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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Toba Sender
Até agora: tradução e reflexão do modo-de-significar o universo literário de
Agnon
Rio de Janeiro
2008
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Toba Sender
Até agora: tradução e reflexão do modo-de-significar o universo literário de
Agnon
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Literatura Comparada.
Orientador: Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause
Rio de Janeiro
2008
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
A274 Sender, Toba.
Até agora: tradução e reflexão do modo de significar o universo
literário de Agnon /Toba Sender . – 2008.
169 f.
Orientador: Gustavo Bernardo Krause.
Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras.
1. Agnon, Shmuel Yosef, 1888-1970 Traduções para o
português – Teses. 2. Agnon, Shmuel Yosef, 1888-1970 – Crítica e
interpretação. 3. Tradução e interpretação – Teses. 4. Análise do
discurso literário – Teses. I. Krause, Gustavo Bernardo. II.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III.
Título.
CDU 892.4.035=690
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação
__________________________ __________________
Assinatura Data
Toba Sender
Até agora: tradução e reflexão do modo-de-significar o universo literário de Agnon
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor, ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Literatura Comparada.
Aprovado em: 12 de agosto de 2008
Banca Examinadora:
________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Bernardo Krause (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ
________________________________________
Profª. Drª. Rosana Kohl Bines
Departamento de Letras da PUC-Rio
________________________________________
Prof. Dr. Adauri Bastos
Faculdade de Letras da UFRJ
________________________________________
Profª. Drª. Ana Lúcia de Oliveira
Instituto de Letras da UERJ
________________________________________
Profª. Drª. Sílvia Regina Pinto
Instituto de Letras da UERJ
Rio de Janeiro
2008
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Gustavo Bernardo Krause, meu orientador, sempre presente, pela
disponibilidade, apoio e troca.
A Dennis Gerstenberger, do Instituto Goethe, pela consultoria dos termos e nomes em
alemão.
Às Professoras Sílvia Regina Pinto e Ana Lúcia Oliveira, minhas professoras no curso, pela
gentileza.
Aos meus professores no curso.
À UERJ, onde concretizei um sonho.
A Boris, meu marido e companheiro, pelo suporte.
A Gisela, Ilana e Tamara, minhas filhas, por me incentivarem a prosseguir.
A Eduardo Compan, meu genro, pelo carinho.
Foi através de vós, caros senhores, que chegou até mim uma das bênçãos concernentes
à audição. Aconteceu quando o Encarregado de Negócios Sueco veio e trouxe-me a notícia de
que a Academia Sueca me conferira o Prêmio Nobel. Recitei, então, por inteiro, a bênção que
é prescrita para aquele que ouve boas notícias para si mesmo ou para outros: “Bendito seja
Ele que é bom e faz o bem”. (Agnon, discurso de posse do Prêmio Nobel de Literatura, 1966)
RESUMO
SENDER, Toba. Até agora: Tradução e reflexão do modo-de-significar o universo literário de
Agnon. 2008. 169f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Considerando as dificuldades e implicações da tradução de obras literárias, a proposta
da tese é apresentar o ato da tradução como uma forma de criação/recriação no novo idioma,
mantendo-se, muito além do conteúdo narrativo, a impressão, a forma, o estilo, o tom e a
estética do texto original. A tese contém a tradução hebraico-português de uma novela de Shai
Agnon (Prêmio Nobel de Literatura, 1966) e um prefácio em que a obra é contextualizada em
termos do autor e em termos histórico-culturais da época e lugar a que se refere. O prefácio
inclui também uma reflexão a respeito de algumas teorias da tradução, num diálogo
comparativo entre Benjamin e Flusser, e um argumento de Haroldo de Campos a respeito da
tradução como criação literária. Por fim, mas não nessa ordem, uma análise da novela
traduzida, indicando traços do estilo do autor, suas fontes de inspiração e sua inserção na obra
como um todo.
Palavras-chave: Tradução. Shai Agnon. Walter Benjamin. Vilém Flusser. Haroldo de
Campos.
ABSTRACT
Considering the difficulties and implications of translating literary compositions, the
proposal of this thesis is to present the act of translation as a mean of creation/re-creation in
the new language, keeping impression, form, style, tone and aesthetic of the original text,
beyond the narrative content. The thesis is the hebrew-portuguese translation of a Shai Agnon
(Literature Nobel Prize Award winner, 1966) novel and a preface in which the composition is
contextualized in author terms and in historic-cultural of that time and place terms. The
preface also includes a reflection regarding some translation theories, in a comparative
dialogue between Benjamin and Flusser, and an argument of Haroldo de Campos regarding
translation as a literary creation. In the end, but not in this order, an analysis of the translated
novel, indicating traces of the author style, his inspiration sources and his insertion in the
composition as a whole
Keywords: Translation. Shai Agnon. Walter Benjamin. Vilém Flusser. Haroldo de Campos.
SUMÁRIO
PREFÁCIO ....................................................................................................................... 9
O nome e a palavra ........................................................................................................... 9
Contexto histórico ............................................................................................................ 15
Fé ou engajamento ........................................................................................................... 16
Da tradução e da tradução como criação ...................................................................... 21
Comentário final .............................................................................................................. 25
ATÉ AGORA ................................................................................................................... 29
REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 168
SHAI AGNON (1888-1970)
9
PREFÁCIO
[...] um conto não é como um parágrafo do Talmud, que precisa estar
cercado de explicações por todos os lados. (Agnon, Até agora)
O nome e a palavra
O protagonista de Até agora, narrador em primeira pessoa, encontra um amigo em
Berlim, Iossef Bach, que acaba de escrever seu primeiro livro. O nome do livro será Biologia
dos acontecimentos ou então Da repetição das coisas. Uma das características na literatura de
Agnon é dar um sentido contextualizado ou, pelo menos, significativo, aos nomes próprios.
No caso do livro de Iossef Bach, os nomes prováveis Biologia dos acontecimentos e Da
repetição das coisas também exercem uma função sutil.
O próprio pseudônimo literário que Agnon elegeu para si deriva do nome do primeiro
conto que escreveu em Israel, no ano de 1908: Agunot (esposas abandonadas). Como a base
do idioma hebraico são os radicais de três letras consoantes, Shmuel Iossef haLevi Czaczkes
adotou o pseudônimo literário retirado de Agunot, cujo radical AGN deu origem ao nome
Agnon. Seu pré-nome também foi modificado por um método freqüente em hebraico, que
consiste na formação de novas palavras com as iniciais das palavras de origem. Assim,
Shmuel Iossef se transformou em Shai, novo nome formado pelas iniciais dos dois nomes do
escritor. Coincidentemente, o nome Shai tem um significado: é a palavra hebraica que se
traduz como dádiva, regalo. Assim, Shmuel Iossef haLevi Czaczkes escolheu seu nome
literário, Shmuel Iossef Agnon ou, na forma reduzida, Shai Agnon.
Personagens como Guedalia Klein, em A Carta, que é a oposição entre grande, em
hebraico, e pequeno, em ídiche; Itzchak Kumer, em Somente Ontem, também formado pela
oposição riso, em hebraico, e tristeza, em ídiche; Nissan Zumer, em Hóspede por Uma Noite,
com a oposição Nissan, que é o mês da primavera, em hebraico, e Zumer, verão, em ídiche;
Iudil Chassid, em O Dote da Noiva, com a oposição judeu, em ídiche, e devoto, em hebraico,
são alguns exemplos. Essa oposição nos nomes, de fato, é dupla: a oposição semântica e a
oposição histórica. A oposição semântica é explícita, literal, e é possível achar uma relação do
nome com o enredo em que o personagem está inserido. A oposição histórica é implícita e
acompanha o período histórico que se constitui em cenário da literatura agnoniana,
abrangendo a fase de uma grande transição na vida judaica, simbolizada efetivamente pela
10
substituição do ídiche pelo hebraico — ambos representantes ideológicos de duas tendências
opostas e simultâneas do final do século XIX e início do século XX nas comunidades do leste
europeu como resultado do iluminismo judaico, num movimento interno, e, com a criação do
sionismo político nesse mesmo período, como representantes ideológicos da transferência de
judeus da Europa a Israel, num movimento externo. É a oposição entre o velho e o novo
modelo, vivida intensamente pela geração de Agnon.
Em Hóspede por Uma Noite o narrador em primeira pessoa retorna à sua cidade
depois da Primeira Guerra e acha os primeiros sinais de decadência da vida religiosa dos
judeus. O nome fictício que Agnon atribuiu à cidade é Shibush, substantivo hebraico que
significa dano, estrago, mas além da escolha do nome ser uma referência às conseqüências da
guerra e ao sinal dos tempos, que é a temática central do livro, Shibush é também um
anagrama de Buczacz, a cidade natal do autor, cuja sonoridade é evidente em hebraico, já que
o encontro consonantal CZ é um fonema semelhante a SH — em português, entretanto, o
anagrama é identificado apenas por aproximação. Em Tehila, a anciã devota Tehila, que
significa louvor, lia diariamente uma cota dos Salmos (Tehilim, em hebraico) que consistem
em poemas de louvor a Deus.
A importância atribuída ao nome não se explica apenas como recurso de estilo em
Agnon, mas também como característica herdada da sua história familiar, dos movimentos
culturais da época e, principalmente, por influência da Cabala, cujos conceitos lhe foram
passados desde a infância na forma do movimento chassídico. Segundo Guinsburg, (AGNON,
1967, p. 47, 48) Agnon teve contato com uma mistura cultural no seio da própria família: o
pai, comerciante de peles, tinha formação rabínica, conhecia a filosofia judaica medieval e,
paradoxalmente (por se tratarem de tendências contraditórias), freqüentava os círculos
chassídicos e praticava os seus princípios. Agnon herdou, pelo lado paterno, a dualidade, mas
também a possibilidade de coexistência entre o racionalismo e a mística. A mãe era versada
em literatura alemã, e também marcou a formação do filho num amálgama cultural que lhe
deu os subsídios para se haver com equilíbrio e desequilíbrio, harmonia e desarmonia, nas
relações intra e interculturais representadas na sua obra. Contudo, ainda segundo Guinsburg,
(idem) foi a herança do pai que lhe deu a base de sua formação, com o estudo do Talmud e o
contato com a literatura religiosa e tradicional.
O estilo literário próprio de Agnon segue o modelo filosófico da Cabala, em que a
forma, a letra e a palavra não são meros veículos a serviço da narrativa como um todo, mas
constituem os elementos que contêm a essência dessa narrativa em que o todo está contido na
parte, como, para citar um exemplo, a escolha dos nomes dos personagens. A valorização da
11
forma, que na abordagem filosófica baseada na visão cosmogônica da Cabala atribui poder
criador à letra e à palavra, está presente na sua obra.
O relato da criação do mundo em Gênesis através da palavra conferiu a ela uma
natureza transcendente na mística judaica. Com o “Haja luz” bíblico foi construída toda uma
teoria da letra e da palavra no nível metafísico, retirando-lhes o estatuto de convenção. Borges
comenta:
Embora Platão soubesse que havia outros idiomas, os outros idiomas
eram bárbaros. Para ele só existia o idioma grego. Então não lhe
parecia tão absurdo que houvesse uma relação entre as palavras e seus
sentidos, que é a idéia da Cabala. De modo que se se diz ‘Haja luz, e
houve luz’, devia existir algo na palavra ‘luz’ que produzisse a luz.
Em troca agora conhecemos filosofia demais para acreditar nisso e
podemos pensar que as palavras são símbolos arbitrários.
(SOSNOWSKI, 1991, p. 63)
Nessa concepção de transcendência, há métodos cabalísticos de decifração como meio
de atinar com o aspecto oculto da letra e da palavra, esta última, como a própria expressão da
sua essência. Os métodos mais freqüentes e acessíveis, apesar de sua complexidade, são
Gematria, Notarikon, e Temurá. Scholem explica:
Aqui e ali, na literatura do chassidismo, é dada pela primeira vez
proeminência a certas técnicas de especulação mística, que
popularmente parecem representar o coração e o âmago do cabalismo,
tais como a Gematria, isto é, o cálculo do valor numérico das palavras
hebraicas e a busca de conexões com outras palavras ou frases de
igual valor; o Notarikon, ou interpretação das letras de uma palavra
como abreviações de sentenças inteiras; e a Temurá, ou permutação de
letras de acordo com certas regras sistemáticas. (SCHOLEM, 1972, p.
101)
Na abordagem mística, a palavra se compara à própria realidade, porque tem o efeito
de ser, tornar-se ou alterar a realidade. Essa idéia é ilustrada nas historietas chassídicas de
cunho oral, popular e anônimo, e que foram reunidas por Martin Buber com a colaboração de
Agnon. Scholem exemplifica o efeito criador da palavra e sua equivalência à realidade no
conto com que encerra o seu A Mística Judaica. Citando o próprio Agnon, Scholem conta:
E assim talvez me seja permitido encerrar estas conferências
contando-lhes uma estória cujo tema, se quiserem, é a própria história
12
do chassidismo. Ei-la, como a ouvi contada pelo grande romancista e
narrador hebreu, Sch. I. Agnon:
Quando o Baal Schem tinha uma tarefa difícil à sua frente, ia a
um certo lugar no bosque, fazia fogo e meditava em prece — e o que
decidia realizar era feito. Quando, uma geração depois, o Maguid de
Mesritsch se deparava com a mesma tarefa, ia ao mesmo lugar no
bosque e dizia: Não sabemos mais acender o fogo, mas sabemos ainda
proferir as preces — e aquilo que pretendia tornava-se realidade.
Passada mais uma geração, o Rabi Mosché Leib de Sassov precisou
executar a tarefa. Também foi ao bosque e disse: Não sabemos mais
acender o fogo, nem sabemos as meditações secretas pertencentes à
prece, mas conhecemos o local no bosque a que tudo isso diz respeito
— e deve ser o suficiente; e era suficiente. Mas passada outra geração,
quando Rabi Israel de Rijn foi chamado a executar a tarefa, sentou-se
em sua poltrona dourada, no seu palácio, e disse: Não sabemos
acender o fogo, não sabemos dizer as preces, não conhecemos o local,
mas podemos contar a estória de como isso foi feito. E, o narrador
acrescenta: A estória que ele contou teve o mesmo efeito das ações
dos outros três. (ibid., p. 350)
Voltando ao nome do livro do personagem Iossef Bach, há nessa escolha uma
condensação de fatores, sentidos e contextos que extrapolam o nome. O nome do livro do
personagem seria adequado ao livro em que está inserido, Até agora. A narrativa de Até agora
justifica receber o nome Biologia dos acontecimentos e mais adequado ainda seria receber o
nome Da repetição das coisas. O autor oferece ao seu personagem o nome que poderia
designar a sua própria narrativa. É assim que a parte, em Agnon, abarca o todo. E essa
repetição das coisas, que no livro de Iossef Bach se refere a uma determinada repetição, diz
respeito, no livro de Agnon, a dois outros modos de repetição. O primeiro está no uso da
linguagem: é a repetição na forma. O segundo, na construção da narrativa: é a repetição no
conteúdo.
O hebraico é um idioma redundante. A repetição faz parte do âmago da linguagem:
sonhar um sonho, perguntar uma pergunta, subir para cima, descer para baixo, contar um
conto, decidir uma decisão, são exemplos dessa repetição intrínseca ao idioma, formulações
inerentes ao hebraico e não, como se poderia supor, uma liberalidade, um vício de linguagem
ou uma modernização coloquial. Além dessa característica própria do idioma, Agnon é um
escritor de estilo prolixo e meticuloso. A redundância do hebraico somada ao estilo
redundante de Agnon conferem ao texto agnoniano uma peculiaridade inconfundível. A
prolixidade e a meticulosidade, a forma de expor o pensamento, a escolha da pontuação — no
caso de Agnon, a falta de pontuação — são semelhantes ao estilo do Talmud, uma literatura
fluida e corrente que segue o modelo livre do pensamento, sem interrupções marcadas pela
13
pontuação e sem o compromisso com a coerência do tempo, em que o uso do passado e do
presente se alternam no mesmo parágrafo indicando distanciamento e aproximação e não,
propriamente, eventos passados ou presentes. Sob a influência do Talmud, Agnon usa com
familiaridade termos em aramaico que exigem do leitor a habilidade de identificar o sentido
pelo radical ou pelo contexto. É assim que se apresenta o primeiro modo de repetição em Até
agora: na linguagem que resulta do somatório do idioma hebraico afeito à redundância, do
estilo minucioso e repetitivo de Agnon, e da literatura matriz do Talmud, também esta,
prolixa. O segundo modo de repetição em Até agora reside no conteúdo da narrativa, na
sucessão dos acontecimentos que retornam ao ponto de partida, nas viagens de trem
percorrendo os mesmos trajetos, nas revisões mentais que o narrador faz das suas ocorrências
durante a permanência em Berlim, na mensagem de recuperação, retorno e renovação que o
texto evoca. Biologia dos acontecimentos ilustra a sucessão dos acontecimentos onde uma
ocorrência gera a seguinte, num encadeamento de causa e efeito. Da repetição das coisas
ilustra o retorno dos acontecimentos inacabados para um desfecho. Isso, em relação a Até
agora, porque o livro do personagem Iossef Bach tem outras motivações, como ele mesmo
expõe. Cabe assinalar que o narrador comenta que Iossef tem o mesmo nome que ele, mais
propriamente, o seu segundo nome, identificando o narrador com o autor, explicitamente.
No jogo dos nomes o autor se insere na narrativa de Até agora projetando-se em dois
personagens. Iossef Bach é um deles: escreveu o livro que poderá receber o nome de Biologia
dos acontecimentos e Da repetição das coisas. O narrador comenta:
Esse amigo tem o mesmo nome que eu, e isso não é comum,
considerando que tenho dois nomes que não costumam vir juntos, mas
ele tinha o segundo nome como o meu primeiro nome, e não sabíamos
que temos o mesmo nome até que uma vez aconteceu de estarmos
numa sinagoga em Berlim e nos chamaram à leitura da Torá, e
ouvimos que nossos nomes são iguais, e como nossos nomes são
iguais, um puxa pelo outro, apesar de que não sabíamos desde o início
que somos irmãos de nome. (Até agora)
Iossef Bach é escritor. Escreveu seu primeiro livro que tem afinidade com as
ocorrências repetitivas evocadas no livro de Agnon. Iossef Bach explica:
É preferível que eu lhe conte como cheguei a isso. Estava eu dentro da
terra, numa trincheira, e uma coisa me aconteceu, e é impossível
afirmar se algo assim ou parecido já havia me acontecido antes, apesar
disso, me parece que o principal do fato tem a ver com um
acontecimento que já havia me ocorrido. Mais uma vez me aconteceu
14
uma coisa que eu não conseguia decidir se é um fato novo ou antigo,
pois parecia ser um e outro. Após alguns dias, voltou a se repetir. E
quando voltou a se repetir, a dúvida do meu coração foi eliminada, e
eu soube claramente que se tratava de uma repetição do que já havia
acontecido, e não apenas uma vez, mas duas, que são três. Comecei a
refletir a respeito dessas coisas, por que motivo, logo que acontece,
vem-lhe o conhecimento de que já lhe aconteceu antes, e isso ainda
não o satisfaz, até que a coisa volta a se repetir. E o primeiro
acontecimento, o que é? É uma nova criação ou também não é senão a
repetição de coisas que já foram esquecidas? Se é assim, onde começa
e quando termina? (idem)
O outro personagem em que se percebe uma projeção do autor é o Dr. Levi. O nome
de Agnon é Shmuel Iossef haLevi. O Dr. Levi é o personagem que mobiliza o narrador e que
centraliza a narrativa. Levi deixou de herança um verdadeiro tesouro em livros. São os livros
que o narrador quer transferir da Alemanha para Israel. Agnon morou em Berlim nos anos de
1913 a 1924, antes de se transferir definitivamente para Jerusalém. Os acontecimentos
narrados em Até agora datam da Primeira Guerra Mundial, período que coincide com a
permanência de Agnon na Alemanha. Os livros do Dr. Levi que o narrador queria levar para
Israel não seriam seus próprios livros, de sua posse e de sua autoria até então — a maior parte
dos quais destruídos no incêndio de sua casa em 1924 — e os que ainda haveria de escrever?
No discurso de posse do Prêmio Nobel Agnon diz:
Entre os livros que se queimaram figurava um grande romance de
umas setecentas páginas, cuja primeira parte o editor anunciara para
breve. Junto com este romance, chamado Vida Eterna, queimou-se
tudo o que escrevera desde o dia em que saí da Terra de Israel para o
exílio, inclusive um livro que eu compusera juntamente com Martin
Buber, além de quatrocentos livros hebraicos, muitos dos quais
chegaram até mim vindos de meus antepassados e outros que eu havia
comprado com o dinheiro tirado de meu pão cotidiano. (AGNON,
1967, p. 19)
O personagem Dr. Levi deixou de herança uma quantidade de livros que ocupam dois
quartos: “e eu passeava pelos dois quartos cheios de livros do Dr. Levi. Foram tão felizes
aqueles dias. Foram tão agradáveis.” (Até agora) E quando o narrador se transfere
definitivamente para Jerusalém, manda construir uma casa com muitos quartos: “E quando
deixaram a casa, peguei um quarto para mim e todos os outros quartos separei para os livros
do Dr. Levi, e quanto mais me dedico a eles, mais eles me estimam, e eu a eles.” (idem)
15
A noite de insônia do narrador, no Capítulo 3, é um bom exemplo da valorização da
forma, da letra e da palavra. Aqui, a forma não acompanha a narrativa, como é de se esperar,
mas a narrativa segue a forma. E como isso é possível? A unidade idiomática do hebraico é o
radical de três letras consoantes. Como o alfabeto hebraico não dispõe de letras vogais, a troca
de lugar das letras numa palavra pode formar uma outra palavra. As vogais em hebraico são
indicadas por sinais pontuados acompanhando as consoantes. Mas esses sinais são usados
apenas em textos elementares. Eles não constam dos textos de literatura — a não ser, da
literatura infantil — nem dos jornais. Naquela noite de insônia, o narrador faz o jogo de troca
de letras com os radicais hebraicos, e disso resulta a narrativa, na forma de um delírio. Neste
caso, a narrativa segue a forma, porque as palavras vão conduzindo os pensamentos, de
acordo com os novos conteúdos que adquirem com a troca das letras.
Agnon usa a palavra para dar ritmo e musicalidade ao texto. Um trecho como “Na
verdade, ele pretende permanecer mais um dia em Berlim, porque jamais teve a oportunidade
de estar em Berlim, e agora que lhe ocorreu estar em Berlim, achou conveniente ver tudo o
que há para ver em Berlim” (idem) ilustra a valorização da palavra, a tendência à repetição,
mas também o ritmo e a musicalidade, traços peculiares no estilo de Agnon. Outro exemplo:
“Nachum Berish disse, na verdade, enquanto isso caiu uma dúvida no meu coração, se de fato
há importância nos livros desse doutor, pois como se sabe, as pessoas como ele dão
importância a um tipo de livro cuja importância reside na dúvida.” (idem) Aqui Agnon joga
com as palavras dúvida e importância. Nachum Berish duvida da importância dos livros
porque a importância dos livros reside na dúvida.
Contexto histórico
A obra completa de Agnon no original, reunida pela editora Schoken em coleção
comemorativa logo após o autor ter recebido o Prêmio Nobel de Literatura, consta de três
romances e vários contos e novelas. O tema central de Agnon, que lhe serve de cenário de
base, retrata a trajetória judaica do final do século XIX e início do século XX, com o
esvaziamento da vida religiosa judaica no leste europeu, num movimento de recuperação da
vida nacional com outro modelo, na Terra de Israel. Agnon é um autor representativo dessa
fase de transição entre o ídiche e o hebraico, o modelo religioso e o modelo laico, a vida na
Europa, seja no schtetl, seja nos movimentos surgidos com o iluminismo judaico, e a vida dos
pioneiros nas primeiras ondas imigratórias a Israel, com o surgimento do novo movimento
sionista, enfim, uma fase em que o velho e o novo coexistem ou entram em confronto, antes
16
da definitiva supremacia do hebraico sobre o ídiche, da laicidade sobre a religiosidade, e do
centro judaico em Israel sobre o centro judaico na Europa.
O próprio Agnon é fruto da dualidade que marcou esse período de transição, tendo
nascido num ambiente de intensa religiosidade, na Galícia, e optado por se transferir a Israel
em 1907, durante a chamada segunda onda imigratória. É justamente essa cisão interna entre
dois mundos com propostas diferentes, a vivência da dualidade que se instalava na vida
judaica do início do século XX, que Agnon representa nos seus textos. É assim que podemos
achar nos três romances de Agnon, O dote da noiva, Hóspede por uma noite e Somente ontem,
cronologicamente dispostos, uma arte representativa da trajetória dessa passagem que
estabeleceu o novo modelo de que hoje o judaísmo contemporâneo é herdeiro.
O Dote da Noiva está ainda imbuído do espírito do schtetl, onde Iudil Chassid sai em
peregrinação para obter doações para o dote das filhas. Hóspede por uma noite (1939) é um
romance autobiográfico, em que o narrador em primeira pessoa retorna em visita à sua cidade
de origem, após a Primeira Guerra, e se depara ali com o desmoronamento dos valores
religiosos, não obstante a sua tentativa de resgatá-los. Em Somente ontem (1945), o cenário já
se transfere à Terra de Israel, onde Itzchak Kumer, um jovem sionista que deixou a Europa
dentro do espírito de reconstrução nacional, vê-se diante das dificuldades de adaptação ao
novo modelo, que o levam à total frustração.
Há apenas três livros de Agnon disponíveis em português, da Editora Perspectiva:
Novelas de Jerusalém, Contos de amor e Uma história simples.
Fé ou engajamento
Agnon não teve um biógrafo. Não há unanimidade na informação das datas de escrita
de muitos dos seus textos. A maioria deles informa apenas a data de publicação. Existe
unanimidade na informação da data dos dois últimos romances, quando Agnon já era um
autor reconhecidamente importante, mas há uma grande divergência quanto à data do
primeiro romance, O Dote da Noiva. Supõe-se que tenha sido escrito nos anos vinte. Não há
informação precisa de quando foi escrito Até agora. Sua primeira publicação foi em 1952.
Nesta novela o narrador se remete a personagens de O Dote da Noiva e de Hóspede por Uma
Noite, no entanto, tudo permanece no terreno da especulação, pois os personagens aos quais o
autor se remete podem ter sido inspirados em pessoas reais, já que em Agnon há uma
tendência notadamente autobiográfica mesclada à ficção, principalmente nos textos escritos
na primeira pessoa, o eu-narrador, como em Hóspede por Uma Noite e Até agora.
17
A obra de Agnon é, então, marcada por dualidades que ora se associam, ora se
dissociam num grande embate entre fé e engajamento, segundo Flusser, entre tradição e
modernidade, segundo Guinsburg.
Mas onde Agnon se situa nessa transição? Em qual dos modelos ele se insere como
pessoa e como escritor? Esse é o tema discutido por Vilém Flusser na apresentação ao livro
Novelas de Jerusalém. Flusser (AGNON, 1967, p. 7-15) estabelece uma diferença entre fé e
engajamento. E nessa distinção, atribui a Agnon o segundo. Os personagens de Agnon têm fé,
e ele é engajado. Isso porque a fé é ingênua, e o engajamento é uma opção. Ao perceber a
decadência da vida judaica, ele se vê diante do absurdo; e não vê outra saída para se haver
com o absurdo a não ser se engajando em um modelo. Opta pelo judaísmo como modelo e
permanece visceralmente engajado nele, a ponto de dar um tom religioso ao seu discurso na
solenidade de posse do Prêmio Nobel. É assim que Flusser explica a dualidade na obra de
Agnon: “Agnon escolhe o mesmo modelo que abandonou ao ter-se perdido: o judaísmo. Esta
identidade do modelo abandonado com o modelo escolhido torna tão ambivalente a sua
decisão, e a sua obra.” (ibid., p. 10) E não é isso que o narrador de Até agora comenta? “Os
olhos deste homem não são ambiciosos e ele não está habituado a grandezas, mas naquele
momento pensei, isso é uma brincadeira do destino, pois volto por mim mesmo ao lugar de
onde fugi.” (Até agora) Optando pelo modelo, Agnon é coerente com ele e se torna coerente
consigo mesmo. E essa coerência, essa escolha do modelo, transparece na sua obra. Como
escritor engajado no judaísmo, Agnon escreve imbuído dos símbolos, linguagem, cenário,
passado, tradição, memória, e até das Escrituras e da liturgia do acervo judaico. Com isso,
cria-se um dilema: a obra de Agnon é dirigida apenas para judeus? Para responder a essa
questão, Flusser discute a distinção entre o modelo judaico e outros modelos. Não há dúvida
de que todos os modelos são equivalentes em alguma instância. Judaísmo, marxismo,
freudismo, catolicismo são exemplos de modelo que são equivalentes, já que coincidem em
determinados critérios do metamodelo. Todo modelo projeta uma visão de mundo, e nesse
sentido, é universal. Mas, diz Flusser, o judaísmo não é um modelo universal, tendo em vista
a sua natureza intrinsecamente restritiva, por não ser aberto para todos, diferentemente dos
escritores com modelo católico ou marxista, para quem todos os leitores são católicos ou
marxistas em potencial, por se tratarem de modelos abertos à opção. Como o modelo judaico
é restritivo e não é aberto à opção, a leitura de Agnon tem um efeito ambivalente: uma
valência para não-judeus e outra para judeus. (AGNON, 1967, p. 12)
Para o leitor não-judeu, o engajamento de Agnon demonstra a importância de engajar-
se em um modelo, qualquer que seja: “O mundo passa a ter sentido e a ter valor, desde que eu
18
tome uma decisão qualquer e viva de acordo com ela.” (idem) O convite de Agnon ao não-
judeu é que faça uma escolha de modelo de identidade. Nesse sentido, diz Flusser, a
fidelidade de Agnon a Jerusalém diz respeito ao não-judeu como demonstração de
engajamento.
Para o leitor judeu, a valência é outra. Agnon passa uma mensagem de testemunha
viva do tempo em que o mundo tinha valor e sentido. Do tempo em que a Jerusalém
transcendente pairava sobre a cidade galiciana, protegendo-a do absurdo. E uma vez que a
primeira foi ofuscada pela Jerusalém terrena e a segunda tende a desmoronar, em ambos os
casos, num processo irreversível, é preciso fazer uma reconstrução: fiar e emendar
deliberadamente o fio da tradição cortado e rasgado, negando o mundo profano e sacralizando
a Jerusalém terrena, incluindo aí um convite para o sionismo imanente. Flusser conclui: “A
leitura de Agnon altera. O leitor não sai incólume dela. E não é preciso alterar-se para
identificar-se?” (ibid., p. 15)
Essa reflexão de Flusser remete a uma outra, que trata da religião na obra de Agnon.
Kurzweill afirma que, apesar de o elemento religioso ter especial importância nos relatos de
Agnon, sua literatura é secular. (ibid., p. 23-42) Agnon não se identifica com os tipos
religiosos que cria, e demonstra este confronto com o recurso da ironia. O embate entre a
realidade do passado e a do presente cria uma bipolaridade e um eu cindido, e a lembrança do
passado distante passa a ser o refúgio do caos no momento presente, e Agnon o denuncia a
partir de um ponto de vista crítico, irônico, em que a comunidade religiosa serve de objeto de
uma sátira intelectual. (ibid., p. 29) Essa idéia de refúgio contra o desafio da realidade atual,
porque o lar deixou de representar o único foco seguro, permeia a narrativa de Até agora. Em
Kurzweill, o refúgio em Até agora é o mundo dos livros: os livros do Dr. Levi. Contudo,
ainda assim, os livros também vacilam na sua permanência e têm a sua autoridade ameaçada,
porque sua importância depende da atitude de cada geração. (ibid., p. 31)
Cabe assinalar que nem todos os escritos de Agnon têm essa particularidade do
cenário judaico, embora essa seja uma tendência predominante em sua obra. Guinsburg
ressalta que, ainda antes de ser agraciado com o Nobel, ele já se projetava fora do mundo
judaico:
Antes da premiação, já estava traduzido para quinze línguas e o
interesse exegético do crítico por seu vulto de novelista era crescente
nos vários países ocidentais. Assim, ao conceder-lhe o seu galardão, a
Academia Sueca não o ‘descobriu’ mas apenas o ‘distinguiu’,
realçando-o, no plano internacional. (ibid., p. 47)
19
O traço universal em Agnon é o sentimento de exílio: o exílio do povo propriamente
dito, mas também o exílio do espírito num mundo com seus valores em transição, o exílio
pessoal e psicológico como indivíduo, independente da judaicidade ou de qualquer outro
modelo, enfim, o exílio existencial que, este sim, é universal e familiar a todos. Resulta daí a
possibilidade da difusão de sua obra no âmbito extra-muros do judaísmo, porque seus textos
dizem respeito ao sentimento de estranheza individual, independentemente de haver uma
razão externa que a represente no cenário maior. Este sentimento inerente ao homem confere
à obra de Agnon a universalidade que ela detém, porque é representativa, no ponto de vista do
leitor, de seu próprio auto-exílio, e no ponto de vista da crítica literária, de um exemplo de
literatura que lembra o expressionismo e o surrealismo, como afirma Guinsburg:
S. I. Agnon, principalmente a partir do Sefer ha-Maassim, emprega
linguagem parodística, estranhamento psicológico, transposições
oníricas, simbolismos esvaziados e desfigurações grotescas, recursos
que lembram T. Mann e Kafka, o expressionismo e o surrealismo,
para configurar os desgarramentos do espírito, a alienação dos valores
e os impasses existenciais do judaísmo moderno. (GUINSBURG,
1977, p. 124)
Um Pão Inteiro (AGNON, 1967, p. 261-272) é um exemplo para essas afirmações. O
eu-narrador de Agnon se sente excluído do contexto do restaurante onde, após um dia sem
comer, pede ao garçom qualquer item do cardápio acompanhado de um pão inteiro. Todas as
pessoas presentes no restaurante vão, uma a uma, recebendo os seus pedidos, enquanto ele, o
narrador, fica cogitando a respeito das razões pelas quais não é servido, numa atitude
tipicamente paranóica. Acaba adormecendo no restaurante, sem ter sido servido, enquanto
observa, à noite, o repasto dos ratos e gatos com os restos deixados pelos comensais. E o final
da história é notadamente kafkiano:
Quando o dia clareou, fui acordado pelo barulho dos empregados e
empregadas que vinham proceder à limpeza. Eles me viram e me
olharam com espanto, empunhando as suas vassouras. Por fim,
puseram-se a rir e perguntaram: Quem será que está aqui estirado?
Veio o garçom e disse: Este é aquele que pediu um pão inteiro. (ibid.,
p. 272)
Um Pão Inteiro é apenas um exemplo de texto agnoniano destituído do elemento
judaico e religioso. Guinsburg atribui a Agnon um parentesco espiritual com Kafka, entre
20
outros. (ibid., p. 51) O escritor, no entanto, nega ter recebido tais influências. No seu discurso
na solenidade de posse do Prêmio Nobel, um texto em tom ao mesmo tempo humilde e
arrogante, imbuído de uma abordagem religiosa, Agnon diz:
Quem foram meus mentores em poesia e literatura? Isso depende de
opinião. Uns vêem em meus livros influências de autores cujos nomes,
em minha ignorância, nunca ouvi, enquanto outros enxergam as
influências de poetas cujos nomes ouvi mas cuja obra nunca li. E qual
é a minha opinião? De quem recebi nutrição? Nem todo homem se
lembra do nome da vaca que o proveu de cada gota de leite que ele
bebeu. (ibid., p. 20)
Em seguida, Agnon admite a influência das Sagradas Escrituras, incluindo o Talmud e
seus intérpretes, e os poetas e filósofos medievais, cuja maior expressão é Maimônides.
Admite também ter recebido influência de “todo homem, de toda mulher, de toda criança que
encontrei ao longo de meu caminho, tanto judeus como não judeus”. (idem) E acrescenta:
A fim de não negligenciar nenhuma criatura, devo mencionar também
os animais domésticos, as feras e os pássaros dos quais aprendi, [...]
mas receio que não tenha aprendido tanto quanto devia, pois, quando
ouço o ladrido de um cão, ou o gorjeio de uma ave, ou o cantar de um
galo, não sei se estão agradecendo de tudo o que contei deles ou se me
estão pedindo explicações. (ibid., p. 21)
De fato, um de seus personagens mais discutidos é o cachorro Balak, anagrama de
keleb (cachorro), em Somente Ontem, e que representa o espírito da geração a que pertence. E
a influência das Escrituras é expressamente evidente até mesmo para o leitor leigo. Guinsburg
comenta:
Nada existe na ficção judaica, e não só na hebraica, que, embora uma
invenção altamente pessoal, seja mais embebido nas fontes mais
intrínsecas e mais históricas da expressão literária do povo de Israel.
Bíblia, Midrasch, Talmud, Cabalá, contos populares e contos
chassídicos, as elaborações contemporâneas das letras em ídiche e
hebraico, tudo isso é incorporado à linguagem de Agnon. (ibid., p. 52)
21
Da tradução e da tradução como criação
Por aproximação sonora, traduzir é “transdizer”: dizer além, além de dizer, mais que
dizer, para lá de dizer. Traduzir não consiste simplesmente em transpor palavras de um
idioma a outro. Em se tratando de literatura, o ato de traduzir implica transmitir, além do
conteúdo, o clima, a carga de afetividade, o traço de estilo. Traduzir não se limita a transpor a
narrativa, mas tem por meta transmitir também a impressão que marca a narrativa. Se a
narrativa é objetiva e explícita, e a impressão, subjetiva e implícita, o ato de traduzir promove
a incursão na subjetividade do texto e a sua recondução para um outro código. No ato de
traduzir, o tradutor se dá conta da distinção entre a linguagem passiva, ao ler, e linguagem
criativa, ao transpor para o outro idioma. A leitura do texto é fluente, como também é fluente
e instantânea a impressão com que o autor marca a sua narrativa ao criar. Essa linguagem
passiva de assimilação instantânea passa por uma transformação significativa ao ser
transportada para a forma da linguagem criativa, quando a narrativa e a impressão originais
supõem um novo processo de criação. A narrativa pode ser comunicada com os recursos da
língua, mas estes não são suficientes para transmitir a impressão, que está ali marcada por um
conjunto de fatores, alguns deles, inacessíveis. Inacessíveis porque não estão nas palavras,
mas nas entrelinhas. Se as palavras revelam o dito, as entrelinhas ocultam o não-dito, que
também deve ser transmitido na forma do não-dito. Não cabe explicação de um texto
traduzido. Se a explicação for necessária, indica que o não-dito não foi transmitido. O acesso
ao texto literário traduzido deve ser equivalente ao do texto original. Na linguagem criativa, a
transmissão deve ser conduzida de tal forma que o texto original não perca o seu escopo
cultural, emocional, psicológico ou de qualquer outra ordem. Se Agnon é traduzido para o
português, o resultado da tradução deve ser como se o próprio Agnon tivesse escrito em
português. Guinsburg comenta: “Alguém já disse que ‘Agnon escreve ídiche em hebraico... O
fluente ídiche de Buczacz introduziu a sua melodia, secretamente, nas escuras profundezas do
hebraico de Agnon’.” (ibid., p. 44) Se isso é possível, Agnon pode escrever em português.
Não se trata de traduzir Até agora, mas trata-se de traduzir Agnon. E para traduzir
Agnon, é preciso ler Agnon. É porque existe um halo agnoniano (ou uma sombra) pairando
sobre os seus textos, assim como existe uma sombra kafkiana (ou um halo) pairando sobre os
textos de Kafka. O halo ou a sombra transcendem as palavras. E deverão pairar também sobre
a tradução. E impressões tão inacessíveis como o halo e a sombra só podem ser transmitidos
se forem atinados. O tradutor deve ter sido tocado pelo não-dito para evocar a linguagem
criativa na tradução. Como afirma Fabri, “Não se traduz o que é linguagem num texto, mas o
que é não-linguagem.” (CAMPOS, 1976, p. 21)
22
Se, como afirma Walter Benjamin em A Tarefa do Tradutor (1921), uma obra de arte
não leva em conta o receptor, “pois nenhum poema é feito para o leitor, nenhum quadro para
o espectador, nenhuma sinfonia para a audiência”, (BENJAMIN, 199-, p. 8) a tradução deve
ter em vista o original, e não, o leitor no novo idioma. Mas, pergunta Felinto, (ibid., p. 44) se
a obra não se destina a um receptor, por que traduzi-la? E ele mesmo responde com a
formulação de Benjamin que “a própria arte também pressupõe a essência corporal e
espiritual do homem — mas, em nenhuma de suas obras, pressupõe a sua escuta”. (ibid., p. 8)
Significa que a tradução, no sentido benjaminiano, deve conter a essência corporal e espiritual
do homem, à qual ele se refere, e não, o enunciado. Mas, o que seria a “essência corporal e
espiritual” nesse contexto? A que Benjamin estaria se referindo? Se o filósofo faz uma
distinção entre enunciado, de um lado, e essência corporal e espiritual, de outro, parece
indicar que a essência corporal é a forma do enunciado, e a espiritual, a impressão contida no
enunciado. No ensaio de Benjamin sobre a tarefa do tradutor, a má tradução apenas comunica,
e a comunicação é inessencial; o que excede a comunicação é inapreensível e poético, aquilo
que o tradutor só poderá reproduzir, poetizando. A traduzibilidade de uma obra consiste na
possibilidade de revelar um determinado significado encoberto no original. Essa
traduzibilidade do inacessível implica a diferenciação entre o significado e o modo-de-
significar. Nos termos Brot e pain, o significado é o mesmo, mas não, o modo-de-significar.
O que Brot diz para o alemão é diferente do que pain diz para o francês, embora o significado
absoluto seja idêntico. Ao tradutor compete “encontrar, para a língua na qual se traduz,
determinada intenção a partir da qual nela é despertado o eco original”. (ibid., p. 22) A boa
tradução ocorre quando o significado emerge do modo-de-significar. E isso é possível porque
e quando as palavras trazem uma tonalidade afetiva, que é o eixo do modo-de-significar.
Benjamin cita Pannwitz: “Nossas transposições, mesmo as melhores, partem de um falso
princípio. Elas querem germanizar o indiano, o grego, o inglês, em vez de indianizar,
helenizar, anglicizar o alemão.” (ibid., p. 30) Significa que a má tradução demonstra um
respeito maior pelos usos da própria língua do que pelo espírito da língua estrangeira. É
preciso transformar a própria língua e deixá-la se mover através daquela que se quer traduzir,
“trazendo para a forma de sua própria língua o modo-de-significar do original”. (ibid., p. 26)
Mas a proposta de Benjamin em A Tarefa do Tradutor vai além: a traduzibilidade promove a
afinidade entre as línguas, e se e quando há afinidade, indica que as línguas são aparentadas
entre si; sua diversidade implica uma matriz original transcendente, à qual Benjamin chama
de “língua pura”. A língua pura contém o significado supremo atingido pelo todo das
intenções reciprocamente complementares das línguas envolvidas na tradução, mas não
23
alcançável por nenhuma das línguas isoladamente. (ibid., p. 17) Em um nível de abstração que
beira a mística, se não consiste nela mesma, Benjamin atribui ao tradutor a tarefa de mediar
diferentes instâncias da linguagem. Essa abordagem fala do efeito messiânico da tradução,
porque Benjamin supõe uma evolução redentora da linguagem. Ele diz: “Resgatar em sua
própria língua a língua pura, ligada à língua estrangeira, liberar, pela transcrição, a língua
pura, cativa na obra, é a tarefa do tradutor.” (ibid., p. 29) Em A Tarefa do Tradutor Benjamin
expõe, então, uma gradação qualitativa e ascendente nas três acepções de tradução: a má
tradução, que apenas comunica o inessencial, a boa tradução, que faz emergir o significado do
modo-de-significar e que está no âmbito humano imanente, e a tradução messiânica, que
libera a língua pura e permeia o âmbito divino transcendente.
No ensaio dedicado a Benjamin, Erick Felinto (BENJAMIN, 199-, p. 44-53) comenta
o sentido místico que o filósofo atribui à linguagem, inspirado na narrativa bíblica. A
abordagem benjaminiana da linguagem, além de conter os argumentos do Gênesis referentes à
nomeação feita por Adão às coisas criadas, encontra também seus argumentos na Cabala
luriânica, com o conceito de “quebra dos vasos”. Nesse contexto, os vasos que continham a
luz no processo original da Criação se quebraram, e os fragmentos dos vasos quebrados
contêm centelhas de luz, mas a unidade original foi perdida. Para resgatá-la, é preciso recolher
os fragmentos e uni-los. Felinto descreve a tradução messiânica de Benjamin:
No contexto da Queda, a tradução deixa de ser um ato de recuperação
(e reprodução) de sentido para tornar-se tentativa de desvelamento da
língua pura, “exilada” nos dois idiomas envolvidos no processo
tradutório. Aqui, a influência da teologia cabalística de Isaac Luria é
nítida: a tese da ruptura dos kelim — os “vasos” que deveriam conter
as emanações luminosas do homem primordial (Adam Kadmon) — é
utilizada para mostrar que o original e a tradução devem ser encarados
como fragmentos da quebra de um vaso maior (a língua pura), que é
reconstituída sobretudo pela transposição literal da sintaxe do original.
A língua pura não é senão uma outra forma de designar aquela língua
do Nome, de que falava Benjamin no seu primeiro ensaio sobre a
linguagem. [...] Daí deriva-se o tema messiânico, tão amplamente
utilizado por Benjamin, da redenção histórica da língua. [...] Todas as
línguas estão marcadas por um “querer dizer” único, que, entretanto,
só pode realizar-se com o fim messiânico da totalidade das intenções
lingüísticas. (ibid., p. 51)
Ainda que demonstrando uma certa estranheza por Benjamin ter adotado um enfoque
místico, Felinto usa o recurso cabalístico de achar na palavra o seu significado oculto e
essencial, na interpretação do nome do filósofo:
24
No mesmo livro do Gênesis, em cuja releitura basearam-se as teses do
ensaio de 1916, encontra-se a narrativa originária do nome Benjamin.
Raquel, mulher de Jacó, entrega-lhe um filho pouco antes de morrer
em meio a dores cruciantes. A mãe pretendia que a criança se
chamasse Benoni (ben-oni), “filho de minha dor”. O pai, contudo,
desejando afastar o destino negativo previsto por tal nome, decide
mudá-lo para Benjamin (ben-iamin), “filho de minha direita”, ou seja,
“filho de bom augúrio”. (ibid., p. 53)
É essa abordagem cabalística da palavra que inspira Agnon. Seu texto esconde tanto
quanto revela. Por trás (ou acima) da narrativa mundana de Até agora, certamente existem
dois textos, um essencial, que é a própria essência evocada do exílio, da diáspora, da solidão e
do abandono (este último, contido no próprio pseudônimo do autor: Agnon), e outro,
transcendente, que, em última instância, fala de redenção, de fim do exílio com o retorno do
narrador à Terra de Israel.
Flusser se refere a dois tipos de tradução: a significativa e a léxica. (FLUSSER, 2004,
p. 60) A significativa tem um grau de equivalência com o conceito benjaminiano de modo-de-
significar. A léxica estaria num patamar ainda inferior em relação à má tradução, aquela que,
em Benjamin, apenas comunica. Usando um exemplo de Flusser para a tradução léxica da
frase em português Estou com medo da consulta que vou fazer ao dentista amanhã para o
alemão, e deste resultado em alemão a frase fosse novamente traduzida lexicamente para o
português, o resultado seria Eu receio-me diante da amanhanesca pesquisa perto do
dentomédico. (idem)
Na transposição de idéias de uma língua a outra, Flusser indica um espaço que
encontra equivalência com o conceito de “língua pura” em Benjamin. A noção hierarquizante
de Benjamin, que consiste na culminância redentora da língua e que acha uma possibilidade
de alcance na tradução, tem em Flusser um outro formato, que já está em semente no seu
gráfico da hierarquia da língua, que vai do “silêncio inautêntico”, antes da linguagem, na
direção do “silêncio autêntico”, depois de cumpridas as etapas mais elaboradas da linguagem,
segundo Flusser, conversação, poesia e oração, esta última, fazendo fronteira com o pólo do
Nada (superior), até chegar ao “silêncio autêntico”. (ibid., p. 222) Flusser supõe um Nada, e é
talvez nesse horizonte “nadificante” que estaria a “língua pura” de Benjamin, para fazer uma
equivalência de conceitos possivelmente afins. Se a tarefa messiânica do tradutor em
Benjamin consiste em tocar a “língua pura” ao transpor idéias de uma língua a outra, se a
“língua pura” ocupa um lugar entre uma língua e outra — da essência potencial em se
25
transformar em linguagem —, em Flusser esse lugar é a “realidade dos dados brutos”, e a
multiplicidade de línguas consiste nos símbolos que representam tais dados brutos. Na
transposição de uma língua a outra há um espaço de suspensão, onde a idéia permanece
latente aguardando pela nova forma a ser enunciada. Benjamin e Flusser, nas suas respectivas
teorias da tradução, supõem uma transcendência na linguagem, uma travessia pelo abismo do
Nada no ato de traduzir.
Até agora os pensadores existenciais parecem não ter percebido que o
nada, esse horizonte do ser, se manifesta “nadificante”, durante o
processo de toda tradução. Toda tradução é um aniquilamento. O fato
existencialmente importante nesse processo é a circunstância de esse
aniquilamento poder ser ueberholt, ultrapassado e superado pela
tradução realizada. Não se trata, porventura, de uma miniatura de
morte e ressurreição? (ibid., p. 58, 59)
Max Bense estabelece uma distinção entre “informação documentária”, “informação
semântica” e “informação estética”. (CAMPOS, 1976, p. 21) A informação estética se refere à
poesia e também à prosa criativa que “confere primacial importância ao tratamento da palavra
como objeto, ficando, nesse sentido, ao lado da poesia.” (ibid., p. 23) Enquanto a informação
documentária e a semântica admitem diversas codificações, a informação estética implica
uma dificuldade que Bense define com o conceito de “fragilidade” para efeito de tradução, o
que a torna, em princípio, intraduzível. Se a tradução não é possível nessas circunstâncias, a
solução seria a recriação dos textos: a tradução como forma de criação. Paulo Rónai destaca
que a impossibilidade teórica da tradução literária confere à tradução, nesses termos, o
estatuto de arte. E afirma: “O objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta exprime o
inexprimível, o pintor reproduz o irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é
surpreendente, pois, que o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível.” (ibid., p. 24)
Campos conclui que a tradução de textos criativos será sempre recriação, criação paralela,
autônoma, porém recíproca; ambas estarão ligadas por uma relação de isomorfia, “diferentes
enquanto linguagem, mas, como os corpos isomorfos, cristalizar-se-ão dentro de um mesmo
sistema.” (idem)
Comentário final
Até agora foi escrito na primeira metade do século XX. Neste período, o hebraico não
era uma língua nacional instituída; era uma língua litúrgica e literária havia quase dois mil
26
anos. No século XIX teve início o processo de renascimento e renovação do hebraico, sob a
influência do iluminismo judaico, do movimento sionista e das primeiras ondas imigratórias
de retorno a Israel. Somente em 1948, com o estabelecimento do Estado de Israel, o hebraico
voltou a ser a língua oficial do novo país. Agnon usa uma linguagem clássica e literária. O
verbete S. Y. Agnon na Britannica online comenta: “A estrutura arcaica de sua prosa traz
grandes dificuldades para o tradutor; mas, mesmo na tradução, seu poder é inequívoco.”
A noite de insônia em Grimma, no capítulo 3, demonstra uma das dificuldades da
tradução do hebraico. Essa possibilidade própria do hebraico de permutar as letras de uma
palavra criando outras é um recurso que gera grandes dificuldades à tradução para qualquer
idioma. Optei por indicar entre parênteses as consoantes dos radicais em permutação junto aos
novos significados criados. Outra característica freqüente em Agnon é a inserção de
versículos da Bíblia no texto, sem a referência bibliográfica; certamente o tradutor deverá
lançar mão de uma tradução autorizada da Bíblia, o que implica uma dificuldade adicional, no
sentido de localizar o versículo. Quanto à linguagem repetitiva de Agnon, procurei preservar o
estilo dentro da razoabilidade que a língua portuguesa permite. Em Felinto, “a essência
espiritual não se comunica através da linguagem, e sim na linguagem”. (BENJAMIN, 199-, p.
49) Tendo em vista essa formulação, minha proposta foi traduzir Agnon na língua portuguesa
e não, para a língua portuguesa, considerando os conceitos benjaminianos de essência
corporal e espiritual, tonalidade afetiva e modo-de-significar, que subjazem ou pairam no
enunciado.
Em se tratando de uma tese cujo objetivo maior é a tradução, a bibliografia não é
extensa; refiro-me à bibliografia citada. No entanto, o ato de traduzir foi favorecido pelo fato
de eu ter lido ao longo dos anos muitos textos de Agnon, incluindo os três romances, vários
contos e algumas novelas. Ainda antes de iniciar a tradução de Até agora, eu já havia atinado
com o modo-de-significar agnoniano na forma da linguagem passiva, isto é, na sua
assimilação. Com a tradução, precisei evocar a linguagem criativa no sentido de transmitir o
significado do modo-de-significar com o qual eu havia atinado nas leituras anteriores. Assim,
para ser justa, eu deveria citar na bibliografia deste trabalho cada texto de Agnon que li na
condição de aluna, orientanda, leitora autônoma e novamente orientanda. Aluna, aos dezoito
anos, no curso para formação de professores de língua e literatura hebraica em Jerusalém,
quando eu era vizinha de Agnon; orientanda do poeta israelense Iehuda Amichai, para a
monografia de final de curso, tendo por base o romance de Agnon Hóspede por Uma Noite;
leitora, ao longo dos anos, quando prossegui lendo Agnon em hebraico e em português; e
27
novamente orientanda, do Professor Gustavo Bernardo Krause, na UERJ, para a tese de
doutorado.
Amós Oz, na sua recente autobiografia De Amor e Trevas, conta como seu pai, no
tempo em que fazia o mestrado, costumava dizer, gracejando: “Se você roubou a sua
sabedoria de um só livro, você não passa de um ladrão literário. Um plagiador. Mas se você
roubou partes de cinco livros, já não é mais um ladrão, mas um pesquisador, e se você se
empenhou em roubar de cinqüenta livros — eis que você atinge o grau de pesquisador
ilustre.” (OZ, 2005, p. 377) Com isso, mantendo o gracejo, considero-me uma simples
pesquisadora.
