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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Luciana Mattos
Adolescente autor de ato infracional:
falência do pai ou falência da pátria?
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Luciana Mattos
Adolescente autor de ato infracional:
falência do pai ou falência da pátria?
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em Serviço
Social pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, sob orientação da Profª. Doutora
Maria Lúcia Rodrigues.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
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“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.
Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
Bertold Brecht
Aos meus “filhotes” Caio e Ana Gabriela, que com os seus
sorrisos me ensinam que viver vale a pena.
À minha querida mãe Leosira, o imenso e incansável apoio,
sem o qual a realização desta pesquisa não teria sido
possível.
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Maria Lúcia Rodrigues, orientadora deste trabalho, agradeço a dedicação ao
me acompanhar neste percurso acadêmico, mormente no que se refere à confiança e ao
apoio devotados.
À Profª. Drª. Myriam Veras Baptista a participação na banca examinadora e as valiosas
contribuições desde a qualificação.
À Profª. Drª. Maria Liduína de Oliveira e Silva a aceitação do convite para compor a banca
examinadora, trazendo, igualmente, inexcedíveis contribuições.
À Profª. Drª. Maria de Lourdes Trassi os “retornos” dados a partir do primeiro contato com
o material, na banca de qualificação.
À Profª. Drª. Márcia de Lima Farias, parceira desde os primeiros dias do Mestrado, louvo
seu apoio imensurável e o constante estímulo para a realização desta pesquisa. A sua
forma de compreender o universo acadêmico torna as reuniões de pesquisa deveras mais
humanizadas.
Ao Dr. Flávio Frasseto, Defensor Público, que não pode dimensionar o quanto a sua
disponibilidade em me receber, ceder materiais, dialogar e sugerir caminhos e leituras
auxiliou na construção desta pesquisa. Agradeço a apresentação que me foi feita dos
teóricos da criminologia crítica e as suas produções tão relevantes para esta dissertação.
O primeiro diálogo que tivemos foi, realmente, um divisor de águas na confecção deste
texto.
À querida Roseli Albuquerque, sem cujo auxílio eu não teria continuado este percurso,
reverencio o incentivo para que eu chegasse até a seleção do mestrado. A sua
sensibilidade e o seu senso de humor tornaram mais leve a realização do estudo, além das
risadas entre almoços e empadinhas.
O acúmulo de conhecimento na área da infância e da juventude e a sua capacidade de
reflexão e de articulação enriqueceram a construção deste trabalho, não se podendo
olvidar, ainda, o estímulo, principalmente nos últimos dias, essencial para que eu lograsse
êxito.
À querida Kátia, secretária do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, agradeço a
atenção cotidiana e o carinho tão importante nesta árdua jornada de pesquisa.
Aos adolescentes inseridos em medidas sócio-educativas, sobretudo àqueles que em
algum momento cruzaram os meus caminhos, direciono este trabalho, que somente terá
sentido caso lhes produza reflexos. A indignação em relação a todas as violações a que
estão submetidos foi o motor que impulsionou esta pesquisa.
A todos os familiares de adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa, em
especial aos que eu conheci na AMAR (Vicente, Conceição, Valdinez, Miriam e tantos
outros), desejo, sinceramente, que algum dia o Serviço Social e a Psicologia possam estar
a serviço de uma transformação eficaz em suas realidades. Aproveito o ensejo para
estender o agradecimento também a José Renato, adolescente que conheci na AMAR e
do qual sempre me lembro: a sua história é um estímulo para que eu continue a atuar
nesta área.
A José Resende Filho e Givanildo Silva, profissionais e militantes da área da infância e da
juventude, com os quais trabalhei durante os meus primeiros meses na FEBEM e que me
mostraram que os adolescentes são sujeitos de direitos e que é possível a realização de
um trabalho pedagógico, destaco que a minha luta pela efetivação desses direitos tem
como uma de suas referências os nossos dias de trabalho.
A todos os pesquisadores do NEMESS Ensino e Questões Metodológicas em Serviço
Social, em especial à Fátima Fontes, sempre acreditando no valor do afeto, e à Sandra,
que, vindo de Porto Alegre, em uma conversa antes da qualificação, acalmou os meus
dias.
À Matsue, chefe do cartório do DEIJ Departamento de Execuções da Infância e da
Juventude -, que me orientou quanto aos procedimentos necessários para a solicitação de
autorização para pesquisa e me recebeu para a realização da análise documental, felicito-
lhe e agradeço-lhe a organização do corpus e a atenção dispensada, mesmo diante de
uma pletora de trabalho.
À Francisca (Assistente Social chefe) e à Maria Costantini (Psicóloga - chefe da Equipe
Técnica Judicial) terem-me recebido atenciosamente e fornecido indicações dos processos
que já haviam passado por avaliações com a Equipe Técnica. Sem esse apoio, não teria
sido possível operacionalizar a realização da pesquisa.
À CNPq o apoio financeiro durante a pesquisa, fundamental para que fosse desenvolvida.
À Profª. Drª. Miriam Debieux Rosa, psicanalista, lacaniana, com a qual, freqüentando sua
disciplina, tive oportunidade de dialogar acerca da “função do pai na psicanálise”.
Agradeço ter-me dado segurança, com sua bagagem acadêmica, para afirmar que alguns
termos utilizados como linguagem psicanalítica não passam de “chavões psicologizantes”.
Com suas aulas e indicações de leitura, aprendi sobre o diálogo entre a psicanálise e a
sociedade.
Aos companheiros do Conselho Regional de Psicologia, em especial Marilene Proença,
Maria Auxiliadora Arantes e Lúcia Toledo, parceiras na vivência de uma Psicologia com
compromisso social e preocupada com a transformação da realidade, devo dizer que, junto
a eles, me sinto estimulada a pensar uma Psicologia para além dos consultórios.
À Áurea Fuziwara, Presidente do CRESS/SP, referencial para a efetivação do projeto
ético-político do Serviço Social, desejo que, neste período à frente do CRESS, o seu
compromisso possa refletir nas ações dos demais profissionais do Serviço Social.
À querida amiga Lilian de Moura, Assistente Social da Fundação CASA, agradeço permitir-
me experimentar, ao seu lado, uma atuação do Serviço Social verdadeiramente
compromissada com os adolescentes e com seus familiares. Revelou-me existirem
excelentes profissionais escondidos nas estruturas institucionais.
A sua demonstração de amizade é a incorporação daquela música que diz ”amigo mais
certo, nas horas incertas”, demonstrada tanto nos momentos de alegria, quanto nos de
tristeza.
À Andrea Rocha, Assistente Social, com a qual compartilhei poucos, todavia
significativos, dias de trabalho na ex-FEBEM e que hoje é Professora da Graduação em
Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Você é a incorporação do projeto
ético político do Serviço Social. Agradeço a diferença que você faz no mundo, através das
diversas batalhas que enfrenta para garantir a efetivação de direitos de crianças e
adolescentes.
Aos meus irmãos Edson e Marcio, às cunhadas Bárbara e Marlene, à afilhada Carol e às
sobrinhas Isabela e Maria Clara, reconheço que a realização desta pesquisa, em muitos
momentos, distanciou-me deles, deixando-me impaciente. Agradeço a torcida!
À minha cunhada Bárbara agradeço a amizade incondicional nos momentos mais difíceis
da minha vida. Sem o seu ombro, eu não teria resistido até o desfecho.
Agradeço, por fim, mas não com menor empatia e importância, a todas as pessoas que,
de alguma forma, fazem parte daquilo que sou e a tantas outras que aqui o foram
citadas, mas que levo comigo.
Resumo
Autora: Luciana Mattos
Título: Adolescente autor de ato infracional: falência do pai ou falência da pátria?
O presente trabalho objetiva realizar uma análise por meio de relatórios, laudos e
avaliações elaborados por psicólogos e por assistentes sociais do Poder Judiciário,
enfatizando-se as considerações acerca da dinâmica familiar, notadamente expressões
como “família desorganizada”, “fragilidade do pai” e similares, as quais aparecem nesses
documentos, em diálogo com a questão social.
A construção desta pesquisa deu-se a partir do trabalho desenvolvido na qualidade de
psicóloga na ex-FEBEM/SP Fundação do Bem-Estar do Menor - e na AMAR
Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco -, ocasião em que
se teve contato com diversos laudos de adolescentes e, outrossim, com seus familiares.
Observaram-se, então, uma tendência à excessiva culpabilização destes últimos,
sobretudo às supostas falhas do pai no exercício de suas funções, e, por outro lado, a
pouca relevância dada a outras instâncias de vida do adolescente, o que está
consubstanciado na ausência de dados sobre os fatores sócio-econômicos.
A amostra obtida, após autorização do Departamento de Execuções da Infância e da
Juventude de São Paulo (DEIJ), açambarca vinte e nove processos referentes a
adolescentes autores de ato infracional em cumprimento de medida sócio-educativa, na
modalidade de internação.
A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo, de L. Bardin, definindo-se categorias de
análise do material.
Em relação aos resultados, na maioria dos estudos sociais, não se observaram referências
a questões sociais, silenciando-se a respeito do descompromisso do Estado na formulação
e na execução de políticas públicas de atendimento à população. Os “problemas”
esgotam-se em questões familiares e de personalidade, com observações despolitizadas e
abstraídas de suas violentas condições históricas.
Palavras-chave: adolescente autor de ato infracional, função do pai, laudos sociais, Poder
Judiciário.
Abstract
Author: Luciana Mattos
Title: Adolescents committing transgressions: disintegration of the father or
disintegration of the country?
The present research paper aims to carry out an analysis based on reports,
accounts and assessments structured by psychologists and Judicial Power social
workers, focusing on issues related to family dynamics, markedly expressions such
as “disorganized family”, “father frailty” and others alike, present in the
aforementioned documents, dialoging with the social issue.
This research has emerged from the work I developed, as a psychologist, at the
then FEBEM/SP São Paulo’s State Foundation for The Well-Being of Minors
and at AMAR Association of Mothers and Friends of Children and Adolescents at
Risk –, opportunity in which I had access to various reports by adolescents, as well
as the chance to get in contact with their parents. Concerning the latter, a tendency
towards excessive blaming has been observed, especially with regard to both the
presumed failures by the father in the exercise of his role, and, on the other hand,
the low relevance attributed to other life instances of the adolescent, evidenced by
the absence of data on socio-economic factors.
The sample, obtained with the authorization of DEIJ (São Paulo’s Department of
Enforcement of Childhood and Youth), comprised twenty-nine lawsuit cases related
to adolescents who had committed transgressions and were serving socio-
instructional penalties of the internment type.
The methodology applied was that of content analysis, by L. Bardin, and thereby
material analysis categories were determined.
As for the result, in the majority of social studies, no reference to social issues was
observed, highlighting a silence with regard to the State’s lack of commitment to
formulating and executing public care policies. The so-called “problems” are
reduced to family and personality issues, with depoliticized observations, erased of
their violent historical conditions.
Keywords: adolescent who committed transgressions, father role, social reports,
Judicial Power
Sumário
Introdução 01
Capítulo 1: O Poder Judiciário e
o “saber” das equipes interprofissionais 17
1.1 O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário 20
Capítulo 2: Catalogando Famílias: o discurso técnico à serviço do quê?
Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante ? 24
2.1 As condições sócio-econômicas 35
Capítulo 3: O Pai na psicanálise: Reflexões críticas 40
Capítulo 4: O Estado Transgressor: Entre limite e transgressão 50
4.1 A fragilidade dos laços sociais 52
Capítulo 5: Metodologia 55
5.1 A amostra 57
Capítulo 6: As Categorias Temáticas 59
6.1 O pai e as configurações familiares 60
6.2 Autocrítica 67
6.3 A Instituição 71
6.4 A questão social 73
Considerações Finais 87
Bibliografia 98
1
Introdução
Era julho de 1.997. Estava sendo contratada como psicóloga na FEBEM/SP: o
primeiro trabalho após a conclusão do curso de graduação.
O que se denominava treinamento de funcionários incluía uma visita ao Complexo
Tatuapé. Tão logo todo o grupo que seria contratado reuniu-se, fomos conhecer algumas
unidades consideradas modelos.
Algumas supervisoras da FEBEM/SP acompanhavam-nos e iam-nos apresentando
aquele universo, evidentemente sob a sua ótica, o que, por inevitável, explicitava a lógica da
própria Fundação.
Ao entrarmos no Complexo, fomos logo informados da existência de divisões em
circuitos leve, médio e grave. Lembro quando nos foi apresentado este último circuito: a
primeira cena que presenciei foram aqueles adolescentes, enfileirados e com as mãos para
trás, trajados de moletons iguais, cruzando aquelas telas.
A Unidade Educacional 12, reputada modelo, foi a unidade do circuito grave eleita
para nos ser apresentada naquela ocasião. O referido grupo entrou na Unidade, enquanto
alguns adolescentes passavam por um corredor, cruzavam algumas portas, atravessavam
outras onde não havia ninguém e iam pedindo “licença, licença”, todos de mão para trás,
cabeça baixa, clamando licença. Para quem? Para existir?
Após assistir às cenas descritas, foram nascendo os meus primeiros incômodos,
impactos que me mobilizam até hoje e que me trouxeram para o Programa de Serviço
Social. Foi a partir desses eventos que surgiram minhas primeiras indagações: como tanta
2
humilhação poderia ser modelo, como aquelas supervisoras, dentre as quais psicólogas e
assistentes sociais, enxergavam aquilo de forma tão natural, insista-se, como modelo de
gestão?
Licença foi a única palavra que ouvi os adolescentes pronunciarem.
Ao sairmos da Unidade, constatamos que o diretor chegava. Tratava-se de um
homem de estatura baixa e que nos foi apresentado como “fulano, pequeno no tamanho,
mas é um grande diretor”. Saí de com um nó, ou vários - na cabeça, no coração e na
garganta.
Transcorrida uma semana, quando retornei ao Tatuapé para o primeiro dia de
trabalho, é que ficaria sabendo onde trabalharia, em qual circuito. “Você, Luciana, vai ficar
no circuito grave”. Logo pensei: era mesmo onde eu queria estar, pois o intuito era
compreender aquela gica, ouvir outras palavras, que não licença. A meu juízo, era
patente que os citados adolescentes tinham vida e muito mais para falar. Enfim, era naquele
local em que eu queria estar.
Fui designada para trabalhar na Unidade 13, cuja localização ficava ao lado da
Unidade do “grande diretor”. Recebida pelo Senhor Diretor José Resende, a quem devo
muito em relação à construção de olhar não perverso relativamente aos adolescentes,
principiei a vivenciar a execução de um trabalho sócio-educativo e, a partir dessa
experiência, posso assegurar que esse tipo de trabalho é possível e, mais do que isso,
necessário, como direito e não como utopia.
Logo nesse primeiro contato na sala do diretor, apresentou-se um adolescente muito
exaltado e nervoso, ladeado por um funcionário que afirmava que ele e outro adolescente
haviam se desentendido, tendo inclusive chegado às vias de fato.
3
Em vista disso, o Sr. José Resende tratou de conversar um pouco com o
adolescente, que se acalmou e, conforme sugestão do próprio diretor, seguiu para a horta,
que então se cultivava.
O diretor já havia me informado que assumira, havia uma semana, a direção daquela
unidade e que estava implantando várias ações, sendo a horta uma delas. Também disse
que não gostaria de me designar, naquele momento, para ler prontuários, tampouco lhe
agradava a idéia de confinar-me numa sala, como acontece entre os técnicos da
FEBEM/SP.
Após conversarmos, disse que eu poderia ficar à vontade para falar com os
adolescentes, sugerindo que tentasse travar algum contato com aquele adolescente, que
então já se encontrava na horta.
Quando cheguei à pequena plantação, estava o adolescente com a enxada em
punho, junto a um outro jovem, cada qual de um lado do terreno. Fui conversando com
aquele que já tinha visto na sala e, quando um funcionário apareceu na porta e gritou o
nome do outro, percebi que eram os dois que haviam se desentendido, ou seja, estava
diante de dois jovens recém enfurecidos e de uma enxada.
Pareceu-me, então, que a lógica da Unidade seria outra e que falar algo que não
fosse “licença” seria possível e até desejável. Percebi que o diretor quis-me colocar em
outro lugar, que não o da comodidade, para abrir outras possibilidades de intervenção.
Depois, com mais intimidade, eu e o diretor demos muitas risadas: eu numa horta,
em meu primeiro dia de trabalho, com dois meninos que haviam brigado, um dos quais
ostentava uma enxada. Certamente, não havia tido essa aula na graduação.
4
Tudo quanto aprendi naquele universo não tivera na Academia. A construção dessa
pesquisa permite-me retomar algumas cenas e histórias que marcaram minha trajetória e
foram-me ajudando a definir meu objeto de pesquisa.
Os primeiros dias de visita de familiares foram significativos; as observações, mais
do que isso. Pode-se dizer que as interações com os familiares marcaram a minha trajetória.
Que expressão era aquela dos familiares, das mães nos dias de visita, que dor tão profunda,
como dimensionar? E os pais? Que homens eram aqueles, que histórias teriam? Sentiam-se
extremamente humilhados com aqueles procedimentos: filas imensas, revista e insultos.
Quantos pareciam querer dizer no olhar: Eu não sou culpado”? Quanto as pessoas
que lhes atendiam muitas vezes pareciam dizer com gestos, olhares e palavras: “Estamos
aqui com o seu filho que você não conseguiu educar”? De quantas falências eles eram
acusados e quantas falências de outras instâncias até hoje são omitidas, ficando no lugar do
não dito?
Outro cenário importante foi o Forum. Certa vez, na audiência de um adolescente
cuja mãe acompanhava, o juiz, com toda arrogância que é característica de alguns
membros da magistratura, perguntou-lhe: “Tem outros filhos?”. Ao que a mãe respondeu:
“Tenho sim senhor, mais três”. E aí ele emendou: “São todos bandidos?”
Que lugar era aquele? Que perguntas eram essas? Indescritível o olhar da mãe ao
ouvir aquela pergunta. Sempre que me lembro da cena, vem à lembrança uma composição
feita por alguns adolescentes da FEBEM/SP:
Chega perto de mim...
Me deixa falar...
Você vem de muito longe...
Para me condenar...
5
Contar a experiência de trabalho na FEBEM/SP, sem mencionar a tortura, não seria
possível. Num dos primeiros dias em que acompanhei a visita de familiares, após o término
da visita, ainda na Unidade, os adolescentes no pátio começaram a chamar-me para ir até lá
ouvir um som que se propagava de uma unidade vizinha: “Encosta aqui para ouvir,
senhora”, dizia um deles.
As unidades eram co-vizinhas e as paredes, geminadas. As janelas altas de uma
davam para o pátio da outra.
Quando comecei a ouvir, vislumbrei serem sons de socos, gritos, pancadas e
gemidos. Adolescentes estavam sendo agredidos por funcionários que gritavam:
“Vagabundo! Ladrão!”
Acionamos, imediatamente, o diretor da nossa unidade, e as denúncias foram feitas,
tendo sido o diretor da unidade vizinha afastado, uma vez que o fato tomara uma proporção
gigantesca e contornos dramáticos. Ganhávamos, assim, um grupo de funcionários rivais.
O que quero ressaltar, porém, é que quase “toquei” as agressões, aqueles gritos
nunca mais esqueci. Desde então, sempre que escuto um relato de agressão a
adolescentes, não fico pensando: “Será que é assim, do jeito que os adolescentes dizem?”
Aquele episódio norteou minhas ações e norteia até hoje, desde o meu pedido de demissão
da FEBEM/SP até a minha atual participação nas Comissões de Direitos Humanos e da
Criança e do Adolescente do Conselho Regional de Psicologia.
Outros episódios tão impactantes vieram em seguida. Novos rostos, sorrisos,
lágrimas, adolescentes abusados sexualmente por outros adolescentes e os “seguros”,
adolescentes duplamente penalizados, além de toda a perversidade institucional. Alguns
6
permaneciam isolados para não serem alvos de retaliações e de agressões, o que poderia
resultar, evidentemente, em óbito.
Vale ressaltar que a denominação “seguro” surgiu entre os próprios adolescentes e
poderia ser usada para nomear tanto um adolescente que estivesse cumprindo a medida de
internação por prática de estupro, quanto para nomear um adolescente que houvesse
levantado um pedaço da sua própria camiseta ou deixado uma camisa muito aberta durante
o horário de visita, passando por diversas outras “infrações”: delatar, olhar para a visita de
outro adolescente etc.
Os “seguros” apresentavam também a lógica da reprodução: quando um adolescente
deixava de ser seguro”, a crueldade que ele impunha aos demais perpetuava-se de outra
forma. Um jogo de reproduções de uma lógica cruel, a lógica da Fundação.
uma cena que ilustra bem todo o quadro da supracitada lógica cruel, acima
descrito, que perpassa não os padrões institucionais, mas que revela um Estado
transgressor: estava no pátio conversando com um grupo de adolescentes, quando,
repentinamente, saiu de um dos quartos um adolescente cambaleante. Pude verificar que,
aparentemente, ele estava com eritemas e feridas mais graves. Fora agredido por um grupo
de adolescentes, e o seu corpo não com marcas, mas praticamente desfigurado, assinala, à
perfeição, a reprodução dessa lógica cruel, que, aliás, principia muito antes da medida de
internação.
Aquele corpo desfigurado suscitou em mim diversas interrogações, como se
estivessem condensadas todas as ações e as omissões que explodiram no ato daqueles
adolescentes e que tomavam aquela forma física, mas que nos remete a todos os atores
sociais envolvidos naquelas histórias de vida.
7
Nesta Introdução, optei por manter a história de três adolescentes, as quais foram
apresentadas no Memorial para a qualificação. Manter o registro destas histórias significa
dar um rosto para cada processo pesquisado, registrar que se trata de histórias de vida e
não de documentos empilhados nas mesas do Cartório da Vara da Infância e da Juventude.
Luiz Fernando
Este adolescente chegou à Unidade, onde eu atuava como psicóloga, transferido do
circuito grave, após uma sessão de tortura a que ele e outros adolescentes foram
submetidos. As agressões foram devidamente denunciadas ao Poder Judiciário, que
determinou uma intervenção na Unidade, transferindo-o para outra.
Esse episódio havia tomado grandes proporções e todos os funcionários do
Complexo sabiam do ocorrido; a grande parte manifestava ódio em relação aos
adolescentes, considerando que eles haviam “denunciado” alguns funcionários ao Juiz
Corregedor.
Portanto, quando chegaram àquela Unidade, havia grande expectativa por parte
dos funcionários em saber quem era aquele adolescente tão perigoso (era assim que vinha
sendo nomeado), que cometera graves crimes e tumultuava as unidades da FEBEM. Além
de considerado infrator grave, era tomado como liderança negativa, termo muito utilizado na
lógica funcional para designar aquele a quem se atribui a culpa por rebeliões etc.
Os funcionários acusados das agressões não tiveram punições: foram afastados
temporariamente, com remuneração, e logo retornaram ao trabalho com os processos
arquivados.
8
Nesse cenário, tive meu primeiro contato com o adolescente. Lembro-me de que
entrei no quarto onde ele e mais dois outros estavam para conhecê-los. Não estava imbuída
da lógica institucional e apenas buscava conhecer mais do que meros rótulos.
Logo me deparei com rostos marcados. Luiz Fernando havia sido tão agredido que
teve derrame ocular - os olhos estavam absolutamente vermelhos e o rosto, cheio de
hematomas.
Entabulamos um diálogo e, após certo período de permanência na Unidade e
diversos atendimentos, o sobredito adolescente, numa de nossas conversar, perguntou-me:
“Eu não sei o que é ter pai... pai é diferente de mãe?”
Ele me formulou essa pergunta com um olhar ávido por resposta, quiçá por uma
experiência de paternidade, ao mesmo tempo que, por meio dela, me afastava daquele
“perigoso infrator”, pondo-me diante de uma interrogação demasiadamente humana. Essa
pergunta fez eco em toda a construção do meu projeto de pesquisa, sobretudo por falar do
lugar do pai.
Naquela época, em pleno no ano de 1.999, a entrada de celulares e de armas na
FEBEM era incomum, não tinham ocorrido ainda as transferências dos adolescentes para o
sistema prisional, nem a incorporação tão maciça de características do sistema
penitenciário. Dentro desse contexto, a forma como ocorreu a fuga de Luiz Fernando foi
espetacular.
Após subornar uma monitora da Fundação, colimando que ela entrasse na Unidade
portando uma arma de fogo escondida na vagina, o adolescente teve acesso à arma e,
rendendo diversos funcionários, saiu pelo portão lateral do Complexo Tatuapé.
9
Pelo curso do adolescente durante o cumprimento da medida sócio-educativa, cabe
a seguinte reflexão, que, como defendem alguns teóricos, o jovem procurava no ato
infracional o acesso à lei: ainda que o adolescente traga em seu histórico a ausência do pai,
o que remete à história de outros adolescentes com o pai ausente, omisso ou violento, qual
foi a lei que ele encontrou senão uma lei frágil, ausente, omissa ou violenta?
Os representantes da lei - Poder Judiciário e, de forma mais ampliada, os
representantes da Fundação - agiram com uma ética que permite garantir esse lugar da lei?
Construíram junto com o adolescente esse referencial?
