra e vamos para a sala de passes, o pessoal que vai para
as curas, sentou no banquinho, o trabalhador da sala pede para a gente
fechar nossos olhos para que a gente mentalize Jesus, tanto que na sala existe
um quadro de Jesus porque se às vezes está com crise de mentalizar, bate olho
no quadro e fecha os olhos que aquela imagem fica gravada na retina por algum
tempo, e a gente mentaliza Jesus.
66
Em caso de doença, a palestrante sugere que o paciente, quando recebe o passe, se
concentre pensando no órgão que está precisando receber energia. Também aconselha a
leitura constante do Evangelho, beber a água fluidificada e não abandonar o tratamento
66
12/06/2006
131
biomédico; de fato, tomar os remédios com a água fluidificada potencializaria as
propriedades químicas destes. Finalmente, a oradora alerta que se não existe uma
mudança de comportamento, uma mudança da atitude mental, a melhora seria
passageira.
Novamente com a Ave Maria instrumental de fundo, a dirigente espírita faz a
prece de encerramento pedindo para mentalizar Jesus. Após a prece, a platéia em e
de mãos dadas acompanha a leitura de uma versão kardecista musicalizada do Pai
Nosso católico plasmada na tela posterior à palestrante e à dirigente espírita.
Ao concluir o Pai Nosso, a dirigente espírita pede para que os freqüentadores
tenham em o o cartão de tratamento o qual é dado depois de o freqüentador haver
sido entrevistado na assistência médica em um dia prévio à palestra para assim poder
passar à sala de passes. A tela, neste momento, pára de projetar as letras da música para
anunciar os números das senhas que estão sendo recebidas na sala de passes.
Em seqüências de 20, os freqüentadores vão fazendo fila para receber o fluido
energético. Enquanto isso acontece, a palestrante responde alguns questionamentos
escritos que foram deixados sobre sua mesa durante o evento. É o turno das fichas 121 a
140. Entramos na sala de passes em grupo de 20 pessoas e nos sentamos em pequenos e
redondos bancos de madeira. A sala, iluminada com uma suave luz verde, apresenta
uma decoração austera conformada pelas cadeiras e um quadro com a imagem de
Cristo. Para cada um de nós um médium passista que se coloca, em um primeiro
momento, detrás de nós. Uma voz de mulher anuncia: “Vamos mentalizar Jesus com
muito amor”. Aproximadamente dois minutos passaram para que o médium colocasse
132
suas mãos ao redor das costas, do peito, dos braços e da cabeça do assistido, para o qual
precisou mudar de posição inicial em três ocasiões situando-se também frente ao
paciente e nas suas laterais. Os movimentos dos 20 médiuns, sempre em pé, intentam
ser coordenados para assim não invadir o espaço do dium vizinho. Os assistidos, de
olhos fechados, mantêm uma postura reta sem se mexer em nenhum momento. A
mesma voz que deu início à atividade deixa-se ouvir de novo: “Graças a Deus”. Neste
instante os assistidos levantam-se e, com calma, saem da sala de passes com o cartão de
tratamento marcado. Alguns deles dirigem-se ao recanto da água fluidificada para
recolher suas garrafas, outros vão procurar alimento ou bebida na lanchonete e, os mais
apressados, deixam o Centro Espírita para continuar sua rotina do cotidiano.
4.6 Grupo Solidariedade.
O Grupo Solidariedade, que trabalha com portadores do HIV e seus familiares desde
1998 no centro espírita A Caminho da Luz, tem como objetivo levar evangelização,
informação, tratamento espiritual, desobsessão e passes “aos que sofrem desse mal”. Os
trabalhadores de Solidariedade têm como uma de suas principais preocupações o
estigma da discriminação, assim como a indiferença, o medo, o preconceito e o
abandono em que se encontrariam as pessoas afetadas pelo vírus do HIV. Para “quebrar
o tabu da Aids”, precisa-se do esclarecimento, da compreensão e do amor, afirmam os
espíritas do grupo. Desta maneira, a dor moral” pode ser trabalhada e a esperança na
vida recuperada.
133
Para os espíritas de Solidariedade “não importa quem você foi, mas quem é,
filho de Deus, que aqui chega em busca de consolo, de afeto, de amor”. Assim, o maior
propósito de Solidariedade é “despertar em si novamente a esperança e a fé do nosso Pai
Maior”. O grupo funciona às segundas-feiras, das 17h00 às 18h00, “com pessoas
dedicadas, que trabalham com muito amor para todos aqueles que carregam consigo o
estigma de aidéticos”. No total, são 16 médiuns que trabalham no grupo.
Dona Juliana, coordenadora do grupo Solidariedade, comenta que no final da
década de 1980, a Secretaria de Saúde, do Governo do Estado de São Paulo, convidou
ao Centro Espírita a participar de uma oficina sobre doenças sexualmente transmissíveis
e Aids:
Eu não sei precisar bem a data, se foi 88, 89, que A Caminho da Luz foi
convidado pela Secretaria de Saúde do governo (do Estado de São Paulo) a
fazer um treinamento sobre Aids. Nós fomos em quatro companheiros daqui da
casa. Durante uma semana nós tivemos aula com médicos, com ginecologistas,
com psiquiatras, psicólogos, a respeito das doenças sexualmente transmissíveis
e também a Aids que se enquadra dentro delas. Então, eles mostraram para a
gente como cada doença funcionava no organismo até chegar ao ponto da Aids.
Terminado o curso, que foi uma semana inteira, se não me engano das 6 às 10
da noite, eu me interessei em continuar, só como você deve perceber bem não há
muita coisa sobre Aids e, naquela época, quando terminou esse treinamento, eu
fui até a Federação para procurar saber como funcionava o trabalho.
