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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
PARA UMA POÉTICA DA VITALIDADE
:
religião e antropologia na escritura machadiana
(Uma leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis)
por
Douglas Rodrigues da Concei
ção
Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalh
ães
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de P
ós-Graduação em
Ciências da Religião da UMESP, como
requisito parcial para a obten
ção do grau
de Doutor.
S
ão Bernardo do Campo, SP
mar
ço de 2007
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2
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães
Presidente
UMESP
______________________________________
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet
UMESP
__________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Gross
UFJF
________________________________________
Profª. Drª. Salma Ferraz
UFSC
_____________________________________
Prof. Dr. Paulo C
ésar Silva de Oliveira
UNIG
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3
Dedicatórias
[....]
À memória de Meus Pais, Jacira da Silva
Rodrigues da Conceição e Ary Paulo da Conceição.
Lamento por não estarem aqui neste momento. Queria
que soubessem que a vida jamais será mesma. Um
duro golpe me foi desferido quando partiram para
sempre em 2003. As minhas gavetas, quando abertas,
revelam o tempo que a saudade perdura. Resta-me
agora somente a esta
ção da saudade. O trem da minha
vida ficará eu vos prometo estacionado
eternamente nesta esta
ção esperando por vocês [....]
4
Para Elaine da Cruz, minha companheira e
amiga, e meus filhos, Ramon Oliveira e J
úlia
Rodrigues, por admitirem a minha presença ausente
durante todos esses anos.
5
Ao meu irm
ão, Bruno Rodrigues [...]
Reconheço que de meus pais ele é o único
palimpsesto que me resta.
6
Para
Machado de Assis
(1839-1908)
e
para a comemora
ção do centenário de sua morte em
2008, dedico esta Tese.
7
Agradecimentos
Ao meu Orientador e grande Amigo professor
Antonio Carlos de Melo Magalh
ães pelos anos de
amizade e orientação sempre segura. Lembrarei
sempre de tua companhia e serás sempre minha fonte
de inspiração.
Ao professor Etienne Alfred Higuet pela
participa
ção cuidadosa em minha trajetória
acadêmica. Talvez eu não saiba mensurar o respeito e
a admiração que tenho por ti. Seu brilho e sua
serenidade muitas vezes serviram de inspiração para
que eu prosseguisse meu caminho.
Ao Professor Lauri Em
ílio Wirth, porque
acreditou neste trabalho quando ainda era
Coordenador do Programa de P
ós-Graduação em
Ciências da Religião. Em nome da amizade que nos
aproxima, também o agradeço.
Ao meu Grande Amigo Luiz Antonio de Souza,
Bibliotec
ário Chefe da Academia Brasileira de Letras,
agradeço pelo franco respeito que dispensou ao meu
trabalho com a literatura de Machado de Assis.
Aos Professores Eduardo Gross (UFJF), Paulo
C
ésar Silva de Oliveira (UNIG) e à professora Salma
Ferraz (UFSC) por terem aceitado participar da banca
de avalia
ção desta tese.
Aos meus amigos Manoel Ribeiro e Josias da
Costa pela companhia na estrada da vida.
Ao meu grande amigo Prof. Dr. Paulo C
ésar
Silva de Oliveira pelas inúmeras recomendações que,
ao meu modo, estão incorporadas ao texto final da
presente tese. Sua dedicação será inesquecível para
mim, creio nisso. Devo-te muito!
À Bruna de Oliveira, porque com certa
admiração por Machado de Assis ouviu atentamente
as reflex
ões contidas nesta tese. Sua sincera paciência
é digna de um agradecimento. A você também
agradeço pelo incentivo e pela força.
À Ana Maria Fonseca...Amiga nas horas
difíceis!!! A você, caríssima Ana, agradeço do fundo
do peito.
À Márcia Leme pela condução exemplar da
vida acad
êmica dos alunos da UMESP.
À CAPES pela Bolsa de Pesquisa concedida
durante meu doutoramento.
8
Ao IEPG por ter financiado parte do meu
programa de pesquisas.
À livraria Leonardo da Vinci (Milena, Renato e
Mário), no Rio de Janeiro, pelo apoio e o carinho que
concedeu a este projeto que agora termina.
Aos que a mim, durante estes 29 anos de vida,
dispensaram uma amizade sincera. Espero com esta
can
ção poder dizer muito obrigado.
Beaucoup de mes amis sont venus des nuages
Avec soleil et pluie comme simples bagages
Ils ont fait la saison des amitiés sincères
La plus belle saison des quatre de la terre
Ils ont cette douceur des plus beaux paysages
Et la fidélité des oiseaux de passage
Dans leurs cœurs est gravée une infinie tendresse
Mais parfois dans leurs yeux se glisse la tristesse
Alors, ils viennent se chauffer chez moi
Et toi aussi tu viendras
Tu pourras repartir au fin fond des nuages
Et de nouveau sourire à bien d'autres visages
Donner autour de toi un peu de ta tendresse
Lorsqu'un autre voudra te cacher sa tristesse
Comme l'on ne sait pas ce que la vie nous donne
Il se peut qu'à mon tour je ne sois plus personne
S'il me reste un ami qui vraiment me comprenne
J'oublierai à la fois mes larmes et mes peines
Alors, peut-être je viendrai chez toi
Chauffer mon cœur à ton bois
Composição de Jean-Max Rivière
Música de Gérard Bourgeois
Interpretada por Françoise Hardy
Muitos de meus amigos vieram das nuvens,
Com o sol e a chuva como bagagem.
Fizeram a estação da amizade sincera,
A mais bela das quatro estações da terra.
Têm a doçura das mais belas paisagens,
E a fidelidade dos pássaros migradores.
E em seu coração está gravada uma ternura infinita,
Mas, as vezes, uma tristeza aparece em seus olhos.
Então, vêm se aquecer comigo,
e você também virá.
Poderá retornar às nuvens,
E sorrir de novo a outros rostos,
Distribuir à sua volta um pouco da sua ternura,
Quando alguém quiser esconder sua tristeza.
Como não sabemos o que a vida nos dá,
Talvez eu não seja mais ninguém.
Se me resta um amigo que realmente me compreenda,
Me esquecerei das lágrimas e penas.
Então, talvez eu vá até você aquecer
Meu coração com sua chama.
9
Queria provar a tese de que a literatura é
(ou foi) uma forma dissimulada de profetizar no
mundo da razão, um mundo esvaziado de mitos;
que ela é (ou foi) um substituto moderno das
profecias, agora que elas se tornaram ridículas,
antes que a própria literatura se tornasse
ridícula.
Bernardo Carvalho
10
[...] poderíamos deduzir que os seres
humanos são, acima de tudo, romancistas, autores
de um romance único cuja escrita dura toda a
existência e no qual assumimos o papel de
protagonistas.
Rosa Montero
11
[...] tenho dezessete anos e minha saúde é
perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja
particular, a igreja para meu uso, a igreja que
freqüentarei de pés descalços e corpo desnudo,
despido como vim ao mundo, e muita coisa estava
acontecendo comigo pois me senti num momento
profeta da minha própria história, não aquele que
alça os olhos para alto, antes o profeta que tomba
o olhar com segurança sobre os frutos da terra, e
eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de
repente querer, e eu posso! [...]
Raduan Nassar
12
“– Viver, não te peço mais nada. Quem me
pôs no coração este amor à vida [...]?
Brás Cubas
13
CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Para uma poética da vitalidade:
religião e antropologia na escritura machadiana (Uma leitura de
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis). Tese de
Doutorado. São Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de São
Paulo, 2007.
RESUMO
A literatura de Machado de Assis foi revisitada nesta tese porque tínhamos a
convicção de que o tema da religião e suas implicações para o ser humano
machadiano se constituíam como uma tarefa de investigação que esperava por ser
feita. Para localizar o objetivo central da presente tese no campo das discussões
travadas entre religião e literatura construímos, na primeira parte, um caminho que
nos levou a constatação da efetiva aproximação entre elas. Amparados pela
inabarcável discussão que trata das imagens religiosas e teológicas presentes nos
textos literários, bem como pelas inúmeras construções metodológicas que visam a
propiciar uma aproximação mais profícua entre religião e literatura, buscamos uma
interpretação da literatura machadiana que apontasse para a expressão religiosa do
ponto de vista de sua antropologia. O nosso eixo interpretativo foi construído a partir
da teoria hermenêutica de Paul Ricoeur, mais especificamente a partir do conceito de
metáfora. A reflexão que construímos em torno da expressão religiosa da
antropologia machadiana foi inicialmente devedora do conceito de vitalidade de
Jürgen Moltmann. A expressão religiosa da antropologia machadiana emergida do
romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) apresenta-se sob a perspectiva
de uma incondicionalidade a partir da qual a vida de Brás Cubas é tomada. Esta
característica da antropologia machadiana fez com que estabelecêssemos um recurso
conceitual para dar conta de sua particularidade. Propomos, portanto, que o ser
humano do espaço literário machadiano seja chamado de homo vitalis.
14
CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Towards a poetics of the vitality:
the religion and anthropology in the machadian écriture (A reading of
Memórias póstumas de Brás Cubas, by Machado de Assis). Doctorates
Degree. São Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de São
Paulo, 2007.
ABSTRACT
The literature of Machado de Assis is being revisited in this thesis, due to our belief
that the theme of religion and its implications to the human being conceived by
Machado required an investigative task that was awaiting to be accomplished. In
order to centralize the main issue of the present thesis in the discussion field that is
constituted by the debates between literature and religion, we structured, in the first
part of our text, a path that enabled us to conclude that the approximation of both
literature and religion is truly effective. Supported by the extensive discussion on the
religious and theological images contained in the literary texts, as well as the several
methodological constructions that aim at appeasing a more profitable approach
between religion and literature, we proceeded to an interpretation of Machados
literature in which the religious manifestation, on the viewpoint of the anthropology
of his works, could be truly detached. The starting point of our interpretative basis
was Paul Ricoeurs hermeneutics, more specifically his concepts on the metaphor.
Our reflection on the religious expression of the machadian anthropology was,
initially, centered on the concept of vitality, coined by Jürgen Moltmann. The
religious expression of the machadian anthropology manifested in the novel
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) is represented under the perspective of an
unconditionality from which Brás Cubas life is comprised. This characteristic of the
machadian anthropology encouraged us to create a new concept that could express
the originality of Machados thought accordingly. Therefore, we propose homo
vitalis as the key concept to define the human being represented by Machado de
Assis in his literary space.
15
Lista de abreviaturas
DC Dom Casmurro (1889)
IG Iaiá Garcia (1878)
MpBC Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)
MA Memorial de Aires (1908)
QB Quincas Borba (1891)
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
........................................................................................................... 17
CAPÍTULO I
Caminhos para uma vocação teológico-religiosa da literatura
1.1 Tópicos de Hermenêutica ......................................................................................... 21
1.2 Um momento extraordin
ário: diluição da imagem religiosa do mundo...................... 31
1.2.1. Pequeno excurso sobre a morte de Deus:
considera
ções sobre o momento extraordinário................................................. 39
1.3 Escritura ou reescritura de Deus e do ser humano:
metodologias e tematiza
ções entre teologia e literatura .......................................... 41
1.3.1. Literatura e cristologia .............................................................................. 44
1.3.2. O drama da salvação ............................................................................... 49
1.3.3. O nascimento de Jesus-Severino: hermenêutica transtexto-discursiva ... 52
1.3.4. Deus no espelho das palavras ................................................................. 55
1.3.5. Os escritores e as escrituras .................................................................... 60
1.4. Tópicos de religião, antropologia literária e arte ....................................................... 66
CAPÍTULO II
Experiência religiosa e a literatura machadiana
2.1. Recepção da antropologia machadiana ................................................................... 79
2.2. Faces de um mundo sem Deus na estética machadiana ......................................... 90
2.3. Paradoxos nas representações da experiência religiosa da estética machadiana .. 106
CAPÍTULO III
Vitalidade: dimensão religiosa da antropologia machadiana
3.1. Finitude e o ser humano machadiano ....................................................................... 110
3.2. Vitalidade ................................................................................................................... 119
3.3. O homo vitalis ............................................................................................................ 129
3.3.1. As expressões da incondicionalidade no homo vitalis ............................... 131
CONCLUSÃO
.............................................................................................................. 140
BIBLIOGRAFIA
........................................................................................................... 143
17
INTRODUÇÃO
Quando esta pesquisa ainda se encontrava em estado inicial, fazíamos muitas
visitas à Academia Brasileira de Letras com o objetivo de encontrar obras
referenciais que nos indicassem ou que nos dessem pistas sobre os aspectos
religiosos na literatura machadiana. Enclausurada sob a perspectiva das leituras
sociológicas, confinada à recepção das principais correntes de pensamento presentes
da Europa do século XIX, percebíamos que a literatura machadiana carecia de um
estudo crítico que lhe conferisse certa originalidade; percebíamos também que a
erupção das questões religiosas precisariam de processo de escavação um pouco mais
profundo para emergir à superfície.
Ao concluir o trabalho de mestrado, intitulado Fuga da promessa e nostalgia
do divino, dissertação de mestrado apresentada à UMESP em novembro de 2003,
sabíamos que, naquele momento, algumas lacunas passavam a existir em função de
vários fatores. Um deles o mais visível pelo menos era lidar com a complexidade
da literatura machadiana não por engano, todavia por ela ter em torno de si uma
inabarcável fortuna crítica que, se não fosse pelas mãos de Hugo Bressane Araújo
(1939) e Raimundo Faoro (1974), teria totalmente silenciado o problema da religião.
Mas este fator, para nossa pesquisa, não a tornava menos decifrável. Sabíamos
também que, a partir do romance Dom Casmurro, ao circunscrevê-la no interior do
que hoje convencionalmente se chama de diálogo entre teologia e literatura, existia a
possibilidade da identificação de problemáticas de natureza religiosa. A melhor
prova dessa observação foi recente apontada por Alfredo Bosi, em seu livro
intitulado O enigma do olhar (2003), ao afirmar que ainda está por se fazer um
estudo sem preconceitos das imagens diversas com que o agnóstico Machado de
Assis representa as múltiplas faces do homem religioso.
A presente tese buscará, mais especificamente no romance Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881), a expressão da experiência religiosa na antropologia
da escritura machadiana. Antes de iniciar as reflexões que incidem mais
propriamente sobre o romance de 1881, buscaremos estabelecer, no primeiro
capítulo, as bases interpretativas e contextuais que atuarão como linha de
circunscrição da escritura machadiana no âmbito das discussões sobre a religião e
18
literatura. A partir da teoria hermenêutica de Paul Ricoeur, pretendemos criar a
possibilidade de perceber que a oscilação de sentido que se apresenta sobre a
antropologia emergente da literatura machadiana se dá mais propriamente através da
atuação metafórica. Com a sutil e evidente recepção do problema da morte de Deus
pelo mundo moderno tardio, buscaremos em Nietzsche não as raízes das crises
vividas no âmbito do cristianismo, mas sim o aporte capaz de indicar que, diante do
senso de auto-referência nutrido pelo ser humano nos espaços desse mundo, se
estabelece também a caducidade e o fenecimento das antigas formas de manifestação
da experiência religiosa outrora mantida por ele.
Ainda do primeiro capítulo, visitaremos obras que referencialmente
circunscreveram a escritura literária dos poetas e escritores no cruzamento com as
discussões sobre religião e no diálogo com a teologia. Neste entroncamento
encontra-se a fronteira dos saberes que se cruzam. As obras de Antonio Magalhães
(Deus no espelho das palavras) e Karl-Josef Kuschel (Os escritores e as escrituras)
e a tese de Eli Brandão (O nascimento de Jesus Severino...), além de problematizar
os temas teológicos presentes na escritura de escritores da tradição literária ocidental
como forma de reintepretação dos conteúdos clássicos da fé, indicam também
metodologias próprias e criativas para uma a aproximação menos conflituosa entre
literatura e teologia.
As relações entre arte e religião e a inscrição do ser humano no interior da
literatura ficarão sob a responsabilidade das reflexões que empreenderemos em torno
da noção tillichiana de teologia da cultura e da possibilidade de construção de uma
antropologia literária tal como a entende Antonio Blanch. Neste ponto,
pretenderemos ressaltar que a imagem humana inscrita na literatura machadiana é
potencialmente passível de uma interpretação que tome a experiência religiosa como
ponto de partida.
No segundo capítulo, inicialmente, travaremos um diálogo com a tradição
crítica que ancorou suas discussões sobre determinados aspectos da antropologia da
literatura machadiana. Figurarão de forma mais expressiva neste diálogo as obras de
Octávio Brandão, Afrânio Coutinho e Raimundo Faoro. A crítica que desferiremos
em direção a obra de Octávio Brandão (O niilista Machado de Assis) tem a ver com a
redução que ele promove da inscrição do ser humano machadiano no mundo como
uma nítida expressão do ideário burguês oitocentista. A obra de Afrânio Coutinho (A
filosofia de Machado de Assis) uma vez mais será alvo de nossas críticas por admitir
19
que, em torno da escritura machadiana, só um negativismo-pessimista a partir do
qual o ser humano que nela se inscreve toma a sua vida. Já o trabalho de Raimundo
Faoro nos conduzirá parcialmente ao tema central de nossa tese. Perceberemos que
em A pirâmide e o trapézio existe um olhar atento sobre a realização das
experiências religiosas do ser humano machadiano, todavia Faoro não consegue dar
conta da oscilação de sentido que tais experiências revelam no espaço literário do
autor de Brás Cubas. Há uma luta constante de Faoro pela preservação de uma forma
de experiência religiosa não mais capaz de se realizar diante de um mundo onde o
centro de toda referência é o próprio ser humano e por isso não conseguiu enxergar
que esta auto-referência não dissipa totalmente a possibilidade de novas experiências
religiosas. Faoro na verdade se comporta como se quisesse dizer ao ser humano
machadiano aquilo que disse o padre Melchior a Estácio, ambos personagens do
romance Helena: o que a moral e a religião reprovam, não deve achar guarida na
alma de um homem honesto e cristão. Ainda no segundo capítulo, retomaremos
uma questão que ficou entreaberta em nosso trabalho anterior (Fuga da promessa e
nostalgia do divino). Veremos que o distanciamento do ser humano machadiano da
experiência religiosa regida pelas instituições e pelos processos instrumentalizadores
da vida, sobretudo da forma como são expostos pelo viés da promessa presente no
romance Dom Casmurro, não o impede de ser tomado incondicionalmente por algo
que o transcende, que o escapa.
No terceiro capítulo, as nossas discussões se concentrarão mais
expressivamente em torno do romance Brás Cubas. Temos a convicção de que o ser
humano machadiano, ao se encontrar totalmente lançado sobre a vida que acontece,
ao reconhecer que todo esforço para dissipar o senso de finitude é vão e que, ao
admitir que a sua vida precisa ter uma intensidade ininterrupta, abre-se para aquilo
que Jürgen Moltmann ousou chamar de transcendência imanente. Toda experiência
que se realiza na vida pode ter um dentro transcendente. O ser humano machadiano,
sob o imperativo da incondicionalidade que uma vida intensa requer, toma o amor
erótico como dimensão última e incondicional de sua existência. É debaixo desse
imperativo que a literatura machadiana inscreve Brás Cubas, Marcela e Virgília,
quando interpretados a partir dessa expressão vital (com este amor incondicional à
vida), no mundo referencial do texto. Poucos foram os escritores que, diante dos
escombros e da idéia de fracasso relacionado ao mundo moderno, revelaram que a
20
experiência religiosa, aquela que nos toma incondicionalmente, subsistiria o
particularmente diante do que nomeamos ser o homo vitalis.
21
CAPÍTULO I
CAMINHOS PARA UMA VOCAÇÃO TEOLÓGICO-RELIGIOSA
DA LITERATURA
Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar,
ao primeiro encontro,
à lei de sua composição e à regra
de seu jogo. Um texto permanece, ali
ás,
sempre impercept
ível.
Jacques Derrida
1.1. Tópicos de hermenêutica
As primeiras suspeitas que cercam a forte presença dos temas clássicos da
teologia no interior da literatura fizeram com que ela assumisse um novo papel no
palco da cultura ocidental. Esta afirmação tem apenas um caráter de diagnóstico, pois
muitas pesquisas não nos deixam em dúvida sobre a relação das imagens dos temas
clássicos da teologia e a sua aguda presença na literatura.
1
Nisto reside nossa
1
Cf. Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. o
Paulo: Paulinas, 2000; Karl-Josef KUSCHEL. Os Escritores e as escrituras: retratos teológico-
literários. São Paulo: Edições Loyola, 1999; Waldecy TENÓRIO. A bailadora andaluza: a explosão
do sagrado na poesia de João Cabral. o Caetano do Sul: Ateliê Editorial, 1996; Antonio
MANZATTO. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances
de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994; Charles MOELLER. Literatura do século XX e
cristianismo. São Paulo: Flamboyant, 1959; Jean-Pierre JOSSUA. Pour une histoire religieuse de
lexpérience littéraire. Paris: Beauchesne, 1985; Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL. Cuatro
poetas desde la outra ladera: Unamuno, Jean Paul, Machado, Oscar Wilde. Madrid: Trotta, 1996;
Juan Cózar CASTAÑAR. Modernismo teológico y modernismo literario. Madrid: BAC, 2002;
Douglas Rodrigues da CONCEIÇÃO. Fuga da promessa e nostalgia do divino. Rio de Janeiro:
Horizonal, 2004; José Carlos BARCELLOS. O drama da salvação: espaço autobiográfico e
experiência cristã em Julien Green. Rio de Janeiro: PUC Rio, Tese. Departamento de Teologia.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2000; Salma FERRAZ, As faces de Deus na obra
de um ateu José Saramago. Juiz de Fora: UFJF; Blumenal: Edifurb, 2003.
22
primeira questão: porque os temas da teologia de alguma maneira são retomados a
partir da literatura mais fortemente no panorama da cultura tardomoderna?
Se tomarmos como referência as características das formas artísticas que
emergiram na transição do século XIX XX, talvez seja possível entender o
elemento motor de uma estética que o comportou somente uma proposta artística
inovadora, mas que também não deixou apontar para o esvaziamento de uma
compreensão religiosa do mundo. Contudo, antes de empreendermos uma relação
entre o suposto esvaziamento de uma compreensão religiosa do mundo e o tipo de
manifestação literária que surgiu em tal época tarefa que retomaremos mais adiante
, queremos inicialmente apresentar a forma pela qual entendemos as possíveis
operações textuais, a fim de que somente a partir deste fato se possa então atribuir
um determinado sentido ou entrever a representação que um texto ou um conjunto
textual pode evocar.
Um aspecto dessa questão é levantado com muita clareza por Antonio Blanch
em seu estudo sobre a possível construção de uma antropologia literária a partir de
obras clássicas do cânone ocidental. Blanch chama-nos a atenção sobre a pouca
importância que o sentido dos textos teria para os trabalhos de crítica e teoria da
literatura nos últimos decênios. Destaca-se neste tipo de abordagem o enfoque
formalista, especialmente, os relativos à lingüística, à semiologia e ao
estruturalismo.
2
Distanciando-se de uma compreensão mais estrutural do texto, notamos que o
ponto de partida de Blanch nos é muito caro. A percepção de Blanch acerca da
literatura e a compreensão que esta nos do homem e do mundo transforma-a em
uma forma não-teórica de conhecimento da realidade.
3
Podemos ver expressa a
crítica de Blanch sobre outras formas de conhecimento nos seguintes termos:
Afortunadamente, ya pasaron los tiempos cuando la reflexión sobre el
hombre se realizaba exclusivamente en los altos niveles de la
abstracción metafísica, combinando teóricamente algunas de sus
esencias más características (racionalidade, corporeidad, liberdad, etc).
Y, a pesar de ello, no parece haber prevalecido del todo el deseo de
conocer al hombre de forma concreta y vital. La epistemologia, em
2
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 9. Blanch recupera uma citação de Emile
Benveniste, onde há a seguinte afirmação: En semiótica nunca nos ocupamos de la relación del signo
con las cosas denotadas, ni de las relaciones entre el lenguaje y el mundo. Citado por Blanch a partir
da obra La forme et le sens dans le langage. Loc. cit.
3
José Carlos Barcellos também compartilha desta afirmação. Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama
da salvação, p. 17.
