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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
A TERRA DE NHANDERU:
ORGANIZAÇÃO SOCIOPOLÍTICA E PROCESSOS DE
OCUPAÇÃO TERRITORIAL DOS MBYÁ-GUARANI EM
SANTA CATARINA, BRASIL.
Sergio Eduardo Carrera Quezada
Dissertação apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de
Mestre em Antropologia Social pela
Universidade Federal de Santa Catarina
Orientador: Dr. Sílvio Coelho dos Santos
Florianópolis, janeiro de 2007
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1
MBA’E Ã’Ã
ESFUERZO (Plegária)
Ñamandú, Padre Verdadero, el Primero
Aquí estoy, condoliéndome otra vez;
aquí estoy, por tanto, de una manera poco reservada, otra vez
condoliéndome,
para hacer con aquello que tocan mis cuencos de neblina
(el centro de las palmas de las manos)
con aquello que tocan las ramas floridas (dados y uñas) de
mis cuencos de neblina,
simples imágenes de pequeñas lechuzas, de tigres horrorosos,
de armadillos amarillos,
de los comedores de venados (pumas),
y toda clase de simples representaciones animales,
pues los verdaderos están en los alrededores de tu paraíso.
Para hacer canastillos adornados, verdaderos, canastos grandes,
flautines de dulcísimos sones,
flautas arracimadas,
arcos de condición imperfecta,
flechas imperfectas de puntas dentadas.
Solamente entonces, después de habérselas vendido a los
extranjeros,
compraré un poco de carne,
un poco de azúcar,
un poco de sal saladísima y de harina de maíz, imperfecta,
para comerlos junto con todos mis compatriotas, sin excepción,
entorno a los pocos asientos de nuestros fogones,
nosotros, algunos poquísimos huérfanos de tu paraíso
y que nos damos ánimo todavía los unos a los otros
para seguir permaneciendo en tu morada terrenal.
Después de habérselas vendido a los extranjeros (las tallas).
Escucha el clamor que te envío,
Ñamandú, Padre Verdadero, el Primero.
(Lorenzo Ramos, in: Gamba: 1984: 27-28)
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3
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS 5
ABREVIATURAS 6
QUADROS 7
RESUMO 8
INTRODUÇÃO 9
Os Mbyá-Guarani na etnografia 12
Referencial teórico 20
Metodologia 22
CAPÍTULO 1
OS GUARANI-MBYÁ EM SANTA CATARINA:
ALDEIA MASSIAMBU E TEKOA MARANGATU 24
1.1 Definições e autodenominações Mbyá 24
1.2 Demografia guarani 28
1.3 Ocupação guarani-mbyá no litoral catarinense 30
1.3.1 Ocupação pré-colonial 31
1.3.2 Conquista, colonização e desterritorialização: séculos XVI-XIX 34
1.3.3 Época contemporânea e a reterritorialização guarani 39
1.4 A formação de Massiambu e Marangatu 43
1.4.1 Massiambu 50
1.4.2 Tekoa Marangatu 55
CAPÍTULO 2
PARENTESCO E LIDERANÇA 61
2.1 A família extensa Mbyá 62
2.2 Organização religiosa, social e política 71
2.2.1. As funções tradicionais 73
2.2.2. As novas lideranças 80
2.3. Relações políticas, mobilidade e ocupação 86
2.3.1. Liderança em Tekoa Marangatu 89
CAPÍTULO 3
TEKOA MARANGATU: TERRITÓRIO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO 98
3.1 A noção de território Mbyá 99
3.1.1 Tekoa e teko 101
3.1.2. Ocupação tradicional 105
3.2. Tekoa Marangatu: O processo de ocupação 109
3.2.1. Família de Augusto da Silva e Maria Guimarães 110
3.2.2. Os parentes vinculados a Timóteo de Oliveira e Luiza Benite 115
3.2.2.1. Leandro Fernandes Kuaray Miri 116
3.2.2.2. Narciso de Oliveira Karai Tatandy 119
3.2.2.3. Darci Lino Gimenes 122
3.2.3. Família extensa de Alcides da Silva Verá Rete 125
3.3. Justificativas ou re-significação? 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS 135
4
ANEXOS
1. Levantamento demográfico: Tekoa Marangatu 138
2. Genealogias 145
3. Mapas 148
4. Fotografias 151
BIBLIOGRAFIA 157
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meu professor e orientador Dr. Sílvio Coelho dos Santos, pela confiança,
apoio e incentivos que depositou em mim desde minha chegada a terras sul-americanas,
e pela enorme lição de vida e entusiasmo.
Aos colegas e professores do PPGAS⁄UFSC, pelo acolhimento nesta instituição e pelo
conhecimento adquirido ao longo do mestrado. Especialmente a: Óscar Calavia Sáez,
chefe do PPGAS, pelo apoio nos momentos críticos, e ao professor Dr. Rafael José de
Menezes Bastos, por compartilhar seu conhecimento sobre os grupos indígenas do
Brasil. Aos professores que ministraram aulas durante o mestrado 2005-2007, as quais
foram muito bem aproveitadas: Dra. Miriam Grossi, Dr. Alberto Groisman, Dra. Alicia
Castels e Dra. Maria Amélia Schmidt Dickie.
Ao Setor de Etnologia Indígena do Museu Universitário “Prof. Oswaldo Rodrigues
Cabral” da UFSC: Dr. Aldo Litaiff pelo acesso às informações, e especialmente a Dra.
Maria Dorothea Post Darella, que generosamente me proporcionou a maior parte da
bibliografia, relatórios, dados e outros conhecimentos sobre os Mbyá-Guarani (sem os
quais esta dissertação não poderia ter sido concluída), além do apoio e a confiança que
depositou em mim. Ao NEPI e os colegas que compõem este núcleo.
Agradeço também a equipe médica da FUNASA-Projeto Rondon do Pólo Base de
Florianópolis: médico Rogério Souza Duarte, odontólogo Marcelo França, enfermeira
Adriana Luiza Santana, secretária Mariany Fernandes Patrício, a Valnélia, enfermeira
de Tekoa Marangatu, ao engenheiro agrônomo Wagner Aquino da EPAGRI, pelo
acesso às informações, dados demográficos, estatísticos e sobre a atuação das
instituições e projetos realizados nas aldeias do litoral sul catarinense.
A agência financiadora para a realização do mestrado: PEC-PG que através da CAPES
canalizaram o financiamento do curso de mestrado como bolsista estrangeiro e
apoiaram economicamente para a realização da pesquisa. Ao CNPq pelo apoio
econômico para o trabalho de campo.
A Mariany Gregório pela revisão do texto e a correção do português.
A todos os Guarani que na minha passagem pelos tekoa me abriram as portas de suas
casas, compartilharam comigo o ka’a (chimarrão) e o petygua, me mostraram seus
desejos e sua forma de vida e conseguimos fazer juntos uma amizade inesquecível. Na
aldeia Massiambu ao cacique e professor José Benite Karai Tatandy, sua mãe Teresa
Ortega, Gerónimo da Silva, Irineu da Silva, e ao casal Márcio Moreira e Lucia Benite da
Silva. No Tekoa Marangatu ao casal Augusto da Silva e Maria Guimarães, assim como
seus filhos (Eduardo, Inácio, Floriano, Cláudio e Cecília); a Timóteo de Oliveira e
Luiza Benite, pelo acolhimento na sua casa; a Leandro Fernandes Kuaray Miri, Nico de
Oliveira, Darci Lino Gimenes, Narciso de Oliveira, Alcindo da Silva, Mario Guimarães
e Anita da Silva, pela amizade, a confiança e o acolhimento em Tekoa Marangatu. Na
aldeia Morro dos Cavalos: ao cacique Artur Benite, Leonardo Werá Tupã, Marcelo
Benite, Marco Karai Jekupé e Agustino.
Em fim, a todos que lutam e resistem para manter “seu modo de ser”.
6
ABREVIATURAS
AER: Administração Executiva Regional (FUNAI)
CAPI: Comissão de Apoio aos Povos Indígenas
CEPIN: Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Santa Catarina)
CGID: Coordenadora Geral de Identificação e Delimitação (FUNAI)
CIMI: Conselho Indigenista Missionário
COSEA: Conselho Nacional de Segurança Alimentar
CTI: Centro de Trabalho Indigenista
DAF: Diretoria de Assuntos Fundiários (FUNAI)
DEPIMA: Departamento de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente (FUNAI)
DNIT: Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes
EIA: Estudo de Impacto Ambiental
EPAGRI: Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina, S.A.
FATMA: Fundação do Meio Ambiente
FUNAI: Fundação Nacional do Índio (Ministério de Justiça)
FUNASA: Fundação Nacional de Saúde (Ministério de Saúde)
GEREI: Gerência Regional de Educação, Ciência e Tecnologia (Laguna)
INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ISA: Instituto Socioambiental
MU⁄UFSC: Museu Universitário “Prof. Oswaldo Rodrigues Cabral” (UFSC)
NEPI: Núcleo de Estudos dos Povos Indígenas (UFSC)
SEA: Secretaria de Estado da Agricultura
SPI: Serviço de Proteção ao Índio
SUS: Serviço Único de Saúde
UCA: Unidade de Conservação Ambiental
7
QUADROS
1. POPULAÇÃO GUARANI NAS ALDEIAS
DO LITORAL DE SANTA CATARINA 30
2. SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS GUARANI NOS ESTADOS
DO BRASIL 33
3. SITUAÇÃO FUNDIÁRIA E POPULAÇÃO DAS ALDEIAS
INDÍGENAS NO ESTADO DE SANTA CATARINA – 2006 41
8
RESUMO
Nas três últimas décadas o litoral catarinense vem experimentando a re-ocupação de
assentamentos guarani, especialmente do subgrupo Mbyá, processo que se apresenta
tanto como uma reivindicação dos direitos do grupo, quanto pela própria necessidade
destes em procurar espaços adequados para manter e reproduzir sua cultura. Paralelo a
isto, os governos federal e estadual incentivam a realização de obras de
desenvolvimento na região (construção de gasoduto, duplicação de rodovias, construção
de linhas de transmissão elétrica, além do investimento na indústria turística), situação
que compromete ainda mais a realização dos processos fundiários das áreas indígenas
guarani. Nesse contexto apresenta-se a aquisição de áreas destinas para os Guarani
como forma de diminuir os problemas fundiários e a reivindicação do grupo sobre as
terras que tradicionalmente ocupam. A presente pesquisa tenta mostrar as
transformações na sociedade guarani à luz da compra de terras, as relações do contato
interétnico entre os Mbyá e as instituições da sociedade envolvente, assim como as re-
significações que este grupo vem efetivando como uma estratégia cultural para se
distinguir étnica e culturalmente.
9
INTRODUÇÃO
O mbojape
1
faz parte do repertório gastronômico guarani; junto com outras comidas
preparadas como o rora,
2
o xipá
3
e o reviro.
4
A forma de preparo do mbojape consiste
em fazer uma massa de farinha de milho, suficientemente consistente para formar uma
peça de formato parecido com o de uma pequena pizza ou de um kibe um pouco maior;
depois é enterrado sob as brasas do fogo de chão da cozinha até ficar bem cozido por
dentro e crocante por fora, pronto para ser servido. Geralmente serve como
acompanhamento de uma refeição mais consistente: feijão, arroz ou macarrão e uma
peça de carne (geralmente frango, galinha ou às vezes peixe) ou ovo. Atualmente o
mbojape, assim como as outras comidas acima apontadas, é preparado com farinha de
trigo, sendo o milho reservado para o preparo de outros alimentos (kaguijy,
5
mbyta
6
e
avaxi ku’i
7
), utilizados nas práticas rituais.
No cotidiano da vida dos Guarani, a matéria prima do preparo dos alimentos
consiste em produtos industrializados: farinha de trigo, feijão, arroz, café, açúcar, óleo,
fubá e macarrão que provêem de cestas básicas, doações ou das vendas do artesanato.
Esta dieta é complementada com outros alimentos como batata doce (jety’i), aipim
(mandio) e frutas como laranja (narã), cana de açúcar e bergamotas –produtos
cultivados em roças e plantações nas aldeias onde existe a possibilidade deste tipo de
prática-,
8
da caça e da pesca (nos espaços onde existem condições propícias para estas
1
Mbojapé, segundo o dicionário de Dooley (2006:108) significa “1. Bolinho de milho indígena; 2. Pão ou
bolo qualquer”.
2
Farofa refogada.
3
Massa de pão frita.
4
Farinha de trigo mexida e frita. Costumam contar com acompanhamento de ovo, feijão, arroz ou carne.
5
Bebida ritual feita pelas mulheres da seguinte forma: o milho é socado no pilão aformar uma massa;
esta é fervida com água por 40 minutos e depositada em uma bacia onde permanece por mais 20 minutos
até esfriar. Na seqüência é mastigada pelas participantes e, depois de mastigada, é novamente reunida em
outra bacia maior com água,onde fermenta por 24 horas. Após este processo, a bebida está pronta para ser
consumida durante o ritual de nhemongarai, na qual a liderança religiosa faz o “benzimento” da coleta de
milho e a revelação dos nomes das crianças. Esta receita me foi proporcionada por Mariza Oliveira,
participante assídua do ritual.
6
Pamonha.
7
Farinha de milho.
8
Os principais produtos das roças feitas pelos Mbyá são o milho guarani (avaxi ete), feijão (komanda), a
melancia (xamjiau), a mandioca (mandio) e a batata doce (jety’i), entre outros. Porém, nem sempre é
possível que os Mbyá plantem e coletem estes produtos, devido à restrição do espaço para plantação e a
erosão do solo, entre outros fatores.
10
atividades), sendo estes os alimentos da dieta tradicional dos Guarani. Como é evidente,
estas modificações na alimentação deste grupo resulta da pressão exercida pela
sociedade dominante sobre a sociedade indígena, neste caso os Guarani, gerando uma
constante dependência à economia capitalista e bens de consumo.
Apesar deste contexto se apresentar em detrimento dos elementos da tradição, a
lógica da economia de reciprocidade continua latente na sociedade guarani. Ao mesmo
tempo, os Mbyá-Guarani, conscientes da situação que enfrentam, vão adequando suas
explicações sobre sua dieta afirmando: “...mesmo que dependamos das cestas básicas e
do alimento do branco, continuamos sendo Guarani. Embora a farinha seja de trigo, o
mbojape e os xipa são feitos do jeito do Guarani mesmo”.
A frase acima citada geralmente é aplicada pelos Mbyá para esclarecer qualquer
aspecto em que sua tradição se veja comprometida pela modificação das práticas
culturais, formulando explicações reflexivas e introspectivas. Se este tipo de explicações
são aplicadas no caso das transformações na dieta dos Guarani, o mesmo se poderia
dizer sobre os processos de ocupação dos espaços e a fundação de aldeias na tentativa
da recuperação do território tradicional? Uma terra comprada e destinada aos Mbyá-
Guarani é uma terra tradicional nos termos jurídicos ou lacera o direito constitucional da
permanência deste grupo no território por eles reconhecido? Ou em outro sentido, para
que, para quem e desde onde deve ser entendido e explicado o que é tradicional: do
governo federal, estadual e suas instituições, da parte das agências de apoio, ou desde os
próprios indígenas? Uma terra comprada é também uma terra tradicional dentro dos
códigos nativos, ou esta deve ser construída ou re-formulada a partir de novas
significações? Estas são apenas algumas perguntas que nortearam a presente
dissertação, as quais pretendem ser respondidas no decorrer da mesma.
A presente pesquisa é uma etnografia que pretende mostrar as transformações na
sociedade Mbyá-Guarani surgidas a partir da aquisição de áreas por parte do governo
federal destinadas para esta população no estado de Santa Catarina, como uma prática
institucional que gradativamente (e mascarada) vai substituindo os processos de
demarcação e homologação de terras indígenas no estado.
9
A compra de terra surge
9
Em relação a isto, o governo federal, através da FUNAI, se comprometeu a dar continuidade aos
processos constitucionais de delimitação, demarcação e homologação de terras indígenas da população
Guarani, pela pressão exercida pelos Guarani à luz das obras de duplicação da BR 101,
independentemente das indenizações para aquisição de áreas. Na realidade, a maioria dos processos de
demarcação de terras indígenas guarani em Santa Catarina está parada ou obstaculizada em diversas
dependências e comissões governamentais, como é o caso de Morro dos Cavalos; no caso de outras
11
como uma medida paliativa por parte dos governos federal e estadual para esquivar
tanto os processos burocráticos contidos na Constituição de 1988 sobre a homologação
de terras indígenas, quanto para evitar fricções e constrangimentos com fazendeiros e
proprietários privados pela realização destes processos. Por outra parte, a aquisição de
áreas foi uma saída rápida e fácil aos problemas fundiários encontrada pelo Estado
brasileiro, para evitar o conflito direto com a população Guarani e as agências que os
apóiam. O resultado, pelo contrário, foi o encontro de diversas posturas, de fricções
entre os atores; criaram-se polêmicas em torno dos direitos indígenas e sua permanência
no território por eles ocupado, conflitos pela tentativa de realocação da população
guarani para a liberação de áreas privadas a públicas para serem destinadas a obras de
desenvolvimento, entre outros fatores.
10
Portanto, isto não pode ser compreendido sem considerar a visão progressista do
governo federal, dos projetos desenvolvimentistas que visam ser as principais demandas
da sociedade envolvente. Desde a década de 1990, estes têm sido os norteamentos dos
governos federal e estadual para Santa Catarina, na construção do Gasoduto Bolívia-
Brasil, a duplicação da BR 101 (Darella, 2004:5), e recentemente a construção de linhas
de transmissão elétrica que abastecerão de energia a cidade de Florianópolis (Freitas,
2006).
11
Como resultado dos efeitos causados pela realização destas obras de
desenvolvimento, as lideranças Mbyá-Guarani, junto com as agências de apoio,
pressionam o governo federal e as empresas empreendedoras no intuito de garantir o
reconhecimento de seu direito às terras que tradicionalmente ocupam no estado de Santa
Catarina. No caso da construção do Gasoduto Bolívia-Brasil, no qual, após várias
conversas, discussões e reuniões entre lideranças indígenas, antropólogos e membros de
ONGs, o governo federal e as empresas resolveram indenizar a população Guarani. As
lideranças guarani acordaram que o dinheiro seria destinado para comprar uma terra.
Foi assim que em 1999 foi adquirida a área chamada Tekoa Marangatu (Litaiff et al,
aldeias, os GT da FUNAI nem sequer têm iniciado os laudos de identificação e delimitação. Este aspecto
será abordado no tópico 1.4. do capítulo 1.
10
Pesquisas sobre os efeitos da aquisição de áreas como medidas compensatórias na construção de obras
de desenvolvimento com efeitos de impacto global, foram já realizadas entre os Mbyá-Guarani na
construção da hidrelétrica Yacyretá na região oriental do Paraguai (Rehnfeldt, 2003), e entre os Avá-
Guarani na aquisição da área denominada Tekoha etete, perante a construção da Usina Hidrelétrica
Itaipu Binacional (Costa, 2003).
11
O relatório referente à linha de transmissão elétrica projetado pela Eletrosul, propõe como parte
fundamental das medidas compensatórias, a “aquisição imediata –e condicionante à instalação do trecho
de empreendimento em análise- de áreas mínimas à sobrevivência e permanência local das comunidades
Guarani” (Freitas, 2006:60)
12
1999). Durante o ano 2006, as aldeias guarani do litoral sul de Santa Catarina estão na
expectativa de serem beneficiadas com as indenizações pelas obras da duplicação da BR
101, as quais serão destinadas para a compra de áreas e a fundação de novas aldeias. Foi
durante o primeiro semestre desse ano e neste contexto que se desenvolveu a presente
pesquisa.
Antes de descrever a constituição desta dissertação, considero importante fazer
um apanhado etnográfico e bibliográfico sobre os Mbyá-Guarani no Brasil, a fim de
ficarem esclarecidos alguns lineamentos teóricos sobre os quais tem sido abordado este
subgrupo étnico.
Os Mbyá-Guarani na etnografia
Talvez o que mais tem despertado o interesse dos observadores dos grupos guarani são
os deslocamentos territoriais - históricos e contemporâneos - em suas modalidades de
migração ao leste e, nas últimas duas décadas, seu sistema de ocupação da terra e a
circulação inter-aldeias. Existem numerosas propostas que tentam dar explicação ao
fenômeno da mobilidade guarani, e nos últimos anos são recorrentes as pesquisas sobre
os Mbyá. A maioria das pesquisas tem sido conduzida teoricamente pelo fio da
religiosidade, caminho aberto por Curt Nimuendaju em As Lendas da Criação e
Destruição do Mundo como Fundamentos da Religião dos Apapocúva-Guarani
([1914]1987)
12
. A maioria dos autores vincula a importância do plano religioso na vida
dos Guarani e a procura da Terra sem Mal, existindo, por outro lado, um desequilíbrio
em relação às pesquisas no plano sociológico. Este descompasso teórico havia sido
apontado por Eduardo Viveiros de Castro (1987: xxx) na introdução do livro de
Nimuendaju, porém continua sendo uma preocupação nestes últimos anos, como
manifesta Oscar Cavalia Sáez (2004: 12).
Isto demonstra que se tem avançado significativamente no conhecimento sobre a
religião guarani, mas por outro lado ainda é insuficiente o que se sabe sobre o espaço
social. Ou será que o campo sociológico se imbrica necessariamente no campo
religioso? As pesquisas mais recentes parecem indicar que sim (Ciccarone, 2001;
Pissolato, 2006; Assis, 2006), porém, temos que considerar que ditas pesquisas são uma
tentativa de vincular a etnografia guarani com o resto das terras baixas sul-americanas,
12
Nimuendaju, Curt. Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der
Religion der Apapocúva-Guarani, Berlin, 1914, traduzido por primeira vez ao português em 1987.
13
especialmente dos estudos amazônicos, tão fortemente influenciados pelo
perspectivismo, criando estudos analógicos ou comparativos. Estes estudos dão um
valor especial à ontologia mb e revelam as relações de parentesco, as motivações
pessoais dos deslocamentos, a organização sociopolítica e morfológica das aldeias, a
liderança religiosa, a função social da mulher, e principalmente, as transformações
surgidas a partir da interferência e dependência da sociedade dominante. Porém, a
projeção paradigmática de um Paraíso guarani, Yvy Marãeÿ, ou Terra sem Mal,
mostrada pela primeira vez por Nimuendaju, parece ainda latente, embora, cada vez
menos accessível. Sem dúvida este é um processo não menos difícil de desenvolver, na
construção e desconstrução de um “objeto antropológico” (Pompa, 2004).
Nimuendaju abriu a trilha teórica do “profetismo-migratório Tupi-Guarani” e a
procura de um paraíso além do mar, a Terra sem Mal, foi-se convertendo em paradigma,
mudando o enfoque que se tinha no século XIX sobre a dispersão dos Tupi-Guarani e as
rotas migratórias como produto do violento contato com os europeus nos séculos
passados, como propunham os naturalistas Karl von Martius e von den Steinen (Noelli,
1996 apud Mello, 2001:32). Nimuendaju encontrou na escatologia os elementos
ontológicos dualistas da sociedade guarani (alma-palavra celeste e alma-animal
terrestre) (Viveiros de Castro, 1987:xxvi). Em suma, para Nimuendaju a religião é
profetismo-cataclismologia e, ao mesmo tempo, essência do ser social guarani, que por
sua vez dão sentido à vida destes índios. Segundo o autor, na procura da Terra sem Mal
os Kayguá –ou Mbyá- estariam se movimentando para o leste (Nimuendaju, 1987:97),
produzindo ondas de migração de grupos provenientes do Paraguai ao litoral brasileiro.
No episódio narrado por Nimuendaju de seu encontro com um grupo de Guarani
paraguaios às margens do rio Tietê, com a firme intenção de chegar ao litoral paulista
(Ibid, 33), é evidente a frustração dos índios em não conseguir a ascensão para a Terra
sem Mal, evento que contrasta com a satisfatória argumentação do etnógrafo alemão em
demonstrar o pessimismo religioso no pensamento guarani e sua importância de
transcender em vida o plano terrenal.
13
O valor dos dados etnográficos proporcionados por Egon Schaden tem
convertido suas obras em clássicos da etnologia brasileira e, aliado ao Nimuendaju,
formam o mais completo corpus de informação sobre os Guarani em território
13
Embora Nimuendaju mostre que os Mbyá formam o subgrupo que mais se movimenta na procura da
Terra sem Mal, no citado episódio não fica explícito se estes Guarani paraguaios pertenciam ao subgrupo
Mbyá.
14
brasileiro. Porém, as pesquisas de Schaden mostram um afastamento prematuro para sua
época na questão das “migrações”. Em Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani
([1954]1974), por exemplo, a preocupação do autor não são os processos migratórios,
mas as mudanças produzidas pelo processo de aculturação, principalmente na cultura
material dos subgrupos Guarani. Aparece o campo social como espaço privilegiado de
análise, onde são mostradas as fases de transformação nas esferas da economia, política
e habitus social em recorrência ao contato com a sociedade nacional. Porém, em dado
momento parece difuso se a importância que ele mostra da religião como “o núcleo de
resistência da cultura Guarani em face das forças desintegradoras” (Schaden, 1974:145)
é um produto de sua própria inspiração como teórico, ou se uma forte influência de
seus predecessores (Nimuendaju e León Cadogan). Ao menos, para o caso do
pessimismo religioso e a cataclismologia, explica que estes seriam resultantes do
processo de aculturação cristã pela interferência dos missionários jesuítas dos séculos
XVII e XVIII. Em resposta ao caos, os Guarani tentariam fugir para a Terra sem Mal a
fim de não serem atingidos pela destruição do mundo. A Terra sem Mal aqui aparece
como uma invenção, segundo Schaden, autenticamente Guarani, porém, sujeita às
transformações da aculturação. Ao longo da obra de Schaden, os Mbaparecem como
o subgrupo Guarani com maior resistência aos processos de aculturação: “os guarani
menos aculturados”. Neles, Schaden consegue conjugar o mito, a religião e a prática em
forma de argumento teórico.
14
Durante as décadas de 1950 e 1960 Egon Schaden trouxe para o Brasil a obra de
León Cadogan, especialista na cultura guarani do Paraguai. A obra de Cadogan,
dispersada em diversas publicações periódicas, oferece um dos maiores materiais sobre
os Mbyá, particularmente em território paraguaio, mas seria impossível uma descrição
pormenorizada de cada um de seus textos. Para alguns, a obra de Cadogan coloca o
pensamento Mbyá numa “dimensão integral de uma filosofia, gerando um discurso
ontológico poderoso que, decolando de sua circunstância sociológica –mas é desta que
pouco sabemos!-, vai em direção a uma poesia e uma metafísica universais” (Viveiros
de Castro, 1987:xxxi). Cadogan ofereceu subsídios etnográficos com os textos
religiosos que registrou, principalmente àqueles pesquisadores que tinham como
objetivo achar os fundamentos cosmológicos da procura da Terra sem Mal e a lógica
14
“Ainda hoje, como vimos, prosseguem os movimentos migratórios, pelo menos entre os Mbüa. Tenho,
aliás, a impressão de que são agora os únicos que procuram a Terra sem Males a leste, ao passo que os
outros grupos a procuram de preferência no zênite” (Schaden,1974: 162).
15
dos deslocamentos migratórios (Clastres, H. [1975] 1978; Ladeira, 1992; Litaiff, 1996;
Mello, 2001:36-37; Darella, 2004).
O trabalho de Hélène Clastres, Terra sem Mal ([1975] 1978), colocou no mesmo
patamar o âmbito sociológico e o religioso, em torno às figuras carismáticas da
sociedade Tupi-Guarani, com uma contextualização histórica na qual propunha que o
fenômeno das migrações era a conseqüência de um profetismo que eclodia a partir de
uma crise contraditória entre o poder religioso e o político. A promessa dos profetas
(Caraí) era precisamente a Terra sem Mal, que aparece mais uma vez na dimensão
metafísica. Se bem os movimentos migratórios eram fenômenos intrínsecos à sociedade
Tupi-Guarani, H. Clastres argumentava que o processo de conquista contribuiu para que
estes se intensificassem. Por outra parte, H. Clastres encontrou nos Mbparaguaios a
demonstração do fundamento filosófico-religioso que motiva os grupos Guarani a
migrarem para o leste. Por que os Mbyá e não qualquer outro subgrupo guarani para
argumentar sua teoria? Primeiro porque concorda junto com os etnógrafos
predecessores que “os mbiás são inegavelmente os que afirmam e tentam com o
máximo rigor preservar sua identidade cultural” (Clastres, H. 1978:85), sendo o
subgrupo que pratica com maior intensidade a mobilidade espacial. Segundo, pela
disponibilidade de material etnográfico sobre o pensamento e linguagem religiosa Mb
oferecido por Cadogan. Assim, segundo predicam os Caraí, a destruição do mundo é
iminente, mas não é necessária a morte para alcançar a Terra sem Mal, pelo que a
preocupação dos Mbyá é manter-se vivos, kandire, e tornar-se imortais atravessando o
mar.
15
Mas acima de tudo, H. Clastres comete o erro de supor um modelo Tupi-Guarani
partindo de etnografias sobre certos movimentos migratórios de grupos Guarani
contemporâneos específicos.
Os estudos do padre Bartomeu Melià, a maioria deles feitos entre os Mbyá
paraguaios, renovam as interpretações até aquele momento contidas no termo Terra sem
Mal, que identificava o mito como algo imutável desde a época pré-colombina até hoje.
A importância da obra El guarani conquistado y reducido (Melià, [1981]1988) radica
em dois sentidos: primeiro na revisão das fontes documentais e a abordagem
15
Kandire, segundo a definição de Cadogan (1952) na qual se apóia H. Clastres, significa o estado de
imortalidade atingida pela perfeição da pessoa (aguyjé), condição necessária para acessar a Terra sem
Mal. Em palavras da própria autora: “Assim é que a tradição mbiá conta a história de líderes religiosos
que, após se consagrarem a conduzir sua tribo para a Terra sem Mal, conseguiram atravessar ‘de pé’ a
‘grande água’ que os separava da morada dos imortais. Talvez essa tradição deva ser entendida, como
suspeita Cadogan, enquanto memória de migrações coletivas para leste, outrora efetuadas pelos mbiás”
(H. Clastres, 1978: 89).
16
etnohistórica e filológica, mostrando os processos de mudança cultural em períodos de
longa duração; segundo, aporta um novo entendimento à expressão yvy marane’ÿ,
através da releitura do Vocabulário y tesoro de la lengua guarani ([1639] 1876) de
Antonio Ruíz de Montoya, onde aparece registrado pela primeira vez este conceito.
Melià demonstra que a noção contida na tradução de yvy marane’ÿ significa “solo
intacto, que não tem sido edificado”, tal como o registrou Montoya, que por sua vez
difere muito do sentido religioso de “Terra sem Mal” registrado pelos etnógrafos
contemporâneos. Assim, Melià introduz na etnologia guarani o sentido ecológico-
econômico de yvy marane’ÿ, ao explicar que o verdadeiro significado é “solo virgem” e
que sua busca pelos Mbyá, tem a ver com achar locais propícios onde se possa “viver
seu verdadeiro modo de ser” (Melià, 1988:107-108 apud Pompa, 2004:167), razão
econômica e ecológica que tem a ver com a maioria dos deslocamentos guarani. Melià
introduz uma outra categoria, a de teko, registrada e traduzida por Montoya como
“modo de ser, modo de estar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, condição,
costume...”, que ligada a yvy marane’ÿ, proporcionam a definição conceitual de um
espaço-aldeia, tekohá, como lugar onde se podem reproduzir as relações econômicas e
sociais de reciprocidade, a organização política e religiosa da vida guarani (Melià,
1990:36 apud Mello, 2001:41). Tanto o tratamento metodológico quanto o aporte de
dados e categorias revisadas e proporcionadas por Melià, marcaram uma virada nas
pesquisas sobre os Guarani, colocando a Terra sem Mal num plano concreto de busca
por espaços de mata preservada adequados para reproduzir o teko “modo de ser
guarani”. Um outro interesse surgia junto às etnografias de final da cada dos 80 e
começo dos 90, que era primordialmente político e uma demanda dos próprios índios.
As contribuições de Melià ajudaram bastante como base dos fundamentos teóricos do
novo tema: a questão fundiária e a mobilidade guarani.
Após a promulgação da Constituição de 1988 e o reconhecimento dos direitos
indígenas no referente a considerar o espaço tradicionalmente ocupado como parte
indispensável para sua sobrevivência, assim como o usufruto exclusivo das terras
indígenas, (Constituição Federal, [1988] 1998. Capítulo VIII, art. 231), deu-se início a
uma nova temática nas pesquisas referentes aos Guarani. Estas se caracterizavam por
demonstrar o sistema tradicional de ocupação dos espaços geográficos, a resolução de
problemas fundiários e o atendimento às demandas dos índios, assim como achar
soluções para superar as condições de miséria em que se encontravam –e ainda se
17
encontram- a maioria das aldeias devido à perda de suas terras perante o avanço da
sociedade nacional.
Nesse sentido orientaram-se as pesquisas de Maria Inês Ladeira, que em 1992
apresentou sua dissertação de mestrado, “O caminhar sob a Luz, o Território Mbyá à
Beira do Oceano”. Neste trabalho revela uma série de narrativas míticas que justificam
o “modo de ser Mbyá”, ou seja, o teko, como fundamento das caminhadas (oguata) em
direção ao mar; quer dizer, as migrações ao leste, a relação da Serra do Mar com a
cosmovisão Mbyá como justificativa da ocupação tradicional das terras. O principal
objetivo da pesquisa de Ladeira é demonstrar que as atuais aldeias guarani do litoral
sudeste e sul brasileiro consistem na comprovação de que os Guarani têm identificado
seu território dentro dos mesmos limites geográficos observados pelos cronistas durante
o processo de conquista e, portanto, os Guarani reivindicam seus direitos até agora
ignorados pela sociedade dominante, como ocupantes originários das matas preservadas
(Ladeira, 1992:57-58). A procura da Terra sem Mal volta a ser o tema central, mas
agora com uma complementação da prática de ocupação espacial no sentido político,
social e religioso que se expressa para ser entendida pela sociedade envolvente.
16
A
proposta de Ladeira consistiu em que a procura da Terra sem Mal é a realização do ideal
religioso, o qual é considerado pela autora como “migração”, distinguindo-o do
deslocamento e intercâmbio entre aldeias como “mobilidade”.
Em 1996 Aldo Litaiff publicou As divinas palavras: Identidade étnica dos
Guarani-Mbyá, pesquisa que apresenta uma descrição dos aspectos éticos contidos no
sistema simbólico-cultural dos Mbyá na aldeia de Bracuí, assim como a dificuldade
defrontada por eles na busca de viver segundo seus preceitos religiosos, morais e
sociais, originária da dependência à sociedade nacional. A pesquisa de Litaiff, assim
como a de Ladeira (1992), carrega uma denúncia política e social, demonstrando a
urgência de destinar e garantir espaços adequados para esta etnia em resposta as suas
principais demandas. Ao longo da pesquisa, Litaiff tenta expor que a mobilidade Mbyá
tem como principal motivo a busca de lugares concretos para poder viver de acordo com
sua cultura, mas não descarta a dimensão simbólica contida nas vozes de seus
“informantes”. Precisamente, o autor destaca a preocupação dos Mbyá, principalmente
16
Segundo as narrativas coletadas por Ladeira, as caminhadas ao leste, nhanderenondére “à nossa
frente”-, a onde nasce o sol, são os preceitos religiosos que Nhanderu Tenonde (Nosso Pai primeiro e
último) deixou para que seus “filhos caçulas” -homens verdadeiros, os Mbyá- possam se reproduzir, e
enquanto reprodução implica o esforço coletivo e individual de alcançar a yvy maraey, a Terra sem Mal
(Ladeira, 1992:60-62), pelo que é necessário que o grupo siga as regras rituais e os preceitos
estabelecidos através da condução do líder religioso.
18
entre os velhos, em alcançar Yvy Mara Ey, que seria o modelo ideal de espaço e
realização do teko, um tekoá modelo; devido, porém, a um processo de “entropia”
causado pela influência da sociedade nacional e o desmatamento compulsivo, a
realização desse modelo torna-se inviável (Litaiff, 1996:127). O interessante a ressaltar
neste texto de Litaiff é que demonstra o dinamismo e a plasticidade da sociedade Mb
como forma de sua preservação enquanto grupo: mesmo que os Mbyá sejam cada vez
mais dependentes da sociedade envolvente, mantêm uma série de práticas que lhes são
peculiares, como a língua, a endogamia, a aculturação aparente (que não é outra coisa
mais que mimetismo), o sistema econômico de reciprocidade e, principalmente, a
mobilidade e o culto à Terra sem Mal e sua procura. “O Mb muda, mas não
desaparece” (Litaiff, 1996:151).
Uma pesquisa que marca, ao menos por algum tempo, a secularização dos
estudos sobre os Mbyá-Guarani é Mobilidade Mbyá: História e Significação,
dissertação de Ivori José Garlet apresentada em 1997. Com uma abordagem histórica e
antropológica, Garlet apresenta uma série de fundamentos acerca do processo de
ocupação Mbyá no Rio Grande do Sul, tentando um distanciamento do fio condutor da
religiosidade como principal motivador das migrações, e mais que isso, chama a atenção
a revisar os conceitos e a contextualizar o que seria a mobilidade mbyá, propondo que
esta responde tanto a motivos internos quanto externos, sendo um fenômeno
multifacético, multicausal e contextual. Para ele o que seria um traço cultural Mbyá é o
trânsito ou circulação dentro do mesmo território, e não um conjunto de processos
migratórios de ordem profética. Primeiramente, assinala que a mobilidade nem sempre é
migração e, dado que o território é bem definido pelo grupo, o que tem existido, desde
tempos pré-coloniais, é uma “circularidade” dentro desse território. Porém, o processo
de conquista produz a “desterritorialização” do grupo, como produto do contato
interétnico, que intensificou uma série de migrações. Hoje os Mbyá estão não
recuperando o território que lhes foi quitado pelo avanço da sociedade nacional como
também estão ampliando seu território através da “reterritorialização”. A incorporação
de espaços, assim como o contato interétnico, são processos explicados culturalmente
pelos Mbyá através da história e seus mitos, os quais produzem uma série de
justificativas, a fim de explicarem, tanto a si mesmos quanto aos outros, o processo de
ocupação recente. Além de apresentar as motivações da mobilidade Mbyá, sendo estas
multifactoriais, Garlet não descarta que a finalidade das caminhadas guata- seja a
19
“necessidade de encontrar espaços que correspondessem às demandas culturais e à sua
racionalidade econômico-religiosa” (Garlet, 1997: 140).
17
Nos últimos anos, tem se desenvolvido o que a meu ver seria a herança de
Nimuendaju, temas que foram abertos por ele, mas que por alguma razão ainda não
estão fechados. Refiro-me à escatologia-ontologia guarani como foco das pesquisas
mais recentes em temas como a cotidianidade, a construção da pessoa, a formação de
xamãs, as motivações dos deslocamentos, as relações de parentesco e sua projeção no
plano supranatural (Ciccarone, 2001; Mello, 2001; Pissolato, 2006; Assis, 2006). Por
outro lado, estas pesquisas tentam preencher as lacunas sobre o desconhecimento da
organização política e social dos grupos Guarani, assim como pela luta no
reconhecimento de seus direitos civis, sociais e ambientais, a permanência no seu
território tradicional, os problemas surgidos a partir do confronto com a sociedade
nacional (Brand, 2001; Ladeira, 2001; Rehnfeldt, 2003; Costa, 2003; Darella, 2004;
Brighenti, 2004; Bertho, 2005.). Devido a sua complexidade teórica e aprofundamento
etnográfico, considero pertinente abordar esta produção bibliográfica recente no
transcurso da presente pesquisa, pois acho importante que sejam integradas e explicadas
no corpo do texto, colocando os pontos de convergência e aqueles discordantes.
Finalmente, penso que as temáticas e abordagens teóricas sobre este grupo étnico são
tão complexas quanto a própria sociedade Mbyá, que cada vez se tem adaptado e
transformando mais rapidamente aos novos contextos sociais como estratégia para
manter o “modo de ser guarani”, e projetando um “panorama caleidoscópico”. Portanto,
estas transformações e adaptações são dignas de análise, a fim de compreender suas
causas e as conseqüências, não unicamente para um maior conhecimento da sociedade
Guarani ou para o avanço da disciplina antropológica, mas para encontrar possíveis
soluções às precárias condições de subsistência e construir melhores canais de diálogo
entre as sociedades indígenas e as sociedades dominantes.
18
17
A pesquisa de Garlet tem contribuído às posteriores pesquisas e relatórios que visam garantir os direitos
Mbyá sobre as terras que ocupam (Mello, 2001; Darella, 2004; Bertho, 2005; Relatórios.). Certamente,
Garlet apresenta o que pareceria uma divergência teórica em relação às propostas de Ladeira, mas na
realidade ambas são complementares para entender o que é o território Mbyá.
18
Este é um amplo tema que faz parte da discussão antropológica que envolve o campo analítico do
contacto interétnico (Albert, 2002), a construção de campos intersocietários (Oliveira, 2002) ou de
intermediação (Arruda, 2001) a interlocução interétnica e a dinâmica inter-cultural (Bastos, 1996; Gallois,
2001; Silva, 1995). Todos estes são termos que conceitualmente se referem ao campo de relações gerado
pelas relações de contato
20
Referencial teórico
Os elementos teóricos que subsidiaram a pesquisa para abordar as relações entre os
Mbyá, a sociedade nacional e os aparelhos do Estado brasileiro, foram aqueles que se
referem à definição da política indigenista e a etnopolítica, sendo ambas duas formas de
manifestação do poder, portanto, a pesquisa se define dentro da antropologia política.
Considero que a política indigenista se caracteriza por ser tanto um construto
ideológico, quanto uma série de métodos que exercem poder e controle produzido pelo
aparelho estatal sobre os indígenas (Oliveira, 1988, Oliveira & Almeida, 1998; Lima,
1995). Sob esta ótica, a política indigenista se caracteriza por ser a prática do poder
criado a partir de ideologias no seio do aparelho estatal e que é exercido sobre um
contingente específico da sociedade, para manter a coerção do Estado nacional. Na
lógica do Estado, ele é o único que pode exercer o “poder verdadeiro ou legítimo”,
como uma forma de ordem e controle da sociedade. Em sentido oposto, a sociedade
(neste caso os povos indígenas) pode exercer um poder “marginal” em relação ao
poder instituído pelo Estado-nação. De tal forma, os povos indígenas, que de fato
pertencem –imaginariamente ou não- à sociedade sob o controle do Estado, praticam
formas particulares para se relacionar com os aparelhos estatais. O conjunto destas
práticas, por serem culturalmente diferenciadas, é de caráter etnopolítico, no sentido de
que os indígenas não se apropriam de noções e categorias jurídicas emanadas a partir
do Estado, mas que utilizam suas próprias categorias nativas como instrumentos de
negociação, transformando-as em categorias jurídicas (Varese, 2004). Esta apropriação
resulta em uma auto-afirmação étnica através de “processos político-culturais de
adaptação criativa, que gera as condições de possibilidade de um campo de negociação
interétnica” onde o discurso ocidental é manipulado e subvertido para beneficio dos
interesses indígenas (Albert, 2002:241).
19
Para caracterizar a prática da etnopolítica, me baseio na análise de Bruce Albert
(2002), que pesquisando os mecanismos de resistência indígena Yanomami pela
reivindicação territorial, observou a apropriação do discurso ambientalista criado desde
o ocidente, propondo quatro níveis de análise no contato intersocietário: 1) A
19
Devemos aclarar que a emergência do movimento indígena e as organizações de apoio nas últimas três
décadas, influenciaram muito as modificações e transformações das políticas indigenistas (Baines,
1997:3) criando melhores condições nos processos de negociação entre indígenas e os Estado-nacionais.
Ao mesmo tempo, os indígenas começaram representar-se por si mesmos. Poder-se-ia dizer que o aspecto
positivo das políticas integracionistas e de assimilação características do indigenismo oficial dos Estado-
nacionais, foi a reação dos próprios índios contra essas disposições autoritárias (Varese, 2004).
21
etnopolítica discursiva indígena, entendida como um produto dos processos criativos de
adaptação político-cultural criativa, gerada no campo da negociação interétnica entre
indígenas e a sociedade nacional, com o objetivo de transcender do discurso gerado pelo
grupo sobre a representação do “outro (resistência especulativa), ao discurso do
próprio grupo para ser projetado ao “outro” (adaptação resistente). 2) A reformulação de
conceitos nativos e a incorporação de novos como influência da sociedade nacional
dentro do discurso político, servindo de instrumento de defesa dos interesses indígenas
(chamados neste caso de re-significações).
20
3) As reconfigurações nas estruturas
mitológicas a partir das relações do contato, como uma outra forma de entender as
relações entre duas sociedades fora da visão clássica das relações interétnicas.
21
4) Por
último, a análise dos elementos patológicos da exploração e das atividades extrativistas
como fundamento do discurso indígena em defesa da proteção do meio ambiente. A
partir destas quatro abordagens da relação interétnica, cria-se um terceiro campo
produzido pela translação do discurso político indígena feito para a sociedade nacional e
o Estado. Este é o campo etnopolítico, dialético e de interesses extrapolados, onde o
papel do interlocutor (os representantes indígenas) tem que fazer um jogo duplo entre as
duas concepções antagônicas dos termos e categorias utilizadas pelos dois grupos.
22
Baseando-me na definição da etnopolítica, minha proposta pretende demonstrar
que a sociedade Mbyá não somente tem criado um duplo discurso com conteúdo
reflexivo e introspectivo, como também tem gerado práticas culturais adaptativas e
incorporações que explicam certas modificações culturais, flexibilizando ainda mais as
estruturas de sua organização social, política, religiosa e econômica. Embora este
fenômeno se incremente pelo intenso contato interétnico, a impossibilidade de
reproduzir plenamente suas práticas culturais em correspondência com seus preceitos
histórico-culturais, a crescente dependência à economia do branco e falta de espaços
adequados para a formação de aldeias, os Mb através de suas práticas culturais e
discursos tentam manter-se nos espaços que ocupam, reivindicando seus direitos e auto-
20
Se dentro do campo semântico as representações simbólicas indígenas antes do contato tinham uma
conotação cosmológica que explicava o mundo, quando são utilizadas dentro do discurso da adaptação
resistente”, transformam-se numa conotação jurídica.
21
Estas reconfigurações nos sistemas mitológicos, que agora m incorporado novas noções da sociedade
branca pelos indígenas, não representam um detrimento dos traços culturais, pelo contrário, fazem parte
das tradições e a dinâmica das sociedades indígenas em função das contingências da história imediata e
do contexto.
22
Este “terceiro campo” cria uma “microfísica lingüística, instaurada pela comunicação e pela política
interétnicas, [que] tende, assim, a produzir fórmulas semânticas de meio termo, cuja dialética ao mesmo
tempo contorna e reafirma as incompatibilidades simbólicas em confronto; fórmulas nas quais a tradição
tanto ajusta os empréstimos à sua lógica quanto é, ela mesma, modificada por eles” (Albert, 2002: 263)
22
afirmando sua identidade. Isto será observado no transcurso da dissertação e das
explicações que os Mbfazem sobre as conotações sobre seu território, suas práticas
culturais, a tradição.