Luiz Fernando conheceu um Poder Judiciário desmoralizado, que não combateu o
crime de tortura e não puniu exemplarmente monitores que praticavam, de modo impune,
esse mesmo crime. Demais, uma representante da Fundação que trouxe consigo uma arma
na vagina, burlando toda a segurança e colocando em risco a vida dos adolescentes e dos
funcionários, não foi devidamente responsabilizada, defendendo-se com todas as brechas
legais.
E antes da internação? Se se pensar no histórico dos adolescentes da Fundação,
será que o que ele conheceu também não foi um Estado ausente, omisso e violento? Será
que, no imaginário dos adolescentes de hoje, esse lugar da lei está preservado, com a
ampla divulgação na mídia de escândalos envolvendo autoridades judiciais?
A pergunta permanece ecoando: “Pai é diferente de mãe?
Douglas
Adolescente cumprindo medida de internação, sob a acusação de tráfico de
entorpecentes, residia Douglas na região do Glicério, centro de São Paulo. Durante o
10
período de internação, envolveu-se em “problemas disciplinares”, consoante a denominação
usada na própria Fundação, ou seja, o não-cumprimento de regras relativas a horários, bem
como discussões com funcionários. Era também considerado uma liderança negativa.
Circulava na Unidade como um grande traficante, e esta era a imagem que os
funcionários tinham dele; eram unânimes em afirmar que, na ocasião da desinternação, ele
retornaria ao tráfico, afirmação que também era feita por alguns técnicos da Unidade.
O maior argumento desse grupo na defesa da mencionada avaliação era a postura
de Douglas, muito questionador, sempre resistindo a tomar banho nos horários
determinados, a ir à escola, situada dentro do Complexo, nos horários designados. Era
comum, nas avaliações, esses aspectos de cumprimento de regras na rotina da unidade
serem tomados como determinantes para a avaliação quanto à desinternação. Douglas foi
transferido de Unidade por ser liderança negativa.
Um ou dois anos depois, num dia de sol escaldante, estava eu na calçada,
aguardando o semáforo fechar para atravessar um dos cruzamentos da Avenida Paulista
com uma daquelas alamedas íngremes. Logo vejo um rapaz, sob o sol, subindo essa
mesma alameda e carregando consigo uma carroça. Aquele rosto todo suado... o suor
escorria, pingava, com uma expressão de cansaço que me chamou a atenção. Quando me
fixei naquele rosto, eis que reconheci Douglas!
Ele foi passando ao meu lado com aquela carroça e, assim que o chamei, ele parou.
Conversamos sobre o que havia ocorrido após a desinternação e ficou explícita a frase que
alguns adolescentes usam: “Do mesmo jeito que um dia abriram a porta e me colocaram
para dentro, num outro dia abriram a porta e me colocaram para fora”.
11
Durante todo o período de permanência na Fundação, ele foi bombardeado com
preconceitos, numa lógica burocrática, punitiva e controladora que permanece presa às
normas disciplinares. Já não estava mais presente o grande traficante, senão alguém
diferente e, pior do que isso, as suas potencialidades tinham sido anuladas pelo sistema.
Eduardo
Também tido como adolescente extremamente violento (esta conclusão baseava-se
somente na classificação do ato infracional), circulava na Unidade com certo status.
Ao longo do período em que esteve na Fundação, as regras para saídas externas de
adolescentes ainda eram mais flexíveis, podendo efetuar-se sem escolta. Essa proibição
total de saídas externas veio após o episódio do “Batoré” (adolescente que era acusado de
diversas infrações e que fugiu durante uma saída, gerando uma enorme repercussão na
mídia).
Com a possibilidade de sairmos da Unidade e considerando que seria importante
para o adolescente a realização de um atendimento médico externo, agendamos o
atendimento e combinamos levá-lo: iríamos eu, uma monitora e o adolescente. Claro que
muitas pessoas asseveraram que ele fugiria e que, por isso, deveríamos adotar a máxima
cautela. Muitos tinham certeza de que ele não voltaria, devo confessar que essa dúvida
também tomou de assalto meu espírito.
Contudo, considerava a importância do encaminhamento e havia estabelecido um
vínculo com ele, o que me permitiu dialogar abertamente sobre todas essas questões.
12
Era comum que, nessa modalidade de saída, os adolescentes comessem alguma
coisa diferente, um lanche, um almoço, era uma forma de quebrar aquela rotina institucional.
Claro que tudo isso só foi possível porque, naquela Unidade 20, havia essa proposta
pedagógica (sementes plantadas pelo já citado Sr. José Resende).
No dia agendado, saímos do Complexo Tatuapé, fomos caminhando até a estação
Belém do Metropolitano e entramos numa lotação para fazermos todo o percurso até a
Vila Maria, local onde Eduardo seria atendido. Tudo transcorreu bem, falamos sobre a
sensação de estar na rua, Eduardo brincou muito, tinha um senso de humor apurado.
Retornamos até as proximidades do Metrô, perto de um local onde havíamos
pensado em almoçar com ele. Cuidava-se de um restaurante “por quilo”, nada sofisticado,
em que fazíamos as refeições cotidianamente. Considerava a comida boa e, do meu ponto
de vista, avaliava que seria um momento agradável, já que tanto eu, como a monitora,
enxergamos em Eduardo uma expectativa muito positiva.
Servimo-nos. Havia grande variedade, diversas opções de pratos quentes e frios.
Quando olhei para o prato do Eduardo, que estava ao meu largo, notei que ele havia
pego tomate, alimento que dispôs sobre todo o prato!
Indaguei, surpresa, se ele queria outras opções, por achar estranho aquele
comportamento. Sentamos à mesa e ele, que estava com uma expressão tensa, angustiada,
permaneceu mudo. Pegou os talheres e começou a bater na mesa, os olhos marejaram e,
em segundos, começou a chorar, a balançar a cabeça e a bater os talheres. Em questão de
segundos, levantou-se da mesa e saiu correndo, razão pela qual eu e a monitora fomos
atrás. Queríamos entender o que estava acontecendo e, então, tivemos outra surpresa:
Eduardo correra para o portão da FEBEM!
13
Chegou lá chorando, pedindo para entrar. Entramos com ele, que foi correndo para o
quarto, em prantos, após algumas horas aceitou falar com um educador e disse que, ao
se ver naquele restaurante na frente de tantos talheres, toda aquela comida, entrou em
pânico, não sabia como agir.
Esse episódio foi muito significativo para mim, visto que percebi como estamos
distantes desses adolescentes e o quanto eles têm para nos falar. Percebi, ainda, como os
programas voltados para adolescentes precisam escutá-los antes de montar os conteúdos
programáticos e quanto o exercício, o sair da unidade, estar em outros espaços é
fundamental, ao contrário do confinamento.
Aquele Eduardo, chorando, na frente de um prato de tomate, o quanto aquela saída
tinha mobilizado uma série de outros conteúdos, quanta exclusão, sensação de não
pertencimento Eduardo tinha vivenciado? Correr para a FEBEM, buscando seu porto
seguro, dado que, naquele espaço, ele era temido, respeitado, enfim, ele pertencia. E a
indagação: o quanto nós, profissionais da área social, estamos reforçando essas rotulações
que reafirmam a periculosidade dos adolescentes?
Em 2.003, desliguei-me da FEBEM/SP. conhecia a Presidenta da AMAR -
Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (mais conhecida
como “Mães da Febem”) - e mantinha alguns contatos com ela, sobretudo nos últimos dias
no Complexo Tatuapé, no intuito de “denunciar” as práticas de tortura.
A Presidenta da AMAR fez-me um convite, o de integrar a equipe da AMAR, atuando
com as mães dos adolescentes que cumpriam medida sócio-educativa.
Começar um trabalho na AMAR era muito significativo para mim, considerando
aquela Associação como um espaço das mães, em que elas seriam protagonistas, lutariam
14
contra a violação de direitos a que os seus filhos eram submetidos e se constituiriam como
sujeitos de suas próprias histórias, mais do que histórias individuais, histórias coletivas.
Após o período em que permaneci na FEBEM/SP, poder estar em um lugar no qual
as mães teriam voz e que, por conseguinte, os adolescentes teriam voz era, de fato, muito
significativo. Daí a decisão de aceitar o convite.
Foi na AMAR, descolada daquele papel de psicóloga da Fundação, que tive contato
com as mais delicadas histórias. Foi que os familiares conseguiram expor as suas dores,
os seus limites. Era o lugar apropriado para conseguirem falar dos segredos familiares.
A expressão de angústia, que presenciei em tantas visitas, aquele choro contido que
a mãe não poderia deixar sobrevir na frente dos monitores na FEBEM, era na AMAR que
elas se permitiam expor a dor.
E essa dor dizia muitas vezes da história de vida; outras vezes, daquele momento de
internação do filho e da sensação de encontrá-lo todo espancado, cheio de hematomas, e
sentir-se impotente. Na AMAR, realizavam-se oficinas de reflexão com o objetivo de
trabalhar essas questões e fortalecer o grupo de familiares.
Durante minha permanência na Fundação, fui delineando o meu projeto de pesquisa.
Deu-se lá o primeiro contato com as avaliações e com os pareceres de adolescentes
autores de ato infracional e, mormente, foi naquele espaço que surgiram as primeiras
indagações sobre a forma como essa questão do pai era tratada nas avaliações.
Na AMAR, por meio do contato com alguns pais, fui observando o quanto as
avaliações causavam um mal-estar e quão grande era a sensação de estarem sendo
culpabilizados. Lembro, por exemplo, que não conseguiam dar nome a essa sensação, mas
15
entravam na sala da AMAR com um olhar distante, uma expressão de quem queria falar
algo... mas como? Como dizer que não era bem aquilo, que tudo não se resumia à “falência
deles”?
Impregnada dessas interrogações, iniciei o curso de Mestrado no Programa de
Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC/SP.
O presente estudo enfoca uma análise de laudos, pareceres e avaliações realizadas
por profissionais da Equipe Técnica do Poder Judiciário (psicólogos e assistentes sociais).
Tomou-se um aspecto como disparador da análise: o surgimento nos documentos da
figura do pai do adolescente autor de ato infracional, haja vista ter construído, durante a
minha experiência na FEBEM e na AMAR, a percepção de que expressões como “falência
do pai”, “fragilidade do pai” e similares apareciam de forma recorrente.
Utilizando a questão do pai como elemento deflagrador da análise, estudou-se como
aparecem, nos documentos, as referências a questões relacionadas à dinâmica familiar dos
adolescentes, aos aspectos de sua personalidade e como articulam essas questões com as
sócio-econômicas.
Dessa forma, um dos eixos da pesquisa é a articulação entre os saberes da
Psicologia e do Serviço Social, sobretudo qual a contribuição do Serviço Social para a
desconstrução de discursos psicologizantes e lineares, a exemplo daquele que estabelece
uma relação determinante e causal entre o que é nomeado “falência da função do pai“ e o
envolvimento em atos infracionais.
16
A pesquisa foi realizada nos processos de adolescentes em cumprimento de medida
sócio-educativa de internação que passaram por avaliação com a Equipe Técnica do
Judiciário.
No primeiro capítulo, intitulado O Poder Judiciário e o saber” das equipes
interprofissionais, apresenta-se a dinâmica de funcionamento do DEIJ Departamento de
Execuções da Infância e da Juventude de São Paulo - e sobre o que a legislação vigente,
notadamente o ECA Estatuto da Criança e do Adolescente -, estabelece acerca do “fazer
técnico”.
Recorreu-se a Frasseto (2005) para encetar um questionamento sobre o lugar que
as produções técnicas ocupam no DEIJ. Ainda nesse capítulo, perquiriu-se acerca do
histórico da Psicologia e do Serviço Social no Judiciário, investigação baseada
principalmente nos estudos de Fávero (2005).
No capítulo seguinte, intitulado Catalogando Famílias: o discurso técnico a serviço do
quê? Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante?, discorreu-se sobre a diversidade
de arranjos familiares e o quanto o reconhecimento dessa diversidade é um diferencial
relevante para nortear o discurso técnico, produzindo discursos estigmatizantes ou não.
Nesse capítulo, mostraram-se, outrossim, autores que discutem os grupos familiares
e o impacto dos fatores econômicos na configuração de um quadro de vulnerabilidade.
No capítulo O pai na psicanálise: Reflexões críticas, utilizaram-se autores que
pensam a psicanálise numa perspectiva crítica, estabelecendo um diálogo com a
criminologia crítica. Enfatizou-se a discussão acerca do pai, pois esse foi o elemento inicial
da pesquisa realizada nos documentos.
17
O quarto capítulo, O Estado Transgressor, transitou pelas contradições sociais
comuns aos diversos grupos familiares, dialogando com as configurações do pacto social.
Quais são os valores sociais predominantes na atualidade? São valores estáveis,
consolidados? Apoiou-se, para tanto, em autores que discutem a fragilidade dos valores
sociais na atualidade.
Na Metodologia, buscou-se Bardin (1977), que, em sua obra clássica, traz uma
definição abrangente acerca da análise de conteúdo, e em Minayo (2007,16), que enfatiza
que “nada pode ser intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um
problema da vida prática”. Nesse capítulo, apresentaram-se a amostra pesquisada e o
percurso de acesso aos documentos.
No sexto capítulo, intitulado Categorias Temáticas, apresentaram-se os resultados
da análise por categorias temáticas, conforme proposto por Bardin (1977). Agrupou-se o
material analisado nas seguintes categorias: O pai e as configurações familiares; Autocrítica;
A instituição; A questão social.
Nas Considerações Finais, discorreu-se acerca do diálogo entre as produções do
Serviço Social e da Psicologia, considerando a natureza plural do presente estudo, que
abarca temas relativos não só à Psicologia e ao Serviço Social, como também ao Direito.
Analisou-se a contribuição (ou não) dessas áreas do saber para a efetivação da
garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, sobretudo neste ano, em que o
Estatuto da Criança e do Adolescente atinge sua maioridade (1990-2008).
18
Capítulo 1. O Poder Judiciário e o “saber” das equipes interprofissionais
O Departamento de Execuções da Infância e da Juventude (DEIJ) é o departamento
do Forum das Varas Especiais da Infância e da Juventude de São Paulo, responsável
exclusivamente pela fase de execução da medida sócio-educativa, isto é, da aplicação
propriamente dita.
Esse acompanhamento inclui tanto o processo sócio-educativo do jovem (relatórios
técnicos enviados pela Fundação Casa, decisão de alteração da medida ou de seu
encerramento), quanto a fiscalização de eventuais irregularidades ou descumprimento de
direitos pela Fundação Casa ou pelo Estado em relação ao adolescente sob sua tutela.
Para uma apresentação sobre a dinâmica de funcionamento das Varas da Infância e
da Juventude da capital paulista, recorreu-se a Frasseto:
No Forum atuam profissionais do Direito cuja missão é definir medidas
jurídicas em resposta a infrações praticadas por adolescentes. O Promotor
de Justiça representa o interesse público de intervir em face daquele que
transgride normas penais. O advogado (defensor) representa o interesse do
adolescente em não ter sua liberdade de locomoção suprimida ou
restringida por imposição do Estado. Ao juiz incumbe, depois de ouvidas as
opiniões de Promotor e defensor, decidir as questões aplicando a lei ao
caso concreto (FRASSETO, 2005, p.5).
A legislação vigente Estatuto da Criança e do Adolescente -, ao dispor sobre a
medida de internação, afirma no artigo 121: “A internação constitui medida privativa de
liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição
peculiar de pessoa em desenvolvimento”.
O § 2 º desse dispositivo legal estabelece que: “A medida não comporta prazo
determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no
19
máximo a cada seis meses”. Sobre o prazo, o § ressalta que: “Em nenhuma hipótese o
período máximo de internação excederá a três anos”.
Para analisar-se o caráter indeterminado da medida de internação, Frasseto
apresenta relevantes considerações sobre o “fazer técnico” nesse cenário:
Indeterminado o tempo de duração do regime, a aferição das condições
para que cesse, ou seja, para que o sentenciado seja solto, decorrerá dos
informes técnicos prestados por profissionais especializados. (...) De forma
geral e especificamente na capital paulista, enquanto não houver sugestão,
subscrita por psicólogo e assistente social, expressamente favorável à
soltura, a medida de internação vai sendo mantida. De forma geral a adesão
judicial a um parecer explícita ou implicitamente desfavorável à liberação é
quase absoluta (FRASSETO, 2005, p. 7).
Essas ponderações levam à percepção do significativo lugar ocupado pelas
avaliações realizadas por psicólogos e por assistentes sociais. Ao embasar decisões
judiciais, as produções desses profissionais ocupam um lugar decisivo na história de vida
dos adolescentes e de seus familiares.
O presente estudo analisa, documentalmente, as produções de psicólogos e de
assistentes sociais, uma vez que:
Embora a lei silencie sobre o ponto, os profissionais que produzem o
parecer técnico, como já se adiantou, são predominantemente o psicólogo e
o assistente social. Parte-se do pressuposto da interprofissionalidade, ou
seja, da combinação de saberes como condição indispensável ao alcance
de uma cognição mais segura de aspectos relevantes da causa ligados à
situação pessoal e social do adolescente (FRASSETO, 2005, p. 7).
O adolescente em cumprimento de medida sócio-educativa de internação será
avaliado pelos técnicos da Unidade de Internação, os quais produzirão relatórios emitidos ao
Poder Judiciário. Em alguns casos, o Juiz determina a realização de avaliação pela Equipe
Técnica do Poder Judiciário, objeto de pesquisa do presente estudo:
20
Os motivos que ensejam nova avaliação não são apontados em lei e variam
de acordo com o entendimento de cada magistrado. Usualmente, a
providência vem justificada por particularidades do estudo enviado,
reputado incompleto ou superficial. Outras vezes, ela se dá em razão da
gravidade do ato infracional ou da circunstância de se tratar de jovem
reincidente, hipóteses em que haveria, segundo o entendimento do juiz,
necessidade de maior cautela para a liberação. Em um menor número de
vezes, demanda o juiz o aprofundamento de algumas questões particulares
ligadas ao arranjo e à dinâmica familiar e à biografia do adolescente. De
forma menos explícita, por detrás da ordenação de novo exame, reside uma
desconfiança com relação ao trabalho da FEBEM, tido como suspeito em
razão da necessidade de o sistema liberar vagas para suportar a pressão da
entrada sempre crescente. (FRASSETO, 2005, p. 7).
Neste estudo, optou-se pela análise dos documentos produzidos pelos técnicos do
Poder Judiciário em virtude do lugar que ocupam na engrenagem do cumprimento da
medida sócio-educativa de internação.
As suas produções embasam decisões judiciais referentes à liberação ou não do
adolescente, sendo que, conforme Frasseto, a adesão judicial a um parecer desfavorável à
liberação é quase absoluta.
Definido esse escopo, antes de se debruçar sobre o fazer desses profissionais, no
contexto do adolescente em medida de internação, recorreu-se a Fávero para apresentar-se
a trajetória do Serviço Social e da Psicologia na Instituição Judiciária.
1.1 O Serviço Social e a Psicologia no Judiciário
Optou-se pela não-apresentação de extensos dados sobre o contexto e sobre a
estrutura do Judiciário, mormente por conta da relevante produção acadêmica já existente
na área, tendo Fávero como um dos expoentes, notadamente no que se refere ao Serviço
Social no Judiciário.
21
A citada autora dispõe sobre as intervenções dos profissionais (psicólogos e
assistentes sociais):
Trabalhando, na maioria das vezes, com demandas sociais e psicológicas
que permeiam o cotidiano das Varas da Infância e da Juventude e Varas da
Família e Sucessões, o assistente social e o psicólogo intermediam (SIC)
ações judiciais que envolvem crianças e adolescentes em situação de risco
e vulnerabilidade social, que necessitam de medidas protetivas, jovens
autores de delitos, famílias em situações de conflito. Nessa intervenção,
realizam orientações, acompanhamentos e encaminhamentos, articulações
e, principalmente, oferecem subsídios sociais e psicológicos à autoridade
judiciária, mediante relatórios, laudos e pareceres, nos quais se destacam
informações sobre a história social de vida e comportamento desses
sujeitos (FÁVERO, 2005, p. 36).
O histórico do Serviço Social no Tribunal de Justiça expõe o início de uma atuação
formal no final dos anos 1940:
O Serviço Social começou a atuar formalmente junto ao Juizado de
Menores no final dos anos 1940, quando ocorreu a I Semana de Estudos do
Problema de Menores, mais especificamente com a criação do Serviço de
Colocação Familiar no Estado de São Paulo. O desenvolvimento desse
trabalho foi atribuído aos assistentes sociais, no Juizado, abrindo um vasto
campo para consolidação de suas atividades nesse contexto (FÁVERO,
2005, p. 48).
Desde o início da atuação do Serviço Social no Judiciário, a função de embasar
decisões judiciais está presente:
Em face do aumento da demanda social e pela competência inerente aos
profissionais dessa área, que detinham um saber específico sobre as
relações sociais e familiares, os assistentes sociais passaram também a
oferecer subsídios para as decisões judiciais. (...) As entrevistas e os
relatórios, enquanto instrumentos de trabalho, eram realizados de acordo
com a natureza das situações atendidas e encaminhadas (SIC) para as
devidas instâncias, via de regra para a decisão judicial. Apesar de terem as
mais variadas atribuições, os assistentes sociais, ao serem absorvidos no
âmbito da Justiça infanto-juvenil, passaram a atuar prioritariamente como
peritos, em situações relacionadas às crianças, aos jovens e à família, com
vistas a oferecer subsídios à autoridade judiciária para a tomada de decisão
(FÁVERO, 2005, p. 49).
22
Nessa retomada da trajetória do Serviço Social do Judiciário, observaram-se, desde
o início, a prática da entrevista e a elaboração de relatórios, ou seja, a função de perito
como o eixo norteador das intervenções, o que permanece nas práticas analisadas neste
estudo.
A inserção da Psicologia no Poder Judiciário teve sua primeira ocorrência em 1.981,
quando alguns psicólogos, que anteriormente atuavam como voluntários, foram contratados,
tendo como atribuições, de acordo com Fávero (2005, p. 52) “assessorar o magistrado por
meio de estudo de caso, elaborar avaliação psicológica, apresentar propostas de
intervenção e realizar orientações pertinentes à sua área”.
Em estudo realizado sobre relatórios psicológicos judiciais, Bernardi aponta que:
A atuação de psicólogos na Justiça Especial da Criança e do Adolescente
em São Paulo teve início na década de 80 a partir da implementação do
Código de Menores de 1979, que dispunha sobre a possibilidade do
magistrado ser auxiliado por estudo de caso realizado por equipe
interdisciplinar sempre que possível (BERNARDI, 2005, p. 66).
Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1.990, a
manutenção de equipe interprofissional no Poder Judiciário passou a ser obrigatória,
competindo-lhe, entre outras atribuições, fornecer subsídios à autoridade judiciária,
conforme rezam os artigos 150 e 151 da Lei Federal nº. 8.069/90, mais conhecida como
ECA.
Seção III - Dos Serviços Auxiliares
Art. 150 - Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta
orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe inter-profissional,
destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude.
Art. 151 - Compete à equipe inter-profissional, dentre outras atribuições que
lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito,
mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver
trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e
outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária,
assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
23
Ressaltam-se dos artigos supracitados dois aspectos relevantes para o presente
estudo, a saber: I) a legislação refere-se à competência da equipe interprofissional, ou seja,
está prevista, legalmente, a interlocução entre os saberes; II) “tudo sob a imediata
subordinação à autoridade judiciária”. Esses dois aspectos concernem às relações de
poder/saber que se entrelaçam no universo do Judiciário. Sobre o espaço de trabalho no
Poder Judiciário, ao refletir sobre o estudo social, Fávero ressalta que:
(...) ao pensarmos o estudo social a partir da ocupação, pelo assistente
social, de um espaço de trabalho vinculado ao Poder Judiciário um Poder
de Estado, que, enquanto responsável pela aplicação das leis e distribuição
da justiça, tem sido visto, tradicionalmente, como se estivesse num patamar
superior ou à parte dos demais poderes, o que, via de regra, se reproduz
em diversas instâncias de ações no seu interior (FÁVERO, in CFESS 2007,
p. 11).
Em publicação do CFESS Conselho Federal de Serviço Social - sobre o estudo
social
1
, são apresentados alguns questionamentos e reflexões sobre a prática do assistente
social no Judiciário:
Os assistentes sociais têm consciência do saber que acumulam e do seu
uso enquanto saber-poder? Deve-se compreender se se trata de um saber
fundamentado histórica e teoricamente ou reduzido ao senso comum; se as
ações têm sido direcionadas com base no compromisso com a ampliação e
garantia de direitos. Os profissionais da área de Serviço Social devem
questionar se o trabalho apenas como perito não leva ao risco maior e mais
fácil da fragmentação das suas ações e da terceirização desses serviços,
enquanto parte do projeto neoliberal de um Estado mínimo (FÁVERO, in
CFESS 2007, p. 13).
A relação entre poder e saber, bem explicitada por Foucault (1979), é evidenciada no
âmbito do Poder Judiciário, sendo que Fávero, em pesquisa sobre Serviço Social, Práticas
Judiciária e Poder, afirma:
1
CFESS. O Estudo Social em Perícias, Laudos e Pareceres Técnicos, p.13
24
O exercício privilegiado de um poder com características disciplinares por
parte do serviço social, na construção de seu saber e de sua prática no
âmbito do Judiciário, é uma realidade que se evidenciou nessa pesquisa
(FÁVERO, 2005, p. 125).