67
Durante três meses Dona Juliana participou das atividades relacionadas ao HIV-Aids
implementadas na Federação. Contudo, lembra a coordenadora de Solidariedade, “na
casa nossa aqui era pequena ainda para se lançar um trabalho tão grande em
importância, visto a pouca quantidade de trabalhadores”. Anos depois, perante a dor
causada por uma perda familiar por conseqüência da Aids, a fundadora de Solidariedade
67
Dona Juliana, 22/05/2006
134
reflete sobre a possibilidade de abrir o trabalho terapêutico para HIV-portadores no
Centro Espírita:
Eu tinha um casal de primos a quem eu amava profundamente. Ela era minha
prima irmã. Ele veio a contrair a Aids através de uma transfusão de sangue,
que ele não ficou sabendo. Ele passou a Aids para a esposa, que era minha
prima, mas ele não ficou sabendo. Eu desconfiei pelos sintomas, mas você sabe
que em 89, 90, 91, tudo era muito camuflado, a própria família dizia que ele
estava com infecção, mas os sintomas em si me chamaram muito a atenção. Eu
cheguei a comentar com o genro dele, falei: “olhe!, isso não é infecção, isso é
Aids”. Foi uma surpresa geral para todo mundo, surpresa maior quando eles
constataram o que era realmente, mas na fase terminal. Ele faleceu uma
semana depois. Ela, por ser católica, não aceitou a doença em si, porque depois
da morte dele, ela teve que fazer um exame e constatou que ela também era
portadora. Ela desenvolveu a doença dois anos depois. Ele morreu sem saber
do que era, tranqüilo, sereno, aceitou a morte. Ela não, ela se revoltou contra
Deus, contra tudo, que é normal quando a pessoa fica sabendo que tem Aids.
Aids e câncer é quase que paralelo quando a pessoa recebe a notícia, entra
mesmo em desespero, Aids mais porque sabe que o câncer hoje é curável e Aids
ainda não.
68
A prima católica da dirigente espírita revoltou-se contra Deus quando se soube
portadora do HIV. com a Aids estragando a saúde da sua prima, a coordenadora de
Solidariedade decidiu a acompanhar até a morte, para assim prepará-la para o mundo
espiritual:
Quando ela desenvolveu a doença em si, eu conversei com ela tudo. Ela não
gostava muito que falava, mas quando ela esteve na reta final, (eu) estive no
hospital. Praticamente ela não reconhecia ninguém, mas eu cheguei a
conversar com ela, assim ao nível de falar as coisas, ao nível de prepará-la para
o mundo espiritual. E realmente dez minutos depois desta conversa que eu tive
com ela venho a falecer, e isso me doeu demais. eu procurei a direção da
Casa para a gente montar um trabalho para atendimento. tive de introduzir o
curso de três meses, 35 médiuns se interessaram pelo curso, mas nós
começamos o trabalho com 16 e mantemos esses 16 até hoje.
69
68
Ibidem.
69
Ibidem.
135
A experiência da doença da prima, e o evento da morte após -la preparado para sua
chegada ao mundo espiritual, levaram Dona Juliana a abrir o trabalho sobre HIV-Aids
no Centro Espírita. Após alguns anos de trabalho, os espíritas do grupo Solidariedade
têm recebido mensagens de pessoas que receberam auxílio na agrupação, inclusive a
distância:
E graças a Deus nós estamos há nove anos funcionando. Alguns que
passaram por nós, que começaram com a gente, estão do outro lado. Um
deu comunicação, mandou mensagem. Para ele serviu a assistência que a mãe
fez em lugar dele porque ele era um rapaz que estava preso, isso ajudou muito
ele do outro lado. As mensagens que a gente recebe durante o trabalho, às vezes
vêm de pessoas dando testemunho de quando eles foram auxiliados aqui em
nosso trabalho.
70
A presença de portadores do HIV encarnados no grupo Solidariedade é muito
inconstante. A maioria deles desistiu depois da primeira sessão, outros se afastaram da
terapia por causa do preconceito sexual que existe em relação à Aids. um paciente é
regular há vários anos:
Pela inconstância da própria doença a gente não tem assim uma
obrigatoriedade deles estarem presente. Sérgio é o nosso mais antigo paciente,
ele está aqui cinco, seis anos, com a gente. Mas dois desencarnaram,
outros desistiram. O interessante foi um rapaz que me marcou muito, ele desistiu
de vir, não pela doença, mas pelo preconceito que os pais determinaram na
sexualidade dele. Então, ele disse para mim: “Dona Juliana, eu estou saindo
porque meus pais aceitam que eu tenho Aids, mas não aceitam que eu sou
homossexual”. Como ele estava muito fragilizado, ele voltou a beber e eu nunca
mais soube dele, porque na Aids infelizmente o que machuca mais é o
preconceito.
71
A forma como os pacientes chegam ao Centro Espírita é explicada pela dirigente
kardecista:
70
Ibidem.
71
Ibidem.
136
Eu tenho a filha duma amiga que ela é assistente social num Centro de
Referencia na Penha, então ela encaminha para cá. Às vezes a pessoa que está
fazendo a assistência aqui conversa com companheiros, eles vêm, mas assim,
eles m e conhecem o trabalho e não ficam. Como falei a gente não pode
obrigar ninguém a ficar, todos são recebidos com muito carinho, todos
participam com a gente dos trabalhos, eles assistem Evangelho, assistem estudo,
assistem a prece de abertura e depois tomam passe. A gente não tem uma
divulgação aberta. Do jeito que a humanidade está encaminhando eles têm até
medo de colocar uma placa fora, porque a maioria que chega necessita tanto
do auxilio espiritual como do auxilio material, e essa parte de auxilio material
se torna difícil para a gente conseguir. Eu tenho quatro doentes aqui e os quatro
necessitam de cestas básicas e é uma luta para a gente estar conseguindo. A
gente tem uma assistência social muito grande, então eu tenho que, de vez em
quando, estar correndo pedindo ou tentando arrumar umas cestas.