Como campo de análise, escolhi um tema polêmico: a compra de terra destinada
para os Guarani; pois este não traz unicamente novos significados jurídicos, mas
também traz algumas considerações a respeito da territorialidade e às práticas de
ocupação, assim como transformações nas relações de parentesco, a organização
sociopolítica e a demografia, entre outros tantos aspectos. Na dissertação tentei avaliar
de forma crítica e objetiva as transformações surgidas a partir da aquisição de áreas,
descaracterizando os juízos de valor em positivos ou negativos. Minha opinião em
relação à compra de terra, entretanto, é que esta não passa de uma medida mitigadora
que traz soluções de curto prazo, mas não supre as carências e reivindicações deste
grupo étnico, destinando apenas áreas mínimas e de acesso restrito aos recursos; visto
que a origem destas necessidades estão mais relacionadas com as problemáticas
enfrentadas pelos Guarani, tais como a disponibilidade de espaços com recursos naturais
suficientes para sua reprodução biológica, social e cultural. Considero que os Mbyá
estão em plena razão de reivindicarem o reconhecimento de seus direitos sobre as terras
que tradicionalmente ocuparam e ocupam, fazendo valer os preceitos constitucionais
através da identificação, delimitação e homologação de terras indígenas.
Metodologia
A etapa do trabalho de campo mais intensa começou em meados do mês de março de
2006 e estendeu-se até final de julho do mesmo ano, realizando-se através de repetidas
visitas a três aldeias do litoral sul de Santa Catarina (as aldeias de Morro dos Cavalos e
Massiambu no município de Palhoça, e Tekoa Marangatu no município de Imaruí).
Ainda nos meses de novembro e dezembro fiz duas visitas a Tekoa Marangatu, a fim de
dar continuidade a minhas observações.
O registro dos dados etnográficos foi realizado por meio de observação
participante, anotações no caderno de campo e descrição detalhada no diário de campo.
Também foi coletado material visual (fotografias) e sonoro (gravações). Sobre este
último foram realizadas 13 entrevistas gravadas em 10 fitas (10 horas de gravação), das
quais foram extraídas e analisadas as narrativas de ocupação de Tekoa Marangatu. A
complementaridade entre observação e registro está no fato de que a observação não
23
significa nada se não é fornecida uma explicação a partir da interpretação nativa, que é
incentivada e registrada através da entrevista (Cardoso de Oliveira, 1998:22). Esta,
embora tenha a desvantagem da condução e manipulação do pesquisador, oferece a
possibilidade de que o sujeito responda aos interesses do entrevistador. Porém, a
entrevista não direcionada contribui à revelação de informação sobre questões
complexas e de maior profundidade, fornecendo quadros de referência maiores,
vantagem que não um questionário ou uma entrevista dirigida (Goldenberg, 1999:
88; Thiollent, 1982:80). Na presente pesquisa foram utilizadas as duas técnicas de
entrevista (direcionada e não direcionada).
Depois de obter os registros etnográficos mediante as entrevistas, o seguinte
passo foi sua análise através do tratamento como narrativas, tentando “reconstruir” o
contexto de formação de Tekoa Marangatu, assim como dos motivos das famílias que
chegaram depois a residir neste local. Nesse sentido, as narrativas foram tratadas como
histórias de vida no entrecruzamento das mesmas e encontrando os pontos onde
confluíam. Estas técnicas oferecem a possibilidade de transformar as narrativas em texto
e ao serem transcritas podem ser submetidas à análise como qualquer outro texto escrito
(Queiros, 1988). Isto facilita a extração dos dados e a análise das informações, através
das quais o pesquisador pode achar os elementos significativos que lhe servirão para
construir modelos culturais a partir das narrativas dos próprios sujeitos (Thiollent, 1982,
87).
Finalmente, a redação da dissertação apresenta a análise dos dados em
complementaridade com informação de segunda mão, obtida através da revisão
bibliográfica que contribuiu a preencher as lacunas que não foram proporcionadas pelo
registro etnográfico e a observação direta, assim como da constatação de algumas
informações observadas em campo e registradas por outros autores.
Sobre o registro dos termos nativos, é necessário considerar que a língua
guarani, neste caso o dialeto mbyá, ainda não possui uma uniformidade gráfica ou uma
única convenção ortográfica. Por tanto, opto por registrar os termos nativos da forma
como os colaboradores Mbyá me indicaram no campo, existindo nalgumas ocasiões,
variações significativas com os termos registrados por outros autores. Mesmo assim,
todos os termos nativos registrados foram conferidos no dicionário de Robert A. Dooley
(2006), pois este se aproxima mais ao dialeto mbyá no território brasileiro em
correspondência com a grafia e fonologia do português. No caso das citações de termos
nativos, considerei respeitar o registro de cada autor.
24
CAPÍTULO 1
OS GUARANI-MBYÁ EM SANTA CATARINA:
ALDEIA MASSIAMBU E TEKOA MARANGATU
Tentar classificar um grupo étnico sempre apresenta complicações, dado as múltiplas
definições que surgem tanto a partir do próprio grupo quanto das interpretações dos
observadores. Este trabalho é ainda mais difícil na medida em que se refere aos
subgrupos da família lingüística Tupi-Guarani, pois sua definição não é unicamente
uma classificação lingüística, mas é uma diferenciação vivenciada pelos próprios índios
(Ladeira, 1989:57), o que resulta em uma diversidade de características culturais. As
interpretações dos observadores dos Guarani, por sua vez, têm demonstrado avanços
significativos, resultando em uma ampla bibliografia acerca das caracterizações
culturais e sociais de este grupo, assim como de seu transcurso na história.
Partindo de uma bibliografia básica, neste capítulo abordaremos o subgrupo
Mbyá e sua definição cultural, tanto por parte dos etnógrafos quanto dos próprios Mbyá.
Trataremos também sobre a presença guarani no litoral catarinense ao longo dos
séculos, na tentativa de demonstrar que o território atualmente ocupado por esta etnia,
corresponde aos assentamentos pré-coloniais, território que foi fracionado pelo processo
de colonização européia e a posterior expansão da sociedade nacional. Contextualizando
os atuais assentamentos Mbyá em Santa Catarina e caracterizando o processo de
reterritorialização proposto por Garlet (1997), focalizamos a pesquisa em duas aldeias
Mbyá do litoral catarinense (Massiambu e Tekoa Marangatu) expondo as situações
econômicas, sociais e ecológicas que se expressam através do relacionamento com os
órgãos oficiais e instituições não governamentais, assim como da aplicação das políticas
indigenistas, as práticas assistencialistas e os problemas fundiários.
1.1 Definições e autodenominações Mbyá
Na grande maioria, as pesquisas sobre os Mb se orientam primeiramente seguindo a
classificação de Schaden ([1954]1974:1-3), definindo os subgrupos Guarani no Brasil
(Mbyá, Nhandeva-Xiripa-Avá, Kayová) como parte da família Tupi-Guarani, que por
25
sua vez pertence ao tronco lingüístico Tupi.
23
Aryon Rodrigues (1986) e Raquel
Teixeira (1995) têm oferecido importantes subsídios para o conhecimento das línguas
indígenas no Brasil. A definição da família lingüística Tupi-Guarani contida,
principalmente, nos estudos de Rodrigues, contribuiu para traçar as rotas de expansão
dos Tupinambá e dos Guarani após a divisão da família lingüística, sendo uma das
principais fontes das propostas teóricas do centro da origem dessa família lingüística
(Noelli, 1996:25)
Os Guarani no Brasil se dividem em três subgrupos ou parcialidades: os
Nhandeva - auto-denominação deste grupo - ou Xiripa - como lhes chamam as outras
parcialidades-; os Mb - ou Mbüa, como escreve Schaden - e os Kayová (Schaden,
1974:1-3). A população Mbyá concentra-se principalmente no litoral sul-sudeste do
Brasil.
Segundo Schaden (ibid: 2) a autodenominação Nhandeva significa “os que s
somos”, mas afirmou que esta é uma autodenominação reivindicada por todos os
subgrupos, e não é exclusiva dos Xiripa.
24
O mesmo autor colocou que Kayová ou
Kaiouá (Kaoiwá segundo outros autores) significa “naturais da terra”. Sobre a
autodenominação Mbyá, Schaden registrou que significa “gente”, denominação do
grupo que na bibliografia aparece como Ka’yguã, sendo este um termo que Cadogan
traduz como “habitantes da floresta”, qualificativo (e depreciativo) que receberam dos
demais subgrupos guarani (Cadogan, 1950:233). Porém, a denominação Mbyá tem
sofrido modificações pelo próprio grupo e existem diversos registros sobre o termo.
Maria Inês Ladeira (1992:24) registrou que Mbyá significa também “estrangeiro,
estranho, aquele que vem de fora, de longe”, não sendo um depreciativo determinado
por outros grupos, mas uma autodenominação que implica um processo de alteridade
com “outros”, de condição igual, porém diferente, aliás, com características especiais
por terem sido gerados “primeiramente por Nhanderu”, originários de “verdadeiros
lugares”, regiões celestes, confirmando assim seu lugar nesta Terra imperfeita.
23
Bartomeu Melià (1997:79) apresenta outra classificação para os subgrupos pertencentes à família
lingüística guarani no Paraguai, segundo as denominações como são conhecidos naquele pais, as quais
são: Paï-Tavyterä, Mbyá, Avá-Guarani (que são os Nhandeva ou Xiripa do Brasil), Guarayo, Ñandeva (ou
Tapieté) e Ache-Guayakí.
24
Em particular a este subgrupo se lhe chama Xiripa no Brasil e Ava-katu-ete no Paraguai (Chase-Sardi,
1992: 17)
26
Por outro lado, o etnônimo Mbyá é utilizado pelos membros do grupo em
relação à sociedade nacional, aos jurua,
25
e outros grupos étnicos, incluindo os Xiripa e
Kaiowá. Então os Mbyá se autodenominam Jeguakáva Tenonde Poranguei, frase
registrada por Cadogan (1960:134), e que se refere a “adorno de plumas” na linguagem
comum, e “humanidade masculina” no vocabulário religioso, noção que significa “os
primeiros homens escolhidos que receberam o adorno de plumas”. Litaiff (1996:122)
percebeu que os Mbyá definem-se como tapédjá, “povo sempre em movimento”, noção
em correspondência entre o sistema de mobilidade inter-aldeias, os processos de
reterritorialização e as práticas rituais, entendidos pelo autor como migrações ao leste na
procura da Terra sem Mal.
Flávia Cristina de Mello (2001:11-12) chamou atenção para a flexibilidade das
autodenominações entre os subgrupos guarani, dado que estes derivam da mesma
família lingüística, o que resulta num entendimento relativamente fácil entre um dos
subgrupos com os demais, existindo, porém, características de diferenciação entre os
subgrupos: o sotaque, o vocabulário e a velocidade na pronúncia de um orador Mbyá
podem variar tanto dentro do “padrão Guarani” e ser tão propriamente Mbyá, que para o
interlocutor Xiripa lhe seja ininteligível. O mesmo pode acontecer no caso contrário.
Mello (ibid: 12) acrescenta que existe uma transitorialidade na autodenominação: ora se
é Xiripa, ora se é Mbyá, e isso depende da trajetória de vida do sujeito, dos seus pais e
parentes, do local de moradia, das pessoas com quem convive, das viagens, da conduta,
do estilo na reza, do canto, da dança, etc., como um processo de “negociação da
identidade”. Recentemente se tem considerado o regionalismo como fator de
diferenciação entre os subgrupos, como foi observado por Deise Lucy Oliveira
Montardo (2002) entre os Nhandeva de Mato Grosso, que apresentam características
diferenciadas dos Nhandeva do litoral catarinense.
Depois desta primeira aproximação, parece que ainda não existe consenso sobre
a definição dos subgrupos, da autodenominação étnica, nem da especificidade de alguns
traços considerados exclusivos de uma parcialidade. Finalmente todos eles se nomeiam
“Guarani puros”. A proposta de Mello é interessante na medida em que permite
considerar os múltiplos fatores que se desdobram deste fenômeno de autodenominação,
porém, metodologicamente torna-se difícil distinguir em que momento um indivíduo
pertence a um subgrupo ou se manifesta a partir das características de outro. Mesmo
25
Jurua é uma categoria guarani que se refere aos não-índígenas. Literalmente significa “boca com
cabelo” e é uma referencia direta ao “branco genérico” (Ladeira, 1992:25)
27
assim, parece acertado o comentário de Maria Dorothea Post Darella (2004:3) ao
considerar o termo genérico “Guarani”, não em detrimento das especificidades de cada
subgrupo, mas para achar os elementos comuns na procura da plenitude e perfeição:
aguyje.
26
Atualmente os Mbyá configuram seu território através da interligação no
conjunto de áreas ocupadas, dispersas ao longo do litoral sudeste e sul do Brasil, desde
Espírito Santo até Rio Grande do Sul, e nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul,
27
estendendo-se ao norte de Argentina e Uruguai, bem como em grande parte de
Paraguai e Bolívia. Alfred Métraux (1948:40, apud Litaiff, 1996:31) colocou que eram
os Carijó –nome aplicado pelos europeus aos falantes de língua Guarani no litoral sul ao
momento do contato- que dominavam a costa atlântica no período pré-colonial, desde o
Barra de Cananéia ao norte, até o Rio Grande do Sul e daí sua ocupação se estendia ao
interior até os rios Paraná e Paraguai. Na atualidade, no Brasil os Mbyá e Xiripa têm
uma estreita relação entre seu território e a Mata Atlântica,
28
região associada a sua
cosmologia (Ladeira, 1996), que por sua vez é o fundamento de sua organização social,
política e econômica. A Mata Atlântica nunca deixou de ser território Guarani, pois a
ocupação pré-colonial que mostra Métraux para a faixa litorânea, corresponde
precisamente à Mata Atlântica, espaço geográfico que nos últimos anos experimenta um
processo de reivindicação do direito à ocupação tradicional guarani (Ladeira, 1992:
22,28; Darella, 2004:12), visto que este grupo étnico exige que os atuais locais de
assentamentos passem a ser reconhecidos pelo governo brasileiro como Terras
Indígenas.
As aldeias ou tekoa
29
se encontram separadas, muitas vezes por grandes
distâncias geográficas. Esta característica faz com que os tekoa mbconformem um
território descontínuo, mas delimitado e bem configurado, criando assim a base da
26
A autora (Darella, 2004:34), inspirada nas pesquisas de Cadogan, aponta que o conceito de aguyje
indica a perfeição de existência guarani, que possibilita o estado de kandire (imortalidade), possibilitando
assim o acesso a Terra sem Mal. O aguyje é uma orientação dos preceitos morais e religiosos guarani,
levados adiante através das práticas rituais (a dança e o canto) assim como do regime alimentar
vegetariano. A crença nos estados de aguyje e kandire é fundamentada através dos mitos dos heróis
divinizados, lideranças religiosas que se mantiveram “puros” e conseguiram a imortalidade e o acesso à
Terra sem Mal.
27
Existem núcleos Mb no Maranhão, na aldeia Karajá do norte de Xambóia e no Posto Indígena
Xerente em Tocantínia (Ladeira, 1989:58)
28
O Bioma Mata Atlântica se estende ao longo do litoral sul do Brasil e é uma das áreas de
biodiversidade mais importantes do país, com uma extensão original de 1.306,421 km2, hoje reduzida o
7.6% deste total. (Darella, 2004:12).
29
O termo tekoa se traduz como “aldeia”. Este conceito será abordado e explicado no tópico 3.1.1. do
terceiro capítulo.
28
lógica da mobilidade espacial.
30
Esta descontinuidade espacial é resultante de um duplo
processo, que por um lado, historicamente constituiu a fragmentação e
desterritorializaçao dos espaços ocupados pelos Guarani como conseqüência da violenta
intervenção dos colonizadores e atualmente a expansão da sociedade nacional, e por
outro, a reterritorialização destes espaços pelos próprios Mbyá, reivindicando direitos
culturais, históricos e também religiosos sobre espaços antigamente ocupados e outros
que vêem sendo incorporados (Garlet, 1997: 19).
31
1.2. Demografia Guarani
Assim como a denominação dos subgrupos, estimar a população Guarani é
muito complicado, quanto mais se tratando dos Mbyá, que transitam incansavelmente
de um país a outro, recebendo em cada um destes Estados tratamentos e denominações
diferentes (Melià, 1997:81). Além disso, os Mbyá sempre têm mantido uma aversão a
serem contabilizados, como uma estratégia de resistência ao controle dos governos
nacionais com a intenção de manter-se “invisíveis” à sociedade nacional
32
(Assis &
Garlet, 2004: 39; Brighenti, 2004:114).
Tem havido, entretanto, algumas pesquisas –na verdade poucas- que tentam
oferecer um panorama, ao menos aproximado, da demografia dos Mbyá no Brasil. A
primeira referência para tempos contemporâneos é de 2.500 indivíduos na década de
1970, fornecida pela pesquisa de Sílvio Coelho dos Santos (1975:23-25). Para a década
de 1980, Aldo Litaiff (et al 1999:11) reconheceu a dificuldade em reunir dados
confiáveis para a demografia Mbdurante esse período. Mesmo assim numa pesquisa
anterior, Litaiff (1996:32) apresentou a estimação de 2.000 Mb, cifra que parece
duvidosa por não citar a referência precisa. Tentativas com maiores especificações
foram feitas por Ivori J. Garlet e Valéria S. Assis (1999, apud Litaiff, 1999:11) que
apresentaram uma compilação de dados para a região sul, estimando a existência de
2.640 Mbyá em 1996. Com essa mesma cifra, Assis e Garlet (2004:50) posteriormente
se aventuraram a ir além da região sul, tentando contabilizar a população Guarani nos
30
A mobilidade Mbyá ativa o deslocamento de pessoas, o intercâmbio de produtos (principalmente
sementes), a reciprocidade, a atualização de informações, o reforço dos laços parentais, as escolhas
matrimoniais, a busca de melhores condições de vida em relação aos preceitos culturais, entre outros
aspectos no sentido sociológico e cosmológico.
31
As conotações nativas relativas ao território, à territorialidade, reterritorialização e ocupação
tradicional, serão abordadas no percorrer do texto, especificamente no terceiro capítulo.
32
É importante incluir que no caso dos Mbyá aceitarem ser contabilizados, muitas das vezes oferecem
dados apócrifos aos funcionários e pesquisadores.
29
países onde tem presença, e mostraram que a população Guarani é de 65.000,
distribuídos da seguinte forma: 4.377 Mbno Brasil, e junto com os outros países o
total de 19.200; dos Nhandeva ou Xiripa 6.300 somente no Brasil e o total de 15.650; e
29.900 Kaiowá, dos quais 21.857 se encontram no Brasil. Segundo os dados dos
autores, haveria cerca de 31.530 Guarani no Brasil no ano de 2004.
Baseada nos dados destes autores e do Departamento de Saúde Indígena da
FUNASA, Darella (2004:1) apresenta que em 2004 havia no Brasil 35.728 Guarani,
porém não faz a discriminação desta cifra em consideração dos subgrupos. Isto se deve
a que os dados fornecidos pelas instituições governamentais, principalmente a FUNAI e
a FUNASA, levantam os censos demográficos das áreas e terras indígenas muitas vezes
sem considerar as classificações étnicas. Por exemplo, no censo demográfico
apresentado em Povos Indígenas no Brasil do ISA (1996 [1991-95]: 765-771), em
algumas áreas onde co-habitam Mbyá, Xiripa e Kaigang, é colocado o total da
população, e não os membros pertencentes a cada etnia e subgrupo, como no caso das
áreas indígenas de Cacique Doble, Guarita e Ibirama, para mencionar algumas. Além
disso, os dados fornecidos pelas instituições governamentais ao ISA, apresentam uma
disparidade nas datas de elaboração dos censos (de 1989 até 1995) num período de seis
anos.
33
Fora das imprecisões dos dados e das dificuldades em dar acompanhamento à
demografia guarani, o que é evidente é o aumento da população indígena, neste caso dos
grupos guarani, que segundo Assis e Garlet (2004:41) se deve a uma diminuição dos
métodos contraceptivos tradicionais e a redução da taxa de mortalidade, principalmente
infantil. Acrescentaríamos ainda como outro fator, a influência dos programas do
assistencialismo governamentais, como Bolsa Família, que oferecem maiores benefícios
econômicos dependendo do número de filhos.
34
Para a finalidade da presente pesquisa, apresento os dados correspondentes ao
ano de 2006 referentes à população guarani do litoral de Santa Catarina que recebem
assistência médica da FUNASA em parceria com a Associação dos ex-Rondonistas
(Projeto Rondon) –Pólos Base de Florianópolis e Araquari-, gentilmente fornecidos por
estes.
33
A mesma disparidade apresentam os dados do ISA (2006) no período 2001-2005.
34
Assis e Garlet (2004:41) aclaram que esta recuperação demográfica é um processo consciente nas
famílias mbyá, que têm descuidado intencionalmente o controle da natalidade e mudado sua preferência
de criar seis ou mais filhos ao invés de ter apenas dois ou três deles. Certamente, o aumento de filhos
favorece a obtenção de maiores benefícios dos programas assistencialistas do governo.
30
QUADRO 1
POPULAÇÃO GUARANI NAS ALDEIAS DO LITORAL DE SANTA
CATARINA
Aldeia No de Casas População
Yvapuru 3 19
Yya Kan Porá 2 18
Conquista 5 18
Jabuticabeira 3 17
Morro Alto⁄Laranjeiras 15 62
Pindoty 3 18
Yvy Ju 5 32
Tarumã 4 20
Tiarajú 12 61
Mbiguaçu 40 121
Amâncio (Tekoa Yvy ju Miri) 9 37
Morro dos Cavalos 32 124
Cambirela 6 32
Massiambu 13 38
Marangatu (Cachoeira dos Inácios) 30 150*
Total 182 767
Fonte: Projeto Rondon, Pólo Base Araquari, janeiro de 2006; FUNASA/Projeto Rondon, Pólo Base
Florianópolis, outubro de 2006.
* Levantamento demográfico feito pelo autor durante o trabalho de campo.
1.3. Ocupação Guarani-Mbyá no litoral catarinense
Pesquisas arqueológicas, históricas, lingüísticas e etnológicas têm demonstrado qual é o
território que vem sendo ocupado pelos Guarani através dos séculos. A partir de sua
dispersão, que teve origem na região amazônica por volta de 3000 anos antes do
presente (Urban, 1992:93), os grupos guarani, descendentes da família lingüística Tupi-
Guarani, conseguiram dominar um amplo território que se estendia pelos atuais estados
meridionais do Brasil, o oriente do Paraguai e o nordeste da Argentina e Uruguai,
conhecido como o delta Rio da Prata (Noelli, 2004; 17-18). No momento da chegada
dos europeus ao novo mundo este era o território ocupado pelos Guarani, o qual foi
desestruturado e transformado ao longo do processo de conquista e colonização.
Pouco se sabe sobre os Guarani a partir de finais do século XVIII e o XIX.
Porém, o que mostra o século XX e agora o XXI, não é o “re-aparecimento” dos
Guarani, mas a tentativa de recompor seu território, que viu-se afetado pela conquista, a
31
colonização, a expansão da sociedade dominante. As estratégias para recuperar seu
território têm sido diversas, sendo utilizados, inclusive, os instrumentos da cultura
ocidental adaptados ao “modo de ser guarani”. Um claro exemplo deste processo de
retomada do território guarani, é a paulatina ocupação do litoral de Santa Catarina,
estado do Brasil que apresenta um evidente atraso jurídico e institucional para garantir
espaços adequados à ocupação guarani.
1.3.1 Ocupação pré-colonial
Ainda parece não haver consenso entre os cientistas sobre o centro da origem do
tronco Tupi, assim como também não uma hipótese suficientemente convincente
sobre a origem da expansão da família Tupi-Guarani. Alfred Métraux foi o primeiro a
sistematizar informações, a fim de determinar a origem das migrações-dispersões dos
Tupi-Guarani. Este autor publicou em 1928 A civilização material das tribos Tupi-
Guarani, com uma metodologia de co-relação de dados lingüísticos, arqueológicos,
históricos e etnográficos, declarando assim que o centro original de dispersão dos Tupi-
Guarani foi numa região da Amazônia, na bacia do Tapajós ou do Xingu (Noelli,
1996:13).
Baseada em vestígios da cultura material, a “hipótese da pinça”, iniciada por
Donald Lathrap (1970 apud Noelli, 1996:17) propunha uma expansão do tipo radial
causada pelo crescimento demográfico e o controle do espaço através da guerra, tendo
como origem a confluência do Amazonas com o rio Madeira.
35
A hipótese de Brochado
sugere que a expansão dos Tupinambá teria iniciado no baixo Amazonas e seguido pelo
litoral no sentido sul, enquanto os Guarani foram para terras baixas seguindo os rios
Madeiras e Mamoré no atual estado de Rondônia, e seguido ao sul pelos rios Paraguai,
Paraná e Uruguai. Os estudos lingüísticos de Greg Urban (1992: 92-93) mostram que
em algum lugar entre o rio Maderia e o Xingu, o tronco Tupi sofreu sua primeira
divisão entre 3.000 a 5.000 anos, enquanto a família Tupi-Guarani separou-se por
volta de 2.000 a 3.000 anos atrás, tendo uma terceira e última distinção após o ano
1.000 de nossa era. Embora existam divergências, tanto arqueólogos quanto etnólogos
35
Após a publicação do artigo de Noelli (1996), foi retomado o tema da origem da expansão da família
Tupi-Guarani, levantando algumas considerações, principalmente no sentido de mostrar algumas
inconsistências da informação arqueológica em relação às evidências lingüísticas e etnológicas. Sobre as
críticas ao artigo de Noelli (Viveiros de Castro, 1996; Hackenberger, Neves & Petersen, 1998).
32
concordam na origem amazônica da cultura Guarani, aliás, com suas características
próprias fora do ambiente amazônico (Noelli, 2004:18).
A região sul do atual Brasil tinha sido povoada por caçadores-coletores cerca
de 12.000 anos (A.P.), grupos que deixaram vestígios ao longo do litoral ao redor de
5.000 AP., denominados sambaquis.
36
Por volta de 2.500 anos atrás, chegaram ao sul
grupos do tronco Macro-Jê que se deslocaram do centro-oeste do Brasil e
posteriormente, levas de filiação lingüística Tupi (os Guarani), vindos da região
amazônica (Noelli, 1999-2000:228). Aos pré-coloniais foi atribuída a introdução da
cerâmica da tradição conhecida como Itararé, no litoral catarinense, especificamente na
ilha de Santa Catarina (Fossari, 2004 apud Darella, 2004:122-123).
Por sua parte, a chegada dos Guarani transformou o cenário econômico-
ecológico da região sul, pois estes se apropriaram dos espaços dos Jê pré-coloniais,
através da guerra de conquista. Além disso, impuseram sua organização sociopolítica
baseada no manejo agro-florestal, a agricultura e um outro estilo cerâmico, o que
demonstra que estes grupos adaptaram-se ao ambiente e cultivaram espécies úteis para
sua alimentação, sua medicina e a obtenção de matérias primas, incentivando assim a
dispersão de diversas espécies florestais (Noelli, 2004:20). Assim, os pré-coloniais
que antigamente dominavam a região, foram expulsos de seus assentamentos ou bem,
tiveram de adaptar-se à nova cultura dominante.
Francisco Noelli (2004), especialista na arqueologia guarani, assinala que
existem evidências de ao menos 3.000 sítios arqueológicos que demonstram uma
ocupação no sul de pelo menos 2.000 A.P., distribuídos entre os estados do sul do
Brasil, o oriente do Paraguai, o nordeste da Argentina e norte de Uruguai. O quadro 2
resume unicamente os estados do Brasil onde existem sítios arqueológicos que já foram
analisados e datados. Os dados de Noelli revelam que o território do atual estado de
Paraná foi o primeiro a ser ocupado pelas levas guarani, pois seus assentamentos
apresentam uma distribuição uniforme, verificando-se a contigüidade dos sítios,
enquanto que o litoral catarinense foi conquistado tardiamente (1.500 - 900 A.P.) , tendo
poucos assentamentos no interior do território e na zona serrana, onde estariam
recolhidos os Jê que foram expulsos pelo processo de conquista guarani (ibid: 29-30).
36
Os sambaquis são acúmulos estruturados de camadas de conchas, misturados com outros elementos,
principalmente relacionados à preparação de alimentos, ossos, artefatos líticos e registro de sepultamentos
humanos. Estes vestígios da cultura material não pertencem a uma única tradição cultural (Fossari, 2004:
59 apud Darella, 2004:122, nota 3) mas, no sentido arqueológico, são atribuídos a grupos que baseavam
sua alimentação de crustáceos.
33
Embora as datações apresentem um panorama geral do processo de ocupação guarani no
sul, ainda faltam muitas mais explorações que apresentem novas datações, pois ao que
parece, a ocupação guarani foi mais prematura.
QUADRO 2
SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS GUARANI NOS ESTADOS DO BRASIL
Estado Localização Data
Mato Grosso do Sul -Rio Paraná 1,248 A.P.
São Paulo -Alto rio Paranapanema
-Medio-alto rio Paranapanema
1,200 A.P.
1,000 A.P.
Paraná -Margens do rio Paraná
-Interior: rios Tibagi, Pirapó,
Iguaçu, Ivaí e Piquiri
1,500 A.P.
2,000 A.P.
Santa Catarina -Litoral (Ilha de Santa Catarina)
- Interior: rios Peperi Guaçu e
Peperi Miri
- Nordeste: rios Itajaí e Itapocu
- Leste
900 A.P.
(s/d)
(s/d)
1,500 A. P. (aprox.)
Rio Grande do Sul - Centro
- Norte
1,800 A. P.
1,300 - 1,000 A.P.
Fonte: Noelli, 2004:27-31.
No referente ao litoral catarinense, existe uma centena de evidências
arqueológicas que demonstram a ocupação guarani durante os períodos pré-colonial e
colonial. Estes sítios arqueológicos guarani caracterizam-se por terem grande
quantidade de material cerâmico, sepultamentos, material lítico e ossos da fauna
terrestre e marinha, entre outros registros. Pesquisas arqueológicas sistemáticas
registram atualmente sítios arqueológicos guarani nos seguintes municípios de Santa
Catarina:
37
São João do Sul, Balneário Gaivota, Sombrio, Araranguá, Içara, Jaguaruna,
Laguna, Imbituba, Imaruí, Garopaba, Paulo Lopes, Palhoça, São Bonifácio, Ilha de
37
A pesquisa arqueológica realizada de maneira sistemática em Santa Catarina começou por amadores
durante a década de 1950, principalmente pelo interesse de preservar os sambaquis localizados ao longo
do litoral. Entre estes amadores destacam Guilherme Tiburtius, W. Zumblick e C. Ficker, porém, talvez o
de maior destaque seja o Pe. J. A. Rohr (Prous, 1992:11, 17). Por sua parte, as missões estrangeiras e a
formação de pesquisadores especializados incentivaram a criação de núcleos de pesquisa arqueológica,
como a Comissão de Pré-História na USP, promovida por Luis Castro Faria, José Loureiro Fernandes e
Paulo Duarte, os quais iniciaram suas pesquisas nos sambaquis de Santa Catarina (ibid, 13). Nos últimos
anos, a pesquisa arqueológica no Museu de Antropologia da UFSC, tem uma importante participação no
resgate de sambaquis e preservação de sítios arqueológicos, assim como uma participação ativa nos
relatórios relativos às obras de desenvolvimento, por exemplo, no projeto de implantação da rodovia
interpraias (Fossari et al, 1992 apud Darella, 2004:124) e o levantamento ao EIA do projeto de
duplicação da BR 101 (Silva et al, 1999 apud Darella, 2004:24).
34
Santa Catarina (Florianópolis), Governador Celso Ramos, Porto Belo, Balneário
Camboriú, Joinville e São Francisco do Sul (Darella, 2004:124). A distribuição dos
sítios até agora encontrados demonstra uma maior quantidade no litoral central e sul.
Se a arqueologia tem demonstrado o processo de expansão guarani ao sul do
Brasil, assim como sua adaptação e o manejo dos recursos, pouco diz sobre sua
organização político-social. Os registros mais confiáveis nos foram proporcionados
pelos primeiros cronistas, viajantes, missionários e conquistadores que chegaram à costa
sul-sudeste brasileira desde o início do século XVI. As crônicas colocam o litoral de
Santa Catarina como cenário histórico dos primeiros contatos entre Guarani e europeus,
das novas relações de alianças políticas e trocas de mercadorias, e o começo do
processo de desterritorialização dos grupos guarani.
1.3.2. Conquista, colonização e desterritorialização: séculos XVI-XIX
Os assentamentos guarani pré-coloniais seguiam um padrão o qual se caracterizava por
se tratarem de áreas situadas em bacias hidrográficas e várzeas, contando com a
presença de abundante floresta; o conjunto de aldeias (tekoas) conformavam amplos
territórios, denominados com o termo guarás
38
, mantendo um manejo agrícola de roças
itinerantes e do sistema de troca de mudas e sementes, (Noelli, 1993:247, 260). Entre os
tekoa, e mesmo entre os guarás, os Guarani mantiveram o controle de seu território
através de um sistema de circulação. A circulação e o manejo agro-florestal guarani,
permitiam explorar os nutrientes do solo pela queima de mata secundária (roça); ao
esgotamento do solo, se abriam novas áreas de cultivo dentro do mesmo território,
permitindo assim a regeneração do solo da primeira roça, o qual era reutilizado após a
regeneração do solo (Bertho, 2005:33).
Este modelo de território guarani viu-se afetado pelo processo de conquista e
colonização européia a partir do século XVI. Embora os primeiros contatos entre
Guarani-Carijó e europeus tenham sido pouco hostis, como veremos na continuação, o
avanço da expansão européia desestruturou a maioria dos antigos guarás, e o processo
de colonização nos séculos posteriores não foi menos violento.
38
O termo Guará, segundo a definição de Noelli (1993:247) que, por sua vez, baseia-se na descrição de
Montoya, significa “tudo o que está contido dentro de uma região qualquer” ou como região”. Segundo
Litaiff (1999:113) o termo se refere à “pátria, parcialidade, país, região” denominando-lhe segundo os
rios que circundam o território.
35
Em busca das rotas para chegar ao Novo Mundo, o navio francês L’Espoir,
capitaneado pelo normando Binot Palmier de Gonneville, chegou no dia 5 de janeiro de
1504 ao que hoje é conhecido como São Francisco do Sul, no litoral catarinense
(Perrone-Moisés, 1996: 49-50). Ali se deu o primeiro encontro entre europeus e o povo
Guarani, que inicialmente os primeiros chamaram de Carijós. Além da conhecida
história de Essomericq,
39
a descrição de Gonneville sobre sua experiência entre os
Carijó apresenta valiosos dados sobre a organização sociopolítica e territorial guarani
pré-colonial. Sobre a organização espacial das aldeias, comentou:
E as habitações dos índios formam aldeias de trinta, quarenta, cinqüenta ou oitenta
cabanas, feitas a maneira de galpões [...]
Também dizem ter notado que o dito país está dividido em cantones, cada um com seu
Rei; e embora os ditos Reis não sejam mais bem alojados e vestidos do que outros, são
muito reverenciados, que eles tem poder de vida e de morte sobre seus vassalos
(“Relação da viagem do capitão de Gonneville às novas terras das Índias”, Perrone-
Moisés, 1996:22) .
As guerras pela conquista de melhores territórios foram observadas pelos
primeiros cronistas. O mesmo Gonneville assinalou que Arosca, o chefe do grupo
Carijó com quem teve contato, estava “em paz com os Reis vizinhos, mas ele e este
guerreavam com outros povos das terras interiores: contra os quais investiu duas vezes,
durante a estada do navio, levando de quinhentos a seiscentos homens cada vez”
(“Relação da viagem do capitão de Gonneville às novas terras das Índias”, Perrone-
Moisés, 1996:22-23).
Posteriormente, em 1515 uma expedição do espanhol Juan Díaz de Solís
naufragou e chegou na bacia do rio Massiambu, perto da ilha de Santa Catarina (Noelli,
2004:20; Bertho, 2005:35). Os náufragos foram incorporados como aliados da liderança
Carijó Tupã Vera, fazendo que estes contraíssem núpcias com suas filhas e sobrinhas. O
sistema de trocas de mercadorias por parte dos europeus e a incorporação dos
estrangeiros através do casamento com as filhas das lideranças Carijó, ou seja, através
do cunhadismo, marcaram o inicio das relações políticas, permitindo assim aos
espanhóis explorar o interior do território levando contingentes indígenas. Nas crônicas,
os Carijó aparecem como “índios muito amistosos e pacíficos”, devido a estas alianças
iniciais. Os náufragos de Solís ficaram em Massiambu cultivando estas relações,
39
Essomericq, ou Içá-miri, era filho do “chefe” carijó Arosca ou Ñ aro içá, que foi levado pelos europeus
com a promessa de trazê-lo de volta em vinte luas, com suficientes armas para fazer a guerra contra seus
inimigos, promessa que não foi cumprida (Perrone-Moisés, 1996).
36
criando assim uma base de apoio logístico para os espanhóis, que tentaram manter seu
domínio desde a costa do atlântico e penetrar ao interior do território (Noelli, 2004:21).
Aproveitando o conhecimento geográfico dos indígenas, Aleixo Garcia fez em
1521 uma expedição ao interior na procura de ouro, seguindo a trilha conhecida como
Caminho de Peabiru, que tinha como destino El Dorado, cruzando a Cordilheira dos
Andes, onde o espanhol foi morto durante a viagem de volta (Gonçalves, 1998 apud
Bertho, 2005:36). O mesmo caminho foi percorrido por Álvar Núñez Cabeza de Vaca
em 1541, mas com o objetivo de chegar à recém fundada cidade de Asunción, para
ajudar a sua pacificação (Noelli, 2004:21; Bertho, 2005:36; Darella, 2004:128). A
crônica da expedição de Cabeza de Vaca ([1541] 1984) faz especial ênfase ao
canibalismo da “generación de los guaranies”, assim como a aliança que mantiveram
com eles ao longo da expedição, tanto que foram considerados como “amigos e vassalos
do Rei” da Espanha. Os espanhóis também perceberam a homogeneidade destes índios,
principalmente na língua e na organização social e política estendida num amplo
território.
Porém, o sistema de alianças hispano-guarani introduz elementos alheios à
função social da guerra entre os Guarani, o que ocasionou conflitos entre as lideranças
guarani aliadas e as que se mantiveram autônomas, provocando também maiores
mobilizações entre as aldeias e a fragmentação dos guarás (Bertho, 2005:39). A mesma
presença estrangeira provocou seus transtornos. O viajante Hans Staden observou na
década de 1540 como os índios da Ilha de Santa Catarina abandonaram-na para se
deslocar à aldeia Acutia no continente; em 1576, outro grupo Guarani fugiu para o
guará de Viaçá, também conhecida como o porto da Lagoa dos Patos, o que hoje é
Laguna; e mais tarde, em 1635 a ilha estava despovoada de Guarani, como declarou o
missionário Inácio Sequeira (Darella, 2004:129-131). As doenças infecciosas, as guerras
regionais, a escravidão, assim como também o desflorestamento,
40
que vieram nos
séculos posteriores ao XVI, todos estes fatores introduzidos pelos europeus, foram os
principais motivos da desterritorializaçao no litoral, fazendo com que os grupos guarani
empreendessem uma dispersão forçada a zonas de difícil acesso em direção ao oeste
(ibid: 132-133).
40
Estima-se que ao começo do século XVI a população guarani somava dois milhões e meio
aproximadamente; população que decresceu paulatinamente ao longo dos séculos posteriores (Noelli,
2004:17).
37
Porém, o que mais afetou a organização político-social guarani neste período foi
primeiramente o “servicio personal”, baseado na exploração do trabalho indígena
(Monteiro, 1992:482). O costume guarani de “dar sus hijas o esposas” para estabelecer
relações políticas de serviço e reciprocidade baseadas em obrigações por parentesco
entre as linhagens das aldeias, foi habilmente aproveitado pelos conquistadores
espanhóis. Ao serem oferecidas as mulheres guarani para os cristãos, constitui-se o
serviço por parentesco para o beneficio dos espanhóis, o qual foi chamado de
“yanaconato” (Susnik, 1965: I, 10). Outra prática utilizada pelos conquistadores foi a
tradicional “saca de mujeres”, ou seja, a utilização da guerra tribal para a obtenção de
esposas, chamadas nos primeiros momentos da conquista como “rancheadas”. Estas
duas práticas, o yanaconato” e a “saca de mujeres”, debilitaram o potencial biológico e
econômico das antigas comunidades pela falta do componente feminino, provocando
também a reagrupação e redução a pequenos grupos domésticos (ibid: I, 11-14). Estas
práticas foram a base do sistema de encomiendas,
41
estabelecido pela primeira vez em
Asunción no ano 1543 através de decreto do governador Domingo Martinez de Irala, o
mesmo que foi o primeiro encomendero a conseguir a redução de 26.000 Guarani; as
encomiendas foram-se estendendo paulatinamente pelo território, principalmente na
jurisdição do Governo Provincial do Paraguai (Galileano, 1979:17-18), e com elas o
projeto colonizador que baseava-se principalmente na produção de erva-mate. Os
Guarani reduzidos foram controlados pelos espanhóis dentro das encomendas criando
“pueblos de índios” e introduzindo os “cabildos” do modelo espanhol (Susnik, 1965: I,
161-164), os quais vieram a implantar uma nova estrutura política e econômica distinta
aos antigos guará.
Ao longo do século XVI, tinha um contingente Guarani denominado como
Ka’yguá ou “monteses” que resistia a submeter-se ao trabalho nas encomiendas e ao
controle dos espanhóis (Meliá, Grünberg e Grünberg, 1976:169).
42
Dado que os
Ka’yguá representavam o principal obstáculo para a expansão colonial, a Coroa
espanhola designou à Companhia de Jesus evangelizar a zona através do sistema
reducional em missões, tentando amenizar ao mesmo tempo os abusos cometidos pelos
41
O sistema de encomiendas, caracterizado por ser do tipo semi-feudal, consistia no repartimento da
população indígena por parte da Coroa espanhola para que trabalhassem como mão de obra para um
encomendero (geralmente este era um conquistador); em contrapartida, o encomendero se
responsabilizava de “civilizar” os índios através da catequização. (Susnik, 1965; Monteiro, 1992:483).
42
Ka’ygCaaguá, Kaa’iwa, Cayuá, Kayová e outras variações fonéticas, referem-se ao mesmo termo
para designar aos Guarani que não haviam sido “reduzidos” às encomiendas. Etimologicamente significa
“habitantes da floresta ou do monte” (Meliá, Grünberg e Grünberg, 1976:169).
38
encomenderos aos Guarani reduzidos (Garlet, 1997:27-28), fundando a primeira
redução jesuítica na província de Guará em 1610.
Embora a documentação, os registros e as pesquisas na região sul sejam
escassos, algumas informações assinalam o processo de formação de reduções jesuíticas
no litoral de São Vicente, como a criação do aldeamento guarani de São João (Monteiro,
1992:487). Os missionários jesuítas tinham como projeto criar aldeamentos e missões
nas capitanias do sul, especificamente na região do porto da Lagoa dos Patos em Santa
Catarina, local que se caracterizava por sua importância geopolítica, sendo disputada
entre conquistadores e missionários, espanhóis e portugueses pelo controle da mão-de-
obra nativa e as operações logísticas para o acesso na região Platina.
O sistema de reduções jesuíticas realizou-se mediante métodos mais persuasivos
que agressivos, porém, não deixou de ser um elemento que contribuiu à desestruturação
sociopolítico e territorial dos Guarani. Devido a seu trato menos violento com os
Guarani, os jesuítas foram tomados por estes como lideranças religiosas carismáticas,
equiparáveis a seus próprios xamãs (Litaiff, 2004:19), tanto que na cosmologia Mb
são considerados personagens “mítico-históricos”. Os jesuítas foram chamados pelos
Guarani de Nhanderu Miri, associados à divindade solar Kuaray-Ru-Ete. Os Kesuita,
como são hoje denominados pelos Mb aos jesuítas históricos, influíram de
sobremaneira no pensamento Mbyá, tanto que se pensa que eles conseguiram atingir o
estado de perfeição, aguidje, a imortalidade através da preservação do corpo (kandire) e
voltaram para a Terra Sem Mal, de onde originalmente vieram.
43
Os Guarani que aceitavam a vida nas reduções jesuíticas, na verdade
procuravam espaços onde houvesse menos pressão no processo de exploração da mão
de obra indígena e da violência exercida pelas expedições de bandeirantes e mamelucos
paulistas (Garlet, 1997:29-30,33). Mesmo assim, os Ka’yguá mantiveram-se em
constante fuga, refugiando-se nas florestas de mais difícil aceso e mantendo seu “modo
de ser”.
No caso do litoral catarinense as informações sobre a população Guarani do
século XVII ao XIX são pouquíssimas, porém são conhecidos os relatos sobre a disputa
por terras entre colonos e indígenas, principalmente entre imigrantes europeus que
vieram entre o século XIX e o XX e a etnia Xokleng (Santos, 1987). Embora não
43
Aos kesuita ou Nhanderu Miri é atribuída a construção de ruínas, denominadas tavas. Nestes lugares,
antigos tekoa com casas de pedra, foi onde os heróis divinizados conseguiram atingir a Terra sem Mal
sem ter que passar pela morte física.
39
tenhamos conhecimento deste processo no caso dos Guarani durante este período, não
significa que estes não tinham experimentado a violência inter-étnica.
1.3.3. Época contemporânea e a reterritorialização Guarani
Devido à fragmentação do território guarani, que até a chegada dos europeus se manteve
relativamente contínuo, o processo de colonização e desterritorialização obrigou aos
Guarani que não se submeteram às reduções, a manter-se invisíveis, circulando nas
florestas meridionais, recebendo a denominação depreciativa de “monteses” ou
“habitantes das florestas” -Ka’yguá- (Garlet, 1997:31-32). Esta foi sua estratégia de
proteger sua cultura perante o avanço da cultura ocidental. Mas o incremento das
atividades agropecuárias, do extrativismo compulsivo, o desmesurado desflorestamento
e o desenvolvimento da sociedade nacional em geral, processos que se intensificaram
durante os séculos XX e XXI, deixaram os Guarani com poucas possibilidades de
refugiar-se, complicando assim a manutenção de seu “modo de ser” (Ladeira, 1992,
2001; Litaiff, 1996; Garlet, 1997; Brighenti, 2001; Darella, 2004). Perante este cenário,
o contato com os jurua era inevitável, sendo quase impossível o isolamento e o
distanciamento geográfico.
O que mostra o século XX é um processo de recomposição étnico-territorial
guarani. Aos poucos, o território original foi sendo recuperado, e nas últimas décadas
ampliado -concebendo-se como território descontinuo- como mostram a formação de
aldeias e seus desdobramentos ao longo desse século (Garlet, 1997:49). O litoral
catarinense vem experimentando este processo de forma acelerada, sendo uma
manifestação de visibilidade dos Guarani para a sociedade envolvente.