28
Pediu-se a um rabino, cujo avô fora discípulo do Baal Shem Tov, que narrasse um
conto. “Um conto” respondeu o rabino, “deve ser narrado de modo a transformar-se em
auxílio”. E narrou: “Meu avô era aleijado. Certa vez pediu-se-lhe que narrasse um caso de seu
mestre. Então ele narrou como o santo Baal Shem Tov costumava saltar e dançar enquanto
rezava. Meu avô estava de pé, parado, e narrava, e a narração empolgou-o de tal modo que,
embora aleijado, se pôs, ele mesmo, a saltar e dançar para demonstrar como o fizera o mestre.
Desde aquela hora estava curado. É assim que se deve narrar uma história.” (GUINSBURG,
1971, p. 72)
29
ATÉ AGORA
Shai Agnon
30
CAPÍTULO 1
os dias da grande guerra, morei no lado oeste de Berlim. Numa pequena pensão na rua
das pensões, consegui um quarto com uma varanda. O quarto era pequeno, bem como a
varanda, mas um homem como eu, que sabe se encolher, acha neles uma moradia. Todo o
tempo em que morei ali, não conversei com a dona da casa nem com os moradores. De manhã
cedo a criada trazia um copo de café e duas ou três fatias de pão, e uma vez por semana
apresentava a conta, que subia à medida que diminuíam as fatias e o gosto do café. Sobre a
placa em que ela trazia a conta eu colocava o pagamento da semana e do serviço. A criada,
que sabia que eu não apreciava conversas inúteis, entrava em silêncio e saía em silêncio. Certa
vez, como que inadvertidamente, contou-me coisas a respeito da pensão, que a dona da
pensão, a Sra. Trotzmiller, é viúva e que seu marido foi morto num duelo, deixando três filhas
e um filho caçula que foi à guerra e não voltou, e não se sabe se foi morto ou levado
prisioneiro. Todo o esforço empenhado pela mãe e os parentes não trouxe nenhum resultado.
São tantas as baixas na guerra, prisioneiros e desaparecidos, como você pretende achar fulano,
filho de fulana, um grão de poeira nas tormentas da guerra. A mãe e as filhas não
incomodavam os hóspedes com a sua aflição e os hóspedes não se importavam em saber
como o filho desapareceu. Cada um está preocupado consigo mesmo e ninguém tem o
coração livre para a dor do outro. Eu, que não consigo dormir, ouvia à noite a voz da mãe
desolada, chorando pelo filho.
N
Uma outra vez a criada me contou coisas a respeito da pensão, que no quarto grande
mora uma jovem, filha de ricos, que veio da aldeia para aprender bons modos, e no quarto em
frente ao dela mora um funcionário do gabinete de impostos, e no quarto seguinte se instalou
um casal de velhos, um homem e uma mulher que fugiram de uma das cidades da fronteira, e
nos demais quartos moram hóspedes de forma permanente, uma vez que chegam a Berlim em
dias fixos para um tempo fixo. O que levou a criada a me contar coisas sobre as quais não
perguntei, e por que as menciono, é para explicar o motivo pelo qual não troquei de quarto
para um mais conveniente do que esse, pois se eu pedisse outro quarto na pensão, não
conseguiria, porque todos os quartos estavam ocupados. Os moradores tinham um
comportamento silencioso e tranqüilo, e até a jovem da aldeia, que comemorou o aniversário
e recebeu convidados no seu quarto, não fez muito barulho. Não creio que se comportavam
31
assim por causa do sofrimento da dona da casa, mas suponho que a guerra embotou-lhes a
voz. Apesar de que o som dos canhões da Alemanha abalava meio mundo na própria
Alemanha, a voz dos alemães baixou.
Já no início da guerra abandonei todas as minhas ocupações, e até meu grande ensaio
sobre as vestimentas ficou inacabado, porque quando se ouviu o som da guerra, toda a minha
produção foi interrompida e eu não tinha outro interesse senão encurtar os dias até que chegue
o tempo em que não haja guerra. Assim passou um inverno, um verão e um inverno.
Quando chegaram os dias da primavera, meu quarto começou a ficar cada vez menor,
a metade dele pairando na escuridão e a outra metade engolida pela friagem, pois jamais viu a
luz do sol. É assim que fabulistas costumam dizer, que nem mesmo o sol gosta de habitar na
escuridão; por isso mesmo, o sol evitava entrar no meu quarto. E eu, que era um dos egressos
da Terra de Israel, e que provei o gosto do sol da Terra de Israel, sentia-me atraído pelo sol. E
quando eu saía à varanda para me aquecer, era obrigado a voltar, porque havia muitas árvores
na rua, cujos galhos chegavam até a varanda, cheios de poeira, pois por causa da guerra não
existiam mãos ociosas, ninguém varria as ruas, e quando o vento soprava, a varanda ficava
coberta de poeira. Árvores que foram plantadas para o deleite das criaturas, também elas
perderam seu valor. O homem é como a árvore do campo, se faz a guerra e aumenta a dor e o
sofrimento, a árvore do campo o acompanha e participa com ele.
Até aqui, o que se refere aos assuntos do meu quarto. Em relação aos assuntos que
dizem respeito a mim, devo acrescentar que eu não tinha roupas nem calçados de verão,
porque quando aumentaram os exilados da guerra que fugiram das cidades da fronteira,
aumentaram também os ativistas que pediam roupas e calçados, e eu lhes dei minhas roupas e
calçados de verão e não consegui comprar novos; eram os dias da guerra, se um alfaiate fazia
uma roupa e um sapateiro fazia um calçado, não faziam senão para os donos da guerra.
Durante todo o tempo em que eu ficava em casa, não percebia a falta das roupas e calçados,
quando saía à rua, pesava-me o incômodo da carga. Fui obrigado a ficar mais tempo em casa
entre as paredes do meu quarto, metade engolido pela friagem e metade pairando na
escuridão, e entre a friagem e a escuridão não havia luz nem ar, porque as árvores que se
erguiam até a minha janela cobriam a luz e exalavam cheiro de poeira. Até o orvalho e a
chuva não tinham cheiro de orvalho e chuva, mas um cheiro impregnado de poeira.
Quem sabe quanto tempo eu permaneceria nessa Berlim, nesse quarto, nessa
escuridão, nessa poeira e nessa friagem, se a viúva do Dr. Levi não tivesse me convidado à
sua cidade para aconselhá-la a respeito dos livros que o marido lhe deixou; ela não sabe o que
fazer com eles.
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Se me era difícil permanecer em Berlim, mais difícil ainda era sair a outra cidade. Os
procedimentos do país estão confusos e até uma pequena viagem é um grande transtorno. Os
trens atrasam para sair e para chegar e não estão disponíveis para todos o tempo todo, e vivem
cheios e abarrotados. Para você conseguir um pedacinho de lugar no trem e chegar ao seu
destino, precisa pedir autorização aos guardas, e os guardas, se em tempo de paz tendem para
guerra, o que dirá, em tempo de guerra.
Isso, e mais. Os alimentos são racionados para cada um, e cada grão de comida exige
um bilhete, e o bilhete que vale numa cidade não vale em outra cidade. Se alguém sai em
viagem e não leva consigo bilhetes de viajantes, morre de fome. Significa que eu tinha
algumas razões para não viajar.
Eis que chegou até mim a aflição da viúva que ficou sozinha, cujo marido lhe deixou
uma grande herança, acima das possibilidades de uma mulher suportar, e então ela põe os
olhos em mim para se aconselhar comigo. Lembrei-me dos dias que passei com o Dr. Levi e
de como foi agradável estar com ele. Desviei meus olhos do incômodo da viagem e decidi
viajar.
E quando me decidi pela viagem, apareceu diante de mim a cidade do Dr. Levi como
eu a vi nos anos antes da guerra, quando me hospedei na casa dele. Lá está aquela pequena
cidade, seu nome é Grimma, em paz e tranqüilidade, e eu, passeando pelos dois quartos cheios
de livros do Dr. Levi. Foram tão felizes aqueles dias. Foram tão agradáveis. Agora que fui
convidado a ir a Grimma, como não irei?
Comecei a me ocupar com os preparativos da viagem e a escolha da bagagem, o que é
importante e o que não é importante, o que deve permanecer e o que deve ser jogado fora.
Depois examinei meus manuscritos. Depois peguei meu grande ensaio sobre as vestimentas,
verifiquei os seus temas, joguei fora toda folha que considerei completamente inútil e cortei as
margens das folhas restantes para reduzir o peso da bagagem. Depois disso tudo informei à
criada que estou me transferindo de casa. Depois fui ao departamento de polícia para pegar
autorização de viagem. Depois voltei ao meu quarto e examinei minhas coisas pela última
vez. Por fim me sentei pela última vez. A criada veio e me perguntou se estou desocupado por
um breve momento para entrar e falar com a patroa. Observei meu relógio e entrei.
Desde o dia em que fui morar na casa da Sra. Trotzmiller, não aconteceu de falar com
ela, a não ser uma única vez, no dia em que aluguei o quarto, quando ela entrou junto com as
filhas para me cumprimentar. Era loura, de uns cinqüenta anos, e sua cabeça era cheia de
cabelos brancos, da testa até o meio do crânio. Na juventude certamente era bela, e
possivelmente muito bela, porque ainda restavam no seu rosto sinais de beleza, mas seus
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olhos eram como olhos que derramam muito pranto. Certamente este era o pranto que chorava
à noite por seu filho.
Como eu disse, no mesmo dia em que conheci a mãe, conheci as filhas. Eram três, e
cada uma era diferente das irmãs, na voz e na aparência. Lotte, a primogênita, era
arredondada, o cabelo castanho, o rosto liso e as bochechas que pareciam gordura brilhosa.
Interrompia a fala da mãe e quando falava, enfiava a cabeça no pescoço e de lá espiava e
observava enquanto a voz piava com delicadeza. Era maior em altura do que a mãe e as duas
irmãs, mas por ser arredondada, sua altura não era percebida. Ao contrário dela, Hildegard,
sua irmã, era fina, o cabelo preto como piche, a testa arqueada, as maçãs do rosto salientes, os
olhos pareciam se esforçar para avançar em relação à testa e às maçãs do rosto, e falava com
firmeza, porque era o fundamento da casa e comandava todos os assuntos da pensão. Ainda é
preciso mencionar a mais nova das irmãs, Grete. Era fina como Hildegard, seu cabelo parecia
cobre, o rosto cheio de acne, o nariz pequeno como um grão, que às vezes era engolido pela
acne do rosto e às vezes se empertigava com uma arrogância desnecessária, a boca parecia
uma fenda mal acabada, e não se ouvia a sua voz, pois se tentasse dizer alguma coisa, as irmãs
imediatamente a silenciavam e diziam, vejam só, um pinto como esse já quer piar. Acho que
expliquei as características de cada uma delas. E se você está admirado por eu me lembrar
delas, eu não estou admirado. Como eu não me envolvia muito com as pessoas, todo aquele
com quem me ocorria falar, ficava gravado no meu coração, o aspecto do seu rosto, seus
movimentos e sua voz. A simples menção do nome da pessoa, a imagem ou o cheiro, faziam
com que ela aparecesse diante de mim, ela e tudo o que a rodeava.
Ao entrar encontrei a Sra. Trotzmiller sentada sobre uma cama estreita como um tipo
de sofá, e com ela, as três filhas, Lotte à sua direita, Grete à sua esquerda, e junto à janela em
frente à cama estava Hildegard de pé, regando um vaso de cactos e não me deu atenção.
A Sra. Trotzmiller me deu a mão e me convidou para sentar. Passou a mão na cabeça e
alisou o cabelo, da testa até o meio do crânio, e parecia que estava separando os cabelos
brancos dos que ainda não haviam embranquecido. Grete olhou para a mãe e para mim.
Hildegard virou o rosto em direção à mãe e retirou os olhos do fundo da testa e de dentro das
maçãs do rosto. A mãe viu e disse, soube que o senhor está se afastando de nós e quis
cumprimentá-lo com votos de boa viagem, e eu não sabia se o senhor queria que eu fosse ao
seu quarto ou não queria, e Hildegard me disse que talvez o senhor aceitasse vir até aqui, de
forma que lhe agradeço muito por ter vindo.
Disse-lhe, eu também quis me despedir e agradecer à senhora pelo favor que achei na
sua casa. O rosto da mulher se iluminou e ela perguntou se fiquei satisfeito com a minha
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estadia. Disse-lhe, se eu não precisasse viajar, jamais sairia daqui. Ela arrancou um suspiro do
coração e cruzou os braços, indicando sofrimento.
Eu não sabia a causa desse sofrimento. Será que precisa lamentar por eu me transferir
de casa. Será que receia que talvez meu quarto fique sem inquilino. Agora, quando todas as
casas estão cheias, com a quantidade de refugiados que chegam de todos os lugares
conquistados pela Alemanha, certamente achará interessados pelo quarto.
Para interromper o silêncio, apontei para os cactos que Hildegard regava e disse, aqui
esses espinhosos são criados em vasos, são cuidados com afeição e dão trabalho, e na minha
terra ninguém lhes dá atenção, senão para arrancá-los.
Lotte enfiou a cabeça no pescoço, observou-me de lá e disse, piando, na terra de onde
o senhor vem certamente cresce todo tipo de flor que não se acha por aqui. Hildegard pôs os
olhos nela indicando reprovação, desviou o rosto em direção à mãe e a observou, ansiosa. A
mãe percebeu e sorriu um sorriso triste de sofredores, e me perguntou se os sonhos têm algum
sentido. Antes que eu me espantasse com a pergunta ela acrescentou dizendo, jamais acreditei
em sonhos, agora que o senhor se afasta de nós, certamente não sou obrigada a acreditar no
meu sonho.
As coisas que disse essa mulher não eram de espantar só por elas mesmas, mas eram
de espantar por serem ditas diante de uma pessoa que não conversou com ela senão uma vez,
e superficialmente. Olhei para as filhas, quem sabe, poderiam me explicar as palavras da mãe,
e percebi que todas esperavam pela minha explicação.
Disse-lhes, às vezes também eu vejo sonhos. Se é um sonho bom, sei que não se
realizará, e se é um sonho mau, não sinto medo. Por mais que os sonhos sejam maus, não são
piores do que a realidade. De qualquer modo, não quero intérpretes, não sou o Faraó nem
Nabucodonosor, e nessa geração não temos nem José nem Daniel. E se há como José e Daniel
que se ocupam com interpretação de sonhos, que fiquem com Deus. Eu não preciso deles.
Hildegard retirou os olhos do fundo da testa arqueada ou de dentro das maçãs do rosto
e disse, certamente o senhor ouviu que nosso irmão menor foi à guerra e não voltou. A mãe
balançou a cabeça e repetiu as palavras da filha e acrescentou dizendo, e não voltou,
desapareceu, sumiu. Respondi dizendo, ouvi, minha senhora, ouvi. Pensei comigo mesmo, o
que mais direi. Pus meus olhos no relógio da parede e olhei para o relógio ou para a parede.
Lotte enfiou a cabeça no pescoço, me espreitou e piou, dizendo, o senhor está com
pressa? Tirei meu relógio do bolso e disse, se o trem não sair antes do tempo, não preciso me
apressar. Hildegard disse, então é possível que o senhor queira ouvir o sonho que minha mãe
teve. Mamãe, conte o sonho que você teve.
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A Sra. Trotzmiller me perguntou se minhas coisas estavam empacotadas. Disse-lhe,
fechadas, empacotadas e arrumadas. Ela disse, agora que todos os carregadores foram levados
para o exército, dificilmente achará um carregador para levar a sua bagagem à estação de
trem, e se procurar um automóvel, certamente não achará. Grete, vá até o porteiro e diga a ele,
mamãe está pedindo por favor que venha e pegue as malas do senhor e as leve à estação de
trem, e não se afaste até que ele vá e pegue. Grete empertigou o pequeno nariz e a fenda da
boca se abriu, como se quisesse dizer, mamãe quero ficar e ouvir o relato do sonho. Hildegard
pôs os olhos nela e disse, ainda está sentada, vá e faça o que mamãe lhe ordenou. Grete se
levantou e foi.
A mulher passou a mão na cabeça e alisou o cabelo como fez antes, depois disse, tive
um sonho, um sonho estranho, já disse que não acredito em sonhos, e ainda mais agora, que
não tenho nenhum motivo para acreditar no meu sonho. Diz o ditado, sonhos são como uma
bolha de água, e também eu me inclino a dizer o mesmo, principalmente agora, que vejo que
o senhor vai embora daqui. No meu sonho vi meu filho voltando para casa, para junto da mãe,
e por meio de quem ele voltava, por meio do senhor ele voltava. Agora que o senhor se vai,
todo o conteúdo do sonho é como uma bolha de bobagem.
Sentei-me e fiquei preocupado, o que se responde num caso como esse? O relógio
tocou e vi que chegou a hora de me levantar e ir. Nisso, Grete voltou e veio com o porteiro. A
Sra. Trotzmiller disse, o senhor precisa ir. Boa viagem. Despedi-me dela e das filhas,
entreguei minhas malas ao porteiro e fui andando atrás dele até a estação de trem.
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CAPÍTULO 2
Cheguei à estação ferroviária e me enfiei dentro do trem. O vagão estava cheio e abarrotado
de homens e mulheres, comerciantes de guerra e fabricantes de suprimentos, enfermeiras e
amantes de oficiais militares, além dos egressos da guerra com muletas e com braço
amputado, com mangas vazias e mãos de borracha, olhos de vidro e narizes remendados,
feitos por médicos especialistas em carne traseira, rostos apavorados e rostos deformados,
criaturas que a guerra rejeitou por causa de sua invalidez, imagens desfiguradas das quais foi
retirada a imagem de Deus. E cada um levava a sua bagagem. Malas e bolsas, pacotes, sacos e
baús. Tão grande era o aperto, que eu não achava meus braços e minhas pernas.
O ar do vagão exalava mau cheiro e o ar de fora não entrava, pois todas as janelas
estavam fechadas porque as correias que puxavam e abriam as janelas foram roubadas. Cada
um tratou de arranjar seu próprio ar, um com cigarro, outro com charuto ou cachimbo, com
tabaco e similares.
O trem andava se jogando, não se sabe se para frente ou para trás. As rodas iam
batendo, chutando em baixo e golpeando em cima, apertadas e comprimidas, emitindo um
som barulhento parecido com o som dos passageiros. Depois de algumas horas, o trem chegou
a Leipzig.
Peguei meus pertences e corri com todas as minhas forças para o trem grimmense.
Cheguei e não o achei, porque o trem berlinense atrasou no caminho e o grimmense perdeu a
paciência e não esperou por ele. Perdi a paciência de esperar até que chegasse de volta. Peguei
minhas coisas e as mandei ao guarda-malas, e busquei uma porta para sair e descer à cidade.
A grande estação de trem permanece em tumulto. Vagões saem e chegam. Rodas
batem e o enxofre se alastra. Os serventes do trem se apressam, correndo de um trilho a outro,
de uma locomotiva a outra, cobertos de fumaça e impregnados de enxofre, voltam, aparecem,
e sobem de entre as rodas dos vagões. A estação de trem parece uma cidade de ferro, com
casas de ferro e céu de fumaça, as casas dispostas sobre rodas de ferro, rodando, correndo e
emitindo som de ferro. E assim como a estação de trem são todas as pessoas ali. Correndo,
bafejando e correndo. As pessoas eram tantas que não se via o rosto de ninguém.
Pouco a pouco, destacou-se entre os vagões especiais um transporte com feridos de
guerra, trazidos para serem distribuídos entre os hospitais da cidade e das redondezas.
Sanitaristas e enfermeiras faziam seu trabalho com eficiência. Estão habituados com muitos
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transportes e sabem fazer o que é preciso fazer. Só os feridos de guerra ainda não se
habituaram com o sofrimento. Junto aos vagões dos egressos da guerra estavam os vagões dos
que iam à guerra, e perto de cada um deles estavam os parentes. E apesar de que deveriam
estar habituados com os primeiros transportes, nada aprenderam, e choravam de novo.
De repente ouvi uma voz chamando o meu nome, e vi diante de mim uma bela mulher
com belo traje me estendendo a mão, e seus olhos graciosos sorriam de forma encantadora, o
sorriso que pertencia a Brigitte Shimerman. Antes que eu lhe respondesse o cumprimento, ela
disse, à uma e meia almoçaremos, eu e meu marido ficaremos felizes de almoçar com você.
Você virá, meu caro?
Disse-lhe, você fez uma pergunta inútil. No melhor dos meus sonhos jamais me
atreveria a ter um sonho tão bom como esse. Irei, minha cara, irei. É claro que irei. Não há
dúvida de que irei. Brigitte disse, se eu não estivesse ocupada, levaria você comigo agora, mas
trouxeram uma multidão de feridos e eu preciso conduzi-los para a casa de recuperação que
criei para eles. Chegou uma dúzia de vagões com feridos de guerra, quem me dera achar lugar
para um dos vagões. Quando os historiadores forem escrever sobre essa guerra, e caso não
descuidem da sua terminologia, em todo lugar que costumam mencionar pessoas, eles deverão
escrever inválidos. Anteontem trouxeram um homem jovem que qualquer deficiência não é
pior do que a dele. Como um golem sem cérebro. Estou com pressa, meu caro, e não posso
lhe contar tudo com detalhes. Na hora do almoço contarei. Disse-lhe, é uma pena, Brigitte,
que as horas não corram tanto quanto eu me apresso para vê-la. Cumprimente o Sr.
Shimerman em meu nome. Chegarei cinco minutos antes de uma e meia. Brigitte sorriu com
um sorriso doce e disse, não se atrase. Até logo. Ri comigo mesmo, será possível que Brigittte
me convide e eu me atrase. Estou feliz apenas por vê-la, o que dirá, por ter me convidado para
almoçar, e não preciso procurar lugar para comer numa cidade barulhenta e agitada em dias
de guerra, quando você nem sabe o que lhe darão para comer.
Vocês conhecem Brigitte Shimerman porque foi homenageada com mérito pelo
Imperador por ter criado um asilo para feridos de guerra e por cuidar deles como uma
enfermeira, e eu conheço Brigitte Shimerman dos tempos em que havia paz no mundo e ela
era atriz no pequeno teatro. Seu talento teatral não era grande, mas ela tinha uma virtude
especial, que era o seu encanto, e até os críticos amenizavam o julgamento que faziam dela.
Brigitte sabia que seu talento teatral não passava de mediano, mas reconhecia que seus
verdadeiros encantos também eram importantes. Portanto, não investia em artifícios teatrais e
se mostrava como era de fato. E quando nos sentávamos no teatro, era como se estivéssemos
numa casa onde uma bela e encantadora moça tivesse espalhado ali a sua graça. Como era
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filha de ricos, filha de um banqueiro, não precisava tirar vantagem de bajulação, e já que não
precisava dos outros, preservava o seu próprio caráter.
Há um pacto firmado para as belas atrizes, que não descem do palco até encontrarem o
seu par. Ela não ficou muitos anos no palco, até que foi vista por Gerhard Shimerman, o filho
de Rudolf Shimerman que possuía muitas ações da grande fábrica de armas, e ela o aceitou e
se casou.
Após o casamento, desistiu dos espetáculos. Mas abriu a sua casa para artistas,
intelectuais e bailes beneficentes. Lembro-me de um certo baile beneficente em que ela leu
um poema dos Salmos, e os olhos de todos os convidados verteram lágrimas. Quando chegou
a guerra e a terra se encheu de feridos e mutilados, criou para eles uma casa e cuidou deles
como enfermeira.
Como disse, eu a conhecia do tempo em que ela atuava no palco. Naquele tempo eu
me ocupava com a pesquisa da história das roupas em todas as gerações e em todos os povos,
e quando ela ouviu a respeito disso, fez de mim seu consultor e se aconselhava comigo a
respeito de suas roupas. As costureiras se espantavam. Um homem com roupas e aparência
simples, e essa bela atriz se aconselha com ele. Essas tolas deviam achar que eu era um
príncipe disfarçado, pois todas as belas roupas da atriz vinham de mim.
Eu não tinha nada de especial em Lipsia. Toda a causa da minha parada ali foi o trem
grimmense. E como Brigitte Shimerman me convidou para almoçar, eu não tinha outra opção
senão esperar pela refeição. Deixei para trás a estação de trem, desci à cidade e andei como
alguém que tem uma hora sobrando para usufruir. Passei por algumas ruas, alguns lugares,
algumas casas de comércio, e cheguei à sinagoga que fora fundada pelos comerciantes de
Brody que vinham todos os anos a Leipzig. E de lá cheguei até a casa de orações fundada por
seus irmãos que vieram depois. E de lá cheguei até a nova casa de orações dos seus irmãos
que vieram ainda depois, e por causa de divergência de opiniões entre eles, separaram-se, e
fizeram uma casa de orações especial, e lhe deram o nome de Hindenburg, assim como
Hindenburg vence em todas as guerras contra os inimigos, da mesma forma eles venceram na
sua guerra contra os irmãos. Da pequena guerra meu pensamento se deslocou para a grande
guerra, e com ela meu pensamento se deslocou para os meus conhecidos em Leipzig, alguns
rapazes que foram levados à guerra, alguns velhos preocupados com seus filhos.
Enquanto caminhava, cheguei ao vale das rosas. Mães jovens conduziam seus filhos
pequenos pela mão ou no carrinho para levá-los a um lugar com ar aprazível, e se
conseguissem, seriam como seus pais, heróis fortes e organizadores de guerra.
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Próximo ao vale das rosas há belas casas escondidas à sombra de jardins e árvores, e
antigamente, quando eu morava em Leipzig, costumava freqüentar algumas daquelas casas.
Eu saía e entrava especialmente na casa do Dr. Mitel, um velho estudioso e notável
bibliógrafo que ganhou fama com seu livro Bibliografia de livros sobre os vinhos. Após
alguns anos acrescentou um apêndice ao livro e nele mencionou meu nome, pelo meu conto O
coração do homem. Talvez se enganou, imaginando que por eu citar ali alguns tipos de vinho
se tratava de um livro científico, ou então, quis ser amável comigo. Michel Rabinovitz me
explicou da seguinte maneira: Mitel sabia que seus amigos bibliógrafos, a maioria deles,
costumam copiar coisas sem investigá-las, e anotou meu conto entre livros científicos para
confundi-los. Como eu tinha tempo disponível, fui ver Mitel.
Agora farei como fazem os contadores de histórias, e antes de levar você até Mitel,
contarei um pouco a respeito dele.
Itzchak Mitel, a quem chamam Dr. Mitel, é de uma pequena cidade dentre as cidades
da Polônia, na sua maioria, chassídicas, e ele próprio também foi criado no chassidismo. Por
fim abandonou o chassidismo e se juntou aos socialistas. A polícia secreta tomou
conhecimento e começou a persegui-lo. Fugiu então para a Alemanha e chegou até Leipzig.
Em Leipzig largou tudo o que lhe era precioso antes, e se preparou para o ginásio e para a
universidade, e por fim, foi laureado com o título de doutor.
No tempo em que estudava, sustentava-se organizando listas para casas de comércio
de livros antigos, ensinando a língua hebraica para teólogos cristãos, revisando livros
hebraicos, e também guiando comerciantes da Polônia que vinham a Leipzig para comprar
mercadoria. Por meio desses comerciantes, ficou conhecido de alguns comerciantes de
Leipzig, e alguns o viam com bons olhos por sua postura empertigada, por sua fala arguta, e
pelas qualidades com as quais se destacava. Quando ouviram que ele freqüenta as casas dos
professores cristãos, quer dizer, que é íntimo de alemães de verdade, o que eles, alemães da
religião mosaica, não conseguiam, começaram também a se aproximar dele e a convidá-lo
para um café e para jantar, até que se tornou, entre alguns deles, como um agregado.
Conheceu uma filha de ricos e se casou. Ela trouxe um grande dote e o liberou de se
preocupar com sustento. Começou a juntar livros e escreveu pesquisas bibliográficas notáveis
em precisão e conhecimento, de forma que a precisão não o desviava da verdade e o
conhecimento não levava ao tédio.
Neste ponto acho um espaço para dizer algo sobre a bibliografia e seus sábios. Alguns
sábios da bibliografia escrevem livros bibliográficos que tratam de nomes de livros, seus
autores, local da publicação e o ano, coisas desse tipo. Outros lêem muito, se aprofundam
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muito e estudam muito, e enquanto estudam, fazem anotações do que descobrem com a sua
própria sabedoria em relação aos livros e seus autores, e às vezes, eles mesmos também
escrevem livros bibliográficos. Mitel dizia a respeito de si mesmo, eu incluí as tarefas de
todos os bibliógrafos. No passado eu fazia listas de livros para casas de comércio de livros, e
agora faço por prazer o que me vem em decorrência dos meus estudos. Acho que consegui
contar um pouco sobre um homem inteligente e pacato que não atribui a si nenhuma
grandeza.
Antes de subir até a sua casa, tive a idéia de levar-lhe uma lembrança. Entrei numa
loja e não achei nada além de uma garrafa de soda. Disse comigo mesmo, levarei uma garrafa
de soda. Aqueles eram dias de guerra e de fome, e até mesmo uma garrafa de soda era um tipo
de presente.
Subi as escadas cujo forro foi roubado, toquei a campainha que enguiçou, e esperei.
De qualquer forma, a porta se abriu e o dono da casa apareceu vestindo um casaco velho,
enquanto me olhava com olhos curiosos e desconfiados. A poeira dos livros anuviou a
claridade de seus olhos, e não me reconheceu. Olhou-me como quem olha um homem e quer
se ver livre dele. Por fim, a curiosidade superou a desconfiança e me perguntou, o que você
deseja. Disse-lhe meu nome e acrescentei, se estiver ocupado, irei embora.
Pegou-me pelo braço e me conduziu até a sua casa enquanto brincava comigo dizendo,
ocupado, você disse ocupado, você sabe que toda a nossa ocupação é o fato de não estarmos
ocupados. Sente-se, meu caro, sente-se. Com certeza você já investigou todas as casas de
comércio de livros de Lipsia e não deixou nada para os ratos comerem, e quando estava para
partir, resolveu entrar na casa deste velho para ver se já chegou a hora de fazer seu necrológio.
Que novidades há no mundo? Mata-se e morre-se. O mundo perdeu o juízo e faz a guerra, e
agora a guerra já se faz sozinha. Até meu único filho usa uma espada na cintura e faz a guerra.
Se você não o viu, veja a fotografia dele. Não é um herói de guerra, um conquistador de
terras? Não é à toa que sua querida mãe se orgulha dele. Jamais imaginei que eu teria um filho
que iria para a guerra. Mitel, com sua brilhante memória, que não esquecia nenhum folheto
que lhe caía nas mãos, não se lembrou que eu estava na sua casa no dia em que o filho se
tornou voluntário para ir à guerra. Ainda me lembro como sua mãe observava cada objeto que
o filho enfiava dentro da bolsa, bolsa de soldado, e como seus olhos brilhavam de tanta
alegria pelo mérito de ter um filho como esse, que está disposto a defender a pátria. Naquele
mesmo dia Mitel me contou uma das histórias de Heshil Shor Baal Hechalutz, que eu vou
pular para não interromper o assunto. Mas um outro assunto merece ser contado aqui.
Naquele dia, bem como no dia seguinte, ajudei Nachum Berish, o rabino da comunidade da
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sinagoga Hindenburg, na organização dos divórcios das mulheres russas abandonadas, cujos
maridos estavam como prisioneiros na Alemanha trabalhando nas minas de carvão, e iam
atrás de outras mulheres, enquanto as suas ficavam abandonadas. Mitel acrescentou dizendo,
deixemos de lado o mundo e suas novidades e lhe contarei novidades de verdade. O Rabi
Baruch de Mezibush foi muito esperto ao dizer, por que se fazem as guerras, a fim de criarem
marchas para serem cantadas nos lanches de sábado nas sinagogas. Há uma semana
trouxeram-me uma carta de Hirzman. O que este senhor escreveu, se você passar por acaso na
rua da minha casa de comércio, por favor, entre. Trouxeram-lhe livros e ele se permite supor
que terei interesse neles. Leio a carta e cochicho comigo mesmo, se eu passar por acaso, como
se os acontecimentos do acaso viessem de Deus. Troquei a roupa e o calçado e fui por acaso
até Hirzman. Se por acaso você estiver me ouvindo, contarei.
No caminho, encontrou-me o Sr. Koenig. Ele me diz, que bom acaso me providenciou
o Dr. Mitel. Digo-lhe, se é acaso, é acaso, e se é bom, que seja. É bom por quê? Ele me diz,
durante toda a vida trabalhei para aperfeiçoar as letras hebraicas, e agora que consegui
encontrar para as minhas letras a casa de fundição de Keisar e associados, quero lhe mostrar
uma cópia das letras que fiz. Digo-lhe, é possível que criem impressoras para imprimirem
livros com essas letras. Ele me diz, já criaram. Digo-lhe, você vê, Sr. Koenig, à toa me
caluniam dizendo que sou impaciente com os bibliógrafos jovens, pois não só permito que
imprimam todos os livros com letras de Koenig e Keisar, como também renuncio ao prazer de
ver as letras. Ele me diz, de qualquer forma, vale a pena ver. Digo-lhe, receio que como meus
óculos se acostumaram a ver as letras antigas, não verão a beleza das novas. Mesmo assim,
estou feliz por você ter conseguido. Ele me diz, não vejo que você está feliz. Digo-lhe, a fala é
uma voz, e pela voz uma visão é dita, como lemos no Pentateuco, e todo o povo viu as vozes,
e se eu disse que estou feliz, você deve ver as minhas palavras. E digo mais, certa vez levaram
ao Baal Hatanya um novo livro de chassidismo. Ele olhou e disse, vejo letras mas não vejo
livro. Pois eu não vi as suas letras, mas livros impressos com elas já os vejo. Depois que me
despedi de Koenig, enfiei a cabeça no pescoço para que os passantes não me reconhecessem e
não interrompessem o meu caminho. Lipsia é uma cidade de feiras e todos trazem para cá as
suas mercadorias. E agora aumentaram os inventores. Um inventa um substituto para as letras
antigas, outro inventa um substituto para alimentos, um inventa um substituto para braços e
pernas, e o governo inventa soldados como substitutos para seres humanos. E até eu, meu
caro, penso que achei um substituto para o assunto principal. Imediatamente retorno a
Hirzman.
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Cheguei à loja de Hirzman e me mostraram livros hebraicos que trouxeram dos países
conquistados. Limpei os óculos e enfiei a mão numa pilha de livros e retirei de lá bíblias e
livros de orações. Para um bibliógrafo, não são importantes, mas para os que estudaram e
rezaram neles, certamente são importantes. E agora que foram tirados deles, talvez convenha
lhes recomendar a leitura dos feitos dos heróis que os poetas das nações do mundo costumam
exaltar nos seus poemas.
Mitel riu um riso rouco e entrecortado. Um riso que se ri com dor no coração, raiva e
tristeza. E me parecia que após o riso despejaria sua fúria sobre as aquisições intelectuais do
homem moderno, como faz sempre que as menciona. Desta vez dominou a raiva. Tudo indica
que o que tinha para contar lhe era mais agradável do que a fúria.
Mitel retornou ao assunto e disse, enfiei a mão em outra pilha e retirei um livro de
orações, uma brochura de preces e um Zohar impresso em eslavo. De novo, coisas que se
acham em todo lugar, que não atraem o coração dos bibliógrafos, nem mesmo o que achei
dentro dos livros, como pestanas no livro de orações e fios de cabelo branco no Zohar. A
metade das preces estava apodrecida de tantas lágrimas derramadas sobre elas ao serem
pronunciadas. Desviei o olhar de toda essa mercadoria que colocaram à minha frente para
avaliar e enfiei a mão em outra pilha. Mais uma vez retirei coisas que merecem que se
lamente pelo esforço das tropas da Alemanha em trazê-las desde a Polônia até aqui. O que
retirei, um pequeno livro de orações, e na passagem da reza de Shemá Koleinu um pedaço de
papel no qual estava anotado um pedido para obter a compreensão da Torá. E o que mais
retirei, um Livro de Ester ilustrado e o desenho de um tabernáculo, como aqueles que eu e
você costumávamos fazer na infância. E já me preparava para tirar a mão do saque dos pobres
que foram arrancados do seu lugar, dos quais foi tomado todo o encanto dos seus olhos, mas
as mãos dos bibliógrafos não se contêm. Portanto, continuei a cavucar as pilhas. Por fim
enfiei a mão dentro de uma pilha e retirei um livro de lamentações de Tishá Beav, um
impresso não divulgado no mundo, mas eu o havia visto na infância e escrevi a respeito dele,
e Shteinshneider me citou e acrescentou um ponto de exclamação para avisar ao leitor, assim
afirma Mitel, e quem quiser acreditar, que acredite. Meu caro, você me conhece bem, não
desejo o mal das criaturas, mas naquele momento lamentei por Shteinshneider ter morrido,
pois se estivesse vivo veria que eu tinha razão e lamentaria por isso. Pego outro livro e parece
que a minha alma quer saltar para fora. Pequenas cidades que não se acham nos mapas
merecem ser lembradas, pois imprimiram livros de judeus no tempo em que seus vizinhos
não-judeus não conheciam nem uma letra. Agora, mesmo que me mostrem um livro hebraico
que foi impresso antes de Gutemberg, não me espantarei. Vou lhe revelar em segredo, às
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vezes digo comigo mesmo que judeus imprimiram livros antes de Gutemberg. Os mongóis
traziam livros impressos da China, porque lá inventaram a imprensa antes de ser conhecida na
Europa, e não é possível que judeus tenham visto a invenção e tenham imprimido livros? A
pólvora que os mongóis traziam da China não tinha utilidade para os judeus, então deixaram
que os alemães a inventassem. Mas livros, livros, meu amigo, é claro que judeus imprimiram.
Enquanto falava, começou a rir. Enquanto ria, disse, além de ser bibliógrafo, sou profeta. Se
você quiser, direi o que está pensando. Você está dizendo consigo mesmo, este velho perdeu o
juízo. Sou velho e não chegarei a ver minha hipótese confirmada. Mas você, meu amigo, que
é jovem, chegará a ver. Por enquanto, vou lhe mostrar uma coisa que você nunca viu.
Tirou um antigo folheto que havia achado nas tabelas que os primeiros bibliógrafos
fizeram com os livros que caíam em desuso, e me contou algumas coisas engraçadas a
respeito dos bibliógrafos. A respeito de fulano que é sábio e errou o que errou, e de fulano que
não é sábio e jamais errou, a não ser o erro de se considerar um sábio. E assim ia falando até
que chegou a minha hora de ir até a casa da Sra. Shimerman.
Levantei-me para ir embora. Disse-me, o que há? Disse-lhe, convidaram-me para o
almoço. Ele disse, a Sra. Shimerman o convidou. Disse-lhe, você é profeta? Disse-me, antes
de você chegar ela me telefonou. Disse-lhe, então você sabia que estou aqui, e por que não me
reconheceu quando cheguei? Disse-me, justamente por saber que você viria não o reconheci,
pois fiquei durante horas dizendo, virá agora, virá agora, virá agora, e de tanto pensar, minha
intuição se foi e quando você chegou, não o reconheci. Meu amigo, quando não há intuição,
não há nada. Disse-lhe, não falei à Sra. Shimerman que viria à sua casa, como ela soube. Ele
disse, pode ser que falou e se esqueceu. Disse-lhe, como é possível ter falado se nem eu
mesmo sabia que viria até a sua casa. Ele disse, como não se envergonha em dizer que não
pensava em vir à minha casa. Mas ela, que é esperta, sabia, pois para onde você iria senão à
minha casa. Até eu, que não vou a lugar nenhum, se conhecesse alguém como eu, não iria até
a casa dele?
Perguntei-lhe, e o que ela disse? — Disse que ela e o marido esperam por você na
Morada dos Leões. Disse-lhe, então irei à Morada dos Leões. Onde fica? Disse-me, a mim
você pergunta? Sou caseiro, não passo da porta da minha casa, como vou saber? Veremos no
livro de telefones.
Pegou o livro de telefones e não achou. Examinou os nomes de hotéis, pensões,
restaurantes, casas de vinho e casas de cerveja, e não achou. Olhou-me e disse, sou
especialista nas ruas de Lipsia e nunca vi um lugar chamado Morada dos Leões. Pegou o
telefone e perguntou na companhia telefônica onde fica essa Morada dos Leões, e não sabiam.
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Disse-lhe, será que você não está trocando morada dos leões por montanhas dos tigres ou
chifres de antílope ou asas de águia ou outros tipos valentões. Respondeu resmungando, você
está debochando de mim, o que a Sra. Shimerman vai pensar de mim, é um polaco como
todos os polacos, em quem é impossível confiar.
Enquanto isso, a fome começou a me incomodar. Levantei-me, peguei um copo e me
servi com a água que trouxe. O Dr. Mitel viu e disse, chegamos a bons tempos. Vem uma
visita à casa de um judeu e este não o recebe com comida e bebida. Espere até que venha a
dona da casa e faça um café para nós. Está tão ocupada em alimentar o mundo inteiro por
caridade que se esquece que seu marido também precisa comer. Já me acostumei a ficar em
jejum. Mas que um hóspede meu fique com fome, mesmo que meus dias sejam numerosos
como areia, jamais me acostumarei. E para cumprir o mandamento da hospitalidade, para que
todo judeu possa comer aqui sem hesitar, fiz minha casa kasher. Sou dos chassídicos de
Kotzk, que não perguntam a um hóspede, você rezou, mas perguntam, você comeu? Estraguei
o seu almoço, meu caro, espere até que minha mulher chegue e você achará um substituto
para a refeição da Sra. Shimerman.
Disse-lhe, preciso ir. — Para onde? — Vou até Grimma. O rosto de Mitel entristeceu e
ele se calou. Depois suspirou e disse, suponho que você esteja indo ver a viúva de Levi. Se eu
não estivesse velho e indisposto, se não odiasse viagens e se não procurasse distância das
mulheres, iria com você. O que será dos livros de Levi? Agora virão negociantes de livros
fazer deles a sua mercadoria. Para estudar neles, ninguém virá. Este era um homem. Até o dia
da morte a luminosidade de seu rosto não mudou e não precisou de óculos. E até mesmo na
hora da morte, quando se sentou e escreveu o testamento, não se viam nele sinais de fraqueza.
Quando sai o trem para Grimma, daqui a duas horas. Então, sente-se enquanto troco de roupa,
e quem sabe, acompanharei você até a estação de trem. Na verdade, não gosto de ir à rua por
causa dos mutilados e dos que fazem a guerra. Sente-se, meu caro, sente-se, e lhe direi uma
coisa.
Pode ser que você tenha ouvido o nome Shlomo Rubin. Eu o conheci pessoalmente e
posso afirmar que ele é melhor do que os livros que escreve. Ele me contou várias histórias e
eu lhe contarei uma delas.
Um sapateiro dedicado ficava ocupado com seu trabalho a noite inteira. Corta e
prepara solas e pedaços de couro para calçados. Passou por ele um capeta e mostrou a língua.
O sapateiro pegou a faca e lhe cortou a língua. O capeta voltou e novamente lhe esticou a
língua. Novamente o sapateiro lhe cortou a língua. Resumindo, um mostrava a língua e o
outro cortava. Quando clareou o dia, o sapateiro viu que todos os pedaços de couro e as solas
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que havia preparado estavam retalhados e estragados, e não serviam para nada. Você entende
a que me refiro? À dedicação dos alemães, que cortam e dilaceram os inimigos, mas no final
das contas, eles não dilaceram senão a sua própria pele. Essa guerra não vai terminar tão cedo.
Os alemães são um povo de teimosos, quando entram em alguma coisa, não largam mais. E já
que fizeram uma guerra, não abrirão mão dela até que vençam ou que sejam vencidos pelos
inimigos. Para mim, não faz diferença. Uns e outros gostam de guerra, uns e outros gostam de
vitória. Mas tudo indica que os inimigos da Alemanha vencerão, pois são mais numerosos. Se
eu escrevesse livros, escreveria um conto de previsão. Vou começar pelo final. A Alemanha
foi vencida e seus inimigos dividiram o país entre eles. Não restou para o povo alemão senão
um pequeno país, e não restou do povo alemão senão um povo pequeno e pobre. De tanta
pobreza, ninguém na Alemanha se importa senão com pão. As casas de cultura e as escolas
que restaram depois da guerra são usadas pelos alemães como moradias, uma vez que durante
toda a guerra ninguém construiu casas. E se acham um livro ou objetos de arte, acendem com
eles fogo para se aquecerem e para cozinharem. Por fim, não restou dos livros de seus sábios e
poetas nem mesmo uma página. Talvez uma guerra não possa destruir um grande país, mas
guerra atrai guerra. Voltam a fazer uma segunda guerra e uma terceira, até que se
enfraquecem, caem e não se levantam mais. São obrigados a desistir da vitória e largam de
mão a guerra, e não procuram senão pão, roupa e abrigo. De tempos em tempos, a alma
racional desperta e se lembram de como era antes, quando tinham sábios e poetas, e não lhes
restou nada de todos os seus livros de sabedoria e de poesias, pois fizeram com eles fogo para
cozinhar alimentos e assar pão. Escutam, então, que numa terra distante, como na América, há
judeus que saíram da Alemanha, e os judeus são tradicionalistas e costumam preservar a
língua do país de onde fugiram, e preservam a língua alemã, os livros da Alemanha, seus
sábios e poetas. Saem mensageiros da Alemanha para a América atrás desses judeus para
pegarem com eles alguns dos livros que tinham antes, assim como trazem agora das terras
conquistadas livros hebraicos. Talvez você diga, que necessidade têm os alemães de
triturarem as suas pernas até a América, se há a Suíça, se há a Áustria, se há alguns lugares
próximos onde se fala alemão, e eu lhe digo que um conto não é como um parágrafo do
Talmud, que precisa estar cercado de explicações por todos os lados. Se você não estivesse
tão apressado, eu descreveria todos os detalhes. Aparentemente é um conto fictício como
todos os contos de previsão, mas na realidade, ele é verdadeiro.
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CAPÍTULO 3
Voltei à estação de trem, peguei minhas malas e me enfiei dentro do trem grimmense. A
viagem de Berlim a Leipzig foi difícil, duas vezes mais difícil foi a viagem de Leipzig a
Grimma, e ainda mais difícil, a chegada a Grimma. Eram os dias da guerra, e todo homem
saudável foi levado ao exército; levaram todos os funcionários do trem, que foi entregue nas
mãos de mulheres. Viu o trem que é comandado por mulheres e tratou de anular a autoridade
delas sobre si. O trem precisava parar na estação e parou quarenta ou cinqüenta metros depois.
As mulheres tentaram removê-lo, mas este nem se mexeu. Ficaram furiosas e xingaram. O
trem apitou e lançou sobre elas sua fumaça negra. Os olhos delas se encheram de lágrimas,
mas o trem não se encheu de piedade porque seu coração é de ferro. Estávamos, então, longe
da estação, sem carregador e sem alguém que saísse comigo. Peguei minhas malas e me
arrastei com elas até a estação. Quis deixar a mala grande, mas achei o guarda-malas fechado.
Deixei as malas e fui procurar o guardador. Chegou um funcionário da estação e me
repreendeu, e me deu uma multa para pagar porque deixei as minhas coisas num lugar
proibido. Peguei-as e as coloquei em outro lugar e fui procurar o responsável pelo guarda-
malas. Um homem espiou na minha direção e disse, estou espantado por você deixar suas
coisas sem guardador. Disse-lhe, por favor, fique aqui até que eu volte. Sacudiu os ombros e
se foi. Depois de algum tempo chegou o guardador, entreguei-lhe uma mala, peguei a outra,
desci à cidade e entrei no hotel.
O dono do hotel me observou com maus olhos. Eu ou a mala, ou nós dois juntos, não o
agradamos. Perguntei-lhe, há aqui um lugar para pernoitar. Perguntou-me, você tem
passaporte. Mostrei-lhe o passaporte. Viu que sou de outro país e disse, enquanto você não
pegar autorização da polícia, não posso hospedá-lo na minha casa. Perguntei-lhe, onde fica a
polícia, respondeu-me, qualquer um lá fora pode lhe mostrar.
Saí à rua e não encontrei ninguém, pois todo aquele que não foi mandado à guerra
ficava em casa ou nas oficinas que produzem material para a guerra. O dia já havia
escurecido, e um tipo de escuridão densa subia da terra e descia dos telhados das fábricas de
armas. Quando meus olhos se acostumaram à escuridão, vi um poste de luz e um homem
parado ao lado. Aproximei-me dele e perguntei, onde fica a polícia? Ele estremeceu e fugiu.
Tudo indica que quando mencionei a polícia, não achou nada melhor para si mesmo do que
fugir.
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Enquanto isso, a polícia apareceu por si mesma. Naquela hora os guardas estavam
ocupados bebendo, e gritaram comigo por eu ter entrado sem permissão. Havia lá um
funcionário que, mesmo embriagado, não se esqueceu para o que foi criado. Pegou o
passaporte e viu que sou de outro país. Começou a xingar e amaldiçoar todos os inimigos da
Alemanha, e todo o país está cheio deles. Disse-lhe, sou da Áustria, que é aliada da Alemanha
na guerra. Por favor, assine o documento e irei ao meu hotel. Ele abanou com meu documento
o rosto quente de vinho como se fosse um leque, arranhou-o com uma caneta e escreveu,
autorização ao portador do documento para permanecer aqui por três dias.
Voltei ao hotel e mostrei o documento. O dono do hotel abriu um quarto para mim e
me mostrou uma cama. O quarto é um quarto e a cama é uma cama, só que este cheira mal e
aquela é torta. Mas quem está cansado da viagem agradece por qualquer abrigo que acha para
a cabeça e por qualquer cama que se presta para os seus ossos.
Acendi um cigarro para passar o cheiro e dominar a fome que me incomodava nas
entranhas, pois não havia provado nada o dia inteiro, além de água e cigarros. Quando o
cigarro acabou, servi-me com um copo de água e subi na cama sem refeição, porque se eu
pedisse comida, o dono do hotel diria que passou a hora da refeição e não tem o que me
oferecer.
Em alguns lugares já contei sobre noites de insônia. Aqui devo acrescentar o fato de
estar na casa de um não-judeu severo. Deitei na minha cama torta e me entortei de acordo
com a necessidade da cama, e procurei desviar o pensamento da cama e do quarto.
Você pode perguntar se meu quarto em Berlim era melhor, de qualquer forma, eu
estava lá, e como lá também não era tão bom, desviei-me das reflexões sobre quartos e
comecei a pensar em tudo o que me aconteceu desde a hora em que saí. Apareceu diante de
mim a imagem da Sra. Shimerman no meio daquela gente toda na estação de trem,
estendendo-me a mão com o rosto iluminado e me convidando para o almoço. Não só deixei
de almoçar, mas também vou dormir sem refeição. O que me trouxe até aqui? A carta da
viúva do Dr. Levi e os dois quartos cheios de livros que ele deixou, além da remota esperança
de achar aqui um quarto para os dias de verão.
A fome me incomodava por dentro e a precária cama me afligia por baixo, e maus
presságios me acometiam por causa da fome e por causa da cama. Procurei retirar de mim o
pavor dos pensamentos e peguei um radical hebraico para trocar letras e ver quantas palavras
formaria com elas. E como a noite estava difícil, peguei a palavra manhã, de manhã você dirá,
quem dera fosse noite, e de noite dirá, quem dera fosse manhã. E quando você vocaliza a
palavra com dois As, manhã (boker) se transforma em gado bovino (bakar). E quando a
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palavra é pontuada com A e E, fica crítica (baker), que não diferencia entre o bom e o mau, e
na linguagem dos sábios passa a ser visitação (bikur), assim, todo aquele que não visita os
doentes é como se derramasse sangue. E quando você troca as consoantes da palavra, fica
podridão (rekeb), como se diz, a podridão da Casa de Judá. E se você altera a posição, torna-
se batalha (krab), na época da aflição de um dia de batalha e guerra. Ou sacrifício (korban) de
uma alma, porque fará um sacrifício como oferenda a Deus. Ou seio (kereb), como se diz, o
leite que cobre o seio. Ou proximidade (kerub), como se diz, ele está próximo. Ou próximo
(karob), quer dizer, parente. E se você altera de novo, fica raio (barak), um raio que
relampejou. Segue-se a raio (barak), destruição (charob), a espada (chereb) está preparada
para a matança. Semelhante a raio (barak), os espinhos do deserto e suas plantas espinhentas
(barkan). Raio (barak) remete a levanta, Barak, e leva presos os que te prenderam. E se você
acrescenta um T, fica safira, turquesa e ágata (bareket). E se você volta a alterar as letras, fica
rabok, dos bezerros de Mirbak, e por fim, túmulo (keber).
Depois dessas letras, peguei outro radical. Depois peguei algumas palavras chamadas
palíndromas, como noite (lil) e defeito (mum). Depois peguei as palavras prazer (oneg),
abundância (shefa), beleza (shefer) e desejo (ratza), que trocando as letras ficam praga (nega),
lodo (refesh), dejeto (feresh), crime (fesha) e aflição (tzara). Depois peguei as palavras
verdade, misericórdia e justiça, que jamais permanecem nas suas verdades, misericórdias e
justiças, e se você troca as letras, não sai nada. Em contrapartida, maldade (rasha) e mentira
(sheker) fazem laço (kesher), barulho (raash) e dez (esher). Aos poucos meus olhos
começaram a se ligar no sono com as letras de sonho (chalom) que trocaram de posição e
passaram a ser luta (lachom), da palavra guerra (milchamá).
Pela manhã pedi um copo de café. Deram-me uma bebida que não era café nem o
substituto do substituto de café. Por causa do sonho da dona da pensão, esqueci-me de pedir a
ela os cartões de alimentação, e como não os tinha, não me deram pão nem nada que
alimentasse, além de frutas bichadas. Peguei algumas delas, comi, e fui até a casa da viúva do
Dr. Levi.
Cheguei e achei a casa trancada. A casa ficava sobre uma colina baixa, separada das
outras e cercada por um jardim que já deixou de ser jardim e se transformou num campo de
espinhos. Espantei-me por um instante, será possível que uma mulher cujo marido lhe deixou
um jardim que era o mais belo de todos os jardins, será possível que deixe que cresçam
espinhos. Lembrei-me dos dias que passei na casa do Dr. Levi passeando pelo jardim,
comendo de suas frutas e ouvindo sábias palavras desse sábio, enquanto passarinhos voavam
sobre a minha cabeça em absoluto silêncio, pois até mesmo eles evitavam emitir som quando
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o sábio falava. Agora o jardim estava abandonado, toda plantinha murchou, o machado
passou nas árvores, os corvos grasnavam, crá, crá. E onde está a Sra. Levi? Eu achava que a
mulher de um sábio é como um sábio, e por fim, abandonou a herança do marido.