23
efecto, y la teoría general de las Ciencias del hombre están presididas
hoy todavía por formulaciones analíticas, que terminan reduciendo las
grandes cuestiones sobe el hecho humano a un baile de abstraciones e
cifras. Pues bien, cualquiera que sea la propuesta que la Filosofia y las
Ciencias puedan dar a esta pergunta, quisiera recordar que existe otro
camino de accesso al conocimiento del hombre, que no es ni metafísico
ni físico ni gico y que no por ello resulta menos satisfactorio [...] Se
trata, em efecto, del conocimiento simbólico.
4
Na esteira desta afirmação está uma tese de Ernst Cassirer. Ele define o
homem como animal simbólico
5
, o que equivale dizer que a essência do homem é
algo dinâmico, em constante processo de expressão e de comunicação por meio das
múltiplas faces da linguagem.
6
Com alguma razão poderemos então fazer concordar
com esta possível imagem da literatura que seria de antemão uma forma autônoma
de dizer a realidade o parecer de Antonio Manzatto. Para Manzatto, a verdade da
literatura trata da compreensão do sentido da vida e do ser humano no mundo.
Assim, para Manzatto, mesmo que no nível ficcional, uma invencionice pode ser
uma espécie de canal transmissor de uma verdade sobre o homem ou sobre sua
realidade.
7
Caberia, portanto, uma pergunta: já que a literatura deixa de ser de
alguma forma encarada como pura representação do real, qual a natureza da verdade
ou do sentido que a literatura pode operar em direção à realidade? A tentativa de
responder a tal pergunta torna-se importante se vista sob o imperativo do objetivo
central desta tese. É preciso responder de que maneira a literatura machadiana, no
interior dos séculos XIX-XX, conseguiria retomar, do ponto de vista de sua
antropologia, certa imagem religiosa do ser humano e do mundo. Consideramos que
esta etapa está, antes de tudo, alocada numa compreensão hermenêutica. O problema
hermenêutico reside na atribuição de sentidos que podemos conferir, em nosso caso,
aos textos machadianos.
8
A questão central de um tratamento hermenêutico dado a
determinados textos deixou de se constituir a partir do sentido verdadeiro
4
Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 14.
5
Cf. Ernst CASSIRER, Antropología filosófica, p. 49.
6
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 15.
7
Cf. Antonio MANZATTO, Teologia e literatura, p. 21.
8
Antonio Magalhães fez uma importante advertência em relação à recepção dos textos dos poetas e
escritores no ocidente. Em sua obra Deus no espelho das palavras, Antonio Magalhães afirma que o
trabalho dos poetas e autores, dentro do que passou a ser considerado como literatura, foi, quase
sempre, colocado na esfera da motivação estética e não da hermenêutica, servindo, portanto, mais para
momentos de fruição e devaneio do que para os de análise e reflexão. Cf. Antonio MAGALHÃES,
Deus no espelho das palavras, p. 49.
24
previamente existente nos textos. Esta virada no campo da interpretação é bastante
devedora dos estudos de Paul Ricoeur.
O problema da significação que um texto pode evocar tem a ver, inicialmente,
com a compreensão que Ricoeur promove acerca do termo texto. Em primeiro lugar
deve-se entender, segundo Ricoeur, que o texto é uma unidade complexa de discurso
cujos caracteres não se pode reduzir aos da unidade de discurso ou frase.
9
O
problema formado pelo par interpretação/significação, que pode ser visto no nível do
evento texto, passa a ter uma dinâmica que requer mais cuidado quando o evento
texto se tratar de uma obra literária. O excesso de sentido que uma obra literária
carrega consigo é, para Paul Ricoeur, um ponto pacífico.
10
Todavia, diante de tal
certeza abre-se ainda uma questão. É preciso saber se o chamado excesso de sentido
das obras literárias possui valor cognitivo. Para Ricoeur, na obra literária, o discurso
desvela sua denotação como uma denotação de segunda ordem, graças à suspensão
da denotação de primeira ordem do discurso.
11
Isto quer dizer que existem elementos
que participam do texto no nível da significação e que tais elementos atuam como
condicionantes do processo operatório de sentidos. Para Ricoeur, esta hipótese
pode ser verificada se vista sob o prisma da metáfora. O enunciado metafórico é
para Ricoeur precisamente aquele que mostra com clareza a relação entre a
referência suspensa e a referência desvelada.
12
Portanto, para Ricoeur, se for
possível mostrar que o estabelecimento de novos sentidos é uma condicionante da
atuação da metáfora no interior do texto, poder-se-á dizer que a literatura (poesia,
ensaio e ficção em prosa) cria um novo campo significação não em direção a uma
referência dada (mimeses), mas em direção a uma referência de segunda ordem
(mundo da obra). A noção de metáfora, portanto, é vista sob a ótica de um conflito
entre duas interpretações opostas. A emergência de um sentido oriundo do
acionamento de uma interpretação metafórica estabelecer-se-á a partir de um
processo de autodestruição daquilo que Ricoeur chama de sentido literal. A
interpretação metafórica só pode ser obtida através da abolição do sentido literal do
enunciado. A nova pertinência semântica do texto se abre sob as ruínas do sentido
9
Cf. Paul RICOEUR, Metáfora viva, p. 336. Por texto o entendo somente nem principalmente a
escritura, embora a escritura ponha por si mesma problemas originais que interessam diretamente ao
destino da referência; mas entendo, prioritariamente, a produção do discurso como obra.
10
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 57.
11
Cf. Paul RICOEUR, Metáfora viva, p. 338.
12
Cf. Loc. cit.
25
literal, afirma Ricoeur.
13
Essa inovação de sentido é chamada por Ricoeur de
metáfora viva. A metáfora viva se configura como uma criação oscilante, que não se
determina ou se cristaliza no plano do enunciado. Ela sempre será um elemento
indispensável ao processo polissêmico que o texto literário evoca. A metáfora se
constituirá sempre numa e por uma interpretação.
14
Nas palavras de Ricoeur:
[...] uma metáfora é uma criação instantânea, uma inovação semântica
que não tem estatuto na linguagem estabelecida e que apenas existe
em virtude da atribuição de um predicado inabitual ou inesperado. Por
conseguinte, a metáfora assemelha-se mais à resolução de um enigma do
que a uma associação simples baseada na semelhança; é constituída pela
resolução de uma dissonância semântica.
[...]
Em suma, uma met
áfora diz-nos algo de novo acerca da realidade.
15
Sentido e referência, no horizonte de uma obra literária, sob a ótica de
Ricoeur, ganham novas equivalências funcionais no que diz respeito à construção de
uma nova significação. A obra literária passa a ter um mundo autônomo, que por sua
vez consegue se estabelecer para além da antiga compreensão aristotélica em torno
da mimeses. É no apelo por uma interpretação mediada pela leitura que uma obra
literária reinscreve-se num jogo de significação que está além da pura representação
do real.
Ao assinalar que a metáfora viva instaura uma predicação inabitual ao operar
tal circunstância na superfície do texto, Ricoeur, de alguma forma ele mesmo
reconhece afirma que a metáfora não possui estatuto da linguagem
estabelecida.
16
Isto não seria nenhum problema, pois a função da metáfora tenderia à
instauração de um novo dado (sentido) dentro do seu próprio campo de
referenciação, o que, por sua vez, na superfície do texto, despertaria novo(s)
sentido(s) para o texto a partir do processo interpretativo. Esta apreciação referenda a
tese ricoeuriana anteriormente exposta sobre a significação literal e a significação
metafórica. Consideramos, portanto, importante reconhecer que a teoria de Ricoeur
sobre a metáfora ganharia mais densidade se vista na relação com a compreensão que
ele mesmo propôs em torno do que vem a ser um símbolo.
13
Cf. Paul RICOEUR, A metáfora viva, p. 351.
14
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 62.
15
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 63.
16
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 63.
26
Em primeiro lugar, para Ricoeur, é necessário afirmar que todo símbolo
possui uma condição bidimensional: uma dimensão pré-verbal ou não-lingüística e
uma outra percebível na superfície da linguagem.
17
A segunda dimensão a que
permite a emergência do símbolo na superfície da linguagem atesta a possibilidade
de conferir aos símbolos sua especificidade semântica em termos de sentido e
significação. A possibilidade de estabelecer relações entre a dimensão metafórica e o
símbolo se aloja na capacidade que a metáfora possui de trazer à superfície da
linguagem o aspecto do símbolo que possui afinidade com a estrutura lingüística. Ou
seja, a metáfora é o reagente apropriado para dar ao símbolo a possibilidade de
existência de seu campo semântico no nível verbal.
18
Portanto, para Ricoeur é
possível identificar o cerne semântico característico de todo símbolo, com base na
estrutura do sentido operante nas expressões metafóricas.
19
Crendo que não
oposição entre a dimensão semântica e a o-semântica do símbolo, mas sim uma
condição de complementaridade entre elas, concluímos, juntamente com Paul
Ricoeur, que a dimensão semântica se presta a uma análise lingüística e lógica em
termos de significação e interpretação.
20
Torna-se claro que há uma subordinação do aspecto semântico do símbolo
em relação à metáfora. Porém, o símbolo é capaz de possuir uma região não-
verbal. Se esta subordinação é de fato possível, cabe-nos dizer que há uma cúmplice
relação entre metáforas e símbolos. Sendo as metáforas a superfície lingüística dos
símbolos e ainda uma inovação discursiva, poderíamos, portanto, afirmar que o
campo semântico que a metáforas expressam se deve a um reservatório de sentido
que os sistemas simbólicos constituem de alguma maneira.
21
Poderemos também
dizer que a elucidação de um novo sentido de um texto literário operado pela atuação
metafórica pode promover um processo de equivalência entre o sentido manifesto e
as profundidades simbólicas de nossa existência. As metáforas responsáveis por esta
relação de equivalência são nomeadas metáforas insistentes.
22
17
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 65.
18
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 66.
19
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 66.
20
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 69.
21
As chamadas metáforas dominantes são as responsáveis pela geração das junções entre o vel
simbólico e sua lenta evolução e o nível metafórico que é por sua vez mais volátil. Cf. Paul
RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 76.
22
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 80.
27
Podemos ressaltar, oportunamente, que Paul Tillich também compreende de
forma semelhante o processo pelo qual um símbolo se manifesta. Para ele, os
símbolos possuem uma característica essencial que seria a de indicar algo que está
manifestamente revelado fora deles.
23
Ou seja, Tillich admite que os símbolos nos
remetem a algo que não é da ordem do tangível; diz em outras palavras que os
símbolos possuem uma dimensão não-verbal ao afirmar que a segunda característica
de um símbolo é o fato de ele participar daquilo que indica. Uma terceira
característica dos símbolos apresentada por Tillich tem a ver com a capacidade que
eles possuem de nos dar acesso a níveis da realidade que permaneceriam inacessíveis
sem o seu auxílio. Tillich exemplifica esta característica reportando-nos à dimensão
que é aberta pelas obras de arte. A quarta característica pode ser conjugada com a
que acabamos de apresentar, pois para Tillich um símbolo é capaz de conectar
elementos da estrutura de nossas almas às estruturas da realidade. Outra
característica apresentada manifesta a impossibilidade de se criar um símbolo
arbitrariamente. Por isso, cremos ser importante atentar para a noção de metáfora
como entende Ricoeur, pois para ele a dimensão semântica do símbolo é revelada
num processo de subordinação à metáfora. Por fim, Tillich entende que a presença
marcante de um símbolo será de alguma forma devedora da noção de história. Em
suma, os símbolos emergem e desaparecem de acordo com épocas.
24
Esta última questão apresentada por Tillich a noção de época também nos
é muito cara, pois se as obras literárias são de fato um importante solo para o
processo de amadurecimento e fertilização dos símbolos
25
, poderemos dizer que
torna-se necessário para que não corramos o risco de violentar o texto literário
que respeitemos a época histórica em que elas emergem. Isto não quer dizer que a
obra literária só poderá dizer algo no nível da referência segunda se interpretada à luz
de seu tempo. Cremos, portanto, que se as envolvermos de alguma forma com os
problemas, as crises e outros elementos de seu tempo poderemos ter uma
proximidade maior de sua significação. É nesse sentido que pretendemos dar a obra
machadiana uma outra perspectiva interpretativa.
26
Não podemos afastar do corpo
23
Cf. Paul TILLICH, Dinâmica da fé, p. 31.
24
Cf. Paul TILLICH, Dinâmica da fé, p. 32.
25
Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 77. [...] este estrato profundo apenas se torna
acessível a nós na medida em que se forma e articula a um nível lingüístico e literário [...].
26
Embora esta não seja nossa metodologia para a leitura da obra machadiana, vale dar destaque ao
que disse Daniel Piza, em sua recente biografia de Machado de Assis: Ao relacionar na devida dose a
obra e a vida de Machado de Assis, podemos, para dar outro exemplo, conferir o peso adequando ao
28
literário machadiano os problemas suscitados na tardomodernidade, sobretudo, os
que nos reportam a um olhar perspectivo sobre sua antropologia e posteriormente
direcionando-o a uma questão de pertinência religiosa. Queremos dizer com esta
exposição que nenhum processo interpretativo deverá ter como horizonte a captura
final do universo de significação de um texto literário. Como sublinha Horst
Steinmetz, referendado por Barcellos, toda interpretação deve ressaltar as diferenças
entre os universos que a recepção dos textos literários quer dissimular. Toda
interpretação deve ressaltar o caráter provisório e parcial das estratégias de recepção
e da tensão que existe entre estas e a indeterminação literária.
27
As condições operatórias oriundas das noções de símbolo e de metáfora
segundo os postulados de Paul Ricoeur recaem, preponderantemente, sobre o que
podemos chamar de texto literário. Esta afirmação quer tão somente sublinhar o
caráter plurissignificacional dos textos de natureza literária. Afirmando Ricoeur, na
obra Interpretação e ideologias, que o que deve ser interpretado num texto é sua
proposição de mundo
28
, pudemos entender que o texto literário cria um mundo
autônomo quando abole e destrói toda referência ao chamado mundo real. Ricoeur
afirma que o maior papel da literatura parece ser o de destruir o mundo.
29
Certamente, o processo interpretativo (hermenêutico) constrói um mundo diverso
daquele que propõe a restrita relação entre sentido e referência como queria as
clássicas reflexões de Frege.
30
A abolição de uma referência de primeiro nível abre
caminho para uma referência de segundo nível, que por sua vez atinge o mundo o
porque se identifica com aquilo que é manipulável, mas porque estabelece múltiplas
formas do poder-ser.
31
Esse processo é chamado por Ricoeur de variações
imaginativas que a literatura opera sobre o real.
32
A este mundo possível mundo
entrecruzado pela ficcionalidade do texto e o mundo real do leitor Ricoeur chama
tema da religião em sua ficção, que aparece escolha dos nomes de personagens. Machado era
crítico contumaz da Igreja, da manipulação pela fé, da crença numa ordem divina que pressupõe o
perdão a tudo. Cf. Daniel PIZA, Machado de Assis: um gênio brasileiro, p. 15.
27
Cf. José Carlos BARCELLOS, O Drama da salvação, p. 38. Ver também Horst STEINMETZ,
Interpretação e recepção. In A. Kibédi VARGA, Teoria da literatura, p. 156.
28
Cf. Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias, p. 56. (grifo nosso)
29
Cf. Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias, p. 55.
30
Cf. Paul RICOEUR, Metáfora viva, p. 332-333. Cf. também G. FREGE, Écrits logiques et
philosophiques, Paris, 1971.
31
Cf. Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias, p. 56-57.
32
Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias, p. 56-57.
29
de mundo do texto.
33
Cremos, portanto, juntamente com Eli Brandão que a tarefa
maior do chamado mundo do texto consiste na reconstrução e na projeção de
sentidos dos textos e dos mundos que por meio deles são revelados.
34
Abre-se com
isso em nosso favor uma ampla porta; por ela visamos descortinar o possível
sentido religioso de que a obra machadiana, em seu complexo formativo, pode ser
portadora.
Poderemos afirmar o seguinte, com o foi tecido até aqui:
1. Ao estarmos diante de um texto literário o podemos desprezar
certas noções como as de sentido e significado por eles possuírem um
caráter plurissignificacional.
2. Que há mútua interdependência entre as noções de símbolo e metáfora
na forma como as entende Ricoeur. Pelo fato do símbolo possuir uma
natureza bidimensional, dependerá da metáfora na superfície do
texto para revelar o seu cerne semântico. A metáfora, por outro lado,
não possuindo estatuto na linguagem, apresenta-se como elemento
promotor de uma inovação de sentido quando operar como fio
condutor do reservatório semântico de que os símbolos são
portadores.
3. Com Tillich, foi possível perceber a importância de descortinar o
sentido do símbolo com a noção de época.
4. Por fim, com Ricoeur foi possível compreender que a suspensão de
uma referência de primeiro nível, que é estabelecida por uma obra
literária implica o estabelecimento de uma referência de segundo nível
como pressuposto de criação de um mundo autônomo, denominado
mundo do texto. Neste mundo, entretanto, é possível perceber as
operações imaginativas que a literatura efetua sobre o real.
5. A apreensão do sentido religioso da obra literária de Machado de
Assis dar-se-á pelo que concebemos ser um percurso hermenêutico,
nascido da descoberta ou da identificação do lugar que propicia as
variáveis interpretativas do texto (relação símbolo vs metáfora) e que
incide sobre o mundo criado por esta capacidade de evocar novos
33
Paul RICOEUR, Tempo e narrativa (Tomo III), p. 276.
34
Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus Severino..., p. 99.
30
sentidos que o texto literário possui. A interpretação que
promoveremos do texto machadiano reconhece a impossibilidade de
captura do sentido primeiro ou definitivo de uma obra literária.
Se foram expostos os nossos pressupostos hermenêuticos a partir dos quais
tomaremos a literatura machadiana, poderemos seguir adiante com alguns elementos
que apresentarão certas tensões eclodidas mundo tardomoderno.
31
1.2. Um momento extraordinário: diluição da imagem religiosa do
mundo
Uma das principais preocupações emergidas no ocidente sob o ponto de vista
do advento da modernidade foi o problema que aqui desejamos nomear de
desteificação do mundo. Com a noção de desteificação queremos apontar os
resultados causados preponderantemente pela questão da morte de Deus e seu
impacto sobre a experiência religiosa cristã. Um dos objetivos do ressalto que
pretendemos dar ao problema tradicionalmente atribuído a Nietzsche tem a ver com
os incômodos que a morte de Deus causou, nesse mesmo itinerário, à teologia cristã.
Outro fator que poderíamos apontar como de grande importância, reside na
descoberta da literatura construída por escritores e poetas como lugar de reflexão
teológica. Não podemos, entretanto, provar e este não será o nosso principal
objetivo se há relações entre a recepção do problema da morte de Deus como
diagnóstico da desteificação mundo e a emergência da literatura e de outras
expressões artísticas como lugar teológico ou de manifestação da religião. Um fato
deve ser considerado diante das reações que o pensamento teológico construiu ao
longo do século XX: a teologia cristã pareceu ter sido golpeada duramente em sua
função de interlocutora entre o anúncio da revelação de Deus e os homens. Se nos
cabe uma afirmação inicial, deveríamos, pois, afirmar que a morte de Deus trouxe
certo esvaziamento para a antiga compreensão de Deus.
A equivalência entre o processo de tecnificação e o da perda dos valores
sagrados tornou-se um diagnóstico plausível para explicar um mundo em decadência.
O mundo ocidental passou por um processo de despovoamento de uma compreensão
religiosa na mesma medida em que o ser humano, quando visto no interior de tal
processo, também se viu isolado e dessacralizado.
35
A morte de Deus em Nietzsche seria apontada por nós como principal via
diagnóstica de um mundo em que a compreensão tradicional de história e de Deus
considerando nesses aspectos questões teológicas relacionadas com o pecado, a
queda e a salvação tornava-se cada vez mais dispensável em favor de um mundo
movido pela autonomia humana. Romano Guardini entendeu da mesma forma o
destino para onde caminhava o homem do mundo tardomoderno ao dizer que tal
35
Cf. Gianni VATTIMO, Acreditar em acreditar, p. 39.
32
momento propiciou o aparecimento daquilo que é extraordinariamente humano.
36
À
luz do pensamento de Nietzsche, o problema da morte de Deus emerge com maior
força no aforismo 125 da obra A gaia ciência. O aforismo é iniciado com a imagem
de um homem que sai à rua com um candeeiro aceso à procura de Deus:
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu
uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente:
Procuro Deus! Procuro Deus!? E como lá se encontrassem muitos
daqueles que criam em Deus, ele despertou com isso uma grande
gargalhada. Ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como
uma criança? disse o outro. Ele está se escondendo? Ele tem medo de
nós? Embarcou num navio? Emigrou? gritavam e riam uns para os
outros.
37
O anúncio da morte de Deus ocupa o lugar central do aforismo de Nietzsche.
É possível compreender que o chamado homem louco não aceita o fato de os outros
homens não saberem o que verdadeiramente acontecera a Deus e com isso não tarda
em dizer: Deus está morto!
O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu
olhar. Para onde foi Deus?, gritou ele, já lhes direi! Nós o matamos
vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso?
Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja
para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol?
Para onde ele se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe
de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para todos os
lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda em cima e em
baixo? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não
sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não
anoitece eternamente? Não temos que ascender lanternas de manhã?
Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o
cheiro da putrefação divina? também os deuses apodrecem! Deus está
morto! Deus continua morto! E nós o matamos!
38
Casanova assinala que o elemento Deus possui duas dimensões importantes
se entendido dentro da tradição cultural e de pensamento ocidentais. Deus, na
tradição metafísico-cristã de pensamento, além de ser entendido como entidade
religiosa também sintetiza o conteúdo significativo de uma das partes da cisão entre
36
Cf. Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 37.
37
NIETZSCHE, A gaia ciência, p. 147.
38
NIETZSCHE, A gaia ciência, p. 147-148.
33
o mundo verdadeiro e o mundo aparente.
39
Deus, portanto, enquanto criador de todas
as coisas, através da força de seu verbo, concentraria em seu interior o poder de
harmonização da totalidade. Poderíamos afirmar que a morte de Deus em Nietzsche
fez com que Ele, enquanto causa sui e fundamento inconcusso do real, regulador do
caráter aporético do princípio, perdesse tais atributos e ainda o de divino.
40
Para
Casanova, as insistentes buscas humanas em direção a apreensão de todo conteúdo
verdadeiro do mundo manteve uma profunda relação de dependência com a função
que Deus exerce de sentido último de toda realidade.
41
Porém, ressalta Casanova, as
tentativas repetidas de acesso ao mundo verdadeiro são tentativas fracassadas.
Quando se chega ao ápice de tal odisséia a cisão entre mundo verdadeiro e mundo
aparente se inicia um processo que culmina na ruína Daquele que concentrava em
si todo conteúdo ontológico e divino do mundo em si: Deus.
42
Para Casanova, a nova
posição do homem no mundo advinda da morte de Deus não tem a ver com uma
postura arbitrária do próprio homem, mas sim com os próprios desdobramentos do
pensamento metafísico.
43
O homem, portanto, encontra-se à deriva!
O acontecimento a morte de Deus é a completa dissolução da
dicotomia entre verdade e aparência: a total supressão da transcendência
constituída teologicamente a partir da idéia de um Deus único enquanto
sentido (télos) derradeiro da realidade.
44
Esse novo momento vivido pela dimensão antropológica provoca a perda de
todo horizonte verdadeiro antes garantido por Deus. Como podemos bem observar
no aforismo 125, as palavras do homem louco nos reporta aos acontecimentos
oriundos de um novo momento humano ao trazer à tona o significado da morte de
Deus. Podemos, portanto, vê-la no esvaziamento do mar, em nossa queda constante
em direção a um infinito abismo e também na perda de toda referência transcendente.
Tomando o advento da morte de Deus sob uma perspectiva teológica, poder-se-á
perceber que todo sentimento de abandono, de desamparo absoluto em meio ao nada
39
Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário, p. 193.
40
Cf. Marco A. CASANOVA, A religião da terra: o lugar do sagrado no pensamento de Friedrich
Nietzsche. In. A fidelidade à terra, p. 337.
41
Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário, p. 193.
42
Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário , p. 194.
43
Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário, p. 194. Cf. também Marco A.