A primeira aldeia guarani que se tem registro etnográfico no litoral catarinense
em termos da antropologia contemporânea - é Morro dos Cavalos no município de
Palhoça (Bott, 1975; Santos, 1976). O local foi identificado em 1975 por Rosa Maria
Bott (1975), registrando a uma família Nhandeva (Xiripa) da qual Julio Moreira era
“chefe da aldeia”, pai de cinco filhos (um homem e quatro mulheres). O ano seguinte,
Sílvio Coelho dos Santos (1976) descreveu as condições da aldeia, composta por treze
membros todos eram filhos e netos de Julio Moreira - assim como os meios de
subsistência, nos quais se incluía a venda de artesanato, uma pequena roça e a
prostituição. O autor remarca o intenso contato inter-étnico violento com os brancos,
assim como o desinteresse da FUNAI em assistir ao grupo (ibid: 69). Segundo os
40
depoimentos de Rosalina Moreira, filha de Julio Moreira, a ocupação da aldeia data da
década de 1930, quando seus pais vieram de uma longa caminhada desde o Paraguai,
fugindo da guerra, para se assentar no litoral (Mello, 2001:26; Darella, 2004:137). A
construção da BR 101 na década de 1960 e depois a criação do Parque Estadual da Serra
do Tabuleiro em 1975, foram projetos que vieram a afetar a aldeia, reduzindo o espaço
original da área e entrando num litígio que ainda não é resolvido. A vitalidade desta
aldeia registrada em pesquisas e relatórios (Ladeira, 1991, 2002; Litaiff et al, 1999;
Darella, Garlet & Assis, 2000; entre outros), demonstra que a área de Morro dos
Cavalos tem pelo menos 70 anos de ocupação contínua, a qual não simplesmente se
explica pelas condições ambientais e ecológicas em correspondência ao sistema de
subsistência-cultural tradicional,
44
mas pelo fato de representar um local de “referência
de terra de parentes”, através do qual se revitaliza a memória histórica do grupo, se
reforçam os laços parentais, articulam-se as redes migratórias e é um local estratégico
de articulação das relações de reciprocidade entre as aldeias (Darella, 2004: 138; Mello,
2001:26).
Desde a década de 1970, o Tekoa Yma, melhor conhecido como aldeia Morro
dos Cavalos, vem sendo um local a partir do qual deslocam-se núcleos familiares para
formar novos tekoa e acampamentos ao longo da costa meridional e setentrional
catarinense,
45
dos quais para o presente estudo destacam-se Mbiguaçu, Massiambu,
Cambirela, Praia de Fora, Terra Fraca e Marangatu (Mello, 2001:26).
A formação de aldeias e acampamentos geralmente situam-se am áreas de
domínio público, como à beira da BR 101, e em outros casos ocupam propriedades
particulares cedidas ou “invadidas”, sem contar aquelas que ficam dentro de Terras
Indígenas demarcadas para outros grupos étnicos como Xokleng ou Kaingang. Além
disso, depois de ter sido o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro declarado como
Unidade de Conservação Ambiental (UCA) em 1975,
46
sua nova condição jurídica
impossibilitou o acesso dos grupos guarani às áreas de mata que apresentam maior
44
A cobertura florestal do Estado de Santa Catarina, especificamente o Parque Estadual da Serra do
Tabuleiro, é considerada uma das mais preservadas (Darella, 2004:136).
45
Na década de 1980 foram registrados assentamentos entre Sombrio, Araranguá, Sanguão, Jaguaruna e
Imbituba no litoral meridional, e na costa setentrional entre Garuva, Joinville, Araquari, São Francisco do
Sul, Itajaí, Camboriu e Biguaçu (Darella, 2004:141).
46
Decreto No. 1.260⁄75 (Litaiff, et al, 1999: 23).
41
preservação ambiental em Santa Catarina.
47
Estes são os principais problemas
enfrentados pelo povo guarani nos processos de regulação fundiária neste estado.
Embora os Guarani estejam cientes da demora nos processos fundiários e a
incapacidade administrativa da FUNAI, as famílias não têm deixado de se deslocar e
formar novos assentamentos (tekoa ou acampamentos). Talvez isto aconteça porque
existe uma grande expectativa, cada vez maior, tanto entre os Guarani quanto entre as
agencias de apoio, que a regularização fundiária acontecerá nas próximas
administrações. Por outro lado, não se podem negar as lutas que se têm sido ganhas
neste terreno, especialmente no reconhecimento de áreas como terras indígenas de
ocupação tradicional, embora estas sejam muito poucas. Assim, os registros para o ano
2003 (Darella, 2004:157) apresentam 18 locais de ocupação ao longo do litoral
catarinense, nos municípios de Imaruí, Palhoça, Biguaçu, Piçarras, Araquari,
Guaramitim, Balneário Barra do Sul, São Francisco do Sul e Garuva, com uma
população aproximada de 759 pessoas. A situação fundiária das aldeias guarani no
litoral catarinense neste ano de 2006 se pode extrair do seguinte quadro, o qual
apresenta as aldeias indígenas no estado de Santa Catarina.
QUADRO 3
SITUAÇÃO FUNDIÁRIA E POPULAÇÃO DAS ALDEIAS INDÍGENAS
NO ESTADO DE SANTA CATARINA – 2006
48
Orde
m
Local
Município de
Localização
População
Aproximado*
População Situação Fundiária
1.
Tekoa Marangatu
(Cachoeira dos Inácios)
Imaruí
140
Guarani
Área demarcada (70
hectares). Aquisição
como medida mitigadora
do Gasoduto Bolívia-
Brasil. Ampliação
reivindicada
2. Massiambu
Tekoa Ka’akupe
Palhoça 40 Guarani Aguarda
identificação/delimitação
3. Morro dos Cavalos
Tekoa Yma
Palhoça 130 Guarani Área delimitada
1.988 hectares
4. Cambirela
Palhoça 30 Guarani Aguarda
identificação/delimitação
47
A política da FATMA em relação às UCA no estado de Santa Caratina, segue o padrão norte-
americano baseado na proteção de áreas da “natureza selvagem” que dissocia a presença humana da
preservação do ambiente natural (Bertho, 2005:94).
48
Quadro e informação proporcionada por Maria Dorothea Post Darella, em 27 de outubro de 2006.
42
5. Mbiguaçu
Tekoa Yy Morotĩ Wherá
Biguaçu
130
Guarani
Área homologada
58 hectares
Ampliação reivindicada
6. Yvy Ju Mirĩ
Amâncio
Biguaçu 40 Guarani Aguarda
identificação/delimitação
7. Tekoa Tarumã
Araquari 20 Guarani Em processo de
delimitação
8. Tiaraju/ Piraí
Araquari 50 Guarani Em processo de
delimitação
9. Conquista/Jataí Balneário Barra do Sul
40 Guarani Em processo de
delimitação
10. Pindoty Araquari 20 Guarani Em processo de
delimitação
11. Jabuticabeira Araquari 30 Guarani Em processo de
delimitação
12. Morro Alto/Laranjeiras São Francisco do Sul 60 Guarani Em processo de
delimitação
13.
Araçá
São Francisco do Sul
Local
Desocupado em
2005
Guarani
Sem providências para
regularização fundiária
14. Reta São Francisco do Sul 25 Guarani Sem providências para
regularização fundiária
15. Yakã Porã
Garuva 25 Guarani Aguarda
identificação/delimitação
16.
La Klãnõ
José Boiteux
Vitor Meireles
Dr.Pedrinho
Itaiópolis
1.800
Xokleng
Área em fase de
demarcação física
37.108 hectares
17.
Toldo
Vitor Meireles
Dr.Pedrinho
50
Guarani
Ocupação de parte da
Terra Indígena La Klãnõ.
Reivindicação de área
própria
18. Rio dos Pardos Porto União 50 Xokleng Área homologada – 758,26
hectares
19.
Toldo Pinhal I e II
Seara
Arvoredo
Paial
120
Kaingang
Área homologada – 880
hectares
Área identificada – 4000
hectares
20.
Toldo Chimbangue I e II
Chapecó
350
Kaingang
Área registrada – 988
hectares
Área demarcada – 975
hectares
21. Kondá Chapecó 280 Kaingang Reserva Indígena – 2.300
hectares
22. Toldo Imbu Abelardo Luz 180 Kaingang Área delimitada – 1.965
hectares
23.
Terra Indígena Xapecó
(Xapecozinho/Canhadão
/Pinhalzinho)
Ipuaçu
Abelardo Luz
3.800
Kaingang
Área homologada – 15.623
hectares. Glebas Canhadão
e Pinhalzinho em
identificação.
24.
Limeira
Entre Rios
300
Guarani
Ocupação de parte da
Terra Indígena Xapecó.
Reivindicação de área
própria
25.
Araçaí
Saudades
Cunha Po
---
(70 – Toldo
Chimbangue II)
Guarani
Área delimitada
2.721 hectares.
43
Fonte: MU/UFSC, Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul (Equipe Palhoça) e FUNASA.
* Os dados sobre a população podem diferir do Quadro 1, pois sua variação está ligada às datas de
elaboração do registro.
O quadro anterior mostra as situações diferenciadas em relação ao contexto
fundiário dos locais de ocupação guarani. Percebe-se que unicamente duas áreas foram
homologadas, uma delas (Marangatu) através da compra da terra como medida
mitigadora pelo impacto da construção do Gasoduto Bolívia-Brasil (Litaiff et al, 1999).
Como foi apontado anteriormente, este processo de ocupação responde tanto
às necessidades físicas e culturais dos Guarani na procura de espaços de mata
preservada, quanto a um direito de reivindicação do espaço tradicional. Se a
reterritorialização é uma resposta à desterritorialização, como propõe Garlet (1997),
então é necessário que os Mbyá ofereçam uma explicação, em seus termos culturais,
sobre a retomada e incorporação de espaços. Assim, o litoral catarinense hoje vem
sofrendo um processo dere-guaranização”, ou noutras palavras, de re-significação
cultural, considerado além de um território mítico-histórico, como um espaço de luta
política perante a sociedade nacional (Darella, 2004:160).
A exigência pela demarcação de terras e o reconhecimento delas como espaços
tradicionais são alguns dos principais motivos da ocupação Mb no litoral. Este
processo de ocupação, porém, não segue uma seqüência aleatória, mas sim a estratégias
e lógicas próprias nas quais a organização sociopolítica baseada as redes de parentesco
manifesta os fundamentos dos assentamentos. Como demonstra a pesquisa de Mello
(2001), através dos depoimentos de seus colaboradores Guarani, a aldeia de Morro dos
Cavalos foi o núcleo que articulou uma série de ocupações posteriores de famílias
nucleares e extensas, processo que continua até os dias atuais.
1.4. A formação de Massiambu e Marangatu
Segundo Darella (2004:229), tanto o intuito dos Guarani de viver em áreas florestadas,
especialmente dentro da UCA Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, quanto as
expectativas de regularizar a situação fundiária de terras guarani no litoral durante a
década de 1990, contribuíram para a intensificação dos deslocamentos de famílias,
principalmente em direção ao Morro dos Cavalos. Durante a década de 1980, o processo
de ocupação intensiva perece ter sido iniciado pelo grupo familiar liderado por
Francisco Timóteo Kirimaco, o qual se deslocou do Rio Grande do Sul para Santa
44
Catarina. Este deslocamento foi a referência para outros grupos que continuaram o
percurso até São Paulo, e retornaram depois em diversos períodos (Ladeira, 1991 apud
Darella, 2004:227).
Em 1991 a família extensa Mbyá de Augusto da Silva (Karai Tataendy) e Maria
Guimarães (Para’i) deslocou-se da aldeia Cantagalo, RS, para Terra Fraca, município de
Palhoça, com a pretensão de entrar no Parque Estadual da Serra do Tabuleiro e formar
um tekoa longe do contato com o jurua (Darella, 2004:228). Augusto da Silva, sendo
cacique de Cantagalo, conduziu a sua família e a “outros parentes” até se assentar à
beira da BR 282, no acampamento denominado Terra Fraca.
49
A FATMA impediu a
família de chegar ao interior da UCA, tal como era seu principal desejo, o que levou
seus membros a permanecer no local por cerca de um ano, tendo como formas de
sobrevivência apenas a venda do artesanato e doações. Diante de tais condições, foram
efetivadas várias ações por parte de diversas agências de apoio.
Augusto da Silva, no seu papel de liderança política, articulou-se com várias
agências de apoio: FUNAI, MU/UFSC, Gabinete do Deputado Estadual Vilson Santin,
Fórum de Palhoça, Prefeitura Municipal de Palhoça e a associação filantrópica
Orionópolis Catarinense (ibid: 230). Em conjunto, as agências conseguiram destinar aos
Mbyá uma propriedade de 4,5 ha., denominada Massiambu, que tinha sido seqüestrada
judicialmente pelo município de Palhoça por motivo de ser utilizada como depósito de
entorpecentes (Litaiff, et al, 1999:23; Darella, 2004: 230; Bertho, 2005:156). A
ocupação definitiva da área foi em janeiro de 1994, depois que em dezembro de 1993 a
FUNAI de Curitiba passou a ser a depositária fiel da área.
50
A ocupação de Massiambu incentivou o deslocamento das famílias aparentadas
à família extensa de Augusto da Silva e Maria Guimarães, assim como de outras não
vinculadas pela via do parentesco. O crescimento demográfico foi visível tanto em
Massiambu quanto no Morro dos Cavalos, sendo que o terreno da segunda aldeia às
vezes servia de roça da primeira (Farias, 1997:25). As primeiras famílias que ocuparam
49
Segundo o depoimento de Darci Lino Gimenes, sua família e a de Timóteo de Oliveira (cunhado dele),
chegaram de Cantagalo para Terra Fraca dois anos depois da ocupação da família de Augusto e Maria;
posteriormente foram os primeiros ocupantes de Massiambu no ano de 1994. Um ano depois, as famílias
de Darci e de Timóteo se mudaram para Morro dos Cavalos. A ocupação de estas famílias em Tekoa
Marangatu deu-se em tempos diferenciados (ver tópico 3.2. do capítulo 3).
50
Depois do relatório de Ladeira em 1991 sobre a regularização fundiária em Santa Catarina, no qual
mostrou a intensa ocupação guarani, assim como a visibilidade e importância dos tekoa Morro dos
Cavalos, Massiambu e Mbiguaçu, o Presidente da FUNAI declarou que a Administração Regional de
Curitiba jurisdicionasse sobre estas áreas através da Portaria 0759/PRES do 24 de agosto de 1994 (Litaiff
et al, 1999:20)
45
Massiambu foram aquelas que anteriormente residiam em Terra Fraca: Darci Lino
Gimenes e Marta de Oliveira, Timóteo de Oliveira e Luiza Benite, Narciso de Oliveira e
Hilda Benite, enquanto Augusto da Silva e Maria Guimarães mantinham a liderança
política e religiosa das duas aldeias (Darella, 2004: 230-231). Os núcleos famílias que
vieram compondo a população de Massiambu e Morro dos Cavalos, vinculadas às
famílias extensas acima referenciadas, eram provenientes dos estados de Rio Grande do
Sul, Paraná e interior de Santa Catarina, assim como de Misiones (Argentina) e
Paraguai (Bertho, 2005:156). Outras três famílias extensas chegaram a Morro dos
Cavalos em 1995, transferidas pela FUNAI desde Rio do Meio em Itajaí (Darella,
2004:234).
Massiambu situa-se no entorno à UCA Parque Estadual da Serra do Tabuleiro,
enquanto que Morro dos Cavalos encontra-se dentro de seus limites. Na época esta
questão tornou-se o foco das discussões sobre a ocupação guarani dentro do parque.
Somado a isto, Walter Alberto Bensousan, que diz ser um dos proprietários da área
onde está situada a aldeia Morro dos Cavalos, utilizou uma série de instrumentos
jurídicos para alegar perante o Ministério Público do Estado de Santa Catarina que os
índios Guarani tinham invadido sua propriedade, acusando-os da degradação ambiental
(ibid: 231, nota 49). Perante as dificuldades jurídicas e da própria subsistência nas
aldeias, as lideranças Guarani aliadas a outros órgãos passaram a mobilizar-se a fim de
reivindicar a demarcação da terra indígena Morro dos Cavalos, dado a insistência de
Walter Alberto Bensousan e da FATMA para retirar os Guarani do local (Farias,
1997:26).
51
Em 1998 a FUNAI estabeleceu um convênio com a empresa Transportadora
Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil, pelo que a instituição indigenista emitiu a Portaria
441/PRES em junho de 1999, a qual estipulava na Cláusula sétima uma indenização de
R$ 120.000,00 para as aldeias Guarani de Massiambu, Morro dos Cavalos e Mbiguaçu,
sendo este o valor preestabelecido pela empresa (Litaiff et al. 1999; Darella, 2004:236).
51
Pela existência das lideranças Guarani, em 1995 apresentou-se o primeiro relatório do GT da FUNAI
sobre a identificação delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos através da Portaria 973/PRES, o
qual, após sua publicação os representantes Guarani manifestaram-se contrários aos limites definidos
(121,8 ha.). Pela solicitação das lideranças Guarani, no ano 2002 apresentou-se um segundo relatório
mediante a Portaria 838/PRES, o qual define os limites aceitos pela comunidade guarani (1,988 ha.)
(Ladeira, 2002: Relatório). Atualmente a Portaria Declaratória de demarcação da Terra Indígena Morro
dos Cavalos está esperando ser assinada pelo Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, quem tem
atrasado o processo desde outubro de 2003. Em 2006, a consultora o Ministério de Justiça, Cristiane
Schineider Calderon, devolveu o processo à FUNAI, determinando assim a elaboração de um novo laudo
antropológico.
46
A indenização, considerada como medida compensatória, não incluía as aldeias situadas
no litoral norte, as quais estavam mais próximas à canalização. No início das
negociações, as lideranças indígenas destas aldeias não aceitaram o valor da indenização
proposta pela empresa empreendedora do projeto, mesma que manifestou que o valor da
indenização não era negociável. Finalmente, as lideranças guarani das aldeias
beneficiadas concordaram com a empresa Transportadora e a FUNAI que a indenização
seria destinada integralmente para a aquisição de áreas.
52
O relatório correspondente à compra da terra sob a coordenação de Aldo Litaiff
(et al. 1999), antropólogo do MU/UFSC, assinala a aceitação das lideranças Mbyá em
relação à área escolhida por eles mesmos. Dos 10 locais que foram visitados pelo GT
junto com as lideranças Mbyá nos municípios de Paulo Lopes, São Bonifácio, Biguaçu,
Palhoça, Imaruí e Imbituba, os Guarani escolheram uma área de 67,80 ha.
53
denominada
Cachoeira dos Inácios, localizada no município de Imaruí. A escolha da área adquirida
deu-se através de um conselho participativo formado pela comunidade Mbyá, os
representantes do CIMI, UFSC, FUNAI e INCRA (ibid: 84). Em 2000 os membros de
três famílias extensas chegaram como primeiros habitantes da nova área. Estes eram as
famílias de Augusto da Silva e Maria Guimarães, Carlitos Pereira e Rosa Domingues,
assim como parentes vinculados à família de Timóteo de Oliveira e Luiza Benite. A
nova aldeia foi denominada pela senhora Maria Guimarães como Tekoa Marangatu.
É interessante notar no relatório os parâmetros adotados pelo grupo técnico em
relação à escolha do local, entre os quais destacam a fertilidade do solo com recursos
naturais suficientes e renováveis (ibid: 4-8), mesmo que anos após a ocupação da área
fossem comprovados ser insuficientes para a sustentabilidade das famílias que chegaram
a morar posteriormente (Darella, 2004:238; Bertho, 2005:160).
O Tekoa Marangatu é um caso sui generis por seu caráter jurídico, a forma como
foi ocupado e principalmente, as percepções positivas e negativas sobre a concepção de
“terra tradicional” que se desdobram a partir da aquisição de áreas. Este último aspecto
tem trazido à tona uma série de controvérsias entre o órgão indigenista, as agências de
apoio e os próprios Mbyá, situação que havia sido percebida anteriormente pelo GT e
que está manifesta no relatório. O relatório do GT (Litaiff, et al. 1999) expressa o
52
Darella (2004:237) argumenta que a aceitação das lideranças guarani em SC, com relação à aquisição
de áreas se deva possivelmente aos posicionamentos dos Mbyá durante a audiência pública ocorrida na
Procuradoria em Porto Alegre em 1997, os quais consideravam a compra de terras como uma utilização
positiva dos recursos disponibilizados a razão de indenizações.
53
Conforme consta no relatório de eleição de área (Litaiff, et al, 1999:74)
47
impasse jurídico entre o que diz o artigo 231, parágrafo 1
o
da Constituição Federal de
1988,
54
e o contexto real das áreas ocupadas pelos Guarani, “as quais carecem da maior
parte dos requisitos previstos no citado artigo”, nos termos que a lei exige. Por tal
motivo, o relatório e a escolha da área realizou-se de tal forma que o procedimento
encaixasse na maioria dos pré-requisitos previstos na Constituição (ibid: 6). Assim, o
processo da compra das áreas hoje destinadas à população indígena representa um outro
status jurídico que não reconhece plenamente o caráter de ocupação tradicional
(Briguenti, 2004), embora possa representar uma possibilidade real de melhoria nas
condições de subsistência dos grupos índios, conforme o que se pretendia com a
aquisição da área de Tekoa Marangatu.
Desta maneira, o procedimento de compra de terras a partir da experiência de
Tekoa Marangatu expressa duas questões a considerar. Por um lado, é evidente que a
atual legislação indigenista não responde à realidade dos Guarani, especificamente ao
sistema tradicional de ocupação da terra, o que obriga a adotar outros instrumentos que
sejam juridicamente mais flexíveis, mas onde o reconhecimento do direito à
“tradicionalidade” e o papel do Estado como responsável por reconhecer e garantir esse
direito não é plenamente efetivado. Por outro lado, a aquisição de áreas modifica o
sistema de ocupação tradicional na medida em que as obras de desenvolvimento
(construção de Gasoduto, duplicação de rodovias, e recentemente a construção de linhas
de transmissão elétrica) oferecem -via indenização- a possibilidade de garantir um local
permanente, mas sumamente limitado, cobrindo medianamente as necessidades físicas e
culturais do grupo. Por sua parte, a FUNAI considera que a aquisição de terras
destinadas para os Guarani mediante a indenização é a melhor opção para amenizar os
problemas fundiários, enquanto este órgão esquiva-se de sua responsabilidade em
responder aos processos constitucionais de identificação, delimitação e homologação de
terras indígenas. Em relação à violência institucional exercida pelo Estado brasileiro
sobre as populações indígenas, Silvio Coelho dos Santos (2006:8-9) contextualiza as
práticas oficiais de caráter antiindígena no estado de Santa Catarina:
"Em Santa Catarina, por exemplo, governantes e políticos assumiram posições
fortemente contrárias a efetivação da demarcação das terras identificadas como
indígenas. Nesse afã, procuraram tornar nulos os procedimentos estabelecidos no
54
Artigo 231: parágrafo 1: São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural,
segundo seus usos costumes e tradições (Constituição Federal, [1988] 1998:122)
48
Decreto 1775/96, sugerindo a formação de uma Comissão para discutir novos
encaminhamentos de demarcação. Parece que para esses atores políticos o que está na
Constituição não prevalece. Assim, em 2004, através da Portaria 2 711, o Ministro da
Justiça criou uma Comissão Interinstitucional 'com a finalidade de proceder a estudos e
ofertar sugestões à solução das questões indígenas no Estado de Santa Catarina'.
Incrivelmente, essa Comissão é presidida pelo Presidente da FUNAI, Mércio Gomes, e
conta com apenas um representante indígena. A intenção do governo de Santa Catarina
ao pleitear e conseguir a institucionalização dessa Comissão era a de bloquear as
demandas indígenas por demarcações ou redemarcações de terras no estado. Em 2005,
através da Portaria MJ 1 409, foram alterados os nomes de alguns integrantes dessa
Comissão. Seus objetivos, entretanto, continuaram os mesmos. A Assembléia
legislativa promoveu reuniões por mais de uma vez para manifestar a contrariedade da
maioria de seus membros contra as pretensões indígenas. E o governo estadual, através
de sua Secretaria de Articulação Nacional, cujo o secretário era Valdir Colatto, recém-
eleito deputado federal, exerceu forte pressão para o Ministério da Justiça paralisar os
processos de demarcação/redemarcação que ali tramitavam. O lobbie antiindígena
catarinense, pois, prossegue incólume."
Embora a escolha do espaço físico tenha sido efetuada in situ pelos próprios
Guarani no caso de Tekoa Marangatu, se reconhece que a mata dessas propriedades é de
formação secundária, quer dizer, não é mais mata nativa, o qual impossibilita a total
auto-subsistência do grupo segundo suas estruturas econômicas e culturais. Além disso,
a escolha de áreas está sujeita à intensa especulação imobiliária, à oferta e a demanda
dos terrenos disponíveis que não são suficientemente adequadas para satisfazer as
necessidades do grupo.
Com motivo das obras da duplicação da BR 101, os Guarani das aldeias do
litoral começaram a marcar presença perante a sociedade e o Estado, manifestando o
direito à demarcação de suas áreas. Os Estudos de Impacto Ambiental (EIA), divididos
em duas partes – trechos norte: Garuva ⁄ Palhoça; e trecho sul: Palhoça/SC Osório/RS -
mostraram a presença guarani, sua ocupação tradicional e os transtornos que provocaria
a duplicação da rodovia às aldeias em termos ambientais, sociais e econômicos. Visto
isso, atingiu-se um consenso no seio da comunidade guarani: a demarcação das terras.
Certamente os Guarani não se opunham à duplicação da rodovia, mas exigiam que fosse
garantido seu direito de permanecer nos locais por eles ocupados.
A via mais fácil que achou o governo federal através do Departamento Nacional
de Infra-estrutura de Transportes (DNIT) para efetuar as obras de duplicação da BR
101, foi oferecer uma indenização às aldeias, mediante a qual seria garantida a aquisição
de áreas. O convênio assinado entre DNIT e FUNAI em seis de dezembro de 2002,
trouxe à tona a discussão acerca do modo como as áreas seriam demarcadas: se por via
de aquisição ou pela identificação (Darella, 2004:275). Ao mesmo tempo, o tema estava
sendo discutido nas aldeias pelos próprios guarani, tendo diversos posicionamentos,
49
principalmente divergentes entre as velhas e as novas lideranças. Perante a precária
situação econômica vivenciada nas aldeias, as velhas lideranças consideravam que a
aquisição de áreas traria a solução, em detrimento de reconhecer ditas áreas como
tradicionais. as lideranças mais jovens se posicionaram contra a compra das terras,
pois tendo um conhecimento mais profundo da legislação, tentavam reivindicar seu
direito como povo à demarcação dos espaços por eles ocupados.
55
Dado a isso, torna-se
impossível desconsiderar as intervenções de diversos órgãos. A FUNAI realizou
reuniões de aldeia em aldeia, ao invés de organizar um encontro conjunto, tentando
convencer aos Guarani que a aquisição seria a via mais segura e rápida na garantia de
seu espaço. A FUNAI, a despeito de seus esforços, não conseguiu chegar a um
consenso. O CIMI, por sua vez, incentivava às lideranças mais jovens a não reconhecer
a compra como a melhor opção e a reivindicar cada vez mais intensamente seu direito
aos processos constitucionais de identificação e demarcação.
Em suma, o que pareceria ser divergências e desencontros entre os Guarani em
relação à compra e/ou identificação de terras é, na realidade, a efetivação de estratégias
para se apropriar de mais espaços. O consenso alcançado nas aldeias, entre lideranças
velhas e jovens, simpatizantes e agentes, foi o da aquisição de terras independentemente
dos processos de identificação e demarcação das áreas ocupadas. Ou seja, as
reivindicações continuam latentes, enquanto um outro processo de ocupação –via
aquisição- é aceita pelos Guarani, amenizando conflitos e garantindo espaços.
No momento da pesquisa, as aldeias de Cambirela, Massiambu, Morro dos
Cavalos e Tekoa Marangatu esperam o dinheiro da indenização pelas obras de
duplicação da BR 101 por parte do DNIT.
56
Ao longo do ano 2006, uma equipe formada
por funcionários da FUNAI, da Procuradoria da República e do INCRA, acompanhou
os caciques de cada uma das aldeias, na escolha das áreas que serão adquiridas
posteriormente, processo similar ao efetivado no caso de escolha da área em Tekoa
Marangatu. Por outro lado, as aldeias continuam à espera da identificação, delimitação e
55
Num sentido subjetivo e desvinculado à atuação das ONGs e antropólogos, as lideranças jovens
também aceitam a compra de terras, porém, utilizam conotações mais flexíveis sobre o que consideram
como “terra tradicional”, adequando a realidade vivenciada nos processos de ocupação e os termos
jurídicos contidos na Constituição.
56
O Convênio DNIT/FUNAI do 6 de dezembro de 2002, estabelece a cifra de R$ 11.000.000.00 de
indenização para oito aldeias guarani (quatro em SC e outras quatro em RS).
50
homologação de suas terras; processos que por enquanto permanecem retidos em
diversas instâncias da FUNAI
57
ou do Ministério de Justiça.
58
1.4.1. Massiambu
Tanto Maristela D. Honczaryk Farias (1997) quanto o Márcia C. Rosatto (1998)
mostraram a necessidade de regularizar a situação fundiária da aldeia de Massiambu
(localizada numa área seqüestrada), pois apresenta uma ocupação tradicional em termos
de uso da terra, além das referências à ocupação histórica. Atualmente se espera que a
FUNAI forme um GT e realize o processo de identificação e delimitação. Porém, as 13
famílias nucleares que vivem hoje no local, esperam a indenização da “duplicação” para
“comprar outra terra”.
A aldeia de Massiambu não possui mata nativa. A pouca madeira que seus
membros conseguem, usada na construção de casas e como lenha, e a taquara para o
artesanato, são materiais trazidos dos terrenos vizinhos, onde alguns jurua lhes
permitem a entrada nas suas propriedades. A área de 4,5 ha. é insuficiente para realizar
atividades de agricultura necessárias para sustentar às famílias que moram na aldeia.
Porém, a “plantação”, mesmo pequena, não é uma atividade que os Mbyá esqueçam
facilmente. Embora a declividade do terreno dificulte o manejo agrícola tradicional
(Bertho, 2005:156), os Mbem Massiambu cultivam um pouco de milho, feijão, cana
de açúcar, batata doce, mandioca, laranjas e bananas. Dada a pouca disponibilidade de
terreno, às vezes a roça de Morros dos Cavalos é usufruída por algumas famílias de
Massiambu. Esta aldeia não é auto-suficiente em recursos naturais, e é por isso que o
local não é reconhecido como tekoa pelos próprios Mbyá, pois o reduzido local não
favorece a reprodução do “modo de ser guarani”.
Uma situação que continua até hoje -e que pude constatar durante minha
pesquisa de campo- é a dificuldade da obtenção de água potável em Massiambu. Este é
um problema de longa data, como mostra Farias no seu relatório (1997:32):
57
Administração Executiva Regional (AER) Coordenadora Geral de Identificação e Delimitação (CGID),
Diretoria de Assuntos Fundiários (DAF) Departamento de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente
(DEPIMA).
58
No caso das áreas demarcadas ou compradas (Mbiguaçu e Tekoa Marangatu, respectivamente)
reivindica-se a ampliação destas.
51
A água usada pelos índios é captada em fonte situada em terreno particular, do outro
lado da estrada, de onde é conduzida por gravidade, através de mangueiras até as caixas
d’água instaladas dentro da aldeia.
Dada a proximidade com o rio Massiambu, os moradores, principalmente jovens
e crianças, realizam a atividade de pesca. Apesar dos proprietários não negarem aos
Guarani o acesso ao rio, para estes é constrangedor ter que atravessar cercas de arame
para chegar a ele, assim como ver a natureza dividida e cercada. As atividades de caça,
embora escassa, apenas são realizadas como atividade complementar. Ainda é possível
caçar tatu e uma ou outra capivara em incursões às imediações do Parque Estadual.
Embora as atividades de subsistência tradicionais tenham sido substituídas pelas
atividades economicamente remuneradas, as primeiras continuam sendo um dos
principais indicadores da ocupação tradicional, como forma de manter o nhande reko,
“modo de ser guarani”. Tanto na pesca, na caça e na coleta de materiais para fazer
artesanato, os Mb de Massiambu excursionam ao Parque Estadual da Serra do
Tabuleiro, pois este é um dos poucos espaços onde ainda podem reproduzir suas
práticas tradicionais em relação à economia de subsistência guarani.
A principal fonte de renda das famílias em Massiambu, como na maioria das
aldeias guarani, é a venda de artesanato, a qual é realizada à beira da BR 101, na Casa
do Artesanato de Morro dos Cavalos. No momento da pesquisa, esta casa tinha sido
destruída por causa do tempo. Através do projeto VIGISUS II,
59
a aldeia Morro dos
Cavalos havia sido beneficiada com uma verba de R$ 30.000,00, com a qual seria
construída uma nova Casa do Artesanato. Enquanto esperam a construção desta, os
Guarani de ambas as aldeias vendem seus produtos apenas pendurados nas árvores,
sobre mesas e no chão na saída da aldeia à beira da rodovia. Porém, os Mbyá preferem
dirigir-se até as cidades mais próximas para vender seus artesanatos.
As apresentações do Coral em escolas, eventos públicos ou mesmo nas praças
das cidades é outra forma de obter recursos. As doações de instituições filantrópicas, ou
mesmo institucionais, assim como também feitas por particulares, contribuem a resolver
de maneira momentânea a dificuldades alimentares. Tais atividades assistencialistas,
porém, têm criado uma forte dependência ao consumo de produtos industrializados;
tanto é que, nas apresentações do Coral preferem receber doações de alimentos e roupa,
que dinheiro em efetivo, devido à dificuldade de repartir os benefícios de forma
eqüitativa no momento em que retornam à aldeia. Em relação à obtenção de recursos via
59
“Projetos de Iniciativas Comunitárias”, http://www.funasa.gov.br
52
doação, Massiambu é menos favorecida que Morro dos Cavalos, dado que a segunda
mantém uma maior “visibilidade” perante os jurua e suas instituições. Percebe-se que o
assistencialismo é uma prática interiorizada pelos Guarani, mas isso não significa que
eles gostem de reproduzir, e menos ainda de depender continuamente dela.
Outras formas de obter recursos estão vinculadas diretamente com as instituições
governamentais. Os programas institucionais, como Bolsa Família, as aposentadorias e
a merenda escolar são as principais fontes de renda e alimentação das famílias mbyá,
complementares às vendas do artesanato. As cestas básicas proporcionadas pela FUNAI
nunca são periódicas, e tampouco todas as famílias são beneficiadas. Na medida em que
os órgãos institucionais começam a ter atuação nas aldeias, ao mesmo tempo são
outorgados salários a alguns membros para que desenvolvam atividades vinculadas a
cada instituição. Assim, o Agente de Saúde se responsabiliza pelas funções realizadas
no Posto de Saúde; os professores (dois ou três) ministram aulas para as primeiras
séries.
Cacupe é o nome da escola de ensino fundamental na aldeia de Massiambu,
criada inicialmente em 1995 para aulas de 1
a
e 2
a
séries e que gradativamente atingiu a
5
a
série (Rosatto: 1998:86). Um ano depois foi criado o cleo de Educação Indígena,
regulamentando, assim, a educação diferenciada. Ainda Rosato (ibidem) registrou em
1998 que as aulas eram ministradas por professores brancos que recebiam assessorias
técnico-pedagógicas, apenas com apoio de Mb alfabetizados como monitores
bilíngües. Atualmente esta escola, assim como as demais escolas indígenas guarani, está
vinculada à Secretaria de Estado de Educação, Ciência e Tecnologia e as aulas são
ministradas por professores Mbyá, próprios da comunidade, que integram o Curso de
Formação de Professores Indígenas. Porém, o fato das escolas indígenas guarani hoje
efetuarem o ensino diferenciado, resulta de uma conquista atingida nestes últimos anos,
reforçada em parte pela formação de professores Mbyá no Magistério.
Uma outra forma de obter recursos é o trabalho assalariado. Esta atividade é
realizada principalmente pelos jovens e homens adultos, embora seja pouco recorrente
que os Mbyá se submetam por muito tempo ao controle dos patrões. Geralmente são os
jovens em sua passagem pela aldeia que procuram o trabalho remunerado. No caso de
Massiambu, alguns Mbyá trabalham na serraria que se localiza nas imediações do
Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, que extrai sua matéria prima do corte de árvores
das áreas no interior desta UCA. Os Mbyá, devido à mobilidade inter-aldeias preferem
53
não obter emprego fixo, aliás, optam por aceitar trabalhos temporários que não lhes
comprometam em sentir-se sujeitos a se assentar por muito tempo no mesmo local.
Em relação ao atendimento de saúde, até 1998 as aldeias do litoral de Santa
Catarina receberam assistência médica através do Serviço Único de Saúde (SUS) (ibid:
83). Uma equipe médica realizava visitas intermitentes cada quatro meses às aldeias de
Mbiguaçu, Morro dos Cavalos e Massiambu. Os guarani destas aldeias também
recebiam atendimento odontológico na Unidade de Saúde da Enseada de Brito, porém, o
relatório desta instituição expressa que “o atendimento de rotina da rede SUS, pouco é
procurado pelos índios, mesmo sendo orientados quanto ao acesso desses serviços, não
sendo habitual a procura, apenas nas emergências” (Freitas Cabral 1994, apud Rosatto:
1998:84). Este pouco interesse dos Guarani às instituições de saúde se deve, por uma
parte, a tentar manter suas práticas de cura tradicionais; por outro, a que as instituições
de Saúde públicas não realizam o atendimento diferenciado para a população indígena.
Em 1999 a FUNASA assumiu o atendimento médico da população indígena e
em 2000, em convênio com a Associação de ex-Rondonistas (Projeto Rondon),
começou a assistência nas aldeias no litoral catarinense, melhorando de sobremaneira o
tratamento diferenciado.
60
A partir desse ano, a aldeia de Massiambu tem recebido o
atendimento da equipe do Projeto Rondon, subsidiada pela FUNASA. Através de uma
doação, em 2004 foi construído o Posto de Saúde da aldeia.
Com o objetivo de diminuir a dependência econômica das aldeias à sociedade
envolvente, a equipe do Setor de Etnologia Indígena do Museu Universitário da UFSC,
junto como as lideranças de Massiambu e Morro dos Cavalos, Grupo Ação Social da
Paróquia Senhor Bom Jesus de Nazaré (Palhoça) e o Fundo de Mini-projetos Região Sul
(Lages), criou em 1996 o Projeto Milho Guarani (Darella, 2001). Este projeto
incentivava o cultivo de milho tradicional (avaxi ete), tentando preservar o
germoplasma nativo. Ao longo de quatro anos, as aldeias de Massiambu e Morro dos
Cavalos plantaram sementes tradicionais (milho, amendoim, melancia, batata doce,
abóbora, porongo e feijão).
61
No período de sua duração o projeto forneceu alimento às
aldeias e ao mesmo tempo criou-se um “banco de sementes”, que os Guarani guardaram
para plantar de novo. Porém, as atividades do projeto foram diminuindo devido à saída
60
Tanto é assim que hoje os Guarani reconhecem que entre as instituições que têm efetivado ações nas
aldeias, a que tem tido melhores resultados é o atendimento médico do Projeto Rondon, pois reconhecem
a especificidade cultural guarani.
61
Devido a pouca terra disponível para cultivar, o Centro de Ciências Agrárias da UFSC disponibilizou a
Fazenda Ressacada para o cultivo das sementes.
54
das famílias de Augusto da Silva e Carlitos Pereira para a terra comprada, em Tekoa
Marangatu. As expectativas da equipe era dar continuidade ao projeto, tal fosse assim,
para ser avaliado e apresentado no projeto Microbacias 2 na Secretaria de Estado da
Agricultura (SEA). Para que a SEA aprovasse um projeto dessa natureza, porém, as
áreas teriam que estar delimitadas e homologadas. O projeto Microbacias 2 tem atuação
hoje no Tekoa Marangatu.
No momento em que foi comprada a área de Tekoa Marangatu, deslocaram-se
para a nova aldeia as duas famílias extensas que moravam em Massiambu:
62
a de
Augusto da Silva e Maria Guimarães, e a de Carlitos Pereira e Rosa Domingues, além
de outras famílias que moravam em Morro dos Cavalos.
63
Embora a área de Massiambu
não seja considerada pelo grupo como um verdadeiro tekoa, o espaço e a aldeia
representam uma “referência para os parentes”. Por isso a saída destas famílias não
significou seu abandono: Massiambu foi ocupada pelo grupo parental de Marcílio
Mariano e Tereza Ortega, pais do atual cacique da aldeia, José Benite.
64
Segundo o censo levantado pelo Projeto Rondon-FUNASA no ano de 2006, a
população de Massiambu é de 44 pessoas, distribuídas em 13 núcleos residenciais.
Compõe-se do conjunto de parentes de Marcílio Mariano e Tereza Ortega,
65
e das duas
famílias nucleares descendentes da família extensa de Augusto da Silva: Afonso
Gerônimo da Silva e Sandra Benite, Anita da Silva e João Benite. Considerando que no
mês de junho Anita da Silva mudou-se para Tekoa Marangatu junto a seus pais e
irmãos, acompanhada com alguns de seus filhos, a população de Massiambu se reduz a
38 pessoas.
66
62
O relatório de Rossato (1998:75-81) menciona que a população de Massiambu contava em 1998 com
três famílias extensas: a) Augusto da Silva e Maria Guimarães; b) Julio da Silva e Marta Oliveira; e c)
Carlitos Pereira e Rosa Domingues. Após a saída da família de Augusto da Silva, tem que se considerar a
permanência em Massiambu de algumas famílias nucleares que formavam parte desta família extensa:
Márcia da Silva e Silvio Duarte, Anita da Silva e João Benite, Afonso Gerônimo da Silva e Sandra
Benite, cada casal com sua respectiva prole (ver Levantamento Populacional in: Litaiff et al, 1999: 59-61)
63
As famílias que saíram de Morro dos Cavalos para ocupar Tekoa Marangatu inicialmente foram
Timóteo de Oliveira e Luiza Benite; posteriormente Narciso de Oliveira e Ilda Benitez, depois Darci Lino
Gimenes e Marta Oliveira, e recentemente Alcindo Gonçalves e Teresa Tibe.
64
José Benite é professor bilíngüe guarani, coordenador pedagógico no Magistério de Formação de
Professores Indígenas, e vice-presidente do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPIN). Junto com
Leonardo Wera Tupã e Hyral Moreira, José Benite faz parte do conjunto de lideranças com maior
representatividade no âmbito político inter-cultural.
65
No momento da pesquisa, Marcílio Mariano tinha abandonado a aldeia, para residir em Morro
Alto⁄Laranjeiras e contrair segundas núpcias.
66
Até agora o marido de Anita da Silva, João Benite, não se define em ir a morar a Tekoa Marangatu ou
permanecer em Massiambu.
55
1.4.2. Tekoa Marangatu
O Tekoa Marangatu tem uma preponderância significativa entre as demais aldeias do
litoral, dado que nele é possível viver e “manter um pouco o modo de ser guarani”.
67
Os Mb manifestam que os recursos da área (67,80 ha.), que dista de 2,5 km dos
limites do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, são insuficientes para manter em
totalidade seu sistema e forma de vida tradicional, dado que as matas já são de formação
secundária e não mais mata nativa, embora, devido a suas características geográficas,
favoreça aos Guarani na medida em que permite a estes o acesso a áreas um pouco mais
preservadas e um relativo afastamento da sociedade nacional.
O principal afluente hidrográfico, mesmo que cruza a área pelo meio, é
Cachoeira dos Inácios, que nasce no interior da UCA. O terreno é ondulado e as casas
foram construídas nos lados do vale por onde escoa o rio.
Desde que foi adquirida, a área contava com luz elétrica e um galpão para
máquinas que durante os primeiros tempos da ocupação serviu de “grande oca” dos
primeiros moradores.
68
A área destinada para a lavoura era pouca. A maior parte da
área estava, e ainda está reflorestada com cerca de 30.000 pés de eucalipto e pinos, cuja
madeira era vendida pelo proprietário. Algumas destas árvores serviram para construir
as primeiras casas.
A pesca, a caça e a colheita são práticas que os Mbyá realizam com maior
freqüência em relação às outras aldeias, logicamente pela disponibilidade dos recursos.
Porém, as incursões ao Parque Estadual da Serra do Tabuleiro são pouco freqüentes.
Isto se dá primeiro pelas advertências da FATMA de manter a proibição do ingresso aos
Guarani;
69
por outro, reconhecem que “já o branco acabou com tudo, não tem mais
bichinho na mata, nem mel”. Porém, os Mbyá não deixam de realizar estas incursões,
principalmente na busca de remédios e ervas medicinais, de alguns animais de pequeno
67
Esta preponderância é compartilhada com a aldeia de Mbiguaçu. Note-se que ambas gozam de
situações fundiárias mais estáveis, portanto, m maior acesso aos recursos naturais e a possibilidade de
realizar labores agrícolas, de caça, pesca e colheita.
68
A área possuía uma residência quando foi adquirida, a qual foi destruída no momento da ocupação
pelos Mbyá, possivelmente devido ao rechaço dos elementos jurua pelos Guarani dentro dos tekoa.
Porém esta percepção tem sido mudada pelos Guarani, principalmente entre os caciques, que neste
momento esperam a indenização da duplicação” para adquirir novas áreas. A maioria das áreas a serem
adquiridas possui um ou dois imóveis, os quais são de interesse dos caciques para constituir suas
moradias.
69
Os Mbyá constantemente manifestam temor a entrar em conflito com o “exército” ou a polícia.
56
porte para caçar, e mais freqüentemente para obter matéria prima para a confecção de
artesanato.
Como na aldeia de Massiambu e nas demais aldeias guarani, a confecção de
artesanato é a principal atividade econômica. Porém, em Tekoa Marangatu este trabalho
é realizado com maior sossego, dado que existem outras atividades complementares.
Estas tarefas, além de serem reprodutoras da sustentabilidade tradicional, embora
escassas, são também desestruturadoras da dependência gerada pelo contato interétnico
e a economia ocidental. Conforme apontado anteriormente, estas atividades são a caça,
a pesca e a coleta, por um lado, e a agricultura por outro.
Em Tekoa Marangatu uma área de 4 ha. aproximadamente destinada para as
atividades agrícolas.
70
Dada a pouca disponibilidade do terreno, os cultivos sempre são
realizados no mesmo espaço, impossibilitando a rotação das roças e ocasionando o
empobrecimento do solo e sua erosão. Certamente, esta é uma prática que não responde
aos métodos agrícolas dos Mb, que por sua vez praticam tradicionalmente o sistema
rotativo de roça. Desde o começo da ocupação em 1999, esta porção da área foi
cultivada pelos Mb com milho, feijão, melancia, abóbora, batata doce, cana e
bananas, incluindo algumas árvores frutíferas; porém a colheita da segunda roça
diminuiu em qualidade e quantidade, o que impulsionou aos Mbyá para efetivar projetos
em parceria com instituições (Bertho, 2005:159).
Em 2002 efetivou-se o Projeto de Extensão Sem Tekoa não há Tekó-Sem Terra
não cultura”, coordenado pelo antropólogo Aldo Litaiff e a equipe multidisciplinar
do MU/UFSC. Com uma verba de R$ 4.000,00, o objetivo deste projeto era fornecer
2.000 mudas de árvores frutíferas para serem plantadas na área, obter sementes
tradicionais através de viagens inter-aldeias, comprar ferramentas para as labores
agrícolas e enriquecer o solo com composto orgânico ao invés da utilização de
“venenos” (agrotóxicos). Este projeto trouxe resultados positivos, principalmente no
sentido da obtenção de alimentos em relação a manter o sistema agrícola guarani.
Porém, sua intervenção trouxe transformações na organização sociopolítica da aldeia,
favorecendo a emergência de novas lideranças políticas que se vincularam a este projeto
(e posteriores) para obter prestigio.
71
70
Além desta área de propriedade coletiva destinada para as labores agrícolas, ao lado de cada uma das
residências, cada família possui um terreno no qual cultiva para o consumo familiar ao qual chamam de
kokue (roça).
