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Alexandre Arantes Pereira Skvirsky
Dogmatismo e Ceticismo na
Filosofia Crítica de Kant
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia da PUC-Rio como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Filosofia.
Orientadora: Vera Cristina de Andrade Bueno
Rio de Janeiro
Setembro de 2008
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À minha mãe e ao Tomás.
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Agradecimentos
À Prof.ª Vera Bueno, pelas aulas e conversas. Sem a sua ajuda e sua paciência não
teria sido possível começar este estudo ou sequer chegar até ele.
Ao Professor Doutor Luiz Bicca, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro,
pelo seu incentivo à curiosidade e pesquisas filosóficas e apoio ao meu ingresso
no programa de pós-graduação da PUC-Rio.
Aos professores Edgard José Jorge Filho e Júlio César Ramos Esteves por
aceitarem compor a banca de examinadores, e pelas suas importantes críticas que
me levaram e repensar e reescrever praticamente toda a dissertação.
Ao Professor Danilo Marcondes pelas suas excelentes aulas, que despertaram o
interesse no ceticismo antigo.
Aos funcionários da PUC-Rio pelo ótimo atendimento.
Ao César Cipriano, amigo e colega, que me ajudou na clareza e compreensão do
trabalho, ao qual estimulou e deu respaldo.
Ao Bruno Esteves Vigne, pela sua amizade, leituras e correções.
Ao colega Rogério Oleniski, pelos seus textos e pelas conversas.
A minha irmã Silvia e meu cunhado Ajay Gupta, muito queridos.
A minha mãe, pelo seu constante incentivo, à Larissa, pelo seu amor, e à Tatiana
pelas suas brincadeiras e seriedades.
A Hebréia. Sem a sua cumplicidade, as nossas leituras e diálogos, eu não teria
conseguido terminar essa dissertação.
Ao Tomás, por existir, pelo seu olhar, seus sorrisos, seu choro que estridula a
alma.
Agradeço ao CNPq pela bolsa concedida, que possibilitou a aquisição do material
necessário para a pesquisa.
Resumo
Alexandre Arantes Pereira Skvirsky; Vera Cristina de Andrade Bueno.
Dogmatismo e Ceticismo na filosofia crítica de Kant. Rio de Janeiro,
2008. 211p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Filosofia,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A filosofia crítica de Kant refuta o dogmatismo e o ceticismo tomados
exclusivamente, mediante o critério do autoconhecimento da razão. Entretanto, o
dogmatismo não pode ser simplesmente superado. A conversão da postura
dogmática para a crítica não exclui o que há de necessário no procedimento
dogmático, tanto para a razão quanto para a filosofia. O mesmo vale para o
ceticismo. A hipótese que serve de guia para essa dissertação é a de que como o
procedimento dogmático e o método cético são necessários para o conhecimento,
eles não podem ser superados, mas devem ganhar uma nova versão crítica. Pode-
se afirmar que a coexistência em certa medida de ceticismo e dogmatismo em um
único sistema filosófico caracteriza o pensamento moderno. Essa síntese, desse
modo, pode ser considerada uma marca da modernidade e, para Kant, contrapor o
método cético ao procedimento dogmático é um modo de manter a saúde da razão
e o vigor do pensamento, sendo Kant o primeiro pensador moderno a sustentar e a
elaborar essa síntese como uma tarefa permanente para a filosofia.
Palavras-chave
Ceticismo; Dogmatismo; Autoconhecimento; Filosofia Crítica;
Modernidade; Immanuel Kant.
Abstract
Alexandre Arantes Pereira Skvirsky; Vera Cristina de Andrade Bueno.
Dogmatism and Scepticism in Kant’s critical philosophy, 2008. 211p.
M. Phil. Dissertation – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Kant’s critical philosophy refutes dogmatism and also scepticism taken
exclusively, through the criteria of the self-knowledge of reason. However,
dogmatism cannot be simply surpassed. The conversion from the dogmatic
posture to the critical does not exclude what is necessary in the dogmatic
procedure, for reason as well as for philosophy. The same goes for scepticism.
The hypothesis guiding this work is that the dogmatic procedure and the sceptical
method are both necessary for knowledge; they cannot be surmounted, but must
instead receive a critical version. It is right to say that the synthesis in some
measure of scepticism and dogmatism in a single philosophical system
characterizes modern thought. This synthesis, therefore, can be considered as a
mark of modernity, and, for Kant, to oppose the sceptical method with the
dogmatic procedure is a means of keeping reason healthy, and thought, vigorous,
being Kant the first thinker in modernity to hold and elaborate this synthesis as a
permanent task for philosophy.
Keywords
Scepticism; Dogmatism; Self-knowledge; Critical Philosophy; Modernity;
Immanuel Kant.
Sumário
1. Introdução 10
2. Kant e a Modernidade 16
2.1 Kant e a Filosofia Moderna 16
2.2 Bacon e Kant 24
2.3 O Idealismo Transcendental 34
2.4 Metafísica e Modernidade 44
3. Dogmatismo 50
3.1 A distinção entre Dogmatismo e Procedimento Dogmático 50
3.2 A tendência dogmática 57
3.3 Esclarecimento (Aufklärung) 62
3.4 Dogmatismo, Religião e Dialógo 66
3.5 Aparência versus Coisa em si e Ontologia 74
4.Ceticismo 78
4.1 Variedades de Ceticismo 78
4.2 Ceticismo pirrônico 82
4.3 Kant e o Pirronismo 90
4.4 A distinção entre Ceticismo e Método Cético 98
4.5 A Antinomia da Razão Pura 103
4.6 Limites e fronteiras 118
5. Criticismo 126
5.1 A doença da razão 134
5.2 O novo dogmatismo de Kant 139
5.3 Reflexão e Autoconhecimento 149
5.4 A História da Razão Pura 157
5.5 Filosofia e Filosofar 165
5.6 Sobre a Morte 169
6. Conclusão 173
7. Referências Bibliográficas 182
8. Anexo I 190
9. Anexo II – Poema Biografia 210
A verdade está entre o dogmatismo e o ceticismo.
Pascal, Pensées
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do
trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.
Alexandre Arantes Pereira Skvirsky
Graduou-se em Filosofia na UERJ (2004) com a monografia
“A Antropologia na Filosofia Prática de Kant”, sob orientação
do Professor Luiz Bernardo Leite Araújo. Suas áreas de
interesse são: Filosofia Moderna, a tradição cética, História da
Filosofia e Antropologia Filosófica. E-mail:
Ficha Catalográfica
Skvirsky, Alexandre Arantes Pereira
Dogmatismo e Ceticismo na filosofia crítica de Kant
/ Alexandre A. P. Skvirsky ; orientadora: Vera C. de
Andrade Bueno – Rio de Janeiro : PUC,
Departamento de Filosofia, 2008.
211 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Filosofia.
Inclui referências bibliográficas.
1. Filosofia Teses. 2. Kant. 3. Filosofia Crítica.
4. Dogmatismo. 5. Ceticismo. 6. Autoconhecimento.
7. Filosofia Moderna. I. Bueno, Vera C. de A. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Filosofia. III. Título.
1
Introdução
Esta dissertação se concentra no marco do pensamento de Kant, a obra
Crítica da Razão Pura, embora recorra a trabalhos pré-críticos, à correspondência
de Kant, bem como a textos de História e sobre o Esclarecimento (Aufklärung) até
o Opus Postumum, para traçar e desenvolver a relação de dogmatismo e ceticismo
na filosofia crítica de Kant.
As duas distinções fundamentais para compreender esse trabalho são entre
o dogmatismo e o procedimento dogmático, e entre o ceticismo e o método cético.
Essas distinções têm um significado especial para Kant, pois ele assimila
elementos do dogmatismo e do ceticismo, os quais considera fundamentais para a
filosofia, mas rejeita ambos caso sejam tomados como uma metodologia
exclusiva ou universal.
Portanto, deve-se evitar confundir, ao se chamar o ceticismo de método,
que se refere ao ceticismo como método exclusivo para o conhecimento, com o
método cético do pirronismo, que se refere sobretudo à habilidade da isosthenia,
que consiste contrapor argumentos opostos em equilíbrio. Do mesmo modo, não
se deve confundir o procedimento dogmático, que para Kant está conectado com
o próprio procedimento discursivo da filosofia (distinto do modelo matemático),
com o dogmatismo, que, por exemplo, está na base do realismo transcendental.
Para Kant, o único método filosófico legítimo, exclusivo e universal, é o
criticismo. O criticismo refuta o dogmatismo e ceticismo tomados como métodos
irrestritos, generalizados para a filosofia, não o procedimento dogmático
discursivo e o método cético pirrônico (a suspensão de argumentos opostos em
equilíbrio), que Kant assimila como partes integrantes e vivas do sistema crítico,
na correlação entre método e a natureza da razão.
Em ambos os casos, procedimento dogmático e método cético dizem
respeito a uma parcela de verdade, proveitosa para o conhecimento, contida no
dogmatismo e no ceticismo, mas que não se equivalem a esses métodos tomados
exclusivamente, ao menos para Kant, que os assimila na filosofia crítica.
Sobretudo, a habilidade da isosthenia e proceder dogmaticamente são para Kant
exercícios impostos pela natureza da própria razão, que estão relacionados à
extensão possível e aos limites do conhecimento humano.
Desse modo, pode-se afirmar que a filosofia crítica de Kant apóia-se na
interdependência de “método” e “elementos”
1
. Para efetivar a autocrítica da
razão, é preciso fazer uso do método cético e do procedimento dogmático e, uma
vez em posse do método crítico, entende-se precisamente por quê: esses métodos
se justificam pela natureza da própria razão e suas dimensões. Assim,
metodologia e teoria da razão se unem; justificam-se e apóiam-se mutuamente.
Nesse sentido, a doutrina do método não é um apêndice à doutrina do Idealismo
Transcendental, muito menos à autocrítica da razão, nem mesmo é uma
conseqüência derivada dessas, pelo contrário, proceder dogmaticamente e
contrapor argumentos opostos em equilíbrio, ambos com uma finalidade crítica, é
um movimento dinâmico que é interno e pertence à natureza da filosofia crítica de
Kant.
De forma semelhante, Adorno aponta em Aristóteles a união entre
considerações epistemológicas e metodologia, entre a Metafísica e o Organon, a
qual permitiria falar de um sistema aristotélico
2
. Em Kant, a conexão entre as
considerações sobre a natureza do modo de conhecer e o método crítico se dá na
forma de uma reforma do dogmatismo e do ceticismo, bem como do racionalismo
e do empirismo, uma vez submetidos à autocrítica da razão, que, assim, deve ser
entendida como uma metodologia e como uma propedêutica ao conhecimento
filosófico, sendo essa conexão um problema transcendental. Eis um resumo de
todas as seções da dissertação:
2.1 No primeiro capítulo, tentamos situar brevemente a filosofia de Kant
com Kant e a Filosofia Moderna, assinalando a influencia da retomada do
ceticismo antigo no renascimento para a filosofia moderna como um todo e para o
pensamento de Kant em particular.
2.2. Em Bacon e Kant, tentamos pensar a influência de Bacon em Kant, e a
proximidade de seus projetos filosóficos. Ambos almejam assentar o
conhecimento humano em seu domínio legítimo e evitar o “erro ilimitado”. Como
figura na antitética das Antinomias de Kant, Bacon contrapõe os empiristas aos
1
A maior divisão da Crítica da Razão Pura é entre a “Doutrina transcendental dos Elementos”, e a
“Doutrina Transcendental do Método”, muito díspares em extensão.
2
ADORNO, T. W. Metaphysics. Stanford: Stanford University Press, 2001, p. 25.
filósofos dogmáticos, sendo necessário um método para resolver o impasse entre
eles - o método experimental para Bacon, e o método crítico para Kant. Dessa
maneira, Bacon e Kant concentram-se no caminho a ser perseguido, a partir dos
obstáculos impostos pelos homens enquanto homens, não da refutação de
sistemas de filosofia em particular.
2.3. Fundamental para essa dissertação é a exposição sucinta da doutrina do
Idealismo Transcendental, e como essa se situa, de uma perspectiva do homem,
entre o dogmatismo e o ceticismo, bem como prepara o terreno para a autocrítica
da razão.
2.4. Em Metafísica e Modernidade, buscamos compreender a “revolução
copernicana na filosofia” como, sobretudo, uma revolução na metafísica, de modo
de Kant confere a essa disciplina um “acabamento final” às suas características
propriamente crítica e moderna.
3.1. No segundo capítulo, iniciamos com a Distinção entre o dogmatismo e
o procedimento dogmático. Kant desde cedo rejeita o fato de se imitar o modelo
da matemática como método filosófico, entretanto, sustenta um procedimento
sistemático, não intuitivo, mas discursivo, no qual não há dogmata, mas sim
acroamata.
3.2. Em seqüência, analisamos a indelével Tendência dogmática, que é a
mais forte do homem no tocante ao conhecimento, a tendência primeira e
duradoura à qual o entendimento humano está inclinado, em que pode manter-se à
sombra de seus medos e de sua preguiça.
3.3. Contra essa tendência, deve lutar o Esclarecimento (Aufklärung),
entendido não somente como a saída da menoridade, a emancipação de uma
relação de tutela, mas ainda como, a partir da autonomia de pensar por si mesmo,
a coragem de pensar a si mesmo, portanto, como a saída para a negatividade de
refletir sobre as contradições e riscos em que a autonomia pode implicar.
3.4. Em Dogmatismo, Religião e Comunicação, vimos como o diálogo é
fundamental para manter o pensamento vigoroso. Não somente isso, a liberdade
de pensar tem como responsabilidade tornar os pensamentos passiveis de serem
comunicados, condição sem qual, não há na realidade a busca do conhecimento.
3.5. Os dogmáticos não desejam afirmar como as coisas aparecem ou
parecem ser, mas sim como são em si ou em sua existência real. Esse é o tema de
Aparência versus Coisa em si e Ontologia. Analisamos como Kant transforma a
ontologia e quais as suas possibilidades então.
4.1. O terceiro capítulo inicia com a distinção entre três Variedades de
Ceticismo, que desqualifica o ceticismo “véu das percepções”, que surge na época
moderna com influência, sobretudo, cartesiana, como dogmatismo negativo e
problema irrelevante para a metafísica – de fato, um pseudoproblema. O
ceticismo de influência de Hume, como recebe formulações e soluções kantianas,
não é tratado em particular.
4.2. Em seguida, há uma breve exposição do Ceticismo pirrônico, que não é
uma doutrina da dúvida, mas com a certeza do erro dos dogmáticos é levado à
suspensão do juízo. O que melhor o caracteriza é a descrença e a circunspecção,
bem como uma atitude de abertura na busca à verdade.
4.3. Em Kant e o pirronismo, tratamos do contato de Kant com o pirronismo
na década de 1760, como marcou o seu pensamento tanto em sua necessidade
para a metafísica, quanto nas suas limitações para oferecer repouso definitivo à
razão humana.
4.4. A relação madura de Kant com o pirronismo se evidencia com A
distinção entre o ceticismo e o método cético, pela qual o filósofo determina
especificamente como e em qual domínio as habilidades pirrônicas da isosthenia e
epoché são necessárias.
4.5. O “método pirrônico” tem lugar propriamente na Antinomia da Razão
Pura, conflitos cosmológicos da razão consigo própria, os quais precisam ser,
primeiro, analisados ceticamente, para que possam, então, receber uma solução
crítica.
4.6. Em Limites e Fronteiras, constata-se que os primeiros são contingentes,
até mesmo arbitrários, ao passo que as últimas denotam uma ignorância a priori,
atestada reflexivamente no próprio modo de conhecer, sendo, assim, um
conhecimento imanente do que não podemos conhecer a partir do caráter
particular do nosso próprio modo de conhecer.
5. No último capítulo, iniciamos com a discussão do principio interpretativo
de Kant, pelo qual julga ser capaz de retirar o que há de melhor de diversos
pensadores, e não rechaça nenhum por ser cético ou dogmático e, desse modo,
defende o ecletismo.
5.1. Consideramos ser a luta contra a Doença da razão, a confusão entre
fenômeno e coisa em si, a essência da filosofia crítica de Kant. Como essa
confusão e o próprio dogmatismo são as tendências mais fortes do conhecimento,
é preciso “sair do nosso circulo”, o que nos é mais próximo e cômodo, e nos
“relacionar com outros mundos”, para adotar novas e até mesmo contrárias
perspectivas de modo a alargar nosso pensamento.
5.2. Em O novo dogmatismo de Kant, tratamos da síntese do procedimento
dogmático e do método cético na filosofia crítica. Pode-se afirmar que o filósofo
de Königsberg entende que essa união metodológica deve-se à natureza da própria
razão humana, que não tem uma única tendência ou direção, mas é ambivalente e
assim requer mais de uma categoria para abarcá-la, tanto para conhecer a sua
nomotética, quanto para impor a ela suas fronteiras. No entanto, esse novo
dogmatismo, reflexivo, subjetivo e imanente, peca ao adotar o dogmatismo
negativo com essas mesmas qualidades, e afirmar que espaço e tempo são nada
mais que formas puras da sensibilidade.
5.3. Na seção sobre Reflexão e Autoconhecimento, analisamos a sua relação
íntima, e como, sobretudo a partir do século XIX, a reflexão passa a ser a
operação capaz não somente de desvelar o conhecimento de si, como o próprio
mundo, assinalando o estado de insulamento do homem da natureza. Ao passo
que, para Kant, o autoconhecimento é uma propedêutica para a investigação da
natureza, e esta capaz de ampliá-lo.
5.4. Na História da Razão Pura, investimos em como, para Kant, a história
da filosofia, uma progressão empírica de sistemas de pensamento, expressam uma
necessidade da própria razão. Seria possível escrever não uma história empírica
da filosofia, mas uma história filosófica do filosofar, o qual traz consigo a
imperiosa transição metodológica de dogmatismo, ceticismo e criticismo para o
autoconhecimento da razão.
5.5. Em Filosofia e Filosofar, consideramos essa distinção nos termos da
sistematicidade própria à exposição da filosofia, e da liberdade do pensamento
característico do filosofar, que não pode estar comprometido, a priori, com sua
exposição, com seus resultados, com sua finalidade. Desse modo, a atividade
filosófica, como um todo, requer um trabalho dialético: unir em um sistema
filosófico a expressão do filosofar. A filosofia, como exposição, tende ao
dogmatismo, a sustentar teses positivas; a crítica, portanto, deve conciliá-la ao
empreendimento propriamente cético, de busca e investigação, do filosofar, e,
assim, compor e apresentar um sistema o melhor possível completo, acabado,
porém aberto a contribuições, que propicie a contínua investigação e busca da
verdade.
5.6. Pode-se pensar que a morte é um símbolo pelo qual o dogmatismo, o
ceticismo e o criticismo tornam claro o seu caráter específico. Esse é o tema que
se propõe a investigar em Sobre a Morte. Pensar na morte é o liame por
excelência entre o natural e o hiperfísico, sendo um tema que impõe às diferentes
formas de filosofia expressar as conseqüências reais que as suas idéias têm sobre
a vida, i.e., não permite que o abstrato se mantenha simplesmente abstrato, nem
que o pensamento pautado pelas aparências, com o apoio e a segurança do
autoevidente, não deixe transparecer suas concepções genuinamente filosóficas.
2
Kant e a Modernidade
2.1
Kant e a Filosofia Moderna
É possível afirmar que a filosofia moderna é um momento na história do
pensamento ocidental marcado decisivamente pelo imperativo do
autoconhecimento. No entanto, não é exagerado pensar que o seu
desenvolvimento ainda está em curso. Que é o homem? Que é a metafísica?
Nestas perguntas a filosofia moderna alcança a sua expressão máxima e
permanece atual como ponto de partida para a reflexão filosófica, pois em grande
parte ainda não nos desprendemos delas. Como se interroga Michel Foucault; não
poderíamos encarar a modernidade mais como uma atitude do que somente como
um período da história?
3
A atualidade da filosofia moderna - que nos é transmitida em especial por
Kant - é a necessidade de investigar o homem conjuntamente à sua investigação
do real. A metafísica e o homem têm uma relação necessária como a de sujeito e
objeto; o modo de conhecer humano determina necessariamente o modo como
busca conhecer as coisas em si mesmas.
Na modernidade, o autoconhecimento é um projeto que se impõe
primeiramente devido aos conflitos culturais, políticos, religiosos, e científicos
que assolam a época, sobretudo na primeira metade do século XVI, ou seja, por
uma necessidade prática; então, “conhecer o homem” passa a ser uma exigência
devido à visão de mundo que é elaborada na filosofia, exigência que é mais bem
expressa e conectada à visão de mundo da filosofia de Kant (mas pode-se
mencionar ainda Hume e Schopenhauer).
A exigência de autoconhecimento da época moderna se dirige à atualidade,
ao homem, à razão, até chegar à própria filosofia. A reflexão sobre a atualidade é
o seu panorama, pensar a sua individualidade, autonomia e determinação. Na
3
FOUCAULT, M. “O que são as Luzes?” Em: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, vol. II. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 341.
modernidade o homem por trás da humanidade deseja transparecer, o criador, o
pensador, o gênio detrás das ciências, paradigmas, e estilos, que são inventados e
desmoronam - é chamado à publicação, para legislar sobre si mesmo, versar sobre
a verdade de si e fundar uma objetividade subjetivamente, em um modelo
antropocêntrico de conhecimento. KANT afirma:
A filosofia transcendental é a capacidade do sujeito auto-determinado de
constituir a si mesmo como um dado na intuição, através do complexo sistemático
das idéias que, a priori, tornam a completa determinação do sujeito como objeto (a
sua existência) em um problema. Quer dizer, fazer a si mesmo.
4
Essa afirmação de Kant parece primeiramente uma antropologia, mas então,
pode-se pensar que é ainda política, social e, sobretudo, burguesa. A idéia de uma
filosofia crítica vem representar o espírito da época, para o qual o mundo deve ser
reinventado, e a civilização deve ser reconstituída de acordo com o ideal da
liberdade. Esta liberdade não diz respeito somente à liberdade do individuo, mas
toda a civilização deve gozar de autonomia; fazer a si mesma a partir de si, e
deixar de lado modelos antigos, comprovadamente ultrapassados e equivocados,
em conflito constatado com a sua nova realidade. VAZ escreve:
O social mostra-se como o lugar de realização efetiva do postulado
fundamental da autonomia, sobre o qual repousa a concepção moderna do indivíduo.
5
Desse modo, o conhecimento de si não está desvinculado de um ideal
prático. O homem, ao conhecer a si mesmo, seria capaz não só de fundar um
conhecimento confiável, mas, a partir daí, estabelecer leis, costumes, tradições
definitivas, que seriam formas necessárias e universais de organização do mundo,
sobretudo política. A Revolução Francesa expressa a consciência moderna com o
ideal de uma nova era, na qual, “guiado por princípios racionais, o homem iria dar
forma ao seu próprio destino”.
6
4
KANT, I. Opus postumum. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, p. 254. Ak 21:94.
Nota-se como Schelling identifica o ideal da modernidade com o criticismo, mesmo não sendo
essa a sua intenção com essa passagem: “Minha destinação no criticismo é precisamente – esforço
pela autonomia inalterável, pela liberdade incondicionada, pela atividade ilimitada. Sê! – esta é a
suprema exigência do criticismo.” SCHELLING, F. W. J. Cartas sobre o Dogmatismo e o
Criticismo. Em: Obras Escolhidas [Col. Os Pensadores]. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 31.
5
VAZ, H. C. de L. Raízes da Modernidade. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p.16.
6
JASPERS, K. Man in the Modern Age. New York: Doubleday Anchor Books, 1957, p. 6.
Ao ser retomado no renascimento, o ceticismo antigo ganha cada vez mais
adeptos, e impõe-se como um desafio à filosofia a ser levado a sério para
determinar a validade do conhecimento. O ceticismo marca decisivamente a
modernidade, sobretudo, por ser uma teoria representativa dos conflitos pelos
quais a época passava. O século XVI vive uma época de transição política, do
regime feudal para o capitalista, que gera uma confusão cultural. O período
também passa por conflitos religiosos e, no século XVII, os conflitos científicos
que se intensificam agitam a confusão cultural da época moderna. Entretanto,
justamente devido a esses conflitos, que lhe despertam o interesse no ceticismo,
pode-se afirmar que a modernidade está direcionada, desde o seu início, para o
dogmatismo, como uma tendência inevitável.
Na modernidade, o projeto de assentar o dogmatismo em novos
fundamentos configura-se como uma necessidade, para legitimar e assegurar o
conhecimento objetivo, e a partir dele estabelecer uma ordem social. Esse projeto
de um novo dogmatismo é, assim, tanto científico quanto político. A retomada do
ceticismo antigo na filosofia moderna tem o resultado ambivalente de, a um passo,
conscientizar para a necessidade de criticar o dogmatismo irrestrito, mas, ainda,
apontar para a necessidade do procedimento dogmático, i.é., de afirmar e sustentar
teorias positivas.
No século XVI, pensadores como Erasmo e Montaigne raciocinam de
forma cética, usando argumentos céticos para compreender a sua atualidade,
sendo a isosthenia representativa da diaphonia, do conflito próprio da sua época.
Há então uma valorização da experiência, em sua multiplicidade, e a busca de
uma experiência de si mesmo, a qual tornasse compreensíveis as contradições
práticas da sua existência e possibilitasse lidar com elas.
Já no século XVII o ceticismo é entendido, sob influência de Descartes,
como apenas uma etapa instrumental, um método para obter a certeza. A partir
daí, o ceticismo é identificado com a dúvida, usado em vista não de uma vida
prática, mas sim de uma teoria do conhecimento voltada para a subjetividade.
7
O
homem passa a desejar desvelar a si mesmo desde dentro, conhecer-se de modo
7
Segundo Habermas, a teoria do conhecimento é “o tema por excelência da filosofia moderna”,
em busca de um conhecimento que seja “digno de crédito”. HABERMAS, J. Conhecimento e
Interesse. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982 p. 25. No entanto, falta a esse termo precisão,
na medida em que na filosofia moderna a “teoria do conhecimento” tem o caráter específico de ser
centrada na subjetividade, de ser uma teoria do conhecimento fundada no autoconhecimento.
“puro”, direto, definitivo, como antes desejava conhecer a Deus e o mundo. Há
uma busca pelo fundamento da racionalidade, a sua lei essencial, pela qual fosse
possível organizar a sua experiência do mundo, com efeito, com um ideal de
objetividade mais rigoroso e digno de confiança.
O fideísmo na filosofia moderna é comum a partir do renascimento, sendo o
ceticismo antigo frequentemente muito mal conhecido, porém utilizado como
argumento para sustentar a fé cristã
8
. O homem do mundo redescoberto do século
XVI depara-se em assombro com a complexidade do seu ser e da sua época em
contraste com a incontornável simplicidade das capacidades racionais. Em
Montaigne, a impuissance da razão diz respeito mais à sua incapacidade de
intervir na realidade, do que propriamente em conhecer a si mesma.
Para COMTE-SPONVILLE, é com Montaigne, mas não com Descartes que
começa a filosofia moderna
9
, pois começa com a “dúvida, o naturalismo, o
empirismo”. Começa ao tomar o rumo do próprio íntimo (Montaigne), da natureza
(G. Bruno), e da experiência (Bacon).
10
Entretanto, a dúvida não figura em
Montaigne, mas passa a caracterizar o ceticismo somente a partir de Descartes. De
acordo com GIDE,
(...) “Eu sou a verdade”. Montaigne estima (é o que isso quer dizer)
nada lhe ser possível conhecer senão ele próprio. E é o que o induz a falar tanto de
si; pois o conhecimento próprio lhe parece mais importante do que qualquer outro.
11
O pensador moderno sente confiança ao falar por si mesmo e se sente
seguro por falar de si mesmo. Montaigne em Do Autor ao Leitor escreve que se
pudesse se pintaria nu e por inteiro, e em seus ensaios não raro descreve a sua
aparência física. Ao exigir o conhecimento de si do homem, da razão, da filosofia,
o espírito da modernidade traz consigo a valorização o indivíduo. A filosofia
moderna começa com a busca do autoconhecimento prático do indivíduo, mas, a
partir do século XVII, se volta para a especulação sobre a “subjetividade”,
8
A esse respeito, cf. POPKIN, R. História do Ceticismo, de Erasmo a Spinoza. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 2000.
9
Por tratar das coisas de Deus a partir das condições do conhecimento humano em Docta
Ignorantia, Cassirer aponta Nicolau de Cusa como o primeiro pensador moderno, em virtude da
sua “atitude diante do problema do conhecimento”. CASSIRER, E. Indivíduo e Cosmos na
Filosofia do Renascimento. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001, p.18.
10
COMTE-SPONVILLE, A. A Filosofia. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 48.
11
GIDE, A. O Pensamento Vivo de Montaigne. São Paulo: Livraria Martins Editora S. A., 1953,
p. 11.
entendida não como o modo do indivíduo se conduzir na prática, mas sim como o
substrato necessário da racionalidade. Desse modo, adota um novo ideal
dogmático, que é de si para si – no qual a razão seria o seu próprio mestre, para
conhecer a si própria, e suas regras se revelassem desde dentro.
Ainda que a religião e questões teológicas possam desempenhar um papel
importante no pensamento moderno, o conhecimento de si divide o espaço na
racionalidade com as questões metafísicas. Se até o século XVIII a religião
continua sendo um refúgio para a impotência da razão, o “século da filosofia”, a
época da luz natural da “Idade das Luzes” dos Enciclopedistas e da Aufklärung na
atual Alemanha, será mais radical em suas exigências filosóficas. De acordo com
CHÂTELET,
O século XVIII é o século dos filósofos que se opõem não só aos teólogos,
mas também aos metafísicos, aos que continuam, como os sucessores de Descartes, a
extrair seus conceitos do pensamento teológico.
12
O imperativo socrático, “conhece-te a ti mesmo” é radicalizado no século
XVIII. Não só é a luz natural que deve guiar as investigações racionais, como é o
modo unicamente legítimo de buscar a verdade. O conhecimento deve pautar-se
necessariamente pelo autoconhecimento. Outro dito atribuído ao personagem
Sócrates, “só sei que nada sei”, só pode ser confirmado ou refutado com a busca
do conhecimento de si, e assim, caracteriza uma ignorância científica.
Ao investigar as coisas do mundo, o homem deve passar a questionar a si
próprio, como o ponto de partida necessário das suas investigações. A busca pelo
conhecimento objetivo remonta às fontes da objetividade, i.é., a partir da filosofia
moderna, ao sujeito. No pensamento moderno, o ideal de conhecimento deixa de
ser simplesmente objetivo, e passa a ser uma busca no sujeito das fontes da
objetividade. Na filosofia de Kant, a metafísica dogmática - que busca conhecer
Deus, o mundo e a alma objetivamente - dá lugar a uma “metafísica da
metafísica”
13
, na qual estes objetos suprasensíveis, independentemente da sua
realidade objetiva, são em primeiro lugar pensados como idéias da razão, válidas
apenas subjetivamente. KANT escreve:
12
CHÂTELET, F. Uma História da Razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 88.
13
KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 181. Carta de
Kant a Marcus Herz, de 11 de maio de 1781. Ak 10:269.
A crítica está para a habitual metafísica de escola justamente como a
química está para a alquimia, ou como a astronomia está para a astrologia
divinatória.
14
Pode-se pensar que a filosofia moderna se caracteriza pela revolução, mais
bem definida e expressa com mais vigor pela filosofia kantiana (mas já iniciada
com Locke e Hume), que consiste na descoberta de um novo objeto do discurso
que é o entendimento humano. KANT escreve: “O método crítico não se aplica ao
conhecimento mesmo ou ao objeto, mas sim ao entendimento. Portanto não é
objetivo, e sim subjetivo”
15
. Usar o entendimento para além da natureza, sem uma
critica das suas capacidades, passa a ser uma falácia, e a metafísica transcendente
ou dogmática, por conseguinte, uma pseudociência. Para Locke, o entendimento
seria como o olho humano, que enquanto nos faz ver e perceber todas as demais
coisas, não percebe a si mesmo, e dessa forma requer engenho e sofrimento para
tomar-se distância e fazer-se seu próprio objeto.
16
Kant retoma a investigação subjetiva de Descartes, entretanto, defende uma
completa secularização da filosofia. O método kantiano rejeita toda teologia e
todo acesso à verdade ou às coisas que não seja pautado pelas capacidades
naturais do homem, i.e., que não seja via (a sua nova doutrina da) sensibilidade,
em rejeição de uma intuição intelectual. O método crítico apóia-se tão somente na
auto-investigação, ao passo que para DESCARTES,
O método todo consiste na ordem e na organização dos objetos sobre os quais
se deve fazer incidir a penetração da inteligência para descobrir alguma verdade.
17
Já para KANT, “O método é a unidade de um todo do conhecimento de
acordo com princípios.”,
18
e “A doutrina do método contém os preceitos para a
possibilidade de um sistema do conhecimento do entendimento e da razão.”
19
Nas
definições de Kant, percebe-se de imediato a influência da “revolução copernicana
14
KANT, I. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura. Lisboa: Edições 70, 1998, p. 164. A 190.
15
KANT, I. Lectures on Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 285. Ak
29:939[1782-3].
16
LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding. The Great Books Vol.
35.Chicago: The University of Chicago, 1952, p. 93.
17
DESCARTES,R. Regras para a Orientação do Espírito. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2007, p. 29 (Regra V).
18
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 416 (The
Hechsel Logic).
19
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 511: Dohna-
Wundlacken Logic.
na filosofia” na noção de método. Esse deve ser composto de acordo com a
investigação do modo de conhecer próprio do homem, e não em vista ou a partir
dos objetos a serem conhecidos, como em Descartes.
Adotar o ponto de vista do homem significa não somente abrir mão do
recurso ao divino, mas, sobretudo, não partir do conhecimento das coisas mesmas,
e sim do autoconhecimento. O raciocínio de Descartes, em busca do cogito, o
substrato necessário do pensamento, está desconectado da particularidade do
modo de conhecer humano. Desse modo, a filosofia cartesiana permanece
dogmática. Em sua cegueira direcionada para o dogmatismo, Descartes faz uso de
argumentos céticos somente como uma etapa para fortalecer o seu dogmatismo
metafísico e, assim, não nota a tendência própria ao ceticismo para o
questionamento das capacidades da razão.
Em Kant, o método cético inclui-se à investigação e autocrítica da razão,
sendo assimilado como elemento vivo, mas não somente como uma etapa
passageira da sua teoria. De acordo com KANT:
O verdadeiro ceticismo, em todos os casos, é algo de grande utilidade, e como
tal não é nada senão a exata, cuidadosa investigação de todos os dogmata que são
asseverados como apodícticos; os quais, na medida em realmente são e resistem ao
teste, brilham e atingem o olho em todo o seu valor, com toda sua força, mas somente
após esse teste.
20
Para Kant, o ceticismo deve ser usado como um meio de analisar, refutar e
diluir as pretensões dogmáticas e, assim, é um recurso vital para o conhecimento
de si. O ceticismo, para Kant, ao mesmo tempo representa o cume da crise do
autoconhecimento na história da razão, mas aponta para a importância do homem
conhecer a si mesmo, sendo um índice de maturidade da razão. Kant entende que
a história da filosofia, que se inicia com o dogmatismo, passa pelo ceticismo até
terminar com a crítica, caminha na direção do autoconhecimento. Esse
desenvolvimento não é nem somente histórico nem linear, mas sim dinâmico e
sempre atual; todas as suas “etapas” representam parcelas de verdade da razão em
sua atualidade, no presente, sendo, assim, etapas definitivas, que não podem nem
irão se alterar posteriormente na humanidade.
Do autoconhecimento pode-se reconhecer o dogmatismo e o ceticismo, em
retrospecto, como as suas partes integrantes ou como as etapas necessárias da
20
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 166-67: The
Blomberg Logic, 210.
filosofia. Inversamente, pode-se afirmar que o autoconhecimento não é realizável
sem uma compreensão da conexão crítica de dogmatismo e ceticismo, pois só é
possível progredir na tarefa de conhecer a si mesmo na medida em que se
reconhece o que podemos e não podemos conhecer.
Um traço particular da filosofia de Kant é que, se como é comum aos
pensadores do século XVIII pensa a si mesmo e à sua atualidade, a época
moderna, em comparação ao todo da história; ao contrário de Hegel, por exemplo,
Kant não entende o atual como passagem para o futuro ou abertura ao novo, mas
acredita ter “cristalizado” o eterno e imutável da modernidade como um
acabamento da história da razão. Isso se mostra nas relações de Kant com o
ceticismo, com o dogmatismo e com o dogmatismo negativo, que são como
legislações e métodos complementares e definitivos para a filosofia, a modo de
“extrair o eterno do transitório”, como Baudelaire caracteriza a modernidade
21
.
Portanto, pode-se considerar que a modernidade está intrinsecamente ligada
tanto ao ceticismo, representado pelos conflitos da sua própria época, quanto pelo
dogmatismo, o fim projetado para dissolver esses conflitos. Isso torna o “espírito”
da modernidade independente nem de ceticismo nem de dogmatismo, ao
contrário, a sua história mostra uma busca de diversos modos de articulá-los que,
em Kant, com a conciliação crítica de método cético e procedimento dogmático,
ao menos aparentemente, recebe o seu tratamento final.
2.2
21
BAUDELAIRE, C. “O Pintor da Vida Moderna”. Em: BAUDELAIRE, C. A Invenção da
Modernidade. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006, p. 289.
Bacon e Kant
Como Kant elogia Bacon de Verulâmio (1561-1626) na Crítica da Razão
Pura, e julga compartilharem de um ideal de filosofia e de método filosófico, por
isso seria interessante mostrar brevemente aqui o pensamento deste autor. Além
disso, Bacon é considerado como o último dos antigos e o primeiro dos modernos.
Este excerto do pensador inglês consta em epígrafe como o mote da segunda
edição, de 1787, da Crítica da Razão Pura:
Bacon de Verulâmio
A Grande Instauração. Prefácio
Quanto a nossa própria pessoa não diremos nada. Mas quanto ao assunto que
temos em vista, pedimos que os homens não o pensem como uma opinião, mas
como trabalho; e o considerem erigido não para uma seita nossa, ou para o nosso
bel prazer, mas como a fundamentação da utilidade e dignidade humanas.
Igualmente, cada indivíduo, então, pode refletir sobre ele por si mesmo... pela sua
própria posição... pelo interesse comum. Além do mais, cada um pode bem esperar
da nossa instauração que não assevera nada infinito, e nada para além do que é
mortal; pois na verdade prescreve tão-somente o fim de erros infinitos, e esse é um
fim legítimo.
22
Segundo GUYER, “Tanto as asserções de que o método proporciona
evitar o erro quanto que o seu objetivo último é não somente a utilidade, mas a
dignidade da humanidade são obviamente centrais à concepção de Kant da sua
própria empresa filosófica.”
23
David Hume (1711-1776) considera Bacon o pai da
física experimental
24
, tendo Newton (1642-1727) e Boyle (1627-1691) seguido o
seu método experimental. Hume acreditava que a sua própria ciência da natureza
humana deveria trilhar esse caminho, guiando-se pela “observação e
experimentação”
25
, e que assim contribuiria com um rumo diferente às
“especulações dos filósofos”
26
. Já CHÂTELET considera que é Kant quem
“funda o pensamento experimental e, consequentemente, o racionalismo crítico”:
22
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 91, B II.
23
GUYER, P. Em: KANT, I. Notes and Reflections. Cambridge: Cambridge University Press,
2005, p. 580n.
24
HUME, D. A Treatise of Human Nature. Norton / Norton (Eds.). Oxford: Oxford University
Press, 2000, p. 407.
25
HUME, D. A Treatise of Human Nature. Norton / Norton (Eds.). Oxford: Oxford University
Press, 2000, p. 7.
26
HUME, D. A Treatise of Human Nature. Norton / Norton (Eds.). Oxford: Oxford University
Press, 2000, p. 177.
Se resta alguma coisa profundamente viva na teoria kantiana do
conhecimento, é a afirmação de que só é conhecimento verdadeiro o conhecimento
que podemos verificar.
27
Francis Bacon, contemporâneo de Galileu (1564-1642), é o filósofo que
busca assentar o dogmatismo no domínio da experiência. Respalda o caráter
sistemático e científico do procedimento dogmático. Ao orientá-lo para a
observação e experimentação, seria possível aprender o mecanismo dos
fenômenos, e reproduzi-lo para fins próprios. Ao situar o procedimento dogmático
na investigação da natureza, no plano da imanência, confere à ciência (filosofia)
uma via segura e inspira confiabilidade no conhecimento. Para KANT,
Uma nova luz liberou-se na primeira pessoa que demonstrou o triângulo
isósceles (fosse ele Tales ou tivesse outro nome). Pois descobriu que o que tinha
que fazer não era seguir passo a passo o que via nessa figura, nem mesmo no seu
mero conceito, e ler, de certa maneira, das propriedades da figura, mas antes que
tinha que produzir as últimas a partir do que ele mesmo pensava do objeto e
apresentava (através da construção) de acordo com conceitos a priori, e que de
modo a conhecer algo seguramente a priori ele deveria atribuir nada à coisa exceto
o que se segue necessariamente daquilo que ele mesmo nela colocou de acordo com
o seu conceito.
Levou à ciência natural ainda muito mais tempo para encontrar a estrada larga
da ciência, pois é apenas há mais ou menos um século e meio que a sugestão do
arguto Bacon de Verulâmio em parte ocasionou essa descoberta, e em parte a
estimulou ainda mais, desde que já se estava na sua trilha – descoberta a qual,
portanto, pode também ser explicada por uma revolução súbita operada na maneira
de pensar.
28
Bacon não elabora a sua filosofia negativamente, em resposta ao ceticismo
ou ao dogmatismo, embora quisesse livrar a filosofia “das corrupções da lógica
aristotélica e da teologia natural platônica”
29
e formular um Novum Organum, em
resposta ao Organon aristotélico, que é a ciência da lógica, e seu pensamento
tivesse sido influenciado pelo ceticismo, sobretudo, como se pode verificar em
sua teoria dos “ídolos”. A sua filosofia – que pode ser vista como “uma revolução
súbita operada na maneira de pensar” - se sustenta a partir de uma confiança no
conhecimento, e propõe o método experimental para a interpretação da natureza,
fazendo uso da indução, em oposição à dedução aristotélica, que é basicamente
uma demonstração lógica, formal que se faz valer apenas da razão. Como assinala
27
CHÂTELET, F. Uma História da Razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 98.
28
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 108. B
XII.
29
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia (4 tomos). São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 250, tomo I
– verbete “Bacon”. (Novum Organum, §63)
BICCA, em proximidade com Bacon, “Kant leva em conta os ataques empiristas à
concepção clássica, escolástica, de fazer-se ciência a partir da pura razão.”
30
Segundo o filósofo inglês, “Aqueles que trataram das ciências dividem-se
em dois grupos: os empíricos e os dogmáticos (...)”
31
. A oposição entre
filósofos empiristas e dogmáticos figura no tratamento de Kant da antinomia da
razão pura, na qual o dogmático da razão pura sustenta a tese, e o empirista puro a
antítese. Assim como Bacon, Kant julga estarem ambos errados, e ser necessário
aduzir novos argumentos e uma nova maneira de pensar para resolver a
controvérsia da razão pura com ela mesma (para Kant), ou, segundo Bacon, para
estabelecer a filosofia experimental. BACON escreve:
Os homens de experimento são como formigas que somente colhem; os
homens de raciocínio são como aranhas que extraem tudo de sua própria substância;
os verdadeiros filósofos devem ser como as abelhas que colhem materiais, mas os
transformam mediante um poder próprio
32
.
Bacon representa um caminho - um “procedimento metódico” -, no qual
todos os erros e imprecisões do conhecimento da natureza se corrigiriam
organicamente, em um sistema empírico, aberto, de colaboração contínua na
busca da verdade baseada em fatos e experimentos. Pode-se dizer que Kant e
Bacon partilham de uma mesma confiança na filosofia natural. Dessa forma, a
ciência é uma referência importante para ambos os pensadores. A dominação da
natureza, que é expressa em Bacon pela famosa fórmula saber é poder é levada,
no campo teórico, às suas últimas conseqüências na filosofia crítica de Kant, na
qual o entendimento humano é o legislador da natureza. KANT escreve:
Há um dogmatismo necessário, à linha empirista de Bacon, que reside em
toda teoria. No entanto, toda afirmação, seja um dogma ou uma crença, deve ser
passível de experimentação, de ser testada e refutada pela experiência. Nisto
consiste a “nova filosofia” ou a “filosofia experimental” que Bacon projeta. O
dogmatismo metafísico subverte o sentido da teoria, daquilo que se depreende da
observação e passa então à imaginação: as especulações metafísicas não dizem
mais respeito a um fenômeno observado. O ser enquanto ser da ontologia não é
30
BICCA, L. Racionalidade Moderna e Subjetividade. São Paulo: Edições Loyola, 1997, p. 160.
31
BACON, F. Novum Organum, Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952. § 95, p. 126.
32
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia (4 tomos). São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 250, tomo I
– verbete “Bacon” (Novum Organum, aforismo XCV do livro I).
nem animal, mineral ou espiritual. A teologia em nada se ocupa dos eventos no
mundo, nenhum fenômeno pode ser compreendido nele mesmo, sem o recurso ao
sobrenatural. Para Bacon, “O entendimento humano não está menos exposto às
impressões da imaginação que àquelas da noção comum”
33
.
A ciência empirista que Bacon ataca encontra limites em especial ao se
voltar para a antropologia (sem falar na metafísica). Toda investigação meramente
empírica é limitada e parcial para o autoconhecimento. Segundo Andrew
Zimmerman, um empiricismo absoluto seria um modo de conhecimento
impossível e tornaria impossível até mesmo a linguagem.
34
Apenas um punhado
de experimentos e limitadas observações são capazes de reunir uma grande
quantidade de ignorância. Para BACON:
A escola empirista produz dogmas de uma natureza mais monstruosa e
deformada que a escola sofística ou teorética; não sendo fundados na luz das noções
comuns (que apesar de pobres e supersticiosas, são ainda de um modo universais e
de acordo com uma tendência geral), mas na obscuridade confinada de um punhado
de experimentos.
35
Se esta passagem não for um ataque direto a Aristóteles, ao menos um bom
exemplo da síntese e tensão entre empirismo e dogmatismo que Bacon acusa é a
filosofia aristotélica. Se por um lado desenvolve intensamente pesquisas no campo
da biologia, por outro lado, busca ao mesmo
tempo dogmaticamente o conhecimento da alma, e sustenta que uma intuição
racional é a fonte originária do conhecimento científico
36
. Ainda, há para
Aristóteles uma “correspondência entre o pensar lógico e a estrutura ontológica”
37
, a qual seria um princípio fundamental que Bacon não está disposto a assumir.
Assim, a filosofia aristotélica é tão empirista quanto é transcendente, pois a
investigação da natureza sensível não altera o sentido das suas investigações
metafísicas.
33
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 114. Livro I, § 65.
34
ZIMMERMAN, A. Anthropology and Antihumanism in Imperial Germany. Chicago: The
University of Chicago Press, 2001, p. 120.
35
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 114. Livro I, § 64.
36
ARISTÓTELES. Analítica Posterior. Em: ARISTÓTELES. Aristóteles (Tomo I). The Great
Books Vol. 8. Tradução W. D. Ross. Chicago: The University of Chicago, 1952, p. 121.
37
MORA, J. F. Dicionário de Filosofia (4 tomos). São Paulo: Edições Loyola, 2001, Tomo I, p.
182.
Bacon é o último dos antigos porque mantém um ideal dogmático forte, tem
confiança inabalada na razão e no conhecimento humano. Entretanto, critica o
dogmatismo tradicional, meramente teórico, e a metafísica transcendente,
meramente especulativa, apontando para a necessidade da experimentação para o
conhecimento. Nessa medida, é o primeiro dos modernos, pois almeja assentar um
novo campo possível para o dogmatismo, criar uma nova filosofia, que seria
experimental e que desse início a uma ciência em proveito da humanidade.
Para estabelecer um novo fundamento para o conhecimento, um novo ideal
de dogmatismo – do qual Kant compartilha, embora o busque de modo
transcendental, mas não experimental -, Bacon sente a necessidade de
desvencilhar-se da tradição. Contudo, na filosofia moderna deseja-se retirar da
antiguidade uma lição eterna. Os conflitos filosóficos deveriam ser capazes de
instruir a razão em todos os seus erros, e mostrar como é possível evitá-los. Desse
modo, há uma estratégia moderna de “atualizar” a história, como Kant interpreta a
história da filosofia como um desenvolvimento da própria razão (e Hegel
interpretará a História como um todo).
Tanto Bacon quanto Kant acreditam que os conflitos históricos entre
sistemas filosóficos representam uma tarefa atual para o pensamento. Deve-se não
somente interpretá-los, e mostrar o ponto em que os seus protagonistas erraram,
mas se deve lidar com o conflito filosófico no presente para poder evitá-lo na
atualidade. A atitude moderna em relação à história tem em vista a liberdade, a
autonomia própria da sua época, e diz respeito ao questionamento da atualidade, o
modo como é possível realizá-las no presente.
Entretanto, essa “atualização” da história não é de modo nenhum
psicológica ou metafísica. E, certamente, não é um reducionismo, não consiste no
único modo possível de abarcar o homem, mas sim em uma maneira de entendê-
lo. Trata-se de pensar na história como uma atualidade, e os seus conflitos como
forças ativas no presente, que se depreendem, sobretudo, da particularidade da
existência humana. A nova filosofia, para Bacon, e o novo modo de pensar, para
Kant, são entendidas como maneiras de libertar a filosofia da sua eterna luta
contra si própria. Para isso, é preciso emancipar-se da tradição, mas ao mesmo
tempo dela retirar uma lição; a partir dos seus erros, encontrar uma nova forma de
investigar a verdade. De acordo com SNELL: “Já que o espírito se formou na
história, não é possível espírito sem tradição: só na tradição e em confronto com a
tradição pode ele desenvolver-se.”
38
Bacon, entretanto, chega a afirmar que não
retira nada dela, pois sua doutrina inteira se relaciona apenas ao caminho que deve
ser perseguido.
39
O confronto com a tradição deve ter em vista não somente os erros
passados, mas a atualidade das suas forças, e, assim, deve ser um confronto com a
sua atualidade. É a menoridade e a ignorância no presente que atuam como
obstáculos para encaminhar a filosofia para o conhecimento certo e seguro; o
pensamento para a constante atividade e vigor, embora, ao mesmo tempo,
fustigam a busca desse caminho.
O confronto com a tradição, de Bacon e de Kant, os ensina a perceber quais
alternativas não são mais válidas para o pensamento, e a buscar novas soluções.
Para Kant, um novo dogmatismo é necessário surgir e estabelecer-se
definitivamente. A autocrítica da razão, uma metafísica do conhecimento
entendida como antropologia filosófica, consiste em investigar sistematicamente a
natureza do modo de conhecer humano, afirmar as suas capacidades, a sua
extensão e limites a priori. Esse novo campo do conhecimento, que é a verdadeira
e única vocação da metafísica, pode se estabelecer ao se contrapor ao
racionalismo, empirismo, ao dogmatismo, ceticismo e senso comum. Embora,
com a revolução que opera no conhecimento, é capaz de resgatar, em suas
parcelas de verdade, o racionalismo como fundamento transcendental da verdade,
o empirismo como investigação dos fenômenos, bem como o dogmatismo como
procedimento sistemático, e o ceticismo como método de destituir as ilusões da
razão.
A teoria dos “ídolos” de Bacon assinala o que seu método e o do ceticismo
têm em comum inicialmente, apesar de serem opostos em sua conclusão (o que se
pode afirmar sobre os questionamentos metafísicos de Hume e Kant), pois para o
Lorde inglês os céticos “asseveram que nada pode ser conhecido, nós, que senão
uma pequena parte da natureza que pode ser conhecida, pelo método atual, seu
próximo passo, contudo, é destruir a autoridade dos sentidos e do entendimento,
38
SNELL, B. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. São Paulo: Perspectiva,
2005, p. 247.
39
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 113. Livro I, § 61.
enquanto inventamos e os suprimos com assistência”.
40
Como Kant, Bacon
assimila os questionamentos céticos, de modo que afirma que conhecemos “senão
uma pequena parte da natureza”, entretanto, isso não deve deter o pensamento,
mas impulsiona-lo adiante a inventar e construir maneiras de alargar o nosso
conhecimento dessa pequena parte.
Os “ídolos” são o que a filosofia experimental e o ceticismo têm em comum
inicialmente – o que Bacon não diz expressamente -, destituir as “falsas noções”
profundamente enraizadas no entendimento humano que as tornam de difícil
acesso, e mesmo quando esse acesso é obtido apresentam problemas para a
instauração das ciências.
41
Após escrever que ”a formação de noções e axiomas
sobre o fundamento da verdadeira indução é o único remédio apropriado pelo qual
podemos afastar e expelir esses ídolos”
42
, Bacon passa a descrever as suas quatro
espécies. Nota-se que a “verdadeira indução” para Bacon é o fundamento pelo
qual é possível refutar tanto o dogmatismo quanto o ceticismo irrestritos, e, não
sem elementos resgatados e reelaborados de cada um deles, fundar uma nova
filosofia.
Primeiramente, há os ídolos da tribo, “que são inerentes à natureza humana”
e à própria tribo ou raça humana, pois os sentidos do homem são falsamente
asseverados como o padrão das coisas, pelo contrário, todas as percepções tanto dos
sentidos quanto da mente têm referência ao homem mas não ao universo, e a mente
humana se assemelha àqueles espelhos desiguais que conferem suas propriedades
aos diferentes objetos, dos quais raios são emitidos que os distorcem e
desfiguram.
43
Pode-se pensar que essa é a expressão do ceticismo conhecido como “véu
da percepção”. Os sentidos e a mente não nos oferecem percepções dos “padrões
das coisas”, mas tão-somente das coisas em relação à própria percepção humana.
No entanto, nenhum dos ídolos para Bacon constitui meras fatalidades, mesmo
que possam representar limites para o conhecimento, não respaldam seus erros
singulares. O pensador inglês oferece, para cada um deles, modos de contorná-los
40
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 109. Livro I, § 37.
41
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 109. Livro I, § 38.
42
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 109. Livro I, § 40.
43
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 109. Livro I, § 41.
na prática. Em vista do avanço da ciência e da educação, o entendimento precisa
ser libertado desses ídolos, e para isso todos eles “(...) precisam ser abjurados e
renunciados com firme e solene resolução”
44
.
Em segundo lugar, o que Bacon denomina de ídolos da toca, que são “(...)
aqueles de cada indivíduo;”
pois todos (em acréscimo aos erros comuns à raça dos homens) tem a sua
própria toca ou caverna individual, a qual intercepta e corrompe a luz da natureza,
ou pela sua própria disposição peculiar e singular, ou pela sua educação e relações
com os outros, ou pela sua leitura, e a autoridade adquirida por aqueles que
reverencia e admira, ou pelas diferentes impressões produzidas na mente, como
acontece quando se está preocupado e predisposto, ou equânime e tranqüilo, e
assim por diante; pois o espírito do homem é variável, confuso, e, como se fosse,
acionado pelo acaso; e Heráclito disse bem que os homens buscam pelo
conhecimento em mundos menores, mas não no mundo maior ou comum.
45
Esses ídolos derivam a sua origem da natureza peculiar do corpo e da mente
de cada indivíduo, mas também da sua educação, hábitos, e, ainda, acasos.
46
Os
ídolos da tribo e da toca resgatam o argumento, constantemente frisado no
ceticismo, da relatividade, apontando para a diferença do homem entre as diversas
formas de vida, e a de um indivíduo entre outros, no tocante tanto às suas
percepções quanto à sua educação e cultura.
Em terceiro lugar, “há também os ídolos formados pela relação recíproca e
sociedade do homem com o homem, os quais chamamos de ídolos de mercado,”
pelo comércio e associação dos homens uns com os outros, pois os homens
conversam por meio da linguagem, mas as palavras são formadas pela vontade da
generalidade, e então surge de uma má e inepta formação de palavras uma
maravilhosa obstrução à mente. Nem podem as definições e explicações com as
quais os letrados estão acostumados a se protegerem em algumas instâncias oferecer
um remédio completo; as palavras ainda manifestadamente forçam o entendimento,
lançam tudo em confusão, e levam a humanidade a vãs e inumeráveis controvérsias e
falácias.
47
Os ídolos do mercado, que se “impõem ao entendimento por palavras”, são
de dois tipos:
44
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 116. Livro I, § 68.
45
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 109. Livro I, § 42.
46
Cf. BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The
University of Chicago, 1952, p. 111. Livro I, § 53.
47
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, pp. 109-10. Livro I, § 43.
(...) ou são nomes de coisas que não tem nenhuma existência (pois assim
como alguns objetos pela falta de atenção são deixados sem nome, nomes são
formados por imaginações fantasiosas que são sem objeto), ou são nomes de objetos
de fato, mas confusos, mal definidos, e apressada e irregularmente abstraídos das
coisas.