CASANOVA, A religião da terra: o lugar do sagrado no pensamento de Friedrich Nietzsche. In. A
fidelidade à terra, p. 338.
44
Marco A. CASANOVA, A religião da terra: o lugar do sagrado no pensamento de Friedrich
Nietzsche. In. A fidelidade à terra, p. 339.
34
e de ameaça que sobrevém ao homem é possivelmente diagnosticável a partir do
apagamento da imagem divina de Deus que sua própria morte também provoca. O
assassinato de Deus pode ser percebido não como algo que está por acontecer,
todavia como algo já realizado, feito. Yves Ledure, em excelente artigo, afirma que
este processo de autoreferenciação ao qual o homem é acometido significa que este
mesmo homem perdeu sua referência divina e suas raízes ontológicas.
45
A angústia
promovida pelos acontecimentos gestados no interior da Idade Moderna da
maneira como a entende Romano Guardini é devedora em grande parte ao
sentimento de não ter nenhum lugar simbólico, nem um refúgio que seja
imediatamente convincente; e também afirma Guardini da experiência sempre
renovada de não encontrar no mundo um lugar para a existência e que satisfaça a sua
necessidade de sentido.
46
A concretização do processo que ousamos chamar de desteisificação pode ser
visto no aforismo 346. Esse possível momento que o homem viu nascer diante de si
pode ser entendido como ápice de um processo de auto-deificação.
47
O aforismo
sinaliza que este novo momento humano nasce irrestritamente da morte de Deus.
Nossa interrogação Mas vocês não entendem isso? De fato, custa
esforço nos entender. Nós buscamos palavras, talvez busquemos
ouvidos. Quem somos nós, afinal quiséssemos simplesmente nos
designar, como uma expressão mais velha, por ateu ou ímpio, ou ainda
imoralista, não acreditaríamos nem de longe estar caracterizados com
isso: somos as três coisas num estágio muito adiantado para que se
compreenda, para que vocês compreendessem, senhores curiosos, em
que estado de ânimo alguém assim se encontra. Não, não mais com a
amargura e a paixão de quem se soltou violentamente, que ainda tem de
compor para si uma fé, um propósito, um martírio a partir da sua
descrença! Nós nos aguçamos e tornamos-nos frios e duros com a
percepção de que nada que sucede no mundo é divino, ou mesmo
racional, misericordioso e justo pelos padrões humanos: sabemos que o
mundo que habitamos é imoral, inumano e indivino [...]
48
O refúgio humano se esvaiu com o princípio nietzschiano sobre a morte Deus.
Enquanto se tem uma preocupação constante com o abismo infinito que se abre
diante do homem, deveríamos também observar que a lei eterna se dissipa e, por isso,
45
Cf. Yves LEDURE, O pensamento cristão face à crítica de Nietzsche. In Nietzsche e o cristianismo,
p. 61.
46
Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 37-38.
47
Cf. Claude GEFFRÉ; Jean-Pierre JOSSUA, (Editorial). In Nietzsche e o cristianismo, p. 5.
48
NIETZSCHE, A gaia ciência, p. 238-239.
35
torna-se justificada a plena liberdade humana. A imagem auto-deificadora do homem
emerge quando este percebe que não nenhuma legislação extrínseca que faça
restrições à concretização de suas ações. Em outras palavras, o homem, pela primeira
vez, sente-se senhor de si.
49
De Lubac embora um dos principais críticos do
pensamento nietzschiano foi capaz de reconhecer que o chamado humanismo ateu,
sob o ponto de vista antropológico, promoveu a eliminação de Deus para que o
homem pudesse tomar posse da grandeza humana.
50
Esta nova imagem do homem e
do mundo, vista pela ótica da morte de Deus, fez com que tanto o homem quanto o
mundo passassem de finito a infinito. Diante da infinitude nova condição da
dimensão antropológica poderíamos nos perguntar o que fazer com ela.
51
Na busca de uma compreensão do mundo contemporâneo, o que poderia
servir de espelho para as ressonâncias do pensamento nietzschiano, Gianni Vattimo
observou que a morte de Deus trouxe também certa desestabilidade ao homem:
Deus morreu, mas o homem não vai muito bem.
52
Há nesta afirmação a intenção de
estabelecer nexos entre a morte de Deus e a crise do humanismo.
53
A crise que
Vattimo observa no humanismo tem a ver com o fato de que ele não pode mais se
resolver num apelo a um fundamento transcendente.
54
Neste mesmo caminho,
Vattimo afirma que
[...] a morte de Deus momento culminante e, ao mesmo tempo, final
da metafísica também é, inseparavelmente, a crise do humanismo. Em
outras palavras ainda: o homem só mantém a posição de centro da
realidade, a que alude a concepção corrente de humanismo, por força de
uma referência a um Grund que lhe garante papel.
55
49
Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário, p. 195.
50
Cf. Henry DE LUBAC, O drama do humanismo ateu, p. 21. Para De Lubac, ao matar o Deus
Cristão símbolo de razão e de luz que exalta o elemento mais pessoal em cada homem Nietzsche
acreditava e queria libertar o homem de todos os entraves e oferecer-lhe a possibilidade de uma
realização total. Cf. Yves LEDURE, O pensamento cristão face à crítica de Nietzsche. In. Nietzsche e
o cristianismo, p. 63.
51
O próprio aforismo 125 da obra A gaia ciência nos remete a esta questão: O mais forte e o mais
sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais quem nos limpará
este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos
de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós. Não deveríamos nós mesmos nos
tornar deuses, para ao menos nos parecer dignos dele?. Cf. NIETZSCHE, A gaia ciência, p. 148.
52
Cf. Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 17.
53
Não podemos esquecer que os referenciais de Vattimo são principalmente influenciados pelo
pensamento de Heidegger. Cf. Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 18.
54
Cf. Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 18.
55
Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 19. (Grifo do autor)
36
Uma questão que desejamos problematizar, posteriormente, no horizonte da
literatura machadiana, é a seguinte: de que forma o homem machadiano responde à
dissolução do conteúdo transcendente do mundo? Será que o homem machadiano
sobrevive em meio a um humanismo radical, advindo de uma crise generalizada que
se concretizou com morte do fundamento supremo do mundo, Deus?
A tecnificação do mundo apareceria, segundo a interpretação heideggeriana
que Vattimo empreende, como causa de um processo geral de desumanização, que
para ele compreende o obscurecimento dos ideais humanistas da cultura em favor
de uma formação do homem centrada nas ciências e nas habilidades produtivas
racionalmente dirigidas, como também compreende, no plano da organização social
e política, as marcas de uma acentuada racionalização.
56
O estado atual do mundo talvez aponte, aparentemente, que as expectativas
humanas de sua plena liberdade sob a ótica da morte de Deus e a partir disso a
conquista de sua emancipação tenham de fato sucumbido em função de um quadro
de extrema dissolução do sentido de Deus. Aqui retomamos o que chamamos
anteriormente de equivalência entre o processo de tecnificação do mundo e a perda
de seus valores sagrados.
57
Cabe-nos, portanto, pelo que temos dito, afirmar que a
crise que se arrasta do mundo tardomoderno até o atual é de fato também uma crise
espiritual, religiosa. Para Romano Guardini, quando Deus perde seu lugar no mundo
simultaneamente o homem perde o seu. Categoricamente, pergunta-se Guardini:
Onde está Deus!
58
O colapso do mundo moderno do ponto de vista religioso foi ricamente
apontado pelo teólogo alemão Paul Tillich. Os analisar os desencadeamentos da
cultura e da sociedade ocidentais, Tillich percebeu que não haveria outra forma de
definir a cultura senão de por meio daquilo que chamou de cultura autônoma.
Chamamos de autônoma a cultura empenhada em criar formas de vida
pessoal e social sem qualquer referência a algo supremo e incondicional,
seguindo apenas as exigências da racionalidade técnica e prática.
[...]
56
Cf. Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 20. Cremos que Adorno e Horkheimer também
tocam nesta questão. Cf. A dialética do esclarecimento, 1985.
57
Cf. idem, Acreditar em acreditar, p. 45.
58
Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 44. Se esta pergunta puder ser respondida por
Nietzsche, talvez saibamos a resposta: Deus está morto!
37
[...] Chamamos de autônoma a cultura secularizada que já perdeu a
substância espiritual e seu significado central, e não mais possui
referencial transcendente.
59
Diante da crise que se inicia no século XIX e que se arrasta até o século XX,
Tillich procura entendê-la como um processo explicável primordialmente pela
dissolução da imagem religiosa do mundo. De forma muito interessante, Tillich
afirma que, quando alguém o interpelava acerca da queda do mundo, sua resposta
apontava para a crise religiosa como fundamento do caos.
É a religião que o prova (mundo em queda), ou seja, a existência de uma
cultura religiosa ao lado de uma secular, o templo ao lado da prefeitura,
a Ceia do senhor ao lado das nossas ceias diárias, a oração ao lado do
trabalho, a mediação ao lado da pesquisa e, finalmente, caritas ao lado
de eros .
60
Tillich, naquele momento, olhava para as atrocidades das guerras e para a
insurreição de uma cosmovisão que trazia para vida a experiência do fim. Entre o
senso de reconstrução que sobreveio à Europa logo após a primeira guerra e o de
destruição total emergido após a segunda, Tillich compreendeu que a única
experiência que sobrevivia era a de um profundo vazio; vazio que representava no
horizonte da cultura um vazio sagrado. Para Tillich, este vazio, ainda que
dilacerador, nos reporta a algo supremo que de algum modo expressa o ainda não.
61
O mundo do século XX o refletiu todo otimismo da cultura iluminista e,
por isso, poderíamos nos perguntar, na esteira de Romano Guardini, o que acontece a
Deus e à sua soberania?
62
As referências religiosas passaram, na transição do culo
XIX para o século XX, por uma profunda crise, que se estende em certa medida até o
mundo contemporâneo. A morte de Deus, o senso de finitude, a auto-referência do
sujeito no horizonte do conhecimento, da ética e da arte são alguns pontos que
fundamentam a imagem de um mundo fragmentado; um mundo desteificado. O
momento extraordinário que se abriu diante do ser humano, ou seja, a capacidade de
sentir-se senhor de si mesmo por meio do diagnóstico da morte de Deus propiciou
momentaneamente um senso de infinitude que, por sua vez, transformou-se, sob a
ótica do caótico século XX, em um animal indomável. Tudo indica que o ser
59
Paul TILLICH, A era protestante, p. 85-86.
60
Paul TILLICH, A era protestante, p. 87. (grifos do autor)
61
Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 88. (grifo nosso)
62
Cf. Cf. Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 51.
38
humano, ao perder suas referências religiosas, decalcou sobre si mesmo uma
experiência espiritual negativa que reivindica ainda hoje um processo de
revitalização. Conforme indica Romano Guardini, a conseqüência de tudo isto é o
aparecimento de uma experiência profana, autônoma, afastada das influências
cristãs.
63
Sem o elemento religioso a vida torna-se como um motor sem
óleo. Está
em perigo de se queimar, a qualquer momento. As partes que deveriam
estar ligadas desprendem-se. A existência desorganiza-se então
realiza-se este curto circuito [...] Transforma-se em violência. E é
através dela que impotência procura uma saída.
64
Com o que foi exposto até aqui, torna-se nossa tarefa principal encontrar no
espaço literário machadiano uma resposta aos dilemas emergidos no mundo
tardomoderno, por entendermos que subsistiam naquele momento, a partir da
antropologia do texto machadiano, elementos que expressavam de forma modelar
determinadas experiências em nível incondicional ou religioso. Em outras palavras,
nosso caminho será o de perceber como a estética machadiana, de forma particular,
resguardou, a partir de sua antropologia, essa dimensão originariamente
incondicional. Respaldados na possível compreensão de que a manifestações
artísticas resguardam em si certa imagem religiosa do mundo que poderia o ser
mais visível na própria realidade, cabe-nos concordar com Paul Tillich ao dizer que
nenhuma criação cultural consegue esconder seu fundamento religioso.
65
A
caricatura que Nietzsche produziu do mundo e do ser humano é coincidentemente
paralela à imagem que deles (o mundo e o ser humano) a literatura machadiana
também produziu. Ao assistirmos, a partir das lentes de Nietzsche, a desteificação do
mundo, devemos também nos perguntar se é possível reabilitarmos na literatura
machadiana uma dimensão transcendente do ponto de vista de sua antropologia. Que
elementos da literatura machadiana determinam, no interior de um mundo
dilacerado, esta configuração de experiência religiosa?
66
63
Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 79.
64
Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 81.
65
Paul TILLICH, A era protestante, p. 85.
66
Esta pergunta tem uma razão de ser. Por exemplo, grande parte das artes emergidas nesse período
de transição (Século XIX-XX) sofre a acusação de terem reproduzido um estética da dissolução.
39
1.2.1. Pequeno excurso sobre a morte de Deus: considerações sobre o
momento extraordinário
No pensamento de Nietzsche, a morte de Deus pôde significar a emergência
de uma experiência extraordinária do ser humano a partir de uma existência
totalmente imanente. Como aponta Roberto Machado, Nietzsche não quer com a
morte de Deus provar que Ele não existe ou deixou de existir. A morte de Deus é a
constatação do niilismo da modernidade; é o fato de que a no Deus cristão deixou
de ser plausível; é a evidência de que a fé em Deus, que servia de base à moral cristã,
se encontra minada, de que desapareceu o princípio em que o homem cristão fundou
sua existência; a morte de Deus significa também o diagnóstico da ausência cada vez
maior de Deus no pensamento e nas práticas do Ocidente moderno.
67
Esse momento extraordinário que envolve todas as dimensões acima
relacionadas deve ser vivido por meio da emergência de um novo advento
antropológico: o super-homem. A morte de Deus, na compreensão de Roberto
Machado, representa a efetiva condição para a existência dessa nova dimensão
antropológica.
68
Porém, inversamente ao pensamento de Roberto Machado e de
tantos outros como Henry de Lubac, no que tange aos efeitos da morte de Deus sobre
a fé cristã, Maurice Blanchot percebeu que a ação do pensamento de Nietzsche só
produziu os tais efeitos porque ela não foi bem compreendida, embora reconheça que
a morte permitiu ao ser humano conhecer seus verdadeiros limites, abandonar o seu
67
Cf. Roberto MACHADO, Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 47. A despeito de concordarmos
com os pressupostos de Roberto Machado, seria importante dizer que Maurice Blanchot tem uma
compreensão bem particular dos problemas que envolvem a questão da morte de Deus em Nietzsche,
a partir de uma leitura que empreende da literatura de Kafka. Mesmo que o interesse principal não
fosse o de encontrar uma discussão de natureza teológica nos escritos de Franz Kafka, Maurice
Blanchot, em sua coletânea de estudos intitulada A parte do fogo, não foi capaz de deixar para trás a
possibilidade de rever criticamente a suposta acusação de ateísmo no legado literário do autor de O
processo. A representação de um mundo em processo de dissolução dissolução que é lida a partir da
morte de Deus encontraria na obra de Kafka uma confortável verossimilhança com o mundo da
realidade extraliterária. Todavia, a morte de Deus, se for entendida através de processos como a
dissolução dos parâmetros da moral, o aparelhamento do poder Estatal (O Castelo) (visto pelo seu
conjunto de práticas punitivas) e ainda como desmaterialização do sujeito que tinha no ser humano
burguês seu espelho (A metamorfose) e finalmente como a submersão da própria soberania de Deus
em relação ao mundo, Maurice Blanchot aposta que na obra de Kafka os possíveis desdobramentos da
morte de Deus fez com que Ele encontrasse uma espécie de revanche impressionante. Estaríamos
lidando, segundo Blanchot, com uma transcendência morta, mas que o deixa de estar presente sob
outras formas e disfarces. [...] Pois sua morte não o priva nem do seu poder nem da sua autoridade
infinita, nem mesmo da sua infalibilidade: morto, ele é ainda mais terrível, mais invulnerável, num
combate onde não existe mais a possibilidade de vencê-lo [...] Deus está morto, e isto pode significar
esta verdade ainda mais dura: a morte não é possível. Cf. Maurice BLANCHOT, A parte do fogo, p.
15-16.
68
Cf. Roberto MACHADO, Zaratustra, tragédia nietzschiana, 46-47.
40
refúgio para pôr à prova apenas suas possibilidades e, por fim, tornar-se responsável
por si mesmo, isto é, ser criador.
69
Há, portanto, para Blanchot, certa ambigüidade na
afirmação Deus está morto. É possível entendermos a morte de Deus como um
corte histórico e como a chegada de uma fase do mundo em que a solidão e o deserto
serão para cada um como tarefas para viver e superar, o que não significa que a
humanidade tenha definitivamente ultrapassado seu momento fundamental.
70
A
imagem que nos remete a um aspecto da ambigüidade do enigma da morte de Deus
é o fato de o homem louco do aforismo 125 ter jogado sua lanterna ao chão para
apagá-la e de ter dito: Cheguei cedo demais. Para Blanchot, o Deus está morto
de Nietzsche não é apenas uma resposta para o provável ocaso de Deus, mas sim a
recusa de uma resposta, a negação de uma salvação, o não à permissão grandiosa de
repousar e de se descarregar de si mesmo sobre uma verdade eterna, que para o
filósofo alemão não é outra coisa senão Deus.
71
Tal aspecto torna-se mais claro se o
ser humano, após o advento da morte de Deus, puder ser sempre igual ao Deus que o
ultrapassava. Ou seja, se por lado um Nietzsche admite para sua concepção
antropológica a possibilidade de ser como Deus ao negá-lo como fundamento para
daí encontrar a liberdade, por outro lado recusa tudo aquilo que em Deus é resposta:
podemos ser como Deus, mas para isso devemos assassinar o fundamento do mundo.
Como vê Blanchot, o confronto de Deus, que desaparece com o ser humano que
também é responsável por tal desaparecimento, é necessário a Nietzsche para viver o
poder de nega-Lo até o fim de maneira pura, na angústia e no risco. O
desmoronamento infinito de Deus permite à liberdade afirma Blanchot tomar
consciência do nada que é seu fundamento. Ser cúmplice de Deus foi o maior drama
vivido por Nietzsche.
72
É preciso negar o Deus infinitamente para que a liberdade de
viver sem Ele seja um sempre um momento maior na história da humanidade.
69
Cf. Maurice BLANCHOT, No caminho de Nietzsche. In A parte do fogo, p. 277.
70
Cf. Maurice BLANCHOT, No caminho de Nietzsche. In A parte do fogo, p. 280.
71
Cf. Maurice BLANCHOT, No caminho de Nietzsche. In A parte do fogo, p. 281.
72
Cf. Maurice BLANCHOT, No caminho de Nietzsche. In A parte do fogo, p. 285.
41
1.3. Escritura ou reescritura de Deus e do ser humano: metodologias e
tematizações entre teologia e literatura
O reconhecimento da correspondência é também
um pressuposto para o reconhecimento de que o
Deus que adoramos e nomeamos tramita no
espelho das palavras. Nenhuma palavra
é mera
realiza
ção de outra. Palavras se correspondem na
for
ça da experiência, na precisão do alcance da
nomea
ção e na coragem de escrever sobre o
mist
ério de nossas vidas.
Antonio Magalh
ães
Seria quase impossível esgotarmos, neste trabalho de tese, a inabarcável
produção intelectual que gravita em torno das discussões teológicas e religiosas a
partir do texto literário, que nossa busca recai sobre tal questão. Quando
estabelecemos, a partir de Paul Ricoeur, as bases hermenêuticas do nosso trabalho
fizemos uma escolha acima de tudo metodológico-conceitual para a procura do dado
religioso subjacente ao texto machadiano. Com isto afirmamos que as obras
consideradas de certo modo referenciais foram construídas sob múltiplos aspectos
metodológicos. A maior parte delas foi escrita por teólogos que vislumbraram a
possibilidade de se fazer teologia ou de capturar o dado transcendente a partir do
texto literário. Jean-Pierre Jossua e Johann Baptist Metz entenderam que um
importante caminho para a realização dessa tarefa seria o de descobrir na literatura o
seu conteúdo teológico explícito ou latente.
73
Entretanto, não caberia fazer da
literatura uma espécie de lugar teológico onde somente poder-se-ia ver determinados
traços de um teologia imutável ou imagens religiosas cristalizadas em nossas
tradição. Temos antes, segundo Jossua e Metz, que perguntar o que é que só a
73
Cf. Jean-Pierre JOSSUA; Johann B. METZ. Editorial. In Teologia e literatura (Concilium), p. 3.
42
literatura e nenhuma teologia conceitual será capaz de dizer e expressar
eficazmente.
74
Este percurso, que muitos autores trilharam, trata de uma virada no discurso
teológico e, conseqüentemente, de sua compreensão de ser humano e de mundo.
Com a relativização dos antigos paradigmas de conhecimento emergida
simultaneamente ao advento do mundo moderno, o pensamento teológico nos parece
ter percebido a necessidade de uma auto-reflexão tanto do ponto de vista de seu
objeto quanto do ponto de vista de seu método.
75
Na esteira de Claude Geffré, a compreensão de teologia como o intellectus
fidei só pode apresentar, no panorama do mundo atual, certa caducidade.
76
A
questão que se coloca subterraneamente na afirmação anterior deve ser
compreendida pela ineficiência que o intellectus fidei ofereceria para a compreensão
e a decifração da experiência do ser humano no mundo contemporâneo.
77
Isto não
isenta, todavia, o mundo atual, o ser humano e seus dilemas de serem compreendidos
à luz da tradição cristã, como também o significa a criação de um tribunal de
acusação para a teologia. O que se tem na verdade, segundo Geffré, são novas formas
de compreensão do trabalho que a teologia deve realizar. A teologia deve ser
comprometida, para Geffré, cada vez mais com uma tarefa crítico-interpretativa da
tradição cristã.
78
Enquanto hermenêutica, a teologia apresentaria, portanto, uma
profunda afinidade com o discurso literário, pois tanto a teologia, sob esta nova ótica,
quanto a literatura empreendem a partir da capacidade que elas possuem em lidar e
de identificar as regiões simbólicas formas de conhecimento do ser humano e do
mundo, que por vezes fazem apelo às operações de natureza hermenêutica para a
revelação do excesso de sentido que caracteriza a maneira pela qual são
representados por elas. Talvez seja essa a percepção que Jossua e Metz tenham ao
dizer que
De qualquer modo não se trata de dar continuidade às tentativas duma
teologia poética ou da espiritualidade, conhecidas de todas as épocas
74
Cf. Jean-Pierre JOSSUA; Johann B. METZ. Editorial. In Teologia e literatura (Concilium), p. 4.
75
Segundo Claude Geffré, como, por definição, Deus escapa aos limites da razão[...] A teologia
tende a ser compreendida não simplesmente como um discurso sobre Deus, mas como um discurso
que reflete sobre a linguagem sobre Deus, um discurso sobre uma linguagem humana que fala
humanamente. Cf. Claude GEFFRÉ, Crer e interpretar, p. 32-33.
76
Cf. Claude GEFFRÉ, Crer e interpretar, p. 32.
77
Cf. Claude GEFFRÉ, Como fazer teologia hoje, p. 7.
78
Cf. Claude GEFFRÉ, Como fazer teologia hoje, p. 7.
43
e caracterizadas pelo vago e arbitrário. O que se pretende, pelo
contrário, é encontrar na forma literária um novo rigor de trabalho
peculiar, numa época que não se parece nem com a da abstração nem
com a do sistema. É evidente que o que está em causa é mais que um
certo estilo, é um mudança na própria maneira de pensar, é uma
preocupação dominante em recorrer à experiência cristã, à observação
profunda dos intercâmbios incessantes entre essa experiência e a
confissão de fé.
79
Indubitavelmente, a literatura emerge no mundo contemporâneo como
instância que propicia novas aberturas de interpretação do ponto de vista teológico
e religioso acerca do ser humano e do mundo e por isso pode ter o seu trabalho
comparado ao que realiza uma teologia de corte hermenêutico. Hervé Rousseau,
reportando-se a Pie Duployé, compartilha da mesma percepção ao afirmar, por
exemplo, que os romances de Georges Bernanos são muito mais que narrações; são
na verdade interpretações da existência e da revelação na perspectiva do mundo
contemporâneo; são também interpretações fundadas sobre sua própria existência.