71
No momento da implantação do projeto, o cacique era Augusto da Silva, enquanto a função de vice-
cacique cabia a Timóteo de Oliveira, o qual se desenvolvia como intermediário secundário (mas não por
57
Gradativamente as instituições começaram a efetivar projetos conjuntos aos
Guarani no Tekoa Marangatu, principalmente na segurança alimentar, a
autosustentabilidade e a saúde. O convênio Projeto Rondon/FUNASA
“Autosustentação, Renda e Saneamento” começou em 2002. A equipe estava
conformada por agrônomos e voluntários.
72
Os resultados foram a construção de
banheiros, fossas sépticas e caixas d’água e encanamento. O relatório desta primeira
fase do projeto “Produção de Alimentos com autosustentabilidade” (2002), mostra que
as seis glebas foram cultivadas com milho, feijão, pepino, repolho, acelga, alface,
moranga, abóbora, cana e plantas medicinais. Também foi construído um ude para a
criação de peixes e foi doada uma máquina de extração de caldo de cana. Depois de
cinco anos da implementação do projeto, os agrônomos mostraram-se satisfeitos com o
“excelente desempenho na aprendizagem das técnicas necessárias que visam à obtenção
da mais alta produtividade” (Projeto Rondon/FUNASA, 2005). Porém, o projeto tem
aspectos a se considerar. Primeiro, a noção dos agrônomos sobre auto-sustentabilidade
era gerar alimentos não para auto-consumo, mas para que os excedentes fossem
introduzidos ao mercado e assim contribuir com outras fontes de renda para as famílias,
situação à qual os Mbse opuseram, explicando que “plantamos para comer”.
73
Em
segundo lugar, o Projeto Rondon/FUNASA introduz maquinaria para preparar a terra,
calcário e adubação nitrogenada, assim como outros agentes para incrementar a
fertilidade do solo. A utilização destes insumos talvez tenha-se tornado necessária
devido à limitação do espaço para plantar, assim como da impossibilidade de realizar
roças rotativas, como é o sistema agrícola guarani. Um outro aspecto é que os
agrônomos e as instituições fornecem as mudas e sementes sem considerar as
necessidades alimentares próprias da cultura Guarani. Isto reflete no pouco interesse dos
Mbyá em consumir os produtos das hortaliças (alface, repolho, pepino, etc.), preferindo
mais os produtos de plantação tradicional (milho, batata doce, aipim, abóbora).
isso menos importante) com os jurua durante a realização deste projeto. A equipe do projeto MU⁄UFSC
passou a ser percebida como agentes que beneficiaram principalmente à família do cacique, ou seja,
Augusto da Silva. Devido à doença e à paulatina perda de prestigio social e religioso, Augusto foi
obrigado a abandonar sua função de cacique no ano de 2005, situação que contribuiu para que Timóteo o
substituísse na função e obtivesse maior prestigio social como representante político, reforçando ao
mesmo tempo sua posição enquanto xamã. Na conjuntura política pela troca de caciques, o projeto aqui
referenciado foi utilizado por Timóteo como um argumento em contra de Augusto, pois se percebeu que o
grupo familiar do ex-cacique foi favorecido tanto pela aquisição da área como pelo desenvolvimento de
projetos. Este aspecto será melhor explicado no tópico 2.3.1. do segundo capítulo.
72
José Paulo Brito, engenheiro agrícola e supervisor do Projeto Rondon SC; João Afonso Zanini Neto,
engenheiro agrícola, Consultor Técnico.
73
Timóteo de Oliveira in Berto (2005:164.)
58
A partir da minha observação do desempenho do projeto Microbacias 2 no ano
de 2006, a visão dos agrônomos e funcionários da EPAGRI/FUNAI/FUNASA parece
ter mudado pouco. Isto é resultado de vários fatores: primeiro o desconhecimento do
sistema agrícola guarani por parte das instituições, as quais querem ensinar aos Mb
técnicas modernas de cultivo e preservação das matas, desprivilegiando o conhecimento
do manejo agrícola e etno-florestal mbyá;
74
segundo, a pouca disponibilidade de terra
que impede o sistema rotativo de roças, tendo que usufruir constantemente a mesma
área, provocando seu empobrecimento e a conseqüente dependência aos fertilizantes e
outros insumos; terceiro, a reprodução de um sistema burocrático que obriga os Guarani
a aceitarem qualquer apoio, mesmo que esses não correspondam a seus próprios
interesses. Porém, nenhum projeto tem sido suficiente para atingir a segurança alimentar
na aldeia, embora sejam medidas compensatórias e paliativas que contribuem a
minimizar a precária situação alimentícia.
Existe ainda um outro projeto: aquele dos próprios Mbyá, o qual parece ter
trazido satisfação à maioria dos moradores do Tekoa Marangatu. Em 2004 o projeto
Microbacias tinha obtido verba para a construção de casas (paredes de tabua e chão de
cimento) para cada uma das famílias nucleares, fornecendo o material e as despesas para
o trabalho em mutirão. O dinheiro, entretanto, não era suficiente para a obtenção de
telha. Assim, depois de ter convocado uma reunião e discutir sobre o assunto, a
comunidade resolveu que através da Associação de Moradores do Tekoa Marangatu,
criada em 22 de abril de 2004, se cortasse e vendesse parte dos eucaliptos e pinos
existentes na área. Conscientes de que o corte destas árvores não representava perigo
nenhum para a preservação da mata, dado que era já resultado de reflorestamento
constante por parte do antigo dono, os próprios Mbyá conseguiram obter R$ 13.600,00
da venda da madeira,
75
com o que foi possível comprar telha para todas as casas, “e
guardamo o trocadinho no banco depois”, como explica um membro da associação. O
resultado desta experiência parece ter sido positivo, no sentido em que os próprios
Mbyá se consideraram plenamente autônomos de realizar a transação sem a intervenção
de instituições. Por outro lado também trouxe diversas discussões, pois a construção
destas casas era considerada por alguns como do estilo jurua, em detrimento da
arquitetura tradicional guarani.
74
Durante minha pesquisa de campo em Tekoa Marangatu, o agrônomo da EPAGRI explicou às crianças
da escola como restabelecer a mata ciliar através do reflorestamento de árvores frutíferas.
75
Eu tenho algumas dúvidas sobre esta cifra, porém, este dado fornecido pelos próprios colaboradores
Mbyá é o único do qual disponho.
59
Em relação ao ensino escolar, nos primeiros tempos da ocupação os moradores
se opunham à construção de escola “do jurua”, ao manifestar que a educação guarani
era suficiente para as crianças e não queriam a intervenção de professores brancos.
Porém, depois de várias reuniões no ano de 2001 entre as lideranças Mb com a
Secretaria de Educação do Estado e a Comissão de Apoio aos Povos Indígenas (CAPI),
a educação bilíngüe e diferenciada começou a ter aceitação pelos Guarani. Atualmente a
escola do Tekoa Marangatu tem um professor bilíngüe guarani, Nico de Oliveira Werá
Miri, e uma professora branca, Maria Fátima Simão Ramos, que ministram aulas de 1
a
a
4
a
série. Uma reivindicação atual da Associação de Pais são as aulas para 5
a
série,
porém, ainda não se efetivam perante a negativa da GEREI de Laguna, a qual
argumenta que ainda não professores bilíngües capacitados para ministrar a grade
exigida pela Secretaria de Estado da Educação, Ciência e Tecnologia,
76
além de que não
permite a contratação de mais de 3 professores, sendo que dois deles devem ser
designados pela GEREI (ou seja, os brancos) e um indígena que cumpra apenas o papel
de monitor.
77
No ano letivo 2006 foram matriculados 32 alunos desde a 1
a
até a 4
a
série.
Um outro aspecto a se notar é o incremento da população em Tekoa Marangatu.
No momento da ocupação da área em 1999, somavam 37 pessoas (Litaiff, et al
1999:59-61), que compunham as famílias extensas de Augusto da Silva e Maria
Guimarães, a de Carlitos Pereira e Rosa Domingues, e Timoteo de Oliveira e Luiza
Benite junto com um grupo de parentes; em 2002 a população ascendeu a 68 indivíduos,
com a permanência na área do irmão de Timóteo, Narciso de Oliveira e sua esposa
Hilda Benite; em 2003 somavam 76 e em 2005 eram 120 (Bertho, 2005:160). No
momento da pesquisa, meu levantamento projetou que a população era de 150 pessoas,
compondo 30 núcleos residenciais (casas) de famílias nucleares. Sem adiantar muito ao
que será explicado no capítulo seguinte, atualmente o Tekoa Marangatu escomposto
por 10 famílias extensas, compondo a morfologia da aldeia por grupos residenciais
(Anexos: levantamento demográfico),
78
vinculadas uma a outra em graus de
76
A grade inclui: Português, Artes, Educação Física, Geografia, História, Ensino Religioso (neste caso
condicionado à religião guarani), Inglês (neste caso substituído por Guarani), Matemáticas e Ciências.
77
Neste ano esperava-se a contratação do professor bilíngüe guarani Eduardo da Silva, filho de Augusto
da Silva, quem tinha chegado recentemente de Massiambu onde antigamente ministrava.
78
1) Augusto da Silva e Maria Guimarães; 2) Macário Guimarães e Teresa Vilhalva; 3) Alcindo
Gonçalves e Teresa Tibe 4) Jorge de Oliveira e Vitória Moreira; 5) Mario Guimarães e Anita da Silva; 6)
Alcides Oliveira (Jacaré) e Irma da Silva; 7) Alcides da Silva e Abelina da Silva; 8) Darci Lino Gimenes
e Marta de Oliveira; 9) Timóteo de Oliveira e Luiza Benites; 10) Narciso de Oliveira e Hilda Benite. As
definições de termos de parentesco e da família extensa serão tratadas no segundo capítulo.
60
consangüinidade ou afinidade, mas que se definem em torno as duas lideranças
políticas: Augusto da Silva e Timóteo de Oliveira.
O incremento demográfico em Tekoa Marangatu responde a vários fatores, tanto
de ordem interna quanto externa. O principal é a disponibilidade que oferece a área em
termos de recursos naturais, ao mesmo tempo em que estes podem ser usufruídos de
forma tradicional. Outro aspecto é de ordem sociopolítica, uma vez que o prestigio das
lideranças e suas relações de parentesco, provocam o deslocamento de famílias e
parentes provenientes de outras aldeias. Este aspecto, não fortalece unicamente o
prestigio de determinada liderança, mas intensifica as relações entre os membros de
uma mesma família extensa. Dentro dos fatores de ordem externa, aqui nos referimos à
segurança jurídica da área, assim como a realização de projetos empreendidos por
diversos órgãos (MU⁄UFSC, Projeto Rondon⁄FUNASA, EPAGRI, Secretaria de
Educação Estadual, etc.) embora todos estes aspectos tenham significados distintos para
os atores envolvidos. A realização de projetos produz a emergência de jovens
lideranças, vinculadas às instituições de assistência e atendimento, favorecendo a
produção de prestígio destas lideranças. Talvez isto tenha pouca influência de ordem
interna, porém não é desdenhável para quem procura mostrar sua capacidade de falar:
convencer os parentes da necessidade de certo projeto, relacionar-se com os jurua e
fazer-lhes entender o “modo de ser guarani”.
61
CAPÍTULO 2
PARENTESCO E LIDERANÇA
No capítulo anterior tratamos como o litoral catarinense, sobretudo nas últimas duas
décadas, vem experimentando um processo de reterritorialização guarani. Este processo
de reterritorialização não se efetua de forma aleatória, mas obedece a lógicas e
estratégias próprias da cultura Mbyá. Estas estratégias correspondem, por um lado, à
procura de lugares ecologicamente propícios para a fundação de tekoa –locais que são
identificados pelo grupo como “assentamentos dos antigos”-, portanto a escolha de
lugares vem sendo guiada em função de estes possuírem as condições ecológicas
(embora mínimas) para a reprodução social do grupo.
Por outro, a fundação e ocupação de novas aldeias é a forma em que se
manifesta a organização social e sistema político Mbyá. Partindo da idéia mais ou
menos generalizada de que a composição social de um tekoa dificilmente permite a co-
existência de duas lideranças político-religiosas com intenções e decisões opostas, e de
que perante a impossibilidade de atingir o consenso se polarizam as posturas, originam-
se as cisões políticas e a conseqüente saída de grupos familiares, incentivando a
formação de novos assentamentos autônomos e amenizando os conflitos através do
afastamento (Chase Sardi, 1992:200; Garlet, 1997:169; Pissolato, 2006: 109-110).
Idealmente esta seria a saída diplomática dentro do sistema político Guarani em resposta
aos conflitos internos, porém, devido a atual dificuldade de ocupar espaços que não
sejam de propriedade pública ou privada, a saída de grupos familiares em confronto fica
cada vez mais restringida, fazendo com que os conflitos no interior das aldeias venham
sendo cada vez mais intensos. Por outro lado, penso que não é possível entender o
sistema político Mbyá sem levar em consideração a análise das relações de parentesco
focalizadas na família extensa (tanto de forma interna quanto externa). Neste capítulo,
além de tratar das relações de parentesco Mbyá, a análise se amplificará ao sistema de
alianças como articuladores das relações políticas, considerando o contexto surgido a
partir da questão da aquisição de terras.
62
2.1. A família extensa Mbyá
As pesquisas sobre o parentesco entre os Guarani parecem coincidir com o que Schaden
havia observado: “A organização social dos Guarani se baseia na família-grande”
(Schaden, 1974:64). Etnógrafos posteriores têm ressaltado o mesmo princípio
organizador da sociedade Guarani (Ladeira, 1998; Litaiff, 1996; Garlet, 1997; Mello,
2001). Embora, pesquisas recentes vêem apontando à noção ontológica da “pessoa”
como foco da socialidade entre os Mbyá, assim como as motivações subjetivas para o
deslocamento individual e grupal (Cicarrone, 2001; Pissolato, 2006), a família extensa
continua sendo o lugar onde ecoam as relações políticas, sociais e religiosas dos Mbyá.
A família-grande ou extensa, como explica Garlet (1997:123), é a referência
básica da unidade econômica, política e religiosa dos Mbyá. Na explicação mais
simples, a família extensa se compõe de um casal que constitui a liderança do grupo,
xeeramoi e xeejaryi –meu avô e minha avó-, seus filhos e filhas (xeera’y kuery)
solteiros(as) e/ou casados(as) onde se incluem aos genros e as noras, e seus respectivos
filhos (netos do casal -xeeremiariro kuery); conjunto que se reconhece como “grupo de
parentes” por consangüinidade e afinidade (Litaiff, 1996:57; Garlet, 1997:123; Mello,
2001:49).
79
A família extensa, além de ser a unidade de reprodução do sistema de
reciprocidade Mbyá, também é um “grupo de migração” (Ciccarone, 2001:25).
Sobre a morfologia espacial dos tekoa mb a respeito das relações de
parentesco, Valéria de Assis (2006:45) explica que:
“Cada casa corresponde relativamente a uma família nuclear e cada unidade doméstica,
a uma família extensa. Cada unidade domestica terá um ou mais pátios onde as
atividades produtivas e cotidianas são desenvolvidas. A casa é o espaço mais íntimo da
unidade doméstica, enquanto o pátio é o lugar público. Cada unidade doméstica é
separada por roças, partes de mata, cursos d’água ou mesmo um pátio mais amplo
quando se trata de uma aldeia pequena”.
Esta observação da autora deve ser tomada com cautela, pois a análise
morfológica restrita a fronteira” da aldeia limita e contradiz de início a própria
caracterização da família extensa mbyá, assim como a articulação dos grupos familiares
entre os diversos aldeamentos, a organização social baseada na mobilidade e
79
Melià, Grünberg e Grünberg (1976:220) definem que a família extensa dos Paĩ-Tavyterã (subgrupo
guarani do Paranguai) “incluye a los parientes sanguíneos, políticos y adoptivos, dentro de una
concepción bilateral de parentesco”.
63
circularidade entre os espaços ocupados, e a própria transcendência da família extensa
dos limites dos assentamentos.
Também se tem observado como “regra” de residência a uxorilocalidade
temporária: após o casamento, o genro passa a morar na residência do sogro e a prestar
serviço dentro desta unidade doméstica, atividades que incluem o cuidado da roça, a
produção e comercialização de artesanato, e outras atividades produtivas; depois do
nascimento da primeira criança, o casal pode decidir o local de residência: se permanece
na unidade doméstica do pai da esposa ou voltar à casa dos pais do rapaz junto com sua
esposa e filho (Ladeira, 1988:25 apud Litaiff, 1996:57). Segundo a uxorilocalidade, as
filhas mulheres permanecem junto a seus pais, porém, esta regra pode ser quebrada
dependendo da decisão do marido de se vincular à família que seja conduzida por uma
figura de maior prestígio: o sogro ou o pai do rapaz (Melià, Grünberg e Grünberg,
1976:220; Garlet, 1997:124). Geralmente isto depende das relações e mecanismos do
próprio sogro para manter o vínculo com o genro e sua família, fortalecendo seu
prestígio perante as outras famílias extensas, e estendendo ao mesmo tempo suas redes
de parentesco; mas também provocando cisões na parte da outra família extensa (Garlet,
1997: 125; Pissolato, 2006: 56-59).
Na historiografia, o termo para designar a família extensa foi teýy ou te’yi
(Susnik, 1965, I: 22; Thomas de Almeida e Mura apud Pissolato, 2006:96), conceito
que se refere a “unidade”, e que foi utilizado por Noelli (1993:247-249) para
caracterizar tanto as relações entre as unidades domésticas quanto seu território de
domínio. Transportar este conceito do guarani colonial para ser aplicado à análise das
unidades domésticas Mbyá contemporâneas e suas estruturas econômico-sociais, parece
ser um grande erro metodológico. Na tentativa de demonstrar uma continuidade na
configuração da estrutura social baseada na família extensa com co-habitação em uma
casa comunal, como o era antigamente, Garlet (1997:126) propôs a expressão oo pygua
kueíry, que ele traduz como “os de casa, os habitantes de uma casa ou os que são de
uma casa”, conceito também utilizado por Valéria de Assis (2006:44). Quando eu
perguntei a meus colaboradores Mbem Tekoa Marangatu qual seria o termo para se
referir ao conjunto de parentes, ou seja, a família extensa, responderam “joapygua
pavê”. Apoiando-me no dicionário de Robert A. Dooley (2006), a análise que fiz desta
frase demonstra que se refere a uma noção reflexiva do conjunto de pessoas vinculadas
por consangüinidade e afinidade residindo num espaço específico e reconhecido pelos
demais grupos. Joapy é o verbo indicativo de evento ou atividade que significa “estar no
64
mesmo lugar”, o qual, junto ao sufixo nominalizador gua, indica algo ou alguém que
pertence a um lugar específico, enquanto pavê
80
é intensificador de quantidade nominal
“todos” (Dooley, 2006:46, 71, 137). Na tradução dos Mbyá, a frase significa “aquela
comunidade toda”, referindo-se aos grupos de famílias nucleares que residem num
espaço reconhecido e conformam uma única família.
81
Antes de explicar como é realizada a obtenção de prestígio por via do parentesco
e as relações políticas entre as famílias extensas em Tekoa Marangatu, seria conveniente
explicar primeiro algumas das terminologias do parentesco obtidas durante o trabalho
de campo. Geralmente, os termos são referidos a partir de ego antecedendo o primeiro
pronome pessoal (xee=eu, meu).
Xee ru = “Meu pai”
Xee ha’i/xy = “Minha mãe”
Xee ryke’y = “Meu irmão mais velho”
Xee ryvy = “Meu irmão mais novo”
Xee reindy = “Minha irmã mais velha”
Xee reindy kyri’ = “Minha irmã mais nova”
Xee ryke’y kuery = “Meus irmãos”
Xee reindy kuery = “Minhas irmãs”
Xee ra’y = “Meu filho”
Xee ra’y tujava’e = “Meu filho mais velho”
Xee ra’y kyriva’e = “Meu filho mais novo”
Xee ra’y kuery = “Meus filhos”
Xee rajy = “Minha filha”
Xee rajy guaimi = Minha filha mais velha”
Xee rajy kyriva’e = “Minha filha mais nova”
Xee tuty = “Irmão de minha mãe”
Xee ruvy’i = “Irmão de meu pai”
Xee xy’y’i = “Irmã de minha mãe”
Xee jaixe’i = “Irmã de meu pai”
80
No dicionário de Dooley se escreve pav (Dooley, 2006:137).
81
Melià, Grünberg e Grünberg (1976:220) definem a família extensa dos Paĩ-Tavyterã com os termos
xejehúvy e xeñemonã, porém, os autores não os traduzem; de modo que não encontrei referência direta
destes termos.
.
65
Xee ramoi = “Meu avô”
Xee jaryi = “Minha avó”
Xee ramymino = “Meu neto” (ego masculino)
Xee ramymino kuery =“Meus netos” (ego masculino)
Xee remiariro = “Meus netos” (ego feminino)
Xee remiariro kuery = “Meus netos” (ego feminino)
Xee me = “Meu esposo”
Xee rembireko = “Minha esposa” (ainda sem filho)
Xee ra’y xy = “Mãe de meu filho”
Xee ra’y xy’ru = “Meu sogro/pai de minha esposa” (ego masculino)
Xee ra’ixo = “Minha sogra/mãe de minha esposa” (ego masculino)
Xee rajy me = “Meu genro/esposo de minha filha” (ego masculino)
Xee ra’y ra’y xy = “Minha nora/esposa de meu filho” (ego masculino)
Xee me ru = “Meu sogro/pai de meu esposo” (ego feminino)
Xee mexy = “Minha sogra/mãe de meu esposo” (ego feminino)
Xee memby me = “Meu genro/esposo de minha filha” (ego feminino)
Xee pia ra’yxy = “Minha nora/esposa de meu filho” (ego feminino)
Xee ovaja = “Meu cunhado”
O indivíduo reconhece primeiramente como seus “parentes” aqueles com quem
mantém vínculo por consangüinidade
82
e, em segundo plano, aqueles que foram
incorporados pela afinidade, enquanto sua “família” limita-se à esposa, filhos e netos.
83
Nas relações de alteridade entre os Mbyá, Valéria Soares de Assis (2006:77) observou o
que Viveiros de Castro (1993:172 apud Assis: ibidem) caracterizou para os povos
ameríndios das terras baixas: a consangüinidade e a afinidade se definem num plano
concêntrico, tanto ideológica quanto terminologicamente, pois os consangüíneos estão
no centro enquanto os afins na periferia e os “inimigos” no exterior. Porém, as formas
de afinidade Mbyá recusam qualquer forma de relação violenta, ou seja, as relações não
se dão através da “predação” do outro (conforme é característico dos sistemas de
82
O termo Mbyá para designar parente é eta, que se refere primeiramente aos consangüíneos, mas pode
ser aplicado ao grupo étnico (Pissolato, 2006:148).
83
Na caracterização do parentesco ameríndio, Viveiros de Castro (2002:447 apud Pissolato, 2006:144)
sugere que “as identificações substanciais são conseqüência de relações sociais e não o contrário: as
relações de parentesco não exprimem ‘culturalmente’ uma conexão corporal ‘naturalmente’ dada; os
corpos são criados pelas relações, não as relações pelos corpos”. Desse modo, se a conexão genética entre
os sujeitos é reconhecida por eles mesmos, ao mesmo tempo tem pouco valor nas suas relações (Pissolato,
2006:144)
66
parentesco dos ameríndios amazônicos), mas mediante a reciprocidade positiva e não
violenta, através da dádiva (ibid: 81).
Geralmente a pessoa Mbyá se identifica com um casal/liderança que dirige o
grupo familiar, designando tarefas a cada membro da família, garantindo a subsistência
material e a direção moral do grupo (Mello, 2001:49). O casal-liderança de família
extensa é composto pelo Xee ramoi
84
e sua esposa Xee jaryi, dirigentes religiosos e
políticos em cada grupo familiar. O prestígio que estas figuras representam é
praticamente inquestionável entre os membros da família. Existe a complementaridade
entre estas duas figuras na condução da família extensa, de modo que os genros se
adequam às decisões do casal de sogros. O Xee ramoi regula as atividades produtivas
(caça, pesca, colheita, plantação), e sua fala representa a unidade familiar, enquanto que
a Xee jaryi toma decisões importantes quanto à distribuição dos recursos, controla e
organiza as principais tarefas dentro da unidade familiar, conduz o cuidado do plantio, a
colheita e a preparação adequada dos alimentos (Mello, 2001:52, Ciccarone, 2001:37);
sua influência tanto no plano doméstico quanto no público é importante nas decisões
tomadas em reuniões coletivas do tekoa (aty guaçu) (Chase-Sardi, 1992:200). O casal-
liderança constitui a referência mais importante, à qual se vinculam os membros de uma
família. Em relação à ocupação dos espaços, nas narrativas Mbyá que contam a
formação de um tekoa, a primeira referência é o casal-xamã que conduziu, através da
experiência onírica, a seu grupo de parentes a ocupar um novo local (Pissolato,
2006:102).
É recorrente entre os Mb a adoção de crianças, assim como as constantes
separações e uniões matrimoniais; no momento de uma nova união, os filhos do cônjuge
passam a considerar-se como próprios. A adoção de crianças pode ser também resultado
de uma estratégia de arranjos matrimoniais, onde o filho adotivo,
85
não considerado
plenamente como consangüíneo, pode figurar como prospecto de casadoiro das filhas do
casal (Mello, 2001:50). O termo para referir-se aos irmãos(ãs), meio(as)-irmãos(ãs) e
primos(as) é o mesmo: ryke’y e reindy (masculino e feminino).
O parentesco Mbyá é preferencialmente endogâmico, não admitindo facilmente
o casamento interétnico, sendo proibido o casamento com jurua. Embora isto pareça ser
um preceito religioso como estratégia de preservação do Nhande reko -modo de ser dos
84
Noutros casos é chamado de Xee Ru (meu pai), mas não significa grau de parentesco.
85
Entre os Paĩ-Tavyterã os filhos adotivos são denominados como temimomgakuaa, e gozam dos mesmos
privilégios que os filhos próprios (Melià, Grünberg e Grünberg, 1976:220)
67
antigos- existe casos em que o casamento entre homem Mb e mulher branca não
somente é realizado, como é aceita a residência da forasteira na aldeia.
86
Porém, como
explica Mello (2001:50), o casamento endogâmico menda porã em guarani-Mbyá
87
-
parece ser o motivador da mobilidade inter-aldeias dos jovens em procura de cônjuges;
por outra parte, a matrilocalidade é orientadora de deslocamentos quando algum
casamento é desfeito e se procura o retorno à família (Mello, 2001:51; Pissolato,
2006:118). De tal forma, o casamento e sua dissolução representam motivos de
mobilidade pela via do parentesco; deixando ao njuge e procurando outros parceiros,
vai se configurando um mapa espacial e temporal em constante atualização das
trajetórias individuais e familiares entre as aldeias (Pissolato, 2006:122).
Os matrimônios Mbyá são relativamente prematuros, muitas vezes pouco
duradouros, podendo um indivíduo ter vários parceiros ao longo da vida; porém, são
valorizados, ao menos no discurso, os casamentos com maior durabilidade. Também
se reconhece o vínculo de um indivíduo a um grupo familiar por afinidade
geralmente pelo matrimônio- mas no momento de ser incorporado ao núcleo familiar
lhe é exigido que desconheça qualquer vínculo anterior com seu antigo matrimônio.
As uniões matrimoniais são tão importantes para os pais e as famílias quanto para os
noivos.
As mulheres Mb estão prontas a casar após a primeira menstruação, por volta
dos 14 ou 15 anos, enquanto aos rapazes é exigido que sejam economicamente
produtivos para manter sua família e contribuir nas tarefas domésticas na casa dos
sogros.
Elizabeth de Paula Pissolato em sua tese de doutorado (2006) mostra que a
motivação da mobilidade vai além da família extensa, considerando-a não como
unidade mínima da sociedade Mbyá, mas composta pelo conjunto de pessoas, que por
sua vez têm motivações individuais e subjetivas para de deslocar. A autora explica que a
constante mobilidade em procura de parceiros(as) nas aldeias corresponde à busca de
satisfação pessoal,
88
em relação ao local-tekoa e ao companheiro(a), com o objetivo de
concretizar um casamento e assim criar vínculos com uma nova família (Pissolato,
2006:112). Porém a procura de novos laços conjugais, e também as cisões dentro das
86
No caso de Afonso Tukumbo, filho de Luiza Benite e reconhecido por Timóteo de Oliveira como filho
próprio, após ter deixado sua primeira mulher (mbyá) na aldeia Tekoa Marangatu –Patrícia Guimarães,
filha de Mário Guimarães de Anita da Silva, grupo familiar que se vincula a Augusto da Silva e Maria
Guimarães (ver genealogia)- decidiu contrair segundas núpcias com uma mulher não-índia na cidade de
São Paulo. Atualmente, este casal com seu filho de um ano, a pedido do karai-cacique Timóteo e sua
esposa, irão morar em Tekoa Marangatu, enquanto o grupo parental de Timóteo e Luiza serem
beneficiados com a aquisição de uma área, na qual o casal-liderança está decidindo se coloca a Afonso
Tukumbo como cacique da nova aldeia.
87
Menda Porã: Casar-se legalemente (Dooley, 2006:113).
88
Pissolato registrou a frase “Avy’a ramo apytata” que traduz como “estando alegre”.
68
famílias, bem como os conflitos com as lideranças familiares, provocam novos
deslocamentos (ibid: 114). As separações são muito freqüentes, mas, ao invés de
representar desestruturação das unidades domésticas, ao final são rearranjos que
articulam outro tipo de relações entre as famílias; consistem na formação de novas
alianças.
Na atualidade, os casamentos entre jovens são muito freqüentes, porém também
o é sua dissolução. No discurso, valoriza-se o manter a estabilidade e durabilidade do
casamento, como um preceito do Nhande reko, pois era assim que viviam os “antigos e
é assim como se deve viver”.
89
A maturidade proporciona à pessoa a capacidade de
escolher bem o parceiro japo porá
90
- que num plano de complementaridade, se obteria
satisfação, bem estar e saúde (ibid:128). Tendo estes elementos como foco da
estabilidade marital, os cônjuges começam a formar sua família extensa, o que pode ser
interpretado como “investimento na constituição de uma posição de chefia” (Pissolato,
2006:130; Assis, 2006:58).
No discurso dos Mbyá de Tekoa Marangatu, a valorização da durabilidade do
matrimônio e do respeito às regras do mesmo se vincula com o que pode ser
considerado por “pureza do sangue” tuguy porã
91
- como uma via para atingir a
perfeição (aguyjé) e a imortalidade (kandire), assim como também a fortaleça da
palavra-alma (nhee
92
) no transcurso da vida mundana.
93
Durante a reza noturna na Opy
da família de Augusto da Silva, seu filho, Inácio da Silva, explicou-me uma das músicas
que as crianças e rapazes estavam cantando durante a reza. Sendo uma música de sua
autoria, mas inspirado pelas histórias-mito que sua mãe lhe contava sobre a vida dos
89
Perante a falta de congruência entre o discurso de durabilidade do casamento e a prática de múltiplos
matrimônios, Pissolato (2006:148) sugere considerar a prática do casamento Mbyá em seu aspecto
positivo, como a articulação da sociabilidade e da multilocalidade.
90
Japo porã: “Fazer bem”, seria a tradução da frase que, segundo Pissolato está vinculado à noção de
fazer “boas escolhas”.
91
A tradução literal seria “Sangue bom”, mas o sentido dado pelos Mbyá é de “Sangue sagrado”. Dooley
registra sangue como uguy, entanto que tuguy como sangueira (2006:181-182), porém aqui considero
respeitar a grafia do Mbyá Inácio da Silva.
92
Alguns Mbyá traduzem o conceito de nhee como “anjo” da pessoa. Sobre a concepção da dualidade da
alma humana entre os Mbyá, Cadogan (1952:31) comenta: “Los jeguaka o Mbtambién creen en la
dualidad del alma humana, y para designar el alma de origen divino, emplean la palabra ñe’eng o ñe’e
(los dirigentes espirituales averzados siempre dicen ñe’eny, seguido de una levísiva y)”. A outra parte da
alma humana de origem terrenal, “la designan los Mbyá con el nombre teko achy kue, cuya traducción es
‘el producto de la vida imperfecta” (ibid, 33)
93
Cadogan (1949) explica que as práticas religiosas dos Mbyá se fundamentam na constante busca da
perfeição e maturidade (aguyje) e possibilitando o estado de imortalidade (kandire); isto é possível
mediante a dança o canto e a alimentação vegetariana, obtendo paulatinamente valor (i py’a guachu i
porá a py) e fortaleza (i mbaraeté). O fim último destes preceitos e práticas religiosas e morais é atingir a
Terra sem Mal (Yvy Marã Ey) sem ter que sofrer a prova da morte.
69
antigos, a história conta como um homem de nome Takua Vera (Bambu
Resplandecente), ao cometer adultério, sujou seu próprio sangue e o de seu filho,
causando a morte da criança. Ao ver a falta que tinha cometido, Takua Vera sentiu-se
muito triste e não soube o que fazer para ter seu filho de volta, foi então que pediu o
conselho de Nhanderu Tenonde –Nosso Pai primeiro e último, ser supremo- quem disse
que devia rezar, cantar e dançar durante seis dias e seis noites seguidas sem parar.
Seguindo o conselho, quando Takua Vera parou de dançar no sexto dia, por ter
obedecido às palavras de Nhanderu, este devolveu a vida a seu filho e após ter
ressuscitado, os dois foram levados à morada de Nhanderu. “Os dois limparam seu
sangue” explicou Inácio, “pois o verdadeiro Deus, Nhanderu, sabe que o Guarani tem
sangue puro. No caso dos brancos, mesmo rezem muito, não podem possuir o poder de
Nhanderu, pois não tem sangue limpo, puro”.
94
Sobre o adultério, Cadogan (1950:240)
comenta:
Cuando uno de los cónyuges ha sido culpable de adulterio hallándose la madre
embarazada, los dioses se niegan a darle nombre a la criatura; es decir, se niegan a
dotarle de ‘aquello que sostendrá erguido el fluir de su decir” [nhee-palavra-alma]= o
mbo-e-ry mo’ä á; y la criatura está condenada a morir prematuramente”.
Inácio da Silva também explicou-me que o sangue em sua configuração mais
pura é aquela colocada por Nhanderu no coração de cada pessoa ao momento de nascer,
porém, no percurso da vida, os atos vêem “sujando” o sangue, permanecendo um pouco
dessa pureza unicamente no coração (py’a). Em cada casamento, o sangue da pessoa vai
se sujando (tuguy ky’a), “se misturando”, como disse Inácio, condição que complica
atingir o estado de aguyjé. Apesar da poluição do sangue, é possível purificá-lo, o que
implica a restrita condução e prescrições assinaladas pelo xamã –karai opygua. O
procedimento para a purificação inclui principalmente manter a estabilidade
matrimonial com um único parceiro, assim como a freqüência na dança e na reza dentro
da Opy.
Vemos, portanto, que a valorização que os Mbyá dão à manutenção da
estabilidade do matrimônio tem um fundamento social e religioso, pois através dele é
possível manter relações harmoniosas tanto entre as pessoas no plano terrestre, quanto
com as entidades divinas, assim como a possibilidade de atingir o estado de perfeição e
a Terra sem Mal, objetivo da existência dos Mbyá. Além disso, a valorização da
durabilidade do matrimônio é um preceito do nhande reko, que remete ao passado, a
94
Cadogan registrou o mito de Takua Vera ao tratar sobre o culto aos mortos na religião Mbyá
(1949:676-677), porém, na versão registrada pelo autor, quem morre é a neta de Takua Vera Chy Ee
não explica a causa da morte da criatura.
70
como era a “vida dos antigos”, em oposição às práticas atuais. A voz do xee ramoi
Alcides da Silva Verá Rete explica melhor:
“É... Porque viu, antigamente não, meu vô faleceu com 120 anos, a mulher primeira,
primeira mulher, primeiro casamento, porque o Deus tamm, quando nós viemos... não
deixa, tem que uma mulher, um marido, não pode casar com 5, 6, 10. Porque agora é
diferente, tem que ser mulher nova, já tem cinco, o rapaz novo tem cinco, vai casar,
outro ano vai casar com outra assim. A criança também: a mulher casou com outro e
tem outro pai, e segundo pai, assim vai, aconteceu assim. E o branco também, está
acontecendo assim. Antigamente não era assim, não esse o Deus não deixo para nós
assim, mas agora está...” (Alcides da Silva Verá Rete, Tekoa Marangatu: 21/7/2006)
Uma vez conseguindo a estabilidade marital, o casal começa a formação de sua
família extensa, que corresponde também à permanência por mais tempo numa única
aldeia, diminuindo a freqüência da mobilidade inter-aldeias. O casal começa a ativar
mecanismos para conseguir aglutinar seus parentes mais próximos, para os quais o casal
se torna um “guia”, tendo reconhecido seu prestígio como oradores e rezadores. O
caráter de casal-guia vincula-se principalmente na procura de novos espaços de
ocupação, ou seja, a fundação de um novo tekoa, onde lhe é reconhecido ao casal sua
capacidade xamânica, por terem recebido de Nhanderu a revelação do local para fazer
tekoa (Pissolato, 2006:131).
Um aspecto fundamental que define a família extensa é a aquisição de sua
autonomia em relação ao grupo macro-familiar. A saída de um grupo familiar de uma
aldeia na procura da construção de seu próprio prestígio acontece, na maioria das
ocasiões, devido a conflitos e discórdias no interior dos grupos familiares em
contestação à figura da liderança. Porém, isto acontece quando o grupo familiar que
busca independência é conduzido por um casal/liderança suficientemente capaz de
manter aglutinado o conjunto de parentes e simpatizantes através do oferecimento de
proteção xamânica e/ou política (Pissolato, 2006:179, 181; Assis, 2006:53). Isso não
depende simplesmente da vontade de se separar do grupo macro-familiar como uma
forma banal de obter prestígio, mas é indispensável que um dos membros do
casal/liderança demonstre o suficiente conhecimento e sabedoria do nhande reko –ideal
de vida, como viviam os “antigos”-, a maior capacidade de inspiração e comunicação
com Nhanderu, o recebimento do canto divino, características que a condição etária
pode oferecer por volta dos 40 anos (Garlet, 1997:128, nota 104). A partir dessa idade
que a pessoa Mbyá é respeitada, pois possui o suficiente conhecimento para dedicar-se
às atividades religiosas e a condução de seu grupo sob os preceitos dos “antigos”, assim
71
como também tomar decisões do tipo político. A cisão das famílias por via do conflito
político e obtenção de autonomia se no plano do parentesco, onde a uxorilocaloidade
é quebrada: se por um tempo o genro vinculou-se à família do sogro, no momento de
procurar sua autonomia junto com sua esposa e filhos, vai discordar das decisões do
sogro; porém, não possui ainda o suficiente prestígio nem apoio de seus próprios
parentes para justificar sua postura discordante. Então sabe que é o momento de sair da
aldeia e procurar “juntar seus parentes”.
O prestígio e reconhecimento como xee ramoi e xee jaryi se mantêm enquanto se
é casado, ou seja, a liderança da família extensa é mantida enquanto o casal-liderança
permanece unido. Se por algum motivo o casal decide se separar, ambos terão que
procurar novos parceiros num prazo de dois anos se quiserem manter seu prestígio. Se a
nova união resulta próspera, então a família extensa se recompõe em torno da xee jaryi,
enquanto o xee ramoi se une a outra mulher/xee jaryi, criando em torno dela e de seus
filhos sua nova família extensa. No caso de viuvez acontece o mesmo: o viúvo tem que
procurar outro parceiro se quiser manter seu prestígio como liderança familiar. A
explicação sociocosmológica que os Mbme deram foi que estar sem parceiro, seja
por separação ou por viuvez, pode enfraquecer a força da palavra-alma. Do mesmo
modo que acontece nos períodos de iniciação das moças e rapazes, quando se está sem
parceiro ou viúvo, o nhee (palavra-alma) fica incompleto e, portanto, enfraquecido
nesses períodos de liminaridade; os espíritos das pessoas mortas (mbo-gua ou achy kue)
em forma de pessoas ou de animais podem seduzir-lhes e possuir seus corpos.
95
2.2 Organização religiosa, social e política
Se a sociedade guarani tem sido caracterizada como carente do poder coercitivo e da
concentração centralizada das funções políticas (P. Clastres, [1974] 1990), ao mesmo
tempo expressa uma organização sociopolítica bastante nítida, baseada em princípios
religiosos.
96
Um problema que freqüentemente enfrentamos quando tentamos
compreender a organização política e religiosa entre os grupos guarani é distinguir as
95
Mbo-g, “alma de origem telúrica” que permanece na terra após a morte da pessoa, tornandose num
“fantasma” potencialemente perigoso para aqueles que tiveram algum contato (Cadogan, 1960:142). São
recorrentes as histórias que contam sobre pessoas que estiveram “casadas” com estes espíritos, entanto
que elas mesmas se transformavam em animais.
96
Sobre a organização política e social entre os diversos subgrupos guarani, consultar: para os Mb
Cadogan (1960:135); entre os Paĩ-Tavyterã, Melià, Grünberg e Grünberg (1976:217-223); nos Avá-
Guarani (xiripa), Chase-Sardi (1992); e entre os Kaiowá, Brand (1997:30-31).
72
atribuições, funções e ações das lideranças, assim como também sua caracterização, seu
caráter secular e/ou religioso e suas possíveis formas de coexistência (Chase-Sardi,
1992:205).
Antes de passar à descrição das funções sociais, deve-se considerar que as
discussões de ordem civil que envolve toda a comunidade são resolvidas através do aty
guaçu (reunião grande). Nela reúnem-se as pessoas adultas do tekoa para resolver os
conflitos relacionados à política, economia e religião. Melià, Grünberg e Grünberg
(1976:221) descrevem estas reuniões da seguinte maneira:
“Cualquier decisión que trasciende el ámbito de la familia extensa se hace en un aty, en
el cual todos los miembros adultos de un tekoha (varones iniciados en el mitã pepy y las
mujeres después de la primera mestruación) tienen admisión y voz. Un aty puede ser
convocado por cualquier tapixa y se realiza preferiblemente los días sábado en la casa
del tekoaruvixa. Los aty guasu (jogueroaty, ñe’ẽ jerojoja) tratan de sucesión o
destitución de cargos comunales (tekoaruvixarã), de crímenes considerados graves
(homicidio, paje vai), de amenazas de sus tierras y viviendas y de preparación de
actividades religiosas (mitã pepy, avatikyry) y económicas (kóyngusu, mba’e ´pepy,
explotación de madera, etc).”
Antigamente quem convocava ao aty guaçu era o karai opygua –líder religioso-
ou o ancião com maior prestígio, o xee ramoi mais velho; porém, na atualidade e devido
à incorporação da função político-civil da liderança política, é o tekoaruvixa (cacique o
liderança política) quem convoca e preside estas reuniões (Chase-Sardi, 1992:200-201;
Garlet, 1997:131; Gorosito, 2005: 3). A finalidade do aty guaçu é alcançar o consenso
entre os participantes, e não a imposição de posturas individuais ou grupais. Caso não
haja acordo ou as posturas chegarem a se polarizar, então existem duas opções: ou se
esquece o assunto e não é mais mencionado, ou a comunidade se divide, provocando a
cisão na composição do tekoa e sendo a facção minoritária obrigada a abandonar o local
(Chase-Sardi, 1992, 200). Como vimos no tópico anterior, o conflito entre as famílias é
produto da aquisição de autonomia. Sendo assim, a saída do local por essa via nem
sempre se deve interpretar como “expulsão”, se não como uma via para a obtenção de
independência e prestígio. Antigamente era mais fácil sair e criar novos tekoa,
amenizando os conflitos nas aldeias originárias a partir da conformação de novos grupos
familiares, porém, a pouca disponibilidade de áreas adequadas para a fundação de tekoa
impossibilita a saída de famílias, e os conflitos são vivenciados nos mesmos locais,
criando situações tensas e desagradáveis (ibid, 200).
No aty guaçu a palavra do cacique tekoaruvixa- unicamente cabe à ratificação
do consenso. Sua palavra não é uma imposição, assim como a de ninguém; o cacique
73
pode opinar, mas deve adaptar-se ao parecer da comunidade. A fala de cada xee ramoi
deve ser persuasiva e convincente o suficiente para que seja aceita sua postura.
Geralmente, em uma sessão não se chega a consenso algum devido à multiplicidade de
discursos, de modo que o tema será retomado quantas vezes forem necessárias.
Finalmente, quando se chega a uma decisão definitiva e comunitária, a fala do cacique
corresponde à “assinatura” dos acordos, “e é isso o que se deve fazer”.
2.2.1 As funções tradicionais
No sentido sociocosmológico, basicamente a organização social de um tekoa depende
das funções e atividades que cada pessoa desempenha dentro da aldeia de acordo com
sua palavra-alma (Ladeira, 1992:115, 123). A existência Mbyá, baseada principalmente
nos ensinamentos religiosos dos karai-opygua sob os preceitos do nhande reko, tem
sido a de se adaptar aos novos contextos da intervenção da sociedade dominante,
criando assim uma secularidade das atividades sociais, que tradicionalmente vinham
sendo puramente religiosas. Assim, a definição da liderança político-religiosa guarani
tradicional traz tanta confusão entre os observadores, como a introdução ou imposição
de figuras representativas de poder político (capitães e caciques) nas sociedades
indígenas por parte da sociedade dominante. Se a figura do capitão ou cacique como
representante político da coletividade para o exterior se deveu, num primeiro momento,
à introdução do “cabildo” como instituição nos pueblos de índios e reduções guarani no
período colonial (Susnik, 1965: I, 161-164), e depois à intromissão das agências
indigenistas com o fim de controlar a população na criação de reservas indígenas
(Brand, 2001), observa-se que a sociedade guarani habilmente tem adaptado sua função
como parte de sua própria organização social e política. (Gorosito, 2005).
A sociedade mbyá, além de distinguir entre a liderança religiosa (karai-
opygua
97
) e a liderança política representada pelo cacique (tekoaruvixa) –que às vezes
pode coexistir na mesma pessoa
98
- se reconhece outros tipos de funções que operam
dentro da organização social (yvyrai’já, kunha karai, nhombo’e va’e, poã apo’a, mitã
jaryi, xondaro, okaigua, oporaive). Não existe hierarquização entre as diversas funções,
97
A liderança religiosa também é chamada de Nhanderamoi “Nosso avô”, como um termo de carinho e
respeito. Note-se que na liderança religiosa se reconhece a ancestralidade baseada por um referente na
consangüinidade. Melià, Grünberg e Grünberg (1976:218-19) apontam que entre os Paĩ-Tavyterã a
liderança religiosa é nomeada como tekoaruvixa pavẽ, enquanto o representante político do tekoa é
chamado de mburuvixa ou yvyra’ija. Observe-se que as denominações são invertidas entre os Mbyá.
98
Assis (2006:50) caracteriza esta convergência de chefia religiosa e política como “liderança social”.
74
mas existe a preponderância na efetividade de suas ações na forma como são feitas, e é
através de sua realização que uma pessoa com certa função obtém reconhecimento e
prestígio de seus co-aldeões. Porém, na liderança religiosa se reconhece mais prestígio e
se dá mais obediência que à liderança política.