Vocês me conhecem e sabem que não costumo pensar mal das mulheres, mas ao ver
aquele abandono, censurei aquela mulher. Veio um cachorro e latiu para mim. Deixei o
cachorro para trás e fui procurar a dona da casa.
Procurei e não achei. Perguntei a algumas pessoas que passavam. Uns me
responderam fora do assunto e outros disseram que não havia aqui nenhum Dr. Levi. Vi que
não há como contar com as pessoas e esperei pela misericórdia do céu. O que fez o céu,
fechou-se em nuvens e desabou uma forte chuva que me golpeou sem piedade. Procurei um
lugar para me abrigar e achei um tipo de hospedaria precária que balançava com o vento.
Entrei e achei ali alguns cidadãos. Disse-lhes, o que houve com a casa do Dr. Levi que está
fechada? Respondeu-me um deles, há muita gente de fora por aqui, e todo aquele que teme
por si, fecha sua casa. Empertiguei-me o mais que pude para que ele visse que não sou dessa
gente de fora por aqui, e lhe contei que fui hóspede do Doutor, e agora que morreu, a viúva
me escreveu pedindo que viesse para um assunto importante. Respondeu depois de bater o
cachimbo e disse, também ouvi que o Dr. Levi morreu. Esse doutor era o quê, médico?
Apareceu um outro, não se sabe se cidadão ou um irresponsável que também veio se esconder
da chuva e disse, eu não iria me tratar com um médico como esse. Há aqui entre nós um
jovem rapaz, o melhor entre os médicos, vocês o conhecem, o filho da... e aqui disse uma
palavra que não é educado repetir.
Estava eu nessa hospedaria que recolhia a chuva de cima e começava a vazar sobre
nós, só que a chuva de cima era de água pura, e a que vinha do telhado da hospedaria era
turva. Transferi-me para outro lugar e ali achei outro homem. Perguntei-lhe, talvez você saiba
onde está a viúva do Dr. Levi. Disse-me, eu não sei, mas há aqui um lojista judeu, é possível
que ele saiba. Quando a chuva passou, mostrou-me a loja desse lojista.
Fui até o lojista e lhe perguntei. Começou a lamentar por Levi que morreu e por sua
mulher, que é tida como morta. Alguns médicos dizem que ela tem câncer no intestino e
alguns dizem que é outra doença. Nosso Pai do céu inventou mil doenças para suas criaturas e
os médicos sabem os nomes das doenças, mas a cura, deixam para Nosso Pai do céu. A viúva
está no hospital e a atormentam com drogas. E as drogas esvaziam o bolso, e quando a viúva
se levantar da doença, talvez não tenha um centavo para se sustentar. É verdade que o Dr.
Levi lhe deixou dois quartos cheios de livros, mas por enquanto, os ratos os estão comendo. E
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mesmo que os ratos não os comam e os livros fiquem como estão, toda a geração que
precisava deles já morreu.
A fome voltou a me incomodar. Eu disse ao lojista, esqueci meus cartões de
alimentação e não posso pegar nem uma fatia de pão. O lojista debochou deste azarado que
viaja sem cartões de alimentação. Mas iluminou o rosto na minha direção e disse, se você não
humilhar a minha mesa, estou disposto a lhe receber. E antes de chegarmos à casa dele, tirou
uma fatia de pão da cesta e me deu. Depois que alimentei meu coração, levantei-me para ir
ver a viúva do Dr. Levi no hospital. O lojista tentou me impedir e disse, a mulher está doente
e não permitem que falem com ela. Quando viu que eu insistia em ir, mostrou-me o caminho.
A viúva estava deitada na cama e não me reconheceu. Ou porque meu rosto estava
desfigurado de fome por causa da guerra, ou porque a doença enfraqueceu a memória da
viúva. Mencionei a carta que me escreveu e mencionei os dias que estive em sua casa no
tempo em que o marido era vivo. Recordou-se do fato e seus lábios começaram a se mover.
Chegou uma enfermeira para cuidar dela e fui obrigado a sair.
Voltei ao lojista e relatei tudo o que me aconteceu com a viúva, e disse a ele que eu
pretendia passar os dias de verão em Grimma. O lojista respondeu dizendo, é possível que
você ache um quarto e é possível que não ache, alimento, certamente, não achará, pois o
Estado está limitando alimentos, os governantes da cidade não prepararam o suficiente para
cobrir as necessidades, e as pessoas não vêem com bons olhos visitantes que chegam para lhes
tirar comida da boca. E se o visitante for judeu, certamente não lhe dedicarão maior afeto.
Disse-lhe, todos os anos são maus por nada, e agora, são maus com motivo. Ele disse, Deus
me livre, não diga isso, é a necessidade do momento. Pensei comigo mesmo, é fácil destruir
um mundo inteiro e difícil dar uma fatia de pão a um visitante. Mas não levei meu
pensamento aos lábios, porque os judeus alemães são apegados à Alemanha, e se meu
anfitrião ouvisse, iria me cortar como a um peixe. Disse-lhe, como estão os judeus? O lojista
riu e disse, os judeus como estão, se não fossem os não-judeus que nos lembram que somos
judeus, teríamos nos esquecido. Disse-lhe, e você, meu senhor, como está você? Disse-me,
nesse caso, sou judeu como todos os outros.
Depois de fechar a loja, levou-me à sua casa e contou à esposa que sou um viajante,
que esqueci o bilhete de alimentação e que não posso fazer refeição na hospedaria. Ela me
olhou com o rosto iluminado e disse, se você não procura manjares de reis, eu lhe garanto que
não sairá da nossa casa com fome. Não passou muito tempo até que preparou para nós uma
mesa, e quando nos sentamos ela disse, se você tivesse vindo antes da guerra eu teria
preparado uma mesa cheia e servido as boas comidas que toda pessoa deseja. Agora temos
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que nos contentar com o que nos oferece o mercado. E neste ponto disse ao marido, conte a
ele a história de Rabi Anshil. O dono da casa disse humildemente, o que há para contar, talvez
ele já ouviu o fato. Eu disse, também humildemente, é claro que não ouvi. Disse-me, apesar
de saber que você já ouviu, contarei. Havia uma cidade na Alemanha onde todos os judeus
eram abastados e não existia entre eles nenhum pobre para que pudessem cumprir o
mandamento da caridade. Uma vez apareceu ali um viajante pobre. Ficaram felizes e lhe
deram de bom grado. Quando ele se preparou para partir, lamentaram a sua ida, pois ficariam
de novo impedidos do mandamento da caridade. Refletiram, e criaram uma associação à qual
chamaram Associação Rabi Anshil, e combinaram com ele que voltasse a cada ano. Cada um
pendurou uma caixa de caridade na sua casa em favor de Rabi Anshil, que vinha a cada ano
cobrar o que era seu.
Depois de contar o caso de Rabi Anshil, contou à esposa que vim de Grimma para ver
a viúva do Dr. Levi. E ao mencionar o Dr. Levi começou a elogiá-lo, mas disse que um
homem estava espalhando ódio e afirmando coisas, e que todos estavam indo atrás da
conversa dele. E isso não se explica senão por causa dos seus livros, pois era um bom homem,
e muitas vezes deu a alma pelos outros, mas certamente seus livros provocaram o que
provocaram. Isso porque tinha dois quartos grandes cheios de livros, e com certeza foi neles
que aprendeu a se queixar das pessoas. E neste ponto você pergunta, por que precisava de dois
quartos de livros, será que um não é suficiente, e na realidade, um também é demais. Mas
talvez a coisa tenha acontecido assim: no início ele tinha um livro, acrescentou mais um e
mais um, e agora que morreu, a viúva está herdando seus livros e não é sensata, não há quem
estude neles, e os ratos vêm para furá-los.
E o lojista repetiu o que disse, mudando um pouco as palavras. Agora os ratos estão
comendo os livros e não vai passar muito tempo até que não sobre nada deles. Notava-se que
o exemplo dos ratos e dos livros lhe agradava, por isso, repetia.
Não me lembro como a conversa chegou até a Terra de Israel. Provavelmente
mencionei que sou da Terra de Israel, porque naquele tempo eu costumava mencionar a cada
momento a Terra de Israel, e a lembrança deste nome me ajudava a suportar o sofrimento de
estar na diáspora, como um hóspede que diz, amanhã retornarei ao meu lugar, e assim, todo o
suplício era eliminado. E então, quando foi mencionada a Terra de Israel, o dono da casa se
levantou e pegou um folheto em hebraico, mostrou-me e disse, apesar de não saber ler
hebraico e não ser sionista, apesar disso eu o conservo, por ser da Terra de Israel e por estar
impresso com as letras do livro de orações. Olhei o folheto e retirei dele a minha mão. O dono
da casa viu e se espantou que judeus apegados à Terra de Israel e conhecedores da língua
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sagrada façam o que eu fiz. Disse-lhe que aquele folheto era do mal, e ficou mais espantado
ainda.
Depois de comermos e bebermos, o dono da casa pegou um charuto e me deu.
Sentamo-nos e falamos sobre tudo o que se costumava falar naquele tempo, e desviamos a
atenção da Terra de Israel e dos livros de Levi. A chama do charuto chegou ao fim e começou
a queimar meus dedos. Eu disse ao dono da casa, chegou a hora de voltar ao meu hotel.
Levantou-se para me acompanhar e me convidou para fazer as refeições com ele todo o tempo
em que eu estiver em Grimma. Disse-lhe, não tenho outra alternativa, não trouxe bilhetes de
alimentação para que possa achar refeição em outro lugar, e mesmo que não me convidasse,
eu me convidaria a vir. Ele riu e disse, não é à toa, como se diz, nada acontece por acaso,
porque se você tivesse bilhetes de alimentação, não teria vindo à minha casa.
Após um curto tempo, chegamos ao meu hotel. O lojista entrou comigo e deu um
tapinha amigável no dono do hotel, um tapinha com ruído, e lhe disse, este senhor é muito
distinto, e de fato eu deveria hospedá-lo em minha casa, mas como não quis prejudicar o seu
sustento, eu o trouxe até o seu hotel, e você, meu respeitável e ilustre amigo, não seja um
porcalhão e se comporte com ele com modos de gente, seja no que se refere a cama, seja no
que se refere a alimentação. O dono do hotel assentiu com a cabeça em sinal de obediência.
Apesar de que o lojista não lhe parecia importante, notava-se que estava disposto a cumprir o
que lhe ordenou, contanto que o deixasse em paz.
Dormi bem à noite, porque eu e a cama nos acostumamos entre nós. E pela manhã,
quando entrei no refeitório, trouxeram-me uma refeição razoável. Essa refeição mudou minha
opinião, e novamente pensei comigo mesmo, farei minha moradia aqui nesta cidade, no hotel
ou em outra casa. E no que se refere a alimentação, também não há por que me preocupar
demais. Com as palavras certas e com dinheiro se acha comida em todo lugar, mas afinal,
comida é o principal? O que eu peço, um pouco de sossego e um pouco de sono.
Saí à rua feliz e com o coração leve, como alguém que dormiu como era preciso,
comeu como era preciso, e sabe muito bem o que fazer. Passou por mim um homem e me
chamou de russo. Como vocês sabem, sou galiciano, e não, russo, e para mim, russo não é um
termo com sentido negativo, mas aquele malcriado pretendia me insultar. Neste momento
percebi que esse lugar não é adequado para fixar residência e que eu deveria voltar a Berlim.
Berlim é uma cidade grande, acostumada com judeus.
Voltei ao hospital para ver como está passando a viúva. Naquele dia seu sofrimento
havia diminuído e ela me recebeu com bom semblante, e contou que ontem ou anteontem ou
ontem mesmo um homem estranho a visitou, dizendo coisas que jamais aconteceram, como
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por exemplo, que ela lhe escreveu uma carta pedindo que viesse para aconselhá-la a respeito
dos livros que o marido deixou. Percebeu logo que o homem se tratava de um grande
mentiroso, porque ela não escreveu nenhuma carta, apesar de que pretendia escrever, mas
acabou não escrevendo, até que adoeceu. Na verdade, nem está doente, e pretende falar ainda
hoje com os médicos que eles precisam curá-la, porque é para isso que são médicos. Enquanto
falava, lembrou-se que de fato escreveu uma carta, mas de qualquer forma, não àquele homem
que esteve aqui ontem, e se escreveu mesmo, foi para alguém como eu. E em razão dos livros
ela pede que eu permaneça em Grimma, que brevemente sairá completamente curada do
hospital e então dará atenção aos livros.
Entrou um jovem médico, alto e de boa aparência, de barba e cabelo louro, e o rosto
cheio de bondade. Talvez fosse ele o filho daquela senhora a quem se referiu o grosseirão que
se abrigou da chuva junto comigo. O médico olhou para a doente e olhou para mim como
quem olha para um amigo e lamenta por ele. É possível que as roupas pesadas que eu vestia
lhe causavam aflição, ou talvez viu em mim um pouco de tristeza pelos insultos daquele
malcriado, e isso provocou a piedade do médico por mim, ou talvez a dor que eu sentia pela
viúva estava estampada no meu rosto. E apesar de que a sua intenção era ser amável comigo,
deixei para trás a sua amabilidade e me fui.
Fui até o lojista e lhe contei tudo o que me ocorreu com a viúva de Levi. O lojista
começou a falar dela, e disse que todos sabem que não há qualquer esperança de que se
levante da cama em que está. Em seguida mencionou a herança que o marido lhe deixou, e
que não há nenhuma possibilidade de que se transforme em dinheiro. Depois contou coisas a
respeito da grande controvérsia que havia entre o Dr. Levi e os dois maiores nomes do país, o
rabino chefe Dr. Raviner Guizetzstroi e o mantenedor-chefe, o Sr. Conselheiro do Comércio,
Hochmuta, ambos irritados com Levi por ele divulgar o seu judaísmo em qualquer lugar e a
qualquer hora, e por ter conquistado adeptos para o sionismo. Por fim o lojista fechou a loja e
me levou à sua casa para jantar com ele.
Depois da refeição, quando me deu um charuto, coloquei à sua frente uma bela caixa
cheia de charutos que comprei para ele. Observou os charutos e disse, não fumo. Disse-lhe, eu
o invejo por não fumar. Disse-me, pelo contrário, inveje-me no dia em que eu voltar ao mau
caminho, porque este será um bom dia para mim, o dia em que eu fumar o meu charuto.
Disse-lhe, quando será esse dia? Ele abriu o paletó, retirou três charutos e disse, está vendo
esses charutos, fui um grande fumante, não havia um só dia em que eu não fumasse doze,
treze, quatorze charutos, e no dia em que meus três filhos saíram à guerra, dois por causa da
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idade e um que foi voluntário, deixei esses três charutos na roupa e disse comigo mesmo,
minha boca não provará nenhum charuto até que meus filhos voltem da guerra.
Dei-lhe a minha bênção para que os filhos voltem brevemente e em paz para casa, e
para que ele volte ao mau caminho e fume conforme costumava fazer. Respondeu amém à
minha bênção e sua esposa limpou uma lágrima no rosto.
À noite, na cama, ficou claro para mim mais uma vez que não tenho o que fazer em
Grimma. E pela manhã, depois de comer, beber e pagar as despesas do hotel, fui até os
guardas. O guarda carimbou meu documento e me dirigi à estação ferroviária, peguei meus
pertences e entrei no trem para voltar a Berlim.
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CAPÍTULO 4
O trem grimmense não vai até Berlim, e quem quer ir de Grimma a Berlim, desce em Leipzig
e entra no berlinense. Eu não fiz isso, mas ao chegar a Leipzig, deixei minha bagagem no
guarda-malas e desci à cidade.
Era um dia de primavera. O fedor de Leipzig, que sempre provoca espirros, foi
substituído pelo cheiro de primavera. E um tipo de azul celeste profundo aparecia no
firmamento, como a cor celeste das peles de raposa que traziam às feiras de Leipzig. Passeei
entre as belas casas de comércio e observei as vitrines enfeitadas com peles de todo tipo de
animais que deixaram os campos e florestas e chegaram até aqui. Depois fui ao vale das rosas.
E quando vi a casa de Mitel, não entrei, para não incomodá-lo. Por fim me dirigi a um banco e
me sentei. No banco em frente ao meu estava sentada uma mulher jovem, tricotando e lendo
um livro. No chão, aos seus pés, estava uma criancinha vestida como um soldado, com uma
espada de madeira, e brincava na terra. Uma ou duas vezes a mulher ergueu os olhos do livro
apoiado nos joelhos, e novamente voltou à leitura. Aos poucos começaram a chegar mulheres
com crianças. Quando ficaram numerosas, deixei meu lugar às mães das crianças e me fui.
Um menininho me interrompeu e exclamou para mim, você é um homem mau. Que
mal fiz ao menininho para que me chamasse de homem mau. Ele fez um círculo no chão com
giz e eu não percebi e entrei no círculo. Disse-lhe, acredite, meu querido, que não sou um
homem mau, e se você quiser, farei um círculo maior do que esse que você fez. O menino
desviou os olhos de mim e do círculo, parou e bateu as pequenas palminhas com alegria e
disse, olha, mamãe, olha. Ergui os olhos para ver o que havia lhe causado tanta alegria a ponto
de desviar a atenção de mim e do círculo, e vi um cachorrinho cercado de restos, parado em
frente a uma casa nova onde havia dois leões de pedra, um ao lado do outro, e em cima da
porta, uma pequena placa afixada na parede com a inscrição Morada dos Leões.
Entrei na Morada dos Leões e pensei comigo mesmo, seria bom se aparecesse a Sra.
Shimerman, mas não vai aparecer, porque não é comum alguém aparecer quando é procurado.
Ou talvez por isso mesmo poderá aparecer, pois se é claro que não vai aparecer, pode ser que
apareça. Uma garçonete se aproximou e perguntou, o que o senhor deseja? Disse-lhe, aqui
tem café? Ela foi e trouxe café. Perguntei se conhecia a Sra. Shimerman. Respondeu dizendo,
sou a passadeira dos vestidos dela. Perguntei se ela está aqui. A garçonete respondeu dizendo,
hoje não está, esteve há três dias. Eu disse à garçonete, esteve com o Sr. Shimerman e pediu
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almoço para três, e o que ia almoçar com eles não veio. Este sou eu. Olhou-me espantada,
com o mesmo espanto das costureiras. Lamentei por ela não me considerar como alguém que
merecesse almoçar com a Sra. Shimerman. E quando paguei o café, dei-lhe uma gorjeta acima
do que se costuma dar, talvez assim reconhecesse a minha importância. Não sei se
reconheceu, mas de qualquer forma, mudou de opinião a meu favor e se mostrou disposta a
responder a qualquer pergunta que eu fizesse.
Perguntei, por acaso você sabe onde posso encontrar a Sra. Shimerman? A garçonete
respondeu dizendo, quando a Sra. Shimerman não vem a Leipzig, costuma ficar na aldeia, na
casa de recuperação dos soldados.
Voltei à estação de trem, pequei minha bagagem e subi no trem para a aldeia
Lunenfeld, onde fica o asilo das vítimas da guerra, criado pela Sra. Shimerman. Meia hora
depois, cheguei lá. Meia hora depois, cheguei ao asilo. Antes que o porteiro me despachasse e
dissesse, volte amanhã, a Sra. Shimerman me viu, aproximou-se, estendeu a mão delicada e
me disse, você é uma pessoa má. Deixou-nos esperando e nem considerou que pudéssemos
estar com fome. O que viu de tão bom em Leipzig para ter nos deixado, e nem apareceu.
Disse-lhe, até eu reconheço que sou uma pessoa má, já que no mesmo dia fui acusado
duas vezes. Uma vez por um menininho em cujo círculo entrei, e outra vez por você. A sua
queixa não deve recair sobre mim, mas sobre a Morada dos Leões, porque não achei no livro
de telefones. Brigitte disse, agora não quero discutir com você, no jantar acertaremos as
contas. Enquanto isso, mostrarei o asilo para você. Mas antes vamos beber alguma coisa.
Brigitte me levou ao seu escritório, pediu café e me perguntou, o que você fez em
Leipzig e quem você viu em Leipzig. Disse-lhe, visitei o Dr. Mitel, e lhe disse ainda, como
lhe ocorreu telefonar para ele? E o que faria você se eu não tivesse ido até a casa dele?
Brigitte brincou e disse, de qualquer forma, você não foi ao almoço. E em relação à sua
pergunta, como me ocorreu dizer a ele que o avisasse para ir à Morada dos Leões, foi assim.
Perguntei a respeito da mulher dele, ele começou a se queixar dizendo que de tanto se ocupar
com as necessidades da comunidade, ela o abandonava e também à casa, e para mudar de
assunto, contei que vi você e disse que se você fosse à casa dele, dissesse a você onde me
encontrar.
A moça que serviu o café trouxe um cartão de visita que lhe foi entregue pela
enfermeira chefe para a Sra. Shimerman. Brigitte observou o cartão e cochichou, chegaram
grandes senhores e eu preciso mostrar a eles a instituição. Como eu o conheço, sei que você
não quer acompanhá-los. Então, o que fará enquanto isso, até que eu me livre deles? Disse-
lhe, não se incomode comigo, tenho uma parenta que vive nesta aldeia, irei ver como está
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passando. Brigitte disse, contanto que volte para o jantar. Disse-lhe, se Deus não fizer comigo
o que fez em Lipsia, chegarei para o jantar. Brigitte disse, então é melhor que fique aqui e que
vá amanhã até a casa da sua parenta. Disse-lhe, Brigitte, você não confia em Deus? Brigitte
disse, em Deus eu confio, duvido é de uma criatura como você. Eis aqui uma pasta de
gravuras de Van Gogh que saíram há dois ou três dias, sente-se e observe as gravuras até que
eu volte, e então, jantaremos. Disse-lhe, vou me sentar e observar as gravuras até a hora do
jantar, e depois da refeição irei até a minha parenta. Brigitte disse, você se faz de tão
insignificante achando que toda a nossa conversa terminou.
Novamente estava eu com Brigitte Shimerman. Esse quarto não era como o quarto
dela em Berlim. Um quarto acompanha o sinal dos tempos, esse era pequeno, com objetos
amarelos, e o retrato de Wilhelm Kaiser estava pendurado na parede, e ao lado dele, os
retratos dos dois ministros de guerra, Hindenburg e Mackensen, e em outra parede estava
pendurado um grande mapa das áreas da guerra com muitas agulhas espetadas. Havia ainda
no quarto, sobre a mesa, o retrato de uma menina pequena, a filha de Brigitte, e um vaso cheio
de flores do campo e também alguns jarros, e também um retrato dos dois Shimermans, quer
dizer, o marido e o sogro, e próximo a eles havia quatro ou cinco livros, entre os quais um
livro aberto de contos de Tolstoi numa nova tradução alemã, e sobre ele uma escultura de
gesso que Brigittte colocou ali para que o vento não virasse as folhas.
O telefone tocou e Brigitte foi na direção de seus visitantes, e eu me sentei para
observar as gravuras. Veio-me a imagem da minha parenta que está solitária, porque o marido
e o filho foram levados ao exército. Deixei de lado as gravuras e me dirigi à casa dela.
No caminho encontrei um rapaz no campo, sozinho. Não estava ferido, mas a tristeza
que havia nele era a tristeza de um exército de feridos. Aproximei-me dele e o cumprimentei.
Olhou-me, espantado, porque era um prisioneiro, e não se costuma cumprimentar prisioneiros.
Eu, que não conhecia os hábitos do lugar, falei com ele como se fosse uma pessoa qualquer.
Ele também começou a se sentir como uma pessoa qualquer e começou a me contar um pouco
do que lhe ocorrera. É filho caçula, o pai morreu e a mãe é viúva. Chegou a guerra e o
levaram. Os alemães avançaram e seu batalhão foi rendido. Conduziram-no à Alemanha e o
trouxeram a esta aldeia, e o entregaram a uma mulher cujo marido foi à guerra. Aqui ele faz o
que deveria fazer junto à sua mãe, e não sabe se ela está viva ou não está viva, e não sabe o
que se passa no mundo, porque não falam com ele. Além de ordens, advertências e
repreensões, ninguém lhe diz nada. Permaneci com o rapaz no campo e me lembrei da dona
da pensão em Berlim. E se este rapaz não fosse russo, eu diria que se trata do filho perdido.
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Ao ver que lhe sou simpático perguntou-me, cochichando, você tem um cigarro. Dei-lhe todos
os cigarros que trazia comigo e lamentei não ter mais para dar.
À noite contei à Sra. Shimerman o caso do prisioneiro. Seu rosto escureceu e ela disse,
você não devia ter falado com ele, porque se o vissem falando com ele diriam calúnias a seu
respeito. Disse-lhe, o que pensam esses alemães, amanhã eles ou seus filhos serão prisioneiros
dos seus prisioneiros, e não lhes será nada agradável ficarem vagando sem que ninguém fale
com eles. O rosto da Sra. Shimerman voltou a escurecer e ela disse, por favor, controle as suas
palavras. Guerra é guerra.
Guerra aqui e guerra ali. A todo lugar que você se dirige — guerra. Por causa da
guerra é proibido ter piedade de um filho perdido que foi retirado da casa da mãe e lhe dirigir
uma palavra. Por causa da guerra as pessoas deixaram de ser pessoas e não são senão
comandantes, soldados, feridos, prisioneiros e inimigos. Naquela noite se ergueu um tipo de
barreira entre mim e Brigitte. Eu e ela fingimos que não vimos, mas uma barreira é uma
barreira. Naquela noite não nos estendemos na conversa como costumávamos fazer, e assim
ganhei tempo, e fui até a minha parenta.
Quem poderá descrever a alegria de uma mulher que o marido e o filho foram levados
à guerra e que permaneceu solitária numa aldeia distante de Israel, e de repente apareceu-lhe
um parente, e que parente, alguém que já não via alguns anos, e que apareceu quando ela já
tinha desistido de tornar a vê-lo. E por que havia desistido de vê-lo, isso é muito claro, pois se
o marido e o filho, que moravam com ela na mesma casa, e estava habituada a vê-los todos os
dias, se não lhe era dado vê-los, o que dirá, um parente que mora longe, a quem já não via um
ano sabático e meio. Quis me perguntar e contar mil coisas, mas de tanta ansiedade, não
perguntou nem contou nada, mas permaneceu sentada, observando-me com bons olhos, sem
parar. De repente me olhou com olhos caridosos e disse, certamente você está com fome, é
claro que não comeu esta noite, logo logo vou preparar uma pequena refeição. Disse-lhe, não
estou com fome; jantei com a Sra. Shimerman. Minha parenta ouviu e não acreditou. Será
possível que nesses dias de fome e aflição alguém não esteja faminto, e se comeu, com
certeza não comeu o suficiente. Levantou-se e se dirigiu à cozinha. Antes de chegar ali,
voltou, pois se lembrou de uma coisa que queria me perguntar. Antes de perguntar, voltou à
cozinha para trazer alguma comida.
Ela não tinha gás. O querosene também havia acabado. Ela não tinha senão gravetos, e
os gravetos são tão lentos, até que acendem o fogo os inimigos de Israel podem morrer de
fome. Ocorre que um parente chega à sua casa e ela não tem como recebê-lo com uma comida
quente. Disse-lhe, estou satisfeito, e mesmo que me sirvam manjares de reis, não comerei.
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Não aceitou as minhas palavras e continuou lamentando. Enquanto isso o tempo passou e
precisei ir. Fez-me prometer que voltaria no dia seguinte. Disse-lhe, se desta vez vim por mim
mesmo, o que dirá agora, que me fez prometer. Antes de voltar à casa dela, contarei um pouco
a seu respeito.
Minha parenta era filha de ricos, filha de um homem instruído e temente a Deus, que
se conduzia um pouco como os progressistas que não seguem os hábitos das pessoas da
família, cuja tendência são os caminhos de Deus, como seus pais e os pais de seus pais, sem
inventar novidades. E como ele não tinha filhos além dela, trouxe-lhe professores e instrutores
até mesmo para lhe ensinar hebraico. Quando chegou à idade de se casar, o pai lhe arranjou
um homem adequado, filho de um dono de aldeia, um rapaz culto, sionista, e que falava
hebraico. Ela se casou com ele e foi com ele à aldeia, até que decidiram imigrar à Terra de
Israel, para ali comprar um terreno para trabalhar e guardar. Ocorreram-lhes fatos e não
puderam imigrar. Não sei que fatos são esses. Como ficaram impedidos de imigrar a Israel,
foram até a Alemanha. Ele se ocupou de alguns negócios que não foram bem sucedidos.
Comprou então uma fábrica de engradados na aldeia em Lunenfeld, perto de Leipzig. Chegou
a guerra e foi convocado a servir. Deixou a mulher e o filho na aldeia, enquanto esta vai
reduzindo a produção. Não se passaram muitos dias até que o filho cresceu e também foi
convocado para o exército. A mulher ficou sem o marido e sem o filho. Esse é o resumo da
história de minha parenta. Ainda há que acrescentar que ela era quinze anos mais velha do que
eu. E por que motivo menciono a sua idade, é que se você perceber nela uma excessiva
pureza, não se espante, porque ela nasceu numa geração anterior, quando as pessoas não se
envergonhavam por serem puras.
Pela manhã voltei à sua casa. Quando me viu, espantou-se, e apesar de que no dia
anterior eu havia prometido voltar, espantou-se por eu ter voltado.
Pouco a pouco a alma dela foi se recuperando do espanto e me pediu para lhe contar
coisas, não coisas do mundo, mas de mim. Disse-lhe, pergunte, e se eu tiver resposta,
responderei. Ela disse, o que perguntarei e o que não perguntarei, porque de tantas perguntas
que tenho para fazer, não sei por onde começar. Disse-lhe, por onde começar, estará
começado. Ela disse, para você é fácil dizer isso. De qualquer forma, tentarei. Ouvi dizer que
você escreve histórias, e eu me lembro que escrevia poesias. De todas as coisas que existem
no mundo, do que mais gosto são poesias, poesias com rimas. Nas rimas há o que não há na
prosa. Disse-lhe, isso quer dizer, se houver nelas poesia. Ela disse, quem se contenta com
rimas vazias? Se eu for comprar um livro de rezas para Rosh Hashaná e Iom Kipur e me
derem uma capa de livro sem livro, eu não me contentarei com a capa. Por favor, explique as
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suas palavras. Disse-lhe, isso é difícil de explicar e difícil de entender. É a sutileza da sutileza,
o espiritual do espiritual. Ela disse, você pensa que por eu morar numa aldeia meu cérebro
ficou limitado como o de uma aldeã e não sei o que é o espiritual do espiritual. Fingi que eu
sabia o que é o espiritual do espiritual e que eu a estava apenas testando. Disse-lhe, ao
contrário, diga-me então o que é. Ela examinou com as pálpebras, buscando palavras para
definir o conceito. Por fim ela disse, já sei. Disse-lhe, então, o que é o espiritual do espiritual.
Ela disse, é como dizer os Salmos sem derramar lágrimas. Assenti com a cabeça como se ela
tivesse tirado a resposta do meu próprio coração.
Ela acrescentou e disse, agora você se veste como um estrangeiro; lembro-me que
costumava se vestir como os judeus, e suas longas e onduladas costeletas subiam e eram
devoradas pelos seus cachos, e você ainda lamentava por elas não lhe cobrirem as faces, que
eram lisas e sem pêlos.Você não atinava que essa era uma qualidade atribuída ao patriarca
Jacob, de quem foi dito, sou um homem liso e sem pêlos. Jamais me impressionei com os
chassídicos que costumam usar cachos e acham que são melhores do que todo o resto do povo
de Israel. Agora digo, quem me dera morar num lugar onde vivem chassídicos. Não sei o que
é isso, quando eu morava na Galícia, queria morar na Alemanha, agora que moro na
Alemanha, quero morar na Galícia. Talvez porque em todo lugar que a pessoa se encontre, ela
veja todos os outros lugares como melhores do que o seu. Não suspeite de mim que eu esteja
discordando do sionismo se eu disser que o sionismo é do mesmo tipo. Você sabe que estou
disposta a vender meus cabelos, contanto que consiga morar na Terra de Israel, apesar de que
muitas vezes meu coração me leve a imaginar que o sionismo não é senão do mesmo tipo. Ao
contrário, diga-me, Malka, você se enganou. Eu e meu marido decidimos entre nós que se
Deus nos ajudar e escaparmos da guerra, imigraremos à Terra de Israel. Você já esteve na
Terra de Israel, e por que saiu de lá? Talvez, Deus não permita, pelo mesmo motivo que em
todo lugar que a pessoa se encontre, não está feliz nele. Para mim você pode dizer a verdade.
Percebo que as minhas palavras não lhe agradam, falemos então de outros assuntos.
Mas para ela, nada no mundo agradava mais naquela hora do que falar daquilo que a
preocupava. Ainda assim, desviou-se do assunto e perguntou, o que você tem ouvido a
respeito do seu irmão. Ouvi dizer que ele também está no exército. Se a guerra não terminar
logo, não haverá nenhum judeu que não esteja no exército. E lá na Rússia estão judeus, nossos
irmãos e nossa carne, lutando contra nós. Judeus puros e bondosos que, se você os encontra,
você diz a paz esteja convosco, e de repente, chegam e fazem uma guerra contra nós. Você
entende isso? Meu cérebro não entende. E em nome de quem eles lutam, em nome do Czar
que os aflige e executa pogroms contra eles. E contra quem eles lutam, contra nós, seu corpo e
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sua carne, os filhos de Israel, que sempre participamos das suas dores e fizemos um grande
luto pelos massacres nos pogroms.
Tirei meu relógio para ver a hora. Ela disse, por que está consultando esse malvado?
Sorri e disse, você o chama de malvado? Ela disse, e ele não é um malvado? Jamais fornece
uma boa hora. Assenti com a cabeça e disse, sim, minha amiga, ele jamais fornece uma boa
hora. Agora irei, chegou a hora de viajar. — Para onde? Disse-lhe, para Berlim. Seus olhos se
encheram de dor e ela disse, para Berlim você está indo. Assenti com a cabeça, sim, Malka,
sim, minha amiga, viajo para Berlim. Malka disse, Berlim é uma cidade terrível. Todos os
problemas vêm de Berlim. Disse-lhe, problemas há em todos os lugares, e não justamente em
Berlim. Malka disse, nem mesmo pão você acha lá. Disse-lhe, Malka, você não estudou na
Torá que o homem não viverá somente de pão. Disse-me, vá até o final do versículo e o que
está escrito ali, que o homem viverá de tudo o que tem a palavra de Deus. E que palavra de
Deus você acha lá em Berlim? Disse-lhe, vejo, Malka, que você não se esqueceu do que
estudou. Disse-me, não me elogie, pois me esqueci do principal. — E o que é? Olhou para
todos os lados e não me respondeu. O que ela estava procurando, procurava provisões para o
caminho para me oferecer, e tudo o que lhe caía nas mãos, ela pegava e me dava. Eu ri e
disse, caixas de conserva você quer me dar, minha bagagem está cheia delas. De repente seu
rosto se iluminou e ela exclamou, como pude me esquecer, como pude me esquecer?
Perguntei-lhe, de que você se esqueceu, Malka? Malka pulou como uma jovem moça e
me trouxe um fígado de ganso. Um fígado de ganso não se acha em qualquer época e em
qualquer lugar, principalmente em tempos de guerra, e um fígado como esse ela me ofereceu
de bom grado. Quando vi a sua alegria, meu coração não me permitiu lhe dizer que sou
vegetariano e não como carne. Fiquei preocupado, o que farei com esse fígado. E ela estava
feliz por ter conseguido me oferecer uma coisa que merece respeito. Embrulhou o fígado com
papel e disse, coma e aproveite. Se você não estivesse com tanta pressa, eu o assaria na sua
presença e você o comeria logo.
Disse-lhe, agora Malka, realmente já chegou a minha hora de partir. Por favor, não me
acompanhe. Acharei o caminho sem você. Ela não me deu ouvidos e foi comigo, enquanto me
acompanhava com as suas bênçãos e atribuía a cada bênção um bom conselho, e a cada
conselho, uma orientação adequada. Assim fomos andando até que apareceu o asilo da Sra.
Shimerman. Quando viu o asilo, Malka se assustou e disse, voltarei antes que a Sra.
Shimerman me veja vestida com roupa caseira. Voltei com ela a metade do caminho.
Quando parei para me despedir dela, disse-me, você deve estar admirado por eu ter
conseguido um fígado de ganso. Disse-lhe, realmente, estou admirado. Ela disse, então lhe
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contarei. Eu tinha dois gansos, gordos e bons, que eu criei para abater no dia em que meu
marido e meu filho voltassem da guerra. Um dia de manhã, saí para lhes dar comida, e não
achei senão um, perguntei-lhe, onde está seu companheiro? Bateu as asas e exclamou ga ga
ga, como se tivesse entendido a minha pergunta, mas eu não entendi a sua resposta. Depois a
coisa se esclareceu de outro modo. A Sra. Shimerman trouxe um grupo de músicos para tocar
para os seus soldados feridos. Os músicos puseram os olhos nos meus gansos, roubaram um e
deixaram um. Disse para mim mesma, vou abatê-lo antes que o peguem também. Aconteceu
que hoje mesmo chegou de Leipzig Alter Lipa Eilbirt, o magarefe, e abateu o ganso. A
metade estou mandando para meu marido, e a outra metade, para meu filho. E o fígado dei
para você. Oficiais costumam enviar, do campo de batalha, presentes para seus familiares, e
nós, que graças a Deus, somos judeus e não oficiais, enviamos das nossas casas para o campo
de batalha. Essa é a história do fígado.
Um homem vai andando com seu fígado na mão, o fígado que lhe chegou contra a sua
vontade. Todos os comedores de carne certamente estariam me invejando. Eu não sinto inveja
de mim, porque enquanto isso, o fígado começou a pingar sangue e a me sujar. Os cachorros
farejaram o sangue e começaram a correr atrás de mim. Abaixei-me e peguei uma pedra para
jogar neles. Pararam e fugiram.
Fui andando com meu fígado na mão e meditando a meu respeito e a respeito do
fígado. Como é estranho este homem, carrega uma coisa que não lhe serve e teme que a
peguem de sua mão. Será que esse incômodo tem um fim? Se expulsei um grupo de
cachorros, não virão outros cachorros? De qualquer forma, não jogarei aos cachorros uma
coisa que minha parenta retirou da boca do marido e da boca do filho e de sua própria boca e
me ofereceu com afeição. Parei e pensei, se aparecesse na minha frente aquele preso com
quem falei ontem, eu o alegraria com esse fígado.
Enquanto isso, o papel em que Malka embrulhou o fígado amoleceu e não achei outro
papel. Olhei para cá e para lá, talvez eu pudesse achar uma folha de planta. O lugar era todo
plantado com brotos e flores, mas não havia lá nenhuma folha de planta. E aquele fígado
continuava escorrendo e sujando a minha roupa. Tirei meu lenço do bolso e embrulhei nele o
fígado, e me dirigi ao asilo que a Sra. Shimerman construiu.
E não pensei mais em Malka, minha parenta, nem no presente que me deu nem nas
demais coisas que me aconteceram desde que saí de Berlim. Eu só pensava numa coisa,
quando sairá o trem para eu poder voltar a Berlim e me esticar na minha cama entre as
paredes do quarto. Se meu quarto é bom ou não é bom, é melhor do que perambular pelo
caminho. Quando cheguei a essa conclusão, que eu precisava voltar ao meu quarto, fiquei
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muito mais aliviado, e me dirigi ao asilo para me despedir da Sra. Shimerman e ir até a
estação de trem.
De tanto pensar, saí do caminho. Mas não me afastei muito do asilo para as vítimas da
guerra, porque achei um soldado da tropa da Sra. Shimerman, e que soldado, aquele a quem
todos chamavam de golem, só que o famoso Golem era de barro, e esse, de carne, nervos e
ossos. O famoso Golem foi feito para ouvir e cumprir as ordens de seu dono, e esse não ouvia,
porque seu aparelho auditivo cessou e ele perdeu o sentido do entendimento, e não
compreendia nem por meio de sinais, o que lhe pediam. E se deixam um golem como esse
sem vigilância, não é um sinal de que estamos perto do asilo?
Tive uma outra prova de que estávamos próximos à casa das vítimas da guerra, porque
chegavam aos meus ouvidos canções de soldados como aquelas que eram habituais naqueles
tempos em toda a Alemanha, sobre o alemão verdadeiro, e sobre o inglês mentiroso, e sobre
os russos porcos, e sobre os franceses desprezíveis, sobre os italianos perversos e sobre os
sérvios grosseiros que foram à guerra contra nós, não vamos deixar que uma só alma deles
sobreviva.
Olhei ao redor, aos jardins floridos e aos caminhos sinuosos entre os jardins. O fígado
voltou a incomodar e começou a pingar. Segurei o fígado para que não escorregasse e
procurei um caminho curto para chegar até o asilo. Novamente vi o golem parado diante de
mim. Disse-lhe, você gosta de carne de fígado? Estendi para ele meu lenço e disse, aqui tem
um fígado, fígado de ganso, ainda está se debatendo, pegue, me amigo, pegue. Peça à
cozinheira que asse o fígado para você, coma e aproveite. Quando você comeu um fígado?
Será que você se lembra? Quando sentir o gosto, se lembrará.
E para me despedir dele com uma conversa amável, acrescentei e disse, você é
soldado, meu amigo, está lutando na guerra do Czar, todos somos soldados, estamos todos
amarrados à guerra, mas nem todos sabem a serviço de que rei estão. E você, meu amigo, viu
muitos males na guerra. Agora está se curando dos problemas da guerra, e quando ficar
curado, voltará para casa, e todos os que o amam ficarão felizes, seu pai e sua mãe, seus
irmãos e suas irmãs, e sua noiva. Com certeza é uma bela moça a sua noiva. Com o cabelo
claro e os olhos azuis.
Fiquei assim parado, tagarelando. É possível que tivesse entendido parte das minhas
palavras, e é possível que não entendeu nada. De qualquer forma, eu tive satisfação na minha
conversa. É bom falar com os tolos, você fala o que lhe vem à cabeça e não precisa se
preocupar se disse alguma bobagem.
64
Por fim acrescentei e disse, agora lhe digo adeus e me vou. E você também se vai.
Certamente não nos veremos nunca mais, então podemos nos despedir como amigos e não
precisamos temer que um entrará no campo do outro. A maior parte dos problemas que
ocorrem no mundo é porque Schiller acha que Miller pôs os olhos no que é seu. Mas se
Schiller vai para um lado e Miller vai para o outro lado, eliminam-se todos os temores. O que
você vai fazer com o fígado, meu amigo? Toste-o sobre a brasa, ou peça para que a cozinheira
prepare para você. Não conheço o seu gosto, o que você prefere, assado ou cozido. Que lhe
seja agradável e apetitoso, como nós, hebreus, dizemos em hebraico. E vocês, alemães, como
dizem em alemão? Quando vocês vêem uma pessoa comendo, vocês perguntam, schmeckt’s?
Cada povo com os seus costumes. Cada idioma com as suas expressões. Agora lhe direi um
adeus de despedida, porque estamos nos separando um do outro e duvido que ainda
voltaremos a nos encontrar pelo mundo. E se nos encontrarmos, é certo que não me
reconhecerá. Todo aquele que estava na guerra e viu os que matam e os que morrem, que
importância tem para ele um homem simples que busca a paz.
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CAPÍTULO 5
Com o coração leve e as mãos vazias, voltei ao asilo. Brigitte viu minha roupa que tinha se
sujado com o sangue do fígado e se assustou; pensou que me machuquei. Contei-lhe todo o
ocorrido e ela riu. E logo chamou a criada para limpar a minha roupa. Antes que a criada
chegasse, Brigitte pegou uma esponja com água e sabão e limpou as manchas, feliz por cada
mancha que limpava, enquanto se lembrava dos dias do passado quando eu era seu consultor
de roupas. Coisas que eu havia me esquecido e ela se lembrava nos mínimos detalhes.
Brigitte disse, você nunca me contou o que lhe deu para que se metesse a pesquisar a
história das roupas. Disse-lhe, agora eu não entraria num tema como esse. Brigitte disse, já
que você entrou, diga-me o que o levou a isso. Disse-lhe, eu era um homem jovem e meus
olhos estavam cheios de modelos de todas as gerações, e eu quis colocá-los no papel e pensei,
preciso ordená-los antes de acordo com seu tempo, seu lugar e sua tribo. Comecei a observar
a história das vestimentas de cada geração, nação e tribo. Assim, aprofundei-me numa coisa
que não tem nenhuma utilidade. Agora preciso preservá-lo das traças, e onde arranjarei tanto
veneno para combatê-las.
Muitas outras coisas falamos naquela hora. Às vezes Brigitte perguntava e eu
respondia, e às vezes eu acrescentava por mim mesmo, como pessoas que, por causa da
afeição, prolongam a conversa para prolongar o encontro.
Brigitte disse, lembra-se de que certa vez eu quis me ver no filme da jovem do antigo
rei, em que representei o papel principal, e me encontrei com você para irmos ao Kintop, e
quando nos sentamos, reconheceram-me e começaram a gritar como loucos, é essa, é essa a
jovem do antigo rei. Disse-lhe, cara Brigitte, como não me lembraria de uma coisa como essa,
se naquela noite você criou uma nova moda. Brigitte disse, uma nova moda? Não sei nada a
respeito disso. Disse-lhe, se você não se lembra, eu me lembro. Brigitte disse, lembre-me,
meu caro, lembre-me.
Eu sabia que Brigitte se lembrava de tudo nos mínimos detalhes, mas pensei comigo
mesmo, se ela quer me enganar dizendo que se esqueceu daquele fato, fingirei que estou
acreditando. Disse-lhe, como você não se lembra, pois quando a reconheceram, começaram a
arrancar pedaços da sua roupa para levar alguma lembrança da atriz mais bonita de Berlim, e
eu cobri você com meu sobretudo para lhe tapar os rasgões. Brigitte riu com seu riso amável
que cativava as pessoas e disse, estou espantada comigo mesma por ter me esquecido de todo
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o acontecimento, e se não fosse você, eu sairia deste mundo sem me lembrar disso. Mas uma
coisa eu não entendo, você diz que criei uma nova moda, que moda eu criei? Disse-lhe,
quando viram a magnífica Brigitte vestindo casaco de homem, muitas moças começaram a
dar aos seus casacos uma forma parecida com casacos de homem. Brigitte disse, é
surpreendente, pois tenho boa memória, e justamente disso meu coração se esqueceu. Disse-
lhe, seu coração sabe que você instituiu um lembrador fiel como eu, e não se sobrecarrega
com lembranças desnecessárias. Brigitte disse, quem sabe quantas coisas você sabe a meu
respeito que não me foram reveladas. Disse-lhe, em relação a isso você não é melhor do que
todas as pessoas, pois é essa a regra, que os outros saibam a nosso respeito mais do que nós
sabemos sobre nós mesmos. E ainda mais em se tratando de você, cara Brigitte, que está
ocupada com o bem estar dos outros, como estaria livre para dar atenção a você e saber a seu
próprio respeito. — E você? — Eu? Por não ter alternativa, sou obrigado a pensar apenas em
mim. — Por não ter alternativa? — Pelo medo que os outros me impõem, receio até mesmo
refletir a respeito deles, e como é próprio da pessoa ficar refletindo, reflito a respeito de mim
mesmo, somente a meu respeito. Brigitte disse, se é assim, certamente você se conhece muito
bem. Disse-lhe, aí está, quanto mais o homem reflete a respeito de si, menos ele se conhece. E
como este homem não merece que se interessem por ele, vamos interromper o assunto a
respeito disso. Brigitte disse, também acho que este homem não merece que se interessem por
ele, mas como você o mencionou, quero saber o que ele faz. Disse-lhe, ele também não sabe
muito a respeito de si mesmo, apesar de refletir muito sobre si, e mesmo que você o corte em
pedaços não conseguirá retirar dele nenhuma informação. Agora Brigitte, estou de fato
irritado com este homem que incomodou você com coisas que não acrescentam e não
diminuem. O que peço agora é que o telefone toque e lhe digam que todos os ministros da
guerra vieram ver a instituição que você fez para eles. Brigitte disse, por que você está
pedindo tudo isso? Disse-lhe, para não prosseguirmos com a nossa conversa. Brigitte disse, se
você quer interromper, vamos interromper, mesmo que o telefone não toque.
Brigitte, além de não interromper, quando ouviu o toque do telefone não pegou o fone
para atender. Quando voltou a tocar, ela pegou o fone e disse, agora estou ocupada. E voltou a
me mostrar um semblante luminoso e disse, então, conte o que você descobriu a seu respeito
depois de tanto refletir sobre si mesmo. Disse-lhe, como você me deu uma ordem, não tenho
outra saída senão cumprir a sua ordem. O rosto de Brigitte se encheu de curiosidade. E
quando vi afeição na sua curiosidade a respeito deste homem, prolonguei minhas palavras, e
elas também se prolongaram por sua própria vontade. Mas para você, meu amigo, encurtarei,
e não contarei senão a essência da essência.
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Certa vez havia um homem que foi enviado ao lugar a que foi enviado. Deparou-se
com uma montanha. Disse consigo mesmo, se eu contornar essa montanha, perderei tempo,
então é preferível que eu suba a montanha para encurtar o caminho. Ao subir a montanha, viu
que ela era feita de montanha sobre montanha. Pegou suas pernas e continuou a subir. Ao
subir, achou uma montanha alta que se elevava sobre a montanha. Levantou as pernas e
continuou a subir. Ao subir, apareceu mais uma montanha, e assim, até sete montanhas. Subiu
todas até que chegou ao pico da montanha. Viu ali colocada uma grande pedra. Olhou-a e
pensou consigo mesmo, será possível que uma pedra grande como essa esteja colocada no
cimo das montanhas à toa, certamente esconderam coisas debaixo dela. Não sairei daqui até
que consiga rolar a pedra e ver o que está escondido debaixo dela. Começou a empurrá-la para
que rolasse. Empurrou um dia, dois dias e três dias, até sete dias. Quando rolou, achou outra
debaixo dela. Voltou a empurrar e achou outra pedra, e assim, sete pedras. Depois de rolar
todas as pedras, cada pedra sete dias, apareceu diante dele uma gruta. Pensou consigo mesmo,
como deve ser importante essa gruta que foi coberta por tantas pedras grandes, todo o rico
tesouro certamente está escondido ali, abrirei para ver. Essa gruta estava trancada com sete
trancas. Quebrou as trancas, uma após outra, até que quebrou todas e abriu a porta. Ao abrir a
porta achou uma segunda porta e terceira e quarta, e também quinta e sexta e sétima, e cada
uma delas era trancada com sete trancas. Quebrou tranca após tranca, e abriu porta após porta
até que abriu todas e entrou. Viu diante dele sete escadas, cada uma com caminhada de sete
dias. Começou a caminhar, e ao chegar à última, deu com outra gruta. E o que havia achado
em uma, achou na outra, sete portas na gruta, e sete trancas em cada porta, e sete escadas,
cada uma com caminhada de sete dias, e ao chegar na gruta atrás da outra, apareceu-lhe uma
gruta, e assim até sete grutas. Ao entrar na sétima, o final de todas as grutas, viu um grande
barril. Chegou à conclusão de que no barril estava guardado o tesouro, e o cercaram com
montanhas, grutas e pedras. Abriu o barril e achou um barril dentro do barril. E nesse também
havia um barril, assim, até sete barris, barril dentro de barril. Empenhou-se em todos os barris
até que abriu todos. Apareceu diante dele uma arca selada com sete selos. Quebrou todos os
selos e achou uma outra arca depositada dentro dela, e assim, sete arcas, uma dentro da outra,
e em cada arca, dizia, é essa, é essa. E apesar de que os selos eram de cera e a cera é um
material suave, fatigou-se em cada selo durante sete dias, não porque suas mãos estavam
enfraquecidas, mas porque a cera havia endurecido e ia se esfarelando, e o quanto arrancava
da cera, ainda restava cera ligada. Ao abrir a sétima arca achou nela um pacote com papéis.
Rasgou todos os papéis e apareceu diante dele uma garrafa fechada com material de selo.
Abriu com os dentes e achou um pergaminho em pastas envolvido em capas e correias e mais
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correias, e não se sabe quantas havia, se sete vezes sete ou mais, pois estava tão afoito sobre o
que havia no pergaminho que não olhou quantas eram. Abriu todas as pastas e rasgou todas as
capas e todas as correias e desenrolou o pergaminho. Caiu dele outro pergaminho, menor do
que o anterior. Em resumo, para não me prolongar, assim como a montanha era sete
montanhas, montanha sobre montanha, a gruta, sete grutas, gruta dentro de gruta, e também as
portas, e as escadas, e os barris, e as arcas, todos eram sete, assim os pergaminhos eram sete
vezes sete. Finalmente, quando desenrolou o último, achou lá escrito com letra muito nítida,
estúpido, você não deixou aqui nada daquilo que se empenha em buscar.
Brigitte riu e voltou a rir, e por causa da parábola, desviou a atenção do real motivo da
alegoria e vice-versa. Depois, disse, você esgotou a minha paciência, meu caro, e merece ser
castigado por isso. Por enquanto não sei de um castigo mais pesado do que permanecer
conosco por mais um dia. Meu marido e meu sogro estão para chegar de trem esta noite. Meu
sogro, você o conhece de nome. Nem tudo o que você ouviu a respeito dele é bonito. Quando
você o vir perceberá que nem todos aqueles que os socialistas pegam para difamar, merecem a
difamação. De qualquer forma, no que diz respeito a meu sogro, certamente eles não têm em
que se fundamentar. Vou lhe revelar um segredo, estou pretendendo aumentar a casa de
recuperação, e Simon Gabil já fez um projeto para mim, e posso me vangloriar por ele ter me
levado em consideração e ter feito alguns descontos, e meu coração me diz que meu sogro me
ajudará com dinheiro. Então, fique mais um dia conosco e teremos uma bela noite.
Eu conhecia o velho Shimerman pelos boatos e também por fotografias e caricaturas.
Naquela noite eu o conheci face a face. Seu rosto parecia o rosto de Flaubert, mas era flexível
e sua conversa fluía bem. Ele comeu muito e bebeu muito e fumou muito. Desde a hora em
que terminamos a refeição, o charuto não saiu da sua boca, enquanto ele ia contando sobre a
guerra do ano setenta, e em relação a essa guerra, falou como um poema lírico. E ao
mencionar a guerra de setenta, mencionou também os sábios da Alemanha, cuja contribuição
é muito maior do que qualquer alemão conservador imagina. Não somente nesta guerra os
homens de ciência trazem um benefício para a Alemanha criando invenções que ajudam ao
país contra os inimigos, mas já na guerra do ano setenta eles foram muito úteis, porque antes
dessa guerra costumavam fazer excursões científicas na França, e a França abria para eles
todos os seus tesouros e lhes mostrava o que tinha por fora e por dentro. Com isso eles
adquiriram um profundo conhecimento dos segredos da França, e quando a Alemanha venceu
a França e a França precisou pagar indenização à Alemanha, a Alemanha achou nos seus
ilustres filhos bons conselheiros que orientavam que peças de arte e que coisas de valor
histórico das quais a França se vangloriava, a Alemanha deveria exigir da França.