80
Prova da importância da literatura pode ser vista também no pronunciamento da
Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II.
A literatura e as artes são também, segundo a maneira que lhes é própria,
de grande importância para a vida da Igreja. Procuram elas dar
expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência de
suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao
mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no universo, dar
a conhecer as suas misérias e alegrias e necessidades e energias, e
desvendar um futuro melhor. Conseguem assim elevar a vida humana,
que exprimem sob muito diferentes formas, segundo os tempos e
lugares. Por conseguinte, deve trabalhar-se por que os artistas se sintam
compreendidos, na sua atividade, pela Igreja e que gozando duma
conveniente liberdade, tenham mais facilidade de contatos com a
comunidade cristã.
81
A afirmação da importância das artes e da literatura como forma legítima de
interpretação do mundo e das experiências vividas pelo ser humano, entre elas a
experiência de Deus e as de natureza religiosa, dissipa a invisibilidade das questões
autênticas que ambas construíram ao logo de muitos séculos. Trata-se não de um
79
Jean-Pierre JOSSUA; Johann B. METZ, Editorial. In Teologia e literatura (Concilium), p. 5.
Caberia perguntar aos autores o porquê de se pretender criar um novo rigor para o trabalho teológico.
(Grifo nosso).
80
Cf. Hervé ROUSSSEAU, A literatura: qual é o seu poder teológico? In Teologia e literatura, p. 8.
Hervé Rousseau menciona a clássica obra de Pie Duployé intitulada La religion de Pègui, Paris, 1965.
81
Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, p. 618.
44
reconhecimento público da força que elas possuem ao lidar com as dimensões, os
dilemas e as crises propriamente humanas, mas também de reconhecer seu estatuto
de conhecimento sobre tais esferas que nos atingem diretamente.
À aproximação entre a teologia e a literatura por meio da capacidade
enunciativa que ambas possuem de dizer a realidade, o ser humano e tudo aquilo que
ele aspira, deseja e o toca incondicionalmente poderá, verdadeiramente, entre elas,
estabelecer uma forma paralela e não conflitiva de discurso. Poderemos dizer
também que o objeto mesmo da teologia passaria a ser a revelação de Deus, dentro
da tradição cristã, segundo a localização, as aspirações e experiências humanas
historicamente construídas.
1.3.1. Literatura e cristologia
O primeiro trabalho a ser apresentado aqui é a obra do espanhol Olegário
González de Cardedal. Cuatro poetas desde la otra ladera teve como preocupação
principal a pergunta pela pertinência da cristologia nos séculos XIX e XX, a partir do
legado literário de quatro escritores: Unamuno, Jean Paul Richter, Antonio Machado
e Oscar Wilde. O seu exaustivo trabalho apresenta com detalhes a tessitura do tema
cristológico no espaço literário dos autores mencionados. Daríamos centralidade às
análises que González de Cardedal realiza da obra El Cristo de Velázquez de Miguel
de Unamuno. A primeira justificativa que apresenta pela escolha de Unamuno reside
na afirmação de que os problemas em torno de Deus, Cristo e homem, no horizonte
da eternidade, sempre estiveram presentes na obra escritor espanhol.
82
Na tentativa
de superar o Unamuno da obra Do sentimento trágico da vida, Cardedal de González
verá no poema El Cristo de Velázquez uma transmutação temática, pois o poema,
começado em 1912 e terminado em 1922, resgataria a contemplação, a oração e
esperança.
83
Uma questão levantada por González de Cardedal recaiu sobre o porquê da
escolha da tela de Diego Rodríguez de Silva Velázquez como elemento de
inspiração de Unamuno. Problemas em torno de uma questão que não se pode
resolver facilmente: Unamuno pretendia falar do Cristo pintado por Velázquez ou do
Cristo da tradição cristã? Parte desse pequeno enigma se deve à variedade de
82
Cf. Olegario GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 7.
83
Olegario GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 27.
45
expressões que retrataram a imagem de Jesus nas artes plásticas da Europa. Uma
tensão é posta: entre os Cristos trágicos e os Cristos que retratam certa majestade
universal, Unamuno escolheu uma expressão cristológica apolínea, majestática, mais
luz e céu, como é o Cristo de Velázquez, afirma González de Cardedal.
84
O tema cristológico parece, em González de Cardedal, ser um problema a se
resolver na contemporaneidade. Ele se interroga acerca do fundamento que
justificaria a possibilidade de a palavra humana sobre Cristo ser mais que uma
rememoração psicológica e nostálgica de um passado esgotado. Entretanto, González
de Cardedal se refugia numa imagem de Cristo que lhe permite afirmar o Cristo
ressuscitado como algo pertencente a um universo transtemporal.
E se questiona:
¿Nos es posible a nosotros hoy mirarle a la cara, ver en su rosto la gloria
del Eterno, reconecer en su humanidad nuestra humanidad y en su
muerte nuestra salvación?
85
González de Cardedal reconhece que três são as vias de recuperação de uma
realidade (Cristo) que, sendo no tempo, pertencem a uma ordem transtemporal ou
eterna: a liturgia, a mística e a arte. A liturgia seria o caminho que constitui a
celebração representadora dos mistérios. A mística seria a contemplação de Deus
como mistério de amor pessoal comunicado e dos mistérios de Jesus. E a arte?
González de Cardedal não responde de forma tão explícita a função da arte em
relação à maneira como apresenta as funções da mística e da liturgia. Todavia,
entende que tanto a mística, a liturgia quanto a arte são momentos criadores em que o
espírito de Deus e o espírito dos homens juntos fazem reviver a criação originária.
Para ele: En ella el hombre se asoma al abismo del ser, se reencuentra a mesmo
en la luz y recobra capacidad de vivir.
86
González de Cardedal chega à conclusão de
que a contemporaneidade de Cristo é a condição necessária para que o homem, que é
corpo, viva.
Notamos um ponto interessante na apreciação inicial que González de
Cardedal realiza da obra Unamuno. O seu interesse nos ocorreu de tal maneira
reside numa espécie revitalização do tema cristológico. González de Cardedal tem
84
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 32.
85
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 33.
86
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 35.
46
preocupações acerca das várias formas de recepção (interpretação) do tema
mencionado, parecendo buscar elementos que clarifiquem uma forma de recepção
mais autêntica. Ele percebe que tanto o catolicismo quanto o protestantismo tiveram
compreensões um pouco divergentes quanto ao que Jesus representou e legou para a
história; todavia, seriam elas entre si aceitáveis. Cremos que para González de
Cardedal as divergências de interpretação das duas principais tradições cristãs
incidem também sobre a função mediadora que elas representam.
87
Entretanto,
percebe que a própria literatura de Unamuno intenta, como que a partir de uma
dimensão metalingüística, explicar determinadas formas de mediação e de acesso a
Cristo. Unamuno enumera três formas de mediação, entre elas a arte. A fé, o Espírito
Santo e a arte seriam para Unamuno as três formas de mediação que revelam o Cristo
vivo.
88
Recuperaremos aqui um pequeno trecho do poema de Umamuno:
los ojos de la fe en lo más recóndito
del alma, y por virtud del
arte em forma te creamos visible. Vara mágica
nos fue el pincel de Don Diego Rodríguez de Silva Velázquez.
[...]
consolador a nos
el Santo Espíritu,
ánimo de tu grey,que obra en el arte
y tu vis
ón nos trajo
Um dos evidentes esforços de González de Cardedal é o de apresentar certo
ajuste entre o que entende ser o cerne da teologia católica e a teologia que é expressa
no poema de Unamuno. Para tanto, é preciso distanciar Unamuno das possíveis
influências dos temas do protestantismo de Harnack
89
, sobretudo sua cristologia,
como também compreender que a teologia protestante é toda calcada na audição da
palavra. Para ele, a teologia do poema de Unamuno estaria mais alinhada à teologia
católica, pois esta se encontra assentada sob o esplendor das realidades materiais e
institucionais, portanto mais próxima do mundo grego, com suas produções
artísticas, enquanto que a teologia protestante teria como preocupação a dimensão
sola palabra e certo descompromisso com o mistério da encarnação.
90
Portanto,
González de Cardedal entende, assim como Unamuno, que a fé, a arte e o Espírito
87
Cf. Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 37.
88
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 37.
89
As referências a Harnack m sua origem nas possíveis influências desse teólogo protestante no
pensamento de Unamuno. Cf. Op. cit., p. 53.
90
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 38.
47
Santo unidos são a perfeita mediáción-representación visibilizadora de Cristo.
91
Sua
crítica ao protestantismo pôde ser expressa da seguinte maneira:
[...] a la fe nuda o desnuda del protestantismo (sola fides), que lleva
consigo una ínsita voluntad de iconoclasmo permanente, y rechaza las
representaciones visivas, táctiles y de outro orden para dejar sólo las
auditivas de ahí la significación de la lectura, la exégesis, la música y la
predicación para el protestantismo [...]
92
Em suma, a arte este verbo silencioso y blanco, disse Unamuno tem a
sagrada missão de representar a Deus: Nuestra palabra es válida para hablar de él,
porque él existió encarnado; y válido serán también el color y la línea.
93
Sem aprofundar a questão, Cardedal de González tenta entender o poema de
Unamuno na linha das grandes epopéias do mundo europeu. El Cristo de Velázquez
revelaria uma preocupação de Unamuno com os aspectos políticos, poéticos e
religiosos do povo espanhol. Para González de Cardeal, Unamuno pôde expressar a
catolicidade do povo espanhol neste poema. Há uma espécie de mistura que resulta
num Unamuno profeta e poeta.
94
O próprio Unamuno se expressaria dizendo que
A mi me ha dado ahora formular la fe de mi pueblo, su cristología realista,
y... lo estoy haciendo en verso. Es un poema que se titulará Ante el Cristo
de Velázquez, y del que llevo escritos más de setecientos endecasílabos.
Quiero hacer cosa cristiana, bíblica y española.
95
O enigma do porquê da escolha do quadro de Velázquez como pintura base
para o poema de Unamuno encontra uma resposta nas reflexões de González de
Cardedal. O quadro de Velázquez revelaria a essência do catolicismo. O
distanciamento de Unamuno da reconhecida influência da teologia de Harnack e
Ritschl sobre seu pensamento até 1910, para González de Cardedal, exigiu o retorno
aos problemas cristológicos e teológicos em El Cristo de Velázquez, como a
eucaristia, a Igreja, a divinização do homem e a ressurreição da carne. A retomada de
tais questões no El Cristo de Velázquez seria uma forma de resposta às lacunas que a
91
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 40.
92
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 40.
93
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 41.
94
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 59-63.
95
Trecho retirado de González de Cardedal, op. cit., 63. Carta de 28 de julho de 1913 ao poeta
português Teixeira de Pascoaes.
48
influência da teologia liberal de Harnack sobretudo haveria de ter deixado em
Unamuno.
96
Por ser um poema que trata do tema cristológico, El Cristo de Velázquez será
alvo de determinadas digressões por parte de González de Cardedal. Em primeiro
lugar, pergunta por uma clareza da possível teologia da encarnação no poema.
González de Cardedal parece exigir da teologia cristológica do poema de Unamuno
um determinado aparato conceitual que é próprio da teologia clássica. Suas
interrogações incidem sobre certa indiferenciação entre as dimensões da trindade.
Para ele, a teologia clássica pôde diferenciar e compreender o que realmente revela
cada uma das pessoas da trindade, ao passo que a teologia de Unamuno não foi capaz
de mostrar tal exatidão. Esta incapacidade de clarificar o conteúdo do dogma
cristológico acarretaria a impossibilidade de definir o conteúdo aceitável nas
expressões como corpo de Deus, humanidade de Deus, sofrimento de Deus, morte de
Deus.
97
A segunda objeção desferida por González de Cardedal tem a ver com a não
fixação da extensão dos limites do homem Jesus enquanto Judeu, messias de um
povo. Ou seja, não uma determinação da sua dimensão humana ou divina.
98
A
terceira questão se aloca no horizonte de uma ausência explícita sobre a historicidade
de Jesus. Cabem nesta questão, segundo González de Cardedal, perguntas sobre a
maneira pela qual há implicações da vida humana na vida divina de Cristo. A quarta
e última ponderação se abriga na falta de uma cristologia pneumatológica ou uma
reflexão sobre a ação do Espírito Santo sobre Jesus. Para Cardeal de González, o
há em Unamuno uma clareza sobre ão do Espírito Santo sobre a humanidade
Jesus.
99
A crítica que nos permitiríamos fazer em relação à obra de González de
Cardedal tem a ver com seu estreito interesse em aproximar a literatura da teologia.
Sua preocupação parece estar concentrada em ver na literatura de Unamuno uma
autêntica teologia. Cremos que González de Cardedal não consegue perceber que a
arte (literatura, artes plásticas etc.), independentemente das formas de apropriação
que se pode fazer dela, pode ser um importante meio de abrigo e de transmissão de
determinados símbolos ou elementos da cultura cristã. Cremos que, antes de tudo,
esta percepção pode ser inteiramente afirmada diante do poema de Unamuno. Outro
96
Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 108.
97
Cf. Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 169.
98
Cf. Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 170.
99
Cf. Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera, p. 170-171.
49
apontamento é a sua necessidade de exigir da arte um rigor conceitual próprio da
teologia clássica. Um parêntese apenas nos será permitido: temos visto em muitos
trabalhos que se constituem em torno do enfoque teologia e literatura, certo
ressentimento. Parece-nos que inicialmente a literatura surge, no espaço de discussão
teológica, como um importante campo de interlocução, que todavia acaba, em muitos
autores, em uma das seguintes situações: 1. ou é incapaz de apresentar uma teologia
rigorosa; 2. ou compreendida dentro dos esquadros de uma teologia pré-concebida.
1.3.2. O drama da salvação
Outro trabalho de grande importância é a tese de José Carlos Barcellos,
intitulada O drama da salvação: espaço autobiográfico e experiência cristã em Julien
Green, que foi defendida, em 2000, no Departamento de Teologia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Com o objetivo de investigar a literatura de
Julien Green, José Carlos Barcellos se valeu, durante o seu percurso, do conceito de
drama da salvação. A hipótese norteadora da tese reside na afirmação de que a
literatura de Julien Green se constitui através de um pacto autobiográfico entre ele,
autor, e sua literatura. Por isso, a possível expressão teológica da obras de Green
seria também sua expressão teológica enquanto teólogo.
A noção de drama da salvação, admitida como expressão máxima de sentido
da literatura de Green, permite que José Carlos Barcellos a identifique com a
mensagem evangélica de salvação. Para Barcellos, quando Julien Green afirma que
spirituellement ma vie est un désastre, o reconhecimento explícito do caráter
dramático, trágico mesmo, da frustração existencial e religiosa vivenciada no seio
mesmo dos mais altos projetos e desígnios.
100
Segundo Barcellos,
Essa teologia dramática tem uma consciência aguda da indisponibilidade
de Deus em relação a todos os planos e previsões humanas, mesmo
aqueles supostamente baseados na fé. Nesse sentido, é uma teologia cujo
centro será sempre o grito de Cristo na cruz: Meu Deus, meu Deus, por
que me abandonastes?
101
O tema do pecado será visto na literatura de Green como dimensão a serviço
da graça e da salvação, porque, segundo Barcellos, o pecado é responsável por situar
100
Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 126.
101
José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 126.
50
o ser humano na sua verdade existencial mais profunda e que, de forma pungente,
evoca a nostalgia da comunhão com Deus. Para Barcellos, Julien Green tratará em
sua literatura que também é o seu espaço teológico o mundo como o espaço do
mal. A salvação se torna, no espaço literário de Green, do ponto de vista de sua
galeria de personagens, dramática porque passa necessariamente pela destruição
física ou moral do herói e das ilusões que este porventura tivesse acerca da felicidade
ou da possibilidade da reconciliação neste mundo.
102
Entendendo que a noção de drama da salvação preside a leitura de Barcellos
em torno da obra de Green e que ela mantém uma relação com o conceito de espaço
autobiográfico, surge na tese a afirmação de que a experiência do fracasso de um
projeto de vida experiência esta presente tanto no eu do diário de Green quanto em
Jeunnes Années (sua obra autobigráfica) será o fundamento humano dessa visão
dramática da relação entre o ser humano e Deus. Dessa forma,
[...] o que há de frustrado e inacabado na esmagadora maioria das vidas
humanas pode ser subtraído à gica mundana do fracasso existencial e
histórico para ser projetado no mundo invisível, em que esse mesmo
fracasso pode se converter, afinal, em ocasião de encontro com o dom
da graça.
103
Na afirmação de Barcellos, subjaz a idéia de que de algum modo o ser
humano topará em sua vida com a salvação que emana de Deus por meio de Jesus
Cristo. Barcellos apresenta um exemplo dessa perspectiva em obra de Green
intitulada LAutre. A história tem como protagonistas Roger e Karin. Os jovens se
conheceram no verão de 1939, em Copenhagen, cidade para qual o jovem francês
fora buscar aventuras eróticas. Karin era uma moça cristã que foi seduzida por
Roger. Depois de se desiludir com Roger, Karin, além de perder a , se deixa levar
por uma vida marginalizada e de hostilização, por entregar seu corpo aos soldados
alemães durante a ocupação nazista. Roger toma conhecimento dos acontecimentos
ao voltar à Dinamarca e se sente culpado por ter seduzido e abandonado a jovem. Em
razão dos acontecimentos, Roger se torna profundamente cristão ao se converter
durante os anos que passara num campo de prisioneiros na Alemanha.
104
Para
Barcellos, a teologia dramática de Green se vale da graça através do pecado que por
102
Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 137.
103
Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 142.
104
José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 150.
51
sua vez faz a salvação transparecer pelo caminho do mal. Embora Barcellos
demonstre com muita propriedade os relevos da teologia de Julien Green, não tarda
em dizer que esta teologia é uma teologia alinhada aos pressupostos teológicos do
cristianismo no mundo moderno. A própria idéia de drama da salvação nos aponta,
de alguma forma, uma percepção caótica do mundo moderno. O cristianismo, afirma
Barcellos, seria para o mundo moderno a cruz que impede que este se degrade no
desespero, no absurdo, no nada.
105
O que está subjacente a esta questão é a denúncia
que o tecido literário de Julien Green faz da superação da angústia humana um
projeto da salvação em Cristo.
106
As personagens de Julien Green, para Barcellos, demonstram a luta diária
contra a banalidade da vida, contra as pequenas e as grandes tragédias. Tal luta
figura-se, numa perspectiva cristã, como uma concepção dramática da salvação que
se efetiva na renovação cotidiana da Paixão de Cristo, sob a ação do espírito. Se o
pacto autobiográfico entre Green e sua literatura for de fato considerado, Barcellos
afirma que Jeunes Annés apresenta o ápice da teologia de seu autor.
Na conclusão de seu trabalho, Barcellos defende a idéia de que a teologia de
Green nos lança à compreensão da revelação de maneira desvinculada de uma
teologia de corte mais racionalista. Ou seja, a teologia de Green nos faz perceber o
mistério da revelação de Deus em um momento específico da história, entretanto se
alinhando às raízes da experiência fundamental da tradição cristã.
Admitir que a teologia apenas seja um veículo de comunicação de uma
experiência primeira, de uma determinada comunidade, é também admitir que a
revelação não possui força para se apresentar através de outras dinâmicas de
escoamento do seu sentido, embora pretenda com isso certa preservação do sentido
primeiro dos símbolos fundamentais da fé cristã.
Dar à teologia de Green a tarefa de transmissão do sentido dos símbolos da fé
cristã da maneira como Barcellos figura em sua tese, significa também dizer que os
símbolos cristãos já foram decifrados e que a nossa tarefa recai apenas sobre o
trabalho de dizer onde eles se manifestam. A literatura seria então um receptáculo do
sentido já determinado dos símbolos da fé cristã, independente do contexto da sua
revelação, que lhes dá suporte e sentido.
105
Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 160.
106
Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 165.
52
1.3.3. O nascimento de Jesus-Severino: hermenêutica transtexto-discursiva
A tese de Eli Brandão, defendida em 2001 na UMESP, trouxe uma dupla
tarefa construída a partir da interface teologia e literatura. A primeira se desenvolve
no campo da problematização de temas teológicos a partir da literatura de João
Cabral de Melo Neto. A segunda pauta-se na construção de uma estrutura
metodológica denominada hermenêutica transtexto-discursiva. Aliada à primeira
tarefa está a magnífica percepção do tema da esperança no poema cabralino Morte e
Vida Severina. A intenção de Eli Brandão se aloja, portanto, na construção de uma
leitura da obra Morte e Vida Severina, tomado para sua tese como obra poético-
teológica. Trata-se, pois, de apresentar, a partir do texto cabralino, uma eventual
confusão entre revelação poética e revelação teológica como ponte entre teologia e
literatura.
107
A obra de João Cabral de Melo Neto é percebida como esfera hipertextual
108
dos evangelhos de Mateus e Lucas. A idéia de reescritura (palimpsesto), apresentada
na tese de Eli Brandão, segundo Gérard Genette, nasce exatamente de uma possível
realização do tema da esperança (segundo os evangelhos de Lucas e Mateus) no
poema de João Cabral de Melo Neto. Dessa forma, os evangelhos de Lucas e Mateus
apresentam-se na tese de Eli Brandão como dimensão hipotextual, texto de origem
do processo de transformação ou reescritura de um outro texto.
109
As condições operatórias e de realização do tema da esperança, entretanto,
são precedidas de um percurso hermenêutico nascido da associação de um ou mais
textos, pois, do ponto de vista da interpretação empreendida pelo leitor, existe um
pré-conhecimento dos textos envolvidos e do sentido que eles evocam. Há, portanto,
na identificação do hipertexto uma configuração semântica. Este dado fundamenta o
que Eli Brandão chama de hermenêutica transtexto-discursiva, porque a relação
contratual entre os textos não existe somente por uma ação transtextual de
107
Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 180.
108
O conceito de hipotexto deve ser visto dentro de uma das chamadas categorias transcendentais do
texto, mais especificamente a categoria denominada hipertextualidade. Tal conceito nos remete à
relação de um determinado texto B (Hipertexto) com um texto A (Hipotexto), por meio de imitação ou
transformação do texto primeiro. Cf. Gérard GENETTE, Palimpsestes. La littérature au second degré,
p. 14.
109
Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 14.
53
transposição ou transferência de um texto para dentro de outro , mas também por
uma tentativa de compreensão do campo de sentidos que eles carregam consigo.
110
Além da proposta de uma hermenêutica transtexto-discursiva, Eli Brandão
apresenta uma forma muito particular de aproximação do texto cabralino. Para ele,
há a necessidade de se privilegiar o texto enquanto porta de entrada para o próprio
texto, entendendo com isso que o campo semântico do texto pode se dar por
elementos que ele mesmo (texto) dispõe. Essa orientação permitiu que, a partir do
conceito de paratextualidade, Eli Brandão pudesse identificar as melhores portas de
entrada para o poema-obra Morte e Vida Severina. A paratextualidade é
necessariamente, segundo Genette, um conjunto de elementos ostensivos que
permitem um acesso imediato ao texto.
111
O principal paratexto escolhido por Eli Brandão foi o próprio título e o
subtítulo da obra de João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina: Auto de
Natal Pernambucano. Conforme indicação do próprio subtítulo há, no plano
temático, uma referência à dialética entre a morte como convite do desespero e a
vida como convite à esperança.
112
Do ponto vista estrutural, o subtítulo nos remete
ao gênero dramático na forma de Auto. Para Eli Brandão, somos informados tanto
pelo título quanto pelo subtítulo de que se trata de um Auto de Natal, cujas raízes se
fundam em tradições pernambucanas que, por sua vez, fazem parte da relação
dialética morte/vida.
113
A hipótese da tese também reside na certeza de encontrar a imagem do
menino Jesus em algum lugar. É através da atuação paratextual do subtítulo que
nasce a possibilidade de emergir as narrativas sobre o nascimento de Jesus no texto
cabralino. Tais narrativas serão vistas sob a ótica de um processo de reescritura que
fazem do texto de João Cabral de Melo Neto um palimpsesto produzido por meio da
dissimulação dos textos subscritos. Através desse mesmo processo, Eli Brandão
pretendeu encontrar os textos dos evangelhos de Mateus e Lucas, pois o fundamento
de ambos inaugurou a tradição natalina.
114
110
Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 181.