72
A coordenadora de Solidariedade teme não poder brindar ajuda material aos portadores
do HIV que se aproximam do grupo. Contudo, ela e sua equipe continuam trabalhando
toda segunda-feira sendo que a atenção terapêutica não apenas se limita a encarnados,
de fato, os maiores atendidos são os espíritos desencarnados que morreram por
conseqüência da AIDS:
Os espíritos que vêm participar do trabalho são espíritos que desencarnaram
com Aids. Muitos deles aceitam, não aceitam, outros vêem revoltados, outros
vêem sofridos, mas é um trabalho mais a nível espiritual mesmo porque os
encarnados são poucos, mas a parte espiritual, como eles mesmos dizem, é
muito grande. A gente mantém o trabalho, espero manter enquanto eu puder.
73
Dessa forma, os trabalhadores de Solidariedade trabalham com espíritos desencarnados,
alguns deles obsessores. A obsessão é explicada por Dona Juliana através da lei da
sintonia:
O ser humano, quando desencarna, leva com si os desejos, as vontades. A
pessoa que é acostumada ao sexo desvairado, à droga, à bebida, mesmo no
cigarro, quando ela desencarnar, ela não vai perder seus vícios, então o que ela
faz? Este espírito que desencarnou vai se aproximar de quem faz uso de tudo
isso. A gente fala que eles são os acompanhantes eternos, e eles ficam de tal
72
Ibidem.
73
Ibidem.
137
maneira ligados ao encarnado que é como se eles estivessem bebendo, eles
estivessem utilizando as drogas, e eles estivessem estimulando o sexo. A lei da
sintonia é muito grande.
74
Dona Letícia, integrante de Solidariedade, revela o principal problema dos espíritos
desencarnados que são assistidos no grupo:
Acontece o seguinte: Eles estão vindo a dizer que eles não têm lugar para
entrar. Então, quando vêem um lugar que tem um tratamento como o nosso
vêm todos eles que só passaram por isso. Eles vêm aí, eles encontram palavras,
o espírito procura conversar, o espírito procura uma orientação.
75
Às vezes, os diuns de incorporação do grupo são poucos. Apesar de ser em número
escasso o trabalho atinge tanto aos espíritos incorporados, como a um amplo
contingente de espíritos ouvintes. A maioria destes espíritos é recolhida nas ruas de São
Paulo por uma equipe espiritual e enviada aos diferentes centros espíritas da cidade,
sugere a coordenadora de Solidariedade:
Uma coisa interessante a respeito do trabalho que desenvolvem no mundo
espiritual é que às vezes a gente tem um ou dois médiuns de incorporação, e
depois a gente fica assim: “Nossa!, meu Deus do céu, nós só atendemos dois
espíritos, três espíritos”, e o mentor vem dizer para a gente que não, que no
atendimento daqueles três ou quatro, que a gente conseguiu atender, tem uma
infinidade de outros que ouvindo aprendem. Isso ficou bem marcado para a
gente, também da utilidade do trabalho. (o trabalho) É uma orientação básica,
porque a maioria deles sabe que morreram, eles apenas estão assim meio
confusos, outros estão perdidos, outros estão com muito sono. A equipe
espiritual passa pelas ruas recolhendo eles. Então, emo Paulo, tem muitos
lugares fazendo esse tipo de trabalho, principalmente a Federação, então o
mundo espiritual encaminha para estes locais esse espíritos que vão recolhendo
pelas ruas. uma quantidade muito grande de espíritos que eles chegam a
mover da Aids e ficam andando na rua sem saber para onde.
76
74
Ibidem.
75
Dona Letícia, 22/05/2006
76
Dona Juliana, 22/05/2006
138
Solidariedade e o Centro Espírita A Caminho da Luz têm espíritos mentores que
auxiliam os diversos trabalhos terapêuticos. Os mentores teriam dito para os médiuns de
Solidariedade que no plano espiritual existem três casas de apoio para espíritos que
desencarnaram por conseqüência da Aids: Esperança, Luz e Sol Nascente, esta última
localizada acima da região de Bauru, interior de São Paulo. Dona Juliana disse acreditar
em médicos do mundo espiritual especializados em doenças particulares e,
possivelmente, em auxiliares do próprio Bezerra de Menezes que poderiam estar
prestando ajuda à Solidariedade:
O Dr. Bezerra uma assistência em geral a toda humanidade, ele não se fixa
especialmente em um trabalho ou em uma casa. Segundo o conhecimento que eu
tenho, Dr. Bezerra dirige no mundo espiritual uma falange de 1.000 espíritos
que assinam com o nome dele, então acredito que a gente tem aqui falanges de
médicos, de enfermeiros, de assistentes ligados a ele, a outros médicos. Não é
ele que existe no mundo espiritual, também nós temos o doutor Caio, o doutor
Francisco que trabalha na nossa cirurgia espiritual. Acredito também que
algum deles venha a dar alguma assessoria para a gente aí. O mundo espiritual
é muito grande. Caio é o dirigente da nossa cirurgia espiritual. Tem doutor
Francisco, doutor Carlos. Eu não vejo nada do mundo espiritual, mas eu sinto
quando a gente é tratada. Se na Terra existem especialidades no campo das
doenças, no mundo espiritual também. A gente sente aqui quando a gente é
tratada, porque eles não abandonam a gente que está trabalhando, a gente é
auxiliado aqui dentro.