Antônio Brand (1997:30-31) distinguiu entre os Kaiowá três conceitos diferentes
que descrevem a autoridade político-religiosa tradicional: os hechakára, que foram
levados na morada das divindades e que corresponderiam aos heróis divinizados, um
tipo de autoridade incorpórea; os ñanderu (nosso pai) que possuem a capacidade de
falar com Deus e curam através do poder dele; e os tekoaruvicha (chefe de aldeia),
rezadores e possuidores da reza, mas sem o poder de curar. Brand afirma que os Kaiowá
definem estas três figuras como “caciques”, a diferença do agente imposto pelo SPI (o
capitão) no momento da criação da reserva indígena de Dourados, MS, entre os anos
1915 e 1928 (Ibid: 5, 31). Em relação aos Mb, Ana María Gorosito (2005:3) traduz o
termo tekoaruvixa como “chefe das casas”, que se refere a uma autoridade baseada no
parentesco e no prestígio adquirido pelas atividades religiosas, e assinala que o termo
ñande ru corresponde no mesmo sentido. Os Mbyá de Massiambu e de Tekoa
Marangatu manifestaram que o cacique é denominado com o termo mbyá de
tekoaruvixa, “autoridade da aldeia”.
Em Tekoa Marangatu, até dezembro de 2006, a função de tekoaruxiva convergia
com a liderança religiosa na pessoa de Timóteo de Oliveira. Ele é xamã
99
reconhecido
por toda a comunidade mbyá, porém, perante os brancos destaca sua função como líder
político (Darella, 2004:23). Embora Timóteo seja o karai opygua da aldeia, existem
outros que o auxiliam nas atividades religiosas dentro da casa de reza (Opy).
100
Estes
ajudantes são denominados como yvyra’i ja “donos da vara insígnia” (popygua). Os
99
Para os fins desta pesquisa considero oportuno utilizar o conceito de xa e práticas xamânicas
utilizado por Ciccarone (2001:16) “Quando os estudos sobre xamanismo tendem a privilegiar a dimensão
sincrônica centralizada no sistema de pensamento e no processo ritual, as mudanças que ocorrem no
xamanismo e na organização social e cultural das sociedades xamânicas podem tornar-se invisíveis. J. P
Chaumeil critica a leitura do xamanismo em termos de ‘religião do chamado’, em função do caráter
voluntário e da influência do ambiente sobre o indivíduo, preferindo defini-lo como um sistema em
perpétua adaptação à realidade vivida e às situações particulares de cada grupo, que influem profundas
transformações e fortes pressões sociais. M. Taussig destaca a dimensão ofensiva do xamanismo, que
tende a quebrar o domínio da continuidade histórica que impõe significados exteriores ao universo nativo.
Como instituição central e modelo de pessoa, o xamanismo constitui um repertório de saberes e práticas
acionado para enfrentar a desordem, sendo o⁄a xamã a autoridade legitimada nos tempos do sofrimento,
das dramaticidades e das reorganizações”.
100
Cabe mencionar que, atualmente, nem todos os moradores da aldeia participam dos rituais noturnos na
Opy onde o grupo familiar de Timóteo realiza suas rezas. No momento da pesquisa, uma antiga Opy tinha
sido destruída para erguer uma nova, porém, os conflitos na aldeia provocaram a divisão dos grupos de
reza, separando-se estes entre os “parentes” de Augusto da Silva e outros vinculados a Timóteo. Este
assunto será abordado com maior amplitude mais adiante.
75
yvyra’i ja, segundo me comentaram os Mbyá de Marangatu, são aqueles que estão
“estudando” para ser karai opygua, e sua função é indispensável nos rituais de cura. A
realização e transmissão do sistema terapêutico é a principal função social dos karai
opygua e dos yvyra’i já. No momento do trabalho de campo, havia na aldeia um karai
opygua (Timóteo de Oliveira) e dois yvyra’i ja (Leandro Fernandes Kuaray Miri e
Márcio Moreira
101
) que realizavam rituais de cura na Opy do grupo familiar de Timóteo.
O grupo familiar de Augusto da Silva pratica suas rezas, danças e terapias tradicionais
independente do grupo do Timóteo, tendo outra Opy e sendo dirigida pelo yvyra’i ja
Inácio da Silva e sua mãe, dona Maria Guimarães. Mais adiante explicarei a causa da
existência de duas Opy na aldeia (tópico 2.3.1.).
O xamã mbyá, dentro da categoria dos especialistas religiosos, se diferencia de
outros “rezadores” por possuir o conhecimento de diagnosticar doenças e o poder de
curar-las mediante Nhanderu “escuta mais o deus
. Como disse Augusto da Silva,
Nhanderu é quem comunica ao karai opygua qual deve ser o método para aliviar a
doença: “Aquele que estuda bem com Deus, que o Deus está ajudando já, então se ele
põe a mão sabe o que ele [o paciente] tem no corpo... se é pra curar com remédio ou
com chá, ou tem que ser com petygua”. Segundo me explicou Inácio da Silva, que é
yvyra’i de seu grupo familiar, a doença é causada pelos “espíritos donos do rio e da
floresta” yakanja,
102
que introduzem objetos (pedras ou insetos)
103
no corpo daqueles
que infringem seus territórios sem pedir permissão. Outro tipo de enfermidade é o
enfraquecimento do nhee causado pelo encontro com um espírito (mbo-gua).
O trabalho terapêutico realizado pelo karai opygua para “tirar” a doença do
corpo do paciente pode se dividir em dois métodos. O primeiro, quando o paciente tem
o espírito fraco por causa de um encontro com algum mbo-gua, são subministradas ao
paciente baforadas de fumaça extraídas dos cachimbos (petygua). Esse método foi
101
Leandro é filho de Luiza Benite e é um dos rezadores que expressa maior empenho nos rituais
noturnos. rcio é sobrinho do reconhecido xamã Alcindo Moreira da aldeia Mbiguaçu, de quem recebe
instruções e ensinamentos periódicos.
102
Inspirada no conceito do perspectivismo ameríndio, Assis (2006:83). descreve a relação que os Mb
mantêm com a natureza e as divindades como “uma relação de subjetividades”, pois “Na concepção
Mbyá, cada animal, vegetal ou qualquer outro elemento do ambiente (inclusive ele mesmo) possui uma
matriz original situada no mundo real, no mundo divino. Tudo o que existe é, portanto, uma
representação, um duplo do seu original divino” (ibid, 84). “Todos os componentes do ambiente são
resultado da ação de um conjunto de divindades, como afirmou Cirilo (que vivia no acampamento de
Passo Grande), informante de Garlet (1997 p. 158), ‘Na natureza existem muitos donos (y akã já, yvy já,
ita já, yvy’ã já). Tem que descobrir qual é pa’u (ilha) que não tem dono. A gente tem que respeitar o
lugar deles. Senão o teko’a vai ser lugar de doenças, de tristeza e as pessoas não vão viver alegres e
tranqüilas’” (Ibid:83).
103
Celeste Ciccarone registrou o termo mba’e achy (coisa-objeto ruim, imperfeito) para designar a causa
da doença (Ciccarone, 2001:96).
76
descrito como oipeju “soprar”, quem o aplica é karai jopyjua’i, “aquele que sopra”.
104
Se a doença é mais forte, pois o karai opygua diagnosticou que o corpo do paciente foi
atingido por um objeto lançado por yakanja, então se aplica o segundo método que é
“chupando” (pyte) a zona do paciente onde se prognosticou que está localizado o objeto,
e neste caso o curador é chamado de opita’i va’e.
105
Ambos métodos são realizados
como rituais de cura nos quais se utiliza o pety (tabaco) e os petygua (cachimbos) para
limpar o corpo do doente, o popygua (vara insígnia) designados para os yvyra’i ja para
despejar aos espíritos maus, o mbaraka (violão de cinco cordas), o rave (violino) e o
takua pu (instrumento de taquara exclusivo das mulheres) para realizar a música que
acompanham os cantos sagrados de cura e comunicação com Nhanderu dentro da Opy.
Outra função social importante dos karai opygua é a nominação das crianças
durante o ritual de nhemongarai. Neste ritual, além de “bendizer” as sementes de milho
guarani (avaxi ete), o karai opygua consulta a Nhanderu para saber de onde provém a
palavra-alma (nhee) das crianças. “Cada nome é uma alma proveniente de uma região”
(Ladeira, 1992:119). Os pais e mães das almas verdadeiras (nhee ru ete), filhos de
Nhanderu localizados nas regiões celestes,
106
conversam entre eles para decidir qual é a
palavra-alma da criança. Finalmente, a decisão das divindades é comunicada ao karai
opygua e este designa o nome “palavra-alma” ao bebê. Durante este ritual, o dirigente
religioso é denominado como mitã renói á, “aquel que dá nombre a las criaturas”
(Cadogan, 1950:237).
As atividades xamânicas não são exclusivas dos homens. As mulheres xamã são
chamadas de kunha karai e realizam as mesmas atividades do sistema terapêutico Mbyá
(Ciccarone, 2001).
107
Tanto aos homens quanto às mulheres xamã cabe a transmissão
dos saberes e “modo de vida dos antigos”, as normas morais, sociais e religiosas, que
vão desde a conduta individual, evitando o ódio, a inveja e o ciúme, até a forma
104
Dooley registra poropejua como “curador; um que sopra nos outros” (2006:139), porém, este termo
não me foi revelado pelos Mbyá de Tekoa Marangatu.
105
Este é um conceito extraído de Pissolato (2006; 293) para denominar os especialistas religiosos que
administram este sistema de cura, porém a autora estende o conceito a todos os especialistas religiosos.
106
“Karai, Jakairá, Ñamandu y Tupã son los encargados de enviar almas a la tierra para que se encarnen
en los cuerpos de las criaturas por nacer. Ellos envían los espíritus masculinos, y sus consortes, los
femeninos; por eso se les conoce también con el nombre de ñe’é ru ete, verdadero padre de la palabra-
alma; e ñe’é é chy ete, verdadera madre de la palabra-alma, respectivamente. De acuerdo con la región del
paraíso de donde es oriunda la palabra-alma que se encarna, cuyo origen es determinado en solemne
ceremonia por el “mburuvicha” dirigente de la tribu-, recibe el nombre del patronómico sagrado que ha
de acompañarlo hasta la tumba como parte integrante de su ser” (Cadogan, 1948:133-134 apud Ladeira,
1992:117).
107
Valéria Soares de Assis (2006; 70-71) faz uma distinção do termo kunha karai: o primeiro refere-se às
mulheres adultas, após o nascimento dos dois primeiros filhos, criados por ela e que permanecem
apegados a ela; o segundo é o de mulher xamã.
77
adequada de consumir alimentos livres de gordura, sal e “comida do branco”. Porém, o
contato com a sociedade nacional e a dependência de sua economia, faz com que os
Mbyá cada vez estejam menos possibilitados de realizar as prescrições dos xamã,
apresentando-se crises sociais, econômicas e religiosas na sociedade guarani, situação
que Celeste Ciccarone apresenta como “drama social”. Na hipótese da autora, perante
esta desordem, a figura do xamã (karai opygua e kunha karai) é uma resposta às crises
vivenciadas pelos Mbyá; estes representam o fortalecimento da cultura Mbyá (nhande
reko) e sua transmissão, a autoridade da tradição que permite modelar o infortúnio para
uma forma de vida menos sofrida; e mais que isso, a personificação dos mitos, heróis
divinizados e modelos de vida que reforçam os intuitos para atingir os estados de
perfeição. A autoridade dos karai opygua e das kunha karai, que se estende além dos
vínculos de parentesco, se manifesta através do oferecimento de proteção xamânica,
assim como também pelo prestígio de cada liderança religiosa em possuir maior
sabedoria e manter maior comunicação com as divindades através da reza e o canto
(Pissolato, 2006: 280), assim como sua capacidade para interpretar os sonhos
(Ciccarone: 2001:183-195). Porém, este aspecto da religiosidade não exclui que os
karai opygua e as kunha karai possuam autoridade e poder político.
108
Quando perguntei aos moradores de Tekoa Marangatu se eles tinham kunha
karai, responderam que sim, mas que esse não era o termo para designar as funções
sociais e religiosas que realizava dona Maria Guimarães, esposa de Augusto, dentro do
tekoa. O termo em Mbé nhombo’e va’e, que se refere a “quem ensina”, embora a
tradução literal seja “aquele que nos ensina-faz falar”.
109
Em realidade parece que faz
referência a alguém que possui a capacidade de falar e transmitir o conhecimento. No
sentido Mbyá essa seria a função social de um “professor guarani mesmo, que ensina na
Opy”. O professor bilíngüe Eduardo da Silva, filho de dona Maria explica o seguinte:
108
A organização sócio-religiosa dos Mb contemporâneos é bilateral. Porém, existe uma referência
histórica que muita importância ao papel social das mulheres entre os Carijós dos culos XV-XVI.
Álvar Nuñez Cabeza de Vaca ([1541] 1984:172-173) comentou: “Habiendo dejado el gobernador los
indios del río del Pequiri muy amigos y pacíficos, fue caminando con su gente por la tierra, pasando por
muchos pueblos de indios de la generación de los guaranies: todos los cuales les salían a recibir a los
caminos con muchos bastimentos, mostrando grande placer y contentamiento con su venida […] y
bailaban y hacían grandes regocijos de verlos; y lo que más acrecienta su placer y de que mayor contento
reciben, es cuando las viejas se alegran, porque gobiernan con lo que éstas les dicen y sonles muy
obedientes, y no lo son tanto a los viejos”.
109
Nho: pronome derivacional que faz referência recíproca (uns a outros) (Dolley, 2006:127); mbo’e:
ensinar, literalmente “fazer falar” (ibid, 111); va’e: designa ao sujeito “aquele” (ibid, 187).
78
Eduardo da Silva: “...
nhombo’e
: ela é o mesmo que karai, só que é diferente, é
feminina
Sergio Eduardo: “No caso da mulher é kunha karai?
Eduardo da Silva: É kunha karai, também chama de kunha karai...
nhombo’e
, isso na
verdade significa ‘professora’” (Eduardo da Silva Kuaray Papa, Tekoa Marangatu:
24/7/2006)
110
Embora as atribuições e deveres das lideranças religiosas (homens e mulheres)
sejam as mesmas, Ciccarone (2001:93) assinala que as kunha karai enfrentam uma
maior cobrança da coletividade sobre sua conduta sexual, “pois, o karai pode encontrar,
diante da ameaça do desejo, apoio na sua esposa, o mesmo não acontece com as kunha
karai, as mulheres xamãs”.
Quase todas as pessoas adultas Mbyá têm conhecimento sobre o manejo de
plantas medicinais, remédios do mato (poã). Os moradores de Tekoa Marangatu trazem
do mato algumas ervas que plantam nas proximidades de suas casas, remédios que
utilizam para curar a dor de cabeça, dores de estômago e diarréias leves, feridas
menores, febres e até para afastar os “espíritos do mal”. Em sentido Mbyá o remédio
não é uma cura em si mesma, mas um elemento que fortalece o espírito, que ajuda à
comunicação entre a palavra-alma do paciente e Nhanderu para restabelecer a saúde.
Embora a maioria dos Mbyá conheça e prescreva remédios do mato, existem pessoas
especializadas neste ramo, elas são chamadas de poã apo’a “quem faz remédio”, como
me disse Mário Guimarães, irmão de Maria e esposo de Anita da Silva; porém existe o
termo poropoanoa que se refere a “médico” propriamente (Ciccarone, 2001:71; Dooley,
2006:146). A cura com remédio do mato depende do diagnóstico previamente feito pelo
karai opygua: ele é quem determina se a cura deve ser feita “com petyngua, com
remédio da mata ou tem que ir com médico jurua”. Sobre este último aspecto, Augusto
reclama a dependência na medicina alopata que o contato com o mundo dos brancos
tem gerado em detrimento do sistema de cura tradicional Mbyá: “Agora está
precisando de remédio de branco e tudo. É... agora daqui pra diante era, passou o
tempo nosso, então agora a doença já é do branco. Porque os tempos atrás, quando eu
era pequeno ainda, eu me lembro que nós mesmo fazia em casa o remédio, porque o
remédio nosso é verdadeiro, porque não é misturado com outro e nada, a gente faz na
hora e cura na hora também ... agora não, tem que ir ao médico, porque agora se
110
O destaque é meu.
79
depende do branco porque é mais fácil, achando mais fácil já, porque não precisa fazer
mais remédio... Muita gente já se esqueceu, nem uma folha conhece mais.”
Uma outra função social e que cabe unicamente às mulheres é a mitã jaryi:
parteira.
111
O sentido literal deste termo refere-se a “avó do nenê”, sendo esta a
explicação que me dera Anita da Silva, esposa de Mário Guimarães, e quem realiza esta
atividade em Tekoa Marangatu. A atividade de mitã jaryi é transmitida de forma
hereditária: de avó para filha e depois para neta. Esta função é muito importante no
transcurso da gravidez, pois a especialista realiza massagens e subministra remédios do
mato, adequando a posição do feto para ter um bom desenvolvimento da gestação e do
parto. Além de Anita, nenhuma outra mulher expressou ser mitã jaryi, porém, considero
que cada xee jaryi realiza esta atividade dentro de seu respectivo grupo familiar.
112
Os xondaros, okaigua e opora’i ve atualmente se limitam às atividades religiosas
dentro da Opy, sendo realizadas principalmente por jovens solteiros ou casados cuja
posição político-religiosa ainda não é definida. Os xondaros
113
geralmente transcendem
um pouco a esfera religiosa, sendo os ajudantes dos caciques nas funções civis. Os
Mbyá explicam que os xondaros são guerreiros, os guardiões, função que faz lembrar o
passado guerreiro na história guarani; porém, na atualidade os xondaros fazem o papel
de “polícias da comunidade”, são os executores das decisões tomadas nas aty guaçu, e
são comandados pelo xondaro ruvixa, responsável pela organização do grupo (Garlet,
1997:129). Em relação à função do okaigua, Inácio explicou que são eles que cuidam da
Opy. Sua principal responsabilidade é manter afastados os mbo-gua, expelindo
baforadas de fumaça de seus petygua ao redor da Opy antes de começar os rituais
noturnos, pois é durante a tarde e a noite que os espíritos começam a chegar às casas do
tekoa, em busca de luz e calor dos fogos de chão. os oporaive são todos aqueles que
entoam os cantos religiosos, as rezas noturnas dentro da Opy. Dentro desta categoria,
que inclui desde as crianças pequenas até os dirigentes da reza, não existem
preponderâncias entre um e outro, mas se reconhece sua força no canto, o que revela
quem possui maior comunicação com as entidades divinas. Os termos de okaigua e
oporaive me foram revelados pelos Mbyá de Marangatu, porém, não encontrei nenhuma
referência direta na bibliografia etnográfica.
111
O termo registrado por Dooley (2006,96) é ky’i va’e rexaa, que traduz como “parteira”. O sentido
literal é “quem traz saúde aos pequenos”.
112
Esta denominação, exclusivamente feminina, pode ser equivalente à função masculina do mitã renói á,
durante o ritual de nhemongaraí. (Cadogan, 1950:237).
113
Xondaro ou Chondaro é uma guaranização da palavra “soldado” (Dooley, 2006:196). Parece que o
termo original refere-se a pyronga (Ramos e Martinez, 1991:40 apud Garlet, 1997:129).
80
2.2.2. As novas lideranças
A introdução da figura do cacique ou capitão, referenciada na bibliografia etnográfica,
aparece como o ponto de condensação do contato inter-étnico entre os Guarani e os
brancos (Nimuendaju, 1987:75; Schaden, 1974:95; Chase-Sardi, 1992:179-180). Num
primeiro momento, as agências indigenistas nomearam como representantes políticos
das comunidades guarani indivíduos convenientes a seus interesses, interrompendo
assim os mecanismos internos de preservação do consenso e desprivilegiando a postura
da liderança religiosa (Brand, 2001; Gorosito, 2005:4). Porém, a figura do cacique
Mbyá, o tekoaruvixa propriamente dito, é na atualidade a primeira linha de defesa da
tradição, protegendo o que é verdadeiramente valioso: o saber acumulado pelos karai
opygua, o nhande reko que cada xee ramoi repassa a sua família, a língua, a economia
de reciprocidade, as regras de parentesco, enfim, tudo aquilo que envolve a cultura
Mbyá e deve estar afastado das impurezas do jurua. De tal forma, a sociedade guarani
criou um tipo de liderança política suficientemente flexível e removível, de forma tal
que, por um lado, seu comportamento corresponda à constante produção do consenso e
ao mantimento das normas culturais, e por outro seja capaz de se relacionar com a
sociedade envolvente, como intermediário entre a comunidade e os jurua. A função do
cacique, assim como dos outros agentes que representam à comunidade perante as
instituições –governamentais e não oficiais- é meramente operacional.
114
Como vimos no primeiro capítulo, na medida em que as agências indigenistas e
instituições da sociedade nacional passaram a ter maior ingerência nas aldeias guarani
no litoral catarinense, foram delegando funções de caráter propriamente civil com
atividades remuneradas que, aos olhos dos ocidentais, criam algum tipo de prestígio.
Essa percepção é um equívoco se pensada em termos Mbyá, e não nada mais errado
que adjudicar uma posição de liderança política a um agente de saúde Guarani. Embora
possuam salários estáveis e periódicos, os Mbyá não reconhecem dentro de sua
organização social que os agentes de saúde, agentes de saneamento ou professores
bilíngües (que são membros da comunidade e desempenham atividades nela)
114
João Pacheco de Oliveira (2002) ao analisar a ação do órgão indigenista (SPI) no surgimento da
primeira reserva indígena no Alto Solimões entre os índios Ticuna, sugere que o contato interétnico (ou
inter-societário) cria uma convergência de significados e ões da qual compartilham tanto índios quanto
brancos; nesse sentido as representações compartilhadas entre os agentes cria um “terceiro sistema” que
não passa de ser meramente operacional. De tal forma, os agentes que atuam deste campo também são
operacionais e nominais.
81
representem algum tipo de liderança política, e muito menos religiosa. Porém, isso não
exclui que ditas funções possam funcionar como antecedentes para o futuro
posicionamento como caciques, que perante o contexto interétnico, devem ter
conhecimento e entendimento de “como funciona o mundo do branco”. Isto pode ser
explicado colocando o caso do professor bilíngüe Eduardo da Silva, filho de Augusto e
Maria:
Eduardo da Silva: “... Então tive que me mudar pra [de Massiambu], que
meus pais se mudaram pra a [Tekoa Marangatu], eu me mudei também. Continuei
trabalhando como agente de saneamento aqui. Depois, como eu tenho bastante contato
com os brancos, eles me botaram como professor. Confiaram em mim, aí me botaram
pra ser professor. Então trabalhei. entrei ao Magistério, que está acontecendo. Foi
nesse processo que eu entrei pra ser professor. Que eu converso muito com os brancos,
converso com os índios, tenho muito contato com os próprios índios.
Sergio Eduardo: “A própria comunidade que te colocou como professor. Pelo
que percebi e escutei, o fato de ser professor não significa ser liderança.
Eduardo da Silva: “Não, porque professor tem sua função. Sua função é ensinar
as crianças a entender a língua portuguesa, conhecer mais a língua guarani. Tem muitas
coisas em guarani que nem eu mesmo sei direito, principalmente na religião, falando de
Deus, não conheço muitas coisas. Então preciso aprender. Então às vezes eu também
faço pesquisa com minha mãe, com os mais velhos daqui, perguntando sobre isso e
depois deles me explicarem eu repasso pros meus alunos na escola. Então essa é a
função do professor, então essa não é a liderança.
Sergio Eduardo: “o que é a liderança?
Eduardo da Silva: “Pra nós Guarani a liderança na aldeia é dividida: tem karai
que [é] liderança também, mais guarani [no sentido religioso]; tem cacique que é
liderança, aí ele já é mais do que karai [no plano político], então o cacique tem que estar
mais em contato com os brancos e mais com as comunidades também. Vai ligando as
duas coisinhas.
Sergio Eduardo: “‘as comunidades’ tu te refere às famílias da aldeia?
82
Eduardo da Silva: “É. Dentro da aldeia, em geral. Tem que conhecer mais a
situação da aldeia, tem que lutar pra melhorar a situação da comunidade, pra isso tem
que estar mais em contato com os brancos, pra poder buscar mais ajuda.” (Eduardo da
Silva Kuaray Papa, Tekoa Marangatu: 24/7/2006)
No contexto atual, a sociedade nacional e os Mbyá reconhecem a
representatividade e a importância que as “novas lideranças” têm adquirido no âmbito
político e social. Caracterizados pelas instituições como “líderes políticos do povo
Guarani”, são os professores bilíngües e agentes de saúde que exercem a
representatividade das aldeias, posicionando a fala de suas comunidades, mantendo na
retaguarda aos tekoaruvixa, xee ramoi kuery e karai opygua. Porém, isto tem trazido
uma série de modificações no interior da organização social Mb, principalmente a
despeito da representação política e, inclusive, na chefia política. A primeira questão a
observar é que existe uma clara diferença de opiniões entre as lideranças políticas de
acordo com a faixa etária. O discurso dos tekoaruvixa tradicionais mostra uma oposição
à educação institucionalizada do branco, ao atendimento da saúde com remédio do
branco e à constante influência da cultura dos jurua, pois afirmam que o contato vai
terminando com a tradição Mbyá; porém, estão cientes que não podem impedir as
relações com os jurua, pois atualmente deles depende o acesso à maioria dos recursos.
Assim, os caciques tradicionais, a fim de resolver os problemas imediatos, preferem
aceitar qualquer oferecimento das agências, sendo o clientelismo e o paternalismo os
mecanismos efetivados pelas instituições. Sendo esta uma prática característica do
órgão indigenista, João Pacheco de Oliveira (1988:235), comentando o caso dos índios
Ticuna, assinala como os capitães servem como meio básico de controle através de uma
administração indireta.
Por seu lado, as novas lideranças, alfabetizadas, que foram formadas mediante
mecanismos da cultura ocidental de forma paralela ao sistema de ensinamento-
aprendizado tradicional Mbyá, possuem maior conhecimento das instituições e de seus
direitos constitucionais, defendem a criação de escolas e postos de saúde nas aldeias,
pois entendem que através do conhecimento do mundo do jurua é possível reivindicar
seu direito como povo. Seu discurso sobre a tradicionalidade Mbyá não difere do dos
velhos caciques e tekoaruvixa, mas o exercício da política e a forma de relacionamento
com os brancos e suas agências são fundamentais para que sejam considerados como os
mais adequados para representar a coletividade. Acima de tudo, o ponto de
83
convergência entre velhas e novas lideranças parece que é a constante busca do
consenso, tendo a “palavra”, a “fala”, como o principal instrumento da persuasão do
líder Mbyá.
Em relação à chefia, os Mbyá hoje consideram que a representação política nas
aldeias tem que ser através dos caciques, mas que esta função seria mais bem
desempenhada pelas novas lideranças, especificamente por aqueles que atuam como
professores bilíngües. Ao mesmo tempo, estes vêm suas funções como a possibilidade
de ter acesso mais rapidamente à chefia política, sem ter que necessariamente passar por
um acúmulo de prestígio pela via do parentesco e a constituição de sua família extensa.
Em outras palavras, a formação de líderes jovens transforma a via de acesso à chefia
política e modifica a própria organização social. O caráter paradoxal da função das
novas lideranças se mostra principalmente, por um lado, no aceleramento para a
aquisição de prestígio e o caráter prematuro para constituir famílias extensas “jovens”,
e, por outro, na própria necessidade da coletividade para constituir figuras da
representatividade política capazes de se entender com os brancos. Isto tem sido tanto
produto de arranjos internos quanto pela influência do contato interétnico.
115
Um claro exemplo disto é José Benite (Karai Tataendy), professor bilíngüe e ex-
coordenador pedagógico no Magistério de Formação de Professores Indígenas, vice-
presidente do CEPIN, e atual cacique de Massiambu. Cabe destacar que José Benite,
com 28 anos de idade, ainda não constituiu sua própria família extensa. O reconhecido
prestígio de José como nova liderança e como cacique lhe permitiu se colocar na chefia
da aldeia de Massiambu por duas ocasiões (a primeira em 2003, sendo o cacique
anterior Silvio Duarte, e a segunda em 2005). Suas palavras explicam o interesse
individual e coletivo da formação do “novo líder político”:
“Então, a política do branco foi assim, meu objetivo mesmo foi de que,
aprendendo ou conhecendo a política do branco, seria o conhecimento de estar
defendendo meu direito. Não meu, o direito de todos nós, de todos os indígenas, não
o povo guarani na verdade. Ali já entra várias coisas. Na verdade, defender nosso direito
indígena em geral. Esse é meu objetivo, isso desde criança que é meu sonho e até agora
estou buscando meu sonho de chegar a ter conhecimento geral para defender nosso
115
Assis (2006:69-70) mostra o caso da aldeia Guapo’y, RS, onde uma liderança jovem (Inácio)
pertencente ao CEPIN (RS), ao querer tomar representatividade política dessa aldeia e a de sua esposa, foi
impedido por seu próprio pai (Horácio), ao mostrar a recusa da subordinação em consideração ao
prestígio e condição etária.
84
direito, direito dos povos indígenas. Então, esse é meu objetivo que agora estou
aprendendo muitas coisas, mas tenho que aprender mais ainda e trabalhar melhor para
defender nosso direito” (José Benite Karai Tatandy, Massiambu: 2/5/2006).
José Benite foi nomeado cacique pela comunidade de Massiambu devido a
vários aspectos. Além de sua formação acadêmica, desde muito jovem teve contato com
velhos caciques, dos quais aprendeu a prática da negociação, os métodos persuasivos e
busca do consenso nas aldeias Mbyá.
116
O constante interesse de conhecer e defender o
direito indígena, surgiu perante a necessidade de representar a seu povo:
“É uma necessidade que a gente tem para poder lutar por nosso direito, porque agora,
até uns tempos atrás, era o jurua que falava na vez dos índios, o jurua que representava,
que defendia, entre aspas, dizia que defendia. Então agora, desse lado que também a
gente está discutindo muito, agora a gente está começando a nós mesmo falar por nosso
direito, próprio índio falando por nosso direito. Então, isso foi um dos avanços que a
gente teve também com essa educação, apesar que não foi bem adequada ainda, a gente
está tendo essa vantagem. Tanto é que muitas vezes agora, são os índios que falam, a
mesmo da cultura, dos costumes, que antigamente só jurua que falava, os estudiosos, os
antropólogos que representavam os povos indígenas. Mas agora não, agora a gente está
vendo que não é certo o que eles faziam. E agora, para não acontecer isso a gente tem
que aprender a falar português, ter conhecimento das leis, tudo isso para o próprio índio
falando da cultura, a terra, tudo isso a gente está começando, principalmente o guarani.”
(José Benite Karai Tatandy, Massiambu: 2/5/2006).
A representação política das jovens lideranças expressa o desejo da sociedade
guarani: o acesso a recursos naturais renováveis, à mata preservada e terra suficiente
para sua sustentabilidade e reprodução cultural, sendo uma das suas principais
demandas. A aprendizagem do português, bem como o conhecimento da legislação e
sua vinculação com as entidades de apoio -principalmente o CIMI, CTI, CAPI e o
MU/UFSC- têm reforçado a imagem das lideranças jovens e a reivindicação coletiva
pelos direitos diferenciados a terra, a escola e atendimento à saúde, além da demanda de
políticas públicas encaminhadas para esta população, entre outras não de menor
interesse. Vinculados principalmente com o CIMI na questão dos problemas fundiários,
os deres Mb passam a considerar o órgão indigenista oficial, a FUNAI, como a
antítese das agências de apoio, e a seus funcionários como os principais “inimigos que
defendem a política do branco”. A FUNAI e a forma como esta se relaciona com os
índios, é para os Mbyá, a condensação do “sistema do jurua”, dos interesses privados,
116
José explicou-me na entrevista que o interesse do conhecimento da política Mbyá e sua relação com os
brancos surgiu quando ele morava em Misiones (AG), onde conheceu a Dionísio Duarte, líder Mbyá
referenciado em Garlet (1997:68) e Gorosito (2005).
85
da economia baseada na acumulação de capital, do faccionalismo político, do conceito
de terra como bem privado e material, entre outros aspectos negativos que se opõem ao
nhande reko.
A sociedade Mbyá, em especial as novas lideranças, nos últimos anos têm
utilizado sua auto-afirmação étnica através de “processos político-culturais de adaptação
criativa, que gera as condições de possibilidade de um campo de negociação
interétnica” onde o discurso ocidental é manipulado e subvertido para benefício dos
interesses dos índios, sendo uma característica do movimento social indígena (Albert,
2002:241). Tanto a expressão da auto-afirmação étnica, quanto a manipulação do
discurso ocidental são as formas de participação dos Mbyá na arena política nacional e
sua maneira de enfrentar o processo das relações interétnicas no contexto
contemporâneo. Como explica Manuela Carneiro da Cunha (2002:7) “...cada uma das
sociedades indígenas elabora à sua maneira e em vários registros sua entrada na
modernidade. Em pensamento, palavras, ações e omissões, cada uma participa da
construção de sua história, de nossa história”.
Para estes jovens líderes mb não têm sido fácil articular dois tipos de
pensamento político (o ocidental e o Mbyá), duas práticas e linguagens diferentes da
política, totalmente opostos. José explica como transita entre estas duas práxis:
“Eu falo mais como cacique. Aí eu falo assim, qual é meu pensamento que tenho
sobre a relação com outras aldeias, como que consideram a eles. Ai falo também de
apoio, se estou noutra aldeia, dou apoio: ‘qualquer coisa pode contar comigo’. Só que ai
também tem as regras, como a gente tem que se tratar, tem que tratar as coisas que vem
de fora, que ai também tem, por exemplo, que nós cacique, temos que fazer e..., que
aqui a gente tamos de cacique, a comunidade coloca nós para representar né, a
comunidade ...
“Então a diferença é que, quando a gente fala da política de cada aldeia, porque cada
aldeia, cada cacique na verdade tem suas regras, seu jeito de trabalhar com a
comunidade. Com as pessoas de fora mesmo chegando, os jurua, ai cada um tem seu
jeito de receber. E agora, a política do guarani em geral tem outro “segmento”; o
guarani tem um jeito de lidar com todas as coisas, com educação... a gente tem um
pensamento igual, na saúde... a questão das terras... a gente tem um único objetivo.
quando a gente vai cobrar das autoridades a gente está tudo junto, não tem diferença
nenhuma, a gente ta lá, fala, tudo mundo concorda. Então ali a gente tem esse tipo de
política, que a gente tem, a diferença é essa questão, cada quem suas regras, cada
cacique coloca suas regras, do que quer. Como que eles trabalham. Toda questão.
Dentro da comunidade tem várias coisas, tem suas regras de cada um.” (José Benite
Karai Tatandy, Massiambu: 2/5/2006).
86
Nas relações políticas interétnicas,
117
os Mbyá conformam um bloco, unificado e
representado pelas suas lideranças que para dito fim foram designadas. As decisões
tomadas nas aty guaçu são comunicadas em forma de consenso perante os funcionários
institucionais, pois significa que previamente os caciques, tekoaruvixas, xee ramoi
kuery e demais membros da coletividade, concordaram em tomar certa medida. Porém,
independentemente do consenso atingido e expressado nas reuniões, cada aldeia, cada
cacique, tem autonomia em relação às outras lideranças. Se por acaso, um cacique ou
alguma outra liderança percebe que o cacique de outra aldeia está atuando de forma
incorreta, então tenta convencê-lo utilizando mecanismos de persuasão.
Darci: “Sim, cacique pra trabalhar é difícil.
Sergio “Eduardo: porque é difícil?”
Darci: Porque tem que tentar conversar com o pessoal, com a comunidade para
organizar bem. Para isso é difícil, porque dá muitos trabalhos, e tem que tentar
conversar com pessoal, com calma pra que gostar do cacique né, porque se não também
o pessoal não vai querer gostar dele” (Darci Lino Gimenes Karai Tatandi, Tekoa
Marangatu:23/7/2006)
Na maioria das vezes isto funciona, porém, numa aldeia na qual coexistem
opiniões opostas, pode incentivar posicionamentos diferenciados e provocar cisões
políticas.
2.3. Relações políticas, mobilidade e ocupação
Nos tópicos anteriores vimos como a organização sociopolítica Mbyá se baseia no
sistema de parentesco, e também como na atualidade a influência de agências
institucionalizadas tem modificado esta organização acelerando o processo de formação
de famílias extensas. No mesmo sentido, a representação política de cada aldeia também
tem sofrido modificações, dando passo à emergência de novas lideranças, jovens que
por sua vez ainda não são reconhecidas pelo seu grupo como xee ramoi ou chefes de
famílias extensas. Podemos dizer que a formação de novas lideranças é uma estratégia
117
Me refiro quando acontecem reuniões entre instituições (governamentais e não governamentais) e a
comunidade Mbyá.
87
propriamente Mb para manter protegida a tradição, criando um tipo de “filtro
cultural”. As novas lideranças continuam subordinadas ao controle dos velhos xee
ramoi, embora os primeiros façam parte dos órgãos institucionalizados.
Porém, o sistema de parentesco e as relações políticas não podem ser pensados
fora do sistema de mobilidade. A “caminhada”, oguata, não se limita unicamente às
articulações sociais no plano religioso ou do parentesco; esta vai além do sentido
ontológico, da procura do bem estar pessoal e/ou coletivo, da escolha de parceiros
casadoiros ou da procura dos pais e outros parentes. A caminhada, a estadia em cada
aldeia, também tem uma motivação política que ultrapassa os vínculos parentais.
A fim de mostrar que a mobilidade responde tanto a motivações de ordem
interna quanto externa à sociedade Mbyá, como resultado de uma combinação de
eventos históricos e características culturais, Garlet (1997:141, 162-163) assinalou as
“visitas” como articuladoras das relações intestinas da organização social. Na
interpretação do autor, embora as visitas às aldeias de parentes dinamizem diversos
aspectos além das relações de parentesco -como a economia de reciprocidade, por
exemplo- são prioritárias as relações dentro do circulo de parentesco, cuja articulação
tece uma complexa rede de relações amplificada, abrangendo um amplo território.
Garlet (ibidem) considerou que a “unidade cultural” Mb depende da continua
mobilidade entre os tekoa, pois em cada visita se ativam os canais de circulação de
informações, de troca de diversos itens (principalmente de sementes tradicionais), se
dinamizam as práticas rituais, o intercâmbio de experiências e conhecimentos sobre
outros lugares, entre outros aspectos.
A interpretação dada por Mello (2001:48) às narrativas que registrou mostra que
a mobilidade Mb é propriamente de ordem interna, porém distingue duas
modalidades do mesmo fenômeno: o deslocamento inter-aldeias como resultado da
articulação entre as regras de parentesco e as de residência; e as migrações, que estariam
motivadas por determinações religiosas, ideológicas e também políticas. Neste sentido,
a caminhada entre a terra dos parentes é a conseqüência e não a causa da organização
social Mbyá.
A tese de Pissolato (2006) demonstra que a articulação entre parentesco e
mobilidade conforma uma esfera irradiadora de múltiplas causas, fatores e
conseqüências: o sentido ontológico do bem estar pessoal, a procura da companhia de
parentes próximos (sobretudo dos pais), a procura de parceiros para casar, a proteção
xamânica, a fuga pela feitiçaria, a procura da autonomia político-religiosa, todos estes
88
aspectos, entre outros tantos mais que a autora coloca, são a conformação da conjugação
entre parentesco e mobilidade. No seu intuito de desconstruir a família extensa como
unidade conceitual da sociedade Mbyá, Pissolato maior preponderância aos motivos
ontológicos e pessoais para a mobilidade multilocal, propondo o casamento como
aspecto-chave da multilocalidade. De tal modo, se a família extensa é composta por
relações de pessoas que se consideram casais-parceiros, mas sob a condução/proteção
de um casal liderança, então a mobilidade grupal de uma família extensa corresponde a
um “enfoque de orientações pessoais” (ibid, 147, 179).
Ao comparar a morfologia espacial dos tekoa com a conformação de unidades
sociais (grupos locais), Assis (2006:46) observou que não existe uma correspondência
“localizada” ou fechada em si mesma. Ou seja, um conjunto de grupos locais ou
familiares Mbyá se mantém em constante relacionamento com outros grupos (e com os
próprios parentes) noutras aldeias, que por sua vez, são a residência de membros
reconhecidos dentro de seu grupo parental, conformando uma “rede local”. Isto permite
a visitação ou po’u que além de ser a principal via para a efetivação da economia de
reciprocidade, é um mecanismo político, pois quanto mais são os hóspedes recebidos
maior é o prestígio representado por uma liderança na aldeia receptora; entre mais itens
sejam trocados e mais oferecimento de boa estadia (oferecimento inicial de beber ka’a
chimarrão-, comida, fumar o petygua, etc.) maior é o êxito da visita (Ibid, 67). Assis
também observou que as festas (casamentos, aniversários e datas comemorativas ao
estilo jurua) e os jogos de futebol, estruturam uma série de deslocamentos massivos,
onde o convite a uma aldeia tem como finalidade a obtenção de prestígio do cacique
(ibid: 72).
118
O que é importante marcar das pesquisas acima citadas é que orientam para
olhar as relações entre os parentes (independentemente do grau de extensão da unidade
analítica), partindo do fenômeno da mobilidade e desvendando as relações da política
Mbyá ainda pouco investigadas. De forma geral, os motivos do deslocamento pela via
política têm sido considerados como cisões entre lideranças, o que corresponderia ao
que Garlet chamou de “concorrência positiva” (1997:167), toda vez que estas são
manifestações da competição na tentativa da demonstração da autoridade baseada no
mantimento adequado da tradição e as normas culturais por cada uma das partes. Este
118
Um exemplo disso foi a Semana Cultural Mb Guarani (17 ao 23 de abril de 2006), durante a
comemoração do dia nacional do Índio (19 de abril) realizada em Massiambu. Os casos de campeonatos
de futebol e festas nas aldeias do litoral sul de Santa Catarina, será abordado no seguinte capítulo.
89
mesmo autor diz aque a demonstração das práticas culturais por parte de uma liderança
(não sempre considerada xamânica), tem como finalidade reunir grupos familiares a seu
redor, ultrapassando as relações de parentesco. Para Garlet, o deslocamento seria o
resultado de conflitos entre chefes de famílias extensas, uma vez que as alianças são
quebradas devido a desencontro entre os líderes (ibid: 169), o que daria a formação de
novas aldeias efetivando a articulação de novas alianças. Neste sentido, a mobilidade e
procura de novos locais amenizam as tensões e conflitos entre as lideranças, uma vez
que o afastamento permite a aquisição de autonomia e independência.
Este processo de cisão política e procura de autonomia, por sua vez resulta tanto
na conformação de um novo grupo de família extensa quanto na fratura de um grupo
familiar mais amplo. Para entender isto, Pissolato (2006:181) propõe considerar a
família nuclear como autônoma na tomada de decisões para se vincular a um ou a outro
grupo em discórdia, escolhendo se manter em relação ao pólo de liderança que
demonstre maior prestígio político, proteção xamânica e maior extensão da rede
parental. Embora a proposta de Pissolato seja focalizar a análise para as unidades
menores (a pessoa e a família nuclear), enquanto “corpos” autônomos com decisões e
vontades independentes, e construtoras das relações políticas e do parentesco, sua
pesquisa demonstra a dificuldade intrínseca de manter o afastamento analítico da
família extensa, tendo que considerá-la novamente como o conglomerado de relações
inter-pessoais e irradiadora do poder político e xamânico.
Dado que o fenômeno da mobilidade, o sistema político e o parentesco Mb é
um tema bastante amplo e multicausal, para encerrar este capítulo me limitarei a mostrar
os processos de alianças e cisões políticas observadas em Tekoa Marangatu, que surgem
a partir da expectativa da aquisição de áreas.
2.3.1. Liderança em Tekoa Marangatu
Como foi levantado no capítulo primeiro, a família extensa liderada pelo ex-cacique
Augusto da Silva e sua esposa Maria Guimarães,
119
foi a primeira beneficiada pela
aquisição da área localizada em Cachoeira dos Inácios, que depois foi denominada por
Maria como Tekoa Marangatu “Aldeia da Harmonia”. A trajetória desta família extensa
119
Lembre-se que Maria Guimarães é reconhecida pelos Mbyá como nhombo’e va’e, prestígio que se
estende além dos vínculos familiares, ao ser considerada uma xamã-professora.
90
e de sua liderança está referenciada em várias pesquisas e relatórios referentes à
ocupação Mbyá no litoral (Farias, 1997; Rosatto, 1998; Litaiff, 1999, et al 1999;
Darella, 2004; Bertho, 2005), sendo um exemplo do intuito guarani de preservação da
tradição. Desde o ano de 1990 até 2004, Augusto realizava a função de cacique:
primeiro na aldeia de Cantagalo, RS, depois em 1994 em Massiambu, SC, e
posteriormente em Tekoa Marangatu. Além de liderar seu próprio grupo familiar, o
casal conduziu um grupo de migração, ultrapassando os vínculos de sua parentela.
Considerando a definição de família extensa apontada no tópico 2.1., a parentela
liderada por Augusto e Maria se compõe de oito famílias nucleares, sendo os filhos do
casal-liderança três mulheres e cinco homens, todos eles casados (Anexo: genealogia
Família extensa de Augusto da Silva e Maria Guimarães). Com exceção de Gerônimo
Afonso da Silva, que mora em Massiambu, todos os filhos do casal moram em Tekoa
Marangatu. Este grupo parental mostra uma grande coesão, pois desde que o casal
decidiu sair da aldeia Cantagalo em 1991 na procura de um lugar para fazer tekoa,
passando depois a Massiambu e finalmente se assentar em Tekoa Marangatu, os filhos
sempre estiveram apegados à figura da mãe, Maria.
O começo da caminhada liderada por este casal foi marcado pela morte do pai de
Maria, Antonio Guimarães, em Cantagalo, o que significou a tomada da representação
político-religiosa e a autonomia de seu próprio grupo parental, efetivando o papel de xee
ramoi para Augusto e xee jaryi para Maria. Outra questão que motivou a saída de
famílias de Cantagalo durante a década de 1990 foi o incremento demográfico, como
explica Augusto: “Depois, como tinha muita gente, muito índio já, não dava mais para
plantar, não tinha mais lugar”.
Outras famílias que saíram de Cantagalo seguindo a rota de Augusto e Maria
foram a de Timóteo de Oliveira e Luiza Benite, a de Narciso de Oliveira e Hilda Benite
e, posteriormente, a de Darci Lino Gimenes e Marta de Oliveira.
120
Durante a estadia da
família de Augusto e Maria em Massiambu, o grupo migratório dividiu-se, passando a
morar os irmãos Timóteo, Narciso e Marta na aldeia de Morro dos Cavalos; porém, por
ocasiões, as famílias alternavam sua residência entre estas duas aldeias, fenômeno muito
recorrente devido à sua proximidade. Posteriormente, quando a aquisição da área de
120
Timóteo, Narciso, Marta e Paulo são filhos de Lorenzo Oliveira e Alicia da Silva Kerexu –o primeiro
falecido em Tekoa Marangatu-, que também moravam em Cantagalo e após a morte da xee jaryi Alicia,
seguiram ao grupo migratório liderado por Augusto e Maria. Considerei não incluir a trajetória de Paulo
de Oliveira por estar ausente nas narrativas tanto do deslocamento quanto do processo de ocupação em
Tekoa Marangatu. Atualmente Paulo é professor bilíngüe no Morro dos Cavalos.
91
Tekoa Marangatu em 1999-2000, os primeiros ocupantes foram Augusto e Maria com
alguns de seus filhos, pois houve alguns que ficaram em Massiambu; e também a
família de Timóteo de Oliveira e Luiza Benite, apresentando os primeiras tentativas de
conformar sua família extensa.
121
A autoridade e liderança reconhecida em Augusto e Maria, se estendia além dos
laços de parentesco.