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Depois que o velho Shimerman contou a respeito daquela guerra, voltou
completamente ao mesmo assunto e contou coisas que lhe ocorreram naquela guerra. O velho
Shimerman disse, naquela guerra eu era um jovem oficial. A coisa foi indo e tive o ensejo, eu
e mais alguns amigos oficiais alemães, de ir à casa de Flaubert, depois que ele fugiu de lá por
causa da guerra. Vimos tudo o que o artista colecionou, entre objetos de arte ou objetos
excêntricos, e em razão da alta posição de Flaubert, deixamos todas as coisas do jeito que
estavam dispostas à nossa frente.
Brigitte estava feliz com a refeição que havia sido boa e com a conversa que se
desenrolava, e especialmente ficou feliz com o sogro, sentado e contando novidades com bom
humor e prazer, o que indica que é uma boa alma, e se sua alma é boa, sua mão também é, e
ela precisa da doação da sua mão, porque diariamente trazem novos feridos e o asilo não
comporta a todos, e ela quer construir uma segunda casa, principalmente para os feridos
deixados por sua conta até que sejam mandados para exame com os professores em Berlim,
uma vez que precisam de tratamento especial. Os custos do asilo são cobertos pelo marido,
mas para construir uma nova casa, ela precisa do sogro. E Simon Gabil já fez o projeto da
casa, e sua concretização depende apenas de verba.
À meia-noite Gerhard Shimerman me levou até o quarto onde eu iria dormir, e no
caminho, elogiou Simon Gabil, que captou o espírito daquela geração e que constrói casas de
acordo com a geração, porque a geração da guerra não é igual às gerações da paz e da
tranqüilidade. Pessoas como Simon Gabil existem para construir o mundo de novo. Assim, o
Sr. Shimerman continuava contando. Se minha suposição estava certa, o Sr. Shimerman tinha
duas intenções ao elogiar tanto Simon Gabil. Uma, para mostrar que é isento de qualquer sinal
de anti-semitismo, por estar elogiando Simon Gabil, que é judeu. E outra, para insinuar a mim
que uma pessoa pode criar um projeto para construir o mundo de novo apesar de não ser
socialista. No meio da conversa chegamos ao meu quarto, e quando chegamos, o Sr.
Shimerman entrou comigo e verificou se não faltava nada ali, e ao sair, elogiou-me por eu ter
vindo ver o asilo e com isso agradado a Brigitte, que não tem outra satisfação senão os elogios
que recebe ao asilo que construiu.
Eu ainda não conhecia Simon Gabil além do nome, que começava a percorrer toda a
Alemanha. Nem todas as opiniões a respeito dele eram iguais. Havia aqueles que o
consideravam um grande modernista que mudou o estilo pesado de gerações que não
conheciam as regras da moradia e criou um novo estilo vivo, de acordo com a demanda da
geração e da necessidade da moradia, e havia os que o consideravam um tipo de demônio dos
ricos sem senso de estética, que confiam obrigatoriamente nos arrogantes que se dizem
70
especialistas. Eu, de minha parte, não sei julgá-lo. Certa vez visitei uns amigos na sua nova
casa, construída por Simon Gabil, e apesar de que estava muito bem acabada, parecia-me que
soprava um vento frio, o que não ocorria na casa antiga, que era cheia de graça e calor. Mas
meus amigos se vangloriavam de sua nova casa, onde não havia nada sem utilidade, e cada
canto nela era útil por si só.
Naquela noite tive a oportunidade de ter nas minhas mãos um livro de fábulas chinesas
que achei sobre a mesa ao lado da minha cama. Li nele a história de um velho arquiteto que
era estimado pelo Imperador por causa dos palácios e templos, santuários e fortalezas que
havia construído para si, que eram mais belos e suntuosos do que todas as construções que os
Imperadores fizeram antes dele. Certa vez o Imperador lhe deu a incumbência de construir um
novo palácio. Passaram-se anos e o palácio não era construído, porque o arquiteto estava
velho e seu coração não mais corria atrás de árvores e pedras. Começaram a apressá-lo. Pegou
um pano e desenhou nele uma forma de palácio, e o fez com tanta sabedoria, que todos viam
ali efetivamente um palácio. Mandou avisar ao Imperador que o palácio estava construído. O
Imperador veio e viu e se alegrou com enorme felicidade, pois o palácio era mais belo do que
todos os palácios que tinha visto na sua vida. Vieram e murmuraram ao Imperador, aqui não
há palácio e nem uma pequena parte de um palácio, mas é uma forma desenhada no pano. O
Imperador ouviu e ficou irritado. Disse ao velho arquiteto, elevei você acima de todos os
construtores e confiei em você com uma fé absoluta, e você me faz isso. O arquiteto ficou
desolado, que mal fiz eu? O Imperador disse, você ainda pergunta, não basta que não fez o
que lhe ordenei, mas me enganou, trazendo uma forma copiada em vez de uma construção. O
arquiteto disse, uma forma copiada, você diz? Vamos ver só. Bateu com o dedo na porta
desenhada. A porta se abriu e o arquiteto entrou e nunca mais saiu de lá.
Essa história impressionou o senhor dos sonhos, mas completamente ao contrário.
Durante toda a noite ele me mostrou muitas casas de verdade e me conduziu por todas elas.
Quis entrar em uma, mas ela logo se fechou à minha frente. Assim com todas as casas, toda
casa que eu queria entrar, fechava-se diante de mim. Por fim, as casas se transformaram em
portas. Abri uma porta e atrás dela achei a segunda e a terceira, até sete portas. Até que meus
braços e pernas se cansaram e desisti. Passou por mim um automóvel e vi Simon Gabil
sentado lá dentro. Fiquei admirado por saber quem ele é, pois jamais o vi, e fiquei admirado
por ele ver um homem cansado e não chamá-lo para se sentar com ele.
Depois de comer sozinho a refeição da manhã, Brigitte chegou vestida com roupas de
viagem. O que aconteceu, Simon Gabil apareceu por aqui para a inauguração do hospital que
construiu perto de Lunenfeld e a convidou com o marido e o sogro para verem a casa. Foram
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e voltaram. Ela, de volta para cá, e o marido e o sogro, para o lugar deles. Um tipo de casa
assim, em tamanho menor, Brigitte quer acrescentar à sua casa de recuperação, porque
diariamente trazem muitos doentes e feridos, e a casa não dá para todos. Na verdade, nem
todos permanecem com ela. Há os que necessitam de hospitais e há os que apresentam lesões
que não eram conhecidas antes da guerra, e são enviados a Berlim, onde os professores
correm atrás deles para conhecer as suas lesões. E hoje mesmo ela está enviando a Berlim um
grupo de soldados que, ao que tudo indica, apresentam lesões especiais. Depois de me contar
tudo isso, Brigitte me convenceu a retardar minha viagem até a noite, e eu viajaria com os
soldados, porque a enfermeira chefe Bernardina acompanha os soldados, o que me pouparia
algum transtorno referente à viagem.
Brigitte estava ocupada com o envio dos soldados e com a classificação das moléstias.
E apesar de que estava ocupada e envolvida, arranjou uma oportunidade para me contar a
respeito de coisas que viu com os próprios olhos e que ouviu de pessoas confiáveis. Um
soldado chegou com um ferimento leve cuja lesão não exigia tratamento intensivo. Os
médicos foram generosos com ele e o enviaram por alguns dias à casa de recuperação. No
caminho um trem se chocou com outro e a maioria dos passageiros morreu, e quem não
morreu, ficou ferido. E aquele soldado que antes tinha um ferimento leve, voltou com
ferimentos mortais. Dos ferimentos do corpo Brigitte passou para os ferimentos do cérebro.
Comem e bebem como pessoas saudáveis e aparentemente não lhes falta nada, mas falta o
discernimento, como no caso daquele rapaz a quem chamam de homem golem. Imagine um
corpo de carne e osso sem cérebro. Desde o dia em que o trouxeram para cá, não conseguimos
tirar dele nenhuma palavra. Não se lembra do próprio nome, nem de que lugar ele é e nem de
qualquer pequena indicação que possa nos dizer quem é. Foi encontrado no campo entre
montes de corpos despedaçados depois de um combate em que não restou ninguém de todo o
batalhão, senão ele. Agora vou ao meu trabalho. Receio, meu caro, que talvez não possa vê-lo
antes da sua viagem. Então, vá em paz, meu caro. E se as suas pernas o trouxerem a Leipzig,
telefone-me. Agora que você sabe onde fica a Morada dos Leões, visite-me lá. Veja só, meu
amigo, não perguntei por que motivo você viajou a Grimma. É possível que tenha ido à casa
da viúva do Dr. Levi. Levi morreu e sua viúva está doente. O que será de todos os livros que
deixou? E o que será de Mitel? Fazem-se livros e se juntam livros que são deixados aos
herdeiros que não precisam deles. A propósito, como vai o seu livro? Está ficando cada vez
maior, de tantos uniformes de guerra. Adeus.
Como me restaram algumas horas livres antes da viagem, fui até a minha parenta.
Minha parenta não acreditou no que viu. É verdade que eu havia prometido voltar e ir à casa
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dela. Mas em tempos como aqueles, quem cumpria promessas? De tanta alegria, não achava
descanso para seus pés.
Novamente nos sentamos e falamos. Na verdade, apenas ela falava, mas como eu
estava sentado ouvindo, parecia que eu era seu parceiro na conversa. E ela já havia
conseguido enviar o ganso, uma parte para o filho e uma parte para o marido. E escreveu
assim a cada um deles, não se admire por não achar uma parte do fígado, que dei ao nosso
parente que veio parar na minha pobre morada, como uma bênção do céu. E ao falar, Malka
me olhou com olhar de afeição e com olhar cheio de lágrimas e disse, você fez muito bem,
meu parente, por se lembrar de mim e vir saber como estou. E não apenas a mim você
agradou, mas também a meu filho e a meu marido agradou, pois acharão uma coisa nova na
minha carta; todas as cartas que lhes escrevi até agora repetem sempre coisas antigas como,
ainda não achei um eletricista que venha instalar eletricidade na casa, e ainda não instalaram
gás, e quando chove, a casa se enche de água porque o trabalho dos operários não presta.
Agora meu marido e meu filho terão novos acontecimentos, e tudo isso, por intermédio de
você, meu parente. Assim nos sentamos e falamos até que passou o dia e me despedi dela.
Fui até a casa de feridos da guerra e esperei pela saída dos soldados. Um grande
tumulto havia na casa, como o tumulto dos soldados ao saírem para a viagem. Todos os
funcionários da casa de recuperação estavam ocupados, e em todos os lugares que eu pisava,
tropeçava em pessoas apressadas. A Sra. Shimerman apareceu ao longe e me desviei dela,
pois se me visse, deixaria as suas atividades por minha causa numa hora em que precisava de
todo o seu tempo livre. A maravilhosa Brigitte, mesmo na hora em que está muito ocupada,
não se nota nela nenhum sinal de afobação.
Chegou uma enfermeira e me informou que a viagem havia sido retardada para o trem
da noite. Que lástima. Se ela tivesse me informado antes, eu ficaria com a minha parenta e a
deixaria contar tudo o que quisesse. Uma judia entre muitos desconhecidos, que a vêem como
uma estrangeira, enquanto seu filho e seu marido se arriscam em favor da Alemanha. Seu
coração ficou muito aliviado com as conversas com um parente que apareceu de repente na
sua casa. Eu poderia voltar até lá, mas temi que a levaria mais uma vez a novas agitações, e
não fui à casa dela.
Passeei pelo pátio enquanto refletia, por que motivo, quando a Sra. Shimerman me
convidou para almoçar, por que motivo não me disse que almoçaríamos na Morada dos
Leões, e quando procurei a Morada dos Leões, por que motivo não achei, e quando não
procurei, achei. E ao achar, não encontrei Brigitte e fui até ela em Lunenfeld, e agora que
estou em Lunenfeld, tudo o que quero é voltar a Berlim. E nos últimos dias em que estive em
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Berlim, queria sair de lá, mas como todas as esperanças que depositei em outro lugar se
esvaziaram, volto para Berlim. Deixei de lado os pensamentos irritantes e procurei outro
assunto para me ocupar. Voltei a trocar os radicais hebraicos como fiz em Grimma à noite no
hotel quando não conseguia dormir. Apareceu à minha frente a figura do Dr. Levi e todos os
problemas que lhe foram causados pelo rabino Raviner Guizetzstroi e Hochmuta, o
mantenedor. O Dr. Levi já se foi deste mundo e sua herança está completamente abandonada.
O que será dos seus livros? Será que necessariamente cairão em mãos inadequadas ou então
os ratos os comerão. Por fim desviei meu pensamento de Levi e de sua herança e me conduzi
ao acaso a colecionadores de livros e fazedores de listas, especialmente, Mitel, que encheu
toda a sua casa com livros hebraicos e não ensinou ao seu único filho a estudar neles. Agora o
filho está na guerra entre Alemanha e Rússia, a Rússia da qual o pai havia fugido por causa da
polícia, e a Alemanha que não passa de um reflexo da Rússia.
Agora deixemos Mitel e seu filho de lado e vamos refletir um pouco a nosso respeito.
Um judeu mora na Terra de Israel e lá não lhe falta nada. Veio o seu desejo e o conduziu para
fora do país. Chega à Alemanha, à capital da Alemanha, e toda a Alemanha está aberta diante
dele, ainda mais porque lhe foi dada autorização do guarda. Pode ser que antes da guerra era
bom ficar na Alemanha, agora, com certeza, não é bom. A respeito do meu quarto e das
minhas roupas, já contei que este é apertado e aquelas, pesadas, agora preciso acrescentar que
todas as segundas e quintas-feiras devo viajar a Tempelhof e me apresentar ali diante da
comissão de examinadores para que avaliem se estou apto para servir o exército. Até agora
me liberaram de servir o exército porque não sou apto para o trabalho no exército, mas se a
comissão de examinadores me liberou, os alemães não me liberaram, e todo alemão, quando
me vê com o corpo completo, olha-me como se eu tivesse fugido da guerra. Agora que o mais
patriota entre os patriotas não está com pressa de ir para a guerra, está com pressa que eu vá
para a guerra. Se a guerra não acabar logo, farão de mim também, um soldado. O que um
soldado espera da guerra, a morte ou a doença. E se eu não morrer na guerra, ficarei doente, e
se eu ficar doente, serei levado ao hospital ou à casa de recuperação, e é possível que me
levem a esta casa de recuperação da Sra. Shimerman, de quem hoje sou um hóspede.
Deixemos de lado o que ainda não aconteceu e observemos o que está se
aproximando. Daqui a uma ou duas horas viajarei para Berlim. O que me espera em Berlim,
meu quarto apertado. De qualquer modo devo agradecer, porque ali ninguém me fez mal até
agora, e agora ganhei importância por causa do sonho da mãe abandonada a respeito da volta
do filho, até o ponto de se lamentarem, ela e suas três filhas às quais deixei; durante todo o
tempo em que morei na casa delas, alegravam-se com este sonho, quem sabe, eu traria o filho
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de volta. Então, agora que estou voltando, renova-se a esperança delas de que trarei o filho de
volta, conforme informaram à mãe no sonho.
Enquanto eu ia passeando, chegou Brigitte. Trazia a pequena bolsa na mão e um riso
afetuoso na boca. Estava amável como era seu costume e seu belo rosto estava muito mais
belo ainda. Brigitte disse, como eu lamento por não ter cumprido com a minha obrigação de
dona de casa, e lamento mais ainda por mim mesma, porque não aproveitei cada instante que
você está aqui. Mas os transtornos da instituição são um impedimento. Aparentemente, tenho
bons ajudantes em quem é possível confiar, e de fato confio neles, principalmente no nosso
médico que aprendeu, viu, pesquisou e renovou a profissão da cura da alma, e apesar disso,
tudo o que eu não trato pessoalmente, não fica bem tratado. Agora, meu caro, tomaremos uma
xícara de chá, e se você quiser ouvir, contarei a respeito das nossas tropas, e se você quiser
ouvir mais, contarei a respeito das suas complicações.
Brigitte me conduziu ao seu escritório e trouxeram o chá. Sentamo-nos e bebemos e
falamos. Uma ou duas vezes o telefone tocou, mas ela não lhe deu atenção. E quando bateram
à porta ela disse, se não é uma necessidade especial, peço que não me incomodem. O dia caiu
e o candelabro elétrico foi aceso. E se os móveis do quarto não fossem amarelos, pareceria
que eu estava sentado com ela na juventude, na casa do pai, antes de se casar com Gerhard
Shimerman e de se meter em assuntos filantrópicos.
Esqueci as adversidades da viagem que fiz por causa da herança do Dr. Levi. E se não
fui bem sucedido nesse assunto, pelo menos a coisa virou para que eu ficasse com Brigitte
como antigamente, quando todos os olhos se voltavam para ela.
Brigitte estendeu a mão e pegou um pacote de papéis e disse, são desenhos feitos pelos
soldados doentes. Abriu o pacote e me mostrou um desenho de podridão, e depois desse, um
desenho de prostituição, e depois desse, mostrou um desenho de um ganso com o bico
amarrado e preso a uma corda, com uma menina pequena que o conduzia. Por fim tirou o
desenho de um corpo, e em cima estava escrito Golem. Esse termo era conhecido naquele
tempo em toda a Alemanha, pois um escritor alemão escreveu um livro a respeito do Golem e
o editor procurou fazer uma grande divulgação para o livro, para que muitos leitores o
buscassem a fim de cobrir os gastos que investiu com o escritor. Ele reuniu um grupo de
pessoas deficientes, cada uma menor do que a outra, arrumou-as por ordem de altura, deu a
cada uma um cartaz sobre o qual estava escrito em letras grandes Golem, e as espalhou por
toda a cidade de Leipzig nos dias de feira, quando a cidade ficava cheia de gente. Por isso o
termo golem se propagou e se tornou comum na boca das criaturas, que falavam muito a
respeito do Golem feito de barro, e por força do nome de Deus que lhe colocaram sob a
75
língua, fazia tudo o que lhe ordenavam. Brigitte disse, hoje enviarei aos professores de Berlim
um golem que não é feito de barro e que não faz uso do nome de Deus, mas com certeza, sua
mente é a mente de um golem. É desprovido de pensamento, não se lembra nem mesmo do
próprio nome. Parece-me que já lhe contei a respeito dele, que foi encontrado no campo de
batalha entre montes de mortos. Então nós o estamos enviando com mais alguns rapazes a
Berlim. Os professores em Berlim estão curiosos e querem vê-lo. Vou lhe servir agora mesmo
mais uma xícara, meu caro. E se você quiser ouvir mais, contarei. Antes de me servir o
segundo copo o telefone tocou, e se tratava de um assunto que Brigitte não podia deixar aos
cuidados de outras pessoas. Despediu-se de mim e saiu. Quando ela saiu, também eu saí.
76
CAPÍTULO 6
Saímos no trem da noite. A estação pairava na escuridão e a luz do vagão estava apagada. O
chão e os bancos estavam sujos. Uma chuva espessa caía e as janelas não fechavam, porque as
correias que servem para abrir e fechar as janelas foram roubadas. Na minha saída de Berlim,
as janelas estavam fechadas e não abriam, e na minha volta a Berlim, as janelas estavam
abertas e não fechavam. Dois fatos diferentes pelo mesmo motivo, que as correias das janelas
foram roubadas. E apesar de que as janelas estavam abertas, o fedor ia aumentando por causa
da fumaça do tabaco de má qualidade dos soldados; a chuva havia feito uma barreira lá fora e
o ar úmido de dentro ficava cada vez mais úmido. Em uma coisa a minha volta a Berlim era
melhor do que a minha saída de Berlim. É que a enfermeira Bernardina, a acompanhante dos
soldados, assim como os próprios soldados, se empenhavam em me facilitar nos incômodos
da viagem. Mas quando começamos a nos aproximar de Berlim, tive um acesso de nervos. Eu
pretendia mudar de lugar, e por fim volto a Berlim e volto ao meu quarto, e não sei se acharei
meu quarto desocupado, porque em tempos como aquele, quando ninguém constrói casas, e
Berlim está abarrotada das cidades conquistadas, todo quarto vazio se enche imediatamente.
Os soldados estavam sentados jogando dados e contando piadas. Bernardina estava
sentada cochilando e eu vagava nos pensamentos. Os olhos deste homem não são ambiciosos
e ele não está habituado a grandezas, mas naquele momento pensei, isso é uma brincadeira do
destino, pois volto por mim mesmo ao lugar de onde fugi. Naquele instante, ouviu-se uma
grande risada. Parece que uma piada que um soldado contou aos companheiros foi o que
provocou a risada. A enfermeira despertou e também riu. Pelo riso dos soldados ela
reconheceu que era uma piada. Eu e mais um homem no vagão não rimos.
Esse homem que não riu era aquele coitado, aquele homem golem a quem dei o fígado
que minha parenta me ofereceu. Seu rosto era inexpressivo e em seus olhos não havia nenhum
movimento que indicasse vida. Fiquei admirado por Brigitte tê-lo chamado de golem. Na
minha opinião não lhe cabia o nome golem, porque o Golem criado pelo Maharal de Praga era
melhor do que esse, era mais humano. Imaginem braços compridos e pernas compridas e um
rosto como argila seca e olhos idiotas e sem vida, os ombros puxados para baixo, e sobre os
ombros, uma cabeça imóvel. Fiquei pensando, se esse golem não consegue entender nada, o
que dirá, cumprir as ordens que lhe dão.
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De repente senti que ele está me olhando. Será que me reconheceu, será que se
lembrou do fígado que lhe dei? Lembrei-me da minha parenta que me deu o que havia
retirado da boca do filho e da boca do marido e de sua própria boca, e me lembrei dos
cachorros que correram atrás de mim e do prisioneiro a quem eu queria dar o fígado e por fim,
acabei dando o fígado para esse homem golem. Se eu lhe perguntasse se havia aproveitado
bem o fígado, duvido que ele saberia responder.
O vulto do prisioneiro, que voltou a ocupar meus pensamentos, apareceu à minha
frente, parado sozinho no campo, numa terra estranha e estrangeira. Fiquei espantado com
Brigitte, porque além de não tê-lo recolhido à sua casa, também o privou de sua misericórdia,
e quando senti piedade dele e lhe dirigi a palavra, ela me repreendeu por isso. Por causa da
aflição do prisioneiro me esqueci de tudo à minha volta e não via outra coisa senão ele. Eu lhe
disse, você é jovem. Não tenha a certeza de que posso lhe ajudar, mas se você me conta
alguma coisa, paro e ouço, e assim você descarrega coisas que lhe apertam o coração. O que
lhe aperta o coração? Diga, meu amigo, diga. Não precisa ter vergonha de mim. É possível
que eu interrompa você, não por falta de paciência, mas para lhe mostrar que você não está
falando para um ouvido tapado. Está me olhando? Não é tagarelice o que está ouvindo, mas
uma fala que leva a outra fala. Quantos anos você tem? Pelo aspecto do seu rosto, ainda não
tem vinte anos. Então, quando saiu para a guerra, quantos anos tinha, dezoito anos tinha. Você
dizia ao seu próprio coração, lutarei na guerra do meu Rei e da minha terra, e matarei à direita
e à esquerda, e ficarei famoso como herói. Antes que conseguisse entortar um fio de cabelo do
inimigo, o inimigo veio e o levou ao cativeiro. Você não pensa em matar. Com toda a sua
alma, meu amigo, quer voltar para casa, para junto de sua mãe, e parar de ouvir o ruído da
guerra. Não é assim, meu amigo?
O prisioneiro fez um movimento de cabeça indicando que sim. Acrescentei e disse,
agora você é prisioneiro e dorme numa pocilga de porcos, e está admirado com você mesmo
por não ter ódio no coração contra seus inimigos, e talvez é possível que você queira amar os
seus inimigos, no entanto, eles não buscam o seu amor. E talvez é possível que eles também
não odeiem você. Eles odeiam o inimigo abstrato. Quer dizer, o inimigo que não é visto e que
ninguém conhece. No tempo em que há guerra no mundo, o ódio prevalece, e então, todos
amam o ódio. Se você quiser, vou lhe contar uma coisa. Chegam judeus da Galícia para
procurar trabalho em Leipzig, já que na terra deles e no lugar em que vivem eles não têm
sustento. Seus irmãos os recebem em Leipzig com pão e apoio, ajudam a arranjar sustento e
os recebem na sua casa de orações. Eles ficam felizes por terem achado um recinto para as
orações como o que tinham na Galícia e por não precisarem da casa de orações dos seus
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irmãos, judeus da Alemanha, que vêem a si próprios como filhos originais do lugar. Nosso
Deus é um só e as casas de orações que se constroem em Seu nome são muitas e diferentes
entre si. Aqui não é o lugar e essa não é a hora de falar sobre crenças e opiniões. Então eles
chegam aos irmãos de seu povo e de sua terra, e rezam as mesmas orações que eles. Aqui não
é o lugar e essa não é a hora de falar sobre estilos de orações. Deus é um só e Israel um
povo, mas o povo de Israel possui muitos estilos de orações. Eles rezam junto com seus
irmãos na mesma casa de orações e com o mesmo livro de orações, no mesmo estilo que
aprenderam em suas casas. De repente houve uma divergência entre eles, talvez por assuntos
de trabalho, pois o Santo Deus, bendito seja, provê e sustenta o mundo inteiro de forma que
ninguém precise tocar no que está destinado ao seu semelhante, mas a divergência tem origem
nas coisas do coração. Deus é um só e sua religião uma só, mas os seres humanos têm
opiniões diferentes, uns dos outros. Então fizeram uma sinagoga para eles e a chamaram de
Hindenburg, para dar a entender sua força e bravura, assim como Hindenbrug vence em todas
as suas guerras contra os inimigos, assim venceram eles na sua guerra contra os irmãos.
O prisioneiro fica espantado. Com certeza está espantado por ser possível falar tantas
coisas na língua alemã, pois desde o dia em que foi preso, ninguém falou com ele. Quando
ergui a cabeça vi que não há aqui nenhum campo nem prisioneiro, mas aquele homem golem
sentado comigo no trem, olhando-me. Será que ele se lembra do gosto do fígado de ganso que
lhe dei?
De perto se via a luz de Berlim que ia se aproximando. Bernardina enxugou os olhos
depois do sono, alongou os ossos e apressou os soldados a reunirem seus pertences e a se
prepararem para Berlim. Os soldados largaram o jogo e começaram a arrumar sua bagagem
enquanto gritavam e diziam, Berlim, Berlim. Uma grande tristeza me invadiu e apertou meu
coração. Mal conseguia esticar o braço para pegar minhas coisas.
A enfermeira viu e disse, os soldados levarão os pertences do senhor até a sua casa.
Pensei comigo mesmo, até a sua casa, ela diz, o que significa que eu e meus pertences
precisamos de uma casa, e já que não temos casa, devemos voltar à pensão de onde saímos,
mas ali não tem luz nem ar nem vida nem alegria nem nada, mas que alternativa temos nós se
não há outro quarto disponível?
Berlim! A estação de trem está tumultuada com tantos soldados que trouxeram de
todos os lugares e com tantos soldados que estão prontos para partir a todos os lugares. Isso
porque a Alemanha está numa grande guerra em muitos lugares. Quem está mais triste, o que
parte ou o que chega? Não é hora para ficar parado olhando, preciso pegar meus pertences e ir
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até a minha pensão, e não sei se acharei meu quarto desocupado, será que enquanto isso o
alugaram a outro? E se foi alugado a um outro, duvido que acharei um quarto.
Bernardina se aproximou e me disse, escreva o endereço do senhor e levarão sua
bagagem à sua casa. Expulsei de mim todas as minhas dúvidas, peguei um pedaço de papel e
um lápis, escrevi o nome da pensão, o nome da rua e o número da casa. Bernardina pegou o
pedaço de papel e o observou por um momento, olhou para os soldados e chamou um deles e
lhe disse, pegue as coisas deste senhor e leve-as ao seu devido lugar. O soldado pegou o
pedaço de papel, leu em voz alta e pegou os meus pertences.
E aqui aconteceu uma coisa surpreendente. Aquele golem, aquele desmiolado a quem
todos viam como que privado de vontade própria, saltou e tirou os meus pertences da mão do
soldado enquanto gaguejava, eu eu eu. Este fato, além de surpreendente, era preocupante:
como você vai saber o que esse golem vai fazer com as malas e para onde as levará. A
enfermeira Bernardina, que tratava do transporte dos soldados e que nenhum soldado se
atrevia a fazer algo que a contrariasse, se assustou. Mas logo transformou o rosto de susto em
rosto de fúria e o repreendeu, ralhando e gritando, largue as malas. Como ele não obedeceu,
ela o ameaçou dizendo, vou chamar um guarda que vai levar você à prisão. Como ele não
obedeceu, ela fez com o dedo um movimento circular na própria testa e disse, o cérebro deste
aí está avariado.
O que fazer? Confiar num golem como esse é impossível, já que não sabe discernir
entre a sua mão direita e a esquerda, e tirar as minhas coisas da mão dele é impossível, porque
ele as agarrava com toda a força e estava disposto a bater com elas em todo aquele que
tentasse tirá-las de sua mão. Após muitas reflexões ficou decidido entre nós deixar as malas
na mão dele e enviar um outro soldado para acompanhá-lo. Mandaram com ele o soldado que
já havia sido escolhido como emissário. O golem, a quem não importava se estavam ou não
cuidando dele, não disse nada, mas começou a caminhar com as duas malas nas mãos.
Quando os soldados viram que ele estava indo, começaram a cantar, Hanschen klein, ging
allein, in die weite Welt hinein (o pequeno Hanschen saiu sozinho para o grande e vasto
mundo).
Depois de me despedir da enfermeira e dos demais companheiros de viagem, fui até o
departamento de polícia para pegar autorização de permanência. E apesar de eu ser de um
outro país e chegar numa hora tardia, os guardas não se irritaram comigo e não fizeram
perguntas inúteis, e me deram autorização de permanência. Mas o guarda que cuidou do meu
documento censurou minha origem e disse, os austríacos costumam atrasar. Depois que me
despedi dele, levei a mim mesmo até a rua das pensões.
80
Já era quase meia-noite, mas Berlim ainda não descansava. As ruas estavam
barulhentas, os bondes passavam nas ruas, até os automóveis, que quando você mais precisa,
não acha nenhum, iam das casas de vinho às casas de jogos e vice-versa. Desde que
proliferaram os ricaços que fizeram fortuna com a guerra, proliferaram também as casas de
vinho e as casas de jogos e os que buscavam divertimento. Você virava para cá, achava
mulheres que pareciam homens, virava para lá, achava homens que pareciam mulheres, virava
para os lados, esbarrava em pernetas e cegos e todo tipo de deficientes, vítimas da guerra e
vítimas de Deus, e entre uns e outros, mulheres pobres estendiam as mãos para você pedindo
pão ou outra coisa.
Quando me aproximei da rua das pensões, o mundo começou a silenciar. A maioria
das casas já se preparava para dormir e nem é preciso dizer, a casa de orações dos iluministas,
que dormia de sábado a sábado. Disse para mim mesmo, você demorou e se atrasou. Agora a
pensão inteira já está dormindo e você precisa tocar a campainha, e os seus toques despertarão
todos os que dormem ali. Toda demora é para o bem, mas essa demora que me deteve para
que eu viajasse com as tropas de Brigitte Shimerman não foi para o bem. Eu pretendia
facilitar as coisas para mim e as tornei mais difíceis. E se eu prejudicasse somente a mim, não
me importaria, mas estou prejudicando a pensão inteira. E mais do que todos, a mulher e suas
filhas. E mesmo que a mulher não esteja dormindo, pois fica prostrada na sua cama de viúva
chorando pelo filho, as filhas com certeza estão dormindo, e quando eu tocar, farei com que
percam o sono.
Essas moças, que todo o tempo em que convivi com elas debaixo do mesmo teto não
pensei nelas, nem mesmo um pouco que fosse, apareceram à minha frente, cada uma do seu
jeito, cada uma de acordo com a sua peculiaridade. Lotte, a primogênita, pesada, gorda e
arredondada, enfiou a cabeça no pescoço, espreitou, olhou-me e piou com a sua voz um tipo
de agrado esquisito. Antes que eu respondesse, veio Hildegard, sua irmã, e ressaltou os olhos
de dentro da testa minguada e arqueada ou de dentro das maçãs do rosto, e um tipo de
severidade saltava daqueles olhos que antes estavam escondidos. E uma coisa que eu não
havia visto antes vi agora, um topete negro como piche se movia por cima da testa, que se
sacudia a cada fala que lhe saía da boca, forte e enérgica por si só, como se não precisasse de
aprovação. Ao lado de Hildegard estava a pequena Grete, com o nariz enfiado dentro do
campo de acne vermelha, mas a fenda embaixo do nariz, quer dizer, a boca, estava aberta.
Suponho que ela queria dizer alguma coisa e Hildegard chegou e a silenciou, e Grete, de tanto
desgosto, esqueceu-se de fechar a boca.
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Tirei meus olhos de cima delas como costumava fazer todo o tempo em que morei na
casa, pois para mim, elas não tinham nenhuma importância. Elas voltaram e apareceram à
minha frente. Comecei a refletir com meu coração, de onde elas tiraram essa força a ponto de
eu vê-las e ouvir as suas vozes à distância, já que algumas casas me separavam delas, será,
com certeza, porque irei acordá-las de seu sono, isto é, por me sentir culpado em relação a
elas, e a minha culpa lhes dá essa força. Voltei a tirar meus olhos de cima delas e pensei,
certamente uma delas está me esperando, uma vez que o golem levou minhas malas e elas
perceberam que estou retornando à sua casa, e uma delas tomou a responsabilidade de me
esperar. E já que estão me esperando, andei como quem vai a um lugar onde o esperam e não
precisa temer que não achará um lugar disponível. E enquanto andava ficava refletindo, qual
das irmãs estaria me esperando. Se for Lotte, talvez por ser gorda e pesada, acabou
cochilando, e se for Hildegard, aquela que por causa dos cactos não me deu atenção, é
possível que renuncie ao sono por minha causa, e se for Grete quem está me esperando,
Hildegard irá repreendê-la, pois um pinto como esse já quer piar, e com isso, a pensão inteira
acordará. Agora vamos refletir quem acorda antes. O primeiro a acordar, com certeza, é o
funcionário do gabinete de impostos, porque a guerra precisa de dinheiro e o dinheiro provém
dos impostos que recaem sobre os cidadãos, logo, o sono dos funcionários dos impostos é
leve, de tanto pensarem nos impostos que não são suficientes para sustentar a guerra. Ou
talvez o casal de velhos refugiados da fronteira serão os primeiros a acordar, porque ouvidos
que ouviram a voz do inimigo, qualquer voz os assusta, e se não acordarem, certamente as
criadas acordarão, e eis que por elas é de se lamentar, porque trabalham o dia inteiro fazendo
a vontade de cada inquilino, e se não fosse o sono da noite para fortalecê-las, não
conseguiriam ficar de pé.
Eu precisava apressar as pernas e correr, mas além de não correr, ainda perdi a força
nas pernas por causa do meu sentimento de culpa, e parei. Todas as casas da rua dormiam,
cada uma de acordo com a sua natureza. Uma casa de pedras tem o sono pesado, e uma casa
de tijolos, às vezes tem o sono fechado e às vezes, perpassado. Entre essas casas erguia-se o
templo dos iluministas, construído com tijolos especiais da fábrica de cerâmica de Wilhelm
Kaiser, com as bordas de ouro em pó. Os zombadores brincavam que, no passado, o povo de
Israel trabalhava com barro e tijolos para o Rei do Egito, e agora, o rei da Alemanha trabalha
com barro e tijolos para o povo de Israel, e além disso, o povo de Israel fornecia ao Rei do
Egito tijolos comuns, feitos de palha, enquanto o Rei da Alemanha fornece ao povo de Israel
tijolos com bordas de ouro.
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Perto da meia-noite cheguei à pensão. Ontem a essa hora o Sr. Shimerman me levou
ao meu quarto e verificou se não faltava nada ali, e agora chego ao quarto onde com certeza
falta tudo. Toda demora é para o bem, mas essa demora que me deteve para que eu viajasse
com os soldados não foi para o bem.
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CAPÍTULO 7
Já era meia-noite quando cheguei à minha pensão, portanto, fiquei espantado ao achar a casa
acesa. Os olhos deste homem não são ambiciosos e ele sabe que não se iluminam casas em
sua homenagem. Se é assim, o que são aquelas janelas acesas, será que uma filha da dona da
casa ficou noiva e estão fazendo uma festa ou será que Isolda Miller, a jovem da aldeia, que
veio para aprender bons modos, fez uma festa para o seu aniversário e a festa continua até
agora.
Lembro-me das festas de Isolda Miller por causa de um fato estranho que me
aconteceu. Certa noite eu estava deitado na minha cama e vieram fiscais do Faraó e me
introduziram nas paredes de uma casa de tijolos. Gritei de dentro das paredes e o Santo Deus,
bendito seja, ouviu meus gritos e me tirou de lá e me levou de volta à minha cama. E os
fiscais ainda me sufocavam. Alonguei os ossos e todos caíram no chão, exceto aquele
funcionário do gabinete de impostos que morava no quarto em frente ao meu, porque naquela
noite, ele estava voltando da festa que a jovem havia feito, errou o quarto e entrou no meu,
subiu na minha cama e se esticou em cima de mim, sufocando-me.
Toquei e não abriram. Empurrei a porta. A porta se abriu e entrei. Em outra noite eu
ficaria espantado por não terem trancado as portas da casa após a meia-noite, mas naquela
noite deixei para trás o espanto e fiquei feliz pelas portas abertas e por não precisar acordar
quem dormia. Como a chave do elevador não estava comigo, subi com as pernas degrau por
degrau, e a cada degrau o som da pensão ia se ouvindo cada vez mais. Pensei comigo em
algumas coisas para explicar o meu retorno à dona da casa e às suas filhas, subi e cheguei até
a porta da pensão. Assim como a porta de baixo, estava a porta de cima, nem uma nem outra
estavam trancadas. Nesta noite, a noite do meu retorno, milagres estão acontecendo. Essa
pensão silenciosa, que todas as noites se antecipa para dormir, nesta noite todos ali estão
acordados e todas as portas estão abertas. Por causa do cansaço eu quis me esquivar para o
meu quarto e subir na minha cama. Veio Hildegard e parou no meu caminho. Hildegard tirou
os olhos de dentro da testa ou de dentro das maçãs do rosto e me olhou com os olhos afogados
em lágrimas.
Disse-lhe, voltei. Ouviu minha voz e me olhou de dentro das lágrimas, pegou minha
mão e a colocou sobre o seu coração, contraiu os olhos e disse, Hanschen também voltou. Ela
percebeu que eu não sabia quem era Hanschen. Repetiu e disse, ai, nosso pobre irmão, ai,
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nosso pobre irmão. Apertei a mão dela e tentei fazer aquele tipo de pergunta que se tenta fazer
numa hora em que não se sabe o que perguntar. Chegou Lotte e nos viu. Lotte enfiou a cabeça
dentro do pescoço e me espreitou de lá, e piou o mesmo tipo de coisas que ouvi de Hildegard.
Hildegard largou sua mão da minha, pôs os olhos na irmã e disse, não precisa se dar ao
trabalho, já sabemos de tudo, do início ao fim. Estendi minha mão a Lotte para cumprimentá-
la, assim como cumprimentei Hildergard. Lotte me espiou de dentro do pescoço e sua voz
começou a piar. Chegou Grete e contou que Hanschen está sentado ao lado da mãe, e que ela
está sentada chorando. Peguei a mão de Grete e a cumprimentei pela volta do irmão, assim
como cumprimentei suas irmãs. A acne do seu rosto ficou vermelha e aquela fenda que lhe
servia de boca empalideceu.
Pela lógica eu devia ir saudar o filho e cumprimentar a mãe. Veio-me um outro
raciocínio e disse, não se intrometa entre mãe e filho. Estava eu entre as duas lógicas e não
achava nenhum outro raciocínio que me indicasse o que era certo e o que não era certo.
Enquanto isso minhas pernas começaram a desmoronar de tanto cansaço.
Eu não tinha força para ficar de pé, mas a força das duas lógicas superou a das minhas
pernas. Às vezes a força de uma, às vezes a força de outra. Uma diz, depois que você viu todo
o sofrimento pelo filho perdido e ouviu o choro da mãe, agora que o filho voltou você está
com preguiça de cumprimentá-la. E a outra diz, vá ao seu quarto e se jogue sobre a sua cama.
Veio Hildegard com um vaso de cactos na mão e me disse, vou enfeitar o quarto de
Hanschen. Disse-lhe, como foi que aconteceu? Quer dizer, como seu irmão voltou?
Informaram a vocês que ele estava para chegar ou ele mesmo informou? Hildegard enxugou
uma lágrima dos olhos e disse, como foi que aconteceu? Simples. Um toque na porta, e eis
Hanschen. Hanschen está parado na porta. Mas foi bom eu tê-lo visto primeiro e tive tempo
de preparar o coração de mamãe, pois se ela o visse de repente, sua alma escaparia de tanta
alegria.
Hildegard estava tão feliz com a volta do irmão que me tratava muito bem, não como
no dia da minha partida, quando regava os cactos e não me dava atenção. Agora estava parada
comigo, contando com detalhes a história da volta do irmão. E não me lembro se os olhos dela
se contraíam nas órbitas ou se olhavam para mim. Muitas vezes sua voz sufocava por causa
do choro contido. Hildegard disse, estou no meu quarto sem vontade de ir para a cama. Pego
as agulhas de tricô para tricotar e não tenho vontade de tricotar. Percebo que não fiz minha
cama, largo as agulhas de tricô e vou fazer minha cama. E não faço minha cama, mas o que
faço, vou para junto de mamãe. Eu a encontro sentada no sofá com fotografias nas mãos.
Mamãe diz, quando meu filho voltar, duvido que o reconhecerei, pois pode ser que deixou
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crescer uma barba ou ficou com algum defeito físico. Digo a mamãe, por que terá defeito
físico ou barba? Mas com certeza deixou crescer o bigode, como o nosso Imperador. E
acrescenta, esforço-me para imaginar à minha frente a figura de Hanschen com o bigode
virado para cima e fico rindo. Não é engraçado um pequeno jovem deixar o bigode? Ergo as
duas mãos para cima dos meus lábios e faço voltas com os dedos, como um homem enrolando
o bigode. De repente se escuta um som na porta, e depois, o som de toques e mais toques.
Mamãe me diz, vá abrir. Digo a mamãe, numa hora tardia como essa ninguém tem o direito
de nos incomodar. Mamãe diz, se não nos apressarmos para abrir, voltarão a tocar e acordarão
a pensão inteira. Vejo que ela tem razão. Antes que eu começasse a correr, voltaram a tocar.
Saiu o funcionário do gabinete de impostos, e atrás dele, Isolda Miller, essa que mora no
quarto grande, e depois deles saíram os outros inquilinos da pensão. Mamãe veio para se
desculpar. Abri a porta enfurecida, de tanta raiva. Vejo dois soldados parados, um jovem e um
mais jovem do que o outro. Um deles diz, aqui não é a pensão Trotzmiller? A enfermeira
Bernardina manda entregar as malas do senhor que foi hóspede da Sra. Shimerman. Olho para
os soldados e para as malas, e sinto vontade de mandá-los embora dali, junto com as malas. E
eles permanecem parados, sem se mexer. Digo-lhes, irritada, vou logo chamar os guardas para
prendê-los, seus atrevidos. A camareira viu as malas e disse, esses pertences são do senhor do
quarto pequeno. Disse-lhe, como assim? No mesmo instante percebi que o senhor estava
voltando de viagem, voltando para nós. Disse-lhes, tragam as malas para dentro e vão embora.
Os soldados entraram com as malas e estavam para sair. Grete deu um pulo e gritou,
Hanschen! Achamos que ela havia enlouquecido. Repetiu e gritou, Hanschen, Hanschen. E
com essa fala ela se dirigiu a um dos soldados: você é nosso irmão Hans. Diga-me, você não é
Hans? Mamãe, juro que esse é Hans, é Hans, pela minha vida. Hanschen permanecia em
silêncio e não dizia nem sim nem não e ficava nos olhando. Percebi que seus olhos iam
mudando e se movendo. Por fim produziu um som de choro e gritou, mamãe. Na mesma hora,
exatamente na mesma hora, mamãe gritou, meu filho. E eu também quis gritar e dizer, meu
irmão, mas minhas palavras sumiram como se alguém as tivesse roubado de dentro da minha
boca e as tivesse engolido. E a história toda ainda não terminou. Aquele soldado que
acompanhava Hanschen não o largava, dizendo que era responsável por levá-lo de volta aos
cuidados da enfermeira Bernardina. Tudo o que foi dito de nada adiantou, até que telefonei a
algumas altas instâncias e ele cedeu.
Minhas pernas começaram a desmoronar por causa do cansaço. Seria justo deitar na
minha cama, mas como interromper uma irmã enquanto ela conta a respeito do irmão, e que
irmão, um irmão que voltou depois que haviam desistido dele. O relógio tocou o primeiro
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toque do dia seguinte. Os visitantes que vieram saudar Hanschen se dividiram em dois grupos.
Aqueles que moram perto, voltaram para casa, e aqueles que moram longe, ficaram para
dormir na pensão, pois não havia mais bondes passando. Toda a casa ficou em silêncio, os que
se foram, se foram, e os que ficaram, deitaram-se para dormir. Na casa havia silêncio, e no
silêncio se ouvia o som de pessoas dormindo. Meu rosto estava quase se rasgando de tanto
bocejar, e eu nem tinha força para bocejar. Antes que eu perguntasse a respeito do meu
quarto, Hildegard foi verificar se todos os visitantes acharam lugar.
Grete viu que eu estava parado e sozinho, e se aproximou. Começou a contar a
respeito de Hanschen, como Hanschen está agora e como Hanschen estava antes, quer dizer,
na hora em que apareceu diante dela ao entrar junto com um soldado bem simples, e o que
disse a mãe ao ver Hanschen e como o acompanhante de Hanschen não havia cedido porque
queria justamente voltar com Hanschen, já que recebeu ordem de levar Hanschen de volta. E
se não fosse Hildegard, que telefonou para todas as instâncias superiores, o soldado não
desistiria de Hanschen e iria arrastar consigo Hanschen e nós ficaríamos sem Hanschen, como
ocorreu algumas vezes quando víamos Hanschen em sonho e, ao acordarmos, não achávamos
Hanschen. E Grete contou ainda mais, que Hanschen havia ficado mais alto, e que há uma
diferença entre o Hanschen que partiu para a guerra e o Hanschen que voltou da guerra, e que
isso ela havia percebido antes de todos, e nem mesmo suas irmãs discordavam dela, e que até
o aspecto do rosto de Hanschen mudou, e até seus olhos mudaram, pois os olhos do Hanschen
de agora não se parecem com os olhos do Hanschen de antes da guerra, e não é o que o senhor
supõe e logo vai dizendo que os olhos não foram feitos para mudar e não mudam nunca, pois
em Hanschen, vemos que seus olhos mudaram. Muitas outras coisas Grete ainda contou a
respeito de Hanschen. Toda a sua afeição de irmã em relação ao irmão se notava na sua voz
quando falava de Hanschen. Às vezes seus olhos se enchiam de lágrimas e seu pequeno nariz
ficava vermelho. E eu, minhas pernas estão desmoronando e nenhum sentido meu está
completo. E Grete continua contando. E meus ouvidos já não captam nada além do nome
Hanschen. E não me lembro como foi que Grete interrompeu a sua narrativa ou quando se
despediu e se foi. E quando me vi parado sem Grete, fui ao meu pequeno quarto, o qual havia
deixado três dias antes.
Ouviu-se um grito, recuei e vi Grete parada e assustada me olhando com olhos de
espanto. Disse-lhe, o que você tem? Ela gritou e tornou a gritar dizendo, este é o quarto de
Hanschen, ainda agora Hanschen se deitou. Ainda agora adormeceu. E novamente me olhou
com olhos estranhos, que mudaram de olhos de espanto para olhos de súplica. Sussurrou e
disse, se o senhor entrar no quarto de Hanschen, despertará Hanschen do seu sono.
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Percebi pelas palavras dela que meu quarto, onde eu morava, foi destinado a
Hanschen, e reconheci que se eu entrasse no quarto acordaria Hanschen, e de fato, depois de
todas as desgraças que Hanschen passou, merecia dormir e merecia que não lhe tirassem o
sono. Porém, eu também merecia dormir àquela hora, depois de todos os trajetos que havia
percorrido nas viagens, só que um estrangeiro não se compara a um filho que voltou para
junto da mãe.
Permaneci parado entre a porta da casa e a porta do quarto onde Hanschen dormia. A
porta da casa se abriu e uma velha entrou puxando um velho atrás de si. Grete caiu em cima
deles e chorou nos seus ombros, e lhes contou tudo o que havia me contado antes, como
Hanschen apareceu, e como ela o reconheceu antes mesmo que a irmã o reconhecesse, e como
Hanschen é querido e como Hanschen é agradável. Por fim repreendeu os velhos por terem
vindo à noite, porque quando Hildegard comunicou por telefone que Hanschen voltou, disse-
lhes, não venham à noite pois devido à distância não há um bom transporte para a cidade. E
eles não se cuidaram e vieram ver Hanschen.
Cansados e fatigados dos transtornos da viagem, os dois velhos pararam e contaram
como correram de um bonde a outro e de um trem a outro, e depois de todas as viagens,
precisaram vir a pé, porque quando chegaram ao bonde o motorista disse que terminou a
jornada e que não receberia passageiros até o dia seguinte. Agora que os velhos chegaram,
estavam sem forças e não tinham ânimo para participar da alegria do filho da sua filha. Todos
os seus ossos pediam descanso.
Veio a mãe de Hanschen e viu seu pai e sua mãe. Caiu sobre os ombros dos pais e
começou a chorar. Depois de chorar e de voltar a chorar, pegou o pai com uma mão e a mãe
com a outra mão e os levou ao quarto de Hanschen, abriu amplamente a porta e mostrou
Hanschen estendido na cama com o rosto metido no travesseiro e produzindo som de dentro
do seu sono. Ela sussurrou e disse, está dormindo, está dormindo. Os dois velhos moveram a
cabeça em sinal de assentimento e disseram, está dormindo. A filha pegou o pai e a mãe e os
levou ao seu quarto, depois entrou sorrateiramente no quarto de Hanschen, já que todos os
quartos estavam cheios de visitantes que vieram saudar Hanschen, e ao oferecer o seu próprio
quarto para o pai e a mãe, não lhe restou alternativa senão ficar no quarto de Hanschen. Não
se passou uma hora até que todos estivessem dormindo, a não ser eu, que não me sobrou nem
um pedaço de lugar para deixar meus ossos.
Os quartos perderam sua forma concreta e pareciam uma pintura encantada criada por
um grande pintor. E eu estou parado de frente para a pintura. O candelabro do corredor
brilhava em cada maçaneta, as portas estavam trancadas, nenhuma porta se abria. Ontem à
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noite a esta hora eu estava deitado numa boa cama e lia uma bela parábola a respeito de um
construtor que pintou um palácio sobre um pano, e quando bateu à porta do palácio que
pintou, ela se abriu e ele entrou no palácio, e agora estou diante de uma porta de verdade de
um quarto de verdade e ela não se abre à minha frente.
Veio Hildegard e não se deu conta da minha presença. Antes que eu dissesse qualquer
coisa ela apagou todos os candelabros e não deixou senão uma pequena luz que ficava acesa a
noite inteira. Entrou no lugar que entrou. Fiquei sozinho no corredor. Alonguei-me e me
encolhi. Encolhi-me e me alonguei, por fim, parei como um golem que não tem controle sobre
o que faz. E aqui não há ninguém que me diga faça isso ou faça aquilo.
Apoiei-me na parede e reuni todos os meus pensamentos e comecei a refletir e a
pensar, então, o que fazer agora? Veio-me um pensamento ao cérebro: entrar no salão, o salão
que serve para receber os hóspedes e para fazer as refeições, e lá eu posso me esticar sobre o
grande tapete que cobre o chão, e é possível ficar deitado ali a noite inteira. Entrei e estava
pronto para me esticar sobre o tapete.
A porta do salão se abriu e a criada entrou carregando travesseiros e cobertores, a
mesma criada que me trazia a refeição da manhã. Eu deveria ficar feliz por estarem me
trazendo travesseiros e cobertores, mas o cansaço que eu sentia impediu que eu ficasse feliz.
Enquanto isso chegou mais uma e mais outra, quer dizer, mais duas criadas da pensão
chegaram carregando travesseiros e cobertores. Tantos, por quê? Porque o salão que durante o
dia recebe os hóspedes e onde se fazem as refeições, se transformava à noite em quarto de
dormir das criadas. Agora que a pensão inteira está dormindo chegou a vez das criadas
descansarem também. Assim, não tive alternativa senão deixar para elas o meu lugar, e sair.
E aqui uma pergunta se apresenta, para onde? Já passou da meia-noite e todos os
hotéis estão dormindo. E mesmo que alguns estejam acordados, como saberei qual está
acordado, e mesmo que soubesse qual está acordado, minhas pernas não têm forças para dar
um só passo, e mesmo que eu achasse forças para ir até o hotel, duvido que acharia uma cama
desocupada. Desde o dia em que começou a guerra aumentaram os hóspedes em Berlim, e
todo hotel está abarrotado de hóspedes, e cada canto de cama está ocupado com gente
dormindo.
As criadas fizeram suas camas, pararam e esperaram que eu me fosse para que
pudessem ir dormir. Pensei com meu coração, é muito óbvio que preciso me afastar daqui,
mas antes preciso saber para onde ir. Pus meus olhos na criada que recebia de mim todas as
semanas uma gorjeta e jamais lhe pedi nada. Ela percebeu que eu a olhava e disse, não restou
para o senhor um lugar para dormir. Disse-lhe, o que você me aconselha? Ela disse, na
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verdade, não sei que conselho lhe dar. Todos os quartos estão cheios e abarrotados, e até
mesmo o senhor funcionário de impostos teve que acomodar um visitante no seu quarto, e o
senhor sabe como ele é exigente. E aqui, aqui no salão, as criadas querem descansar depois de
toda a fadiga desta noite, que foi maior do que sempre por causa da quantidade de visitantes
que vieram ver Hanschen. Disse-lhe, de fato chegou a hora de dormir e não quero detê-las. A
criada mediu minha altura com os olhos, como um coveiro que mede o comprimento do
morto para saber qual deve ser a medida da cova que vai preparar. E agora, ouçam o que ela
disse. Disse assim, o quarto de banho está desocupado até amanhã de manhã, vou fazer sua
cama ali. Pouco tempo depois, voltou e disse, a cama está feita.