77
Os espíritas do A Caminho da Luz que queiram ser trabalhadores de Solidariedade
devem ser não fumantes, ter uma alimentação leve e ter passado pela educação espírita e
mediúnica:
O trabalhador tem que ter curso de médiuns formado, ser um médium, ser um
trabalhador na nossa Casa. É preciso que a pessoa que queira trabalhar, que
assim que termina uma escola na nossa Casa, seja passado a ela todos os tipos
de trabalhos que a casa tem. Então, o aluno opta por qual trabalho quer. Eu sei
que o nosso horário é meio apertado, meio complicado para quem trabalha
fora, por isso é que o nosso grupo é pequeno, é formado mais por donas de
casa, por pessoas que tem um trabalho independente, e essa freqüência pequena
é por causa disso.
78
77
Ibidem.
78
Ibidem.
139
Letícia, que trabalha em Solidariedade desde sua fundação, comenta que ela participa de
diversas atividades no Centro Espírita, mesmo assim, para ela a atividade do grupo
Solidariedade é a mais importante devido à compaixão demonstrada aos assistidos:
Eu gosto de participar, eu gosto muito de participar de tudo. Aqui a gente tem
uma família grande. De qualquer coisinha que é participar, se eu puder, eu vou,
participo. Eu estou aqui 25 anos, e vim aqui por causa de meu filho e aqui
estou. Atrás de mim, graças a Deus, eu tenho uma filha e um filho aqui dentro.
Eu acho que este trabalho que nós fazemos aqui, para mim, é o trabalho que
mais satisfaz a gente, porque eles vêm tão caidinhos, tão sofridos. A gente não
tem medo, a gente abraça eles, beija, tudo, então se sentem valorizados. Tem
pessoas que se encolhem quando vêem as pessoas e nós não fazemos isso com
eles.
79
Mário, filho de mãe esrita e pai católico, foi convidado por Dona Juliana então sua
professora no Centro Espírita a participar de Solidariedade depois de concluir os
cursos da escola de médiuns. Sem experiência prévia com trabalho terapêutico em HIV,
e sem ter passado por nenhum evento importante de perda de amigos e familiares por
conseqüência da Aids, Mário aceitou o convite de Dona Juliana, pois ele queria “fazer
um pouquinho e aprender mais com eles”. Para ele, médium passista em Solidariedade,
a Aids é uma prova, uma conseqüência, alguns devem passar por essa doença, outros
não”.
80
Seu João, ao igual que Mário, foi convidado pela dirigente espírita a participar
do grupo quando se formou na escola de médiuns. Nascido em família espírita, afastou-
se do espiritismo por mais de 20 anos, porém, decidiu retornar sete anos, tempo no
qual estudou e trabalhou na parte administrativa do A Caminho de Luz. Ele trabalha
como passista e como orientador: “Participo às vezes dirigindo os passes, às vezes na
sustentação, com o pensamento voltado ao trabalho, a Deus, a Jesus”. Para Seu João
79
Letícia, 22/05/2006
80
Mário, 22/05/2006
140
sua própria mudança experimentada a partir do espiritismo o motiva a ajudar outros,
inclusive a distância:
A proposta do espiritismo é que nós nos modifiquemos. Eu acredito que após
começar a freqüentar eu mudei muito, sei que chegar ao grau de perfeição nós
não vamos chegar aqui, mas a gente consegue enxergar seus problemas por
outro ângulo, com outros olhos, no sentido figurado, porque a gente tem, graças
a Deus, conhecimento e isso nos bastante força, mais facilidade para
entender os problemas que acontecem no dia a dia. Graças a isso a gente tem
conseguido ajudar pessoas, mesmo pessoas que não freqüentam aqui.
81
Para o dium passista o é o espiritismo que pode ajudar nessa transformação
moral, contudo, o espiritismo pode explicar vidas passadas e as causas de certos
acontecimentos, explicações que estariam contidas na Bíblia:
Ajuda bastante (trabalhar no grupo) porque no momento em que nós estamos
atendendo às pessoas necessitadas, as pessoas que vêm procuram de um
consolo, nós também estamos aprendendo com elas. Mas isso não que dizer que
a pessoa não aprenda sem participar dos trabalhos. A pessoa pode se modificar
em qualquer religião, não precisa ser necessariamente o kardecismo, tem muitas
religiões para o cidadão praticar, torcer pelo bem. Se a pessoa consegue
absorver, ele vai se melhorar independentemente que seja o espiritismo. A
diferença é que o espiritismo nos detalhes da vida depois da morte, embora
que tudo isso esteja implícito na Bíblia. Por exemplo, por que uma pessoa pobre
aparece com uma enfermidade grave, nós sabemos que tudo isso tem uma
origem, e muitas outras religiões talvez não expliquem bem esse detalhe:
“porque Deus quis”, Deus não quer que você fique enfermo, se você fica
enfermo é porque você procurou, porque você tem alguma coisa do passado, de
vidas passadas.
82
Seu João situa a origem das doenças em atos passados do sujeito, seja de vidas passadas
ou da vida presente. Para ele “toda essa informação” está contida na Bíblia, uma
importantíssima fonte de autoridade para ele, os espíritas do A Caminho da Luz e os
autores de obras espíritas brasileiras como Chico Xavier:
81
Dom João, 29/05/2006
82
Ibidem.