122
Na figura de Augusto se concentrava sua capacidade de fala com
“os parentes”, ou seja com os demais Mbyá e chefes de famílias extensas, o que lhe
possibilitou obter reconhecimento e prestígio como liderança política. Também se
reconhecia seu poder para manter relações com os jurua e suas agências, tanto é assim
que como resultado dessas relações em duas ocasiões “conseguiu” dois locais como
assentamentos Mbyá. O reconhecimento de Maria como nhombo’e va’e também se
manifesta ao longo da trajetória, como dirigente do grupo da migração. Seu prestígio é
mais xamânico, e a ela se reconhece aptidão na interpretação dos sonhos, sabedoria e
conhecimento do nhande reko. O prestígio é mais evidente quando a figura feminina do
casal/liderança consegue manter coeso seu grupo parental. O prestígio do
casal/liderança não é exclusivamente “usufruído” por alguma das partes, mas é uma
atribuição e responsabilidade mútua, que deve ser mantida em complementaridade.
Nesse sentido, quisera colocar que com o fim de manter coeso ao grupo parental, no
casal-liderança a função do homem corresponde à procura do reconhecimento de sua
autoridade por parte dos seus genros, enquanto à mulher corresponde manter próximos a
seus filhos varões, seja através de constantes visitas ou convencendo-lhes a morar na
mesma aldeia.
123
Em ambos os casos, o casal utiliza a palavra e a fala como meio de
persuasão.
Sendo que a família de Augusto conformava a maioria da população na aldeia,
este grupo parental tinha preponderância sobre as outras famílias nas decisões tomadas
nas aty guaçu. Este aspecto, junto à coesão familiar, permitiu que Augusto se
mantivesse como cacique e que seus filhos realizassem as funções como agente de
121
A família de Carlitos Pereira e Rosa Domingues, que morava em Massiambu, também foi parte
constituinte dos primeiros ocupantes de Tekoa Marangatu. O vínculo entre esta família e a de Augusto se
deu a partir do casamento entre Floriano da Silva e Francisca Pereira. Segundo Floriano, a saída da
família de Carlitos foi em 2002, para formar o tekoa de Amâncio, Biguaçu, SC.
122
O vínculo parental entre Timóteo e Augusto viria da parte de Luiza, esposa do primeiro e prima-irmã
de Maria Guimarães, esposa do segundo (Darella, 2004:22); porém, ambos não se reconhecem como
muito próximos.
123
Cadogan atribui às mulheres a responsabilidade social “das conseqüências do excesso de amor para os
filhos (como na caminhada a mãe procurava satisfazer o desejo do filho), no afã egoísta de tê-los
constantemente ao seu lado” (apud Ciccarone, 2001:67).
92
saneamento (Cláudio da Silva), agente de saúde (Floriano da Silva) e professor bilíngüe
(Eduardo da Silva), enquanto em Massiambu, Genônimo Afonso da Silva ficou como
agente de saúde, funções que realizam até hoje. Outro aspecto a considerar é que
enquanto Augusto se manteve como cacique, o grupo de coral que tinha sido formado
primeiramente em Massiambu, sob a direção de Inácio da Silva, yvyra’i e filho de
Augusto, continuou sendo o grupo que representava a aldeia nas apresentações e saídas
às cidades, recebendo as doações e controlando a distribuição dos recursos. Na época,
uma atividade freqüente para obter recursos era o convite para que escolas visitassem a
aldeia em troca de doações.
Como foi apontando no tópico 1.4.2. do capítulo anterior, desde o ano 2002
foram efetivados dois projetos de duas agências diferentes: o Projeto de Extensão Sem
Tekoa não Tekó-Sem Terra não cultura” da equipe multidisciplinar do MU/UFSC
e o projeto “Autosustentação, Renda e Saneamento” do convênio FUNASA/Associação
de Ex-Rondonistas. Estes projetos colocaram como intermediário, além do cacique
Augusto, a Timóteo de Oliveira, que era vice-cacique da aldeia, obtendo assim uma
maior representatividade política, a qual, em combinação com o prestígio como karai
opygua, ofereciam a Timóteo a possibilidade de formar sua família extensa e obter sua
autonomia. A chegada em 2003 da família de seu irmão, Narciso de Oliveira, sua esposa
Hilda Benite e seus cinco filhos, contribuiu para fortalecer a posição de Timóteo.
A conjuntura que se deu a partir da mudança da representação política em Tekoa
Marangatu se deve a vários fatores. O principal se refere à questão do prestígio:
enquanto Timóteo procurava aglomerar seus parentes próximos e reforçava sua postura
como liderança religiosa, Augusto foi perdendo prestígio social devido ao excessivo
consumo de bebida alcoólica. Somado a isto, a doença da mãe de Augusto o obrigou a
se deslocar até San Miguel, em Misiones (AG), deixando Tekoa Marangatu por um
período longo. Embora a família de Augusto e Maria não apresentasse uma crise interna
muito evidente, como seria a disputa entre irmãos, a doença projetava desprestígio
social perante os demais grupos familiares, pois em certo sentido, a crise é atribuída a
relativo distanciamento da proteção divina causada pela transgressão das normas sócio-
religiosas. Ciccarone explica que a perda da proteção divina de um xamã ou liderança,
deriva de uma crise generalizada na aldeia, a qual fica vulnerável ao ataque dos espíritos
maléficos, o que faz necessário que o mesmo xamã retome seu poder ou, do contrário,
seja substituído por outro xamã-liderança que cumpra a função de protetor divino
(Ciccarone, 2001:95). A crise enfrentada por Augusto atingia Maria, diminuindo suas
capacidades de proteção xamânica. Augusto, aflito pela situação de crise que
enfrentava, antes de fazer a viagem decidiu convocar a um aty guaçu para ver quem ia
ficar como cacique da aldeia. A comunidade decidiu colocar ao karai opygua Timóteo
como cacique.
Outro aspecto a se ponderar é a perda da coesão que a família de Augusto e
Maria havia mantido entre os diversos grupos parentais desde que foi ocupada a área.
93
Embora seja evidente que na época a família de Augusto e Maria era a mais populosa da
aldeia, os outros grupos familiares aceitavam a condução político-religiosa deste casal-
liderança. Enquanto Augusto se manteve como cacique, a maioria dos membros da
aldeia reunia-se na Opy do grupo familiar dele. O karai opygua Timóteo e os yvyra’i
(Leandro e Inácio) realizavam os rituais de cura noturnos deste local. Isto parece
mostrar uma conformação inicial mais ou menos coesa entre os grupos parentais de
diferentes famílias extensas. A explicação do yvyra’i já Leandro, que é vinculado ao
grupo parental de Timóteo, sobre o significado do nome do tekoa, exemplifica bem esta
situação:
Leandro: “É porque essa música quando a gente fez era, os primeiros que viemos
aqui, nós estávamos bem alegre, bem saúde, porque nesta aldeia não acontecia nada
quando chegamos aqui. Então significa, Marangatu, significa “Aldeia da Harmonia”,
da harmonização, sempre nós vivíamos em harmonia. Então a gente fez essa música:
Tekoa Marangatu, quer dizer “Aldeia da Harmonia”.
Sergio Eduardo: “Mas tu falou ‘antigamente’, então agora não é assim mesmo? Agora
não tem harmonia?
Leandro: “Quando nós chegamos, depois tinha casa de reza, que é Opy, estávamos rezando e tudo mais. E depois paramos um
pouco, porque não tinha mais casa de reza, só algumas casa que a gente rezava. Então a criançada esqueceu de tudo o que nós
vivíamos quando chegamos antes. Antes que nós chegamos aqui era bem legal mesmo, porque não existia, quase pessoa não
tinha televisão, essas coisas, então a gente vivia bem sossegado mesmo. todo mundo trabalhava junto. Agora já...
Sergio Eduardo: “Porque acabou a primeira Opy que fizeram?
Leandro: “Porque na verdade não sei direito, pra falar a verdade. Porque muitas
vezes, quando a gente fala em reunião, alguma pessoa fala que não ia fazer uma casa
de reza de novo pra continuar essa harmonia. algumas pessoas dizem que não
querem falar mais sobre isso, que a gente não precisa, e tudo essas coisas.
Sergio Eduardo: “Tem pessoal que em reunião fala isso: que não querem mais casa de
Reza?
Leandro: “Tem. Primeiramente a gente falava que ia fazer casa de reza, depois três
quatro pessoas que falam e falam e não faz, e depois desanimou. Depois disso que
agora a gente esta fazendo casa de reza de novo. Eu espero que a gente volte de novo
na mesma alegria que nós tínhamos antes.
[...]
Sergio Eduardo: “O que tu fala pro pessoal que não quer casa de reza, e que está
utilizando cada vez mais coisas do branco?
Leandro: “Eu falei só uma vez isso. Depois que aconteceu esse negócio, parei de falar
sobre casa de reza.
Sergio Eduardo: “Quando foi isso?
94
Leandro: “Muito antes de construir essa casa [Opy atual]. Acho que um ano ou dois
anos.
Sergio Eduardo: “E quem era esse pessoal?”
Leandro: Algumas pessoas. Não posso dizer os nomes deles. É pessoal da aldeia
mesmo”. (Leandro Fernandes Kuaray Miri, Tekoa Marangatu: 28/7/2006)
A fala de Leandro mostra que os posicionamentos contrários colocados nas
assembléias da aldeia em relação à construção da Opy, manifestam à cisão político-
religiosa entre os grupos familiares, enfaticamente em detrimento ao prestígio da família
de Augusto e Maria.
124
Perante a ausência de Opy, cada família individualizou suas
rezas, porém, se percebe que quem tomou preponderância, tanto no sentido político
quanto religioso, foi o novo cacique, o qual mantinha certo prestígio representado
através das práticas xamânicas. Timóteo e seus parentes (as famílias nucleares de
Narciso e Leandro) utilizam a cozinha do xamã para a realização de rezas noturnas.
Apesar de Timóteo ter sido escolhido como o representante da aldeia, no
sentido estrito da tradição Mbyá, havia um elemento que faltava: este ainda estava em
vias de constituir sua família extensa. Hoje com 34 anos, e sua esposa Luiza com 58,
Timóteo não possui ainda o reconhecimento de xee ramoi, pois seu filhos e netos são
produto de matrimônios anteriores que em sua maioria não moram na aldeia.
125
Porém,
ele reconhece como próprios os filhos, filhas e netos de Luiza (Leandro, Afonso
Tukumbo, Neusa), que sim residem em Tekoa Marangatu.
126
Outro elemento a
considerar é a morte de Lorenzo de Oliveira, pai de Timóteo, que faleceu em Tekoa
Marangatu em 2002, o que significou que correspondia a Timóteo liderar sua parentela.
Para obter reconhecimento pela via política, Timóteo deslocou-se em várias
ocasiões para a aldeia Pindoty, em Sete Barras (PR) e Rio Silveira (SP), onde se
encontram espalhados seus parentes próximos. Nas suas viagens falava para seus
parentes quão boa era a terra para fazer plantação em Tekoa Marangatu, que tinha
suficiente água e estava afastada dos brancos. Além de oferecer uma descrição das
características da aldeia, enfatizava que ele era o cacique e que estavam convidados para
124
É importante considerar como contribuição ao desprestígio de Augusto, a saída de Tekoa Marangatu
de sete famílias nucleares em 2002 (entre as que destacam Carlitos Pereira e Rosa Rodrigues, assim como
a de Leonardo da Silva Gonçalves Werá Tupã e Cláudia da Silva), as quais formaram o Tekoa Mirí Ju, na
localidade de Amâncio (Darella, 2004:311).
125
Santa é a única filha de Timóteo que mora na aldeia, portanto, sua demais descendência congênita
mora na aldeia de Rio Silveira, SP.
126
Espera-se que numa data próxima Alfonso Tukumbo, junto com sua esposa não-índia e filho, morem
na área que será adquirida no próximo ano, onde assumirá a função de cacique, como dispõe Timóteo.
Neste caso fica claro como a função da mulher-mãe é manter próximos seus filhos.
95
visitá-la quando quisessem. Foi assim que Alcides da Silva Verá Rete se convenceu,
junto com sua esposa e família, de ir a morar em Tekoa Marangatu: “E para conhecer
essa aldeia foi ele [Timóteo] que foiem Pindoty [PR], aldeia Pindoty, foi lá. Primeiro
não conhecia ele, foi e já conheci, porque meu parente. Por isso conhecer a onde que
ele mora, aqui aldeia Marangatu. Que [Marangatu] a planta bem, água não falta,
não tem problema da terra.”
Sem querer fazer um julgamento apressado, considero que o crescimento
populacional em Tekoa Marangatu desde o ano 2004 a 2005, se deveu a esta prática de
persuasão na procura de prestígio político e social. Em 2004 se assentou no Tekoa
Marangatu a família de Darci Lino Gimenes e Marta de Oliveira, grupo familiar
vinculado politicamente a Augusto e parietalmente a Timóteo (Darella, 2004:40). Em
2005 chegaram Alcindo Gonçalves Karai Jekupe e Teresa Tibe, família que se vincula a
Timóteo por parte do pai de Teresa.
127
A última família extensa que chegou a ocupar
Tekoa Marangatu foi a de Alcides da Silva Verá Rete e Abelina da Silva no mês de abril
de 2005. Tanto a família de Darci quanto a de Alcindo se deslocaram de Morro dos
Cavalos, enquanto que a de Alcides, ao sair de Pindoty, só fez uma parada nessa aldeia.
Na medida em que estes grupos familiares se assentavam na aldeia, os
conflitos entre Augusto e Timóteo se intensificavam. Dado o pouco espaço para a
construção de casas e de disponibilidade de espaço para plantações familiares (kokue),
Augusto se mostrava um tanto incomodado com a chegada de novas famílias, pois
percebia que elas,
128
apoiando a Timóteo, podiam tirar ainda mais seu prestígio como
liderança política. Foi então que decidiu retomar sua posição como cacique.
De forma geral, os moradores da aldeia viam este conflito de forma negativa
para as duas partes (tanto para Augusto quanto para Timóteo). Ao perguntar a um xee
ramoi sobre o desempenho de Timóteo como cacique, respondeu: “Tem que fazer mais.
Está mais ou menos por enquanto. Meio contrário com outra pessoa, sabe quem é?, o Sr.
Augusto. Acho que esse assunto tem que resolver porque está contrário com Augusto.”
127
Laurindo Tibe, que atualmente mora na aldeia, era meio irmão de Lorenzo Oliveira. Pela explicação de
Alcindo, parece que este grupo familiar vem acompanhando o Sr. Laurindo: “[Laurindo Tibe] estava
doente aqui [Marangatu], cinco anos que estava doente porque não podia mais caminhar. Daí a mulher
dele aqui o convenceu, o Timóteo trouxe pra cá, vai até cinco anos, começou andar agora. Já não sente
mais, por causa do tempo, uma pessoa velho, às vezes doença pega de tudo.” (Alcindo da Silva Karai
Jekupe, Tekoa Marangatu:27/7/2006).
128
Chase-Sardi observou nos Avá-Guarani do Paraguai que a negação do assentamento de novas famílias
nas aldeias é um mecanismo que regula a disponibilidade aos recursos “para sufragar al crecimiento
vegetativo de la comunidad” (Chase-Sardi, 1992:119), porém, reconhece que quando se trata de grupos
vinculados pelo parentesco, “no se puede negar esta hospitalidad” (Ibidem).
96
Garlet (1997:132) e Pissolato (2006:107) apontam como critério para a
permanência numa aldeia as características da liderança local e suas formas de controle
social. No período em que Augusto era cacique, estava “liberada a pinga”, não tinha
restrições sobre o consumo de álcool, mas as festas e “forrós” do estilo jurua estavam
proibidos. Após Timóteo ter assumido como cacique, proibiu o consumo de álcool,
porém, alguns moradores desacatam a proibição. Em relação a isso, é um reclamo que
Timóteo faz aos moradores do tekoa, e seu principal argumento contra os que colocam
em oposição a ele, mesmo que sejam seus parentes.
“... sabe por que que gosto mais [do Timóteo enquanto cacique]? Porque não tem
ordem pra comprar pinga. Porque se compra pinga às vezes briga e se trata mal, daí
trancou. Depois que trancaram, Augusto quando voltou da Argentina começo a falar
com da venda [mercado local], e é que o da venda não vem aqui, o da venda fica
sabendo que o cacique é o Augusto. Então por isso que tudo mundo vai atrás de
Augusto pra venda, que liberaram de novo porque o Timóteo não sabia que liberou
pinga. Agora tudo mundo compra, bebe, cai pela estrada, é isso que é contrário a
trabalhar. Agora estão bebendo, cada semana direto. Cacique ele sabe mas não fala
mais. ‘Se eu tranco, não obedecem, não adianta falar’.[...]” (Anônimo)
129
Este é um exemplo de eclosões de conflito por causa do espaço restringido e a
aglomeração excessiva de grupos familiares. Dentro da organização político-social
guarani, a solução ao conflito seria a saída do grupo familiar em posição
desprivilegiada, procurando outro local para fundar um novo tekoa, porém, devido às
condições reais de disponibilidade de terra, os conflitos vêm se intensificando. Durante
todo o trabalho de campo, somente numa ocasião vi que Timóteo e Augusto se
aproximaram: Inácio estava doente e precisava do tratamento terapêutico do karai
opygua e dos yvyra’i , e então Timóteo e Leandro acudiram à casa de Augusto e
Maria para curar seu filho. No dia seguinte, depois do trabalho terapêutico, Timóteo e
Augusto ficaram bebendo chimarrão no pátio da casa do ex-cacique. Evidentemente as
práticas religiosas e terapêuticas vêm a amenizar, ao menos temporariamente, as tensões
entre as famílias.
Existe algo mais a considerar. Dado que Tekoa Marangatu é uma área
adquirida que se atribui ao intuito do Augusto como cacique e liderança política em
relação às instituições do jurua, seu grupo familiar –e aos olhos das outras famílias
também parece- considera à área como sua; não no sentido de propriedade, mas como
merecedores e responsáveis por ela. Em relação a isso, os processos de aquisição e
129
Por questões óbvias, considero necessário manter no anonimato a identidade da pessoa que ofereceu
este depoimento.
97
compra de terras vêm transformando não só a organização sociopolítica Mbyá na
aceleração da formação das famílias extensas e sua representatividade, mas também no
sentido de conceber ao tekoa como o que se poderia descrever por “coisa minha”.
Chase-Sardi (1992:119) registrou entre os Avá-Guarani paraguaios o termo Che mba’e
tee, que seria o mais próximo a esta noção, pois entre os grupos guarani não existe a
propriedade como tal, ainda menos no referente à terra. A compra de terra também
representa fixação no local, o que significa a impossibilidade de abandono e a
dificuldade das famílias de se deslocar no caso de conflitos internos. Porém, o “sistema
jurídico mbyá” tem sido suficientemente flexível para se adaptar a estas circunstancias,
efetivando estratégias de re-ordenamento sociopolítico, como seria a constituição de
dois caciques: um nominal e outro efetivo.
Em minha última visita a Tekoa Marangatu em dezembro de 2006, os
moradores afirmaram que, naquele momento, a aldeia contava com dois caciques. Um
deles continuava sendo o xamã-cacique Timóteo de Oliveira, que mantém esta função
para ser beneficiário, junto a seu grupo parental, da aquisição da nova área. A este
corresponderia a função de cacique “nominal”, pois seu desempenho em Tekoa
Marangatu unicamente corresponde a seu relacionamento com as instituições das quais
receberam a indenização e aquisição da nova área (FUNAI, INCRA, Procuradoria da
República), para continuar sendo cacique nela. O outro cacique é Eduardo da Silva,
filho do ex-cacique Augusto da Silva, que através de uma aty guaçu foi eleito novo
dirigente político e espera permanecer nesta função depois da saída de Tekoa Marangatu
da família de Timóteo. Nesse momento o conflito entre as lideranças Timóteo e
Augusto, relatado neste capítulo, ficou um tanto amenizado pelo arranjo político
discutido através da aty guaçu. Sem dúvida, o consenso atingido na aldeia resulta da
expectativa positiva na compra de terra, como uma conseqüência harmoniosa ao
conflito político. Por outro lado, o contexto de aquisição de áreas permitiu a co-
existência (meramente operacional) de duas lideranças políticas, cada uma aguardando
conseguir seus objetivos após a ocupação do novo local. Isto demonstra a flexibilidade
da organização sociopolítica guarani e sua adequação perante as circunstancias
provocadas –tanto positiva quanto negativamente- pelas relações interétnicas.
98
CAPÍTULO 3
TEKOA MARANGATU: TERRITÓRIO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO
A noção antropológica sobre “territorialidade” abrange categorias que definem a
organização do espaço: limites geográficos, agrários, jurisdições políticas e
administrativas, ambientais; onde a definição do território em termos simbólicos –
principalmente entre os povos indígenas- constitui um interesse especial, porque estes
são “construídos” partindo das representações em acordo a uma lógica interna própria
das culturas (Barabas, 2003:20). Alicia Barabas (2003:21-22) define que o conceito de
território é uma modelação cultural dos espaços geográficos, sendo um produto de
relações sociais em permanente transformação. Nesse sentido, os territórios
reconhecidos simbolicamente pelos nativos são definidos pela dinâmica da
tradicionalidade e sua adaptação aos contextos histórico-sociais.
Os territórios simbólicos constituídos pelas sociedades indígenas, embora
tenham sido fracionados pelos limites e fronteiras impostas pelas sociedades nacionais,
têm sido conservados na memória desses povos e efetivados por suas práticas rituais e
culturais. Como resultado da fragmentação e alteração histórica dos territórios indígenas
–sendo um produto da criação de fronteiras nacionais, estaduais e municipais- os grupos
étnicos, em resposta, reivindicam sua permanência no território, estruturando a noção de
territorialidade como um instrumento de defesa e direito político-histórico
fundamentado nas práticas culturais. O território guarani é reconhecido historicamente
pelo grupo através de sua memória, ao mesmo tempo em que é re-criado através das
práticas culturais. De tal modo, os espaços ocupados pelos Mb constituem um
território em constante construção, constituindo um espaço geográfico com
características simbólicas diferenciadas, que pertencem a categorias próprias do “mundo
mbyá” (Ladeira, 2001:13).
Neste último capítulo, partindo do conceito da territorialidade Mbyá, explicarei
como vem sendo efetivado o processo de reterritorialização em Santa Catarina, tomando
como exemplo o caso de Tekoa Marangatu, a partir das explicações dos próprios Mb
99
sobre suas motivações de ocupação. Ao mesmo tempo, baseado na interpretação de
território tradicional, explicarei os meios de re-significação no processo de ocupação
deste tekoa, como exemplo da construção do território baseado na tradicionalidade.
3.1. A noção de território Mbyá
O território mbyá vem sendo pensado pelos membros desta etnia como “uma construção
fundamentada em memória, conhecimento, palavra, sentimento, experiência,
espiritualidade, movimento dos Guarani, combinando aspectos geográficos, históricos,
sociais, econômicos e culturais sem precedentes” (Darella, 2004:66). O território mb
imprime um continuum de teoria e práxis, que manifesta uma existência coletiva dentro
de um sistema integrado. Noutras palavras, dado que não existe um conceito guarani
que se refira exclusivamente à conotação ocidental de “espaço geográfico”, os mbyá
percebem os espaços por eles ocupados como “seu mundo”, um território que integra
todas as esferas de sua existência, imprimindo princípios éticos, religiosos, de
subsistência e vivência (Ladeira, 2001: 30, 109).
Nesse sentido, os Mbyá constroem seu conceito de território através das práticas
culturais, ao mesmo tempo em que o território permite a atualização destas. Vemos,
portanto, uma interdependência entre a noção de território e a reprodução cultural.
Para os Guarani, a geografia é um mapa dos mitos, pois os lugares servem como
referentes das histórias dos heróis divinizados, “dos antigos”, onde eles conseguiram a
perfeição e também como possíveis locais a serem reocupados. Através disso -entre
outros tantos aspectos- estrutura-se o território simbólico Mbyá. Não poderia ser de
outra forma se os espaços não oferecessem as condições necessárias para atingir a
morada dos deuses. Porém, vemos que cada dia as condições ambientais correspondem
cada vez menos ao espaço que descrevem os xee ramoi nas suas histórias,
principalmente no referente à mata virgem e à disponibilidade de espaço para a
plantação, sendo as preocupações primordiais dos Mbyá. Perante esta ambígua
realidade, os Mbyá continuam procurando e ocupando espaços –principalmente no
litoral- onde, embora minimamente, possam reproduzir suas práticas culturais, pois o
contato com “o branco” e a dependência à sua economia para subsistir, tem diminuído a
esperança de muitos guarani de atingir a Terra sem Mal. Como explica Mello
(2001:113), atualmente os deslocamentos e a ocupação dos espaços não é uma busca
100
propriamente da Terra sem Mal, mas o mantimento do nhande reko, ou seja, das
práticas culturais. A autora coloca:
“Se não for alcançada em vida [a Terra sem Mal], deve-se, ao menos, em vida
alcançar um local apto à criação de uma tekoá, e a partir daí, trabalhando essa terra
segundo os preceitos sagrados, estabelecer as formas de manutenção do nhanderekó,
estando apto a ascender ao plano divino na vida post mortem para a Terra sem Mal.”
(Ibid:114)
A pesquisa de Ladeira (1992), assim como muitas outras,
130
foi influenciada pela
noção de que o território Mbe as constantes migrações ao leste, correspondiam na
procura de lugares adequados no intuito de atingir a Terra sem Mal. O território, então,
era relacionado às práticas religiosas e ao mito de Yvy Maraey, em correspondência com
os movimentos migratórios ao leste; também era definido através de uma extensão
geográfica e baseado nos registros históricos. Porém, as condições ambientais atuais não
preenchem satisfatoriamente os requisitos culturais necessários para a ocupação, e o
mito “Terra sem Mal” aparece como justificativa do processo migratório.
Essa paradoxal definição do território Mbapontada por Ladeira, foi um dos
principais estímulos de Garlet (1997) para procurar uma outra definição. Como foi
mencionado anteriormente, Garlet caracteriza ao território Mbyá como amplo, definido
e em expansão, mas descontinuo e articulado pela prática da mobilidade e circularidade
entre as aldeias. A circulação dentro do mesmo espaço permite aos Mbdefinir sua
territorialidade, processo que tem sido intensificado pela reterritorialização. A
reterritorialização implica “re-localização no espaço”, e segundo explica Garlet, este
processo “exige uma justificativa por parte do grupo”, efetivada através da memória e a
re-elaboração dos mitos (ibid:18-19) e, ao mesmo tempo, fundamentada no direito à
ocupação ancestral: um direito histórico. Na perspectiva do autor a mobilidade-
circularidade mbyá é a estratégia desta sociedade para manter o nhande reko, bem como
o aproveitamento dos recursos sobre novos espaços.
Para Darella (2004:68) a territorialidade mbyá, especificamente os aldeamentos
do litoral catarinense, é efetivada mediante as práticas de ocupação, e é nesse sentido
que o território é uma construção temporal e espacial que tenta concretizar os preceitos
religiosos, especificamente ao referente à Terra sem Mal. A fundação de um tekoa, a
construção de uma Opy, a construção de uma casa (oo) e a periodicidade do ritual do
130
Consultar a introdução.
101
nhemongarai –nominalização das crianças e o recebimento das palavras-alma- entre
outros tantos, são elementos que permitem conjugar as prescrições culturais com a
prática de ocupação. A realização destes elementos resulta na necessidade de se levar
uma vida dentro do “modo de ser” guarani, que no fundo representa o intuito de manter
a pureza, a fortaleça do espírito (i mbaraeté), a perfeição (aguyjé) e a imortalidade
(kandiré) para atingir a Terra sem Mal.
Dado que a reterritorialização exige uma justificativa, tanto para o próprio grupo
quanto para a sociedade envolvente, esta é realizada mediante a re-elaboração dos mitos
e a re-configuração da memória. Portanto, neste processo de reterritorialização Mbyá
não se pode deixar de considerar o mito da Terra sem Mal como norteador das
ocupações ao longo do litoral. Considero que o mito de Yvy Maraey é uma explicação
introspectiva dos Mbyá para atribuir razões para o assentamento à beira do mar
concomitante à procura de matas mais preservadas; enquanto a mobilidade, a
circularidade e a ocupação são amostras da concretização das práticas culturais na busca
da perfeição, bem como da necessidade de procura de locais aptos para reprodução
social e biológica do grupo. Com certeza, as relações interétnicas, assim como os
contextos fundiários, tem influído significativamente na conotação atual do “território
guarani”, na qual a demarcação de suas áreas está imbricada nas categorias nativas e a
definição de seus espaços (Ladeira, 2001: 13).
Nos processos de ocupação fica expressado o intuito dos Mbyá em achar locais
que correspondam ecologicamente a suas formas de subsistência (físicas e culturais),
que por sua vez são norteadas por prescrições de ordem mitológica e histórica, seguindo
o exemplo da vida dos antigos (nhande reko). Explicando o conceito de tekoa e o
processo “tradicional” de ocupação, será possível entender a elaboração da re-
significação do território, assim como da apropriação daqueles espaços que podem ser
considerados como “não-tradicionais”.
3.1.1. Tekoa e teko
Hoje, os espaços ocupados pelos Mbyá se constituem a partir da intercomunicação entre
os diversos aldeamentos espalhados numa ampla extensão geográfica, a qual foi
apontada no tópico 1.1 do capítulo primeiro. Cada aldeia é denominada como tekoa,
termo que recebe um tratamento especial, pois não unicamente se refere ao local de
residência ou ao espaço usufruído pelo grupo, mas o lugar onde é possível reproduzir “o
102
modo de ser guarani” (Melià, 1986; Ladeira, 1989:336 apud Litaiff, 1996:49), tanto no
sentido individual (teko), quanto coletivamente (nhande reko).
Teko, segundo a definição de Melià, Grünberg e Grünberg (1976: 186-189), é a
forma individual do “autentico y verdadero modo de ser guarani”, sendo a conceituação
e reflexão do sistema guarani; é a condensação de idéias, categorias, normas, leis,
pautas de comportamento que definem o modo de ser. Os autores distinguem três tipos
de teko: teko katu (condição pessoal), teko marangatu (modo de ser religioso) e teko
porã (normas e valores éticos baseados na reciprocidade). Porém, o teko não pode ser
realizado fora da cultura e sem o referente ao coletivo (nhande -nós). “El ñande reko
pone de relieve este especto de diferenciación cultural, que incluye un tipo especial de
organización social, una lengua y un lenguaje propio (con sus formas particulares de
‘pensamiento’ y de simbolización’, una religión tradicional, una economía especial, etc”
(Ibid, 189). A realização do nhande reko depende também da sua fundamentação na
ancestralidade, remontando à existência primogênita dada pelos deuses: ñande reko
mboypyhare (ibidem).
De tal forma, o espaço para fundar uma aldeia deve oferecer as condições
necessárias para reproduzir e transmitir o nhande reko. A explicação de Bartomeu Melià
sobre a conotação de tekoa, associado à existência Mbyá, tem múltiplas acepções
cosmológicas e sociológicas:
Teko é, segundo o significado que lhe dá Montoya em seu Tesoro de la lengua guarani
(1639:f.363s), ‘modo de ser, modo de estar, sistema, lei, cultura, norma,
comportamento, habito, condição, costume...’ Pois bem, o tekohá é o lugar onde se o
as condições de possibilidade do modo e ser guarani. A terra, concebida como tekohá é,
antes de tudo, um espaço sócio-político. ‘O tekohá significa e produz ao mesmo tempo
relações econômicas, relações sociais e organização político-religiosa essenciais para a
vida guarani. Ainda que pareça um paralogismo, temos que admitir, juntamente com os
próprios dirigentes guarani, que sem tekohá não teko’”(Melià, 1986:105, apud
Mello, 2001:41)
Com esta sentença, fica explícito que o tekoa é o fundamento do teko (modo de
ser guarani), tanto na sua concepção individual quanto coletiva, e vivenciada de forma
atualizada; ao mesmo tempo em que o teko, ou melhor dizendo, o nhande reko -como a
forma coletiva do modo de ser guarani (nossa cultura)- é o fundamento da condição e
existência do tekoa. A interdependência entre o “modo de ser” e o “lugar da reprodução
cultural” são orientados pela ancestralidade, a vida dos antigos, do “modo de ser antigo
e verdadeiro”. Também, o tekoa oferece uma integração de três planos: a articulação
103
entre a sociedade, a natureza e a sobrenatureza, pois as condições do espaço devem
oferecer à sociedade Mbyá a possibilidade de transcender o plano mundano, manter a
constante comunicação com as divindades e finalmente, atingir o estado de perfeição e
imortalidade no plano divino (Darella, 2004:80). No sentido ideal, o tekoa seria a
“plataforma” para acessar a Terra sem Mal, superando a condição humana, mas
condicionada a uma existência terrena de pureza, pelo que as condições ecológicas
favoráveis são imprescindíveis.
131
Vendo esta clara interdependência, cada ocupação implica uma apropriação do
espaço constituindo-o no território, ao mesmo tempo em que possibilita a reprodução do
modo de ser coletivo (nhande reko). A procura de lugares para fazer tekoa tem sido
considerada como a forma para concretizar e preservar o modo de ser guarani, pelo que
é preciso que o local conte com mata preservada, nascentes e água boa, suficiente pesca,
caça e coleta, espaços e solos adequados que permitam a plantação de roça e,
principalmente, afastamento dos brancos.
132
Ponderando que a motivação para criar
novos assentamentos responde tanto a motivações “internas” quanto “externas” (Garlet,
1997; Mello, 2001:97), a orientação quase sempre é a mesma: a procura de locais
ecologicamente adequados. Porém, perante as pressões da sociedade dominante, cada
vez é mais difícil achar locais que cumpram as condições prescritivas, sendo que as
ocupações atuais apresentam uma diversificação de características que diferem de um
modelo único de tekoa.
A situação expressada acima é uma preocupação constante entre os Mbyá: se
têm criado controvérsias em torno de como deve ser um tekoa em contraste com a
realidade vivenciada na maioria dos locais de residência, transformando seu sentido
idealizado. Também, o nhande reko no seu sentido de “sistema guarani, forma de vida
ancestral”, tem sido questionado perante as práticas reais como influência direta do
contato com o jurua. Para os mais velhos, a perda de valores representa o detrimento do
sistema guarani, do nhande reko. Já para as novas gerações, a apropriação de elementos
(incluídos os espaços) expressa formas de adaptação e resistência, que permitem a
preservação do modo de ser. Certamente, as categorias nativas (teko, nhande reko,
tekoa) não existem como dadas ou estáticas, mas são construídas, atualizadas e
modificadas (Pissolato, 2006:99).
131
Ladeira registra que o tekoa deve possuir as “condições físicas e sociais que possibilitarão a sua
transformação em yvy apy, local de onde é possível alcançar yvy maraey” (1992:85).
132
A categoria que define o espaço ideal para ocupar é yvy porã, que segundo Ladeira (2001, 134)
significa: terra boa, sadia, apropriada para formar o tekoa (aldeia).
104
Na exploração da ontologia Mbyá, e considerando a dinamicidade da tradição,
Pissolato (2006:95-101) vincula o teko com o tekoa não em razão da concretização de
um território e seus limites, mas ao ethos buscador de uma “condição de existência”
cada vez melhor, como uma incansável tentativa de fugir das imperfeições do mundo.
Esta constante busca e ocupação, desde a perspectiva de Pissolato, seria o
correspondente ao “jeito guarani”, o teko, enquanto o “modo de ser antigo” não é o fim
do caminho de volta à ancestralidade, mas uma orientação.
Na definição do território guarani, Noelli (1993:247-249) se baseia tanto nos
registros arqueológicos, históricos e etnográficos para distinguir três níveis do domínio
territorial: o guârá que corresponde a um conceito sócio-político e se define como uma
região de controle (mais ou menos o que seria uma província); a subdivisão destes
guârá constituído pelos tekoa; e as famílias extensas (teiî) que formam cada tekoa.
133
Segundo o autor, atualmente “não existem mais tekohá regionalmente associados
formando uma unidade geo-política” (ibid:247)
134
como seria o correspondente ao
guârá. Pareceria que não existe correspondência nesta descrição de domínio territorial
feita por Noelli e a caracterização do território descontínuo e intercomunicado proposto
por Garlet (1997). A reterritorialização e a atual configuração das aldeias no litoral
catarinense, assim como suas formas de inter-relação, sugerem a recente conformação
de uma unidade geopolítica, de guarás contemporâneos, no sentido da re-constituição
de um território sócio-político.
135
Considero que a forma com que os Mb incorporam o espaço dentro de sua
territorialidade, vem sendo praticada primeiramente a partir dos mecanismos que
operam como motivadores da ocupação, e em segundo lugar, pela concretização de
certas práticas culturais nesses espaços incorporados (sistema agrícola e plantação de
sementes tradicionais, economia de subsistência, a reciprocidade e a realização
periódica de práticas rituais, por exemplo). Ambos os aspectos devem ser
compreendidos como próprios dos Mbyá, independentemente da origem dos fatores
(interna ou externa). Estas motivações e práticas não devem ser consideradas de forma
isolada, mas em complementaridade com o intuito presente entre os Mbde recuperar
os espaços e o território reconhecido por eles, baseado no reconhecimento ancestral de
133
Noelli ainda inclui uma outra categoria, ogpe guará, que corresponde ao território das famílias
nucleares.
134
Destaques no original.
135
A tese de Ângela Bertho (2005) sugere esta idéia, que compara o antigo gua de Viaça (que
segundo os registros históricos se estendia desde a bacia do rio Massiambu até Laguna, SC) com a
configuração atual das aldeias no litoral em Santa Catarina.
105
antigos assentamentos e vinculado às reivindicações de seus direitos históricos à
ocupação e territorialidade tradicional.
3.1.2. Ocupação tradicional.
O processo de ocupação pode ser interpretado a partir de dois eixos. O primeiro é a
descoberta e escolha de locais aptos com condições ecológicas suficientes para a
reprodução do grupo, através de uma revelação divina. O segundo, tendo como
orientação o primeiro eixo, é aquele que segue as referências básicas e as antigas
ocupações, ou seja, a re-ocupação dos espaços pelos Mbyá previamente identificados;
nesse sentido, a ocupação é um sistema cíclico (Garlet, 1997:83).
Desde o ponto de vista nativo, no sistema de ocupação tomam uma significação
representativa as condições geográficas, as cidades –fundadas primeiro pelos Guarani e
depois invadidas pelos brancos-, os acidentes geográficos, a toponímia dos lugares e
outros espaços que os Mbyá consideram como tavas, “ruínas dos antigos”. A maioria
destes “lugares dos antigos” são atribuídos à criação dos kechuita ou nhanderu miri: os
missionários históricos incorporados à mitologia guarani como heróis divinizados
(Litaiff, 2004:19). Sobre este aspecto, Garlet comenta:
O fato de os Mbyá buscarem estes pontos onde o kechuíta botou o ’, não permite
vincular etnicamente os Mbyá aos Guarani missionários. Mas permite estabelecer uma
sucessão histórica das ocupações espaciais Guarani. Para justificar seu direito ao espaço
e incorpora-lo como parte do território de domínio, os Mbyá consideram, num primeiro
momento, características ecológicas ambientais. Se estas correspondem aos requisitos
culturais, consideram, num segundo momento, tais espaços herança do kechuíta
(Garlet, 1997:83).
Em ambos planos (a descoberta e a re-ocupação de lugares identificados) se
segue às orientações da liderança tradicional, podendo ser esta um xee ramoi que
conduz sua família extensa, um karai opygua que dirige um conglomerado de grupos
parentais diversos, ou um cacique-tekoaruvixa que “conseguiu uma terra”.
136
Nestes
processos de ocupação são conduzidos pela orientação xamânica na experiência onírica
e a “descoberta de locais”, interpretada pelos Mb como revelações dos lugares
dispostos por Nhanderu (Mello, 2001:42).
136
Ladeira (2001:29) pondera que o conjunto de qualidades que deve possuir o dirigente espiritual no
processo de ocupação, são py’a guaxu (coração grande, coragem) e py’a porã (compreensão, paciência),
associados aos conceitos de mbaraete (força verdadeira) e mbaekuaa (sabedoria).
106
A fundação de um tekoa pode ter múltiplas motivações, tanto de teor político
quanto religioso, subjetivo quanto coletivo. O aspecto político seria representado pela
divisão e desdobramento de um aldeamento em resposta aos conflitos enfrentados por
duas lideranças –políticas e/ou religiosas- (H. Clastres, 1978; Ladeira, 1992:86; Mello,
2001:43), assim como por um processo da aquisição de autonomia por parte de um líder
em busca de prestígio (Garlet, 1997), ou ainda pelo conflito apresentado entre parentes
(Pissolato, 2006:160,181). Vemos, portanto, que os problemas políticos são resolvidos
pela decisão de uma das partes em abandonar o tekoa e fundar outro, alertado por um
aviso de teor divino: o líder-xamã é comunicado através de um sonho que deve buscar
outro lugar melhor, ao mesmo tempo em que lhe é revelada sua localização (Mello,
2001:43; Ciccarone, 2001:192).
Muitas vezes, a iniciativa para ocupar um espaço e fundar um tekoa não
necessariamente corresponde a problemas políticos, mas a uma necessidade subjetiva ou
coletiva de inspiração religiosa, na procura de estabilidade para a dedicação às
atividades rituais (Pissolato, 2006:129). Na constante busca da perfeição, os Mbyá
tentam evitar o teko achy “modo de ser imperfeito”, que se manifesta através dos
conflitos, a raiva, os ciúmes e outras considerações opostas ao teko porã “modo de ser
perfeito guarani”; se o tekoa manifesta o teko achy, então se é mais vulnerável às
doenças e calamidades, pelo que é preciso o afastamento desse local (Garlet, 1997:142).
A morte do dirigente religioso, ou mesmo de um parente preponderante da família
extensa, também figura entre os principais motivos para abandonar um tekoa e fundar
outro. Sobre os motivos de abandono de um tekoa ou a fundação de um novo, Cadogan
(1960:142) comenta:
“A un fenómeno que tiene sus raíces en la religión del grupo y una de las principales
causas de su inestabilidad, he hecho referencia en el problema de la población mbyá-
guarani ya citado: la creencia en Mboguá, el alma de origen telúrico que, al morir el
hombre se convierte en temible fantasma y motiva el abandono del poblado. Otra de sus
creencias que debe calificarse de perjudicial, es el de considerarse con derecho a
erigirse en dirigente de ‘asiento de fogones’ todo aquel que ‘recibe un mensaje de los de
arriba’, hecho que, al imposibilitar autoridad central alguna, socava la disciplina y,
careciendo los distintos grupos de todo vínculo que no sea los de la lengua y la religión,
ha sido causa de la disgregación de la parcialidad en minúsculos núcleos carentes de
cohesión”.
Para os Mbyá, os sonhos são fontes de comunicação com os deuses, que trazem
para a sociedade um modelo de ação inspirada na memória mítica; o sonho, sendo um
estado paralelo à vigília, é uma viagem que realiza a palavra-alma ao mundo dos
107
espíritos, recebendo e trazendo para o mundo dos humanos, os nomes das crianças, os
cantos, e a revelação de lugares, assim como os nomes que estes devem levar
(Ciccarone 2001:183-195; Assis, 2006:47). Na análise de Ciccarone (2001:192) sobre
os sonhos, o estado onírico representa o ideal de pessoa Mb: leveza do corpo e pureza
do espírito, condições indispensáveis para atravessar o grande mar e atingir a terra
divina; tendo como aspectos comuns nas narrativas a visão de acidentes geográficos,
como monte alto e vegetação farta, e de alguma edificação, assim como o encontro com
a divindade que revela certo conhecimento.
137
A experiência onírica é expressada por
Leandro Fernandes Kuaray Miri como uma viagem do nhee, do espírito, da palavra-
alma:
“Porque o nosso espírito vai, vem... vai trazendo informação. Então, de noite a gente
dorme, a gente fecha o olho, a gente chama o sonho, mas só que na verdade não é
sonho, que o espírito da gente vai, vem, então quando vem fica junto com nós, ali a
gente acorda [..] Porque, quando você tiver um sonho, porque, o espírito da gente vai
sempre onde ele [quer] que for, ela vai. Que nem seu espírito: se você for lá noutro
lugar, lugar que você sonhou aqui. Você ta ficando lá no México, aí de repente você
sonha aqui, nesta aldeia, aí quer dizer então que seu espírito vem aqui, olhou o lugar,
conversou com uma pessoa, aí que você fica dormindo lá.” (Leandro Fernandes
Kuaray Miri, Tekoa Marangatu: 17/7/2006).
Depois de o local ter sido revelado por Nhanderu por meio dos sonhos, a
liderança junto com um pequeno grupo, realiza incursões exploratórias para descobrir o
local e achar a correspondência entre o sonhado e o ambiente –tendo que possuir
nascentes de água, solos adequados para as plantações de roças, recursos faunísticos e
florísticos, entre outros- para depois tomar a decisão se ocupar ou não o novo local, que
dependerá de novas interpretações dos sonhos que serão feitas depois das primeiras
incursões (Garlet, 1997:157-158). Uma consideração importante que aponta Garlet
(ibidem) é que a ocupação deve corresponder a locais que no sentido cosmológico “não
tenham dono”, ou seja, que não pertença aos “espíritos da floresta”.
Depois da chegada ao local revelado, tendo as primeiras famílias nucleares sido
conduzidas pela liderança, é necessário fazer a primeira roça de avati ete “milho
verdadeiro dos Guarani” e a construção da Opy, onde após a primeira coleta, se realizará
o ritual que sacraliza o local atribuindo-lhe um nome próprio, igual que a uma criança
(Assis, 2006:47). A fundação de tekoa, tradicionalmente correspondia ao calendário
137
Assis (2006:85) registrou que os sonhos comunicam o desejo das pessoas às divindades sobre as
possibilidades de caça e coleta.
108
agrícola do cultivo do milho, seguindo o ciclo de coleta do “milho novo” (Ladeira,
1992:85). O tekoa, assim como as pessoas, os animais e as plantas possuem espírito e
um nome (palavra-alma) que é comunicado também por Nhanderu à liderança. O tekoa
é como se fosse uma pessoa que se cria da mesma forma: “Nomear equivale a conceber,
dar origem a um mundo próprio passível de ser habitado” (Ciccarone, 2001:194); assim
como o ritual de nominação das crianças, o nome do novo local é recebido pelo karai
opygua. Se as crianças recebem o nome após começarem a falar e caminhar, pois já são
consideradas pessoas susceptíveis à socialização, o mesmo se espera do local: deve
oferecer uma abundante coleta para ser reconhecido como o verdadeiro lugar revelado,
indicado por Nhanderu (Garlet, 1997:159; Assis, 2006:88, 105). Uma vez que o novo
local recebeu seu nome e demonstrou que nele é possível sustentar aos povoadores com
boas plantações, abundante colheita, caça e pesca, realizar os rituais religiosos e levar
uma vida de acordo às prescrições culturais, então se lhe considera como tekoa porã.
Através desta revisão da produção bibliográfica recente sobre o processo de
ocupação inicial, considerado de forma tradicional, podemos apontar quatro
características básicas deste processo. Primeiro, um motivo que impulsione a fundação
de um tekoa, correspondendo a processos de cisão política ou religiosa, ou motivações
na procura de lugares que melhorem sua condição de “imperfeição humana”. Segundo,
a recepção da revelação divina, comunicando tanto o momento de saída quanto o novo
local a ser ocupado, seguido de uma ou várias incursões exploratórias. Terceiro, a
ocupação do novo local dos primeiros grupos familiares, realizando as primeiras roças e
plantações e recebendo a revelação do nome do local. E quarto, a comprovação da
produtividade do lugar enquanto tekoa, que dependerá tanto da qualidade de sustentação
física quanto da realização das atividades culturais.