Entrei no quarto de banho pensando que ela levou uma cama para lá. Mas ela não
levou uma cama, senão um tapete dobrado, um travesseiro e um cobertor, e os colocou ali,
dentro da banheira. Muitas vezes eu havia escutado que naqueles dias ruins, os dias da guerra,
quando não se construíam novas casas e muitas casas foram levadas para o uso do exército,
nenhum hóspede achava lugar no hotel e faziam a cama no quarto de banho, e eu pensava que
era um boato inventado, mas quando vi a cama que fizeram para mim, fiquei sabendo que o
boato é verdadeiro.
Naquela hora eu não fui exigente. Depois que me fechei no quarto de banho, tirei
minha roupa e subi no meu balcão, quer dizer, entrei na banheira para me esticar ali. Rabi
Nachman de Bratslav dizia, Deus, bendito seja, conduz seu mundo com bondade, cada dia
melhor que o outro. No que me diz respeito, a coisa não é assim. A cada dia o Santo Deus,
bendito seja, me dá uma cota mais pesada.
Apesar disso, adormeci e dormi. Como sei que dormi? Pelo sonho que tive. O que
sonhei? Sonhei que chegou uma grande guerra no mundo e que fui convocado. Fiz uma
promessa a Deus que se eu voltasse em paz da guerra, o primeiro da minha família que viesse
me receber à minha volta, eu o ofereceria a Deus como sacrifício. Voltei para minha casa em
paz, e eu mesmo vim me receber.
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CAPÍTULO 8
De repente acordei com o som do barulho de uma porta rangendo e de um homem que rangia
os dentes para mim. Por que isso? Porque achou o quarto de banho fechado e quando abriu a
porta e esta se abriu, viu-me esticado na banheira, o que não é costume, e começou a ranger os
dentes, e acordei. Peguei minhas roupas e me vesti e desocupei o lugar para ele. De tanta
pressa, não deu tempo de me lavar.
Como a maioria das pessoas da pensão ficou acordada na maior parte da noite por
causa da alegria do filho, pegaram as horas do dia para dormir. Somente as criadas se
levantaram do seu sono. Quando o salão ficou vazio, sem as criadas e sem a roupa de cama,
entrei e abri uma janela, parei e fiquei pensando na minha história. Depois, fui me lavar.
Antes que eu chegasse ao quarto de banho, um outro passou a minha frente. Voltei ao salão e
esperei. Enquanto isso veio um outro e passou a minha frente.
Então me dirigi à cafeteria e tomei um copo de café, daquele café que no tempo da
guerra se chamava de café, e enquanto tomava, lia o jornal. O jornal estava cheio de vitórias
da Alemanha, mas as pessoas não estavam alegres. Será que não acreditavam nas notícias dos
jornais? Acreditavam em todas as notícias dos jornais, porque os jornais não têm senão a
informação do alto comando, e o alto comando jamais mente, mas os sofrimentos de um único
indivíduo impedem a alegria da nação.
Permaneço sentado diante da xícara vazia, com o jornal na mão, e o jornal vai
contando os feitos da Alemanha. De fato não existe nenhum país que supere a Alemanha.
Todo lugar em que o soldado alemão finca a sua faca — destruição e conquista. Os alemães
são um povo de teimosos, quando entram em alguma coisa, não largam mais, e como
entraram na guerra, estão lutando, matando e espezinhando. E quanto às suas palavras, Sr. Dr.
Mitel, que a Alemanha está dilacerando os inimigos mas no final das contas não está
dilacerando senão a sua própria pele, até onde podemos ver, sua pele ainda está inteira. E
veste os seus despidos com os saques de guerra e os alimenta com o que pega nas terras
conquistadas.
Permaneço sentado, olhando para os dias de antes da guerra, que hoje me parecem um
longo idílio. Mas uma coisa é certa: o poeta não se empenhou nas rimas e falhou nas normas
que os sábios da poesia estabeleceram na teoria do idílio. Ou talvez o erro fosse nosso e não
havia aqui nenhum idílio.
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Permaneço sentado, olhando para os dias de antes da guerra. Eu passeava pelos
arredores de Berlim e via grupos e mais grupos de pessoas, alguns barulhentos e agitados, e
outros parados e desolados. E na verdade isso era de espantar. O Arqueduque viaja de
carruagem com a sua mulher, de repente atiram neles duas balas e eles caíram e morreram.
Crescei e multiplicai-vos, balas, e façam nascer muitas balas, e que essas balas derrubem
muitos mortos, e elas ainda continuam matando. O Dr. Mitel disse a verdade, essa guerra não
vai terminar tão cedo, os alemães são um povo de teimosos, quando entram em alguma coisa,
não largam mais.
Por causa da guerra não consigo concentrar meus pensamentos numa só coisa. Ficam
vagando de coisa em coisa e de assunto em assunto. Do meu quarto na rua das pensões para as
minhas roupas pesadas, e das minhas roupas pesadas vago para a herança do Dr. Levi. Não
posso me vangloriar por ter ajudado à viúva, mas por meu intermédio, uma outra mulher foi
ajudada, já que seu filho voltou através de mim, através de mim de verdade, e quando voltou,
fui empurrado do meu quarto e não sei onde vou colocar a cabeça. No início fiquei espantado
com Brigitte Shimerman quando comentou comigo a respeito daquele soldado, aquele golem,
filho daquela mulher, contando a lenda do Golem, e eu disse que o Golem que havia sido
criado pelo Maharal de Praga era melhor do que esse, mais humano do que esse, porque fazia
tudo o que lhe ordenavam, enquanto esse, duvido que seria capaz de entender alguma ordem,
e por fim, acabou fazendo com que, através dele, eu ficasse sem lugar, e através de quem ele
fez isso, através de mim, que fiquei tagarelando com ele. Peguei o livro de telefones e anotei
na minha caderneta todas as pensões que constavam do livro. Depois escrevi na minha
caderneta todos os quartos para alugar que estavam anunciados nos jornais. Depois fui à
pensão da rua das pensões para trocar de colarinho.
Toda a casa estava alegre e as flores exalavam perfume. No salão estavam a mãe e o
filho fazendo a refeição da manhã, e com eles, todos os visitantes que haviam chegado para
ver o filho que voltou, e com eles, Lotte, Hildegard e Grete, cada uma à sua maneira, espiando
o irmão querido. E as camareiras serviam a todos, usando à cintura aventais novos como em
dia de festa.
Cumprimentei a mãe pela volta do filho e me sentei um pouco, e falei com meu
vizinho à direita e à esquerda e respondia a tudo o que me perguntavam. E eles respondiam a
tudo o que eu lhes perguntava. Depois me levantei do meu lugar e disse, vou procurar um
quarto. Depois que falei, me arrependi de ter falado, pois talvez pensassem que eu estivesse
me queixando pelo filho que voltou para casa ter ocupado o meu quarto. Um pequeno consolo
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eu tive: a mãe e as filhas não perceberam as minhas palavras porque estavam tão ocupadas na
sua alegria que não ouviam quando falavam com elas.
Agora deixemos de lado a história do filho que voltou para casa e vamos contar a
história do filho que perdeu a casa. O filho que perdeu a casa começou a visitar as portarias de
casas e pensões, procurando um lugar para morar. Aparecem desenhadas à sua frente todas as
gerações, de Adão até agora, e imaginou que se fizesse para eles roupas de acordo com o seu
tempo, seu lugar e sua natureza, valeria a pena vê-los. Naquele dia apareceu à sua frente uma
multidão de gente sem nenhuma utilidade, vestindo roupas consertadas de acordo com o
tempo e o lugar, mas estava tão preocupado com assuntos de quarto que não olhou para eles.
Anoiteceu. Não achei quarto. A maioria dos quartos que procuravam inquilinos, outros
chegaram antes de mim e os alugaram, e aqueles que não foram alugados, também eu não
aluguei pelos mesmos motivos por que os outros não alugaram. Arrastei-me de casa em casa e
de rua em rua. Não somente nenhum lugar me dá abrigo, mas também a terra me escapa dos
pés. Você pensa que isso é um exagero, mas não, as coisas são realmente assim. Passei por
metade de Wilmersdorf e lá não achei moradia, e fui a Charlottenburg e a Halensee e lá não
achei moradia, significa que três grandes partes da cidade desapareceram sob meus pés. Eu
não devia ter atrasado a minha viagem por causa das tropas da Sra. Shimerman. Se eu não
tivesse viajado com os soldados, voltaria à minha pensão e acharia meu quarto à minha
disposição. Mas o que você faz dentro do sonho da mãe de Hanschen? Meu Pai do céu, só
porque fulana teve um sonho, eu preciso decifrá-lo com meu corpo? Os olhos deste homem
não são ambiciosos e ele não vê a si mesmo como o dono do mundo. Talvez a intenção da
Sra. Shimerman tenha sido para o meu bem, mas o que me sucedeu no final, não foi para o
meu bem. Ninguém deve, jamais, deter o seu semelhante. Por culpa do pai da concubina, que
deteve o marido dela, uma desgraça se abateu sobre ela e milhares de pessoas do povo de
Israel foram mortas.
Entrei num restaurante para jantar. Para economizar luz e reduzir a criadagem, o dono
da casa servia seus fregueses numa só mesa. Sentavam-se lá algumas pessoas, aquelas que
estavam acostumadas a comer em restaurantes, e aquelas que tinham esperança que achariam
alguma coisa com gosto de comida, porque naquela época, o gosto de comida da comida das
casas foi retirado, e todos colocavam seus olhos nos restaurantes. Então, ali se sentavam
algumas pessoas, e entre elas, eu. Sentávamo-nos juntos, à luz de um candelabro, comendo a
mesma comida que foi feita na mesma panela. Mas nem a mesa nem o candelabro nem a
comida nem a proximidade de lugar aproximavam os corações, pois cada um se sentava
isolado. Esse, com a cabeça virada para a panela, aquele, com os olhos no jornal, e um outro,
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na conta da comida. Só em uma coisa todos eram iguais, é que a comida diminuiu e o preço
aumentou.
Ao sair deparei-me com meu amigo e conhecido Peter Temper, um dos encarregados
das feras do jardim zoológico. Naquele dia ele estava mal dos intestinos e foi comer uma
comida de vegetarianos. Assim como costumam fazer as pessoas saudáveis que ficam um
pouco doentes, e imediatamente o mundo inteiro lhes parece um fardo, ele se comportou mal
comigo naquela hora. Fiquei irritado e lhe disse, sua cara está parecendo como se lhe tivessem
quebrado os dentes e lhe oferecido um assado de urso. Ele respondeu dizendo, e o capim que
você mastiga e os produtos de leite que você come deixam seus dentes como teta de vaca.
Disse-lhe, um come capim e toma leite e o outro tem olhos de cabrito. Ele afiou os olhos azuis
como aço brilhante e disse, quando você for ao jardim zoológico, vamos ver se há cabritos
com os olhos iguais aos meus. Disse-lhe, eu não vou visitar uma pessoa que, quando seu
intestinos estão incomodando, se comporta com os amigos como se fossem estudantes de
zoologia. Ele percebeu que eu estava irritado e tentou me acalmar. Disse-me, você conhece o
Sr. Peters?
1
Disse-lhe, você está se referindo ao carrasco Peters? Disse-me, por que você se
refere a ele como carrasco Peters? Disse-lhe, todos o chamam assim. Disse-me, se você quer
chamá-lo assim, que seja. Disse-lhe, por que você o mencionou? Disse-me, ele está doente.
Disse-lhe, sei que você mencionou a doença do carrasco Peters para me mostrar que o seu
nervosismo resulta da sua preocupação com você mesmo. Ele colocou a mão delicada no meu
ombro e disse, vou para casa beber meu bom suco, e irei para a cama para me cobrir e suar.
Pois esse era um hábito de Peter Temper, todas as noites antes de dormir, no inverno ou no
verão, pega um jarro de vinho tinto, coloca cravo e canela, leva ao fogo até ferver e toma
quente, cobre-se com um cobertor grosso até a altura da boca e dorme oito ou nove horas sem
interrupção. Depois que me despedi dele fui para a cafeteria.
A cafeteria está cheia e abarrotada. Desde o dia em que começou a guerra, todas as
cafeterias estão cheias de homens e mulheres. Homens, porque homens costumam ficar entre
homens, mulheres, porque suas casas ficaram sem homens, então elas procuram ver rostos de
homens. Todos os dias aumentam as cafeterias e ainda não são suficientes. Empurram e são
empurrados, são empurrados e empurram. Há sete olhos para cada cadeira, como na dança das
cadeiras. E eles não percebem e não sentem que a vinda deles é por sua causa, porque se você
1
Um importante leão entre os que foram trazidos das colônias alemãs na África; por sua tamanha
importância, recebeu o nome do Sr. Peters, governante alemão nas colônias alemãs na África, e como o
Sr. Peters costumava condenar os nativos à forca por qualquer pequena transgressão, era chamado de
carrasco Peters.
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está aqui, eles também estão. Os garçons que conheciam o público foram levados à guerra, e
no lugar deles, colocaram para nos servir, deficientes que a guerra não levou. E para que você
não pense que eles não são adequados para a guerra, afirmo que eles se comportam como se
estivessem em relações de guerra.
Não me lembro como foi que peguei um lugar. Quando peguei um lugar, pedi uma
xícara de café, daquele café que era chamado de café no tempo da guerra. E quando acabou,
pedi outra xícara, por causa da irritação dos que estavam de pé e não achavam lugar, para que
não dissessem que este fulano colou na cadeira. Seria justo se eu deixasse o lugar livre,
porque eu já havia bebido e os outros, ainda não, mas eu tinha um amigo do tempo da
juventude, do qual não ouvia falar desde o dia em que começou a guerra, e de repente o
encontrei na cafeteria na mesma mesa em que eu estava.
Esse amigo tem o mesmo nome que eu, e isso não é comum, já que tenho dois nomes
que não costumam vir juntos, mas ele tinha o segundo nome como o meu primeiro nome, e
não sabíamos que temos o mesmo nome até que uma vez aconteceu de estarmos numa
sinagoga em Berlim e nos chamaram à leitura da Torá, e ouvimos que nossos nomes são
iguais, e como nossos nomes são iguais, um puxa pelo outro, apesar de que não sabíamos
desde o início que somos irmãos de nome. Um ano antes de eu imigrar à Terra de Israel,
estive na cidade dele e fui visitá-lo. E a impressão da casa ainda permanece no meu coração.
Era conduzida por normas fixas que eram aceitas pelos moradores sem contrariedade. O dono
da casa era sábio, devoto e entendido em interpretações das Escrituras e seus enigmas, era
respeitado pelas pessoas por sua pureza, que às vezes provocava piadas, mas não com a
intenção de desrespeitar. E a dona a casa era uma grande mulher, e tinha uma grande loja de
tecidos. Conta-se que ela reconhecia entre os fregueses que vinham comprar a crédito, quem
vinha comprar com o pensamento antecipado de falir. E conta-se que ela lhe dava crédito e
cobrava a dívida antes que falisse, e com esse dinheiro ela o ajudava a manter a sua loja.
Parecidas com o pai na pureza e parecidas com a mãe na sabedoria do mundo eram as duas
irmãs de meu amigo, mas eram mais belas e mais saudáveis do que o meu amigo, porque ele
extinguia suas forças nos estudos, e as filhas, a mãe não permitia que estudassem nada além
da leitura do livro de orações, aritmética, e ler e escrever o idioma do país. Não porque a
instrução prejudica o judaísmo, mas porque prejudica o corpo. Mais querida que todos era a
mãe da mãe de meu amigo, que deixava os assuntos deste mundo para se ocupar das
necessidades do mundo vindouro ou, para ser mais exato, era dito assim, que ela fazia das
necessidades do mundo vindouro, as necessidades deste mundo. Era filha do sábio Rabi
Shlomo Horvitz, que tinha laços de amizade com o sogro de meu avô, Rabi Iehuda. Nos anos
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em que vivi na Terra de Israel, meu amigo freqüentava as universidades em Viena e Berlim.
Depois de alguns anos, quando voltei para Berlim, encontrei-o na biblioteca pública. Daí em
diante passamos a nos ver nos lugares que pessoas como nós costumam ir, até que veio a
guerra e ele foi convocado e eu permaneci em Berlim. Esses são os fatos principais. Se eu
tiver oportunidade de contar a respeito dele em outro lugar, contarei mais. Aqui não direi mais
nada além do seu nome. Seu nome é Iossef, e o sobrenome, Bach. Alguns anos depois,
quando fui à minha cidade, perguntei a Daniel Bach se era parente dele, disse-me, não sei,
mas como meu nome é igual ao nome do pai dele e o nome do meu pai é igual ao nome do
avô dele, Rabi Shlomo, podemos supor que somos parentes.
Delgado e mirrado é meu amigo, e seu rosto é como terra queimada, mas sua roupa
brilha com tantos distintivos de bravura, na verdade, o suficiente para um museu inteiro. Este
pesquisador, de tanto estudar, ficou fraco, e quando o levaram ao campo de batalha, mostrou
bravura. Viram os ministros da guerra a bravura dele e o enfeitaram com os enfeites com que
se enfeitam os heróis de guerra. Ele carrega os distintivos de bravura e todos costumam olhá-
lo com bons olhos, e parte desses olhos recaem também sobre mim, porque ele fala comigo
como alguém que fala com um amigo.
Ficamos sentados e espantados um com o outro por termos nos encontrado um ao
outro por acaso na mesma mesa da cafeteria. Por fim deixamos de lado todo o espanto e
perguntamos um ao outro como vai passando e assim por diante. Por fim lhe perguntei, o que
você faz aqui em Berlim? Respondeu-me dizendo, tive férias de tantos e tantos dias e vim a
Berlim. Disse-lhe, como vai seu pai? Meu amigo olhou para mim e se calou.
Permaneci por um certo tempo desolado, voltei ao assunto e disse, Deus o livre,
aconteceu alguma coisa com ele? Meu amigo me respondeu dizendo, quando toda a cidade
fugiu por causa dos russos, meu pai e minha avó não fugiram. Meu pai, porque disse que os
russos não atacarão quem não os ataca, e minha avó, por causa da ajuda que dava a quem
precisava. Todos os dias meu pai costumava rezar em conjunto. Naquele dia de manhã meu
pai pegou seu xale de orações e seus filactérios e foi à sinagoga. Minha avó lhe disse, reze em
casa, você não encontrará dez pessoas para rezar em conjunto em nenhum lugar sagrado da
cidade. Meu pai disse, não posso mudar um hábito. Foi, e encontrou o anjo da morte. Os
russos ainda não haviam entrado completamente na cidade, por isso supomos que a sua morte
foi executada por um não-judeu da nossa cidade, que entrou na sinagoga para roubar e achou
lá um judeu, e ficou com medo que ele o denunciasse ao governo e o matou antes que o
fizesse. Alguns dias depois ouvi dizer que o fato da morte dele foi assim. Um pequeno não-
judeu caçava pombos. Viu um pombo observando na janela da sinagoga, lançou uma flecha, e
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acertou no meu pai. É quase certo que pretendiam comparar meu pai com o homem alado da
história do Talmud, cujos filactérios se transformaram em asas, e assim ele se salvou da
morte, e não perceberam que estão falseando um mandamento, pois mesmo que os filactérios
parecessem asas, meu pai não se salvou.
Disse comigo mesmo, não deixarei meu amigo com a dor do pai, então lhe perguntei
como vai a mãe. Meu amigo me respondeu dizendo, minha mãe morreu no caminho de
Cracóvia a Viena, quando fugia com os da sua cidade para salvar a vida. Pensei com meu
coração, não o deixarei com a dor da mãe, e perguntei a respeito de suas irmãs. Meu amigo
respondeu dizendo, a mais velha sofre seu sofrimento em silêncio, e a mais nova está
esperando que o marido volte da guerra. Agora, meu caro, disse meu amigo, agora eu é que
vou lhe perguntar algo. Disse-lhe, espere, minhas perguntas ainda não terminaram. Meu
amigo disse, quem mais tenho eu em casa para que possa perguntar? Disse-lhe, se você se
esqueceu de sua avó, eu não me esqueci. Como vai aquela santa mulher? Agora que o mundo
inteiro sofre, ela deve estar ocupada, aumentado sua misericórdia e sua bondade para aliviar
um pouco a dor. Meu amigo olhou para mim e se calou. Disse-lhe, por que não me responde?
Disse-me, uma fera a devorou. Disse-lhe, o que quer dizer uma fera a devorou, por acaso ela
estava na floresta e um urso a atacou? Disse-me, nem urso nem floresta, um porco a atacou,
na cidade a atacou, em sua própria casa, nas escadas da casa, um cossaco a pegou, torturou-a,
a alma dela expirou e ela morreu. E agora, meu amigo, depois que não restou ninguém dos
meus parentes para que pergunte a respeito, perguntarei eu, diga-me quando está aberta a
biblioteca pública. Ainda fica aberta diariamente das nove até as nove? Disse-lhe, não sei.
Desde o dia em que foi declarada a guerra não estive lá. — Por quê? — Não sei por quê. Meu
amigo permaneceu calado. Disse-lhe, por que está perguntando sobre a biblioteca? — Por
quê? Quero ver livros que foram publicados desde que fui convocado para a guerra. Disse-lhe,
você pode imaginar que foram publicados muitos livros. A Alemanha sozinha produz em um
ano a metade de todos os livros que nós, o povo do livro, temos. De que profissão você se
ocupa atualmente? Vou lhe revelar um segredo, comecei a escrever um livro. — Se você diz
comecei, certamente já terminou. De que trata o seu livro? Disse-me, para que você entenda, o
nome dele será Biologia dos acontecimentos. — Biologia dos...? Meu amigo respondeu
dizendo, na verdade, o nome não tem a ver com o assunto. É preferível que eu lhe conte como
cheguei a isso. Estava eu dentro da terra, numa trincheira, e uma coisa me aconteceu, e é
impossível afirmar se algo assim ou parecido já havia me acontecido antes, apesar disso, me
parece que o principal do fato tem a ver com um acontecimento que já havia me ocorrido.
Mais uma vez me aconteceu uma coisa que eu não conseguia decidir se é um fato novo ou
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antigo, pois parecia ser um e outro. Após alguns dias, voltou a se repetir. E quando voltou a se
repetir, a dúvida do meu coração foi eliminada, e eu soube claramente que se tratava de uma
repetição do que já havia acontecido, e não apenas uma vez, mas duas, que são três. Comecei
a refletir a respeito dessas coisas, por que motivo, logo que acontece, vem-lhe o conhecimento
de que já lhe aconteceu antes, e isso ainda não o satisfaz, até que a coisa volta a se repetir. E o
primeiro acontecimento, o que é? É uma nova criação ou também não é senão a repetição de
coisas que já foram esquecidas? Se é assim, onde começa e quando termina? Agora, meu
amigo, vou especificar os acontecimentos e tentar ordená-los de acordo com os seus temas, e
se me autoriza a dizer assim, também de acordo com as suas normas. E se você quiser, meu
livro não se chamará Biologia dos acontecimentos, mas Da repetição das coisas. Agora quero
saber o que você fez com seu grande livro sobre as vestimentas. Disse-lhe, eu o encurtei. —
Encurtou? Por quê? — Por quê? Certa vez precisei sair em viagem, e como livros grandes
aumentam a carga, sentei-me e cortei as margens das folhas. Meu amigo riu e eu ri com ele.
Tudo tem sua cota, até mesmo a permanência em cafeterias. Chegou a hora de meu
amigo ir, e fui com ele. Depois de me despedir dele, entrei em outra cafeteria. Eu devia abrir
mão em favor daqueles que ainda não haviam conseguido se sentar na cafeteria, mas como
não arranjei outro lugar para ir, peguei um lugar na cafeteria.
Tudo tem sua cota, até mesmo a permanência em cafeterias. Quando a cafeteria
fechou, fui obrigado a me levantar do meu lugar. Ao sair, fui atropelado por um grupo de
pessoas da Terra de Israel que foi atropelado pela guerra em Berlim. Alguns eram estudantes
e outros, rapazes que simplesmente vieram se especializar em diferentes profissões.
Sustentavam-se principalmente com o ensino da língua hebraica para rapazes e moças
sionistas, alguns se sustentavam com folga e outros, com aperto, de acordo com as suas
habilidades lingüísticas ou sociais. Acompanhava aquele grupo um homem baixo e largo que
eu não conhecia, e agora que o conheci, ouvi dizer que é escultor, chamado Druzi, e não
consigo discernir se é judeu, sírio ou libanês. Seus olhos eram grandes e sonolentos, e andava
como quem tem pé chato. Certo dia me contou que quando criança era pastor e andava
descalço. Vou pular a história dele e voltar ao grupo todo que andava junto. — Para onde?
Descobriram um lugar em Berlim em que assam pãezinhos, e naquela hora saíam os
pãezinhos do forno e eles iam regatear pãezinhos quentes direto do forno, coisa que nem toda
Berlim podia fazer, pois mesmo que um berlinense comesse um pãozinho, comia-o de manhã,
quando já esfriou.
Para que meus amigos não soubessem que este fulano aqui não tem onde dormir, eu
lhes disse, para dizer verdade, não posso ir com vocês. — Por quê? — Estão esperando por
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mim. — Onde estão esperando por você? — Onde? Na minha pensão. — Por quê? — Dei
ordem para que me esperassem. — Por que deu ordem para que o esperassem? — Por quê?
Para que eu não precise tocar a campainha. — Quem o obriga a tocar a campainha? — Quem
me obriga? É porque saí e me esqueci da chave. — Então — Então telefonei para que me
esperassem, e lamento por atrasar o sono deles por minha causa. Meus amigos me pegaram e
me levaram com eles.
Vai andando um pequeno grupo da Terra de Israel dentro da grande cidade de Berlim,
capital da Alemanha, e eu sou um deles. Ficamos contando a respeito das vitórias daquele país
que sai por aí conquistando, e ninguém sabe quando chegará o fim da guerra e como ficará a
face do mundo depois da guerra. A conversa foi se desenrolando até chegar à Terra de Israel.
E já que nos lembramos da Terra de Israel, os pãezinhos quentes saídos do forno foram
esquecidos e cada um voltou para sua casa.
Druzi, o escultor, pegou-me e disse, venha e lhe mostrarei uma coisa. Disse-lhe, Não
posso ir com você. — Por quê? — Não ouviu que estão me esperando? Disse-me, só porque
uma mulher está lhe esperando, você vai deixar de ter prazer? — O quê? Disse-me, se você já
teve a oportunidade de passear em Baal Beck, é possível que tenha visto aquelas esculturas
antigas antes do alvorecer, quando elas irrompem de dentro da escuridão como se brotassem
das entranhas do mundo. Quero lhe oferecer uma demonstração desse tipo ao alvorecer, na
minha oficina.
Pegou-me e me levou a um pátio, e subi com ele mil degraus e mais um, e entrei com
ele num quarto cheio de umidade e impregnado de cheiro de gesso, de pedras frias, de barro e
de tabaco. Acendeu uma luz e tirou uma garrafa de conhaque, serviu, e começou a contar a
respeito dos tipos de tabaco que são bons para cachimbo. Depois contou de forma elogiosa a
respeito dos bons garçons das cafeterias antes que chegasse a guerra, que ajudavam o artista
nas horas de aperto e lhe emprestavam dinheiro a juros baixos. Depois começou a contar a
respeito de homens e mulheres que buscamos conhecer, e quando temos a oportunidade de os
conhecer, acontece alguma coisa que impede que os conheçamos, e todos os que conhecemos
enquanto isso nos levam à irritação, como se estivessem tomando o lugar daqueles que
queríamos conhecer.
Enquanto falava essas coisas, o escultor se sentou sobre uma pedra quebrada e colocou
a garrafa a seus pés, observou suas esculturas e lhes disse, gente, se vocês querem que Brigitte
Shimerman esteja entre vocês, peçam a este senhor que diga a ela uma palavra boa a meu
respeito. Depois virou a cabeça para mim, pegou a garrafa, serviu-nos, e disse, bebamos à
vida de Brigitte Shimerman. Erguemos os copos e bebemos à vida de Brigitte Shimerman. E
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enquanto eu bebia, acrescentei sussurrando, Brigitte, se não fosse você, onde eu teria achado
um abrigo para a minha cabeça esta noite?
A luz do dia começou a subir. A luz do candelabro ficou pálida e todas as esculturas
da casa produziam uma friagem deprimente. O dono das esculturas se levantou, mergulhou
um trapo na água e o colocou na cabeça de uma escultura, voltou a mergulhar um trapo na
água e cobriu outra escultura. Depois tirou uma segunda garrafa, serviu-se, bebeu e se sentou.
E ao se sentar, baixou a cabeça sobre o peito e começou a cochilar. Enquanto cochilava,
estendeu o dedo em direção às esculturas e disse, gente, por favor, não façam barulho.
Levantei-me para sair. Ele percebeu e despertou. Disse-me, ainda não viu nada e já se vai.
Espere e lhe mostrarei. Quando se preparava para se levantar, sua cabeça caiu sobre o peito e
voltou a cochilar. Levantei-me para sair. Ele percebeu, despertou e disse, aquela que está lhe
esperando é bonita o bastante para ser um modelo? Como ele voltou a cochilar, despedi-me e
fui embora.
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CAPÍTULO 9
Deixo as coisas seguintes ao acaso. Somente Aquele que as criou sabe por que motivo elas
acontecem. Às vezes, elas parecem uns clarões que ligam um sonho a outro sonho, que vão se
perdendo enquanto acontecem, e nós ficamos vendo os nossos sonhos como se não tivessem
nenhuma ligação ou coerência. E então vou acumulando atrás de mim tudo o que
aparentemente não tem ligação com a essência dos fatos, como a história de Iossef Bach, meu
amigo, sobre a repetição das coisas e assim por diante, e como os pãezinhos quentes que não
chegamos a comer, e como Druzi, que cria imagens e que se aproximou de mim porque queria
se aproximar de Brigitte Shimerman, porque queria esculpir a sua forma em mármore por
causa da sua beleza, da sua graça, e por tê-la visto passeando comigo, achou que eu poderia
convencê-la a posar para que ele fizesse a sua imagem, e no final de tudo isso, deixou-me ir e
não pediu nada. E como me deixou, vou voltar para a essência do tema.
A essência do tema é a seguinte. Esse mundo é grande e vasto e tem muitas terras, e
em cada terra você acha cidades e vilarejos, casas e quartos. Algumas vezes, um homem mora
em muitas casas, e há muitas pessoas que moram em um quarto. E nós vamos contar a história
de um homem que não tem casa nem quarto, e deixou o lugar que tinha, e o lugar que achou
desapareceu debaixo dos seus pés. E assim ele vai de lugar em lugar procurando um lugar.
Este homem vai andando de quarteirão em quarteirão e de rua em rua e de casa em
casa, procurando um quarto. Instala-se à porta das casas e elas se abrem, e mulheres saem e
lhe mostram o quarto. Em alguns casos a dona da casa é simpática e o quarto não é, e há casos
em que o quarto é simpático e a dona da casa não é. Este homem fica parado se perguntando a
que deve renunciar, à simpatia daquela ou à simpatia daquele. Por fim depositou esperança
em outros quartos. E entre um quarto e outro, suas pernas zombaram dele e o conduziram a
um que já viu. A dona da casa pensa que ele voltou para alugar o quarto e lhe mostra um bom
semblante para ser amável. Quando ambos se dão conta do engano, este vira a cabeça para
trás e se vai, e aquela fica irritada com ele e o xinga por ficar incomodando as pessoas à toa.
Daqui por diante ele se comporta com muito mais cuidado, e de tanto cuidado, acaba pulando
casas que certamente haveria ali um belo quarto disponível para ele. Enquanto isso seus olhos
e suas pernas entram em conflito, pois quando os olhos querem ver, as pernas começam a
enfraquecer de tanto andar, e quando as pernas querem andar, os olhos se cansam. As pernas
do homem se arrastam e os olhos se fecham. Como seus olhos se fecharam, Berlim e suas
101
casas desapareceram, e como Berlim e suas casas desapareceram, veio-lhe à mente Jafa e suas
dunas, Jafa e seu quarto.
O quarto é pequeno e tem uma pequena varanda, e apesar de que a varanda é pequena,
tem uma vantagem, pois dá de frente para um jardim, e no jardim crescem limões e outras
árvores boas, que se eu contasse a respeito delas na Alemanha, diriam que se trata de uma
lenda. E entre as árvores do jardim você acha um poço de água. Dessa água você bebe, lava o
seu corpo e dá para os pássaros que cantam à sua janela. E já que mencionei a janela, direi
quantas janelas existem ali. São cinco janelas. Duas são de frente para a rua e se vê tudo o que
vai no coração das pessoas. E uma janela dá para o vale onde passa o trem, o trem que vai de
Jafa a Jerusalém e de Jerusalém a Jafa, e todo passageiro que viaja no trem e me vê parado à
janela, envia-me um cumprimento e eu respondo ao cumprimento. E como o trem anda
calmamente e não é apressado, os cumprimentos chegam de um a outro. E uma janela fica de
frente para o mar, o Mar Mediterrâneo, que o Santo, bendito seja, criou para que ali
passassem os que se redimiram. E uma janela fica de frente para as dunas de Jafa, que de dia
têm a cor da canela e à noite têm a cor do pêssego. E de dentro das dunas irrompem sessenta
casas pequeninas, que chamam a si mesmas de Tel-Aviv. Ali moram pessoas de quem eu
gosto e que gostam de mim, e o bom Deus gosta de todos nós, e agora supostamente está
furioso conosco, e está furioso comigo mais ainda por eu ter deixado a Sua terra, e uma vez
que deixei a Sua terra, Ele me causou uma grande aflição. Mas mesmo dentro da Sua fúria,
deixa transparecer o Seu amor que cativa meu coração e pede que eu volte, pois se não fosse
por isso, por que estaria furioso? Agora não posso voltar por causa da grande guerra no
mundo, na terra, no mar e no ar e não há nenhuma possibilidade de chegar à Terra de Israel.
Se é assim, sou obrigado a morar aqui e procurar um quarto até que Deus me leve de volta ao
meu lugar.
Por causa da dificuldade da época, os judeus abastados perderam seus bens e
começaram a alugar quartos. Todo o tempo em que morei na Alemanha, evitei, como a
maioria dos meus amigos, morar na casa de um judeu alemão, porque os judeus da Alemanha
eram patriotas alemães e no entender deles não era correto de nossa parte divulgar o nosso
judaísmo, e essa coisa toda provocava grandes discussões. Depois de ter passado uma noite
sem casa, deixei de ser detalhista. Quando me apareceu um quarto na casa de um judeu, parei
e o aluguei.
O quarto era pequeno e as exigências eram muitas. Fiquei em dúvida se eu quisesse
alugar a casa inteira, me fariam tantas exigências. Como eu não tinha alternativa, concordei
com todas as condições enquanto pensava no meu coração, vou ficar três ou quatro dias e
102
talvez enquanto isso, ache outro quarto e me livre desse homem exigente. Trouxe minhas
coisas da pensão e as arrumei. A coisa se estendeu e chegou a hora de dormir. Subi na cama e
dormi.
De repente ouviu-se o som de um relógio e despertei. Olhei o meu relógio e vi que
havia chegado a hora de levantar. Se a boa cama trouxe o sono ou se o meu cansaço do dia foi
o que provocou o sono, seja isto ou aquilo, uma coisa assim não me acontecia havia muitos
anos, dormir sete, oito horas sem interrupção. Agora o que me faltava, uma refeição da manhã
era o que me faltava, pois entre todas as condições que o dono da casa estabeleceu, não
incluiu servir a refeição da manhã.
Por um instante fiquei pensando para onde iria e onde comeria. Apesar de que já era
hora de comer a refeição da manhã, não achei nada melhor para o meu corpo do que
permanecer no quarto, como quem dorme um bom sono e seu corpo ainda pede um bom
acréscimo por sentir prazer em permanecer assim. Ouviu-se um som na porta e a dona da casa
entrou. Estava vestida com um vestido azul escuro de algodão fino, nem velho nem novo, e
seu cabelo estava penteado como uma cúpula que parecia uma peruca, pois como tinha muito
cabelo, ela o prendia por cima da cabeça. Cumprimentou-me com a saudação matinal e
perguntou se eu estava pronto para a refeição da manhã. Eu não disse nem sim nem não. Mas
pode ser que meus olhos lhe disseram que eu estava pronto. Ela saiu e voltou trazendo uma
chaleira com chá e pão torrado, purê de frutas e um jornal. Fiquei admirado com a refeição,
que chegou por acaso, porque apesar de que o dono da casa estabeleceu muitas condições, não
mencionou a refeição da manhã. Depois que comi e bebi, a dona da casa voltou e veio retirar
a louça, e enquanto retirava a louça disse, se uma refeição como essa é suficiente para você,
posso trazer todos os dias. E ainda disse, penso que o quarto em que se dorme à noite não é
adequado para ficar durante o dia. Venha e lhe mostrarei outro quarto, onde você pode ficar
todos os dias.
O apartamento era amplo, com seis quartos, e a mobília era como a da maioria dos
judeus ricos de Berlim. Um quarto de carvalho, e outro quarto de mogno, e a sala de visitas de
pereira, e havia cadeiras confortáveis para se sentar em todos os quartos, e tapetes estendidos
sobre o chão, e um cheiro de tabaco com aroma de flores emanava das cadeiras e dos tapetes,
e havia quadros pendurados nas paredes, alguns, de pintores famosos contemporâneos e
outros, antigos, dos grandes pintores. E uma estante cheia de livros havia lá, do chão ao teto, e
em toda a largura da parede. Certo dia, quando me tornei íntimo, o dono da casa me contou
que na juventude havia sido pobre e não chegou a estudar muito. Quando começou a ganhar
dinheiro, começou a se abastecer com os livros que comprava e ainda continua comprando.
103
Tirei um livro da estante e li até a hora do almoço. O dono da casa entrou e me
perguntou se a cama era boa para dormir, se a refeição que comi de manhã estava suficiente, e
se achei na estante um livro que mereça ser lido. Três dias depois ele voltou. Era um dia de
domingo, o dia em que a Alemanha interrompe as suas atividades. Ele chegou e começou a
conversar comigo. A conversa continuou e descobrimos que alguns conhecidos meus são
conhecidos dele e alguns conhecidos dele são meus conhecidos. A dona da casa entrou e
disse, se ainda não terminaram a conversa, podem continuar durante a refeição. Disse-me o
dono da casa, se você se satisfaz com uma refeição leve como essa, venha comer conosco;
devido à guerra, não se pode escolher comida, logo, não repare se minha mulher não trouxer
aquelas boas comidas a que estávamos acostumados antes do tempo da guerra.
Durante a refeição fiquei sabendo um pouco da vida do dono da casa. Era comerciante
de azeite, e não estava entre os pequenos comerciantes. Como as condições dos negócios
diminuíram por causa da guerra, abriu mão deles, e decidiu acabar com as suas atividades.
Para dizer a verdade, elas acabaram por elas mesmas depois que acabou todo o azeite, mas
ainda lhe restaram recipientes vazios. Todos os dias ele vai até a loja e aos poucos vai se
desfazendo dos recipientes, e quando ficar livre do que restou da sua atividade, irá com a
mulher para uma aldeia na Bavária, onde ainda se acha o que comer, e ali permanecerá,
retornando aos seus livros, até que chegue a sua hora e saia deste mundo, e ficará liberado de
ver o final da guerra e o que ocorrerá após a guerra.
Naquele dia mudaram meu quarto para um quarto amplo e fizeram de mim um
companheiro de mesa, e me liberaram de alguns encargos de um homem solteiro. E quando
chegou o dia do pagamento, percebi que deixaram o quarto amplo pelo valor do quarto
pequeno. Também não me cobraram por outras coisas e tiveram consideração comigo ao
calcularem as despesas.
Nossos mestres, de abençoada memória, nos ensinaram a comentar de forma elogiosa
a respeito da pousada que nos acolhe. Já contei a respeito do dono da casa e da dona da casa.
Agora comentarei a respeito dos visitantes que costumavam ir à casa dos meus anfitriões.
Cada um deles vem nos demonstrar que a nossa opinião a respeito dos judeus alemães é uma
bobagem. E se formos louvar os judeus de outros países pela sua Torá, sua fé, sua caridade,
sua devoção, sua pureza, devemos também louvar os judeus da Alemanha por sua retidão, sua
inteligência, seu senso de responsabilidade, sua fidelidade, pois agem de forma coerente com
o que dizem. Os livros que li também vieram para ensinar, e a maioria das coisas que chegou
até nós da sabedoria de Israel não é senão a serragem que caiu do serrote dos grandes
bosques, que são os sábios judeus da Alemanha. Há livros cuja leitura é provocada pelo lugar
104
onde se está. A casa do Sr. Lichtenstein provocou que eu lesse bons livros escritos pelos
sábios da Alemanha.
Os dias da minha tranqüilidade não se prolongaram. Uma empresa de comunicação
comprou o prédio e pagou a cada morador um valor de indenização. O dono da casa saiu da
casa. Não foi para o lugar que buscou, mas para o lugar que o buscou. Tinha uma filha única
cujo marido tombou na guerra, e chorava para que o pai e a mãe fossem morar com ela porque
não podia se ocupar com o sustento e se ocupar com as necessidades da casa e criar seus
filhos e filhas. Quando os dois velhos precisaram mudar de casa, ela veio e os levou. Antes
eles compraram um lugar no asilo de velhos, já que ninguém sabe o que lhe espera junto com
os filhos e as filhas. Quando o Sr. Lichtenstein e senhora saíram da casa, eu também saí com
eles, e fiquei novamente sem moradia.
Naqueles dias conheci Simon Gabil. Simon Gabil veio ver a casa e fazer um projeto.
Simon Gabil é um grande arquiteto. Conhece a alma da geração e constrói de acordo com a
demanda da geração. As casas que ele constrói não têm nada que seja supérfluo e nada que
não tenha uma utilidade. Cada canto que você vê está de acordo com a realidade. A cada
geração, a sua casa. Nossos antepassados, cujas necessidades eram reduzidas e o coração era
grande, tinham muitos enfeites e pouco conforto, e nós, com o coração pequeno e muitas
necessidades, renunciamos aos enfeites em favor do conforto. E é preciso ser dito que não há,
entre todos os novos arquitetos, um construtor como Simon Gabil, que ocupava este posto de
fato e de direito. Portanto, todo novo rico e toda nova empresa construía sua casa com Simon
Gabil, pois Simon Gabil conhece as demandas da geração e atende a todas as demandas.
Simon Gabil ouviu meu nome e se esqueceu onde já o havia escutado. E desta forma
me disse, ajude-me a me lembrar onde foi que ouvi o seu nome. Fiquei pensando comigo
mesmo, quem citou meu nome a Simon Gabil. E se fui citado a ele, por que não se lembra
quem me citou. Disse-lhe, não sei quem me citou. Simon Gabil disse, lembrei-me, lembrei-
me. Há um dia atrás eu levava Brigitte Shimerman no meu carro quando ela ia a Leipzig em
visita de pêsames ao Dr. Mitel, cujo filho tombou na guerra, e ela citou seu nome algumas
vezes. A propósito de que assunto ela citou seu nome, não me lembro.
Mais uma vez meu telhado voou de cima da minha cabeça. Depois que o dono da casa
saiu de casa, eu também precisei sair; a empresa de comunicação comprou a casa e tem pressa
em consertá-la e prepará-la de acordo com a demanda da época, porque há uma grande guerra
no mundo, e todos os que não morrem na guerra ou em conseqüência da guerra querem saber
o que está acontecendo na guerra. Chegam os jornais e permanecem entre os vivos e os
mortos, e informam aos vivos o que está acontecendo com os mortos, e todos os que querem
105
viver, querem um jornal, e na nossa geração o jornal é o pólo da vida, porque toda a vida está
contida no jornal. Nascimentos e casamentos, jubileus e óbitos, comércio de alimentos e
outras coisas. Além do que, libera os leitores de pensarem por si mesmos, pois a respeito de
tudo no mundo há alguém que dá a sua opinião num discurso convincente, e até mesmo coisas
que estão no pico do mundo, num breve instante você se desloca até o fim do mundo, e você é
parte do mundo como a parte que o jornal lhe forneceu. Os jornais são tantos que não há casas
suficientes para eles. Então chegam e transformam as casas grandes e boas em casas de
impressão e depósitos de papel. Há um prédio grande e bom onde moram trinta e três
famílias, veio a empresa de comunicação e comprou o prédio. Tirou de casa todos os
moradores do prédio, inclusive, eu. Fico perambulando por Berlim e seus subúrbios,
procurando quarto. Olho para todas as casas que contêm a inscrição, quarto para alugar, entro
e vejo o quarto, dobro minhas pernas em oitenta ou noventa degraus, saio decepcionado e
entro em outra casa, ou o quarto não é um quarto ou minha mente não está concentrada por
causa de mim mesmo ou por causa do luto de Itzchak Mitel. Itzchak Mitel tinha um único
filho, que foi como voluntário para lutar na guerra da Alemanha, um tiro inimigo o acertou e
ele tombou na guerra. Itzchak Mitel pagou o preço da morte do filho com o luto e o filho
pagou o preço do seu patriotismo com a vida.
Arrasto minhas pernas de rua em rua, observo e olho cada casa para ver se há ali um
quarto para alugar. Muitos quartos procuram moradores, e eu procuro um quarto, e não sei por
que motivo não ocorre uma coincidência entre nós. Se não me aparecem quartos, aparece-me
todo tipo de pessoas. Encontro fulano, com quem morei numa casa, paramos e conversamos, e
eu lhe conto a aflição de minha alma, que estou procurando um quarto e não acho. Ele me diz,
você muda demais de moradia. Quando eu estava para me despedir dele, disse-lhe, mande
meus cumprimentos à sua esposa. Respondeu-me, você se refere àquela que conheceu na
minha casa, ela não é minha esposa, divorciei-me e me casei com outra. Bem que eu poderia
dizer a ele, você muda demais de esposas, mas as coisas não são iguais, pois ele achou outra
mulher e eu não achei um quarto.
E agora, quem está para me aparecer? Seja quem for, não é alguém em quem estou
pensando. Vocês se lembram que a dona da pensão da rua das pensões tem uma filha de nome
Hildegard, pois essa Hildegard me apareceu, ela e o irmão Hanschen. Hildegard retirou os
olhos do fundo da testa e me cumprimentou. Retribuí-lhe o cumprimento e agradeci ao
Criador por Ele imprimir em cada criatura um atributo especial, porque se Hildegard não
tivesse retirado os olhos do fundo da testa, eu não a reconheceria; quando a via em casa, usava
um vestido curto, daqueles vestidos que as mulheres usavam um ano antes do tempo da
106
guerra, e com a cabeça descoberta, e agora tinha um chapéu alto na cabeça e usava um vestido
comprido cuja barra arrastava sob seus pés, e suas mãos estavam cobertas por luvas de couro
até os braços.
Hildegard disse, como estou contente por vê-lo. Ficamos todos os dias espantados por
você não aparecer na nossa casa. Enquanto falava comigo, disse ao irmão, será que você não
reconhece este senhor, pois vocês viajaram juntos a Berlim. Enquanto falava com ele, virou-
se e me disse, ele não é encantador? Estamos indo ao alfaiate para fazer um terno novo.
Enquanto falava comigo, virou-se e disse ao irmão, e quando Hanschen vestir um terno novo,
ficará um novo homem. Assim ficamos o tempo que ficamos. Às vezes Hildegard falava
comigo, às vezes falava com o irmão. E eu também falava com os dois. A boca é ágil e acha
palavras para tudo. Como seria bom se achássemos coisas para as palavras!
Depois que nos despedimos, ela se voltou disse, chegou um pacote com alimentos em
seu nome, que ficou circulando na nossa casa até que tudo o que havia dentro criou mofo.
Havia coisas boas no pacote. Até carne havia ali. Se o seu nome não estivesse escrito no
pacote, pensaríamos que foi enviado para Isolda Miller, aquela que mora no quarto grande da
pensão. Em breve festejaremos o casamento dela. Está para se casar com o seu vizinho,
Friedrich Wilhelm Schmid, funcionário do gabinete de impostos, cujo quarto fica em frente ao
quarto de Hanschen. O início dos fatos foi assim. Certa vez Isolda pediu a ele um conselho a
respeito do pagamento de impostos. Ele foi aconselhando, até que sugeriu um conselho para
que ela se casasse com ele. São uns felizardos, moram na mesma pensão e não precisam sair
atrás de moradia, agora que todo buraco de ratos está cheio de gente, possivelmente não
achariam lugar para morar. E como é o seu quarto agora? Certamente, é bom. Pessoas como
você sempre acham um quarto bom. Depois que ela se foi, parei e acendi um cigarro e joguei
fora a caixa vazia. Chegou um homem segurando pela mão uma menininha, e na outra mão,
uma ponta de cigarro, e me perguntou onde ficava o correio. Disse-lhe, venha comigo, eu
também estou indo para o correio. Quando Hildegard Trotzmiller me contou a história do
pacote, ocorreu-me escrever duas ou três linhas para a minha parenta Malka. E como eu não
tinha um quarto para me sentar, fui obrigado a fazer do correio um lugar para escrever.
Enquanto íamos para o correio ele contou que é de Leipzig, que é operário na casa de
fundição de letras, que é membro da sociedade evangélica em Connewitz, filial da sociedade
matriz que fica em Leipzig, e que sua vinda a Berlim se deve à sua filha pequena, levada pela
esposa para a casa da irmã, dona de uma taberna em Pankow, perto de Berlim, para que a
pequena ganhasse peso com carne sobre seus ossos secos, porque recusava comidas ruins, que
em vez de gordura, os governantes do conselho de Leipzig davam um tipo de papa de frutas
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que se você duvida que seja mesmo de frutas, não está caluniando. É essa papa que as pessoas
de Leipzig chamam de gordura de Hindenburg. E é essa papa que as mulheres dos operários
elogiam tanto. E apesar de que em Leipzig a menininha não tem o que comer, e na casa da tia
em Pankow ela tem tudo de bom, porque aquela mulher sabe enfiar todos os funcionários do
gabinete de alimentação num furo de brinco e tirar deles quantos bilhetes de alimentação ela
quiser, apesar disso a menininha ficou com saudades de Leipzig, e de tanta saudade, rejeita
qualquer alimento, e são obrigados a levá-la de volta a Leipzig. Então, ele chegou ontem de
Leipzig para levar a menininha de volta a Leipzig, e já perguntou na estação de trem quando
sai o trem para Leipzig, porque amanhã retornam a Leipzig. Na verdade, ele pretende
permanecer mais um dia em Berlim, porque jamais teve a oportunidade de estar em Berlim, e
agora que lhe ocorreu estar em Berlim, achou conveniente ver tudo o que há para ver em
Berlim. Mas ele depende da permissão de terceiros, por ser operário e subordinado a um
patrão. E se fosse subordinado somente ao patrão, iria se calar, porque não existe ninguém
que não seja submetido a um outro, mas ele é subordinado a uma pessoa como ele, um
operário que adquiriu poder, uma vez que o administrador do trabalho foi levado ao exército e
colocaram no lugar dele um dos operários da firma, um porco, filho de uma cadela, que se
você chamá-lo de cão, filho de uma porca, não está cometendo nenhum engano. Então, esse
cão, esse porco demonstra o seu poder sobre todos os que se equiparavam a ele no serviço. E
a tudo o que lhe pedem ele responde que não, e não quis dar a permissão para a viagem, e se
não houvessem cochichado para ele, o que lhe importa se esse aí vai gastar dinheiro com
passagem, não teria dado a permissão, e quando deu, foi apenas para um dia. A coisa virou de
forma que há necessidade de permanecer dois dias. Quando uma pessoa alcança a grandeza, a
cota da sua maldade aumenta junto. Com muita dificuldade havia dado permissão para um
dia, e a coisa virou, e há aqui um atraso de dois dias, para dar àquele cão porco a chance de
maltratá-lo e reduzir o seu salário, por isso ele se apressa até o correio para telegrafar ao
chefe, para que não diga que acrescentou um dia por sua própria vontade, sem pedir
permissão. Então, aqui está o correio.
A menininha disse, esse não é o correio. — Por quê, esse não é o correio? A
menininha respondeu e disse, porque o nosso correio é maior do que esse cem mais cem mais
cem vezes. O pai lhe disse, não diga cem vezes, porque não existe no mundo inteiro um
prédio cem vezes maior do que este. A menininha disse, mas o nosso correio é cem milhões
de vezes maior. O pai lhe disse, você é teimosa, eu lhe digo que não existe um prédio cem
vezes maior do que este correio e você teima em dizer que é cem milhões. Você nem sabe
quanto é um milhão. A menininha disse, e por que o homem negro da tia é mais comprido do
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que a cama da tia? O pai lhe disse, não diga bobagens. Agora, deixe-me em paz para que eu
escreva o telegrama.
Depois que me despedi dele e da filha, comprei um cartão para escrever a Malka,
minha parenta. Vi à minha frente aquela delicada e solitária mulher, distante do marido e
distante do filho, que foram levados à guerra. Mas não me detive nela, por causa da má
notícia que ouvi uma hora antes, a respeito do filho único de Mitel, que tombou na guerra.
Lembro-me que no dia em que o filho único de Mitel se tornou voluntário para ir à guerra, eu
estava em sua casa, e Mitel estava triste por ter tido um filho para a guerra, e a mãe estava
orgulhosa pelo filho ir defender o seu país. Naquele dia, Mitel me contou a seguinte história.
Heshil Shor Baal Hechalutz tinha um único filho. Estavam para nomeá-lo palestrante
na Sorbonne. Certo dia Heshil Shor estava sentado com a esposa, almoçando. Olhou pela
janela e viu um mensageiro do correio se aproximando. Heshil disse à esposa, estão nos
trazendo uma boa notícia agora, agora nos informarão que nosso filho foi nomeado
palestrante. Deu um salto e foi na direção do mensageiro. Este estendeu a mão e lhe entregou
uma carta. Abriu a carta e leu que o filho havia morrido. Limpou a boca e disse, era um bom
rapaz, era um bom rapaz, que lástima ter morrido. E logo voltou à refeição. Desde então, até o
fim da sua vida, não trocou de refeição e não trocou de roupa. A mesma comida que comia no
dia em que chegou a notícia da morte do filho, passou a comer todos os dias, e todos os dias
vestia a roupa que usava naquele dia.