48
Deve-se notar que a linguagem não é ela mesma um obstáculo para o
conhecimento, mas sim o seu mau uso. Para Bacon, esse mau uso deriva das
relações comuns entre os homens, das quais as palavras são formadas em vista da
“vontade da generalidade”, mas não do próprio objeto. Desse modo, cria-se uma
disputa infindável por nomes e palavras, em uma narrativa que não é pautada pela
realidade, a qual impede que primeiramente se tenha a referência clara a um
objeto, para que então possa ser discutido.
Em último lugar, “há os ídolos que se insinuaram na mente dos homens
pelos diversos dogmas de sistemas peculiares de filosofia”,
e também de regras pervertidas de demonstração, e esses denominamos de
ídolos do teatro: pois consideramos todos os sistemas de filosofia ante então
recebidos ou imaginados, como tantas peças concebidas e executadas, criando
mundos fictícios e teatrais.
49
Os ídolos do teatro ou das teorias, “não são inatos, nem se introduzem
secretamente no entendimento, mas são manifestadamente incutidos e
acalentados”; as peças teatrais que apresentam um mundo teatral são aceitas pelo
individuo, tomadas para si e festejadas. No entanto, Bacon afirma que não irá
tentar refutá-las.
50
Talvez, um motivo para essa afirmação seja que a teoria dos
ídolos trate dos homens e de suas ilusões, que dificultam a instauração da
verdadeira filosofia, entre as quais a sua predisposição a receber, e até buscar,
sistemas de filosofia falaciosos, mas não desses próprios sistemas.
Nesse sentido, Bacon deseja averiguar os obstáculos que o próprio homem
impõe ao conhecimento e à ciência, mas não refutar sistemas filosóficos. A sua
nova filosofia parte da superação das falácias da tradição com um ideal
inteiramente novo, que atenta tão-somente para o “caminho a ser perseguido”, em
vez de manter um caminho apenas com base na refutação de filosofias passadas.
48
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 112. Livro I, § 60.
49
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 110. Livro I, § 44.
50
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 113. Livro I, § 61.
Além do mais, constatar os obstáculos inerentes ao homem e superá-los, tem
como resultado uma filosofia em harmonia com o homem e em estreita conexão
com suas capacidades, que se erige a partir da investigação delas. Em todos esses
aspectos, não é de se desconsiderar que Kant dedica a Crítica da Razão Pura a
Francis Bacon.
2.3
O Idealismo Transcendental
O maior mérito de Kant é a distinção
entre fenômeno e coisa em-si.
51
O Idealismo Transcendental é a doutrina que considera o objeto da
experiência como mera aparência ou fenômeno, e não como coisa em si,
independente da sua representação. Essa doutrina consiste em uma visão do
mundo em correlação necessária com o sujeito de conhecimento, a qual estabelece
os alicerces para a autocrítica da razão.
Para entender o Idealismo Transcendental é preciso ter em mente que ele se
distingue do idealismo material bem como do realismo metafísico. O idealismo
material ou empírico coloca em dúvida a realidade do mundo externo, tendo como
correlatas a percepção e a existência, ao modo de Berkeley, com o seu famoso
princípio Esse est percipere et percipi. Ser (ou existir) é perceber e ser percebido;
sem percepção não há existência. Já o realismo metafísico afirma que as coisas
existem independentemente do sujeito e, por conta disso, podem ser conhecidas
em si, tais como realmente são, à parte de como as percebemos.
Pode-se notar que tanto o idealismo material quanto o realismo metafísico
estão comprometidos com a noção de uma única realidade possível. O primeiro
afirma que a realidade depende da percepção sensível, da mente, e fora dela não
há nenhuma existência, e, assim, haveria uma única realidade, i.e., a percepção do
próprio sujeito. Deve-se ressaltar que o propósito de Berkeley é antidogmático;
não afirmar uma existência real à parte da mente, contudo, sua teoria recai em
uma forma diversa de dogmatismo, que é considerar que só há existência em
conexão com a mente. O último afirma que a realidade subsiste em si mesma,
sendo assim uma única realidade absoluta e invariável, independente da sua
relação com o sujeito ou com a percepção. O idealismo material confere primazia
ao sujeito, ao passo que o realismo metafísico ao objeto.
Para Kant, sujeito e objeto têm uma relação necessária. Não podemos
conhecer a realidade tal como ela é em si mesma, mas somente como aparece para
nós. Entretanto, o que aparece para nós, os fenômenos, são constituídos pela pelas
formas próprias do sujeito de conhecimento a partir do dado da experiência.
51
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora
UNESP, 2005, p. 526 (I 495).
Desse modo, o mundo ou o conjunto dos fenômenos não pode ser considerado
uma única realidade possível, nem como algo dependente tão-somente da
percepção ou do sujeito, nem como algo existente em si mesmo. O “mundo” traz a
marca da mediação do homem sobre ele, não é o mundo em si mesmo nem
necessariamente a sua única possibilidade, e sim uma relação. Para Berkeley, esse
é percipi – para Kant, a existência não depende do sujeito, apenas o conhecimento
que temos do que existe é o que depende das formas da percepção e do
entendimento. A partir de Kant, é possível escrever que:
(...) seria uma forma muito ingênua de dogmatismo presumir que há uma
realidade absoluta das coisas que é a mesma para todos os seres vivos. A realidade
não é uma coisa única ou homogênea, é imensamente diversificada, tendo tantos
esquemas e padrões diferentes quanto há diferentes organismos.
52
Pode-se com justiça atribuir ao Idealismo Transcendental, “crítico” ou
“formal” – como Kant por vezes o denomina – o princípio NENHUM OBJETO SEM
SUJEITO
53
, o que o distingue suficientemente do realismo metafísico - e exige
pensar no objeto em conexão ao sujeito - porém não do idealismo material. Para
isso, é necessário atribuir-lhe outro princípio, a saber, NENHUM SUJEITO SEM
OBJETO
54
, na medida em que o Idealismo Transcendental se inicia com o material
dado da intuição empírica, a sensação propriamente dita, para então pensar nas
formas subjetivas que determinam esse material. Mesmo que seja um “objeto
indeterminado” que esteja no fundamento do que é recebido pela sensação, “ele” é
imprescindível para que haja experiência e conhecimento e, desse modo, para que
se possa falar de “sujeito”. Ainda que nada se possa afirmar sobre o objeto
indeterminado da sensação, pois não é cognoscível pelas formas do sujeito de
conhecimento (sendo alheio à sua determinação), a sua existência, mesmo sem ser
possivelmente determinada pelo conhecimento, não é posta em dúvida. Desse
modo, o sujeito existe no mundo, mas qual mundo exatamente existe para o
sujeito?
A resposta de Kant é que o sujeito de conhecimento determina a
experiência, a partir das suas formas, pelas quais inicialmente a experiência é
52
CASSIRER, E. An Essay on Man. New haven: Yale University Press, 1992, p. 23.
53
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora
UNESP, 2005, p. 546 (I 514).
54
É preciso ter cuidado ao fazer uso do termo “objeto” em Kant, que tem muitas acepções, sem a
devida precisão, entretanto, o sentido da expressão se fará entender a seguir.
possível e que pertencem à sua estrutura necessária, sendo, assim, sujeito
transcendental. SCHOPENHAUER escreve:
(...) Kant entende por transcendental, o reconhecimento do apriorístico e,
por isso, do meramente formal no nosso conhecimento, como sendo tal. Quer dizer,
a compreensão de que tal conhecimento é independente da experiencia e de que é
esse mesmo conhecimento que prescreve as regras inalteráveis segundo as quais
esta tem de dar-se, ligada ao entendimento do porque de tal conhecimento ser este e
ter tal poder, ou seja, porque ele constitui a forma de nosso intelecto: o que se dá
como conseqüência de sua origem subjetiva.
55
O Idealismo Transcendental tem como ponto de partida o “dado” da
sensação – que necessariamente tem uma realidade empírica em seu fundamento,
que não é questionada, ao contrário do idealismo material – e seu caráter
propriamente idealista consiste em, logo em seguida, voltar a sua atenção sobre as
formas puras do sujeito de conhecimento que determinam esse dado recebido pela
sensação. Entretanto, não é idealista no sentido de afirmar que o pensamento puro
por si só seria capaz de conhecer ou transformar o “mundo” – não se pode
confundir o idealismo transcendental de Kant com o posterior “idealismo
absoluto”.
O primeiro e mais espantoso princípio do Idealismo Transcendental é a
idealidade formal de espaço e tempo. Pode-se considerar a Estética
Transcendental - onde Kant argumenta que espaço e tempo são formas puras da
sensibilidade - como mais que somente uma introdução a essa doutrina, já que
nela Kant apresenta a sua nova visão de mundo e do conhecimento humano. Além
do texto Direções no Espaço, de 1768, e da Dissertatio de 1770, Caygill aponta
para as Palestras de Antropologia, que Kant começa a lecionar em 1772-73, como
fundamentais na composição da Doutrina da Sensibilidade
56
.
Ao contrário de Leibniz e Wolff, para Kant a sensibilidade não é apenas
uma fonte de representações obscuras, nem apenas uma fonte do erro
57
. A
55
SCHOPENHAUER, A. Fragmentos para a História da Filosofia. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.
72.
56
Em contraste com as palestras sobre Lógica e Metafísica, nas palestras de Antropologia Kant
não tinha que seguir um compêndio, um manual previamente autorizado. Isso teria lhe conferido a
liberdade para nessas palestras desenvolver a sua nova doutrina da sensibilidade. Cf. CAYGILL,
H. “Kant’s Apology for Sensibility” Em: JACOBS, B. / KAIN, P. (eds.) Essays on Kant´s
Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 168-69.
57
Para Kant o erro se encontra apenas no entendimento, pois consiste em uma falha na capacidade
de julgar. O erro se dá através de uma “influência despercebida da sensibilidade no entendimento”:
“nenhuma força da natureza pode por si mesma descolar-se das suas leis. Portanto, nem o
entendimento por si mesmo (sem a influência de outra causa), nem os sentidos por si mesmos por
sensibilidade é uma das fontes principais do conhecimento humano, pela qual
podemos primeiramente ser afetados por objetos. Além disso, a sensibilidade é
uma fonte independente de conhecimento, à qual pertencem intuições puras a
priori, espaço e tempo. Esses consistem na forma como o sujeito apreende os
fenômenos, e são os fundamentos sobre os quais os objetos da experiência podem
ser representados. Dessa maneira, nem são determinações ou relações entre
objetos, nem são coisas, em si ou por si mesmas autosubsistentes. De fato, Kant
chega a afirmar que à parte da sensibilidade humana, espaço e tempo não são
nada.
O espaço é a forma do “sentido” externo, ou seja, todos os objetos
representados externos ao sujeito são representados no espaço. A percepção
comum de que o espaço é anterior ao próprio objeto, como o “local” onde possa
primeiramente se situar, nos engana pela metade, pois espaço é apenas o nosso
sentido externo – “uma propriedade da nossa mente”
58
-, pelo qual representamos
os objetos, sem o qual, portanto, não poderíamos representá-los como exteriores.
O tempo é a forma do sentido interno, e “determina a relação das
representações no nosso estado interno.” Assim como não podemos representar o
espaço em nosso sentido interno, o tempo não é nada senão a forma do nosso
sentido interno: “O tempo não pode ser intuído externamente não mais que o
espaço pode ser intuído como algo em nós”
59
; i.e., o tempo não pode ser
representado no espaço, não possui nenhuma “figura”, nenhuma “posição”
60
.
Como são as nossas representações, todos os fenômenos são representados como
objetos em espaço e tempo. SCHOPENHAUER escreve:
Pode-se dizer que antes de Kant estávamos no tempo, e agora é o tempo que
está em nós. No primeiro caso, o tempo é real e somos por ele consumidos como
tudo o que está no tempo. No segundo caso, o tempo é ideal: está em nós. Com isso
cai em primeiro lugar a referência ao futuro depois da morte. Pois eu não sou; logo
si mesmos, podem errar; o primeiro não pode, porque enquanto age de acordo com as suas
próprias leis, seus efeitos (o juízo) devem necessariamente concordar com essas leis. “(...) Nos
sentidos não há absolutamente nenhum juízo, nem um verdadeiro, nem um falso. Agora, já que
não temos outra fonte de conhecimento a não ser essas duas, segue-se que o erro acontece somente
através de uma influência despercebida da sensibilidade no entendimento (...)” KANT, I. Critique
of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 384-85 [A294/B351].
58
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 157: A 22
/ B 37.
59
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 157: A 23
/ B 37.
60
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 163: A 33
/ B 49-50.
não existe também mais nenhum tempo. É só uma aparência enganadora que me
mostra um tempo sem mim depois de minha morte: todas as três divisões do tempo,
passado, presente e futuro, são da mesma maneira produtos meus e me pertencem,
mas eu não pertenço a uma delas de preferência à outra.
61
Sem a concessão da idealidade transcendental de espaço e tempo, cai-se
nos extremos do dogmatismo do realismo metafísico e do dogmatismo negativo
do idealismo material, que se combatem entre a afirmação e a negação da noção
de espaço e tempo absolutos, e se mostram muito estreitos, pois ambos reduzem o
escopo da reflexão sobre a realidade, sobretudo, ao isolar a relação entre o
objetivo e o subjetivo. Para Kant, espaço e tempo são puras receptividades,
formas puras a priori da sensibilidade que se referem ao dado imediato da
intuição empírica. Não são nem conceitos nem idéias, mas como são as condições
de possibilidade da experiencia, de objetos serem representados, assim estão
presentes em toda experiência possível. Desse modo, espaço e tempo são formas
necessárias e universais da percepção sensível do ser humano, da sua experiência;
não são coisas, não são entidades absolutas, não podem ser pensados sem relação
ao homem, como coisas em si.
Portanto, Kant afirma que o idealismo transcendental é, em contraparte, um
realismo empírico. Espaço e tempo para Kant não são retirados de nenhuma
experiência singular ou primeva, mas constituem a sua estrutura básica. Desse
modo, estão presentes em todos os fenômenos, em todos os objetos representados,
pois constituem a própria condição de possibilidade da sua representação. Por
isso, espaço e tempo têm validade objetiva, são necessários e universais para a
experiencia humana. A perspectiva de que espaço e tempo são intuições puras - a
sua idealidade transcendental-, não impede de considerá-los objetivamente na
experiência, ou seja, de sustentar a sua realidade empírica. Idealidade
transcendental e realidade empírica, assim, são duas perspectivas opostas, contudo
complementares sobre o fenômeno, sobre a experiência
62
. A dupla significação
dos princípios é capaz de elucidar essa dualidade do Idealismo Transcendental.
KANT escreve:
61
SCHOPENHAUER, A. Fragmentos para a História da Filosofia. São Paulo: Iluminuras, 2003, p.
75.
62
Desse modo, deve-se notar que, além da distinção entre fenômeno e coisa em si, conhecida
como o dualismo do Idealismo Transcendental, há ainda no domínio da própria experiência a
dualidade entre idealidade transcendental e realidade empírica.
Todos os princípios são por um lado a posteriori, i.e., tomados
empiricamente, e isto por sua vez ou da experiência de cada um ou do testemunho
da experiência dos outros, portanto, experiência ou história.
Todos os princípios são por outro lado a priori e tomados à razão, mas ou da
razão na medida em que julga somente de acordo com conceitos, ou seja, princípios
filosóficos, ou enquanto julga somente de acordo com a construção de conceitos,
i.e., a sua exibição a priori na intuição.
63
Para Kant, a experiência é o único domínio em que há conhecimento. A
priori ou a posteriori dependem tão-somente de uma posição, de uma perspectiva.
Dessa maneira, o empírico e o transcendental dizem respeito unicamente à
experiência: o primeiro é obtido diretamente pela análise da experiência, sendo o
produto da síntese de matéria e forma; o último deriva de uma análise ou reflexão
da razão sobre a sua própria atividade, por um processo de redução
64
ou
desmembramento da experiencia em seus elementos a priori e a posteriori.
Desse modo, os princípios do conhecimento não ultrapassam a experiência
e o conhecimento transcendental pode ser considerado mais “elevado” que o
empírico somente relativamente ao seu processo de obtenção. Mais elevado
somente na medida em que o pensamento tem de iniciar pela experiência, pois
todo princípio tomado empiricamente tem um esteio transcendental, e um
princípio puro, por sua vez, um caso empírico. Nota-se, assim, que o conceito de
experiência no Idealismo Transcendental é amplo, e abarca o conhecimento
empírico e transcendental. Desse modo, é imperativo ter em mente a distinção de
Kant entre conhecimento transcendente e conhecimento transcendental. Este não
ultrapassa o domínio da experiência, mas investiga as suas condições subjetivas
de possibilidade, e têm um uso meramente imanente, no domínio da própria
experiência, ao passo que o transcendente ultrapassa as fronteiras da experiência e
“de fato nos convida a ultrapassá-los”.
65
63
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 275-76.
Reflexão 5645, Ak 18:293
64
“Este experimento da razão pura é muito semelhante ao que os químicos chamam às vezes de
processo de redução ou, mais comumente, de procedimento sintético. A análise do metafísico
separa o conhecimento a priori em dois elementos heterogêneos, a saber: o das coisas como
fenômenos e o das coisas em si mesmas. A dialética torna a juntar esses dois elementos e os põe
em harmonia com a idéia necessária do incondicionado e descobre que essa harmonia nunca se
produz senão mediante a aludida distinção que, portanto, é verdadeira” KANT, I. “Prefácio à
segundo edição da Crítica da Razão Pura” Em: KANT, I. Textos seletos. Petrópolis: Editora
Vozes, 2005, p. 31: B XXIn.
65
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 386: A
296 / B 353.
Nesse sentido, Kant denomina de “revolução copernicana na filosofia” a
investigação não dos objetos mesmos, mas do sujeito transcendental de
conhecimento, ao qual os objetos devem se regular. Segundo COMTE-
SPONVILLE, Kant opera na realidade uma “contra-revolução copernicana”, pois
“repõe filosoficamente o sujeito no centro (do conhecimento, da moral, da
estética), de onde Copérnico o expulsara fisicamente.”
66
Entretanto, a
investigação transcendental situa o homem no centro da natureza enquanto
“conjunto dos fenômenos”, os quais são determinados a priori em sua forma pela
subjetividade. Ao mesmo tempo, Kant sustenta que é possível conhecer apenas
fenômenos, mas não coisas em si, devido à própria constituição do modo de
conhecer. Dessa forma, o homem não está mais no centro, pois pode conhecer
apenas o que ele próprio determina formalmente; o que diz respeito à sua
“realidade” e experiência, mas não toda a “realidade” possível.
Para Schopenhauer, Kant “foi conduzido” à distinção entre fenômeno e
coisa em si por Locke, como Kant daria a entender nos Prolegômenos
67
.
Entretanto, pode-se considerar mais fundamental a influência da sua nova
doutrina da sensibilidade para se chegar a essa distinção, a qual, parcialmente, já
está implícita na perspectiva de espaço e tempo como apenas formas puras da
intuição sensível. Se espaço e tempo não são coisas em si, então quais outras
determinações pertencem ao objeto apenas enquanto fenômeno representado, mas
não em si e por si mesmo? A descoberta de que a priori não percebemos as coisas
como são em si mesmas leva a questionar se também não as conhecemos tais
como são em si mesmas, ou seja, que conhecemos apenas fenômenos, mas não a
coisa em si.
68
A Estética Transcendental estabelece os alicerces do Idealismo
Transcendental, mas esse não se esgota com ela. Para Kant, a sensibilidade e o
entendimento – objeto da Analítica Transcendental - são os dois troncos do
conhecimento humano: a primeira é a condição pela qual objetos são dados, o
último, o meio pelo qual são pensados. Assim como espaço e tempo, as doze
66
Cf. COMTE-SPONVILLE, A. A Filosofia. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p.60.
67
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora
UNESP, 2005, p. 526. (I 495).
68
Esse desdobramento é tão evidente que se pode pensar que Kant reconhece limites ao
conhecimento devido tão-somente à particularidade da sensibilidade humana. No entanto, a
sensibilidade é um dos elementos que compõe o modo de conhecer que, pensado como um todo,
consiste em fronteiras para o conhecimento devido à sua própria constituição.
categorias do entendimento
69
gozam tanto de idealidade transcendental quanto de
realidade empírica. A causalidade, por exemplo, é uma categoria do entendimento
humano que está presente em todos os fenômenos, todos os dados recebidos pela
sensibilidade têm de ser pensados segundo a causalidade – por isso tem validade
objetiva -, mas não deriva de nenhuma experiência; nem é um atributo da coisa
em si – não tem “realidade transcendental” -, nem é um mero hábito como Hume
conclui.
Para Kant, a faculdade da sensibilidade é uma “receptividade”, a faculdade
do entendimento uma “espontaneidade”. Ambas são necessárias, presentes em
todo fenômeno como condições de possibilidade da própria “experiência”.
Entretanto, da mesma forma que toda intuição não pode ser senão sensível, Kant
define o entendimento (na sua definição mais ampla), como a “espontaneidade do
conhecimento.”
70
O entendimento é a habilidade para pensar.
71
Intuir e pensar, a
receptividade da sensibilidade e a espontaneidade do entendimento, são as
condições de possibilidade da experiência, mas ainda somente pela sua união é
possível o conhecimento. KANT escreve:
Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas. É
assim tão necessário tornar os conceitos da mente sensíveis (i.e., acrescentar a eles
69
Schopenhauer, após elogiar os méritos da Estética Transcendental, considera sua distância da
Analítica: “LÁ, que clareza, determinidade, segurança, firme convicção enunciada abertamente e
comunicada de maneira infalível! Tudo é cheio de luz, nenhum canto escuro é deixado: Kant ali
sabe o que quer e sabe que está certo. AQUI, ao contrário, tudo é obscuro, confuso, indeterminado,
vacilante, incerto, a exposição é temerosa, cheia de desculpas e remissões ao que vem em seguida,
ou até mesmo tergiversações. (...) Vê-se de fato Kant em luta com a verdade, para levar a bom
termo sua opinião doutrinária já formada. Na ESTÉTICA transcendental, todas as proposições são
efetivamente demonstradas a partir de fatos inegáveis da consciência; na ANALÍTICA
transcendental, ao contrário, quando a consideramos mais de perto, encontramos meras afirmações
de algo que é assim e assim tem de ser. (...) sempre que Kant deseja dar um exemplo em vista de
um esclarecimento mais apurado, quase sempre se serve da categoria da causalidade, quando então
o que é dito se apresenta de maneira correta, justamente porque a lei de causalidade é a real, mas
também a única forma do entendimento, e as restantes onze categorias são apenas janelas cegas.
(...) assim como a ESTÉTICA TRANSCENDENTAL demonstra um fundamento a priori para a
matemática, teria também de havê-lo para a lógica, com o que aquela primeira adquiria
simetricamente um pendant numa LÓGICA TRANSCENDENTAL. A partir daí Kant não estava
mais livre, não estava mais no estado de investigação e observação puras daquilo que se encontra
presente na consciência, mas era conduzido por uma pressuposição, perseguia um objetivo, o de
encontrar o que havia pressuposto, e assim erigir sobre a estética transcendental, tão
afortunadamente descoberta, uma lógica transcendental análoga a ela, portanto correspondendo-lhe
simetricamente, ao modo de um segundo andar.” SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade
e como Representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 559-63. (I 528-33).
70
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 193: A 51
/ B 75.
71
KANT, I. Anthropology from a Pragmatic Point of View. Cambridge: Cambridge
University Press, 2006, p. 15 [127].
um objeto na intuição), como o é tornar as intuições inteligíveis (i.e., subsumi-las a
conceitos).
72
Sensibilidade e entendimento têm de se referir um ao outro para produzir
conhecimento. As formas a priori dessas faculdades, as intuições puras da
sensibilidade e as categorias do entendimento, não somente são as condições de
possibilidade da experiência, como este é o domínio no qual unicamente essas
faculdades têm validade. Para Kant, o conhecimento legítimo diz respeito tão-
somente à experiência, que se constitui pela síntese de matéria e forma, de
empírico e transcendental.
A razão lança mão das intuições sensíveis de espaço e tempo, e das
categorias do entendimento, para conhecer as suas idéias, as quais, entretanto,
ultrapassam uma experiência possível, fazendo assim um uso ilegítimo
(transcendente) das formas a priori da experiência (que tem um uso apenas
imanente), para conhecer o que estaria para além dela. Na Crítica da Razão Pura,
Kant mostra como são as motivações e exigências da própria razão humana, que
almeja conhecer os objetos da psicologia, da cosmologia e teologia como coisas
em si, que a levam a extrapolar a experiência. O resultado é que a razão se enreda
em contradições consigo própria, que são aparentemente insolúveis. Assim, como
o “inimigo” da razão não está fora dela, os princípios do Idealismo
Transcendental são constantemente frisados como a única saída para essa
confusão, e para apaziguar a razão com ela mesma. Entretanto, isso só pode se dar
como um trabalho contínuo, pois essas ilusões não podem ser erradicadas de uma
vez por todas.
Desse modo, há na Crítica da Razão Pura a distinção entre sensibilidade e
entendimento, bem como entre entendimento e razão; duas inovações que
compõem uma teoria que Kant julga estar acabada sobre o modo de conhecer
humano. O Idealismo Transcendental é a doutrina que afirma ser a experiência o
único campo legítimo de conhecimento, que é constituída pelas intuições puras de
espaço e tempo e pelas categorias do entendimento. Assim, oferece uma visão de
mundo que busca compreendê-lo e ao ser humano conjuntamente, ao mostrar,
72
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 193-94: A
51 / B 75. Pode-se questionar se a sensibilidade, apesar da sua função propriamente receptiva, não
poderia ser considerada, sendo parte do modo de conhecer humano, como um poder espontâneo. A
espontaneidade, assim, não estaria restrita à capacidade de pensar, mas seria uma característica
específica das próprias formas a priori do sujeito de conhecimento, como um todo.
primeiramente, que sujeito e objeto tem uma relação e, em segundo lugar, que o
objeto é determinado pelas formas puras do sujeito de conhecimento como
fenômeno. Como a razão pura faz uso das intuições e conceitos da experiência
para além de toda experiência possível, requer a sua autocrítica, constante
disciplina e esclarecimento, para que possa aperceber-se das suas reais
capacidades e sua efetiva tarefa.
Por um lado, no intento de investigar a estrutura do modo de conhecer, Kant
procede dogmaticamente, no sentido de buscar exaustivamente o conhecimento a
priori imanente, subjetivo, e sustentar juízos e teses positivas. Por outro lado,
como é a própria razão humana, em suas intenções honestas, que ultrapassa as
capacidades do conhecimento humano, e se contradiz, é preciso analisá-la
primeiramente de modo cético, i.e., não se decidir nem a favor nem contra dos
seus argumentos opostos em equilíbrio, mas ao contrapô-los proceder à sua
crítica, buscar por uma ilusão em seu fundamento. Portanto, o Idealismo
Transcendental é uma doutrina, fundada em um ponto de vista do homem, que se
situa entre o dogmatismo e o ceticismo, e a filosofia crítica faz uso parcial do
método de ambos em vista da autocrítica da razão.
Essa síntese de ceticismo e dogmatismo, pela primeira vez sustentada e
elaborada por Kant, é algo que representa o pensamento moderno (o moderno,
nesse sentido, pode ser caracterizado como aquele que segue uma tendência, mas
com concessões à tendência oposta), sendo voltada para um novo modelo de
conhecimento, antropocêntrico e não mais teocêntrico. Kant é o pensador que
elabora essa síntese, almejando expô-la consequentemente em um único sistema
filosófico. Neste sentido, dentre outros motivos, pode-se identificar em Kant o
pensamento mais representativo da modernidade.
2.4
Metafísica e Modernidade
Para Adorno, a metafísica é propriamente a reflexão sobre a relação entre a
experiência sensível e o supra-sensível, que se apresenta sob a forma de uma
tensão inevitável. É essa tensão que constitui o tema central dos questionamentos
e especulações metafísicas. ADORNO escreve:
(...) a esfera da metafísica, em seu sentido preciso, somente vem a ser
quando essa tensão é ela mesma o tema da filosofia, quando adentra no escopo do
pensamento. Pode-se dizer, por conseguinte, que a metafísica surge no momento
em que o mundo empírico é levado a sério, e quando a sua relação com o mundo
sensível, que até então era dada por certa, é sujeita à reflexão.
73
Por esse motivo, Adorno considera que a metafísica, como disciplina
filosófica, começa realmente com Aristóteles, já que Platão tomava objetivamente
a relação do mundo da experiência sensível com o mundo das idéias, em vez dela
mesma ser abordada tematicamente na sua filosofia como uma relação
problemática.
Em Aristóteles, a tensão entre o mundo empírico e o supra-sensível é
pensada através de uma relação complexa e problemática do universal ao
particular, sendo que somente este, em oposição a Platão, seria real. Segundo
Adorno, se a doutrina platônica das idéias não é uma metafísica, pode-se imaginá-
la então, por um lado, como uma secularização da teologia, que seria uma
novidade platônica e, por outro lado, como uma continuação do hilozoísmo dos
filósofos pré-socráticos. Essa secularização é a transformação dos deuses em
conceitos (as idéias platônicas), embora a sua relação com o empírico não sofra
alteração nem se torne problemática.
No pensamento metafísico não é suficiente imputar a verdade absoluta a um
reino essencial, desconectado do mundo sensível e que não pode, no mundo
sensível, ser objeto de crítica e reflexão. A verdade deve ser passível de
investigação racional - em vez de existir somente para além da experiência
sensível, deve ser investigada em sua relação com ela. Desse modo, pode-se
identificar ainda outra tensão na metafísica, esta não em seu tema, mas na sua
tarefa:
Por um lado, a metafísica é sempre, se assim se quer, racionalista como uma
crítica da concepção de um ser-em-si verdadeiro, essencial, que não se justifica a si
próprio perante a razão, mas, por outro lado, é também sempre uma tentativa de
resgatar algo que o gênio do filósofo sente estar desvanecendo e desaparecendo.
74
73
ADORNO, T. W. Metaphysics. Stanford: Stanford University Press, 2001, p.18.
74
ADORNO, T. W. Metaphysics. Stanford: Stanford University Press, 2001, p.19.
A metafísica teria uma natureza crítica. Deve refrear a secularização dos
deuses em idéias e buscar a relação - através de conceitos - da verdade com o
mundo sensível, cuja separação rígida é imposta por esta secularização. Mas, ao
mesmo tempo, a metafísica busca atingir objetivamente uma verdade absoluta,
entendida como uma necessidade para o homem e para o conhecimento.
Subjacente às investigações metafísicas, que buscam a relação entre a verdade e o
particular, está uma concepção de verdade absoluta que, se por um lado, é
sustentada, p.ex., pela doutrina platônica das idéias, é ameaçada devido à sua
separação rígida em relação ao particular.
Para Adorno, a operação de resgate subjacente à atividade crítica da
metafísica consiste em salvar, mediante conceitos, aquilo que está ameaçado
precisamente por conceitos. “A metafísica é, então, pode-se dizer” ADORNO
escreve: “algo fundamentalmente moderno – se não se restringir o conceito de
modernidade ao nosso mundo, mas estendê-lo para incluir a história Grega.”
75
A
tensão entre crítica e resgate da metafísica expressa uma consciência ou reflexão
tipicamente modernas – uma atividade que exige de si interpretar e corrigir
concepções antigas, para delas extrair uma lição geral e duradoura.
De um lado, o caráter crítico, e a modernidade da metafísica podem
esclarecer a mudança que Kant opera no pensamento ocidental. A metafísica
nasce com uma consciência crítica, de pensar a relação do sensível com o supra-
sensível, que não pode ser considerada como dada de antemão, mas deve ser
investigada como uma relação problemática. Nesse sentido, pode-se afirmar que a
ciência que Adorno considera surgir com Aristóteles é, mais especificamente, a
ontologia.
Por outro lado, a tensão entre a atividade crítica e o resgate de uma verdade
absoluta, necessária e universal, situa a metafísica no âmago de uma “consciência
moderna”, que rompe com sistemas antigos, mas deles retém a sua motivação
fundamental, e desse modo, deve encontrar novos modos de torná-la possível.
Uma nova ontologia, não do ser enquanto ser, mas sim em conexão mais estreita
com o modo de conhecer humano, deve nascer. Desse modo, a revolução kantiana
na filosofia é, sobretudo, uma revolução copernicana na metafísica, e, em
particular, na ontologia. Para KANT,
75
ADORNO, T. W. Metaphysics. Stanford: Stanford University Press, 2001, p.19.
A questão é se a metafísica lida com objetos que podem ser conhecidos
pela razão pura, ou com o sujeito, nomeadamente, os princípios e leis do uso da
razão pura. Já que podemos conhecer todos os objetos através do sujeito,
especialmente aqueles que não nos afetam, [a metafísica] é subjetiva.
76
.
Para Kant, a atividade crítica da metafísica deve se ocupar do próprio
sujeito de conhecimento. A relação entre o mundo empírico e o supra-sensível,
que antes era investigada objetivamente, torna-se interna ao sujeito, consistindo na
relação entre sensibilidade e entendimento, receptividade e espontaneidade.
Assim, a metafísica objetiva dá lugar a uma “metafísica da metafísica”, na qual a
objetividade se funda subjetivamente, i.é., na relação entre as faculdades
cognitivas do homem.
Dessa forma, Kant confere um novo sentido à atividade crítica da
metafísica. O homem é o seu objeto, enquanto sujeito de conhecimento, e deve
assim criticar a si mesmo. Deve descobrir, em si, o fundamento da relação do
empírico com o transcendental. Este, todavia, deixa de ser algo transcendente, que
ultrapassa o domínio da experiência possível, e passa a ser entendido com um
poder supra-sensível que, contudo, jaz na espontaneidade ou liberdade humana.
Portanto, a operação de resgate própria à metafísica, com Kant, concentra-se no
próprio homem, como o fundamento de uma verdade universal e necessária,
eterna e imutável.
A autocrítica da razão é uma forma de “acabamento final” da modernidade
da metafísica. Esta - que nasce como uma tarefa crítica para o pensamento, em
contraste com a teologia e o hilozoísmo - é com Kant uma tarefa imposta ao
homem como homem, de tornar-se consciente e realizar a sua humanidade. De
modo que, neste espírito de Esclarecimento (Aufklärung), KANT escreve no
primeiro parágrafo da Crítica da Razão Pura (1781):
A razão humana possui o destino peculiar em uma espécie dos seus
conhecimentos de se ver atormentada por questões que não pode dissipar, já que lhe
são dadas como problemas pela natureza da própria razão, mas às quais também não
pode responder, já que transcendem todas as capacidades da razão humana.
77
A natureza da razão inevitavelmente lhe impõe questões sem solução. O seu
destino peculiar é se ver atormentada no “campo de batalha de controvérsias
76
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p.131. Reflexão
4369, Ak 17:521.
77
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 99. A VII.
infindáveis [que] chama-se metafísica”.
78
É a natureza da própria razão, e não a
natureza das coisas, que impele à metafísica. Deste modo, a razão humana não
pode evitar se colocar questões metafísicas porque a sua própria natureza as
impõe, e nesse sentido, o destino último da razão, e o motivo original de fazer
metafísica, sem que ela o saiba, é conhecer a sua própria natureza.
A metafísica para Kant consiste na relação do empírico e do transcendental
no domínio da experiência, sem necessidade de ultrapassá-lo. O conceito de
experiência dilata-se para abarcar o empírico e o transcendental, que se define em
oposição ao “transcendente”. O supra-sensível, por assim dizer, reside no homem
– em vez de ser algo sobrenatural - como as formas puras subjetivas da
experiência, que se relaciona com o sensível no próprio homem de modo a
constituir os objetos da experiência. Para Kant, a metafísica não ultrapassa
absolutamente o domínio da experiência, o qual abarca o empírico e o
transcendental, em contraste com a hiperfísica, que ultrapassa o domínio da
natureza, e pretende erigir um conhecimento transcendente. KANT escreve:
Toda derivação filosófica daquilo que é dado ou pode ser dado ao nosso
conhecimento ou é físico, ou metafísico ou hiperfísico. O primeiro deriva de
princípios empíricos da natureza conhecidos pela experiência; o segundo [riscado:
da capacidade] dos princípios da possibilidade do nosso conhecimento a priori em
geral; independentemente da natureza das coisas conhecida empiricamente; o
terceiro da representação de objetos além da natureza. O último leva o
conhecimento inteiramente para além das condições do uso da razão in concreto. O
modo metafísico de explicação é objetivo se fundar-se nas condições universais
pelas quais unicamente podemos conhecer objetos enquanto nos são dados. Não
exclui o sobrenatural, mas restringe a nossa razão somente ao natural.
79
A metafísica é um conhecimento objetivo na medida em que se funda no
modo de conhecer humano, ou seja, enquanto é um estudo subjetivo sobre o
conhecimento a priori. Pode-se afirmar que a ignorância do modo de conhecer
está na base da metafísica transcendente, chamada agora de hiperfísica, como a
sua condição de possibilidade. Além disso, a razão, em seu uso transcendente,
busca derivar, através do seu pretenso conhecimento hiperfísico, o seu
conhecimento de si. Essa tentativa não passa para Kant de uma ilusão, que só
78
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 99, A
VIII.
79
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, p. 323. Reflexão
5993. Ak 18: 417. Em relação a princípios imanentes e transcendentes, cf. Crítica da Razão Pura.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 296, A 296 / B 352.
pode se manter enquanto o homem ignorar a natureza específica do seu modo de
conhecer.
Com a revolução copernicana na metafísica, as investigações da filosofia
crítica buscam diretamente a natureza do modo de conhecer, e a situa como o
único campo legítimo para o conhecimento a priori. A “metafísica da metafísica”,
que consiste em buscar os fundamentos subjetivos na base da metafísica
tradicional ou objetiva, os quais são projetados sub-repticiamente, ou
hipostasiados, para as coisas mesmas, torna-se a tarefa vital apara a filosofia
estabelecer o domínio real do conhecimento bem como os seus limites e
fronteiras. KANT declara:
Estou longe de considerar a própria metafísica, tomada objetivamente, como
algo trivial ou dispensável, na verdade já há algum tempo estou convencido de que
compreendo a sua natureza e o seu lugar entre as disciplinas do conhecimento
humano e que o verdadeiro e durável bem-estar da humanidade depende da
metafísica. (...) Já no tocante ao estoque de conhecimento disponível hoje em dia,
que está atualmente à venda para o público, considero que seja melhor retirar a sua
vestimenta dogmática e tratar os seus presumidos insights de modo cético. Meus
sentimentos não são o resultado de uma frívola inconstância, mas sim de uma
extensa investigação.
80
O lugar que a metafísica ocupa no conhecimento humano é fundamental:
toda investigação da verdade depende dela. Ainda, todas as formas de preservar a
verdade, e de defender a humanidade, dependem dela. Isso deve ao fato da
metafísica ser para Kant a base e a condição de possibilidade de todo
conhecimento legítimo. De acordo com KANT, a filosofia deve responder às
seguintes perguntas:
1. Que posso saber?
2. Que devo fazer?
3. Que me é permitido esperar?
4. Que é o homem?
A metafísica responde à primeira questão, a moral a segunda, a religião a
terceira, e a antropologia a quarta. Fundamentalmente, entretanto, podemos
considerar tudo isso como antropologia, porque as três primeiras perguntas se
relacionam com a última.
81
80
KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 90-91. Ak 10:71.
Carta de Kant a Mendelssohn, de 8 de Abril de 1766. Citado em: KUEHN, M. Kant: A Biography.
Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 183, porém com a data errada.
81
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 538 [Lógica
Jäsche, 25].
Cabe à metafísica responder à pergunta “o que posso saber?”, sendo
também uma antropologia. A metafísica subjetiva é a única disciplina capaz de
fundamentar o conhecimento filosófico como um todo, de modo a organizar e
direcionar todas as suas esferas, e orientá-las para o autoconhecimento. Desse
modo, além da metafísica ser ela mesma antropologia, é ela a atividade primeira e
principal para uma antropologia.
Para Kant, a metafísica, a moral e a religião, entre si rigorosamente
diferenciadas, pertencendo a esferas distintas do conhecimento, mantém entre si
uma afinidade, que é serem elas mesmas formas de conhecimento de si; a
antropologia está no fundamento de cada uma dessas disciplinas e, ao mesmo
tempo, cada uma avança na direção de uma antropologia como a meta una do
conhecimento filosófico. Desse modo, a teologia, o hilozoísmo, e a metafísica
transcendente, na medida em que operam alheias ao modo de conhecer, impõem-
se como obstáculos ao autoconhecimento. Entretanto, como estão na base dos
conflitos entre filósofos dogmáticos, todos em querela uns com os outros acerca
de uma verdade objetiva, sobre a natureza das coisas mesmas, sem nenhuma
autocrítica, têm um aspecto positivo, proveitoso, pois transmitem a mensagem que
a filosofia, e o homem, conheçam a si mesmos.
3
Dogmatismo
A razão para sempre incorrermos tão terrivelmente no erro é que
buscamos encontrar fora de nós o que está apenas em nosso interior.
82
Kant descreve o dogmatismo metaforicamente como um travesseiro no qual
se pode adormecer, e como uma doença da razão de se isolar e se fechar em si
mesma. E em uma reflexão entre 1776-78, descreve os filósofos escolásticos
como piratas que, ao encontrarem uma praia desocupada, a primeira coisa que
fariam seria nela construir um forte. Se por um lado é rigoroso na crítica à
filosofia dogmática, é ao mesmo tempo igualmente rigoroso ao defender o
procedimento dogmático em seu caráter naturalmente necessário para todo
conhecimento.
3.1
A distinção entre Dogmatismo e Procedimento Dogmático
Dogmatismo é um termo é abrangente e diz respeito tanto ao pensamento
científico, à filosofia e à religião, quanto a uma atitude em relação ao
conhecimento e à vida. Pode-se dizer que o dogmatismo pertence à racionalidade,
e seria o método comum para conduzir as investigações dos fenômenos bem como
as especulações sobre o que estaria para além ou por trás deles. Se for permissível
afirmar que a razão é uma invenção histórica
83
, contudo é complicado pensar em
uma invenção do dogmatismo.
O dogmatismo em geral consiste em dois passos principais: [1] promover
uma resposta a uma questão que surge estabelecendo um juízo e; [2] sustentar e
aderir a esse juízo irrestritamente.
1 Johann Caspar Lavater (1741-1801) Em: KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999, p. 150. Carta de Lavater a Kant, de 8 de Abril de 1774.
83
CHÂTELET, F. Uma História da razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 15.
O primeiro passo pertence à estrutura do modo de conhecer e é tão
intrínseco ao homem quanto à própria habilidade para pensar. Julgar é a atividade
básica do entendimento e a primeira condição para o conhecimento de todo e
qualquer fenômeno que possa aparecer. Esse procedimento dogmático é tão
natural quanto é necessário, para o pensamento em geral e para todo o
conhecimento humano. Como está inserido na natureza do modo de conhecer, é
inevitável e impossível erradicar, e deve ser distinguido do dogmatismo.
O segundo passo consiste em defender que o procedimento dogmático pode
ser usado irrestritamente, sem limites e sem nenhuma crítica às suas capacidades.
É isto o que caracteriza o dogmatismo como uma doutrina, como um método
exclusivo, como uma atitude cognitiva irrestrita - podendo aplicar-se tanto às
coisas quanto à vida mesma – a qual generaliza e extrapola o procedimento
dogmático próprio do entendimento humano.
O procedimento dogmático é uma necessidade que está inserida nas
estruturas que constituem o entendimento, o pensamento, a linguagem. Já o
dogmatismo se depreende a partir do uso do entendimento, do pensamento e da
linguagem, e aproveita-se de sua estrutura para fins próprios. Deste modo, o
dogmatismo pode ser considerado um vício da mente que está em germe na sua
natureza.
Pode-se afirmar que o entendimento humano tem uma estrutura dogmática,
no sentido de ter de proceder dogmaticamente, pois é discursivo e baseia-se no
juízo, ao passo que o dogmatismo como emissão de juízos sem crítica é uma
tendência, que, mesmo que possa estar em germe na natureza do modo de
conhecer, não é legítima, e, pode-se acrescentar, nem essa tendência nem esse
germe servem de respaldo para seus enganos.
Para Schopenhauer, a diferença fundamental entre a filosofia dogmática e a
filosofia crítica repousa em que Kant torna em seu problema investigar os
alicerces para as construções dogmáticas e buscar as suas causas, que residem na
própria mente
84
, ao passo que os dogmáticos procedem sem nenhuma autocrítica.
KANT escreve:
O criticismo não se opõe ao procedimento dogmático da razão no seu
conhecimento puro como ciência (pois a ciência deve sempre ser dogmática, isto é,
84
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora
UNESP, 2005, p. 530 (I 499).
deve provar as suas conclusões estritamente a priori baseando-se em princípios
seguros), opõe-se tão somente ao dogmatismo, isto é, à presunção de seguir por
diante apenas com um conhecimento puro por conceitos (filosóficos) de acordo
com princípios, os quais a razão vem usando há muito tempo sem primeiro
investigar de qual modo e com que direito os obteve. O dogmatismo é, portanto, o
procedimento dogmático da razão pura sem uma crítica prévia da sua própria
capacidade.
85
Para Kant, o procedimento dogmático é uma necessidade do conhecimento
racional, sendo uma característica da cientificidade. A crítica se opõe ao seu uso
sem reflexão, sem a investigação das suas capacidades e fronteiras e, assim, sem
nenhuma garantia da sua legitimidade.
Na distinção entre o procedimento dogmático e o dogmatismo, Kant tem em
mente, em especial, o caso da matemática. Kant reconhece a importância da
matemática para o conhecimento em geral, e em particular para a razão pura, mas
insiste que a filosofia não pode imitar o método da matemática – o que é feito, até
Kant, sem nenhuma crítica da possibilidade dessa apropriação, e a crítica
kantiana, então a acusa como ilegítima -, sendo duas ciências inteiramente
diferentes. Kant escreve antes de 1768: “A matemática exibe a maior dignidade da
razão humana, a metafísica, entretanto, seus limites e sua verdadeira vocação.”
86
Na Crítica da Razão Pura, Kant sustenta que as definições, os axiomas e as
demonstrações em sentido matemático não são possíveis na filosofia.
87
Entretanto, é justamente o que a filosofia dogmática tenta, mas não pode imitar da
matemática, como fazem, em particular, Leibniz, Wolff e Mendelssohn
88
,
seguindo uma tradição que remonta a Platão, o qual considerava que a filosofia se
distingue da doxa, de somente afirmar opiniões, justamente por conter
demonstrações infalíveis, ao modo dos geômetras.
No texto Investigações sobre a clareza dos princípios da teologia natural e
da moral (1764), Kant apresenta uma visão clara sobre a distinção entre o
conhecimento matemático e o filosófico. O primeiro possui um objeto
incomparável, pois não é dado, mas é criado por ela – “(...) a matemática chega
85
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 119: B
XXXV.
86
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 83. Reflexão
3717, Ak 17:262.
87
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 637-41
[A727-35 / B755-63].
88
SHABEL, L. “Kant’s Philosophy of Mathematics” Em: GUYER, P. (Ed.) The Cambridge
Companion to Kant and Modern Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. pp.
95-97.
aos seus conceitos sinteticamente”
89
-, o que não acontece na filosofia, na qual
“(...) o conceito de uma coisa é sempre dado, mesmo se confusamente ou de
forma insuficientemente determinada”.
90
Cabe à filosofia o exercício da análise, a
partir de conceitos dados – não pode imitar a matemática em seu procedimento
sintético in concreto.
No primeiro capítulo da Doutrina do Método da Crítica da Razão Pura,
Kant investiga se o procedimento matemático, pelo qual se chega a certezas
apodicticas nessa ciência, é equivalente ao método pelo qual se buscam essas
mesmas certezas na filosofia, e se chama dogmático.
A visão madura que Kant apresenta na Crítica da Razão Pura da distinção
entre o conhecimento matemático e o filosófico consiste em que o conhecimento
matemático procede intuitivamente. A partir de intuições a priori - espaço e
tempo-, o conhecimento matemático constrói conceitos, que estão fundamentados
na sensibilidade humana. Ao passo que o conhecimento filosófico é discursivo, e
consiste na análise de conceitos. A maior diferença entre a filosofia e a
matemática, e o motivo principal pelo qual a filosofia não pode imitar o método
desta reside em que o conhecimento filosófico é discursivo, e o matemático
intuitivo.
Uma definição consiste em exibir exaustivamente o conceito de uma coisa
dentro de seus limites. A definição de um triângulo, por exemplo, é uma regra de
construção apodictica de todo e qualquer triângulo, ou seja, exaustiva. As
definições filosóficas, entretanto, não gozam de completude absoluta, mas
consistem somente na exposição de um dado conceito. Estes podem sempre ser
alargados, e carecem de uma definição exaustiva para serem compreendidos, ao
passo que definir um triângulo é equivalente a estabelecer a regra definitiva da sua
construção.
Os axiomas são proposições sintéticas imediatamente certas, auto-evidentes.
Os princípios da filosofia não são auto-evidentes, mas sempre requerem uma
dedução, ao contrário dos axiomas matemáticos. Os conceitos matemáticos
trazem uma síntese a priori a intuições puras, já um conceito não pode estar
89
KANT, I. Inquiry concerning the distinctness of the principles of natural theology and morality.
Em: KANT, I. Theoretical Philosophy 1755-1770. Cambridge: Cambridge University Press, 2003,
p. 264: Ak 2: 291.
90
KANT, I. Inquiry concerning the distinctness of the principles of natural theology and morality.
Em: KANT, I. Theoretical Philosophy 1755-1770. Cambridge: Cambridge University Press, 2003,
p. 248: Ak 2: 276.
combinado sinteticamente e ao mesmo tempo imediatamente a outro conceito,
pois é preciso recorrer à experiência para conhecer a sua relação determinada,
sendo impossível conhecer um princípio discursivo, filosófico, somente por
conceitos.
Para Kant, somente uma prova apodictica intuitiva pode ser chamada de
demonstração. O conhecimento filosófico, discursivo, precisa sempre recorrer a
uma experiência possível, e não é nunca auto-evidente: “A experiência pode muito
bem ensinar o que é, mas não que não possa ser de outro modo.”
91
A matemática
não deriva o seu conhecimento de conceitos, mas da sua construção, e desse modo
chega ao universal in concreto, em uma intuição individual. A filosofia considera
o universal in abstracto, através de conceitos. Somente a matemática contém
demonstrações, a filosofia, apenas provas acroamáticas, discursivas, por meras
palavras que representam o objeto no pensamento.
Os acroamas são proposições fundamentais (Grundsätze) que não são
axiomáticas (como as da matemática), e sim discursivas. Nas palavras de KANT,
Um princípio intuitivo chama-se axioma. Não há uma palavra na filosofia
para princípios discursivos, pois ninguém jamais fez a distinção entre princípios
intuitivos e discursivos. Poder-se-ia chamá-lo de acroama, entretanto, uma
proposição que pode ser expressa somente por palavras e através de conceitos
universais puros. Um axioma, todavia, pode ser exibido somente pela intuição.
92
As definições, os axiomas e as demonstrações são específicos da
matemática e, por conterem uma intuição, estão “acima” da linguagem. A
definição de um triângulo, que consiste no seu método de construção, é
axiomática, ou seja, é definitiva e independente da sua formulação. Ao passo que
os acroamas, os princípios da filosofia, não passam de “meras palavras”, i.e., de
conceitos, em vez de intuições como nas matemáticas, e estão sujeitos a
adaptações, traduções, e a constante reformulação. Os acroamas são “princípios
não analisáveis” no sentido de que são princípios não redutíveis a outros
princípios mais fundamentais, embora em sua expressão “nada mais são do que
palavras”. Segundo CAYGILL, os acroamas:
91
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 641
[A734/B762].
92
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 382. The
Hechsel Logic, 88.
(...) recebem a sua autoridade através de um processo discursivo de
legitimação ou prova. Essa prova é realizada através da reelaboração de termos
filosóficos tradicionais, tais como, no caso da primeira analogia, os de “substância e
acidente”. Os acroamas estão abertos a constante desafio discursivo e são
legitimados através da linguagem e da análise da linguagem.
93
Ao contrário da matemática e da sua auto-evidência, os princípios
filosóficos, os acroamas, recebem a sua legitimidade através de um processo
discursivo, do debate, e são sempre questionados e enriquecidos pela sua
comunicação. Se na filosofia não há dogmata, mas somente acroamata, um
método exclusivamente dogmático, seja imitado da matemática, pretendendo ter
definições, axiomas e demonstrações como as dessa ciência, seja qualquer de
qualquer outro tipo, é inapropriado.
94
“Não obstante,” KANT escreve:
o método pode ser sempre sistemático. Pois a própria razão
(subjetivamente) é um sistema, porém em seu uso puro, por meio de simples
conceitos, somente um sistema para a pesquisa de acordo com princípios de
unidade, para os quais tão-só a experiência pode fornecer a matéria.
95
A experiência é a referência necessária dos princípios filosóficos, e
proceder sistematicamente significa investigar o domínio da experiência
exaustivamente, onde não há conhecimentos deslocados ou desconectados, mas
interligados na unidade da experiência e em um sistema heurístico da razão
humana. Assim, o procedimento dogmático que Kant resguarda consiste, por um
lado, em proceder sistematicamente sobre o modo de conhecer (como
propedêutica necessária para a investigação da natureza), abrindo mão de provas
auto-evidentes, sem crítica nem dedução, ou seja, de definições, axiomas e
demonstrações em sentido matemático na filosofia, e, por outro lado, fazer a
busca de unidade sistemática da razão pura se voltar para o domínio do
entendimento, fazendo das idéias transcendentais um uso imanente em vez de
transcendente, o que Kant chama de uso regulativo da razão pura.
Após distinguir o dogmatismo do procedimento dogmático, KANT
esclarece que refutar o primeiro de forma nenhuma dá azo ao ceticismo:
93
CAYGILL, H. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 10.
94
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 642-43
[A 737 / B 765].
95
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 643 [A
738 / B 766].
(...) o criticismo é a atividade preparatória necessária para o avanço da
metafísica como uma ciência bem fundada, que deve ser necessariamente
dogmática, levada a cabo sistematicamente de acordo com as mais rigorosas
exigências (...)
96
O caminho proposto pela filosofia transcendental para a estrada real de uma
metafísica da natureza é conhecer sistematicamente a espontaneidade da liberdade
humana na experiência. A metafísica é possível somente como uma ciência da
estrutura necessária da experiência e do conhecimento. Por um lado, consiste na
ciência dos limites da razão humana e, por outro lado, na ciência da extensão
legítima do entendimento, a aplicação dos seus princípios à experiência. Kant
contribui nessa tarefa de autoconhecimento com a expressão dos seus princípios
puros para a filosofia, os doze princípios do entendimento puro ou acroamas.
O dogmatismo não critica seus fundamentos, nem reconhece limites para as
suas investigações. A filosofia crítica empreende ambas essas “rigorosas
exigências”, e exibe o conhecimento possível e legítimo não objetivo, mas sobre o
próprio modo de conhecer, o qual é o seu resultado.
Em seus esforços transcendentais, a razão não pode olhar adiante tão
confiadamente como se o caminho que percorreu levasse tão diretamente à sua
meta, nem fiar-se tão veementemente nas premissas que o fundamenta como se
fosse desnecessário para ela olhar para trás frequentemente e considerar se não há
erros no progresso das suas inferências a serem descobertos que passaram
despercebidos em seus princípios, e que tornam necessário ou determiná-los ainda
mais ou alterá-los por inteiro.
97
A contínua reformulação dos acroamas tem ainda a vantagem de manter em
proximidade constante os princípios filosóficos, de modo a sempre se raciocinar
sobre eles, em vez de estabelecê-los de uma vez por todas e mantê-los isolados
nas bases de um sistema. Nesse sentido, pode-se afirmar que a discursividade, a
comunicação é essencial à crítica, “olhar para trás” na filosofia não significa
necessariamente um retrocesso, mas pode trazer novidades, alterações inteiras, e
ainda, auxiliam o sujeito a nem enrijecer e nem esmorecer.
96
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 119 [B
XXXVI].
97
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 641-42
[A 735 / B 763].
3.2
A tendência dogmática
A inclinação mais forte em relação ao conhecimento é para o dogmatismo.
A tendência mais primeva do homem é assentar verdades eternas e imutáveis, ou
seja, o desejo de estar definitivamente na posse da verdade e, através da sua
regularidade, dominar a natureza. O dogmatismo predomina nos homens tanto
pela sua comodidade, quanto pela ignorância de si. Ambos, comodidade e auto-
ignorância, recaem sobre o medo de se expor e a preguiça de investigar. Segundo
KANT,
O dogmatismo é a maneira de pensar que está conectada a proposições
sem crítica. (isto é, o exame dos princípios) A tendência mais natural da humanidade
no tocante ao conhecimento é em direção ao dogmatismo: 1. Devido à preguiça, já
que voltar aos princípios é mais difícil do que prosseguir à explicação dos princípios
que já foram presumidos e estão em circulação. 2. Porque pela crítica o conhecimento
não é expandido, mas somente tornado confiável. 3. Pelo medo de revelar a pobreza
do nosso conhecimento para nós mesmos e para os outros.