Vemos que estas características hoje dificilmente podem ser cumpridas. Os
obstáculos, entretanto, não têm impedido o processo de novas ocupações, mas, pelo
contrário, as têm incrementado. A razão, acredito, implica nas precárias condições das
diversas aldeias e assentamentos, mesmo naqueles considerados tekoa porã. A
aglomeração de famílias extensas numa mesma aldeia e a dificuldade de ocupar outros
espaços, assim como os conflitos internos entre lideranças (políticas, religiosas, velhas e
jovens), e a constante busca de uma “condição melhor de existência”, obriga os grupos
familiares a saírem em busca de novos locais, os quais frequentemente resultam em
acampamentos provisórios que dificilmente chegam à categoria de tekoa, reproduzindo
muitas vezes a precariedade existente nas outras aldeias. De alguma forma, esta situação
109
vem acelerando o processo de ocupação junto com a formação prematura de famílias
extensas em locais que não satisfazem completamente as necessidades do grupo. Assim,
a ocupação e apropriação destes espaços –na maioria das vezes inadequados e em clara
oposição ao discurso proferido pelos Mbyá- exigem não uma justificativa, mas a
ativação da re-significação, dando outras interpretações aos sonhos, identificando novos
lugares, “descobrindo ruínas dos antigos”, e criando novas prescrições culturais sobre o
processo de ocupação, entre outros mecanismos.
3.2. Tekoa Marangatu: O processo de ocupação
À luz do processo de ocupação de Tekoa Marangatu, paralela à sua
categorização em termos nativos como tekoa porã”, ou seja, um tekoa verdadeiro, a
seguir apresentarei alguns aspectos sobre o que hoje os Mbyá ponderam para efetivar a
fundação de tekoa, embora o caso não corresponda precisamente aos termos rígidos de
“ocupação tradicional” apontados acima. Através de uma comparação entre o processo
de ocupação tradicional e o realizado por meio da aquisição de áreas, mostrarei as
transformações surgidas e as diversas interpretações sobre o que é considerado como
“terra tradicional”, o nhande reko, e a “compra de terra” como categorias analíticas.
Meu objetivo é mostrar os mecanismos de re-significação cultural efetivados pelos
Mbyá, na produção de explicações sobre as transformações e modificações de suas
práticas culturais, especificamente aquelas que se referem à ocupação de espaços e
fundação de tekoa.
As narrativas foram extraídas a partir da análise de entrevistas realizadas entre
os moradores de Tekoa Marangatu, assim como dos dados registrados no diário e
caderno de campo. Nas entrevistas, as perguntas foram dirigidas com a intenção de
saber qual é a interpretação dos Mbyá sobre os seguintes pontos:
a) A distinção entre a compra de áreas e o processo de demarcação e
homologação das mesmas.
b) Motivações que levam as pessoas a deixarem uma aldeia e passarem a residir
em Tekoa Marangatu.
c) A possibilidade de efetivar as condições econômicas de sustentabilidade em
relação ao meio ambiente e às práticas culturais.
110
d) A possibilidade de reproduzir o nhande reko e as condições necessárias para
realizá-lo.
e) As motivações para permanecer ou não em Tekoa Marangatu.
Dado os limites da pesquisa, as narrativas se restringem unicamente a alguns
moradores de Tekoa Marangatu, sendo eles amostras tanto dos primeiros ocupantes e
fundadores (Augusto da Silva, Leandro Fernandes) como daqueles que chegaram como
ocupantes recentes (Narciso de Oliveira, Darci Lino Gimenes e Alcides da Silva). As
narrativas podem apresentar muitas semelhanças se consideramos que a maioria dos
moradores faz parte de um mesmo grupo de migração, liderado pela família de Augusto
da Silva e Maria Guimarães. As diferentes versões sobre a ocupação deste local
adquirido são apresentadas nas narrativas tanto dos parentes vinculados à família de
Timóteo de Oliveira e Luiza Benite, quanto do grupo familiar de Augusto e Maria.
Assim, por um lado, as motivações de ocupação, e por outro, o abandono deste tekoa,
apresentam variantes que dependem de cada individuo e sua vinculação a uma das duas
lideranças político-religiosas. Porém, é possível observar as convergências discursivas
para caracterizar Tekoa Marangatu de forma positiva.
138
3.2.1. Família de Augusto da Silva e Maria Guimarães
139
A narrativa desta família, embora comece desde o nascimento de Augusto da Silva no
estado de Paraná e de sua trajetória por Missiones, Argentina, assim como muitas outras
aldeias no Brasil (Pacheca, Osório, Cantagalo, RS), para os fins desta pesquisa começa
a partir da compra da área de Tekoa Marangatu, pois outras investigações anteriores
registram a trajetória desta liderança-casal como dirigentes de um grupo de migração
provenientes de Cantagalo, RS.
140
Nas palavras de Augusto, explica o processo:
138
Um fato importante a considerar na análise das narrativas é a falta de correspondência entre as
temporalidades, ou seja, os marcados contrastes nas datas de ocupação (saída de uma aldeia, ou ano de
chegada a outra), dados que se apresentam diferenciados entre os registros apontados por outros autores
(....) e aqueles que me foram revelados por meus colaboradores mbyá e que aqui utilizei.
139
A entrevista com Augusto da Silva foi realizada e gravada o dia 15 de junho de 2006 em Tekoa
Marangatu. O depoimento de Maria Guimarães foi registrado com a ajuda da interlocução e tradução de
seu filho Eduardo da Silva.
140
Como foi levantado no tópico 2.3.1. do capitulo segundo, as seguintes pesquisas e relatórios registram
a trajetória desta família extensa: (Farias, 1997; Rosatto, 1998; Litaiff, 1999, et al 1999; Darella, 2004;
Bertho, 2005).
111
“...E também meu sogro e a sogra morreu [Cantagalo]. E daí meu sogro, antes de
morrer, ele falou mesmo que tinhamo que ficar mais 2, 3 anos, ou 4 anos, e depois era
nós sair de lá, algum lugar pra morar em algum lugar, daí nos viemo pra [refere-se
Santa Catarina]. Eu pedi uma carona pra Funai e a Funai deu e daí viemos na
Palhoça, sem saber onde que nós íamos parar. Mas, daí fui conhecendo o pessoal, tudo.
O primeiro que conheci era o Padre Jarcy [Professor da Unisul e fundador da associação
filantrópica Orionópolis Catarinense], naquele tempo era Padre mas agora se casou [...]
Então ele que ajudava nós. Trazia comida, e depois arrumaram essa terrinha em
Massiambu e viemos lá [...] Então, depois , para nós comprar a terra, sabe o que
aconteceu? Através do gasoduto, do gás que trouxeram de lá de Bolívia, passava por
perto daquela aldeia, muito perto. E mais os índios tinham direito a receber a verba para
ver se a gente comprava mais terra, então deram dinheiro para nós comprar esta terra
aqui [Marangatu].
Grosso modo, e correndo o risco de excluir detalhes importantes, assim teve
início o processo da primeira aquisição de áreas para os Guarani em Santa Catarina.
Augusto também explica os problemas enfrentados neste procedimento, principalmente
com os órgãos oficiais e a resposta efetiva para iniciar a ocupação, assim como a
dicotomia entre terra tradicional e terra comprada:
A terra deu 100 mil [reais], eram 150 [mil reais] e eu disse que tinha 100 mil [reais],
porque tinha 40 [mil reais] e de Morro dos Cavalos deu 40 [mil reais] para mim
comprar, são 80 [mil reais], então faltou mais 20 [mil reais], então de de Mbiguaçu
me ajudou com 20 mil [reais] de novo, e daí deu pra comprar esta terra. Mas de aqui em
diante eu não vou sair daqui porque, aonde que eu vou mais pra achar outra terra?
mandei comprar e na verdade não é terra tradicional, é terra comprada, e não é
mesmo, mas o que vou fazer? Porque se nós pedir a terra pra Funai pra demarcar o
dá, demora muito tempo, muitos anos, e nós vamos ficar sem terra sempre. Então aí,
outra vez mandei comprar, já dei dinheiro pra comprar terra mesmo e compramo.
141
Na interpretação de Augusto, a compra de áreas representa, por um lado, a
fixação do grupo ao espaço, impedindo o processo de abandono do local e sua possível
re-ocupação após a recuperação do solo e a mata nativa, como seria o processo
realizado antigamente pelos Mbyá.
142
Noutras palavras, a prática da circularidade, o
abandono dos espaços e sua futura re-ocupação se interrompe com a aquisição de áreas.
Por outro lado, a compra (para alguns Mb como, por exemplo, Augusto) e a escolha
do local por essa via não é realizada através das práticas culturais, mas pela intervenção
dos jurua. A fala de Augusto mostra também sua inconformidade com a atuação do
órgão oficial e a demora nos processos de demarcação e homologação, o que tem
141
Destaque meu.
142
Como foi exposto anteriormente, o abandono da aldeia em sua forma tradicional responde, por um
lado, ao manejo agrícola da terra, o qual exige a rotação de cultivos e o abandono temporal da terra para
sua recuperação; por outro lado, a explicação sócio-religiosa ao abandono dos tekoa é pela crença no
mboguá, “alma de origem telúrica” que permanece na aldeia após a morte da pessoa (Cadogan,
1960:142).
112
obrigado aos Mbyá a aceitarem os processos de aquisição e a fixação nos locais, não
permitindo que as áreas “reveladas” sejam por eles assentadas, como, por exemplo, o
interior da UCA –Parque Estadual da Serra do Tabuleiro. A crise enfrentada pelos Mb
perante a falta de terra e a impossibilidade de realizar plenamente suas práticas de
subsistência tradicionais, parece ser percebida por Augusto como conseqüência, tanto
pela pressão exercida pela sociedade dominante, ou seja, o “sistema do jurua”, quanto
pela falta de união e esquecimento das práticas culturais por membros do próprio grupo:
Augusto: Tava é aquele ruína só. A ruína tinha deixado pra nós [os antigos, os
Nhanderu Miri], mas ninguém dos Guarani se preocupam [para achá-las], porque se
não, podia estar bem. E é por isso que nem do branco a gente recebe ajuda, porque
reza muito pouco, muita pouca gente se lembra do Deus. Não é tudo, então por isso
que a gente não tem força.
Sergio Eduardo: “Qual que é a ajuda que vocês esperam dos brancos?
Augusto: “Ajuda que nós estamos esperando do branco é mais terra. É. Esse parque ali
[sinalando em direção à UCA]. Um pedaço que seja de parque pra nós morar lá, um
pouquinho mais adiante.
Sergio Eduardo: Essa é a ajuda que mais querem do branco?”
Augusto: A primeira coisa é a terra: mata virgem.”
Augusto considera o Tekoa Marangatu como um lugar bom para morar, melhor
que outras aldeias onde o grupo familiar já morou (Cantagalo, Terra Fraca, Massiambu),
porém, aponta que ainda pode achar melhores lugares para viver conforme a cultura
Mbyá. Em relação às condições econômicas de Tekoa Marangatu, assinala que a área
unicamente conta com capoeira de mata secundária, tem poucos animais para caçar e
pescar, não tem madeira suficiente nem mel, e a área destinada para a roça é muito
reduzida. Perante estas condições, os Mbyá de Tekoa Marangatu continuam sujeitos a
depender da venda do artesanato e da recepção de doações.
Outro aspecto que coloca Augusto para caracterizar positivamente o Tekoa
Marangatu é sua proximidade com o Parque Estadual. Esta proximidade possibilita as
incursões exploratórias na busca de “ruínas” e de lugares revelados. Para Augusto, o
lugar que Nhanderu revelou para que por ele fosse ocupado, ficou referenciado por
jabuticabais:
E disse que tem jabuticaba lá [dentro do parque]. E um tempo também, e depois que eu
sonhei veio um cara velho e disse também: é jabuticaba, jabuticabeira que dizem, mas
deve ser longe isso. Mas nós entremos lá... na Laranjal, de lá eram 20 Km. disse,
113
daqui pode ser mais perto, porque nós viemos mais o menos nessa direção. Eu tinha
sonhado, mas não fui ainda. E depois que eu sonhei que um cara veio me contar, que
tinha mesmo [...] Branco. Velho já. Então ele disse que caçava, quando não era parque
ainda, naquele tempo disse que não era parque ainda, depois que tiraram muita madeira
e então o governo não vendeu e deixou pra ser parque, ai ninguém mais entrou. Mas tem
gente que entra, caça, tem muita gente que está roubando. Então por ali mais o menos
eu queria ir, mas um dia eu vou combinar com algum filho meu e vou sair daqui e eu
acho, vou achar. Mas eu quero sonhar de novo, vou ver se eu sonho, vou ver se o Deus
esclarece algum lugar pra eu achar.
O espaço ocupado somente é considerado tekoa se nele é possível reproduzir as
práticas culturais e de subsistência, como mencionado. Ao questionar Augusto sobre
se em Tekoa Marangatu era possível reproduzir o nhadereko, sua resposta foi a
seguinte:
Augusto: Dá, mas falta ter forcinha, m que ter dois ou quatro que dêem força pra
comunidade toda. Que nem meu filho estava falando ontem, tem que reunir sempre e vir
na Opy, porque ali que tem que ter força e ali que está o nhande reko. Nhande reko quer
dizer que a nossa tradição.
Sergio Eduardo: A tradição dos mais velhos.
Augusto: É, então isso que é o Nhande reko, nhande rekora ekue, quer dizer que é o
nossa cultura e tudo. Aqui dá pra fazer isso também.
Sergio Eduardo: Dá pra rezar, pra pedir pra Nhanderu?
Augusto: É, toda a vida, dá.
Sergio Eduardo: E digamos assim, pra fazer plantação do jeito guarani antigo, o teko, de
fazer plantação de milho, avaxi ete.
Augusto: É, porque nós antigamente, eu vi e os outros, mais velhos, mais antigos, pra
plantar, aquela semente. Toda a vida nós temos esse avaxi ete que dizem, que é nosso
mesmo, do guarani mesmo, então aquele que não é duro pra fazer farinha. E também o
pilão, pra socar, pra moer o milho. Então, esse pra plantar, antes de plantar tem que
batizar primeiro, tem que contar pra Nhanderu e tudo pra que bem quando plantar,
pra que “benzer” bem.
Augusto relaciona a tradição Mbyá, o nhande reko, com a plantação e as
abundantes coletas de milho guarani (avaxi ete) e com a realização periódica do ritual
do nhemongarai, correspondente ao “benzimento” das sementes de milho e à
nominação das crianças. Por isso, para ele considerar o tekoa em termos positivos é
preciso que o local conte com espaço adequado para as roças e ter uma Opy para a
realização dos rituais noturnos e periódicos, condições que por enquanto Tekoa
114
Marangatu possui. Mesmo assim, parece que não é suficiente, e a “vida dos antigos” vai
ficando cada vez mais longe pela influência dos costumes do jurua.
A perspectiva de Maria Guimarães não difere muito da de seu marido. Ela
também percebe que a conduta dos Mbyá cada vez é mais do jeito do jurua e isso
interfere muito na tradição guarani. Refere que antigamente, a conduta dos Mbyá estava
dedicada na maior parte do tempo à concentração das atividades religiosas. Porém, a
vida dos antigos, o nhande reko, é um guia de vida, o qual pode ser retomado pela
vontade individual e comunal: se pode voltar a rezar, a cantar e a lembrar de Nhanderu
sempre que se tiver vontade.
Para Maria, a compra da terra não representa detrimento da tradição, mas uma
oportunidade de manter “o modo de ser guarani”. Ao mesmo tempo, a aquisição da área
é para ela a concretização de suas rezas, do desejo de seus pais quando pediram para ela
e para seu marido achar uma terra boa, é a forma como se mostra a vontade de
Nhanderu. Talvez esteja aqui o melhor exemplo de re-significação ao tratar sobre o
processo de aquisição de áreas:
Ela não sonhou com esta terra, mas quando nós estávamos aqui em Santa Catarina
[Terra Fraca e Massiambu, Palhoça] ela pediu para Nhanderu que desse uma terra para
nós, então por isso que o pedido dela se realizou. Por isso foi que os brancos arrumaram
esse dinheiro da indenização para comprar esta terra. Não foi pela vontade dos brancos,
mas sim pela vontade de Deus que foi comprada essa terra, porque ela pediu para
Nhanderu que desse essa terra para ela, então por isso que nunca mais vai sair dessa
aldeia, ela vai ficar aqui para sempre.
Sobre a permanência no lugar, ou seja, a fixação na aldeia, Maria manifesta que
o lugar, depois de ter sido ocupado e recebido um nome, vai ficando “acostumado”. Da
mesma forma que uma pessoa, o tekoa também se acostuma a seus habitantes quando
permanecem nele, e a saída do local representa deixar “o lugar triste”. Por um lado,
Maria aponta para considerar a excessiva mobilidade como falta de estabilidade
espiritual, pois o espírito não consegue ficar com bem-estar nos lugares que ocupa; por
outro, o conflito e as cisões políticas, e as conseqüentes saídas de famílias, não
debilitam as lideranças e dirigentes religiosos que não conseguiram manter a coesão do
grupo, mas deixa o lugar triste e doente. Dessa forma, Maria explica sua permanência
no Tekoa Marangatu perante a possibilidade de uma nova aquisição de área, facilitando
a saída dos grupos parentais de Timóteo de Oliveira:
115
Quando outra família ta chegando de outra aldeia, ta dizendo que acha bom, que gosta
de ficar com mais pessoas na aldeia, bastante pessoas. Mas infelizmente parece que...
Porque vão comprar outra terra agora, infelizmente essas pessoas que chegaram
recentemente eles vão se mudar de novo para outra terra nova, então está dizendo que
isso para ela é das tristezas que ela pode ter, ser deixada pelas pessoas que vieram aqui
pra morar, mas vão se mudar de novo. Ta triste por causa disso. Ela pensou que eles
chegaram aqui para ficar, mas agora vão se mudar, então isso para ela é uma tristeza... e
anteriormente, quando estava falando dos pais dela, disse também que andar muito, não
ficar num lugar andar rodeando todos os lugares, isso não é bom, isso prejudica muito a
pessoa, cansa muito a pessoa e futuramente isso pode trazer mal resultado.
Perguntei a Maria se sua permanência em Tekoa Marangatu responde à vontade
de Nhanderu, ou se existe a possibilidade de ter uma nova revelação e sair a procurar
um novo lugar. Ela respondeu:
Ela falou que ela está pedindo para Nhanderu que um dia que chegar... porque ela sabe
quem criou a Terra, quem fez a Terra, então ela está pedindo para Nhanderu que fez
essa Terra para que quando o Nhanderu quisesse fazer o castigo aqui na Terra mostrasse
um lugar para ela posasse [pudesse] escapar, não ela, mas a família, a onde se possa
escapar, para que Nhanderu mostrasse um lugar que onde o Nhanderu não vai fazer
castigo. Quando isso acontecer, então ela se mudaria, mas antes disso não. Mas está
pedindo que o Nhanderu mostrasse o lugar para ela, mas se não for isso, jamais se vai
mudar daqui.
Vemos, portanto, que embora as condições de Tekoa Marangatu representem
uma melhoria em termos econômicos e sociais para seus fundadores e os posteriores
ocupantes, Augusto e Maria não desistem em continuar com os preceitos religiosos e
culturais em ocupar áreas reveladas (mesmo que estas estejam dentro do UCA) na
constante busca de melhorar sua condição de pessoas mbyá em correspondência ás
práticas tradicionais.
3.2.2. Os parentes vinculados a Timóteo de Oliveira e Luiza Benite
O processo de ocupação deste grupo familiar em Tekoa Marangatu, foi registrado
através de três entrevistas. A primeira, realizada com Leandro Fernandes Kuaray Miri,
filho de Luiza Benite e quem se uniu ao grupo de migração quando Timóteo e Luiza
moravam ainda na aldeia de Morro dos Cavalos. A segunda, por Narciso de Oliveira,
irmão de Timóteo e que junto com sua família acompanhou o grupo de migração
liderado por Augusto e Maria, mas decidiu ficar em Morro dos Cavalos, ocupando
Tekoa Marangatu num período posterior a sua fundação. E o terceiro, através do
116
depoimento de Darci Lino Gimenes, cunhado de Timóteo, apresentando um caso de
ocupação similar ao de Narciso.
143
3.2.2.1. Leandro Fernandes Kuaray Miri
144
Leandro conta que nasceu em 1972, na aldeia Osório RS. Depois seus pais (Luiza
estava casada com Ricardo Fernandes e tinham como filhos Neuza e Afonso Tukumbo)
decidiram se mudar para Morro dos Cavalos, onde permaneceu até os oito anos. A
família continuou uma caminhada por vários lugares (Paranaguá, Jacutinga, Itariri,
Bracuí), mas foi na aldeia Bracuí, RJ, que o casal se separou. Leandro foi com seu pai e
sua avó materna para a aldeia Boa Esperança, ES, enquanto Luiza decidiu voltar para o
sul. Leandro casou-se aos 22 anos com Fermilia Bolantin na aldeia de Rio Silveira, SP.
Depois soube que Luiza estava doente em Morro dos Cavalos (estando casada com
Timóteo) e então resolveu se deslocar com sua mulher e filhos para essa aldeia. Leandro
conta que ele e sua família permaneceram unicamente uma semana no Morro dos
Cavalos antes de ocupar Tekoa Marangatu, vinculados aos parentes de Timóteo de
Oliveira e sua mãe Luiza. As palavras de Leandro resumem bem aqueles tempos:
Leandro: Essa é... por que a gente vivia longe [Rio Silveira, SP], minha mãe morava
para cá, no Morro primeiro, depois eu fiquei sabendo que ela estava doente. me
ligaram e vim pra sozinho primeiro. minha mãe sempre disse assim: que ela
queria que a gente vivesse todo mundo junto, eu voltei para minha aldeia de novo,
falei para minha mulher que ia morar para cá, lá ela veio também, lá no Morro.
Primeramente que a gente veio aqui, não tinha nenhuma casa ainda de gente morando
[em Marangatu]
Sergio Eduardo: Não tinha casa?
Leandro: Não, tinha um galpãozinho e todo mundo dormia todo mundo junto.
Sergio Eduardo: Assim como uma maloca. E assim todo mundo, a família de tua mãe
que dormia ali?
Leandro: É. A família dos outros vivia separadinho porque tinha duas casinhas.
Então quando eles compraram a terra tinham deixado duas casas, um galpão e uma
143
O fato de registrar a ocupação deste grupo parental através de três diferentes depoimentos se deveu
pela negativa de Timóteo de dar informação “para os da universidade”, pois argumenta que os Guarani já
estão cansados de dar informação para estudante e pesquisador, e não adiantar nada na sua situação. A
negativa do xamã-cacique o representou impedimento algum para que eu continuasse minha pesquisa,
tampouco afetou minha permanência na aldeia nem minha relação com ele ou com os demais membros da
comunidade.
144
Entrevista realizada o 17 de junho de 2006, Tekoa Marangatu.
117
casinha. Aí, na primeiramente disse que vinha quatro famílias, antes que eu vinha pra
cá.
Sergio Eduardo: Quem que eram essas famílias?
Leandro: Era família de minha mãe e do Augusto também.
Sergio Eduardo: E tua família quantos anos tem que chegou aqui?
Leandro: Já ta com seis anos.
Leandro compara as condições de subsistência em Tekoa Marangatu em relação
às outras aldeias onde já morou. Pondera que nesta aldeia existem as possibilidades para
fazer roça. Pelo que observei, ele freqüentemente sai a pescar e constrói armadilhas para
pegar animais de pequeno porte. Fala que na aldeia de Rio Silveira, SP, tem bastante
mata, mas tem pouco “bicho” e o solo é ruim para fazer plantação, por isso que ele
gosta de Tekoa Marangatu. Assinala que, embora pouco, existem as possibilidades para
fazer casa de tipo tradicional “de barro, com cobertura de palha, palha de taquara ou
palha de milho”. Embora as condições de subsistência sejam melhores para a família de
Leandro (e para a de Timóteo também) ele considera que o tekoa não foi ocupado de
forma tradicional, mas pensa que não poderia ser de outra maneira devido às pressões
externas e às crises internas:
Leandro: Para falar a verdade essa não foi [tradicional]... porque antigamente era assim:
a gente descobria o lugarzinho de ante de Nhanderu. A gente descobriu este lugarzinho
tão encantado, através da doação de uma... não sei que pessoa que ajudou a gente. Teve
passando daquela... como que é?... o gasoduto...como que é?...Porque essa que tem um
nome tão esquisito, passando pela área indígena. Então é por isso que o dono de lá, de
não sei da onde, ajudou a gente, deu o dinheiro e então... Porque agora é difícil
também, de arrumar que o grande pajé, o grande Nhanderamoi quenão existe mais, e
também... se tivesse também seria mais fácil para a gente. Só que os brancos também já
destruíram muitos lugares, muita mata que nós tinha. Na verdade, nós guarani é o dono
de tudo, nós era o dono de tudo.
Sergio Eduardo: de toda a terra?
Leandro: De toda a terra, toda essa terra existia. Na verdade é para nós mesmo. Não era
para ser assim, mas só que os branco destruíram tudo, acabaram com tudo, então
sempre a gente sai lá fora, o próprio cacique saia lá fora, sempre falava, sempre
tentando ganhar que nossa terra de volta. Mas o branco sempre fala que não quer, o
dono de tudo, o branco, o governador, presidente, essas coisas, não quer doar mais
pra gente, então, através de doação que dinheiro que a gente tem que ter algum
pedacinho, tem que comprar mesmo. Se não, se a gente não comprasse, a gente é difícil
de viver em outro lugar.
118
Também pondera que o fato das áreas serem demarcadas não traz melhorias
significativas nas condições de subsistência, pois a escassez de mata nas áreas e a
dependência cada vez maior à economia do branco, dificultam a auto-sustentabilidade
baseada na caça, coleta, pesca e manejo agrícola e florestal. Perante estas dificuldades e
a crise, perguntei se em Tekoa Marangatu é possível reproduzir o nhande reko, o
sistema dos antigos. Leandro respondeu de forma negativa, pois o contato com o jurua é
muito intenso, e para voltar atrás o guarani teria que se afastar completamente do
branco, situação que é impossível. Mas tem um elemento que no seu depoimento me
interessou: o fato de ser o futebol não uma influência do jurua, mas um elemento
pertencente à tradição dos próprios Guarani:
Sergio Eduardo: O Nhande reko seria o sistema do guarani mesmo, sem contato com
branco?
Leandro: Sem contato com branco. Tem que ficar longe dos branco, não pode ter luz
elétrica, não pode ter... cada coisa dos brancos...
Sergio Eduardo: Nem futebol...
Leandro: Futebol pode ser.
Sergio Eduardo: Ah é? Por que?
Leandro: Na verdade essa... muita pessoa diz assim. Diz que o filho de Nhanderu,
parece que Tupã ou Karai, antes de partir, ou acho que Nhanderu Miri... eu acho, antes
de partir, pro outro lado do oceano, eles brincavam de bola, mas que a bola não é
daquela, daquela que nós temos, comprada. Aquela é feita de mão mesmo, não sei do
que é. E a peteca também. Diz que aquela é diversão para Ele mesmo, foi Ele mesmo
quem transformou a bola pra gente, mas que não é para jogar, pra quebrar mesmo:
eles brincavam antes de... não é como nós, sabe né, o domingo. Às vezes brincavam,
eles fizeram a bola. Aagora não sei o que lugar. Uma vez nós fomos olhar, acho
que tem... diz que pro Rio Grande, diz que tem um lugar que m sempre a cuidar,
diz que tem um campinho, tem um campo. De vez em quando, passava a gente,
olhava, assim diz que tem as pessoas lá, sempre vinha, brincar.
No Tekoa Marangatu existe um pequeno campo de futebol onde os moradores
jogam algumas vezes ao final de tarde, mais assiduamente aos domingos. Confirmado
por mim através de vários questionamentos entre os moradores, o futebol na explicação
nativa é uma criação divina dos Nhanderu Miri; como as “ruínas”, este esporte sofreu
uma re-significação para explicar sua prática. Unicamente é proibido durante a couvade,
pois existe a crença que a palavra-alma da criança acompanha o pai perto dos pés, de
modo que um chute pode lesionar a criança.
119
3.2.2.2. Narciso de Oliveira Karai Tataendy
145
Os motivos apresentados por Narciso de Oliveira para se mudar para Tekoa
Marangatu, responde à procura de melhores condições para as atividades agrícolas.
Conta que chegou em 2003, após terem chegado as famílias de Augusto, de Timóteo e
Carlitos Pereira. Ele mostra sua afeição pela aldeia da seguinte maneira: “Aí eu to três
anos recém aqui. Uma coisa que aqui me agrada, porque o cara planta e colhe, né.
Porque no Morro dos Cavalos não dá, fiquei meio assim... sem trabalho, sem
plantinha, planta mas não dá, essa coisa pro pobre já não dá.”
Narciso pondera as melhores condições de “trabalho”. Ele mostra alegria nos
labores agrícolas, que realiza com plena liberdade e satisfação. Em comparação com sua
situação econômica em Morro dos Cavalos –que se baseava unicamente da venda do
artesanato e a doação- manifesta que o Guarani tem liberdade em Tekoa Marangatu,
pois pode trabalhar na roça, complementar suas necessidades com a venda do
artesanato, ou se preferir, pode ir a trabalhar de “serviço com o colono e ganhar alguma
graninha”. Narciso explica que a possibilidade de trabalhar na roça em Tekoa
Marangatu, foi um dos motivos para se mudar de aldeia, deixando atrás as aldeias de
Cantagalo e Morro dos Cavalos.
“Seis anos [em Morro dos Cavalos], isso. que já, o cara trabalha com
artesanato, não tem como plantar, a terra é muito ruim, plantio não cresce. A única
riqueza do pobre é a planta, né. Para manter a família, criar toda essa comunidade tem
que ser da planta, onde da planta a gente... é por isso que eu me mudei para [Tekoa
Marangatu]”
Vemos, portanto, que a procura de melhores condições econômicas –baseada na
auto-subsistência e na reciprocidade- é ponderada como um valor Mbyá em
contraposição a acumulação de bens, dinheiro ou mercadorias: “A única riqueza do
pobre é a planta, né”. Esta expressão de Narciso demonstra que os meios de subsistência
mbyá se baseiam principalmente nas atividades agrícolas, sendo que qualquer outra
atividade remunerada representa o detrimento destas.
146
Portanto, como motivo de
mudança de local corresponde à busca de locais que possuam as mínimas condições
para realizar as roças de sementes e alimentos tradicionais, procurando ao mesmo tempo
145
Entrevista realizada o 17 de julho de 2006, Tekoa Marangatu.
146
A importância da agricultura na cultura guarani se manifesta no fato de estas atividades não serem
consideradas trabalho, e sim realizadas como forma de cumprimento do dever religioso e social teko,
ndaha’ie tembiapo” (Melià, Grünberg e Grünberg, 1976:208).
120
uma menor dependência da economia da sociedade envolvente (doações, salário
remunerado, prestação de serviços sazonal, etc.). Mesmo considerando as melhores
condições em Tekoa Marangatu, Narciso manifesta dois impedimentos para sua plena
satisfação: o espaço reduzido da área e a proibição de acesso ao Parque Estadual.
A diferença das opiniões de Augusto, Leandro e inclusive de Timóteo, para
Narciso o fato de a terra ser comprada não interfere na forma de ocupação tradicional,
pois para ele a territorialidade se baseia mais na realização de práticas culturais; mas
isto não significa que este aspecto afete o direito histórico de pertença no espaço
ocupado. Além da realização das atividades agrícolas de auto-subsistência e de
reciprocidade, as práticas culturais mbyá que constituem a territorialidade são aquelas
vinculadas à religiosidade, o sistema de cura tradicional e as práticas xamanicas: os
cantos, as rezas, a danças noturnas dirigidas pelos karai na Opy.
“Através da dança eu gostei, porque aqui, quer dizer que é tradicional ainda aqui né. É
tradicional. Porque aqui puro Guarani, não vêem ainda outro índio, aqui já, cacique meu
irmão não aceita assim... mestiço, assim essa coisa, aqui não gostemo, porque nós
temos o que chama tradicional ainda.”
Para Narciso a terra pode ser demarcada ou comprada, pois não existe diferença
enquanto o sistema de ocupação responda às necessidades de reprodução cultural,
mantendo a tradição.
“Pode ser a terra comprada ou demarcada, também são tudo igual. Só, uma coisa que o
cara tem... para nós é o costume tradicional que vale muito né. Pode ser terra comprada,
ao mesmo tempo.”
Por outro lado, é importante atender as considerações atuais sobre a escolha de
locais. Atualmente, por muito que se tente procurar a auto-substentabilidade nas aldeias,
a economia mbyá depende em sua maioria da venda do artesanato, das doações e do
consumo de produtos industrializados, portanto, a proximidade com o jurua é inevitável
e os Mbyá estão cientes disso.
“Só que hoje em dia... nós somos guarani, só que já tudo registrado né. Assim a
doaçãozinha sempre ganha de fora, então, morar mais daqui, mais cinco Km., fica
ruim pra gente. Ou pelo menos assim, pertinho nem tanto, ta no meio quer dizer. Ni
tanto lejos ni tanto.... cerca. Aí... que é bom, pelo menos para mim. A gente precisa
pelo menos um pouquinho pra sair pra fora. De longe é complicado pra gente. Hoje
em dia tudo é aposentado, pelo menos assim longinho , mais o menos para mim é
bom.”
121
Atualmente, a escolha de lugares para morar também depende da proximidade e
acesso aos benefícios da sociedade envolvente. São ponderados aspectos como as vias
de acesso às áreas, a possibilidade do atendimento periódicos das instituições
(principalmente da FUNASA e a FUNAI), as facilidades de sair da aldeia com o
objetivo de ir para as cidades e vender artesanato, a recepção de doações e cestas
básicas de forma fácil.
Dado que o atual cacique, Timóteo, junto com uma equipe composta por
funcionários da FUNAI, a Procuradoria da República e o INCRA, estão realizando a
escolha de um novo local de ocupação que nos próximos meses será adquirido como
parte das indenizações das obras de duplicação da BR 101, a família de Narciso e os
outros parentes de Timóteo serão beneficiados com a nova área, podendo então escolher
se ficam no Tekoa Marangatu ou seguem para o novo local. O incremento demográfico
na aldeia e a chegada de famílias extensas é um aspecto que preocupa aos moradores da
aldeia, pelo que a aquisição de áreas surge, por um lado, como uma alternativa para
amenizar os conflitos e a sobreposição de famílias extensas, e por outro como uma
distribuição da população de maneira emergencial.
“Tem um negócio aqui: que a terrinha é meio pouco. Porque índio queria que as
terras sempre juntar mais um pouco, a gente também quer. A ver se consegue mais um
pouco ainda... se melhorar, aumenta um pouquinho mais a populaçãozinha... a gente
também tem que pensar... aí é pensamento nosso né.”
Perguntei a Narciso se ele ia sair de Tekoa Marangatu para morar na área que
fosse escolhida por seu irmão Timóteo e ele manifestou que por enquanto gostaria de
ficar, mas uma vez tendo construído casas, posto de saúde e escola, então ele e sua
família iriam viver na nova área. Apontou também que de todos os parentes do cacique,
ele e sua família seriam os únicos em não se mudar imediatamente.
“Só único que aqui... aqui fica um tanto assim. Fazer duas aldeias. que o Timóteo
vai. Timóteo, eu, Darci... cinco casal mora[ria] lá. Tudo demais vai ficar aqui.”
As palavras de Narciso são significativas no sentido de que, na atualidade, a
ocupação de locais não responde unicamente à correspondência entre o ambiente natural
e a realização de práticas culturais, mas a necessidades socioculturais onde a presença,
interferência e “ajuda” dos não-índios é inevitável, tendo que adaptar estas necessidades
e desejos aos contextos de relações interétnicas.
122
3.2.2.3. Darci Lino Gimenes
147
Quando morava em Cantagalo, Darci conheceu a Marta Oliveira, sua mulher, que é irmã
de Timóteo, Narciso e Paulo, filhos de Lorenzo de Oliveira. Darci conta que a família
de Marta veio de Missiones, Argentina, para o Brasil. Depois do casamento, Darci
decidiu vincular-se à família de sua esposa, que Lorenzo de Oliveira era considerado
um poderoso karai opygua e respeitado xee ramoi. Assim se explica o vínculo entre
Darci e Timóteo (a partir do cunhadismo).
148
O motivo que fez a família de Darci sair de Cantagalo foi procurar terra com
mais espaço para plantar e com mata, seguindo a direção de Augusto e Maria, que
afirmavam ter muita terra disponível em Santa Catarina. Conta que depois do grupo
familiar de Augusto e Maria ter chegado a Terra Fraca, dois anos depois ele e sua
esposa Martha, decidiram sair de Cantagalo e se mudar para o acampamento em Terra
Fraca; posteriormente moraram em Massiambu no ano de 1994. Relata o processo de
ocupação de Massiambu e a divisão do grupo de migração, ficando alguns nesta aldeia e
outros indo para Morro dos Cavalos.
Sergio Eduardo: você lembra quais foram as famílias que moravam em Massiambu? As
primeiras que moraram ali?
Darci: Primeira mesmo nós fomos eu com a família e o Cláudio [da Silva, filho de
Augusto e Maria]. Dois. E depois que foi indo o Augusto e o pessoal que ficou na
Palhoça [Terra Fraca] ainda, mas depois já foi pra lá [Massiambu].
Sergio Eduardo: E o Timóteo também?
Darci: Sim, O Timóteo já estava na Palhoça também, depois foi pra Massiambu.
Narciso, Augusto, o pessoal tudo.
Sergio Eduardo: Eu sabia que depois que ficaram um tempo em Massiambu, alguma
“galera” se dividiu para morar no Morro dos Cavalos.
147
Entrevista realizada o 23 de julho e 2006, Tekoa Marangatu.
148
O cunhadismo (ou cuñadazgo no termo do espanhol) é uma das principais formas em que a sociedade
guarani constrói suas relações de aliança, através da via do parentesco e do vínculo da afinidade política,
elemento utilizado pelos primeiros conquistadores europeus para manter o controle do componente
feminino e as lideranças locais nativas (Monteiro, [1992] 2006: 482, 484).
123
Darci: Sim, porque ali em Massiambu a terra tamm era muito pequena, o pedacinho,
eram 5 hectares. Muito pequena. O pessoal resolveu... porque tinha um casal no Morro
dos Cavalos, a irmã do Milton [Moreira], de Mbiguaçu; ela disse que vai estar saindo.
149
Sergio Eduardo: Quem que era essa mulher?
Darci: Rosalina, ela diz que a casa vai deixar, quem quiser ficar lá... o Timóteo foi, aí eu
também fui pra Morro dos Cavalos. Depois que vieram o pessoal do Artur [Benite, atual
cacique de Morro dos Cavalos], que morava por Itajaí, depois vieram pro Morro dos
Cavalos.
Sergio Eduardo: Em que ano que chegou o Artur no Morro dos Cavalos?
Darci: ...95.
Sergio Eduardo: Chegou o Artur, e naquela época quem era o cacique?
Darci: na época era... o cacique, naquele tempo eu comecei a trabalhar, porque morava
meio pouca gente, aí eu saia na reunião, conversar com o pessoal. O pessoal disseram
para eu trabalhar um pouco de cacique, aí eu fiquei.
Darci permaneceu no Morro dos Cavalos até mudar-se para Tekoa Marangatu
em 2004; seu período como cacique, entretanto, durou até o ano de 1999, quando a
representação política da aldeia foi transferida para Artur Benite. Darci coloca como
principal motivo para sua família sair de Morro dos Cavalos a falta de espaço e
condições para realizar atividades agrícolas.
Sim... ai fiquei lá [no Morro dos Cavalos] com o pessoal trabalhando [como cacique],
ajudando, porque... Resolvi vir pra cá por causa de lá no Morro dos Cavalos é difícil
fazer a plantação, não tem espaço, e então por isso que eu vir pra cá, porque cá em
Marangatu, aqui pelo menos tem pra plantar um pouquinho.
Em relação às práticas culturais e do nhande reko em Tekoa Marangatu, Darci
aponta como as principais, a plantação de sementes tradicionais, viver perto do mato e
ter casa de reza (Opy), entre outros aspectos. Tal como Narciso, Darci considera que o
que faz a terra ser tradicional são as práticas culturais realizadas nela, e o o processo
inicial de como foi ocupado, embora, existam algumas considerações a respeito, por
149
“O casal” refere-se a dois irmãos casados com seus respectivos parceiros; estes irmãos são Roselina e
Milton Moreira, filhos de Julio Moreira (Mello, 2001:95)
124
exemplo, as dimensões da área. Se Narciso ponderou as possibilidade de fazer plantação
como um valor da economia de auto-consumo e reciprocidade, Darci aponta a ajuda
mútua e o coletivismo como parte fundamental da cultura Mbyá: ajudar ao outro faz
parte do sistema guarani, dar aquele que não tem, trabalhar nas roças comunitárias e as
familiares, construir uma nova casa, são alguns exemplos.
150
Sergio Eduardo: Você acha que o fato da terra ser comprada interfere na cultura
guarani? Interfere no Nhande reko?
Darci: Não, isso não, porque antigamente a gente fazia aldeia mesmo, porque no tempo
tinha espaço, e a gente vivia plantando e vivia na mata, caçava alguma coisa, e fazia
nossa casa de reza bem grande, sempre vivia no jeito do guarani mesmo. E agora esse
pedaço que nós estamos morando, esse aí foi indenização que conseguiram da
Petrobrás, o Gasoduto e conseguiram esse pedaço eles. Mas para mim, pelo que estou
vendo, não interfere assim, porque se a gente sempre vivendo assim, do jeito do
guarani.
Sergio Eduardo: aqui dá para viver do jeito do guarani? Aqui dá para reproduzir o
Nhande reko?
Darci: Sim... sim, com certeza, porque a gente agora vai estar conversando, e como que
se organizar sobre o jeito do guarani, e a gente já fiz com ajuda dos, de vocês,
terminamos a casa de reza e vamos sempre viver no costume. Aí esse pedaço de terra
não faz diferença, por ser comprada.
Sergio Eduardo: e o fato de a terra ser tradicional. Essa aqui é uma terra tradicional?
Darci: A gente vai tratando por isso né. [...] ora isso a gente tem, isso do sonho de ter
mais se fosse mais maior, melhor, a gente... ai isso é difícil, mesmo assim esse pedaço
era o sonho que a gente tinha. Não é como o sonho nosso que precisava a terra melhor,
mas a gente já dá para viver nesse pedaço... por causa de ser muito pequeno ainda.
Darci e sua família ainda não resolveram se vão ficar em Tekoa Marangatu ou
mudar-se para nova aldeia, junto com o grupo parental de Timóteo. Ele manifesta que
gosta muito de Tekoa Marangatu e que vai ser difícil eles saírem dali; sua afirmação faz
supor sua permanência. Porém, os rumores dentro aldeia (principalmente entre os
parentes de Timóteo) expõem os vínculos entre estes grupos parentais, o que faz supor
que a família de Darci seguiria a direção de Timóteo como liderança. Pelo que observei
150
Assis (2006:159, 218) registrou as categorias nativas potirõ (reciprocidade dos serviços entre as
unidades domésticas) e jopói (troca de bens), ambas contidas na reciprocidade economia material e
simbólica mbyá (mborayu).
125
durante o trabalho de campo, Darci permanece afastado do conflito entre Augusto e
Timóteo, o que lhe permite se vincular indistintamente nas duas partes. Após a compra
da nova área, a decisão que tomará Darci sobre a residência de sua família revelará sua
vinculação a alguma das lideranças (políticas e religiosas).
3.2.3. Família extensa de Alcides da Silva Verá Rete
151
A família extensa de Alcides da Silva foi a última a mudar-se para Tekoa Marangatu,
sendo 11 de abril de 2005 a data de sua chegada. Conforme foi apontado no capítulo
anterior, esta família se vincula ao grupo parental de Timóteo, que em suas atribuições
de cacique, conseguiu a mudança desta família para a aldeia. Como
menciodado,quando Alcindo e sua esposa Abelina moravam na aldeia Pindoty, Sete
Barras, SP, Timóteo os foi visitar para tratar de convencê-los a ir morar em Tekoa
Marangatu. O que pareceu atrativo a Alcides foi a garantia da terra: “Aí, primo-irmão
Timóteo foi né, conversei com ele. ‘Quer mora na minha aldeia?, pode. A terra é
pouco mas está garantida’, é comprada né, 70 hectares.”
No relato de Alcides, conta que a disputa por terras na aldeia Pindoty e a
impossibilidade de se sustentar pegando alimentos e matérias primas dentro das
unidades de conservação, criavam um clima de conflito e crise, motivo pelo qual
procurou a ajuda de seus parentes para mudar de aldeia:
Alcides: ele [Timóteo] falou da planta, “pode plantar mandioca, milho, melancia,
qualquer planta”. Então vamos, que aqui está o problema da terra, sempre chegava o
armado, até eu tem [tinha] medo.
Sergio Eduardo: Lá chegava os militares?
Alcides: Chegava, chegava: dez, oito, quinze. Mas eu tinha medo. conversei com
Timóteo, eu vou. falei, mês de maio eu vou [para Tekoa Marangatu]. ‘Pode
conseguir para mim carona para ir com minha família, meus netos.’ “Aí ta bom, vamos
conseguir”. conversei com ele, por sorte que foi aquele ano, tava no Morro [dos
Cavalos] o meu cunhado, Marcelo [filho de Artur Benite].
Assim, para Alcides e sua família, a violência e a carência econômica, situações
de crise que enfrentavam na aldeia Pendoty, foi um dos motivos para procurar um outro
local de residência. Perante a oferta de Timóteo e pela ajuda de seus parentes, Alcides
conseguiu mudar-se junto com a maior parte de sua família para Tekoa Marangatu. A
151
Entrevista realizada o 21 de julho de 2006, Tekoa Marangatu.
126
violência e a crise ficaram para trás, diante da expectativa de achar uma “terra boa”,
com as condições propícias para realizar o trabalho agrícola. A “plantação” aparece, no
relato de Alcides, como a solução à precariedade e ao conflito, em correspondência com
o modo de ser guarani. Devido que Tekoa Marangatu oferecia estas condições para
Alcides, é que se pode considerar como tekoa porã, “terra boa”.
Alcides descreve que na mudança, depois de ter conversado com sua mulher e
filhos, falou com seu cunhado Marcelo, que mora no Morro dos Cavalos e é diretor do
grupo de coral dessa aldeia. Assim, Marcelo conseguiu uma apresentação do coral em
São Paulo e organizou um ônibus, trazendo na volta a família de Alcides. Vemos,
portanto, que o coral e as apresentações não são unicamente um meio para obter
doações e recursos, mas funciona como o articulador da mobilidade espacial, facilitando
as mudanças de famílias de uma aldeia à outra.
A co-relação entre “plantação”, ciclo agrícola e ciclo religioso praticado através
do ritual do nhemongarai (nominação das crianças e da coleta de milho) é manifestada
também por Alcides como parte central do nhande reko, fundamentada na memória e a
experiência transmitida pelos “antigos”.
Sergio Eduardo: Como era antigamente o Nhande reko?