Sentei-me e escrevi a Mitel uma carta de pêsames. Após alguns dias Mitel me
escreveu os detalhes da morte do filho. E nas margens da carta escreveu, vou revelar a você
em segredo coisas que um fulano alemão instruído me escreveu, gênio e orgulho dos alemães,
cujo filho tombou na guerra e lhe escrevi uma mensagem de pêsames, e ele me respondeu,
devemos agradecer esta guerra ao professor alemão que introduziu um mau espírito nos
alunos para que se sentissem os herdeiros de Grécia e Roma.
109
CAPÍTULO 10
Achei um quarto. Ou foi o quarto que me achou para me torturar e aumentar meu sofrimento.
O quarto em si é bom e a mobília é boa, seus donos são tranqüilos e corretos, o quarto tem
duas janelas, mas debaixo de uma das janelas há um açougue aberto e seu cheiro impregna
tudo, e debaixo da outra janela há um estacionamento de bondes que se ordenam um atrás do
outro, com sons barulhentos que vão aumentado, até que todos os móveis da casa estremecem,
e eu, mais ainda. Depois da meia-noite a maior parte dos bondes silencia, e o suplício brota de
dentro da própria casa. O dono da casa tem um cinema alugado em Halensee; ele e a esposa
vão abrir o negócio e lá permanecem até depois da meia-noite, e quando voltam para casa,
transformam a noite em dia, comendo e bebendo, organizando e consultando a respeito dos
filmes, quais atraem o público e quais eles precisam encomendar. E como ficam acordados a
maior parte da noite e dormem durante o dia, tomo cuidado para não interromper o sono
deles, e não levanto o braço nem a perna, como se estivesse preso numa rede.
Acendo um cigarro e fico na janela olhando para fora. Metade da rua está tumultuada
por tantas mulheres paradas na fila em frente ao açougue. Diante delas estão pendurados
bezerros, porcos, lebres, aves, cujo sangue fresco ainda escorre. E cada mulher segura um
bilhete de alimentação e levanta a mão com o bilhete diante deles para lhes mostrar que são
obrigados a lhes dar da sua carne, já que seus filhos e maridos estão lutando na guerra do país,
e eles não lhes dão atenção, mas se esvaem no seu sangue que brilha muito mais do que o
sangue derramado no campo de batalha, porque no campo de batalha, o sangue se mistura
com lama e terra, e o corpo muitas vezes não é reconhecido por causa dos membros
mutilados, e muitas vezes jaz ali até apodrecer, enquanto eles, os animais do açougue, são
reconhecidos tanto na morte quanto na vida, e sua umidade continua escorrendo. E dentro do
açougue está o açougueiro, como se fosse o comandante do exército na guerra entre os seus
batalhões. Na verdade, não passam de seres vivos de quem a vida foi arrancada, mas todos os
que comem de sua carne se enchem de força e bravura para fazer a guerra.
Deixo de lado o açougueiro e a guerra e me dirijo até a outra janela, que fica em cima
do estacionamento de bondes. Vagões se apressam e correm, como todos os que correm atrás
deles. E apesar de que minhas mãos e meus pés estão como que atados, por compaixão, pois
receio mover braços e pernas para não acordar os que dormem, minha mente é livre para
pensar o que quiser. Então fico pensando, quem começou a correr antes, as pessoas ou os
110
vagões? De tanto tumulto e barulho minhas idéias ficaram confusas e não cheguei a nenhuma
conclusão.
Nisso, alguma coisa caiu dentro de casa. O dono da casa e a esposa despertaram do
sono. Portas se abrem e portas se fecham, e eu também, minhas algemas se abriram e fico
como um homem livre, e assim o dono da casa também me considera. Então ele se aproxima e
se senta perto de mim. Acende um cachimbo e me pergunta, quais são as notícias do jornal. E
ao ouvir que não leio jornal, arregala os olhos e sacode a pança redonda de tanto rir, pois
jamais havia visto nenhum comediante fazer a cara de ingênuo que fiz quando disse que não
leio jornais. E para testar até que ponto vai essa minha arte, fez a mesma pergunta no dia
seguinte. E quando descobriu que sou um pouco escritor, acrescentou uma pergunta à anterior
e perguntou, was macht die Kunst? Significa, como vai a arte.
Erich Walter Tantzman, esse é o nome do dono da casa, um dos famosos Tantzmans,
que alguns deles ficaram conhecidos como atores, locutores, críticos e roteiristas cômicos nos
jornais de humor. Seu rosto é grande, o corpo grande, a pança grande, e quanto ao coração —
o Juiz de corações é quem sabe. Antes Tantzman tinha o cabelo crespo, agora sua cabeça é
lisa e avermelhada brilhante. E como a maioria dos artistas do nosso tempo não deixa bigode
ou barba e ele é um artista, raspa barba e bigode, e como fica bem para uma pessoa
demonstrar que não se esqueceu de seu Deus em razão de seus negócios, em Rosh Hashaná e
Iom Kipur ele fecha o seu e vai para o templo. É a imagem do Sr. Tantzman, à distância.
Como ele costuma freqüentar o meu quarto, eu podia vê-lo melhor.
Então está sentado, fumando seu cachimbo e dissertando a respeito do mundo e seus
acontecimentos e a respeito dos povos que, por equívoco, se juntaram aos inimigos da
Alemanha e se tornaram parceiros da maldade humana. E ao chegar ao assunto Britânia,
desloca o cachimbo para o canto da boca e diz, nós os invejávamos, para nós, eram como
pessoas superiores, queríamos nos comparar a eles, ser como eles, agora devemos dizer,
erramos, erramos, eles são uns criminosos, criminosos de fato, são uns provocadores, toda a
sua arte é provocar atrito entre um e outro povo, entre um e outro país. Mas nós, com a retidão
do nosso coração e com a justiça das nossas ações, vamos superá-los, vamos superá-los, de
nada adiantarão as táticas deles, a verdade é mais forte do que tudo, o Imperador e o nosso
exército são mais fortes do que o exército deles, e não há dúvida de que no final, venceremos.
Assim sua fala continua fluindo até que a esposa traz o jornal para ele. Na verdade era ele
quem deveria ler o jornal antes, porque o homem costuma ficar entusiasmado com tudo o que
acontece no mundo, mas por causa da questão da comida, que consta do jornal, ele abre mão e
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permite que sua esposa leia antes, para que saiba que alimentos estão disponíveis no mercado
e corra para ir comprar, antes que cheguem outras mulheres e não deixem nada.
A Sra. Tantzman, Annelise Tantzman, é uma mulher bonita, não é alta nem baixa, o
rosto cor de âmbar, parecido com dourado. Seus lábios são finos e a boca, larga, e um tipo de
tristeza e desilusão estão estampados em seu rosto. Não tem filhos. Talvez esse seja o motivo
da sua tristeza e da sua desilusão. Quando a vi pela primeira vez, achei que era uma filha de
Israel. Quando a vi pela segunda vez, achei que não era. Quando a vi pela terceira vez,
espantei-me por ter achado que não era judia, e apesar disso, eu tinha dificuldade de afirmar
que era judia, até que o Sr. Tantzman me contou que a mãe dela é judia e o pai, alemão, e o
pai do pai era judeu, casado com uma alemã. Naquela geração as alemãs se sentiam atraídas
para se casarem com um judeu, pois o judeu é um marido fiel à esposa e um bom pai para os
filhos, e não costuma se embriagar. Agora não há nada entre o judeu e o alemão, a não ser que
um vai às vezes ao templo e o outro é suspeito de anti-semitismo.
A Sra. Tantzman trouxe o jornal para o marido, ele o abre e lê, e dá a sua opinião a
respeito de tudo o que lê, até que se sente o cheiro de café. Sua esposa chega e me diz, não se
aborreça comigo por eu ter atrasado um pouco a refeição da manhã, venha e coma conosco.
Como já chegou a hora do almoço, abro mão da refeição matinal que já havia passado da
hora, e vou almoçar.
O restaurante onde eu comia naqueles dias havia nascido no meio da guerra. Foi
assim: um homem rico da Rússia e sua esposa viajaram à Alemanha para aproveitar os banhos
medicinais, e eis que a guerra os atingiu, e não puderam voltar. Quando o dinheiro acabou e
não conseguiram arranjar mais, porque os bancos da Alemanha pararam de emprestar dinheiro
com base no crédito que o cliente possui nos bancos da Rússia, pegaram suas jóias e as
venderam, e criaram um restaurante para servir almoço, e seus conhecidos começaram a ir e
levar seus amigos. Eu, que não como carne e nada que é cozido junto com carne, me satisfaço
com ovo e uma refeição de vegetais, e pago dobrado, porque a dona da casa se ocupa em
cozinhar especialmente para mim. E por que não comia em restaurantes vegetarianos, por
medo de vermes, porque não lavam bem as verduras.
Todos os que freqüentam o restaurante, além de mim, vieram da Rússia. Há os que
vieram para estudar na Alemanha, e há os que vieram a negócios ou tratamento do corpo.
Chegou a guerra, e se afastaram de tudo o que os havia levado à Alemanha. Os que vieram
para estudar foram expulsos das escolas, os que vieram para fazer negócios ficaram com as
mãos vazias, e os que vieram para tratamento, além de não cuidarem do corpo, ainda
aumentaram as dores que já tinham. Permanecem numa terra estranha onde são tratados com
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rancor por serem russos, porque a Rússia está em guerra com a Alemanha. Sofrem suas
aflições em silêncio, esperando o fim da guerra para que possam voltar para as pessoas
próximas e queridas que deixaram na Rússia e para as suas ocupações que abandonaram ali.
Permanecem como irmãos de amargura, e contam uns aos outros tudo o que lhes era
agradável, e se aconselham uns com os outros a respeito do que farão quando voltarem às suas
casas. Eles sabem que enquanto houver guerra no mundo, é impossível sair do lugar onde
estão. De qualquer forma, aconselhamento já é alguma coisa. De tanto pensar em suas casas,
toda Rússia passa a ser, aos seus olhos, uma terra boa, onde tudo é agradável, e todos os seus
habitantes são bons e honestos, e até mesmo aqueles que, no início, rezavam pela sua derrota,
rezam agora pela sua vitória. E como os russos são russos, e a Rússia está em guerra com a
Alemanha, todos os que são russos estão sob a vigilância dos inimigos e devem se apresentar
todos os dias no departamento de polícia, exceto alguns, bem relacionados, que foram
recomendados por pessoas influentes da geração para que fossem liberados da obrigação de se
apresentarem, ou para facilitar e reduzir esse transtorno. Eu, como sou austríaco, e Áustria e
Alemanha são aliados, o decreto dos estrangeiros não recai sobre mim, e não preciso me
apresentar aos guardas, a não ser, quando troco de lugar, por esse motivo, todos os
freqüentadores do restaurante me vêem como se eu fosse bem-vindo aos alemães e,
obviamente, aos judeus alemães. Até que ponto, como no caso de um rapaz rico da Rússia,
aluno da Universidade, cujo pai lhe enviava dinheiro todos os meses. Ele tinha uma namorada
cantora que não era judia. Chegou a guerra, o dinheiro do pai acabou, e o rapaz ficou
impossibilitado de sustentar a namorada como ela estava acostumada, e começou a temer que
ela o abandonaria e se juntaria a outros, então, veio a mim e disse, você está vendo em que
problema estou metido, faça-me um favor, fale com o administrador do templo para incluir
minha amiga no coro da sinagoga no período das grandes festas. Como a maioria dos
freqüentadores é de pessoas desocupadas, prolongam a refeição e prolongam a conversa, até
que chega a hora de se apresentarem ao departamento de polícia. Quanto a mim, que meu
quarto se desobrigou de mim, opto por permanecer no restaurante, e às vezes me encosto em
um deles e o acompanho, e vou com ele até o seu quarto para lhe abrandar a solidão. Este, a
quem acompanhei, tem o quarto pior do que o meu, mas com uma vantagem especial: não tem
o cheiro de açougue nem o barulho de bondes chegando. Fico parado no quarto olhando pela
janela o pôr do sol e o nascer das estrelas. Lembro-me da minha estada na Terra de Israel,
quando eu estava bem e tranqüilo, e o silêncio da noite adoçava a minha permanência ali, e
lamento por estar no meio do tumulto. E voltar à Terra de Israel não era possível por causa da
guerra. Certa noite, quando voltei para o meu quarto e não consegui dormir por causa dos
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bondes e do cheiro de açougue, e por outros motivos que Deus me arranjou, cheguei à
conclusão que devia mudar de casa. No dia seguinte comuniquei à dona da casa. Ela ouviu e
disse, está bem, está bem, e seu rosto dizia que eu a havia ofendido e lhe causado uma grave
humilhação, e que se eu saio da casa, é como se eu desprezasse a amizade dela.
Apesar disso, nem ela nem o marido mudaram seus modos, diferente da maioria dos
senhorios que, quando o inquilino comunica que está para sair da casa deles, transformam o
seu quarto nas sete fogueiras do inferno. Quando fui procurar quarto, lamentei pela minha
ingenuidade por querer mudar de casa num tempo em que é difícil achar um quarto. Na
verdade eu sabia, por experiência, como é difícil achar um quarto, mas saber é uma coisa e
fazer é outra coisa.
Eu me alonguei em elogios aos donos da minha casa porque se depois você perceber
que estou reprovando outras senhorias, saberá que eu não resmungo ou odeio as pessoas, mas
elogio quem merece elogios e reprovo quem merece reprovações.
Depois de muito esforço aluguei um quarto numa bela casa na Rua Dahlmann, que sai
para a Kurfürstendamm. Como o inverno já havia começado, e o quarto estava aquecido com
calefação central e ficava próximo à estação do trem metropolitano, não percebi os seus
defeitos. O que eu queria naquela hora, eu queria um lugar para pernoitar, e já havia desistido
de achar um quarto que fosse completamente agradável, e quando me apareceu um quarto na
casa de uma mulher de quem disseram que era simpática com os inquilinos, aluguei-o por
vinte e oito marcos por mês. Incluía uma refeição matinal todos os dias, três fatias de pão com
purê de frutas, um copo com chá de essência de castanha torrada e moída, e também um copo
de chá à tarde. E aqui farei um elogio à dona da casa, que cumpriu tudo o que ficou
combinado, e quando eu recebia visita ela dobrava a cota de chá. Eu também não a
prejudicava com o pagamento, e a cada esforço a mais, eu lhe pagava pelo transtorno.
Meu quarto é estreito e comprido, e parece a jaula de uma fera, e se não há lá nenhuma
fera, a forma do quarto merece uma, e tem uma janela que dá para o norte, e à direita da janela
há uma escrivaninha, em frente a ela, um sofá, e entre a escrivaninha e o sofá, uma mesa
redonda para refeições, e entre a escrivaninha e a minha cama, um armário para roupas.
Muitas roupas, como vocês sabem, eu não tinha, pois quando chegaram refugiados das
cidades da fronteira, ganharam as minhas roupas e não consegui comprar outras. Então, para
que servia o armário? Uma mortalha para manuscritos dos quais eu havia desistido de me
ocupar, e os deixei no armário, além de alguns livros que eu trouxe da casa de meu pai.
Desde que me acostumei a ficar na janela, não mudei meu costume. A janela dava para
um pátio e para trinta e seis cozinhas, cujo cheiro me dizia o que estava sendo cozinhado em
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cada panela. Se meus amigos escritores de livros de comida estivessem no meu lugar,
aprenderiam, com os cheiros, combinações de alimentos, e acrescentariam alguns capítulos
aos seus livros.
Por causa desses cheiros a janela fica fechada, e como o quarto é pequeno para andar
nele, permaneço na minha cama. Minha cama fica do outro lado da porta. Por enquanto não
tenho o que contar a respeito da porta, quando chegar a hora, contarei. Em cima da minha
cama há um teto, e em cima dele, um quarto. Nesse quarto mora um soldado que perdeu uma
perna na guerra, e fizeram para ele uma perna postiça. Estão se adaptando entre si para
andarem juntos, o soldado e a perna, e aprendem juntos a teoria da perna. E se, pelo que disse
a dona da casa, essa perna é de borracha e não de madeira, como eu pensava, é de admirar
muito que a borracha, um material macio, tenha tanta força para bater no chão do jeito que
faz. No chão do quarto do soldado, que serve de teto para o meu quarto.
Deixo a minha tolerância por conta do tempo, que leva tudo à exaustão. Digo para
mim mesmo, ou o soldado vai se cansar, ou a perna vai se cansar, ou eu e meus pensamentos
vamos nos cansar. O tempo dura o tempo que precisa, e pára. Fico estendido na minha cama,
pensando em muitas coisas. Um dos pensamentos é se o calço da perna postiça é de madeira
ou de borracha. No final chego à conclusão que, de qualquer forma, não é um calço de couro,
já que o sapateiro cortou todas as línguas que o capeta lhe estendia, retalhou todo o couro que
tinha para fazer calçados, e você não acha mais couro de sapato, por isso fazem, para as
pernas postiças, calços de madeira ou de borracha.
Pela manhã entro no quarto de banho e acho a banheira cheia. Um dia ela está cheia de
roupa de baixo suja, outro dia está cheia de batatas, outro dia, de repolho branco e repolho
crespo e couve-flor e outras verduras, e antes da guerra, a banheira ficava cheia de carne que a
dona da casa trazia de uma aldeia entre Berlim e Potesdam, porque antes de se casar com o Sr.
Munkel, que trabalha no trem metropolitano, ela prestava serviço ao velho dono de uma
fazenda, que continua sendo generoso, e quando ela vai até lá, ele lhe dá coisas que não se
acham na cidade. Além dele, o administrador da fazenda, quando seu patrão não está olhando,
ele também é generoso com ela.
Eu disse à Sra. Munkel, a banheira não foi criada para isso. Ela me disse com boa
vontade e sabedoria, em tempos como esse não se notam detalhes assim. Lembrei-me de
como eu usei a banheira para dormir. Sorri e disse, mas preciso lavar o rosto e as mãos. Disse-
me, há aqui uma torneira, e se o senhor quiser, trarei uma bacia e um jarro. Todos os dias lavo
o rosto e as mãos na bacia, e uma vez por semana vou à casa de banhos. Você fica achando
que é como nos dias passados, quando eu era garoto e ia com meu avô, descanse em paz, toda
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sexta-feira à tarde, véspera do shabat, à casa de banhos, e ficava na banheira com água quente,
e eu fico achando que isso aqui não é parecido nem na imaginação. Quando me ocorrer contar
a respeito da minha infância, você verá como está enganado.
A dona da casa é alta e magra, a cabeça pequena e o cabelo ralo, e nenhum nome de
cor combina com ele, e seu rosto é cinzento como a poeira, e seus olhos são azuis como o
querosene. Apesar disso, tem alguma coisa que faz supor que na juventude ela atraía o
coração dos homens, e até mesmo agora, que terminaram os seus dias de juventude e é casada,
e mesmo que já seja uma senhora, seu coração não é insensível, e quando ela vai até o patrão
do passado, ele a recebe bem e lhe dá o que dá, e dá com generosidade, e pergunta como vai
Hedwig, e acrescenta aos presentes que já havia dado, um presente para Hedwig. A mesma
coisa faz o administrador da fazenda do patrão dela. E se o filho do patrão está na aldeia, faz o
mesmo que o pai, tanto no que se refere aos presentes, quanto a perguntar como vai Hedwig.
Hedwig é a filha de dezessete anos. No ano anterior ela deixou a escola para ajudar a
mãe, e recebe à mesa seis ou sete comerciantes que vêm todos os dias para almoçar.
Aparentemente Hedwig não precisava se esforçar, porque ainda antes de nascer, o dono da
fazenda registrou em seu nome mil marcos, e também o filho deu o que deu, além do que deu
o administrador da casa do dono da fazenda. Cada um, sem saber do outro. Hedwig podia se
aprimorar e estudar, e até se preparar para o magistério, como a mãe gostaria, pois quando a
Sra. Munkel estava grávida de Hedwig, encantou-se com a arte do professor da aldeia, mas
Hedwig estava envolvida com os assuntos da casa e em servir os hóspedes.
Onde adquiri tão profundo conhecimento, será que durante a noite um anjo me revelou
todos os seus segredos, não foi bem assim, mas quando um homem fica sentado em casa e se
desinteressa por tudo o que está à sua volta e não quer saber o que se passa, chegam até ele e
lhe trazem informações, apesar de não querer saber. Muitas das coisas a Sra. Munkel contou,
e o que ela não contou, contou-me a porteira, e com as histórias das duas, cheguei a tudo isso.
Não sou especialista em fisiognomia e não leio o pensamento das pessoas, ainda mais,
das mulheres, mas quando olho para Hedwig enquanto ela me traz um copo de chá ou uma
carta que chegou do correio e a vejo de pé, imóvel, junto à porta, e põe os olhos neste homem,
para mim é evidente que seus pensamentos, mais ou menos, são assim, estou sozinha com um
homem, e onde estão as coisas que estão escritas nos romances?
Como me alonguei a respeito de Hedwig e de sua mãe, na verdade, por uma questão
de proporção, devo acrescentar um pouco mais a respeito do meu quarto. Meu quarto tem um
bom aquecimento. E isso é de espantar, pois há uma guerra no mundo, e tudo o que é
necessário é levado para a guerra, e nem é preciso dizer que isso ser refere também a carvão,
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que certamente é necessário na guerra, mas como meu quarto é pequeno e fica entre o quarto
de banho e a cozinha, pega uma parte dos canos de aquecimento, e a outra parte, dos vizinhos,
logo, saio ganhando calor dobrado, até que ponto, a ponto de ter que abrir a janela, de tanto
calor. E se não fossem os cheiros de comida proibida e a conversa das cozinheiras, eu faria
isso.
Como não deixei de contar nada a respeito do meu quarto, contarei a respeito da
própria casa. É grande e larga, e entra pela Kurfürstendamm. E tem duas entradas, uma para
os senhores e uma para os criados. E há um velho porteiro sentado na entrada, que abre e
fecha, fuma seu cachimbo e lê jornal.
Os porteiros em Berlim querem — sejam reis — sejam escravos — fechar a porta dos
senhores na sua cara, de forma que você seja empurrado para a segunda porta. O Sr. Keisar,
porteiro do prédio, além de ter tudo o que têm os outros porteiros, é marcado por sinais de
ferimentos que lhe fizeram os franceses na guerra do ano setenta, e se não fosse por sua idade
avançada, sairia à guerra para se vingar dos franceses e os exterminar, porque os franceses
não merecem senão a morte. De qualquer forma, não fica desocupado e serve ao Imperador e
à pátria. Como assim, todo desconhecido que entra no prédio, ele o examina, investiga e
pergunta, quem você está procurando aqui neste prédio. A maioria das pessoas que me visita é
da Rússia ou da Terra de Israel, e não fala como os berlinenses, dando chance àquele patriota
de suspeitar que são inimigos da Alemanha. Houve o caso de alguém que chegou para me
visitar e ele não deixou entrar. Hedwig veio e me contou. O porteiro disse, minha intenção é
para o bem do senhor, pois estou protegendo o senhor de pessoas perigosas que parecem
espiãs. Pensei na minha cabeça, para que vou discutir com ele, uma moeda vai falar a meu
favor, e quando chegou o início do mês, dei-lhe meio marco. Ele quis demonstrar que vale o
dinheiro. Desde então, quando me via sair ou entrar, pulava na minha direção e contava as
novidades do dia, quantos inimigos a Alemanha abateu, e se eu não lhe dava dinheiro pela
notícia, olhava-me como se eu estivesse tramando junto com o inimigo, e se lhe dava
dinheiro, cantava para mim uma canção da guerra contra os russos, os desprezíveis, contra a
França e sua prostituição e contra Britânia e suas tramóias. O alemão, o perfeito alemão, de
uma só vez dominará todos, as terras deles ficarão cheias de sangue, e não deixarão nenhuma
posteridade.
A porteira, assim chamada por ser a mulher do porteiro que tirava dinheiro de mim
sem esforço, vinha me contar histórias ruins a respeito daquele malvado que desperdiça
consigo mesmo e com a sua pança tudo o que lhe dão e deixa sua mulher com fome. E quanto
aos sinais de ferimento de que ele se vangloria tanto por serem da guerra contra os franceses,
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se ela revelasse à polícia de onde eles vêm, ele apodreceria na prisão. Pensei na minha cabeça,
o que me importa se esse patriota eleva o número da população boa de Berlim, e dei à mulher
dele meio marco, e me despedi dela.
A dona da casa, que antipatizava com o porteiro porque quando ela chegava com a
sacola ele a empurrava para a entrada dos criados, e que reclamava com a porteira por estar
incomodando pessoas como eu, pois não a achava digna, achou que os marcos que eu dava a
eles seriam bons para a pátria — chegou e me comunicou que duas respeitáveis senhoras
estavam me procurando. Achei que talvez Brigitte Shimerman estivesse por acaso em Berlim
e veio ver como vou passando, mas a Sra. Munkel disse duas senhoras, então, quem é a
segunda? Em outro momento, não haveria um simples dia que pudesse conter todos os
pensamentos que eu tive num breve espaço de tempo. Toda mulher importante em quem eu
pensava tinha alguma relação com Brigitte Shimerman. E entre tantos pensamentos tive um
outro, que a minha barba não estava feita, e de que maneira iria receber senhoras importantes.
Assim fiquei atormentando minha mente até que a Sra. Munkel perguntou, o que devo dizer a
elas? Eu disse, que entrem.
Entraram duas mulheres que eu jamais havia visto. Pareciam-se com a maioria das
mulheres de Berlim, mas se comportavam como se a Criação as tivesse destinado a uma
magnitude especial. Perguntei a mim mesmo, por que a Sra. Munkel as chamou de
respeitáveis senhoras e por que motivo elas vieram até mim.
Uma delas disse, certamente o senhor ouviu dizer que os habitantes das terras
conquistadas se impressionam com a propaganda do inimigo até o ponto de nos considerarem,
quer dizer, nós, os alemães, como se tivéssemos começado a guerra, e não percebem como
somos íntegros, quer dizer, a integridade da Alemanha, e então nós, quer dizer, os fundadores
da Associação pela Alemanha nas terras conquistadas estamos produzindo uns folhetos para
demonstrar a nossa integridade. O senhor certamente vê nisso um tipo do que se costuma
chamar de material de propaganda, mas não é, já que a nossa intenção é introduzir a idéia
entre todos os habitantes das terras conquistadas que por nosso intermédio conseguiram se
livrar da carga da escassez, e precisam entender, para ser mais exata, precisam sentir, senão
por si mesmos, pela leitura do... do... do material de propaganda, como o senhor denomina
esses nossos folhetos, que graças a, quer dizer, que conseguiram por nosso intermédio chegar,
quer dizer, se elevar neste sentido, que podem ver a si mesmos sob a proteção da Alemanha,
quer dizer, que os olhos da Alemanha recaem sobre eles com bondade.
Enquanto falava, olhava para a amiga, quem sabe a amiga poderia concluir o que ela
começou. Antes que a outra começasse a falar, ela voltou a dizer, e como a Alemanha
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continua conquistando, e as terras aumentando, quer dizer, as próximas terras que ficarão sob
a sombra da Alemanha, então, então também aumenta a necessidade de produzir mais
folhetos, quer dizer, folhetos que demonstrem a nossa integridade, e para imprimir os folhetos
em quantidade considerável, precisamos também de dinheiro, por isso tomamos a
responsabilidade, quer dizer, minha amiga e eu, de falar ao coração de todo aquele que
aprecia integridade, a ajudar com uma contribuição em dinheiro para introduzir a idéia da
integridade no coração dos habitantes das terras conquistadas. Assim ia falando aquela
matrona enquanto a amiga a ajudava, às vezes, com um meneio de cabeça e às vezes, com
algum som. Dei-lhes o quanto dei, elas se despediram e se foram.
Desde então começaram a chegar todo tipo de mulheres ativistas, longas e curtas,
jovens e velhas, grávidas ou, quem sabe, gordas. Morenas e claras, finas como um chicote,
rosto peludo, nariz como um bastão. Algumas vinham sozinhas, outras em multidão, mas
todas diziam, senhor, dê um tostão. Uma enrola a língua, com uma língua comprida e mole, e
outra baba, com uma voz fina. E toda fulana expõe, senhor salvador, em prol da Alemanha em
guerra, dê, dê dinheiro, por favor. E uma dessas respeitáveis senhoras me fez sócio de uma
dessas Associações. Com isso obtém créditos espirituais a cada doação deste patriota. Mal
ganho para o meu sustento, e se retiro um tostão de um lugar, falta-me em outro lugar, e aqui
a despesa aumenta e o dinheiro, de verdade, some ao chegar às minhas mãos, e ainda por
cima, exigem de mim doação para a Alemanha em guerra. E em tempos de guerra, todo
aquele a quem se solicita e ele não contribui, dá oportunidade à calúnia, dizendo que não está
a favor da Alemanha. E se minhas mãos ficaram fracas de tantas doações, chegam as
enfermeiras da Cruz Vermelha e ajudam as minhas mãos a dar. Um dia, quando voltei do
almoço, achei a dona da casa com uma matrona daquelas associações patriotas, as duas
ocupadas em pendurar sobre a minha cama o retrato de Hindenburg, como uma condecoração
pela minha generosidade.
Nossos irmãos, filhos de Israel, que vieram da Galícia a Leipzig, chamaram a sua casa
de orações pelo nome de Hindenburg. Assim como Hindenburg vence seus inimigos, também
eles vencem seus irmãos. Não sou um homem chegado a guerras, e se fosse para vencer,
quem me dera ter vencido meus maus hábitos, e de repente colocam diante dos meus olhos a
figura de Hindenburg.
Quando eu morava em Leipzig, freqüentava a casa do Sr. Koenig. O Sr. Koenig era
um homem precioso, com um bom coração, um artesão, com mãos abençoadas, tudo o que
fazia era uma criação artística, e até mesmo as letras que o Sr. Koenig gravava, se não
agradavam ao senhor Itzchak Mitel, agradavam às gráficas. Certa vez o Sr. Koenig fez para
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mim um quadro do Muro das Lamentações, fileiras e mais fileiras de pedras, e uma mulher
parada com as mãos na cabeça. O Sr. Koenig jamais havia estado na Terrra de Israel e não viu
o Muro das Lamentações, e o que desenhou resulta da sua imaginação, mas quando se trata da
Terra de Israel, toda a imaginação não é suficiente, mesmo em relação a uma simples
realidade. Naquela noite, quando entrei no meu quarto e achei Hindenburg me olhando da
parede, tirei a figura do Muro das Lamentações que o Sr. Koenig fez, sentei-me e fiquei
observando o quadro. E me parecia que até o Santo, bendito seja, supostamente me olhou e
teve a idéia de me levar de volta a Jerusalém, Sua cidade, mas ainda não chegou a hora deste
homem, e muitas aflições e males ainda o perseguiriam.
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CAPÍTULO 11
A boa e agradável primavera começou a despontar. No meu quarto ainda não havia aparecido,
mas eu sabia que ela estava chegando porque Hedwig colocou sobre a minha mesa flores de
primavera, e flores são como um sinal. Outra coisa indicou a primavera, é que interromperam
a calefação, porque o mundo começou a se aquecer por ele mesmo. Se não fossem os cheiros
das cozinhas e as conversas das cozinheiras, eu abriria a minha janela e ficaria olhando para
fora, vendo como a primavera vai se desdobrando e descendo do céu nas alturas, e como ela
brinca na terra, aqui, num pedacinho de chão e na paisagem de um carvalho, e ali, espiando
por entre as pedras adormecidas que germinarão em relva.
Os dias de primavera causam prostração e o corpo só quer ficar esticado na cama.
Assim que me estico, logo ouço o som da perna postiça passeando pelo quarto acima da
minha cabeça. Preciso dizer que ela já aprendeu a teoria da perna. Mas sua irmã mais velha, a
outra perna, quis mostrar à postiça que ela ainda não alcançou nem a metade da teoria da
perna, e pisava com força e energia, como os batalhões do Imperador. Enquanto isso, ouviu-se
um outro som, um som batendo à porta. Nem deu tempo de dizer, entre, e entrou quem entrou.
Na verdade isso teve início desde que cheguei a essa casa, e não estou fazendo senão retornar
no calendário do tempo.
É possível que vocês se lembrem das irmãs de Hanschen. Durante todo o tempo em
que morei ali, não me deram importância, e assim que me separei delas, fiquei importante aos
seus olhos. A primeira de todas é Hildegard. Uma vez encontrou-me na rua e me disse que
todos estão espantados comigo por eu não aparecer lá. Agora que moro na Rua Dahlmann e
ela, na rua das pensões, e as duas ruas saem e entram na Kurfürstendamm, às vezes, quando
nos encontramos por acaso no mesmo bonde, nos falamos. E essa Hildegard, como vocês
sabem, tem duas irmãs. Certo dia uma delas veio me visitar. Para mim não faz diferença se
era Lotte ou Grete. Somente para ser mais exato, escrevo o seu nome. Era Grete, Grete, a
menor das moças. Como Grete foi parar na minha casa? Grete era empregada numa loja de
objetos de borracha. Um dia trouxe uma faixa de borracha para o soldado perneta, e a coisa
foi indo e ela soube que o inquilino que morava no quarto de Hanschen estava morando aqui.
Ela entrou e comunicou que havia chegado um pacote em meu nome, e como não sabia onde
eu estava, deixaram de lado o pacote até que a caixa se rompeu e tudo o que havia dentro caiu,
e agora que Grete sabe onde estou instalado, está pronta a trazer todos os pacotes que
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chegarem no meu nome. Outro pacote ainda não chegou e Grete continuou vindo. Malka,
minha parenta, sabe o que significa espiritualidade, e na espiritualidade também sabe o que
significa materialidade. Quando estive na casa dela, deu-me um fígado de ganso, e quando
voltei a Berlim, enviou-me um pacote de alimentos. Mas não pude usufruir dos presentes dela.
O fígado, dei para Hanschen, e o pacote mofou. De qualquer forma, a coisa foi indo,
Hanschen voltou para junto da mãe, e Grete veio me avisar que se chegar outro pacote, está
disposta a vir me comunicar.
Grete se sentou e me contou como descobriu onde eu estava morando, e o meu nome
nem estava escrito na porta. Mas a coisa foi assim: antes, morava um outro, e depois que seu
nome foi retirado da porta e não foi escrito nenhum outro nome, o assunto começou a
incomodá-la. Foi perguntar a Hedwig e esta lhe contou. E Grete acrescentou que quando ela
entra na casa, costuma olhar os nomes dos moradores, e mesmo que não haja nenhuma
modificação como, aqui mora Miller, em frente, Schmid, no meio, Meir, em cima deles,
Cohen e Levi, é um prazer para ela ler cada nome. E às vezes, de tanto ficar olhando, esquece
o motivo que a trouxe e volta sem cumprir a tarefa. E por isso todos ralham com ela,
principalmente a dona da loja, que a ameaça de mandá-la embora, mas Grete sabe que ela não
ralha por ser do jeito que é, mas sim, porque ela se interessou por um oficial, e quando a
guerra passar, ele não precisará mais dela e de seus pacotes e vai esquecê-la, e então ela
poderá fazer um buquê com todos os bilhetes encantadores que ele lhe enviava nos pacotes,
porque os oficiais devem se casar com mulheres que estejam à altura de sua posição, e não
com uma mulher que todos sabem, com clareza, que se trata de uma mulher judia. Eu disse a
Grete, será que agora você também se esqueceu da sua tarefa e não trouxe a faixa, pois se for
assim, o perneta ficará em apuros por sua causa. Grete empertigou o nariz até que este saltou
como um grão e ficou espantada por eu saber de todos os seus segredos. Repeti e disse, corra,
Grete, e cumpra a sua tarefa. Grete meteu o nariz dentro das bochechas e abriu a fenda que lhe
servia de boca, e se ouviu um tipo de súplica, não me expulse daqui.
E como foi acontecer de Lotte chegar até mim? Lotte é ativista comunitária numa
daquelas instituições patriotas de que me constituí como sócio, e podemos supor que ela viu
nas anotações doações que fiz em nome da pátria, e veio me agradecer — e não foi isso. Mas
ocorreu que certa vez fui ver meu amigo e conhecido Peter Temper no jardim zoológico, e
entrei por um momento no setor das aves, junto aos pavões. Lembrei-me do que ouvi na
minha infância, que o pavão tem lindas asas e pés feios, quando vê seus pés, chora, e quando
vê suas asas, ri. Quando um homem se lembra do que ouviu na infância, reflete a respeito,
mesmo sabendo que não há um pingo de verdade naquilo que ouviu. Parei para observar o
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pavão e ver se é verdade que ele verte lágrimas por causa dos pés feios e ri pelas lindas asas.
Enquanto observo o pavão, e o pavão fica vagando com o olhar em muitos lugares ao mesmo
tempo, nem percebi que Lotte estava perto de mim. Lotte enfiou a cabeça no pescoço e me
disse, é tão gracioso com essas penas. Nisso, Lotte me fez de acompanhante, e fomos juntos
visitar outros animais, e quando saímos do jardim zoológico entramos numa cafeteria e
tomamos aquele café que era chamado de café nos tempos da guerra, e falamos aquelas coisas
que costumavam ser ditas nos tempos da guerra. E talvez falamos também outras coisas.
Aquele que dita a cada pessoa o que deve falar, certamente me dirá, no dia do Juízo Final,
toda conversa que tive com ela. Alguns dias depois, no final da tarde, Lotte veio ver como é
meu quarto.
Lotte tem altura e peso, e veste uma bela pele, com um chapéu cilíndrico na cabeça e,
na mão direita, um chicote, como aquelas senhoras ricas que montam cavalos, apesar de que
ela jamais havia montado um, mas a moda das mulheres naquele inverno era assim. Aqui acho
um espaço para dizer que não tenho bem certeza de que ela era gorda, mas como seu corpo
era cheio, pareceu-me de início que era gorda. Também em relação a outros assuntos devo
dizer que não fui muito exato. Quando chegou, pendurou a pele na janela de forma a não
vermos as trinta e seis cozinhas e também não sermos vistos, depois colocou o chapéu em
cima da cama, depois, em cima da mesa, depois foi até o espelho e ajeitou o cabelo castanho e
riu para o espelho, depois se sentou junto à escrivaninha, e ao se sentar, afundou a cabeça
dentro do pescoço e me observou, e sua voz começou a surgir com suavidade enquanto dizia,
então, é aqui que você mora, nesta pequena caixa. Em outra ocasião veio e se sentou na
cadeira, pôs os pés nos canos da calefação central, e riu quando seu vestido caiu sobre ela.
Numa outra vez veio e se sentou junto à minha mesa, pegou o tinteiro e perguntou, onde está
a caneta. E quando eu disse que a minha caneta tem carga de tinta e que fica sempre no meu
bolso, sacudiu a cabeça com desprezo e disse, não dou importância a esse tipo de caneta que
se abastece a si mesma, pois parece um lápis, e o lápis parece um solteirão seco. E enquanto
estava sentada, examinava tudo o que havia em cima da mesa, abriu a gaveta, e quando viu a
escrita hebraica perguntou se é esperanto, e por ela mesma disse, esperanto e sânscrito têm a
mesma escrita. Lotte é uma apalpadora. Tudo o que vê no meu quarto ela apalpa com as
mãos. Fiquei pensando, se ela encontrasse Wilhelm Kaiser no meu quarto, poderia até ficar
enrolando o bigode dele. Mais uma coisa há nela, tudo o que vê ou conta a respeito, provoca-
lhe riso. Quando pôs os pés nos canos da calefação e riu, é possível que esse riso tenha tido
um motivo, pode ser que se lembrou daquela criatura que chora por causa dos seus pés feios,
o que não é o caso, pois seus pés são bonitos. Mas qual é o motivo para rir de Isolda Miller,
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que se casou com Friedrich Wilhelm Schmid, e qual é o motivo para rir de Friedrich Wilhelm
Schmid, que se casou com Isolda Miller, e por que riu dos dois que se casaram, e como o
dono da casa é obrigado a dizer alguma coisa, disse-lhe, Hildegard também ri de casamento?
Lotte riu e disse, as idéias de Hildegard são diferentes das de toda mulher, e também no que
se refere a casamento. E como o dono da casa é obrigado a dizer alguma coisa, perguntei a
Lotte, de onde Hildegard tirou idéias diferentes. Lotte riu e disse, temos uma tia, a tia
Clothilde, se você a visse estaria enganado ao pensar que é uma mulher judia, e na verdade ela
é católica como o Papa de Roma, pois ela é da Espanha, que é um país católico, e Hildegard
foi educada por ela, porque certa vez papai e mamãe se desentenderam, papai ficou irritado e
disse que Hildegard é uma produção fora do casamento, e Clothilde, nossa tia, ouviu e levou
Hildegard com ela, e Hildegard ficou com Clothilde, nossa tia, até que papai morreu, e foi
dela que recebeu suas idéias esquisitas a respeito de casamento.
E já que Lotte mencionou religião, país, fisiognomia e casamento, também eu comecei
a falar a respeito. Notei que a hora não era adequada para isso. Deixei de lado esses grandes
assuntos, cuja hora pode ser em qualquer lugar e em qualquer tempo, menos naquele
momento e no meu quarto, e lhe perguntei, quem é essa tia, e o que faz essa tia além de
parecer uma mulher judia. Lotte tirou a cabeça do pescoço, observou-me e disse, trata-se de
Clothilde Trotzmiller, dona do haras de Tiergarten; ela é uma montadora entre as mais
famosas montadoras de Berlim. Conta-se a respeito dela que na juventude montava qualquer
cavalo, como o senhor satanás monta o bode com chifres. E ainda agora, que já é mais velha,
pode, se quiser, ultrapassar o cavalo de qualquer oficial prussiano. No início ela era professora
no haras, onde todas as mulheres nobres e aristocratas aprendiam equitação, e agora todo o
haras, incluindo os cavalos, são dela. Como foi que Clothilde, nossa tia, conseguiu isso tudo?
Por intermédio de seu marido Heinz, nosso tio, irmão de nosso pai. Na verdade, Heinz não lhe
deu nenhum centavo, e quando ela se casou com ele, pagou do próprio bolso todas as
despesas do casamento, o padre, os serviços da igreja, as carruagens e os gastos com a
refeição festiva, já que Heinz, nosso tio, é um homem simples e não dá importância a
dinheiro. Toda arte do nosso tio era se curvar e reverenciar as mulheres nobres e aristocratas
que vinham aprender equitação. Certa vez nossa tia tirou dois ou três dias de férias para
passear com uma das amigas nas montanhas de Tiringa. No caminho, perto de Iznar, as duas
se desentenderam. Nossa tia deixou a amiga e voltou para casa. Entrou em silêncio e subiu
todos os degraus em silêncio para se alegrar com a felicidade do marido ao vê-la de repente,
pois havia um amor muito grande entre nossa tia e nosso tio. Muitas vezes, de tanto amor, ela
o pegava nos braços e o colocava sobre o cavalo e bradava Eia! enquanto golpeava com as
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mãos, como uma menina que coloca sua boneca num cavalo de pau. Quando entrou na casa,
achou-o esticado na cama com uma mulher deitada ao seu lado, e as suas roupas jogadas no
chão, e os dois, como lhe dizer, os dois estavam nus como Adão e Eva no paraíso. Ela
recolheu as roupas e as jogou para fora. O apartamento ficava no andar de cima. Depois
trancou o armário de roupas, e em seguida fez uma reverência para a mulher que estava na
cama e disse, como vai, respeitável baronesa, aproveite bem os seus dias com o seu amado.
Despediu-se e se foi. O guarda que achou as roupas pegou-as e as levou para o departamento
de polícia. Investigaram e descobriram que eram roupas da senhora fulana, esposa de um
Barão elevado, dizem que era íntimo do Imperador. Foram e comunicaram ao Barão. O que
este podia fazer, sair em duelo contra um cavalariço, não era honroso para um Barão, expulsar
a mulher, não era conveniente, porque ela era herdeira de duas possessões, do pai e da mãe, e
tinha dois filhos encantadores com ela. Recebeu a baronesa de volta e fez um acordo de paz
com nossa tia e nosso tio, e deu a ela um suporte de ações que correspondia à maior parte do
fundo de ações do haras. Nossa tia começou a adquirir as ações restantes até que se tornou
dona de todos os cavalos, professores, instrutores e prestadores de serviço do haras onde
trabalhava como professora. E foi ela quem influenciou Hildegard nas suas idéias esquisitas a
respeito de tudo, a respeito de roupas e de casamento, a respeito de tudo, tudo mesmo.
Lotte permanece sentada à minha frente, baixa a cabeça dentro do pescoço e fica me
observando, e sua voz vai se tornando agradável. Lotte pergunta, por que será que fico lhe
contando coisas a respeito de nossa tia? E ri. Não é de Clothilde, sua tia, que está rindo,
porque esta não gosta de riso, pois o riso gera uma mente fraca e uma mente fraca gera más
ações, mas ri de si mesma, que fica sentada contando romances. E como ela reconhece em
mim um tipo de criatura em cujos ouvidos é possível descarregar mil vagões de histórias e
ainda sobra lugar para mais carga, vai pendurando nos meus ouvidos relatos e mais relatos a
respeito de seu pai e de sua mãe, dos dois juntos, e daí ela passa a contar a respeito daqueles
que causaram a morte de seu pai, que foi forçado ao duelo e foi morto, e quando morreu, o
coração de sua mãe se partiu, até que chegou a guerra e Hanschen foi convocado e
desapareceu, e o coração da mãe ficou partido em dobro. E apesar de que Hanschen já voltou,
o coração ainda não retornou para nós.
Por causa da contenção gerada pela guerra, ninguém dispõe de doces para receber uma
jovem que vem visitar, principalmente uma pessoa como eu, que não cultiva relações de
amizade com vendedoras de lojas. Permaneci sentado, pensando o que servir a Lotte, servirei
um copo de chá. Toquei a campainha para pedir que nos trouxessem chá. Antes que o toque
da campainha chegasse ao final, logo apareceu Hedwig. Não diga, isso sim, é rapidez, porque
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ela estava parada atrás da porta esperando que eu a chamasse. E quando chegou, instalou-se
na porta. Foi a respeito desse fato que comentei antes, quando chegar a hora, contarei a
história da porta.
Fico sentado com Lotte tomando chá com purê de groselha, da remessa que a dona da
casa recebeu do ex-patrão ou do administrador dele. E fico espantado comigo mesmo, pois no
passado, quando eu morava na casa de Lotte, tomava chá sozinho, e agora, incluo Lotte.
Permanecemos sentados juntos, conversando todo tipo de conversa. Tomara que Aquele que
dita a cada pessoa o que deve falar, não me faça lembrar, no dia do Juízo Final, cada conversa
que travei com aquela estranha.
E aqui acho espaço para mencionar que Grete não vinha quando Lotte estava comigo,
e que Lotte não vinha quando Grete estava comigo. Aparentemente é de admirar, mas de fato,
não é de admirar, porque se uma chega enquanto a irmã está comigo, Hedwig diz, ele saiu
ainda agora. — Para onde foi? — Isso ele não me disse, mas suponho que foi à estação de
trem, pois o vi se dirigindo à direita, e se você se apressar, é possível que o encontre. Se outra
chega enquanto estou sozinho no quarto, Hedwig a acompanha, bate à minha porta, e quando
abro, Hedwig vai embora. Agora mencionarei uma coisa impressionante. Grete não sabia que
a irmã me visita, mas como, se na pele de Lotte e também no seu cabelo castanho há alguma
coisa que exala cheiro mesmo depois que ela deixa o quarto, e Grete deveria sentir que a irmã
esteve comigo. Ou talvez não seja de admirar, uma vez que o nariz de Grete é pequeno e não
capta o cheiro.
Quando Hedwig percebeu que sou amável com as criaturas, começou a se exibir para
mim em excesso. E quando eu dizia, estou ocupado, ela se encolhia toda, instalava-se à porta
e ficava parada, olhando-me com olhos úmidos. Quero repreendê-la. Antes que eu comece a
repreendê-la, chega Grete ou então Lotte. Se é Grete, coisas que não têm nenhuma sabedoria
nem nada, são ditas, e se é Lotte, ela tira o chapéu cilíndrico da cabeça e a pele de cima dela,
coloca o chicote sobre a mesa, vem e se senta, e apalpa com as mãos tudo o que vê, e ri de
tudo o que vê. Portanto, é conveniente contar uma coisa espantosa que contém dois espantos:
quando Lotte viu a figura do Muro das Lamentações que estava pendurada na parede sobre a
escrivaninha, não esticou as mãos para mexer nela, e não forjou um riso na boca, mas
perguntou, quem é essa mulher de pé, chorando? Respondi e disse, é uma mãe que lamenta
pela destruição do nosso Templo. E quando me lembrei do nosso Templo destruído, encurtei a
conversa.
Lotte disse, você está triste? Disse-lhe, se estou triste? Desde o dia da criação do
mundo até agora, jamais houve alguém tão alegre quanto eu. Lotte disse, você não parece nem
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um pouco alegre. Disse-lhe, quem sabe perceber, percebe. Lotte disse, entretanto... Intrometi-
me dentro da fala dela e disse, com quem você aprendeu essa palavra? Essa palavra é usada
por pessoas arrependidas, quando dizem alguma coisa, logo voltam atrás e dizem entretanto.
Uma moça decente, que não vive tagarelando em vão e é responsável por tudo o que
pronuncia, pesa as palavras antes e não precisa se arrepender e dizer entretanto. Você quer
dizer alguma coisa? Certamente quer dizer que essa palavra se acha até nos dicionários. Uma
observação como esta não mereceria resposta, mas como tenho consideração por você ser
irmã de Hanschen, que pegou a minha carga e levou as minhas malas até a pensão, direi uma
coisa, você já viu alguma vez alguém que usa todas as palavras que estão escritas nos
dicionários? E de um modo geral, direi a você, o que temos nós a ver com os dicionários, que
ficam apitando todo tipo de palavras que não se ajustam a nenhum tema, mas toda a relação
que existe entre elas é que começam com a mesma letra, como aqueles poemas cuja
importância reside nas suas rimas. Olhe para mim, Lotte, e veja se eu digo entretanto ou se
falo com rimas. Agora deixemos isso tudo de lado e esperemos que daqui em diante você não
diga entretanto, mas eu não a proíbo, isso é só um conselho. Você quer ir embora? Por que a
pressa?
Lotte não tinha a intenção de ir embora, mas a minha pergunta a levou a isso.
Levantou-se e vestiu a pele. E eu não a ajudei a vestir a pele, pois se ajudasse, pareceria que
quero me livrar dela mais depressa. Depois de vestir a pele, foi até o espelho e ajeitou o
cabelo, e eu não disse a ela, como esse seu cabelo castanho é bonito, pois se eu elogiasse o
seu cabelo, poderia se enganar pensando que a censurei antes, e que agora minha intenção é
me reconciliar com ela. Depois de ajeitar o cabelo, colocou o chapéu cilíndrico, e eu não disse
a ela, você fica mais bonita sem o chapéu na cabeça, da mesma forma que nada comentei
antes a respeito do cabelo. Depois de colocar o chapéu na cabeça, pegou o chicote. Era hora
de dizer alguma coisa, uma vez que eu estava em silêncio durante muito tempo. Disse-lhe,
você também tem um chicote? Se eu lhe contasse a história de um chicote, seus ossos iriam
estremecer dentro do seu corpo. Já ouviu alguma vez a história de um chicote que bate
sozinho? Não ouviu? Então vou lhe contar. E não contei a Lotte a história do chicote que bate
sozinho porque não queria estender a conversa com ela. Mas vou contar para mim mesmo.
Nas antigas comunidades da Alemanha era costume, entre a oração da tarde e a da
noite, que todo aquele que via em si mesmo um pingo de pecado, ia e se estendia no chão da
sinagoga, e o servente vinha com uma correia e açoitava com ela trinta e nove chicotadas
enquanto o torturado dizia, Ele é misericordioso etc, como costumamos dizer na véspera de
Iom Kipur. Havia um grupo de zombadores que debochavam dos costumes dos judeus e
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principalmente desse costume. Combinaram entre si de se divertirem com o servente da
sinagoga. O que fizeram, foram todos juntos e se dispuseram para a tortura. O servente, que
não sabia que eles haviam combinado de se divertirem, pegou a correia e se aproximou deles.
Enquanto estavam com o rosto para baixo e as costas para cima, desceu um chicote de fogo
com látegos de fogo ardente e começou a açoitá-los. E se não fosse a misericórdia do Santo,
bendito seja, não restaria deles nenhum sobrevivente ou refugiado.
Depois de levar Lotte até a sua casa, despedi-me dela e parti. Encontrou-me um
homem que conheci na casa do Sr. Lichtenstein, depois de tê-lo conhecido antes no templo
dos iluministas na noite de Tishá Beav, no dia em que a guerra começou. Perguntei-lhe, o que
há de novo com o Sr. Lichtenstein? Respondeu-me fora do assunto e disse, quando Balaão
quis derrotar Israel, introduziu as moabitas.
Talvez vocês se lembrem da história do exilado, quando R. Gueshom saiu da sala de
orações dos chassídicos, que coisas lhe foram ditas e como ele ficou abalado com essas
coisas. E isso porque R. Guershom saiu de uma casa de orações, um lugar sagrado. Agora
vocês vêem com seus próprios olhos, um homem vai pela rua e encontra um dos
freqüentadores do templo dos iluministas, quer dizer, desses a quem costumamos chamar de
judeus assimilados, e que menciona a passagem de Balaque com as filhas de Moabe — como
sua alma ficou espantada.
Aqui terminaram todos os assuntos ligados a Lotte e não é preciso dizer, a Grete, que
não teve assunto nenhum. Quanto a Hildegard, voltei a vê-la. Às vezes na venda, a oeste da
cidade, onde eu passava sempre que precisava ir à comissão do exército, e às vezes eu a
encontrava no caminho do departamento de alimentação para casa enquanto ela dizia, bilhetes
para encher uma sacola, e alimentos, para meio dente. E uma vez a vi andando com uma
mulher velha. Aquela mulher era a tia Clothilde, a tia católica, dona do haras, a respeito de
quem Lotte havia dito que parece uma mulher judia. Não sei por que motivo Hildegard me
parou e por que motivo me apresentou Clothilde.
Clothilde usava um vestido preto com uma gola branca bordada. O vestido era de
tecido fino, com uma pelerine leve e esvoaçante sobre os ombros, presa por um broche de
marfim, uma cruz de prata pendurada sobre o peito, um chapéu preto na cabeça, com a cúpula
franzida, e um tipo de agulha de cobre na forma de espada espetada na cúpula, e sob a cúpula,
uma asa branca de pombo, e na mão de Clothilde, um guarda-sol de seda verde com cabo
grosso, e em cada dedo, um anel, e o rosto, um tipo de rosto como o das mulheres judias, e
quando encarava alguém, uma centelha de crueldade lhe saía dos olhos azuis cobertos por
cílios negros, longos e brilhantes.