No decorrer desta pesquisa, ao serem analisados os documentos produzidos por
assistentes sociais e por psicólogos, observar-se-á o posicionamento desses profissionais
sobretudo em relação ao olhar que direcionam aos arranjos familiares e ao que tem sido
nomeado como “fragilidade do pai” ou ausência de referencial paterno”. Estas expressões
dizem sobre o lugar do pai na família e estabelecem correlações entre esse lugar e a prática
do ato infracional.
Verificar-se-á, ademais, como o exercício privilegiado do poder, com características
disciplinares, surge nas conclusões produzidas acerca dos modos de organização das
famílias de adolescentes em cumprimento da medida sócio-educativa de internação.
25
Capítulo 2. Catalogando Famílias: O discurso cnico a serviço do quê?
Reconhecendo a pluralidade: diverso ou desviante?
Mais do que analisar a influência da estrutura familiar (pai ou mãe ausente),
deve-se perguntar pela afetividade que une a família gerada.
Bader Sawaia
A diversidade de arranjos familiares na sociedade contemporânea é tema recorrente
nos mais variados campos: produções acadêmicas, abordagens da mídia e até mesmo em
conversas informais, rodas de amigos. Todavia, houve-se por bem incluir o aludido tema no
início do trabalho por se considerar que, em contextos avaliativos (como o do Judiciário), o
reconhecimento da diversidade é um diferencial relevante para nortear o discurso técnico.
Esse reconhecimento baliza expectativas sobre o grupo familiar e direciona
intervenções. Buscar enquadrar a diversidade de modos de organização de grupos
familiares em modelos pré-formatados ou construídos historicamente, nos coloca na
arriscada posição de tratar como desvio aquilo que é simplesmente diverso.
Ao tratar determinado modo de composição familiar como desviante, destitui-se a
família do lugar de detentora de potencialidades.
Ao analisar-se o lugar da família na política social e o quanto o contexto social pode
ser potencializador ou esfacelador dessas potencialidades, Carvalho considera que:
A maior expectativa é de que ela (a família) produza cuidados, proteção,
aprendizado dos afetos, construção de identidades e vínculos relacionais de
pertencimento, capazes de promover melhor qualidade de vida a seus
membros e efetiva inclusão social na comunidade e sociedade em que
vivem. No entanto, estas expectativas são possibilidades e não garantias. A
família vive num dado contexto que pode ser fortalecedor ou esfacelador de
suas possibilidades e potencialidades (CARVALHO, 2003, p. 15).
26
Citando Afonso e Figueiras, Carvalho acrescenta:
Este movimento de organização-reorganização torna visível a conversão de
arranjos familiares entre si, bem como reforça a necessidade de se acabar
com qualquer estigma sobre as formas familiares diferenciadas. Evitando a
naturalização da família, precisamos compreendê-la como grupo social
cujos movimentos de organização-desorganização-reorganização mantêm
estreita relação com o contexto sociocultural. (...) É preciso enxergar na
diversidade não apenas os pontos de fragilidade, mas também a riqueza
das respostas possíveis encontradas pelos grupos familiares, dentro de sua
cultura, para as suas necessidades e projetos (AFONSO; FIGUEIRAS,
1995).
Os modos de organização dos grupos familiares são perpassados por questões
sociais, econômicas e culturais que não permitem uma avaliação linear da forma de atuação
da família e dos desdobramentos possíveis a partir deste ou daquele modo de organização.
Ou seja, o argumento reducionista de que, se falhou” a família, deve entrar a atuação do
Estado não abarca todas as interferências que o grupo familiar vivencia e coloca sobre a
família um olhar que enfatiza as dificuldades e não o direito à proteção.
Esse modo dicotômico de pensar a constituição do sujeito em camadas, como se
primeiro viessem as construções familiares e, acima, as construções do Estado, sobretudo
preenchendo lacunas geradas por falhas nos sistemas familiares, favorece um discurso
culpabilizador em relação ao grupo familiar. É preciso perceber a família sendo atravessada
o tempo todo pela proteção ou desproteção do Estado.
Avaliando esse contexto, a autora continua:
A reforma do Estado em curso; as compressões políticas e econômicas
globais; as novas demandas de uma sociedade complexa; os déficits
públicos crônicos; a revolução informacional; a transformação produtiva; o
desemprego e a precarização nas relações de trabalho; a expansão da
pobreza e o aumento das desigualdades sociais são alguns dos tantos
fatores que engendram demandas e limites e pressionam por novos
arranjos e modos de gestão da política social (CARVALHO, 2003, p. 16).
27
Carvalho reafirma o lugar da família como espaço de proteção, sublinhando,
entretanto, a responsabilidade do Estado:
Família e sociabilidades sócio-familiares se alteraram. No entanto, esta o
perdeu o que lhe é essencial: suas possibilidades de proteção, socialização
e criação de vínculos relacionais. (...) Não se trata, porém, de
desresponsabilizar o Estado em sua função de garantir e assegurar as
atenções básicas de proteção, desenvolvimento e inclusão social de todos
os cidadãos (e, particularmente, daqueles mais vulneráveis na sociedade
contemporânea). Esta solidariedade familiar, no entanto (SIC), pode ser
reivindicada se se entender que a família, ela própria, carece de proteção
para processar proteção. O potencial protetor e relacional aportado pela
família, em particular daquela em situação de pobreza e exclusão, só é
passível de otimização se ela própria recebe atenções básicas
(CARVALHO, 2003, p. 19).
Essa inter-relação entre a proteção processada pela família e a proteção processada
(ou não) pelo Estado é um diferencial importante na definição de intervenções. Isso porque,
se não reconhecida, poderá gerar a não-implicação do Estado e uma sobrecarga de
cobranças depositadas sobre os grupos familiares.
Nesse sentido, para auxiliar a configuração do que seria essa proteção demandada
pela família, Carvalho (2003, p. 19) cita atenções diversificadas que otimizariam o potencial
protetor da família: I) Acolhimento e escuta; II) Rede de serviços de apoio psicossocial,
cultural e jurídico à família; III) Programas de complementação de renda; IV) Programa de
geração de trabalho e renda.
A autora provoca a refleção sobre a relevância da rede de apoio aos grupos
familiares para que estes se constituam em espaços de proteção, de resistência aos apelos,
exemplificativamente, do mundo infracional.
Pensar a família de maneira não isolada do contexto em que está inserida auxilia a
construir uma visão que ultrapasse a ordem dos conflitos intrafamiliares, das formas de
28
organização, se monoparental ou não, além de proporcionar um alcance mais efetivo no
planejamento das intervenções.
Nessa contextualização das múltiplas formas de organização familiar, vale lembrar a
preciosa observação de Sarti, que aponta a família como alvo de interferências externas:
Falar em família neste começo do século XXI, no Brasil, como alhures,
implica a referência a mudanças e a padrões difusos de relacionamentos.
Com seus laços esgarçados, torna-se cada vez mais difícil definir os
contornos que a delimitam. Vivemos uma época como nenhuma outra, em
que a mais naturalizada de todas as esferas sociais, a família, além de
sofrer importantes abalos internos tem sido alvo de marcantes interferências
externas (SARTI, 2002, p. 21).
A autora discute se, na atualidade, é possível sustentar o discurso de modelo
“adequado” de família:
Embora a família continue sendo objeto de profundas idealizações, a
realidade das mudanças em curso abala de tal maneira o modelo idealizado
que se torna difícil sustentar a idéia de um modelo “adequado”. Não se sabe
mais, de antemão, o que é adequado ou inadequado relativamente à
família. No que se refere às relações conjugais, quem são os parceiros?
Que família criaram? Como delimitar a família se as relações entre pais e
filhos cada vez menos se resumem ao núcleo conjugal? Como se dão as
relações entre irmãos, filhos de casamentos, divórcios, recasamentos de
casais em situações tão diferenciadas? Enfim, a família contemporânea
comporta uma enorme elasticidade (SARTI, 2002, p. 25).
Sarti frisa que, diante da flexibilidade das fronteiras familiares, abordar o tema das
famílias e das políticas sociais exige ir além de um único referencial:
Pretende-se sugerir, assim, uma abordagem de família como algo que se
define por uma história que se conta aos indivíduos, ao longo do tempo,
desde que nascem, por palavras, gestos, atitudes ou silêncios, e que será
por eles reproduzida e resignificada, à sua maneira, dados os seus distintos
lugares e momentos na família. Dentro dos referenciais sociais e culturais
de nossa época e de nossa sociedade, cada família terá uma versão de sua
história, a qual significado à experiência vivida. Ou seja, trabalhar com
famílias requer a abertura para uma escuta, a fim de localizar os pontos de
vulnerabilidade, mas também os recursos disponíveis (SARTI, 2002, p. 26).
29
Reconhecer as implicações de condições de vida e de trabalho desfavoráveis auxilia
a romper com a estigmatização de grupos familiares e possibilita superar um discurso
desqualificador.
A propósito, Gomes, ao refletir sobre as atuais condições de vida e de trabalho das
famílias populares, aponta:
E temos a impressão de que a miséria, a vida precária e deplorável de um
grupo familiar e, sobretudo, o abandono de crianças é fruto da
irresponsabilidade do casal. Porém, a evidência parece inequívoca: à
criança abandonada, objeto da violência alheia, civil ou militar,
correspondem famílias abandonadas, objeto primeiro da violência social,
institucionalizada (GOMES, 2003, p. 61).
Ainda discorrendo sobre a população que habita bairros populares e sobre as
características da vida cotidiana dessas populações, a autora enfatiza:
O tom impessoal, acadêmico não nos pode impedir de ter em mente o que
me parece essencial: a expressão “luta pela sobrevivência” refere-se à luta
travada por uma ou mais pessoas, no dia-a-dia, de maneira a garantir o
mínimo necessário à subsistência individual ou de um grupo doméstico. É
crucial mantermos viva a consciência de estarmos lidando com a
concretude da vida humana, e não com alguma coisa abstrata, como o
linguajar acadêmico, pode induzir-nos a pensar (GOMES, 2003, p. 65)
Nesse sentido, a referida especialista problematiza as conseqüências perversas de
ações que não incluam uma análise sobre o contexto no qual se insere aquela família, bem
como não reconheçam as condições sócio-econômicas desfavoráveis que atuam sobre
determinados grupos familiares.
Pensar em discursos acadêmicos que podem distanciar-se da concretude de vida
das camadas populares remete aos discursos que as ciências, em especial a ciência
psicológica, têm construído acerca das relações familiares.
30
Szymanski, ao refletir sobre o tratamento que a psicologia tem dado à família, aponta
que:
Desde Freud, família e, em especial, a relação mãe-filho, têm aparecido
como referencial explicativo para o desenvolvimento emocional da criança.
A descoberta de que os anos iniciais de vida são cruciais para o
desenvolvimento emocional posterior focalizou a família como o locus
potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis,
felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças,
desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento (SZYMANSKI
2003, p. 24).
A autora continua a reflexão, trazendo as implicações de tomar a família como norma
e não como um modelo historicamente construído:
Não tenho dúvidas de que a família que se está visualizando é composta
por pai, mãe e algumas crianças vivendo numa casa. Essa imagem
corresponde a um modelo, que é o da família nuclear burguesa. As
interpretações das inter-relações passaram a ser feitas no contexto da
estrutura proposta por aquele modelo e, quando a família se afastava da
estrutura do modelo, era chamada de ‘desestruturada’ ou ‘incompleta’ e
consideravam-se os problemas emocionais que poderiam advir da
‘desestrutura’ ou ‘incompletude’. O foco estava na estrutura da família e não
na qualidade das inter-relações. (...) Fora desse contexto, as famílias são
consideradas ‘incompletas’ e ‘desestruturadas’. Essas são mais
responsabilizadas por problemas emocionais, desvios de comportamento do
tipo delinqüencial e fracasso escolar (SZYMANSKI, 2003, p. 25).
A autora conclui seu artigo sobre “teorias” de famílias apontando que:
Observou-se que, tanto nas teorias e práticas de atendimento familiar como
nas representações nas famílias, aparece, de forma irrefletida, o viés do
modelo de família nuclear burguesa com conotação normativa. (...) O
mundo familiar mostra-se numa vibrante variedade de formas de
organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas na busca de
soluções para as vicissitudes que a vida vai trazendo. Desconsiderar isso é
ter a pretensão de colocar essa multiplicidade de manifestações sob a
camisa-de-força de uma única forma de emocionar, interpretar, comunicar
(SZYMANSKI, 2003, pp. 26, 27).
Sem essa “camisa de força”, colocada sobre os modos de organização dos grupos
familiares, é possível reconhecer o potencial para enfrentar as adversidades e buscar
soluções. O contexto de avaliação em que estão inseridos os familiares de adolescentes em
31
cumprimento de medida de internação, no momento das entrevistas com técnicos
(psicólogos ou assistentes sociais), pode se configurar como essa “camisa de força”, caso o
profissional utilize este modelo familiar - pai, mãe e filhos - como norma e considere desvios
as relações estabelecidas fora do referido modelo.
Bilac, ao discorrer sobre transformações recentes na vida familiar, questiona se, com
tantas modificações e dúvidas, é possível chegar-se a uma teoria da família e ressalta a
importância da interdisciplinariedade:
(...) Não dúvidas sobre o fato de que boa parte das famílias está
mudando. Em que medida estas mudanças significam a renovação do(s)
modelo(s) existentes ou a emergência de novos modelos? (...) Caberia
perguntar se, com tantas dúvidas e tantos aspectos a serem examinados, é
possível chegar-se a uma teoria da família.
É bem possível que sim, embora não pareça que possa ser mais uma tarefa
isolada de nenhuma das Ciências Humanas, seja ela a Sociologia, a
Psicologia ou a História. Uma abordagem da família que conta da
complexidade desse objeto, em nossos dias, deveria ser, necessariamente,
uma construção interdisciplinar. Talvez seja essa a melhor forma de se sair
da encruzilhada a que chegaram os estudos da família (BILAC, 2003, p. 37).
Perceber que uma única ciência não abarca a diversidade das formas de vida implica
reconhecer que uma teoria psicológica ou sociológica (ou a obra de um determinado
autor) não poderá ser a única referência para rotular a família que se apresenta. Uma
referência única poderá decepar modos de constituição significativos para aquele grupo
familiar, provocando sofrimento, o que, ao invés de favorecer a mobilização do grupo para
enfrentar determinada adversidade, poderá imobilizá-lo.
Mello, ao considerar a questão da organização/desorganização familiar, ressalta que:
Uma afirmação comum, na literatura especializada, é que as populações
migrantes e, de um modo amplo, as camadas mais pobres da população
urbana, que se concentram nos bairros populares da periferia ou nas
favelas e cortiços mais centrais, padecem de uma desorganização familiar
acentuada. Segundo esse raciocínio, haveria uma família organizada,
padrão de ordem e harmonia e, partindo desse padrão, um continuum ao
32
longo do qual se situariam as formas de desorganização mais ou menos
severas (MELLO, 2003, p. 51).
Ainda em referência ao modelo que define organização e desorganização,
acrescenta:
O modelo que preside as atribuições de organização e desorganização é o
da família nuclear, monogâmica, composta de mãe, pai e filhos. O pai provê,
com seu trabalho, todas as necessidades da família; a mãe, carinhosa e
infatigável, toma conta da casa e da educação das crianças. Tanto o pai
como a mãe encontram profunda satisfação em seu trabalho e digna
recompensa econômica, proporcionando um clima de estabilidade e
harmonia para o crescimento das crianças. Estas brincam e estudam, são
alegres e despreocupadas. (...) O mundo desta família gira em torno de si
mesmo, imutável, como um oásis de estabilidade num mundo perigoso e
turbulento (MELLO, 2003, p. 56).
A leitura das características desse modelo provoca um sentimento de utopia, como a
descrição de algo inatingível, donde a perversidade de buscar “esgarçar” o tecido do outro
até alcançar o inatingível. Quantas rupturas podem ser provocadas na constituição daquele
tecido, diverso do modelo idealizado? Será que esse formato de intervenção não diz mais
das nossas buscas, das nossas limitações, do que da “falha” do outro?
Mello enfatiza o quão estigmatizante é tomar esse modelo como padrão:
A existência dos modelos normativos não mereceria maior consideração, se
estes não fossem tomados como padrões a partir dos quais são medidos os
desvios. Mais ainda, não teriam importância se, como modelos ideais, não
fossem veiculados a toda hora pelos meios de comunicação, como o certo,
o bonito, o desejável. Também não teriam importância se, como produtos
ideológicos, não fossem interiorizados e não se tornassem um dos
fundamentos políticos de atribuição de caráter negativo e estigmatizante. É
freqüente encontrarmos, mesmo na literatura especializada, a assim
chamada “desorganização familiar” como a única responsável pelo fracasso
escolar e adaptativo das crianças. Mais ainda, ela aparece também como
fonte da violência, do abandono de crianças e da marginalidade dos jovens,
ou seja, a família é responsável pelo que aparece como fracasso moral dos
seus membros (MELLO, 2003, p. 57).
A frase inicial da citação explica o lugar que este capítulo ocupa no presente
trabalho. A opção por iniciar a dissertação com uma discussão sobre os arranjos familiares
33
considerou o quanto tem se catalogado a diversidade como desviante. Nesse sentido, a
decisão por “catalogar” o diverso como desviante coloca-nos diante do posicionamento
ético-político do profissional envolvido em intervenções com grupos familiares, o que pode
atuar como potencializador ou esfacelador das competências familiares.
Considera-se que essa postura desqualificadora das formas de organização familiar
recaí, sobretudo, em camadas mais populares, como um adereço que se soma ao rol de
adversidades. Não é incomum, nas discussões de caso, nos diversos equipamentos que
atuam com famílias, ouvirem-se frases como “um filho de cada pai”.
Mello, ao discorrer sobre as populações das periferias e das favelas das grandes
cidades, reafirma a importância de reconhecer-se o que nomeia como pluralidade de formas
de organização familiar:
Não é razoável falar de ausência de organização, mas de polimorfismo
familiar. Despidos da rigidez das fórmulas e sem olhos preconceituosos,
podemos ver as famílias como elas são e não como deveriam ser, segundo
modelos que são abstratos, pois são históricos e presos às diferentes
perspectivas das classes sociais. (...) é preciso estar muito atento e não
confundir a violência dos conflitos que atingem estas famílias com a
desorganização, porque estaríamos formulando juízos de valor que têm a
nossa experiência pessoal e de classe como base da representação
(MELLO, 2003, p. 58).
A autora enfatiza, ainda, as condições em que vivem essas famílias:
É necessário ver as condições em que vivem estas famílias para
compreender a inevitabilidade dos conflitos. Basta tomar as habitações
como ponto de referência do nosso olhar e da nossa reflexão. Lado a lado
com a conquista diária do alimento, sempre escasso, conquista-se,
diariamente, um espaço no interior das casas pequeníssimas, um lugar nas
camas e colchões compartilhados com muitos irmãos. Não só é impossível
a intimidade, como há uma coletivização forçada que constitui o núcleo
obrigatório da vida em família. Nas casas, eles estão, literalmente, jogados
uns sobre os outros e, o que é importante, jogando seus sentimentos, sejam
os fortes sentimentos de afeto ou os, igualmente fortes, de raiva e frustração
(MELLO, 2003: 58).
34
Penso que, após um mapeamento, o completo quanto possível, das
diferentes maneiras de viver a família, estaremos em condições de
reescrever uma teoria que não seja cega, ou, ainda pior, excludente e
discriminadora para tão amplos segmentos da sociedade brasileira (MELLO,
2003:60).
Nesse sentido, o posicionamento do profissional responsável por este “olhar” sobre o
grupo familiar poderá estar carregado de preconceitos, interferindo nas conclusões sobre o
modo de vida daquele grupo familiar. Donzelot, ao tecer crítica sobre as intervenções dos
trabalhadores sociais, mais especificamente no trato com as famílias, refere-se à tecnologia
do inquérito sobre as famílias pobres, relatando as intervenções de controle das famílias.
Nesse trecho, a autor analisa a prática da visita domiciliar:
É sempre preferível que o visitador não convoque seu cliente, mas ao
domicílio deste último e que tal visita seja feita de surpresa’. Ainda hoje é o
ABC da profissão de Assistente Social que escolhe as horas vazias da tarde
para fazer a sua primeira visita, pois é quase certo encontrar a mãe sozinha
em casa. (...) Falando e tomando algumas anotações, o visitador observa à
sua volta, examina o aposento, sua disposição, seu estado, as
promiscuidades que ele impõe, as condições de higiene em que vivem os
habitantes. Ele estabelecerá o inventário da mobília, dos utensílios, das
roupas à vista. Também não é mau levantar a tampa de algumas panelas,
examinar as reservas de alimentos, as camas e, se preciso for, tirar
algumas fotos expressivas (DONZELOT, 1986, p. 114).
Para não parecer algo distante da realidade brasileira, acrescenta-se citação de
Iamamoto:
Muitas vezes, o profissional move-se pela vontade de estar junto com a
população atendida, mas objetivamente não está próximo de seus
interesses como coletividade, sendo, de fato, um estranho para os
indivíduos com que trabalha. O professor José de Souza Martins, estudando
o mundo agrário, tem um livro que chama ‘A chegada do estranho’. O
estranho, para os produtores familiares, posseiros e assalariados é o
representante do capital e dos grandes proprietários de terra, o técnico das
entidades oficiais: mas também, o militar, o jagunço, o cientista social.
Enfim, todos aqueles que são alheios ao universo e interesses sociais
daquela população e que contribuem para subjugá-la política ou
economicamente. O assistente social também pode estar sendo estranho
diante dos segmentos das classes subalternas, contribuindo para que
cidadãos se metamorfoseiem em vítimas, exercendo uma ação de cunho
impositivo (IAMAMOTO, 1998, p. 77).
35
As considerações supracitadas, que dizem respeito ao posicionamento do
profissional, auxiliam a sustentar que não há neutralidade possível. O profissional, seja
assistente social, seja psicólogo, estabelece com os grupos familiares relações que o
colocam em posição que contribui para o desenvolvimento daquele grupo familiar ou reforça
uma condição de subalternidade. Daí a interrogação deste capítulo: o discurso técnico, a
serviço do quê?
Sawaia, ao abordar o tema família, ressalta que:
Família é conceito que aparece e desaparece das teorias sociais e
humanas, ora enaltecida, ora demonizada. (...) Ela continua sendo, para o
bem ou para o mal, a mediação entre o indivíduo e a sociedade. E mais,
assiste-se hoje ao enaltecimento dessa instituição, que é festejada e está
em evidência nas políticas públicas, e é desejada pelos jovens (SAWAIA,
2002, p. 42).
A autora continua sua análise propondo situar historicamente esse revival da família:
O contexto em que emerge, como já foi dito e é conhecido por todos, é o do
neoliberalismo, caracterizado por Estado mínimo, capital volátil, crise de
emprego, aumento da miséria, manipulação comercial e publicitária de
corpos e sentimentos. As instituições não mais promovem modelos de
identificação e confiabilidade, e o indivíduo está fechado em si mesmo,
encastelado e auto-absorto em seu narcisismo. Nesse contexto, o Estado,
isentando-se dos deveres de prover o cuidado dos cidadãos, sobrecarrega
a família, conclamando-a a ser parceira da escola e das políticas públicas, e
a sociedade, atônita, na ausência de “lugares com calor”, elege-a como o
lugar da proteção social e psicológica (SAWAIA, 2002, p. 45).
Continuando sua exposição, Sawaia faz preciosa observação sobre o risco desse
revival, no sentido de que existe o risco de culpabilizar, responsabilizar e sobrecarregar a
família como negociadora, provedora, cuidadora, alavancadora, lugar do acolhimento.
36
2.1 As condições sócio–econômicas
(...) a verdadeira destruição da família, não são os homossexuais, as família
monoparentais, mas é a miséria.
Elizabeth Roudinesco
Com o objetivo de avançar na compreensão do contexto sócio-econômico em que
está inserida a maioria das famílias a que se refere o presente estudo, recorreu-se a autores
que discutem o impacto dos fatores econômicos para a configuração de um quadro de
vulnerabilidade.
Lavinas e Nicoll, em artigo intitulado Atividade e Vulnerabilidade: Quais os Arranjos
Familiares em Risco?, apontam que:
Muito se fala na imensa vulnerabilidade dos arranjos familiares com filhos,
notadamente aqueles cuja chefia é feminina e nos quais o cônjuge
masculino é ausente. Sabendo-se que não políticas permanentes e
universais de apoio às famílias no Brasil, e que, portanto, grande parte do
que poderia ser desmercantilizado por intermédio de políticas blicas para
compensar dignamente o aporte das famílias – leia-se das mulheres – não o
é, sendo assumido, na prática, na esfera privada dos lares, nem de longe se
pretende contestar evidência tão cristalina. Porém diante de tamanho vácuo
no campo das políticas às famílias, será que o maior ônus recai nas famílias
monoparentais femininas? Quais são os arranjos familiares mais fragilizados
pela ausência de um sistema de proteção social que segurança, reduza
a vulnerabilidade e promova eqüidade? (LAVINAS, 2006, p. 67).