Alcides: Nhande reko era... vão contar essa aí. Antigamente eu vi, meu vô, tudo vivo
ainda, eu tenho ingresso na Opy. Rezava para plantar. Porque agora não. Quando era
milho verde, e aquele pajé que era primeiro, não pode trazer e só assar. Primeiro é um
masetinho de milho verde trazia, e ele primeiro tem que dar... benzimento. Depois de
cada espiguinha, pegava a criança e adulto também para comer, para assar. E depois já
pode trazer, antes não pode pegar para comer.
Sergio Eduardo: Mas isso ainda faz o guarani aqui. né
Alcides: É guarani... é faz.
Sergio Eduardo: Ainda fazem isso? Cada ano a semente que coleta...
Alcides: Cada ano, ano novo, leva no altar, faz tudo isso.
Sergio Eduardo: É Nhemongarai?
127
Alcides: É Nhemongarai. Primeiro tem que fazer Nhemongarai né, milho verde. Até faz
Mbojape também.
Sergio Eduardo: Essa parte é do Nhande reko?
Alcides: É Nhande reko. Porque antigamente eu vi meu vô, porque o guarani é
diferente, que nem o não-branco. Muito diferente. Primeiro para ir ao mato, tem que
perguntar pra quem mora na Opy: “será que hoje dá para ir ao mato, pra caçar, pra fazer
roça?”, daí ele fala que hoje não dá.
O trecho acima citado mostra que para Alcides as práticas culturais são possíveis
a serem reproduzidas no Tekoa Marangatu através da realização do trabalho agrícola e
sua correspondência ao ritual de nhemongarai, assim como do mantimento das relações
de reciprocidade. Por outro lado, o nhande reko, na sua expressão onírica é tanto uma
orientação quanto um motivo para procurar um novo local, pois no caso de Alcides,
manifesta ter sonhado com Tekoa Marangatu antes da visita de Timóteo a sua aldeia.
Alcides: Eu que sonhei, é... Porque guarani, é assim: aonde não dá aldeia, tem que
sonhar. Sonha porque é o Deus que contou, porque nós sabemos onde que é aldeia mais
melhor, onde que aldeia que dá pra criança brincar, água boa, a planta dá bem, tudo isso
sonhei. Então Deus que contou. Que lá tem muito aldeia, tudo meu parente, onde eu
vou, então tudo vai. Dá pra morar, mas eu venho por causa disso, que eu sonhei, essa
aldeia.
Sergio Eduardo: Você sonhou lá?
Alcides: Lá, Sete Barras, Pendoty.
Sergio Eduardo: Quando estava lá em Pendoty sonhou, com essa terra.
Alcides: É, aqui.
Sergio Eduardo: E já estando aqui...?
Alcides: É esse lugar melhor.
Sergio Eduardo: E estando aqui em Marangatu sonhou de novo?
Alcides: É, Marangatu. Já esse que sonhei! Marangatu que sonhei pra vir pra cá. Por
isso que vim pra acá. Longe mas vim. Que perto tem aldeia, mas eu vim pra cá. Eu vim
128
com minha família e tudo. Que eu sonhei, planta dava bem, aqui na Marangatu né, então
por isso estou feliz mesmo. Queria plantar esse ano, pelo menos um pouco. Se me ajuda
o Deus, proximamente planto batatinha. Isso.
Portanto, o sonho não é unicamente um motivo para ocupar Tekoa Marangatu
como uma orientação de Nhanderu, mas também a indicação para permanecer na aldeia,
seguindo os conselhos das divindades que se manifestam através dos sonhos. Alcides
comenta que permanecerá por algum tempo em Tekoa Marangatu, até receber uma nova
mensagem de Nhanderu. Eu questionei a ele se acompanharia o grupo parental de
Timóteo depois da aquisição de uma nova área. Ele respondeu:
Eu vou ficar, porque se eu vou morar lá tem que esperar que ano que vai ser marcado.
Então aqui mesmo eu vou morar. Plantando.
3.3. Justificativas ou re-significação?
As narrativas de ocupação de Tekoa Marangatu acima registradas demonstram como o
território mb e muitas outras categorias nativas estão sendo repensadas pelo grupo
para explicarem-se a si mesmos suas práticas culturais, muitas delas modificadas pelas
contingências históricas e adequadas a diversos contextos sociais. Temos que ponderar
que a causa principal destas transformações e adaptações culturais dos Guarani se deve
à cada vez mais intensa intervenção da sociedade dominante, da irrupção dos não-índios
na vida social Mbyá, que tem obrigado a este grupo étnico criar estratégias de adaptação
e re-elaboração culturais para fundamentar sua permanência no seu território.
Mesmo
assim, tanto o significado e a re-significação de elementos pela cultura Mbyá não são
unicamente explicações, mas mecanismos de defesa criados pelo encontro de duas
práticas de poder político (o mbyá e o jurua) (Wolf, [1990] 2003:338).
As transformações de certos aspectos culturais aparecem junto com uma
explicação do grupo, tomando um novo significado. O consumo de produtos
industrializados em complementaridade ou substituição das práticas agrícolas, a
fabricação do artesanato e sua comercialização, o crescente consumo de medicamentos
do jurua e as consultas médicas nas agências de saúde oficiais em contraste à
participação cada vez menos freqüente nos rituais terapêuticos efetuados pelos karay
opygua, a mobilidade inter-aldeias a partir da realização de festas e campeonatos
guarani de futebol, as festas de forró, a construção de casas com materiais “não
129
tradicionais”, são alguns exemplos da efetivação da re-significação cultural, que
formulam explicações introspectivas sobre as contingências. Na produção etnográfica
recente, estas transformações vêm sendo analisadas desde a perspectiva estruturalista
em situações de contato inter-étnico, geralmente mostrando “explicações nativas” em
resposta às relações políticas, significação cultural e intercâmbio de símbolos, cuja
principal re-elaboração se expressa na memória mitológica (Garlet, 1997:19, 186;
Ciccarone, 2001:148-149; Darella, 2004:68).
Um exemplo da re-elaboração dos mitos fala sobre a intervenção do branco. À
luz do mito criado pelo contato interétnico, tanto Garlet (1997:19) quanto Darella
(2004:68) ilustram como os mitos dos Mbyá são a efetivação de estratégias para
explicarem a si mesmos a intervenção do branco e seus efeitos na sua sociedade:
Nhanderu destinou as matas e as florestas para que seus filhos legítimos (os Mbyá)
vivessem em harmonia, e deu aos brancos as cidades e os campos, a fim de que não se
misturassem e não se incomodassem; porém, os brancos transgrediram o pacto e
invadiram as selvas destinadas aos Mbyá.
152
Estes exemplos que contam a intervenção do branco na sociedade mbyá desde
uma visão nativa, têm sido abordados sobre a interpretação estruturalista de Marshall
Sahlins (1990), que tenta anular a dicotomia entre “estrutura” e “evento”.
153
Sob esta
abordagem, Garlet aponta construção de “justificativas culturais autóctones” como
estratégias à irrupção dos brancos na vida da sociedade guarani, onde o contato
interétnico obriga os nativos a elaborarem respostas a partir de categorias simbólicas,
re-elaboradas ao mesmo tempo a partir do evento (Garlet, 1997:19). Considero que a
noção de justificativa” como resposta estratégica nativa ao contato interétnico, resulta
em uma diminuição –em termos conceituais- da capacidade adaptativa e dinâmica dos
grupos étnicos, neste caso os Mbyá. Embora o autor, inspirado em Sahlins coloque que
152
Este mito foi registrado primeiramente por Cadogan (1960). Este mesmo mito, retomado pelos autores
citados é abordado como uma interpretação mitológica do contato inter-étnico. Enquanto o registro de
Garlet aponta para o efeito da mobilização dos Mbyá perante a invasão dos brancos, Darella enfatiza os
efeitos na economia de subsistência.
153
Sobre a abordagem que Sahlins faz das relações políticas no contato inter-étnico, Eric Wolf ([1990]
2003:339-340) comenta:“Sahlins (1985) apresentou a noção de estrutura cultural para interpretar como os
havaianos entendiam essas mudanças e reavaliavam sua compreensão no decorrer das mudanças. Mas
somente a referência a uma estrutura cultural, ou mesmo à dialética de uma estrutura de significado com o
mundo não explicará como formas dadas de significação relacionam-se com transformações de
agricultura, povoamento, organização sociopolítica e relações de guerra e paz. Para explicar o que
aconteceu no Havaí, ou em qualquer outro lugar, devemos dar o passo adiante de compreender as
conseqüências do exercício do poder”.
130
“a mudança cultural, provocada pelo evento, o significa a descaracterização desta
mesma cultura, pelo contrário, sua dinamicidade (histórica) é que lhe permite sua
manutenção...” (ibid, 20), acho que o conceito de “justificativa” utilizado por Garlet,
corresponderia melhor ao conceito de “re-significação”, pois o importante não é quanto
os Mb possam justificar para os jurua a ocupação dos espaços nem como o façam,
mas a explicação que eles constroem para si mesmos e sobre eles mesmos, como
resultante dos processos que lhes têm obrigado a se adaptar, transformando o que para
eles seria “tradicional” (Albert, 2002; Barabas, 2003:18). A re-elaboração mitológica
sobre a intervenção dos jurua na sociedade Guarani não é suficiente para compreender
as conseqüências da intervenção da sociedade envolvente, tendo que ser analisada
comparativamente às praticas culturais.
O sistema de ocupação através da aquisição de áreas parece não influenciar
negativamente na concepção de território tradicional, porém, isto não significa que a
percepção sobre ele não tenha sofrido transformações, assim como nas demais esferas
da vida dos Mbyá. Primeiro porque os Mbyá ponderam encontrar uma “terra boa” sem
importar os meios para obtê-la, ao mesmo tempo em que vão criando novas
interpretações sobre seus sonhos enquanto orientações dos desígnios divinos e a
indicação de lugares sinalizados como tavas, “ruínas dos antigos”. Por exemplo, nas
conversas que tive com Timóteo de Oliveira, este sempre manifestou estar a procura de
tavas que lhe foram indicadas nos sonhos por Nhanderu e que se localizam dentro do
Parque Estadual; porém, perante o processo de aquisição de áreas, tenta achar um local
que seja “terra boa” para a plantação, com mata e água suficiente, preferentemente perto
da UCA para ter acesso aos lugares que foram herdados pelos Nhanderu Miri. Por sua
parte, José Benite, que também é o responsável por escolher uma área a ser adquirida
para os moradores de Massiambu, me revelou ter sonhado com um local anteriormente
visitado por ele e a equipe técnica da FUNAI, incitando-o a decidir pela escolha dessa
área. o depoimento de Maria Guimarães sobre a escolha de Tekoa Marangatu ilustra
que a área não foi revelada por Nhanderu através dos sonhos, mas o fato de eles
conseguirem a terra já é uma concretização do desígnio divino.
As atividades agrícolas continuam sendo as principais manifestações da cultura
Mbyá (vinculadas com as práticas rituais), pois ambas são as principais orientações para
ocupar novos locais de residência, como vimos nas narrativas de ocupação em Tekoa
Marangatu. A plantação é uma prática ensinada por Nhanderu Tenonde para seus filhos
131
(os Mbyá) se sustentarem. Embora os produtos agrícolas não sejam suficientes para a
auto-sustentabilidade, a agricultura é uma das características mais significativas do
Nhande reko. Atualmente, a agricultura (assim como outras atividades da economia
tradicional) tem sido complementada com a comercialização do artesanato. Esta
atividade se manifesta como intermediária entre a tradição e a sociedade envolvente:
“Ele é produzido como um objeto objetivado, alienável, direcionado para uma
circulação para fora, para as relações com o exterior, o mundo dos brancos. Apesar de
ser um objeto concebido e produzido para ser mercadoria, ele não deixa de ser também
um elemento diacrítico de sua cultura” (Assis, 2006:312). Portanto, o artesanato é tanto
um elemento da tradição Mbyá, mas destinado a sua comercialização, efetivando um
outro tipo de economia, diferente da plantação, na qual os produtos agrícolas
dificilmente são colocados como mercadorias.
A influência da sociedade dominante se expressa significativamente na
realização de festas e campeonatos de futebol nas aldeias. As festas principalmente são
realizadas em casamentos, aniversários ou algumas datas do calendário da sociedade
nacional (o dia do índio, por exemplo), eventos nos quais as lideranças locais mbyá
liberam o consumo de bebidas alcoólicas, consomem carne bovina assada nas
churrasqueiras improvisadas. Nestes eventos, escutam músicas dos grupos de forró de
maior sucesso e incentivam a formação de grupos musicais deste estilo compostos por
Mbyá. Geralmente estas festas duram de dois a três dias, dependendo da data, da aldeia
receptora e das aldeias visitantes, assim como dos recursos disponibilizados. Na maioria
das vezes, as festas são encerradas com um jogo de futebol. Apesar destas festas
apresentarem muitos elementos dos não-índios (que aos olhos dos xee ramoi não é do
todo aceitável), os Mbyá manifestam que as festas que realizam no estilo jurua,
principalmente pela iniciativa dos mais jovens, são feitas no “estilo guarani”. Assis
(2006:72-73) aponta que as festas (arete) antigamente eram feitas com o objetivo de
contrair alianças, efetivando as práticas do trabalho coletivo e a reciprocidade, mas no
contexto contemporâneo, estas práticas têm incorporado elementos do mundo dos
brancos. A finalidade destas comemorações, como demonstra Assis, continua sendo a
mesma: a concretização de alianças e a obtenção de prestígio das lideranças, ao mesmo
tempo em que se mantêm a prática da reciprocidade.
Por sua parte, mais que um esporte e uma diversão para os Mbyá, o futebol é um
motivo para organizar visitas ás aldeias, efetivando a mobilidade e a circularidade no
132
território, assim como dos objetivos acima apontados. A projeção de algum
campeonato, conseguir um ônibus e a visitação a uma aldeia, tendo como objetivo o
jogo, concretiza uma série de práticas culturais, como o intercâmbio de mercadorias, o
arranjo de matrimônios e a obtenção de prestígio, entre outros aspectos. Na prática, o
futebol e as festas são indissociáveis, mas tendo este esporte uma fundamentação
mitológica, como aponta o depoimento de Leandro Fernandes Kuaray Miri, acima
referenciado.
Uma outra forma da re-significação mbpode ser identificada na produção e
circulação de CDs musicais, que contém gravações dos cantos que expressam não
um discurso de “adaptação resistente”, ou seja, de um discurso de si para o outro –em
termos de Albert (2002:242)- mas também um discurso étnico-introspectivo (sobre si
para eles mesmos). Isto parece mostrar as canções contidas no CD Nhamandu Werá-
Ore Mborai Porá Pawe Rayu Pare,
154
criado pelo coral de Tekoa Marangatu em 2003.
A maioria destas músicas foram inspiração de Leandro Fernandes Kuaray Mirim e de
Nico de Oliveira Werá Mirim;
155
outras foram adaptadas pelo grupo. Duas músicas
deste CD caracterizam positivamente o Tekoa Marangatu,
156
manifestando as condições
ecológicas e sociais adequadas, cobertas por um elo sagrado. Numa conversa com Nico
de Oliveira, este revelou ter composto duas novas músicas, ainda inéditas:
157
a primeira
é cantada pelo grupo quando chegam de visita a outras aldeias onde foram convidados:
Tekoa Marangatu
Ore roju roupity pende rekoa
Pavei pejoguerovy aguã
Pejoguerovy akatu
Ore rupivẽ
Jajoguerovy akatu
Tradução:
Da aldeia Marangatu que viemos
Chegamos na aldeia de vocês
154
A tradução do nome do coral é “Brilho do Sol”, e do título do CD é “Cantos Sagrados Guarani Pela
Paz da Humanidade”. Note-se que o título está dirigido a um amplo auditório, incluindo tanto aos
próprios Mbyá quanto o público jurua.
155
Nico de Oliveira é filho de Narciso de Oliveira, portanto. Atualmente é professor bilíngüe da escola de
Tekoa Marangatu e participa ativamente no coral tocando o mbaraka e compondo músicas.
156
Track 9: Tekoa Marangatu; e track 11 Nhande rekoa.
157
As letras destas duas músicas foram registradas com a autorização do autor Nico de Oliveira.
133
Que todos fiquem felizes
Fiquem felizes com nós
Vamos nos alegrar
A segunda música trata sobre a transmissão das práticas culturais, em alusão à
dança do Xondaro Kuery, dança ritual vinculada às práticas guerreiras e à caça.
158
Na
versão de Nico, a referência à dança ritual é no sentido do mantimento das práticas
culturais:
Xondaro’i kuery ojerory
Oporai mamo ete guará jajexa
Mavy jarovya
Jarovya jarory
Tradução:
Guerreiros estão dançando e cantando
Vamos fortalecer para ser fortalecidos espiritualmente
Festejando com isso e sorrindo
Vemos, deste modo, que as músicas contidas nos CDs que produzem os Mbyá
têm duplo sentido. No mesmo discurso musical, artístico, filosófico e religioso, o
sentido político das canções é dirigido por um lado a manifestar conciliação com os
jurua, colocando a possibilidade e o desejo de uma convivência mais harmoniosa e
menos agressiva. De certa forma, a expressão Mbyá dirigida ao jurua possui uma
demonstração de poder político e religioso. No sentido introspectivo, o discurso étnico
faz referência ao saber cosmológico, que fundamenta sua legitimação (ibidem), porém,
utilizando elementos externos como pontos de referência e alteridade.
Estes são alguns exemplos que durante o trabalho de campo observei
operarem como re-significações dentro da cultura Mbyá, não unicamente para explicar a
incorporação e ocupação de espaços a sua territorialidade, mas também para construir
discursos sobre sua existência que cada vez parece ser mais dinâmica e adaptativa
perante as situações de crises. Considero que a re-significação cultural não é um
fenômeno que opere exclusivamente perante o contexto de contato interétnico, ou para
explicar a intervenção do branco nas sociedades indígenas e suas conseqüências; penso
158
Sobre a descrição desta dança, consultar Litaiff (1996:94).
134
que a cada mudança cultural (independentemente do grupo e das causas internas ou
externas) corresponde uma re-elaboração de significado que explique como, por que e o
para quê de dita transformação. De alguma forma, o que está em jogo são a veracidade e
a atualidade do significado dentro das relações políticas, de forma independente às
causas das transformações. Caberia talvez o esclarecimento de Wolf ([1990] 2003) para
explicar o exercício do poder e o papel da significação nestas relações:
“O poder está implicado no significado por seu papel na sustentação de uma versão de
significação como verdadeira, fecunda ou bela contra outras possibilidades que possam
ameaçar a verdade, a fecundidade ou a beleza [...] Quando um modo [de poder] entra
em conflito com outro, ele também contesta as categorias fundamentais que dão poder a
sua dinâmica. O poder será então invocado para atacar as pretensões categorias rivais.
Desse modo, o poder jamais é externo à significação –ele habita o sentido e é seu
paladino na estabilização e na defesa” (ibid: 337-338)
Se o poder é intrínseco à significação nas relações políticas (sejam estas de
contato interétnico ou não), então a re-significação é inerente à mudança e
transformação, pois é a forma de dar sentido e revitalizar as categorias em defesa da
veracidade. Finalmente, para os Mbnão é suficiente um discurso meramente “para
si” explicando a tradição através do nhande reko, ou do “outro para si” mediante o mito
da divisão da terra para Mbyá e para não-índio; mas no contexto atual é necessária uma
construção de discurso “sobre si para o outro e também para si”.
135
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os governos federal e estadual, neste caso o de Santa Catarina, não têm concretizado
ações que garantam o reconhecimento à ocupação territorial Mbyá-Guarani, nem
efetivado políticas públicas eficientes para auxiliar este grupo étnico. As agências que
devem prestar apoio à população indígena em Santa Catarina (FUNAI, FUNASA,
GEREI, por exemplo) mantêm ativos seus funcionários e cobrem medianamente as
necessidades e reivindicações da população indígena, gerando o assistencialismo e
paternalismo, assim como também dando continuidade a práticas tutelares. Por outro
lado, a manutenção das instituições e de seus funcionários melhora de forma mínima as
precárias situações nas aldeias apenas para dar continuidade a projetos e aos cargos dos
funcionários institucionais. Esta foi uma colocação de Leonardo Werá Tupã, jovem
liderança mb que assim se expressou durante a audiência pública sobre Segurança
Alimentar dos Povos Indígenas em Santa Catarina: “Um dos principais problemas é a
gerência do poder na FUNAI, FUNASA, Secretaria de Educação, que têm mais
funcionários trabalhando que índios nas aldeias. Nesse sentido, até agora os índios têm
sustentado as instituições e não os órgãos sustentado os índios”.
159
A demarcação e homologação de terras indígenas é uma reivindicação (e
preocupação) constante dos grupos indígenas, envolvendo na esfera deste conflito
agrário os índios, os governos federal e estadual e a sociedade envolvente. Destes
problemas podemos apontar dois eixos principais. O primeiro é a falta de
reconhecimento dos direitos indígenas, neste caso dos Guarani, assim como de seu
território tradicional e suas práticas culturais. O segundo é a falta de correspondência
entre os termos jurídicos rígidos contidos no artigo 231, parágrafo da Constituição
Federal de 1988 e as práticas de ocupação indígena que respondem a lógicas
multicausais e mais flexíveis, como resultados tanto das práticas culturais tradicionais
quanto da pressão exercida historicamente pela sociedade dominante. Além de que a
prática de ocupação tradicional do espaço não tem sido interrompida pelos Mbyá, e que,
pelo contrário, estes vêem efetivando um processo de reterritorialização do espaço
159
Depoimento gravado durante na Audiência Pública, convocada pelo Conselho Nacional de Segurança
Alimentar (COSEA), Assembléia Legislativa, 12 de abril de 2006, Florianópolis.
136
reconhecido por eles como território tradicional, considerando ao mesmo tempo a
ineficiência institucional tanto a nível estadual quanto federal para resolver os
problemas fundiários, o governo federal –na tentativa de dar continuidade aos projetos
desenvolvimentistas- resolveu efetivar a compra de áreas destinadas aos Guarani, a fim
de amenizar os conflitos relativos aos processos fundiários. Ao mesmo tempo, o
objetivo das instituições governamentais era tentar liberar áreas de investimento para o
desenvolvimento do estado de Santa Catarina, por exemplo, a construção do Gasoduto
Bolívia-Brasil, a ampliação da rodovia BR 101, e no último projeto, a construção de
linhas de transmissão elétrica, assim como o investimento da indústria turística e da
especulação imobiliária, tão demandada na região. Na perspectiva governamental, a
compra de áreas resolve por via da indenização o problema das terras indígenas,
evadindo os processos burocráticos do reconhecimento jurídico e constitucional de
demarcação e homologação, ao mesmo tempo em que deixa o campo livre para os
projetos desenvolvimentistas nas regiões de ocupação guarani. Foi neste contexto que
os Mbyá receberam a indenização para adquirir a área denominada por eles como Tekoa
Marangatu, comumente conhecida como Cachoeira dos Inácios, no município de
Imaruí.
Devido às precárias condições de subsistência nas aldeias guarani, mesmo naquelas demarcadas, a compra de terra
oferece certa segurança fundiária e de subsistência para os Mbyá em relação a outras áreas ocupadas por eles. Porém, esta segurança
apresenta-se ambígua, pois a aquisição de áreas, ao evadir os processos burocráticos de delimitação e homologação, afeta o
reconhecimento jurídico do direito indígena sobre “as terras que tradicionalmente ocupam”. Como demonstraram os depoimentos
aqui referenciados, para alguns Mbyá-Guarani pode ser considerada “terra tradicional” devido à forma como são realizadas as
práticas culturais; para outros talvez não seja tradicional baseada no direito de ocupação ancestral, mas possibilita a realização de
atividades de subsistência em melhores condições, sendo estas o fundamento da tradicionalidade. Mesmo assim, as áreas adquiridas
apresentam a problemática da restrição do espaço e fixação nele, além da pouca correspondência com o ambiente ecologicamente
adequado e ao restrito espaço para a realização das atividades agrícolas. A compra de terra apresenta-se como medida mitigadora, e
não como solução aos problemas enfrentados no dia a dia nas aldeias. Se por um lado, a aquisição de áreas representa uma melhoria
nas condições de subsistência, por outro, apresenta-se como uma panela de vapor pronta para explodir, provocando novas cisões e
conseqüentes exigências para a ocupação de espaços.
Como conseqüência, a aquisição de áreas não só traz modificações na conotação sobre a territorialidade mbyá-guarani,
mas transforma a organização política e social deste grupo, acelerando o crescimento demográfico no interior das áreas e
contribuindo para a aglomeração de grupos parentais e o conseqüente confronto. Quanto maior é a sobreposição de famílias
extensas, criam-se as condições para o conflito entre as lideranças familiares, entre os casais-lideranças de cada família extensa (os
xee ramoi). Estes conflitos incentivam as cisões dos grupos parentais na procura de novos espaços ou outras aldeias a ocupar, mas
perante a dificuldade e restrição dos espaços disponíveis, os conflitos entre lideranças vêem sendo vivenciados nas áreas, criando ao
mesmo tempo fortes tensões entre os grupos parentais. Outro tipo de conflito se origina das cisões entre os grupos parentais, na
formação de novas famílias extensas que buscam adquirir autonomia parental e política através da acumulação de prestígio. Perante
a expectativa de receber novas indenizações, a compra de terra apresenta-se como uma via na aquisição de autonomia de novos
chefes de família, acelerando a formação de grupos parentais separados da família grande, com o intuito de serem beneficiados com
a aquisição de uma nova terra e lá fundar um novo tekoa.
A chefia política, baseada tradicionalmente nas relações de parentesco, a condição etária e a acumulação de
conhecimento e prestígio demonstrada através das práticas religiosas, tem sido modificada tanto pela interferência das agências de
atendimento e apoio, quanto pela dinâmica das relações políticas com a sociedade nacional. Os professores bilíngües mbyá vêm
sendo preparados para realizar os relacionamentos com os jurua, expressando as decisões tomadas pela coletividade e resguardando
os líderes religiosos, os xee ramoi e suas formas de relacionamento interno. Embora os professores bilíngües, agentes de saneamento
e de saúde não apresentem nenhuma acumulação de poder político no interior das aldeias, estes podem manifestar acumulação de
prestígio através do relacionamento interétnico, o que os coloca como possuidores da função de representantes da coletividade.
Nesse sentido, e considerando o intenso contato com os brancos, a sociedade mbyá tem optado por colocar como seus representantes
políticos aqueles que melhor conhecem, se expressam e se envolvem no mundo dos jurua. Estas jovens lideranças, articuladoras e
interlocutoras entre a sociedade dominante e a sociedade mbyá, são designadas para cobrir a função de caciques numa freqüência
crescente. Quando isso acontece –como é no caso de José Benite em Massiambu, e recentemente Eduardo da Silva em Tekoa
Marangatu- efetiva-se um outro sistema de tomada da chefia política, desviando o processo de aquisição de prestígio pela via etária,
137
o conhecimento das práticas rituais e principalmente da conformação da figura do xee ramoi como figura da chefia da família
extensa e dirigente político.
A aquisição de áreas é mais uma conseqüência do contato interétnico, das relações de poder entre a sociedade dominante
e a sociedade Guarani, que origina a ativação de estratégias que formulem explicações sobre certas transformações. Através de um
processo de ocupação do espaço que não corresponde ao que é considerado “tradicional”, criam-se uma série de práticas culturais
que tentam se fundamentar nos preceitos culturais (o nhande reko), mas que perante as condições atuais dificilmente se apegam a
este. Assim, as práticas culturais dos Mbyá têm de ser explicadas por meio de re-significações, na criação de discursos de duplo
sentido partindo dos códigos nativos e utilizando elementos da sociedade envolvente que são estrategicamente apropriados. Na
manifestação do poder entre duas lógicas opostas a fim de cristalizar a veracidade e atualidade dos significados, o discurso
etnopolítico Mbyá possui dois sentidos: um dirigido para a alteridade, os jurua, o mundo dos brancos, na tentativa de manifestar
suas reivindicações políticas, seu desagrado pela pressão exercida sobre seu território, no intuito de demonstrar seus direitos
(ancestrais e tradicionais) de permanência sobre essas terras ocupadas por eles; no sentido interno ou introspectivo, o discurso não
unicamente cria e modifica a memória histórica do grupo através da re-formulação dos mitos, mas cria explicações sobre as
mudanças de certas práticas culturais, utilizando os elementos de alteridade apropriados da sociedade ocidental.
As práticas culturais que transformam um espaço em “tradicional mbyá”, são
aquelas fundamentadas no nhande reko, tais como a plantação de sementes nativas
(milho, melancia, feijão, etc) através da roça, cuja produção é destinada ao auto-
consumo, à redistribuição e à economia material e simbólica de reciprocidade
(mborayu); a realização das atividades rituais periódicas, como o nhemongarai e o
sistema terapêutico mbyá; a ajuda mútua e o coletivismo entre os co-aldeãos (potirõ),
entre outras expressadas nas narrativas. Os elementos que estão sendo re-significados
pelos Mbyá são a ocupação dos espaços, a produção do artesanato, o consumo de
alimentos industrializados, as festas e forrós ao estilo jurua, os jogos de futebol, a
produção de CDs, o sistema de ensino, o consumo de novas tecnologias, e entre outros,
a própria relação com a sociedade envolvente.
Vemos, portanto, que a forma de cozinhar um mbojapé não difere muito –nos
termos da re-significação mbyá- da maneira como uma terra é ocupada, sempre que se
explique a partir dos códigos culturais nativos, que de nenhuma forma são estáticos e
sim dependem das transformações e adequações surgidas pelos contextos dos quais são
geradas, nas relações de poder.
Porém, considero que a ineficácia burocrática e governamental não deve ser
solucionada a partir de saídas rápidas na “aquisição provisória de áreas nimas” como
uma forma de encarar os problemas fundiários. Os órgãos institucionais devem se
responsabilizar pela realização e conclusão os processos constitucionais de delimitação
e homologação de terras indígenas, de garantir o direito à permanência do espaço
tradicionalmente ocupado e criar novos aparelhos jurídicos e constitucionais mais
flexíveis, a fim de criar políticas públicas indigenistas eficientes com respeito à
diversidade cultural.
138
ANEXOS
LEVANTAMENTO DEMOGRÁFICO
TEKOA MARANGATU
21 de julho de 2006
.
160
Grupo residencial 1
Casa 1
Nome e data de
nascimento
Parentesco-filiação
Aldeia de procedência
anterior a Tekoa
Marangatu
Fonte de renda ou
atividade desenvolvida na
aldeia
Augusto da Silva: 9-9-1942
Pai: Quibano da Silva
Mãe: Maria de Freitas
Massiambu (1999) Aposentado: R$ 350
Plantação
Maria da Silva Guimarães:
6-1-1936
Pai: Antonio Guimarães
Mãe: Quirina Vogado
Aposentada: R$ 350
Pouco artesanato
Nhombo’e va’e
Neta: Fabiana da Silva:
17-1-1999
Pai: Cláudio da Silva
Mãe: Francisca Ramirez
Marangatu
Casa 2
Inácio da Silva:
1-8-1978
Pai: Augusto da Silva
Mãe: Maria Guimarães
Massiambu (2000?) Yvyraija
Francisca da Silva:15-4-
1993
Pai: Julio da Silva
Mãe: Marta de Oliveira
Artesanato
Filho: Gabriel: 29-1-2000
Filho: Gabriela:4-12-2001
Filha: Mogli: 14-6-2005
Casa 3
Eduardo da Silva: 13-10-
1982
Pai: Augusto da Silva
Mãe: Maria Guimarães
Massiambu (2000?-
2006)
Cacique desde dezembro de
2006
Professor (atualmente
inativo) R$ 350
Quirina Gonçalves: 4-6-
1989
Pai: Leonardo Gonçalves
Mãe: Luciana Pereira
Artesanato
Filho: Edimar da Silva
20-9-2001
Filha: Karina da Silva
16-11-2003
160
As cifras demográficas podem apresentar variações em relação ao quadro 1 apresentado no primeiro capítulo, devido à
mobilidade e deslocamento das famílias.
139
Grupo residencial 2
Casa 4
Macário Guimarães: 28-2-
1965
Mãe: Joana Mariano Aldeia Pipiri, Misiones,
Arg 2002
Plantação
Teresa Vilhalva: 27-1-1969 Pai: Paulino Vilhalva
Mãe: Maria ?
Bolsa Família, R$ 95
Filho: José Guimarães: 25-
8-91
Filha: Primori: 9-6-1994
Filho: Severiano: 8-7-03
Filha: Martina: 17-8-1998
Filha: Carolina: 11-1-2002
Filha: Sara: 16-10-2003
Agregado: Mauro
Guimarães: 9-11-1963
Agregada: Joana Mariano:
6-6-1935
Filho ausente: Roberto
Guimarães
Atualmente na aldeia Pipiri
Grupo Residencial 3
Casa 5
Alcides da Silva: 15-12-
1927
Pai: Atoninho da Silva
Mãe: Julia da Silva
Primo-irmão de Timóteo de
Oliveira
Pindoty – Sete Barras, (SP)
(11 de abril 2005)
Aposentado: $R 240
Plantação
Abelina da Silva: 1969 Pai: Oride da Silva
Mãe: Juliana Ribeiro
Neto: Edson: 5-10-1991 Mãe: Rosalina da Silva,
filha do Alcides e Abelina
Filhos ausentes: Alicio da
Silva: 33 (mora em Rio
Silveira SP)
Abílio: 22 (mora em
Cananéia, SP)
Casa 6
Amélia da Silva: 3-6-1983 Pai: Alcides da Silva
Mãe: Abelina da Silva
Filha: Karina da Silva: 8-
11-2003
Pai: Mauro ?
Filha: Sandra: 25-4-2000
Agregado: Paulino
Gonçalves:1- 1989
Casa 7
Marídia Nunes: 6-5-1987
Filho: Clayton Nunes da
Silva: 13-2-2003
Filha: Diana Nunes da
Silva: 25-2-2005
Casa 8
Renata da Silva: 24-10- Pai: Alcides da Silva
140
1983 Mãe: Abelina da Silva
João Rodrigo da Silva: 15-
11-1978 (Marido)
Irmão da Francisca e Anita
da Silva
Atualmente fora da aldeia
Filho: Rogério da Silva: 22-
1-2004
Filha: Rosiel: 4-2-2006
Casa 9
Atalibio Benite: 23-1-1972 Pai: Severiano Benite
Mãe: Alzira Eusebio
Sete Barras, aldeia Pindoty,
SP (2005)
Artesanato
Plantação
Rosalina da Silva: 10-6-
1968
Pai: Alcides da Silva
Mãe: Abelina da Silva
Filho: Ronaldo: 4-9-1994
Filho: Reginaldo: 28-8-
1998
Filha: Edineia: 25-2-1997
Filha: Rosilane: 3-6-2001
Filho: Claudenilson: 5-1-
2005
Grupo residencial 4
Casa 10
Alcindo Gonçalves: 12-3-
1930
Pai: Joãozinho Gonçalves
Mãe: Lucinda Gonçalves
Morro dos Cavalos (2004) Aposentado, R$ 350
Teresa Tibe: 9-5-1949 Pai: Laurindo Tibe
Mãe: Maria dos Santos
Aposentada, R$ 350
Filho: Marcio: 5-10-1988
Casa 11
Antonio: 17-12-1987 Pai: Alcindo Gonçalves
Mãe: Teresa Tibe
Juliana da Silva: 25-09-
1981
Jucelaine Gonçalves 23-8-
2003
Casa 12
Leandro Silveira: 33 Pai: Adão Silveira
Mãe: Florência da Silva
Chegaram recentemente,
possivelmente no mês de
março de 2006
Troca de artesanato por
mercadorias.
Eliana Gonçalves: 22 Pai: Alcindo Gonçalves
Mãe: Teresa Tibe
Filho: Ronildo: 6
Filho: Roni: 3
Neta de Alcindo, adotada:
Graciele: 7
Agregado: Juarez da Silva:
19
Serviços sazonais
Grupo residencial 5
Casa 13
Cláudio da Silva: 22-8-
1973
Pai: Augusto da Silva
Mãe: Maria Guimarães
Massiambu (1999) Agente Sanitário: R$ 380
Bolsa Família: R$20
Artesanato
Francisca Brite: 3-12-1975 Pai: Lino Brite
Mãe: Joana Ramires
Filho: Fabio: 19-7-94
Filha: Daiana: 22-6-96
Filho: Diego: 24-2-2001
Adotada: Cleusa da Silva:
11
Pai: Valmiro da Silva
(irmão de Teresa Ortega, de
Massiambu)
Mãe: Lídia ?
Massiambu (chegaram
recentemente, 2006)
Adotado: Célio da Silva: 7
141
Grupo residencial 6
Casa 14
Cecília da Silva:
23-5-1968
Pai: Augusto da Silva
Mãe: Maria Guimarães
Massiambu (2000) Bolsa Família: R$95
Artesanato
Filha: Geny Lopes:
5-9-1991
Pai: Mario Lopes
Mãe: Cecília
Filha: Santa Lopes:
17-12-1995
Filho: Giovani da Silva:
13-6-2001
(nascido em SP)
Pai: Paulo
Filho: Guilherme da Silva:
29-5-2005
Nascido em Marangatu
Genro: Hugo Garceres: 19-
10-1988
Passo Grande, RS
Grupo residencial 7
Casa 15
Jorge de Oliveira:
23-4-1936
Pai: Lorenzo de Oliveira
Mãe: Inácia Almeida
Meio-irmão do Timóteo de
Oliveira
Salto do Jacuí; Massiambu
(2003)
Aposentado: R$350
Plantação
Vitória Moreira:
25-2-1960
Pai: Adriano Moreira Bolsa Família: R$95
Filha: Carmen: 15-7-1988
Filha: Marcelina: 1-10-
1985
Neta: Angélica Benite
(filha de Marcelina): 30-12-
2002
Filhos de Marcelina
Filha: Celita: 13-08-1993
Filha: Patrícia: 5-9-1998
Filha: Cristina: 22-4-2001
Casa 16
Valdemar Gonçalves: 15 Pai: Alcindo Gonçalves
Mãe: Teresa Tibe.
Camila Oliveira: 15 Pai: Jorge de Oliveira
Mãe: Vitória Moreira
Grupo Residencial 8
Casa 17
Mário Guimarães: 15-8-
1947
Pai: Antonio Guimarães
Mãe: Quirina Vogado
Palmital, Misiones (Arg);
Massiambu (setembro
2001)
Bolsa Escola: $R65
Artesanato
Plantação
Anita da Silva: 20-9-1965 Pai: Julio da Silva
Mãe: Marta de Oliveira
Neto: Fabio Guimarães: 15-
9-1995 (adotado)
Carmen da Silva: 1995
Sobrinha, filha da Francisca
Mãe: Francisca da Silva
Pai: Periciano
Agregado: Bruno da Silva:
27 (Irmão da Anita)
Casa 18
Patrícia Guimarães: 12-3-
1985
Pai: Mario Guimarães
Mãe: Anita da Silva
Bolsa Escola: ?
Artesanato
Filho: Ernesto Cláudio
Fernandes: 14-4-1999
Pai: Afonso Cláudio
Tukumbo
Filho: Sabino Cláudio
Fernandes: 9-1-2001
Pai: Afonso Cláudio
Tukumbo
142
Filha: Mariana Guimarães:
2-11-2004
Pai: Romário da Silva
Grupo Residencial 9
Casa 19
Alcides Oliveira (Jacaré):
20-8-1961
Tio de Anita da Silva,
meio-irmão do Jorge de
Oliveira por parte da mãe.
Salto do Jacuí 2001 Bolsa Família: R$ 95
Artesanato.
Irma da Silva: 12-4-1969 Pai: Julio da Silva
Mãe: Julia Timóteo.
Filha: Vitorina: 16-4-1991.
Única filha que ficou na
aldeia dos 7 filhos
Agregado: Pedro Timoteo:
48
Filhos que moram fora da
aldeia: Nicanor, Teresa e
Pedro moram em San
Miguel, Misiones (Arg);
Arlindo e Vitório em
Torres (RS) e Catalina em
Porto. Alegre.
Grupo Residencial 10
Casa 20
Silvio Duarte: 22-2-1969 Pai: Julio da Silva
Mãe: Marta de Oliveira
Massiambu (1999-
2000/2005)
Serviço sazonal
Bolsa Família (em
adiamento)
Artesanato
Plantação
Márcia da Silva: 7-3-1967 Pai: Augusto da Silva
Mãe: Maria Guimarães
Filho: Sergio: 24-2-1991
Filho: Inácio: 31-7-1999
Filho: Emerson: 14-7-2003
Grupo Residencial 11
Casa 21
Darci Lino Gimenes: 30-
10-1956
Pai: Antonio Gimenes
Mãe: Lucia Benite
Morro dos Cavalos (2004) Artesanato
Serviço sazonal
Plantação
Marta Oliveira (Benite):
13-10-65
Pai: Lorenzo Oliveira
Mãe: Alicia da Silva
Kerexu
Filho: Valdecir: 14-7-1984
Filha: Loreci: 27-11-1987
Filha: Iraci: 14-5-1990
Filho: Francisco: 29-1-1993
Filha: Irani: 12-5-1995
Filho: Davi: 22-5-1998
Filho: Adilson: 18-6-2000
Filho: Luciano: 1-09-2002
Grupo residencial 12
Casa 22
Timóteo de Oliveira: 18-
12-1962
Pai: Lorenzo de Oliveira
Mãe: Alicia da Silva
Kerexu
Morro dos Cavalos (1999) Cacique e karai-opygua
Plantação
Luiza Benite: 30-10-1948 Irmã da mulher do Narciso Aposentada
Tio: Laurido Tibe: 18-5-
1917
Aposentado
Transita entre este grupo
residencial e o da sua filha
Teresa Tibe, grupo
residencial 4.
Neto: Ronaldo de Oliveira
(adotado como filho):16-8-
Mãe: Neuza de Oliveira
143
1997
Neto: Rafael: 15-1-2003
Casa 23
Gabriel Duarte: 25-3-1988 RS (2006) Artesanato
Neuza de Oliveira: 21-11-
1984
Pai: Ricardo Fernandes
(reconhecida por Timóteo
de Oliveira como filha
própria)
Mãe: Luiza Benite
Filha: Sabrina de Oliveira:
23-2-2005
Grupo residencial 13
Casa 24
Leandro Fernandes: 7-5-
1972
Pai: Ricardo Fernandes
Mãe: Luiza Benite
Rio Silveira SP (1999) Plantação, caça, pesca.
Yvyraija
Enquanto produção e
consumo, fazem parte do
grupo residencial 13
Fermilia Bolantim: 23-1-
1977
Pai: Oracio Bolantim
Mãe: Paulina Bolantim
Filha: Cristiani: 13-10-1996
SP
Filha: Crislaine: 17-6-1998
SP
Filha: Daiana: 5-7-2000
Marangatu
Filho: Criseverton: 26-4-
2002
Filha: Keilane: 10-1-2004
Grupo residencial 14
Casa 25
Célio Vilhalva Veríssimo:
12-9-1985
Artesanato, plantação
Enquanto produção e
consumo, fazem parte dos
grupos residenciais 4 e13
Santa de Oliveira: 28-10-
1986
Pai: Timóteo de Oliveira
Filho: Meicon Oliveira: 10-
2-2006
Grupo Residencial 15
Casa 26
Marcio Moreira: 1987 Pai: Dario Moreira
Mãe: Dolarina
Morro dos Cavalos (14 de
março de 2006)
Serviço sazonal e
artesanato.
Na sua chegada, faziam
parte do grupo residencial
13 (Timóteo de Oliveira e
Luiza Benite); depois
ficaram mais próximos ao
grupo residencial 9
(Alcides Oliveira e Irma da
Silva). Atualmente moram
em Massiambu
Lucia Benite da Silva: 1976
Pai: José da Silva
Mãe: Teresa Mariano
Martin
Filho: Karai: 2003
Grupo residencial 16
Casa 27
Anita da Silva: 1965 Pai: Augusto da Silva Massiambu (junho 2006) Bolsa Família: R$ 95
144
Casada com João Benites
(Massiambu)
Mãe: Maria Guimarães Artesanato
Filho (adotado): Ricardo:
22
Filho: Irineu: 21
(Massiambu)
Filho: Isidoro: 18
Filha: Daniela: 15
Filha: Fátima: 13
Filho: Daniel: 10
Filho: Danilo: 7
Filho: Rodrigo: 5
Filho: Geraldo: 2
Grupo Residencial 17
Casa 28
Narciso de Oliveira: 30-10-
1959
Pai: Lorenzo de Oliveira
Mãe: Alicia da Silva
Kerexu
Morro dos Cavalos (2002) Plantação
Serviço sazonal
Hilda Benite: 19-9-1965 Pai: Albino Benite
Mãe: Vitorina Benite
Artesanato
Filha: Mariza: 20-8-1989
Filho: Adriano: 18-3-1995
Filha: Ângela: 2-10-1996
Filha: Angélica: 10-10-
1999
Filho: Tiago: 2-9-2003
Casa 29
Nico de Oliveira: 14-12-
1983
Pai: Narciso de Oliveira
Mãe: Hilda Benite
Professor Ativo
Marcio Benite: 5-7-1990
Sobrinho: (adotado pelo
grupo familiar)
Grupo Residencial 18
Casa 30
Floriano da Silva: 4-5-1980
Casado em Marangatu
Pai: Augusto da Silva
Mãe: Maria Guimarães
Agente de Saúde $R: 350
Francisca Pereira Garai: 4-
10-1985
Pai: Leonardo Gonçalves
Padrasto: Dionísio Pereira
Garai
Mãe: Luciana Pereira
Laranjeiras, São Francisco
do Sul (SC)
Artesanato
Filho: Lucas: 25-7-2002
Filha: Dandara: 22-4-2005
Total: 150 pessoas
30 núcleos familiares.
145
146
147
148
MAPAS
149
Fonte: CTI, Terras Guarani no Litoral: As matas que foram reveladas aos nossos
antigos avós, 2004, p. 43. Na foto, Augusto da Silva em Massiambu.
150
Fonte: CTI, Terras Guarani no Litoral: As matas que foram reveladas aos nossos
antigos avós, 2004, p. 41. (Mapa de Tekoa Marangatu).
151
FOTOGRAFIAS
Família de Julio Moreira em Morro dos Cavalos
Fotografia de Silvio Coelho dos Santos, 1976.
Aldeia guarani Massiambu
Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
152
Mario Guimarães e Anita da Silva
Tekoa Marangatu
Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
Maria Guimarães. Nhombo´e va´e de
Tekoa Marangatu. Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
153
Luiza Benite mostrando coleta de jety´i na horta comunitária
Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
Aty Guaçu em Tekoa Marangatu. De costas e de camiseta azul,
o cacique-xamã Timóteo de Oliveira
Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
154
Narciso e Timóteo de Oliveira, junto ao autor.
Fotografia de Márcia Madeiros
José Benite, cacique de Massiambu dando entrevista
durante a Semana Cultural Mbyá-Guarani
no Dia Nacional do Índio (19 de abril de 2006)
Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
155
Grupo de Coral de Massiambu, após apresnetação na Semana Cultural Mbyá-Guarani
Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
Festa de forro em Massiambu, no encerramento da Semana Cultural Mbyá-Guarani
Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
156
Grupo musical de forro Guarani, na festa de encerramento da Semana Cultural
Fotografia de Sergio Eduardo Carrera Quezada
157
BIBLIOGRAFIA
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GRUPIONI, Luís Donisete, VIDAL, Lux e FISCHMANN, Roseli (orgs), Povos
Indígenas e Tolerância. Construindo Práticas de Respeito e Solidariedade,
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UFRGS: Porto Alegre. 2006. 325 p.
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