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reconhecido por eles como território tradicional, considerando ao mesmo tempo a
ineficiência institucional tanto a nível estadual quanto federal para resolver os
problemas fundiários, o governo federal –na tentativa de dar continuidade aos projetos
desenvolvimentistas- resolveu efetivar a compra de áreas destinadas aos Guarani, a fim
de amenizar os conflitos relativos aos processos fundiários. Ao mesmo tempo, o
objetivo das instituições governamentais era tentar liberar áreas de investimento para o
desenvolvimento do estado de Santa Catarina, por exemplo, a construção do Gasoduto
Bolívia-Brasil, a ampliação da rodovia BR 101, e no último projeto, a construção de
linhas de transmissão elétrica, assim como o investimento da indústria turística e da
especulação imobiliária, tão demandada na região. Na perspectiva governamental, a
compra de áreas resolve por via da indenização o problema das terras indígenas,
evadindo os processos burocráticos do reconhecimento jurídico e constitucional de
demarcação e homologação, ao mesmo tempo em que deixa o campo livre para os
projetos desenvolvimentistas nas regiões de ocupação guarani. Foi neste contexto que
os Mbyá receberam a indenização para adquirir a área denominada por eles como Tekoa
Marangatu, comumente conhecida como Cachoeira dos Inácios, no município de
Imaruí.
Devido às precárias condições de subsistência nas aldeias guarani, mesmo naquelas demarcadas, a compra de terra
oferece certa segurança fundiária e de subsistência para os Mbyá em relação a outras áreas ocupadas por eles. Porém, esta segurança
apresenta-se ambígua, pois a aquisição de áreas, ao evadir os processos burocráticos de delimitação e homologação, afeta o
reconhecimento jurídico do direito indígena sobre “as terras que tradicionalmente ocupam”. Como demonstraram os depoimentos
aqui referenciados, para alguns Mbyá-Guarani pode ser considerada “terra tradicional” devido à forma como são realizadas as
práticas culturais; para outros talvez não seja tradicional baseada no direito de ocupação ancestral, mas possibilita a realização de
atividades de subsistência em melhores condições, sendo estas o fundamento da tradicionalidade. Mesmo assim, as áreas adquiridas
apresentam a problemática da restrição do espaço e fixação nele, além da pouca correspondência com o ambiente ecologicamente
adequado e ao restrito espaço para a realização das atividades agrícolas. A compra de terra apresenta-se como medida mitigadora, e
não como solução aos problemas enfrentados no dia a dia nas aldeias. Se por um lado, a aquisição de áreas representa uma melhoria
nas condições de subsistência, por outro, apresenta-se como uma panela de vapor pronta para explodir, provocando novas cisões e
conseqüentes exigências para a ocupação de espaços.
Como conseqüência, a aquisição de áreas não só traz modificações na conotação sobre a territorialidade mbyá-guarani,
mas transforma a organização política e social deste grupo, acelerando o crescimento demográfico no interior das áreas e
contribuindo para a aglomeração de grupos parentais e o conseqüente confronto. Quanto maior é a sobreposição de famílias
extensas, criam-se as condições para o conflito entre as lideranças familiares, entre os casais-lideranças de cada família extensa (os
xee ramoi). Estes conflitos incentivam as cisões dos grupos parentais na procura de novos espaços ou outras aldeias a ocupar, mas
perante a dificuldade e restrição dos espaços disponíveis, os conflitos entre lideranças vêem sendo vivenciados nas áreas, criando ao
mesmo tempo fortes tensões entre os grupos parentais. Outro tipo de conflito se origina das cisões entre os grupos parentais, na
formação de novas famílias extensas que buscam adquirir autonomia parental e política através da acumulação de prestígio. Perante
a expectativa de receber novas indenizações, a compra de terra apresenta-se como uma via na aquisição de autonomia de novos
chefes de família, acelerando a formação de grupos parentais separados da família grande, com o intuito de serem beneficiados com
a aquisição de uma nova terra e lá fundar um novo tekoa.
A chefia política, baseada tradicionalmente nas relações de parentesco, a condição etária e a acumulação de
conhecimento e prestígio demonstrada através das práticas religiosas, tem sido modificada tanto pela interferência das agências de
atendimento e apoio, quanto pela dinâmica das relações políticas com a sociedade nacional. Os professores bilíngües mbyá vêm
sendo preparados para realizar os relacionamentos com os jurua, expressando as decisões tomadas pela coletividade e resguardando
os líderes religiosos, os xee ramoi e suas formas de relacionamento interno. Embora os professores bilíngües, agentes de saneamento
e de saúde não apresentem nenhuma acumulação de poder político no interior das aldeias, estes podem manifestar acumulação de
prestígio através do relacionamento interétnico, o que os coloca como possuidores da função de representantes da coletividade.
Nesse sentido, e considerando o intenso contato com os brancos, a sociedade mbyá tem optado por colocar como seus representantes
políticos aqueles que melhor conhecem, se expressam e se envolvem no mundo dos jurua. Estas jovens lideranças, articuladoras e
interlocutoras entre a sociedade dominante e a sociedade mbyá, são designadas para cobrir a função de caciques numa freqüência
crescente. Quando isso acontece –como é no caso de José Benite em Massiambu, e recentemente Eduardo da Silva em Tekoa
Marangatu- efetiva-se um outro sistema de tomada da chefia política, desviando o processo de aquisição de prestígio pela via etária,