98
Essa passagem diz respeito tanto ao indivíduo quanto à humanidade. O
dogmatismo é a tendência mais natural do homem. É a forma mais simples de
saciar o entendimento humano e fazê-lo acreditar que chegou a uma certeza no
seu conhecimento. A naturalidade do dogmatismo explica que seja a infância do
conhecimento, mas, ao mesmo tempo, a comodidade que oferece faz do
dogmatismo a atitude cognitiva mais predominante, sendo a que prevalece na
humanidade e na vida dos homens.
Por um lado, o dogmatismo consiste na adesão irrestrita a princípios que
são tidos como indiscutíveis. Assim, o dogmático é quem afirma uma verdade
eterna e deseja mantê-la fora de discussão. Nesse sentido, um “dogma” é
essencialmente um ultimato: ou é aceito ou então se está alienado da verdade
inquestionável. Paralisa o raciocínio pelo medo, e estanca o pensamento por
preguiça. Pode-se pensar que o dogmatismo, paradoxalmente, é uma ameaça à
razão que lhe oferece refúgio, e a imposição de uma escravidão que promete a
98
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 276. Ak 18:
294. Reflexão de 1785.
libertação. Segundo KANT, “O dogmatismo é um travesseiro para nele
adormecer, e põe um termo a toda vitalidade, a qual é precisamente o benefício
conferido pela filosofia.”
99
Por outro lado, todo dogmatismo visa afirmar um sistema de princípios
apodícticos. Nesse sentido, o dogmatismo é uma radicalização – porém ilegítima –
da busca de objetividade que acompanha o pensamento desde o seu início, e está
fundado no procedimento dogmático do conhecimento, que consiste em sempre
proceder sistematicamente na busca por princípios cada vez mais gerais. Para
KANT, “Se alguém deseja estender o seu conhecimento racional através de meros
conceitos, e daí nenhuma crítica prossegue, então é um dogmatista”.
100
O procedimento sistemático é um método investigativo que é exigido pela
própria natureza humana, que não deseja deixar nada incompleto. Já o
dogmatismo consiste em dele lançar mão sem se preocupar com a crítica às suas
capacidades e os limites da sua legitimidade. Todavia, a diferença entre o
dogmatismo e a crítica não se reduz somente à observação dos limites do
procedimento sistemático e do entendimento humano. É, sobretudo, a
investigação do modo de conhecer e a sua relação com a tendência dogmática do
homem que caracteriza a filosofia crítica.
Pode-se pensar que a natureza do entendimento é na verdade avessa ao
dogmatismo, sendo a sua marca o exame e a investigação, e não só afirmar juízos
dogmaticamente. Se o entendimento é inclinado a investigar, contudo, deve para
isso superar inclinações mais fortes, que o levam em direção ao dogmatismo,
devido tanto ao resultado esperado da sua investigação, que impele a uma decisão,
quanto à preguiça e ao medo do homem, que o mantêm na menoridade e na
ausência de crítica. De acordo com KANT,
O espírito dogmático na filosofia é a linguagem orgulhosa do ignorante, que
gosta de tudo decidir e não gosta de investigar nada absolutamente. Ao passo que o
nosso entendimento é bastante inclinado a examinar tudo e a investigar
precisamente antes de aceitar e manter qualquer coisa, e a olhar bem à sua volta
sem rejeitar cegamente algo que ocorre a nós.
101
99
KANT, I. “Proclamation of the Imminent Conclusion of a Treaty of Perpetual Peace in
Philosophy”. Em: Theoretical Philosophy After 1781. Cambridge: Cambridge University Press,
2002, p 454. AK 8:415.
100
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 479. Dohna -
Wundlacken Logic, Ak 745.
101
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 163. The
Blomberg Logic, 206.
O entendimento é destinado a pensar e a examinar, não a ser simplesmente
assertivo. O dogmatismo caracteriza antes um abuso do entendimento do que o
seu uso conseqüente. O uso conseqüente do entendimento não pode ser
desvencilhado da crítica. Entretanto, KANT escreve:
A natureza humana na verdade é bem mais inclinada para decidir do que
sempre examinar, e para estabelecer a sempre investigar. Porque não estamos
satisfeitos quando temos de deixar algo incompleto, especialmente no nosso
conhecimento, mas em vez disso queremos estabelecer tudo, para no caso da
necessidade surgir podermos recorrer a um conhecimento seguro e completamente
certo.
O nosso entendimento é na verdade mais satisfeito com a decisão.
102
Pode-se dizer que há um conflito no entendimento humano entre a decisão e
a investigação. A natureza humana é inclinada a decidir tudo definitivamente e a
obter a segurança de um conhecimento completamente certo e confiável, e a
decisão prevalece quando se apresentam limites à investigação. Entretanto, o
espírito dogmático na filosofia não corresponde à essência do entendimento
humano. Segundo KANT,
Os métodos escolásticos e doutrinais comuns de filosofia tornam a
pessoa burra, porquanto operam com uma completude mecânica. Eles estreitam o
entendimento e o torna incapaz de aceitar instrução. Em contraste, a crítica alarga os
conceitos e deixa a razão livre. Os filósofos escolásticos operam como piratas que
assim que chegam a uma costa desocupada a fortificam.
103
Os dogmáticos desejam ocupar o espaço vazio entre esse conflito, de modo
que o homem não precise se preocupar nem em investigar, nem decidir nada por
si mesmo. Dessa maneira estreitam o entendimento e o torna incapaz de pensar
por si próprio. A escola dogmática da filosofia aproveita-se da tendência
dogmática da humanidade e diminui as suas possibilidades, assim, o homem nem
sequer chega a enfrentar o conflito de forças em que pensar por si mesmo
consiste. HUME escreve:
A maior parte da humanidade é disposta naturalmente a ser afirmativa e
dogmática nas suas opiniões, e enquanto as pessoas vêem os objetos somente por
um lado, e não têm idéia de nenhum argumento de contrapeso, elas se lançam
precipitadamente aos princípios aos quais são inclinadas, nem têm elas nenhuma
indulgência com aqueles que têm sentimentos opostos. (...) Mas pudessem tais
pensadores dogmáticos tornar-se sensíveis às estranhas enfermidades do
102
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 167. The
Blomberg Logic, 212.
103
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p.211.
Reflexão 5089, de 1776-78.
entendimento humano, mesmo no seu mais perfeito estado, e quando mais preciso e
cauteloso em suas determinações; essa reflexão iria naturalmente inspirar-lhes mais
modéstia e reserva, e diminuiria a sua opinião apaixonada de si mesmos, e o seu
preconceito contra seus antagonistas.
104
Ancorado na atitude dogmática, o homem é capaz de nutrir um apreço
desmedido por si mesmo e um desprezo infundado pelos outros. Ambos se
fundam em sua ignorância de si. Este estado é capaz de ser perpetuado tanto pelo
dogmatismo ingênuo, do entendimento comum, quanto pelo dogmatismo
metafísico.
É comum na infância da filosofia a crença irrestrita na razão e a suposição
de que a sua luz da razão seja semelhante ou igual ao entendimento divino. No
modelo da metafísica dogmática, apenas por uma longa e duradoura meditação a
verdade seria enviada diretamente por Deus e revelada através da razão. Dessa
forma, a competência filosófica diria respeito mais à maturação das opiniões e
menos à investigação. A meditação e a especulação, como no caso de Descartes
[em seu ócio seguro num retiro solitário] e Leibniz [tendo meditado há muito
tempo sobre o mesmo assunto]
105
, seriam mais importantes que a discussão das
idéias e o diálogo pautado por experimentos e observações. KANT afirma: “O
primeiro passo nos assuntos da razão pura, o qual caracteriza a sua infância, é
dogmático”
106
, e escreve:
Wolff fez grandes coisas na filosofia, mas foi precipitado e estendeu o
conhecimento sem assegurá-lo, alterá-lo e reformá-lo através de uma crítica especial.
Seus trabalhos são, portanto, muito úteis como uma revista para a razão, mas não
como uma arquitetônica para ela. Talvez esteja de acordo com a ordem da natureza,
porém certamente para não ser aprovado em Wolff, que ao menos as experiências do
entendimento devem primeiramente se multiplicar sem um método correto para o
conhecimento, e serem sujeitas a regras somente depois. Crianças.
107
O dogmatismo é considerado como a infância da razão segundo o critério
do autoconhecimento, que é a base kantiana para interpretar a verdade em toda a
história da filosofia. O dogmatismo transcendente está tão distante do
104
HUME, D. An Enquiry Concerning Human Understanding. The Great Books Vol. 35. Chicago:
The University of Chicago, 1952, p. 508.
105
LEIBNIZ. Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano. São Paulo: Editora Abril Cultural
[col. Os Pensadores], 1980, p. 7. DESCARTES. Meditações Metafísicas. Coimbra: Livraria
Almedina Coimbra, 1988, p.106.
106
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 654: A
761 / B 789.
107
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 207.
Reflexão 5035, de 1776-78, Ak 18:68.
autoconhecimento que Kant o enxerga como um jogo infantil dos elementos do
conhecimento humano, despreocupado, vaidoso e arrogante. É nesse contexto que
Kant entende como o dogmatismo pode ser aproveitado, pois lança mão da
estrutura do modo de conhecer em tentativas ingênuas, como uma experimentação
da razão sem nenhuma pauta ou plano prévio, e por isso mesmo pode conter
coisas interessantes. Comte e Kuhn vêem o dogmatismo como o estado normal da
inteligência humana, e o ceticismo como um momento de crise, um estado
suspensivo no qual o sujeito é chamado a mudar de doutrinas. Esse dinamismo é
somente relativo e, na verdade, uma maneira ainda rígida de pensar a relação de
ceticismo e dogmatismo. Sem dúvida, o dogmatismo é o estado normal da
consciência, não somente a infância do pensamento. Não desaparece após uma
conversão da inteligência ou da filosofia.
Mais costumeiro que o exame cético do conflito que o dogmatismo acarreta,
é a simples suspensão, sem reflexão, que não caracteriza uma atitude cética, mas
somente uma pausa no dogmatismo, um repouso. Esse uso mais comum e
cotidiano da suspensão, que é ocasionada mais pela confusão e menos pela
investigação, não leva a uma mudança de doutrinas, mas caracteriza uma crise
irrelevante, mediante a dúvida entre os extremos do conflito, mas não a descrença
cética em ambos.
Pode-se pensar que apesar de o estado normal da inteligência ser o
dogmatismo, a ausência de crítica, é a atitude crítica que melhor caracteriza o
pensamento em sua totalidade. Mesmo que para se chegar a essa atitude seja
necessária a reflexão e o autoconhecimento, é ela que representa melhor a
natureza da razão, sendo a mais capaz de abarcar e lidar com a sua totalidade e
compreender a sua unidade.
3.3
Esclarecimento (Aufklärung)
O Esclarecimento é a saída para a autonomia, para emancipar-se de uma
relação de tutela, na qual não é necessário fazer uso do próprio entendimento. No
texto Resposta à Pergunta: Que é o Esclarecimento? (1783), KANT escreve:
Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da
qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso do próprio
entendimento sem a direção de outro indivíduo.
108
Pensar por si mesmo é o lema do Esclarecimento. O mote Sapere Aude!
ouse, tenha a audácia de conhecer! -, encontra em seu caminho o medo e a
preguiça do homem para servir-se de si mesmo sem a direção de outrem
109
. O
próprio homem é o culpado por perpetuar-se no estado de menoridade, quando
essa não se deve à falta de entendimento, mas ao medo e à preguiça de usá-lo por
si mesmo. No seu primeiro opúsculo, Idéias para uma Verdadeira Avaliação das
Forças Vivas (1747), Kant insere esta passagem de Sêneca como o seu lema:
“Não há nada mais importante de que não devemos seguir como ovelhas a
manada que vai à frente, indo não aonde devemos, mas onde a manada vai.”
110
KANT escreve:
É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes do meu
entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um método que
por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu
mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros
se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis.
111
O Esclarecimento tem no seu caminho o dogmatismo como a tendência
mais forte do conhecimento. Nesse sentido, tem uma relação fundamental com a
cultura. Pensar por si mesmo requer ser capaz de criticar a própria cultura, pela
108
KANT, I. “Resposta à Pergunta: Que é o Esclarecimento?”. Em: Textos Seletos. Petrópolis:
Editora Vozes, 2005, p. 63.
109
KANT, I. “Resposta à Pergunta: Que é o Esclarecimento?”. Em: Textos Seletos. Petrópolis:
Editora Vozes, 2005, p. 63.
110
CASSIRER, E. Kant´s Life and Thought. New Haven: Yale University Press, 1981, p. 32.
111
KANT, I. “Resposta à Pergunta: Que é o Esclarecimento?”. Em: Textos Seletos. Petrópolis:
Editora Vozes, 2005, p.64.
qual os dogmas, sejam da religião, sejam de outras tradições, são primeiramente
transmitidos e aceitos. Isso não significa que a cultura mantém o homem na
menoridade. Mas como propõe uma determinada maneira de pensar, é um
respaldo para a atitude dogmática, a qual se fia, na maioria das vezes, no conteúdo
da cultura dada, no que é “meramente transmitido”.
Ao analisar o texto Sonhos de um Visionário (1766), no qual Kant ataca as
artes do oculto do sueco Emanuel Swedenborg, ADORNO o descreve como sendo
“aberta e explicitamente” adepto ao Esclarecimento, em especial, porque nele:
(...) a tarefa da razão, cuja existência como parte de nossa constituição natural
é vista essencialmente como positiva, é livrar-se de todo dogma, ilusão e
conhecimento que foi meramente transmitido.
112
Dessa forma, o esclarecimento tem uma tendência crítica, e a filosofia
crítica está diretamente ligada a uma tarefa de esclarecimento. Entretanto, o
“espírito” do esclarecimento não leva à crítica, não a contém necessariamente. É
com a crítica, devido à sua função negativa, que o Esclarecimento recebe um
fundamento sólido e o seu conceito é alargado – não deve lutar meramente contra
a superstição e a tradição, mas estar alerta para as contradições da própria razão,
mesmo em seu uso “esclarecido”.
A compreensão crítica do Esclarecimento consiste em combater o
dogmatismo ingênuo bem como o racionalismo dogmático, que é apenas outro
modo de viabilizar a tendência dogmática do conhecimento, embora entenda a si
masmo como “científico”, apesar de não criticar a si mesmo e permanecer com
uma crença ingênua, não no mito, na superstição ou na tradição, mas na própria
razão.
Portanto, com a autocrítica da razão o Esclarecimento pode compreender a
si mesmo como uma saída para a negatividade, ou seja, sair da menoridade
implica em uma tarefa a partir da própria autonomia: não é tão-somente rechaçar a
tradição e a superstição, mas sim disciplinar a própria razão em sua tendência
dialética, contraditória, e dogmática. O esclarecimento consiste em fazer uso do
próprio entendimento, em pensar por si mesmo, mas também pensar a si mesmo.
Ambos os exercícios não podem ser separados, e requerem a atenção para as
112
ADORNO, T. W. Kant´s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press, 2001,
pp. 57-58.
fronteiras do conhecimento e para as contradições resultantes do abandono do
domínio da experiência.
O entendimento humano comum (sensus communis) é também em si mesmo
uma pedra de toque para se descobrir os erros do uso artificial do entendimento. Isso
é o que significa orientar a si mesmo no pensamento ou no uso especulativo da razão
por meio do entendimento comum, quando se faz uso do entendimento comum como
um teste para se ajuizar sobre a correção do uso especulativo.
113
O entendimento humano “comum”, ao fazer uso de si mesmo, pode
orientar-se no pensamento tendo a si próprio como a pedra de toque da
legitimidade dos seus usos para além da experiência possível. Pode-se afirmar que
é, sobretudo, pela autoreflexão que se chega a sair da menoridade, através de
pensar conjuntamente por e a si mesmo; não é por conhecer ou especular sobre
uma variedade de coisas que se torna “esclarecido”.
No final do texto Resposta à Pergunta: Que é o Esclarecimento? Kant
assinala as contradições, no tocante ao público, do Esclarecimento. Quanto mais é
“dada” a liberdade, tanto mais é contraditória a prática do Esclarecimento. Isso
significa que a liberdade irrestrita, sem disciplina, trai a si própria. É preciso
orientar a si próprio no pensamento quando se goza de liberdade, quando não há
um tutor que faça as vezes do seu entendimento.
Desse modo, tanto o Esclarecimento, sem uma direção segura, quanto a
razão, sem a compreensão de si mesma, podem se tornar maléficos, pois podem se
voltar contra as suas próprias intenções. Para ADORNO:
Por um lado, a razão é sujeita ao criticismo inteiramente no espírito do
Esclarecimento e Kant dispõe de uma hoste inteira, de fato toda a panóplia, de
argumentos céticos contra a transformação dogmática da razão em um absoluto. Ao
mesmo tempo, entretanto, porque a razão está criticando a si mesma, ele retém a
idéia de razão e, com ela, a idéia de verdade objetiva. Vemos em Kant uma
hesitação, uma inconsistência, por assim dizer, uma desinclinação a simplesmente
seguir o caminho suave do progresso. Eu detecto nisso uma particular deliberação e
consciência que sinto ser o sinal de uma seriedade extraordinária. Quer dizer, o
movimento do Esclarecimento pode chegar à sua realização somente se o seu
próprio significado, ou seja, a idéia de verdade, for mantida; e se, no meio do
movimento dialético ao qual estes conceitos estão sujeitos, os conceitos
sobrevivam. Este insight glorioso está presente em Kant.
114
113
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 563:The Jäsche
Logic, 57.
114
ADORNO, T. W. Kant´s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press, 2001, p.
120.
Dessa maneira, a idéia de verdade tem de se basear na razão e ao mesmo
tempo proteger-se de seus devaneios. A razão não pode se tornar em algo
absoluto. Para que o Esclarecimento seja assegurada, é preciso que a “idéia de
verdade” seja “mantida”, e, pode-se acrescentar ainda, que a razão e o
Esclarecimento lutem e critiquem a si mesmos.
O Esclarecimento tem como ponto de partida o dogmatismo inerente ao
homem como tendência primeira e mais forte, que o leva a adotar uma postura
dogmática tanto para o mundo como para si mesmo. Esse dogmatismo postula pra
o mundo bem como para si próprio uma essência, uma existência real em si
mesma, que subsiste independentemente da crítica, das capacidades de conhecê-
la, das possibilidades de determiná-la. Para que o Esclarecimento seja uma força
viva, efetiva no homem e na realidade, ao contrário da crença de que ele ou a
razão por si só possam “seguir o caminho suave do progresso”, é necessário que
esse ponto de partida seja continuamente observado. Ao manter-se atento à
indelével tendência dogmática, em vez de limitar-se a uma função vigilante, a
razão e o Esclarecimento podem dela retirar a sua força, cogitando novas maneiras
de pensar e libertando a consciência das mesmas correntes que a aprisionam a
refletir sobre o existente de uma mesma maneira.
3.4
Dogmatismo, Religião e Diálogo
A liberdade de pensamento implica uma responsabilidade. Da mesma
maneira que, por um lado, se é livre para pensar, por outro lado, pensar por si
mesmo é um dever, não somente um mandamento moral, mas para se realizar
como ser humano e desenvolver todas as suas potencialidades. O dogmatismo
isenta o indivíduo dos seus próprios raciocínios e conclusões, como se estes
fossem somente recebidos diretamente por um poder maior. Na religião, a
responsabilidade dos dogmas não recai em quem os formulou ou em quem os
segue, pois seriam perfeitos em si mesmos e infalíveis. Kant define o dogma como
uma proposição teórica que é valida em si mesma e objetivamente.
115
Compare
com esta afirmação:
O dogma é uma definição clara e precisa de uma verdade revelada por Deus.
Não é nenhuma invenção da Igreja, mas simplesmente a formulação inequívoca de
verdades, para que os fiéis saibam com certeza no que se deve crer.
116
Kant é um defensor convicto da liberdade de pensamento. Além de
sustentar a necessidade do direito de pensar e se manifestar livremente, o ideal de
autonomia lhe é muito caro. A autonomia consiste na capacidade de formular e de
agir por máximas, retiradas do raciocínio de cada um e justificáveis também pela
própria razão. Da mesma maneira que é preciso pensar por si mesmo, e por si
mesmo se eximir do jugo da menoridade, a própria razão humana gozaria de uma
autonomia, ou seja, nela e por si mesma seria capaz de justificar e legitimar a idéia
de liberdade e de moralidade. Para KANT:
O suplemento indispensável para a razão é algo que, apesar de não ser parte
da filosofia especulativa, reside na razão mesma, algo a que podemos dar um nome
(como a liberdade, um poder suprasensível de causalidade em nós), mas não
podemos alcançar e agarrar (...) Pode-se admitir que se o evangelho não tivesse nos
instruído previamente nas leis morais universais em sua total pureza, a nossa razão
ainda não as teria descoberto tão completamente; ainda, uma vez que estamos na
115
KANT, I. “The End of All Things”. Em: KANT, I. Religion and Rational Theology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 223, Ak 8:329.
116
http://www.montfort.org.br/index.php?secao=cartas&subsecao=doutrina&artigo=200504211434
14&lang=bra Acesso em 15 de Novembro de 2007.
posse delas, podemos convencer qualquer um sobre a sua correção e validade
usando somente a razão.
117
A razão seria suficiente em si mesma. Embora não reúna o todo em seu
interior, o que ela possui basta para decidir sobre todas as coisas. Para JASPERS:
Ao interpretar a concepção, imagens e dogmas Bíblicos “nos limites da
simples razão”, Kant reconhece que há, nos confins da razão, um reino do
imperscrutável e misterioso. Mas o imperscrutável não é o irracional, é algo que a
razão experiencia como o limite da razão e traz para a luz da razão. (…) O
entendimento com a sua reflexão lógica age como um juiz sobre figures míticas e
dogmáticas, mas a razão como um todo é a área na qual elas operam e são testadas
eticamente pela essência dos homens racionais que vivem por elas. A fé é esperança
quando a razão invade o imperscrutável, porém é uma fé baseada na própria razão,
mas não em nenhuma garantia exterior. A razão alcança, não o ser em si mesmo, mas
o ser enquanto torna-se acessível a uma criatura finita na sua razão. Portanto, em
Kant (…) a religião não é uma fonte independente.
118
A religião não é uma fonte independente para conduzir a ação dos homens.
A moralidade é independente da crença religiosa. Cada um deveria ser capaz de
buscar em si mesmo a razão para as suas ações e ponderar a moralidade delas.
Segundo KANT:
(…) Ao passo em que o dogma requer erudição histórica, a razão por si só é
suficiente para a fé religiosa. A razão, de fato, alega interpretar o dogma, enquanto é
o veículo da fé religiosa. Mas já que o valor do dogma é somente o de um meio para
a religião como o seu fim último, pode esta alegação ser mais legítima? E pode haver
um princípio maior que a razão para resolver argumentos sobre a verdade?
119
É a lei moral que habita na razão de todos os homens que deveria servir de
orientação para a prática, não os dogmas da igreja, mesmo se se crer que venham
diretamente da palavra de Deus. Nas palavras de KANT:
Eu distingo entre os ensinamentos de Cristo e o relato que temos desses
ensinamentos. Para que os últimos possam ser vistos em toda a sua pureza, Eu busco,
sobretudo, separar os ensinamentos morais de todos os Dogmas do Novo Testamento.
Esses ensinamentos morais constituem certamente a doutrina fundamental dos
Evangelhos, e o restante pode servir tão-somente de auxiliares a eles. Dogmas nos
dizem somente o que Deus fez para nos ajudar a ver a nossa fragilidade em buscar
justificação antes dele, ao passo que a lei moral nos diz o que devemos fazer para
sermos dignos de justificação.
120
117
KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p.319 / Ak 11:76.
Carta de Kant a Jacobi, de 30 de Agosto de 1789.
118
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 86.
119
KANT, I. The Conflict of the Faculties Em: Kant, I Religion and Rational Theology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p.269, Ak 7:45.
120
KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 152. Carta de
Kant a Lavater, de 28 de Abril de 1775.
Apesar de salientar esta autonomia da razão, a exteriorização das idéias no
discurso e na conversação é imperativa para o bom uso da razão e para mantê-la
ativa e saudável. A crença é privada, a crítica é pública. As capacidades
intrínsecas da razão não a levam ao solipsismo, pelo contrário, constituem o ponto
de partida de uma razão comunicativa. Como afirma KANT no texto O que
Significa Orientar-se pelo Pensamento? (1786):
À liberdade de pensar contrapõe-se, em primeiro lugar, a coação civil. Sem
dúvida, há quem diga: a liberdade de falar ou escrever pode-nos ser tirada por um
poder superior, mas não a liberdade de pensar. Mas quanto e com que correção
pensaríamos nós se, por assim dizer, não pensássemos em comunhão com os
outros, a quem comunicamos nossos pensamentos e eles nos comunicam os seus!
Por conseguinte, pode muito bem dizer-se que o poder exterior, que arrebata aos
homens a liberdade de comunicar publicamente os seus pensamentos, lhes rouba
também a liberdade de pensar (...)
121
.
JASPERS afirma: “A liberdade de comunicação é indispensável para a
liberdade de pensamento.”
122
. Pode-se afirmar que a maior dissensão de Kant em
relação ao dogmatismo diz respeito ao diálogo. A crença em princípios
irretorquíveis é uma ameaça à liberdade do pensamento e ao direito de falar por si
próprio. O dogmatismo é avesso ao diálogo: possuem naturezas contrárias que se
excluem mutuamente; ao passo que o raciocínio e a comunicação promovem um
ao outro reciprocamente.
A responsabilidade de liberdade de pensar consiste em tornar os
pensamentos passíveis de serem comunicados, isto é, de buscar a verdade. Em
nenhum dos raciocínios da metafísica dogmática há comunicação, mas somente
um monólogo solipsista. Pode-se dizer que a maior dissensão de Kant com a
metafísica transcendente não é somente a saída do domínio da experiência
possível, mas inclusive a ausência, inclusive a impossibilidade de diálogo que daí
resulta.
Na Crítica da Razão Pura, Kant faz a distinção entre ter uma opinião, crer e
conhecer. O conhecimento é o único possível de ser comunicado, sendo válido
tanto subjetiva quanto objetivamente, ao passo que quem tem uma opinião sabe
que ela é insuficiente, tanto em seu caráter objetivo quanto subjetivo, e a crença é
121
KANT, I. “O que Significa Orientar-se pelo Pensamento?” Em: A Paz Perpétua e Outros
Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 52. A 325.
122
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 125.
válida somente subjetivamente.
123
O pensador dogmático não tem esse
discernimento, mas quer fazer valer as suas crenças e opiniões como
conhecimento, inclusive para si mesmo. Desse modo, a comunicação torna-se um
perigo para ele, que ameaça tornar patente a sua ignorância e ter que questionar a
si próprio. Segundo KUEHN,
A única coisa que talvez não fosse típica da vida de Kant é o grande papel que
socializar com seus amigos desempenhava nela. Kant era uma pessoa muito gregária
e sociável – não tanto a figura solitária, isolada, e algo cômica que muitos vieram a
enxergar nele. O diálogo era mais importante para ele do que muitas pessoas hoje
querem admitir. A sua filosofia crítica é uma expressão dessa forma de vida, e faz
sentido primeiramente no contexto dessa forma de vida. Aquilo que Kant “destruiu”,
ou desejava destruir, em sua Crítica eram os monstros que impediam essa forma de
vida. Ela nasceu do diálogo, algo que a grande função que a “dialética” desempenha
nela já deveria ter tornado mais do que claro. Desse modo, a Crítica pode ainda ser
vista como uma tentativa de mostrar porque diferentes posições em uma conversação
não devem ser admitidas dogmaticamente para apresentar a única verdade, e porque
todos os participantes da conversação da humanidade devem ser assegurados um
direito de manifestar-se igual.
124
De acordo com Kuehn, a própria Crítica da razão Pura nasce do diálogo, e
nela o diálogo, a contraposição de idéias, pela qual unicamente é possível surgir
uma perspectiva mais abrangente, lhe é vital. Em contrapartida, princípios
irreplicáveis encerram o diálogo aberto, a discussão livre. O dogmático não aceita
realmente o debate, e costuma nutrir pouco respeito ou tolerância para com os
seus adversários, embora um dogma sempre suscite controvérsias. O dogma
mantém os lados opostos de um conflito em isolamento. Assim, não há
concessões ou nenhuma troca. O conflito em torno de um dogma se perpetua
cristalizado, marcado pela recíproca intolerância e, por assim dizer, pára no
tempo. Para KANT,
A sociedade é o verdadeiro tempero da vida, e faz a pessoa dignificada útil; e
quando os instruídos não conseguem conversar, isso é o resultado da sua assiduidade,
ou do desprezo da sociedade. Este é fundado na falta de conhecimento do mundo e do
valor da erudição. O erudito deve ser capaz de conversar com todas as classes porque
está fora de todas as classes...
125
123
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 686 [A
832 / B 851].
124
KUEHN, M. Kant: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 273.
125
KUEHN, M. Kant: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 131. Ak 27:
I.
O alcance fraco dos pensamentos indica a limitação de uma mente estreita.
Kant nunca viajou, senão quando foi preceptor em Judtschen, próxima a
Königsberg
126
, cidade portuária que recebia muitos estrangeiros. Entretanto, era
afeito à conversação, sendo requisitado socialmente. O intelectual que não alcança
a publicidade das suas teorias e não conversa com ninguém está alienado do
mundo, e dessa maneira, alienado de si mesmo. Desse modo isolado em si
mesmo, não é possível crescer, e assim é o isolamento que cresce cada vez mais.
KANT escreve:
Você sabe muito bem que sou inclinado não somente a tentar refutar
críticas inteligentes, mas que eu sempre as entrelaço junto aos meus próprios juízos
e lhes concedo o direito de derrubar todas as minhas dantes preciosas opiniões. Eu
espero desse modo que eu possa chegar a uma perspectiva abrangente, ao ver os
meus juízos do ponto-de-vista dos outros, para que assim uma terceira perspectiva
possa emergir, superior às minhas anteriores.
127
Através do diálogo é possível fortalecer os seus argumentos, incluindo o
ponto de vista de outros em seus raciocínios. A comunicação não somente
caracteriza o conhecimento e a sociabilidade do homem, como a sua própria
natureza. Para KANT:
(...) humanidade significa de um lado o universal sentimento de participação
e, de outro, a faculdade de poder comunicar-se íntima e universalmente: estas
propriedades coligadas constituem a sociabilidade conveniente à humanidade.
128
Desse modo, o dogmatismo pode se opôr a poderes tão fundamentais
quanto o conhecimento e a sociabilidade, sendo a sua rispidez de pensamento
capaz de afrontar o modo de ser humano. Segundo JASPERS:
A publicidade é crucial para a vida da comunidade, por que a
comunicabilidade e a comunicação irrestrita são a essência da razão. A filosofia
entende e engendra a vontade de comunicar. Sem o ar da comunicação a razão é
abafada.
A comunicabilidade é essencial para todas as formas de razão. Conceitos são
comunicáveis, sentimentos não são. (...)
Somente através da comunicação a razão pode ser ampliada e verificada. A
comunicação é a condição indispensável da humanidade. A humanidade consiste na
“comunicabilidade”. Ao observar a função do gosto na cultura social, Kant declara
que “sentimentos são valorados somente na medida em que possam ser comunicados
126
KUEHN, M. Kant: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 96.
127
KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 126. Carta de
Kant a Marcus Herz, de 7 de Junho de 1771. Ak 10:122.
128
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, pp. 199-
200, A 262, Ak 5:355.
para todos; então, mesmo que o prazer possa ser inconsiderável, a Idéia da sua
comunicabilidade universal aumenta o seu valor quase para além de medida”.
129
A filosofia não tem como finalidade tão-somente estabelecer juízos
irretorquíveis, mas o seu ideal é a formulação de juízos que possam ser
comunicados, e dessa forma comprovados ou refutados na prática. Deve visar
estimular o debate produtivo, o diálogo. É através deste que a comunidade e a
individualidade das idéias são afirmadas e encontram o seu sentido. Segundo
KANT
(em suas palestras de antropologia),
(...) uma conversação, de acordo com essa perspectiva, tem três partes; uma
narrativa ou estória, uma discussão, e pilhéria. A conversação começa com alguém
contando uma estória, que é então discutida.
130
Enquanto o diálogo aproxima as pessoas, quase sempre de forma irreverente,
o dogmatismo as isola. A crença em dogmas infalíveis pode reunir as pessoas
somente de forma impessoal. Se todos ocupam um mesmo espaço e um mesmo
horário, contudo, estão todos fechados em si mesmos, só havendo clima para um
diálogo impessoal e trivial. Desse modo, KANT afirma:
Os pietistas tornam a idéia da religião dominante em toda conversação e
discurso, enquanto pode ser concluído do seu comportamento comum que esta idéia
perdeu o sentido de novidade, elas são nada senão fofoca.
131
Desse modo, o egocentrismo está seguro no dogmatismo, no qual todos os
erros, imprecisões e preconceitos estão a salvo da crítica. Kant aponta para a
reflexão como a prevenção contra uma doença racional do homem de, insulado,
sem perceber a si mesmo, seguir cegamente à tendência de buscar uma resposta,
para além da experiência e da percepção, para o que lhe afeta na sua existência
sensível. Por conseguinte, o homem é capaz de se sentir à vontade na aporia de,
fiando-se em si mesmo, manter-se à sombra dos seus enganos.
O dogmatista não se esforça nem para pensar diferentemente do que pensa,
nem para pensar por si mesmo, quando isso exige remontar aos seus princípios ou
tomar distância de si mesmo, para se ver por inteiro. Assim, não questiona o seu
próprio entendimento, nem o seu conteúdo, o que pertence a ele mesmo, nem a
129
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 125.
130
KUEHN, M. Kant: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 157.
131
KUEHN, M. Kant: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 131.
sua extensão permissível, as suas capacidade e limites. Pelo contrário, é como se
os seus pensamentos fossem em voz alta, e todos os seus juízos e raciocínios se
transformassem em princípios inquestionáveis. É, assim, tão arrogante quanto
sentencioso. Somente afirma princípios inventados, guiados mais pela imaginação
do que pela observação ou investigação, sem questioná-los. Inclusive o empirista,
após crer ter perscrutado suficientemente o domínio da experiência, acredita ser
capaz de, nas palavras de KANT:
(…) passar para o domínio da razão idealizante e conceitos transcendentes,
onde não há necessidade subseqüente de fazer observações e investigar de acordo
com as leis da natureza, mas ao contrário só de pensar e inventar, seguro de que não
poderá jamais ser refutado pelos fatos da natureza porque não está mais limitado pelo
seu testemunho, mas pode passar direto por eles, ou até mesmo subordiná-los a um
ponto de vista superior, nomeadamente ao da razão pura.
132
Ao abandonar o domínio da natureza, da realidade possível, a razão procede
com a certeza da sua impunidade. O dogmatismo requer a crítica. Sem esta,
abandonado a si mesmo, o dogmatismo é tão capaz de chegar a delírios e ao
desentendimento quanto à sofística e à superstição. Na Lógica Jäsche se pode ler:
As regras e as condições universais para se evitar o erro em geral são: 1)
pensar por si mesmo, 2) pensar a si mesmo na posição de outra pessoa, e 3) sempre
pensar em concordância com si mesmo. A máxima de pensar por si mesmo pode
chamar-se de o modo esclarecido de pensar, a máxima de colocar-se na perspectiva
de outras pessoas, o modo alargado de pensar, e a máxima de sempre pensar de
acordo com si mesmo, o modo conseqüente ou coerente de pensar.
133
Para Jaspers, pelo princípio do “pensamento alargado” é praticável
ultrapassar “as condições privadas, subjetivas do juízo”. Dessa maneira, colocar-se
na posição dos outros não é somente um exercício moral, mas sim uma maneira de
evitar o erro e alargar o pensamento. Ao encarar um problema, o filósofo
dogmático não busca compreendê-lo de diversos pontos de vista, nem avaliar a
sua importância. Pelo contrário, através do seu desejo de afirmar a sua opinião
eterna e definitiva, expressa a vontade de dissolvê-lo, de exorcizá-lo.
Como o conhecimento humano começa a partir do juízo, i.é., do
pensamento, nenhuma forma de antidogmatismo poderia sustentar a ausência
completa de juízos. Pelo contrário, toda filosofia antidogmática se define em
132
KANT, I Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 499: A
469 / B497.
133
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, pp. 563-64. A 57.
propor uma reflexão sobre a necessidade do juízo e, devido precisamente a essa
necessidade, em estimular uma consciência crítica da precipitação e imprudência
com que se emitem juízos.
O antidogmatismo kantiano não tem em vista minar a confiança no
conhecimento, mas sim, pelo contrário, promovê-la e assegurá-la, ao determinar o
seu domínio seguro e estimular o respeito aos limites do entendimento humano.
De acordo com JASPERS,
Kant buscou atuar no mundo como o único lugar acessível ao homem. Ele
não se considerava um homem sábio ou um santo situado fora dele. Se ele trabalhou
para criar uma escola melhor de filosofia, era no interesse da sabedoria mundana.
Ele não tinha desejo de ficar separado; o que ele buscava na filosofia era algo que
ajudasse a humanidade, que ajudasse cada homem como homem, a realizar a sua
tarefa.
O pensamento não tem valor sem a comunicabilidade. Kant lutou pelo
entendimento, pela comunicação, pela paz, mas no movimento da vida. A sua meta
não era o contentamento de um animal no pasto, a tranquilidade que corrompe, mas
a razão abrangente que conecta todas as potencialidades do homem e as permite
desabrochar. Nenhum outro pensador do Esclarecimento chegou a um conceito tão
elevado de razão.
Kant estava aberto ao mundo, até em seus aspectos mais remotos. Ele
respeitava a inteligência e a estatura humana onde quer que as achasse; “Porque a
filosofia pode usar tudo o que um homem letrado ou que um excêntrico visionário
fornecem, um filósofo valoriza tudo que demonstra uma certa força da mente.
Sobretudo, ele é acostumado a assumir diferentes perspectivas e, porque nunca
perde de vista o caráter misterioso do todo, ele desconfia do seu próprio juízo... a
filosofia torna o homem humilde, ou melhor, ela o ensina a se medir pela Idéia e
não em comparação com os outros.” O sentido de humanidade de Kant o elevava
acima de toda a arrogância filosófica, apesar de que a lucidez e o alcance do seu
pensamento o fazia perigosamente superior a todos os seus contemporâneos.
134
Conversar sozinho, para Kant, é importante para a Ética, uma vez que a lei
moral reside na consciência de cada indivíduo, e para o autoconhecimento,
mediante a reflexão e a autocrítica. Entretanto, este autoconhecimento deve
voltar-se para o mundo, para o reconhecimento das pessoas como livres e dignas
de respeito. O monólogo do metafísico dogmático, em contraste, trava-se a partir
das suas ilusões e do seu auto-engano. Esse caminho ao hiperfísico, além de ser
pobre, é sem saída. Todavia, é “muito atraente e sedutor”
135
. O pensamento
pautado ou pelo ser absoluto, ou pelo ser enquanto ser, é ao mesmo tempo tão
abrangente quanto é vazio. Não explica nada absolutamente, mas é capaz de saciar
a razão ao empregar tão-somente a imaginação. Quem deseja conhecer, e não
somente especular, precisa reconhecer os limites do conhecimento, e impor
134
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 149.
135
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 96: A 63 / B
88.
limites às suas próprias investigações para não sair do seu percurso. Esse
paradoxo, no entanto, não é um impasse, não é uma aporia, pelo contrário, é uma
orientação para caminhar.
3.5
Aparência versus Coisa em si e Ontologia
A filosofia dogmática, como um todo, busca afirmar teses sobre como as
coisas são em si mesmas, em sua existência real, em oposição a como aparecem
ou como parecem ser em determinado momento ou situação
136
. Desse modo, a
metafísica tradicional, em particular a ontologia, está voltada para o desvelamento
da essência das coisas, do seu fundamento último. Temos em Sexto Empírico e
Kant duas contrapropostas igualmente radicais no tocante à pretensão do
conhecimento das coisas em si, embora muito distintas entre si.
Primeiramente, o que Sexto e Kant têm em comum. Ambos recusam
qualquer acesso, seja sensível ou intelectual, às coisas tal como seriam em si
mesmas. Em segundo lugar, pode-se afirmar que a maior diferença entre Sexto e
Kant é que, enquanto para o Pirronismo seguir as aparências é um critério para a
vida prática
137
, para Kant o conjunto das aparências é o domínio no qual se pode
estabelecer o conhecimento objetivo, i.e., pode ser legitimado, ser confirmado ou
refutado pela experiência.
Nesse sentido, embora se possa dizer que a distinção kantiana remete ao
ceticismo pirrônico, a direção que Kant a imprime é inteiramente diversa, com
vista a um novo campo em que se possa afirmar uma tese, uma teoria positiva. No
entanto, o modo como Kant institui esse campo consiste em distinguir
rigorosamente o conhecimento legítimo do ilegítimo, sustentando uma ignorância
a priori, na constituição do próprio sujeito transcendental, que o impossibilita de
conhecer a coisa em si.
136
“Ninguém, presumivelmente, irá levantar uma controvérsia sobre se uma coisa existente
aparece dessa ou daquela maneira, ao contrário, o que eles investigam é se ela é tal como aparece.”
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.
9. Livro I, XI: 22.
137
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press, 2000,
p. 9. Livro I, XI: 21-24.
O filósofo dogmático, em sua busca do conhecimento objetivo, deseja
ascender da aparência ao seu fundamento, entretanto, ao fundamento que reside no
próprio objeto, na coisa enquanto tal. Kant critica esta pretensão e transforma a
busca pelo fundamento do conhecimento objetivo em uma analítica das formas
subjetivas da experiência, que dessa forma, não estão para além da aparência, não
a transcende, mas estão em relação imanente com ela no domínio da experiência
como a sua condição de possibilidade.
É plausível pensar que o compromisso mais determinante da filosofia
dogmática é para com uma ontologia, pré-crítica, que pressupõe para as coisas
uma existência real, em si mesma, independente da sua relação com o sujeito.
Pode-se pensar que a crença em uma coisa em si está realmente tão entranhada na
postura dogmática, que a própria possibilidade de uma ontologia, como ciência do
ser enquanto ser não é nem mesmo questionada. Kant, entretanto, tem
desconfianças quanto à ontologia nesse sentido restrito:
A Analítica Transcendental tem (...) este importante resultado: Que o
entendimento não pode jamais realizar nada a priori senão antecipar a forma da
experiência possível em geral, e, já que o que não é aparência não pode ser um
objeto da experiência, ele não pode nunca ultrapassar os limites da sensibilidade,
dentro dos quais tão-somente objetos nos são dados. Seus princípios são
meramente princípios da exposição das aparências, e o nome orgulhoso de uma
ontologia, a qual presume oferecer conhecimentos sintéticos a priori das coisas em
geral em uma doutrina sistemática (p.ex., o princípio de causalidade), deve abrir
caminho para a modesta de uma mera analítica do entendimento puro.
138
Kant substitui a ontologia como ciência do ser enquanto ser pela analítica do
entendimento puro, a exposição dos princípios formais pelos quais os objetos da
experiência podem ser dados. Pode-se pensar que, para Kant, a ontologia em
sentido amplo, como teoria do real pode se dar tão-somente em referência ao
modo de conhecer humano, ou seja, não pode ser uma ciência do ser enquanto ser,
mas do fenômeno enquanto objeto de representação. Para Aristóteles a ontologia é
válida para todos os seres; para Kant somente para objetos de uma experiência
possível. Mas o domínio dessa ciência é o que define essa própria ciência – se
Kant reduz este domínio, não reduz a ontologia, mas, de uma perspectiva
inteiramente nova, a transforma.
138
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 345: A
247 / B303.
Há diferenças significativas entre uma ontologia do ser enquanto ser e do
objeto da experiência. A que deve ser mais frisada é a distinção de aparência ou
fenômenos e coisa em si, que está na própria base da crítica da ontologia
tradicional. KANT escreve em uma reflexão da sua fase crítica:
A ontologia é a ciência das coisas em geral, i.e., da possibilidade do nosso
conhecimento das coisas a priori, i.e., independentemente da experiência. Não pode
nos ensinar nada das coisas em si mesmas, mas somente das condições a priori pelas
quais podemos conhecer coisas na experiência em geral, i.e., princípios da
possibilidade da experiência.
139
Para KANT, é válido falar em uma ontologia somente na medida em que “o
nosso conhecimento a priori das coisas” participa constitutivamente da aparência:
“Temos falado de ontologia dos conceitos do entendimento o uso dos quais na
experiencia é possível porque eles próprios tornam a experiência possível.
140
Assim, pode-se pensar que a transformação da ontologia em uma “mera analítica
do entendimento puro”, na medida em que essa faculdade está inextricavelmente
ligada à sensibilidade, não exclui espaço e tempo como formas puras da
sensibilidade, pelo contrário, pode-se considerar espaço e tempo fundamentais
para a transformação kantiana da ontologia. Espaço, tempo e as categorias do
entendimento, como fundamentos da experiência, e esta por sua vez, a qual deve
se conformar às formas do sujeito de conhecimento, cobrem para Kant todo o
terreno da ontologia, pois essa lida com os “princípios da possibilidade da
experiência” e diz respeito unicamente à aparência.
Apesar da novidade da ontologia como “analítica do entendimento”, nota-se
nesse empreendimento kantiano uma dupla “operação de resgate”. Por um lado, o
resgate da possibilidade de uma ciência a priori, não do ser, mas de todo objeto de
uma representação possível, e, por outro lado, da possibilidade de assentar teses
filosóficas no domínio da experiência - de fato, conhecimento a priori -, o qual o
pirrônico relega a relatos do seu pathos, relatos sem pretensão à verdade nem
passíveis de refutação.
Por um lado, Kant corrige a postura irrefletida dos filósofos dogmáticos que,
enraizados na crença da coisa em si, procedem a uma ontologia sem nenhuma
crítica prévia nem das suas capacidades, nem das possibilidades dessa própria
139
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 311:
Reflexão 5936.
140
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 249:
Reflexão 5603.
ciência. Por outro lado, no entanto, Kant, ao transformar o objeto da ontologia, a
transforma, em seu próprio sentido amplo de teoria do real, a uma analítica de
espaço, tempo, e das categorias do entendimento como formas puras do sujeito do
conhecimento. Desse modo, Kant não reduz a ontologia, mas a transforma por
uma ciência nova, que tem um objeto muito reduzido em comparação com aquele
da ontologia tradicional.
Como Jaspers assinala, há limites na filosofia de Kant que são os “limites
das formas”:
Kant renuncia à riqueza de conteúdo, porque ele deseja conduzir a uma
consciência pura das ‘formas’. As formas são superiores à encorporação filosófica
porque, se as penso até ao fim, elas me fazem produzir meu pensamento. Elas
atuam sobre aminha interioridade não objetiva, a minha liberdade. As formas têm o
poder de despertar. Elas formatam o meu pensamento e devem, portanto, ser
complementadas pela realidade: pela Existência individual, a investigação
científica, pela visão histórica, a contemplação da arte e da poesia.
141
O pensamento das formas não somente traz limites intrínsecos em si mesmo,
mas é capaz de despertar, de colocar em perspectiva o conteúdo contingente da
realidade e questionar os “dados” transmitidos pela tradição em continuidade
silenciosa com a personalidade individual. O pensamento das formas, no entanto,
é um ponto de partida que requer ser “complementado pela realidade”. Sem esse
complemento, não é realmente uma propedêutica, e permanece inacabado, pois
um estudo preliminar deve estabelecer as conexões a serem desenvolvidas pela
investigação da realidade.
141
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, pp. 145-46.
4
Ceticismo
Enquanto não concentrarmos as nossas observações
mais no ser humano, toda a nossa sabedoria é tolice.
142
No prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura (1781), Kant
descreve os céticos como nômades, que teriam repugnância em se estabelecer em
uma terra, e desejam abalar a confiança e segurança do conhecimento (embora
considere que o método cético seja científico). Kant chama os céticos de
preguiçosos, embora também os chame de juízes e vigilantes da razão.
4.1
Variedades de Ceticismo
Na Crítica da Razão Pura, Kant dialoga com toda a tradição filosófica. As
teorias da filosofia crítica são soluções novas para problemas antigos, e para
alguns que Kant considera formular, claramente, pela primeira vez. A disciplina
que confere unidade a todas as problemáticas da Crítica da Razão Pura é a
metafísica
143
, a qual Kant questiona sua legitimidade como ciência.
No caminho de uma metafísica como ciência, aparece o ceticismo sob três
variedades na Crítica da Razão Pura, cada um tendo uma influência desigual no
pensamento kantiano, pois têm argumentos de pesos diferentes para o problema
da metafísica. Michael Forster os identifica como o ceticismo “véu das
percepções”, o ceticismo de influência humeana, e o ceticismo pirrônico
144
.
Segue-se aqui brevemente a sua excelente exposição.
O primeiro diz respeito ao problema da existência do mundo externo, ao
modo do idealismo material de Berkeley, como Kant o descreve na Refutação do
142
Johann Caspar Lavater (1741-1801). Em: KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999, p. 150. Carta de Lavater a Kant, de 8 de Abril de 1774.
143
Pode-se afirmar que o tema constante da Critica da Razão Pura é o confronto da metafísica
transcendente com a possibilidade e a efetividade do autoconhecimento.
144
FORSTER, M. N. Kant and Skepticism. Princeton: Princeton University Press, 2008, pp. 3-5.
Idealismo. Como argumenta Forster, essa forma de ceticismo - que de fato é um
dogmatismo negativo - nem desempenhou grande influência no desenvolvimento
do pensamento kantiano, nem tem especial relevância para as questões da Crítica.
Na Nova dilucidatio de 1755, Kant já havia esboçado uma refutação para ele, sem
grandes ressonâncias para as suas preocupações filosóficas posteriores.
O idealismo material não é um problema fundamental para o conhecimento
metafísico. A Refutação do Idealismo e a famosa nota na qual Kant se refere ao
“escândalo da filosofia e da razão humana” aparecem somente na segunda edição
da Crítica, de 1787. Que o idealismo material não houvesse ainda sido refutado
põe em questão a capacidade da razão humana e da filosofia, em vez de atestar a
sua legitimidade ou importância como problema para a razão e para a filosofia.
Pode-se afirmar que o escândalo propriamente consiste em não saber resolver um
problema como o do mundo externo, uma vez colocado, e estar exposto a ele, mas
não ainda não ter sido resolvido um problema de tal “envergadura”.
Em uma carta a Garve de 1798, Kant chama as antinomias da razão pura,
que afirma terem o levado a uma autocrítica da razão, de um “escândalo da
contradição ostensiva da razão consigo mesma."
145
As antinomias são questões
centrais e perenes para a filosofia crítica, e não atentar para elas, isso sim,
caracteriza um escândalo para a razão e para a filosofia. O problema da existência
do mundo externo não figura no ceticismo antigo
146
; aparece somente no século
XVII, gerado por Descartes. Pode-se entender a Refutação do Idealismo como um
corretivo contra o mau uso cartesiano dos argumentos céticos, e contra as
conseqüências daí resultantes, que levam, nas palavras de Schopenhauer, a uma
“tola controvérsia”. Nela, tanto o dogmatismo, que se apresenta nas formas de
realismo e idealismo, quanto o “ceticismo” estão comprometidos com um objeto
independente da representação e são, dessa forma, falaciosos.
147
Pode-se afirmar que a Refutação do Idealismo é somente uma oportunidade
circunstancial de Kant refutar essa forma equívoca de ceticismo, e de distinguir o
Idealismo Transcendental do idealismo de Berkeley, o qual na crítica de Garve e
Feder, de 1782 à Crítica da Razão Pura, Kant é acusado de defender. Não
145
KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 552. Ak 12:258.
Carta de Kant a Christian Garve, de 21 de Setembro de 1798.
146
O pirrônico, por exemplo, não questiona a existência do mundo sensível, ao contrário, guia suas
ações pela aparência, recusando apenas o saber do não-evidente.
147
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora
UNESP, 2005, pp. 55-56 (I 15-6).
representa, de modo nenhum, as preocupações centrais da Crítica, tampouco o
idealismo material representa a forma mais importante de ceticismo que Kant nela
enfrenta. De fato, Kant busca tão-somente refutar o idealismo material, ao passo
que dialoga, proveitosamente, com as outras variedades de ceticismo.
O segundo diz respeito - em meio a muitas questões céticas que Hume
coloca - à existência de conceitos a priori e de conhecimento sintético a priori (na
linguagem de Kant), a partir, sobretudo, da análise de Hume do conceito de
substância e da conexão causal. Tem um papel importante no desenvolvimento do
pensamento kantiano, em especial na medida em que respalda e aprofunda
questionamentos próprios que o autor faz sobre a sua Dissertatio de 1770, os
quais se podem ler na famosa carta de 1772 a seu amigo e discípulo Marcus Herz.
Mesmo que Kant não concorde com as posições de Hume sobre a causalidade,
contudo considera legítimos os problemas que ele levanta e, sobretudo, relevantes
para a sua própria empresa filosófica.
A advertência de Hume, que desperta Kant de seu sopôr dogmático (ver
introdução dos Prolegômenos), pode ser entendida mais como uma chamada da
recaída de Kant na metafísica dogmática que a Dissertatio de 1770 em parte
representa, e menos como o despertar do dogmatismo, primeiro ou exclusivo.
O terceiro é o que desempenha o papel mais decisivo no pensamento de
Kant e nas descobertas da Crítica da Razão Pura, a partir de meados da década de
1760. Consiste basicamente no equilíbrio de argumentos opostos (eqüipolência ou
isosthenia), o que indica, em especial no campo da metafísica, a necessidade da
suspensão do juízo. Tem relação direta com as Antinomias da Razão Pura e com a
descoberta delas, no final da década de 1760.
A Refutação do Idealismo rechaça o Idealismo Material, tanto o
problemático de Descartes, quanto o dogmático de Berkeley (ambos podem ser
entendidos como dogmatismos negativos). O ceticismo com a influência de Hume
ganha uma resposta positiva com as teorias cognitivas da Analítica
Transcendental - mesmo que afirme que conceitos e o conhecimento a priori não
podem transcender a experiência, sustenta que são possíveis. A filosofia de Hume,
indubitavelmente, é uma grande influência no pensamento kantiano. Entretanto,
Kant tanto formula por si mesmo, em seus próprios termos, os problemas de
Hume em relação ao conhecimento independente da experiência (como se pode
ver na carta a Herz), quanto recebem uma solução kantiana.
Somente o ceticismo pirrônico permanece no pensamento de Kant com as
características básicas da influência que exerceu sobre ele, sendo elementos seus
recuperados e direcionados à crítica. É o único que Kant de fato assimila à sua
filosofia; sendo a habilidade pirrônica da isosthenia o caminho para entender a
antitética das antinomias, e a suspensão do juízo (époché) necessária nos
raciocínios dialéticos da razão pura. Portanto, é nele que nos concentraremos.
4.2
Ceticismo pirrônico
O ceticismo pirrônico está diretamente relacionado à filosofia dogmática.
Mesmo que o ceticismo não se resuma à filosofia, e seja também uma postura em
relação ao conhecimento em geral e um modus vivendi, a sua exposição
sistemática surge em resposta ao dogmatismo na filosofia.
A forma mais comum e difundida de caracterizar seriamente o ceticismo
pirrônico é considerá-lo uma atitude de perpetuação da busca à verdade. Esta se
perpetua baseada na observação de como os filósofos, ao sustentarem uma teoria
sobre a essência das coisas, se contradizem uns aos outros, tendo, assim a
diaphonia, o conflito de teses dogmáticas, uma importância fundamental no
pirronismo. Segundo SEXTO EMPÍRICO,
O ceticismo é a habilidade de estabelecer oposições de todas as maneiras
entre coisas que aparecem e são pensadas, uma habilidade pela qual, devido à
equipolência entre objetos e relatos opostos, chegamos primeiramente à suspensão do
juízo e então à tranquilidade.
148
A suspensão do juízo é uma atividade elaborada, que pode surgir através do
exame cuidadoso de teses dogmáticas, e caracteriza a essência do ceticismo. Se há
reflexão sobre o conhecimento, a sua fragilidade levaria o pensamento a criticá-lo
e a examiná-lo ceticamente. O cético é levado a suspender o juízo ao se deparar
com o conflito de afirmações dogmáticas em equilíbrio. Nesse sentido, o
pensamento cético seria ele mesmo aporético, na medida em que pesar o conflito
dialético dos dogmáticos o leva à tranquilidade, e não a afirmar uma nova
verdade. Segundo Sexto Empírico, o ceticismo seria como um purgante, que não
somente limpa os males do corpo, mas é lavado junto com eles.
149
Se a
tranquilidade cética propicia de fato uma abertura à investigação é algo
questionável. Para SEXTO:
A persuasão cética é, assim, também chamada Investigativa, da sua
atividade de investigar e questionar; Suspensiva, do sentimento que se instala no
questionador após a investigação, Aporética, ou (como alguns dizem) pelo fato de
que decifra e investiga todas as coisas, ou então por nem assentir nem negar, e
148
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press,
2000, p. 4, Livro I, IV.