Os autores citam a diversidade de arranjos familiares. Apoiando-se em Goldani e
Verdugo Lazo, ressalte-se que:
Nos últimos 30 anos, as famílias brasileiras quase triplicaram de número, o
tamanho médio delas se reduziu (de 4,9 para 3,5 pessoas) e suas
condições de vida melhoraram. No entanto, ‘a diversidade de modelos é sua
característica mais notável’. Segundo essas autoras, houve uma diminuição
importante no número de famílias biparentais com filhos e um crescimento
das famílias monoparentais (chefe sem cônjuge) com filhos; observa-se
também uma progressão importante das famílias unipessoais (GOLDANI;
LAZO, 2004).
37
Em 2.003, segundo o IBGE
2
, 10% das famílias brasileiras eram constituídas por
pessoas que moravam sozinhas (unipessoais); quase 15% compunham-se de casais sem
filhos logo, a quarta parte do total era de família sem presença de prole; 51% eram
famílias nucleares com filhos; 18% eram chefiadas por mulheres sem cônjuges, porém com
filhos; um resíduo de 6% congregava outros arranjos.
O percentual de famílias com pessoas de referência do sexo feminino era de 28,8%,
em 2.003, contra 16%, em 1.981. Desse total de 15,3 milhões de famílias chefiadas por
mulheres, quase dois terços eram monoparentais com filhos.
Lavinas e Nicoll citam que pesquisa realizada por Sorj (2004) revelou que as
mulheres trabalhadoras pobres com crianças pequenas (em idades variando de 0 a 6 anos),
freqüentando creches, auferiam rendimentos de trabalho superiores àquelas igualmente
pobres e ocupadas, cujos filhos da mesma idade não dispunham de opções externas de
guarda.
Os autores deixam claro que:
Os dados do IBGE/PNAD 2003 reiteram aspectos enfatizados por Sorj
(idem). Mostram que somente 37% das crianças brasileiras na faixa de 0 a 6
anos freqüentam creches ou a pré-escola. Os dados da PNAD indicam que
somente 2% dos trabalhadores de ambos os sexos declaram receber em
2003 algum auxílio financeiro para compensar despesas com creche ou
educação. na rubrica transporte, são contemplados 37% dos
trabalhadores do sexo feminino e 35% dos trabalhadores do sexo
masculino. Isso demonstra a pouca atenção também no plano dos auxílios
trabalhistas a questões ligadas ao que convencionou chamar de
maternagem, de forma a facilitar a conciliação do tempo de trabalho com os
cuidados com a família. Na ausência de políticas blicas conseqüentes, a
grande maioria das mulheres com filhos pequenos tem de buscar soluções
individuais e privadas para a guarda das suas crianças (LAVINAS, 2006, p.
77).
Gomes, a propósito do tema, ao analisar o cotidiano de famílias de classes
populares, refere-se a condições de sobrevivência, asseverando que “o Brasil apresenta,
2
Fonte: PNAD/IBGE (2003)
38
nas últimas décadas, uma das maiores e mais inaceitáveis concentrações de renda, dentre
os países da América Latina, e até mesmo do mundo”.
A autora, ao refletir sobre o cotidiano das mulheres de uma vila da periferia de São
Paulo, mais especificamente em relação ao cuidado com os filhos e à estratégia de deixá-
los sob o cuidado de vizinhos, acrescenta:
(...) a existência dessa estratégia revela a carência absoluta de creches. A
criação delas é uma necessidade vital e urgente, de maneira a garantir o
trabalho materno nos bairros mais populares. (...) Porém, o recurso a essa
estratégia revela, sobretudo, uma outra coisa fundamental: os pais não
abandonam seus filhos. A luta pela sobrevivência impõe-lhes trabalhar de
qualquer maneira e em qualquer condição. Para garantir isso, torna-se
necessário que o Estado e a sociedade não lhes asseguram condições
mínimas - encontrar alguma saída (GOMES, 2003, p. 70).
Gomes continua sua análise sobre “estratégias de sobrevivência” e chama a atenção
para um aspecto relevante na análise e na compreensão da dinâmica familiar, sobretudo de
adolescentes autores de ato infracional:
(...) se os pais migrantes se sentem bem sucedidos com os níveis de vida e
de trabalho derivados de seu estabelecimento na metrópole porque
comparam o ontem com o hoje -, os filhos, produtos dessa cidade, não
importa se dos seus setores mais marginalizados, conhecem a riqueza, o
estilo e a qualidade de vida que ela proporciona a outros, aos melhor
aquinhoados. Assim, resistir às imposições de uma vida tão desumana
quanto a que lhes é destinada torna-se algo bem mais difícil, bem mais
complicado. E nós não temos a menor possibilidade de avaliar, com algum
grau de segurança, quais serão as conseqüências disso a médio e a longo
prazo (GOMES, 2003, p. 71).
Lavinas e Nicoll, ao analisarem quais os arranjos familiares mais fragilizados pela
ausência de um sistema de proteção social, indicam, entre outros aspectos, que:
Os investimentos sociais escola de qualidade, escola em tempo integral,
creches, daycare, transportes públicos de qualidade etc. contribuem para
a elevação da renda das mulheres trabalhadoras porque tendem a ampliar
sua capacidade contributiva, liberando seu tempo de trabalho e alargando e
fortalecendo sua autonomia no âmbito das relações de gênero, o que tem
39
rebatimentos diretos e positivos na redução da pobreza (LAVINAS, 2006, p.
84).
Dando continuidade ao estudo sobre os fatores que contribuem para a
vulnerabilidade familiar, os autores lembram que:
É senso comum que os arranjos familiares em situação de risco e de maior
vulnerabilidade são aqueles chefiados por mulheres sozinhas, ou seja, a
falência do modelo patriarcal de família, que tem na figura masculina o
papel do provedor, estaria levando a um empobrecimento crescente das
novas gerações, na medida em que muitas crianças estariam sendo criadas,
cuidadas e educadas em famílias monoparentais femininas, logo,
exclusivamente por mulheres, cuja posição no mercado de trabalho é,
comparativamente à dos homens, inquestionavelmente mais desfavorável
(salários em média inferiores, menor jornada semanal de trabalho e maior
taxa de desempregos etc.) (LAVINAS, 2006, p. 85).
Todavia, destacam que a análise dos dados sobre arranjos familiares e sobre
diferenciais de gênero por classe de renda traz conclusões surpreendentes:
(...) mesmo nas classes de renda mais baixa, e por isso mais vulneráveis
a vulnerabilidade é aqui expressa exclusivamente com base em um
determinado nível de renda -, os arranjos familiares com presença de
crianças cuja pessoa de referência é do sexo feminino não estariam sempre
e forçosamente na condição mais crítica, (...). Uma primeira constataçãoe
não das menos relevantes é a de que o sexo da pessoa de referência na
família não é variável de impacto na determinação da vulnerabilidade (...)
Da mesma maneira que o sexo do chefe é quase indiferente na
probabilidade de uma família ser mais ou menos vulnerável, o perfil da
família, se biparental (chefe, geralmente homem, e cônjuge) ou
monoparental (entenda-se chefia feminina), tampouco tem peso expressivo
na explicação da vulnerabilidade (LAVINAS, 2006, p. 89)
Os autores concluem o estudo apontando que a provisão de serviços públicos é fator
significativo para a redução das vulnerabilidades e das desigualdades sociais.
(...) é indispensável retomar o investimento público na escola de tempo
integral, com ensino de qualidade, e ampliar a oferta de creches, por parte
das prefeituras, para crianças na faixa pré-escolar, de modo a galvanizar a
autonomia das mulheres. a universalização do acesso e do padrão de
qualidade dos serviços desmercantilizados são capazes de reduzir profunda
e rapidamente os diferenciais de gênero e as desigualdades sociais no país.
(...) O que falta ao Brasil é desenhar uma política universal de renda voltada
para famílias com crianças, para atuar com efetividade na redução das
vulnerabiliades e das desigualdades sociais. Estas atingem a todas as
40
famílias em situação de insegurança socioeconômica, independente do
sexo do chefe e do seu perfil (mono ou biparental) (LAVINAS, 2006, p. 91).
Nessa mesma perspectiva, ao dispor sobre os equipamentos da rede de proteção
social, Sarti enfatiza que:
Nos casos de instabilidade familiar por separações e mortes, aliada à
instabilidade econômica estrutural e ao fato de que não existem instituições
públicas que substituam de forma eficaz as funções familiares, as crianças
passam a não ser uma responsabilidade exclusiva da mãe ou do pai, mas
de toda a rede de sociabilidade em que a família está envolvida (SARTI,
2002, p. 31).
41
Capítulo 3. O pai na psicanálise: reflexões críticas.
No tópico anterior, discorreu-se acerca da pluralidade de modelos familiares,
ressaltando o quanto o modelo familiar - pai, mãe e filhos -, construído historicamente,
permanece em alguns momentos como norma a partir da qual se mensuram os desvios
familiares e as conseqüências negativas desses “desvios” para a formação dos indivíduos.
Algumas concepções teóricas dão especial lugar a esse modelo e à função do pai na
dinâmica familiar. Desde já, é imprescindível uma ressalva sobre os limites do presente
trabalho, o qual não tem por objetivo uma discussão das teorias psicanalíticas acerca da
função paterna. Portanto, não abarca uma análise do lugar do pai nos diversos autores de
base psicanalítica, de modo que a inscrição no título falência do Pai ou falência da Pátria
possui um caráter mais provocativo do que conclusivo.
Todavia, configura-se como material de discussão o uso que se tem feito de alguns
jargões da psicanálise, ainda que equivocadamente.
A discussão sobre o pai concreto/simbólico” ou a função paterna, e não o pai
concretamente, é diferenciação fundamental na linguagem psicanalítica. No entanto,
observa-se que essa diferenciação relevante em contextos acadêmicos ou clínicos não é tão
palpável em contexto como o tratado neste estudo, recaindo as caracterizações de falência,
ausência ou fragilidade sobre aquele pai concreto, sentado na frente do técnico,
reproduzindo relações de poder que aquele pai já conhece, como, por exemplo, entre patrão
e empregado.
42
Segundo informações da Fundação Casa
3
, 51% desses pais, são homens que vivem
realidades concretas muito árduas: ocupam a função de pessoal de serviços, vendedores,
trabalhadores não qualificados e operários, ao passo que apenas 1% ocupa o lugar de
especialistas das profissões intelectuais e científicas.
Quando saem das salas onde são avaliados, muito provavelmente não tiveram
nenhuma explicação sobre função, simbolismo ou algo parecido e serão concretamente
cobrados pelas suas fragilidades, o que poderá acarretar a permanência de seus filhos na
medida de privação de liberdade, sem nenhum simbolismo ou metáfora. É esse uso o limite
do presente estudo.
Para ilustrar o uso, recorreu-se às considerações de Frasseto sobre a leitura de
avaliações psicológicas em adolescentes privados de liberdade, com amostra selecionada
para elucidar a motivação apresentada pelos psicólogos ao sugerirem a medida de
internação. Diz ele que “emerge dos laudos o referencial psicanalítico ou psicodinâmico no
qual as conclusões sobre o ser humano vêm ancoradas” (2005, p 108).
Segundo o autor, tais conclusões ocupam o lugar de âncora nas justificativas para a
indicação ou manutenção da medida de internação:
O progenitor mostra-se bastante limitado e fragilizado pela idade e saúde
debilitada, parecendo absolutamente desvitalizado enquanto figura
reguladora (...) Parece ter carecido de figura de autoridade efetivamente
atuante enquanto referência de ascendência sobre si, sugerindo falência da
função normativizadora familiar (...) Este jovem provêm, portanto, de grupo
familiar que se mostrou incapaz de oferecer-lhe condições para seu pleno
desenvolvimento bio-psico-social (FRASSETO, 2005, p. 113).
Rauter, ao refletir sobre os pressupostos em que se baseiam as avaliações, exames
e procedimentos diagnósticos de indivíduos encarcerados afirma que:
3
Site Oficial Fundação Casa
43
A idéia de que as relações estabelecidas na infância, pelo indivíduo, com
seus familiares, é de fundamental importância na formação da sua
personalidade, é largamente aceita pelos chamados profissionais de saúde
mental, de várias tendências. A psicanálise, aqui também suporte para tais
idéias, tem sido questionada hoje a respeito de suas teorizações sobre o
Complexo de Édipo, espécie de mini-drama familiar comum à maioria dos
seres humanos. Até que ponto seria generalizável a ocorrência do drama
edipiano? Não será ele peculiar a um certo tipo de família, localizada numa
determinada época histórica, num determinado segmento social? (RAUTER,
2003, p. 92).
De qualquer modo, mesmo que os psicanalistas afirmem tratar-se de
“imagens parentais internalizadas” e não de personagens concretos, o fato
é que o modelo edipiano mais difundido é aquele que pressupõe a
existência de uma família baseada na autoridade paterna e composta de
pai, mãe e filhos (RAUTER, 2003, p. 92).
A autora continua, citando como a difusão do modelo edipiano a que se fez alusão
pai, mãe e filhos – reflete-se nas avaliações:
É a difusão deste modelo edipiano, talvez em desacordo, dirão alguns, com
a teoria “pura”, que permitirá a nossos psicólogos e psiquiatras forenses
caracterizarem como potencialmente criminogênicas e patogênicas
situações do tipo: famílias onde ocorreu a morte do pai ou o abandono
precoce por parte deste; famílias onde o pai bebe, está preso ou doente;
famílias onde a mãe cria o filho sem pai, ou onde a mãe tem filhos de
homens diferentes; famílias onde a mãe está ausente, mesmo que seja por
ter trabalhar (RAUTER, 2003, p. 92).
Nesse sentido, objetivou-se aqui, no decorrer da análise documental, verificar se
esses pressupostos embasaram posicionamentos estigmatizantes e enfatizar o diálogo dos
profissionais do Serviço Social com os supramencionados pressupostos, até porque a
mesma autora evoca a relevância das condições concretas de existência e o quanto trazer à
tona essas condições possibilita uma melhor compreensão das formas de organização
familiar. Veja-se:
E logo nos damos conta de que todos os graves indícios de anormalidade
mental ou de tendência a delinqüir encontrados na história familiar dos
indivíduos examinados fazem parte da realidade mais comum e cotidiana
vivida pela camada da população a que pertencem. Ou seja, as condições
de miséria geradoras pela própria exploração capitalista recebem uma
leitura estigmatizante, que é utilizada na construção da personalidade
criminosa. Entretanto, o que é tomado por nossos peritos como
“anormalidade” constitui, na verdade, a regra, o resultado mesmo das
condições a que são submetidos imensos setores da população brasileira
(RAUTER, 2003, p. 93).
44
Em célebre artigo intitulado Psicanálise da criminalidade brasileira: ricos e pobres
4
, o
psicanalista Hélio Pellegrino apresenta algumas reflexões sobre o diálogo entre a
psicanálise e a crise social, trazendo relevante contribuição ao presente estudo. O autor
inicia o artigo expondo a sua leitura sobre a criminalidade e crise social:
A criminalidade, portanto, cresce a partir de um certo tipo de crise social, ou
melhor: ela é expressão e conseqüência de uma patologia social
suficientemente grave para gerá-la. Uma crise social se torna apta a
fomentar a criminalidade quando chega a lesar, por apodrecimento grave,
os valores sociais capazes de promover uma identificação agregadora entre
os membros de uma comunidade.
A vida social, para ser respeitável e suportável, precisa estar irrigada e
vivificada por princípios mínimos de justiça, de equidade, de legitimidade do
poder político, de respeito pelo trabalho e pela pessoa humana. Esse elenco
de valores, acolhido por todos e cada um, irá constituir o Ideal de Eu de uma
cultura determinada. O Ideal de eu, referência identificatória comum aos
membros de um processo civilizatório, constituirá o cimento capaz de
promover a integração - e a coesão - do tecido social.
Quando falta esse cimento; quando apodrece o elenco de valores que
constitui o Ideal do Eu de uma sociedade; quando a injustiça impera e a
iniqüidade governa; quando a corrupção pulula e a impunidade se instala;
quando a miséria de milhões se defronta com a aviltante ostentação de
pouquíssimos; quando ocorre tudo isto que - no presente momento - define
e estigmatiza a sociedade brasileira, então a criminalidade desfralda a sua
bandeira perversa, e se torna a denúncia de uma estrutura social também
perversa.
Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma
patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa.
A erradicação da criminalidade, através de medidas puramente
sintomáticas, é um procedimento ideológico destinado a encobrir a
responsabilidade social na produção dessa mesma criminalidade.
O renomado psicanalista, ao expor sua visão sobre a criminalidade, considera-a
como expressão de uma patologia social; não faz uso da psicanálise, pois, para atribuir a
questões psíquicas a expressão de patologias sociais. Nesse sentido, em 1.984,
estabelece um diálogo interdisciplinar, uma vez que, em sua leitura da criminalidade,
considera as questões sociais envolvidas.
No mesmo texto, Pellegrino apresenta um diálogo entre o pacto edípico e o pacto
social, apresentando uma exposição sobre o Complexo de Édipo, a saber::
4
Jornal Folha de São Paulo, Folhetim, 07 de outubro de 1.984
45
O Complexo de Édipo é, para o criador da psicanálise, a principal
articulação estruturante do psiquismo humano.
Ao mesmo tempo, é fonte e origem das relações elementares de parentesco
e das instituições sociais, de caráter leigo ou religioso. É na constelação dos
conflitos edípicos que a criança se defronta, de maneira crucial e inaugural,
com as figuras da Lei, da interdição, da transgressão, da culpa e do temor
ao castigo, advindo do poder de polícia e do papel de juiz atribuídos ao Pai.
Vamos relatar, de um ponto de vista descritivo, o Complexo de Édipo,
segundo o pensamento de Freud. A exposição que faremos se refere
exclusivamente ao Édipo masculino, na sua forma direta, ou positiva. Este
caminho implica, sem dúvida, uma simplificação. Através dela, entretanto,
ganharemos uma simplicidade e uma clareza elucidativa capazes de
favorecer a eficácia da tese que iremos expor.
Par Freud, entre os três e os cinco anos, o menino se encontra na fase
genital infantil - ou fálica - de seu desenvolvimento psicossexual. Nessa
idade, tendo o pênis como seu principal órgão de prazer, apaixona-se
pela mãe, desejando-a sexualmente, ao mesmo tempo que odeia o pai e
imagina a sua destruição, que este é, segundos sua fantasia, o rival que
lhe barra o caminho do incesto.
A vicissitude edípica, cheia de som e fúria, é extraordinariamente penosa,
pelas culpas que suscita e pelos temores que desperta. A relação do
menino com o pai, nessa época, é marcada por forte ambivalência. O
menino odeia o pai e quer matá-lo, mas, ao mesmo tempo, o ama, admira e
respeita. Concomitantemente, teme, com todo o seu corpo, a retaliação
paterna, por ele imaginada.
O Édipo, representando a gramática pela qual o desejo se estrutura, de
modo a integrar-se no circuito de intercâmbio social, significa também uma
etapa decisiva no processo de separação entre a criança e a mãe. Esta
separação é absolutamente indispensável, caso contrário a criança jamais
chegará a superar sua dependência infantil. A construção desse
afastamento se inicia com o corte do cordão umbilical. Depois, chega a
época traumática do desmame. A seguir, são impostas as regras de
controle esfincteriano e de higiene, ligadas à excreção. Por fim, vem o Édipo
e a interdição do incesto. A partir daí, o menino perde profundamente a
mãe, enquanto objeto sexual, e se credencia ao grave preço desta perda, a
ganhar os caminhos do mundo e o amor futuro das outras mulheres. (...)
A resolução do Édipo é condição indispensável para a boa inserção da
criança no circuito de intercâmbio social.
O menino, no Édipo, esbarra com a potência de interdição da lei e, nesta
medida, tem que renunciar à onipotência do seu desejo, o que corresponde
a uma terrível injúria narcísica. Ele tem que abandonar o princípio do prazer
e aceitar o princípio da realidade, pelo qual vai inserir-se no circuito de
intercâmbio social.
Essa grave renúncia, entretanto, não se faz em pura perda. A Lei do Pai,
fora de dúvida, exige do menino um sacrifício portentoso. Mas, uma vez
integrada, abre para o seu desenvolvimento perspectivas cruciais e
fundadoras. A Lei do Pai implica uma ação de troca e de intercâmbio
amoroso. Ela pede - mas doa. Constringe, mas liberta. Impõe ao desejo
uma gramática mas cria a possibilidade do livre discurso amoroso.
Deveres e direitos
A lei da Cultura é, em sua essência, um pacto, um toma-lá, dá-cá, um
acordo pelo qual a criança é introduzida como aspirante a sócia da
sociedade humana. Ela adquire, pelo Édipo, um lugar na estrutura de
parentesco, ganha nome e sobrenome, tem acesso à ordem do simbólico e,
portanto, à linguagem, liberta-se da excessiva dependência à mãe e se
torna capaz de iniciar sua aventura humana, como inventora dos caminhos
do seu desejo. O Édipo é um crivo crucial. Através de sua estrutura se
46
constitui o modelo básico de intercâmbio entre o ser humano e a sociedade,
pela definição de deveres e direitos.
A resolução do Édipo hominiza - e humaniza. A renúncia ao incesto implica,
também, a renúncia aos impulsos criminais e anti-sociais. Aceito as regras
do jogo da sociedade em que vivo. E passo a jogá-lo.
A capacidade de trabalhar, em qualquer nível, é uma exigência feita pela
sociedade a todos os seus membros. Para atendê-la, a criança, mais uma
vez, tem que renunciar ao princípio do prazer, acatando - e praticando - o
princípio da realidade. Repete-se aqui, ao nível das tarefas, obrigações e
deveres sociais, a mesma exigência feita à criança com relação aos seus
impulsos edípicos. Para renunciar ao incesto e ao parricídio, a criança teve
que abrir mão da onipotência de seu desejo. Este foi o batismo de fogo que
a fez ingressar como aspirante a sócia da sociedade humana.
Através do aprendizado escolar, profissional e humano, a criança também
tem que abrir mão dessa onipotência. Os dois processos - o Édipo e as
subseqüentes tarefas de socialização - representam situações
estruturalmente análogas. Se o Édipo é o batismo, o trabalho é a crisma
pela qual o ser humano se torna sócio da sociedade humana.
Em ambas as situações, as renúncias exigidas são muito graves. Trabalhar
é desistir da onipotência do desejo. É adequar-se ao princípio da realidade.
É aceitar os princípios de autoridade, hierarquia e disciplina. É poder
conviver, cooperativamente, com os outros. É, afinal, cumprir uma exigência
imperativa da sociedade, cujo atendimento deve gerar, por justiça, direitos
inalienáveis.
Continuando a exposição, o autor apresenta a relevância do cumprimento do pacto
social, sendo que esse trecho merece destacada atenção, pois dialoga com as estruturas de
dominação, com o capitalismo selvagem e com o desemprego, aspectos tão enraizados no
histórico dos adolescentes autores de ato infracional e de seus familiares. Pellegrino
enfatiza ainda os efeitos do apodrecimento dos valores sociais:
A partir do trabalho, exigido pela sociedade, estabelece-se um pacto social
que, à semelhança do pacto edípico, tem que ter mão dupla. A competência
para o trabalho exige um longo e doloroso aprendizado. Em troca deste
sacrifício, quem trabalha adquire o sagrado direito de receber, como paga, o
mínimo necessário à preservação de sua subsistência e dignidade - e à de
sua família. O pacto social se legitima - e se cumpre - através desse
intercâmbio. Sem ele, o pacto se torna viciado e se corrompe, com graves
conseqüências.
Suponhamos que pacto social não seja cumprido, por parte da sociedade. O
trabalhador, de qualquer categoria, não é recompensado pelo longo esforço
que fez. Apesar de sua competência, tem as mãos vazias. Não tem
emprego ou, se o tem, ganha um salário que não lhe permite viver com
dignidade. O aviltamento do seu trabalho é a mais grave ofensa social que
possa ser feita a um homem. Ela o atinge na essência mesma de sua
condição de pessoa. Ela ofende o seu senso de equidade e de justiça. Ela o
frauda na sua esperança - e na sua no mundo. Ela semeia em seu
coração a descrença e a revolta.
O desrespeito da sociedade pelo trabalho - e pelos direitos elementares do
trabalhador - pode levá-lo a uma ruptura com o pacto social. Desprezado,
aviltado, degradado, o trabalhador se nega ao pacto. Rompe com ele,
questiona-lhe a estrutura, repudia a validade e a justiça dos sacrifícios que,
47
em seu nome, lhe foram exigidos. O rompimento do pacto social pelo
trabalhador, em resposta a uma prévia ruptura da sociedade, pode vir a ter
conseqüências catastróficas. Não nos esqueçamos que (SIC) o pacto social
- e o pacto edípico - se articulam íntima e indissoluvelmente.
O processo civilizatório, em seu conjunto, obedece a uma mesma linha
estratégica. Ela exige progressivas e dolorosas renúncias, mas, em troca,
fica obrigado, para legitimar-se a criar direitos e vantagens correspondentes.
Suponhamos que haja um rompimento grave da relação de mutualidade
que sustenta - e legitima - o pacto social. Essa ruptura, fraudadora e
conspurcadora da dignidade humana, pode levar ao desespero, à cólera, à
revolta. O trabalhador tenderá a repelir o pacto social e os sacrifícios que
exige. Tal repulsa, por outro lado, em virtude da solidariedade que existe
entre o pacto social e o pacto edípico, pode vir, por retração, a provocar
uma ruptura do pacto edípico, ao nível da realidade intrapsíquica. Esse
efeito se tornará tanto mais provável quanto mais existir, numa sociedade
determinada, além do desrespeito ao trabalho, um clima de apodrecimento
dos valores que poderiam cimentar a coesão social.