111
Cf. Dentre os principais elementos paratextuais estão os títulos, subtítulos, intertítulos, prefácios,
posfácios, avisos, notas marginais, além de outros elementos. Cf. Gérard GENETTE, Palimpsestes, p.
10.
112
Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 195.
113
Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 195.
114
Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 197.
54
A tese de Eli Brandão aponta, nos planos teórico-metodológico e temático,
para uma profícua aproximação entre teologia e literatura. A construção da ponte
entre elas se fundamenta a partir de um processo de harmonização entre os textos dos
escritores e textos cujo monopólio se restringiu à tradição da Igreja (textos blicos).
Com esta tarefa, a tese de Eli Brandão mostrou também que os textos fundamentais
da tradição literária ocidental possuem uma dimensão de co-pertença e de mútua
cumplicidade em favor dos temas que dão sentido à dimensão humana. Esta
afirmação terá validade quando observamos, sob a ótica dos conflitos e tensões
que marcaram, o distanciamento entre teologia e literatura.
115
Não nos esqueçamos,
pois, de uma importante advertência que Antonio Magalhães faz em sua obra Deus
no espelho das palavras. Para este teólogo, torna-se importante ressaltar que o
cristianismo, entre tantos outros, também sobreviveu às várias intempéries pelas
quais passou ao logo de vinte séculos porque contou e recontou histórias por meio
de seus textos fundantes.
O Severino que emerge do texto de João Cabral de Melo Neto não é outra
coisa senão conforme sublinha Eli Brandão a representação do coletivo e do
individual ao mesmo tempo: é como o rio e como todos os incontáveis Severinos,
que vêm do sertão para desaguar nos mangues do recife; é o que nomeia tudo o que é
vinculado, pela igualdade do anonimato, à dialética morte/vida.
116
Portanto, o
Severino de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, é mais que um
representante do homem que emigra do nordeste brasileiro. O Severino do poema-
obra incorpora aspectos do homem universal na medida em que simboliza, também,
todos que, sob a tensão morte/vida, desesperados e em busca da vida, da esperança,
emigram, em qualquer parte do mundo e em qualquer época.
117
Cabem aqui algumas considerações em direção à tese de Eli Brandão:
1. A chamada hermenêutica transtexto-discursiva apresenta-se como
exemplar instância metodológica e conceitual para elucidação das
múltiplas formas de reescrituras oriundas de textos pertencentes a
uma mesma tradição.
115
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo:
Edições Loyola, 1999.
116
Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 208.
117
Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 208.
55
2. A bricolagem do texto cabralino nos reporta à existência de um
palimpsesto, fruto dos múltiplos apagamentos e reescrituras que
por sua vez, na tese de Eli Brandão, encontrou nos textos de
Mateus e Lucas seus fiéis hipotextos.
3. Ao encontrar os prototextos teológicos, a tese de Eli Brandão
estabeleceu também uma espécie de transposição dimensional do
texto cabralino; ou seja, sendo um texto poético, Morte e Vida
Severina passa também a ser um texto bíblico-teológico através da
relação hipotextual que mantém com os evangelhos de Mateus e
Lucas. Essa dupla dimensão poético-teológica permite segundo
Eli Brandão a realização de um fazer teológico, normativo ou
não.
4. Ao descobrir as camadas textuais que ligam o texto de João Cabral
de Melo Neto aos evangelhos de Mateus e Lucas, a tese de Eli
Brandão encontrou o tema da esperança como prova da
compatibilidade temática existente entre eles e a tradição cristã.
5. Talvez não seja possível falar em textos distintos, porque, diante de
tudo que foi dito por Eli Brandão, tanto a obra de João Cabral de
Melo Neto quanto os evangelhos nos permitem desconfiar de que
se trata, na verdade, de um único texto, encontrado sob a ruína dos
vários apagamentos e reescrituras sofridos durante um longo
tempo. Entretanto, não nos arriscaríamos defender esta hipótese
aqui.
1.3.4. Deus no espelho das palavras
Estabelecer indicadores de questões de ordem metodológica no âmbito da
discussão teologia e literatura foi sem dúvida uma das preocupações da obra de
Antonio Magalhães, intitulada Deus no espelho das palavras. Buscando conferir
densidade à aproximação entre literatura e teologia, Magalhães inicia sua obra
tecendo uma afirmação de suma importância: o cristianismo é uma religião do
livro.
118
Esta primeira postulação consiste, noutras palavras, em afirmar que o poder
de influência e de sobrevivência do cristianismo, através dos séculos, pode ser
118
Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 5.
56
tributado, em grande parte, aos efeitos que seus textos escritos imprimiram sobre a
civilização ocidental, tendo alguns desses textos alcançado o status de canônicos
(oficiais). Por exemplo, Antonio Magalhães afirma ainda que
A capacidade que o cristianismo teve de expandir seus valores éticos
residiu em grande parte na força que as narrativas sobre esses valores
tiveram ao serem contadas em diferentes culturas. Se o cristianismo
tivesse iniciado em forma de uma rígida teologia moral, ele jamais teria
alcançado os corações de diferentes pessoas e culturas [...]
119
Esta afirmação traz também consigo alguns rastros do que será proposto
como o estar entre a teologia e a literatura. A característica de ser religião do livro
e, por isso, ser também literatura, é com certeza uma das mais importantes do
Ocidente, pois tal condição pôde evocar questões de ordem hermenêutica como
dimensão crítica ou de revisão da teologia cristã fossilizadora de temas e
experiências. Afirmamos que houve durante muito tempo, no interior da constituição
do imaginário religioso do Ocidente, um esquecimento da literatura dos poetas ou
escritores como forma de expressão ou da revelação de Deus e das experiências dos
seres humanos com Ele. A teologia cristã tradicional não percebeu que restringir a
possível revelação de Deus aos textos da Bíblia promoveria a imposição de limites às
novas interpretações, percepções ou experiências com o próprio Deus.
A partir de uma visão crítica daquilo que representa hoje o chamado diálogo
entre teologia e literatura, o teólogo brasileiro ressalta alguns aspectos que devemos
sempre considerar:
1. Magalhães acredita que uma espécie de concorrência entre teologia e
literatura, entre religião e arte, entre estética literária e estética religiosa.
2. Esta atitude diante da teologia ratifica a necessidade de se criar critérios
diferenciados entre teologia e literatura. Se por um lado a teologia não
pode ser determinada na sua reflexão pelo campo literário, por outro lado
a literatura não pode estar sob quaisquer tipos de domínio eclesiástico.
3. A literatura não deve ser serva do dogma da Igreja para narrar princípios
considerados teologais, nem a teologia deve perder-se em tentar ser
somente narrativa religiosa.
119
Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 182.
57
4. A literatura deve manter-se como algo que pode refletir a complexidade
da existência humana.
120
Um dos importantes momentos da obra Deus no espelho das palavras está
nas discussões em torno da leitura teológica da obra literária. Para Magalhães, esta é
a primeira grande possibilidade de aproximação entre teologia e literatura. Ele indica
dois pontos, cujo objetivo de cada um seria o de estabelecer possibilidades de leitura
teológica de uma obra literária.
1. Identificação e problematização dos temas que emergem na obra literária
como centrais, por meio de suas formas, seus estilos e suas interpretações.
Nesse processo de identificação, o estudo atencioso das diversas
maneiras como os mesmos temas foram tratados pelo mesmo autor ou em
livros afins, no caso de pertencerem à mesma escola literária. Isso requer
do método teológico um conhecimento considerável não da obra
escolhida como objeto material, mas também das tendências da escola à
qual o texto pode ser incluído. O texto literário é visto como amostra da
realidade humana e, como tal, não possui aparentemente consistência
teológica, mesmo que não seja negado o valor teológico que ele possui.
121
2. O segundo aspecto do método teológico pauta-se nos horizontes da
tradição considerada normativa, sem que isto implique uma distinção
entre teologia católica ou teologia protestante. Aqui a teologia estaria
obrigada a se engendrar numa linguagem viva e dinâmica, considerando
todos os elementos da fé estabelecida no passado. Outro ponto está no
olhar da teologia sobre a literatura como interpretação da realidade
humana. O primeiro aspecto nos garantiria uma espécie de revisão
teológica das verdades estabelecidas pela Igreja. No segundo, há uma
tentativa de transformação dos conteúdos que foram cristalizados pela
teologia normativa.
122
120
Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 46-47.
121
Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 190.
122
Antonio Magalhães esclarece que tais propostas são caminhos possíveis para a relação entre
teologia e literatura, porém questionáveis. Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras,
p. 192.
58
Para Antonio Magalhães, o Deus que emerge dessa visão cristalizadora é
aquele que dá respostas via teologia normativa. Portanto, deixa de ser presença para
se tornar conceito, descarta o espelho onde o envelhecimento dos anos vai-se
tornando nítido e dando lugar ao retrato 3x4, em preto e branco, do sistema teológico
endurecido pelos jogos de poder institucional e pelas fabricações lingüísticas que a
tradição, do passado da história, quis eternizar para todos os seus amanhãs.
123
Há uma importante advertência que devemos considerar ao submeter um
texto literário à leitura teológica. Em primeiro lugar, não podemos elevar os textos
literários ao lugar dos textos tradicionais da fé, pois estaríamos forjando um
encontro marcado pela desigualdade, pois os textos bíblicos possuiriam mais
dignidade para confidenciar a revelação de Deus por terem sido os primeiros a dizer
as ações de Deus na história.
124
Tal dessimetria pode ocorrer se considerarmos, por
exemplo, que a revelação separa a ação de Deus de toda experiência humana, mesmo
aquelas resguardadas pelos textos dos poetas. Dessa forma, teríamos os textos
tradicionais da fé enquadrando as experiências humanas com Deus, enquanto que os
textos literários seriam apenas objetos de análises para verificar as repetições de tais
experiências condicionadas pela tradição teológica cristã normativa. Por outro lado,
não se deve também superpor os textos literários aos textos da como pressuposto
de desestabilização de uma tradição interpretativa. A tradição cristã de interpretação
dos textos bíblicos deve ser apenas um ponto de partida para uma reflexão teológica,
mas não o único.
125
Isto é um dado que não se deve jamais desprezar. Cabe aqui uma
longa citação de Antonio Magalhães sobre a articulação da linguagem poética
(literária) e suas associações com a questão revelacional:
A Bíblia é um poema e, como todo discurso poético, incluindo aqui a
ficção narrativa, o lirismo e o ensaio, não se presta a uma análise do
mundo dentro das categorias que comumente erigimos dentro da
modernidade como mais adequadas para um real conhecimento do
mundo.
[...]
A linguagem po
ética não deve ser confundida como mera balbúcie
emotiva. Ao contrário, ela é a linguagem por excelência para questionar
a mera descrição dos objetos como forma superior de relação do ser
humano como o seu mundo e com seu Deus, isso porque nela estamos
dentro do mundo, e não separado dele analiticamente; estamos dentro do
mistério de Deus, e não separado pela distancia entre sujeito e objeto tão
123
Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 192.
124
Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 194.
125
Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 194.
59
característica da modernidade. Nisso reside, em grande parte, aquilo que
chamamos de revelação, de nos vermos e reconhecermos dentro das
coisas, Deus próximo com o gesto de amor, a palavra de misericórdia, o
convite à justiça, a crítica à barbárie. Por um momento, sentimo-nos
dentro do mistério de Deus, amor dos amores, sol que ilumina nossas
vitais esperanças, força que impulsiona à vida, coragem que enfrenta
todos os medos e temor que desequilibra toda segurança. Revelar é ter
essa percepção de que aquilo que estava oculto pelas diversas formas de
manipulação diária de nosso mundo torna-se agora descoberto, como
outra e estranha palavra por ser tão próxima de nosso primordial
enraizamento. Revelação, neste sentido, designa a emergência de um
conceito de verdade diverso da verdade-adequação, regrada pelos
critérios de verificação e de falsificação: um conceito de verdade-
manifestação, no sentido de deixar ser o que se mostra. O que se mostra
é cada vez a proposição de um mundo, de um mundo tal que eu possa
projetar nele meus possíveis mais próprios. É nessa revelação que os
textos se desdobram, se tornam, porque livres de seus autores (tendência
da pesquisa textual genética), de seus primeiros destinatários (tendência
da escola da redação) e do seu mundo ( tendência da escola das religiões
comparadas, para se tornar um mundo descoberto, no qual desejo
habitar.
126
Das muitas particularidades que apresenta a obra de Antonio Magalhães,
queremos aqui ressaltar o que ele denomina de método da correspondência. O
método proposto por Antonio Magalhães pode ser inicialmente confrontado com o
chamado método da correlação
127
. Para ele, no método da correlação uma
dinâmica pressuposta entre pergunta e resposta, enquanto que na correspondência
parte-se do princípio de que essa relação precisa ser radicalmente superada na
teologia e que precisamos encarar a possibilidade de propiciar um diálogo no qual,
seguindo o conceito de correspondência em matemática, a cada elemento de um
conjunto são associados um ou mais elementos de outro. Em suma:
Numa formulação mais voltada para o mundo da teologia, a cada
elemento considerado da revelação na Bíblia e na tradição teológica,
podem ser associados um ou mais na literatura mundial. A cada
narrativa considerada compreensão da fé, há que se associar outra dentro
da literatura. A cada forma de anúncio de uma verdade considerada
fonte de fé, que se associar outra na experiência das pessoas e nas
interpretações literárias.
128
126
Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 203.
127
Sobre o método da correlação, cf. Paul TILLICH, Teologia Sistemática, p. 57-64.
128
Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 205.
60
No centro do método da correspondência
129
destacaríamos o seu caráter
dialógico, pois a teologia o entra na relação de forma suprema e preserva-se a
alteridade da literatura. Mantém-se, portanto um equilíbrio entre tradição teológica
e literatura. Para Magalhães, abrir o da Bíblia e da tradição seria ufanismo
literário e desconhecimento dos aspectos performativos da religião e da das
pessoas. Ao mantê-las como referenciais únicos de análise, aferição e juízo sobre as
vidas das pessoas estaríamos assumindo compromissos com o claustro teológico da
Igreja.
130
Portanto, a literatura dos poetas e escritores encarna-se no método da
correspondência como um terceiro elemento que, associado aos textos bíblicos e à
tradição teológica, se comporta como reagente imprescindível para a identificação de
novas experiências com Deus e releituras reflexivas da compreensão que a tradição
produziu em torno do cristianismo e suas expressões de fé. Como bem afirma
Magalhães: A literatura assume papel importante, nesse particular, para a teologia,
porque preserva um quadro narrativo da experiência e da história humana.
131
1.3.5. Os escritores e as escrituras
Karl-Josef Kuschel, professor de Teologia da Cultura e Diálogo Inter-
religioso na Universidade de Tübingen, teve sua obra Vielleicht hält gott sich einige
Dichter...: Literarisch-theologische Portränts traduzida para a língua portuguesa em
1999. Destacaríamos o tratamento de cunho metodológico que Kuschel apresenta
para a aproximação entre teologia e literatura. Na parte final da tradução brasileira,
intitulada A caminho de uma teopoética, Kuschel procura estabelecer certas
comparações entre os chamados métodos confrontativo e correlativo. Antes de
promover as tensões entre os dois métodos mencionados, Kuschel ressalta que o
trabalho da teologia não é o de produzir experiências de fé, mas torná-las possíveis
hoje. A legitimidade da teologia afirma Kuschel só pode nascer por meio da
129
Antonio Magalhães estabelece uma distinção entre método da correspondência e modelo da
realização. Para ele, não se deve reconhecer que na literatura somente uma atualização ou
realização de uma mensagem que se encontra codificada de forma mais religiosa na Bíblia. E,
portanto, afirma: não parto do princípio de que a dinâmica da relação se concentre entre significado
do primeiro texto, no caso da Bíblia, e realização do segundo texto, no caso da literatura. Realizar não
é bem aquilo que acontece nos textos bíblicos, mesmo pensando numa perspectiva messiânica. Um
texto nunca é desdobramento de outro, ele é também sua ampliação ou redução. O evento Jesus Cristo
não é mera realização da figura de Moisés, é sua correspondência. Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus
no espelho das palavras, p. 206.
130
Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 205.
131
Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras p. 181.
61
mensagem do Novo Testamento, que se fundamenta em Jesus de Nazaré, o
crucificado e ressuscitado e messias.
132
Portanto:
A criatividade da teologia cristã reside em perscrutar as experiências
de Deus relatadas nos testemunhos originais em todas as suas
dimensões, para então le-las adiante de maneira criativa, de acordo
com as diversas circunstâncias de época.
133
A afirmação de Kuschel, de certa forma, é uma tentativa de blindagem da
revelação de Deus e da tradição teológica do discurso empreendido pela literatura
dos escritores e poetas, pois, para ele, não se pode negar a existência de um conflito
entre a arte e a religião, logo uma espécie de concorrência entre elas.
134
Analisemos a
epígrafe retirada de um texto de Kurt Marti, que Kuschel traz na abertura do último
capítulo de Os escritores e as escrituras:
Talvez Deus mantenha alguns poetas à sua disposição (vejam que digo
poetas!), para que o falar sobre Ele preserve a sacra irredutibilidade que
sacerdotes e teólogos deixaram escapar de suas mãos.
135
O que resta à teologia e a Deus depois de Nietzsche, Auschwitz e das
guerras? Embora esta não seja propriamente uma pergunta de Kuschel, o
deixaremos de registrá-la, porque o que defendemos nesta tese é a possibilidade de
ver renascer da literatura dos poetas e escritores as dimensões próprias das
experiências originariamente religiosas.
O método confrontativo busca, para Kuschel na linha de Kirkegaard e de
Karl Barth opor radicalmente as imperfeições da escritura literatura produzida pelo
ser humano à sagrada palavra de Deus. Cabe aqui retomar literalmente a
compreensão que Kuschel produz:
A teologia cristã poderá utilizar o método confrontativo e distanciar-se
da religiosidade dos escritores e de seus produtos, a partir da posição de
uma teologia antitética da revelação. Ela considerará a crítica feita pelos
132
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 218.
133
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 218.
134
As tensões entre arte e religião são aludidas por Kuschel na primeira parte de seu livro. Para o
teólogo alemão, nos primeiros decênios do século XX, subsiste no imaginário dos escritores dessa
época a necessidade de banir Deus do mundo para considerá-lo um péssimo princípio estilístico.
Destacam-se nessa compreensão autores como Gottfried Benn e Bertold Brecht, por exemplo. Cf.
Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 14-22.
135
Epígrafe de abertura do Livro Os escritores e as escrituras de Karl-Josef Kuschel.
62
escritores ao cristianismo algo deturpado por fatores individual-
biográficos, as visões de mundo de cada um deles, ecléticas e a
compreensão de religião que ai se apresenta, subjetivista. (...) Na melhor
das hipóteses, permitirá que a religião dos escritores tenha alguma
validade como um negativo, em contraste com o qual pode surgir de
maneira ainda mais cabal a verdade da revelação divina em Jesus Cristo.
As perguntas que uma teologia como essa propõe aos escritores são: A
verdade do Deus único não terá sido preterida aqui, em favor das
verdades dos poetas? A seriedade da vontade de Deus não terá sido
ignorada, em favor do ludismo e da falta de seriedade dos poetas? A arte
não terá se transformado no único instrumento de verdade? Deus não
acaba por abandonado às experiências subjetivas do ser humano? Ou
seja: a subjetividade e a estética modernas não terão vencido aqui a
verdade eterna do Deus vivo? A experiência vem substituir a revelação?
Não é o homem que se torna aqui a constante, e Deus a variável? A
experiência vem substituir a revelação? A antropologia não substitui a
teologia? E a estética, a transcendência?
136
Em posição às características do método confrontativo está o método da
correlação, que foi ricamente desenvolvido por Paul Tillich.
137
Para Kuschel, Paul
Tillich entendeu plenamente as condições para o estabelecimento de relações e
referências entre revelação e realidade humana. O todo correlativo entende que as
respostas alocadas no evento da revelação podem ter sentido pleno na medida em
que estiverem também em correlação com perguntas pertencentes ao todo da
existência humana.
138
A teologia, diante da correlação, ofereceria uma análise da
situação humana decorrente das perguntas existenciais do próprio humano, como
também teria a tarefa de apontar que os mecanismos simbólicos da fé cristã são as
respostas para tais perguntas.
139
Quando fizemos menção à Constituição Pastoral
Gaudium et spes, do Concilio Vaticano II, fazíamos também alusão ao esforço que
arte e a literatura promovem para entender a condição humana em um determino
momento histórico.
A teologia quando vista por este viés estará, para Kuschel, aberta para toda
crítica ao cristianismo por parte do discurso dos poetas e escritores, pois a literatura
será mais seriamente compreendida como instância reveladora de experiências
humanas autênticas. Haverá para a teologia a tarefa de ser também autocrítica de si
mesma, porque se colocará na frente de um espelho para se perguntar que
transformações precisa sofrer para responder mais adequadamente aos escritores,
136
Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 218-219.
137
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 57-64.
138
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escritura , p. 219.
139
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 57-64.
63
mas também para responder às experiências humanas que ela (a teologia) num
mundo em frangalhos como foi os primeiros decênios do século XX no caso da
Europa não conseguia mais abarcar.
Sistematicamente, o método confrontativo reduz para Kuschel o diálogo
entre teologia e literatura a um conflito entre ideologia e verdade. Nele, a literatura
não poderia ser vista como forma não-teórica de conhecimento e acesso à verdade e
os poetas teriam seu discurso silenciado pelas inverdades que compõem seus textos.
Já o método da correlação, embora considerando sensivelmente os dados emanados
da cultura, impõe um jogo de perguntas e respostas. A debilidade que este método
aponta, na visão de Kuschel, é que ele não se dá conta de que as perguntas últimas do
ser humano não são suspensas pela revelação, mas formuladas pela própria
revelação.
140
Diríamos que essas possíveis perguntas existenciais, da maneira como
Kuschel as entende, são na verdade condicionadas pela revelação.
Vendo-se diante de um impasse, Kuschel propõe o método da analogia
estrutural. Com esse método
[...] torna-se possível considerar seriamente também a experiência e
interpretação literária em suas correspondências com a interpretação da
realidade, mesmo quando a literatura não tem caráter cristão ou
eclesiástico. E buscar correspondências não significa cooptar o objeto
analisado, apropriar-se dele. Pensar em termos de analogias estruturais
significa justamente evitar que a interpretação literária da realidade seja
cooptada como cristã, semi-cristã ou anonimamente cristã. Quem pensa
estrutural-analogicamente é capaz de encontrar correspondências entre o
que lhe é próprio e o que lhe é estranho. Quem pensa segundo esse
método constata também o que é contraditório nas obras literárias em
relação à interpretação cristã da realidade, ou seja, o que é estranho à
experiência cristã de Deus. Pois justamente quem consegue reconhecer e
aceitar o outro como outro, o estranho como estranho, torna-se capaz
diante da contradição, capaz de protestar e de delinear uma alternativa.
Só assim a relação entre teologia e literatura se transforma em uma
relação de tensão, diálogo e disputa acerca da verdade.
141
Para Kuschel, somente pensa em correspondências estruturais quem percebe a
tensão, a ligação e as contradições; ou seja, quando se consegue acentuar os traços
comuns, mas também sem vacilar no apontamento dos traços distintivos entre o
discurso da teologia cristã e dos escritores e poetas.
140
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 221.
141
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 222.
64
Percebemos que Kuschel permanece, de forma sutil, reivindicando para a
teologia cristã o lugar de padrão para interpretação das experiências humanas com
Deus. Há um congelamento de uma determinada experiência cristã demarcadora de
todas as outras posteriores a ela. O que vence na observação teológica de Kuschel é o
fator da anterioridade. Basta dizer que, nas palavras dele, o que se objetiva (com a
analogia estrutural) é uma teologia que, estabelecendo determinados critérios
literários, possa produzir um discurso confiável do Deus cristão.
142
No fundo,
Kuschel reconhece que, em última instância, no diálogo entre teologia e literatura o
que se deve ver é o aclaramento do mistério da existência humana. Por isso devemos
sempre nos perguntar: Qual das duas vislumbrou-o mais fundo? Quem analisou os
abismos da existência humana de forma mais exata? Quem descreveu seu mistério de
forma mais adequada? Quem terá lançado o olhar mais isento por trás das máscaras,
papéis, e poses da existência dos homens e das mulheres? Quem levou o ser humano
a confrontar-se de maneira mais drástica consigo mesmo?