141
(...) a gente tem os estudos inclusive da Bíblia. Comparando a Bíblia, e o que o
espiritismo ensina, não tem diferença, apenas é como se você abrisse, tirasse um
véu que está tapando a sua visão. Não tem segredo nenhum. O espiritismo não
inventou a reencarnação, o espiritismo não inventou nada do que está aí, tudo
isso já vem consagrado na própria Bíblia.
83
As passagens de milagres de cura na Bíblia, realizados por Jesus, não seria uma outra
coisa mais que a manipulação de fluidos no contexto das leis naturais:
Na Bíblia existem os milagres, mas que na realidade não são milagres. Mas não
que Jesus o tenha feito essas curas que são relatadas na Bíblia, sim! Ele fez,
mas não são milagres, porque milagres é uma coisa que derroga as leis
naturais, e não, isso está implícito nas leis naturais. Jesus sabia manipular
fluidos, ele conseguia fazer o que muita gente aqui faz, Jesus falava “tua te
curou”, então depende, o tratamento espiritual depende do tratamento
propriamente dito, do comportamento que um cidadão vai começar a ter se
mudar, se melhorar seu modo de viver. Em qualquer das hipóteses o cidadão
que se submete a um tratamento espiritual, alguma coisa ele sempre recebe. Ele
pode não ter a cura total dos seus males, mas às vezes também tem, depende da
origem dessa enfermidade, do resgate que ele tem de passar, e do já estar
merecendo ser ou não curado.
84
A cura, a partir desta perspectiva, não se situaria apenas na manipulação dos fluidos,
também estaria acompanhada de uma mudança moral na experiência do sujeito. Seu
João explica que o conceito do “corpo espiritualmencionado por Paulo na Bíblia é o
perispírito do kardecismo, essa “semi-matéria” conteria toda a informação do sujeito
através de suas múltiplas vidas, inclusive as enfermidades:
Paulo na Bíblia o chama (o perispírito) de corpo espiritual, está em
Corinthians, eu não me lembro o capítulo. Ele disse que morre o corpo animal e
nasce o corpo espiritual, esse corpo espiritual nos acompanha sempre, ele vai se
modificando, ele vai se eterizando porque é uma matéria sutil, é uma semi-
matéria. Então, quando nós nascemos de novo nós trazemos tudo, nosso
comportamento, nosso modo de ser. Tudo isso nós trazemos de outras vidas, e
as enfermidades que nós adquirimos pelo nosso comportamento nós trazemos
conosco também, e nós algum dia temos de resgatar. Existem muitas maneiras
de resgatar, muitas vidas ou através do trabalho que você faz com as pessoas,
83
Ibidem.
84
Ibidem.
142
para ajuda humanitária. Deus não manda nenhuma enfermidade para nós, nós
que adquirimos.
85
Dona Juliana concorda em pensar a Aids a partir da lei kardecista de causa e efeito,
tendo a própria doença a possibilidade de um aprendizado para o processo de evolução
moral:
Eu acredito que a Aids tenha sido uma lei de causa e efeito. Eu levei para este
campo porque surgiram outras hipóteses no início da Aids, mas se a gente
analisar o contexto em geral que mais eles sofrem? Preconceito, discriminação,
então, não estaria uma lei de causa e efeito? É lógico que ela veio para
impor certo equilíbrio na parte sexual, que estava tomando um rumo muito... e
ainda toma, mas o é divulgado. A Aids apareceu para pôr um freio nessa
parte. A pessoa que contrai a Aids hoje, talvez tenha sido preconceituosa
atrás. Ele buscou uma doença e vai ter que sofrer as conseqüências dessa
doença.
86
4.6.1 Visita Ao Grupo Solidariedade.
Cheguei vinte minutos antes do início da terapia mediúnica ao grupo Solidariedade. O
trânsito no bairro Água Rasa, e na própria Avenida Sapopemba, ainda se encontrava nos
limites do aceitável. Enquanto esperava o início da sessão, decidi comer um pão de
queijo e um café puro no cado Centro Espírita, talvez tivesse a chance de bater papo
com algum freqüentador ou trabalhador do lugar. Quase sozinho no café, pois naquela
hora somente se encontrava o pessoal administrativo, percebi a chegada de Dona
Juliana. Ela me deu as boas-vindas e convidou-me para subir a uma sala onde realizar-
se-ia parte do trabalho.
85
Ibidem.
86
Dona Juliana, 22/05/2006
143
Foram chegando os trabalhadores de Solidariedade: um total de quinze pessoas,
sendo onze delas mulheres e quatro homens. Nenhum adolescente ou jovem encontrava-
se na reunião, de fato, muitos dos trabalhadores rondava ou ultrapassava os 50 anos de
idade. Além dos trabalhadores, encontrava-se um “assistido” portador do HIV, de
aproximadamente 30 anos, e uma mulher, dessa mesma idade, que estaria procurando
auxílio à distância para um familiar. As cadeiras brancas, distribuídas ao redor da sala
intentando formar um retângulo, combinavam com a sobriedade do tapete marrom e as
cortinas azuis que decoravam o lugar de estudo. A sala contava com um televisor, um
ventilador e um quadro de Jesus com a mão no coração. A brancura dos tijolos brancos
da sala mudava para verde ao desligar a luz branca e acender a luz colorida, quando se
faziam as preces ou quando os espíritos que morreram por conseqüência da Aids
comunicavam-se através dos médiuns de psicofonia.
A sessão começou quando um dos participantes de Solidariedade abriu, como
toda segunda-feira, a discussão sobre algum tema a ser estudado: na ocasião falou-se
sobre as leis de Kardec propostas em O Livro dos Espíritos, obra que estava sendo
estudada no grupo. Depois de quinze minutos de discussão, passou-se a comentar algum
tema de O Evangelho segundo o Espiritismo durante dez minutos. Os assistidos
mantiveram-se à margem das discussões, os trabalhadores intercambiavam idéias e
procuravam chegar a conclusões juntos.