149
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press,
2000, p. 52, Livro I, XXVIII, e p. 118, Livro II, XIII.
Pirrônica, pelo fato de que Pirro nos parece ter aderido ao ceticismo de forma mais
sistemática e evidente do que qualquer um antes dele.
150
Sexto Empírico considera Pirro de Élis (360 – 275 a. C.) como o pensador
que seguiu mais coerentemente o ceticismo e quem melhor o representou. Daí a
sua exposição mais conhecida do ceticismo chamar-se Hipotiposes Pirrônicas. O
ceticismo não promete uma resposta nem se compromete com uma exposição da
verdade. Ao contrário, o ceticismo reúne argumentos a favor da suspensão do
juízo no tocante à verdade, segundo o esquema:
Zétesis (busca) > diaphonia (conflito) > isosthenia (eqüipolência) > époché
(suspensão) > ataraxia (tranqüilidade).
151
O argumento da relatividade, por exemplo, constantemente frisado no
ceticismo, engloba as diferenças entre os juízos de vários homens (em diferentes
culturas e situações), as diferenças na natureza animal, as diferenças entre os
sentidos, e as diferenças de um mesmo homem em diversas situações ou
circunstâncias. Este argumento consta nos cinco tropos de Agripa, que tem um
caráter fundamentalmente lógico, e nos dez tropos de Enesidemo, que se volta
contra o dogmatismo tanto da filosofia quanto do entendimento comum. Nota-se
que o que sustenta a suspensão do juízo de modo mais influente é a consideração
da diaphonia nos argumentos filosóficos, que, estando em um mesmo plano de
eqüipolência, deixam o juízo em uma aporia, sem possibilidades de se decidir a
favor nem de um lado nem de outro.
Os argumentos céticos dizem respeito às teses dogmáticas, i.e., dizem
respeito tanto às condições subjetivas do conhecimento quanto ao conhecimento
propriamente. Entretanto, o filósofo cético não afirma que o conhecimento não é
possível. O que o cético põe em dúvida é o conhecimento que o homem possui da
realidade e de si mesmo. Segundo SEXTO:
Outros disseram que os seres humanos são animais mortais racionais,
capazes de entendimento e conhecimento. Já que mostramos no primeiro modo de
suspensão que nenhum animal é irracional, mas que todos são capazes tanto de
150
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press,
2000, p. 4. Livro I, iii.
151
MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005,
p. 97.
entendimento quanto de conhecimento, então – no que concerne a afirmação
Dogmática – não podemos entender o que eles querem dizer.
152
Não é suficiente imputar ao homem a capacidade de entendimento e
conhecimento. É preciso investigar o entendimento próprio aos homens, as suas
características específicas e as suas capacidades. O homem não se caracteriza nem
por afirmar proposições nem por suspender o juízo, mas sim por ambos esses
procedimentos habitarem nele, serem possíveis e, assim, precisarem ser
ponderados. O cético tem em mira tanto o conhecimento quanto a crença dos
dogmáticos, que se comprometem com a existência real das coisas, ao passo que o
cético suspende o juízo sobre a realidade absoluta e sobre o não aparente. O cético
afirma somente o que afeta a sua passividade no momento, o que lhe aparece,
afirmação que não considera ser uma asserção dogmática porque não tem
pretensão à verdade, a dizer como algo é em sua existência real, em si mesma,
nem mesmo a ser a única afirmação válida sobre um fenômeno.
153
Assim, a não
asseverar sobre a existência real, o próprio cético estaria livre da diaphonia.
De fato, o pirrônico segue as aparências, como um critério prático para a
vida, segundo um esquema quádruplo: ter a natureza por guia, pela qual tem a
capacidade natural de perceber e pensar; ser constrangido por anseios corporais,
que o levam a beber e comer; respeitar a tradição das leis e costumes, incluindo as
devoções da sociedade, podendo considerar, de um ponto de vista do cotidiano,
que a piedade é boa e a impiedade ruim; e a instrução nas artes, a praticar uma
profissão ou ter um ofício e assim, a não ser inativo. “E dizemos tudo isso sem
sustentar nenhuma opinião.”
154
Desse modo, o pirrônico, ao somente seguir as aparências, e não asseverar
sobre como algo é em sua existência real, permitiria que a investigação fosse
perpetuada. Entretanto, hoje em dia, o cético não é identificado com a
investigação (que lhe confere o seu nome, de sképsis), nem com a suspensão do
juízo, mas somente com a dúvida, como quem duvida de tudo e não acredita em
152
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press,
2000, p. 74, Livro II, V.
153
A esse respeito, cf. SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000, p. 6, Livro I, VII, p. 9, Livro I, XI, p. 48, Livro I, XX, e BURNYEAT, M.
F. “Can the Sceptic Live his Scepticism?” Em: SCHOFIELD, M / BURNYEAT, M. / BARNES, J.
(Eds.) Doubt and Dogmatism. Oxford: Clarendon Press, 1980, pp. 20-53, especialmente pp. 37-42.
154
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press,
2000, p. 9. Livro I, xi 23-24.
nada. Descartes, p.ex. pensa que os céticos “duvidam só por duvidar”
155
.
Entretanto, o cético não se caracteriza tanto pela dúvida, mas sim pela contínua
investigação, possibilitada pela habilidade da isosthenia e da époché. Para Hegel,
a dúvida é imprópria para caracterizar o ceticismo
156
, e, com efeito, o ponto de
vista da dúvida seria, para Hegel, oposto ao ceticismo:
O ponto de vista da dúvida é o oposto do ceticismo. A dúvida é inquieta
porque busca encontrar a tranquilidade em algo disposto em oposição à
tranquilidade, e não pode encontrá-la em lugar nenhum.
157
Segundo David Hume (1711-1776), um verdadeiro cético é desconfiado
das suas dúvidas filosóficas bem como das suas convicções filosóficas.
158
A
correspondência entre o ceticismo e a dúvida é um legado, sobretudo, cartesiano.
Descartes formula uma dúvida tão radical em sua Primeira Meditação que não
pode ser superada. Dessa maneira, superar a dúvida tornar-se-ia na empresa
principal de uma filosofia crítica. POPPER escreve:
O dicionário alemão Duden explica ‘ceticismo’ como ‘dúvida, descrença’ e
‘cético’ como ‘pessoa desconfiada’, e esse é obviamente o significado da palavra, e,
com efeito, o significado moderno. Mas o verbo grego de que derivam cético,
ceticismo significa, originalmente, não ‘duvidar’, mas ‘examinar, ponderar, inquirir,
buscar, investigar’.
Entre os céticos, no sentido original do termo, também houve por certo
muitas pessoas duvidantes e talvez também pessoas desconfiadas, mas a
equiparação fatal entre ‘ceticismo’ e ‘dúvida’ foi, provavelmente, uma hábil jogada
da escola estóica, que pretendia caricaturar seus concorrentes. Em todo o caso (...),
e o que eu tenho em comum com essa tradição é que enfatizamos nossa ignorância
humana.
159
O cético põe em dúvida a certeza do conhecimento, mas com a certeza de
que é preciso dele duvidar. A ignorância humana não pode tornar-se arrogância,
mas ser uma motivação para continuar as investigações e perpetuar a autocrítica,
em vista de uma douta ignorância. HEGEL escreve:
155
DESCARTES, R. Discurso do Método. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 33 [III, 6].
156
MARTIN, L. F. “A presença do ceticismo na filosofia do jovem Hegel”. Em: SMITH, P. J. /
FILHO, W. S. (Orgs.) Ensaios sobre o ceticismo. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2007, p.
156.
157
HEGEL, G. W. F. Lectures on the History of Philosophy. 1825-6 Vol. II: Greek Philosophy.
Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 308.
158
HUME, D. A Treatise of Human Nature. Norton / Norton (Eds.). Oxford: Oxford University
Press, 2000, p. 177.
159
POPPER, K. Em Busca de um Mundo Melhor. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 247.
Não devemos traduzir sképsis como uma ‘doutrina da dúvida’. O Ceticismo
não é uma dúvida, pois a dúvida é justamente o oposto da tranquilidade que deve
ser o resultado do ceticismo. A dúvida [Zweifel] deriva de dois [zwei]; é uma
vacilação entre dois ou mais pontos de vista (...)
160
O cético é decisivo ao suspender o juízo, e a isso é levado com a certeza da
sua necessidade. Dado o plano de equipolência do conflito dogmático, no qual
cada lado aduz argumentos com pesos igualmente convincentes, o cético não
vacila em se decidir por um dos lados, pelo contrário, recusa ambos e suspende o
juízo. Isso caracteriza a doutrina cética como uma descrença no dogmatismo, de
modo a evitar o seu erro e precipitação, em vez de dele somente duvidar.
O cético, apesar de comumente ser considerado aquele que não acredita em
nada, guarda esperanças ainda de um conhecimento mais perfeito e confiável, que
desvele as forças naturais e os mistérios da vida. Perpetuar a investigação
significa, indubitavelmente, aguardar por uma teoria sistemática que reúna todos
os seus pressupostos e os exiba de acordo com princípios. E ainda um método
cognitivo que fundamente todos os seus argumentos segundo uma legislação que
dialoga com o real, com o homem, com a civilização.
O cético não duvida da existência da verdade, mas do dogmatismo e de sua
capacidade de emitir um juízo sobre a natureza real das coisas. Ao refutá-lo, o
cético demonstra ter paciência em sua busca à verdade, ao passo que o dogmático
é precipitado e descuidado na emissão de juízos. Dada a equipolência entre teses
em conflito, o cético suspende o juízo baseado na intuição de limites do
entendimento humano. Para KANT:
A filosofia aproveitou (...) bem mais dos céticos do que dos orgulhosos
dogmáticos: apesar de ser verdade, é claro, que os primeiros, através do mau uso,
finalmente degenerou em um sarcasmo amargo. O ceticismo, entretanto, ou o método
da dúvida cética, no qual se estabelece uma desconfiança de si mesmo, considera os
fundamentos para e contra o conhecimento que se possui, e desse modo busca chegar
a uma certeza completa em relação a ele, este é o melhor modo de purgação para a
razão. Esse ceticismo evita os erros tanto quanto é possível, e direciona o homem a
questionar-se mais, e é o caminho para a verdade do assunto (apesar de não de uma
vez ou abruptamente, é claro, porém devagar e gradualmente através de mais e mais
cuidadosa investigação).
A dúvida do adiamento é dessa forma uma certa marca da maturidade da
razão e da experiência na verdade do conhecimento.
161
160
HEGEL, G. W. F. Lectures on the History of Philosophy. 1825-6 Vol. II: Greek Philosophy.
Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 307.
161
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 164-5. The
Blomberg Logic, 208.
O ceticismo é um modo de se desfazer do dogmatismo, de se emancipar
dele. O filósofo cético sabe com uma certeza fundada em seu exame do conflito
dialético que os filósofos dogmáticos estão todos errados em suas proposições
sobre a essência das coisas. Dessa maneira, evitar esse mesmo erro é o que por si
só traz o alento ao cético e o faz ficar tranqüilo. Mesmo que nunca chegue à
verdade, o cético vive em paz consigo mesmo enquanto disciplina em si o impulso
ao dogmatismo e com isso evita as ilusões nas quais o dogmático está envolvido,
caracterizando-se pela prudência e circunspecção.
É comum identificar no ceticismo pirrônico um conflito entre a suspensão
do juízo (époché) e a investigação (sképsis). Se o cético é levado à
imperturbabilidade após a suspensão, não fica claro como estaria disposto a
continuar a sua busca, e como poderia fazê-lo. Pode-se pensar que se o filosofar
terminar com a suspensão é ainda uma atividade inacabada. Nesse sentido, a
ataraxia do cético também consiste em uma precipitação. Ao criticar a
precipitação dogmática em afirmar as suas teses, o próprio filósofo cético estaria
sendo precipitado por deixar que a ataraxia deixe em suspenso a sua investigação
da verdade.
Contudo, pode-se dizer que o ceticismo está atrelado ao dogmatismo, como
o seu alvo necessário. Desse modo, há uma tese implícita no ceticismo sobre a
tendência dogmática do conhecimento, de que o fato de o dogmatismo ser
reinante não irá se alterar. Somente o dogmatismo pode manter a atualidade do
ceticismo e mantê-lo “vivo” como um purgante para a razão.
Entretanto, pode-se pensar que o ceticismo se relaciona não somente com o
dogmatismo, mas com a própria razão. Para Hume, o ceticismo seria uma doença,
uma intimação à razão para dar respostas à sua impotência, o que ela não é capaz
de fazer. A incapacidade dos sentidos e do entendimento em conhecer a natureza
das coisas suscitaria sempre essa doença, que nasce em resposta à curiosidade do
homem, mas que a razão não pode acalmar. HUME escreve:
A dúvida cética, tanto em relação à razão quanto aos sentidos, é uma
doença, que não pode jamais ser curada radicalmente, mas que deve retornar em nós
em todos os momentos, embora se tente fazê-la desaparecer, e às vezes parecemos
estar inteiramente livres dela. É impossível para qualquer sistema defender ou o
nosso entendimento ou os sentidos, mas somente os expomos ainda mais ao tentar
justifica-los dessa maneira. Como a dúvida cética sobrevém naturalmente de uma
profunda e intensa reflexão nesses assuntos, ela sempre aumenta, quanto mais adiante
levamos as nossas reflexões, seja em oposição ou conforme a ela. Somente a falta de
cuidado e de atenção pode nos oferecer algum remédio.
162
Dessa maneira, Hume caracteriza o seu próprio ceticismo como um
ceticismo relaxado
163
. Levado ao extremo, o ceticismo é corrosivo e deixa nada
soerguido. A falta de cuidado e atenção é um remédio contra a circunspecção do
próprio ceticismo, que seria para Hume uma doença na medida em que nos
deixaria constantemente expostos às contradições e enfermidade do entendimento
humano. Entretanto, pode-se pensar que o ceticismo é uma maneira de manter o
espírito ativo, saudável. O dogmatismo fixa o indivíduo nas suas idéias e, desse
modo, o limita e diminui a sua visão do todo do conhecimento, ao passo em que o
ceticismo o mantém em atividade e atento para as discussões e investigações
correntes. Segundo o relato de Sexto Empírico,
O resultado natural de qualquer investigação é que aquele que investiga ou
bem encontra o objeto da sua busca, ou bem nega que seja encontrável e confessa ser
ele inapreensível, ou ainda, persiste na sua busca. O mesmo ocorre com os objetos
investigados pela filosofia, e é provavelmente por isso que alguns afirmaram ter
descoberto a verdade, outros, que a verdade não pode ser apreendida, enquanto outros
continuam buscando. Aqueles que afirmam terem descoberto a verdade são os
“dogmáticos”, assim são chamados especialmente, Aristóteles, por exemplo, Epicuro,
os estóicos e alguns outros. Clitômaco, Carnéades e outros consideram a verdade
inapreensível, e os céticos continuam buscando. Portanto, parece razoável sustentar
que há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética.
164
A filosofia acadêmica que Sexto menciona representa, em termos gerais, o
dogmatismo negativo. Podemos interpretar essa passagem como se houvesse, na
verdade, somente dois tipos de filosofia, a cética e a dogmática, que se divide em
positiva e negativa. Essa consiste em afirmar peremptoriamente que não é
possível conhecer a verdade, ao passo que a primeira consiste em sustentar que já
se chegou à verdade. Kant expressa esse raciocínio na sua distinção entre duas
dúvidas possíveis. KANT escreve:
Na linguagem comum a palavra dúvida significa qualquer incerteza, e nesse
respeito e nesse sentido a dúvida ou é dogmática ou é cética. A primeira é uma
dúvida de decisão, a última é uma dúvida de retardamento, de adiamento. Da
162
POPKIN, R. “The High Road to Pyrrhonism”. Em: American Philosophical Quarterly.
Volume 2, Number I, January 1965, p. 31.
163
http://oleniski.blogspot.com/2007/10/hume-e-o-ceticismo-relaxado-ii.html Acesso em 15 de
Outubro de 2007.
164
Apud MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2005, pp. 93-94.
primeira advém a certeza, mas da última uma investigação e questionamento mais
minuciosos, de modo a obter uma certeza no conhecimento apropriada e indubitável.
Na dúvida dogmática rejeitamos toda investigação e não aceitamos algo do
qual temos, ou julgamos ter, uma dúvida fundamentada. Decidimos, em uma palavra,
e dizemos: nessa matéria não há a questão de obtermos certeza nenhuma. Essa dúvida
dogmática diz respeito a muitos conhecimentos como se absolutamente nada em
relação a eles pudesse ser estabelecido ou decidido.
165
O que Kant chama de dúvida dogmática corresponde ao dogmatismo
negativo, à presunção de negar o acesso à verdade, de modo tão precipitado e
impaciente quanto o dogmatismo sustenta possuí-la. O filósofo da antiga
Königsberg continua:
(…) A dúvida dogmática não consiste em nada senão julgar que não se pode
jamais obter completa certeza com o conhecimento, e que toda investigação, ademais,
é assim sempre conduzida em vão e para nada.
A dúvida cética, por outro lado, consiste em estar consciente da incerteza
com um conhecimento e assim em ser compelido à investiga-lo mais e mais, para que
embora finalmente se possa chegar à certeza com a ajuda de investigações
cuidadosas. A primeira então, a dogmática, rejeita a certeza completa e
absolutamente. A última, entretanto, a busca pouco a pouco. (…) o cético sempre
questiona, ele examina e investiga, ele desconfia de tudo, mas nunca sem um
fundamento. Nisso ele parece um juiz, que pesa os fundamentos para algo e para o
que lhe opõe, e ouve os acusadores assim como os defensores, previamente a decidir
o assunto e a emitir um juízo. Ele adia o seu juízo final muito antes de ousar
estabelecer algo por completo. Esses eram os atributos antigos e puros do ceticismo e
de um cético não adulterado.
166
É nesse sentido que o cético chega à ataraxia (estado de tranquilidade ou
imperturbabilidade) com a suspensão do juízo; na medida em que se liberta do
abuso das teses dogmáticas e da sua antitética. O filósofo cético só pode concluir
a sua investigação, e estar satisfeito com as suas teorias, uma vez que retornem às
suas formas vivas e à realidade empírica. Após argumentar pela suspensão de
teses dogmáticas, a imperturbabilidade que acomete o cético consiste em saber
que, apesar das limitações de teorias dogmáticas, e da limitação do seu próprio
entendimento, a existência não depende do raciocínio, nem os acontecimentos do
conhecimento. Assim, o filósofo cético, mesmo que não esteja isento da pretensão
humana ao conhecimento do cosmos, reconhece as suas limitadas capacidades, e
ao menos não será iludido tão-somente pela inteligência humana.
165
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 162. The
Blomberg Logic, 205.
166
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 166. The
Blomberg Logic, 209.
4.3
Kant e o Pirronismo
Na carta a Garve de 1798, Kant afirma que foram as antinomias da razão
que primeiro lhe despertaram de seu sopôr dogmático. A descoberta das
antinomias da razão pura – o mundo tem um começo, ele não tem um começo,
etc. – está diretamente relacionada a um contato com o ceticismo pirrônico em
meados da década de 1760 e com uma subseqüente descrença na metafísica
tradicional.
Em uma carta de 1781 a Johann Bernoulli, matemático e astrônomo suíço,
na qual discute a sua correspondência com o recém-falecido Lambert (que havia
proposto a Kant reformarem juntos a metafísica em uma carta de 13 de Novembro
de 1765), Kant afirma que já em 1765 notava que faltava à metafísica:
(...) uma pedra de toque confiável com a qual se possa discernir a verdade
da ilusão, já que diferentes, mas igualmente persuasivas proposições metafísicas
levam inescapavelmente a conclusões contraditórias, com o resultado de que uma
proposição inevitavelmente lança dúvida sobre a outra. Eu tinha algumas idéias
para uma possível reforma dessa ciência, mas queria que as minhas idéias
maturassem antes de submetê-las ao penetrante escrutínio do meu amigo.
167
Nota-se que essa análise da dificuldade das proposições metafísicas tem um
caráter especificamente pirrônico. Para Sexto Empírico, a eqüipolência
(isosthenia) de afirmações dogmáticas é o que leva o cético à suspensão do juízo
(époché). Essa carta torna evidente que Kant em 1765 já conhecia o ceticismo
pirrônico e com ele questionava a metafísica tradicional, e, ainda, dá a entender
que já estava trabalhando preliminarmente nas antinomias da razão, embora ainda
faltasse amadurecê-las.
O breve Anúncio para o Programa das Palestras de Inverno de 1765-1766
evidencia o contato de Kant com o ceticismo pirrônico em meados da década de
1760. Nele Kant declara aos seus futuros alunos que não irá ensinar filosofia, pois
167
KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 186. Carta de
Kant a Bernoulli, de 16 de Novembro de 1781. Citada em: FORSTER, M. N. Kant and
Skepticism. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 17.
isso seria impossível, mas ensinar a filosofar: “não são pensamentos e sim a
pensar que o entendimento deve aprender”
168
. KANT afirma:
O método de instrução peculiar à filosofia é cético [zetetic], como alguns da
Antigüidade o chamaram (de zetein). Em outras palavras, o método da filosofia é o
método da investigação. É somente quando a razão já amadureceu, e somente em
certas áreas, que este método se torna dogmático, ou seja, decisivo.
169
Nesse texto, Kant expressa dúvidas em relação à metafísica, afirmando que
a metafísica existente é meramente a ilusão de uma ciência. De acordo com
Forster, por zetetic Kant não entende somente a contínua investigação, mas em
especial o procedimento de isosthenia pirrônico - pelo qual o cético chega à
suspensão do juízo
170
-, que parece ser já nessa época para Kant uma necessidade
no tocante à metafísica.
Kant declara que o método cético seria o método próprio da filosofia,
entretanto, podemos perceber no modo como o faz que Kant nunca foi realmente
cético. Pelo contrário, indica o ceticismo já em vista de um conhecimento
dogmático, mesmo que “somente em certas áreas” e que fosse ainda
desconhecido. Se a investigação (Zetein) caracteriza o filosofar, como a suspensão
de um dogmatismo ingênuo, contudo essa revolução própria ao filosofar, que é a
investigação cética, está ela mesma à espera de uma outra revolução. Kant indica
o método cético para a filosofia por não estar satisfeito com o racionalismo
metafísico-dogmático que prevalecia na sua época, porém, não se mostra disposto
a se satisfazer com o ceticismo. De acordo com KUEHN,
Kant nunca foi um cético convicto, mas de algumas maneiras cético em
relação à sua própria empresa. Desse modo pode ser útil tornar mais claro qual tipo
de ceticismo Kant havia assimilado. (...) As suas reflexões de 1768 mostram que
Kant era um cético em relação às asserções filosóficas e em especial às metafísicas.
Ao passo em que não duvidava da possibilidade do conhecimento científico ou da
validade de afirmações morais, ele estava insatisfeito com as considerações
metafísicas sobre esses assuntos. Essa insatisfação pode ser descrita como uma forma
de ceticismo metafísico, ou como um ceticismo em relação ao método seguido na
metafísica.
171
168
KANT, I. M. Immanuel Kants announcement of the programme of his lectures for the winter
semester 1765-1766. Em: Theoretical Philosophy 1755-1770. Cambridge: Cambridge University
Press, 1992, p. 292. Ak 2:306.
169
KANT, I. M. Immanuel Kants announcement of the programme of his lectures for the winter
semester 1765-1766. Em: Theoretical Philosophy 1755-1770. Cambridge: Cambridge University
Press, 1992, p. 293. Ak 2:307.
170
FORSTER, M. N. Kant and Skepticism. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 18.
171
KUEHN, M. Kant: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 180.
Segundo Forster, o texto Anúncio para o Programa das Palestras de
Inverno de 1765-1766 é o prenúncio de uma crise pyrrhonienne que tem o seu
auge com os Sonhos de um Visionário explicados pelos Sonhos da Metafísica, de
1766, texto no qual Kant lança mão do método pirrônico da isosthenia como
método investigativo. De acordo com Forster, esse é um trabalho conscientemente
pirrônico
172
, no qual KANT expressa incredulidade no tocante à metafísica
tradicional e deseja conferir um novo aspecto e uma nova função à antiga
disciplina:
A Metafísica, pela qual, pelo destino, eu me apaixonei, mas da qual eu posso
ostentar apenas alguns favores, oferece dois tipos de vantagem. A primeira é a
seguinte: ela pode resolver os problemas que são lançados pela mente inquiridora,
quando usa a razão para espionar a propriedade mais escondida das coisas. Mas a
esperança aqui é comumente desapontada pelo resultado. E, nessa ocasião, a
satisfação escapa à nossa mão ávida.
(...)
A segunda vantagem é mais consoante com a natureza do entendimento
humano. Consiste tanto em saber se a tarefa foi estabelecida em referência com o que
se pode saber, e em conhecer qual a relação que a questão tem com os conceitos
empíricos, sobre os quais todos os nossos juízos têm de estar sempre baseados. Nessa
medida a metafísica é a ciência dos limites da razão humana.
173
A metafísica como “ciência dos limites da razão humana” é um
complemento ao conhecimento empírico, a qual assegura que os nossos juízos
estão baseados “em conceitos empíricos... sobre os quais nossos juízos devem
sempre se manter.”
174
Kant não põe em questão os conhecimentos empíricos,
matemáticos, morais e lógicos, do mesmo modo que julga que o pirronismo como
um ataque de escopo modesto ao conhecimento, que não os põe em questão
“asserções empíricas, matemáticas, morais e lógicas”
175
, mas apenas a metafísica
suprasensível. No entanto, é patente que o pirronismo levanta objeções, por
exemplo, contra a lógica geral, como no segundo livro das Hipotiposes Pirrônicas
e em Contra os Lógicos, onde Sexto apresenta argumentos contra a lógica como a
ciência dogmática da “dedução, indução, definição e divisão”
176
, como, de modo
172
FORSTER, M. N. Kant and Skepticism. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 19.
173
KANT, I. Dreams of a Spirit-seer elucidated by Dreams of Metaphysics. Em: Theoretical
Philosophy 1755-1770. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 354. Ak 2:368.
174
FORSTER, M. N. Kant and Skepticism. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 19.
175
FORSTER, M. N. Kant and Skepticism. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 76. Cf.
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 169. The
Blomberg Logic, 213-14.
176
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press,
2000, p. 126, Livro II, xvii [213].
similar, Kant argumenta contra, um por um, a possibilidade de imitar as
definições, as demonstrações e os axiomas da matemática na filosofia.
Assim como os filósofos dogmáticos preocupam-se em especial com a
metafísica, que se divide - como Wolff a organiza - em Ontologia e metaphysica
specialis, composta de psicologia, cosmologia e teologia racionais, e procedem
com as regras da Lógica sem criticar suas capacidades, na visão de C. G. Bardili,
um contemporâneo de Kant, também Kant recebe a Lógica da tradição sem crítica.
Bardili afirma que Kant deixa as regras lógicas “reunidas juntas ... de forma
meramente rapsódica”, e acusa a estranheza de Kant “exigir uma investigação dos
fundamentos da possibilidade de outros tipos de conhecimento com uma aceitação
inteiramente acrítica das leis lógicas”
177
A Lógica na Crítica da razão Pura é o fio condutor da Lógica
Transcendental, do conhecimento de si da espontaneidade do modo de conhecer;
da tábua dos juízos, para as categorias do entendimento, e destas, as que
constituem séries subordinadas, para as idéias transcendentais da razão. Kant, de
fato, como acusa Bardili, um pensador agora inteiramente obscuro, não questiona
a condição de possibilidade da Lógica, como o faz da matemática e da física, e a
considera completa e acabada desde Aristóteles, sem ser possível acrescentar nada
a ela sem desrespeitar suas fronteiras
178
, o que o tempo provaria estar errado com
o desenvolvimento da lógica, e ser uma asserção dogmática, sem fundamento de
Kant.
Entretanto, porque Kant recebe dogmaticamente, de forma acrítica a Lógica,
se a estudou e a considerou “sã”, satisfatória bem como indispensável? Além do
mais, Kant não apenas recebe a Lógica da tradição, sem considerar suas
propriedades – Kant julga que a Lógica deve sua completude justamente às suas
limitações, por ser meramente formal e não ter em vista o conteúdo do
conhecimento. Pode-se pensar que Kant não questiona como é a Lógica possível?
- como faz com a matemática e a física logo após esses apontamentos sobre a
Lógica no segundo prefácio da Crítica, devido justamente ao seu caráter formal,
por conter “as regras absolutamente necessárias do pensamento”
179
. Assim, a
177
FORSTER, M. N. Kant and Skepticism. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 83.
178
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 106: B
viii.
179
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 194: A
52 / B 76.
lógica “elementar” está na base e é a condição de possibilidade de todo uso do
entendimento. Pode-se pensar que, ao menos de início, responder à pergunta de
como a lógica é possível envolve o argumento circular de assinalar que o próprio
uso do entendimento é possível. E responder a essa pergunta, desse modo, não
contribui com nenhum esclarecimento de como funciona ou como é possível
nenhuma ciência em particular, de como é possível a metafísica como ciência,
pois a lógica está no fundamento de todo uso do entendimento e de todas as
ciências.
Desse modo, Kant de fato entende o escopo do pirronismo de forma
reduzida, mas isso não significa que isso o respalda a aceitar da tradição pedaços
de ciências sem crítica, introduzidos sub-repticiamente em sua filosofia. Pode-se
pensar que, como as preocupações de Kant se dirigem especialmente para a
metafísica, e como jamais fosse um cético convicto, seu interesse no ceticismo se
limita aos ataques às pretensões dogmáticas da filosofia, assim comete o erro de
igualar seus questionamentos ao do próprio pirronismo.
Em Sonhos de um Visionário, Kant faz uso do método zetético,
argumentando pelos dois lados de questões metafísicas para provocar a suspensão
do juízo, para, então, questionar o próprio conceito de espírito, por exemplo, sobre
o qual ambos os lados se combatem. Isso produz um texto um pouco confuso, no
qual o propósito de Kant não é facilmente apreendido. Ao final do segundo
capítulo, Kant cita Diógenes o cínico: Coragem, cavalheiros, há terra à vista!
180
O propósito de Kant não é constituir uma “doutrina cética”, mas investigar a
metafísica ceticamente de modo a erigir uma filosofia transcendental, através de
uma autocrítica da razão. Essa se torna uma necessidade devido aos limites
averiguados na metafísica dogmática. KANT escreve:
Não fui capaz de trazer essas considerações a essa conclusão sem ao mesmo
tempo atender a outras influências da filosofia pura que ao mesmo templo
completei. Pois não sou da mesma opinião do excelente homem que recomenda
que, uma vez se tenha se convencido sobre algo não se deve dele duvidar mais. Isso
não serve na filosofia pura. Mesmo o entendimento já possui a isso uma resistência
natural. Ao contrário, deve-se pesar as proposições em toda sorte de aplicações a
até tomar emprestado uma prova particular dessas, deve-se tentar o oposto, e adiar a
decisão até que a verdade seja iluminada de todos os lados.
181
180
KANT, I. Dreams of a Spirit-seer elucidated by Dreams of Metaphysics. Em: Theoretical
Philosophy 1755-1770. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 354. Ak 2:368.
181
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 207.
Reflexão 5036 (de 1776-78), Ak 18:68-9.
A partir de investigações propriamente céticas, Kant enxerga a
necessidade de uma crítica especial, a qual pudesse “assegurar, alterar e reformar”
o conhecimento filosófico. Kant na passagem acima dá a entender que
“completou” a filosofia cética, cuja influência na filosofia pura foi decisiva para
que chegasse à compreensão da necessidade da autocrítica da razão. Entretanto,
essa necessidade a princípio estava como que envolta numa “penumbra” para
KANT:
Se eu somente conseguir tornar convincente que se deve suspender o
tratamento dessa ciência [a metafísica] até que esse ponto seja decidido, então o meu
texto realizará o seu propósito.
Inicialmente eu via essa doutrina como em penumbra. Eu tentava muito
esforçadamente provar proposições e o seu oposto, não para estabelecer uma doutrina
cética, mas porque eu suspeitava que pudesse descobrir em qual ilusão o
entendimento estava se escondendo. O ano de ’69 me trouxe uma grande luz.
182
A luz de 1769 veio da descoberta das antinomias, a qual faz Kant romper,
em seus próprios termos, com a metafísica tradicional. Com essa descoberta, Kant
é capaz de compreender a necessidade do método cético devido à natureza da
própria razão bem como o lugar que ele irá desempenhar na sua própria filosofia,
que, nesse sentido, refuta o ceticismo em si, embora o complete ao dirigir seu
método à autocrítica da razão.
“Há um ano aproximadamente”, ele escreveu em setembro de 1770, “Eu
cheguei a um conceito que acredito que deva jamais ter de alterar, embora sem
dúvida requeira amplificação. Através dele todo tipo de questões metafísicas podem
ser apreciadas de acordo com critérios perfeitamente certos e simples, e por ele pode-
se determinar com certeza se são ou não passíveis de solução.”
183
Desse modo, o ano de 1769 marca não somente a descoberta das
antinomias tais como figuram na Crítica - contradições da razão com si mesma,
baseadas em uma tendência inerente da razão ao realismo transcendental, e que
devem ser solucionadas a partir ao autoconhecimento da razão -, mas ao mesmo
tempo a apropriação kantiana do método cético, que lhe confere o seu acabamento
ao atribuir-lhe um caráter propriamente crítico. Para JASPERS,
182
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 207.
Reflexão 5037 (de 1776-78), Ak 18:69.
183
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 13.
Por si mesmas, abertura, ceticismo e paciência levaram a lugar nenhum. Se o
insight negativo de Kant não fosse ser somente resignação, ele teria que achar nova
certeza ao longo de novos caminhos para o pensamento metafísico.
Kant deu um passo decisivo ao introduzir um método em seu ceticismo.
184
As antinomias ensinaram Kant a direcionar o seu ceticismo, tornando mais
clara e determinada a razão pela qual a metafísica não pode ser uma ciência de
objetos transcendentes. O cético mantém juízo apurado com a suspensão (époché),
justamente por adiá-lo. Dessa maneira, Kant o descreve metaforicamente como
um juiz, que pesa os dois lados de um conflito e não se decide a favor nem de um
nem de outro sem provas convincentes. De fato, Kant tem respeito pelo ceticismo
e sem dúvida o considera importante. KUEHN escreve:
“O ‘non liquet’ pirrônico deveria, como o sábio dito oracular, tornar difíceis
e odiadas as nossas meditações vazias.” Essas passagens mostram não somente que
Kant conhecia o pirronismo, mas também que não o rejeitava prontamente. De fato,
Pirro é explicitamente chamado de um “homem de mérito”.
185
O cético demonstra ser mais consciente da natureza da razão e de seus
limites do que o dogmático. Se o cético não busca, como o filósofo crítico,
diretamente o autoconhecimento, em especial por estar atrelado ao dogmático,
contudo ele estimula a reflexão e o questionamento de si, ao apontar para a
impotência da razão em conhecer todos os objetos que deseja. Assim, o cético
percebe melhor a natureza do conhecimento, no qual habita de modo necessário e
indelével uma ignorância a priori.
Desse modo, pode-se perguntar por que se deve, afinal, “refutar” o
ceticismo, como uma reação imediata e impensada à sua luta contra o
dogmatismo? Pode-se pensar que o ceticismo não é um inimigo da filosofia nem
está fora dela, como se ceticismo e filosofia fossem termos externos e excludentes.
O desafio cético, na verdade, é um impulso a pensar, confere clareza à necessidade
de se questionar e de se buscar novas possibilidades para o pensamento. Nesse
sentido, pode-se considerar que a filosofia de Kant faz bom proveito da filosofia
cética e de toda a tradição filosófica, e, “à diferença de todas as outras, e até
184
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 12.
185
KUEHN, M. Kant: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 182
(citações da Lógica Blomberg).
mesmo em oposição a elas, é chamada de filosofia transcendental (...)”
186
, como é
bom inclusive que esteja sujeita, ela mesma, aos questionamentos céticos.
O ceticismo não deve, portanto, ser visto nem como uma etapa instrumental
pela qual é levado à sua própria extinção, nem como um simples inimigo da
filosofia, externo a ela, que visa a sua decadência e o seu fim. Pelo contrário,
pode-se identificar no ceticismo o incentivo a fortalecer a filosofia justamente
pelas suas fraquezas, enriquecer o conhecimento pela assunção da sua ignorância,
as quais o dogmatismo, tão ansioso e precipitado para atingir suas metas, prefere
simplesmente deixar de lado, e assim as perpetua, sem jamais tornar a própria
fraqueza em força, a ignorância em conhecimento.
Desse modo, é proveitoso, pode-se considerar essencial que a filosofia
compreenda o ceticismo não como amigo ou aliado, pois ele mesmo é filosofia,
mas sim como a voz do seu interior que a impele a se aperfeiçoar, a se contrapor e
enxergar também a si própria – que a leva inclusive a criticar o próprio conceito
de filosofia; e o dogmatismo como um desafio perene, a tarefa de afirmar o que é
e o que deve ser, em um conflito de forças de refletir a si mesmo quando se tem de
investigar o eterno, o transitório e o imperscrutável.
186
SCHOPENHAUER, A. Fragmentos para a História da Filosofia. São Paulo: Iluminuras, 2003,
p. 72.
3.4
A distinção entre Ceticismo e Método Cético
A distinção entre o método cético e o ceticismo assinala uma apropriação
parcial de Kant das estratégias céticas. Para Kant, o ceticismo é necessário para
combater “as pretensões dogmáticas da metafísica”
187
, sendo imperativo
distinguir o método cético do ceticismo, pois esse não pode servir de “repouso à
razão”. KANT afirma:
(...) recomendar a convicção e a confissão da sua ignorância, não só como
um remédio contra a presunção dogmática, mas ao mesmo tempo como o modo de
por termo à luta da razão consigo própria, é uma tentativa inteiramente vã, e de modo
algum serve para proporcionar repouso à razão, mas é na melhor das hipóteses
apenas um meio de despertá-la dos seus doces sonhos dogmáticos de modo a
conduzi-la a um exame mais cuidadoso do seu estado
188
.
O método cético é apropriado para despertar a razão de seu sopor
dogmático, mas ainda para investigar o estado da razão humana, entrando em cena
a partir da antitética dogmática, e, em face à razão contradizer a si mesma em o
que aparentam ser conhecimento dogmáticos, o seu uso é indispensável. Desse
modo, o método cético é resgatado pela filosofia crítica e nela desempenha uma
função necessária. Ao passo que o ceticismo global, pelo contrário, permanece
como um adversário da filosofia crítica que deve ser combatido. KANT escreve:
Este método de assistir ou até ocasionar um conflito de afirmações, não de
modo a decidi-lo a favor de uma ou outra parte, mas para investigar se o objeto da
disputa não é talvez uma miragem à qual cada um agarrasse em vão, mesmo se não
encontrasse resistência - esse procedimento, digo, é o que se pode denominar método
cético. É totalmente diferente do ceticismo, princípio de uma ignorância ardilosa e
científica, que mina os fundamentos de todo conhecimento para, se possível, não
deixar em parte alguma segurança ou certeza.
189
Kant lança mão do método cético para combater o dogmatismo, mas esse
uso não é em vista de uma doutrina cética. O método cético na crítica deve ser
187
BEISER, F. “Kant’s Intellectual Development: 1746-1781” Em: The Cambridge Companion to
Kant, ed. Paul Guyer. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 46. Beiser comenta a
carta de Kant a Mendelssohn, de 8 de Abril de 1766[Ak 10:70].
188
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 652. A
757 / B 785.
189
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 468. A
424 /B 452.
distinguido do ceticismo, pois uma das inovações da filosofia crítica é fazer o
método cético se voltar para o autoconhecimento. A versão crítica do método
cético é uma das condições necessárias para o autoconhecimento da razão, para
localizar as suas ilusões e reforçar as suas fronteiras. De acordo com KANT,
Toda a polêmica cética se dirige propriamente tão-só contra o dogmático,
que segue seriamente o seu caminho sem nenhuma desconfiança dos seus princípios
objetivos originais, i.e., sem crítica, de modo a libertar seu conceito [Concept] e
trazê-lo ao autoconhecimento.
190
O método crítico faz uso do método cético para se suspender das ilusões
dogmáticas, e para que, a partir dessa suspensão, seja possível não somente ao
dogmático examinar a si mesmo, mas, ao mesmo tempo, para que se possa
examinar a própria razão. Desse modo, a diferença entre o uso do método cético
na crítica e no ceticismo consiste em que a suspensão, além de servir para
dissolver as pretensões e os erros dogmáticos, também é utilizada como um
método para descobrir e afirmar algo sobre a natureza da razão. No capítulo da
Antinomia da Razão Pura, KANT escreve:
Com efeito, o método cético aspira à certeza e procura o ponto de
desentendimento numa controvérsia bem intencionada e conduzida com inteligência
por ambos os lados, para fazer como esses sábios legisladores que, em face das
perplexidades dos juízes nos processos, estabeleciam instrução quanto ao que era
deficiente ou insuficiente determinado em suas leis. A antinomia que se manifesta
na aplicação das leis é, na nossa limitada sabedoria, a melhor maneira de testar a
nomotética, para tornar a razão - que na especulação abstrata não se apercebe
facilmente dos seus passos em falso - mais atenta aos momentos envolvidos na
determinação dos seus princípios.
Este método cético, porém, só é essencialmente apropriado para a filosofia
transcendental e, em todo o caso, pode ser dispensado em todos os outros campos
de investigação, mas não neste.
191
A tética é o conjunto das teorias dogmáticas
192
. A nomotética é o conjunto dos
conhecimentos dogmáticos sobre a razão humana e o modo de conhecer. O
método cético é voltado para a nomotética, para a observação das suas próprias
leis. Nesse sentido, o ceticismo pode ser visto como um registro histórico do
caráter dialético da razão a serviço dos filósofos dogmáticos, mas não como
um modo de corrigi-los em seus enganos, pois o cético prescreve apenas a
suspensão do juízo.
190
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 655, A
763 / B 791
191
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 468-69.
A 424 /B 452.
192
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 388. A 421 /
B 448.
Na Crítica da Razão Pura, o método cético está direcionado para a
antitética não somente dogmática, mas considerada da própria razão humana.
Desse modo, o método pirrônico “só é essencialmente apropriado para a filosofia
transcendental” porque Kant o direciona para a investigação transcendental da
própria razão, seu objetivo não é manter-se na suspensão do juízo, mas essa é
necessária para que se possa subsequentemente determinar as causas do conflito
dialético e buscar para ele uma solução crítica. A isosthenia passa a ser o auto-
exame da própria razão, com um uso determinado, localizado nos raciocínios
dialéticos da antinomia da razão pura, onde a suspensão do juízo (époché) tem
propriedade. Está desvinculada da ataraxia, mas sim ligada diretamente à sképsis,
todas elas voltadas para a autocrítica da própria razão.
Pode-se afirmar que a maior dissensão de Kant com o ceticismo consiste em
que não basta a suspensão do juízo, não é suficiente demonstrar uma aporia, mas é
preciso fazê-lo com um direcionamento. Assim, o objetivo do ceticismo não pode
ser manter-se na suspensão, e sim alcançar um novo uso dogmático da razão,
conseqüente, que pode ser definitivo se pautado pelo conhecimento da sua própria
natureza. Não somente listar argumentos para a não-afirmação, para a suspensão
do juízo e nela parar, de súbito, em tranqüilidade, mas apontar para a ilusão que
esses argumentos combatem. Como afirma O. Chateaubriand, “você precisa ter
uma direção se deseja ir adiante.
193
O filósofo cético não questiona a fonte dos erros e das ilusões no dogmatismo,
e não investiga as causas do conflito dialético da razão. Sobretudo, o cético
ignora a necessidade de contornar esse terreiro de luta, de determinar um novo
campo possível para uma tese, uma teoria positiva. Pois isso é uma necessidade
racional que o cético não reconhece em seu caráter fundamental, inscrito
inclusive no próprio entendimento humano. Pode-se acusar o ceticismo de ficar
no meio do caminho, pois deseja apenas refutar o dogmatismo, e sustentar
razões para ser cético. Além disto não ser satisfatório, constitui um desperdício
do exame cético da antitética dogmática, que Kant aproveita atribuindo-lhe um
direcionamento crítico.
O que os céticos ignoram é que o seu método nasceria não somente para a
superação do dogmatismo, como também do próprio ceticismo global. Hume
reconhece que se deve ser positivo em pontos particulares, de acordo com a luz de
193
CHATEAUBRIAND, O. “The Tyranny of Belief.” Em: O que nos faz pensar? Cadernos do
Deptº de Filosofia da PUC - Rio, Novembro de 1994 – nº. 8: Especial sobre Ceticismo, p.53.
uma investigação em um instante particular
194
. Se por um lado há um ceticismo
meramente suspensivo que é definitivo, o qual combate a crença no não-aparente
a partir da intuição de meros fenômenos, por outro lado, o método cético permite
avançar no conhecimento positivo de si mesmo. Pode-se pensar que o ceticismo
inclui implicitamente uma teoria sobre o entendimento humano, na medida em
que o salto ilegítimo da intuição para uma natureza real, autosubsistente das
coisas, i.é., a tendência ao dogmatismo, seria própria à natureza humana e daí se
funda a necessidade da atitude cética bem como sua validade universal.
Entretanto, o propósito do ceticismo é a ataraxia, e Sexto sistematiza os modos
pelos quais, através da isosthenia e da époché, o cético é levado à tranqüilidade, e,
claro, não elabora uma teoria sistemática sobre o próprio entendimento humano.
Por assimilar o ceticismo desvinculando a isosthenia e a epoché da
ataraxia, pode-se dizer que Kant contribui o seu quinhão para a despersonalização
da filosofia cética, separando a suspensão da tranqüilidade (considera, por
exemplo, que Hume poderia representar toda a tradição cética
195
). Entretanto,
com essa desvinculação, e muito embora rompa com o ceticismo, pode-se pensar
que a crítica é capaz de levar as motivações céticas adiante. As faz penetrar em
um domínio que lhes era totalmente desconhecido, ao qual a fidelidade ao seu
próprio método privava o cético de adentrar. Porém, esse desenvolvimento das
tendências céticas reduz a significação do ceticismo para um uso localizado do
seu método suspensivo.
Em questões dogmático-metafísicas é preciso suspender a époché para que
seja possível entender o motivo e a necessidade de vivê-la nesse domínio
específico. Na filosofia transcendental, a époché anda de mãos dadas com a
autocrítica. Isso requer que se reproduzam teses e antíteses metafísicas por si
mesmo, ou seja, suspender-se de si para criticar-se – em vez de considerá-las
externas a si próprio, como se realmente se pudesse ser inteiramente alheio às
motivações dogmáticas e aos questionamentos metafísicos. Entretanto, deve-se ler
a “suspensão da suspensão” em sentido figurado: a inovação de Kant é que, ao
adotar as duas perspectivas concomitantemente, a suspensão não anula a reflexão,
194
HUME, D. A Treatise of Human Nature. Norton / Norton (Eds.). Oxford: Oxford University
Press, 2000, p. 178.
195
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 673. A 856 /
B 884.
a investigação, mas promove a crítica. Com o uso do método cético, a filosofia
crítica busca a abrangência da razão ao adotar vários pontos de vista.
Pode-se considerar o método cético fundamental para a filosofia. Com ele, a
filosofia é capaz de criticar e conhecer a si mesma – não que isso seja, de maneira
nenhuma, a sua tarefa fundamental ou fim último, mas uma necessidade que se
impõe para prosseguir nas suas investigações. Embora Kant considere que a
natureza da filosofia seja crítica, o método cético lhe é indispensável para a sua
tomada de consciência de si. Entretanto, a dogmaticidade da filosofia é inevitável,
na medida em que deve afirmar as suas descobertas, ser positiva em pontos
determinados. Mas isso não significa que a filosofia precisa fechar-se em si
mesma ou não estar disposta a novas descobertas. O método cético representa a
tarefa constante de reflexão, e, através da habilidade da isosthenia, indica a
necessidade de sempre prosseguir a investigação. Desse modo, não se pode
considerar a apropriação kantiana do método pirrônico uma violência à sua
natureza - pois a habilidade de contrapor argumentos opostos em equilíbrio não
tem, em si mesma, uma natureza crítica?
4.5
A Antinomia da Razão Pura
A Antinomia da Razão Pura é um conflito de leis em que a razão se enreda
quando, a partir da série de condições das aparências, pensa o incondicionado, ou
seja, tenta conhecer o mundo como um todo absoluto. No domínio da experiência,
a cadeia causal não tem nenhum começo ou primeiro fundamento, mas pode-se
sempre regressar na síntese de conseqüente e antecedente – já a razão exige uma
“completude absoluta” para essa síntese, e assim vai para além do domínio da
experiência. No entanto, ao abandonar esse domínio e ajuizar sobre a totalidade
incondicionada, suas teses se contradizem e se excluem mutuamente, em conflitos
cosmológicos que Kant chama de Antinomias da Razão Pura. KANT escreve entre
1775-77:
O fundamento da antinomia da razão é o conflito: I. todas as sínteses
empíricas são condicionadas, as matemáticas bem como as dinâmicas. A. Toda
aparência tem partes e é ela mesma uma parte. B. Tudo que acontece é uma
conseqüência (o que é, é condicionado) e ele próprio um fundamento. Não há nem
primeiro nem último. Nenhum simples, nenhuma fronteira da grandeza, nenhum
primeiro fundamento, nenhum ser necessário. I.e., não podemos chegar a esses
entre as aparências e não devemos apelar a elas. Em contraste, a síntese transc.
através de puros conceitos da razão é incondicionada, mas também se dá por
conceitos puramente intelectuais; portanto não há na verdade nenhuma antinomia.
O mundo é limitado. Consiste de [elementos] simples. Há a liberdade. Há um ser
necessário.
196
Tudo que acontece é uma conseqüência e um fundamento, i.e., toda causa é
o efeito de uma outra causa antecedente, e todo efeito a causa de outro efeito.
Desse modo, todas as sínteses empíricas são condicionadas, “não há nem primeiro
nem último”. Kant afirma que “não há na verdade nenhuma antinomia” porque
tese e antítese não dizem respeito ao mesmo objeto, um lado pensa no mundo “por
conceitos puramente intelectuais”, e outro pensa no mundo tão-somente de acordo
com suas leis empíricas. Assim, a antinomia propriamente diz respeito ao conflito
de leis entre as regras da experiência e as leis da razão pura ao ultrapassar a
experiência e pensar o incondicionado, de acordo com o princípio: “Se o
condicionado é dado, então o conjunto total das condições, e, portanto, o
absolutamente incondicionado, é igualmente dado, através do qual unicamente o
condicionado era possível.”
197
196
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 189.
Reflexão 4760 (de 1775-77), Ak 17:711.
197
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 461: A
409 / B 463. De acordo com Schopenhauer, “Trata-se de um princípio estabelecido e elucidado por
A Antinomia da Razão Pura tem a característica distintiva de não consistir
apenas em teoremas sofísticos da razão ao abandonar o domínio da experiência,
que têm uma única direção, como, no caso dos paralogismos da razão pura, para o
pneumatismo, mas sim de produzir uma “antitética transcendental”. KANT
escreve:
Se qualquer conjunto de teses dogmáticas é uma “tética”, então por
antitética entendo não a declaração dogmática do oposto, mas, antes, o conflito
entre o que aparentam ser conhecimentos dogmáticos (thesin cum antithesi), sem a
atribuição de uma reivindicação preeminente à aprovação de um lado ou de outro.
Deste modo, uma antitética não se ocupa com asserções unilaterais, mas considera
tão-somente o conflito entre conhecimentos gerais da razão e as causas desse
conflito. A antitética transcendental á uma investigação das antinomias da razão
pura, suas causas e resultados.
198
Nas Antinomias, Kant expõe os argumentos opostos da razão pura lado a
lado, com o fim de mostrar que ambos são dialéticos e se contradizem
mutuamente. Os argumentos de cada lado são persuasivos, Kant de fato se esforça
para apresentá-los de forma convincente, e os expõe com provas aparentemente
necessárias, pois, para Kant, os argumentos opostos estão em equilíbrio ou em um
plano de eqüipolência. Desse modo, Kant não se declara a favor de nenhum dos
lados, o que denomina de método cético. De influência pirrônica, que expõe os
argumentos dos dois lados de uma disputa sem se pronunciar a favor de nenhum
deles, esse método cético próprio à filosofia transcendental é uma propedêutica à
autocrítica da razão. Assim, a habilidade pirrônica da isosthenia é usada como um
modo de buscar e diluir as ilusões dogmáticas que devem estar na fonte desse
conflito. Kant não se ocupa com “asserções unilaterais”, mas tão-somente com o
conflito como um todo, para desvelar como, em conjunto, a luta, em um plano de
eqüipolência, é em princípio equivocada. Então a suspensão do juízo (époché)
deve se seguir, i.e., não mais afirmar dogmaticamente sobre as idéias da razão
pura, mas investigar as causas do conflito.
Apesar de Kant expor os argumentos de cada lado com esmero, e buscar
torná-los plausíveis e convincentes, não importa tanto se após análise minuciosa
os argumentos expostos por Kant se mostrarem falaciosos, pois os considera
Christian Wolff em sua Cosmologia, sect 1, c. 2, § 93, e em sua Ontologia, § 178.”
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora
UNESP, 2005, p. 600 (I 571).
198
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 467: A
420-21 / B 448.
falsos
199
. O que deseja produzir é uma antitética aparentemente necessária tendo
em vista as motivações da razão humanas e quando se parte dos pressupostos dos
filósofos dogmáticos.
Segundo Kant, os conflitos cosmológicos são dificuldades às quais a razão
é levada natural e inevitavelmente, pois, em primeiro lugar, não dizem respeito a
uma “questão arbitrária”, mas sim uma que toda razão humana deve
necessariamente “elaborar no curso do seu progresso” e, em segundo lugar, a
antitética não se ergue sobre uma “ilusão artificial”, que possa desaparecer uma
vez esclarecida, mas sobre uma ilusão que mesmo uma vez detectada não pode
“jamais ser destruída”.
200
No tocante ao primeiro ponto, deve-se notar que Kant
denomina as idéias da razão pura propriamente de conceitos cosmológicos. Para
KANT, na própria gênese das idéias da razão está a busca por uma totalidade
absoluta do mundo:
(...) a razão não pode realmente gerar absolutamente nenhum conceito, mas
pode apenas libertar um conceito do entendimento das inevitáveis limitações de
uma experiência possível, e assim buscar estendê-lo para além das fronteiras do
empírico, apesar de ainda em conexão com ele. Isso acontece quando para um
condicionado dado a razão exige uma totalidade absoluta no lado das condições
(sob as quais o entendimento sujeita todas as aparências à unidade sintética), desse
modo tornando a categoria em uma idéia transcendental, de modo a fornecer
completude absoluta à síntese empírica através do seu progresso em direção ao
incondicionado (que não é jamais alcançado na experiência, mas somente na idéia).
201
A razão não pode gerar conceitos por si própria, apenas “liberta” as
categorias do entendimento da referência a uma experiência possível, entretanto,
suas idéias continuam se referindo ao fenômeno, pois buscam pelo incondicionado
a partir de um “condicionado dado”. Assim, pertence à própria natureza das idéias
da razão pura a busca pela totalidade incondicionada do mundo: “para um
condicionado dado a razão exige uma totalidade absoluta no lado das condições
(...), de modo a fornecer completude absoluta à síntese empírica através do seu
progresso em direção ao incondicionado” de acordo com o princípio supracitado,
“desse modo tornando a categoria em uma idéia transcendental”.
199
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 44.
200
Cf. KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 467-
68: A 422 / B 449-50.
201
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 460-61:
A 409 / B 435-36.
Assim, pode-se afirmar que a antitética transcendental - teses dogmáticas
em conflito excludente e em um mesmo plano de eqüipolência sobre suas idéias –
é um resultado das exigências da própria razão humana. Apesar de se tratar de
uma antitética dogmática, devido ao objeto das antinomias - que é estimado para a
razão humana e ao qual não se pode “afetar indiferença” - é a própria razão
humana que é colocada em uma disputa consigo própria. A antitética é com Kant
“despersonificada”, e “internalizada” à própria razão – é, em suas palavras,
“natural” e “transcendental”. A história de conflitos da filosofia tem, assim, a sua
raiz não em teses pessoais de filósofos dogmáticos, mas em motivações e
exigências da própria razão humana – não precisam de “armadilhas artificiais”,
pois a razão cai nelas, i.e., na antitética, por si mesma.
Na antitética, a razão ou adere à exposição do último orador, pois os
argumentos opostos são igualmente persuasivos e só “vence” quem fala por
último, ou, se considerar a própria antitética, encontra-se diante de uma aporia;
não pode se decidir por nenhum dos lados e é levada a suspender o juízo sobre a
questão: não consegue mais raciocinar sobre suas idéias. Como para Kant a
habilidade do entendimento é o juízo, a sua suspensão necessária indica que a
matéria em questão está para além dos limites do entendimento humano. Nesse
sentido, a razão encontra uma barreira imposta pela natureza das suas próprias
idéias para conhecê-las objetivamente, até mesmo para entendê-las dessa forma.