143
Como disseram alguns de vossos poetas. Eis as palavras do apóstolo Paulo
no Areópago. Para Kuschel, este trecho do livro dos Atos, capítulo 17, é o nexo
necessário entre a tradição bíblica e as artes. Esta é a única passagem no Novo
Testamento em que os poetas são mencionados. Kuschel, portanto, entende que a
existência de um nexo entre arte e religião deve ser respeitado por dois grandes
motivos. O primeiro vem da necessidade de jamais confundir a palavra de Deus com
a dos textos dos poetas e escritores, mesmo que a teologia leve a sério o discurso da
literatura para uma melhor compreensão do homem e Deus nos dias de hoje. O
segundo nasce do grito que deve ecoar quando a crítica teológica se tornar hostil para
com a arte e justificação para a imbecilidade que também serviu para afastá-las.
144
Reportando-se a J. Roloff, Kuschel recupera a seguinte afirmação:
As palavras dos poetas ganham aqui a função de comprovação da
Escritura! Da convergência entre as palavras dos poetas e a Palavra da
Escritura, Lucas conclui que as primeiras também podem ser
reconquistadas como testemunho normativo da verdade sobre Deus, o
mundo e o ser humano, e de forma semelhante ao que se dá com a
Palavra da Escritura. Lucas ainda desconhece quaisquer conceitos
teológicos formalizados da revelação, e pode tomar as palavras dos
poetas, sem qualquer prevenção, como testemunhos da unidade e da
142
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 223. (Grifo nosso)
143
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 228.
144
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 229.
65
integridade da verdade em que Deus se fez comunicar a suas criaturas,
os homens e as mulheres.
145
Tomaremos por empréstimo uma questão de José Carlos Barcellos: será que
as tensões entre teologia e literatura, as correlações, os confrontos, as
correspondências e as hermenêuticas transtexto-discursivas não seriam tentativas de
escrever um capítulo que foi esquecido, tanto na história da teologia quanto na
história da literatura?
145
Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 230. Cf. J. ROLOFF, Apostelgeschichte-
Kommentar, p. 264, 1981.
66
1.4. Tópicos de religião, antropologia literária e arte
Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
n
ão falaria em Deus nem no Pecado
muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas sedu
ções,
n
ão citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terr
íveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas.
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a inf
ância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema
ainda que de Deus se aparte
um belo poema sempre leva a Deus!
M
ário Quintana
A busca pela identificação dos aspectos religiosos da cultura é
comprometidamente devedora dos esforços de Paul Tillich. O otimismo de Paul
Tillich recaía sobre a possibilidade da percepção do(s) elemento(s) revelador(es) de
uma substância espiritual que fosse capaz de indicar, a partir da cultura e de suas
múltiplas expressões, algo incondicional e sagrado, mesmo que sua interpretação da
realidade estivesse confrontada com um ambiente claramente desteificado tal como
os primeiros decênios do século XX.
146
O empenho de Paul Tillich em construir uma
análise do dado religioso na cultura considera, portanto, como ele mesmo aponta, o
desaparecimento da fenda que supostamente separa o sagrado do secular.
147
No pensamento de Paul Tillich, a percepção de que a cultura encontra-se
impregnada de um conteúdo que assume um sentido incondicional, sagrado ou
absoluto pode ser manifestamente revelada através das artes. A noção tillichiana de
teonomia seria responsável pela estrita relação entre a revelação de conteúdos
146
Kandinsky faz o seguinte comentário crítico em sua obra de 1910, intitulada Do espiritual na arte:
Nessas épocas mudas e cegas, os homens atribuem um valor especial e exclusivo aos êxitos
exteriores. Apenas os bens materiais têm importância; cada progresso técnico que serve e pode
servir ao corpo é saudado como uma vitória. As forças puramente espirituais passam despercebidas.
Cf. KANDINSKY, Do espiritual na arte, p. 37.
147
Cf. Paul TILLICH, Teología de la cultura y otros ensayos, p. 45.
67
religiosos e cultura. No interior da cultura, tal responsabilidade pode recair sobre as
manifestações artísticas. O que Tillich chama de cultura teônoma tem a ver com o
sentido transcendente expresso e que se encontra presente em determinados
elementos da cultura, pelo fato mesmo de tal sentido ser o fundamento da cultura.
Portanto, a revelação do sentido incondicional de uma manifestação artística o
poderá se comportar como um corpo estranho no interior de uma cultura teônoma,
pois para Tillich a religião é a substância da cultura e a cultura a forma mesma da
religião, que por seu turno se manifesta através de múltiplas expressões como nas
artes.
Religión, como preocupación última, es la sustancia que confiere
significado a la cultura, y esta es la totalidad de las formas em que se
expresa la preocupación fundamental que constituye la religión. Em
resumen: la religión es el contenido de la cultura, y la cultura es la forma
de la religion.
148
A importância de se reconhecer a dimensão teônoma da cultura pode ser
atribuída ao evento da secularização e pela conseqüente perda dos referenciais
transcendentes da vida que tal advento provocou. Paul Tillich analisava a fragilidade
do mundo ocidental salvaguardando, porém, uma compreensão teônoma da cultura e
conseqüentemente de suas expressões artísticas, tanto que via, nos movimentos
expressionista e surrealista, com suas aparentes representações de um real
desmaterializado, a manifestação de certa base religiosa relacionada a uma rebelião
que se produzia a partir do lado vital humano e que fazia oposição ao idealismo
burguês (na arte e na literatura).
149
Uma análise teônoma da cultura identificava, sem
fazer qualquer referência à religião organizada, o elemento religioso oculto nesses
movimentos que eram considerados anti-religiosos e anticristãos. Para Tillich, em
todos esses movimentos havia certa preocupação suprema, incondicional, decisiva,
absolutamente séria e, portanto, sagrada, mesmo ao se expressar por meio de termos
puramente seculares.
150
Uma observação de Kandisnky serve de complemento ao
apontamento de Paul Tillich quando aquele afirma que a religião, a ciência e a moral
são abaladas pela rude mão de Nietzsche e, quando os apoios externos que
sustentavam tais dimensões ensaiam desmoronar, o homem passa a desviar seu olhar
148
Paul TILLICH, Teologia de la cultura y otros ensayos, p. 45.
149
Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 86.
150
Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 86.
68
das contingências exteriores para si mesmo e que as principais conseqüências dessa
movimentação são assimiladas pela literatura, pela música e pela arte. Embora tais
manifestações refletissem uma grande escuridão que se anunciava, deixavam por
outro lado pressentir certa grandeza e desviavam-se, naquela época, do conteúdo sem
alma da vida presente.
151
Talvez seja essa a constatação que Kandinsky encontra para
o esvaziamento de um conteúdo presentificador daquilo que ele chama de espiritual
na arte, ao afirmar que o objeto material que a arte busca deve ser o próprio conteúdo
da arte, sua essência, sua alma, sem a(s) qual(is) os meios que a servem nunca serão
mais do que órgãos lânguidos e inúteis. Esse conteúdo, afirma Kandinsky, a arte
pode captá-lo e exprimi-lo claramente com os meios que lhe pertencem.
152
A experiência de um vácuo afirmou-se como uma necessidade eminente de
perguntar em que dimensão da realidade encontrava-se uma porta para uma
experiência com o incondicional. Tillich argumentou que pouca coisa restava à
civilização ocidental que não representasse a presença de um vazio. Mesmo uma
teologia da cultura apontava, com base na maioria das expressões culturais, uma
experiência do fim e um de profundo abismo. Contudo, as experiências radicais do
vazio e de um mundo desmaterializado municiam-se de um poder que habita,
segundo Tillich, num fundamento mais profundo que a própria cultura. Tal
fundamento é a profundidade de uma preocupação suprema. Mesmo dentro de num
quadro em que se experimenta o vazio, as manifestações artísticas conseguem,
através da criação, expressar o que Tillich chama de vazio sagrado. Uma afirmação
deve, portanto, ser apresentada: a experiência do fim, do vazio e de tudo que
representa determinados estados de dissolução da concretude da vida não afetam,
para Paul Tillich, a idéia de teonomia.
153
A compreensão tillichiana de que a cultura é originalmente teonoma desfaz
também a caduca tentativa de situar a religião numa única dimensão do espírito
humano ou como uma das funções dele. Parece-nos, de maneira muito clara, que
Tillich recusa a idéia de enquadrar a religião em uma dimensão isolada do espírito
humano como a moral e a estética, por exemplo. Diante de um mundo em franco
processo de desteificação, como aquele que se revelava para Tillich durante as
primeiras décadas do século XX, cabe, portanto, e assim cremos, uma pergunta pela
151
Cf. KANDINSKY, Do espiritual na arte, p. 45.
152
Cf. KANDINSKY, Do espiritual na arte, p. 38.
153
Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 88.
69
religião, que para ele não poderia ser uma função ou estar apenas numa dimensão do
espírito, porque a religião no es una función especial de la vida espiritual del
hombre, sino la dimensión de la profundidad en todas sus funciones.
154
Essa
compreensão sustenta a metáfora que faz existir, no nível do sentido, uma
comparação eqüitativa entre o que o próprio Tillich chamou de Realidade Última e o
que também nomeou de Incondicional. Como afirma Etienne Higuet,
esse sentido aquele que expressa a incondicionalidade por meio de
símbolos e mitos presentes nas manifestações artísticas ou por meio dos
dogmas da própria teologia, não pode ser apreendido por uma análise
objetiva e científica: é acessível a uma percepção ou intuição
imaginativa e pressupõe uma atitude de participação pessoal e
existencial no Fundamento do Sentido, que é ao mesmo tempo a
Realidade Última.
155
A estética, por meio de suas expressões, conseguiria presentificar o
Incondicional mesmo que seu desejo não fosse o de mantê-lo sob seu domínio. A
experiência estética revelaria o Incondicional através do impacto que a obra de arte,
por exemplo, provoca sobre o sujeito. Ao apontar para o abismo que separa o ser
humano de sua Realidade Última, as expressões artísticas apontariam também para o
senso de finitude, traço característico da condição humana, e também para
possibilidade transcendê-lo. Portanto, a arte seria portadora da propriedade de nos
impressionar e de nos fazer conscientes de algo (que pode ser o Incondicional ou o
que Tillich chama de Realidade Última) que, de outra forma, não seríamos capazes
de atingir.
156
Por isso o próprio movimento expressionista foi muito caro a Paul
Tillich não porque se configurava como uma degenerada expressão artística, mas
porque era portador de elementos que, através da desfiguração da superfície do real,
representavam a restauração do poder do simbólico e a busca pelo fundamento da
realidade, num momento específico e historicamente construído.
157
Seria a religião,
por meio das expressões criativas do ser humano, o estado em que o ser humano
passaria ser tomado por algo incondicional, sagrado e absoluto, em suma, sua
preocupação última. A religião, se vista pelas lentes tillichianas, deixaria de ser um
154
Cf. Paul TILLICH, Teología de la cultura y otros ensayos, p. 15.
155
Cf. Etienne HIGUET, A atualidade da teologia da cultura de Paul Tillich, Revista Eclesiástica
Brasileira, nº. 213. Petrópolis, ITF, 1994, p. 52.
156
Cf. Carlos Eduardo B. CALVANI, Teologia e MPB, p. 80.
157
Cf. Paul TILLCH, A era protestante, p. 96.
70
lugar de enraizamento de sistemas simbólicos rígidos ou de ritos para se tornar o
espaço mesmo de nossa preocupação suprema.
158
Como afirma Paul Tillich:
La religión es la dimensión de la profundidad en todas ellas, es el
aspecto de la profundidad en la totalidad del espíritu humano [...] En el
sentido más amplio y fundamental del término, religión es preocupação
última. Y la preocupación última se manifiesta en absolutamente todas
las funciones creativas del espíritu humano.
159
As reflexões de Paul Tillich nos deixam várias portas abertas para a
identificação dos aspectos religiosos particulares à literatura de Machado de Assis,
embora privilegiasse, em suas análises, as artes plásticas. Cabe-nos a tarefa de
entender a dinâmica interna da presença do aspecto religioso e a forma pela qual se
traveste, se metamorfoseia, se deixa representar ou se expressa na estética
machadiana.
Determinadas manifestações artísticas dos séculos XIX e XX recriaram de
maneira peculiar as aspirações e os desejos mais profundos de um ser humano que
permitiu ser retratado ou criado artisticamente pela literatura, isto porque a
imaginação do artista não inventa arbitrariamente as formas das coisas; ela nos
mostra estas formas em sua verdadeira imagem, fazendo-as visíveis e
reconhecíveis.
160
A insistência da imagem humana na literatura nos encaminha,
como sugere Antonio Blanch, para a formação de uma antropologia literária. Uma
antropologia que é construída pela capacidade criativa e enunciadora que a literatura
tem quando projeta artisticamente determinadas imagens humanas. O estudo
apresentado por Antonio Blanch em sua obra El hombre imaginario trouxe uma
importante contribuição ao processo de sistematização de certos temas presentes na
literatura ocidental, pois entender a literatura para além dos seus aspectos formais e
estruturais significa também acentuar o seu conteúdo, sua intencionalidade e
principalmente seu campo de significação. Isto porque:
[...] la literatura ha ejercido en la cultura de todos los pueblos y de todas
las épocas la función primordial de traducir simbólicamente las
experiencias, más o menos profundas, del individuo humano, con la
evidente intención de comunicarlas a los demás.
161
158
Cf. Paul TILLICH, A era protestande, p. 87.
159
Paul TILLICH, Teología de la cultura y otros ensayos, p. 16-17.
160
Cf. Ernst CASSIRER, Antropología filosófica, p. 218.
161
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 9-10.
71
A idéia de construção de uma antropologia literária nos serve, portanto, como
abertura para a compreensão de uma das múltiplas faces do humano e de suas
experiências de maior profundidade. Experiências que podem ser interpretadas como
de natureza religiosa. Diante do que Antonio Blanch chamaria de forças de coesão da
literatura e, em nosso caso, tal coesão dar-se-ia através da presença de certa imagem
do ser humano na literatura machadiana, destacaríamos as que apontam para o
aspecto que demarca a incondicionalidade da vida do humano no espaço ficcional.
Sem dúvida, o desejo de viver, por exemplo, apresenta-se como um traço da imagem
humana que se metamorfoseia em muitas outras expressões notadamente humanas e
que podem perfeitamente ser interpretadas como expressões incondicionais no
sentido tillichiano. Portanto, tais experiências podem ser relacionadas aos humanos
criados artisticamente como experiências fundamentais. Assim, podemos entender
que a literatura é, de algum modo, o lugar de sobrevivência de determinadas
experiências relacionadas à existência humana. Neste locus de sobrevivência residem
certamente múltiplas formas de experiência religiosa. A literatura e tantas outras
manifestações artísticas têm conservado para cada época histórica um maravilhoso
arcabouço de imagens e representações que correspondem aos mais genuínos desejos
e temores do ser humano.
162
Uma advertência, porém, deve ser considerada: não
podemos correr o risco de ver a imagem do ser humano atomizada, já que, durante a
idade moderna, as representação estéticas incumbiram-se de apresentar importantes e
incontáveis faces do enigma humano; todavia temos de reconhecer que tais
representações, mesmo que múltiplas, não são reproduções de uma realidade dada.
Constituem uma das vias que nos conduzem a uma visão mais objetiva das coisas, do
nosso entorno e principalmente da vida humana. Trata-se, pois, não de uma imitação,
mas de uma forma de desvelamento de uma realidade.
163
Por isso, entendemos que as
manifestações artísticas as que chamaríamos de mais autênticas renunciam ao
simples caminho de emulação da realidade dada para assumir um processo de
recriação e de interpretação dessa mesma realidade, o que gera, conseqüentemente, a
revelação de uma outra realidade. Por exemplo, engana-se artisticamente ou não verá
a obra de arte, afirma Ortega y Gasset, quem procura comover-se com os destinos de
João e Maria. A questão subjacente é que só pode se comover com a desgraça
162
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 27.
163
Cf. Ernst CASSIRER, Antropología filosófica, p. 213-214.
72
humana presente na literatura ou, por exemplo, com os destinos das personagens dos
irmãos Grimm, enquanto expressão artística, quem a toma como realidade. Todavia,
a arte ou o objeto artístico poderá ser artístico na medida em que não for
totalmente real.
164
Construir algo que não seja cópia do natural e que, não obstante,
possua alguma substantividade, implica, segundo Ortega y Gasset, o dom mais
sublime.
165
Poderíamos dizer, na esteira de Ernst Cassirer, que as expressões
artísticas podem ser também uma intensificação da realidade. Paul Tillich entende
que a intenção de encontrar a verdade deve ser apenas um elemento na função
estética da arte e a intenção principal deve ser a de expressar qualidades do ser que
podem ser captadas somente pela criatividade artística. O conflito que é
brilhantemente problematizado por Tillich e que também retoma o ponto de vista de
Ortega y Gasset tem a ver com o que é autenticamente artístico. Para Tillich, poder-
se-ia falar da verdade ou inverdade artística. Todavia, entendia ser melhor falar da
autenticidade da forma expressiva ou de sua inautenticidade. A arte, segundo Tillich,
pode ser inautêntica porque copia a superfície em vez de expressar a sua
profundidade; ou porque expressa a subjetividade do artista criador em vez de
expressar seu encontro artístico com a realidade; e autêntica quando expressa o
encontro da mente e mundo no qual uma qualidade, de outra forma escondida de uma
porção do universo (e implicitamente do próprio universo), está unida ao poder
receptivo doutro modo escondido (e implicitamente da pessoa como um todo).
166
Por isso, o olhar que vamos perspectivar sobre a literatura machadiana não
deve se manter necessariamente em torno dos aspectos que a tornam impecavelmente
verossímil; todavia, devemos mantê-lo sobre os aspectos que dão à estética de
Machado de Assis determinada força de coesão temática para que se consiga,
portanto, encontrar um caminho até as particularidades de natureza religiosa, que
certamente não estão à primeira vista na superfície do texto. Um elemento, portanto,
representaria de maneira modelar as expressões humanas construídas artisticamente
no espaço literário de Machado de Assis. Este elemento, inicialmente suspeitamos,
manifesta-se como um desejo fundamental, que por sua vez se revela sob a forma de
um árduo desejo de viver, de ser e de permanecer, em oposição à possível condição
existencial de não-ser.
164
Cf. José ORTEGA Y GASSET, A desumanização da arte, p. 27.
165
Cf. José ORTEGA Y GASSET, A desumanização da arte, p. 43.
166
Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 434.
73
A tentativa de Blanch de mapear a imagem humana dentro do espaço literário
do mundo moderno e aqui por nossa conta incluímos o legado machadiano fez
com que entendêssemos que a expressão artística deste momento não estava mais
preocupada em representar somente os ideais ou os desejos de auto-realização do ser
humano, todavia expressava de maneira contundente as fatalidades da idéia de
progresso em todas as suas dimensões (ciência, política, economia, religião etc.).
Este mesmo espaço literário também dá lugar a um tipo de herói que tentou
separar-se das leis da moral burguesa, elegendo-se a si mesmo como lugar de
desenvolvimento dos valores da própria consciência individual frente a uma
sociedade inautêntica e negadora do humano.
167
Esta imagem humana poderia ser
bem representada, segundo Antonio Blanch, pelas personagens de Nietzsche
(Zaratustra, Dionísio e o Super-homem) e as suas evidentes exaltações das
expressões vitais. uma outra imagem humana representada no espaço literário
que é a do desencanto. A imagem do ser humano triste e degradado é uma imagem
da época pós-romântica. O precursor deste movimento, que faz desta imagem
humana uma imagem possível na literatura do século XIX, é Charles Baudelaire.
Él fue, en efecto, uno de los en acusar en su alma el desencanto ante el
progreso material del siglo, que generaba una alarmante decadencia
espiritual y um triste embotamiento de aquella sensibilidad y de aquellas
vivencias primarias del individuo, que el romantismo había restaurado
con tanto vigor.
168
Para Baudelaire, o herói seria o homem da multidão, o homem-massa,
marginalizado pelo progresso e por ele inativo e derrotado. As personagens de
Baudelaire assumiram a forma do homem desfigurado pela vida cosmopolita. A
literatura de Baudelaire apresentava conteúdo desencantado, porém com uma ênfase
em sua forma sedutora. A beleza estética transforma-se, num espaço sem Deus, no
lugar de onde se podia esperar a salvação do indivíduo. Podemos dizer que a vida das
personagens de Baudelaire se mantém presentificada num espaço de profunda
desteificação ao apresentar, por meio de sua miséria espiritual e desapego moral, a
imagem de um ser humano enraizado na volatilidade do mundo. O poema em prosa
de Baudelaire, intitulado A perda da auréola, certamente consegue dizer mais que
nossa breve apreciação.
167
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 114.
168
Antonio BLANCH, El hombre imaginario., p. 115-116.
74
O quê! Você aqui, meu caro? Você, num lugar desses! Você bebedor de
quintessências!, O comedor de ambrosia! Francamente, é de
surpreender.
Meu caro, bem conhece o pavor que tenho dos cavalos e dos coches.
Agora há pouco, quando atravessava apressado o bulevar, saltando sobre
a lama, através desse caos movente em que a morte chega a galope, por
todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, num movimento
brusco, escorregou de minha cabeça para o lodo do macadame. Não tive
coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas
insígnias do que quebrar os ossos. E depois pensei comigo, males
que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações
baixas, entregar-me à devassidão como os simples mortais. E aqui estou
eu, igualzinho a você, como pode ver.
Deveria ao menos dar parte do desaparecimento dessa auréola,
comunicar o ocorrido ao comissário.
Ah, não. Me sinto bem. você me reconheceu. Aliás, a dignidade me
aborrece. Depois, penso com alegria que algum poeta medíocre vai
achá-la e com ela, impudentemente, se cobrir. Fazer alguém feliz, que
prazer! E principalmente um felizardo que faça rir! Pense em X ou Z!
Hein? Como vai ser engraçado!
169
Ao lado do desencantamento das personagens de Baudelaire e da
desumanização das personagens de Beckett frente a um mundo colapsado daríamos
ressalto à imagem do homem de expressão dionisíaca e a do homem do absoluto,
como os conceitua Antonio Blanch. O homem de expressão dionisíaca surge, para
Blanch, num cenário onde as coordenadas culturais recaíam sobre as múltiplas
formas de repressão sexual, sobre o processo de industrialização do mundo e sobre o
esgotamento do racionalismo.
170
Como já dissemos, Nietzsche é o grande
representante desta importante corrente cultural que fez renascer a liberdade artística
diante de tantos processos repressores. A criação de humanos portadores de energias
vitais e poderes sobre-humanos foi uma das principais contribuições de Nietzsche à
imagem vitalista do homem.
Capturar a imagem do homem absoluto significa compreender que o ser
humano, de algum modo e em algum momento de sua vida, deixa-se mover em
direção à indefinível presença ou ausência de algo que o transcende.
171
O homem
absoluto já que as investigações de Blanch vão em direção à construção de uma
antropologia literária aparece na história da literatura carregando consigo a
polivalência do próprio termo absoluto. Algumas imagens deste traçado
169
Charles BAUDELAIRE, O spleen de Paris, p. 137-138.
170
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 190.
171
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 409.
75
antropológico criado por vários escritores remetem Blanch à percepção daquilo que
chama de absoluto. Em linhas gerais, por absoluto, em efeito, segundo Blanch,
podemos entender como o ilimitado, tanto no tempo (o eterno) como no espaço (o
infinito).
172
Muitos artistas explicitamente religiosos expressaram a dimensão
absoluta de suas personagens a partir de uma realidade supranatural. Outros
escritores, de maneira muito particular, expressaram o absoluto através da
perplexidade de viver entre a nostalgia e o pressentimento de uma possível presença
do absoluto ou ainda através do temor de um vazio total.
173
Esta imagem humana
presente no espaço artístico de alguns escritores revela uma particularidade do nosso
espírito humano que pode ser encontrada na relação entre ser e não-ser. Na galeria de
tais escritores, estaria, notadamente, Rilke. Determinados aspectos da literatura de
Rilke conseguem mostrar que o ser humano, desde sua solidão e seu abandono
existencial, experimenta uma profunda tensão entre a realidade visível (insatisfatória)
e o interior invisível. Daí surge a necessidade de transformar a primeira realidade.