O rompimento com a Lei do Pai - ou Lei da Cultura -, através da rejeição do
pacto edípico, produz efeitos catastróficos na mente e na conduta do
indivíduo, e corresponde a um ato de parricídio. O Édipo é uma gramática
pela qual o desejo e a agressão se tornam metabolizáveis e entram no
circuito de intercâmbio social. O Édipo implica, necessariamente, renúncia e
recalque de pulsões anti-sociais e criminais, não utilizáveis pelo processo
civilizatório.
Com a ruptura do pacto edípico, ocorre o retorno do recalcado, para
usarmos a expressão freudiana. A barreira do recalque, rompida, liberta o
enxurro dos impulsos antes contidos: predação, homicídio, incesto, estupro,
roubo e violência de todo tipo passam a ter livre curso na conduta. Estão
implantadas as condições extra e intrapsíquicas para uma epidemia de
criminalidade, como sintoma de patologia social.
O modelo econômico imposto ao país tornou-se conhecido pelo nome de
capitalismo selvagem. Tal modelo, excludente e concentrador da renda,
criou uma estrutura social em que o desnível entre os que tudo têm e os que
nada possuem é dos mais altos do mundo.
O capitalismo selvagem brasileiro foi - e é - um regime genocida e
infanticida, e o pacto social que impõe ao país clama aos céus por justiça.
Dinheiro gera dinheiro, para os que o possuem, ao passo que o trabalho
cria a pobreza para os que trabalham - quando conseguem trabalhar. E,
para coroar tudo, o poder arbitrário, a impunidade triunfante, a cupidez sem
limite, o consumismo sem freio, tudo isto, de um só lado - o dos donos da
vida. Do outro lado, o rosto anônimo da miséria: milhões de brasileiros
condenados à penúria absoluta.
Por outro lado, se a delinqüência e a criminalidade o formas perversas de
protesto social, as estruturas de dominação do capitalismo selvagem
também são formas criminosas de relacionamento social. ‘Mais grave do
que assaltar um banco é fundar um banco’ - costumava dizer Lênin, com o
seu evidente exagero bolchevique. A piada do velho revolucionário pode,
contudo, induzir-nos a pensar. O assalto a um banco é, obviamente, um ato
delinqüente, e quem o pratica se coloca fora da lei, exposto aos seus
rigores. o dono do banco, quando pratica a usura, cobrando juros
escorchantes, capazes de paralisar a produção, também comete ato
criminoso, sem contudo pagar o mesmo preço do assaltante.
A delinqüência do pobre o coloca fora da lei e o expõe à punição, tantas
vezes vingativa e desumana. Com o rico, ocorre quase sempre o contrário.
Ele começa por corromper a lei, pondo-a do seu lado. Com isto, compra a
impunidade e conquista, com a pecúnia, o poder e a glória. Ao mesmo
tempo, usa a lei pervertida para combate o protesto criminoso do pobre. É
nesse vel, duplamente perverso, que decorre a repressão policial pura e
simples à criminalidade, considerada apenas como sintoma e não como
efeito de uma grave patologia social. A serem assim avaliadas as coisas, a
48
violência da criminalidade passará a exigir, para seu combate, a violência
policial pura e simples. Chegaremos à aprovação da pena capital e à
condecoração, por merecimento, do Esquadrão da Morte.
É por aí, é por esse leito, é no rumo da luta que se propõe a construir o
futuro do povo, é por que se poderá enfrentar, radicalmente, o problema
da criminalidade, na medida em que suas origens sejam expostas,
questionadas e atacadas - de maneira construtiva. A criminalidade é uma
forma enlouquecida de protesto. É preciso que a indignação e a
inconformidade do povo possam formular-se em termos políticos, de modo a
torná-la desnecessária e, portanto, verdadeiramente ultrapassável.
Ninguém duvida (SIC) que a criminalidade, no momento, pelo caráter que
adquiriu, de guerra civil não declarada, está a exigir um tratamento
sintomático, criterioso e enérgico. É preciso mobilizar a máquina da polícia,
equipando-a, moralizando-a e humanizando-a.
É preciso derrotar o arbítrio, a corrupção, a indignidade, a incompetência. É
preciso acabar com a recessão, o desemprego e o arrocho salarial que
matam o povo de fome. É preciso matar a fome do povo.
E, por fim, embora não em último lugar, é preciso ter vergonha e amor à
Pátria. Quando isto ocorrer, a patologia social e seu efeito - a criminalidade -
estarão debelados.
Em seu artigo, Pellegrino falava sobre o aumento do poder punitivo em relação
aos pobres nos dias que corriam. Mais de vinte anos após a publicação de seu artigo, não
obstante, ainda se está a debater o aumento do poder punitivo como forma de lidar com a
criminalidade, isto é, continua-se a se enfrentar o sintoma como se fosse a causa. Calha
perguntar em que lugar o discurso técnico se coloca nessa máquina: se como mais um
instrumento dentre os procedimentos ideológicos destinados a encobrir a responsabilidade
social na produção dessa mesma criminalidade ou como instrumento de transformação
social.
Recorreu-se a outra autora, cuja contribuição é valiosa para a presente reflexão
acerca do uso do discurso psicanalítico. Neri
5
, em artigo intitulado Enfraquecimento da lei ou
aumento do poder punitivo? Uma reflexão acerca do discurso psicanalítico sobre a crise do
simbólico na contemporaneidade, desperta, no início do texto, a relevância da interlocução
entre os saberes como modo de enfrentamento do discurso hegemônico:
5
Neri, Regina. Psicanalista. Professora do Mestrado em Direito da UCAM. Doutora em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de
Psicologia da UFRJ.
49
Acreditamos ser fundamental a interlocução entre os diversos saberes que
trabalham na articulação entre o subjetivo e o social, com o objetivo de
formular um pensamento crítico ao discurso hegemônico de
recrudescimento do poder punitivo e à disseminação crescente “da cultura
do medo” (NERI, 2007, p. 1).
Em seu artigo, Neri conjetura a respeito dos efeitos políticos de determinadas
interpretações psicanalíticas:
No campo dos saberes sobre o psíquico, escutamos com freqüência
interpretações psicanalíticas acerca do mal estar na contemporaneidade,
que apontam para a crise do simbólico e o enfraquecimento da lei como
causas do aumento da violência e da criminalidade. Cabe indagar-se sobre
os efeitos políticos de tais discursos, que deixam no ar uma demanda por
mais ordem e mais limites, fazendo eco, desse modo, aos discursos
conservadores provenientes de outros setores da sociedade, que clamam
por leis mais severas (NERI, 2007, p. 2).
A autora traz as contribuições de Foucault para a análise crítica da teoria
psicanalítica no que se refere a uma concepção universal da formação do sujeito:
Em que pesem as contribuições fundamentais da obra freudiana sobre a
articulação entre a subjetividade e a cultura, o pensamento de Foucault
assinala certos limites da teoria psicanalítica no que diz respeito aos
processos de subjetivação e de constituição de laços sociais, que estariam
na origem de determinadas leituras do simbólico e de concepções abstratas
da lei.
Ao formular um sujeito que é fundado a cada momento pela história,
Foucault aponta para a presença de coordenadas universais na psicanálise.
A psicanálise teria uma teoria do sujeito distinta de formas de subjetivação
produzidas historicamente, na qual subsistiria a concepção de um sujeito
determinado por uma ordem simbólica a-histórica, referida a mitos
universais fundadores do sujeito e da cultura (NERI, 2007, p 4).
Colocando em análise os discursos psicanalíticos, sobretudo no que se refere à
figura do pai, a autora apresenta questionamentos relevantes para a análise de laudos e
pareceres elaborados por assistentes sociais e psicólogos do Poder Judiciário em processos
de adolescentes que cometeram ato infracional, notadamente aqueles documentos que
apresentam discursos acerca da ausência ou da fragilidade da figura paterna, tomando por
referência a teoria psicanalítica:
50
Cabe indagar-se sobre o peso de certos discursos psicanalíticos nessa
abordagem do jovem infrator, cuja periculosidade estaria associada ao fato
de pertencer a uma família não conforme aos padrões da norma edípica,
centrada na figura do pai.
Nessa perspectiva, deficiências na interiorização do “Nome do Pai” servem
como fórmulas explicativas de diagnósticos sempre baseados na
negatividade que inviabilizam a compreensão de mudanças no campo da
organização familiar e do comportamento dos jovens. Podemos considerar
que esse tipo de “solução”, longe de resolver o problema é também parte do
sintoma que deveríamos ‘curar’ e tem contribuído para o agravamento da
situação no que diz respeito ao aumento da criminalidade e da violência
(NERI, 2007, p. 10).
Deve-se incorporar ao presente estudo, por relevante, a leitura de autores da
psicanálise, haja vista que possibilitam a desconstrução de um discurso acerca da função do
pai, que parece objetivar a hegemonia. Nesse sentido, continua-se aqui com a exposição de
Neri, apoiada em outro autor da psicanálise
6
:
O discurso do declínio do pai é problemático tanto do ponto de vista da
história quanto do ponto de vista da teoria psicanalítica. No que concerne à
história, esse discurso solene se apresenta mais como uma legenda do que
um saber histórico sobre o pai. Para esse discurso, a história como tal não
existe, trata-se de fazer aparecer, através de um desenvolvimento aparente,
as manobras de um universal metapsicológico. A questão seria a de saber
como foi construída historicamente essa legenda e qual seria o papel do
discurso psicanalítico nessa construção.
Do ponto de vista da teoria e clínica psicanalítica, trata-se de analisar qual é
o estatuto da figura paterna como legisladora na operação do Complexo de
Édipo e se indagar em que medida essa figura legisladora do pai seria
universal (NERI, 2007, p. 14).
Neste capítulo, apresentam-se reflexões sobre a teoria psicanalítica, sobretudo em
relação à figura do pai como universal e o lugar político que os ditos discursos sobre a
função paterna têm ocupado num cenário de apodrecimento dos valores sociais e de
capitalismo selvagem. A questão que permanece é:
Como assinala M. Tort, a ligação é estreita entre a solução paterna” e a
valorização da submissão à lei, na qual o processo de subjetivação é
equivalente ao de se submeter à lei do pai. Se pudéssemos, ao contrário,
considerar que a solução paterna não é a única relação que os sujeitos
podem ter com a lei, mas tão somente um momento particular, então torna-
se possível pensar numa outra concepção de subjetividade (NERI, 2007, p.
15).
6
Tort, M. Fin du dogme paternal. Paris, Aubier, 2005, pp. 280-81
51
Faz-se mister considerar que, numa intervenção interdisciplinar, o olhar do Serviço
Social poderá oferecer parâmetros importantes para pensar os diferentes modos de
organização familiar e outras relações que o sujeito pode ter com a lei, ao passo que, se
profissionais do Serviço Social meramente se apropriarem de jargões psicanalíticos e
reverberarem tal posição em seus pareceres, estarão na contramão do projeto ético-político
da profissão.
52
Capítulo 4. O Estado Transgressor: Entre Limite e Transgressão
7
Nos dois capítulos anteriores, foi abordada a relação entre pacto edípico e pacto
social, sendo apresentadas concepções críticas, na psicanálise, acerca do pai, transitando-
se pelo reconhecimento de diferentes configurações familiares.
Neste capítulo, transitar-se-á pelas contradições sociais que atravessam os diversos
grupos familiares, dialogando com as configurações do pacto social. Quais são os valores
sociais predominantes na atualidade? São valores estáveis, consolidados?
Como a questão da transmissão dos valores tem sido caracterizada como um dos
aspectos da função paterna, debruçar-se-á sobre autores que discutem os valores sociais
na atualidade, notadamente a fragilidade desses valores. Conseqüentemente, recolocou-se
a função da transmissão numa dimensão mais ampla, para além da figura do pai
propriamente dita.
Debieux, a propósito do tema, lembra que a eficácia das funções paterna e materna
não é independente dos fatores sociais:
O exercício das funções materna e paterna opera-se a partir dos lugares
(materno, paterno, fálicos) atribuídos ou não aos membros de determinada
família, classe social e ao momento cultural. A sua eficácia não é
independente de tais fatores, uma vez que a família é, ao mesmo tempo, o
veículo de transmissão dos sistemas simbólicos dominantes e a expressão,
em sua organização, do funcionamento de uma classe social, grupo étnico e
religioso em que está inserida (DEBIEUX, 2003, p. 8).
7
Expressão utilizada em Le goût de L´Avenir por Jean-Claude Guillebaud (2003).
53
Nesse sentido, a construção interdisciplinar de laudos e de pareceres favorece a
exposição dessa interdependência entre as funções da família na transmissão de valores e
os valores sociais dominantes.
Koltai
8
, apoiada em Jean-Claude Guillebaud
9
, contribui para a contextualização dos
grupos familiares, ressaltando as contradições das nossas sociedades:
Por inúmeras razões nossas sociedades são habitadas por um medo
confuso, assombradas pela violência, perdidas numa modernidade que se
tornou anômica. Estão quotidianamente à procura de regras, pontos de
referência, sentido. Ou seja, tentamos todos e em todos os campos,
redefinir os limites, ao mesmo tempo que a cultura dominante é da
transgressão, a tal ponto que acabamos identificando-a com a própria
modernidade. Nossa liberdade individual é transgressiva por definição, pelo
menos é dessa maneira que é percebida. Dia após dia optamos pela
transgressão de modo que ela se transformou num reflexo tão elementar
quanto os batimentos cardíacos (...) Poderíamos discutir ad infinitum sobre
a maneira pela qual o próprio Estado retoma a prevalência da transgressão
sobre a regra. Sociedades esquizofrênicas se pergunta o autor? Talvez,
uma vez que nossa sociedade rejeita ostensivamente aquilo que ela afirma
estar lhe fazendo falta. Procura de limites por um lado, ardor da
transgressão do outro. A situação do homem contemporâneo se assemelha
àquilo que os psicanalistas chamam de double mind e que se apresenta da
seguinte maneira: de um lado ela exalta a transgressão, mas se queixa da
ausência de regras, de outro teme a violência, mas ironiza a civilidade
(KOLTAI, 2001).
Um episódio recente auxilia a ilustrar o que se convencionou chamar de sociedades
esquizofrênicas. No leilão de bens do megatraficante colombiano Juan Carlos Ramirez,
ocorrido este ano, no Jockey Clube de São Paulo, milhares de pessoas dirigiram-se ao local
com o objetivo de adquirir bens que haviam pertencido ao megatraficante, sendo que as
justificativas, tais como “Faço questão de contar para os meus amigos que comprei dele”,
“Quero a cadeira em que ele foi preso, pois é uma cadeira peculiar” indicam o lugar da
transgressão na nossa sociedade.
O autor continua sua reflexão:
8
Profª Drª Catherine Koltai, Programas de Pós Graduação em Ciências Sociais. Notas de aula.
9
Guillebaud, Jean-Claude. Le goût de L´Avenir. Éditions Du Seuil, 2003, Paris. Ibid.
54
Parece que a secular tricotagem entre limite e transgressão terminou com a
exaltação unívoca dessa última. A sociedade contemporânea deixou de
mandar para si mesmo um sinal de limite. O farol apagou. A negociação
infinita com a transgressão substitui a esplendorosa simplicidade do “tudo é
permitido” (GUILLEBAUD, 2003, pp.108-110).
4.1 A fragilidade dos laços sociais
Essas considerações permitem, ao se colocarem em análise o pai citado nos laudos
e as avaliações citadas no presente estudo, definir-se os contornos da sociedade em que se
inserem esse pai e os demais integrantes dos grupos familiares analisados. A exaltação da
transgressão presente nas sociedades contemporâneas indica a fragilidade dos laços
sociais. O autor lembra que:
A repressão vem substituir a civilidade perdida, a prisão vem no lugar do
laço social enfraquecido, o código penal no lugar do código cívico, a ordem
penal se instala sobre as ruínas da ordem moral. (...) Se tudo isso foi
lembrado é porque as sociedades atuais parecem ter sido afetadas pelo
problema da desfiliação e fragilização do laço, tanto no que diz respeito à
família, quanto à empresa, à escola ou à nação (GUILLEBAUD, 2003, pp.
108-110).
Em relação à fragilidade dos laços sociais, recorreu-se a Lippi, que se apóia em
Bauman
10
para apresentar conceitos acerca do funcionamento da sociedade atual:
Para Z. Bauman, o que mudou foi a modernidade sólida que cessa de existir
e em seu lugar surge a modernidade líquida. A primeira seria justamente a
que tem inicio com as transformações clássicas e o advento de um conjunto
estável de valores e modos de vida cultural e político. Na modernidade
líquida, tudo é volátil, as relações humanas não são mais tangíveis e a vida
em conjunto, familiar, de casais, de grupos de amigos, de afinidades
políticas e assim por diante, perde a consistência e estabilidade (LIPPI,
2007, p. 40).
10
BAUMAN,
Zygmunt.
Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 260
55
Essas considerações revelam uma sociedade com valores sociais esmaecidos,
fluidos:
Os sólidos que se derreteram na fase líquida da Modernidade são os elos
que entrelaçavam os projetos individuais em projetos e ações coletivas.
Cada um por si procura ser flexível para se capacitar para as incertezas do
futuro; ao mesmo tempo, ninguém se crê capaz de transformar a sociedade
como um todo. Conceituando precisamente, a Modernidade Líquida tem
uma estrutura sistêmica remota, inalcançável e inquestionável, ao mesmo
tempo que o cenário do cotidiano relações familiares e amorosas,
emprego e cidade – é fluido e não-estruturado (LIPPI, 2007, p. 42).
O citado autor traz as valiosas contribuições de Bauman para a compreensão da
dinâmica de funcionamento das sociedades atuais, ampliando o escopo de discussão deste
texto acadêmico: da fragilidade das relações familiares de adolescentes autores de ato
infracional para o reconhecimento da fragilidade das relações no tempo que corre,
estabelecendo-se como prioridade as causas individuais em detrimento das causas
coletivas. Veja-se a respeito:
Como evitar que nossos jornais e TVs sejam ocupados por fofocas sobre
personalidades públicas e pela exibição de sofrimentos individuais sem
qualquer possibilidade de articulação em causas públicas? Bauman
apresenta esses temas através da análise de cinco conceitos decisivos:
emancipação, individualidade, espaço/tempo, trabalho e comunidade. Em
todos eles, reaparecem diversos traços em que nos reconhecemos: a
incerteza da vida cotidiana, a insegurança na cidade, a precariedade dos
laços afetivos, o privilégio do consumo em detrimento da produção, a troca
do durável pela amplitude do leque de escolhas, o excesso de informações
etc (LIPPI, 2007, p. 43).
Ao falar sobre o excesso de informações, o autor conduz a uma reflexão sobre a
transmissão de valores pela mídia e a incorporação desses valores pelos adolescentes, os
quais ele nomeia de adolescentes quidos, parafraseando Bauman. Considera o quanto
esses ideais (tais como comportamentos, formas de se vestir, formas de agir, a quem
copiar) transmitidos pela mídia estão sendo incorporados pelos adolescentes em detrimento
das referências familiares:
56
O que prevalece é a escolha individual, que toma como ‘exemplos’, entre
outros, as experiências de ‘celebridades’, transformadas em referências
sociais e em uma espécie de ‘especialistas’ que ajudam o indivíduo a tomar
suas decisões nos mais diversos setores de sua vida. As referências
familiares tiveram sua importância deslocada (BAUMAN, 2001, p. 76)
Lippi apóia-se em autores que discutem mídia e violência, trazendo valiosas
contribuições sobre o lugar da família no processo de socialização e considerando a
interferência da mídia. A propósito do tema, um dos autores citados é Sodré
11
, que analisa a
transição dos referenciais na adolescência num momento em que os padrões familiares são
ultrapassados pelos da informação:
Pouco a pouco, tem perdido força o exercício da função educativa dentro do
grupo familiar. O maior acesso a essas informações forja uma participação
social, no lugar da ação real implicada na “ética familiar”, inculcando valores
que interessam à “ética do consumo”. Desta forma, uma dessacralização
da família, o que geraria “qualidades mais rápidas”, de satisfação e prazer,
substituindo as “qualidades lentas, comprometidas com a socialização
tradicional” (SODRÉ, 1992, p. 72).
57
Capítulo 5. Metodologia
Na presente pesquisa, optou-se pela análise e pela interpretação de dados num
enfoque qualitativo. Partindo do pressuposto apresentado por Minayo (2007), embora seja
uma prática teórica, a pesquisa vincula pensamento e ação. Ou seja, nada pode ser
intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida
prática.
Sobre a pesquisa qualitativa, Gomes ressalta que:
Esse estudo do material não precisa abranger a totalidade das falas e
expressões dos interlocutores porque, em geral, a dimensão sociocultural
das opiniões e representações de um grupo que tem as mesmas
características costumam ter muitos pontos em comum ao mesmo tempo
que apresentam singularidades próprias da biografia de cada interlocutor
(GOMES, 2007, p. 79).
Na definição da metodologia, buscou-se apóio, na feitura deste trabalho, em Bardin,
o qual, em sua obra clássica, traz uma definição abrangente acerca da análise de conteúdo:
Conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis
inferidas) destas mensagens (BARDIN, 1979, p. 42).
O enfoque qualitativo do presente estudo responde a questões muito particulares,
conforme aponta Minayo:
Ela (a pesquisa qualitativa) se ocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de
realidade que o pode ou não deve ser quantificado. Ou seja, ela trabalha
com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças,
dos valores e das atitudes. (...) O universo da produção humana que pode
ser resumido no mundo das relações, das representações e da
11
SODRÉ, M. O Social Irradiado: Violência Urbana, Neogrotesco e Mídia. São Paulo: Cortez, 1992
58
intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa dificilmente pode ser
traduzido em números e indicadores quantitativos (MINAYO, 2007 p. 21).
A mesma autora busca desconstruir uma visão hierárquica entre a pesquisa
quantitativa e qualitativa:
Por isso não existe um “continuum entre abordagens quantitativas e
qualitativas, como muita gente propõe, colocando uma hierarquia em que as
pesquisas quantitativas ocupariam um primeiro lugar, sendo “objetivas e
científicas”. E as qualitativas ficariam no final da escala, ocupando um lugar
auxiliar e exploratório, sendo “subjetivas e impressionistas”. A diferença
entre abordagem quantitativa e qualitativa da realidade social é de natureza
e não de escala hierárquica (MINAYO, 2007 p. 21).
Bardin, no prefácio de sua clássica obra, ao discorrer sobre a análise de conteúdo na
atualidade, afirma que:
Enquanto esforço de interpretação, análise de conteúdo oscila entre os dois
pólos do rigor da objetividade e da fecundidade da subjetividade. Absolve e
cauciona o investigador por esta atração pelo escondido, o latente, o não-
aparente, o potencial de inédito (do não dito), retido por qualquer
mensagem (BARDIN, 1977, p. 7).
No que tange à opção pela análise documental, cumpre resgatar reflexão de
Frasseto:
A análise documental permite que as referências algo abstrata aos laudos,
como se constroem e operam ganhem concretude. Ela confere crivo externo
a hipóteses preordenadas construídas pelo pesquisador ao longo de sua
vida profissional, permitindo refutá-las ou confirmá-las (FRASSETO, 2005,
p.16)
Conforme proposto por Bardin, optou-se aqui pela categorização do material:
As categorias são rubricas ou classes que reúnem um grupo de elementos
(unidades de registro, no caso da análise de conteúdo) sob um título
genérico, agrupamento esse (SIC) efetuado em razão dos aspectos comuns
destes elementos (BARDIN, 1977, p. 111).
59
5.1. A amostra
A amostra consiste em documentos produzidos por psicólogos e por assistentes
sociais da Equipe Técnica do Departamento de Execuções da Infância e da Juventude de
São Paulo. Constam de 29 processos referentes a adolescentes em cumprimento de
medida de internação na Fundação CASA/SP, dos quais se teve acesso a 18 documentos
produzidos por Assistentes Sociais do Judiciário (Laudo Social ou Relatório Social) e a 19
documentos produzidos por Psicólogos do Judiciário (Laudo Psicológico, Avaliação
Psicológica ou com a inscrição ETJ - Equipe Técnica do Judiciário).
Esse foi o foco da pesquisa. Não obstante, para uma melhor compreensão dos
processos, foram lidos os demais documentos, que totalizavam outras 25 produções
técnicas dos demais atores, assinados por psicólogos, por assistentes sociais da Fundação
Casa, CEDECAS, por psiquiatras e por pedagogos. Além disso, tive-se acesso a registros
de decisões judiciais que citavam dados extraídos de documentos técnicos.
Para a realização da pesquisa aos processos, foi solicitada uma autorização à Juíza
Corregedora Permanente do DEIJ, sendo que um dos critérios foi que o adolescente e seus
familiares deveriam já ter sido avaliados pela equipe técnica do Judiciário, pois as
avaliações estariam presentes no processo e possibilitariam a análise documental.
Outro critério estabelecido dizia respeito ao cumprimento da medida de internação.