Segundo KANT:
Todo o conhecimento puro do entendimento é de tal modo que os seus
conceitos podem ser dados na experiência e seus princípios confirmados pela
experiência; em contraste, o conhecimento transcendente da razão nem permite ao
que se relaciona às suas idéias ser dado na experiência, nem as suas teses são
jamais confirmadas ou refutadas pela experiência; por conseguinte, somente a
própria razão pura pode detectar o erro que se insinua nelas; apesar de ser isso
muito difícil de fazer, porque essa mesma razão por natureza torna-se dialética
através das suas idéias, e esta inevitável ilusão não pode ser contida nos limites
através de nenhuma investigação objetiva e dogmática das coisas, mas somente pela
investigação subjetiva da própria razão, como a fonte das idéias.
202
Kant considera o objeto dos conflitos cosmológicos da razão como idéias
transcendentais, que não têm nem de inicio nem necessariamente realidade
objetiva, i.e., não representam um objeto que pode ser dado por uma experiência
202
KANT, I. Prolegomena to any future metaphysics. Em: KANT, I. Theoretical Philosophy after
1781. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 121: §42, Ak 4: 329.
possível. Desse modo, a razão para esclarecer suas “teses transcendentes” deve
investigar a si mesma, como a fonte das idéias, para descobrir de que modo suas
idéias podem se relacionar de forma legítima com a experiência.
O resultado da aporia em que a razão se encontra ao considerar a antitética
transcendental a leva ou a “assumir uma atitude de teimosia dogmática”, ou a
“render-se à desesperança cética”, a qual Kant chama de “eutanásia da razão
pura”
203
. Entretanto, essa aporia, na realidade, indica o verdadeiro caminho que a
razão pura deve e unicamente pode trilhar nessa situação, pois só lhe resta o
conhecimento de si mesma, na medida em que nem é capaz de ir mais além
dogmaticamente, sem crítica, nem o silêncio tico são alternativas possíveis para
uma “filosofia saudável”: “(...) nada resta exceto refletir sobre a origem dessa
desunião da razão consigo própria, e se talvez um mero desentendimento possa
ser responsável por ela (...)”
204
Se, por um lado, render-se à omissão cética leva à
eutanásia da razão pura - e a teimosia dogmática somente perpetua os conflitos,
por outro lado, o método pirrônico da isosthenia tem a função de preparar o
terreno para seu conhecimento de si, o qual o pirronismo, por si só, não é capaz de
fornecer.
No tocante ao segundo ponto, Kant afere os conflitos cosmológicos a uma
ilusão da razão, e afirma:
Não há (...) nenhuma polêmica real no campo da razão pura. Ambas as partes
dão golpes no ar e lutam com as suas sombras, pois ultrapassam a natureza, onde
não há nada que as suas garras dogmáticas possam agarrar e deter. Briguem como
quiserem, as sombras que repartem recompõem-se num instante, como os heróis do
Walhalla, para se divertirem novamente em batalhas sem sangue
205
.
No entanto, essa ilusão não é arbitrária, mas tem a sua sede na razão pura,
de fato Kant a chama de “ilusão transcendental”. Como a busca por uma
“completude absoluta” é exigida pela própria razão, Kant considera natural e
inevitável a tendência da razão para tropeçar em antinomias, sendo necessário o
idealismo transcendental para “(...) prevenir uma ilusão enganadora que deve
203
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 460: A
407 / B 434.
204
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 497: A
464 / B 492.
205
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 652: A
756 / B 784.
inevitavelmente surgir quando e interpreta mal os nossos próprios conceitos da
experiência.”
206
:
(...) A ilusão transcendental não cessa ainda mesmo depois de descoberta e a
sua nulidade claramente penetrada pelo criticismo transcendental (p.ex., a ilusão na
proposição: “o mundo deve ter um começo no tempo”)... Ilusão esta que é
inteiramente inevitável, assim como não podemos evitar que o mar nos pareça mais
alto ao longe do que junto à costa, porque, no primeiro caso, o vemos por meio de
raios mais elevados; ou, ainda melhor, tão pouco quanto o próprio astrônomo não
pode evitar que a lua, ao nascer, lhe pareça maior, embora não se deixe enganar por
essa ilusão.
207
A razão não pode resistir a ultrapassar o domínio da experiência possível,
pois é conduzida a isso ao seguir o “progresso contínuo da síntese empírica”
208
.
Entretanto, as idéias da razão, quando se libertam de todas as condições da
experiência, e buscam conhecer o incondicionado, estão conectadas a uma ilusão
inevitável, que não cessa mesmo após ser desvelada pela autocrítica da razão. No
entanto, como as idéias podem ter um uso crítico, independente da ilusão
transcendental, pode-se pensar que essa ilusão e a antinomia da razão pura, em
vez de fatalidades, são na verdade inevitáveis como tendências próprias à razão,
conectadas ao dogmatismo como a tendência mais forte do conhecimento.
Desse modo, as antinomias devem ser estudadas para se evitar o erro e as
contradições da razão no campo da cosmologia racional, o qual passa a ser um
domínio favorecido para a autocrítica e reflexão. Como é uma ilusão
transcendental que está na base da antinomia da razão pura, sendo ambas as
tendências inerentes, inevitáveis e indeléveis da razão, não se deve entender o
método cético apenas como uma etapa preliminar da crítica, mas sim como uma
parte integrante sua, segundo a necessidade recorrente de contrapor argumentos
opostos para investigá-los em conjunto e descobrir a fonte do seu erro.
Eis um exemplo da antitética da razão pura versus razão pura, o “Primeiro
Conflito das Idéias Transcendentais”:
Tese
206
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 514: A
497 / B 525.
207
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 386: A
297 / B 354.
208
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 419 A 462 /
B 490.
O mundo tem um começo no tempo, e no espaço é também circunscrito em
fronteiras.
Antítese
O mundo não tem nenhum começo e nenhum limite no espaço, mas é
infinito em relação tanto ao tempo quanto ao espaço.
209
Kant chama o lado da tese de dogmatismo da razão pura, e o lado da
antítese de empirismo puro
210
. A tese pressupõe o incondicionado no mundo, ao
passo que a antítese torna a síntese emrica em uma realidade absoluta, de modo
que o próprio mundo não teria começo e seria infinito. Entretanto, cabe lembrar
que ambos os lados são dogmáticos, pois asseveram como o mundo é em sua
totalidade absoluta, o que não é objeto de uma experiência possível e que tese e
antítese não representam opiniões pessoais de filósofos dogmáticos, mas, para
Kant, alternativas próprias à razão pura.
A gênese das idéias da razão, a qual “liberta” um conceito do entendimento
da referência a uma experiência possível, não se dá a partir de todas as categorias,
mas somente as cuja síntese constitui uma série de condições subordinadas, mas
não coordenadas. Além do mais, a razão ocupa-se da série ascendente de
condições para um condicionado dado, não com a linha descendente das
conseqüências.
211
Assim, a razão busca pela “totalidade absoluta” ao preocupar-
se com o primeiro fundamento da síntese empírica, não com o seu possível
desenvolvimento, “pois conseqüências não tornam suas condições possíveis, mas
antes as pressupõem”. Desse modo, na primeira antinomia, por exemplo, está em
questão somente se o mundo tem ou não um começo no tempo, mas não se se
situa em um tempo infinito:
(...) necessariamente se pensa sobre o tempo inteiramente decorrido até o
momento presente como igualmente dado (mesmo que não seja determinável por
nós). Mas em relação ao futuro, já que não é uma condição de se chegar ao
presente, é uma questão de total indiferença para compreender o presente o que
podemos afirmar sobre um tempo futuro, se ele pára em algum lugar ou corre ao
infinito.
212
209
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 470-71:
A 426-27 / B 454 -55.
210
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 421. A 466 /
B 494.
211
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 461: A
409 / B 436.
212
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 461: A
410 / B 437. Cabe notar que esse raciocínio diz respeito à gênese das idéias da razão, mas, na
Kant mostra como os conceitos cosmológicos da razão ou são “grandes
demais” ou “pequenos demais” para “todos os conceitos do entendimento”, sendo
esse o motivo pelo qual a razão é “inevitavelmente envolvida em antinomias”. No
caso da primeira antinomia, se
(...) o mundo não tem nenhum começo; então é grande demais para o seu
conceito; pois esse conceito, que consiste em um regresso sucessivo, não pode
jamais alcançar a eternidade inteiramente decorrida. Suponha que tenha um começo,
então novamente é pequeno demais para o seu conceito do entendimento no
necessário regresso empírico. Pois já que sempre se pressupõe um tempo
precedente, não é ainda incondicionado, e a lei do uso empírico do entendimento
lhe obriga a perguntar por uma condição temporal ainda mais elevada, e o mundo é
obviamente pequeno demais para essa lei.
Dá-se exatamente o mesmo com as duas respostas à questão sobre a
grandeza do mundo no espaço. Pois se for infinito e ilimitado, então é grande
demais para todo conceito empírico possível. Se for finito e limitado, então se pode
perguntar justamente: o que determina essa fronteira? O espaço vazio não é um
correlato de coisas que subsistem por si mesmas, e não pode ser uma condição que
constitui uma parte de uma experiencia possível. (pois alguém pode ter uma
experiencia do que é absolutamente vazio?) Mas para a totalidade absoluta da
síntese empírica é sempre exigida que o incondicionado seja um conceito empírico.
Assim um mundo limitado é pequeno demais para o seu conceito.
213
A razão busca pelas suas idéias entre as aparências, projetando para elas
uma totalidade absoluta como se o incondicionado fosse um conceito empírico, ao
passo que a razão não deve “apelar” para as aparências para conhecer suas idéias e
ao fazê-lo se enreda inevitavelmente em antinomias. O lado da tese, do
dogmatismo da razão pura, ao asseverar que o mundo tem um começo e é finito no
espaço, torna o mundo pequeno demais para os nossos conceitos, i.e., para os
conceitos do entendimento, pois a experiência não está de acordo com essas
limitações, mas demonstra um progresso contínuo; os acontecimentos nos levam a
refletir sempre a um tempo precedente, bem como não há experiência possível de
fronteiras no mundo. Já o lado da antítese, do empirismo puro, hipostasia o
próprio progresso contínuo da síntese empírica averiguado na experiência, de
modo que torna o mundo grande demais para nossos conceitos, pois na
experiência somos levados a sempre regredir cada vez mais, mas não a pensar na
medida em que ambos os lados da antitética dizem respeito à realidade absoluta do mundo, o
futuro não pode ser considerado algo de total indiferença a eles. Pelo contrário, ambos, ao seu
modo, garantem o tempo futuro, asseverando que o mundo é ilimitado no tempo e no espaço, ou
que há um ser necessário.
213
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 508-09:
A 486-87 / B 514-15.
“eternidade inteiramente decorrida”, a qual, de fato, não se é capaz de conceber,
nem é, como não é a total infinitude, o objeto de uma experiência possível.
As Antinomias consistem em quatro conflitos cosmológicos. Eles se
dividem em dois pares, as matemáticas e as dinâmicas. A segunda antinomia é a
seguinte:
Tese
Toda substância composta no mundo consiste de partes simples, e nada
existe em nenhum lugar exceto o simples e o que é composto pelo simples.
Antítese
Nenhuma coisa composta no mundo consiste de partes simples, e em
nenhum lugar nele existe nada simples.
214
Nas duas primeiras antinomias, tanto tese quanto antítese são falsas, pois se
baseiam, sobretudo, na realidade absoluta de espaço e tempo. Assim, o conflito
antitético está num plano de eqüipolência num mesmo plano impossível de
batalha. O terceiro e quarto “Conflito das Idéias Transcendentais”, que compõem
as antinomias dinâmicas, são estes:
Tese
A causalidade de acordo com as leis da natureza não é a única da qual as
aparências do mundo podem ser derivadas. È também necessário supor outra
causalidade através da liberdade de modo a explicá-las.
Antítese
Não há nenhuma liberdade, mas tudo no mundo acontece tão-somente de
acordo com as leis da natureza.
Tese
Ao mundo pertence algo que, ou como uma parte sua, ou como sua causa, é
um ser absolutamente necessário.
Antítese
Não há nenhum ser absolutamente necessário que existe em lugar nenhum,
nem no mundo, nem fora dele como sua causa.
215
Nas duas últimas antinomias, tanto a tese quanto a antítese podem ser
verdadeiras. Enquanto as teses dizem respeito às coisas em si, as antíteses se
214
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 476-77:
A 434-35 / B 462 -63.
215
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 484-91:
A 444-53 / B 472 -81.
referem aos fenômenos. Desse modo, o conflito consiste na eqüipolência de dois
aspectos diferentes que são irredutíveis na determinação de uma mesma natureza.
Como as teses em conflito nas antinomias dinâmicas de fato podem ser
verdadeiras, e o motivo pelo qual nas matemáticas ambas são falsas, é algo que só
pode ser compreendido através do Idealismo Transcendental, com a distinção
entre fenômeno e coisa em si. Para JASPERS,
As provas dogmáticas que culminam em contradições não são imposturas,
mas perfeitamente corretas se presumir-se que fenômenos sejam coisas em si. Ou
em outros termos: o absoluto não pode ser concebido sem contradições. Mas se
coisas são fenômenos, em nenhum sentido incondicionais, e se derivam seu caráter
da nossa maneira de representá-las, não há mais contradição.
216
As antinomias denunciam a incapacidade da razão de conhecer a coisa em
si, pois contradiz a si mesma ao “conceber o absoluto”. Kant entende o resultado
das antinomias como uma justificativa para o dualismo do idealismo
transcendental, sem o qual todas as antinomias, de um modo geral, permanecem
num mesmo plano de eqüipolência e sem solução. A razão exige conhecer a
totalidade absoluta para a síntese empírica, e, ao pensar o incondicionado como
um conceito empírico, torna a o mundo ou grande demais ou pequeno demais para
todos os conceitos do entendimento: esses são os mecanismos que explicam os
raciocínios dialéticos das antinomias. Entretanto, o que está em seu fundamento,
pode-se afirmar, é a confusão entre fenômeno e coisa em si, pois é unicamente
essa distinção que é capaz de resolvê-las teoricamente. Não há nenhum meio de
contornar a antinomia da razão pura, de resolver o conflito ente suas leis e as do
entendimento, de modo a pensar o incondicionado ou conhecer o absoluto sem
contradição - somente distinguir entre fenômeno e coisa em si é o que permite
manter a razão em suas fronteiras e orientá-la para a sua verdadeira vocação.
KANT escreve: “Toda a antinomia da razão pura assenta sobre este argumento
dialético: se o condicionado é dado, então a série inteira de todas as suas
condições é também dada (...)”.
A “decisão crítica” das antinomias, primeiramente, consiste em esclarecer
que se o condicionado é dado, o regresso na série de todas as suas condições é
dado para nós como um problema, mas não dado como uma coisa em si. HANS
CORNELIUS escreve:
216
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 48.
Quando um elemento do mundo que experienciamos mostra-se determinado
por uma série de condições que somos incapazes de seguir até seu fim, nosso
pensamento enreda-se em uma contradição insolúvel assim que essa série de
condições passa a ser uma que existe em e por si mesma
.
217
A solução crítica das antinomias, no primeiro conflito, por exemplo,
consiste então em esclarecer que o mundo não pode ser considerado como uma
coisa em si, mas somente como representação. Deve-se frisar que isso não
significa dizer que o mundo, de forma inteiramente indeterminada para nós, não
possa ter uma existência independente da mente, de fato o Idealismo
Transcendental pressupõe essa existência, mas sustenta que nos é impossível
conhece-la, pois só podemos conhecer fenômenos, o que nos é dado por uma
experiência possível.
Como todos os raciocínios dialéticos da razão pura, as antinomias são
geradas não somente a partir da confusão de fenômeno e coisa em si, pela qual se
confunde os próprios objetos da experiencia, mas ainda, em estreita conexão a ela,
as antinomias têm início uma vez que as idéias da razão são tomadas como coisas,
como se tivessem uma realidade objetiva. De acordo com KANT,
As tentativas transcendentais da razão pura (...) são todas conduzidas dentro
do meio real da ilusão dialética, isto é, o subjetivo que se oferece, ou até mesmo
força a si mesmo à razão como objetivo nas suas premissas.
218
Desse modo, confundir fenômenos com coisa em si, e tomar as idéias da
razão, que têm um significado subjetivo, objetivamente, é o que está na base e
engendra os raciocínios dialéticos das antinomias. A razão, sem nenhuma,
autocrítica, considera suas idéias como coisas em si, e procede a especular sobre o
mundo como uma coisa em si. Nesse sentido, pode-se questionar, por que Kant
estabelece para a razão um princípio haurido da filosofia dogmática de Wolff,
para então negar-lhe objetividade?
Pode-se identificar uma base ainda anterior nos fundamentos da antinomia
da razão pura, que respalda todos os seus enganos; a especulação dogmática, sem
crítica das suas premissas, dos seus princípios. É patente o caráter essencialmente
antidogmático das antinomias, pois é a razão no seio do dogmatismo que cai em
217
Apud ADORNO, T. W. Problems of Moral Philosophy. Stanford: Stanford University Press,
2001, p. 29.
218
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 670: A
792 / B 820.
antinomias. Deve-se salientar, no entanto, que o antidogmatismo das antinomias é
despersonificado, é um antidogmatismo voltado para a própria razão pura. Como
o dogmatismo é a tendência mais forte do conhecimento, a qual se perpetua a não
ser por uma intervenção crítica, Kant considera inevitável à razão proceder
dogmaticamente no tocante às suas idéias, de modo que deve assim cair
necessária e inevitavelmente em antinomias.
De fato, Kant nas antinomias está em luta contra o dogmatismo, como a
tendência mais forte da razão, na qual de início está inserida, e que a leva a
inevitavelmente contradizer-se. Assim, as antinomias não “dão suporte ao
ceticismo, mas sim ao método cético”
219
, método “pelo qual Kant deixa uma
grande parte da metafísica tradicional destruir a si mesma (...).”
220
E, pode-se
acrescentar, é um recurso sempre disponível, “essencialmente próprio” da
filosofia transcendental, pelo qual Kant deixa o dogmatismo metafísico destruir a
si mesmo e evidenciar suas falácias. Desse modo, o método pirrônico nas
antinomias está relacionado à antitética dogmática e combate o dogmatismo do
mesmo modo que o pirronismo é inseparável do dogmático como o seu remédio.
Portanto, as idéias da razão são conceitos puros que a razão representa para
si mesma, e que não têm realidade senão subjetiva – mas não será preciso
reconhecer nelas uma positividade, um propósito legítimo? As idéias
transcendentais são representações de si para si da razão, nas quais as categorias
do entendimento são libertadas da sua referência necessária a uma experiência
possível e encaminhadas ao incondicionado. A razão não se satisfaz nem com os
limites do entendimento da experiência nem com os limites do pensamento nesse
domínio e, desse modo, faz um movimento que o entendimento jamais poderia
fazer por si próprio, o qual consiste em uma capacidade de “transcendência” que
lhe é específica. Entretanto, essa capacidade, que caracteriza sua força e beleza, é
igualmente responsável pela sua ruína.
A razão não se satisfaz em representar suas idéias, mas deseja conhecê-
las, de fato conhecê-las de forma objetiva, como coisas. Desse modo, de início
ignora a natureza real das suas idéias, o seu caráter subjetivo, e as pensa destarte
como objetos. O movimento próprio da razão é mal compreendido, pode-se
219
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 519: A
507 / B 535.
220
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 45.
afirmar, devido à sua conexão com a indelével tendência dogmática do homem no
tocante ao conhecimento. Tão-logo as dificuldades que a própria experiência
impõe ao pensamento são superadas pela razão pura, essa se limita a si mesma, e
impõe dificuldades ao pensamento que o limitam ainda mais severamente, pois
não é mais só a experiência que se impõe como limite, mas a própria razão que se
contradiz e torna-se obstáculo para pensar.
A razão pura tem a sua importância por elevar-se das condições da
experiência, no entanto, essas condições estão na base das suas idéias e são o
fundamento a partir do qual são geradas. Assim, o incondicionado tem sentido se
pensado em conexão ao condicionado dado; a totalidade absoluta, em relação ao
conjunto dos fenômenos que nunca se apresenta absolutamente na experiência.
Entretanto, a razão pura atrelada ao dogmatismo, imersa na ignorância de si
mesma, deseja conhecer tão-somente suas próprias idéias, como coisas em si, e
assim perde de vista a realidade do mundo como é dado pela experiência sensível,
nem busca relacionar suas idéias com nenhuma experiência possível.
Desse modo, ao investigar a metafísica dogmática e suas contradições, o
pensamento de Kant lhe remete aos limites do entendimento humano; e, à medida
que os princípios e as teorias metafísicas se afastam da experiência, Kant vê-se
impelido cada vez mais a pensar nas condições específicas da experiência e nos
limites que impõe ao conhecimento. Pode-se afirmar que Kant depara-se com uma
equação: quanto mais abstrato é um pensamento, e mais elevado da experiência,
tanto mais as condições reais do conhecimento humano estão nas suas motivações
reais.
Pelo contrário, a verdadeira vocação da razão é pensar suas idéias em
conexão com o entendimento, do qual nascem ao dele se emancipar. Justamente
pelo fato da razão pura elevar-se das condições específicas da experiência, é capaz
de auxiliar o entendimento a compreendê-las, a buscar novas formas de pensá-las.
Assim, as idéias da razão pura têm em sua motivação as condições reais do
conhecimento humano, são abstratas, não se referem a uma experiência possível,
mas não devem se manter na abstração (nem serem tomadas “objetivamente”,
como coisas em si), mas razão e entendimento devem trabalhar conjuntamente
para alargarem mutuamente o conhecimento humano. KANT escreve:
O entendimento constitui um objeto para a razão, assim como a
sensibilidade para o entendimento. Tornar sistemática a unidade de todas as
possíveis ações empíricas do entendimento é uma ocupação da razão, assim como o
entendimento conecta o múltiplo das aparências através de conceitos e os traz sob
leis empíricas.
221
“A razão nunca se relaciona diretamente a um objeto, mas tão-somente ao
entendimento (...)”
222
- o entendimento humano é propriamente o objeto da razão.
A “totalidade” não pode ser conhecida apenas pela razão pura, no entanto, Kant
atribui às idéias transcendentais um uso regulativo, o qual deve guiar o
entendimento para a compreensão da totalidade no domínio da experiência. A
busca da totalidade, que é própria à razão, não deve ultrapassar os limites do
entendimento humano, e, dessa forma, as idéias da razão têm um uso apenas
imanente. A totalidade está disposta apenas à síntese empírica, e buscá-la não pelo
entendimento, no domínio da natureza, mas de modo hiperfísico, caracteriza uma
ignorância do modo de conhecer bem da natureza subjetiva das próprias idéias.
O princípio da razão é dado como um problema, não é um axioma, mas
serve de regra para o regresso na síntese empírica – não é um princípio
constitutivo, retirado da constituição do objeto, mas um princípio regulativo da
razão.
223
A razão pura fustiga o entendimento à compreensão do todo, o qual não
é dado absolutamente na experiência, mas ao se buscá-lo no domínio próprio do
entendimento, se mantém essa busca nos limites de uma experiência possível.
Desse modo, as idéias da razão servem para alargar o juízo, não para retirá-lo do
seu campo de atuação específico. Pode-se afirmar que o uso regulativo das idéias
da razão funciona como um termo médio na busca pela totalidade, entre a busca
da razão pura pela totalidade incondicionada e os limites do entendimento no
conjunto dos fenômenos.
O uso imanente das idéias transcendentais tem como meta conferir aos
conhecimentos do entendimento unidade sistemática, i.e. trazer todos seus
conhecimentos sob um único princípio, um foco imaginário, pelo qual o
entendimento realmente não procede, pois ultrapassa os limites da experiência
221
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 602: A
665/ B 693.
222
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 590: A
643/ B 671.
223
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 520-21:
A 509 / B 537.
possível, sendo apenas uma idéia.
224
Dessa forma, a razão contribui com suas
idéias o que o entendimento jamais poderia por si mesmo fazer, pensar em uma
unidade sistemática que não está dada na experiência, mas é tão-somente uma
idéia e unicamente lhe serve de regra para buscar a compreensão da totalidade.
Desse modo, razão e entendimento, em esforço conjunto, têm em vista a
multiplicidade de fenômenos e sua unidade, e assim caminham na sua
investigação da natureza.
4.6
Limites e Fronteiras
224
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 591: A
644/ B 672.
A investigação dos limites do conhecimento é um tema importante da
filosofia crítica, que é ao mesmo tempo evidente textualmente e no tema da
Crítica da Razão Pura, embora não receba nela um tratamento direto. Isso faz
com que essa questão ou possa não ser contemplada ou ser objeto de muitas
imprecisões e críticas infundadas.
Kant apóia a noção de limites do conhecimento sobre limites intrínsecos ao
próprio modo de conhecer. Assim, a sensibilidade, o entendimento e a razão
teriam limites específicos, não sem conexão com a relação que essas faculdades
mantêm entre si. Segundo JASPERS,
(…) Por demarcar limites (a disciplina da razão pura), a [filosofia crítica
de Kant] libertou o pensamento de todos os tipos de fantasmas de modo a abrir
espaço ao positivo. Ela abriu caminho não somente ao progresso certo da ciência,
mas também para a fé, uma fé assentada na razão. Pois o dogmatismo sempre leva
finalmente ao ceticismo e à descrença, enquanto a crítica leva à ciência e à fé.
225
Para Sexto Empírico, as aporias do dogmatismo levariam a razão
naturalmente ao ceticismo. Para Kant, tanto o ceticismo quanto o dogmatismo
levariam naturalmente à crítica. Os limites do conhecimento levariam o
pensamento do dogmatismo ao ceticismo, e deste à crítica. Por a razão precisar
referir-se ao entendimento para conhecer as suas idéias, pode-se pensar que ambas
as faculdades compartilham dos mesmos limites: devem manter-se no domínio da
experiência possível. Todavia, têm objetivos distintos, e os limites do
entendimento e os da razão dizem respeito a impedimentos diferentes, próprios a
cada faculdade.
A sensibilidade, a faculdade receptiva, é constituída pelas formas puras de
espaço e tempo, que não são conceitos, mas intuições. Espaço e tempo
determinam a possibilidade do que pode nos ser dado à intuição sensível,
constituem a forma de todos os fenômenos, Desse modo, fora de espaço e tempo,
não é possível conhecer objetos, nem sequer imaginar a sua aparência. A
sensibilidade humana oferece ao entendimento a matéria para o que pode
conhecer e, por isso mesmo, estabelece limites ao conhecimento. Espaço e tempo,
KANT escreve,
Tomados conjuntamente são, nomeadamente, as formas puras de toda
intuição sensível, e dessa forma tornam possível proposições sintéticas a priori.
Mas essas fontes a priori do conhecimento determinam as suas próprias fronteiras
por esse fato mesmo (que são meramente condições da sensibilidade),
225
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 124.
nomeadamente que se aplicam aos objetos somente na medida em que são
considerados como aparências, mas não apresentam coisas em si.
226
A experiência possível marca a extensão da validade e da legitimidade do
uso de espaço e tempo no raciocínio. Como são as formas dos fenômenos, a
experiência, o domínio dos fenômenos, é a extensão para além da qual espaço e
tempo não tem validade objetiva. Ao constituir um domínio, a sensibilidade
humana, com as suas formas próprias, determina as suas fronteiras.
O entendimento não tem outro meio para conhecer a experiência senão
pelas categorias, e através da finitude do que é dado pela sensibilidade. Os limites
do entendimento encontram-se na própria experiência, em sua limitação intrínseca
para conhecê-la, seja de forma particular, seja universal. É a estrutura do
entendimento, a qual constitui a sua extensão, que ao mesmo tempo estabelece
limites para ele mesmo. Dessa forma, o conceito problemático de númeno é um
conceito-limite para o entendimento, que o expande negativamente, sem possuir
nenhuma determinação para colocar no lugar desse conceito, mas, através dele,
delimitar as suas fronteiras.
227
Kant descreve o entendimento como uma ilha, a
ilha da verdade, cercada por fronteiras inalteráveis pela própria natureza
228
. A
citação acima de Kant sobre espaço e tempo vale também para as categorias do
entendimento. Elas são as formas pelas quais conhecemos objetos, e por isso
mesmo determinam as suas próprias fronteiras, sendo a experiência o único
campo da sua validade. E, ainda, determinam os seus limites na própria
experiência, sendo o único modo pelo qual podemos conhecer objetos.
Já para a razão é a experiência como um todo que se caracteriza como uma
fronteira, pois deseja ultrapassá-la. A razão não pode conhecer as suas idéias
como objetos, pois as leis do entendimento (constitutivas) valem somente para
objetos da experiência, que estão relacionados a uma intuição sensível. Kant
descreve a razão como uma esfera, cujo conteúdo e fronteiras podem ser
determinados com certeza, em vez de um plano, cujos limites seriam apenas
226
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 183, A
39 / B 56.
227
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 351, A
256 / B 312.
228
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 339, A
235 / B 294.
gerais.
229
A razão tem fronteiras determinadas. Não pode ultrapassar o domínio
da experiência, nem pode saber o que reside fora das suas fronteiras.
Do dogmatismo que não encontra barreiras para a razão, e do ceticismo que
pretende simplesmente a censurar, é preciso surgir ainda o criticismo, para
descobrir em sua natureza as suas fronteiras que lhe são inerentes. De acordo com
KANT:
Pode-se designar um procedimento desta espécie, que consiste em
submeter ao exame os fatos da razão, e segundo o caso, à sua repreensão, por
censura da razão. É incontestável que esta censura conduz inevitavelmente à dúvida
com respeito a todo o uso transcendental dos princípios. Simplesmente, isto é
apenas o segundo passo, o qual ainda está bem longe de terminar a obra. O primeiro
passo nas coisas da razão pura, que indica a infância desta, é dogmático. O segundo
passo, de que acabamos de falar, é cético e testemunha a prudência do juízo avisado
pela experiência. Mas é ainda necessário um terceiro passo, que pertence
unicamente ao juízo maduro e viril, o qual tem por fundamento máximas sólidas e
de provada universalidade; consiste em submeter a exame não os fatos da razão,
mas a própria razão no que respeita a todo o poder e capacidade de conhecimento
puro a priori; já não se trata aqui da censura, mas da crítica da razão, que não se
contenta em presumir que a nossa razão tem simples limites, mas demonstra, por
princípios, que tem fronteiras determinadas; não se conjectura apenas a ignorância
de um ou outro ponto, mas sim a ignorância relativa a todas as questões possíveis de
uma certa espécie. Assim, o ceticismo é um lugar de descanso para a razão humana,
onde esta pode refletir sobre a peregrinação dogmática e esboçar o esquema da
região onde se encontra, para poder daí em diante escolher o caminho com maior
segurança; mas não um lugar habitável para morada permanente; pois esse só pode
ser encontrado numa certeza completa, seja de um conhecimento dos objetos
mesmos ou das fronteiras nas quais está encerrado o nosso conhecimento de
objetos.
230
O cético meramente limita o entendimento sem determinar fronteiras para
ele, e provoca uma desconfiança no conhecimento, mas nenhum conhecimento
preciso da ignorância que nos é inevitável. O criticismo determina as fronteiras da
razão “por princípios”, ou seja, a partir de um conhecimento positivo, sobre o
modo de conhecer, reconhece o seu alcance legítimo. Nesse sentido, a distinção
entre limite e fronteira é fundamental.
Para KUEHN, a noção de fronteiras “chega ao coração da filosofia
kantiana: a distinção de fenômenos e coisa em si.”
231
Fronteiras dizem respeito a
uma barreira pela qual se fecha um território na totalidade da sua extensão. Um
229
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 654-5, A
762 / B 790.
230
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 654, A
760-2 / B 788-90. As traduções portuguesas da Crítica da Razão Pura (Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001), e dos Prolegômenos a Toda Metafísica Futura (Edições 70, 1988), invertem
os termos fronteiras [Grenzen] e limites [Schranken], tornando difícil compreendê-los e à sua
distinção, assim levando a enganos.
231
KUEHN, M. Kant. A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 261.
limite, por outro lado, é uma simples negação. Se o conceito de fronteira denota a
demarcação completa de um território, por outro lado, um limite não determina a
extensão de um território. O conceito de limite caracteriza somente uma
capacidade e a sua negação. KANT escreve:
Fronteiras (em coisas extensas) supõem sempre um espaço que se encontra
fora de certo lugar determinado, e que contém esse lugar; limites não têm disso
necessidade, mas são simples negações que afetam uma quantidade enquanto ela
não tem totalidade absoluta. A nossa razão, entretanto, vê em torno de si, por assim
dizer, um espaço para o conhecimento das coisas em si, embora delas nunca possa
ter conceitos determinados e esteja limitada apenas aos fenômenos.
232
As fronteiras consistem em barreiras que o próprio modo de conhecer
impõe. O entendimento possui um domínio, a experiência, ao passo que a razão
não possui nenhum domínio teórico próprio ou exclusivo a ela
233
. Deve habitar o
domínio do entendimento, pois o domínio das coisas em si, do hiperfísico, não
existe, é um pseudo-domínio. Desse modo, a razão e a metafísica têm tanto limites
quanto fronteiras. Seus limites são negações específicas quanto ao uso
transcendente das categorias. Suas fronteiras, no entanto, que consistem em
permanecer no domínio da experiência, trazem consigo um aspecto positivo, o uso
regulativo das idéias da razão, que serve, em última instância, para orientar a nós
mesmos em nosso conhecimento.
Proceder sem crítica leva inevitavelmente à transgressão das fronteiras da
razão, pois dessa maneira se caminha no escuro, às apalpadelas, sem determinar
com confiança o terreno seguro para o conhecimento. KANT escreve:
Se represento a superfície da terra (de acordo com a aparência sensível)
como um prato, não posso saber até onde ela se estende. Mas a experiência isso me
ensina: que onde quer que eu vá, sempre vejo um espaço à minha volta no qual
posso prosseguir ainda mais; então, conheço os limites do meu conhecimento
efetivo da terra a qualquer momento, mas não as fronteiras de toda descrição
possível da terra. No entanto, se eu avancei ao ponto de saber que a terra é uma
esfera, e que a sua superfície é a superfície de uma esfera, então de uma pequena
parte da última, p.ex., da grandeza de um grau, posso conhecer o seu diâmetro, e,
por meio disso, a fronteira completa, i.é. a superfície da terra, determinadamente e
de acordo com princípios a priori, e embora seja ignorante em relação aos objetos
que essa superfície possa conter, não sou ignorante a respeito à grandeza e aos
limites do domínio que os contém.
234
232
KANT, I. Prolegomena to any future metaphysics. Em: KANT, I. Theoretical Philosophy after
1781. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 142, Ak 4:352.
233
Para Kant a razão possui um domínio que lhe é próprio, o domínio prático da liberdade. Cf.
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 18
(Introdução, xvii).
234
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 653, A
759 / B 787.
Limites são conhecidos empiricamente, já fronteiras – que, nessa passagem,
as fronteiras da terra seriam sua própria superfície - podem ser atestadas a priori,
segundo a estrutura própria de uma dada coisa, e, dessa forma, é possível uma
ciência das fronteiras do conhecimento, do entendimento puro, da razão pura, e da
metafísica, que determina tanto a extensão do conhecimento possível quanto a
nossa ignorância a priori, necessária e universal. As fronteiras da razão para Kant
podem ser conhecidas a priori precisamente por serem um conhecimento
imanente da sua ignorância, não ultrapassam o conhecimento de si mesma, mas é
uma investigação da razão pura sobre a razão pura, que analisa até que ponto o
modo de conhecer humano pode se estender.
Kant escreve: “O que não podemos saber está além de nosso horizonte; o
que não precisamos saber está fora de nosso horizonte”
235
. O que não podemos
saber é uma fronteira para nós, algo inteiramente desconhecido e impossível de
atingir, mas que, no entanto, pode ser constatado a partir do nosso próprio
“horizonte”. O que não precisamos saber é um limite para nós, que normalmente
não buscamos transgredir, mas está, de certa maneira, ao nosso alcance sem que o
saibamos. Uma fronteira é sempre necessária, um limite, contingente.
Pode-se perguntar: será que realmente há limites impostos pela própria
natureza humana? Na filosofia crítica de Kant, a estrutura do modo de conhecer,
marcada pela espontaneidade, constitui ao mesmo tempo a sua extensão e suas
fronteiras. Desse modo, há fronteiras intrínsecas ao conhecimento que se devem à
sua liberdade, à sua própria particularidade. No entanto, limites são meras
negações, não dizem respeito a um território, que, no tocante ao modo de
conhecer, é o único habitável ao homem. Pode-se pensar que limites, enquanto
são determinações contingentes, não podem ser aferidos a uma “essência”, a uma
“natureza” humana. Esta mesma deixaria de existir ou fazer sentido, se nela
houvesse uma capacidade e a sua negação necessária.
Desse modo, há uma diferença entre imputar limites contingentes ao
homem e a investigação das suas fronteiras necessárias. Nesse sentido, a noção de
uma “natureza humana” pode ser usada como disfarce para a repressão e para
235
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 551 [The
Jäsche Logic, Ak 42].
construções históricas de formas de opressão, de modo a conferir-lhes respaldo.
Nesse sentido FOUCAULT sugere:
A crítica é certamente a análise dos limites e a reflexão sobre eles. Mas, se a
questão kantiana era saber a que limites o conhecimento deve renunciar a transpor,
parece-me que, atualmente, a questão crítica deve ser revertida em uma questão
positiva: no que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual é a
parte do que é singular, contingente, e fruto das imposições arbitrárias. Trata-se, em
suma, de transformar a crítica exercida sob a forma de limitação necessária em uma
crítica prática sob a forma de ultrapassagem possível.
236
O conceito de limite abriga determinações contingentes e, muitas vezes,
arbitrárias. Já (para Kant) as fronteiras do conhecimento se devem às capacidades
e estrutura do modo de conhecer, nascem da criação da sua extensão e do sucesso
na constituição do seu domínio. Limites são formados no interior das fronteiras do
conhecimento, não se devem a elas - dentro da extensão possível do
conhecimento, há limites bem como capacidades. Pode-se pensar que o que
Foucault propõe é de fato discernir entre limites e fronteiras, averiguar, do que é
tido como a priori, universal e necessário, a parte que é “contingente e fruto de
imposições arbitrárias”. Essa tarefa, em busca de uma “ultrapassagem possível”,
não significa considerar toda e qualquer limitação como arbitrária, mas em dirimir
a confusão entre necessidade e contingência nos limites que representamos a nós
mesmos.
Para Kant, a matemática e a filosofia natural têm limites, mas não fronteiras.
O estudo científico pode sempre progredir; questões sobre a natureza que
conseguem ser formuladas são, em princípio, passíveis de resposta.
237
Nesse
sentido, transgredir um limite sem transformar a sua negação em capacidade em
nada abala a existência desse limite para outros homens, não ajuda a superar
nenhuma limitação da humanidade. Para fazer um limite desaparecer, é preciso
produzir conhecimento, através da criatividade e inventividade e, através dele,
alterar os limites em sua raiz, em sua existência contingente. Ao contrário,
ultrapassar uma fronteira não é algo que ainda não se fez nem que não se consiga
fazer, mas algo que se deve evitar que se faça. A metafísica, como tem limites
bem como fronteiras, deve, primeiramente, conhecer a si mesma, de modo tanto a
dirimir os seus limites contingentes e descobrir a sua verdadeira vocação, quanto,
236
FOUCAULT, M. “O Que São as Luzes?” Em: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, Vol.II. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 347.
237
KUEHN, M. Kant. A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 261.
uma vez determinadas as suas reais capacidades, ser capaz de identificar a
ultrapassagem arbitrária, ilegítima das suas fronteiras.
Desse modo, a noção de fronteiras do modo de conhecer está diretamente
relacionada ao conceito-limite de coisa em si. A extensão possível e unicamente
legítima do conhecimento é a experiência, a qual abarca tanto o empírico como o
transcendental. Como a coisa em si é uma noção transcendente, que está para além
da natureza ou de uma experiência possível, funciona como um símbolo para as
fronteiras do conhecimento humano. Só conhecemos fenômenos. A razão deve
disciplinar a si mesma a não ultrapassar o domínio dos fenômenos e, em conexão
com o entendimento, alargar o máximo possível o seu conhecimento.
Desse modo, pode-se pensar que se a filosofia de Kant, por um lado, tem
uma função negativa, de demarcar as fronteiras do conhecimento e podar os vôos
da razão ao hiperfísico, ao mesmo tempo, visa propiciar o progresso do
conhecimento humano, e tem assim uma função positiva. Ao reconhecer as
fronteiras do conhecimento, orienta a razão e o entendimento a trabalharem juntos
e, mutuamente, a ultrapassar seus limites. A humildade kantiana, de abdicar à
metafísica transcendente, tem em seu bojo uma esperança e uma confiança no
conhecimento humano. Trabalhando em harmonia, ciente das suas capacidades e
dificuldades, o conhecimento seria capaz de alargar-se, de buscar cada vez mais o
conhecimento de si do homem e o desvelamento da natureza.
Nesse sentido, o conhecimento seguro envolve necessariamente conhecer a
própria ignorância, e investigar os limites do conhecimento, inclusive do
conhecimento de si, que não é meramente especulação, mas, para Kant, ciência:
O conhecimento de sua ignorância pressupõe (...) a ciência e, ao mesmo
tempo, torna modesto, ao passo que o saber presumido torna a gente enfatuada.
Assim, a insciência de Sócrates era uma ignorância digna de todo louvo; na
verdade, um saber do não-saber, como ele próprio confessava.
238
A aproximação do ceticismo a uma douta ignorância, e a defesa da
necessidade de uma perpétua investigação e de uma aproximação ao infinito é o
que parece mais agradar a Kant:
A consciência da minha ignorância (se esta não é ao mesmo tempo
conhecida como sendo necessária), não deve encerrar as minhas investigações, mas
é, antes, a verdadeira causa que as suscita. Toda a ignorância ou diz respeito às
coisas ou à determinação e fronteiras do meu conhecimento. Agora, se a ignorância
238
KANT, I. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, p. 61, A 60, Ak 45.
é contingente, então, no primeiro caso, deve levar-me a investigar as coisas
(objetos) dogmaticamente, no segundo caso, a investigar as fronteiras do meu
conhecimento possível criticamente. Mas que a minha ignorância seja
absolutamente necessária, e, portanto, me absolva de toda investigação posterior,
não se pode determinar empiricamente, pela observação, mas apenas criticamente,
pela sondagem das fontes primárias do nosso conhecimento. Portanto, a
determinação das fronteiras da nossa razão só pode se dar de acordo com
fundamentos a priori, a sua limitação, entretanto, que é meramente um
conhecimento indeterminado de uma ignorância que nunca se irá soerguer
completamente, pode também ser conhecida a posteriori, através do que sempre
permanece para se conhecer mesmo com todo o nosso conhecimento. O
conhecimento da ignorância precedente, que é possível somente por meio de uma
crítica da própria razão, é ciência, o último não é nada senão percepção, sobre a
qual não se pode dizer até onde a inferência a partir dela pode se estender.
239
Kant nessa passagem mostra a relevância do ceticismo para a sua filosofia,
sobretudo como um modo, uma etapa necessária, para se chegar a ela. Ao mesmo
tempo, mostra a diferença fundamental entre a sua filosofia crítica e o ceticismo.
Enquanto a ignorância da razão deve ser investigada a priori (o que é uma
ciência), o ceticismo só é capaz de percebê-la a posteriori, mas não de determiná-
la segundo a natureza da própria razão. Além do mais, a ciência das fronteiras da
razão é uma ignorância científica, torna-se ela mesma conhecimento; não põe
termo às contradições da razão por si só, mas explica as suas causas e leva ao
caminho para dirimir seus conflitos. Como KANT escreve: “(...) a ignorância em
si mesma é a causa dos limites, mas não dos erros em nosso conhecimento.”
240
, e
a consciência da ignorância “não deve encerrar as minhas investigações, mas é,
antes, a verdadeira causa que as suscita”.
239
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 652-53:
A 758 / B 786.
240
KANT, I. “Que significa orientar-se no pensamento?” Em: KANT, I. Textos seletos. Petrópolis:
Editora Vozes, 2005, p. 49: A 310.
5
Criticismo
Entre o dogmatismo e o ceticismo a única maneira
intermediária e legítima de pensar é o criticismo.
241
A filosofia crítica é capaz tanto de apontar para a insuficiência e o
esgotamento de dogmatismo e ceticismo tomados exclusivamente - que seria
devido à ausência de crítica nos fundamentos do dogmatismo, e nas conclusões do
ceticismo -, quanto de indicar a necessidade específica para se fazer uso de
elementos parciais de cada um deles. Ou seja, é capaz de resgatá-los, apropriando-
os para si, de acordo com o critério do autoconhecimento da razão. E, assim, Kant
não os considera somente etapas preliminares; não faz deles apenas um uso
instrumental, mas os mantêm vivos, embora transformados, no interior da sua
filosofia.
Embora o criticismo seja a via média entre dogmatismo e ceticismo – pois
nem ajuíza sobre as coisas em sua existência real, nem somente suspende o juízo,
mas institui o domínio da experiência como o campo legítimo do conhecimento -,
o seu método engloba o procedimento dogmático e o método cético. Desse modo,
dogmatismo e ceticismo, mais comumente considerados como doutrinas, são para
Kant legítimos tão-somente como procedimentos, que têm sua validade e limites
determinados a priori pela própria razão. Procedimentos podem ser resgatados a
despeito da doutrina em que se encontram. KUEHN escreve: “Kant defendia o
ecletismo, dizendo ‘tomaremos o que é bom de onde quer que possa vir’”
242
.
Segundo KANT:
As contradições e o conflito de sistemas são as únicas coisas que nos
tempos modernos preveniu a razão de cair completamente em desuso no assunto da
metafísica. Apesar de serem todos eles altamente dogmáticos, ainda assim
representam perfeitamente a posição dos céticos para quem olha ao todo desse jogo.
Por essa razão podemos agradecer a um Crusius, a um Wolff pelo fato de que pelo
caminho que trilharam pelo menos preveniram o entendimento de permitir que os
seus direitos se tornassem antiquados em uma ociosidade estúpida, e ainda
preservaram a semente para um conhecimento mais seguro. Filósofo analítico e
241
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 275.
Reflexão 5645, de 1785-88: Ak 18:293.
242
KUEHN, M. Kant: A Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 130.
arquitetônico. De tal maneira o curso da natureza leva finalmente à sua bela,
embora, sobretudo, misteriosa ordem, através de obstáculos para a perfeição. Até
um système de la Nature é vantajoso para a filosofia.
243
Os obstáculos para a filosofia são, em última instância, vantajosos para o
seu desenvolvimento, quando se detém uma posição capaz de interpretá-los. Do
mesmo modo que a harmonia da natureza é sobretudo misteriosa, os obstáculos da
filosofia permanecem nebulosos até a razão compreender a si mesma, mas
caminham para essa autocompreensão. Dessa forma, uma doutrina pode lançar
mão de um procedimento importante, e até mesmo necessário para o
conhecimento e para a razão, apesar das suas conclusões serem errôneas e em
necessidade de crítica e esclarecimento. KANT escreve:
De modo a encontrar um caminho para a necessidade da nossa época de se
orientar com sucesso entre os dois penhascos do dogmatismo e do ceticismo, e ao
mesmo tempo determinar ambos esses conceitos adequadamente para essa
necessidade, devemos primeiramente estabelecer o seu caráter em respeito à
maneira de pensar que torna essa precaução necessária.
O conhecimento amplo e a posse de um grande número de ciências ainda não
abrangem o caráter dessa maneira de pensar, pois isso diz respeito à qualidade e à
constituição específica do poder do juízo e aos princípios que determinam qual o
tipo de uso que é reservado para ele. Se a nossa época avançou muito no
conhecimento e se esse deve ser chamado de grande somente pode ser julgado
comparativamente, a nossa posteridade pode muito bem considerá-lo ainda
pequeno. Mas uma faculdade pode muito bem já ter amadurecido para que o mundo
futuro não precise acrescentar nada a ela (porque não é a quantidade, mas sim a
qualidade no uso da nossa faculdade de conhecer que está em questão), e esta é a
faculdade do poder do juízo (iudicium discretiuum – {juízo de distinções}).
A nossa época é a época da crítica, i.e., de um juízo afiado sobre o
fundamento de todas as asserções às quais temos sido trazidos pelas experiências de
muitos anos, talvez inclusive pela investigação cuidadosa da natureza através da
observação e do experimento que foi posta em movimento pelo famoso Bacon de
Verulâmio, não somente nas asserções das ciências naturais, mas, também, por
analogia, em outras áreas, das quais os antigos nada sabiam e onde, portanto, eram
acostumados a opiniões vacilantes. Será difícil para uma época futura se sair melhor
nisso do que nós, a não ser que por negligência não fizermos uso desses princípios
como deveríamos. Certamente nenhuma época passada fez melhor do que nós nesse
respeito, e isto pode ser considerado o caráter científico da nossa época.
244
A época de Kant é propriamente a “época da crítica”, a qual exercita o
poder do juízo e não aceita as asserções recebidas “pelas experiências de muitos
anos” passivamente. Nesse sentido, a filosofia de Kant é representativa da sua
243
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 199-200.
Reflexão 4936, de 1776-78: Ak 18:33.
244
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 272.
Reflexão 5645, de 1785-88, 18:287-88. Paul Guyer afirma em nota que esta reflexão talvez
pudesse ser um esboço para o prefácio da segunda edição da CRP por conter uma referência a
Bacon e ao progresso científico.
época, representa a faculdade de julgar já amadurecida, e, portanto, é capaz e,
devido à sua própria autonomia, tem a necessidade de se orientar, de se conduzir
entre os dois penhascos do ceticismo e do dogmatismo.
Nesse sentido, a filosofia crítica de Kant é capaz de compreender os
momentos de verdade tanto do dogmatismo quanto do ceticismo, o que Caygill
viria a chamar de princípio interpretativo. A “chave crítica”
245
permite a Kant
reconhecer o quanto o pensamento, em todas as épocas, se aproximou da natureza
da razão, mesmo se isso não houvesse sido o seu objetivo primeiro. Entre o
dogmatismo e o ceticismo e diversas perspectivas, é a natureza da própria razão
que permite a Kant julgar as conquistas filosóficas para além do seu contexto
histórico e doutrinário. Para Kant, a autocrítica da razão seria a chave para
reconhecer o que os filósofos pretendiam dizer para além do que efetivamente
disseram
246
. Isto vale tanto para o pensamento dos autores consagrados quanto
para a história da filosofia como um todo.
Segundo Gadamer, a noção de interpretação exprime simbolicamente a
atitude e a consciência modernas, que não aceita a tradição sem antes interpretá-
la, expressando uma posição reflexiva bem como uma consciência histórica diante
do passado
247
. BACON afirma que a “interpretação é o verdadeiro e natural ato
da mente, quando todos os obstáculos são removidos”, quais sejam, as “opiniões e
noções recebidas” e a “generalização”
248
Bacon se refere à interpretação da
natureza, embora se possa considerar que livrar-se dos obstáculos mencionados é
fundamental para interpretar a filosofia.
O princípio interpretativo de Kant só é possível graças à distinção entre
dogmatismo e procedimento dogmático, e entre ceticismo e método cético, pela
qual Kant pode pôr em perspectiva, p.ex., o ceticismo de Hume e o dogmatismo
de Wolff. Por exemplo, Kant não descarta a metafísica objetiva como algo sem
propósito ou como uma banalidade. Pelo contrário, ao atribuí-la à própria razão, a
crítica se direciona para ela mesma. Em Kant, um limite averiguado para a
metafísica dogmática significa um limite da própria razão. Por mais que se
suspenda da antitética dogmática e esteja convencido que teses e antíteses se
245
CAYGILL, H. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 172.
246
CAYGILL, H. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p.172.
247
GAMAMER, H.-G. O Problema da Consciência Histórica. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1998, pp. 18-19.
248
BACON, F. Novum Organum. Em: Bacon. The Great Books Vol. 30. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 136. Livro I, aforismo 128.
baseiam em uma ilusão, Kant não imputa a antitética ao dogmatismo, mas busca a
sua fonte em alguma ilusão na natureza da razão.
Kant não generaliza o pensamento de um autor segundo uma categoria, um
caráter consagrado historicamente da sua doutrina, mas raciocina junto com esse
autor, interpretando sua filosofia segundo uma nova luz. Como Kant percorre
filosofias céticas e dogmáticas, e as reúne parcialmente segundo uma nova
perspectiva, seu ecletismo é construtivo, e não se confunde com o sincretismo. O
ecletismo de Kant é um modo de interpretar uma unidade, que para Kant é a
própria razão, na multiplicidade das suas formas, de seus usos. MAIMON (1754-
1800), ao se livrar da idéia de um único modo de chegar à verdade, escreve:
Eu havia aderido a todos os sistemas filosóficos em sucessão, peripatético,
spinoziano, leibniziano, kantiano e, finalmente, cético; e era devoto ao sistema, que
para mim na época era unicamente o verdadeiro. Por fim observei que todos esses
sistemas contêm algo verdadeiro, e de certa forma são igualmente úteis. (...) a
diferença de sistemas filosóficos depende das idéias que jazem em seu fundamento
em relação aos objetos da natureza (...).
249
Também Kant reconhece a verdade e a abertura que prestam todos os
sistemas filosóficos. O filósofo de Königsberg não rechaça nenhum pensador por
ser cético ou dogmático. Todavia, o método crítico é o único que pode realizar o
propósito da filosofia, ao elucidar e aliviar a razão em suas motivações não
realizáveis. Promover a felicidade e a cultura é mais importante que responder
teoricamente às questões transcendentes da razão, se há um Deus, uma vida
futura. Essas questões, trazidas à imanência, dizem respeito ao indivíduo na
condução moral da sua vida, na sua busca pela liberdade e pela verdade. Trazê-las
à imanência significa libertar-se do erro infindável, do necessário auto-engano que
acompanha as investigações para além das capacidades humanas, e subvertem a
correção da lógica, o raciocínio e o bom senso.
Todavia, a filosofia crítica não é nem um acomodamento nem um
moderatismo entre dogmatismo e ceticismo
250
, mas sim uma terceira via ou via
média, que estaria para além deles, embora adote os métodos de ambos, os
organize e legitime à luz dos seus próprios princípios. A crítica só é capaz de
superar tanto um quanto outro ao assimilar os métodos de ambos, que estão em
249
MAIMON, S. An Autobiography. Boston: Kessinger Publishing, s/ data, p. 288.
250
KANT, I. Proclamation of the Imminent Conclusion of a Treaty of Perpetual Peace in
Philosophy Em: Theoretical Philosophy After 1781. Cambridge: Cambridge University Press,
2002, p. 455. Ak 8:415.
constante atividade em seu sistema. A crítica supera o dogmatismo e o ceticismo
no sentido de tomar o quê deles é importante e ir além, a partir do que lhes é
fundamental, mas não no sentido de rechaçá-los, abandoná-los por completo.
Dessa forma, há uma ruptura no método crítico em relação ao dogmatismo e o
ceticismo, mas não uma negação absoluta. Para KANT:
A crítica da razão indica a verdadeira via média entre o dogmatismo, que
Hume combatia, e o ceticismo que ele, pelo contrário, queria introduzir, uma via
média que, muito diferente das outras vias médias que se aconselham a por si
mesmo as determinar de certo modo mecanicamente (um pouco de uma, um pouco
de outra) sem que ninguém se esclareça sobre uma melhor, pode ser determinada
exatamente segundo princípios.
251
A filosofia crítica de Kant visa, por um lado, refutar o ceticismo e o
dogmatismo universais - “Ambos os métodos são errôneos, se generalizados”
252
-
e, por outro lado, resgatar os seus métodos de acordo com a sua validade e
necessidade para compreender a própria razão humana. Segundo KANT,
A filosofia crítica é aquela que busca conquistar, não por tentativas para
construir ou derrubar sistemas, ou mesmo (como o moderatismo) colocar um telhado,
mas nenhuma casa, sobre estacas, para acomodação temporária, mas, ao contrário,
pela investigação dos poderes da razão humana (para quaisquer propósitos).
253
Desse modo, a filosofia crítica reúne método cético e procedimento
dogmático, que como partes suas recebem um novo direcionamento e
transformam-se em elementos de um pensamento mais abrangente, o qual pode
surgir devido ao método crítico transitar entre diversas perspectivas e posições, e
ser, assim, capaz de abarcar a razão em sua totalidade. Para Kant:
Proceder dogmaticamente com todos os conhecimentos, i.e., esperar por uma
certeza decidida sem tomar em consideração os fundamentos do seu oposto, produz
uma ilusão insuficiente. Pois se acredito que mais nada pode ser perseguido contra a
verdade, então deixo de investigar prontamente. Mas aí o assunto tem pouco
fundamento. Pode-se muito bem investigar algo dogmaticamente, mas não proceder
dogmaticamente. Com o método dogmático deve-se também proceder ceticamente,
i.e., quando testo se posso dizer algo do assunto para o lado do oponente. O
ceticismo, assim, acontece quando algo é mantido dogmaticamente em ambos os
lados. Pode-se fazer isso por si mesmo, mas então qual dos dois lados pode decidir
melhor? Aí entra em cena o método crítico, i.e., investigo as fontes dos métodos
cético e dogmático, e então passo a ver em quais fundamentos assenta uma
251
KANT, I. Prolegômenos a toda Metafísica Futura. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 156, A 180, Ak
4:360.