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Clothilde disse a Hildegard, quem é este senhor, tão importante a ponto de você
interromper nosso caminho por causa dele. Hildegard disse, um inquilino que morava em
nossa casa antes da volta de Hanschen. Clothilde disse, e quem é aquele senhor judeu que sua
mãe sonhou que traria Hans de volta. Hildegard disse, este é o senhor com quem mamãe
sonhou. Clothilde disse, diga-me, meu caro, como concretizou um sonho como esse? Disse-
lhe, uma coisa assim não se conta com pressa. Clothilde disse, então venha à minha casa
quando quiser, e me conte. Se você abrir o livro dos telefones, achará o meu nome e onde
fico. Fora isso, eis aqui meu endereço. Tirou um cartão listado e me ofereceu. Peguei o cartão,
dobrei-o e o coloquei no bolso. Clothilde disse, estou acostumada, quando ofereço meu
cartão, que não o amassem. Disse-lhe, mas foi com uma intenção especial que amassei o seu
cartão, quando eu vir um cartão amassado no meu bolso perguntarei a mim mesmo, por que
está amassado, porque preciso me apressar e aparecer na casa de quem me honrou com este
cartão. Clothilde disse, estou acostumada, quando ofereço meu cartão, que olhem e leiam o
que está escrito. Disse-lhe, isso eu pretendo fazer em minha casa, numa leitura prazerosa.
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CAPÍTULO 12
Certo dia eu estava na rua esperando o bonde. Chegou um e estava cheio, veio o segundo e
estava cheio. Não consegui me empurrar para dentro do terceiro antes que outros pegassem a
minha frente. Acendi um cigarro e fiquei observando os veículos que correm tanto que não dá
para perceber se correm para cá ou para lá. Da mesma forma, os homens e as mulheres no
ponto de espera, cuja mente voa em todas as direções.
Para passar o tempo peguei um pensamento para refletir. E vocês sabem como são os
pensamentos. Um pensamento gera outro pensamento, e o outro gera outro, e eles crescem e
se multiplicam enquanto nascem, e não se sabe quem gerou quem. Vou tentar colocá-los em
ordem, se não pela ordem que aparecem, pelo menos pela ordem dos fatos. E não começarei
do início, porque não há início para o início, mas começarei nos dias da guerra que me
atingiram em Berlim.
Eu morava num quarto apertado que não via a luz do sol. Quis mudar de casa e não
consegui. Chegou uma carta da viúva do Dr. Levi pedindo o meu conselho a respeito dos
livros que ele lhe deixou e ela não sabia o que fazer com eles. Não esperei muito tempo e
viajei até lá. No caminho, em Leipzig, encontrei Brigitte Shimerman, que me convidou para
almoçar com ela. Enquanto não chegava a hora da refeição, fui visitar o Dr. Mitel. Quando
estava indo para encontrar Brigitte Shimerman, não sabia em que lugar ela estava. Fui até a
viúva de Levi e me ocupei com ela tantas e tantas vezes e não resolvi nada. Ao voltar, achei o
lugar de Brigitte Shimerman e fui até lá. Depois voltei a Berlim com um grupo de soldados, e
entre eles havia um rapaz que era filho da dona da pensão, que todos achavam que estava
perdido, e por fim, voltou comigo para a casa da mãe. Fui expulso por ele do meu quarto e
comecei a perambular de lugar em lugar e de quarto em quarto. Aconteceram-me muitas
coisas, entre as quais, casos e mulheres, e outras que, Aquele que conhece todos os mistérios,
somente ele sabe o motivo por que me aconteceram. Acho que ordenei bem os fatos que
apareceram em meus pensamentos que, mesmo que não se esqueçam de nada, costumam
aparecer misturados.
Como eu já disse, eram os dias do início da primavera. A terra começou a criar grama
e o dia ia ficando mais longo. E já alimentam as feras no jardim zoológico às cinco horas e
não, às quatro horas. Também as mulheres nobres que montam cavalos enquanto abanam o
chicote na mão fazem com o chicote um som de primavera. Somente eu arrastava comigo o
130
inverno. Minhas roupas são roupas de inverno e meu quarto não vê a cara do sol. E quando
abro a janela, trinta e seis cozinhas trazem seu cheiro na minha direção. Deito na minha cama
e o teto em cima da minha cabeça ruge com a aflição do perneta, entro pela manhã no quarto
de banho, a banheira está cheia de roupa suja, procuro fixar minha atenção num livro, chega
uma visita, saio à rua, encontra-me o porteiro e enche os meus ouvidos com relatos das
vitórias da Alemanha, volto para casa, vem a mulher do porteiro com as histórias das brigas
do marido, entro no meu quarto, chega Hedwig e se instala à porta e fica contando que a
jovem grandalhona, quer dizer, Lotte, e a jovem delgada, quer dizer, Grete, vieram saber
como vou passando. Antes que ela acabe de falar, a dona da casa me comunica que chegaram
duas senhoras, daquelas senhoras patriotas que pedem dinheiro.
Joguei o cigarro fora, desisti do bonde e fui a pé. E enquanto andava cheguei à
conclusão que devo mudar de residência, e que preciso mudar minha residência para um lugar
onde não há conhecidos meus, e me afastar de todas as mulheres que criaram o hábito de me
visitar. E se achar um bom quarto, é possível que volte ao meu trabalho. Se não é um trabalho
de fato, é alguma coisa parecida com um trabalho, como examinar meus manuscritos, o que
merece ser mantido, manterei, e o que merece seu anulado, anularei, porque todo o excesso é
supérfluo, e tudo o que merece ser anulado e não se anula, acaba anulando seu criador.
E já que decidi mudar de residência, fiquei com medo que talvez minhas pernas me
levassem aos mesmos quartos em que já estive uma ou duas vezes. Visualizei à minha frente
todos os lugares em que eu ainda não havia morado nem procurado quarto, e que fossem bons
para um homem como eu, e que não houvesse nenhum risco de encontrar ali meus conhecidos
e minhas conhecidas. E como eu já havia morado em Charlottenburg, em Halensee, em
Wilmersdorf, em Tiergarten, além de Schmergendorf e outros lugares onde eu já procurei
quarto, tive a idéia de alugar um quarto em Friedenau.
Muitas vezes já pensei em morar em Friedenau por causa de meu conhecido Peter
Temper que mora lá; em várias ocasiões eu o acompanho até a sua casa e nós nos estendemos
na conversa, enquanto isso, o último trem sai e não posso voltar à minha casa, então sou
obrigado a pernoitar na casa dele. E pernoitar na casa dele é um pouco pesado para mim,
porque ele não tem o que me oferecer para dormir senão uma pele de tigre, a coisa mais
magnífica de seu quarto, e é preciso tirá-la da parede que fica em cima da cama dele, e soltar
todo tipo de enfeites que estão pendurados nela.
Cheguei a Friedenau e achei uma casa boa num belo lugar, onde havia uma anotação,
aqui tem um quarto para alugar. Entrei no prédio e bati à porta. Saiu uma mulher pequena,
com o rosto pequeno e os dentes pequenos, a testa estreita e o cabelo liso e dividido para um
131
lado e para o outro com um risco no meio, e seus movimentos são rápidos e apressados, sua
fala é ligeira e as palavras, arrastadas no final. Abriu à minha frente um bom quarto, melhor
do que todos os quartos em que eu havia morado até então, seus móveis são novos e bonitos,
todos feitos com bom gosto e com eficiência, um tapete delicado cobre o chão, e quadros de
madeira pendurados nas paredes, desenhos inspirados na mitologia alemã e na Canção dos
Nibelungos. Tomei coragem e perguntei, quanto é o aluguel. A dona da casa respondeu e
disse, trinta e cinco marcos por mês e cinco marcos pela refeição da manhã. Disse-lhe, se o
quarto está desocupado, estou pronto para entrar ainda hoje. Ela enrolou a língua nos dentes e
disse, desocupado. Desde o dia em que saiu o último inquilino e morreu a morte dos heróis, o
quarto está desocupado. — Quem é? Ela voltou a enrolar a língua nos dentes e disse, meu
filho. Dei-lhe o dinheiro antecipado e disse, vou pegar minhas coisas.
Voltei a Charlottenburg e peguei algumas coisas com a Sra. Munkel, e expliquei que
por tais e tais motivos preciso mudar de moradia para Friedenau, e fico admirado com este
homem, com que facilidade sua boca inventa coisas. Paguei à Sra. Munkel todas as despesas,
de acordo com a conta que me apresentou, e acrescentei o quanto acrescentei, contanto que
não se irritasse comigo por eu sair no meio do mês. A Sra. Munkel expressou o seu pesar por
seu melhor inquilino estar deixando a casa. É possível que lamentasse de verdade. Por um
lado, certamente está feliz: com a minha saída, aquele porteiro é atingido na sua receita.
Apesar disso ela lamentou por eu não ter visto o que aconteceu na casa, na janela em frente à
minha. Ali mora fulana, esposa de fulano. O marido conseguiu alguns dias de férias da guerra
e não comunicou à esposa. Entrou de repente em casa e achou o que achou. É uma verdadeira
vergonha contar a um homem decente o que ele achou. Achou um homem. E onde achou,
exatamente no lugar que nenhum marido quer achar outro homem. E com quem o achou, isso
é fácil de adivinhar. Na verdade esse é um fato que acontece todos os dias, em todas as
épocas, em todas as horas e em todos os lugares, então, o que há para lamentar por eu não
estar presente na hora em que ocorreu, é que, a Sra. Munkel disse, aquela senhora
empertigava o belo nariz, a ponto de não olhar para mulheres como nós e retribuir o
cumprimento, por fim, o marido atacou o nariz dela com a mão e o transformou numa pêra
amassada. E o resto do corpo também não escapou.
Aqui é o lugar para fazer um elogio ao Sr. Munkel: se não fosse ele, que levou minha
bagagem ao trem metropolitano e de lá ao meu quarto, eu não teria achado um carregador,
pois todos os carregadores foram levados à guerra, e se houvesse carregador, não haveria
suficiente para todos.
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Ao escurecer eu já estava no meu quarto em Friedenau, um belo e amplo quarto, num
belo lugar, com ar agradável, entre belos móveis. Desde o dia em que saí para fora de Israel,
não morei num quarto como esse. Acendi o candelabro e me sentei diante da escrivaninha. A
cadeira é confortável e tudo é muito bonito, e até Hagen, dos Nibelungos, que me observava
da parede em frente, era-me simpático com sua crueldade inocente. E quando me sentei com
tranqüilidade e um ar puro chegou lá de fora, lembrei-me de noites do passado, noites de
silêncio e segurança, noites de trabalho, e quase cheguei a examinar meus manuscritos, os
quais não examinava desde o dia em que a guerra nos atingiu. Enquanto o ar puro sopra lá de
fora, um cheiro de fezes de cachorro vem de dentro da casa. Eu ainda não sabia que a dona da
casa criava filhotes de cachorro para vender. Por causa desse cheiro desviei minha atenção
dos meus manuscritos e peguei um livro de Voltaire que achei no quarto, e li a respeito do que
há de melhor no mundo. Não é esse o nome que o autor deu ao livro, mas eu, de acordo com o
tema, o chamei assim.
À noite fui despertado por um grito terrível, seguido de insultos e xingamentos. E não
só nesta noite, mas em todas as outras, após a meia-noite, meu sono era devorado por gritos,
berros e brigas que começavam com insultos e xingamentos e acabavam com bofetadas. Não
se passaram muitas noites até que fiquei sabendo o que isso significava. O dono da casa era
violinista e tocava numa cafeteria, e quando voltava para casa e não trazia todo o pagamento,
sua mulher provocava uma briga que acabava em espancamento. Muitas vezes pulei da minha
cama e tirei das mãos deles objetos que poderiam ser usados para matar. Certa noite não ouvi
suas vozes e temi que um havia degolado o outro.
Uma noite houve uma grande briga, como já não acontecia havia muitas noites. Pulei
da minha cama e fui até eles. Qual era o motivo para uma briga tão grande. Tinham um único
filho, arquiteto de decoração de interiores, apareceu-lhe a oportunidade de adquirir móveis
caros e luxuosos e enfeitou seu quarto com eles. Antes que acabasse de pagar, tombou na
guerra. Veio o marceneiro confiscar os móveis, a mulher queria convencer o marido a jurar
diante do juiz que viu o filho pagar ao marceneiro, e o marido não quis jurar, pois todos os
que juram em falso acabam na prisão. Ela disse, quem terá algum prejuízo se um trapo puído
como você apodrecer na prisão. Ele disse, o que você ganha se eu morrer, ninguém mais vai
pôr os olhos numa prostituta velha como você. Uma palavra puxa outra e uma fala arrasta
outra até que ambos levantaram as mãos e começaram a se bater, e se não fosse por mim, que
os impedi, teriam matado um ao outro.
Peguei o que aconteceu depois, antes do que aconteceu primeiro. Aquela noite era a
minha primeira noite no meu quarto, estava eu sentado, lendo o livro de Voltaire sobre o que
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há de melhor no mundo. A leitura trouxe consigo o sono, o sono trouxe o sonho. No sonho eu
via a mim mesmo passeando num vale próximo a Baal Beck e vi um corvo velho parado no
alto de uma árvore, que tirava a cara de dentro das asas e gritava orv orv orv, O, ERRE, VE. E
apesar de que aquele corvo velho era parecido com Voltaire, eu sabia que não era Voltaire.
Ele abriu o bico e disse, você ouviu como eu grito, orv orv orv, e você achou que eu grito orf
orf orf, então direi a você, orv orv orv, O, ERRE, VE, e por causa desses gritos, Adão me deu o
nome de orev, corvo. Resulta que fazem muito bem aqueles que pronunciam o VE átono no
final da palavra como VE tônico. A propósito, por que não o vemos no lago Tiberíades nem
no rio Jordão e em nenhuma água das águas da Terra de Israel, será que você se acha tão puro
a ponto de não precisar das águas da Terra de Israel.
Pela manhã, ao entrar no quarto de banho, achei um grupo de filhotes de cachorro
latindo dentro da banheira. Eu disse à dona da casa, esse não é lugar para colocar cachorros. A
dona da casa disse, que mal você viu nos cachorros? Na minha opinião, eles são melhores do
que a maioria das pessoas, e não é preciso dizer que são melhores do que o marceneiro, que é
pior do que um inglês, porque vem confiscar os móveis de uma mulher cujo filho único
tombou na guerra.
Não digo que os cachorros são melhores do que a maioria das pessoas, de qualquer
forma, aqueles apressadinhos que estavam na banheira e esticavam a língua para lamber eram
criaturas bonitas, mas como eu queria me lavar, desviei meus olhos da sua beleza e
acrescentei à dona da casa cinco marcos por mês ao aluguel do quarto para que ela liberasse a
banheira. Pegou e os transferiu a outro lugar.
Pela manhã, na refeição matinal, achei pêlo de cachorro no café. Deixei de lado o café
e a comida que ela me trouxe. Foi assim naquele dia, no dia seguinte, dois dias depois, toda
comida e bebida que me trazia tinha pêlo de cachorro, porque transferiu os cachorros do
quarto de banho para a cozinha.
Quando apareci para o almoço com meus amigos, contei-lhes o fato. Os que eram
divertidos, riram, os que eram piedosos, sentiram pena de mim, e os que eram inteligentes,
aconselharam-me a mudar de moradia. Depois da refeição, saí andando e pensando a respeito
da mulher e dos cachorros. Encontrou-me o Sr. Druzi, o escultor, e me acompanhou. Falamos
o que falamos, até que por fim me convidou a ir à sua oficina. Para mim era difícil
desperdiçar o tempo e era difícil recusar. Enquanto isso chegamos à casa dele.
Subimos mil e um degraus e entramos num quarto cheio de formas de pedra e de
barro. O Sr. Druzi me fez sentar sobre uma pedra que ainda não havia sido esculpida e disse,
antes de lhe mostrar a obra das minhas mãos, tomaremos um café. Pegou uma chaleira elétrica
134
e ferveu água. Viu que estou alarmado e me disse, por que está alarmado? Contei-lhe o caso
da dona da casa e dos cachorros. Disse-me, essas senhorias de quartos em Berlim não têm
juízo. Jamais tomei um café e jamais comi uma fatia preparada por elas. Não por elas serem
econômicas, mas por estabelecerem a hora da refeição. Se alguém quiser ser livre, que prepare
sozinho a sua refeição e não ficará dependendo da vontade dos outros. Todo aquele que
depende da vontade dos outros, a sua própria vontade se vai.
Depois que saí da casa de Druzi, fui comprar uma chaleira elétrica. No dia seguinte
fervi água e tomei chá sem pêlo de cachorro. Durante três dias preparei o chá da manhã para
mim, como eu fazia na Terra de Israel, onde eu era o senhor de mim mesmo e preparava
sozinho as minhas refeições numa pequena máquina a álcool. A eletricidade não tem o que
tem o álcool, porque a primeira tem um fogo invisível, e o segundo, um fogo visível, de
qualquer forma, ambos fazem chá.
Um dia a chaleira não esquentou e a água também não esquentou. Fui perguntar à
dona da casa por que não tinha eletricidade. Encontrou-me o marido dela e disse, a cadela saiu
e não voltará até o final da tarde. E quanto à eletricidade, a intenção dela não foi afetar apenas
você, mas também me afetar. Ela sabe que não tenho outra satisfação senão o breve tempo
pela manhã em que leio o jornal na cama, e meus olhos são fracos e preciso de luz elétrica,
então ela desligou a eletricidade e se foi.
Ficamos parados os dois no corredor, como irmãos de aflição. Ele, porque sua mulher
lhe escureceu a luz, e eu, porque não posso esquentar o chá. Olhamos um para o outro
esperando ouvir um do outro palavras de condolências. O que ele viu em mim, não sei dizer, o
que eu vi nele, exponho aqui.
Tinha estatura mediana e um bigode branco e espesso pendurado sobre a boca. E os
olhos grandes e cheios de tristeza e perplexidade, e os joelhos curvados. Não me lembro do
seu nome, mas me lembro que é um nome francês com uma única sílaba, e me lembro que me
disse descender dos huguenotes, que fugiram da França por causa das perseguições religiosas.
Seus antepassados se especializaram na fabricação de violinos e ele também fabricava
violinos. Quando se casou e teve um filho, suas despesas aumentaram e seu tempo diminuiu, e
não pôde mais se dedicar ao ofício como estava habituado. Começou a fabricar violinos
simples, cujos clientes eram músicos de aldeias e de tabernas onde dançavam casais.
Consolava-se pensando que quando o filho crescesse e ele não precisasse mais sustentá-lo,
voltaria a fazer violinos como aqueles que fazia antes de se casar. Criou o filho e o formou
nos estudos, até que saiu laureado com o título de arquiteto de decoração de interiores.
Alugou um apartamento com um quarto especial para acomodar o filho, pois os artistas do
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nosso tempo devem se apresentar em apartamentos amplos. O filho mobiliou o quarto com
móveis luxuosos e dispôs um belo tapete no chão do quarto e ficou esperando por ricos
proprietários que viessem lhe pedir que decorasse as suas casas. Chegou a guerra e o filho foi
convocado. Como a guerra se estendeu por muito tempo, grande parte de matéria-prima foi
escasseando, inclusive, a matéria-prima que serve para a fabricação de violinos, e se lhe
ocorria fazer um violino, não achava freguês, pois os músicos jovens foram levados à guerra e
os músicos velhos já têm seus próprios violinos. Largou seu ofício e não achou outra fonte de
sustento. Tudo fica mais caro e as despesas são muitas, e esposas não costumam fazer
concessões, principalmente a esposa dele, que é uma mulher má. Começou a ir às casas de
bebidas para aliviar o coração com um copo. Um homem se senta entre outras pessoas,
observa-as e reflete a respeito do que elas fazem. Uma noite olhou para o dono da casa de
bebidas e viu que seu rosto estava tristonho. Pensou consigo mesmo, por que motivo ele está
triste, será que a água acabou. Achou graça porque se identificou com o dono da casa de
bebidas como água na água. Olhos atraem olhos e às vezes coração atrai coração. Ele
percebeu o homem que o observava. Aproximou-se e se sentou perto dele. Começaram a
conversar um com o outro. Sentou-se e contou que os clientes da casa estavam rareando, e
aqueles que ainda vinham diminuíam o tempo de permanência, e os casais já nem apareciam.
Por quê, porque a casa de bebidas se sustentava com a música, e desde que o violinista foi
levado à guerra, a música ficou prejudicada e os clientes não tinham o que fazer lá. Ele disse
ao dono da casa de bebidas, é possível que eu possa ocupar o lugar do violinista. E ainda não
havia percebido que havia ali uma fonte de sustento. Trouxe o violino e tocou. Depois da
meia-noite, deu-lhe o pagamento. No dia seguinte, trouxe o violino e tocou, e parecia que o
som do seu violino agradava aos clientes, e o dono da casa de bebidas lhe trouxe
pessoalmente um jarro de cerveja e um chouriço de sangue, além do pagamento que lhe deu
com mão generosa. Enfim era possível se sustentar e sobreviver naqueles dias difíceis. De
repente chegou a notícia de que o filho morreu na guerra. A morte do filho é mais amarga do
que a morte dos pais, mas sendo dois, é mais fácil suportar a dor do que suportar sozinho. Mas
aquela cadela era má, e além de não ajudá-lo, ainda ficava mencionando a vergonhosa
ascendência dele, os franceses, e por causa dos franceses o filho foi morto, porque havia
tombado na frente ocidental. Agora ela tem um novo pretexto para torturá-lo. O marceneiro
que não recebeu pagamento pelos móveis os confiscou, e a mãe se afeiçoou a eles pelo uso
que o filho fez e não quer, de nenhuma maneira, retirá-los de casa. Ela me diz, se você jurar
no tribunal que você viu nosso filho quitar o pagamento dos móveis, o marceneiro não terá
poder de retirá-los da nossa casa. E não quero jurar, todo juramento em falso acaba atingindo
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o corpo e o bolso. E afinal, digo eu, qual é o pecado do marceneiro que confiscou os móveis
se não o pagaram pela mão de obra e pelo material. Será ele um comerciante que ganha
dinheiro sem esforço. Não, mas se trata de um profissional como eu, que se empenha por cada
centavo. Se não devolvemos aos herdeiros o tapete que nosso filho comprou fiado dos pais
deles, penso eu, enquanto eles não souberem ou não o pedirem de volta, ficará na nossa casa.
Que diferença faz para um tapete se ele está numa loja, num depósito ou um quarto, os
herdeiros não reclamarão se lhes faltar um tapete. Mas esses são móveis fabricados por um
artista, e quando não se paga a um artesão o que lhe é devido, os móveis que fabricou devem
ser devolvidos. Você, senhor, certamente concorda comigo, porque como posso perceber,
também é um profissional como eu e como o marceneiro. Nós fazemos com madeira e você,
conforme eu vi, você faz com a caneta. E se o instrumento do seu ofício é mais leve do que os
nossos instrumentos, isso não importa, não é pelos instrumentos que se julgam as obras do
artista, mas pelo que ele produz com as mãos.
Até aqui é a história do dono da casa. Daqui por diante, a respeito do inquilino.
Ficamos os dois juntos no corredor. Um achou uma esposa que não lhe caiu bem e o outro
achou uma moradia que não lhe caiu bem, um e outro tiveram seus antepassados exilados de
seus países, um teve os antepassados exilados por ódio religioso e o outro pela maldade dos
não-judeus, um achou abrigo num país e se tornou cidadão no país que o acolheu e o outro
ainda deseja voltar para a terra de onde seus antepassados foram exilados. Uma ou duas vezes
eu o convidei a entrar no meu quarto e não entrou. Por fim nos despedimos um do outro. Eu
fui fazer uma refeição e ele foi dar comida aos cachorros.
Um dia fui visitar meu conhecido Peter Temper. Era uma segunda-feira, o dia em que
não se dá a refeição da manhã aos animais, e Peter Temper estava desocupado até a hora do
almoço. Sentamo-nos e conversamos como costumávamos fazer, sobre animais pequenos e
grandes. De animal em animal chegamos aos leões que vieram das colônias alemãs na África,
cujo chefe era Peters, o líder dos leões, que foi vencido pela doença e já desistiram que se
curasse. Não tentei consolar Temper, mas lhe contei a respeito de Arzaf, de Jerusalém, a quem
todos os animais obedecem e que vive com eles em paz, além do cachorro, ao qual ele rejeita,
dizendo que o cachorro não tem nada que seja particularmente seu, e tudo o que há num
cachorro não passa de uma cópia de seu dono, ele se submete e se esforça em se orientar de
acordo com a vontade do dono. Do cachorro cheguei à comandante dos cachorros, isto é,
àquela mulher em cuja casa eu morava e que criava filhotes de cachorro para vender. Assim
permanecemos sentados conversando até que chegou a hora de nos levantarmos. Levantamo-
nos e fomos até o jardim zoológico. Ele entrou no setor principal pelo portão dos elefantes
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para fazer o seu trabalho e eu fui andando sem rumo até que me achei próximo a uma casa
onde eu costumava almoçar no ano anterior. E como havia chegado a hora do almoço e eu
estava com fome, disse, vou almoçar lá.
Ali não havia nada de novo e nada mudou, e além dos móveis que estavam
danificados, e além das roupas que ficaram velhas nas pessoas, tudo lá estava como no ano
anterior. Almocei o que almocei e permaneci o tempo que permaneci, numa conversa inútil
que não satisfaz o coração. E quando chegou a hora dos russos se apresentarem ao
departamento de polícia, fui com quem fui até o departamento de polícia.
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CAPÍTULO 13
Esse fulano a quem acompanhei padecia da doença da tontura. Quando ele está no seu quarto,
às vezes sente e às vezes não sente, e quando sai à rua, sua cabeça começa logo a ficar tonta e
todo o seu corpo ameaça cair. O que ele mais teme é quando está na fila no departamento de
polícia esperando a sua vez, porque de tanto temer, pode desmoronar e cair, passando
vergonha na frente de todo mundo, e assim fica sofrendo com o corpo e com a alma. Durante
todo o tempo em que fui andando com ele, temi que me pedisse para me empenhar que o
liberassem da obrigação de se apresentar todos os dias, pois como sou austríaco, os russos
pensavam que minha opinião é respeitada pelos alemães e que posso fazer um favor a alguém,
se eu quiser. E o empenho é um transtorno que arrasta consigo outros transtornos, e no final
das contas, esse por quem me empenhei fica achando que não me empenhei o suficiente e
aquele diante de quem me empenhei, tenha feito ou não o favor, fica achando que fez e cobra
a sua parte, cada um à sua maneira. Esse homem não me pediu nada. Ao contrário, encobriu
as suas dores.
Depois que me despedi dele pensei comigo mesmo, vou tentar interceder por ele,
talvez o liberem de se apresentar todos os dias. Pensei em todos os senhores que eu conhecia e
não achei ninguém mais influente do que o Professor Nadelschticher, que ficou famoso com
seu folheto patriota até mesmo nos meios não científicos, que ficaram felizes porque os
homens de ciência cumprem a sua missão.
Eu conhecia Nadelschticher do tempo em que se ocupava de seu famoso livro Os
sacerdotes e o sacerdócio. Aqui não é o lugar para contar a respeito da polêmica que este
livro causou entre os sábios das universidades e não é o lugar para contar o quanto as suas
idéias me perseguiram. Não li o livro, mas ouvi dizer que ele escreveu nele que Ezequiel foi
quem fundou o sacerdócio em Israel. Assim como a maioria dos intelectuais católicos,
Nadelschticher mal leu um versículo em hebraico, e não é preciso dizer, sem vocalização, e
não é preciso dizer que mal leu algum comentário dos sábios de Israel. Por isso, sempre fui
bem-vindo à casa dele, pois o salvei das incorreções ridículas que a maior parte de seus
colegas cometem. E aqui preciso fazer um elogio a Nadelschticher: jamais escondeu de sua
família que foi ajudado por mim. Por esse motivo todas as pessoas de sua casa, e até mesmo a
criada, recebiam-me muito bem, como um visitante que o dono da casa estima. E por uma
coisa assim recusei orientar um dos colegas de Nadelschticher, que me perguntou por que eu
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não ia à casa dele, e eu lhe disse, percebi que a criada não fica feliz quando chego. Disse-me,
e somos nós responsáveis pelas criadas? Disse-lhe, se o dono da casa fica feliz com o
visitante, a dona da casa fica feliz com o visitante, e se esta fica feliz com o visitante, todos os
seus criados ficam felizes com o visitante.
Voltarei ao assunto. Fui à casa de Nadelschticher e o encontrei curvado diante da sua
mesa com um folheto na mão, e em cima da mesa estavam bilhetes, cadernos e folhetos,
páginas de ensaios e impressos, como todos os que se acham nas mesas dos estudiosos, e mais
os que se acham nas mesas dos teólogos, como escrituras sagradas, traduções e interpretações.
Ali havia ainda uma caixa grande e redonda que parecia a roda de uma carroça com uma
cúpula em cima, como aquelas caixas que as senhoras ricas guardam os seus chapéus, mas
nessa geração, nenhuma senhora no mundo tem um chapéu tão grande como esse que precisa
de uma caixa grande como essa.
Nadelschticher me recebeu como de costume, com uma palavra de alegria, enquanto
observava o quadro de pedra que estava à sua frente na mesa, no qual anotava as suas
perguntas. Quando me estendeu a mão que sempre era pesada e hoje estava fraca e úmida, eu
soube que seu coração está apertado e que não é hora de pedir um favor. Pedi permissão para
fumar um cigarro. O professor disse, lamento muito por não fumar e não poder lhe oferecer
um cigarro. Mas como você fuma, minha suposição não deve estar longe da realidade se eu
disser que certamente você tem o que fumar. O que eu queria dizer, a sociedade evangélica
em Leipzig está organizando uma série de palestras para os mutilados da guerra e me
convidou para dar uma palestra, e quando comuniquei a eles que estou pronto para dar uma
palestra a respeito do dever da guerra segundo as escrituras sagradas, disseram-me que estão
duplamente felizes. Então estou examinando as minhas anotações e posso dizer que eles não
exageraram ao dizer que estão felizes. Mas eu, como vou me expressar, fiquei feliz, mas com
uma ponta de tristeza. A palavra tristeza talvez seja um exagero, de qualquer maneira, se
dermos ao sentimento um outro nome como, um pouco de perplexidade, não estaremos muito
distantes da noção a que se refere. A palestra deverá ocorrer daqui a três dias. Três dias são
como três das sete voltas dos sete dias com que os antigos filhos de Israel derrubaram as
muralhas de Jericó, e três dias são capazes de mudar parte da História, mas justamente isso
que eu preciso não é possível realizar nesses três dias. E aqui Nadelschticher estendeu sua
grande mão, mostrou-me a caixa grande e disse, levá-la comigo, não posso, pois.... (esqueci o
motivo) e despachá-la pelo correio, não posso, uma vez que, por causa da guerra, é impossível
confiar que a remessa chegará a tempo.
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As palavras de Nadelschticher são um pouco vagas, por isso vou explicá-las.
Nadelschticher tinha boa imagem e boa altura, e um respeitável chapéu de abas largas para
compor sua aparência. Tinha um outro chapéu muito maior, que usava em todos os lugares
públicos para onde era convidado, e se ia a outra cidade, levava consigo esse chapéu. Agora
que as pessoas de Leipzig o convidaram para uma palestra, certamente precisará do chapéu, e
não me lembro por que era tão difícil levá-lo com ele.
Esse chapéu era feito de uma combinação do chapéu de Rembrandt e do chapéu de
Rinaldo Rinaldini, com um grande complemento do gosto próprio de Nadelschticher, que
recebeu influência dos retratos antigos dos nobres líderes do comércio alemão. Nessa geração,
nenhuma fábrica pode fazer um chapéu como este, mas muito esforço custou a Nadelschticher
até que achou um velho artesão entre os antigos, que lhe fez esse chapéu.
Eu disse a Nadelschticher, se não fossem os guardas, que controlam os passos de uma
pessoa como eu, que em cada viagem precisa pedir autorização, eu levaria o seu chapéu até
Leipzig. E aqui contei a ele todo o incômodo para uma pessoa como eu, quando quer ir de um
lugar a outro. Mas, eu disse, isso não é nada, comparando ao transtorno dos russos. E nisso
contei a ele a história do russo que sofria de tontura. Nadelschticher disse, se isso depende
apenas dos guardas, posso liberar você do seu incômodo. E quanto ao seu amigo russo, qual é
o nome dele, também é possível facilitar. Imediatamente levantou o fone e telefonou a um dos
chefes de polícia. Não me separei de Nadelschticher até que obtive o favor para aquele russo,
bem como o chapéu, que me encarreguei de levar a Leipzig.
E eis-me de novo em Leipzig, como no início do livro. Só que antes, quando viajei por
causa da herança do Dr. Levi, Leipzig representava para mim uma estação intermediária, e
agora Leipzig era a própria finalidade, pois eu levava para lá o chapéu do Professor
Nadelschticher. Depois de deixar o chapéu em mãos confiáveis, fui até a Morada dos Leões
procurar a Sra. Shimerman, e não a encontrei. Telefonei a Lunenfeld, à casa dos feridos de
guerra, e não obtive resposta. Dirigi-me então à casa do Dr. Mitel.
A Sra. Mitel abriu a porta. Estava vestida de preto, e um tipo de rancor persistente
estava marcado nas rugas dos seus lábios. Não falou muito e não me perguntou nada, apenas
disse, está procurando meu marido, ele está no quarto.
Conduziu-me por um corredor comprido, cheio de armários e prateleiras de livros e
folhetos que estavam cobertos por lençóis desenhados com formas ridículas, de alguns sábios
da época, aos quais Mitel chamava de sábios de cabine. De repente ela me reconduziu ao
lugar de onde viemos e abriu um quarto com as paredes azuis e o teto branco, e lá havia um
piano coberto com um pano verde, e em cima do piano, na parede, estava pendurado um
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retrato de um pequeno jovem de pé diante de Nikisch, e Nikisch acariciava o rosto do menino;
era o retrato de seu filho morto, quando foi examinado por aquele maestro. Ela não ergueu os
olhos para olhar o retrato e não me disse para olhar, mas bateu na porta fechada e me disse,
entre, e não espere que ele responda entre, porque às vezes ele fica preguiçoso e não diz entre,
apesar de não se aborrecer com visitantes.
Mitel estava envolto na sua capa e havia pilhas de livros à sua frente. Outras pilhas de
livros estavam amontoadas pelos quatro cantos da casa. Quando entrei, ele estava ocupado
com um pacote de cartas, sobre as quais estava escrito em alfabeto assírio, por elas eu choro,
meus olhos, meus olhos derramam lágrimas. Provavelmente eram cartas de seu filho. Desde o
dia em que vi Mitel pela última vez, aumentaram os sinais da velhice, mas seu temperamento
não envelheceu. Quando me viu, levantou-se, pôs as duas mãos nos meus ombros e começou
a falar e falar, como alguém que retoma uma conversa, e retoma com vigor. Não falou de
livros e não falou da guerra. O principal de sua conversa tratava da viúva do Dr. Levi que está
à morte e não tem força para morrer. Ao que parece, ela merece compaixão, não é por estar à
morte que ela merece compaixão, mas por ainda estar viva. É uma lei do Gênesis que todo ser
vivo morrerá, e o que ela está ganhando ao acumular tantos anos sem nenhum valor. Mas,
disse Mitel, apesar disso, sua morte é de se lamentar, pois enquanto está viva os livros de Levi
se preservam como estão, o que não ocorrerá após a sua morte, porque há que temer que os
livros caiam em mãos indevidas que farão com eles o que fazem com livros antigos,
atribuindo-lhes interpretações estranhas que nem passavam pela idéia de seus autores, nem
mesmo aquelas que o autor chamou de desafio. E ainda seria possível tolerar, caso os
formuladores dessas interpretações não se intrometessem na vida de quem discorda deles. A
liberdade de opinião gerou a tolerância, e a tolerância gerou a democracia, e a democracia não
tolera a tolerância. E ainda seria possível tolerar, se não fosse todo tipo de heresia que se faz
em nome da democracia. E mesmo a respeito disso eu não diria nada, se eles não se
considerassem como justos completos. Ou talvez eles, de verdade, sejam justos aos seus
próprios olhos, uma vez que o mundo se esqueceu do que é a verdade e a mentira tomou o
lugar da verdade. É possível que você tenha refletido a respeito da fisiognomia da nossa
geração. Desapareceram os rostos cínicos. Todos o rostos são revelados, exatamente como os
dentes das atrizes de cinema. A aparência da geração é como a aparência da ingenuidade, só
que é aí que está o cinismo, uma aparência de ingenuidade e retidão com más ações e
pecados. Eu conheço a língua ídiche e o chassidismo. De repente ocorre-me uma coisa e fico
me sentindo um completo ignorante. Chamaram-me ao tribunal para interpretar o que
significa a chassidischer schmuess (conversa chassídica). Como costumam fazer, chamaram
142
antes os teólogos protestantes da universidade, e como não acharam essas duas palavras nem
em Gesenius nem em Levi, dirigiram-se a mim.
Qual é o assunto, houve uma discussão na sinagoga Hindenburg. Ocorreu que um
magarefe chassídico ficou diante do púlpito na noite de shabat e se estendeu muito no poema
litúrgico Lechá Dodi, com cantos e danças. Um outro chassídico se queixou dele. O líder da
oração olhou-o e disse, ele está com pressa de chegar à casa, porque prometeu a um oficial lhe
dar a filha como prostituta. Disseram-lhe, o que você está dizendo? Deu um salto e jurou que
era verdade. O outro foi se queixar ao juiz. O juiz o convocou. Ele disse ao juiz, para que
tanto tumulto, a chassidischer schmuess heist bai aich a schvuat sheker (a uma conversa
chassídica vocês chamam de juramento em falso). Agora eu tenho que explicar ao juiz o que é
chassidismo e o que é conversa chassídica. Não me queixo daquele chassídico que deu um
falso testemunho em relação ao colega e jurou sobre uma mentira, e não me queixo deste que
levou a questão ao tribunal. Assim é a natureza das pessoas. De que eu me queixo, de...
Antes que Mitel concluísse suas palavras, entrou a esposa e trouxe para mim um copo
de chá com grãos de sacarina e uma pequena bolacha como um pedaço de açúcar. Mitel disse
à esposa, você conhece esse nosso amigo. Ela fez um meneio de cabeça na minha direção e
disse, eu o conheço. E enquanto falava, saiu. E quando saiu, voltou e disse, não fique
pensando que tenho alguma coisa contra você, mas não quis interromper a conversa, e ainda
assim, interrompi, e enquanto isso, o chá está esfriando.
Durante todo o tempo em que a Sra. Mitel falava, seu marido a observava com olhos
tristes. Depois que ela saiu, pareceu-me que ele queria dizer alguma coisa a respeito dela e
não disse nada, mas ficou me observando enquanto eu colocava um grão de sacarina no chá e
misturava o copo. Por fim ele disse, aqui está a resposta a todos aqueles que acusam a ciência
dizendo que a ciência não tem nada a ver com a vida. E a verdade é o inverso. O tempo todo
os professores advertiam o povo em relação ao uso da sacarina, dizendo que ela causa todo
tipo de doenças, e agora que o açúcar se esgotou na Alemanha por servir às necessidades da
guerra, vieram todos aqueles estudiosos e escreveram que a sacarina faz bem ao corpo. De
que falávamos antes, de juramentos falsos e de denúncias. Na sua opinião e na opinião de seus
companheiros sionistas, isso é fruto da diáspora, e vocês se consolam dizendo, amanhã será
construído um país hebreu e no futuro todas as falhas serão eliminadas, e o que fará um
homem como eu, que é cético.
Sem querer, olhei para o meu relógio. Mitel percebeu e disse, quando eu era rapaz, não
tinha relógio. Agora que envelheci e meus dias estão contados, tenho muitos relógios, e
quando completei sessenta anos, minha esposa acrescentou um relógio suíço aos que eu já
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tinha. Voltemos ao que estávamos falando no início. Então vocês, os sionistas, consolam-se
dizendo, quando for construído o país hebreu, será bom para todos os filhos de Israel. Se o seu
relógio não o está arrastando para outro lugar, sente-se e lhe contarei uma coisa.
Conta-se a respeito de um certo justo que cometeu uma pequena transgressão. Quando
o homem faz uma boa ação, cria-se um anjo bom, se comete uma transgressão, cria-se um
anjo mau. Esse justo não conseguiria se livrar do seu anjo mau senão imigrando à Terra de
Israel, pois os anjos do exterior não têm permissão para entrar na Terra de Israel. E ele não
sabia que há uma diferença entre os outros anjos e os anjos criados por força das ações dos
homens; os outros anjos se locomovem, são enviados e transferidos de acordo com as suas
respectivas missões, enquanto que os que foram criados pelas ações dos homens, se o homem
muda de lugar, eles também mudam. Esse justo vendeu tudo o que tinha e foi para a Terra de
Israel. Quando chegou debaixo do teto da Terra de Israel, aproximou-se dele uma entidade de
carne e osso, coberto dos pés à cabeça, e um cinto largo amarrado na enorme barriga, vestindo
calças de pano tão volumosas e largas que os bezerros de Jeroboão, filho de Nebate, poderiam
se esconder nelas, e um tubo comprido na boca, que soltava fumaça como o dos grandes
justos que vagam pelos mundos superiores. Disse para aquele justo, finalmente chegamos ao
nosso lugar. O justo se admirou por aquela entidade ter dividido essa honra com ele, porque o
incluiu nela. Perguntou, gaguejando, quem é o senhor? Disse-lhe, como não está me
reconhecendo, sou fulano, que fui criado com a transgressão fulana. Disse-lhe, você não é um
anjo? Disse-lhe, anjos do exterior só conseguem, e com dificuldade, ficar aqui na Terra de
Israel no nível dos homens. Disse-lhe, e você não era fino como um graveto? Como engordou
tanto? Sorriu e lhe disse, engordei por causa da santidade da Terra de Israel.
Mitel prosseguiu e disse, quando chegou a notícia que meu filho tombou na guerra,
vieram algumas pessoas eminentes de Leipzig para me consolar, e entre elas estava o Sr.
Lothar von Nitschke, um dos maiores economistas que a Alemanha já teve. A conversa foi se
desenrolando até chegar ao sionismo. Com certeza não fui eu quem provocou isso. O Sr. Von
Nitschke disse, isso é difícil de se adequar, pois a Palestina é uma terra pequena, não é uma
terra agrícola e não há matéria-prima e absolutamente nada para sustentar seus habitantes,
como vocês, sionistas, querem levar para lá um povo numeroso, de que vão viver, o mais
provável é que morram de fome. Você, meu amigo, sabe que não sou sionista nem suspeito de
ser sionista, e certamente passarei todos os meus dias e anos de vida, e não me tornarei
sionista. Se estivéssemos sozinhos, eu e ele, e não houvesse outras pessoas conosco, eu
concordaria com ele em relação ao argumento de que não há nenhuma ilusão ou esperança de
que a Terra de Israel sustente seus habitantes. É o que sentiram nossos mestres, que criaram a
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lenda de que no futuro, a Terra de Israel produzirá seus próprios meios de subsistência, já que
pelos meios da natureza, é impossível que a Terra de Israel consiga sustentar seus habitantes.
Mas na hora em que o Sr. Von Nitschke formulou a questão, estavam presentes os líderes da
comunidade, pessoas ilustres e ricas, para as quais não há nada mais estimado do que a cultura
alemã e nada mais odiado do que o sionismo. Pensei comigo mesmo, eles não sabem da
aflição de Israel, e não estarão dispostos a suportar os sofrimentos da Terra de Israel no
futuro, então, é conveniente que sintam, um pouco que seja, os problemas ligados à Terra de
Israel, e respondi àquele senhor dizendo, mas a Suíça também é um país pequeno, também
não é um país agrícola, também não tem matéria-prima, e apesar disso, sustenta seus
habitantes. Ele disse, mas a Suíça se destaca pela sua produção, e tudo o que ela produz é bom
e digno de elogio, e todos apreciam o que é feito na Suíça, e a Suíça pode sustentar seus
habitantes com o produto de suas mãos. Disse-lhe, certamente o senhor é um especialista em
profetas bíblicos e acredita nos discursos deles, e conhece todos os bons presságios que nos
destinaram para o futuro como, restituir-te-ei os teus juízes como eram antigamente, os teus
conselheiros, como no princípio; depois te chamarão cidade de justiça, cidade fiel, logo,
podemos supor que todas as disputas e os conflitos entre um povo e outro e entre uma
sociedade e outra e entre homens de leis que têm dificuldade de conciliação, se forem a um
tribunal na terra dos judeus, onde o Santo, bendito seja, instituiu juízes preparados, acharão a
justiça verdadeira.
Um exemplo disso achamos aqui na Alemanha, uma geração antes da nossa. Havia um
grande rabino em Altona, a quem homens de leis cristãos se dirigiam para julgamentos,
porque sabiam que ele julgava com a justiça verdadeira e não demorava a dar a sentença, o
que não acontecia nos tribunais públicos. Não apenas em julgamentos os judeus se destacarão,
mas no futuro se renovarão, e todas as privações que sofreram em todas as diásporas para
onde foram exilados pela maldade dos não-judeus cessarão, como afirmou o profeta Isaías,
purificar-te-ei como com potassa das tuas escórias, e tirarei de ti todo metal impuro, bem
como muitos versículos que indicam a renovação do espírito, justiça, pureza e probidade dos
judeus no futuro. Podemos então supor que todo aquele que quiser garantir os seus bens
através de negócios lícitos, buscará o judeu da terra dos judeus, até que possamos visualizar a
predição do profeta Joel, e há de ser que, naquele dia, os montes destilarão mosto, e os
outeiros manarão leite etc. Foi assim que respondi àquele senhor. E quanto a nós, o que dizer?
Você não me contou por que motivo veio a Leipzig. Se veio para comprar livros, não vou
competir com você. Já parei de comprar livros. Agora não faço nada além de mandar para
encadernação todo livro que esteja precisando. Não sei quem herdará de mim e em que mãos
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meus livros cairão. Mas enquanto eu estiver neste mundo, serei justo com meus livros que me
acompanharam em vida. Daqui a pouco virá o encadernador e levará todos os livros que
preparei aqui. E você ainda continua comprando livros. E se a guerra terminar e os caminhos
se abrirem, é possível que você volte à Terra de Israel e carregue seus livros com você. De
minha parte, não o aconselho a fazer isso. Judeus e livros estão acostumados à dispersão.
Nosso patriarca Jacob já sabia disso, e dividiu em dois acampamentos o povo que estava com
ele, o rebanho, o gado e os camelos, e se viesse Esaú e atacasse um acampamento, o outro
escaparia. Você fica admirado por eu estar tão entendido nos versículos, é que desde o dia em
que meu filho foi morto, não consigo ler nenhum livro a não ser as escrituras sagradas.
A criada entrou e disse, o encadernador chegou. Mitel me disse, é proibido atrasar os
artesãos. Espere até que eu entregue os livros para encadernação e voltaremos a falar. Disse-
lhe, permita-me ir embora. Disse-me, como você se vai quando estou impedido de
acompanhá-lo. Na verdade, de qualquer maneira, eu não o acompanharia. Sair à rua é difícil
para mim. De um lado estão os saciados, de outro, os famintos, e os mutilados e feridos de
guerra, no meio. Tudo isso por causa da guerra e das conseqüências da guerra. Até que se
concretizem as palavras do profeta, não aprenderão mais a guerra, não sobrará quem realize a
profecia.
Depois que saí, ele me fez voltar e disse, preciso corrigir minhas palavras. Não
compro livros novos, mas procuro completar os que estão faltando. Mas não os livros que
desejei completar, para que, quando eu chegar ao mundo superior, eles não se engrandeçam
diante do séqüito celestial dizendo que me deixaram antes que eu conseguisse realizar todos
os meus desejos.
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CAPÍTULO 14
Depois que saí da casa de Mitel, dirigi-me à rua do trem, aluguei um quarto, e voltei a
telefonar para Brigitte Shimerman em Lunenfeld e não tive resposta. Na verdade, mais do que
ver Brigitte, eu queria ver Malka, minha parenta, mas não quis depositar nela o motivo
principal da minha viagem para que não se preocupasse em me oferecer comida, bebida e
pernoite. E como não tive resposta, não viajei até lá. E como não viajei até lá, sobraram-me
algumas horas. Tive a idéia de visitar o Sr. Koenig, que me deu um quadro do Muro das
Lamentações pintado por ele mesmo. Eu não sabia exatamente onde ele morava e fui até
Keisar e associados, porque Koenig costumava ir até lá para que lhe fizessem o molde das
suas letras.
Entrei no pátio grande e fundo da oficina e perguntei ao porteiro. O porteiro me
encaminhou ao servente. O servente me fez entrar no escritório. O chefe do escritório me viu
e ordenou que trouxessem uma cadeira. Sentei-me e vi como ele estava confortavelmente
sentado, e meia dúzia de pessoas vestindo roupas azuis e encardidas por causa do trabalho
estavam diante dele como escravos diante do seu senhor, e ele os tratava com severidade,
repreendendo principalmente um deles, mostrando-lhe um rosto enfurecido. Depois que
liberou todos, aproximou-se de mim e disse, você não me reconheceu, mas eu o reconheci.
Lembra-se de um homem que andava por Berlim com uma menininha e lhe perguntou onde
ficava o correio e você indicou a ele o correio, eu sou o homem a quem você indicou o
correio. Disse-lhe, como vai a menininha, e você ainda está sob a chefia do colega que
adquiriu poder? Ele se inclinou e bateu nos joelhos com as duas mãos e riu um riso
prolongado. Depois que parou de rir disse, você não viu como o humilhei e como o joguei aos
meus pés. — Como assim? Ele respondeu dizendo, muito simples. Nomearam-me no lugar
dele. Keisar e associados perceberam que o trabalho ia encolhendo e começaram a cortar as
despesas. Destituíram o chefe do escritório, que voltou a ser operário, e me colocaram no
lugar dele, um, porque sou um mecânico veterano e a casa de fundição precisa de mim, dois,
porque tenho experiência em liderança, como demonstrei na sociedade evangélica em
Connewitz onde fui designado este ano para fazer parte como membro da comissão, e então,
cobro dele diariamente por toda a humilhação que me causou.
Depois de cumprimentá-lo pelo seu sucesso, disse-lhe o motivo da minha vinda, ele
me deu o endereço e eu fui embora.
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O Sr. Koenig morava perto da Rua Keil onde fica a sinagoga dos judeus de Brody.
Quando cheguei perto da sinagoga, era a hora da reza da tarde. Como havia chegado a hora da
reza e eu estava perto da sinagoga, entrei.
De dentro da penumbra irrompiam oito ou nove pessoas próximas ao púlpito, e
pareciam pessoas que se apressaram e vieram a um palácio vazio, porque a maioria das
pessoas do palácio, isto é, os freqüentadores da sinagoga e mais os ilustres e os abastados, não
costumava comparecer nos dias de semana. O velho bedel, um homem baixo com uma barba
branca, curta e quadrada, um gorro quadrado na cabeça como o dos dirigentes de Brody no
passado, quando Brody estava no auge de seu esplendor, ia andando entre as pessoas,
acendendo dois ou três candelabros. Olhou-me com espanto, pois um homem jovem na
sinagoga num dia de semana não é sempre que aparece. Depois da reza da noite, comprei um
bolo e voltei ao hotel.
Meu hotel era mediano e meu quarto não era dos melhores do hotel. Por causa de
minhas roupas e por medida de economia, tive que me contentar com um quarto pequeno, e
optei por este hotel porque o nome dele é o mesmo de meu amigo e conhecido. Conforme
pude constatar depois, em conversa com o dono do hotel, não havia entre ele e Peter Temper,
meu conhecido, nenhum laço de parentesco; Peter Temper, meu conhecido, era descendente
dos descendentes do administrador de cozinha de uma importante dinastia, e esse que deu
origem ao nome do hotel era dono de um teatro de fantoches, que no fim de seus dias abriu
um pequeno albergue para artistas viajantes, e quando a grande estação de trem foi construída
e ele ficou sem clientes, um garçom comprou o albergue dos herdeiros e o transformou num
hotel de verdade. As despesas superaram a receita e ele faliu. A casa foi vendida pelos
credores e foi passando de mão em mão. Veio esse que me hospedou e arrendou a casa.
À noite, na cama, acabaram-se os meus cigarros. Levantei-me e saí para comprar
cigarros. Como as lojas já estavam fechadas, entrei num bar no canto da rua para comprar
cigarros. Estava tão cheio de gente que não havia ninguém desocupado para me atender.
Fiquei parado esperando e vi uma colher pendurada no teto, presa a uma corrente de ferro que
chegava até a mesa. Alguém percebeu que eu estava olhando. Disse-me, homem, está olhando
o quê? Nunca viu uma colher? Disse-lhe, uma colher, já vi, mas uma colher presa a uma
corrente de ferro no teto, nunca vi. Disse-me, é porque todos querem misturar os seus copos e
nem todos devolvem a colher, por isso o dono do bar pendurou uma colher no teto, presa a
uma corrente.
Quando saí de lá fiquei vagando pela rua e me vi ao lado de um prédio antigo,
daqueles prédios antigos que ficam atrás da grande estação de trem, que não os consertavam
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porque queriam escondê-los e não os escondiam porque seus donos buscavam uma forma de
ganhar dinheiro com eles, cada vez mais. O prédio estava como no tempo de Gottsched e
Gellert, quando Leipzig era uma cidade com vinte mil pessoas, só que naquele tempo o prédio
engrandecia o lugar, e agora, destruído pela metade, compromete o lugar. E já que está nesse
estado, moram lá pessoas pobres, daquelas que nasceram, cresceram e permaneceram ali
depois que seus pais e avós morreram. Mas você acha lá pelo menos uma família de gente
abastada, que veio de outro lugar, é a família de Iudil Bider, da Galícia. Quando eu morava
em Leipzig, era tratado ali como um filho, e passava com eles uma noite de Pessach. As
canções que ouvi naquela mesa ainda estão marcadas no meu coração, e as comidas que me
serviu Pessil Guitshi, a esposa dele, ainda preservam seu paladar na minha boca. E mais que
tudo, lembro-me das danças que ele dançava com a esposa depois da leitura da Hagadá,
enquanto as nove filhas dançavam diante deles, cada uma do jeito que lhe ocorria dançar
naquele momento. Aqueles meus cigarros que vocês viram, de cilindros longos num estojo
marrom, com tabaco amarelado como ouro e de aroma agradável, provêm de lá. Por isso
fiquei feliz, pois bem na hora em que saí para comprar cigarros, minhas pernas me levaram
até lá.