Logo, os processos a serem avaliados deveriam dizer respeito a adolescentes internados,
pois um dos aspectos da análise foi exatamente o lugar que as avaliações realizadas pelos
técnicos do Judiciário ocupam na decisão pela manutenção ou não do adolescente na
internação.
60
Dessa forma, optou-se por uma conversa com as chefes do Serviço Social e da
Psicologia, solicitando-se os números de processos que constavam em suas agendas nos
dois últimos meses. Com essa listagem, após a obtenção da autorização judicial, foi-se ao
Cartório para a realização da pesquisa, porém alguns processos não estavam disponíveis
(em trânsito para despacho do Juiz, com vista ao MP etc.), tendo-se acesso, por isso, a
vinte e nove processos.
Em conversa com a Diretora do Cartório, ficou avençado que a listagem lhe seria
entregue e os processos seriam separados dos demais para a realização da pesquisa.
61
Capítulo 6. As categorias temáticas
Agrupou-se o material em consonância com as seguintes categorias temáticas: I) O
pai e as configurações familiares; II) Autocrítica, III) A instituição; IV) A questão social.
Iniciar-se-á a apresentação do material com um quadro que sintetiza as informações
sobre a situação do pai dos adolescentes avaliados, sobretudo em relação ao seu convívio
com o filho, objetivando situar o leitor no universo do material pesquisado. Este quadro
apresenta os dados da amostra analisada: 29 processos.
Quadro 1 – O contato do adolescente com o pai
Pais separados – contato com o pai 2
Pais separados – sem contato com o pai
7
Pais residem juntos 10
Pai falecido 7
Não tem informação 1
Pais separados adolescente reside
com o pai
2
6.1 O pai e as configurações familiares
Esta categoria está relacionada ao fator que impulsionou a realização desta
pesquisa. Durante quase dez anos atuando em contextos que possibilitavam o contato com
a produção técnica decorrente de entrevistas com adolescentes que cometeram ato
62
infracional e com seus familiares, chamava a atenção o quanto expressões como “falência
do pai” e “fragilidade do pai” surgiam no discurso técnico, identificadas como facilitadoras do
envolvimento do adolescente. E o que era mais intrigante: muitas vezes, esse era o único
aspecto citado, quase como uma relação de causa e efeito.
Ao realizar o presente estudo, foram examinadas pesquisas levadas a cabo por
outros profissionais e que corroboram esta impressão:
Observa-se de forma quase onipresente nos laudos a tendência de
identificar a transgressão como expressão atual de uma remota falência no
exercício das funções parentais, em especial a função paterna de introduzir
no sujeito em construção a dimensão da Lei (FRASSETO, 2005, p. 112).
Nos pareceres que abordaram a história familiar, 64% conferiram peso
significativo à paternidade, a maior parte para afirmar sua ausência no
grupo familiar. Em poucos pareceres foi dito simplesmente que ele fazia
parte do casal, mas nos demais destacou-se a sua presença como
influência negativa sobre o adolescente ou o padrasto “falhando” nesse
lugar (DINIZ, 2001, p. 70).
Durante a realização da análise documental, deparou-se com diversos trechos dos
documentos que apresentavam considerações sobre a figura do pai:
Em especial a falta de maior proximidade com a figura paterna, parece-nos
que foi um dos fatores importantes, se não o mais importante, nas
dificuldades emocionais do jovem. Essa dificuldade foi assumida pelo pai,
que trouxe em suas falas um certo sentimento de culpa, mas busca justificá-
la pelo excesso de trabalho para sustentar a família.
Essa justificativa é usada por um grande número de pais, mas percebemos
que ela só esconde suas próprias dificuldades pessoais para exercer a
paternagem, e funcionaria como uma defesa contra essas dificuldades
(Equipe Técnica do Judiciário – Psicologia).
Resta claro que a justificativa do pai é tomada como uma forma de esconder suas
dificuldades em exercer a paternagem, sendo essa conclusão baseada em uma entrevista
com os pais.
63
Para análise deste material, baseou-se em alguns autores da criminologia crítica que
discutem os quadros técnicos do sistema de atendimento a adolescentes autores de ato
infracional. Batista, em artigo no qual discute o que é proclamado” e o que é escondido
nos discursos técnicos, aponta o quanto a suposta “neutralidade” técnica é violenta:
Esses quadros técnicos, que entram no sistema para “humanizá-lo”,
revelam em seus pareceres (que instruem e têm enorme poder sobre as
sentenças proferidas) conteúdos moralistas, segregadores e racistas,
carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada
do século XIX e tão presente até hoje nos sistemas de controle social
(BATISTA, 2007, p. 77).
Foi concebido desde um pacto transgressor de conjugalidade (relação extra-
conjugal paterna) (...) Exposto a um cenário institucional disfuncional e
conturbado, onde sabidamente tem prevalecido um panorama
absolutamente “fora da lei” e que tende a operar na contra-mão do laço
social (Laudo Psicossocial – assinado por Assistente Social e Psicólogo).
O parecer feito a partir de uma entrevista caracteriza a história do adolescente
como transgressora desde a concepção, o que seria curioso se não fosse uma violação: o
adolescente permanece internado numa unidade também transgressora, que o próprio
técnico caracteriza como “fora da lei”. Pode-se dizer que a sua medida sócio-educativa vem
sendo concebida desde um pacto transgressor e que o técnico está implicado nesse pacto.
Esse trecho resumiria esta dissertação, a contradição exposta: um adolescente, cuja
história é caracterizada como transgressora desde a concepção, um pai falecido que acaba
sendo enquadrado dentro de um pacto transgressor e a medida de internação cumprida em
instituição que vai na contramão do laço social.
Alguns trechos elencados abaixo apresentam a concepção de família
desestruturada, a exemplo do que se verifica num Laudo Psicossocial, o qual,
explicitamente, garante tratar-se “de adolescente proveniente de família desorganizada com
baixo nível sócio-econômico”:
64
PROVÊM DE FAMÍLIA DESESTRUTURADA pela separação dos genitores,
efetivada durante o seu primeiro ano de vida e motivada pela baixa
disposição do pai pelo trabalho. O jovem transitava entre as casas da mãe e
do pai. Ausência de figuras fixas de referência familiar (ETJ – Psicologia).
A mãe é uma senhora amorosa e encantadora por sua simplicidade e
correção não se cansando de ditar sábias sentenças para corrigir o filho. No
entanto, tanto F. quanto o irmão (...) tocam suas vidas ao largo das
admoestações maternas, voltados à vida delinqüente. Em verdade,
FALTOU A FUNÇÃO PATERNA NORMATIZADORA.
Sabemos que quando a mãe não tem o apoio do pai na criação dos filhos,
muitas vezes a educação torna-se prejudicada.
Desorganização familiar: a fragilidade dos pais enquanto referências
normativas e afetivas, o fato de ter sido criado por outros familiares também
reforça este lugar excepcional.
R. observa que SEU PAI SEMPRE TRABALHOU MUITO E MANTINHA UM
CONTATO DISTANTE. A exemplo disto uma das formas encontradas, na
tentativa de se aproximar, foi trabalhar no restaurante com o pai, que exerce
a função de lancheiro.
Através da leitura de seu discurso podemos pensar que A DISTÂNCIA DA
FIGURA DO PAI, SOMADA a necessidades características da
adolescência, tais como independência, autonomia, liberdade, onipotência e
auto-suficiência e a preferência por formar novos grupos sociais juntos com
seus pares, PARECEM TER SIDO A MOLA PROPULSORA PARA LANÇAR
R. NO MEIO DELITIVO.
Todo o discurso pode ser torcido para relacionar a ausência, a fragilidade do pai com
o envolvimento no meio delitivo. Se o pai está desempregado... se o pai está no tráfico... se
o pai trabalha muito etc.
Recorre-se novamente a Batista, a qual realizou uma análise de relatórios baseada
em pressupostos marxistas e da psicanálise, porque afirma que, ao ler os relatórios,
pareceres e diagnósticos desses técnicos, percebeu que:
O convívio familiar funciona sempre como atenuante de penas ou
alternativas de recuperação para jovens ‘infratores’. No entanto, a carga
ideológica contida na visão das famílias pobres, não incluídas na ‘família
padrão’, acaba funcionando como carga negativa que afeta duramente as
sentenças e sanções estipuladas para jovens negros e/ou pobres
(BATISTA, 2007, p. 78).
65
Quanto à concepção de família desestruturada, a autora acrescenta:
Toda estratégia de estruturação familiar num contexto de miséria e exclusão
social é tido como sua antítese, a desestruturação. (...) Aqui a agregação é
entendida como desagregação a partir do padrão patriarcal: se o pai é
desagregada. Toda a realidade antropológica de organização da família
afro-brasileira sobrevivente da escravidão, aonde (SIC) a mulher tem um
papel agregador”, é desprezada e é entendida pelo seu contrário (Batista,
2007, p. 79).
Outros trechos dos documentos analisados permitem transitar entre o pacto edípico
e o pacto social:
Provêm de família desestruturada pela separação conjugal dos genitores,
17 anos atrás (SIC), quando o jovem era recém-nascido, motivada pela
drogadição, etilismo e agressividade paternas (...) Identificamos graves
aspectos de disfuncionalidade na dinâmica destes grupos, sobretudo no
tocante ao frágil exercício da autoridade familiar. (...) parece ter carecido e
figura de autoridade efetivamente atuante enquanto referência de
ascendência sobre si, sugerindo FALÊNCIA DA FUNÇÃO
NORMATIZADORA FAMILIAR (...) revelando desinteresse pelos objetivos
ressocializantes da medida, bem como descompromisso para com as regras
que regem o PACTO SOCIAL (ETJ - LAUDO PSICOLÓGICO).
O mesmo relatório aponta a necessidade de continuidade da internação e, o mais
grave, fala em pacto social quando a própria vivência na instituição revela uma quebra do
pacto social:
O adolescente permaneceu nas lastimáveis dependências da UIXX, onde
experimentou toda sorte de brutalizações que se pode imaginar. É patente
que este jovem experimenta importantes danos psíquicos decorrentes da
perversão dos objetivos de medida extrema, pois ao longo de sua trajetória
institucional vivenciou constantes brutalizações e CRUÉIS TORTURAS
FÍSICAS E PSICOLÓGICAS.
Será que os agentes do Estado, responsáveis pela prática de tortura, seguem as
regras que regem o pacto social ou vivem entre o limite e a transgressão?
66
Ainda em relação ao pai e a configurações familiares, a análise documental indicou
situações em que o uso equivocado de teorias psicanalíticas leva a conclusões sobre a
dinâmica familiar:
O adolescente é fruto de uma relação anterior (...) O relacionamento de que
J. é fruto teria durado nove anos e findado por conta de que o genitor do
adolescente agredisse-a constantemente. Podemos hipotetizar que J. ocupe
na família e perante si mesmo o lugar daquele que não era desejado e que
constitui à mãe lembrança viva de seu agressor. É bem possível, como
muito mais comumente do que imaginamos ocorre, que J. tenha sempre
exibido condutas de insubordinação às normas domésticas, escolares,
sociais, para ocupar a posição que, de modo inconsciente, foi-lhe designado
ocupar. (...) uma resposta inconsciente à posição afetiva que lhe foi dada
pela família inconscientemente também (ETJ -Laudo Psicológico).
No tocante ao uso da teoria e de técnicas psicanalíticas, acrescente-se que alguns
documentos, no início, apresentam o texto: Usamos como método de entrevista a
associação livre, que permite a interpretação, assim como uma escuta subjetiva, e estudos
dos autos.” Ressalte-se que foi constatado, pela análise dos processos, que a média de
entrevistas com os adolescentes é de uma entrevista.
Sobre esse uso, Rauter, também se utilizando do referencial da criminologia crítica,
lembra que:
De que forma é colhida a história individual no campo da técnica
psicanalítica? Ela vai sendo reconstituída na fala do cliente num tempo que
lhe é próprio. O que está em jogo é o livre desejo do cliente de falar, de
silenciar, de omitir um fato, de revelar outro. Esta liberdade com relação à
própria fala, no entanto, não se deve a razões éticas apenas: ela é condição
de possibilidade para que emerja o inconsciente. Ou seja, que o indivíduo
possa comunicar livremente o que lhe vem à cabeça: esta é uma condição
metodológica indispensável, sem a qual está invalida qualquer utilização da
teoria e da técnica psicanalítica (RAUTER, 2003, p. 90).
Por ser relevante para esta categoria temática, apresentar-se-ão trechos dos
documentos analisados que contribuem para a desconstrução desse lugar do pai e da
família como o lugar da falha, como, por exemplo, “vemos também que as orientações
dadas pelo pai e irmã foram introjetadas”, “(...) conta com o apoio do pai e da madrasta,
67
ambos descritos como pessoas presentes”, de modo geral, o relacionamento familiar é
descrito como harmonioso, sem conflitos inter-relacionais dignos de nota. A despeito de
suas vulnerabilidades, este grupo parece relativamente operativo do ponto de vista
funcional”, “genitores se separaram quando eles ainda eram muito pequenos, no entanto, os
vínculos de amizade entre ambos foram preservados; da mesma forma, se deu com os
vínculos entre a mãe e os familiares paternos, os quais sempre auxiliaram nos cuidados
para com seus filhos”, “os pais, cada um a seu modo, intervieram procurando encontrar
solução (...) a mãe mudou de bairro e escola. O pai procurava aconselhar e impor limites”,
“há cerca de 16 anos, o pai mantém família recomposta com G. (...) A madrasta é
representada como uma sólida figura de apoio neste grupo”, “Sr. A é um homem,
notadamente, empenhado no exercício das funções de pai, marido, funcionário de empresa
(já aposentado em um emprego, inclusive). Ele educou os filhos segundo valores
socialmente adequados”.
E, por derradeiro:
Dos treze anos para cá, A., como todo dependente químico, vem, apesar
dos esforços envidados pelo pai no sentido de resgatá-lo disso, envolvendo-
se em delitos e dedicando seus dias exclusivamente ao consumo de drogas
e/ou meios, sejam eles quais forem, de obtê-las.
Ressalta-se que o posicionamento técnico interfere na decisão judicial quanto à
manutenção da medida de internação ou progressão para o meio aberto, motivo pelo qual,
em relação ao aspecto ético-político do discurso técnico, não neutralidade técnica
possível.
Utilizaram-se recortes de um Laudo Psicossocial, assinado por psicólogo e por
assistente social, para introduzir a discussão sobre a questão social (categoria temática a
ser trabalhada) e como esta categoria temática aparece (ou não aparece) nos documentos
analisados, como, por exemplo, no trecho em que se enuncia que “em verdade, FALTOU A
68
FUNÇÃO PATERNA NORMATIZADORA, posto (SIC) que o pai era um alcoolista
espancador que cedo foi expulso do lar e logo morto nas ruas, onde vivia como andarilho”.
Nesse sentido, cite-se:
O jovem até denota capacidade de nortear sua vida de outro modo,
adaptado ao PACTO SOCIAL, mas não resiste às adversidades
(DIFICULDADE DE ENCONTRAR TRABALHO, INFLUÊNCIA DOS
AMIGOS.) e termina por atuar TRANSGREDINDO AS NORMAS SOCIAIS.
Tais considerações referem-se ao mesmo caso. A produção técnica apresenta a falta
de função paterna como verdade. Logo após, fala da simplicidade da mãe e, depois, nota-se
que as questões sociais aparecem entre parênteses, sem enfatizar a falência do pacto
social: dificuldade de encontrar trabalho. Vinte anos depois, travou-se um diálogo entre o
texto do Helio Pellegrino e o Laudo Psicossocial, conforme se deixa entrever.
6.2 Autocrítica
No decorrer da análise documental, deparou-se com uma outra questão recorrente e
que implicava a progressão ou não da medida, algo como o reconhecimento do adolescente
quanto ao erro praticado, nomeado nos laudos de “desenvolvimento da criticidade”, o que
será tratado aqui como uma produção da culpa. Se o “campo” da autocrítica não estiver
preenchido, o adolescente não tem chance de progressão.
Observa-se que os laudos sociais trazem, com freqüência, considerações sobre o
desenvolvimento ou não da criticidade do adolescente, o que é mensurado pela
demonstração de arrependimento e do reconhecimento de que “errou”. Essas
considerações recorrentes acerca da autocrítica do adolescente contribuem para um
obscurecimento de uma análise crítica da realidade social.
69
Retomando observação feita em outro tópico sobre os laudos sociais permanecerem
restritos a questões individuais ou intrafamiliares, pode-se dizer que esta ênfase dada ao
reconhecimento ou não do adolescente sobre o seu erro, sem uma ampliação para outras
variáveis importantes, aparece como um fator limitador às contribuições relevantes que o
Serviço Social poderia realizar, empobrecendo o conteúdo dos laudos, que muitas vezes se
restringe a reverberar aspectos da área psicológica.
Esta categoria chamou atenção sobretudo por aparecer nos laudos sociais. Na
maioria das vezes, as conclusões de laudos sociais ancoravam-se nesse aspecto, em
detrimento de outras variáveis relevantes e que não eram tratadas como dados
significativos. Os recortes abaixo auxiliam a ilustrar essa categoria temática: a) “Adolescente
reconheceu a inadequação de sua conduta” (Laudo Social ETJ); b) “Revela crítica
adequada, mostra-se arrependido” (ETJ – Relatório Social); c) Se mostra (SIC) mais cônscio
e mais responsável por seus atos. M sabe que errou, não minimiza seu ato infracional e
quer agora dar um novo rumo em sua vida” (Considerações Finais do Laudo Social); d)
“Durante a entrevista o adolescente apresentou comportamento adequado demonstrando
criticidade quanto aos seus atos. Reconhece que errou e agora quer arrumar um trabalho,
terminar os estudos e ajudar a genitora” (Considerações Finais do Laudo Social ETJ); e)
“A entrevista com o jovem nos indicou que ele atingiu a crítica necessária, estando
arrependido e certo do que deseja daqui por diante”; (Laudo Social ETJ); f) Não
demonstra consciência crítica, nem percebe as conseqüências dos mesmos, nem para si e
seus familiares, tampouco para as vítimas” (Laudo Social ETJ); g) Demonstrar pouca
criticidade revela a necessidade de refletir sobre atos inadequados” (Laudo Social – ETJ); h)
“Este período de internação tem proporcionado ao jovem uma abertura à reflexão e análise
pertinente quanto às suas atitudes infracionais e o conduziu a projetar para si um modo
honesto de vida” (Laudo Social – ETJ); i) “Reconhece que errou. Reconhece que era
imediatista e imaturo” (Laudo Social – ETJ).
70
A seguinte decisão judicial ilustra o quanto o discurso técnico acerca da criticidade e
das relações familiares pode definir a trajetória institucional do adolescente:
O laudo técnico, por fim, não lhe beneficia constatando que o adolescente
NÃO MANIFESTA QUALQUER CRITICIDADE sobre sua conduta,
verbalizando com naturalidade as vantagens financeiras que obteve
através de práticas delituais, assim como revela manter vínculos de
amizade com pessoas do universo infracional. O adolescente, outrossim,
prossegue o laudo, mostra-se CARENTE DE REFERENCIAL DE
AUTORIDADE e é resistente a regras e limites, necessitando de
acompanhamento psicossocial com orientações extensivas aos
responsáveis. Verifica-se, assim, NÃO POSSUIR RESPALDO FAMILIAR
MÍNIMO, circunstância esta (SIC) essencial para imposição de eventual
medida em meio aberto.
Os laudos sociais produzidos, ao enfatizarem o aspecto da criticidade e não
apresentarem as outras dimensões da prática do ato infracional, reforçam um modo de
concepção dos adolescentes que, conforme aponta Vicentin
12
, os tem como intimizados,
psicologizados e desvinculados de seus contextos sócio-político-histórico-culturais.
Fuziwara, em estudo sobre a contribuição do Assistente Social para a Justiça na
área da Infância e da Adolescência, enfatiza que:
É fundamental recusar a perspectiva de análise psicologizante dos conflitos
e contextualizá-los no universo macrossocietário, nas suas dimensões
políticas, econômicas, sociais e culturais, todas construídas no processo
histórico. Ou seja, embora as questões subjetivas sejam também
determinações, o decorrentes das condições objetivas postas na
produção e reprodução social. Aos assistentes sociais e psicólogos cabe
articular as dimensões socioeconômicas e subjetivas vivenciadas pelos
sujeitos (FUZIWARA, 2006, p. 85).
Nesse sentido, é relevante a inclusão dessa categoria temática no presente estudo,
pois tais colocações evidenciam que, se o Serviço Social pode trazer à tona a questão
social, o ato de não traduzir esse compromisso ético-político nas produções cotidianas pode
deixar questões significativas encobertas.
12
VICENTIN, Maria Cristina. Texto CRP
71
Ao refletir sobre a produção de profissionais do Serviço Social no contexto jurídico,
Fávero ressalta que:
Quanto ao maior investimento no saber operativo, não deve significar a
priorização do tecnicismo em detrimento dos fundamentos teórico-
metodológicos e ético–políticos da profissão. Ao contrário, a competência
técnica supõe a articulação com a dimensão política – permeada pela ética -
, de maneira a garantir que a intervenção tenha como base a análise crítica
da realidade social e a preocupação com a efetiva ação na direção da
conquista e da garantia de direitos fundamentais e sociais (FÁVERO, 2007,
p. 199).
Ainda no encalço dessa categoria temática, incluiu-se a conotação negativa que os
documentos técnicos atribuem ao que, comumente, aparece como “dificuldade em
expressar-se, aprofundar-se”. Tal postura do adolescente é compreendida como uma recusa
a colaborar com o trabalho técnico, como se algo precisasse ser escondido. Nota-se essa
tendência em passagens como “evidenciou certa dificuldade em aprofundar aspectos
conflituosos de seu histórico pessoal e familiar”, “demonstrou grande dificuldade em abordar
situações de seu histórico, assim como em refletir sobre as questões de seu envolvimento
com o meio infracional”, “evidencia certa dificuldade em aprofundar questões conflituosas de
seu histórico pessoal e familiar, em geral recorrendo aos mecanismos defensivos da
idealização e racionalização” e, por fim, “observamos que é um adolescente extremamente
angustiado, introvertido quando trata-se de aprofundar-se em qualquer questão pessoal que
diga respeito à sua história de vida familiar”.
Cabe questionar o quanto é possível expressar a si mesmo com “tranqüilidade”,
sobre aspectos “profundos”, em uma entrevista com alguém que nunca se viu antes e em
um momento no qual se definem decisões que podem alterar uma trajetória de vida.
72
Para além da obviedade de se considerar esse momento como produtor de tensões,
consideração de Fávero caminha na busca de outras compreensões para as posturas
assumidas em entrevistas:
Também não se pode considerar todas essas pessoas apenas como seres
passivos, vitimados pela inexorabilidade de mecanismos economicistas.
Apresentam-se indícios de resistências cotidianas, expressas, por exemplo,
na resistência à entrevista, por desconhecimento do papel dos profissionais
ou por temor a represálias (...) (FÁVERO, 2007, p. 73).
Parece uma compreensão mais afinada com o compromisso ético-político do Serviço
Social e da Psicologia, que vêm buscando sair do lugar do individual e marcar um
compromisso social com a transformação da realidade.
6.3 A Instituição
Há 02 anos e 04 meses atrás (SIC), “de tanto apanhar”, ele apresentou 03
episódios de desmaio imotivado (os quais sequer foram relatados nos
informes institucionais). (...) Tortura física – cita ter apanhado de extintor de
incêndio, ter sido algemado de ponta de cabeça, pelas pernas.
Ao iniciar a configuração desta pesquisa, optou-se, inicialmente, por não tratar dos
aspectos institucionais, a despeito de sua importância, que outros autores haviam se
debruçado sobre o tema, bastante abrangente. Definiu-se que não seria o foco desta
pesquisa e que a produção bibliográfica existente sobre o tema dava conta de tratar o
assunto com a profundidade demandada, sobretudo devido às graves violações ocorridas
na instituição, exaustivamente divulgadas e denunciadas a organismos nacionais e
internacionais, haja vista o Estado brasileiro ter sido processado na Corte Interamericana
por episódios de tortura na FEBEM (atual Fundação Casa).
73
Contudo, uma abordagem mais sintetizada da problemática institucional incorria no
risco de minimizar as graves violações e, como alguns dos documentos analisados
apresentaram denúncias a esse respeito, o impacto provocado pela leitura da
documentação coligida tornou inevitável a menção dos trechos mais impactantes, como no
retorno à FEBEM (...) permanece sujeito a toda forma de degradação e violação de direitos
que se possa imaginar, em face do cotidiano institucional amplamente ‘fora da lei’ ali
vigente” (ETJ Psicologia), “(...) transitou pelas perversas UI XXX onde predomina um
manejo institucional amplamente ‘fora-da-lei refere a episódios de tortura física e
psicológica” (ETJ – Psicologia). Ei-los:
(...) entendo que a progressão realmente poderá ser mais operativa em sua
finalidade ressocializadora do que a permanência nas colapsadas unidades
do regime fechado, onde prevalece a “subversão” do estatuto legal com a
chancela do Estado (ETJ – Psicologia).
Neste contexto institucional amplamente ‘doente do ponto de vista
psicológico, o recorrente envolvimento deste rapaz em intercorrências
desabonadoras se coloca muito mais como uma irrupção de reivindicação
simbólica do seu direito de se expressar, caracterizando-se enquanto
movimento de resistência frente à genocida estratégia institucional de
aniquilamento de subjetividades que atualmente predomina no cenário
institucional onde ele se encontra (ETJ – Psicologia).