252
KANT, I. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, p. 100, A 130, Ak 84.
253
KANT, I. Proclamation of the Imminent Conclusion of a Treaty of Perpetual Peace in
Philosophy Em: Theoretical Philosophy After 1781. Cambridge: Cambridge University Press,
2002, p. 455. Ak 8:416.
proposição e em quais assenta o seu oposto. O método crítico é, portanto, o método
intermediário pelo qual uma proposição pode obter a certeza. Ele se resguarda do
dogmatismo porque opõe o dogmatismo ao ceticismo [;] e já que desse modo pesa os
fundamentos de ambos os métodos, somente o criticismo pode decidir quantos
fundamentos possuo para sustentar a verdade.
254
Esse projeto duplo (ou melhor, quádruplo) consiste em chegar a uma
compreensão crítica do dogmatismo e do ceticismo, e assim reformulá-los de
acordo com a perspectiva crítica. O fato de que ceticismo e dogmatismo como
métodos exclusivos, sistemáticos, serem excludentes, e comporem uma dicotomia,
não significa que elementos de cada um não possam ser reunidos em um único
sistema de pensamento. É preciso não somente examinar a si mesmo, mas ainda
afirmar algo sobre si. As duas coisas não podem ser dissociadas. Porém, é
somente o criticismo que permite conciliá-los.
Entretanto, pode-se acusar que a conciliação de dogmatismo e ceticismo de
produzir um efeito de paralisia, sendo uma preparação para a cultura burguesa de
falsa sabedoria como ornamento e de pronta aceitação a qualquer ideologia, de
modo a estabelecer o isolamento entre o raciocínio e a vida prática. Para
ADORNO,
Kant encontra-se (…) em um divisor de águas da consciência burguesa. De
uma maneira ele providencia o modelo para um hábito de pensamento muito
difundido na consciência burguesa normal até os nossos dias. Esse é aquela curiosa
síntese de ceticismo e dogmatismo que cada um de nós provavelmente experienciou
durante a juventude e das circunstâncias familiares, é, acidentalmente, uma
combinação que se encaixa bem com o próprio Kant já que a sua filosofia
representa uma aliança de ceticismo humeano e o dogmatismo do racionalismo
clássico. Por ceticismo entendo simplesmente o gesto burguês que expressa a idéia,
bem, que é a verdade? E que possivelmente o que prefere no novo Testamento é a
passagem na qual Pilatos faz essa mesma pergunta: Que é a verdade? Devemos
notar que o único propósito dessa pergunta é excluir qualquer autoridade teórica,
qualquer intervenção autoritária do pensamento do reino da experiência. Essa é uma
atitude que contribuiu para a prontidão da burguesia a engolir o fascismo e outras
formas de totalitarismo. Por outro lado, entretanto, certas idéias devem ser
invioláveis e imunes a todo criticismo. Tais idéias permanecem dogmáticas, elas
não devem ser tocadas. Esses dois elementos: a dúvida de que qualquer coisa possa
ser verdadeira e a autoridade inquestionável de normas que existem na realidade
dada – essa situação corresponde precisamente à divisão que está enraizada na
filosofia de Kant.
255
A síntese crítica de dogmatismo e ceticismo localizados estaria na base do
“espírito da modernidade”, da invenção do indivíduo burguês. Através dela, seria
254
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 332-3 The
Vienna Logic, 885-6.
255
ADORNO, T. W. Kant’s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press, 2001, p.
183-184.
possível dar conta de um conflito real sem contradição para o pensamento,
explicando as suas “condições de possibilidade”. Assim, a contradição “natural”,
“dada” no mundo, respalda a contradição teórica, na ambigüidade de poder ora
compreender conflitos reais como tão-somente um conflito para o pensamento,
ora conflitos teóricos como um conflito real de forças, seja natural ou da natureza
racional. Contudo, em Grandezas Negativas, texto de 1763, Kant distingue entre
uma oposição real, um conflito de forças, com uma oposição para o raciocínio;
esta resultaria em um vazio intelectual, ofuscado pela contradição teórica,
enquanto a primeira, na mecânica, por exemplo, uma oposição de forças resultaria
tão-somente no repouso, em nada contraditório ou impossível de se pensar.
Pode-se pensar que o efeito de paralisia acusado no ceticismo teria sido
possível restabelecer-se a partir da filosofia crítica, por uma teoria única que opera
a síntese de ceticismo e dogmatismo, e que assim, ao sustentar essa “unidade de
contrários”, também estancaria o raciocínio. O paradoxo não deve se tornar em
um hábito do pensamento, embora detectá-lo seja importante para criticar a si
mesmo e às antigas opiniões. Como diz o personagem Riemer em sua conversa
com Carlota, “(...) o homem só pode manter-se no contraditório de modo
contraditório.”
256
COLLINS testemunha:
O nosso autor fala do espírito da contradição, do culto ao paradoxo, ou da
irritabilidade no juízo. O paradoxo é bom, se não acarreta na aceitação de um
argumento particular que é proposto. É o elemento inesperado do pensamento, pelo
qual o homem é muitas vezes divergido para uma nova linha de pensamento. O
espírito da contradição é evidenciado em companhia do dogmatismo.
257
Ao modo do ceticismo, o dualismo fundamental e abrangente da filosofia
crítica de Kant tem como resultado histórico – característico da filosofia moderna
– tornar possível que a atividade intelectual se consuma em somente articular uma
antitética, desprovida de direcionamento, cuja compreensão seria tão somente
pensá-la como uma esfera, imóvel em seu dinamismo. O esforço filosófico seria
não tanto explicar uma contradição, mas sim forçar a sua apresentação livre de
conflitos teóricos. Para HUME:
Tudo que tem um ar de paradoxo e é contrário às primeiras noções da
humanidade, às noções mais despidas de preconceitos, costuma ser fervorosamente
esposado pelos filósofos, como se mostrasse a superioridade de sua ciência, capaz
256
MANN, T. Carlota em Weimar. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984, p. 76.
257
KANT, I. Lectures on Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 210. Ak
27:457, Moral Philosophy Collins.
de descobertas tão distantes da concepção vulgar. De outro lado, toda vez que
alguém nos apresenta uma opinião que nos cause surpresa e admiração, é tal a
satisfação que ela proporciona à mente, que esta se entrega por completo a essas
emoções agradáveis, jamais se deixando persuadir de que seu prazer carece de todo
e qualquer fundamento. É dessas respectivas disposições dos filósofos e de seus
discípulos que nasce aquela mútua complacência entre eles, em que os primeiros
fornecem uma abundancia de opiniões estranhas e inexplicáveis, enquanto os
últimos nelas acreditam com enorme facilidade.
258
Por um lado, as pessoas não gostam de ambigüidades, e quando há a
exigência de opostos coexistirem, torna-se melhor se reduzir a apenas uma
perspectiva do que contradizer a si mesmo. Por outro lado, há uma mistificação do
paradoxo, como se a tarefa do pensamento pudesse resumir-se na expressão
coerente de uma contradição ou um conflito lógico, racional, dialético, etc. e
assim afetar profundidade, ser sério e grave; ocupar-se de pensamentos elevados e
distanciados da vida comum (o que, ainda mais, não seria algo exclusivo nem do
pedantismo nem do diletantismo.). Indubitavelmente, é sobre a própria existência
que recai com maior força a inclinação ao paradoxo. Contudo, os aspectos
paradoxais da existência devem ser esclarecidos por uma experiência vivida,
sentida, pela qual ganham significância, e deixam de ser meras formulações
teóricas.
Se a filosofia de Kant pôde servir historicamente como ideologia para a
falsa sabedoria da burguesia e para o isolamento entre a vida e o pensamento,
todavia, pode-se notar que as questões da extensão e dos limites do conhecimento
são temas entrelaçados em todas as partes da Crítica da Razão Pura. Se o caráter
dessa obra é positivo ou negativo parece depender somente de uma perspectiva.
Kant julga que o idealismo transcendental tem o mérito principal de somente
evitar o erro, e como não responde às questões da metafísica transcendente, mas
sim a censura, julga a sua obra ser principalmente negativa. Entretanto, pode-se
notar uma ambivalência de Kant em relação à questão da metafísica, à razão, que
não diminui o valor do seu pensamento, mas, muito pelo contrário, põe em
evidência a sua penetração e coerência, que sempre busca atingir a totalidade.
5.1
258
HUME, D. Tratado da Natureza Humana. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do
Estado, 2001, p. 51.
A doença da razão
Sobre o Efeito Físico da Filosofia.
É a saúde da razão, como efeito da filosofia.
259
Pode-se considerar a luta contra a doença da razão a essência da filosofia
kantiana. Doença que consiste na confusão de fenômenos e coisa em si, inclusive
contra todos os subterfúgios e ilusões, preconceitos e posturas que acompanham
esse engano, buscam a sua validade e trabalham para perpetuá-lo. Segundo
KANT:
A crítica da razão pura é um profilático contra uma doença da razão que
tem o seu germe em nossa natureza. É o oposto da inclinação que nos aprisiona a
nossa terra natal (nostalgia): a aspiração de deixar o nosso círculo e nos
relacionarmos com outros mundos.
260
Não é contra uma doença somente da filosofia que luta a crítica kantiana,
mas sim “contra uma doença da razão que tem o seu germe em nossa natureza”. A
crítica vai de encontro à ilusão que nasce da própria razão, a partir da qual se
tornam perenes as ilusões da filosofia bem como seus conflitos.
Como a confusão entre fenômeno e coisa em si – a ilusão transcendental -,
é para Kant uma tendência natural e inevitável, ancorada na postura dogmática, a
crítica é o oposto da nostalgia, é o oposto do dogmatismo que não critica a si
mesmo e em seu comodismo permite que seus enganos mantenham-se intocados.
Nessa medida, a crítica consiste em “deixar o nosso círculo”, para “nos
relacionarmos com outros mundos” que, enquanto a razão estiver fechada em si
mesma, não somos capazes de enxergar.
Entretanto, como essa doença é da razão, ela não é gerada pelo dogmatismo,
mas se manifesta com e através dele. O dogmatismo e a confusão de fenômeno e
coisa em si estão interligados e se conservam reciprocamente. HORKHEIMER
escreve:
Se tivéssemos de falar de uma doença que afeta a razão, tal doença não
deveria ser entendida como algo que tivesse abalado a razão em um determinado
259
KANT, I. Proclamation of the Imminent Conclusion of a Treaty of Perpetual Peace in
Philosophy Em: Theoretical Philosophy After 1781. Cambridge: Cambridge University Press,
2002, p. 454, Ak 8:414.
260
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 209.
Reflexão 5073, de 1776-78, Ak 18:79.
momento histórico, mas como algo inseparável da natureza da razão dentro da
civilização (...)
261
Não se deve entender o dogmatismo como algo tão-somente histórico, mas
sim como a postura mais natural no tocante ao conhecimento. O caráter
preventivo da filosofia crítica, de ser um “profilático contra a doença da razão”, é
sempre atual. Para sempre refrear o dogmatismo e a doença da razão, a crítica
requer uma teoria positiva; a determinação das fronteiras da razão exige como
contraparte a exposição da sua real extensão. De outro modo, sem o
autoconhecimento da razão, sem conhecer a causa dos seus conflitos, o
mecanismo das suas falácias, e a natureza das suas ilusões, não seria possível
prescrever nenhum profilático, nenhuma terapia, nenhum remédio.
Dessa maneira, o ceticismo, por si só, não é suficiente para identificar a
doença da razão, mas está fadado a lutar somente contra a sua manifestação,
contra o dogmatismo - para refutá-lo e se prevenir contra as suas falácias -, sem
ser capaz de buscar a sua fonte na razão, pois isso não seria possível tão-só pela
suspensão ou époché. Para descobrir as fontes da doença da razão, é preciso
conciliar uma teoria positiva com a saída de si, e, para isso, a crítica lança mão do
procedimento dogmático e do método cético, ambos em vista de uma nomotética
da razão pura. KANT afirma:
Dois filósofos metafísicos, um dos quais prova a tese, e o outro a antítese,
ocupam aos olhos de um terceiro observador a posição de um exame cético.
Devem-se fazer ambas as coisas por si mesmo.
262
Fazer ambas as coisas por si mesmo significa realizar uma auto-análise
cética ao perseguir, como dois metafísicos, os extremos opostos a que levam a
busca do seu objeto. O que se propõe, nessa passagem, é adotar uma posição
suspensiva, ou mais elevada, de um terceiro observador, externo àquele conflito, e
ao mesmo tempo representá-lo por si mesmo, e perseguir cenicamente o objeto de
investigação, como o dogmático, porém de modo sabidamente antitético.
A necessidade de fazer ambas as coisas por si reside em que simplesmente
reconhecer o “sem caminho”, o caráter aporético do conflito entre os metafísicos
dogmáticos, engendrado pela confusão de fenômeno e coisa em si, não é ainda
261
HORKHEIMER, M. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro Editora, 2003, p. 176.
262
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 205.
reflexão 5015, de 1776-78. Ak 18:61.
satisfatório. A posição suspensiva do exame cético não pode acarretar no
distanciamento imediato e definitivo de tese e antítese, e por isso não basta deixar-
se levar pela suspensão. É necessário retornar à antitética para que não se deixe de
lado a natureza enganadora, hiperfísica, dos objetos almejados pelo filósofo
metafísico nas suas teses dogmáticas. Com isso se pode buscar a causa do conflito
na própria razão.
A investigação kantiana da antitética o leva a pensar esses objetos não em si
mesmos, mas na sua gênese na mente, como idéias da razão, que ultrapassam os
limites da experiência possível. Pode-se pensar ser por esse motivo que Kant
afirma que o “método cético (...) só é essencialmente próprio da filosofia
transcendental”.
263
Através da estratégia dialética, tomada do pirronismo, i.e.,
pesar os argumentos de um conflito eqüipolente para dele se suspender, a filosofia
crítica ultrapassa a miopia de óticas unilaterais, precisamente as articulando em
seu interior. Assim, a perspectiva transcendental não pode ser considerada como
somente um ponto de vista dentre outros, mas um que acolhe todos os demais e os
contêm ativamente.
Desse modo, pode-se afirmar que a síntese de procedimento dogmático e do
método cético é uma maneira de se manter vigilante contra a doença da razão.
Nessa medida, essa síntese é o que melhor caracteriza a postura crítica, pela qual
pode tornar-se mais abrangente e abarcar a razão em sua totalidade. O dinamismo
crítico de conciliar a perspectiva cética, de suspensão de si, à dogmática
(reflexiva, imanente), de afirmação sobre si, é necessário para o autoconhecimento
da razão, e, ao mesmo tempo, é o que proporciona combater tanto o ceticismo
quanto o dogmatismo irrestritos. No texto – que data de 1796 - Proclamação da
conclusão iminente de um tratado de paz perpétua na filosofia
264
, KANT deixa
claro esse caráter dinâmico da sua filosofia:
A filosofia crítica é uma perspectiva sempre armada (contra aqueles que
confundem perversamente as aparências com a coisa em si), e precisamente por isso
acompanha cada vez mais a atividade da razão, oferece o prospecto de uma paz
eterna entre filósofos, através da impotência, de um lado, da prova teórica do
contrário, e através da força dos fundamentos práticos para aceitar o seu princípio
por outro lado; uma paz que tem ainda a vantagem de constantemente ativar os
poderes do sujeito, que está aparentemente correndo o risco de ataque, e assim
263
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 390-91. A
424 / B 452.
264
Texto cujo título faz alusão ao tratado político publicado no ano anterior, contra J. G. Schlosser.
também promovendo, pela filosofia, a intenção da natureza de continuamente
revitalizá-lo, e prevenir o sono da morte.
265
A filosofia crítica é uma perspectiva “armada” em um duplo campo de
batalha. Contra o dogmático, aduz argumentos baseados na impotência da razão
pura teórica. Contra o cético, apresenta argumentos que se baseiam na razão pura
prática, na liberdade. O cético não propõe alternativas reais ao dogmatismo.
Somente prescreve ao dogmático sair de si mesmo, sem ter para onde ir, com o
resultado que ele volta ao mesmo lugar, aos mesmos erros. Em última instância,
por o ceticismo estar atrelado ao dogmatismo, reafirma a atitude do pensador
dogmático em sua consciência, ao menos, em seu núcleo sadio, da necessidade de
uma teoria positiva do conhecimento. Ainda nesse sentido o ceticismo universal
deve ser refreado, pois não é capaz de combater a ilusão transcendental, ao
contrário, ao permanecer na suspensão absoluta, sem retorno ao
autoconhecimento, a respalda.
Desse modo, a crítica luta por todos os lados, “terapeuticamente”, como um
“remédio” (materia medica) contra a ilusão transcendental, sendo uma atividade
que previne o sujeito de cair no “sono da morte”
266
. E, portanto, a paz na filosofia
não pode ser estática. No texto Idéia de uma História Universal de um Ponto de
Vista Cosmopolita (1784), Kant considera como um mecanismo da natureza a
insociável sociabilidade do homem, que é “feito de uma madeira torta”:
O homem tem uma inclinação para associar-se porque se sente mais como
homem num tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele
também tem uma forte tendência a separar-se (isolar-se), porque encontra em si ao
mesmo tempo uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir tudo
simplesmente em seu proveito, esperando oposição de todos os lados, do mesmo
modo que sabe que está inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros.
267
O antagonismo é um meio da natureza para desenvolver as disposições
naturais do homem, e pode-se dizer que a filosofia não o exclui em seu projeto de
265
KANT, I. Proclamation of the imminent conclusion of a treaty of perpetual peace in philosophy
Em: KANT, I. Theoretical Philosophy after 1781. Cambridge: Cambridge University Press, 2002,
p. 455. Ak 8:416
266
Se, por um lado, a antitética dogmática é um constante incentivo à pesquisa filosófica (assim
como a diaphonia é um “motor” para o cético), por outro lado, aderir ao dogmatismo pode levar o
sujeito ao enfraquecimento do seu raciocínio. Portanto, o criticismo tem um sentido terapêutico
tanto para a filosofia, que nunca está em perigo de “morrer”, quanto para o sujeito, que, esse sim,
entregue ao dogmatismo, sofre o perigo de cair no “sono da morte”.
267
KANT, I. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p. 13.
paz. Essa não pode ser senão dinâmica e conflituosa. O mesmo se pode dizer
sobre o criticismo. É revigorante, pois a sua perspectiva não consiste em uma só,
mas abarca o conflito perene entre ceticismo e dogmatismo, empirismo e
racionalismo, sendo uma atividade constante de autocrítica e auto-investigação.
Ao passo que cada uma dessas correntes de pensamento tende somente a separar-
se das outras, a pensar a diferença e a se isolarem, Kant esforça-se para preveni-
las desse “sono da morte”, levá-las a se associarem, por, justamente através do seu
antagonismo, promover o bem comum, caminharem rumo à verdade e se
manterem constantemente ativos.
5.2
O novo dogmatismo de Kant
Um conhecimento dogmático, em seu sentido mais amplo, é uma tese que
sustenta um juízo sobre algo. Entretanto, não só o dogmatismo na história da
filosofia está condicionado a pressuposições hiperfísicas; como as teses
dogmáticas têm em mira não os fenômenos, mas as coisas em si. Todos os
conhecimentos dogmáticos estão, assim, aos olhos de Kant, envoltos em falácias;
confundem fenômeno e coisa em si, fazem uso do entendimento e da razão sem
avaliar suas reais capacidades e os levam para muito além das suas fronteiras. No
“terreiro de luta dessas controvérsias infindáveis [que] se chama metafísica
268
,
KANT afirma sobre a razão pura:
No começo, sob a administração dos dogmáticos, o seu governo era
despótico. Porém, como a sua legislação ainda retinha vestígios da antiga barbárie,
esse governo degenerou gradualmente em completa anarquia; e os céticos, espécie
de nômades que têm repugnância no cultivo permanente da terra, rompiam, de
tempos em tempos, a unidade civil. Como, felizmente, eram pouco numerosos, não
puderam impedir os dogmáticos de continuamente tentarem reconstruir, embora
sem nunca concordar em um plano unanimemente aceito entre eles
269
.
Apesar de a razão dogmática ser despótica, contudo uma ordem é
necessária, e se “felizmente” os dogmáticos tentavam “reconstruir” a antiga, pode-
se afirmar que para Kant um novo dogmatismo deve surgir em resposta ao
dogmatismo tradicional, metafísico. Da mesma maneira que o ceticismo não deve
ser entendido como apenas uma etapa preliminar à crítica, ao modo cartesiano, o
dogmatismo não deve ser apenas superado, mas deve ser esclarecido em sua
necessidade e ser legitimada a sua parcela de verdade. Desse modo, o projeto de
estabelecer um novo modo possível de afirmar uma tese, de fato um campo
inteiramente novo para uma teoria positiva, é imperativo para Kant e pode ser
considerado central no seu empreendimento filosófico. É nesse sentido que a
filosofia crítica de Kant busca um novo dogmatismo, um novo campo para o
discurso filosófico coerente com o modo de conhecer humano e que verse sobre
ele. KANT afirma:
268
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 99: A
VIII.
269
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 99: AIX.
No que diz respeito aos que observam um método científico, eles têm aqui a
escolha de proceder ou dogmaticamente ou ceticamente, mas em qualquer caso têm
a obrigação de proceder sistematicamente. Se aqui nomeio no primeiro caso o
famoso Wolff, e no segundo David Hume, então posso relativamente aos meus
propósitos atuais deixar de mencionar os outros. A via crítica é a única ainda
aberta.
270
“A via crítica é a única ainda aberta” e deve proceder sistematicamente.
Como o “terreiro de luta” da metafísica tem uma causa mais profunda, é devido ao
caráter da razão contradizer-se, Kant crê que o método cético seja necessário, para
que se possa suspender esse conflito e arrefecê-la do dogmatismo. Dessa
suspensão a reflexão e a autocrítica são possíveis, pela qual a razão é capaz de
buscar uma nova possibilidade para o procedimento dogmático, ao lhe dirigir às
estruturas do conhecimento humano. A sistematicidade própria da filosofia crítica
consiste em apropriar-se consequentemente do método cético pirrônico e do
procedimento dogmático, que está inserido no próprio entendimento humano, e o
autoconhecimento da razão permite conciliá-los. Assim seria possível para a razão
buscar o conhecimento de si, ser capaz de lidar com a sua dimensão metafísica e
dialética sem conflitos para o pensamento, mas, ao contrário, chegar a entendê-las
como um dualismo enraizado na constituição do homem e da sua experiência.
O projeto de Kant é erigir um autoconhecimento sistemático da razão,
sendo um dogmatismo que é subjetivo, crítico, reflexivo e a priori e imanente, em
vez de ser um dogmatismo voltado para as coisas em si, o qual poderia ser
chamado, em contraste, de dogmatismo projetivo. O procedimento dogmático é
voltado para o domínio da experiência, para buscar exaustivamente nele tudo o
que pertence ao sujeito de conhecimento, que seja necessário e universal, ou seja,
puro a priori. Nesse contexto, Kant crê ter aberto um novo campo de
conhecimento e investigação filosófica, o qual seria absolutamente certo e seguro.
De acordo com KANT,
Um tratamento da ciência é dogmático quando não se dá ao trabalho de
investigar de quais poderes da mente um conhecimento é formado, mas pelo
contrário afirma como uma base certas proposições gerais e infere o resto delas; um
tratamento é crítico quando se tenta descobrir as fontes de onde o conhecimento
surge.
Devemos, portanto, investigar os poderes da mente dos quais os
conhecimentos provêm, independentemente de parecerem ser obviamente
verdadeiros. - - então, para conhecer algo a priori, que é sobre o que a faculdade em
270
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 704: A
856 / B 884.
geral se baseia. O método crítico examina proposições não objetivamente ou de
acordo com o seu conteúdo, mas, ao contrário, subjetivamente. –Conformemente, o
método da metafísica é crítico e dogmático de modo a encontrar um critério para
distinguir entre os conhecimentos que se originam legitimamente do entendimento e
da razão, e aqueles que aparecem através de uma ilusão ou através de alguém
enganando a si mesmo.
271
O método crítico, basicamente, “investiga os poderes da mente (...) para
conhecer algo a priori”, “subjetivamente”. Desse modo, o novo dogmatismo da
filosofia crítica de Kant está para além de dogmatismo e ceticismo justamente por
reuni-los criticamente. Seu critério - proceder sistematicamente em busca do
autoconhecimento da razão - é capaz de tornar mesmo o método cético em
conhecimento dogmático, reflexivo de si mesmo, pelo qual se possa combater o
dogmatismo irrefletido, “uma ilusão (...) ou alguém enganando a si mesmo”. Em
poucas palavras, para combater a dialética da razão é preciso uma analítica do
entendimento, e é esse fundamento teórico que o método cético, através da
habilidade da isosthenia, pelo erro afirma a sua verdade, tornando-se ele mesmo,
um modo de conhecer e reiterar o conhecimento de si mesmo.
Kant afirma, em 1765, que o método da filosofia seria cético, embora já
estivesse à espera de um conhecimento dogmático, que pudesse ser sustentado
com argumentos legítimos, fundados na natureza do conhecimento humano.
Assim vieram à luz, em 1768, espaço e tempo como as formas puras da
sensibilidade. Em 1766, no texto Os Sonhos de um visionário explicados pelos
sonhos da metafísica, Kant já entende a negatividade da razão como uma matéria
necessária para a metafísica.
Sem dúvida, a síntese de dogmatismo e ceticismo já habitava o pensamento
de Kant no período pré-crítico. Contudo, não se pode afirmar que Kant já havia
entendido que o modo de superá-los seria justamente incorporá-los de maneira
parcial e localizada. Indubitavelmente, a partir de 1769, com a descoberta das
antinomias, Kant já havia percebido a validade e a necessidade do método cético
para podar os vôos hiperfísicos da razão, entretanto, ele mesmo não havia ainda se
desfeito do dogmatismo metafísico, como se pode ver na Dissertatio de 1770.
Como a primeira versão da Crítica da Razão Pura, de 1781, é bastante
antidogmática, pode-se pensar que a antinomia da razão tenha sido uma grande
influência para Kant durante toda a década silenciosa. E a dedução das categorias
271
KANT, I. Lectures on Metaphysics. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 134-5.
Ak 29:779, de1782-3.
do entendimento, que são mencionadas desde 1772, em uma carta a seu amigo e
discípulo Marcus Herz, representariam a contraparte - o autoconhecimento
dogmático da natureza do entendimento humano - à negatividade da razão. Em
1772, KANT escreve:
Deve-se reconstruir o enredo onde se demoliu, ou ao menos, se se dispôs de
livre debate, deve-se tornar as percepções do entendimento dogmaticamente
inteligíveis e delinear os seus limites. Com isso agora estou ocupado.
272
A demolição da metafísica dogmática, trabalhada a partir da década
silenciosa de 1770, não deve ser tão-somente negativa, ao contrário, é preciso não
apenas retomar, mas “reconstruir o enredo onde se demoliu”. Dessa forma, o novo
dogmatismo de Kant consiste em estabelecer as bases subjetivas para o
conhecimento da natureza, de modo que o autoconhecimento da razão não está
isolado em si mesmo. De modo inverso da metafísica dogmática, que busca
conhecer a coisa em si sem criticar a si mesmo, Kant investiga a razão pura pela
razão pura como propedêutica necessária para a investigação do real, que irá
assentá-la em seu domínio próprio, o da experiência.
O conhecimento subjetivo como fundamento da objetividade é explorado
por Kant na metafísica, na moral e na religião, sendo todos esses saberes
entendidos como antropologia, sua finalidade una, em contraste com o
dogmatismo transcendente, que busca erigir uma cosmologia, uma psicologia e
uma teologia racionais. Os filósofos metafísico-dogmáticos, Leibniz, por exemplo,
crêem que se possa derivar a noção de uma alma imortal a partir do conceito de
substância. Esse salto entre categorias da filosofia dogmática é ilegítimo e
falacioso.
Os metafísicos dogmáticos são obrigados a sustentarem suas doutrinas
devido a resultados lógicos, embora usem a lógica a despeito da matéria em vista,
transitando ora pela física, pela ética, ora pela metafísica. Nesse sentido, a
metafísica transcendente projeta a estrutura subjetiva do conhecimento para a
natureza real das coisas, em vez de refletir sobre elas e produzir um conhecimento
de si próprio a partir do qual se possa pensar o mundo. Ainda, nela se caracteriza
uma petição de princípio, já que derivam o conhecimento de si a partir de um
272
KANT, I. Correspondence. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 137. Carta de
Kant a Marcus Herz, de 21 de Fevereiro de 1772.
conhecimento das coisas, o qual, por sua vez, deriva da projeção das estruturas
subjetivas.
Dessa maneira, pode-se pensar que a filosofia crítica não se volta somente
contra a metafísica “tradicional”, e sim contra a falta de reflexão. Na medida em
que o autoconhecimento e em especial a metafísica possa prescindir da reflexão, a
crise do conhecimento de si do homem entra em cena e continuará a ser gerada. A
metafísica dogmática é ilegítima para produzir o autoconhecimento, para
caracterizar o homem a partir de algo para além dele mesmo.
É nesse sentido que Kant nutria esperanças de que o campo da crítica
continuasse a ser investigado. Acreditava ser isso uma necessidade. O ideal de
filosofia deveria se alterar; passar do dogmatismo hiperfísico e da crença absoluta
na razão e em seus poderes especulativos para o pólo oposto da filosofia crítica, de
investigação do autoconhecimento da razão como base sólida para a investigação
da natureza.
Apesar de considerar a sua época como a “época da crítica”, Kant afirma
que o seu tempo estaria passando por uma “febre dogmática”, a qual o criticismo
deveria refrear e, somente quando isso acontecesse, este teria o seu
reconhecimento como o único método filosófico legítimo, e seria, por isso, eterno.
Em uma reflexão se lê:
Não se deve acreditar que tudo o que foi escrito e concebido até agora foi
meramente um desperdício. As tentativas dogmáticas podem sempre continuar, mas a
crítica delas deve seguir, e podem ser usadas somente para se julgar sobre a ilusão
que a razão humana experiência se confunde o subjetivo com o objetivo e a
sensibilidade com a razão (...)
Eu certamente acredito que esta doutrina será a única que restará uma vez que
as mentes tenham arrefecido da febre dogmática e deve então durar para sempre, mas
eu duvido bastante que serei eu quem produzirá esta alteração.
273
A recepção da Crítica da Razão Pura é um exemplo de como se pode
considerar a filosofia crítica apenas como um novo dogma. Quando o espírito da
época está marcado gravemente pelo dogmatismo, cada homem isolado em si
mesmo, em seus próprios dogmas, julga-se qualquer tentativa de apresentar um
novo modo de pensar como apenas uma nova doutrina dogmática. Desse modo,
273
KANT, I. Notes and Fragments. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 205.
Reflexão 5015, Ak 18:61.
cada um pode assegurar-se de que seus dogmas são tão bons quanto os de
qualquer outra pessoa. CASSIRER escreve:
Onde Kant acreditava estar propondo um problema absolutamente
necessário e universalmente válido, eles viam somente a expressão de uma visão e de
um dogma pessoais.
274
A crítica conseqüente que se pode fazer à filosofia de Kant diz respeito à
sua ambivalência, ao modo como o seu novo dogmatismo requer, para podar o
uso despótico da razão, lançar mão de meios autoritários. Para ADORNO,
(...) Por um lado, a razão é antidogmática e nega a si mesma o direito de
ultrapassar a experiência possível. (...)
Por outro lado, entretanto, é esta mesma razão teórica que instala este
bloqueio que previne a razão de ir para além daquele ponto. É a razão teórica em
Kant que comanda a razão a parar e a previne de levar a cabo a sua tarefa original,
em uma palavra, de pensar o Absoluto.
275
A imposição de limites seria primeiramente crítica e antidogmática. A razão
propõe a sua permanência no domínio dos fenômenos para não tratar do que nada
se sabe. Em segundo lugar, é a própria razão que reforça estes limites e impede a
si mesma de ultrapassá-los. Nesse sentido, a razão seria ela mesma dogmática, ao
instalar definitivamente um dogmatismo negativo (que consiste em afirmar que o
conhecimento não é atingível) em relação às suas capacidades e motivações.
Nota-se que esse caráter dogmático da razão, ao qual Adorno se refere, é
essencialmente um dogmatismo negativo, pois não consiste em fazer um uso
irrestrito, especulativo da razão, de forma autoritária, mas precisamente em limitar
o seu uso de forma autoritária. Desse modo, a autoridade que Kant prescreve à
razão é reforçar as suas fronteiras, limitá-la em suas pretensões hiperfísicas com
base no seu autoconhecimento. Para Kant, é o conhecimento de si da razão que lhe
confere a sua autoridade, a sua capacidade legislativa. O dogmatismo negativo, de
afirmar as suas fronteiras, mandar a razão parar em determinado momento das
suas especulações, funda-se em um dogmatismo positivo, entretanto, não das
coisas mesmas, mas de si, do conhecimento das suas próprias leis (nomotética).
Em outras palavras, apesar de a razão ser a faculdade que executa a crítica,
ela precisa questionar a si mesma e resistir aos seus ditames, que excedem as
274
CASSIRER, E. Kant´s Life and Thought. New Haven: Yale University Press, 1981, p. 219.
275
ADORNO, T. W. Kant´s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press, 2001, p.
76.
capacidades cognitivas do homem. Ao admitir as suas fronteiras, a sua impotência
hiperfísica, é ela mesma que precisa impedir-se de ultrapassá-las. Nas palavras de
HABERMAS:
A autocrítica totalizante da razão enreda-se na contradição performativa:
não pode convencer a razão centrada no sujeito de sua natureza autoritária senão
recorrendo aos próprios meios dessa razão.
276
O que deve ser frisado no autoritarismo crítico da razão é o seu caráter
“totalizante”. Kant busca um conhecimento total da razão, que consiste em ser
tanto negativo quanto positivo, pois, pensando inversamente, é somente o
conhecimento positivo bem como negativo da razão que possibilita compreendê-la
em sua totalidade.
Do mesmo modo que Kant identifica na razão a tendência a buscar uma
“totalidade incondicionada”, a própria filosofia crítica não se satisfaz senão em
compreender a razão como um todo. KANT escreve: “A filosofia transcendental é
o sistema das idéias em um todo absoluto.”
277
. Entretanto, esse sistema é de
idéias que são “problemáticas em si mesmas”
278
. Por conseguinte, pode-se pensar
que a ambivalência é um recurso indispensável para lidar com a razão em sua
totalidade.
BAUMAN define a ambivalência como a “possibilidade de conferir a um
objeto ou evento mais de uma categoria”
279
. Pode-se pensar que no caso da razão,
essa possibilidade, que para Bauman é uma desordem específica da linguagem, é
uma necessidade, pois é preciso lidar com a razão em seu aspecto positivo, o seu
uso legítimo, bem como negativo, em necessidade de constante disciplina – sendo
a própria razão que deve impor limites a si própria
280
. A negatividade não
consiste somente em uma iniciação ao conhecimento, mas pertence à sua
atualidade.
Do conhecimento de si da razão nunca provém somente uma categoria, um
caráter único, sobre o qual se possa repousar, ao contrário, a razão humana se
mostra multifacetada, contraditória, em necessidade de constante crítica e
276
HABERMAS, J. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Editora Martins Fontes,
2002, p. 261.
277
KANT, I. Opus Postumum. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 247.
278
KANT, I. Opus Postumum. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 250.
279
BAUMAN, Z. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999, p. 9.
280
Cf. ADORNO, T. W. Kant’s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press,
2001, p. 76.
esclarecimento. Devido à ambivalência da razão, ao fato de o que aparece de si
para si não poder ser atribuído a somente uma categoria, a crítica torna-se ela
mesma ambivalente, retira a sua autoridade de um autoconhecimento positivo
para, em uma palavra, negar-se de “pensar o Absoluto”. Essa ambivalência da
razão crítica é capaz de iluminar a síntese de procedimento dogmático e método
cético, como recursos necessários para o autoconhecimento bem como para
garantir a permanência da razão em suas fronteiras.
Mas pode-se questionar que, se de fato se concede que, por um lado, o
autoconhecimento positivo - o dogmatismo reflexivo e imanente - pode ser
atestado e legitimado a priori, por outro lado, como pode ser o dogmatismo
negativo? Kant sustenta que há uma ignorância a priori no modo de conhecer
humano, o que significa tão-somente as fronteiras da sua própria constituição. Isso
é totalmente diferente do dogmatismo negativo de espaço, tempo. Pois, como se
pode afirmar que espaço e tempo fora da sensibilidade humana “não são nada”
281
,
se isto não é ignorância, mas conhecimento, que não se encontra em nós, mas uma
afirmação que vai para além da constituição do modo de conhecer humano?
Na filosofia crítica de Kant, pode-se pensar em espaço e tempo tão-somente
como formas puras da sensibilidade, o que consiste no dogmatismo negativo de
que não se pode pensá-las senão dessa maneira. Pode-se considerar que a análise
de Kant está correta em afirmar que espaço e tempo não são conceitos, não são
coisas, mas sim intuições sensíveis a priori. Isso resulta em – e tem como objetivo
principal - que não se pode pensar em espaço e tempo independentemente do
sujeito da experiencia, como uma coisa em si, que teria uma existência real nela
mesma.
No entanto, como espaço e tempo estão em relação com o dado múltiplo da
sensibilidade, não se poderia pensar que estão ainda em co-relação com este dado?
As propriedades do objeto da experiência que nos afeta, não da suposta coisa em
si - a impenetrabilidade, por exemplo -, não podem ser consideradas determinantes
na configuração específica de espaço e tempo como as intuímos? Isso parece ser
um limite de Kant na Crítica da Razão Pura. Pode-se afirmar que as intuições
puras são a priori enquanto co-relação com o dado múltiplo da matéria, não como
281
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p.159 (A 26
/ B 42): “O espaço não é nada senão meramente a forma de todas as aparências do sentido
externo”, e p. 163 (A 33 / B 50): “O tempo não é nada senão a forma do sentido interno, i.e., da
intuição de nós mesmo e do nosso estado interno”.
determinações cristalizadas no sujeito transcendental. Em outras palavras, espaço
e tempo são dinamicamente relacionais; pensá-los como determinados a priori
isoladamente no sujeito de conhecimento consiste em, novamente, mas de outra
maneira, considerá-los em si mesmos, mas agora como intuições puras. Assim,
espaço e tempo não são intuições sensíveis em si mesmas, mas intuições sensíveis
que dependem do objeto dado. De acordo com Kant, não se pode pensar em
espaço e tempo fora da mente, entretanto, não se pode pensá-los, na própria
mente, como mais que formas determinadas exclusivamente pelo sujeito de
conhecimento?
Nesse sentido, a distinção de fenômeno e coisa em si de Kant permanece
atual, entretanto, deve ocorrer uma radicalização em seu interior - a partir dela
própria. O “puro” não está pré-formado, nem determina exclusivamente o
empírico, não está destacado dele, mas puro e empírico determinam-se
reciprocamente. Isso não consiste em uma rejeição completa do Idealismo
Transcendental, pois permanece tanto o seu ensinamento de que materialismo
bem como idealismo são insuficientes, quanto a doutrina da subjetividade das
formas da experiência. Somente não é ainda plausível pensar que espaço e tempo,
e ainda a causalidade, são apenas subjetivos e não sofrem, possivelmente, nenhum
outro tipo de determinação ou influência.
Desse modo, a lição de Kant de que espaço e tempo são formas subjetivas
em relação como o dado da matéria, deve-se ampliar para a noção de que espaço e
tempo consistem em uma co-relação com o dado da matéria; não são coisas, mas
também não são estanques como intuições puras. Com isso, indo com e para além
de Kant, é possível pensar em uma nova ontologia, como teoria do real, nem das
coisas em si, nem somente das formas subjetivas da experiência, mas que tenha
algo a dizer sobre os objetos da experiência, ainda em relação necessária ao
sujeito. Indubitavelmente, espaço e tempo são os problemas principais: residem
no sujeito de experiência, mas somente nele? O que seriam para além de intuições
sensíveis, mesmo que sejam intuições sensíveis, mas nem conceitos nem coisas?
Que espaço e tempo sejam formas puras da sensibilidade consiste em uma
afirmação dogmática e reflexiva, imanente, que tem como finalidade manter as
reflexões sobre o tempo e o espaço na imanência, como uma forma da estrutura da
experiência humana, de modo a prevenir de se considerá-lo absolutamente ou
como uma coisa em si mesma. Ao contrário do dogmatismo negativo do
idealismo material, a afirmação de que fora da sensibilidade humana espaço e
tempo não são nada não significa sustentar que a realidade só existe espaço-
temporalmente, mas, inversamente, que a estrutura espaço-temporal só pode ser
imputada, necessariamente, ao modo de conhecer do homem. No entanto, esse
dogmatismo negativo não abre espaço para pensar o tempo nem como intuição
sensível, nem como coisa em si.
Desse modo, é preciso distinguir entre o dogmatismo negativo de reforçar
as fronteiras da razão, atestadas positivamente no próprio modo de conhecer, uma
posição de fato ambígua em que a crítica se encontra, do dogmatismo negativo de
derivar ilegitimamente do modo de conhecer afirmações sobre o que os seus
elementos - que de fato não sabemos o que realmente são para além do nosso
interior e da nossa própria “realidade” – não são.
Não muito após a afirmação negativa de que espaço e tempo não são nada,
Kant se contradiz, demonstrando desconfianças quanto a esse dogmatismo
negativo, e abrindo para si mesmo, novamente, as possibilidades do pensamento.
Kant escreve nos Fundamentos Metafísicos da Ciência Natural (1786), referindo-
se ao espaço: “deixamos aqui completamente de lado a questão se essa forma
também pertence em si mesma ao objeto externo a que denominamos matéria, ou
permanece apenas na constituição do nosso sentido.”
282
O novo dogmatismo de Kant é um empreendimento inovador, cujo ponto
forte é a síntese crítica de dogmatismo e ceticismo, que estabelece os alicerces
para uma nova teoria positiva sobre o homem e a natureza. Entretanto, peca não
ao sustentar as fronteiras da razão, que se apóiam no próprio modo de conhecer,
mas ao sustentar o dogmatismo negativo que dizer o que não é aquilo que não
sabemos o que é, em vez de – como de toda maneira, é o “espírito” da filosofia de
Kant - instigar o conhecimento a superar cada vez mais os seus limites sem
ultrapassar as suas fronteiras.
5.3
Reflexão e Autoconhecimento
282
KANT, I. “Metaphysical Foundations of natural science” Em: Theoretical Philosophy after
1781. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 194: Ak 4: 481.
Na filosofia moderna, a reflexão é fundamentalmente a capacidade de
pensar a si mesmo, pela qual o homem é capaz de tornar-se sujeito e objeto do
pensamento. Pode-se pensar que esta capacidade considerada distintiva do ser
humano é um ponto de partida da filosofia crítica, sem a qual uma autocrítica da
razão não seria possível. Basicamente, a reflexão é a capacidade do raciocínio de
estender-se e regressar a um fenômeno pensado, a uma dada experiência
283
. Kant
denomina este ato de reflexão lógica
284
, que consiste em uma mera comparação
de conceitos, na qual esses são tratados como homogêneos “no que respeita ao seu
lugar no espírito”.
No entanto, a filosofia crítica se ocupa da reflexão transcendental. Essa
consiste não só em refletir sobre uma representação, mas sim em referir uma dada
representação às suas condições subjetivas, de modo a descobrir o seu lugar de
origem, se provém da sensibilidade ou do entendimento. No apêndice à Analítica
Transcendental, Kant escreve:
A reflexão (reflexio) não tem que relacionar-se com os próprios objetos, de
modo a adquirir conceitos diretamente deles, mas é na verdade o estado de espírito
em que primeiramente nos preparamos a descobrir as condições subjetivas sob as
quais podemos chegar a conceitos. É a consciência da relação das representações
dadas às nossas diferentes fontes de conhecimento, unicamente pela qual pode ser
determinada corretamente a relação entre elas. A primeira questão anterior a
qualquer tratamento subseqüente das nossas representações é a seguinte: A que
faculdade pertencem? É no entendimento ou nos sentidos em que são ligadas ou
comparadas?
285
Como sujeito da reflexão, o homem é o ponto necessário do seu
movimento, ou seja, o homem deve se levar em conta, ou estar pressuposto,
283
A reflexão é “Propriamente, o retorno do pensamento sobre si próprio, que toma por objeto um
dos seus atos espontâneos ou um grupo dos mesmos.” LALANDE, A. Vocabulário Técnico e
Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 935.
284
Kant apresenta em suas lições de Lógica o papel que a reflexão desempenha, junto à
comparação e à abstração, na própria formação dos conceitos. Primeiramente, comparo entre
muitas representações somente o que é uma repetição uma da outra, então, reflito sobre o que elas
têm em comum, e, finalmente, através da abstração, retiro delas o que não têm de acordo, para,
então, permanecer uma repraesentatio communis. Cf. KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge:
Cambridge University Press, 2004, pp. 352-53. The Vienna Logic, 909. Segundo
LONGUENESSE, a comparação (reflexão) lógica do Apêndice à Lógica Transcendental não é
“até onde sei, nunca relacionada às operações de comparação, reflexão e abstração discutidas na
Lógica.” Longuenesse, então, busca estabelecer a sua relação, a qual julga que seria para Kant,
apesar de jamais demonstrá-la, auto-evidente. Cf. LONGUENESSE, B. Kant and the Capacity to
Judge. Princeton: Princeton University Press, 2000, p. 115.
285
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 366: A
260 / B 316.
naquilo sobre o que reflete. Por isso a reflexão é a condição de possibilidade de
pensar a si mesmo, de modo a fazer com que apareça o homem que pensa e se
relacionem os raciocínios ao seu sujeito e fundamento.
A reflexão se ocupa desse autoconhecimento e, a partir dele, de regular o
bom uso do entendimento. Através da reflexão transcendental, o questionamento
sobre qual é a fonte de uma representação dada, Kant entende conferir validade
objetiva a uma representação (caso provenha de uma intuição sensível). Na falta
de reflexão transcendental, abre-se espaço para a anfibolia, ou a ilusão sobre as
fronteiras de cada faculdade:
Seja-me permitido dar o nome de lugar transcendental à posição que
atribuímos a um conceito, quer na sensibilidade, quer no entendimento puro. Da
mesma maneira, a determinação dessa posição que pertence a cada conceito, de
acordo com a diversidade em seu uso, e a orientação para determinar esse lugar para
todos os conceitos segundo regras, seria a tópica transcendental; uma doutrina que
nos protegeria exaustivamente das falsas pretensões do entendimento e das ilusões
daí resultantes, porquanto sempre distinguiria à qual faculdade os conceitos
pertencem propriamente.
286
Para deslindar os abusos que o raciocínio comete sub-repticiamente, e põem
obstáculos ao conhecimento, dos usos legítimos do juízo e do raciocínio, Kant
prescreve a reflexão transcendental, como uma tarefa constante. Entretanto, a
reflexão transcendental pressupõe o conhecimento da estrutura do modo de
conhecer e das fronteiras entre cada poder cognitivo. Com efeito, para
fundamentar e estabelecer um critério para a crítica a esses abusos, deve haver
uma reflexão definitiva, sobre as fontes da objetividade; sobre o juízo e raciocínio
corretos em sua extensão de validade. Essa é uma investigação sobre o modo de
conhecer, um esclarecimento de si para si que determina o domínio legítimo e as
fronteiras intrínsecas do conhecimento, reflexão - fundamental a uma autocrítica
da razão - que se pode denominar de reflexão da razão (tanto em sentido lato,
entendida como o modo de conhecer como um todo, quanto em sentido restrito,
como faculdade, a qual visa conferir unidade ao conhecimento humano). KANT
escreve que, para responder às quatro questões fundamentais da filosofia, o
filósofo deve ser capaz de determinar:
1. as fontes do conhecimento humano,
286
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 371: A
268 / B 324.
2. a extensão do uso possível e proveitoso de todo o conhecimento humano, e
finalmente
3. os limites da razão.
287
A autocrítica da razão exige a sua capacidade de pensar a si mesma. Assim,
a razão precisa experimentar-se através da reflexão, buscar o que dela aparece de
si para si. Essa reflexão da razão almejada por Kant é o fundamento e o critério da
filosofia crítica, sobre a qual se estabelece a possibilidade de determinação da
extensão bem como das fronteiras do conhecimento humano. A autocrítica
pressupõe a unidade da razão tanto na sua pluralidade quanto em sua capacidade
de se duplicar, i.é., de ser sujeito e objeto de investigação.
Dessa maneira, na autocrítica da razão todo juízo deve estar acompanhado
da reflexão, sendo um movimento incessante do qual é possível provir a sua
abrangência. A reflexão ocupa nenhum território específico, mas transita entre as
faculdades do conhecimento para descobrir a origem dos juízos. A reflexão não
detém um lugar determinado; é apenas uma atividade determinada. Pode-se pensar
que a utopia da razão consiste em que, apesar de se impor como legisladora para
todo o conhecimento, não é capaz de fazê-lo absolutamente, de uma vez por todas.
A razão precisa sempre refletir, em uma tarefa constante, sem que se situe
definitivamente em nenhum lugar. O homem deve sempre percorrer a si mesmo
em uma tarefa infinita, pois, na base de suas determinações, do seu
autoconhecimento, está o desconhecimento fundamental sobre si mesmo e sobre a
fonte dos seus poderes cognitivos. KANT escreve:
Se o indivíduo obtém experiência interior de si mesmo, e se perseguir essa
investigação o tanto quanto puder, deverá confessar que o autoconhecimento levaria
a uma profundeza imperscrutável, a um abismo na exploração da sua natureza.
288
O autoconhecimento não chega ao fim, pode-se sempre ir mais adiante, ao
passo, no entanto, que suas forças vão se esvaindo. Há limites, áreas
imperscrutáveis no conhecimento de si mesmo, contudo, é preciso investigar-se.
Adorno enxerga nessa obrigatoriedade do autoconhecimento um elemento
de ideologia que complementaria as teorias kantianas. A idéia de que, como um
287
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 538 [Lógica
Jäsche, 25].
288
KANT, I. Anthropology from a Pragmatic Point of View. Cambridge: Cambridge University
Press, 2006, p. 30n.
objeto do conhecimento, o mundo parece ser um mundo humano, o nosso mundo,
deixa de lado o fato de que vivemos na heteronomia e não conhecemos a essência
das coisas. Assim, o conhecimento seria apenas uma tautologia
289
, e somente pela
reflexão o sujeito – como o fundamento da verdade - seria capaz de obter um
conhecimento verdadeiro. Dessa maneira, para ADORNO, insistir no
autoconhecimento seria uma:
(...) expressão de confinamento: como sujeitos cognoscentes, conhecemos
somente a nós mesmos. Nesse sentido não somos nunca capazes de sair de nós
mesmos; estamos aprisionados em nós mesmos.
290
A busca do autoconhecimento é capaz de possibilitar mudanças na
interpretação e formação de si mesmo, embora não possa ser desvinculada do
conhecimento do mundo. Não há como conhecer a nós mesmos sem conhecer o
mundo em que vivemos. Se a reflexão por si só não é suficiente para conhecer as
coisas, e tão-somente refletir pode levar ao isolamento, entretanto, a falta de
reflexão é uma via mais direta, e a sua completa ausência, mais certa, à alienação.
Adorno critica a insistência na reflexão por através dela se supor conhecer o
mundo sem, no entanto, investigá-lo de fato. Assim, a reflexão ocuparia o lugar,
na “teoria do conhecimento”, que o conhecimento divino ou a intuição intelectual
ocupa na metafísica dogmática. Ou seja, o homem crê conhecer as coisas sem sair
de si, aprisionado em uma cosmologia antropomórfica. Que o conhecimento de si
seja a meta final e mais elevada do conhecimento não pode significar um
aprisionamento em si mesmo, a assiduidade consigo próprio, mas, pelo contrário,
levar a uma atitude de conhecimento do mundo a qual o autoconhecimento é
capaz de orientar.
Nesse sentido, para Kant o “mundo” não é uma coisa em si, mas sim o
conjunto de todos os fenômenos. E só podemos conhecê-lo na medida em que nos
está relacionado, determinado pela nossa mediação com ele. Sendo o mundo ou a
natureza o domínio dos fenômenos, e não da coisa em si, a mediação é a sua
marca inseparável. Todos os princípios, que envolvem intuições, juízos e
289
Segundo Adorno, Kant é consciente do “(...) problema do conhecimento como uma tautologia,
quer dizer, o problema de que se tudo que conhecemos é basicamente nada senão uma razão
cognoscente, o que temos não é um conhecimento real, mas apenas um tipo de reflexão da razão.”
ADORNO, T. W. Kant’s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press, 2001, p.
69.
290
ADORNO, T. W. Kant’s Critique of Pure Reason. Stanford: Stanford University Press, 2001, p.
137.
raciocínios, trazem consigo a especificidade humana, sendo compostos de uma
síntese de sensibilidade e entendimento, mas não representam uma continuidade
da razão humana com uma suposta razão absoluta. Para Kant, essa característica é
uma verdade fundamental do conhecimento humano. KANT escreve:
Que em todo tipo de conexão no mundo sensível não há nunca uma coisa
absolutamente primeira, portanto que nenhuma infinidade possa ser representada
como inteiramente dada, e conseqüentemente que não há uma totalidade absoluta,
prova que o absoluto deve ser pensado como fora dele, e que o próprio mundo
existe somente em relação aos nossos sentidos.
291
Essa é a perspectiva da filosofia moderna, na qual o sujeito é o fundamento
do conhecimento e da verdade. “O próprio mundo existe somente em relação aos
nossos sentidos”, mas, inversamente, só conhecemos a nós mesmos em nossa
relação com o mundo. Apenas uma reflexão da razão não é capaz de conhecer a
natureza. Esse limite da reflexão está expresso na formulação de Kant de que, sem
a referência a uma intuição sensível, não há conhecimento. A crítica de Adorno ao
imperativo autoconhecimento reside em que o homem constitui-se em relação
com o mundo, e não somente a partir de si mesmo, como sujeito de uma pretensa
liberdade absoluta e fundada em si mesma.
A capacidade reflexiva do homem, na filosofia moderna, tem como base a
duplicação do homem em sujeito empírico-transcendental, o que Foucault designa
de “postulado antropológico”
292
. Esse postulado é um recurso pelo qual o
homem, seria capaz de explicar tudo através de si mesmo; o mundo pelo seu
modo de conhecer, o seu modo de conhecer pelo mundo. A reflexão – que se
instaura como a única tarefa do entendimento quando o homem constitui-se como
o “campo de conhecimento” definitivo e necessário –, pela qual o homem crê
poder retirar tudo de si, seria a expressão de um novo sopor dogmático, o “sono
antropológico”, que se instala no pensamento, sobretudo, a partir do Século XIX:
(...) no início do século XIX, apareceu esse projeto muito curioso de
conhecer o homem. (...) Até o final do século XVIII, quer dizer, até Kant, toda
reflexão sobre o homem é uma reflexão segunda em relação a um pensamento que,
ele, é o primeiro e que é, digamos, o pensamento do infinito. Tratava-se sempre de
responder a questões tais como esta: dado que a verdade é o que ela é, ou que a
matemática ou a física nos ensinaram tala e tal coisa, como acontece de
percebermos como percebemos, conhecermos como conhecemos, de nos
enganarmos como nos enganamos?
291
KANT, I. Notes and Fragments Cambridge: Cambridge University Press, 2005, pp. 317-18.
Reflexão 5968, Ak 18:407-8.
292
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 443.
A partir de Kant acontece uma reviravolta, quer dizer: não é a partir do
infinito ou da verdade que se vai colocar o problema do homem como uma espécie
de problema de sombra projetada; a partir de Kant, o infinito não é mais dado, não
há senão a finitude, e é neste sentido que a crítica kantiana levava consigo a
possibilidade – ou o perigo – de uma antropologia.
293
Com o “aparecimento do homem” na modernidade, com o pensamento do
finito a partir dele próprio, e não mais no interior do infinito, “todo o campo do
conhecimento ocidental foi invertido”. Desse modo, instala-se uma “referência
duplicada”
294
, sem o homem precisar jamais sair de si:
(...) para o pensamento moderno, a positividade da vida, da produção e do
trabalho (que têm sua existência, sua historicidade e suas leis próprias) funda, como
sua correlação negativa, o caráter limitado do conhecimento; e, inversamente, os
limites do conhecimento fundam positivamente a possibilidade de saber, mas numa
experiência sempre limitada, o que são a vida, o trabalho e a linguagem.