Após o estudo de O Evangelho segundo o Espiritismo realizou-se a prece de
abertura. A luz verde foi acesa, a dirigente espiritual fez a prece pedindo para os
trabalhadores e os assistidos “mentalizar” os lares dos assistidos para que o plano
espiritual promovesse “a limpeza” desses lares. Os ouvintes mantinham os olhos
144
fechados ao fim da prece de abertura. A luz branca, após a prece, volta a iluminar a
sala. É aí quando os trabalhadores dividem-se em dois grupos, a metade deles, junto aos
assistidos, vai para a sala mero cinco e a outra metade, “junto aos espíritos
obsessores”, fica na sala número sete.
Na sala número cinco os passes especializados o dados aos assistidos. Esta
sala é decorada com um tapete azul com estrelas cinzas, paredes de azulejos brancos,
ventilador na parede, um relógio, um calendário e um quadro de Jesus colocando sua
mão direita sob a cabeça de uma mulher e de um menino visivelmente doentes. A sala
recebe cinco médiuns passistas que se colocam de ao redor do pequeno espaço em
questão. O assistido, após entregar uma ficha onde se registra o tipo de passes que tem
recebido durante suas visitas a Solidariedade, senta-se em uma cadeira branca de costas
aos trabalhadores espíritas. Um deles coordena os trabalhos a ser realizados através de
indicações faladas aos assistidos e aos trabalhadores, pede ao assistido imaginar luzes
de cores diversas, principalmente em verde e em branco, e indica aos trabalhadores o
tipo de passe a realizar: as mãos destes últimos colocam-se perto da cabeça, do peito e
das costas procurando transmitir energia ao “cérebro”, ao “gástrico”, ao “esplênico” e
ao “sistema nervoso”. O passe não dura mais de dois minutos, após receber o
“intercâmbio de energia” o assistido abandona a sala e o centro espírita deixando os
trabalhadores continuarem com sua tarefa.
Na sala número sete cinco diuns de psicofonia comunicam-se com espíritos
obsessores que teriam falecido por conseqüência da Aids. Estes espíritos falariam
através dos diuns. Cada médium é acompanhado por um médium conselheiro que
teria como objetivo ouvir, dialogar e acalmar ao espírito obsessor. Sentados em
145
cadeiras, os corpos dos médiuns dão entrada aos espíritos obsessores: eles mostram
desconforto, se movimentam sem abandonar a cadeira, alguns deles choram e relatam o
sofrimento que estão vivenciado ao não encontrar o caminho “de volta” para o mundo
espiritual. Por sua vez, os médiuns de aconselhamento perguntam aos espíritos
obsessores o que eles estão sentindo, expressam-lhes seu apoio quando eles descrevem
seus sentimentos de angustia e sofrimento, falam-lhes da imensa bondade de Deus e dos
espíritos superiores, como Jesus, deixando-lhes claro que os espíritos superiores sempre
estarão ao seu lado para protegê-los e para procurar uma reforma íntima no seu plano
evolutivo. Os obsessores, conforme avança a sessão de aproximadamente 20 ou 30
minutos, acalmam-se e ouvem com resignação as palavras dos diuns conselheiros.
Finalmente, eles acabam aceitando a ajuda dos diuns e prometem mudar para não
fazer mais dano e para não danar aos espíritos encarnados. Geralmente os espíritos
obsessores não revelam sua “identidade”, porém, em alguns casos, estes se mostram
como antigos pacientes do grupo e trazem mensagens de agradecimento.
A sessão se conclui após o trabalho com os obsessores. Todos os trabalhadores
se reúnem para realizar a prece de encerramento. Após a prece, a luz branca substitui a
luz verde e, nesse momento, eles se organizam na distribuição dos temas kardecistas a
serem desenvolvidos na seguinte semana. Alguns dos trabalhadores permanecem no
Centro Espírita para assistir à palestra tradicional das segundas-feiras à noite, outros
preferem voltar para casa. Os “pacientes”, pelo menos no período de trabalho de campo
no Centro, deixam o lugar logo depois de concluída a sessão de passes e dificilmente
participam de alguma outra atividade do A Caminho da Luz, seja nas segundas-feiras,
seja na semana toda.
146
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desta pesquisa examinamos como os significados sobre sexualidade, obsessão
sexual e HIV-Aids são construídos, negociados, confrontados e disputados entre os
espíritas brasileiros a partir de um sistema de símbolos que estabelece disposições e
motivações modelando a ordem social (Geertz, 1989:67). Este sistema simbólico
kardecista, baseado em imagens cristãs como a figura de Cristo e em argumentos
científicos como a existência de fluidos manipulados e manipuláveis por seres dos
mundos material e espiritual, constrói e se reconstrói histórica e culturalmente a partir
do diálogo que seus integrantes estabelecem com outros agentes e ordenamentos da vida
social.
As idéias positivistas e evolucionistas do século XIX encontram-se presentes nas
obras doutrinárias de Allan Kardec. Estas últimas chegam ao Brasil adaptando-se à
realidade local brasileira, construindo uma certa identidade, e escolhendo como sinais
diacríticos elementos do universo católico (Stoll:2003:61), particularmente a noção
cristã de santidade. no século XX o espiritismo brasileiro, dividido em duas grandes
facções, a religiosa e a científica, consolida sua presença entre as camadas médias
brasileiras mostrando uma boa capacidade de transformação: ora se revestirá de uma
tonalidade nacionalista, como no quadro de regimes autoritários (Silva, 2005), ora será
milenarista, quando as antigas referências deixam de ordenar sua cultura religiosa
(Lewgoy, 2004).