(...) a sua permanência na FEBEM tem reforçado exatamente o que deveria
buscar suprimir, o que imprime à privação de liberdade um caráter
absolutamente ‘deseducativoe que caminha na direção da cristalização do
‘sintoma’ (delinqüência) (ETJ – Psicologia).
O fato é que, TUTELADO PELO ESTADO, A. ESTÁ EXPOSTO A UMA
LÓGICA PERVERSA QUE CONTRARIA TODAS AS CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS, neste cenário, ele vem
sendo reforçado em suas características mais negativas, mediante a
validação de uma ética em si mesmo “fora da lei” (ETJ – Psicologia).
Todas essas considerações foram feitas por profissionais da área da psicologia.
Porém, analisando-se cuidadosamente os processos, foi possível detectar que quase
sempre era o mesmo profissional, o que revela, no mínimo, uma postura individual, de sorte
que não se verifica um compromisso coletivo no tocante à denúncia de violações, com o
74
objetivo de contribuir para a garantia dos direitos dos adolescentes, conforme preconiza o
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Em relação a essa categoria temática, outra questão apresenta-se: diante da
instituição caracterizada como “fora da lei”, o discurso que considera o ato infracional uma
busca inconsciente pela lei para ocupar o lugar da falha da lei paterna poderá ser
sustentado?
6.4 A questão social
Para definir a questão social, cite-se Yasbek:
A questão social, hoje, coloca-se basicamente a partir da produção e
distribuição de riquezas. Traduz-se pela erosão dos sistemas de proteção
social, pela vulnerabilidade das relações sociais e pelo questionamento da
intervenção estatal (YASBEK, 2007, p .7).
Em alguns poucos processos, observou-se referência a situações de privação e de
precariedade material, mas essa não foi a regra.
Daí o questionamento sobre a não-constatação desse aspecto na grande maioria
dos estudos sociais, sendo que, conforme dados das regiões de moradia dos adolescentes,
eles residem amiúde em locais de vulnerabilidade.
Tal constatação vai ao encontro da categoria temática: autocrítica, que se refere a
um caráter mais intimista dos laudos sociais, restringindo-se, em sua maioria, a questões
individuais e/ou intrafamiliares, sem dar visibilidade a aspectos coletivos, o que é essencial
em estudos sociais. Quanto aos aspectos a ser abordados no estudo social, Fuziwara
recorda que:
75
Nesse sentido, é fundamental que se tenha maior clareza de que o estudo
social deve conter uma boa descrição, mas não apenas isso. Deve trazer
elementos que fundamentem a análise, compreendam os fatos e consigam
explicá-los à luz dos conhecimentos. Além disso, deve ter suporte teórico
metodológico e, como afirmado em vários momentos, posicionamento ético-
político (FUZIWARA, 2006, p. 244).
Para ilustrar a pouca visibilidade dada às questões sociais, apresentar-se-á, a seguir,
como essas questões são relatadas nos documentos analisados, sendo que, dentre os 18
documentos produzidos por Assistentes Sociais, apenas 6 abordam a questão social e,
dentre os 19 documentos produzidos por Psicólogos, apenas 5 abordam a questão social.
O conteúdo dos demais documentos permanece restrito à dinâmica intrafamiliar e à
personalidade do adolescente. Reproduzimos integralmente como os aspectos referentes à
questão social são registrados nos documentos analisados:
A principal fragilidade deste núcleo parece ser de ordem material, pois seus
membros experimentam considerável situação de segregação social.
Habitam região periférica, onde predomina alto índice de criminalidade e
estão expostos às vicissitudes da precariedade das redes informais de
controle social – como é típico nos rincões de pobreza (ETJ Psicologia).
Nesse mesmo processo, o Laudo Social permanece restrito à dinâmica intrafamiliar e
à autocrítica, concluindo que "o adolescente demonstra estar arrependido da prática que
culminou com a sua internação".
Em outro processo analisado, o Laudo Psicológico aponta que:
A família experimenta considerável condição de segregação social. Vivem
em barraco localizado em região favelar, em situação de ampla penúria
sócio-econômica e experimentam privações em suas necessidades vitais de
subsistência. No entorno predomina a banalização das ações
transgressoras, como é típico nos rincões de pobreza, além da precarização
das redes de apoio e promoção social (ETJ Psicologia).
76
Em um dos laudos psicológicos analisados, observa-se que o profissional estabelece
um diálogo entre a caracterização da família e a questão social, mas, na caracterização da
família, atribui um julgamento de valor:
Provém de família desestruturada pela separação dos genitores, motivada
pela baixa disposição do pai pelo trabalho. (...) Há quinze anos a mãe
mantém família recomposta com o padrasto, com quem gerou outras seis
crianças. O padrasto é o principal provedor material e sua exígua renda
provém de atividade de reciclagem. Este numeroso grupo reside em
habitação coletiva, ‘cortiço’, em condições bastante precárias ocupam um
único banheiro coletivo com outras famílias. Vivendo num limiar da
miserabilidade, o adolescente e seus irmãos mendigam pelas ruas desde a
mais tenra idade, motivo da recente inclusão familiar no PETI (ETJ Laudo
Psicológico).
Cumpre apresentar a caracterização que o laudo traz sobre a mãe e a relação que
estabelece entre a dinâmica familiar e a situação de rua:
Embora afetiva, a mãe impressiona como uma frágil referência de
autoridade doméstica, parecendo muito prejudicada a sua ascendência
sobre o adolescente. Ela revela-se pessoa rude e simplória e denota
carecer de recursos mais sofisticados de expressão, compreensão e
elaboração. (...) A precoce eleição das ruas enquanto espaço de inserção e
pertença reflete objetivamente as fragilidades familiares no sentido de
proporcionar-lhe respaldo afetivo emocional compatível as suas
necessidades. Foi neste contexto de desregramento generalizado que ele
aderiu às práticas infracionais (ETJ – Psicologia).
Na conclusão do laudo, o profissional retoma a falência das redes de proteção social
e define encaminhamentos:
Pelo que pudemos perceber, o adolescente desenvolveu acentuado perfil
de vulnerabilidade para comportamentos de risco como conseqüência direta
da debilidade do sistema familiar e também da falência das redes formais e
informais de proteção e controle social. (...) O adolescente deverá ser
encaminhado para projetos sociais e família também necessita receber
consistente suporte e assistência para que possa desenvolver estratégias
mais operativas de manejo das questões postas em cena, podendo-se
beneficiar da inserção em grupo de apoio e orientação (ETJ Psicologia).
Destaque-se que, ao analisar o processo, foi possível verificar que, oito meses antes
da data da consulta realizada, já constava uma determinação judicial para inserção da
77
família em grupo de apoio e orientação, sendo que a única intervenção apresentada no
processo em relação à família é a realização de uma visita domiciliar, ocasião em que se lhe
entregou uma cesta básica. Esse caso é emblemático na ilustração da ausência de
estratégias de proteção social.
Um outro laudo psicológico conclui que:
A precária condição social da família e uma particular dificuldade no manejo
da transmissão educacional o remeteram para uma desimplicação
generalizada, inclusive a si mesmo. O adolescente sempre apresentou
dificuldade em se sujeitar a um contexto social normativo. (...) Depreende-se
daí uma significativa dificuldade estabelecida na relação que mantém como
o Outro Social. Trata-se de questões enquistadas na constituição subjetiva,
menos pelas adversidades próprias de sua existência e mais por sua
posição frente a (SIC) elas (ETJ Psicologia).
Esse não é o único laudo psicológico que cita a precária condição social da família,
mas enfatiza que a inadequação reside no adolescente, pois apresenta dificuldade em lidar
com sua condição social.
Essa conclusão, em um laudo psicológico, já contradiz os princípios éticos e políticos
da profissão, que tem buscado cada vez mais registrar o compromisso social da psicologia
com a transformação da realidade. O que dizer então sobre conclusão similar em laudo
social? Acerca do tema, mencione-se:
Não demonstra consciência crítica, nem percebe as conseqüências dos
seus atos, nem para si e seus familiares, tampouco para as vítimas. A
situação financeira da família é precária, mas nunca passaram por
necessidades materiais e dentro do possível o adolescente era atendido em
todos os seus desejos (ETJ – Laudo Social).
Como pensar uma abordagem desse tipo num laudo social? “Nunca passaram por
necessidades materiais” - como dimensionar e concluir categoricamente algo que invoca um
histórico de vida? É possível que uma entrevista tenha esse alcance?
78
O laudo apresenta considerações sobre o campo individual, negando condições
sócio-econômicas de existência, permanecendo no campo da autocrítica e da culpabilização
do sujeito como aquele que, apesar de “ter todos os seus desejos atendidos”, infringiu.
Fuziwara, em estudo sobre a contribuição do Assistente Social para a Justiça na
área da Infância e da Juventude, aponta que:
Uma entrevista pode recair não na possibilidade de os sujeitos se
expressarem, num momento de reflexão, de reconstrução de suas
trajetórias, de busca de direitos, de elaboração de estratégias e projetos,
mas num momento de aconselhamento policiador e pretensamente
normatizador de condutas e comportamentos. Pode ser realizado não a
partir do sujeito de direitos, mas do lugar de um profissional que detém o
controle e o saber. Neste sentido, mesmo com um discurso emancipatório, o
profissional pode revelar em suas ações um posicionamento que não
considere as determinações da vida social e, pior, com viés moralizador
(FUZIWARA, 2006, p. 55).
Citações acerca de aspectos individualizantes em laudos sociais evidenciam quanto
as colocações técnicas sobre as questões familiares, em detrimentos das questões sociais,
interferem nas decisões judiciais e contribuem para a culpabilização da família. Em relação
a esse aspecto, a mesma autora refere-se à ruptura com o conservadorismo, pautada na
perspectiva hegemônica do Serviço Social:
Nesse sentido, no caso do Serviço Social, a perspectiva hegemônica pauta
a ruptura com o conservadorismo. Ela exige a denúncia e a rejeição do
retorno às abordagens que eram pautadas na busca da “reintegração
social”, da “reestruturação familiar”, pois parte do entendimento de que
exclusivamente com a mudança comportamental pode haver alterações e
resoluções na vida da população. Além disso, paira sobre a fiscalização e
normatização dos comportamentos individuais, ou seja, atribui aos sujeitos
total e exclusiva responsabilidade pela situação vivida, sem considerar os
outros elementos que provocaram e influenciaram (FUZIWARA, 2006,
p.122).
Cite-se, à guisa de ilustração, decisão judicial para melhor ilustrar a dimensão ético-
política dos posicionamentos assumidos pelos psicólogos e pelos assistentes sociais, a qual
entendeu por bem manter a internação do adolescente:
79
X. é originário de família desestruturada, portanto trata-se de manter a
medida de internação pelo período de tempo em que o Estado por seu
sistema de justiça possa intervir com medidas protetivas no núcleo social
em que vive o adolescente – especialmente em sua família.
A par disso, o Laudo Social sugere “a inserção da mãe em grupo de apoio e
orientação familiar, visando, com isso, à reorganização familiar”.
A situação familiar do jovem é realmente difícil, pouco contato teve com os
pais. Não recebeu afeto, os vínculos familiares foram sempre frágeis e
incertos, marcados pela ausência dos genitores. A área de moradia consiste
em um local de altíssima vulnerabilidade social, marcado pela violência (ETJ
Laudo Social).
A fim de dimensionar o peso da afirmação “não recebeu afeto”, cumpre salientar que
o adolescente em questão permaneceu, desde um ano de idade, com os avós paternos,
entretendo contatos com o pai e a mãe.
Esta última constituiu nova união e relatou que “este companheiro tinha envolvimento
com o tráfico de entorpecentes e por conta disso ela foi incriminada como traficante, mas
seria inocente”. A mãe compareceu com o adolescente na entrevista realizada pela Equipe
Técnica do Judiciário.
O Laudo Social do Judiciário não apresenta nenhuma análise sobre o lugar do tráfico
na questão social, sobretudo em relação às mulheres encarceradas.
O Parecer Social elaborado pelos técnicos da Fundação Casa apresenta outros
dados sobre a questão social:
Família proveniente de camada social baixa, em linha de exclusão. O
adolescente residia com os avós maternos. A renda familiar provém da
aposentadoria do avô R$ 350.00 e mais benefícios do Programa Social
Renda Cidadã R$ 60.00. A mãe não encontra-se (SIC) mais em situação de
reclusão e exerce a função de ajudante geral, com renda de R$ 350.00. Em
devolutiva deste quadro sua genitora está inserida no programa de inclusão
social – renda cidadã - R$60,00 (Fundação Casa).
80
A análise do processo indica que, em devolutiva, a mãe foi inserida em Programa de
Inclusão Social para receber R$ 60.00 (sessenta reais). De que inclusão se está falando?
Que lugar o tráfico vem ocupando em cenários como esse? A desorganização é familiar? A
fragilidade é somente dos pais? Que Estado é este que, como devolutiva, apresenta essa
possibilidade de inclusão social? O adolescente continuará internado (em uma instituição
fora da lei), aguardando a reorganização familiar... e a reorganização do Estado?
Ainda na esteira de trechos dos documentos que se referem à questão social, segue-
se para outro Laudo Social:
A mãe descreve o filho como o mais pacato e carinhoso dos filhos. Foi com
surpresa que tomou conhecimento do primeiro ato infracional do filho. Ela
estava desempregada e é certo que passavam dificuldades financeiras
importantes e o adolescente parece ter cedido aos apelos consumistas de
sua idade. A entrevista com o jovem nos indicou que ele atingiu a crítica
necessária, estando arrependido e certo do que deseja daqui por diante
(ETJ Laudo Social).
O exame dos autos viabilizou o acesso a dados de relatórios da Fundação Casa, os
quais apontam que “a mãe começou a trabalhar como empregada doméstica, recebendo R$
150.00 (cento e cinqüenta reais) e foi inserida no programa renda cidadã R$ 60.00”
(sessenta reais).
Ela recebe menos que um salário mínimo e novamente a resposta do Estado é a
inserção no programa renda cidadã e a aposta do Laudo Social é na autocrítica do
adolescente.
Outro Laudo Social evidencia um posicionamento técnico recorrente: a ênfase em
questões emocionais. Apresentar-se-á, abaixo, citação do Laudo Social referente a um
adolescente que reside com a irmã e a mãe, ambas desempregadas na ocasião da
apreensão do adolescente por envolvimento com tráfico:
81
A genitora relata vários momentos de privação econômicas devido ao
desemprego, atualmente trabalha como diarista. A genitora refere que o
adolescente em certos momentos fica desmotivado com a condição sócio-
familiar. A situação familiar continua fragilizada. A mãe demonstra
dificuldades em lidar com esta situação, principalmente com as demandas
que o caso exigem, no sentido de contenção e suporte emocional (ETJ
Laudo Social).
O laudo social sugere os seguintes encaminhamentos: Programa de distribuição de
renda, inserção do jovem em mercado de trabalho, encaminhamento para Programa de
habitação popular da Prefeitura de São Paulo.
A mãe demonstra dificuldade em oferecer suporte emocional, o adolescente fica
desmotivado... ou é concretamente uma situação complexa e o Estado demonstra sua
inoperância em atuar, gerando essa sobrecarga à mãe? A primeira medida sócio-educativa
foi aplicada em dezembro de 2.005, quando a mãe residia em um “galpão”, mas os
encaminhamentos sugeridos aparecem nos autos somente em dezembro de 2.007, ou seja,
dois anos após a aplicação da primeira medida sugere-se a inserção em programas de
transferência de renda e habitação. E sugere, pois não constam dos autos relatos sobre a
efetivação dos encaminhamentos. Portanto, é a mãe que demonstra dificuldade em lidar
com as demandas que o caso exige conforme o laudo social aponta ou esse processo
evidencia a ausência de políticas públicas que respondam à demanda da família, conforme
previsto legalmente?
Nesse sentido, não é somente uma questão emocional como o laudo social aponta,
cabendo-lhe apontar a dimensão da questão social em concreto.
Enfatizando a ausência da proteção social, que é dever do Estado e que viabilizaria a
essa mãe processar o cuidado emocional do qual vem sendo cobrada, é preciso dizer que o
relatório da Fundação Casa aponta que o suporte que a mãe recebe consiste em cesta
82
básica e em apoio emocional, o que lhe é oferecido pela Igreja. É a única intervenção citada
nos autos.
Evidentemente, seguindo o raciocínio presente no Laudo Social, o Juiz conclui:
Não tem respaldo familiar sólido, pois os genitores são separados. O genitor
é ausente e a genitora, embora interessada em apoiar o filho, demonstra
estar fragilizada pelo histórico de carências da família, inclusive econômica
(Conclusão do despacho do Juiz).
A mãe frágil, o histórico de carências familiares, tudo no campo individual e
intrafamiliar... enfim, algo que poderia ser superado caso a mãe, além de interessada, fosse
forte. Calha perguntar: o Laudo Social problematizou esse olhar ou ajudou a construí-lo?
Para aprofundamento da análise desta categoria temática, utilizar-se-á o Mapa da
Exclusão/inclusão Social da Cidade de São Paulo/2000
13
. O quadro abaixo identifica os
distritos de moradia dos adolescentes por meio da análise documental e do respectivo
índice de exclusão social.
Mostra-se relevante esse mapeamento, pois ele oferece parâmetros de avaliação
quanto às questões sociais, as quais deveriam ter sido tratadas nos Laudos Sociais
produzidos, haja vista ser evidente a inserção dos adolescentes em contextos de exclusão
social.
13
SPOSATI, Aldaíza. Mapa da Exclusão/Inclusão Social da Cidade de São Paulo/2000. NEPSAS
PUC/SP. CD – ROM;
83
Distrito IEX Índice de Exclusão/Inclusão -
Final
Sapopemba -0.67
Itaquera -0.67
Jardim Madalena -0.77
São Mateus -0.53
Vila Paulistana - Tremembé -0.44
Vila Mara – São Miguel -0.64
Capelinha – Capão Redondo -0.77
Ponte Pequena - Sé -0.47
Pedreira -0.75
Itaim Paulista -0.92
Guaianazes -0.90
Grajaú -0.95
Perus -0.72
Jaçanã -0.42
Brasilândia -0.82
São Miguel Paulista -0.64
Jd. São Luiz -0.68
Cidade Ademar -0,70
Fonte: Índice Final de Exclusão/Inclusão Social – São Paulo 2000
Sposati, ao apresentar o Mapa de Exclusão/Inclusão Social, consigna que:
Temos nos dito e vivido a condição de um país extremamente desigual.
Entendemos que essa condição nos força a encontrar novos métodos e
técnicas capazes de, ao estampar essa desigualdade, provocar o desejo
real de superá-la junto ao maior número possível de habitantes. O Mapa
busca mostrar o quanto São Paulo é ainda discrepante na oferta de
qualidade de vida em todos os seus distritos. A luta pela democratização da
política e pela justiça social exige a ampliação do conhecimento dos
84
cidadãos sobre as condições de vida de todos os moradores da mesma
cidade (SPOSATI, 2000, p. 5).
O Mapa da Exclusão/Inclusão Social é uma metodologia que, usando de linguagens
quantitativas, qualitativas e de geoprocessamento, produz dois índices territoriais que
hierarquizam regiões de uma cidade quanto ao grau de exclusão/inclusão social. Trata-se
do IEX - Índice de Exclusão/Inclusão Social - e do IDI - Índice de Discrepância. Esses
índices vinculam condições de vida das pessoas ao território onde vivem. De certo modo,
produzem uma medida de vizinhança, uma vez que associam dados individuais ao convívio
num mesmo território.
Sposati chama a atenção para a obstrução da dimensão ética da vida social:
O não reconhecimento do outro como sujeito de interesses diferentes,
válidos e pertinentes obstrui a dimensão ética da vida social. A ruptura do
tecido social, a exclusão, a violência, são faces da incivilidade presente nas
relações que deveriam se desenvolver dentro de um patamar de dignidade
e redistribuição de riqueza social construída pela sociedade (SPOSATI,
2000, p. 8).
A mesma autora alerta para o fato de não se dever confundir pobreza com exclusão,
embora a pobreza seja uma forma de exclusão:
Os pobres tornam-se mais pobres porque são excluídos dos meios através
dos quais suas condições poderiam melhorar, e os ricos porque consolidam
suas bases de poder. Mas, quando aqui se afirma que as novas exclusões
sociais dizem respeito à forma de distribuição dos acessos, se está tratando
do ponto de mutação da situação de excluído para incluído, a este ponto se
denomina padrão básico de inclusão. Condição desejável de ser
universalizada para todos, conquista básica de civilidade que desencadeia
ao mesmo tempo o desejo do alcance de um novo patamar de vida como
construção histórica (SPOSATI, 2000, p. 9).
A autora enfatiza o traço distintivo entre adotar como parâmetro a concepção de
padrão básico de inclusão e a linha de pobreza, isto é, a determinação empírica da pobreza:
85
A “armadilha da pobreza” designa variados equívocos presentes em
diferentes concepções e propostas para enfrentá-la que, contraditoriamente
ao que parecem pretender, estigmatizam o pobre, culpabilizando-o pela sua
situação, por seu fracasso no mercado e, geralmente, apresentam como
alternativas uma proposta de acesso ao consumo. Ser pobre, ao contrário
do ser rico, é não ter. Medir o grau de não ter não é indicativo de alteração
da situação, pois isto exigiria o contra-conceito o de não pobre, como
referencial. Na lógica da medição da posse de bens invariavelmente não
saímos do patamar do mercado como benefactor. Trata-se no caso de obter
algum ganho para que o pobre vire consumidor, ainda que precário, e possa
entrar na lógica do ter pela posse (SPOSATI, 2000, p. 9).
Portanto, o padrão básico de inclusão é o ponto de mutação de dada situação de
exclusão ou de inclusão, é o ponto de inflexão para análise de uma variável e não sua
média. A fixação do padrão é também campo de linguagem qualitativa e participativa, pois
ela supõe, em primeiro lugar, uma convenção do que se entende como condição desejável
para todos em uma sociedade.
A seguir, é examinada a distância negativa (a menos) ou positiva (a mais) de cada
variável desse padrão. Os limites dessa escala estão no IDI, isto é, no maior gap detectado
para cada variável em uma cidade.
O segundo suposto da construção do índice de exclusão/inclusão social consiste na
agregação da incidência das variáveis em intervalos de classes percentuais por meio de
quartis negativos e positivos.
O terceiro suposto consiste na conversão das incidências negativas e positivas em
notas na escala de –1 a +1, mediadas pelo 0 (zero), que é o padrão de inclusão.
Nesse sentido, a autora afirma que o Mapa de Exclusão/Inclusão Social/2000 cria
uma linguagem mais acessível para o cálculo do IEX – Índice de Exclusão/Inclusão:
Ao invés de usar uma equação para defini-lo, atribui notas decimais
negativas e positivas para simbolizá-las. Através destas notas é construído
o ranking dos distritos pelo afastamento negativo ou positivo do padrão de
86
inclusão. A metodologia do Mapa fundamenta-se na construção de uma
escala que, ao integrar todas as áreas e setores populacionais da cidade,
permite ao mesmo tempo classificá-los pelas condições de afastamento de
uma condição básica de inclusão social. Esta medida, operada por
contraponto, compara a distância que a cidade constrói entre melhores e
piores condições de vida a seus habitantes nos locais onde ele vive
(SPOSATI, 2000, p. 12).
Ao serem analisados os Índices de Exclusão/Inclusão dos distritos de moradia dos
adolescentes, cujos processos foram analisados na presente pesquisa, tomando por base a
classificação pelas condições de afastamento de uma condição básica de inclusão social,
observou-se que todos apresentam um afastamento negativo em relação ao padrão básico
de inclusão social. Os afastamentos apresentados são significativos, atingindo, em sua
maioria, índices de -0,70 a -0,95, figurando entre os piores índices de exclusão social.
Os dados do Mapa indicam o Jardim Ângela, com IEX -1,00, como o pior índice de
exclusão social, seguido pelo Grajaú, com -0,95. No outro extremo, Moema apresenta o
melhor índice, qual seja, +1,00.
Em relação a esses índices, Sposati enfatiza:
Os 10 distritos com piores índices de exclusão social são exatamente
aqueles que freqüentam as notícias de jornais com a presença da violência.
Mostram-se na cidade dois territórios de concentração de maior exclusão
social: a sul e a leste, que estão a merecer forte presença da ação pública
no sentido de reverter estes índices (SPOSATI, 2000, p. 41).
Dessa forma, a autora põe em relevo a importância de uma forte presença da ação
pública no sentido de reverter esses índices de exclusão social, saindo do campo do
individual e indo para o campo do coletivo.
Entre outros autores que discutem a exclusão social e podem contribuir para a sua
análise, mencione-se Sawaia, que enfatiza a complexidade do processo de exclusão:
87
A exclusão é processo complexo e multifacetado, uma configuração de
dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. É processo sutil e
dialético, pois existe em relação à inclusão como parte constitutiva dela.
Não é uma coisa ou um estado, é processo que envolve o homem por
inteiro e suas relações com os outros. Não tem uma única forma e não é
uma falha do sistema, devendo ser combatida como algo que perturba a
ordem social, ao contrário, ele é produto do funcionamento do sistema
(SAWAIA, 2008, p. 9).