Uma análise bem atenta da literatura de Rilke perceberá uma espécie de ruptura, que
vai da exaltação à função e à orientação que Deus tinha de forma bem definida para o
ser humano até à supressão total da palavra Deus em seu espaço poético.
174
Entretanto, o desaparecimento das referências a Deus problematizam ou escondem
de maneira sutil a questão religiosa subjacente aos seus poemas. O absoluto no
espaço literário de Rilke, afirma Blanch, é de todo imanente à existência; é a forma
pela qual a existência se intensifica e se plenifica.
175
Tal imanência do absoluto pode
ser vista nitidamente no fragmento abaixo:
Eu agradeço, mas vou ficar em meu leito,
vou tirar proveito
deste mundo aqui
176
As Elegias de Duíno parecem também, de alguma maneira, reverenciar a
permanência do homem na efemeridade desse mundo. na VII Elegia uma
172
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario., p. 414.
173
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 421.
174
Ver o excelente trabalho de análise elaborado por Karl-Josef Kuschel. Karl-Josef KUSCHEL,
Rainer Maria Rilke e as metamorfoses da essência religiosa. In. Os escritores e as escrituras: retratos
teológico-literários. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
175
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 422-423.
176
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 70.
76
evidente resposta a certo tipo redenção e ao mesmo tempo há a celebração de uma
vida ancorada na imanência:
[...] Não, não acrediteis que o Destino
seja mais do que a inf
ância e do que ela contém;
quantas vezes o amado ultrapassastes, ofegando,
ofegando ap
ós a corrida venturosa, sem outro fim
que o livre espa
ço. Estar aqui é esplendor. E vós
sab
íeis, ó jovens, e também vós, decaídas
de apar
ências indigente, vós, ulceradas em ruas miseráveis,
abertas ao abandono.
177
A sétima elegia não desaprova a pertinência da revelação de Jesus Cristo
como salvador da humanidade. Entretanto, reconhece que o estar aqui é uma espécie
de resposta à condição trágica do ser humano e que pode haver uma via para a
compreensão do homem no mundo que esteja além da concepção cristã de salvação.
A resposta à preocupação última do ser humano vem da diluição de um porvir e da
emergência de uma imanência radical: Não, não acrediteis que o Destino seja mais
do que a infância [...]. As representações da experiência do absoluto que não
estejam alinhadas aos pressupostos da teologia cristã (ao mistério) não devem ser
simplesmente consideradas como pretexto para o esvaziamento da mensagem cristã.
Talvez a própria revelação de Deus ultrapasse em extensão e magnitude a maneira
pela qual a teologia quis entendê-la e cristalizá-la. Erram os que entendem que as
experiências em nível incondicional podem emergir nos esquadros eclesiais, que
por sua vez são retro-alimentados por uma teologia da Igreja condicionadora. Há um
fragmento no Livro da vida monástica, de Rilke, que expressa de forma literária o
que afirmamos agora, o que significa também uma compreensão muito particular de
Deus.
N
ão queres brigar com toda astúcia
Nem queres buscar o amor da luz;
pois n
ão te despertam qualquer atenção
os crist
ãos.
E nada de igrejas que circunscrevam a Deus
como um refugiado, e que lamuriem ao ouvido seu
como animais feridos e presos
177
RILKE, As elegias de Duíno, p. 67 (VII Elegia). Romano Guardini afirma que em Rilke há, em sua
última fase, uma intensa vontade de abolir toda referência transcendente da revelação para dar à
existência do ser humano um fundamento exclusivamente terreno. Cf. Romano GUARDINI, O fim da
idade moderna, p. 85.
77
as casas dão a todos boas-vindas
mas um sentimento de sacrif
ício sem fim
trafega em mim, em ti, no que fazemos.
Nada de esperar o al
ém, lançar o olhar adiante;
Apenas o desejo, ante a morte, de n
ão a profanar,
e de manter-se sol
ícito nesse mundo, e atuante,
para n
ão ser mais novo às mãos dela quando lá [...]
178
(I, 329)
Paul Tillich também criticou duramente o protestantismo quando este, de
certa forma, transformou Deus em uma pessoa ao desprezar os elementos não
pessoais presentes no ser humano, como a mística e o lado vital, em razão da
consciência. Certo excesso de racionalismo, assim como a restrição de outras
representações e manifestações de Deus fizeram com que o próprio Deus se
transformasse numa pessoa, embora com uma personalidade autônoma ao lado de
outras personalidades, excedendo-as apenas em poder e valor.
179
O que Tillich
criticou foi o desaparecimento da dimensão simbólica de onde Deus emerge, dentro
da tradição cristã, como Realidade Última. Queremos afirmar que é necessário
pensar que as experiências com Deus podem ultrapassar os fatores fundacionais das
experiências religiosas apresentadas e construídas pela tradição cristã. De certa forma
é isto que a literatura de Rilke afirma ao dizer: E nada de igrejas que circunscrevam
a Deus [...].
A pretensão de apontar com tamanha densidade as imagens humanas que
surgiram nas obras literárias de diversos autores do mundo ocidental certamente não
dá conta de dizer o todo que o ser humano representa; em outras palavras, sabemos
que não é possível traçar uma imagem unívoca e verdadeira do ser humano (homem
ou mulher). A verdade que existe nesta odisséia é que este ser humano, exposto no
interior de mais de vinte séculos de história da literatura, permitiu que fosse
fotografado pelas mãos de escritores e poetas.
Embora Antonio Blanch tenha omitido de suas análises os textos literários da
Bíblia, não nos parece haver problemas em perceber que a presença de uma
experiência religiosa num texto literário ou considerado sagrado não se limita à
178
Para Karl-Josef Kuschel este poema representa uma fase de Rilke cuja estética revelava uma
evidente vontade de recuperação do discurso sobre Deus por meio da literatura. Depois do
despovoamento do céu através da recepção da morte de Deus como Nietzsche a preconizou, Kuschel
compreendeu que esta fase de Rilke buscava, sobretudo, uma acomodação da realidade Deus, mesmo
que debaixo de certas restrições, no âmbito da literatura. Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as
escrituras, p. 95.
179
Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 90-91.
78
reprodução sistemática das experiências que as personagens que compõem esses
textos realizaram. Há nos textos sagrados imagens singulares que revelam muitos
aspectos do ser humano literariamente construído. Talvez o diagnóstico mais preciso
dessa omissão apenas nos revele com alguma verdade o distanciamento existente,
talvez agora mais evidente, entre literatura sagrada e a dos escritores e poetas.
79
CAPÍTULO II
EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E A LITERATURA MACHADIANA
[...] Digo te que tens uma raiz de má erva no coração;
esta é a cruel verdade [...]
A poesia trágica pode fazer do assunto uma
ação teatral; mas o que a moral e a religião reprovam,
não deve achar guarida na alma de um homem
honesto e cristão.
Pe. Melchior
2.1. Recepção da antropologia machadiana
Já não podemos mais falar de maneira tão simples em determinação de temas
religiosos na literatura por entender, depois do que já foi exposto, que elementos
muito complexos que justificam uma interpretação da(s) expressão(ões) religiosa(s)
de um ou num texto literário. O exemplo mais próximo do que estamos afirmando é
a própria estética de Paul Tillich. Cremos, antes de tudo, que a busca pelo religioso e
de suas múltiplas configurações de manifestação no espaço das expressões artísticas
são, antes de qualquer análise, devedoras de uma perspectiva hermenêutica, mas não
estritamente. Não queremos com essa afirmação subtrair o que foi possível
compreendermos da estética de Paul Tillich. Queremos dizer que a dimensão
religiosa subjacente às expressões artísticas podem não prescindir ao apelo por um
processo interpretativo que eleve à superfície da realidade o que antes só poderia ser
percebido pela intuição. Trata-se, em outras palavras, de uma questão de óptica. Para
ver o que desejamos enxergar, levados inicialmente ao objeto de análise pela
80
intuição, é necessário a acomodação da nossa visão por meio de processos
interpretativos.
180
É necessário mirar.
Realizamos nossa primeira aproximação do texto machadiano por meio do
romance Dom Casmurro, obra de 1899, com a elaboração do texto intitulado Fuga
da promessa e nostalgia do divino. Já que nosso atual interesse em torno da obra
machadiana é o de explicitar a evidência de uma autêntica experiência religiosa
advinda mais propriamente da antropologia do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas, talvez antes disso, nos caibam duas tarefas, a saber: 1. apresentar algumas
críticas a partir de certos trabalhos sistemáticos que se apropriaram do texto
machadiano como campo de reflexão. 2. apresentar os nossos pressupostos de
investigação, que se iniciam nas obras da primeira fase culminando no romance
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e que suspeitam da existência da
manifestação de uma experiência religiosa do ponto de vista da antropologia
machadiana.
Comecemos por um trabalho de 1939. A obra de Bressane Araújo, Os
aspectos religiosos na obra de Machado de Assis, foi publicada por ocasião do
centenário do nascimento de Machado de Assis, como primeira tentativa de analisar
as questões religiosas na literatura machadiana. A tentativa de Bressane Araujo de
desvendar o mistério da religião na obra de Machado de Assis foi construída com
base em inúmeros recortes biográficos do autor de Brás Cubas. Fazer coincidir a
biografia de um autor com os temas e questões que emergem de sua literatura talvez
seja um fator comprometedor da revelação de uma determinada expressão artística
como obra de arte. No primeiro capítulo, intitulado Na sacristia, nasce a afirmação
da filiação religiosa de Machado de Assis desde os tempos de menino. Para Bressane
Araújo, Machado de Assis teve por preceptor o padre-mestre Silveira Sarmento. O
poema de 1858, intitulado A morte no calvário, e publicado na semana santa em
homenagem ao padre Sarmento, dá a Bressane Araújo a primeira resposta sobre a
religião em Machado. A publicação do poema é acompanhada da seguinte
dedicatória: Ao meu amigo o padre Silveira Sarmento. A dedicatória por sua vez é
acompanhada da expressão latina Consummatum est!
Ei-lo vai sobre o alto do calvário
Morrer piedoso e calmo numa cruz!
180
Cf. José ORTEGA Y GASSET, A desumanização da arte, p. 27.
81
Povos! Naquele fúnebre sudário
Envolto vai um sol de eterna luz.
Ali toda descansa a humanidade.
É o seu salvador, o seu Moisés!
Aquela cruz
é o sol da liberdade,
Ante o qual s
ão iguais povos e reis!
Povos, olhai!
As fachas mortuárias
S
ão-lhe os louros, as palmas, e os troféus!
Povos, olhai!
As púrpuras cesáreas
Valem acaso em face o Homem-Deus?
V
êde! Mana-lhe o sangue das feridas
Como o pre
ço de nossa redenção.
Ide banhar os bra
ços parricidas
Nas
águas desse fúnebre Jordão.
181
O processo de investigação realizado por Bressane Araújo ressalta a análise
biográfica, que por sua vez distancia-se, no caso do poema acima, de uma possível
construção cristológica a partir do próprio poema. As análises de Bressane Araújo
buscam alguns comprovantes na literatura do autor, como expressão de suas
intuições. Bressane retoma mais uma vez o método que faz a correspondência entre
biografia e literatura. Vai buscar numa tradução que Machado fizera do Salmo 137 a
filiação do autor de Brás Cubas à religião cristã.
Machado de Assis buscou nas Escrituras, como em Dante ou
Shakespeare, tão somente belezas literárias e usava com freqüência das
reminiscências, episódios ou versetos do livro Santo. Como roupagem
elegante dos humorismos que aos milhares marchetam seus livros.
182
O apontamento acima pode nos dar com alguma precisão a certeza de que a
construção de um extenso conjunto literário como o de Machado de Assis se constrói
a partir de suas múltiplas influências literárias. Entretanto, Silviano Santiago aponta
que durante muito tempo fomos inclinados a perceber a dívida que a literatura
brasileira contraíra com suas fontes. Tal discurso, afirma Santiago, reduzia a criação
dos artistas latino-americanos à condição de obra parasita, obra esta que se nutria de
uma outra sem nunca lhe acrescentar algo de próprio; uma obra cuja vida é limitada
181
MACHADO DE ASSIS, Poesias coligidas, I,Vol. III, p. 290-291. Cf. PUJOL apud ARAÚJO, Os
aspectos religiosos na obra de Machado de Assis, p. 8.
182
Hugo Bressane ARAÚJO, O aspectos religiosos na obra de Machado de Assis, p. 19.
82
e precária, aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte [...]
183
.
Caso a obra machadiana que foi pelos seus principais críticos enclausurada em suas
fontes européias consiga por meio de nossas análises demonstrar certa
independência em relação a estas intermináveis fontes às quais a filiamos e ao
mesmo tempo atribuímos sua universalidade ao tratar dos problemas emergidos no
mundo moderno, poderemos entendê-la como discurso crítico que rejeita tais
impostas filiações, não negando, obviamente, a sua capacidade de diálogo com seu
tempo e, potencialmente, a sua capacidade de ser influenciada.
184
O centro das
questões deve ser a expressividade da literatura machadiana e não as suas
influências. Não nos caberá, portanto, produzir um exercício exegético que imprima
sobre a literatura machadiana aquilo que dela esperamos no que toca à questão
religiosa. Todavia, nos caberá, a partir de medidas teóricas adequadas, dar voz ao seu
campo de sentido que, se visto sob os dilemas do mundo moderno, poderá expressar,
de forma particular, um olhar sobre o ser humano e suas experiência mais profundas.
Outra forma que Hugo Bressane buscou para comprovar o que denominou de
aspectos religiosos na obra machadiana restringiu-se às anotações de Machado para
alguns periódicos da época. Como Machado certa vez anunciou a Joaquim Nabuco
sua ligação com Pascal
185
, e estas declarações tinham uma espécie de valor
hermenêutico, Bressane entendeu que as posturas religiosas de Machado em tais
periódicos serviam de comprovantes de sua filiação religiosa, biográfica e literária.
Isto fica claro no quinto capítulo da obra em questão, intitulado Não era anti-
clerical. Para Bressane, a seguinte declaração serve de comprovante do não anti-
clericalismo de Machado de Assis:
Monsenhor Reis era um dos sacerdotes mais populares entre nós; ele,
MonAlverne, monsenhor Marinho, Frei Antonio, o franciscano, foram
nomes que a nossa infância ouvia pronunciar com mais freqüência e
veneração, sem esquecer o bispo, o excelso conde de Irajá. Quase todos
183
Silviano SANTIAGO, Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural, p. 20. Um
trabalho que representa bem a questão das influências da literatura de Machado de Assis é obra de
Eugênio Gomes. Cf. Eugênio GOMES. Machado de Assis: Influências inglesas. Rio de Janeiro: INL,
1976.
184
A influência poética, afirma Bloom, deve ser vista como uma representação do ciclo vital de um
poeta como poeta, o que preserva aspectos como a originalidade de um poeta sem fazê-lo(s) menos
original(is) ou melhor(es) que seu(s) predecessor(es). Cf. Harold Bloom, A angústia da influência, p.
57-58.
185
Machado de Assis confessa em carta a Joaquim Nabuco o seguinte: Desde cedo li muito Pascal,
para não citar mais que este, e afirmo-lhe que não foi por distração. Cf. Raimundo MAGALHÃES
JÚNIOR. Ao redor de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, p. 153 [s.d]
83
já se foram por aquela eterna e única porta. O que se retirou esta semana
honrou o hábito que vestiu e a Igreja de que foi ornamento e lustre.
Soube ser caridoso e útil, pacífico e bom.
186
Talvez Bressane Araújo desejasse construir um trabalho semelhante ao que
José Carlos Barcellos construiu em torno da literatura de Julien Green. Barcellos, em
primeiro lugar, tratou de fazer coincidir a literatura de Green com determinados
aspectos de sua autobiografia, utilizando um denso aparato teórico que transformou o
espaço biográfico e o espaço literário de Green em um pacto autobiográfico. A
conclusão de Barcellos é a de que Julien Green, por meio de sua literatura, assume-se
como teólogo. Certamente, esse não é o nosso objetivo. Cremos que também não seja
exatamente o de Bressane Araújo. Defendemos de antemão que a literatura de um
escritor pode até ser constituída por intermédio de um mosaico de influências;
todavia a literatura, para que se reconheça sua autenticidade, não deve ser exposta tão
fortemente à subjetividade criativa do autor a ponto de percebê-la tão facilmente e
com tamanha nitidez. Há na obra de Dom Hugo Bressane a insistência de revelar o
aspecto religioso através da biografia do autor de obra literária. A literalidade das
declarações de um autor, mesmo as palavras que saem da boca de suas personagens
se entendidas como declarações do próprio autor, de pouco valem para as análises de
temas complexos ou para a elucidação da dimensão criativa de expressão artística.
As críticas que temos a fazer à obra de Dom Hugo Bressane se direcionam,
sobretudo, à ausência de um campo conceitual e teórico, que pudessem estabelecer
uma teia hermenêutica para sustentar o olhar sobre a questão religiosa na obra de
Machado de Assis. Um problema notado é a separação entre o que é cristão ou não
no texto machadiano. Percebe-se que muitas posições pessoais de Machado de Assis
definem, em quase todos os aspectos, para Dom Hugo Bressane, o caráter cristão ou
não-cristão dos textos machadianos.
187
Este problema poderia gerar discussões
acerca da intenção do autor em escrever textos impregnados de temas religiosos.
Mesmo assim, Bressane, para o seu trabalho, admite como princípio de suas
reflexões os elementos biográficos do autor de Dom Casmurro. A via metodológica
de Bressane não faz o texto machadiano perder a sua densidade por dar mais voz ao
186
MACHADO DE ASSIS, Crônicas, 19, VII de 1 de setembro de 1878, p. 408.
187
Sobre o caráter cristão dos textos machadianos, com base nas suas opiniões pessoais, cf. Hugo
Bressane ARAÚJO, O aspecto religioso da obra de Machado de Assis, p. 25-27. Dom Hugo defende
a tese de que Machado não era anti-clerical, todavia ele chega afirmar que sem o lume da fé, a obra
de Machado de Assis, profundamente humana, não é cristã. Nota-se mais uma vez a retomada das
categorias sagrado e profano diante dos textos.
84
seu aspecto biográfico, porém obscurece o que é potencialmente relevante. Neste
caso, destacaríamos a ausência de uma reflexão sobre as questões religiosas do ponto
de vista das personagens machadianas.
O trabalho de José Carlos Barcellos demonstra bem a possibilidade de
conjugar literatura e biografia recorrendo a outros elementos que não sejam
necessariamente a biografia do autor refletida no texto literário.
188
Barcellos foi
capaz de perceber que há um pacto autobiográfico entre Julien Green e sua literatura.
Mesmo que não concordemos com a identificação que Barcellos produz entre a
teologia de Green e a teologia católica, enclausurando sistematicamente a
expressão teológica da literatura de Green, consideramos ser legítima a metodologia
empregada na investigação. Embora Barcellos não parta de pressupostos teológicos
definidos, ao encontrá-los na literatura de Green, os identifica como de natureza
católica. Queremos mais uma vez defender que um texto literário não pode ser
apenas um receptáculo dos aspectos subjetivos, biográficos ou mesmo ideológicos do
autor que lhe deu vida, mas sim um lugar de infinitas sondagens, para que a cada
escavação se produzam novas realidades a partir de um único texto.
Octavio Brandão também está presente na galeria dos críticos mais corrosivos
da obra machadiana, embora haja visivelmente em O niilista Machado de Assis uma
espessa confusão entre o que representa a estética do autor de Brás Cubas e sua
biografia. Ressaltamos a importância do trabalho de Brandão pelo fato dele dar
atenção ao que mais nos interessa na literatura de Machado de Assis, que é sua
antropologia. Com lentes nitidamente marxistas, Octávio Brandão conseguiu
manter seu olhar sobre a literatura machadiana debaixo de sua ideologia particular.
Os textos machadianos eram tidos por Brandão como uma espécie de reflexo do
burguês que para ele fôra Machado de Assis. As pistas que Brandão nos oferece têm
a ver com sua a percepção de que as personagens machadianas viveram mergulhadas
num mundo decadente e em iminente colapso. Esta é, por exemplo, a avaliação que
realiza do romance Helena de 1876. Filiando arbitrariamente Machado de Assis ao
movimento romântico brasileiro, Octávio Brandão entendeu que os elementos
centrais do referido romance destacavam a representação de um romantismo
decadente, insípido, sentimentalista, cheios de suspiros e lágrimas.
189
Afrânio
188
Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação: espaço autobiográfico e experiência cristã
(tese de doutorado). PUCRio, 2000.
189
Cf. Octávio BRANDÃO, O niilista Machado de Assis, p. 28.
85
Coutinho, ao tentar compreender a antropologia machadiana, aproximou-se muito
das percepções de Octávio Brandão ao afirmar que o ser humano de Machado de
Assis é um ser doente, moral e psicologicamente. E mais:
Dentro dele só abismo, contradição, enigma; tarado, cheio de vícios,
incerto, dubitativo, inconstante e incoerente, contraditório, flutuante,
agitado, de espírito volúvel e inteligência fraca, sem nenhum apoio
moral, com um tendência imperiosa para o mal e o crime; escravo da
sensibilidade e da imaginação que extraviam e enganam, de leis
arbitrárias, de um hábito tirano, da opinião; desordenado pelas paixões,
cheio de misérias, vive eternamente atrás de uma quimera, figura
nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho impalpável, outro de
improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a
agulha da imaginação. As suas ações, que formam o tecido da
tragicomédia humana, têm sempre no fundo, mesmo as boas, um motivo
secreto, que as explica e origina, ordenado pela felicidade, interesse,
amor-próprio. Sempre o egoísmo, os sentimentos vis e a concupiscência
são os móveis secretos de toda a vida no mundo. A concupiscência
domina o caráter das personagens machadianas.
190
Os dramas, os dilemas vividos pelo ser humano da literatura machadiana
jamais poderiam ser representações de uma forma de sentimento crítico da própria
existência.
191
Deveriam, para Octávio Brandão, sempre ser percebidos pela
problemática da divisão de classes, interesses econômicos ou financeiros, políticos e
sociais.
192
Este é um dos princípios que utiliza para dar ao romance Memórias
póstumas de Brás Cubas um tom pessimista. Machado de Assis teria escrito, sob
uma nefasta influência pessimista, os romances de 1881 e 1908. A complexidade da
estética machadiana no romance Memórias póstumas de Brás Cubas foi interpretada
sob a égide da morbidez, da decadência e de experiência sepulcral do ser humano. Os
heróis de Machado de Assis assim afirma Octavio Brandão vegetavam na mais
triste mediocridade dourada. Arrastavam uma vida cinzenta, chata, vulgar, prosaica e
mesquinha, envenenada pelo tédio e a ociosidade.
193
Temos de reconhecer que tais
adjetivos são contrapostos ao que verdadeiramente nos interessa na análise de
Octávio Brandão. Para ele, as personagens machadianas seriam representações
190
Cf. Afrânio COUTINHO, A filosofia de Machado de Assis, p. 96.
191
A arte, afirma Herbert Read, se ocupa da com o mistério da existência no sentido humano e
metafísico. Essa é a razão fundamental pela qual nenhuma sociedade imaginável do futuro, por mais
livre que esteja das necessidades materiais, jamais poderá passar sem arte. Cf. Herbert READ, Arte e
alienação, p. 37.
192
Cf. Octávio BRANDÃO, O niilista Machado de Assis, p. 31.
193
Cf. Octávio BRANDÃO, O niilista Machado de Assis, p. 33.
86
humanas que também cultuavam o que denomina ser luxúria. A lúxuria, dimensão
que revela o que há de mais vital no ser humano, foi vista por Octávio Brandão como
um dos fatores da degradação da sociedade oitocentista por promover certa
decomposição moral. Nesta mesma linha, a caricatura que Octávio Brandão
construiu das personagens femininas de Machado de Assis, embora encorpadas por
questões de gênero e preconceito, nos ajudam a perceber que, mesmo debaixo de
uma dura crítica que ofusca os aspectos determinantes de sua literatura, a vitalidade
aparece como expressão marcante das representações humanas machadianas.
Só viu uma triste coleção de adúlteras e aventureiras, grandes burguesas
e latifundiárias, escravas do sexo e da vida fútil.