Os discursos sobre sexualidade espírita, revisados nas entrevistas em
profundidade com nossos informantes, e através dos romances de Xavier e Vieira
147
(2003) e Pinheiro (2002); dos artigos de Andréa (1996), Glaser (1999), Oliveira (2000),
Castro (2000), Imbassahy (2000), Netto (2000), Martins (2003), Xavier (2003) e Nunes
Filho (2004); e das aulas e palestras do centro espírita A Caminho da Luz e da
Federação Espírita do Estado de São Paulo, demonstram que os conceitos da sexologia
utilizados pelos kardecistas são ressignificados no seu sistema moral a partir do seu
próprio modelo de realidade. O discurso da ciência médica sexológica direciona, a partir
da agência espírita, um ordenamento moral em relação à sexualidade.
Na visão essencialista sobre sexualidade espírita, as técnicas de uso e
canalização de “energia sexual” são sustentadas em uma visão binária e evolucionista
do mundo: quanto mais “civilizada” uma sociedade e um indivíduo, “melhor uso das
faculdades sexuais” e maior avanço conseguirá em sua conquista evolutiva. Pelo
contrário, quem desobedece às normas sexuais kardecistas terá uma conseqüência
inscrita no seu corpo nas próximas reencarnações, seja nos seus cromossomos, nos seus
órgãos genitais, na sua orientação sexual ou em vírus e doenças. A transexualidade e a
homossexualidade teriam sua origem no desrespeito às leis morais da sexualidade. As
exceções à regra seriam constituídas pelos casos isolados de missão, como foi
exemplificado por Nunes Filho (2004) em relação a Chico Xavier, em que a “energia
sexual” é direcionada a obras de caridade e produção artística. A intersexualidade e a
bissexualidade, por sua vez, fogem da classificação binária e dicotômica kardecista,
sendo sancionadas moralmente e situadas em degraus menores da evolução moral
espírita. De fato, a intersexualidade seria uma conseqüência genital, situada no corpo,
do “mal-uso das faculdades sexuais”.
148
O livre arbítrio kardecista responsabiliza ao indivíduo das ações que este faz ou
deixar de fazer, portanto, a idéia de punição divina ou proveniente de Deus é descartada
como explicação causal de males, infortúnios e doenças. O indivíduo cobra importância
no kardecismo, seja na presença concreta através dos médiuns de espíritos
acompanhados de nome, história e símbolos de prestígio (profissão e nacionalidade os
mais comuns), definindo campos de significado e marcando identidades (Velho,
1996:61), seja na biografia particular de indivíduos que recebem atenção espiritual
personalizada nos centros espíritas ou de espíritas que se tornam médiuns participando
de tarefas diferenciadas segundo suas habilidades e desejos.
Seguindo a Young (1976), observamos como as terapias de desobsessão
ajudaram a definir o mal-estar de Felipe e Martin significando suas crises como
problemas de obsessão sexual. A sickness de Felipe e Martin teria etiologia e uma série
de técnicas terapêuticas socialmente reconhecidas no contexto espírita kardecista. A
etiologia situar-se-ia em vidas passadas e a terapia consistiria em passes energéticos,
preces, remoção de espíritos obsessores em salas mediúnicas e na “mudança de
comportamento” do paciente obsedado. A eficácia da cura, por sua vez, descansaria na
ressignificação do mal-estar do paciente a partir do modelo explicatório de moral
espírita e, particularmente, na incorporação do sujeito na comunidade espírita geral.
Como observamos nos casos da obsessão sexual, a sickness (Young, 1976) é
configurada culturalmente, oferecendo uma série de significados em relação à moral
sexual. A obsessão é mediada por espíritos que controlam os corpos, as condutas e as
práticas sexuais de indivíduos e grupos através da invenção, aplicação e introdução de
fluidos, vermes, cheiros e demais símbolos que delimitam o puro do impuro (Douglas,
149
1980), a saúde da doença. A obsessão, no contexto do sistema do cuidado da saúde
espírita, permite a ação terapêutica da desobsessão definindo culturalmente episódios de
crises (Young, 1976) e facilitando o processo de cura (Csordas, 1983) através da
transformação de sentido que o paciente para sua sickness. Felipe e Milton, por
exemplo, ressignificaram a idéia de depressão e “compulsão sexual”, do
“comportamento desviante”, no contexto kardecista ao participar das terapias de
desobsessão, da evangelização espírita e, no caso de Felipe, da integração à prática
mediúnica.
Todos os entrevistados e a maioria dos espíritas conhecidos durante o trabalho
de campo reconhecem na literatura espírita, e na literatura de auto-ajuda, um canal
privilegiado no seu processo de evangelização. Esta característica outorga ao
espiritismo kardecista um prestígio particular em relação a outros sistemas religiosos,
em especial, a outros sistemas mediúnicos como são a umbanda e o candomblé, que não
têm uma tradição ampla de produção literária. Felipe menciona ter sido ajudado pela
leitura do romance Despertar para a Vida; Enéas por Memória de um Suicida; Andrei
por A Cura de Schopenhauer. Porém, nem todas as obras espíritas o bem-vindas nas
prateleiras dos entrevistados, como foi observado no caso de Andrei com seu
questionamento sobre o romance Canção de Esperança.