295
O homem, ao situar-se como lugar privilegiado do conhecimento, onde esse
se funda, é capaz de se deslocar e se desprender do mundo, inclusive de si mesmo,
como ser da e na natureza que é (e da própria razão em seu substrato natural), e
chegar mesmo a entender-se como a sua própria raiz. Esse sopor consiste em ser
capaz de enxergar somente através de si, pensar a partir de si. A partir do Século
XIX, não mais se busca catalogar a natureza como um todo, mas a natureza no
homem e, ainda por cima, na simplicidade de alguma experiência científica ou de
um museu antropológico
296
. Deseja-se inventariar a natureza humana, não medir a
sua alma ou a sua participação divina, e sim os modos da sua inteligência e da sua
força anímica. Busca-se, então, uma “metafísica” do homem, “da vida, do trabalho
e da linguagem”, em um dogmatismo ainda mais ingênuo, pois pretensamente
crítico. Ancorado em uma natureza humana, repartida entre os correlativos
empírico-transcendental, esse dogmatismo é capaz de se mascarar sob o
empirismo bem como sob o racionalismo (entre os quais se reveza), como Bacon
já acusava.
A crítica de Foucault de um sono antropológico consiste em determinar, de
forma inócua, um “campo” privilegiado de conhecimento – o próprio homem -, e
293
FOUCAULT, M. “Filosofia e Psicologia”. Em: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, Vol. I. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2006, pp.228-29.
294
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 436-38.
295
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 436.
296
A esse respeito, cf. ZIMMERMAN, A. Anthropology and Antihumanism in Imperial Germany.
Chicago and London: The University of Chicago Press, 2001.
se prender nele, quando, de fato, essa determinação já caracteriza uma prisão pra o
pensamento. Desse modo, para Foucault, despertar desse sono antropológico, tão
profundo que se apresenta como vigília, significa ser “de novo possível pensar”
297
.
Em Kant, que o autoconhecimento seja a meta mais elevada do
conhecimento significa que a ilusão está em conexão necessária com o homem,
mas não que a toda a verdade reside nele, mas somente as suas condições de
possibilidade. Investigar a fonte da objetividade e da ilusão, centradas no sujeito,
é para Kant, primeiramente, uma propedêutica ao conhecimento da natureza. Não
se pode conhecer a natureza tão-somente através do homem. Para Kant, o
conhecimento de si do homem deve estar subjacente a uma ciência da natureza.
Desse modo, a antropologia filosófica, finalmente, seria capaz de dar um
acabamento ao conhecimento humano, aproximando o autoconhecimento ao
conhecimento da natureza. Para Foucault, o sono antropológico do conhecimento,
no entanto, opera um “Quádruplo deslocamento em relação à questão
kantiana
298
,”
pois que se trata não mais da verdade, mas do ser; não mais da natureza,
mas do homem; não mais da possibilidade de um conhecimento, mas daquela de
um desconhecimento primeiro; não mais do caráter não-fundado das teorias
filosóficas em face da ciência, mas da retomada, numa consciência filosófica clara,
de todo esse domínio de experiências não-fundadas em que o homem não se
reconhece.
299
O despertar do sopor dogmático-antropológico requer não “fazer valer, no
homem, o empírico pelo transcendental”
300
. A investigação transcendental deve
orientar o conhecimento empírico de si e da natureza, em vista de unificá-los, haja
vista ser o homem um misto de natureza e liberdade; fundamento sobre o qual se
apóia o “postulado antropológico”. A distinção entre o empírico e o
transcendental deve auxiliar o homem a compreender a si mesmo, à sua existência
na natureza, em vez de fazê-lo perder-se nela. Ou seja, não enxergar a si mesmo
como um ser acabado, desvinculado da natureza, e enxergá-la somente como o
297
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 473.
298
“1. Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que me é permitido esperar? 4. Que é o homem?
(...) A metafísica responde à primeira questão, a moral a segunda, a religião a terceira, e a
antropologia a quarta. Fundamentalmente, entretanto, podemos considerar tudo isso como
antropologia, porque as três primeiras perguntas se relacionam com a última.” KANT, I. Lectures
on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 538 [Lógica Jäsche, 25].
299
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 446.
300
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 443.
outro, e sim se reconhecendo como liberdade e espontaneidade geradas no seio da
natureza.
Só conhecemos a nós mesmos através da nossa relação com o mundo, e, o
que a filosofia crítica de Kant ensina, de fato, é que só podemos conhecer o
mundo do ponto de partida inevitável que é o nosso modo de conhecer. Assim,
para Kant, cabe à reflexão a tarefa constante de destituir as ilusões do
conhecimento, assegurando as suas fronteiras bem como a sua legitimidade, e a
autocrítica de uma reflexão da razão, a busca do autoconhecimento do próprio
modo de conhecer, como uma propedêutica à investigação segura e confiável da
natureza.
5.4
A História da Razão Pura
No quarto capítulo da Doutrina Transcendental do Método, “A história da
razão pura”, Kant esboça as diferentes idéias em relação ao objeto, à origem e
ao método dos conhecimentos racionais que ocasionaram as principais
revoluções na metafísica.
A crítica é a época de maturidade da razão e a “única via ainda aberta”; a qual
demonstra ser o objeto e a origem da metafísica o próprio sujeito de
conhecimento. O método da metafísica, de acordo, deve ser subjetivo, uma
investigação analítica no lugar da especulação e do procedimento sintético sem
autocrítica. A história da razão pura é a superação de dogmatismo e ceticismo
tomados universalmente, assim como de racionalismo e empirismo irrestritos
no tocante ao objeto e origem do conhecimento.
Desse modo, pode-se pensar que “(...) foi imperioso ter nascido o dogmatismo,
a partir deste o ceticismo, e de ambos o criticismo”
301
devido à necessidade da
razão pura investigar a razão pura; não só o caminho em direção ao
autoconhecimento é a marca distintiva da História da Razão Pura, como ainda
cada uma das suas etapas consiste em um desenvolvimento - a não ser
descartado - da razão em busca de si mesma.
Para Kant, à medida que a crítica se volta para a história da metafísica, está
lidando com a atualidade da razão. A história da razão pura é um
desenvolvimento presente da razão, e não somente histórico. Na totalidade de
um único momento, estão os métodos do dogmatismo, do ceticismo, as
posturas racionalista e empirista, e a crítica. A história da razão pura é
dinâmica na atualidade, na qual todas as suas formas estão sempre presentes e
em necessidade de constante esclarecimento.
301
KANT, I. Os Progressos da Metafísica. Lisboa: Edições 70, 1995, p.131. Ak 20:342.
A perspectiva transcendental, pela qual Kant é capaz de conhecer a natureza
da razão, de atingir a sua consciência crítica, consiste em julgar, da sua história
empírica, o que realmente lhe pertence; em considerar, a partir das suas disputas
históricas, quais das suas teses se aproximam da sua essência, quais conflitos na
verdade representam uma relação de forças da sua natureza.
Os conflitos da história da filosofia e da história da razão interagem e
auxiliam o conhecimento de si do homem. Para Kant, o conhecimento de si do
homem não se restringe à introspecção de um pensador individual. O filósofo
encontra na história do conhecimento e da cultura uma repetição de conflitos e
crises, que evidenciam um movimento dialético ou uma antitética. Esta apresenta
o desenvolvimento das possibilidades da razão, que lhe auxiliam a conhecer o
modo como o conhecimento humano está estruturado e limitado pela sua natureza.
A partir dessa visão de conjunto, dessa reflexão da razão sobre si, sobre o
seu percurso e desenvolvimento histórico, Kant acredita penetrar na natureza da
razão humana - cujas próprias idéias suscitariam esse desenvolvimento - e, ao
mesmo tempo, só pode ser desvelada a partir dele. Desse modo, como a História
da Razão Pura está inscrita nos caminhos da própria razão humana, mas não sem
relação com determinados momentos históricos, nota-se como é um campo
privilegiado para pensar a relação, na história, entre necessidade a priori com
determinações contingentes a posteriori.
A história da razão pura é uma história transcendental da razão. Do ponto de
vista transcendental, pertenceria à razão um desenvolvimento progressivo inserido
na sua natureza. Do mesmo modo que em seu curso a razão exige o
incondicionado, junto ao condicionado, como igualmente dado – e assim
inevitavelmente cai em antinomias -, no curso dos seus usos está a seqüência
dogmatismo – ceticismo – criticismo. Assim, os usos da razão, empíricos, não
seriam “livres”, mas determinados pela natureza transcendental da razão.
A contraparte empírica da história transcendental da razão seria a própria
história da filosofia. A história empírica e a história transcendental da razão teriam
uma relação dialética. São rigorosamente inseparáveis uma da outra, pois o seu
desenvolvimento é paralelo: na medida em que o transcendental é o “substrato”
dos usos empíricos da razão, mas é somente por esses usos que a razão pode
conhecer, ou melhor, refletir – reconhecer a natureza transcendental em seus
raciocínios; e, além do mais, pode-se afirmar que essa unidade é o que constitui o
próprio conhecimento.
Do mesmo modo que conhecimentos a priori e a posteriori referem-se
unicamente à experiência, a história traz consigo a unidade dialética do empírico e
do transcendental, tanto em sua convergência, quando de fato se aproxima, ao
menos de um aspecto, da natureza da razão, quanto em sua disparidade, como a
fonte dos conflitos que levam a se buscarem novas possibilidades para o
pensamento, no caminho para compreender a razão em sua totalidade.
A história da razão pura, na passagem do tempo, se repete e se renova; na
atualidade, todas as suas possibilidades estão presentes. Dessa forma, a história da
razão pura tem início com a experiência, mas não é retirada da experiência.
Portanto, a história da razão pura seria independente da experiência, da história
empírica, assim como espaço, tempo e as categorias do entendimento são
independentes dos fenômenos, mas estão na sua estrutura e são a sua condição de
possibilidade.
Pode-se pensar que as idéias que giram em torno e se debatem na história da
filosofia são extraídas da natureza da razão humana: é essa a principal fonte e
origem das idéias, não o tempo ou a história. O tempo deixa de ser um índice para
a complexidade da estrutura da razão humana, uma vez constituída. Assim, a
circunstância histórica, e a particular de um indivíduo, costumam guiar o modo
como são utilizadas as idéias e para quais fins são usadas, mas elas mesmas
mantêm uma unidade no tempo e provêm de uma necessidade racional.
Fogelin trata de uma “História Natural da Filosofia de Hume”
302
, a qual
explicaria as posições filosóficas por operações da mente humana e as ficções
filosóficas pelos seus princípios. A fonte e a origem das idéias têm relação com a
estrutura e o funcionamento da mente, em vez de serem fruto de uma pura
abstração ou inventividade. A disputa entre doutrinas filosóficas levaria, para
Hume, ao ceticismo, e, ao que parece, também para Fogelin. O tema de uma
história natural da filosofia não é muito desenvolvido por este autor, mas sim os
argumentos de Hume para explicar as idéias dos filósofos pelas operações da
mente. O que é interessante de uma “História Natural da Filosofia” é justamente a
consideração do aspecto natural da história da filosofia e das idéias filosóficas,
302
FOGELIN, R. J. Hume’s Skepticism in the Treatise of Human Nature. London: Routledge &
Kegan Paul, 1985, pp. 80-92.
i.e., a consideração de que essas têm um esteio na natureza da mente. Assim como
Hume, Kant considera que uma História da Razão Pura esteja no bojo da história
da filosofia e que o caráter do modo de conhecer defina decisivamente o
conhecimento que se produz. KANT escreve:
Os homens, enquanto indivíduos, e mesmo povos inteiros mal se dão conta de
que, enquanto perseguem propósitos particulares, cada qual buscando seu próprio
proveito e frequentemente uns contra os outros, seguem inadvertidamente, como a
um fio condutor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para
a sua realização, e, mesmo que conhecessem tal propósito, pouco lhes importaria.
(...) Como o filósofo não pode pressupor nos homens e seus jogos, tomados em
conjunto, nenhum propósito racional próprio, ele não tem outra saída senão tentar
descobrir, neste curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que
possibilite todavia uma historia segundo um determinado plano da natureza para
criaturas que procedem sem um plano próprio.
303
Pode-se traçar um paralelo entre o princípio reflexivo de uma teleologia da
natureza para o curso dos homens e a idéia de uma causalidade na natureza da
razão para a história da filosofia. Os filósofos, ao seguirem os seus raciocínios e
buscarem os seus fins próprios, na verdade caminham para a realização da razão
humana. Cada qual, um em oposição aos outros, servem aos propósitos da razão
universal, ao desvelamento da sua natureza, e seguem, inadvertidamente, um
plano que lhes é desconhecido, e mesmo que conhecessem em nada iria se alterar.
KANT escreve:
Em complemento à propriedade da autoconsciência, pela qual o homem
deve ser distinguido sobre todos os demais animais, e em virtude da qual é um
animal racional (...), há também uma coceira para usar esse poder para a
frivolidade, e daí a ser frívolo sistematicamente e até por meros conceitos, i.e., a
filosofar, e então polemizar com os outros através da sua filosofia, i.e., a disputar, e
já que isso não acontece sem emoção, ao bate-boca, em respeito à sua filosofia, e,
finalmente, unidos em massa uns contra os outros (escola contra escola, como
exércitos rivais), a guerrear; esta coceira, digo, ou melhor, impulso, deve ser visto
com um arranjo benéfico e sábio da natureza, pela qual ela busca proteger os
homens de apodrecer em carne viva.
304
O filosofar, pelo qual o homem exercita suas capacidades racionais, o leva a
disputar em guerras filosóficas, que, entretanto, têm o aspecto positivo de
“proteger os homens de apodrecer em carne viva”. O filosofar representa, pode-se
afirmar, um acesso a um poder fundamental que é a razão humana. Desse modo,
as guerras filosóficas, todas elas, retiram sua matéria exclusivamente da própria
303
KANT, I. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Martins
Fontes, 2004, p. 10.
304
KANT, I. “Proclamation of the Imminent Conclusion of a Treaty of Perpetual Peace in
Philosophy” Em: Theoretical Philosophy After 1781. Cambridge: Cambridge University Press,
2002, p. 453 [Ak 8:414].
razão, e tem como objeto, o que não pode ser reconhecido senão pela crítica, a
própria razão humana.
Nesse sentido, a história da razão pura narra reanimações sucessivas de
idéias e maneiras de pensar que, pensadas como um todo, dizem respeito à própria
razão em sua totalidade. Entretanto, em vez de se entender a história da razão pura
como um movimento cíclico de idéias, pode-se pensá-la como uma história que se
repete e se mantém a mesma, sendo esse dinamismo de idéias próprio à natureza
da razão. A história da razão pura é a história das condições do pensamento
humano, mas não uma determinação absoluta das suas possibilidades. KANT trata
“De uma História Filosofante da Filosofia”:
Todo o conhecimento histórico é empírico e, por conseguinte, conhecimento
das coisas como são; não de que elas devam necessariamente ser assim. O
conhecimento racional apresenta-as de acordo com a sua necessidade. Portanto uma
apresentação histórica da filosofia relata como o filosofar tem sido feito até agora, e
em que ordem. O filosofar, porém, é um desenvolvimento gradual da razão humana,
e não pode ter sido promulgado, ou mesmo começado, na via empírica, e mediante
simples conceitos. Deve ter havido uma necessidade (teórica ou prática) da razão
que o compeliu a ascender dos seus juízos sobre as coisas aos seus fundamentos, até
ao primeiro, inicialmente através da razão comum, p.ex., a partir dos corpos
mundanos e do seu movimento. Mas também se encontraram finalidades: e,
finalmente, desde que foi percebido que se podem procurar fundamentos racionais
em relação a todas as coisas, um começo foi feito com a enumeração dos conceitos
da razão (ou os do entendimento) de antemão, e com a análise do pensamento em
geral, sem qualquer objeto. O primeiro foi feito por Aristóteles; este último ainda
mais cedo pelos lógicos.
305
O filosofar enquanto atividade, exercício do pensamento, já representa em
si mesmo um “desenvolvimento gradual da razão humana” que deve ter no seu
início a liberdade ou a espontaneidade que caracterizam a razão pura, e ele mesmo
é um “desenvolvimento gradual da razão humana”, que tende para o seu
conhecimento de si. A atividade livre do filosofar tem em seu âmago a
espontaneidade da razão humana. Enquanto a história da filosofia é empírica, o
filosofar é uma necessidade alocada na razão, que perpassa a história e as suas
condições particulares. Para KANT:
Uma história filosófica da filosofia é ela mesma possível, não histórica ou
empiricamente, mas racionalmente, isto é, a priori. Pois embora estabeleça fatos da
razão, não os toma emprestado da narrativa histórica, mas extrai-os da natureza da
razão humana, como arqueologia filosófica.
306
305
KANT, I. “What real progress has metaphysics made in Germany?” Em: Theoretical
Philosophy After 1781. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 417 [Ak 20:340].
306
KANT, I. “What real progress has metaphysics made in Germany?” Em: Theoretical
Philosophy After 1781. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 417 [Ak 20:341].
Desse modo, uma “arqueologia filosófica” tem em vista a história “(...) não
das opiniões que ocasionaram aparecer aqui ou ali, mas da razão desenvolvendo a
si mesma por conceitos.”
307
O filosofar, embora tenha a razão como sua fonte,
não representa necessariamente a natureza da razão, mas, enquanto exercício livre,
não é determinado exclusivamente pela natureza da razão
308
.
O que se pode considerar imperativo, ao se pensar na história filosófica da
filosofia, é desvencilhar da narrativa do desenvolvimento da razão uma narrativa
rigorosamente cronológica. Se este desenvolvimento da razão, no qual o
dogmatismo marca a infância, o ceticismo uma meia-idade e uma época de crise, e
o criticismo a maturidade do filosofar, não for considerado definitivo, mas sim
volátil, então seria preciso conceber todo dinamismo possível nesse
desenvolvimento. Em vez de se pensá-lo tão-somente como uma evolução linear,
seria possível dar voltas, manter regiões isoladas, e todo tipo de anacronismo.
Como a história da razão pura é a contraparte transcendental da história da
filosofia, bem como do filosofar, de possibilidades para a condução do espírito, a
filosofia crítica de Kant, desse modo, transporta a história da filosofia em sua
visão geral para razão em sua totalidade. Nesse sentido, pode-se duvidar de uma
conversão permanente, definitiva, da inteligência, e pensar que só pode haver uma
conversão sempre recorrente, que é a própria filosofia.
A noção de que a história da razão pura está presente na atualidade é uma
idéia que retira a fixidez da forma cronológica de pensar os métodos possíveis do
conhecimento e acentua a presença dinâmica de cada um deles na atualidade.
Dogmatismo, ceticismo e criticismo estariam presentes na totalidade da esfera da
razão em qualquer dado momento. Isso significa que não haveria filósofos ou
indivíduos nem exclusivamente dogmáticos, nem céticos nem críticos – a
identificação pessoal irrestrita com estes métodos diria respeito somente à
307
KANT, I. “What real progress has metaphysics made in Germany?” Em: Theoretical
Philosophy After 1781. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 419 [Ak 20:343].
308
Por exemplo, o pensamento não está desvinculado nem da intuição, dos fatos empíricos, nem
dos sentimentos. Não se pode pensar, inclusive, necessário ter em vista que o conhecimento de si
do homem guarda relação com o sentimento de prazer e de desprazer? O sentimento não pode ser
alterado, engrandecido e até negado, na sua conexão ao conhecimento ou à ignorância de si? Mais
que somente estar relacionado à consciência, o sentimento de prazer e de desprazer pode despertar
o homem para o autoconhecimento ou mantê-lo na ignorância de si mesmo, pode tanto levá-lo a
reconhecer o modo como funciona e quanto à assunção de que desconhece seu próprio mecanismo.
Nesse sentido, o filosofar, pode, em seu curso, alterar o seu caminho, olvidar do seu ponto de
partida, etc.
ignorância de si mesmo. À falta de autoconhecimento, o dogmático não saberia
que também possui raciocínios céticos e críticos, e o crítico esqueceria do seu
próprio quinhão de ceticismo e dogmatismo, ou desejaria esquecê-los. O que faz a
diferença não é a identidade pessoal, considerar-se dogmático, cético ou crítico,
mas sim o grau com que cada método está presente na consciência, e qual deles é
o mais ativo e acentuado.
Para Jaspers, a consciência histórica de Kant é um dos limites da sua
filosofia
309
. Sobretudo, pode-se afirmar que a consciência histórica na filosofia de
Kant é paradoxal. Se por um lado entende que representa a modernidade, que a
caracteriza em sua novidade, por outro lado reflete apenas sobre o que a
atualidade tem de atemporal. Kant crê capturar, a partir da sua situação atual, o
universal e necessário em toda passagem e movimento da história. KANT
escreve: “Tudo transitório é uma coisa contingente, mas não o próprio
transitório.”
310
Kant pensa na história bem como no futuro somente em relação às
tarefas transcendentais que se apresentam ao homem, pela sua própria natureza,
para realizar sua humanidade.
Nesse sentido, a história da razão pura pode ser entendida como a rejeição
de um progresso no homem. A passagem da heteronomia à autonomia, por
exemplo, seria um progresso? Pode-se considerar tal passagem como uma tarefa
atemporal do ser humano, pela qual não passa a ser algo mais que somente ele
próprio, mas apenas toma consciência e busca realizar as tendências que lhe são
inerentes como homem. Pode-se afirmar que a progressão de desmoronamentos de
“edifícios” filosóficos, todos eles compromissados em dar razão para o saber e
explicar o ciclo da vida e da existência humana, com a filosofia crítica de Kant se
desloca para a realidade da consciência não mais tomada abstratamente, desligada
da sua conexão ao corpo e ao seu inevitável desfalecimento. Assim, a analítica da
finitude, a base da investigação crítica, tem em Kant o desdobramento de ser
possível pensar na vida da razão.
Não somente o conhecimento, a razão está determinada pela finitude, como
ainda o “progresso” do ser humano opera tão-somente como uma repetição, como
começo e fim de novos ciclos. Em contraparte, o progresso científico pode se dar
309
JASPERS, K. Kant. San Diego: Harcourt Brace & Company, 1962, p. 146.
310
KANT, I. Notes and Fragments, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 191.
Reflexão 4763 (de 1775-77): Ak 17:720.
in indefinitum - mas não o progresso da humanidade. Por mais que Kant compare
a filosofia ao homem, à razão humana, é preciso distinguir no conceito de
progresso o campo do conhecimento filosófico da dimensão da própria razão
humana. No homem, como não é somente coisa, mas um fim em si mesmo, há um
progresso determinado a priori; da animalidade à humanidade, da heteronomia à
autonomia. Entretanto, o homem como ser misto de natureza e liberdade, não pode
desvencilhar-se completamente, uma vez por todas, da animalidade. Isso significa,
por um lado, que a autonomia não corresponde ao homem estar isento de
determinações naturais, e, por outro lado, que o progresso para a autonomia é uma
tarefa constante de todas as épocas e de todos os indivíduos.
5.5
Filosofia e Filosofar
Se em 1765 Kant afirma que o método da filosofia é propriamente cético,
investigativo, e que deveria dar espaço somente a um dogmatismo local
311
, na
Crítica da Razão Pura essa relação se inverte, sendo procedimento dogmático,
sistemático, o método próprio da filosofia, abarcando um ceticismo local. Pode-se
pensar que essa inversão não é tão-somente definitiva, mas ainda aponta para a
tensão entre o método de investigação essencial ao filosofar e o método para a
exposição da filosofia. O próprio do filosofar é investigar, buscar a abertura de
novas possibilidades para o pensamento, e conceber novas estruturas para
entender a realidade, ao passo que o próprio da filosofia é organizar os resultados
dessa busca, apresentá-los em uma exposição sistemática e coerente. O fim de
toda investigação filosófica é dogmatismo, pois resulta na afirmação de uma
descoberta ou resultado. Para KANT:
(…) se perguntássemos (…) qual método de filosofar seria o mais apropriado
e o melhor para a academia e agradaria a maioria, o dogmático ou o cético?
Então teríamos necessariamente de responder: o dogmático.
Se um erudito aparecesse aqui e estabelecesse algo dogmaticamente em
relação a esse ou aquele conhecimento, então nada poderia ser mais fácil para o
ouvinte [;] ele não precisaria examinar nada, investigar nada, mas tão-somente
guardar em sua memória o pouco que o palestrante fala e expõe a ele. Dessa maneira
ele se mantém completamente em descanso e confortável [;] ele precisa somente da
memória; ao passo que a dúvida sobre um conhecimento é muito menos confortável,
mas, pelo contrário, muito mais perturbadora, e exige do indivíduo a sua reflexão e
investigação.
312
O filosofar expande o pensamento, e leva o homem à saída de si mesmo e a
experimentar a não-identidade, ao passo que a filosofia se ocupa de processar as
experiências do filosofar, reuni-las em um todo e conferir-lhes uma unidade.
Dessa forma, o método crítico deve conciliar o filosofar à filosofia. A filosofia
311
“O método de instrução peculiar à filosofia é cético [zetetic], como alguns da Antigüidade o
chamaram (de zetein). Em outras palavras, o método da filosofia é o método da investigação. É
somente quando a razão já amadureceu, e somente em certas áreas, que este método se torna
dogmático, ou seja, decisivo.” KANT, I. M. Immanuel Kants announcement of the programme of
his lectures for the winter semester 1765-1766. Em: Theoretical Philosophy 1755-1770.
Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 293. Ak 2:307.
312
KANT, I. Lectures on Logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 164-5. The
Blomberg Logic, 208.
exige sistematicidade, coerência, persistência na argumentação e no
esclarecimento de uma posição. O filosofar consiste em notar a diferença entre as
pessoas e as suas percepções, e as de uma pessoa em diferentes circunstâncias; em
refletir sobre a pluralidade do particular e a unidade da totalidade. Dessa forma, é
um exercício de saída de si mesmo, de desapego consigo e das suas próprias
opiniões, que um pensador deve tentar soprar em sua vitalidade e abrangência
para um sistema filosófico se deseja formá-lo. A filosofia é sistemática, busca a
unidade do filosofar, que é livre, ruma ao desconhecido.
Desse modo, há uma dinâmica de expansão e contração na atividade
filosófica, que caracteriza o filosofar como tipicamente cético, e a filosofia como
tipicamente dogmática. A filosofia crítica busca uma comunhão de forças. Não
pode abdicar da sistematicidade e da coerência, do seu caráter propriamente
dogmático, assertivo e discursivo. Dessa forma, deve compor um sistema
dogmático, embora aberto à investigação filosófica, ou seja, apresentar modelos e
esquemas completos, porém sem pretensão à exaustão nem das possibilidades de
novos modelos, nem das possibilidades de articulação das suas teorias. Toda
filosofia crítica deve conter uma exposição sistemática e ao mesmo tempo
propiciar a investigação.
Enquanto é uma exposição, a filosofia não pode ser senão dogmática, e
apresentar sistematicamente o seu conteúdo (o que não equivale a um sistema
completo ou fechado). Contudo, o espírito de busca e de investigação precisa ser
mantido, para que um sistema de filosofia permaneça filosófico. O filósofo deve
explorar suas hipóteses sem garantias prévias de qual será o resultado obtido, ou
seja, o filosofar requer a liberdade para explorar todas as suas possibilidades. Para
isso, não se pode ter em vista, de início, a sua exposição coerente e isenta de
contradição, nem comprometer-se com uma idéia de filosofia ou modelo
filosófico.
Além do mais, o filosofar, sendo livre, não está de início comprometido
com nenhuma finalidade, ao passo que a filosofia está comprometida com a
educação. Para educar, a filosofia precisa, primeiro, expor conceitos
sistematicamente, apresentá-los em todo o seu rigor, para então buscar a expressão
do filosofar.
Essa dinâmica comporta uma dialética: ao mesmo tempo em que a filosofia
é uma busca, deve verbalizar os seus resultados parciais como se fossem
definitivos. Apesar de que o filosofar se define pela investigação, análise e
reflexão, a filosofia está direcionada desde o seu início a emitir um juízo e, assim,
para o dogmatismo, e não pode nem esquivar-se dessa sua tarefa, nem “entregar-
se” completamente a ela. Há sempre o perigo, na sistematização própria da
filosofia, de cessar o filosofar: para Sexto Empírico, o dogmático não é somente
aquele que afirma uma descoberta, mas aquele que crê, com isso, ter chegado ao
fim da investigação, ter descoberto e estar na posse da verdade.
A vitalidade da filosofia está na direção que impele ao diálogo, e não
somente nas suas conclusões ou argumentos. É pela autocrítica que a filosofia
proporciona e estimula o filosofar; este não existe somente em meras afirmações.
Os resultados da filosofia, aqueles que são mesmo filosóficos, se apresentam na
sua compreensão de si mesma, na explicação do caminho percorrido até eles, e na
sua reflexão sobre os mesmos.
Desse modo, além do trabalho infinito do filosofar – infinito devido à sua
liberdade -, de apresentar modelos e esquemas sucessivamente, o trabalho infinito
da filosofia reside na linguagem. A natureza discursiva do entendimento, que a
filosofia não é capaz de ultrapassar, como é o comum da matemática, torna
mesmo o “dogmatismo localizado” que uma filosofia possa atingir passível de
contínua reformulação.
Nesse sentido, separar o espírito da letra de forma rigorosa seria matar a
filosofia. O espírito independente da letra é o pensamento seco de palavras, o
coração sem voz. O espírito e o coração da filosofia é o filosofar, e na sua letra
tem de habitar a sua expressividade. Se os acroamas, p ex., os princípios
discursivos da filosofia, não passam de meras palavras, então são simples palavras
a diferença entre a vitalidade da filosofia, com a expressão do vigor do filosofar, e
o vazio intelectual, preenchido de conceitos suspensos no ar que não transmitem
um questionamento da realidade. A existência e a razão de ser da filosofia residem
na sua publicação, no espírito que reside na sua letra, ao passo que o filosofar
pertence ao pensamento e à civilização.
Para a filosofia realmente falar, é preciso expressar o filosofar. Desse modo, a
filosofia é capaz de se comunicar com todos os homens. A filosofia crítica de
Kant dirige-se ao homem vivo, trata da sua existência presente e atual. Nesse
sentido, KANT refere-se ao conceito cosmopolita de filosofia, em oposição à
filosofia de escola, que é “(...) a ciência da relação de todo conhecimento aos
fins essenciais da razão humana.”, para qual o filósofo é a idéia de um
legislador da razão humana.
313
Ao mesmo tempo em que não é ninguém, a sua
legislação está na razão de todos os homens.
314
Dessa maneira, ao
“despersonificar” o filósofo, Kant é capaz de alargar o conceito de filosofia.
SUZUKI escreve que o filósofo: “é a mera idéia de uma pessoa que torna
objeto para si, praticamente e (em função dele) também teoricamente, o fim-
último de toda a vontade (...).”
315
A filosofia cosmopolita representa a universalidade do filosofar, a existência
dessa forma de pensar para além de uma filosofia, cuja finalidade reside na
razão de todos os homens dentro da civilização. Assim como o filósofo não é
tão-somente filósofo, nenhum homem pode ser inteiramente alheio ao filosofar.
Nenhum homem pode ser indiferente ao filosofar, no mínimo, expressa repulsa
e desprezo em relação a ele.
Ainda, se o filósofo é homem, é também não-filósofo. Kant deseja reconciliar a
filosofia com o homem de dentro da filosofia, através do filosofar. Dessa
forma, pode-se entender o conceito cosmopolita de filosofia como a rejeição de
um conceito estrito, reducionista de filosofia. Essa vive para ensinar e
estimular o filosofar, não para ensinar sistemas filosóficos.
Por conseguinte, do mesmo modo que o ceticismo impõe-se à filosofia como
um desafio, pode-se pensar em um desafio dogmático. Se, por um lado,
sucumbir ao desafio cético significa pagar o preço do acesso à verdade, e ao
313
KANT, I. Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 694-5. A
839 / B 867.
314
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 661, A 839 /
B 867.
315
SUZUKI, M. O Gênio Romântico. São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 75.
desistir de toda e qualquer afirmação dogmática, entregar-se à afasia e apraxia
filosóficas, por outro lado, o próprio dogmatismo global é um desafio na
medida em que ele mesmo, por não criticar-se e sustentar uma única maneira
de pensar, representa um perigo ao filosofar. Ao fiar-se nos mesmos princípios
acriticamente, o filósofo dogmático fecha cada vez mais as suas possibilidades
e as de seus seguidores, restando-lhes repetir-se nos mesmos assuntos.
5.6
Sobre a Morte
Propõe-se considerar o pensamento sobre a morte como um símbolo,
através do qual as três possibilidades de filosofia, o dogmatismo, o ceticismo e o
criticismo podem se apresentar mais claramente em seu caráter próprio.
Não se pode olvidar a morte, que é um “dado” biológico, bem como um
mistério “metafísico”, sem conseqüências graves tanto intelectuais quanto físicas.
Pode-se afirmar que pensar na morte é o liame por excelência entre o natural e o
hiperfísico - e não permite que o abstrato se mantenha simplesmente abstrato, nem
que o pensamento pautado pelas aparências, com o apoio e a segurança do
“autoevidente”, não deixe transparecer suas concepções genuinamente filosóficas.
É possível entender a posição dogmática, de afirmar e sustentar juízos
peremptoriamente, como uma resposta ao medo da morte. Nesse sentido, o
dogmático metafísico costuma compor um sistema fechado no qual a morte não
figura; o qual ela não pode corromper. A totalidade a que visa o sistema do
metafísico dogmático é tão-somente abstrata, contudo, pode-se pensar que as
condições reais da existência humana estão no seu ponto de partida, são
sublimadas e conferidas de uma “solução” que é externa a elas mesmas.
A atitude cética, em contrapartida, ensina a pôr em perspectiva inclusive a
morte. Pode-se pensar que a suspensão do juízo, em vez de consistir em se afastar
dos objetos, diminui o isolamento ao qual o dogmatismo relega natureza das
coisas, ao não pensá-las em sua relação factual com o homem, como fenômenos, e
querer tão-somente penetrá-las em sua “existência real”. O ceticismo, assim, pode
amenizar inclusive o isolamento dogmático que rasga o homem em seu âmago,
separando da vida o pensamento, como, no caso, de se ter a coragem de pensar na
morte. SEXTO escreve:
Nem mesmo a morte (...) pode ser considerada algo por natureza terrível,
assim como a vida não pode ser considerada naturalmente boa. Nenhuma dessas
coisas é assim e dessa maneira por natureza: tudo é matéria de convenção e relativo.
316
Para Montaigne, o estudo da filosofia é um aprendizado para a morte, pois
empregar o pensamento dissociado da sua própria situação atual é, para o ensaísta
francês, algo que se assemelha a refletir sobre a morte, ou “então é porque de toda
sabedoria e inteligência resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de
morrer.”
317
O filosofar é estimulante, e pode produzir um efeito físico na vida.
Ensina a não temer a morte, mas a pensá-la como parte integrante da vida, sendo
possível reconciliar-se com a morte no curso da vida. Essa consciência tranqüila
da morte, em sua naturalidade, ainda permitiria uma maior abertura à vida, sendo
o homem capaz de oferecer-se ao aprendizado que a humildade de desapegar-se
de si, e deixar-se visitar outros mundos é capaz de proporcionar.
Se o ceticismo ensina a pôr inclusive a morte em perspectiva, e desse ponto
de vista é possível fortalecer a si mesmo, retirar uma lição de vida, pensar a morte
dogmaticamente, na verdade, consiste em não pensá-la, mas em contorná-la, em
inventar uma outra morte e uma outra vida. A “sabedoria e a inteligência”
dogmáticas também ensinam a não temer a morte, contudo, de uma maneira
inteiramente diversa.
A postura matafísico-dogmática diante da morte busca anular o seu
assombro intrínseco, afirmando a eternidade da alma e uma outra vida após o fim
desta. Entretanto, essa ficção pode muito bem diminuir a reflexão “natural” sobre
a morte ao longo da vida e ganhar ainda mais adeptos na velhice, mas,
paradoxalmente, pode-se pensar que surte os efeitos contrários aos seus
propósitos, pois qual alento oferece ao moribundo ao apegá-lo ainda mais a si
316
SEXTUS EMPIRICUS. Outlines of Scepticism. Cambridge: Cambridge University Press,
2004, p. 204. Livro III, xxiii, 232.
317
MONTAIGNE. Ensaios. São Paulo: Editora Abril Cultural [col. Os Pensadores], 1974, p. 48:
Livro I, XX.
mesmo, ao levá-lo a pensar que pode permanecer “ele mesmo”, no momento em
que as forças da sua vida estão esvaindo?
O dogmatismo é uma forma exagerada e irrestrita de afirmar as suas
opiniões, um modo de nelas encontrar segurança justamente por se fechar nelas. O
seu erro está na sua própria fonte, e nele se permanece já que o dogmático não
questiona os próprios princípios.
A atitude cética em relação ao dado natural da morte, presente à consciência
desde o momento em que se sabe ligada a um corpo, ensina a cultivar a própria
vida, sem pensar a si mesmo como uma substância, como algo pronto e fixo desde
sempre, mas com a adaptabilidade e autonomia própria ao homem, embora com
os limites que lhe são próprios, dentre os quais, em última instância, está a morte.
O ceticismo busca a tranqüilidade pela suspensão do juízo, pela evitação
das falácias dogmáticas, mas não nega o empírico, o evidente, como não nega o
fato da morte, e vive de acordo com as suas impressões, sem afirmar nada sobre o
não-evidente. O cético continua investigando, pois sabe que, como o fundamento
ou o que está por trás do empírico e do evidente não é absolutamente evidente,
mas objeto de disputas infindáveis, encontra-se nos limites da capacidade do
entendimento humano.
Pode-se pensar que a postura crítica diante da morte consiste em evitar as
ilusões dogmáticas e manter-se vigilante contra o seu apelo, aduzindo para isso
razões céticas a favor do seu cultivo espiritual.
A filosofia crítica preza, sobretudo, o conhecimento de si, como um
princípio fundamental, para então sustentar o cuidado com si mesmo e o constante
questionamento de si, de modo ao homem experimentar sair de si e abrir-se para
novas concepções do mundo. Pode-se dizer que a crítica destrói a visão segundo a
qual no homem há uma única tendência, um único sentido. Kant mostra (e a
Critica da Razão Pura está estruturada nessa divisão) que a razão tem uma
tendência a contradizer-se; oscila entre o positivo e o negativo, a verdade e a
ilusão. O homem está inclinado ao esclarecimento e, ao mesmo tempo, à
menoridade; à autonomia, mas, de modo mais forte, à heterodeterminação.
Desse modo, o Esclarecimento (Aufklärung) próprio da filosofia crítica de
Kant sustenta o mote “Sapere Aude!” aliado à máxima de pensar por si mesmo,
embora com a característica distintiva de atentar para a negatividade. A morte,
sem dúvida, é um dos principais motivos que fustigam o pensamento a abandonar
o domínio da experiência. Essa tendência da razão à “hiperfísica”, contudo, não
pode levar o homem a escapar de si mesmo, mas cada um deve ser capaz de
pensar por si, ter a coragem de refletir sobre a morte e cultivar sua vida. Desse
modo, o efeito físico da filosofia crítica, do filosofar sobre a vida, é a saúde da
razão; a sua vitalidade no único mundo em que nos é possível viver, ao menos,
viver essa vida e esse mundo.
Para Pascal, como nada se perde acreditando-se em Deus caso de fato não
exista (o que é questionável), e perde-se se Nele não acreditar e de fato existir,
conclui que se deve acreditar em Deus, pois assim se sai ganhando de todas as
maneiras. Bem, pode-se pensar em uma inversão da aposta de Pascal. Deve-se
viver como se esta fosse a única vida possível, e esse o único mundo a cultivar,
sendo uma inversão do pensamento de Pascal por apostar no que nos é dado, no
empírico e evidente. Caso de fato haja uma vida póstuma, teremos vivido ao
máximo nossas vidas, e sem dúvida a mereceremos. O homem está entre ser e o
nada, e deve escolher.
6
Conclusão
Há significativos elementos do pensamento de Kant que permanecem
atuais, e, como ele mesmo acredita, podem ser considerados eternos. Espaço e
tempo são intuições sensíveis; o sujeito tem uma causalidade própria,
enraizada em sua espontaneidade, que determina a forma dos fenômenos e, do
Idealismo Transcendental, pode-se derivar algumas lições “incontestáveis”,
sobretudo, que sujeito e objeto têm uma relação necessária, e determinam-se
reciprocamente.
Em vista da necessidade de investigar a si mesmo, e na medida em que a
espontaneidade humana está em relação necessária com o que denominamos
“realidade”, é preciso adotar o procedimento dogmático, buscar sistemática e
exaustivamente tudo o que pertence ao sujeito, e não meramente ao “objeto”
(seja ele qual for). Ainda, como a “razão” impõe a si mesma obstáculos e
dificuldades para ser autônoma, é preciso conciliar ao procedimento
dogmático o método pirrônico de isosthenia e époché. Síntese crítica que
permite, justamente, continuar a investigar a si mesmo, conhecer-se não
somente como propedêutica para conhecer o mundo, mas ainda para
descortinar as relações intrínsecas entre o “eu” e o “mundo”.
A síntese de dogmatismo e ceticismo localizados, por mais paradoxal
que seja ou que pareça, é um tema a ser investigado, o que Kant faz de forma
sistemática, notoriamente, como nenhum outro pensador antes dele. Em
comparação de “doutrinas” filosóficas, o criticismo é uma via média entre o
dogmatismo e o ceticismo, já em comparação metodológica, o método crítico
é uma assimilação do procedimento dogmático e do método cético, de modo
que, assim, não está entre eles, mas os engloba e se situa para além de ambos.
O dogmatismo, indubitavelmente, é a tendência primeva e mais forte do
homem no tocante ao conhecimento, não está presente somente na infância da
filosofia ou da razão, mas é preciso sempre lançar mão do método cético para
arrefecer a perene febre dogmática da humanidade, cujo uso é indispensável e
vital, de fato, elemento vivo na atividade constante da crítica, que não supera
esses “primeiros passos” da razão - que podem ser os definitivos - os
rechaçando, mas os apropriando em seus elementos de verdade.
Como escreve Pascal, “A verdade está entre o dogmatismo e o
ceticismo”. Pode-se dizer que entre o juízo e sua suspensão está propriamente
a investigação, a zétesis, a perpetuação da busca à verdade. Há um espaço
entre o dogmatismo e o pirronismo que é marcado pela passagem, pelo
transcorrer do tempo, das ações e atitudes. É o espaço e o tempo especialmente
da observação e da “caminhada”, em que o homem, ao pensar por e a si
mesmo e em comunhão com os outros, é capaz de perceber no movimento
uma invariável. Esse é o caso da História da Razão Pura, na qual Kant, ao
observar o movimento próprio dos usos da razão em sua caminhada na história
empírica da filosofia, é capaz de refletir sobre o seu caminho transcorrido e
dele derivar uma lei transcendental. A progressão de desmoronamentos de
edifícios filosóficos, todos eles compromissados em dar razão para o saber e
para a própria razão, expressam a vida da própria razão, o seu
desenvolvimento intrínseco que se espelha na história da filosofia.
No entanto, pode-se detectar que há um ponto, entre o dogmatismo e o
pirronismo, em que Kant não mais continua a investigar, não mais busca um
“trabalho ao infinito”, e o seu pensamento não pode mais ser seguido, e, não
pode de fato, pois não segue adiante, não prossegue. É no dogmatismo
negativo de negar peremptoriamente que espaço e tempo, fora da sensibilidade
humana não são nada, e que a causalidade é tão-somente uma categoria do
entendimento humano, que Kant pára abruptamente.
Espaço e tempo não podem ser apenas estruturas que organizam a
receptividade, como a causalidade não pode ser apenas uma ordenação para
tornar inteligível o que é recebido pela sensibilidade. Pelo contrário, é preciso
- a partir da verdade incontestável
318
de Kant de que espaço e tempo são
intuições sensíveis, de que a causalidade não é uma categoria das coisas
mesmas, mas que se dá no entendimento humano - continuar investigando,
para além desse autoconhecimento, quais determinações a natureza
possivelmente imprime em espaço, tempo e causalidade.
318
SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e como Representação.
São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 549: I 518.
Haja vista que o homem é um ser da e na natureza, e não está “acima” ou
para além dela, o que se encontra nele, como um poder fundamental da sua
própria constituição, não pode ser pensado inteiramente isolado da natureza.
Escreve PASCAL:
A natureza do homem é inteiramente natural, omne animal.
Não há nada no homem que ele não possa tornar natural;
não há nada natural que ele não possa perder.
319
A distinção de Kant de fenômeno e coisa em si, e com ela a consciência
da impossibilidade de conhecer o Absoluto, trazem consigo a contraparte de
levar a pensar que o conhecimento pode chegar ao fim com o conhecimento de
si do homem, de que essa é a sua finalidade última, e até de que se pode
realmente satisfazer-se apenas com isso. A necessidade de pensar a si mesmo e
vir a conhecer-se o quanto possível, perscrutando o abismo infinito de si,
ganha em Kant um embasamento sistemático.
Kant determina com rigor fundamentos filosóficos incontestáveis da
relação do homem com o mundo, estabelecendo no sujeito as operações
espontâneas que determinam a constituição da realidade, e ainda as que não
são “constitutivas”, mas servem apenas para orientar a sua concepção do
mundo. Desse modo, por determiná-las, Kant é capaz de, por assim dizer,
limitar positivamente o escopo das questões que se colocam na relação entre a
investigação do homem e sua investigação da natureza.
A questão “O que é ao homem?”, em Kant a sua quarta pergunta, é a
finalidade última do conhecimento enquanto nela se espraiam as anteriores, e
apenas na medida em que é um problema sempre atual, que precisa ser sempre
novamente colocado, por ser capaz de orientar a investigação da natureza bem
como esclarecer a ilusão na qual a razão se enreda. Contudo, pode-se
identificar no dogmatismo negativo “transcendental”, de que formas puras do
conhecimento não são nada mais do que elas mesmas, o germe, mesmo que
não fosse esse o intento de Kant, para considerar “O que é o homem?” como a
primeira e principal pergunta da filosofia (na medida em que serve de respaldo
319
PASCAL, B. Pensées. The Great Books, Vol. 33. Chicago: The University
of Chicago, 1952, p. 90: Seção II, §94.
ao pensamento de que ao se determinar algo definitivamente em nós mesmos
torna-se “desnecessário” continuar a investigá-lo no mundo), o que significa
uma redução tanto na compreensão do significado da filosofia quanto nas
possibilidades de pensar.
Paradoxalmente, a “antropologização” do conhecimento – que como
Foucault analisa se dá, sobretudo, no século XIX – tem o resultado de levar ao
isolamento do homem da natureza. Pelo contrário, é necessário pensar o
homem tendo em vista que o seu modo de ser e conhecer, na medida em que é
o próprio homem quem opera a investigação da natureza, a determina; mas,
ainda, é determinado por ela. Como a priori só podem-se estabelecer
fronteiras do conhecimento, mas nunca limites, que são sempre contingentes,
conclui-se que toda e qualquer forma de dogmatismo negativo é pernicioso,
pois tanto afirma sem fundamento que a verdade é inatingível, quanto reduz a
amplitude do pensamento.
O tema das fronteiras a priori da razão é uma descoberta kantiana que se
situa entre o dogmatismo e o ceticismo de forma inteiramente inovadora, pois
é conhecimento a priori da ignorância, uma ignorância “científica”. As
fronteiras são determinadas a partir da teoria do modo de conhecer, e derivam
da sua constituição específica. Consistem, assim, em uma investigação
imanente, que não se confunde com o dogmatismo negativo na medida em que
não é mera especulação, mas conhecimento, por sua vez, não meramente
negativo, mas que se torna ele mesmo positivo, um mapeamento “científico”.
Kant encontra uma forma brilhante de conciliar dogmatismo e
ceticismo - em vista de determinar bem como “testar” a nomotética da razão,
ou melhor, descobre um campo inteiramente novo para a investigação
filosófica que permite conciliá-los. Mas a síntese crítica de ceticismo e
dogmatismo, a assimilação parcial de elementos de suas doutrinas, não se
limita à necessidade de lidar com os aspectos positivo e negativo da razão;
buscar o conhecimento de si das formas a priori da experiência; e refutar
concepções do mundo que não tenham esse ponto de partida imanente, mas
que pressupõem a coisa em si, uma existência conectada a uma realidade
absoluta.
Kant de fato lança um método contra o outro, não de modo a estabelecer
uma doutrina cética ou dogmática, mas para revigorar a mente e mantê-la em
constante atividade. Entretanto, pode-se dizer que nesse ponto Kant só pode
satisfazer um pensador que não seja nem um cético nem um dogmático
convicto. Pois o quê Kant vislumbra com essa síntese senão a própria crítica?
O projeto dogmático de conhecer a existência real é desqualificado, o
acometimento cético pela ataraxia é despojado de sentido. Dogmatismo e
ceticismo são ambos descaracterizados e só encontram seu significado
essencial com a crítica. Desse modo, para satisfazer conjuntamente a céticos e
dogmáticos, a filosofia crítica deve ser capaz de esclarecer ambos, de tornar
mais claro para os próprios dogmáticos suas intenções e objetos, e para os
céticos a causa específica da sua descrença nesses.
Pode-se afirmar que a síntese em questão não é nem casual, nem
supérflua na filosofia crítica de Kant. Não se trata apenas de um corolário
metodológico à “teoria da razão”. Em estreita ligação com a investigação na
Crítica da Razão Pura não de sistemas de filosofia, mas da própria razão
humana, está a “despersonificação” do filósofo dogmático e do pirrônico. Kant
identifica na própria razão a tendência a ultrapassar os limites da experiência
possível, a isolar-se, a entrar em conflitos pretensamente insolúveis consigo
própria nos quais se contradiz.
Dessa maneira, o filósofo da antiga Königsberg amplia a noção de
dogmatismo, ceticismo e criticismo para além de seus conceitos acadêmicos,
de escola, a uma visão cosmopolita da filosofia, segundo a qual todas essas
correntes filosóficas dão voz, conferem sistematicidade e rigor a pensamentos
que estão no homem como homem. As possibilidades de método - entre as
quais a síntese metodológica que as reúne, as supera e as amplia, a filosofia
crítica - expressam alternativas de pensamento entre as quais o homem oscila,
pois todas elas têm contato com a natureza da própria razão humana.
Nesse sentido, nenhum homem pode ser um dogmático ou um cético
irrestritamente sem desconhecer ou enganar a si mesmo em certa medida. É a
própria razão que impede que “metodologia” seja tratada de forma deslocada
dos objetos investigados e, além do mais, que alguém se identifique como
“cético” ou “dogmático” sem atentar para como reside em si mesmo a
inclinação oposta.
Desse modo, Kant descaracteriza as filosofias cética e dogmática a partir
do conceito de que não se pode ser tão-somente cético ou dogmático. Da
mesma forma, apesar da filosofia crítica reuni-los parcialmente, tanto para
trabalharem em conjunto, quanto para se oporem mutuamente, poder-se-ia
questionar: é possível ser tão somente crítico? O conhecimento a priori de si,
tão limitado e circunscrito a priori, é suficiente para a razão satisfazer-se, sem
aderir, mesmo que momentaneamente, ou a motivações dogmáticas, e buscar a
existência real, ou à descrença pirrônica, e deixar-se levar à ataraxia?
Sendo a razão tão multifacetada, sem ser capaz de encontrar repouso em
lugar nenhum – pois no dogmatismo contradiz a si mesma, na ataraxia olvida
das suas motivações inolvidáveis -, é tarefa precípua da autonomia de ao
pensar a si e por si mesmo e decidir a qual método aderir orientar-se no
pensamento. É no ato de se orientar que a filosofia crítica se mostra mais
abrangente, mais cosmopolita, mais capaz de propiciar a saúde da razão e o
seu vigor.
Orientar-se geograficamente significa, a partir de um ponto fixo,
estabelecido por convenção, ser capaz de encontrar a sua direção (dado o
sentimento da diferenciação entre esquerda e direita). Na razão, não há
nenhum ponto fixo, nenhum lugar onde se apoiar definitivamente. Para Kant,
cabe ao entendimento a tarefa de reflexão transcendental, pela qual se
distingue a fonte dos conhecimentos; se contêm a referência a uma intuição
sensível. De modo similar, cabe à razão a tarefa de meditação, pela qual pode
retirar uma lição de si mesma.
O que se pode aprender ao meditar sobre a reflexão é que a constante
atividade da razão, que é incessante e não se apóia em lugar nenhum, é um
movimento que lhe é próprio. Para buscar conhecer a si mesma, a razão
precisa transitar por diversos pontos e perspectivas e, mesmo em posse do seu
autoconhecimento, a sua atividade não cessa. É o método crítico que é capaz
de abarcar a razão em sua pluralidade e movimentação, de modo que possa
compreendê-las e orientar a si própria. Se o dogmatismo e o ceticismo por si
só são insuficientes, se as filosofias se contradizem entre si, se as religiões, as
ciências se contradizem entre si, e todas elas se contradizem umas às outras,
como é possível orientar-se, ou seja, transitar por todos esses campos de saber
sem, no entanto, se “perder” em nenhum deles?
Orientar a si mesmo no pensamento pressupõe a autonomia e tem como
finalidade que o pensamento permaneça autônomo. Pode-se afirmar que o
único “ponto fixo” que a razão é capaz de encontrar, o qual lhe confere apoio e
segurança em todas as suas investigações, é a distinção entre fenômeno e coisa
em si. Seja em investigações empíricas ou teológicas, essa distinção estabelece
o domínio próprio do conhecimento e circunscreve suas fronteiras a priori,
que não se erguem a partir da própria coisa, mas do autoconhecimento. Como
escreve Kant, o uso comum do entendimento é uma pedra de toque para o seu
uso especulativo.
O conceito-limite da coisa em si é determinado com a investigação da
razão pura pela razão pura. Ao reconhecer em si as fronteiras da própria razão,
não se irá buscar ultrapassá-las em nenhum outro lugar. Nestas diretrizes se
resume, em termos gerais, o idealismo crítico-transcendental: primeiramente,
NENHUM OBJETO SEM SUJEITO, em segundo lugar, não confundir o
subjetivo com o objetivo. Desse modo, em vez de ser tão-somente negativo, é
um esclarecimento das capacidades e ilusões da razão, de maneira que é um
recurso sempre disponível para o ato de se orientar.
As pesquisas científicas têm limites em conhecer a existência real, em
determiná-la independentemente do sujeito do conhecimento, a religião na
medida em que ultrapassa o domínio da experiência possível, trata-se de fé –
fé racional -, não de conhecimento propriamente. As filosofias não têm de ser
nem aceitas nem rejeitadas por serem céticas ou dogmáticas, ao contrário, é
preciso ser capaz de detectar nelas o raciocínio conseqüente, independente da
confusão de fenômeno e coisa em si, e livre da omissão das motivações
intrínsecas da razão. Em estreita conexão com a capacidade de orientar-se está
o ecletismo; buscar nos autores o filosofar, a expressão da sua racionalidade
como homens pensantes, para além de suas doutrinas.
O ecletismo está subjacente à despersonificação de dogmatismo,
pirronismo e criticismo, para se considerá-los pertenças da própria razão
humana. É oposto ao sincretismo, que não respeita a diferença entre idéias e as
reúne artificialmente. O ecletismo, pelo contrário, tem como fundamento o
ponto de partida comum ao raciocínio, os problemas que a razão coloca à
própria razão; os pensamentos que têm, de início, uma natureza afim. Ao
passo que o sincretismo é a reunião ou apropriação disparatada de idéias,
retiradas de seu contexto doutrinário. Pode-se afirmar que o ecletismo ocupa-
se apenas do filosofar - não de sistemas filosóficos -, e sempre quando
necessário, o contextualiza de acordo com a história da sua concepção.
O filosofar que – em oposição à sistematização característica da filosofia
–, pode ser considerado livre, consiste em experimentar o pensamento sem
compromissos previamente estabelecidos, nem com uma finalidade
determinada, nem com a exposição de seus resultados. No entanto, pode-se
afirmar que como as questões que provocam o filosofar são impostas pela
própria razão humana, a liberdade própria do filosofar, que se traduz em sua
multiplicidade de caminhos, mantém ainda a unidade do seu ponto de partida.
Através dessa unidade, é possível aproveitar-se da sua multiplicidade, de modo
a pensar sobre uma questão, que é imposta pela própria razão, de modo
ampliado, com o auxílio das perspectivas de pensadores mesmo de tempos
distantes, sem anacronismo - que, inclusive, podem ser até mais “atuais” que
as nossas. Nesse sentido, não é suficiente ter um caminho e manter-se nele,
que se considera “bom” por ser formado a partir da superação das falácias de
outros tantos caminhos observados e refutados.
É preciso questionar-se constantemente, tanto para ver se ainda se está
trilhando pelo mesmo caminho, caso em que se deve refletir sobre qual é
precisamente o novo, quanto para ver se não é realmente preciso alterar o
caminho até então percorrido. Pode-se afirmar que é somente por conter em si
mesmo a adoção de diversas perspectivas, por ser capaz de questionar a si
mesmo e de incluir aos seus raciocínios os raciocínios de outros – como o faz
a filosofia crítica de Kant -, que um caminho pode manter-se confiável, e nele
pode-se permanecer caminhando.