Nos documentos analisados, observaram-se aspectos que estão relacionados a
questões sociais tratados como questões individuais. No discurso técnico despolitizado, o
envolvimento infracional do adolescente esgota-se na fragilidade da figura paterna, na sua
capacidade de autocrítica e permanece abstraído de suas violentas condições históricas.
Nesse sentido, visando a desconstruir essa leitura superficial, recorreu-se a
Guareschi, que se apóia na avaliação da dinâmica social do capitalismo apresentada por
Castells (1988:70 -165):
No que respeita às relações de distribuição/consumo, ou à apropriação
diferenciada da riqueza, encontramos processos de desigualdade,
polarização entre ricos e pobres, pobreza e miséria. Por outro lado, diante
das relações de produção, encontramos processos de individualização do
trabalho, superexploração dos trabalhadores, exclusão social e uma
integração perversa, isto é, o processo de trabalho na economia criminosa
com atividades de geração de renda que são declaradas por lei como sendo
criminosas, tais como o tráfico de drogas (...). Que sobra de tudo isso? Uma
multidão de seres humanos empobrecidos e descartáveis. Como diz
Assmann (1994:129), “na atual conjuntura, o fato maior é, sem vida, o
cruel predomínio de uma férrea lógica da exclusão, o clima de indiferença
anti-solidária que a sustenta e, em decorrência, o fato de que uma imensa
‘massa sobrante de seres humanos descartáveis tenha passado a viver
como lixo da história” (GUARESCHI, 2008, p. 149).
A citação acima contribui para sair-se da lógica da autocrítica, tão fortemente
marcada nos laudos sociais, para considerar-se a férrea lógica da exclusão. O autor enfatiza
a estratégia de culpabilização como uma estratégia psicossocial sutil na tarefa de
legitimação da exclusão
14
. Considera que é necessário desmistificar e denunciar esse
mecanismo, o que vai ao encontro dos objetivos da pesquisa que ora se desenvolve, haja
88
vista que a estratégia de culpabilização foi exaustivamente constatada nos documentos
analisados.
Guareschi, apoiado em Robert Farr (1991), refere a atribuição do sucesso e do
fracasso exclusivamente a pessoas particulares, ocasiões em que se esquece
completamente de causalidades históricas e sociais:
Há uma “individualização” do social, e um endeusamento do individual.
Questiona a moralidade de tais práticas, que são assim legitimadas por
determinadas teorias nas ciências sociais. De concepções como essas
derivam práticas atuais de culpabilização psicológica, muito bem
identificadas e analisadas por Viviane Forrester (1997), quando mostra
como o desemprego planejado e sistêmico dos dias de hoje, que leva à
exclusão de milhões de pessoas, é legitimado por teorias psicossociais. As
pessoas são, individualmente, responsabilizadas, por uma situação
econômica adversa e injusta. Para tais teorias o social não existe
(GUARESCHI, 2008, p. 150).
Ao inserir no presente estudo a categoria temática questão social, tinha-se por
objetivo a desconstrução da lógica de culpabilização individual, recaindo ora no adolescente,
ora na figura do pai ou mãe do adolescente que infringiu a ordem jurídica. Nesse sentido,
Guareschi refere-se àtima expiatória:
Na legitimação da exclusão, é necessário encontrar uma vítima expiatória
sobre quem descarregar o pecado de marginalização, ou quase genocídio,
de milhões. Essa vítima é o próprio excluído. O culpado não é um sistema,
baseado em relações excludentes, que faz milhões de pobres. o existe,
dentro da ideologia liberal, espaço para o social. Por isso o ser humano é
definido como indivíduo, isto é, alguém que é um, mas não tem nada a ver
com os outros. O ser humano, pensado sempre fora da relação, é o único
responsável pelo seu êxito ou pelo seu fracasso. Legitima-se quem vence,
degrada-se o vencido, o excluído (GUARESCHI, 2008, p. 154).
Ao constatar que dos 18 laudos sociais analisados apenas seis fizeram alusão à
questão social, sendo que os demais permaneceram na ótica do individual, torna-se
necessário repisar o quanto as questões sociais vivenciadas pelos adolescentes e por seus
familiares permanecem no lugar do não-dito, em termos de documentos produzidos por
psicólogos e por assistentes sociais, os quais embasam decisões judiciais e decidem vidas.
89
Finaliza-se a análise dessa categoria temática com a contribuição de Fuziwara:
Quando o assistente social é o falante, ele interage com falas e com a
escuta. E, ao fazê-lo, revela parte de sua ideologia, de seus preconceitos,
de seus valores. O lugar de falante, ao ser ocupado, pode provocar justiça,
opressão, possibilidades, cerceamentos. Ao assistente social cabe sempre
se questionar por que, para quem e com que sentido realiza sua
interlocução. O seu fazer deve estar impregnado de sentidos ético-políticos
(FUZIWARA, 2006, p. 234).
90
Considerações Finais
Uma única área de saber não dá conta, vê uma face, reduz o fenômeno a um fato: fato
econômico, fato antropológico, fato histórico, fato político, fato psicológico ou cultural ou jurídico ou...
É necessário transitar por vários saberes, várias especialidades.
Profª. Maria de Lourdes Trassi Teixeira
No capítulo Metodologia, citou-se Minayo (2007): “(...) nada pode ser
intelectualmente um problema se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida
prática” e esta citação foi muito significativa para a realização da pesquisa.
É relevante para o pesquisador a proximidade com o seu tema de pesquisa.
Percebeu-se que, no decorrer do Mestrado, a cada capítulo transcorrido, as experiências do
período de trabalho na atual Fundação Casa e na AMAR Associação de Mães e Amigos
da Criança e Adolescente em Risco - foram revividas.
Se, por um lado, reviver essas experiências estimulou a realização da pesquisa, por
outro, ocorrem experiências geradoras de angústia, como aconteceu ao relembrar aqui as
situações de tortura. Nesse sentido, em muitos momentos, a sensação foi de imobilização
no universo da pesquisa, e foi preciso tomar um fôlego para seguir adiante.
O período de pesquisa no cartório do DEIJ – Departamento de Execuções da
Infância e da Juventude - foi bastante expressivo, a despeito do mal-estar físico causado,
pois foi possível transcrever anotações como esta:
Deixo o Forum com um mal-estar, um grande mal-estar, dói a cabeça, dói a
nuca, uma angústia que no dia consegui nomear. Talvez tenha
conseguido nomear, porque, ao descer as escadas do Forum naquele dia,
vi um grupo de meninos, cabeça baixa, mão para trás, ‘gente’ naqueles
processos.
91
Intrigante que, ao reler a Introdução deste trabalho, foi possível identificar que, ao
serem descritos os primeiros contatos com os adolescentes internados, também se relatou
uma cena semelhante: adolescentes em fila, mão para trás... Dez anos se passaram.
Nestas considerações finais, torna-se necessário enfatizar que, em relação às
violações de direitos humanos, ocorridas dentro da Fundação Casa, entre todos os
documentos elaborados por Assistentes Sociais e por Psicólogos da Equipe Técnica do
Judiciário (ETJ), totalizando trinta e sete documentos, somente três apresentavam
“denúncias” de violações.
Não se pode ser conivente com um discurso que refere práticas de tortura como se
isoladas fossem, haja vista que as citações desses três documentos faziam alusão a um
universo “caótico”, “fora da lei”, que certamente atingiu outros adolescentes.
O Relatório da Inspeção Nacional às Unidades de Internação de adolescentes em
conflito com a lei, realizado pelo Conselho Federal de Psicologia e pelo Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil em 2.006, apresenta as seguintes constatações acerca das
unidades de internação de São Paulo:
A partir das observações da estrutura física, do contato com os funcionários,
dos relatos dos adolescentes e das marcas corporais, a grave constatação é
a de que a FEBEM-SP (atual Fundação CASA) é um sistema prisional,
pautado pelas práticas de tortura, negligência e humilhação no trato com os
adolescentes sob responsabilidade do Estado, em completo desacordo com
o instituído pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O ambiente é de
intensa violência, que atinge os internos e funcionários, física e
psicologicamente. Foi possível observar e entrar em contato com
adolescentes que sofreram castigos físicos e estavam aprisionados em
celas (CFP/OAB, 2006, p. 25).
Sobre esse aspecto, Diniz, em pesquisa realizada em relatórios psicológicos de
adolescentes em medida sócio-educativa, analisa a omissão e as violações:
92
Posturas como “não ver”, “não saber”, ou “desconhecer” o que se passa
refletem a ausência da consciência crítica de muitos profissionais, e não
resulta da ingenuidade dos que, em suas salas distanciadas, não tomam
parte ou conhecimento das “ocorrências” internas. Trata-se antes de um
posicionamento, uma opção. Não há qualquer neutralidade na batalha que
se trava ali, embora alguns queiram crer que sim (DINIZ, 2001, p. 111).
Destarte, retomando a categoria temática Instituição, conclui-se que, num Estado em
que a instituição responsável pela execução da medida sócio-educativa de internação é
caracterizada como “fora da lei”, não é possível sustentar o discurso técnico, pseudo-
psicanalítico, de que o adolescente infringe a ordem jurídica em busca da lei paterna,
ausente na dinâmica familiar.
O título do presente trabalho é mais provocativo do que realmente uma busca pela
motivação do ato infracional. Ao contrário, conforme apontado por Trassi, propõe-se, por
ora, uma reflexão sobre a multideterminação do envolvimento de adolescentes com atos
infracionais:
Isto implica superar explicações simplistas, reducionistas, que atribuem a
existência do fenômeno a uma única causa: econômica ou à baixa
escolaridade ou a aspectos morais ou a culpabilização exclusiva a família
ou... (Trassi, 2006, p. 17).
Em relação à categoria Questão Social, sublinhe-se que dos dezenove documentos
assinados por Assistentes Sociais apenas seis, ou seja, menos de 30% dos documentos
produzidos, faziam referência à situação sócio-econômica. Os demais permaneceram
focalizados na descrição da dinâmica intrafamiliar, no posicionamento do adolescente
durante a entrevista se docilizado ou não - e concluíam a sugestão de progressão de
medida baseados na “criticidade” do adolescente.
O dado supracitado é relevante para a presente pesquisa, pois se defende aqui que
o Serviço Social forneça significativas contribuições para a desconstrução dos discursos
93
psicologizantes, tendo em vista que a leitura acrítica da realidade social que surgiu nos
documentos analisados reforça o caráter intimista das produções.
Diniz, ao avaliar documentos produzidos por psicólogos, chama a atenção para a
ausência da categoria sócio-econômica, havendo de se considerar ainda mais grave a
ausência desse aspecto em laudos sociais. Veja-se o que a autora diz em relação às
produções de psicólogos:
Incluímos a Categoria Situação Sócio-econômica para destacar a sua
ausência marcante. A freqüência com que surgiu nos textos foi muito inferior
às outras, e nossa hipótese é de que não se trata de uma mera separação
de temas entre a Psicologia e o Serviço Social, mas de uma visão parcial
que minimiza a influência das condições materiais na formação da
subjetividade individual (DINIZ, 2001, p. 107).
O que se pode dizer acerca dos laudos sociais que minimizam a influência das
condições materiais na formação da subjetividade individual? Novamente, recorre-se a
Fávero, que entende a questão social
15
como base fundante do Serviço Social.
(...) para o debate a respeito da realidade de vida dos sujeitos, e da
intervenção do Serviço Social nesses espaços do Judiciário (...) é
necessário ver, claramente, como ponto de partida, que a questão social
atravessa o cotidiano dos sujeitos atendidos em todas as suas
dimensões. Questão social que se apresenta como “base” fundante do
Serviço Social enquanto trabalho especializado (FÀVERO, 2007, p. 17).
Constatar que somente seis laudos sociais referem-se às questões sociais permite
compreender porque as questões intrafamiliares nomeadas como “ausência do pai”,
“desorganização familiar” e similares acabam ganhando mais visibilidade e sendo
identificadas como recorrentes nas produções técnicas, não nesta pesquisa, como no
trabalho de outros autores. Para ilustrar, retome-se Frasseto (2005):
15
Aqui a autora cita a conceituação de questão social, apresentada por Iamamto (1998, p. 27): “... o
conjunto das expressões das desigualdades que aparecem com a sociedade capitalista e que tem
uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente
social, enquanto a apropriação do seu produto mantém-se privada, monopolizada por uma parte da
sociedade”.
94
Observa-se de forma quase onipresente nos laudos a tendência de
identificar a transgressão como expressão atual de uma remota falência no
exercício das funções parentais, em especial a função paterna de introduzir
no sujeito em construção a dimensão da Lei (FRASSETO, 2005, p.112).
As questões sociais ficam no lugar do não dito, reforçando a culpabilização
individual, “a ausência de criticidade”, “a dificuldade dos pais em impor limites”. Nessa
toada, a maioria dos documentos técnicos reverbera “chavões psicologizantes”, o que não
está nem mesmo de acordo com o compromisso social da Psicologia, o qual deve se nortear
pela apreensão dos fenômenos psicológicos em suas interfaces com os fenômenos
biológicos e sociais.
A Psicologia, em uma perspectiva crítica, vem problematizando a leitura da formação
da personalidade de forma descontextualizada. Sobre esse tópico, Diniz faz uma crítica:
Apenas os conflitos entre o casal parental e outros responsáveis surgiram
como fatores determinantes na formação da personalidade. É como se os
“aspectos psicológicos se constituíssem sem os ruídos da escola, da
comunidade, da mídia, de outros grupos de convívio e outras instituições
(DINIZ, 2001, p. 57).
Na pesquisa realizada em pareceres psicológicos sobre adolescentes em medidas
de internação, a autora afirma:
Mas as referências à situação socioeconômica do adolescente e sua família
foram encontradas em apenas 10,8% dos pareceres pesquisados.
Inicialmente poder-se-ia argumentar que o assunto seria da abrangência do
serviço social. Porém, entendemos que, quanto maior a freqüência dessa
tematização, mais consolidada a concepção de que o olhar do psicólogo
deve pressupor, na relação com um dado sujeito, a contribuição de sua
origem sócio-cultural na formação da sua subjetividade, contribuição esta
(SIC) a se levar em conta também nos princípios norteadores dessa relação
e na escolha do conteúdo dos pareceres (DINIZ, 2001, p. 81).
Durante a pesquisa, foi-se identificando que a questão da ausência, da fragilidade do
pai ganha força não por ser recorrente, mas porque as condições materiais de existência
ficam obnubiladas, não são incluídas como parâmetros de análise.
95
A análise da região de moradia dos adolescentes cujos processos foram
pesquisados evidencia que estão inseridos em região de alta vulnerabilidade social, o que,
entretanto, não foi contemplado na maioria dos pareceres analisados. Residindo em áreas
de altos índices de exclusão social, esses adolescentes não tiveram em seus pareceres
uma análise que levasse em conta a realidade em que estão inseridos. Quanto a essa
leitura superficial da realidade, Fávero lembra que:
A acentuada e crescente demanda atendida, sobretudo pela Justiça da
Infância e Juventude, a premência em proteger uma criança em situação de
risco pessoal e social, o parco investimento em recursos físicos, materiais e
humanos por parte do Estado/instituição judiciária, para viabilizar melhores
condições de trabalho nessa área, e a miséria vivida por muitos dos
usuários em razão da pouca presença do Estado na implementação de
políticas sociais universalizantes, redistributivas e mesmo compensatórias,
podem contribuir para que algumas vezes o estudo social e o seu registro
documental sejam realizados a partir das primeiras impressões, do imediato,
do que é posto aos olhos sem que os profissionais avaliem as
conseqüências do saber-poder presente nas suas ações (FÁVERO, 2007, p.
30).
Os fatores sociais não foram considerados para avaliar o envolvimento do
adolescente com o ato infracional, nem mesmo a reincidência. Não se observaram relatos
de intervenções que garantissem a efetivação dos direitos; poucos laudos sociais
apresentavam sugestões de encaminhamentos, mais exatamente em apenas três deles.
Um laudo sugeria o encaminhamento, quando da inserção do adolescente em meio
aberto, para escolarização, projetos sociais, CAPs AD Centro de Atenção Psicossocial
Álcool e Drogas - e inserção da família em grupo de apoio e orientação, com vistas à
reorganização do grupo familiar.
Outro documento assinado por Assistente Social sugeriu a inserção do adolescente
em escolarização, profissionalização e renda cidadã.
96
Um terceiro recomendou o encaminhamento da família para programa de distribuição
de renda, inserção do jovem no mercado de trabalho e programa de habitação, sendo certo,
porém, que essas sugestões de encaminhamento, neste caso, foram apresentadas dois
anos depois da primeira medida sócio-educativa cumprida pelo adolescente.
Nos laudos sociais elaborados pelos Assistentes Sociais do Judiciário, não havia
nenhum relato sobre a realização de visita domiciliar, importante instrumento do Serviço
Social para a compreensão da realidade dos usuários, como aponta Fuziwara:
Vale ressaltar que a visita domiciliar é um importante instrumento na
perspectiva de respeito ao usuário, para que no próprio espaço possa se
expressar. Assim, é antes a possibilidade de conhecer melhor este sujeito,
seu percurso, suas conquistas, dificuldades, e as respostas que elabora
diante das vivências. É mais uma possibilidade de permitir voz e vez. Ainda
que não se possam igualar os lugares que cada um ocupa nesta relação
criada por um conflito judicial, é uma estratégia para o profissional identificar
outros elementos que fogem à artificialidade imposta pelas instituições.
Fundamentalmente, pode ser uma ação que permita empatia e alteridade.
Por meio da visita é possível verificar as relações sócio-familiares, muito
mais a partir da lógica do pertencimento dos usuários em seus territórios e
dos seus laços de sociabilidade (FUZIWARA, 2006, p. 55).
Nenhum dos processos relata a efetivação de uma inserção em políticas públicas de
atendimento que respaldasse os grupos familiares. Dois documentos assinalam ter havido
entrega de cesta básica! Uma, pela Equipe da Fundação CASA; outra, pelo apoio de uma
Igreja.
No que tange à efetivação da inserção nos chamados grupos de apoio e orientação,
a única referência encontrada nos processos diz sobre um grupo de ajuda mútua:
Para melhor respaldar a mãe e também acatando determinação judicial para
inserção em grupo de apoio e orientação, a mãe foi encaminhada para o
grupo AMOR EXIGENTE. Compareceu ao grupo apenas duas vezes, ao
abordarmos sobre o fato ela justifica cansaço, porém atualmente ela está
desempregada. Pontua justificativas pífias para não participar do grupo
(Relatório Técnico Fundação CASA, assinado por Assistente Social e
Psicóloga).
97
Constataram-se essas sugestões de encaminhamentos a grupos de apoio e
orientação, mas não consta a existência de serviços que atendam, com equipe qualificada, à
demanda dos familiares, sobretudo em relação ao acesso às políticas de atendimento.
No exemplo supracitado, a família foi encaminhada a um grupo de ajuda mútua. A
avaliação já atribui conotação negativa à posição da mãe, não fazendo uma leitura mais
aprofundada da situação: não se questiona a ausência desses espaços de orientação e
apoio e atribui-se à mãe uma posição pífia. Essa leitura exime as demais instâncias do
sistema de garantia de direitos.
Não questionamos o valor dos grupos de ajuda mútua, mas cabe salientar os riscos
de as inserções nestes grupos serem alçadas ao lugar das políticas públicas que deveriam
estar sendo implementadas na defesa dos direitos desses adolescentes e familiares.
No lugar do não dito, também ficou o esgarçamento das relações sociais. Fez-se a
opção de incluir um capítulo sobre o Estado Transgressor, transitando-se pela fragilidade
dos valores sociais, a fim de dar visibilidade aos atravessamentos a que este pai,
adolescente e família estão submetidos.
Ao se questionar por que essa análise crítica da realidade social, conforme previsto
no projeto ético-político do Serviço Social e também no código de ética dos psicólogos não
aparece nos documentos analisados, podemos inferir que estes documentos se mantêm na
lógica de punir os pobres”, expressão utilizada por Wacquant (2007), que ao referir-se ao
aprisionamento afirma:
A penalização serve aqui como uma técnica para invisibilização dos
“problemas sociais que o Estado, enquanto alavanca burocrática da
vontade coletiva, não pode ou não se preocupa mais em tratar de forma
profunda, e a prisão serve de lata de lixo judiciária em que são lançados os
dejetos humanos da sociedade de mercado (WACQUANT, 2007, p. 21).
98
Desse, a circunstância agravante em relação aos resultados desta pesquisa é que os
laudos sociais configuram-se como instrumentos que produzem concretamente a
invisibilização: em setenta por cento dos laudos sociais, os problemas sociais estavam
“invisíveis”!
Na perspectiva de um trabalho interdisciplinar, o Serviço Social pode contribuir
significativamente para a desconstrução da aludida lógica, desde que os seus princípios
sejam refletidos nas produções técnicas, notadamente nos laudos sociais. Historicamente, o
Serviço Social tem buscado contribuir para a promoção de uma sociedade mais igualitária.
Todavia, nesta pesquisa, notou-se que o posicionamento da maioria dos profissionais tem
sido o de minimizar, ou até mesmo desconsiderar, a influência das condições materiais na
formação da subjetividade.
Publicação do Conselho Federal de Serviço Social e do Conselho Federal de
Psicologia
16
, ao discutir a interface entre as duas profissões, ressalta que:
As abordagens das duas profissões podem somar-se com intuito de
assegurar uma intervenção interdisciplinar capaz de responder a demandas
individuais e coletivas, com vistas a defender a construção de uma
sociedade livre de todas as formas de violência e exploração de classe,
gênero, etnia e orientação sexual (CFP/CFESS, 2007, p. 38).
O mesmo documento reafirma a perspectiva do trabalho interdisciplinar no
enfrentamento das desigualdades sociais:
16
Parâmetros para atuação de assistentes sociais e psicólogos(as) na Política de Assistência Social,
Brasília, 2007.
99
(...) isso sem superestimar suas possibilidades e potencialidades no
enfrentamento das desigualdades sociais, gestadas e cimentadas nas
determinações macroeconômicas que impedem a criação de emprego,
redistribuição de renda e ampliação dos direitos.
Da mesma maneira, psicólogos(as) e assistentes sociais têm um papel
fundamental na compreensão e análise crítica da crise econômica e de
sociabilidade que assola o Brasil atualmente. Essa crise é fortemente
determinada pela concentração de renda e expressa-se nos altos índices de
desemprego, violência, degradação urbana e do meio ambiente, ausência
de moradias adequadas, dificuldade de acesso à saúde, educação, lazer e
nas diferentes formas de violação dos direitos. (...) nem se pode reforçar a
perspectiva de que o enfrentamento das desigualdades estruturais pode se
dar pela via da resolução de problemas individualizados e que
desconsiderem as determinações objetivas mais gerais da sociabilidade
(CFP/CFESS, 2007, p. 38).
Os resultados desta pesquisa mostram que os pressupostos sobre as determinações
macroeconômicas não embasam as práticas dos assistentes sociais que produziram os
laudos analisados. Setenta por cento dos laudos sociais analisados sequer mencionavam
quaisquer dos fatores supracitados: altos índices de desempregos, ausência de moradias,
dificuldade de acesso à saúde, educação e lazer etc.
Evidencia-se, assim, que ainda há um longo caminho a percorrer, com vistas a
reafirmar um projeto ético e sócio-político de uma nova sociedade que não culpe o indivíduo
pela sua condição sócio-econômica, a começar pela Equipe Técnica do Judiciário,
responsável por fundamentar decisões acerca da vida de milhares de adolescentes.
Não poderia finalizar este trabalho sem me incluir nestas reflexões. No decorrer da
pesquisa, revisei também a minha prática na condição de psicóloga que elaborou
pareceres de adolescentes em medida sócio-educativa. Embora tivesse como pressuposto
uma análise crítica da realidade, reconheço que, inserida nessa engrenagem, eu possa ter
buscado na história de algum adolescente motivações para a prática de atos infracionais,
desconsiderando o que aqui se nomeou de determinações macroeconômicas.
100
Não obstante, posso colocar em análise as minhas práticas. Foi o que fiz com esta
dissertação, que me serviu exatamente como um mecanismo de colocar em análise também
as minhas próprias práticas para não ser capturada pela lógica de “punir os pobres”.
Não é o objetivo desta pesquisa, contudo, inverter a roda e eleger os técnicos do
Judiciário como bodes expiatórios. É bem verdade que assumem um acúmulo de processos
a ser analisados, resultando em produções técnicas elaboradas a partir de uma entrevista. É
fato também que essas práticas envolvem relações de poder, o que não foi trabalhado aqui
devido aos limites do alcance deste trabalho e de seu escopo.
Ainda que sejam consideradas todas essas variáveis, deve-se enfatizar que as
produções de psicólogos e de assistentes sociais no Judiciário, por circularem entre
diversas instâncias, poderiam configurar-se como importante instrumento na busca pela
efetivação de direitos, fazendo ecoar as violações a que estes adolescentes e suas famílias
são submetidos. Enfim, essas produções poderiam fazer circular a voz dos adolescentes,
dos pais chamados de “frágeis, falidos nas suas funções”.
Todavia, o que os laudos sociais analisados evidenciam é que a opção política que
se tem feito até agora é a de silenciar diante do descomprometimento social do Estado, o
que recrudesce, um tanto mais, o já grave quadro social verificado neste país.
101
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