Os portadores do HIV espíritas conhecidos durante o trabalho de campo,
inclusive Andrei e Enéas, buscam outros sistema de saúde além do biomédico. Andrei,
que buscou “negativizar” com a ajuda de um curandeiro de Santa Catarina, não
conseguiu seu propósito apesar de seguir as indicações dietéticas e aplicar os remédios
dados pelo especialista. Possivelmente a divisão de alimentos proibidos e permitidos,
150
assim como a origem exótica (Amazônia e África) das bebidas do curandeiro, foram
símbolos que para Andrei tiveram uma eficácia limitada ao o fazer parte do sistema e
da comunidade religiosa do curandeiro (se existir). De qualquer forma, nem Andrei nem
Enéas deixam de consultar biomédicos para monitorar o vírus e, no caso de Enéas, para
estar ao corrente com seu tratamento. Outro aspecto importante na experiência de Enéas
e Andrei é a mudança no “estilo de vida”. Eles tiveram uma maior aproximação com o
espiritismo após receber a notícia de sua condição sorológica. Também procuraram
fazer mais exercícios, levar uma dieta balanceada e procurar as horas recomendáveis de
descanso.
No caso do HIV-Aids, os discursos espíritas hegemônicos (o romance Canção
da Esperança com prólogo de Chico Xavier, os artigos de divulgação de espíritas
prestigiados e as informações contidas nas palestras dos centros espíritas) estabelecem
uma relação moral da doença. O vírus teria como objetivo o retorno a certo equilíbrio
energético e moral que teria sido violentado na prática sexual. Este seria caracterizado
como um “desajuste energético” (grupo Solidariedade), como “fruto das orgias em que
nosso planeta foi mergulhado” (Imbassahy, 2000) e como “resultado da falta de higiene
e do desregramento moral da humanidade” (Martins, 2003). O corpo transgressor
desorganizar-se-ia, dando passo à entrada do vírus e a um possível processo de
educação moral à maneira de “calvário redentor”, como reconhece o autor de Canção
da Esperança (Pinheiro, 2002).
Contudo, nem todos os significados espíritas hegemônicos sobre sexualidade e
HIV-Aids são compartilhados pelos espíritas entrevistados. Se a questão da origem e da
caracterização da homossexualidade e bissexualidade espírita não foi questionada e sim
151
aceita pela maioria dos entrevistados que se situa nessas categorias de classificação do
desejo e da prática sexual, já os significados espíritas ao redor do HIV-Aids são
rejeitados pelos próprios portadores do vírus, esvaziando-se seu conteúdo moral e o
dimensionado simplesmente como uma fatalidade (Andrei) ou pena (Enéas). O estigma
(Goffman, 2003) sobre o vírus e seus sujeitos, percebido pelos espíritas portadores do
HIV no meio espírita, dificulta a participação destes nas terapias espirituais direcionadas
ao HIV. Sem deixar de procurar atenção espiritual, eles preferem fazer parte de espaços
terapêuticos moralmente menos marcantes, e mais abrangentes, como são as sessões de
passes magnéticos. Daí a baixa participação de portadores do HIV no grupo
Solidariedade, o qual é vivenciado mais como espaço de treinamento mediúnico e de
reafirmação de identidade espírita entre facilitadores do que de terapia espiritual
direcionada à atenção terapêutica de portadores do HIV do mundo material.
Finalmente, pensamos que através desta pesquisa conseguimos sistematizar uma
série de saberes locais sobre sexualidade e HIV-Aids no espiritismo kardecista
brasileiro. Do mesmo modo, observamos as experiências de sujeitos espíritas que
ressignificam seus desejos e suas práticas sexuais no contexto kardecista, inclusive
reconhecendo períodos de mal-estar sexual como processos de obsessão sexual. No caso
dos espíritas portadores do HIV, evidenciaram-se as tensões sobre as etiologias e os
significados da doença produzidos por espíritas não portadores e por espíritas
portadores. Sem dúvida, próximos esforços de investigação poderão aprofundar nos
significados sexuais espíritas, nas relações de gênero entre espíritas kardecistas, nas
terapias direcionadas à desobsessão sexual e nas terapias direcionadas aos portadores do
HIV-Aids.
152
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA NETO, L.A. de. Outras famílias. A construção social da conjugalidade
homossexual no Brasil. In: Cadernos Pagu, n.24, 2003.
ANDRÉA, Jorge. Forças sexuais da alma. Rio de Janeiro: Federação Espírita
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160
Anexo 1
A-B Linha vertical, mediana do equilíbrio
C-D Linha horizontal, mediana do homem
E Centro meridiano, ponto de equilíbrio horizontal
F Raio de força – paralelas verticais
H-I Raios de força – paralelas horizontais
J-K Corrente centrípeta – corre por fora
L-M Corrente centrífuga – corre por dentro
N-O Nuance interespacial das duas correntes
P-Q Reflexos das vibrações do espírito
R-S Perispírito, ou duplo do homem
T-U Aura material (fluido blanco azulado)
V-X Aura intelectual ou de amor (azul claro)
1 Aura espiritual (toma a cor dos pensamentos)
2 Atmosfera fluídica do homem
3 Luz amarelo-alaranjada do espírito quando em vibrações provindas de altas esferas espirituais
Fonte: Passes e Curas Espirituais (Toledo, 2005)
Corpo são
161
Anexo 2
Fonte: Passes e Curas Espirituais (Toledo, 2005)
Corpo doente
162
Anexo 3
Cartão de assistência espiritual do Centro Espírita A Caminho da Luz.
163
Anexo 4
Cartão para o serviço de psicografia e “contato” com familiares falecidos do
Centro Espírita A Caminho da Luz.
164
Anexo 5
Eventos beneficentes de Nosso Lar, órgão de caridade do Centro Espírita A
Caminho da Luz.
165
Anexo 6
Publicidade da palestra “Reflexões sobre Sexualidade e Preconceitos” realizada na
Federação Espírita do Estado de São Paulo
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