Iudil Bider tinha mais de sessenta anos naquela época e ainda estava bem, e seus olhos
se iluminavam por amor às criaturas com um sorriso no olhar. Era chegado a todos os rabinos
da Galícia, e todos os que vinham a Leipzig ficavam hospedados na sua casa. E apesar de ser
um amante e perseguidor da paz, fazia suas orações na sinagoga chassídica Hindenburg, dos
que brigaram com seus irmãos de fé. Mas nos dias de aniversário de morte de Bluma, filha de
Rabi Iudil Chassid de Brody, sua cidade de origem, costumava fazer todas as orações na
sinagoga dos judeus de Brody.
No pátio havia um pequeno candelabro a querosene dentro de um comprido lampião,
escurecido por tanta fuligem impregnada ali, e sua luz vagava como bengala de cego. Fui
apalpando entre barris, arcas, baús, armários e prateleiras que os feirantes colocam durante a
noite, até que cheguei à escada, e dela, ao apartamento de Bider. Como eu sabia que a
campainha está com defeito e não toca, e sabia que quando batem à porta não se escuta dentro
da casa por causa dos barulhos internos, abri e entrei sem apresentações desnecessárias. Uma
menininha moreninha, com olhos bonitos e espertos, aproximou-se de mim e perguntou, quem
o senhor está procurando? Disse-lhe, estou procurando o seu avô, minha querida amiga. Ela
riu e disse, ouviu, mamãe? Esse aí também acha que sou neta de papai.
Veio Pessil Guitshi, esposa de Iudil, uma mulher com mais de cinqüenta anos. Estava
vestida como as esposas dos ricos na Galícia ocidental quando há visitantes na casa. Quando
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me viu, disse, esse é um verdadeiro amigo, que não se esquece dos que o apreciam. E nós
também não nos esquecemos de você, amigo, quando chegou a Leipzig, e onde está
hospedado? E a guerra continua. Se não acabar logo, o mundo inteiro ficará destruído, Deus
não permita. Quatro camas de quatro genros estão vazias, esperando. E enquanto isso nossas
filhas mais novas estão crescendo e não aparece proposta de casamento. Essa guerra é como
uma fera que vai devorando tudo. Já perdeu os melhores rapazes. É o fim de todo ser humano,
porque homens jovens são levados à morte. E onde estão os justos? Deixam o mundo
abandonado e se calam. Disse-lhe, deixemos a guerra de lado e falemos de coisas alegres.
Como vai, minha senhora, e como vai Rabi Iudil? E como vai Bluma, e Rivtshi, Ester,
Shaindli, Itali e Tamar? E como vão Berta e Reizeli, e Amanda, o que tem feito? Pessil
Guitshi ficou admirada. Depois ela disse, pela minha vida, você é o único entre os nossos
amigos que sabe os nomes de nossas filhas, que tenham longa vida, e mais ainda, lembra-se
dos nomes pela ordem de idade. Disse-lhe, como não me lembraria? Moças bonitas como são
as Biders, são fáceis de lembrar. Apesar disso, ela continuava admirada, sem saber que eu
havia feito um sinal comparando as iniciais dos nomes com as duas primeiras palavras da
Torá, e se ela me perguntasse se eu sabia identificar quem é quem, eu não saberia, porque
eram todas parecidas no aspecto, na altura e na beleza.
Depois de ficar duplamente admirada com o poder da minha memória, pegou a
menininha pela mão e disse, e esta é a nossa filha caçula que nasceu depois de todas as outras.
Tsharni é o seu nome, e ela é exatamente como o nome, moreninha como a fuligem do fogão.
Mas devo confessar que, graças a Deus, tenho muita satisfação com ela, pois se não fosse
Tsharni, eu estaria abandonada; as filhas cresceram, graças a Deus, e cada uma está ocupada
com as suas atividades, uma, na Casa do Povo, outra, com aulas à tarde, outra com desenho,
outra com música, outra com assuntos comunitários, e agora, imagine só, uma velha sozinha
dentro de casa. Tsharni, minha vida, vá dizer a papai que chegou uma visita. Não diga o
nome, mas pode dizer que um bom homem chegou.
Tsharni me perguntou, como é o seu nome, senhor? Não direi a papai, pode me dizer.
Disse-lhe, você quer saber uma coisa que pretende esconder de seu pai. Ela envolveu os dois
braços no pescoço da mãe, inclinou a boca no ouvido dela e disse, mamãe, diga-me, qual é o
nome desse aí? A mãe disse, não diga qual o nome desse aí, mas, qual é o nome deste senhor.
Tsharni disse, então, qual é o nome deste senhor? A mãe disse, se o senhor não quer que você
saiba, como vou revelar? Tsharni disse, nem você nem ele sabem o nome dele. Vocês dois
não sabem nada.
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Enquanto falávamos, Iudil entrou. Viu-me e me cumprimentou sem entusiasmo, e
perguntou, o que o senhor deseja numa hora como essa? Enquanto falava, reconheceu-me e
voltou a me cumprimentar, batendo uma mão na outra e disse, foi a providência divina que o
trouxe até aqui. Exatamente nesta hora, neste instante, lembrei-me do seu nome. Se isso não é
um milagre, não sei do que se trata. Venha comigo e verá dois amigos queridos que, se
soubessem que você está aqui, sairiam ao seu encontro com tambores e danças. Tsharni, você
ainda não está dormindo? Vá dormir, minha vida.
Tsharni disse, esse senhor me disse que estava procurando o meu avô. Iudil acariciou a
cabeça da menina e me disse, no dia em que saí do mandamento do pacto, minha esposa, que
viva muitos anos, trouxe-me uma bênção adicional às nove mulheres que havia me dado. Na
verdade, eu disse a ela, já que você passou pelo incômodo e a dor de uma gravidez, por que
não me trouxe um filho homem? Mas mulheres têm um raciocínio feminino, e ela me trouxe
uma filha. De qualquer forma, não há como negar, a pequena é esperta, e como você mesmo
pode ver, é mais bonita do que todas as meninas do mundo. Agora, meu figo seco, pimenta
preta, cigana feia e suja, venha me dizer boa noite e diga a mamãe, mamãe, ponha-me na
cama e ouça como eu recito a oração Shemá, e se você fizer isso, garanto que você terá os
sonhos que costumam ter as mulheres bondosas. Tsharni disse, papai, todas as noites você diz
isso e ainda não tive nem um pedacinho de sonho. Iudil disse, sua boba, você sonhou e se
esqueceu. Tsharni disse, o que é esquecer? O pai disse, por exemplo, esqueci-me de que tenho
visitas importantes no meu quarto e fico aqui falando bobagens com uma tola como você.
Pessil Guitshi, leve-a e feche a sua boca de chaminé, e me traga mais um copo, e se sobraram
daquelas bolachas finas de cebola e pimenta que você assou para o shabat, mande-as para o
meu quarto.
Iudil me levou ao seu quarto. Antes de abrir a porta, cochichou comigo, um homem
que você não conhece está aqui conosco, um homem completamente correto, com o que é
dele e com o que não é dele, não é muito sábio, como a maioria dos chassídicos alemães cuja
devoção supera a sabedoria, mas com cada palavra que ele pronuncia você pode construir uma
muralha.
Entrei atrás do dono da casa e vi três homens sentados juntos, Nachum Berish, o juiz,
Alter Lipa Eilbirt, o magarefe, e aquele visitante a respeito do qual o dono da casa comentou.
Nachum Berish era o rabino da sinagoga Hindenburg. Uma ou duas vezes eu o ajudei na
organização de divórcios para prisioneiros da Rússia que prestavam serviço nas minas de
carvão, e iam atrás de outras mulheres, deixando as suas próprias mulheres abandonadas, e
como eu não pedia uma parte da remuneração, era apreciado por ele, e como eu renunciava à
151
minha parte, parecia-lhe um pouco arrogante. Nachum Berish estava sentado à cabeceira, à
sua direita estava Alter Lipa Eilbirt, que se autodenominava Keilbirt, para não dizer o nome
de Deus em vão, pois a palavra Eil soa como a palavra El. Esse é o magarefe e chantre a
respeito do qual o Dr. Mitel contou um fato. E diante dele estava sentado o Sr. Kitzingen, de
quem o dono da casa me falou.
Nachum Berish era um homem baixo e gordo. Seu rosto era cheio e acinzentado, e
sardas azuis como dois botões brotavam de dentro das abas do nariz. Vestia roupas compridas
e usava um chapéu grande. Assim como ele, estava Alter Lipa, só que as roupas de Nachum
Berish eram de seda e de Alter Lipa, de tecido comum. Um e outro tinham um lenço vermelho
que saía de dentro do sobretudo. O de Nachum Berish era usado para receber doações e o de
Alter Lipa, para enxugar a faca. Alter Lipa tinha os olhos grandes, pretos, brilhantes, redondos
e salientes. Olhos como esses não costumam rir, o que não ocorria com ele, que olhava e ria
para as pessoas e fazia com que os outros também rissem. Sua barba cheia era longa e larga,
cobrindo-lhe o peito, e das têmporas caíam dois cachos espessos. Não me lembro com clareza
se Alter Lipa era o único em toda Leipzig a deixar os cachos à vista, parece-me que a maioria
dos que usavam cachos laterais em Leipzig os escondia atrás das orelhas. A respeito de
Kitzingen não há muito o que contar. Suas roupas eram limpas, sua barba, feita, e sua fala era
em alemão misturado com o idioma sagrado, com palavras no meio da frase que eram puro
ídiche. Os três homens estavam sentados diante de uma mesa comprida, com uma garrafa de
aguardente, copos e bolachas, e um candelabro redondo a gás iluminava as pessoas e a mesa
com uma luz amarelada que ardia e exalava cheiro. Nachum Berish se levantou e estendeu a
ponta dos dedos gelados na minha direção e me cumprimentou, enquanto se empenhava em
acrescentar ao cumprimento um aforismo dos nossos sábios ou um dito chassídico. No mesmo
instante, Alter Lipa se serviu com um copo. Não chegou a levá-lo à boca e estendeu a mão na
minha direção e brindou à vida, no sentido de me dizer, seja bem-vindo. Depois de beber,
bateu no ombro de Kitzingen e lhe disse, você sabe quem é esse? Esse é aquele de quem
falávamos, ai ai ai, quem nos dera que viesse até aqui. Agora você pode constatar a força dos
chassídicos. Pode ser que com as palavras, eles realizem milagres, mas nas outras coisas, não
conseguem realizar milagres, pois como você pode ver, até mesmo no pensamento e na
reflexão interior conseguem transformar o mundo, só que para atribuir seus atos a eventos
naturais, empenham-se nos elementos da fala. Kitzingen estendeu a mão e me cumprimentou,
e olhou para o dono da casa em sinal de indagação se era verdade o que Alter Lipa disse, que
eu era eu mesmo.
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Depois que bebemos à vida e acendemos cigarros, Nachum Berish suspirou
profundamente, alisou a barba e me disse, se você não está espantado por estarmos sentados
juntos, vou lhe dizer uma coisa que vai lhe causar espanto. Alter Lipa o interrompeu e disse,
por que ele deveria ficar espantado ao ver judeus sentados juntos, ao contrário, ao contrário, e
mil milhares de vezes ao contrário, se é para se espantar, ele deve se espantar por todos os
outros filhos de Israel que não estão sentados juntos, pois pela lógica, deveriam estar sentados
juntos, porque as escrituras demonstram que somos um só povo, mas que por causa dos
nossos numerosos pecados, a união de Israel se acabou, acabou-se. Deus, seja louvado, com
sua misericórdia, terá piedade de nós e voltaremos a ser um só povo, para cumprirmos o que
foi dito, quem há como o teu povo, como Israel, gente única na terra, e poderemos servir ao
Criador, seja louvado, com um só coração. À vida, judeus, à vida.
Nachum Berish voltou a suspirar e disse, em relação à causa do tema, isto é, ao tema
da causa da união e da cisão, tenho uma pesquisa imensa que pretendo levar à minha prédica
no shabat shuvá. Tenho certeza de que se ouvissem as minhas palavras, todos iriam elogiá-las
e dizer que são mais doces do que o mel. Alter Lipa disse, para que precisamos de pesquisas?
De minha parte, não aceito todo esse assunto de pesquisas, que mesmo quando começam em
nome de Deus, acabam gerando uma completa heresia e produzindo céticos, Deus nos livre,
como ocorreu com a geração de Enosh, que eram pesquisadores grandiosos e se metiam em
pesquisas e no final blá, blá, blá. Mas por que temos que nos remeter à geração de Enosh,
lembro-me de um fato que ocorreu na nossa cidade, em que um homem jovem, um ano após o
seu casamento, que vivia às custas do sogro, e comia e bebia como um genro perto do sogro,
de tão bom que estava, começou a olhar livros de pesquisa, tornou-se ele mesmo um
pesquisador e começou a pesquisar sem limites, até que ficou confuso das idéias de tanto
pesquisar, e se não o tivessem levado até o Rabi Henich, que seus méritos nos protejam, que
lhe devolveu a razão, teria enlouquecido. À vida, judeus, à vida. Deus, louvado seja, nos
salvará das pesquisas, e O serviremos com simplicidade e inocência, como convém à
descendência de Jacob, que era um homem simples.
Kitzingen disse a Alter Lipa, se você quer ofender o juiz de vocês, ofenda-o na casa de
orações, e não incomode pessoas comerciantes e ocupadas com o sustento, pois não vim até
aqui para ouvir coisas sem importância.
Alter Lipa respondeu, tenha calma e fique quietinho; para que tanta afobação? Judeus
se sentam juntos e conversam de assuntos judaicos, e você chama a essa conversa de coisas
sem importância. As falas dos filhos de Israel são sagradas e aceitas por Deus, e até mesmo os
anjos serafins sentem inveja de nós, pois anjos serafins falam com o bater das asas, e os filhos
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de Israel falam com a boca, e a função da boca é dizer palavras sagradas. Aqui está Rabi
Nachum Berish, que tenha longa vida, e poderá confirmar se não há um comentário sagrado a
respeito da boca, como se lê no Talmud, a boca é sagrada, e como você pode falar dessa
maneira. E quanto ao que você disse, que as pessoas estão ocupadas com o sustento, não sabe
você que por força da conversa se chega a grandes e prodigiosos negócios que valem mil
milhares de dezenas de milhares de milhões de milhões em ouro puro, só que o homem
precisa cuidar da língua e saber o que a boca está pronunciando. Certa vez ocorreu um fato
comigo, eu estava diante do nosso Rabi, que tenha longa vida, ele estava de bom humor e me
disse dessa forma, Lipa Alter, assim ele, que tenha longa vida, costumava me chamar, Lipa
Alter, e certamente há aqui um motivo imenso que não conseguimos captar. Então ele, que
tenha longa vida, me disse, Lipa Alter, peça-me o que quiser e eu lhe darei, mas não pense
antes, diga o que lhe vier à boca. Disse-lhe, Rabi, quero uma caixa de prata com rapé.
Imediatamente estendeu a sagrada mão e me deu uma caixa de prata com rapé. E eis que eu
poderia ter pedido tantos dinares de ouro quantos eram os grãos de rapé na caixa, e ficaria rico
como Rothschild, e foi o que eu disse antes, que o homem precisa cuidar da língua para não
ser tolo. À vida, judeus, à vida. Iudil, estou vendo bolachas de cebola aqui. Ai ai,
apimentadas. Quando chegaram aqui? Acho que não as havia visto antes. Talvez tenham
chegado com o visitante. Como são sábias as palavras dos nossos sábios que disseram, quem
nasce, traz consigo seu sustento. À vida, judeus, à vida. Deus queira que... que...
Kitzingen se levantou e disse, Sr. Bider, enquanto a garrafa estiver em cima da mesa,
não chegaremos a nenhuma conclusão. Quanto a você, Sr. Eilbirt, se quiser contar suas
histórias, vá contá-las aos seus chassídicos na sua sinagoga. Não foi por causa de histórias que
eu vim até aqui.
Alter Lipa debochou dele dizendo, ele diz eu vim, diga você mesmo, o maior sabido
entre os alemães, você veio por você? Será que passava pela sua cabeça vir até aqui, será que
a sua lógica conduziu você até nós, será que o seu cérebro criou pés com sapatos de
caminhada e vieram até aqui. Se não fosse o meu empenho em trazê-lo, você não teria vindo.
E qual a origem de estarmos aqui, não foi por meio de histórias? Lembra-se de que certa vez
estávamos sentados comentando o caso da controvérsia entre o Dr. Levi e o Rabino
Guizetzstroi, e a conversa foi se desenrolando até chegar aos livros que Levi deixou, e alguém
disse, é conveniente examiná-los para ver se há possibilidade de fazer algum negócio com
eles, agarrei essas palavras e fui até o mercado, agarrei uma conversa aqui, outra ali, ouvi todo
tipo de histórias a respeito desses livros, fui até você e lhe disse, ai ai ai, apareceu um grande
negócio para nós, vamos fazer uma sociedade e vamos incluir Rabi Nachum Berish, que é um
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pouco estudioso e certamente entendido em livros. Então, diga se não foi assim que
aconteceu.
Nachum Berish disse, na verdade, enquanto isso caiu uma dúvida no meu coração, se
de fato há importância nos livros desse doutor, pois como se sabe, pessoas como ele dão
importância a um tipo de livro cuja importância reside na dúvida. E comigo aconteceu uma
história. A história é assim, caluniaram um dos nossos ricos dizendo que ele negocia com
mercadoria proibida, e ele estava muito arriscado de ser preso, Deus não permita. Procurou-
me e disse, Rabi, reze por mim para que eu saia inocente e não saia culpado. Rezei e minha
oração foi aceita. Ele quis me retribuir. Foi se aconselhar com seu vizinho cujo nome é
Koenig, e Koenig lhe disse, se você quer dar um bom presente para o seu rabino, dê uma
Concordância Bíblica. Ele tirou dinheiro do bolso, comprou a Concordância Bíblica, veio e
me deu, enquanto se vangloriava achando que havia me dado ai ai ai, sabe-se lá o quê. Na
minha opinião, não há nenhuma diferença entre uma Concordância Bíblica e os demais livros
de autores, só que os demais livros de autores circulam sem encadernação, e a Concordância
Bíblica é encadernada com tiras douradas.
Kitzingen disse, vocês disseram que esse judeu era íntimo do Dr. Levi e que conhece
os livros dele, e já que aconteceu de ele vir até aqui, vamos lhe perguntar se é conveniente
todo esse negócio em que vocês estão querendo me incluir, ainda mais em se tratando de
livros, pois livros não são uma mercadoria procurada no mercado.
Alter Lipa disse, quem precisa que sejam procurados no mercado, ao contrário,
justamente por não serem procurados no mercado poderemos comprá-los barato. E quanto à
venda deles, o Santo, bendito seja, cuidará disso, porque Ele é obrigado a dar sustento aos
judeus. Toda a nossa preocupação é agarrar o assunto nas nossas mãos antes que venham
outros e o agarrem, e quando os livros estiverem nas nossas mãos, ai ai ai, faremos o que
faremos. Queridos judeus, vocês ficam aí sentados como se a mesa de Iudil estivesse vazia.
Sirvam-se, meus senhores, e bebamos à vida do visitante que foi mandado até aqui pelos céus.
À vida, meus senhores, à vida.
Kitzingen disse, percebo que vocês pretendem incluir esse judeu no negócio. A mim
não importa que mais um judeu receba pagamento por meu intermédio. Mas não percamos
tempo com falatórios. E no início fui contra a aguardente porque a bebida provoca conversa
inútil, e conversa inútil desvia do negócio.
Alter Lipa disse, e não é a aguardente o resultado de um negócio, se não é o próprio
negócio, então por que você discorda dela. Conheço inúmeros judeus devotos e íntegros, sem
querer dar mau olhado, que enriqueceram com aguardente e se tornaram poderosos
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milionários, tão ricos, que todos os comerciantes de Leipzig em comparação a eles são como
um rabo de rato em comparação a um gorro de pele. E não apenas isso, senão que vários
grandes negócios se realizam e se efetivam com um copo de aguardente. Ao contrário, que o
diga nosso Rabi Nachum Berish, que tenha longa vida, se não foi pelos dois jarros de
aguardente que nos serviu no aniversário de passamento do velho Rabi, que seus méritos nos
protejam, que o nomearam rabino da nossa casa de orações. Rabino, não precisa se
envergonhar, aguardente é uma bebida permitida, e com ela, bons judeus revitalizam as suas
almas. E até mesmo você, Kitzingen, como costumam chamá-lo em alemão, se não fosse a
aguardente que abriu a boca do casamenteiro, você não teria se casado com uma mulher rica.
Se você tiver queixas dela, aqui está o juiz, a qualquer momento ele pode providenciar o
divórcio.
Kitzingen bateu na mesa e gritou, não permito que você fale dessa maneira. Alter Lipa
debochou dele e disse, eis a fúria de um judeu alemão. Está censurando as minhas palavras.
Não sabe que cada palavra que um filho de Israel tira da boca, anjos e serafins se ocupam em
chegar até o seu âmago, pois as palavras de Israel são muito profundas, e até mesmo meia
palavra de um judeu contém mais inteligência do que toda a sabedoria dos doutores nos países
do mundo, de Aristóteles em diante, e isso porque o judeu é cuidadoso ao falar e não fala
mentiras, maledicências e difamações. Kitzingen disse, se você não calar a boca, desisto do
negócio. Alter Lipa disse, se você desistir, faremos sem você. Iudil disse, e o dinheiro? Alter
Lipa disse, estão sempre pensando em ganância. Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Como são
grandiosas as palavras do santo Rabi de Rofshitz, que seus méritos nos protejam, que disse,
mesmo quando eles pronunciam a oração Impõe o Teu medo, estão se referindo a dinheiro,
porque a gematria de teu medo é dinheiro. Iudil disse, se é assim, demonstre a sua sabedoria e
faça negócios sem dinheiro. Alter Lipa disse, já aconteceu um caso na nossa cidade, que um
aguadeiro, o mais pobre entre todos os pobres, que nem mesmo os baldes em que carregava a
água eram dele, ganhou na loteria sem gastar nenhum tostão. Será que foi um milagre, não,
mas algo bem simples. Todas as histórias que vocês ouviram, em comparação a esta, são
como um resto de água em comparação ao mar.
Kitzingen tirou o relógio e disse, quando o ponteiro chegar às onze horas, deixarei
vocês com suas histórias e irei embora. Alter Lipa disse, ai ai ai, se nos ocorresse ter um
relógio como esse, iríamos penhorá-lo e traríamos um jarro de mel. Meus senhores, será que
não perceberam que aqui na Alemanha não se acha nem uma gota de mel para tomar. Nachum
Berish disse, mas será que só está faltando na Alemanha? Não entendo por que o Santo,
bendito seja, parece tão apressado em ajudar o ministro da Alemanha a vencer em todas as
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guerras. Torá, não há aqui, temor aos céus, não há, chassidismo, certamente não há, mas
talvez a Sua intenção, seja louvado, é conquistar a terra dos moscovitas para que venham de lá
judeus devotos e íntegros para restituírem a Torá e os mandamentos ao seu devido lugar, pois
a Alemanha, antes, era um lugar de Torá e devoção. Então, o que será da Polônia e da Rússia
se ficarem sem judeus. Alter Lipa disse, se ficarem sem judeus será por causa dos lituanos e
dos kotzkianos que ali vivem.
Kitzingen se levantou e disse, boa noite, senhores. O dono da casa disse, que pressa
toda é essa? Agora que chegou o nosso amigo que conhece os livros do Dr. Levi e visitou a
esposa dele, convém ouvir de sua própria boca quanto valem os livros que o Dr. Levi deixou.
Enquanto falava, olhou para mim e disse, certamente você já percebeu pela nossa conversa
que pretendemos comprar os livros do Dr. Levi. Qual é a sua opinião, convém enfiar a cabeça
nesse negócio? Alter Lipa disse, se convém ou não convém, o principal não é o negócio, mas
a bênção e o sucesso que o Santo, bendito seja, nos enviará através do nosso empenho. O que
é isso, você vai embora? Preciso lhe perguntar uma coisa. Diga-me, esse Dr. Mitel não é um
dos chassídicos de Kotzk? Nós, na Galícia, tomávamos cuidado para não falar o nome Kotzk
à noite, pois como todos sabem, Kotzk é o nome de um demônio. Ouvi dizer que você é
íntimo desse Mitel. Então vá dizer a ele, meu senhor doutor, não seja um chassídico tolo e
diga ao juiz que uma conversa chassídica é uma conversa chassídica, e não se tratava de um
juramento nem de poeira de juramento, mas, simplesmente, de uma conversa chassídica.
Meus senhores, vocês me conhecem e sabem como me cuido para não pronunciar nenhuma
palavra inútil. Mas agora sou obrigado a dizer a vocês e nada me impedirá de dizer, e convém
ouvir por se tratar da mais pura verdade, todo não-chassídico é de Kotzk ou de Bratslav.
Iudil o pegou pela barba e disse, malvado, criminoso de Israel, como se atreve a dizer
isso, pois Nachman de Bratslav era neto de Baal Shem Tov e neto de Rabi Nachman de
Horedinka, e também era um homem santo, puro e dedicado a Deus. Alter Lipa disse, e se os
sionistas são filhos de Abrahão, Isaac e Jacob, por acaso eles não são judeus? Pense só,
quantos justos nós tivemos, Rabi Shimon ben Iochai, e o santo Isaac Luria, e o santo Baal
Shem Tov, o santo Rizinai, por acaso eles foram negociar para comprar a Terra de Israel, não,
mas os sionistas se vangloriam por comprar a Terra de Israel para nos conduzir até lá. Mas,
graças a Deus, ainda temos a alternativa de não imigrarmos com os sionistas. Vocês pensam
que o partido Agudat Israel é melhor do que o sionismo — isso é como um sonho do faraó.
Enfim, digo-lhes, senhores, que toda essa questão de partidos é como a geração da torre de
Babel quando disseram, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre e tornemos célebre o
nosso nome, e quando um disse, traga-me água, o outro procurou terra, disse, traga-me um
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machado, e lhe deram um ancinho, como isso terminou, uns bateram nos outros e se
machucaram uns aos outros na cabeça. Rabi Nachum Berish, diga se não foi assim que
aconteceu, como está escrito no Talmud. O que é isso, eis aqui aguardente e copos, e judeus
permanecem sentados como na noite do jejum de Tishá Beav após a leitura das lamentações, à
vida, judeus, à vida.
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CAPÍTULO 15
Pela manhã voltei a telefonar a Lunenfeld e voltou a acontecer que não tive resposta. O dono
do hotel levantou o fone e gritou com a telefonista, o que é isso, você está dormindo? Antes
que a telefonista respondesse, chegou uma mulher vestida com roupas de enfermeira e se
sentou para a refeição. Viu-me e se levantou da cadeira, veio e me estendeu a mão sorrindo e
disse, suas malas chegaram bem? Percebi pelo conteúdo das palavras que era a enfermeira
Bernardina. Retribuí-lhe o cumprimento e me vangloriei por tê-la reconhecido, não por causa
das roupas, mas por causa dela mesma. Depois de muito falatório, contei a ela que faz vinte e
quatro horas que não paro de telefonar a Lunenfeld e que ninguém responde. Bernardina
olhou o bilhete que eu tinha nas mãos e disse, você trocou os números, não é esse o número
do nosso telefone. Vou lhe colocar em contato com a nossa sociedade imediatamente. Disse-
lhe, agora que a vi, vamos conversar antes. Fiz todo tipo de perguntas e ela me atendeu com
todo tipo de respostas. E enquanto falávamos, ela disse, por que telefonar, venha comigo a
Lunenfeld e volte amanhã a Leipzig com a Sra. Shimerman. Disse-lhe, amanhã ela estará em
Leipzig? Bernardina disse, amanhã haverá uma palestra do Professor Nadelschticher, de
Berlim, no prédio da sociedade evangélica em Leipzig, e a Sra. Shimerman prometeu à esposa
do nosso doutor que iria com ela à palestra. Não fiquei me vangloriando para Bernardina que
fui eu quem trouxe o chapéu do Professor Nadelschticher, mas perguntei, a esposa do doutor
de vocês é tão apaixonada por palestras a ponto de viajar até Leipzig para ouvir a palestra do
Professor Nadelschticher. Bernardina disse, é que ele é o pai dela. — É o pai dela? —
Bernardina disse, você não sabia que ele é o pai dela? Ela disse que conhece você da casa do
pai, e me pediu para avisá-la se você fosse a Lunenfeld. Ela juntou uma caixa de poemas e
quer mostrá-los a você. Ah, meu senhor, quando você ler os poemas dela, vai ver como é belo
o coração de uma mulher alemã. Fico espantada que os jornais recusem a publicação deles.
No entanto, poemas como os dela, exatamente como os dela, circulam por aí publicados em
todo jornal patriota. Eu disse a Bernardina, só pelos poemas já me conviria ir a Lunenfeld,
mas tenho pressa de voltar a Berlim. E agora que deixei meus cumprimentos à Sra.
Shimerman em mãos confiáveis, não há por que telefonar.
Quando saí do hotel, passou por mim o Sr. Kitzingen, com Alter Lipa se arrastando
atrás dele. Alter Lipa me viu e deixou o Sr. Kitzingen de lado, e veio na minha direção.
Colocou a bengala no braço, esfregou uma mão na outra em sinal de alegria e disse, é bom
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quando um judeu sai ao mercado e encontra um judeu amigo. E que amigo, um bom amigo,
mais chegado do que um irmão. Na verdade, já desisti de me encontrar com você, pois Iudil
Bider me disse que você veio por pouco tempo. Agora que o encontrei por acaso, você está na
categoria de um encontro casual. Não pretendo interromper o seu caminho, por isso, vou me
juntar a você e acompanhá-lo. O caminho que você escolher, irei com você, até mesmo à
porta de Mitel, até a porta, mas sem entrar. Não tenho nada contra ele, Deus me livre, ao
contrário, gosto dele, do fundo da alma. Se ele me pedisse para abater o seu galo de expiação,
eu o abateria sem cobrar. E se ele me odeia, todo o seu ódio não é por ter achado em mim,
Deus me livre, uma calúnia, mas é porque odeia os chassídicos da Galícia, inclusive eu. E
você sabe como são bons os chassídicos da Galícia. Se todos os filhos de Israel fossem como
eles, o Messias já teria chegado. Por que você está espantado por ele odiar os chassídicos da
Galícia. E por que em Jerusalém, que abrigava o Templo Sagrado, e grandes sacerdotes havia
lá, e ofereciam sacrifícios, e o grandre Sinédrio julgava, e os justos se conduziam com
devoção, e se lá havia ódio gratuito, o que dirá em Leipzig, que fica no estrangeiro, que é uma
cidade de não-judeus, e se há na cidade uma restrita dezena de judeus puros, são ofuscados
pelos criminosos de Israel, por que não haveria, em Leipzig, ódio gratuito. Mas por que
ficamos aqui mencionando pecados, ainda mais agora, em tempo de sofrimento para os
descendentes de Jacob. E já que mencionamos Mitel, que foi feito intérprete das minhas
palavras, vou lhe contar uma coisa que tem a ver com o assunto. Certa vez havia um justo que
foi caluniado. Levaram-no ao tribunal, isto é, a uma de suas instâncias. Ocorreu que o juiz era
judeu, um judeu muito frívolo. O juiz procedeu ao julgamento e o inocentou. O justo invejou
o juiz, que teve o mérito de cumprir um mandamento como esse, isto é, emitir uma sentença
verdadeira ao fazer justiça com um justo. Esperou por ele no portão do tribunal. Quando ele
saiu de lá, disse-lhe, venda-me esse seu mérito e eu lhe darei em pagamento um gorro cheio
de moedas. E o juiz não quis. O justo disse para os que o acompanhavam, vejam como é
grande a força de um mandamento, que faz com que todo aquele que o cumpre, ainda que seja
frívolo como esse juiz de instância, renuncie a um gorro cheio de moedas pelo mérito que
conseguiu. Quando você estiver com Mitel, convém contar este fato a ele, não para que
modifique a interpretação a respeito da minha conversa, mas para que possa cumprir o
mandamento de fazer o bem para um judeu.
Antes que eu me despedisse de Alter Lipa, encontrou-me um vendedor de
antiguidades que eu costumava visitar. Ouviu dizer que me colocaram como avaliador dos
livros do Dr. Levi, portanto, quis saber quanto valem. Desviei-o a outro assunto e não me
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estendi na conversa porque temia que se me detivesse, precisaria ficar mais uma noite em
Leipzig e pagar o aluguel do pernoite.
Quando cheguei ao hotel, disseram-me que um senhor deixou uma carta para mim.
Comecei a pensar, quem é esse senhor. É impossível que seja Iudil Bider, pois os não-judeus
de Leipzig não chamam um judeu galiciano de senhor, a não ser na presença dele. E é
impossível que seja o Sr. Koenig, pois mesmo que tenha ouvido na casa de fundição de letras
que estou em Leipzig, não ouviu em que albergue estou hospedado. E é impossível que seja o
Dr. Mitel para se reconciliar comigo por não ter me acompanhado, pois quando eu estava com
ele, eu ainda não sabia para que albergue iria. Então, quem é esse senhor? Será que é Gerhard
Shimerman, porque talvez Brigitte Shimerman soube pela enfermeira Bernardina que estou
aqui e me enviou o marido. Quando abri a carta, vi que esse senhor é da casa de comércio de
livros Hirzman, e queria me ver. E como não me achou, pediu que eu o honrasse com uma
visita. Percebi pelos fatos que não veio até mim senão por causa dos livros de Levi, e quer
sondar o assunto por meu intermédio. Lamentei por terem colocado sobre mim uma
informação que não me cabe, e logo soube que isso não me veio senão por castigo. Paguei
minhas despesas no hotel, peguei minha maleta, fui até a estação de trem e comprei um
bilhete de viagem para Berlim.
E lá estava eu novamente na grande estação de trem, no meio de todo tipo de trens que
saem e chegam de um lugar a outro. Enquanto eu pretendo entrar no berlinense, chega o
grimmense. Tive a idéia de mudar meu caminho e viajar até Grimma e visitar a viúva do Dr.
Levi para lhe dizer que suspendesse a venda dos livros. Deus é testemunha que durante toda a
minha vida cuidei para não meter a cabeça nos negócios alheios, ainda mais quando são
negócios ligados a sustento, mas em se tratando dos livros de Levi, senti-me na obrigação de
sair dos meus limites e fazer todo o possível para atrapalhar a parceria de Alter Lipa, o
magarefe, Nachum Berish, o juiz, Kitzingen, o comerciante, e Iudil Bider. E não suspeitem
que eu tivesse alguma coisa contra eles, pois durante todo o tempo em que vivi em Leipzig,
freqüentei a casa de Iudil Bider. Mas vá fazer o que é preciso numa época em que seus passos
estão nas mãos da polícia do Estado. Como não peguei autorização para viajar senão de
Berlim a Leipzig e de Leipzig a Berlim, eu não podia mudar o meu trajeto e ir até a viúva de
Levi, em Grimma.
Entreguei o destino dos livros à providência e disse, que o Santo, bendito seja, faça
com eles o que melhor Lhe parecer, de minha parte, não posso fazer nada. Subi ao trem
berlinense e achei um lugar apertado. Encolhi-me e fiquei parado, às vezes era impelido para
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cima, às vezes, empurrado para os lados, de acordo com a circunstância do momento e de
acordo com o movimento dos demais passageiros, cada um empurrando com o corpo.
E lá estava eu de novo a caminho de Berlim, como no dia em que viajei com a tropa de
Brigitte. Só que quando viajei com a tropa de Brigitte, eu estava preocupado com moradia, e
agora eu estava livre de preocupação com moradia, já que tinha o meu quarto. E se a dona da
casa é uma pessoa difícil, pelo menos o quarto é bom e os móveis são bons.
Não vou me estender em elogios ao meu quarto e aos móveis, como também não vou
falar muito contra a dona da casa. Mas uma coisa vou dizer, é que às vezes convém fechar os
olhos para a natureza má de uma dona da casa difícil, em troca de um quarto bonito com
móveis bonitos. A título de gracejo eu disse, três coisas ampliam as idéias de um homem, uma
bela mulher, um belo quarto e belos móveis, e para um inquilino temporário como eu, duas
coisas já são suficientes.
Todos os espaços do trem estavam cheios e o ar fedia cada vez mais. Para mudar o ar,
fumei um cigarro atrás do outro, assim como a maioria dos passageiros. E a cada cigarro que
eu acendia perguntava a mim mesmo, aquele comerciante grimmense que escondeu no bolso
três charutos para o dia em que seus três filhos voltassem da guerra, se estivesse aqui,
suportaria a tentação e não fumaria? Depois que acabaram todos os cigarros que eu tinha no
bolso e o último fósforo se apagou, a fuligem esfumaçada de Berlim começou a escurecer.
Com o crepúsculo, entrei em Berlim. Depois de comer alguma coisa, fui no trem
metropolitano até Friedenau.
Cheguei ao meu quarto, deixei a maleta e me sentei na penumbra sem acender a luz,
para deixar meus olhos descansarem de tudo o que viram de dia, pois meus olhos estavam
ardendo por tantas coisas que vi.
Quando me sentei, pensei na minha viagem a Leipzig e perguntei a mim mesmo, será
que por causa do chapéu de fulano, que queria se mostrar com ele, precisei me deslocar numa
viagem e gastar dinheiro. Procurei atinar com o mistério da coisa, e não achei outra coisa
senão isso. Os passos do homem estão determinados e direcionados desde a hora do
nascimento até a morte. O homem vai fazer alguma coisa e não termina, obrigam-no a voltar
para o mesmo lugar até que termine de fazer. Se não terminar na segunda vez, forçam-no a
voltar pela terceira vez, quarta, e até mais. Não sei o que eu tinha para fazer em Leipzig. De
qualquer forma, com esta viagem, livrei-me de uma viagem, e quando chegar a hora de voltar
para a Terra de Israel, é um impedimento a menos.
Depois de ficar sentado por um curto tempo, levantei-me do lugar e dei dois ou três
passos. O chão fez ruído. Voltei a pisar e o chão voltou a fazer ruído. Acendi a luz e vi que o
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tapete que cobria o chão foi tirado, e vi que meu quarto estava diferente do que era antes.
Todos os móveis que estavam ali o tempo todo foram retirados, e no lugar deles havia móveis
danificados e feios. Além dos quadros de madeira da mitologia alemã e da Canção dos
Nibelungos, não restou nada para o deleite dos olhos.
Andei pelo quarto a passos longos e curtos, e a cada passo, o chão respondia, irritado.
Da mesma forma, o Sr. Hagen. Não digo que ele falava de dentro dos quadros de madeira,
mas os olhares dele eram como uma linguagem de ódio. Seu rosto alemão, fino e corado, com
os olhos tristes que pareciam os do general Wrangel, a quem os berlinenses costumavam
chamar de Papai Wrangel, era severo e cruel, com o acréscimo de alguma coisa que era
metade desespero e metade cobiça sem limites. Durante todo o tempo em que o quarto estava
com os móveis bonitos, não percebi a crueldade dele, quando foram levados os belos móveis e
o quarto se esvaziou de tudo o que era belo, ele se mostrou como realmente é.
Chamei a dona da casa e ela não veio. Fui procurá-la na cozinha. Achei-a sentada no
meio de um grupo de filhotes de cachorro, enquanto enxugava a boca no focinho de um
cachorrinho e lhe dava os lábios para que ele lambesse a sua saliva. Disse-lhe, boa noite,
minha senhora, o que fizeram com o meu quarto? Ela empertigou toda a sua pequena estatura
enquanto segurava o cachorrinho e colocava os lábios que mal lhe cobriam os dentes e
perguntou, o que foi que eu fiz com o seu quarto? Disse-lhe, você não fez nada, mas tirou
todos os móveis bons. Ela começou a insultar e a xingar o marceneiro que veio com policiais
e pegou os móveis de seu filho. Disse-lhe, como são feios os móveis que você colocou no
meu quarto. Ela disse, como é feio aquele homem, uma mãe cujo filho tombou pela pátria, e
ele fica cobrando os detalhes de cada pequena coisa.
Mas eu fui detalhista naquele momento. Esse não é o lugar e essa não é a hora de
contar tudo o que houve entre nós, e esse não é o lugar e essa não é a hora de contar todas as
exclamações de reprovação que a mulher gritou para o marido por ele ter me dado mau
exemplo. Francês, ela gritou para ele, Judas Iscariotes, ela gritou, inglês, ela gritou. Vi que é
impossível ficar morando com eles e comecei a procurar um quarto em outro lugar. E
novamente se repetiram as coisas que causam muita fadiga, sem limites. Por fim, quando
achei um quarto, não achei um carregador para transferir meus pertences, pois todo pedacinho
de mão que restou intacto da guerra queria ser coroado com ouro. E se não fosse Peter
Temper, que me mandou o bom Bulimil, um servente entre os serventes dos animais, meus
pertences ficariam com a comandante dos cachorros. E apesar de que achei um carregador
para transferir meus pertences, não chegaram às minhas mãos todos os meus pertences, pois a
comandante dos cachorros tirou da minha bagagem alguns objetos que eu estimava. Eu a
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perdôo por todos, menos por um lençol de linho que minha mãe, descanse em paz, havia me
dado quando fui para a Terra de Israel. O bom Bulimil me contou que viu aquela mulher
mexendo nas minhas coisas e viu que ela pegou um belo lençol, e ele lhe disse, um lençol
como esse certamente pertence ao senhor, e ela disse, se pertencesse a ele eu não pegaria, ele
repetiu e lhe disse, eu afirmo que pertence ao senhor, e ela repetiu o que disse antes. Ele
voltou a lhe dizer, contarei a ele tudo o que eu disse e tudo o que você respondeu, e ela disse,
conte, e ele disse, assim farei, e ela disse, eu o aconselho a não contar nada, pois se você
contar, ele pode vir com a história de que você roubou o lençol. No meio da conversa, chegou
o marido dela e perguntou, o que está acontecendo aqui, e Bulimil contou tudo a ele, e o
marido disse a ela, cadela, se você não devolver o lençol, vou rachar a sua cabeça. Ela logo
começou a brigar com ele, e Bulimil se levantou e foi embora. E ele espera que eu vá tirar o
roubo da mão dela. Mas eu não tirei o roubo das mãos dela e não fui até a casa dela para pedir
o roubo, porque estava ocupado com meu novo quarto.
Entrei no meu novo quarto, que numa hora de aperto pode ser chamado de quarto.
Rondou-me uma difamação por parte da comandante dos cachorros, que me acusou de coisas
que não faziam nem fazem parte da minha natureza. As paredes ouviram e contaram à criada.
A criada ouviu e contou à dona da casa. A dona da casa ouviu e se comportou comigo como é
costume se comportar com uma pessoa de quem se ouviu uma calúnia. A criada viu que eu
sou um homem assim, que se pode fazer com ele tudo o que se quer, e começou a fazer
comigo segundo a vontade dela. Roubava e se comportava comigo com grosseria, e quando
eu lhe dizia, devolva-me o que roubou de mim, ocorria-lhe dizer que eu a estava caluniando e
me tratava com desprezo. Seria justo procurar outro apartamento e não procurei; já havia
aprendido por experiência que não existe um apartamento sem um problema que é pior do que
o anterior. O que fizeram os apartamentos, tramaram entre eles de me alugarem uns aos
outros. E me parece que fizeram de mim um tipo de mercadoria especial, pois se lhes
dissessem, vocês são maus, um bom homem mora com vocês e vocês o tratam com más
ações, respondiam dizendo, então vamos entregá-lo a vocês, vamos ver como vocês o tratam.
E apesar de que me refiro ao fato com lealdade, posso declarar que todos eles são iguais na
maldade. De tantos problemas, adoeci e me levaram ao hospital. O caso do hospital é assunto
para um livro por si só. Então voltarei ao assunto da minha moradia sem deixar de mencionar
que todo o tempo em que estive no hospital, fiquei livre de me apresentar diante da comissão
de examinadores que leva soldados à guerra.
Aqui eu deveria contar como foi que consegui comprar roupas novas e calçados novos,
depois que tudo o que cobria o meu corpo já começava a ficar puído, para que não digam,
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você é um ingrato. Consegue comprar roupas e calçados no tempo de guerra e não faz disso
um feriado, portanto, vou passar por todo esse assunto silenciosamente, pois se eu fosse
contar, precisaria contar que as roupas e calçados não eram da estação, mas eram de verão,
leves e finos, e era o período de inverno, frio e neve.
Voltarei ao assunto da moradia. Então, morei no lugar que morei, sem alegria e sem
favorecimento, e pagava minhas aflições integralmente, de acordo com as contas da dona da
casa, que eram escritas com letra bonita e números bonitos. Não é à toa que a Alemanha se
vangloria de suas escolas, e até mesmo mulheres que alugam quartos por causa da contenção
sabem escrever e fazer contas, e há as que sabem meio Schiller de cor, e sabem declamar com
convicção e com sentimento. Schiller, o poeta dos alemães, sabia colocar na boca das moças
de seu povo palavras de arte, justiça e retidão, de forma que elas vissem a si mesmas como se
todas as boas qualidades lhes pertencessem, e que nenhuma nação ou cultura tomava parte
delas. Assim que chega até elas alguma outra coisa que lhes proporcione prazer,
imediatamente esquecem todos os poemas e elegias que costumam recitar.
Então, eu morava no lugar que morava, e assentia com a cabeça a cada insulto, às
vezes rindo da dor e às vezes sentindo dor sem rir. A dona da casa incluiu na minha conta a
despesa de meio limão, e jamais vi um limão. Disse-lhe, você incluiu meio limão na conta.
Ela disse, achei uma mancha na sua toalha, que não saía a não ser com limão. Disse-lhe, você
me fez lembrar da minha toalha. Onde está ela? Ela disse, rasgou de tanto lavar e joguei fora.
Disse-lhe, você é uma mulher de valor, Sra. Blotowarem, numa época em que não se acha em
todo o território da Alemanha uma casca de limão para um doente, você achou meio limão
para limpar uma toalha. A Sra. Blotowarem ouviu o elogio e sorriu, do jeito que as alemãs
sorriem.
Assim se passou um mês, dois meses e três meses, e toda segunda e quinta-feira eu era
obrigado a me apresentar diante de uma comissão de examinadores que batiam no meu
coração e verificavam se este utensílio é bom para a guerra. Mas este utensílio estava
destruído, e nenhum comandante de tropa sentiu necessidade dele. Como a guerra prosseguia
e os melhores rapazes foram imolados, deixaram de ser minuciosos e começaram a levar à
guerra todo aquele que andava sobre as pernas.
Um dia fui até Tempelhof com os outros candidatos, alguns mutilados, alguns feridos,
alguns mancos e cegos, alguns doentes das demais enfermidades ruins. Quando vi todos
aqueles fragmentos de pessoas que arrastavam seus pedaços diante do comandante da guerra,
eu disse para mim mesmo, se você escapou da guerra até agora, agora os inimigos de Israel
também não se salvarão. Eu também fui arrastando meus pedaços até que cheguei a
165
Tempelhof. Enfiei-me num pátio onde estavam os comandantes da guerra sentados,
examinando e determinando entre os candidatos, quem iria à guerra imediatamente e quem
ficaria até a próxima convocação. Enquanto estavam vestidos, pareciam pessoas. Quando
tiraram as roupas para se apresentarem diante dos comandantes da guerra, pareciam cadáveres
que não foram levados à sepultura. Entreguei meu espírito nas mãos do deus dos espíritos e
comecei também a tirar os sapatos e as roupas e a me preparar para me apresentar aos
comandantes da guerra.
Ouviram-se rumores e ouvi quando contaram que os servidores da armada alemã
pararam de indicar candidatos. Ainda não sabíamos até onde as coisas iriam chegar. Mas
percebemos que as estratégias da Alemanha mudaram, alguns interpretaram que uma
revolução estava para começar, e outros disseram que esse era o início da revolução. Antes
que me mandassem para o campo de batalha, o Sr. Imperador fugiu para fora das fronteiras de
seu país, e muitos senhores da guerra fizeram como ele. E já que os que faziam a guerra
fugiram, acabou-se a guerra.
O que aconteceu depois disso, os acontecimentos e as decorrências dos
acontecimentos, não tem tamanho e não tem fim. Se Deus me der forças, acharei uma gota de
tinta para escrever uma das mil milhares de coisas. Neste livro, vim contar apenas uma
pequena passagem daquelas coisas que me ocorreram no tempo da guerra. Os olhos deste
homem não são ambiciosos e ele escreve, anota e relata os pequenos acontecimentos. Mas
uma coisa é certa, as pequenas coisas conduzem às grandes coisas. Por causa de um
pedacinho de um pequeno quarto que não achei no estrangeiro, consegui viver na Terra de
Israel. Em algum lugar e em algum tempo, se Deus me der forças, acharei uma gota de tinta
para escrever uma parte dos fatos.
Graças ao sol da Terra de Israel, afastei do meu coração todos os demais assuntos, o
jardim zoológico e meu amigo e conhecido, responsável pelas feras do jardim. Também
desviei meu pensamento do grande bibliógrafo, Dr. Mitel, e também da encantadora Brigitte,
aos quais estive ligado durante todo o tempo em que morei no estrangeiro. E não é preciso
dizer, da viúva do Dr. Levi, que já havia retirado do meu pensamento antes de tudo, desde o
dia em que soube que estava doente e não tinha cura.
Mas essa mulher, de quem todos já haviam desistido, aconteceu-lhe o milagre dos
milagres. Sua saúde voltou, assim como era antes de adoecer. E não somente isso, mas suas
forças aumentaram ainda mais, e eis que ela está mais saudável do que todos os médicos que
cuidaram dela, e até mesmo do que aquele jovem médico que estava com ela no hospital
quando a visitei. E eis que nessa geração os milagres não são freqüentes, então, por que digo
166
que o milagre dos milagres lhe aconteceu, é que usei uma expressão transcendente, e tudo o
que lhe ocorreu foi por conta da natureza. Como assim, certo dia ela sentiu que as bandagens
que os médicos colocaram nela estavam lhe apertando. Pediu que alargassem um pouco.
Assustaram-se e disseram, Deus nos livre, qualquer afrouxamento pode causar a morte. E
além de não alargarem, apertaram ainda mais e acrescentaram outras. Essas bandagens
apertavam e lhe tiravam a respiração. Enfiou o dedo nelas para afrouxá-las um pouco. Assim
que colocou o dedo, romperam-se. E quando se romperam, ela se sentiu um pouco aliviada.
Continuou rompendo até que todas se soltaram. E quando todas se soltaram, suas forças
começaram a voltar e seus olhos se abriram, e ela se viu deitada numa cama de hospital,
coberta com travesseiros e cobertores, afastada de todos, separada por uma divisória, rodeada
de frascos e mais frascos contendo drogas de médicos que lhe tapavam a luz do sol. Afastou
alguns e jogou fora outros. E os que estavam vestidos de branco ainda cochichavam dizendo,
o fim se aproxima, chegou o fim. Quando ela esticou os braços sentiu que está dominando o
corpo. Alongou-se e tentou se levantar da cama. Quando tentou se levantar — levantou-se.
Imediatamente ordenou aos funcionários do hospital que lhe trouxessem os seus vestidos. Eles
não se atreveram a negar. Foram e trouxeram. Quando vestiu suas próprias roupas, o brilho do
seu rosto voltou, e ela voltou a ser o que era antes de ser internada no hospital. Começou a se
dirigir aos funcionários para que fizessem tudo o que ela precisava.
Voltarei ao meu assunto. Então, como não achei um quarto no estrangeiro, fui
obrigado a voltar para a Terra de Israel. E como a terra estava em ruínas e nem todos os que
imigravam achavam moradia, peguei um pedaço de solo e construí uma casa com alguns
quartos. Em se tratando de mim, basta-me um quarto, então, por que tantos quartos, porque
arrumei lugar para os livros do Dr. Levi, pois quando eu estava quase imigrando, recebi uma
carta da viúva dele, que teve a idéia de imigrar, e não sabia o que fazer com todos aqueles
livros que o marido lhe deixou, porque levar todos era um grande transtorno, e escolher
alguns e deixar outros, quem pode escolher as coisas de estimação do marido; eu disse para
mim mesmo, vou acrescentar dois ou três quartos ao meu e arrumarei lugar para os livros do
Dr. Levi.
Não se passaram muitos dias até que a casa estava construída, pois essa é uma das
vantagens da Terra de Israel: como os artífices de lá desejam a reconstrução do país, são
rápidos nas suas atividades e terminam o serviço no tempo certo. E quando deixaram a casa,
peguei um quarto para mim, e todos os outros quartos separei para os livros do Dr. Levi, e
quanto mais me dedico a eles, mais eles me estimam, e eu a eles. E quando ando por esses
quartos que ainda estão vazios, mas que irão se encher com aqueles livros, louvo todos os
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fatos desfavoráveis que ocorrem ao homem, que no final, lhe são favoráveis. Venha e veja por
quantas aventuras passou este homem. Morava num quarto apertado, sem sol, sem luz, sem
alegria, e não achava outra moradia; chegou-lhe uma carta da viúva do Dr. Levi pedindo um
conselho a respeito dos livros do marido, ele foi e viajou para vê-la, chegou e a encontrou
doente e desenganada, voltou abatido, e quando voltou, não achou lugar para colocar a
cabeça, porque o quarto que tinha foi dado a outro. Foi procurar outro quarto, achou, mas não
por muito tempo, e quando lhe parecia confortável, foi obrigado a sair. Foi exilado de um
lugar a outro e de um quarto a outro, e cada lugar e cada quarto tinham os seus infortúnios, e
cada infortúnio crescia e se multiplicava e gerava muitos outros. Quando os infortúnios
aumentaram muito e ficou impossível suportá-los, Deus teve piedade dele e o afastou deles, e
o restituiu ao seu lugar, à Terra de Israel. Eis que todos os fatos desfavoráveis que ocorrem ao
homem, no final, lhe são favoráveis. Será que todo o favorecimento tenha encerrado aqui,
não, é preciso dizer que um favorecimento foi acrescentado aos demais. E qual é, é o
favorecimento da casa, pois ele obteve uma casa na Terra de Israel. Os olhos deste homem
não são ambiciosos e ele sabe que não foi por seu próprio mérito que obteve a casa, mas pelo
mérito dos livros do Dr. Levi, que precisam de uma casa.
E como nesse meio tempo me ocorreram muitas aflições e saí delas, dei o nome Até
agora ao meu livro, numa linguagem de agradecimento pelo que passou, e de oração pelo que
está por vir, e é como dizemos na Bênção do Cântico, Até agora Tua misericórdia nos ajudou,
e não nos abandonou Tua benevolência, e não nos desampares, nosso Deus, eternamente.
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