Esses apontamentos tentam expressar a característica da filosofia crítica
de Kant ser sempre atual, e ser, nas palavras de Jaspers, o “absolutamente
indispensável” - e, no que sua filosofia não pode mais ser seguida, cabe
retomá-la e ultrapassá-la, pois os problemas que nela se encontram são ainda
os nossos.
7
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8
Anexo I
CAPÍTULO 1
2. Transcendental philosophy is the capacity of the self-determining subject to
constitute itself as given in intuition, through the systematic complex of the ideas, which,
a priori, make the thoroughgoing determination of the subject as object (its existence)
into a problem. To make oneself, as it were.
13. The critical method applies not to cognition itself or to the object, but rather to
the understanding. Therefore it is not objective, but rather subjective.
16. Method is the unity of a whole of cognition according to principles.
17. The doctrine of method contains the precepts for the possibility of a system of
cognition of the understanding and of reason.
18. True skepticism, at all events, is a thing of great usefulness, and as such it is
nothing other than an exact, careful investigation of all dogmata that are put forth as
apodeictic, which, insofar as they actually are so and stand the test, shine forth and strike
the eye in all their valeur, in all their strength, only after this test.
20. Bacon of Verulam
The Great Instauration. Preface
Of our own person we will say nothing. But as to the subject matter with which we
are concerned, we ask that men think of it not as an opinion but as a work; and consider it
erected not for any sect of ours, or for our good pleasure, but as the foundation of human
utility and dignity. Each individual equally, then, may reflect on it himself … for his own
part … in the common interest. Further, each may well hope from our instauration that it
claims nothing infinite, and nothing beyond what is mortal; for in truth it prescribes only
the end of infinite errors, and this is a legitimate end.
21. Both the claims that method enables the avoidance of error and that its ultimate
objective is not only utility but also the dignity of mankind are obviously central to
Kant´s own conception of his philosophy enterprise.
26. A new light broke upon the first person who demonstrated the isosceles
triangle (whether he was called “Thales” or had some other name). For he found that
what he had to do was not to trace what he saw in this figure, or even trace its mere
concept, and read off, as it were, from the properties of the figure; but rather that he had
to produce the latter from what he himself thought into the object and presented (through
construction) according to a priori concepts, and that in order to know something
securely a priori he had to ascribe to the thing nothing except what followed necessarily
from what he himself had put into it in accordance with its concept.
It took natural science much longer to find the highway of science; for it is only
about one and a half centuries since the suggestion of the ingenious Francis Bacon partly
occasioned this discovery and partly stimulated it, since one was already on its tracks –
which discovery, therefore, can just as much be explained by a sudden revolution in the
way of thinking.
29. Those who have treated of the sciences have been either empirics or
dogmatical.
31. For the human understanding is no less exposed to the impressions of fancy
than to those of vulgar notions.
32. The human understanding is no less exposed to the impressions of fancy than
to those of vulgar notions
33. The empiric school produces dogmas of a more deformed and monstrous
nature than the sophistic or theoretical school; not being founded in the light of common
notions (which however poor and superstitious, is yet in a manner universal and of a
general tendency), but in the confined obscurity of a few experiments.
38. (…) assert that nothing can be known, by the present method; their next step,
however, is to destroy the authority of the senses and understanding, whilst we invent and
supply them with assistance.
39. The formation of notions and axioms on the foundation of true induction is the
only fitting remedy by which we can ward off and expel these idols.
41. The idols of the tribe are inherent in human nature and the very tribe or race of
man; for man’s sense is falsely asserted to be the standard of things; on the contrary, all
the perceptions both of the senses and the mind bear reference to man and not to the
universe, and the human mind resembles those uneven mirrors which impart their own
properties to different objects, from which rays are emitted and distort and disfigure them.
42. (…) must be abjured and renounced with firm and solemn resolution.
43.(…) those of each individual; for everybody (in addition to the errors common
to the race of man) has his own individual den or cavern, which intercepts and corrupts
the light of nature, either from his own peculiar and singular disposition, or from his
education and intercourse with others, or from his reading, and the authority acquired by
those whom he reverences and admires, or from the different impressions produced on
the mind, as it happens to be preoccupied and predisposed, or equable and tranquil, and
the like; so that the spirit of man (according to its several dispositions), is variable,
confused, and, as it were, actuated by chance; and Heraclitus said well that men search
for knowledge in lesser worlds, and not in the greater or common world.
45. There are also idols formed by the reciprocal intercourse and society of man
with man, which we call idols of the market, from the commerce and association of men
with each other; for men converse by means of language, but words are formed at the will
of the generality, and there arises from a bad and unapt formation of words a wonderful
obstruction to the mind. Nor can the definitions and explanations with which learned men
are wont to guard and protect themselves in some instances afford a complete remedy;
words still manifestly force the understanding, throw everything into confusion, and lead
mankind into vain and innumerable controversies and fallacies.
46. The idols imposed upon the understanding by words are of two kinds. They are
either the names of things which have no existence (for as some objects are from
inattention left without a name, so names are formed by fanciful imaginations which are
without an object), or they are the names of actual objects, but confused, badly defined,
and hastily and irregularly abstracted from things.
47. (…) there are idols which have crept into men’s minds from the various
dogmas of peculiar systems of philosophy, and also from the perverted rules of
demonstration, and these we denominate idols of the theatre: for we regard all the systems
of philosophy hitherto received or imagined, as so many plays brought out and
performed, creating fictitious and theatrical worlds.
48. (…) are not innate, nor do they introduce themselves secretly into the
understanding, but they are manifestly instilled and cherished (…).
50. (…) it would be a very naïve sort of dogmatism to assume that there exists an
absolute reality of things which is the same for all living beings. Reality is not a unique
and homogeneous thing, it is immensely diversified, having as many different schemes
and patterns as there are different organisms.
57. Time can no more be intuited externally as space can be intuited as something
in us.
61. All principles are on the one side a posteriori, i.e., taken empirically, and this
in turn either from one’s own experience or from the testimony about the experience of
others, hence experience (in strictu sensu) or history.
All principles are on the other side a priori and taken from reason, but this
either from reason insofar as it judges merely in accordance with concepts, hence
philosophical principles, or insofar as it judges in accordance merely with the
construction of concepts, i.e., their exhibition a priori in intuition.
70. Thoughts without content are empty, intuitions without concepts are blind. It is
thus just as necessary to make the mind’s concepts sensible (i.e., to add on object to them
in intuition) as it is to make its intuitions understandable (i.e., to bring them under
concepts).
71. (…) the sphere of metaphysics in the precise sense only comes into being
where this tension is itself the subject of philosophy, where it comes within the purview
of thought. It might be said, therefore, that metaphysics arises at the point where the
empirical world is taken seriously, and where its relation to the supra-sensible world,
which was hitherto taken for granted, is subjected to reflection.
72. on the one hand, metaphysics is always, if you will, rationalistic as a critique
of a conception of true, essential being-in-itself which does not justify itself before
reason; but, on the other, it is always also an attempt to rescue something which the
philosopher’s genius feels to be fading and vanishing.
73. Metaphysics is thus, one might say, something fundamentally modern – if you
do not restrict the concept of modernity to our world but extend it to include Greek
history.
74. The question is whether metaphysics deals with objects that can be cognized
through pure reason, or with the subject, namely the principles and laws is the use of pure
reason. Since we can cognize all objects through our subject, especially those that do not
affect us, it is subjective
75. Human reason has the peculiar fate in one species of its cognition that it is
burdened with questions which it cannot dismiss, since they are given to it as problems by
the nature of reason itself, but which it also cannot answer, since they transcend every
capacity of human reason.
76. The battlefield of these endless controversies is called metaphysics.
77. All philosophical derivation of that which is given or can be given in our
cognition is either physical or metaphysical or hyperphysical, the first from empirical
principles of nature cognized through experience; the second from the principles of the
possibility of our a priori cognition in general, independent from the empirically cognized
nature of things; the third from the representation of objects beyond nature. The latter
takes our cognition entirely outside the conditions of the use of our reason in concreto,
the metaphysical manner of explanation is objective if it rests on the universal conditions
under which alone we cognize objects as given to us. It does not exclude the supernatural,
but restricts our reason merely to the natural.
78. I am far from regarding metaphysics itself, objectively considered, to be trivial
or dispensable; in fact I have been convinced for some time now that I understand its
nature and its proper place among the disciplines of human knowledge and that the true
and lasting welfare of the human race depends on metaphysics (…) As for the stock of
knowledge currently available, which is now publicly for sale, I think it is best to pull off
its dogmatic dress and treat its pretended insights skeptically. My feelings are not the
result of frivolous inconstancy but of an extensive investigation.
79. 1. What can I know?
2. What ought I to do?
3. What may I hope?
4. What is man?
Metaphysics answers the first question, morals the second, religion the third, and
anthropology the fourth. Fundamentally, however, we could reckon all of this as
anthropology, because the first three questions relate to the last one.
CAPÍTULO 2
1. (…) the reason we always fall so horribly into error is that we seek to find
outside of us what is only within us.
4. Criticism is not opposed to the dogmatic procedure of reason in its pure
cognition as science (for science must always be dogmatic, i.e., it must prove its
conclusions strictly a priori from secure principles); rather, it is opposed only to
dogmatism, i.e., to the presumption of getting on solely with pure cognition from
(philosophical) concepts according to principles, which reason has been using for a long
time without first inquiring in what right it has obtained them. Dogmatism is therefore the
dogmatic procedure of pure reason, without an antecedent critique of its own capacity.
5. Mathematics exhibits the greatest dignity of human reason, metaphysics,
however, its limits and proper vocation.
8. (…) mathematics arrives at its concepts synthetically.
9. (…) the concept of a thing is always given, albeit confusedly or in an
insufficiently determined fashion.
11. An intuitive principle is called an axioma. There is no word in philosophy for
discursive principles, for no one has ever made the distinction between intuitive and
discursive principles. One could call it an acroama, however, a proposition that can be
expressed only through words and through pure universal concepts. An axioma, however,
can only be exhibited in intuition.
14. Nevertheless, the method can always be systematic. For our reason itself
(subjectively) is a system, but in its pure use, by means of pure concepts, only a system
for research in accordance with principles of unity, for which experience alone can give
the matter.
15. (…) criticism is the preparatory activity necessary for the advancement of
metaphysics as a well-grounded science, which must necessarily be dogmatic, carried out
systematically in accordance with the strictest requirement (…)
16. In its transcendental efforts, therefore, reason cannot look ahead so confidently,
as if the path on which it has traveled leads quite directly to the goal, and it must not
count so boldly on the premises that ground it as if it were unnecessary for it to frequently
to look back and consider whether there might not be errors in the progress of its
inferences to be discovered that were overlooked in its principles and make it necessary
either to determine them further or else to alter them entirely.
17. Dogmatism is the manner in thinking that is attached to assertions without
critique (i.e., examination of principles.) The most natural tendency of mankind with
regard to cognition is towards dogmatism: 1. on account of laziness, since going back to
principles is more difficult than proceeding to the application of principles that have
already been assumed and are in circulation. 2. Because through critique cognition is not
expanded, but only rendered secure. 3. From fear of revealing the poverty of our
knowledge to ourselves and others.
18. Dogmatism is a pillow to fall asleep on, and an end to all vitality, which latter
is precisely the benefit conferred by philosophy.
19. If one wishes to extend his cognition of reason through mere concepts, then if
no further critique occurs, then one is a dogmatist.
20. The dogmatic spirit in philosophy is [thus] the proud language of the ignorant,
who like to decide everything and do not like to investigate anything at all, whereas our
understanding is quite inclined to examine everything first and to investigate it exactly
before it accepts and maintains anything, also to look around well first without blindly
rejecting something that occurs to us.
21. Human nature is actually far more inclined to decide than always to examine,
and to settle rather than always to investigate. For we are not at all satisfied when we have
to leave something uncompleted, especially in our cognition, but instead we want to settle
everything, so that in case the need occurs we can recur to a completely certain and
reliable cognition.
Our understanding is actually more satisfied by decision.
22. The usual scholastic and doctrinal methods of philosophy make one dumb,
insofar as they operate with a mechanical thoroughness. They narrow the understanding
and make it incapable of accepting instruction. By contrast, critique broadens the
concepts and makes reason free. The scholastic philosophers operate like pirates who as
soon as they arrive on an unoccupied coast fortify it.
23. The greater part of mankind are naturally apt to be affirmative and dogmatical
in their opinions; and while they see objects only on one side, and have no idea of any
counterpoising argument, they throw themselves precipitately into the principles, to
which they are inclined; nor have they any indulgence for those who entertain opposite
sentiments. (…) But could such dogmatical reasoners become sensible of the strange
infirmities of human understanding, even in its most perfect state, and when most
accurate and cautious in its determinations; such a reflection would naturally inspire them
with more modesty and reserve, and diminish their fond opinion of themselves, and their
prejudice against antagonists.
25. The first step in matters of pure reason, which characterizes its childhood, is
dogmatic.
26. Wolff did great things in philosophy; but he got ahead of himself and extended
cognition without securing, altering, and reforming it through a special critique. His
works are therefore very useful as a magazine for reason, but not as an architectonic for
it. Perhaps it is in the order of nature, although certainly not to be approved of in Wolff,
that at least the experiments of the understanding should first multiply without a correct
method of knowledge, and be brought under rules only later. Children.
29. There is naught more important than that we should not follow like sheep the
herd that has gone before, going not where we should but where the herd goes.
31. (…) the task of reason, whose existence as part of our natural constitution is
viewed essentially as positive, is to do away with all dogma, delusion and knowledge
that has been merely handed down.
32. The common human understanding (sensus communis) is also in itself a
touchstone for discovering the mistakes of the artificial use of the understanding. This is
what it means to orient oneself in thought or in the speculative use of reason by means of
the common understanding, when one uses the common understanding as a test for
passing judgment on the correctness of the speculative use.
33. On the one hand, reason is subjected to criticism entirely in the spirit of the
Enlightenment and Kant marshals a whole host, indeed the entire panoply, of skeptical
arguments against the dogmatic transformation of reason into an absolute. At the same
time, however, because reason is criticizing itself, he retains the idea of reason and, with
it, the idea of objective truth. You see then in Kant a hesitation, an inconsistency, if you
like, a disinclination simply to follow the smooth path of progress. I detect in this a
particular deliberateness and conscientiousness (…) and I feel this to be the sign of an
extraordinary seriousness. That is to say, the movement of the Enlightenment can only
achieve fulfillment if its own meaning, that is, the idea of truth, is retained; and if, in the
midst of the dialectical movement to which these concepts are subjected, the concepts
still survive. This glorious insight is present in Kant.
36. The indispensable supplement to reason is something that, though not part of
speculative philosophy, lies in reason itself, something we can name (viz., freedom, a
supersensible power of causality within us), but that cannot grasp. (…) One can just as
well admit that if the Gospels had not previously instructed us in the universal moral laws
in their total purity, our reason would not yet have discovered them so completely; still,
once we are in possession of them, we can convince anyone of their correctness and
validity using reason alone.
37. In interpreting the Biblical conception, figures, dogmas “within the limits of
mere reason”, Kant assumes that there is, at the confines of reason, a realm of the
unfathomable and mysterious. But the unfathomable is not the irrational; rather, it is
something which reason experiences as the limit of reason and draws into the light of
reason. (…) The understanding with its logical reflection acts as a judge over dogmatic
and mythical figures, but reason as a whole is the area in which they operate and are
ethically tested by the essence of the rational men who live by them. Faith is hope when
reason shatters against the unfathomable, but it is a hope grounded in reason itself and not
in some other guarantee coming from outside. Reason grasps, not being in itself, but
being as it becomes accessible to a finite creature in his reason. Hence in Kant (…)
religion is not an independent source.
38. (…) Whereas dogma requires historical scholarship, reason alone is sufficient
for religious faith. Reason does, it is true, claim to interpret dogma, in so far as it is the
vehicle of religious faith. But since the value of dogma is only that of a means to religion
as its final end, could such a claim be more legitimate? And can there be any principle
higher than reason for settling arguments about truth?
39. I distinguish the teachings of Christ from the report we have of those
teachings. In order that the former may be seen in their purity, I seek above all to separate
out the moral teachings from all the dogmas of the New Testament. These moral
teachings are certainly the fundamental doctrine of the Gospels, and the remainder can
only serve as an auxiliary to them. Dogmas tell us only what God has done to help us see
our frailty in seeking justification before him, whereas the moral law tells us what we
must do to make ourselves worthy of justification.
41. Freedom of communication is indispensable for freedom of thought.
43. The only thing that was perhaps not typical about Kant´s life was the great role
that socializing with his friends assumed in it. Kant was a very gregarious and social
being – not so much the solitary, isolated, and somewhat comical figure that many have
com to see in him. Dialogue was more important to him than many people now want to
admit. His critical philosophy is an expression of this form of life, and it makes sense first
and foremost in the context of this form of life. What Kant “crushed”, or meant to crush,
in his Critique were the monsters that impeded this life. It was born out of dialogue,
something that the large role of “dialectic” in it should already have made more than
clear. As such, it can also be seen as an attempt to show why different positions within
the conversation should not be assumed dogmatically to present the only truth, and why
everyone engaged in the conversation of mankind should be assured an equal say.
44. “Society is the true spice of life, and it makes the dignified (würdige) person
useful; and when the learned cannot converse, this is the result of their assiduity, or of the
scorn of society. The latter is founded on the lack of knowledge of the world and the
value of scholarship. The scholar must be able to converse with all classes because he is
outside of all classes…”
46. You know very well that I am inclined not only to try to refute intelligent
criticism but that I always weave them together with my own judgements and give them
the right to overthrow all my previously cherished opinions. I hope that in that way I can
achieve an unpartisan perspective, by seeing my judgements from the standpoint of
others, so that a third opinion may emerge, superior to my previous ones.
48. Publicity is crucial for the life of the community, because communicability and
unrestricted communication are the essence of reason. Philosophy understands and
engenders the will to communicate. Without the air of communication reason is stifled.
Communicability is essential to all forms of reason. Concepts are
communicable, not feelings. (…)
Only through communication can reason be amplified and verified.
Communication is the indispensable condition of humanity. Humanity consists in
“communicability”. In observing the function of taste in social culture, Kant declares that
“feelings are valuated only insofar as they can be communicated to all; then, even though
the pleasure may be inconsiderable, the Idea of its universal communicability increases its
value almost beyond measure.”
49. (…) a conversation, according to this view, has three parts; a narrative or story,
a discussion, and jest. The conversation begins with someone telling a story, which is
then discussed.
50. Pietists make the idea of religion dominant in all conversation and discourse,
while it can be concluded from their common behavior that this idea has lost the sense of
novelty, they are nothing but gossips.
51. (…) to pass over into the territory of idealizing reason and transcendent
concepts, where there is no further need to make observations and to inquire according to
the laws of nature, but rather only to think and invent, certain that it can never be refuted
by facts of nature because it is not bound by their testimony by may go right past them, or
even subordinate them to a higher viewpoint, namely that of pure reason.
52. Universal rules and condition for avoiding error in general are: 1) to think for
oneself, 2) to think for oneself in the position of someone else, and 3) always to think in
agreement with oneself. The maxim of thinking for oneself can be called the enlightened
mode of thought; the maxim of putting oneself in the viewpoint of others in thought, the
extended mode of thought; and the maxim of always thinking in agreement with one self,
the consequent [consequente] or coherent [bündige] mode of thought.
53. Kant strove to act in the world as the only place accessible to man. He did not
regard himself as a wise man or as a saint situated outside it. If he labored to create a
better school of philosophy, it was in the interest of worldly wisdom. He had no wish to
stand apart; what he sought in philosophy was something which helps the human race,
which helps each man as a man, to do his task.
Thought is of no value without communicability. Kant strove for understanding,
communication, peace, but in the movement of life. His goal was not the contentment of
an animal at pasture, the tranquility that corrupts, but the all-embracing reason which
links all man’s potentialities together and permits them to unfold. No other thinker of the
Enlightenment attained to so lofty a concept of reason.
Kant was open to the world, even to its remotest aspects. He respected
intelligence and human stature wherever he found them: “Because philosophy can use
everything that the man of letters or the eccentric visionary provides, a philosopher values
everything that demonstrates a certain strength of mind Moreover, he is accustomed to
taking different standpoints and, because he never loses sight of the mysterious character
of the whole, he distrusts his own judgement . . Philosophy makes a man humble, or
rather, it teaches him to measure himself by the Idea and not in comparison to others.”
Kant’s sense of humanity raised him above all philosophical arrogance, although the
lucidity and range of his thinking made him dangerously superior to all his
contemporaries.
57. The Transcendental Analytic (…) has this important result: That the
understanding can never accomplish a priori anything more than to anticipate the form of
a possible experience in general, and, since that which is not appearance cannot be an
object of experience, it can never overstep the limits of sensibility, within which alone
objects are given to us. Its principles are mere principles of the exposition of appearances,
and the proud name of an ontology, which presumes to offer synthetic a priori cognitions
of things in general as a systematic doctrine (e.g., the principle of causality), must give
way to the modest one of a mere analytic of the pure understanding.
58. Ontology is the science of things in general, i.e., of the possibility of our
cognition of things a priori, i.e., independently from experience. It can teach us nothing of
things in themselves, but only of the a priori conditions under which we can cognize
things in experience in general, i.e., principles of the possibility of experience.
59. We have spoken of ontology of concepts of the understanding the use of which
in experience is possible because they themselves make experience possible.
60. Kant forgoes richness of content, because he wishes to convey a pure
consciousness of the “forms”. Forms are superior to philosophical embodiment, because,
if I think them through, they make me produce my thinking. They act upon my
nonobjective inwardness, my freedom. Forms have the power to awaken. They give shape
to my thinking and must therefore be complemented by reality: by individual Existenz,
scientific inquiry, historical vision, the contemplation of art and poetry.
CAPÍTULO 3
1. (...) Until we fix our observations more on human beings, all our wisdom is
folly.
7. Scepticism is an ability to set out oppositions among things which appear and
are thought of in any way at all, an ability by which, because of the equipollence in the
opposed objects and accounts, we come first to suspension of judgement and afterwards
to tranquility.
9. The sceptical persuasion, then, is also called Investigative, from its activity in
investigating and inquiring; Suspensive, from the feeling that comes about in the inquirer
after the investigation; Aporetic, either (as some say) from the fact that it puzzles over
and investigates everything, or else from its being at a loss whether to assent or deny; and
Pyrrhonian, from the fact that Pyrrho appears to us to have attached himself to Scepticism
more systematically and conspicuously than anyone before him.
11. Others have said that human beings are mortal rational animals, capable of
understanding and knowledge. Now since we show in the first mode of suspension that no
animal is irrational but that all are capable both of understanding and of knowledge then
so far as the Dogmatist say goes – we shall not know what on earth they mean.
13. And we say all this without holding any opinions.
15. This standpoint of doubt is the opposite of skepticism. Doubt is restless
because it wants to find rest in something set in opposition to rest, and can find it
nowhere.
19. We must not translate skepsis as a ‘doctrine of doubt’. Skepticism is not a
doubt, for doubt is the very opposite of tranquility that ought to be Skepticism’s result.
Doubt [Zweifel] derives from zwei [two]; it is a vacillation between two or more points
(…)
20. (…) philosophy has (…) gained far more from the sceptici than from the
proud dogmatists: although it is true, of course, that the former, through misuse, finally
degenerated into bitter sarcasm. Skepticism, however, or the method of skeptical doubt,
where one establishes a distrust in oneself, considers the ground for and against the
cognition that one has, and in this way strives to come to complete certainty concerning
it, this is the kathartikon, reason’s best means of purgation. This skepticism hinders errors
as much as possible, leads man to more inquiry, and is the path to the truth of the matter
(although not all at once and suddenly, of course, but instead slowly and gradually
through more and closer investigation).
The doubt of postponement is thus actually a certain mark of the maturity of
reason and of experience in the truth of cognition.
21. This sceptical doubt, both in regard to reason and the senses, is a malady,
which can never be radically cur’d, but must return upon us every moment, however we
may chace it away, and sometimes may seem entirely free from it. ’Tis impossible upon
any system to defend either our understanding or senses; and we but expose them farther
when we endeavour to justify them in that manner. As the sceptical doubt arises naturally
from a profound and intense reflection on those subjects, it always encreases, the farther
we carry our reflections, whether in opposition or conformity to it. Carelessness and in-
attention alone can afford us any remedy.
24. In common speech the word doubt means any uncertainty, and in this respect
and this sense doubt is either dogmatic or skeptical. The former is a doubt of decision, but
the latter a doubt of retardation, of postponement. From the former certainty arises, but
from the latter closer investigation and inquiry, in order to attain proper and undoubted
certainty of cognition.
In dogmatic doubt we reject all inquiry and do not accept something toward which
we have, or believe ourselves to have, a grounded doubt. We decide, in short, and say: In
this matter there is no question of attaining any certainty. Thus dogmatic doubt regards
very many cognitions as if nothing at all could be established or settled concerning them.
25. (…) Dogmatic doubt consists in nothing but judging that one can never attain
complete certainty with cognition, and that all inquiry, furthermore, is thus always
conducted in vain and for nothing.
Skeptical doubt, on the other hand, consists in being conscious of the uncertainty
with a cognition and thus in being compelled to inquire into it more and more, so that
finally one may nonetheless attain certainty with the help of careful investigations. The
former, then, the dogmatist, rejects certainty completely and altogether. The latter, the
skeptic, however, searches for it little by little. (…) the scepticus constantly inquires, he
examines and investigates, he distrusts everything, but never without a ground. In this he
resembles a judge, who weighs the grounds for something as well as against it, and listens
to the plaintiff as well as the defendant, prior to and before deciding the matter and
passing judgement. He postpones his final judgement quite long before he dares to settle
something fully. These were the ancient and pure attributes of scepticismus and of an
unadulterated skeptic.
26. (…) a touchstone with which to distinguish truth from deception, since
different but equally persuasive metaphysical propositions lead inescapably to
contradictory conclusions, with the result that one proposition inevitably casts doubt on
the other: I had some ideas for a possible reform of this science then, but I wanted my
ideas to mature first before submitting them to my friend’s penetrating scrutiny.
27. (…) it is not thoughts but thinking (nicht Gedanken, sondern denken) which
the understanding ought to learn.
28. The method of instruction, peculiar to philosophy, is zetetic, as some of the
philosophers of antiquity expressed it (from zetein). In other words, the method of
philosophy is the method of enquiry [forschend]. It is only when reason has already
grown more practiced and only in certain areas, that this method becomes dogmatic, that
is to say, decisive [entschieden].
30. Kant never was a convinced skeptic, but he was in some ways skeptical about
his very enterprise. It may therefore prove useful to make clearer what kind of skepticism
Kant had assimilated. (…) Kant’s musings of 1768 show he was a skeptic about
philosophical and especially metaphysical claims. (…) While not doubting the possibility
of scientific knowledge and the validity of moral claims, he was uneasy about the
metaphysical accounts given on these matters. This uneasiness can be described as a form
of metaphysical skepticism, or as a skepticism concerning the method followed in
metaphysics.
32. Metaphysics, with which, as fate would have it, I have fallen in love but from
which I can boast of only a few favors, offers two kinds of advantage. The first is this: it
can solve the problems thrown up by the enquiring mind, when it uses reason to spy after
the more hidden property of things. But hope is here all two often disappointed by the
outcome. And, on this occasion, too, satisfaction has escaped our eager grasp.
(...)
The second advantage of metaphysics is more consonant with the nature of the
human understanding. It consists both in knowing whether the task has been determined
by reference to what one can know, and in knowing what relation the question has to the
empirical concepts, upon which all our judgments must at all times be based. To that
extent metaphysics is a science of the limits of human reason.
40. I have not been able to bring these considerations to this conclusion without at
the same time attending to the other influences of the pure philosophy that I have at the
same time completed. For I am not of the same opinion as an excellent man who
recommends that when one has once convinced himself of something one should
afterward not doubt it anymore. In pure philosophy that will not do. Even the
understanding already has a natural resistance to that. One must rather weigh the
propositions in all sorts of applications and even borrow a particular proof from these,
one must try out the opposite, and postpone decision until the truth is illuminated from all
sides.
41. If I only achieve as much as being convincing that one must suspend the
treatment of this science until this point has been settled, then this text will achieve its
purpose.
Initially I saw this doctrine as if in twilight. I tried quite earnestly to prove
propositions and their opposite, not in order to establish a skeptical doctrine, but rather
because I suspected I could discover in what an illusion the understanding was hiding.
The year ´69 gave me a great light.
42. “Approximately a year ago”, he wrote in September 1770, “I arrived at a
concept which I believe I shall never have to change, though no doubt it will require
amplification Through it all sorts of metaphysical questions can be appraised according to
perfectly certain and simple criteria, and through it one can determine with certainty
whether or not they are susceptible of solution.”
43. By themselves, openness, skepticism and patience led nowhere. If Kant’s
negative insight was not to be mere resignation, he would have to find new certainty
along new paths of metaphysical thinking.
Kant took a decisive step by introducing method into his skepticism.
44. “The Pyrrhonian ‘non liquet!’ is, as a wise oracular saying, supposed to make
difficult and hateful our empty brooding”. These passages show not only that Kant was
acquainted with Pyrrhonism, but also that he did not reject it outright. In fact, Pyrrho is
explicitly called “a man of merit”.
47. (…) to recommend the conviction and confession of its ignorance, not merely
as a cure for dogmatic self-conceit but also as the way in which to end the conflict of
reason with itself, is an entirely vain attempt, by no means suitable for arranging a
peaceful retirement for reason; rather it is at best only a means for awaking it from its
sweet dogmatic dreams in order to undertake a more careful examination of its condition.
48. This method of watching or even occasioning a contest between assertions, not
in order to decide it to the advantage of one party or the other, but to investigate whether
the object of the dispute is not perhaps a mere mirage [Blendwerk] at which each would
snatch in vain without being able to gain anything even if he met with no resistance – this
procedure, I say, can be called the skeptical method. It is entirely different from
skepticism, a principle of artful [kunstmässig] and scientific ignorance that undermines
the foundations of all cognition, in order, if possible, to leave no reliability or certainty
anywhere.
49. All skeptical polemicizing is properly directed only against the dogmatist, who
continues gravely along his path without any mistrust of his original objective principles,
i.e., without critique, in order to unhinge his concept and bring him to self-knowledge.
50. For the skeptical method aims at certainty, seeking to discover the point of
misunderstanding in disputes that are honestly intended and conduced with intelligence
by both sides, in order to do as wise legislators do when from embarrassment of judges in
cases of litigation they draw instruction concerning that which is defective and
imprecisely determined in their laws. The antinomy that reveals itself in the application of
the law is for our limited wisdom the best way to test nomothetics, in order to make
reason, which does not easily become aware of its false steps in abstract speculation,
attentive to the moments involved in determining its principles.
52.
You must have a direction if you are to get ahead.
55. The ground of the antinomy is the conflict: I. All empirical synthesis is
conditioned, the mathematical as well as the dynamical. A. All appearance has
parts and is itself a part. B. Everything that happens is a consequence (what is, is
conditioned) and is itself a ground. There is thus no first and last. No simple, no
boundary of magnitude, no first ground, no necessary being. I.e., we cannot
arrive at these among the appearances and must not appeal to them. By
contrast, the transc. synthesis through pure concepts of reason is unconditioned,
but also takes place through purely intellectual concepts; thus there is actually no
antinomy. The world is restricted. It consists of simples. There is freedom. There
is a necessary being.
56. If the conditioned is given, then the whole sum of conditions, and hence
the absolutely unconditioned, is also given, through which alone the conditioned was
possible.
57. If any sum total of dogmatic doctrines is called a “thetic,” then by “antithetic” I
understand not the dogmatic assertion of the opposite but rather the conflict between what
seem to be dogmatic cognitions (thesin cum antithesi), without the ascription of a
preeminent claim to approval of one side or the other. Thus an antithetic does not concern
itself with one-sided assertions, but considers only the conflict between general
cognitions of reason and the causes of this conflict. The transcendental antithetic is an
investigation into the antinomy of pure reason, its causes and its result.
60. (…) reason really cannot generate any concept at all, but can at most only free
a concept of the understanding from the unavoidable limitations of a possible
experience, and thus seek to extend it beyond the boundaries of the empirical, though still
in connection with it. This happens when for a given conditioned reason demands an
absolute totality on the side of the conditions (under which the understanding subjects all
appearances to synthetic unity), thereby making the category into a transcendental idea, in
order to give absolute completeness to the empirical synthesis through its progression
toward the unconditioned (which is never met with in experience, but only in the idea).
61. All the pure cognitions of the understanding are such that their concepts can be
given in experience and their principles confirmed through experience; by contrast, the
transcendent cognitions of reason neither allow what relates to their ideas to be given in
experience, nor their theses ever to be confirmed or refuted through experience; hence,
only pure reason itself can detect the error that perhaps creeps into them, though this is
very hard to do, because this selfsame reason by nature becomes dialectical through its
ideas, and this unavoidable illusion cannot be kept in check through any objective and
dogmatic investigation of things, but only through a subjective investigation of reason
itself, as a source of ideas.
63. (…) nothing is left except to reflect on the origin of this disunity of reason with
itself, on whether a mere misunderstanding might perhaps be responsible for it (…)
64. There is (…) no real polemic in the field of pure reason. Both parties fence in
the air and wrestle with their shadows, for the go beyond nature, where there is nothing
that their dogmatic grasp can seize and hold. Fight as they may, the shadows that they
cleave apart grow back together in an instant, like the heroes of Valhalla, to amuse
themselves anew in bloodless battles.
66. Transcendental illusion (…) does not cease even though it is uncovered and its
nullity is clearly seen into the transcendental criticism (e.g., the illusion in the
proposition: “The world must have a beginning in time”)… an illusion that cannot be
avoided at all, just as little as we can avoid it that the sea appears higher in the middle
than at the shores, since we see the former through higher rays of light than the latter, or
even better, just as little as the astronomer can prevent the rising moon from appearing
larger to him, even when he is not deceived by this illusion.
68. Thesis
The world has a beginning in time, and in space it is also enclosed in boundaries.
Antithesis
The world has no beginning and no bounds in space, but is infinite with regard to
both time and space.
71. (…) one necessarily thinks of the fully elapsed time up to the present moment
as also given (even if not as determinable by us). But as to the future, since it is not a
condition for attaining to the present, it is a matter of complete indifference for
comprehending the present what we want to hold about future time, whether it stops
somewhere or runs to infinity.
72. (…) the world has no beginning; then it is too big for your concept, for this
concept, which consists in a successive regress, can never reach the whole eternity that
has elapsed. Suppose it has a beginning, then once again it is too small for your concept
of understanding in the necessary empirical regress. For since the beginning always
presupposes a preceding time, it is still not unconditioned, and the law of the empirical
use of the understanding obliges you to ask for a still higher temporal condition, and the
world is obviously too small for this law.
It is exactly the same with the two answers to the question about the magnitude of
the world in space. For if it is infinite and unbounded, then it is too big for every possible
empirical concept. If it is finite and bounded, then you can still rightfully ask: What
determines this boundary? Empty space is not a correlate of things that subsists by itself,
and it cannot be a condition with which you can stop, still less an empirical condition that
constitutes a part of a possible experience. (For who can have an experience of what is
absolutely empty?) But for the absolute totality of the empirical synthesis it is always
demanded that the unconditioned be an empirical concept. Thus a bounded world is too
small for your concept.
73. Thesis
Every composite substance in the world consists of simple parts, and nothing
exists anywhere except the simple or what is composed of simples.
Antithesis
No composite thing in the world consists of simple parts, and nowhere in it does
there exist anything simple.
74. Thesis
Causality in accordance with laws of nature is no t the only one from which all the
appearances of the world can be derived. It is also necessary to assume another causality
through freedom in order to explain them.
Antithesis
There is no freedom, but everything in the world happens solely in accordance
with laws of nature.
Thesis
To the world belongs something that, either as a part of it or as its cause, is an
absolutely necessary being.
Antithesis
There is no absolutely necessary being existing anywhere, either in the world or
outside the world as its cause.
75. The dogmatic proofs culminating in contradictions are not an imposture, but
perfectly sound if it is assumed that phenomena are things in themselves. Or in other
terms: The absolute cannot be conceived without contradictions. But if things are
phenomena, in no sense unconditional, and if they draw their character from our manner
of representing them, there ceases to be any contradiction.
76. Wherever a constituent of the world we experience shoes itself to be
determined by a series of conditions that we are unable to follow through to their
endpoint, our thinking becomes entangled in an insoluble contradiction as soon as this
series of conditions turns out to be one that exists in and for itself.
77. The transcendental attempts of pure reason (…) are all conducted within the
real medium of dialectical illusion, i.e., the subjective which offers itself to or even forces
itself upon reason as objective in its premises.
80. The understanding constitutes an object for reason, just as sensibility does for
the understanding. To make systematic unity of all possible empirical actions of the
understanding is a business of reason, just as the understanding connects the manifold of
appearances through concepts and brings it under empirical laws.
84. (…) by marking off limits (the “discipline of pure reason”), it [Kant’s critical
philosophy] freed thought from all manner of phantasms in order to make room for the
positive. It opened the way not only to the sure progress of science but also to faith, a
faith grounded in reason. For dogmatism always leads ultimately to skepticism and
unbelief, while critique leads to science and faith.
85. Both taken together are, namely, the pure forms of all sensible intuition, and
thereby make possible synthetic a priori propositions. But these a priori sources of
cognition determine their own boundaries by that very fact (that they are merely
conditions of sensibility), namely that they apply to objects only so far as they are
considered as appearances, but do not present things in themselves.
89. One can call a procedure of this sort, subjecting the facta of reason to
examination and when necessary to blame, the censorship of reason. It is beyond doubt
that this censorship inevitably leads to doubt about all transcendent use of principles. But
this is only the second step, which is far from completing the work. The first step in
matters of pure reason, which characterizes its childhood, is dogmatic. The just
mentioned second step is skeptical, and gives evidence of the caution of the power of
judgment sharpened by experience. Now, however, a third step is still necessary, which
pertains only to the mature and adult power of judgment, which has at its basis firm
maxims of proven universality, that, namely, which subjects to evaluation not the facta of
reason but reason itself, as concerns its entire capacity and suitability for pure a priori
cognitions; this is not the censorship but the critique of pure reason, whereby not merely
limits but rather the determinate boundaries of it – not merely ignorance in one part or
another but ignorance in regard to all possible questions of a certain sort – are not merely
suspected but are proved from principles. Thus skepticism is a resting-place for human
reason, which can reflect upon its dogmatic peregrination and make a survey of the region
in which it finds itself in order to be able to choose its path in the future with greater
certainty, but it is not a dwelling-place for permanent residence; for the latter can only be
found in a complete certainty, whether it be one of the cognition of the objects themselves
or of the boundaries within which all our cognitions of objects is enclosed.
91. Boundaries (in extended things) always presuppose a space that is found
outside a certain fixed location, and that encloses that location. Limits require nothing of
the kind, but are mere negations that affect a magnitude insofar as it does not possess
absolute completeness. Our reason, however, sees around itself as it were a space for the
cognition of things in themselves, although it can never have determinate concepts of
those things and is limited to appearances alone.
93. If I represent the surface of the earth (in accordance with sensible appearance)
as a plate, I cannot know how far it extends. But experience teaches me this: that
wherever I go, I always see a space around me in which I could proceed farther; thus I
cognize the limits of my actual knowledge of the earth at any time, but not the boundaries
of all possible description of the earth. But if I have gotten as far as knowing that the
earth is a sphere and its surface the surface of a sphere, then from a small part of the
latter, e.g., from the magnitude of one degree, I can cognize its diameter and, by means of
this, the complete boundary, i.e., surface of the earth, determinately and in accordance
with a priori principles; and although I am ignorant in regard to the objects that this
surface might contain, I am not ignorant to the magnitude and limits of the domain that
contains them.
94. What we cannot know is beyond our horizon, what we do not need to know is
outside our horizon.
98. The consciousness of my ignorance (if this is not at the same time known to be
necessary) should not end my enquiries, but is rather the proper cause to arouse them. All
ignorance is either that of things or of the determination and boundaries of my cognition.
Now if the ignorance is contingent, then in the first case it must drive me to investigate
the things (objects) dogmatically, in the second case to investigate the boundaries of my
possible cognition critically. But that my ignorance is absolutely necessary and hence
absolves me from all further investigation can never be made out empirically, from
observation, but only critically, by getting to the bottom of [Ergründung] the primary
sources of our cognition.
CAPÍTULO 4
1. Between dogmatism and skepticism the intermediate and only lawful manner of
thinking is criticism.
2. Kant advocated eclecticism, saying ‘we will take what is good wherever it
comes from.’
3. The contradictions and conflict of systems are the only thing that have in
modern times prevented human reason from falling into complete disuse in the matters of
metaphysics. Although they are all dogmatic to the highest degree, they still represent
perfectly the position of skeptics for one who looks on the whole of this game. For this
reason we can thank a Crusius as well as a Wolff for the fact that through the new paths
they trod they at least prevented understanding from allowing its rights to become
superannuated in stupid idleness and still preserved the seed for a more secure knowledge.
Analyst and architectonical philosopher. In such a way the course of nature finally leads
its beautiful although mostly mysterious order through obstacles toward perfection. Even
a système de la Nature is advantageous to philosophy.
4. In order to find a way for the need of our age to steer successfully between the
two cliffs of dogmatism and skepticism, and at the same time to determine both of these
concepts suitably for this need, we must first of all establish its character with respect to
the manner of thinking that makes this caution necessary.
Extensive knowledge and the possession of a large number of sciences do not yet
comprise the character of this manner of thinking, for this concerns the quality and
specific constitution of the power of judgement and the principles that determine what
sort of use is intended for it. Whether our age has advanced very far in knowledge and
whether its cognition should be called great can only be judged comparatively; our
posteriority may well find it small. But a faculty may well already have ripened so that
the later world need add nothing further to it (because it is not the quantity but the quality
in the use of our cognitive faculty which is at issue), and this is the faculty of the power
of judgement (iudicium discretiuum)
Our age is the age of critique, i, e., of an acute judging of the foundation of all
assertions to which we have been brought by the experiences of many years, perhaps also
by the careful investigation of nature through observation and experiment which was set
into motion by the famous Bacon of Verulam, not only in the assertions of natural science
but also, by analogy, in other areas, of which the ancients knew nothing and where they
were therefore accustomed to shaky opinions. It will be difficult for a future age to do
better than us in this, unless out of negligence we do not make use of these principles as
we should. Certainly no past age has done better than us in this regard, and this can
therefore be called the scientific character of our age.
9. I had been an adherent of all philosophical systems in succession, Peripatetic,
Spinozist, Leibnitzian, Kantian, and finally Sceptic; and I was devoted to that system,
which for the time I regarded as alone true. At last I observed that all these systems
contain something true, and are in certain respects equally useful. (..) the difference of
philosophical systems depends on the ideas which lie at their foundation in regard to the
objects of nature (…)
14. To proceed dogmatically with all cognitions, i.e., to hope for decided certainty
without taking into consideration the grounds of the opposite, produces an insufficient
illusion. For if I believe that nothing more can be sought out against the truth, then I stop
investigating at once. But then the matter also has little foundation. One can well
investigate something dogmatically, but not proceed dogmatically. With the dogmatic
method one must also proceed skeptically, i.e., when I test whether I cannot say
something in the matter on the side of an opponent. Skepticism, then, is where something
is maintained dogmatically on both sides. One can do this by oneself, but then which of
the two can decide better? Now comes the critical method, i.e., I investigate the sources of
the dogmatic and the skeptical methods, and then I begin to see on which grounds a claim
rests and on which grounds its opposite rests. Critical method is thus the intermediate
method through which a cognition can attain certainty. It guards against the dogmatic
method because it opposes dogmatism with skepticism[;] and since it has thereby weighed
the grounds of both, it alone can decide how many grounds I have for holding-to-be-true.
15. [...] Kant finds himself (…) at a watershed of bourgeois consciousness. In a
sense he provides the model for a habit of thought that has been widespread in normal
bourgeois consciousness down to our own day. This is that curious synthesis of
scepticism and dogmatism that each and every one of you will probably have experienced
during your youth and from your family circumstances; it is, incidentally, a combination
that does not fit badly with Kant himself since his philosophy represents a forced alliance
of Humean scepticism and the dogmatism of classical rationalism. By scepticism I mean
basically the bourgeois gesture that expresses the idea, well, what is truth? And which
presumably likes nothing better in the New Testament better than the passage when
Pilates asks that very question: What is truth? We should note that the only purpose of
this question is to exclude every theoretical authority, every authoritative intervention of
thought from the realm of experience. This was an attitude that made its contribution to
the readiness of the bourgeoisie to swallow fascism and other forms of totalitarianism. On
the other hand, however, certain ideas are to remain inviolate and to be immune to all
criticism. Such ideas remain dogmatic; they must not be touched. These two elements: the
doubt that anything can be true and the unquestioned authority of norms that are regarded
simply as givens within existing reality – this situation corresponds fairly precisely to the
division that is rooted in Kant´s philosophy.
17. Our author talks of the spirit of contradiction, of the cult of paradox, or
crankiness in judgment. Paradox is good, if it does not entail acceptance of some
particular point that is made. It is the unexpected element in thinking, by which men are
often diverted into a new train of thought. The spirit of contradiction is evinced in
company by dogmatism.
19. On the Physical Effect of Philosophy. It is the health (status salubritatis) of
reason, as effect of philosophy.
20. The critique of pure reason is a prophylactic against a sickness of reason that
has its germ in our nature. It is the opposite of the inclination that chains us to our
fatherland (homesickness): a longing to leave our circle and to relate to other worlds.
22. Two metaphysici, one of whom proves the thesis, the other the antithesis,
occupy in the eyes of a third observer the position of a skeptical examination. One must
do both oneself.
25. [Critical philosophy] is an outlook ever-armed (against those who perversely
confound appearances with things-in-themselves), and precisely because of this
unceasingly accompanies the activity of reason, offers the prospect of an eternal peace
among philosophers, through the impotence, on the one hand, of theoretical proofs to the
contrary, and through the strength of the practical grounds for accepting its principles on
the other; a peace having the further advantage of constantly activating the powers of the
subject, who is seemingly in danger of attack, and thus of also promoting, by philosophy,
nature’s intention of continuously revitalizing him, and preventing the sleep of death.
29. In the beginning, under the administration of the dogmatists, her rule was
despotic. Yet because her legislation still retained traces of ancient barbarism, this rule
gradually degenerated through internal wars into complete anarchy; and the skeptics, a
kind of nomads who abhor all permanent cultivation of the soil, shattered civil unity from
time to time. But since there were fortunately only a few of them, they could not prevent
the dogmatists from continually attempting to rebuild, though never according to a plan
unanimously accepted among themselves.
30. Now as far as the observers of a scientific method are concerned, they have
here the choice of proceeding either dogmatically or skeptically, but in either case they
have the obligation of proceeding systematically. If I here name with regard to the former
the famous Wolff, and with regard to the latter David Hume, then for my present purposes
I can leave the others unnamed. The critical path alone is still open.
31. A treatment of science is dogmatic when one does not trouble to investigate
from which powers of the mind a cognition arises, but rather lays down as a basis certain
general propositions and infers the rest from them; a treatment is critical when one
attempts to discover the sources from which it arises. (…)
We must therefore investigate the powers of the mind out of which the cognitions
arise, in order to see whether we can trust them, regardless of whether they seem to be
obviously true - - and then, to cognize something a priori, which is what the faculty in
general is based on. The critical method examines the proposition not objectively or
according to its content, but rather subjectively. – Accordingly, the method of
metaphysics is critical and dogmatic in order to find a criterion for distinguishing between
the cognitions which legitimately arise from understanding and from reason, and those
which come about through an illusion or through one’s deceiving oneself.
32. One must rebuild on the plot where one has torn down, or at least, if one has
disposed of the speculative brainstorm, one must make the understanding pure insights
dogmatically intelligible and delineate its limits. With this I am now occupied (…)
33. One should not believe that everything before now was written and conceived
as a mere loss. The dogmatic attempts can always go on, but a critique of them must
follow, and they can only be used to judge about the illusion that human reason
experiences if it confuses the subjective with the objective and sensibility with reason.
(…)
I certainly believe that this doctrine will be the only one that will be left once
minds have cooled from dogmatic fever ant that it must then endure forever; but I very
much doubt that I will be the one that produces this alteration.
34. (…) where Kant had believed he was posing an absolutely necessary and
universally valid problem, they saw only the expression of a personal view and dogma.
35. (...) on the one hand, reason is anti-dogmatic and denies itself the right to go
beyond the limits of possible experience. (…)
On the other hand, however, it is this selfsame theoretical reason that actually
installs this block which prevents reason to go beyond that point. It is theoretical reason in
Kant that commands reason to stop and prevents it from carrying out its original task,
namely, to think the Absolute.
45. Reflection (reflexio) does not have to do with objects themselves, in order to
acquire concepts directly from them, but is rather the state of mind in which we first
prepare ourselves to find out the subjective conditions under which we can arrive at
concepts. It is the consciousness of the relation of given representations to our various
sources of cognition, through which alone their relation among themselves can be
correctly determined. The first question prior to all further treatment of our representation
is this: In which cognitive faculty do they belong together? Is it the understanding or is it
the senses before which they are connected or compared?
46. Allow me to call the position that we assign to a concept either in sensibility or
in pure understanding its transcendental place. In the same way, the estimation of this
position that pertains to every concept in accordance with the difference in its use, and
guidance for determining this place for all concepts in accordance with rules, would be
the transcendental topic, a doctrine that would thoroughly protect against false pretenses
of the pure understanding and illusions arising therefrom by always distinguishing to
which cognitive power the concepts properly belong.
47. 1. the sources of human knowledge,
2. the extent of the possible and profitable use of all knowledge, and finally
3. the limits of reason.
48. (…) if <he> obtains inner experience <from> himself, and if he persues this
investigation as far as he can, he will have to confess that self-knowledge would lead to
an unfathomable depth, to an abyss in the exploration of his nature.
50. (…) expression of captivity: as knowing subjects we know only ourselves. In
this sense we are never able to get outside ourselves; we are imprisoned within ourselves.
51. That in every kind of connection in the sensible world there is never an
absolutely first thing, thus that no infinity can be represented as entirely given,
consequently that there is no absolute totality, proves that the absolute must be thought of
as outside of it, and that the world itself exists only is relation to our senses.
64. In addition to the property of self-consciousness, by which man is to be
distinguished above all other animals, and in virtue of which he is a rational animal (…),
there is also the itch to use this power for trifling, and thereafter to trifle methodically and
even by concepts alone, i.e, to philosophize; and then also to grate polemically upon
others with one’s philosophy, ie., to dispute, and since this does not readily happen
without emotion, to squabble on behalf of one’s philosophy, and finally, united in masses
against one another (school against school, as contending armies) to wage upon warfare;
this itch, I say, or rather drive, will have to be viewed as one of the beneficent and wise
arrangements of Nature, whereby she seeks to protect man from the great misfortune of
decaying in living flesh.
65. All historical knowledge is empirical, and hence knowledge of things as they
are, not that they necessarily have to be that way. Rational knowledge presents them
according to their necessity. Thus a historical presentation of philosophy recounts how
philosophizing has been done hitherto, and in what order. But philosophizing is a gradual
development of human reason, and this cannot have set forth, or even have begun, upon
the empirical path, and that by mere concepts. There must have been a need of reason
(theoretical or practical) which obliged it to ascend from its judgments about things to the
grounds thereof, up to the first, initially through common reason, e.g., from the world-
bodies and their motion. But purposes were also encountered: and finally, since it was
noticed that rational grounds can be sought concerning all things, a start was made with
enumerating the concepts of reason (or those of the understanding) beforehand, and with
analyzing thinking in general, without any object. The former was done by Aristotle, the
latter even earlier by the logicians.
66. A philosophical history of philosophy is itself possible, not historically or
empirically, but rationally, i.e., a priori. For although it establishes facts of reason, it does
not borrow them from historical narrative, but draws them from the nature of human
reason, as philosophical archaeology.
72. (…) if we were to ask (…) which method of philosophizing will be the most
appropriate and the best in academies and which will please the most, the dogmatic or the
skeptical?
Then we would necessarily have to answer: the dogmatic.
If a learned man steps up here and establishes something dogmatically concerning
this or that cognition, then nothing can be easier for the listener[;] he need not examine
anything, investigate anything, but instead only fix in his memory the little that the
teacher says and expounds to him. In this way he remains completely at rest and in
comfort[;] he need only memorize; whereas doubt about cognitions is far less
comfortable, but instead is far more unsettling, and requires one’s own reflection and
investigation.
76. Not even death (…) can be deemed something by nature dreadful, just as life
cannot be deemed something naturally fine. None of these things is thus and so by nature:
all are matters of convention and relative.
CONCLUSÃO
2. The nature of man is wholly natural, omne animal.
There is nothing he may not make natural; there is nothing natural he may not lose.
9
Anexo II
Poema
Biografia___________________________________________________
À Profª. Vera Cristina Bueno
Em abril nascia uma raposa, um chinês, um sábio
da Prússia
Quer idealista, empirista (dedica a Crítica da Razão Pura a Bacon de Verulâmio)
quer realista, materialista,
de pele rosada
Foi, do alto de seus 1,57m
sobretudo dualista, pluralista e iluminista
Empolgou-se com a revolução francesa, com Napoleão, como a maioria,
porém não alterou seu juízo frente ao Terror.
entende que a natureza e a humanidade fazem-nos sociais insociáveis,
matéria de uma madeira torta
A fevereiro de 1804, morre aos seus quase 80 anos
Uma vida planejada simplesmente e com certa dose de ambição,
quando havia de ser, à morte de seu pai
Kant sentira uma revolução em si e acreditou na revolução de si mesmo
Na maneira de viver e atuar no mundo, para pensar e exercer
a possibilidade da liberdade
como uma força viva
Pois é ainda racionalista, preceptor, Magister, Privat-Dozent
Acreditara na pedagogia da maioridade, na Zétesis e na crítica,
na Determinação da Necessidade e na Causalidade da Autonomia.
No reconhecimento da razão,
e o Entendimento dos seus elementos, seus conflitos e intrigas
E também o que a motiva e satisfaz
Não queria ensinar pensamentos, nem somente lecionar Geografia,
Antropologia, Metafísica , mas sim a pensar
Que saibam, nunca transou, morreu virgem
Jamais se casou, nunca teve uma namorada.
Requisitado na vida social,
inclusive pelos russos, efusivamente, à época das festas na invasão de Königsberg
Bebia socialmente, na sua intimidade fumava no seu cachimbo todas as manhãs.
Foi um querido professor e ensinou a mesma matéria, numa aula muito popular,
durante “uns trinta anos”, para oficiais, advogados, mercadores, estudantes de
humanidades se orientarem no pensamento.
Mas então cansou um pouco de lecionar, estava arquitetando um edifício
transcendental.
Após renascer (alguns têm o privilégio ou a desgraça de nascer somente uma
única vez) não ouvia mais música, nem devia ler poesia, Alexander Pope o seu
preferido
Na sua palingenesia pessoal, passa a dormir cedo e torna-se Immanuel, conhecido
então como ponteiro de relógio, por influência de seu amigo inglês Green.
Seu enterro, com dissensões acadêmico-políticas,
Um misto de respeito e desgosto, como o de Mozart
Referência para Goethe e Schiller (poeta e dramaturgo que estudou e
publicou filosofia no intervalo de cinco anos), caçoado por Ephraim Lessing, nos
primórdios, que publica uma provocação dirigida ao Magister Kant sobre as
Forças [Vivas” da sua fase “pré-crítica”]
porém, logo cortada das obras completas do erudito judeu
Com a sua crítica da capacidade de julgar se dá o início do famigerado Idealismo
[Alemão],
apazigua ao orientar Jacobi e Mendelssohn em Panteismusstreit
Honra a memória de David Hume ao berço da sua maturidade, e
Rousseau, no retrato único em adorno de seu escritório sóbrio e robusto.
Assusta Mendelssohn ao ser Alleszermalmer das filosofias de Wolff, Baumgarten,
e outros seguidores de Leibniz, e ainda a deste, que fora, por sua vez, influenciado
por Spinoza.
Chama-os de metafísicos dogmáticos, contudo sabe como abarcá-los e,
da História da Filosofia, considera ninguém estúpido,
Mas, a si mesmo, como a realização máxima da estória de seus conflitos tateantes,
todos eles, saibam ou não, aos seus olhos, em tentativa una de conhecer a si
mesmo e à razão.
Os abraça na sua Dialética da razão, os refuta com a sua Analítica do
entendimento.
Assim representa, ao máximo e consistentemente, as forças em contradição e o
labirinto interior, a ambivalência da Aufklärung e da modernidade.
Professor de Hamann e Herder,
estuda Vico e Newton, a eletricidade e terremotos
e, dentre todas as coisas, a lei anímica e o céu estrelado.
Es ist gut: suspira suas últimas palavras.
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