[...]
Na vida,
êle (sic!) era o espôso (sic!) da meiga Carolina. Na imaginação,
era um galante que se comprazia no lôdo (sic!) dessas adúlteras e
aventureiras. Sua imaginação, viciosa. Suas musas inspiradoras, as
Virgilias e Capitus.
194
Octávio Brandão também desconsiderou que a literatura machadiana fosse
uma literatura realista. Talvez estivesse contaminado pela ideologia marxista
presente no realismo socialista, que exigia das expressões artísticas uma
representação fiel de uma realidade política supostamente ocultada. Certamente,
Octávio Brandão diminuiu demasiadamente as suas lentes de análise da literatura
machadiana. A crítica de Octávio Brandão sobre a religião encontrou uma
possibilidade de aproximação entre Machado de Assis e Dostoiévski. Ao deixar
escapar de suas obras determinados elementos cristãos como a submissão, a
resignação, a consolação, a moral, Dostoiévski teria renegado, segundo Brandão, à
luta revolucionária em favor do aniquilamento da dignidade e personalidade
humanas e da conservação do ser humano à eterna subserviência. Portanto, se o
ponto de partida é a religião, o ponto de chegada não pode ser outro senão a política.
Por isso, a aproximação entre Machado de Assis e Dostoiévski se dá, de acordo com
Octávio Brandão, na representação que ambos desenvolviam do regime dominante.
O primeiro por ser um representante fiel da burguesia e o segundo por exprimir
determinados elementos de sua literatura que suprimem as forças revolucionárias dos
indivíduos. O desafio maior que o trabalho de Octávio Brandão nos deixa toma
194
Octávio BRANDÃO, O niilista Machado de Assis, p. 35.
87
corpo a partir da afirmação de que a literatura machadiana não indicou nenhuma
saída real para a desgraça humana. Certamente, responderemos a Octávio Brandão
mais adiante.
Essas imagens humanas que tanto Octávio Brandão quanto Afrânio Coutinho
compartilham em certa medida se opõem à imagem que desejamos retratar da
antropologia machadiana. O que se esconde na estética machadiana e que o foi
totalmente percebido pelos estudos críticos de Machado Assis é o anúncio das
transformações de mundo que não corresponde mais ao compacto e ideal mundo
burguês. Afirma Kátia Muricy que o século XIX brasileiro viu surgir, através da
literatura machadiana, novas formas de organização social que de algum modo nos
aproximava do processo de racionalização.
195
A dimensão tica que comumente se
atribui à estética machadiana o deve ser vista como a representação do avesso de
uma sociedade que respirava de forma otimista os ares da modernidade, mas antes
como uma crítica demolidora principalmente ao romantismo e ao naturalismo, o qual
assimilou facilmente o cientificismo oitocentista. A dimensão cética da literatura
machadiana consegue ainda, sob a ótica de seus personagens libertinos, mundanos ou
mesmo celibatários, de forma mais radical, ser crítica diante das noções de ciência,
de progresso, de verdade, construídas por um tipo de racionalidade em colapso.
196
Para Kátia Muricy, a literatura machadiana interpretou criticamente o momento
vivido pelo Brasil do século XIX ao apontar os descaminhos de um tipo de
racionalidade dominante ao mesmo tempo em que refletiu a fragmentação inexorável
do indivíduo criado pelo modelo social burguês. Ao se situar dentro do Brasil
oitocentista, a literatura machadiana ultrapassa as fronteiras territoriais e assume sua
originalidade e universalidade ao se propor intérprete e porta-voz dos problemas e
dilemas próprios do mundo moderno europeu do século XIX. Machado de Assis,
numa crônica de 1895, como sugere Kátia Muricy, pode interrogar a sua atualidade:
Por isso digo que o mundo não vai bom, e desconfio que há algum plano
divino, oculto aos olhos humanos. Talvez a terra esteja grávida. Que
animal se move no útero desta imensa bolinha de barro, em que nos
despedaçamos uns aos outros? Não sei; pode ser uma grande guerra
social, nacional, política ou religiosa, uma deslocação de classes ou de
195
Cf. Kátia MURICY, A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo, p. 16.
196
O conto O alienista e o romance Quincas Borba, de Machado de Assis, são exemplos de uma
crítica contundente à ciência do século XIX e às correntes de pensamento que a sustentava. O
alienista, por exemplo, critica as instituições de saúde mental e seu programa de confinamento do
indivíduo, que era autorizado pela psiquiatria.
88
raças, um enxame de idéias novas, uma invasão de bárbaros, uma nova
moral, a queda dos suspensórios, o aparecimento dos autos.
197
Devemos nos voltar para a literatura machadiana buscando entendê-la como
dimensão artística que antecipou, desvelou e expôs, por meio da ação criativa (por
meio de uma poética), a falta de sentido que era iminente ao mundo moderno. Ao
lado de um mundo que silenciava o seu otimismo por meio dos processos
despotecilizadores do ser humano enquanto dimensão autoreferente, emergia também
um mundo que desejamos chamá-lo, sem muitas delongas, de mundo sem Deus. Se
há um projeto estético no interior da literatura machadiana de antecipação de
algumas expressões do sem sentido, este projeto não silenciou o que poderia ser, do
ponto de vista de uma compreensão própria do ser humano e de sua posição no
mundo, um mundo sem Deus. Tal foi nossa compreensão preliminar ao concluirmos
Fuga da promessa e nostalgia do divino. Deve permanecer válida a afirmação que
fizemos no primeiro capítulo de que a morte de Deus em Nietzsche nos servia como
via diagnóstica de um mundo movido pela autonomia do ser humano em relação ao
esfacelamento do principal centro gravitacional do Ocidente: Deus. Não há uma
superposição de interpretações (Nietzsche ou Machado) a partir do que cada uma
delas buscou apresentar acerca do mundo, da posição do ser humano e de Deus no
século XIX quando fazemos referência a um mundo sem Deus tendo como ponto de
partida o texto machadiano. Há apenas o reconhecimento de que uma expressão
artística como a literatura de Machado de Assis não recriou a realidade por meio da
linguagem literária, todavia a antecipou, a revelou e pôs em evidência o
desconhecido de forma autêntica com sua força de expressão. Como bem afirmou
Herbert Read, as expressões artísticas são sempre perturbadoras e permanentemente
revolucionárias.
198
Por nossa conta eximiríamos o termo revolucionária(s) de seu
possível sentido político. Indubitavelmente, vale, aqui, recuperar uma importante
citação cunhada por Herbert Read da obra Reflections on history, de Jakob
Burckhardt:
Desde o começo dos tempos vemos que os artistas e poetas se situam
numa relação de solenidade e grandiosidade com a religião e a cultura
[...] só eles podem interpretar e dar forma imperecível ao mistério da
beleza. Tudo o que por nós passa na vida, tão depressa, com tal raridade
197
MACHADO DE ASSIS, Crônicas, A Semana, outubro de 1895.
198
Cf. Herbert READ, Arte e alienação, p. 27.
89
e desigualdade, é por eles reunido num mundo de poemas, em quadros e
grandes ciclos pictóricos, em cor, pedra e som, para formar um segundo
e sublime mundo na terra [...]
199
A ascensão de uma sociedade tecnificada, o obscurecimento dos ideais
humanistas por meio de atividades cada vez mais reificadoras da condição humana,
bem como a simultaneidade de tais processos com a perda do sentido de Deus, não
conseguiram se este era o projeto oculto da modernidade dissipar o senso trágico
da vida, mas sim potencializá-lo. Por isso, o ser humano não deixou de ser suscetível
às experiências em nível incondicional. A emergência da dimensão religiosa diante
da vida não se apenas por meio das garantias que supostamente superam nosso
senso de finitude, mas também nas experiências do vazio, nas experiências negativas,
nas experiências do nosso absurdo e do sem sentido. Um olhar em torno das
expressões artísticas como espaço próprio de reflexão sobre a condição humana
tornou-se cada vez legítimo, e isto é uma constatação, porque é a arte e não a ciência
ou a tecnologia que confere significado à vida ou aponta a sua precariedade. Isto se
torna possível porque parece haver no ser humano, mesmo no humano criado
artisticamente, algo em sua natureza que anuncie, a despeito de tudo que o entorpece
e o aniquila, a presença de um vácuo existencial a ser preenchido. Portanto, é na
poética machadiana que encaminharemos a nossa busca do sentido que a experiência
do incondicional sem pretensões de personificá-lo ou substantivá-lo poderá
assumir.
199
Cf. BURCKHARDT apud READ, Arte e alienação, p. 25.
90
2.2. Faces de um mundo sem Deus na estética machadiana
Em Fuga da promessa e nostalgia do divino elegemos como foco de análises
a antropologia machadiana, que foi ordenada pela relação ser humano vs Deus.
Deparamo-nos naquele momento com uma questão particular relacionada à
personagem Bento Santiago, do romance Dom Casmurro, que era a questão da
promessa. O problema que se descortinou com a presença da promessa no referido
romance foi auxiliado pelas noções de mundo do texto e paratextualidade. O
chamado mundo do texto nos fez, com certa segurança, pensar nas questões internas
do romance de 1899 sem que necessariamente tivéssemos que recorrer às discussões
sobre verossimilhança e a relação direta da obra com a realidade objetiva. O mundo
que a literatura projeta para fora de si por meio da leitura e do significado que é
produzido por tal ação é o que entendemos ser o chamado mundo do texto, seguindo
Paul Ricoeur. O que é comunicado, em última instância, afirma Ricoeur, é, para
além do sentido da obra, o mundo que ela projeta e que constitui seu horizonte de
acordo com o que o ouvinte ou o leitor, segundo sua própria capacidade (do ouvinte
ou do leitor) de acolhimento.
200
O mundo que é projetado para além do mundo da
realidade objetiva cria um espaço de sentido no que Ricoeur chamou de referência de
segundo nível.
201
Dissemos em Fuga da promessa e nostalgia do divino que, desta
dimensão referencial que a poesia ou ficção são capazes de criar, se origina o
problema hermenêutico mais fundamental, que seria o de perceber que o campo de
sentido de um texto literário é de sobremaneira devedor da capacidade que ele
próprio possui em dizer o mundo que ele cria no plano da referência. Com razão
Ricoeur chega a afirmar que pela ficção ou pela poesia o abertas novas
possibilidades de ser-no-mundo através do que ele mesmo chamaria de variações
imaginativas que a literatura, exemplarmente, opera sobre o real.
202
Este foi um dos
caminhos que utilizamos para ter acesso à estética machadiana.
Outro caminho percorrido foi o de buscar os elementos mais ostensivos da
narrativa de Dom Casmurro. Sabemos que tais elementos serviriam inclusive para
justificar a infinidade de temas já trabalhados a partir do texto machadiano. Por isso,
temos convicção de que a pergunta pelo que é verdadeiramente ostensivo numa obra
200
Paul RICOEUR, Tempo e narrativa, p. 119. Tomo I.
201
Cf. Paul RICOEUR, Tempo e narrativa, p, 275. Tomo III.
202
Cf. Paul RICOEUR, Interpretações e ideologias, p. 57.
91
literária teria certa razão de ser. Determinamos, portanto, que o elemento mais
ostensivo e reluzente do romance de 1899 era a questão da promessa, que participa
da narrativa do texto, mas que também é o titulo do capítulo XI do referido romance.
Chegamos à promessa por meio do caráter ostensivo-significativo do título do
capítulo XI. À ostensividade que determinados elementos textuais possuem, Gérard
Genette nomeou de paratextualidade.
203
Esses elementos paratextuais, note-se,
também mantêm, segundo Genette, relações de significação com o texto a que
pertencem. Daí a segura observação de Eli Brandão quando afirma que uma das
provas do poder revelador do título como elemento paratextual, embora se referindo
ao título de uma obra, é que mesmo quando se pretende ocultar os sentidos
dominantes de um texto ou revelá-los por enigma, persiste tanto o seu poder de
concentrar a atenção do leitor, que toda a leitura passa a ser a busca do seu sentido
oculto ocasionando, portanto, uma pluralidade de interpretações, o que em parte
desprezaria as inúteis discussões sobre o sentido intencional do autor. Se fosse o caso
poderíamos começar pelo próprio título da obra: Dom Casmurro. Por se tratar de
uma obra autodiegética, o autor-personagem nos incita pensar o sentido em que é
empregado o termo, pois no primeiro capítulo explica que o termo Dom veio por
parte dos amigos por ironia para atribuir-me fumos de fidalgo.
204
Todavia, diz ao
leitor de seu testamento biográfico que não é necessário consultar no dicionário a
expressão Casmurro: Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido
que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.
205
Observemos que há uma questão a ser resolvida em relação ao sentido que podemos
dar ao romance se consideramos seu o título. Qual é o Casmurro que se revela aos
amigos que assinam os bilhetes a ele endereçados? Que sentido os amigos do
Casmurro dão a sua alcunha? Que sentido o rapaz conferiu à expressão ao dizer, no
dia seguinte ao encontro que narrado, os nomes feios que culminou na alcunha
Casmurro? Queremos chamar atenção para o fato de que o narrador-personagem
intenta uma explicação do nome de suas memórias. Contudo, antes que elas sejam
expostas, temos a indicação paratextual sobre a escolha do nome do livro, já título do
203
Cf. Gérard GENETTE, Palimpsestes, p. 7-14. A paratextualidade se configura por meio de
elementos indicadores de sentido ou através da relação do texto com outros elementos que o remete a
ele mesmo como os títulos, subtítulos, prefácios, posfácios entre outros elementos. Os paratextos
seriam formas de integração do texto num dado contexto ou formas de indicação do percurso
hermenêutico, que, de certa forma, desempenham funções semânticas.
204
DC, p. 810.
205
DC, p. 810.
92
próprio primeiro capítulo, que foi intitulado Do tulo. Tais articulações de sentido
seriam oriundas, se nossas anotações servirem de exemplo, da teoria da
paratextualidade retirada das chamadas categorias da transcendência textual, segundo
Genette.
206
A existência da dimensão paratextual do capítulo A promessa provocou um
efeito potencializador da questão teológica no romance Dom Casmurro, que era por
sua vez o foco inicial da nossa pesquisa naquela ocasião. Revelava-se,
circunscritamente à promessa, uma imagem de Deus, uma imagem do ser humano
capaz de abrir-se ao transcendente e uma crise existencial deste mesmo ser humano
em razão da forma com que foi posto em relação com esse Deus. Vejamos em que
termos a promessa foi realizada:
Capítulo XI / A PROMESSA
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o
esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem
da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente
os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é a que vou dizer, por
ser já então história velha; datava de dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido.
Tendo-lhe nascido
morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o
segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez
esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes, nem
depois de me dar à luz, contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola,
mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim;
mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da
obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente,
para que nos separássemos o mais tarde possível, fez-me aprender em
casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele Padre Cabral, velho
amigo do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.
Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos.
Minha mãe esperou que os anos viessem vindo. Entretanto ia-me
afeiçoando à idéia da Igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens
206
Cf.
Gérard GENETTE. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982.
93
de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar quando
íamos à missa, dizia-me sempre que era para aprender a ser padre, e que
reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de
missa, um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não
era cousa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia
de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia
entre nós, a hóstia era sempre um doce. No tempo em que brincávamos
assim, era muito comum ouvir à minha vizinha: Hoje há missa? Eu
sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir
hóstia por outro nome Voltava com ela, arranjávamos o altar,
engrolávamos o latim e precipitávamos as cerimônias. Dominus, non
sum dignus... Isto, que eu devia dizer três vezes, penso que só dizia uma,
tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho nem
água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do
sacrifício.
Ultimamente n
ão me falavam já do seminário, a tal ponto que eu
supunha ser negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, podiam
antes o seminário do mundo que o de S. José. Minha mãe ficava muita
vez a olhar para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a
pretexto de nada, para apertá-la muito.
207
Procuramos entender a promessa como questão central do romance. Da
promessa até a malograda vida de Bentinho ao lado de Capitu, o romance passou a
ter como fator de significação, segundo nosso olhar, a forma como o Deus da
promessa se revelava para dona Glória, mãe de Bentinho e autora da promessa, e a
maneira com que Bentinho, o prometido, se relacionava com Deus e Este com ele.
Como ele mesmo denuncia: Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, das suas
práticas religiosas, e da fé pura que as animava.
208
E ainda: A promessa, feita com
fervor, aceita com misericórdia, foi guardada por ela, com alegria, no mais íntimo
do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite que me deu a
mamar.
209
Do ponto de vista teológico, não pretendíamos perceber a revelação de
Deus às personagens religiosas como um processo condicionado pela própria
207
DC, p. 819-820.
208
DC, p. 889.
209
DC, p. 889.
94
antropologia emergente do romance, o que significa dizer que não desejávamos ver a
forma com que o Deus da promessa se manifestava em razão da vontade do ser
humano. Mesmo que em alguns momentos o Deus da promessa figurasse no romance
com funções específicas na vida de Bentinho e de dona Glória, ao atender aos
pedidos encaminhados aos céus, diríamos que Ele, antes de ser morto com o fim da
promessa, transparecia no texto machadiano como mantenedor e organizador da vida
das personagens e também como centro de referência e de sentido nos momento de
crise existencial. Havia nas personagens machadianas certa esperança na efetivação
da presença de Deus diante das questões trágicas de suas vidas. Observemos a atitude
de dona Glória ao ver nascer morto o seu primeiro filho: Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Percebamos a significação do ato de
apegar-se a Deus. A experiência negativa de dona Glória reverte-se, sob a égide do
mistério de Deus, numa forma manifesta de esperança e de consolação. As vidas das
personagens machadianas envolvidas na promessa, inegavelmente, estão ligadas ao
Deus cristão.
A consciência de ter sido prometido faz de Bentinho, o menino, um ser que
reconhece em Deus o ponto de chegada de suas experiências religiosas. Buscava os
céus com muita intensidade quando menino. Os aspectos relacionais homem vs Deus
e Deus vs homem, em determinadas partes do romance Dom Casmurro representam,
do ponto de vista teológico, a capacidade de Deus em revelar-se ao ser humano. Do
ponto de vista antropológico, a relação homem vs Deus denuncia a dimensão do ser
humano aberta às experiências com o que o ultrapassa. Trata-se, pois, do
reconhecimento do aspecto finito do ser humano. Bentinho é uma personagem
machadiana que notadamente carrega consigo a certeza de sua impotência diante das
contradições de sua vida e por isso, em muitos momentos, pôde reconhecer os céus
como elemento representativo de suas experiências religiosas. O capítulo XX de
Dom Casmurro espelha emblematicamente a dimensão experiencial da vida de
Bentinho:
Capítulo XX / MIL PADRE-NOSSOS
E
MIL AVE-MARIAS
95
Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi
para vê-lo coberto ou descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a
minha alma; era ao meu refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim
para mim: Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José
Dias arranjar que eu não vá para o seminário.
A soma era enorme.
A razão é que eu andava carregado de promessas
não cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-
marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não
choveu, mas eu o rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me
a pedir ao céu os seus favores, mediante orações que diria, se eles
viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se
amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte,
trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de
peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada
promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga.
Mas vão matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a
sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu adiava a paga.
Afinal perdi-me nas contas.
Mil, mil, repeti comigo.
Realmente, a mat
éria do benefício era agora imensa, não menos que a
salvação ou o naufrágio da minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era
preciso uma soma que pagasse os atrasados todos. Deus podia muito
bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito
dinheiro... Homem grave, é possível que estas agitações de menino te
enfadem, se é que não as achas ridículas. Sublimes não eram. Cogitei
muito no modo de resgatar a dívida espiritual. Não achava outra espécie
em que, mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escrituração
da minha consciência moral sem deficit. Mandar dizer cem missas, ou
subir de joelhos a ladeira da Glória para ouvir uma, ir à Terra Santa,
tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas célebres, tudo
me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro subir uma
ladeira de joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito
longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a
alma...
210
210
DC, 830-831.
96
Um fato marcante neste trecho de Dom Casmurro é a imagem de um céu
possivelmente mudo em razão de uma inicial ausência do sentido de Deus na vida de
Bentinho: Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio, ao
meu amigo. Raimundo Faoro, diante do mesmo trecho, sugere que a imagem do céu
contida neste fragmento representa a dissolução do amparo dos símplices, servindo
para mascarar a consciência, desviar os remorsos e barganhar, de fé, favores e
esperanças.
211
Dissemos em Fuga da promessa e nostalgia do divino que as situações
de natureza existencial da vida de Bentinho, até mesmo as minoritárias, eram
resolvidas por meio dos pedidos aos céus e sempre tributárias da promessa feita por
sua mãe.
212
Queríamos com isto dizer que se pôde perceber, descritivamente, em
Dom Casmurro, uma imagem de Deus semelhante a de um Deus controlador e
mantenedor da vida. O mundo que chamamos há pouco de mundo sem Deus é
exatamente o mundo que se abre diante da vida de Bentinho quando este o imaginou
livre da promessa realizada por sua mãe. A imagem do Deus da promessa passou a
sofrer um processo de fenecimento. Ela foi se apagando no momento em que
Bentinho percebeu que os novos imperativos de sua vida eram a liberdade, a
autonomia e o amor por Capitu; tais imperativos substituíam o lugar do Seminário
São José, ou seja, substituíam a promessa.
Seguindo por este caminho, pudemos perceber que a precariedade que se
abria diante da vida de Bentinho revelava também a presença de um ser humano
individualizado dentro do romance Dom Casmurro. Para Faoro, esta constatação
deve ser interpretada como a dissolução da imagem do homem religioso e do cristão
católico por terem perdido de alguma forma as raízes que os alimentavam e que em
algum momento lhes insuflaram o sentimento da divindade. A imagem desta
antropologia machadiana pode ser vista como a do ser humano que desejou ver sua
vida fora dos domínios da Igreja, autônoma e que se bastava em si mesma.
213
Poderíamos falar numa perda do sentido de Deus. Em diversos momentos essa
imagem da antropologia machadiana emerge de sua estética como no seguinte trecho
do romance Helena (1876). O fragmento é relacionado à personagem Dr. Camargo:
Quanto aos sentimentos religiosos, a aferi-los pelas ações, ninguém os possuía
211
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 400.
212
Cf. Douglas CONCEIÇÃO, Fuga da promessa..., p. 93.
213
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 392.
97
mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom católico. Mas
pontual; interiormente, era incrédulo.
214
O ocaso do sentido de Deus para as personagens da estética machadiana
parece-nos ser um dos elementos que compõem circularmente a sua poética. A
insistência de determinados temas em figurar no legado machadiano pode ser
entendida, sem maior esforço, como o que nomearemos de circularidade temática da
escrita. Como sugere Faoro, o fenecimento de Deus pode ser visto através da muda
constelação de estrelas em que se tornou o céu que era antes povoado pelo Deus de
Abraão.
215
Contudo, devemos ressalvar mais uma vez que, antes da crise do sentido
de Deus figurar na estética machadiana, é possível observar a significação que Ele
constituía para a vida das personagens. Em Helena, romance de 1876, percebe-se a
notável presença do padre Melchior. À guisa de digressão, vale dizer que as obras
machadianas estão povoadas por padres, protonotários, cônegos etc. O padre
Melchior, um dos testamenteiros do Conselheiro Vale, com um discurso moralizador,
o que nos remete às amarras instrumentalizadoras da vida que a institucionalizada
sempre trouxe consigo, profere um interessante e duro discurso a Estácio:
Capítulo XXIII
És forte? perguntou o padre.
Sou.
Crês em Deus?
Est
ácio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior
insistiu:
Crês?
Essa pergunta...
É menos ociosa do que parece. Não basta supor que se crê; nem basta
crer à ligeira, como na existência de uma região obscura da Ásia, onde
nunca se pretende pôr os pés. O Deus de que falo, não é só essa sublime
necessidade do espírito, que apenas contenta alguns filósofos; falo-te do
Deus criador e remunerador, do Deus que no fundo de nossas
consciências, que nos deu a vida, que nos de dar a morte e, além da
morte, o prêmio ou o castigo. Crês?
Creio.
Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o
saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura, rebela-
se, vaga à feição de um instinto mal-expresso e mal compreendido. O
mal persegue-te, tenta-te, envolve-te em seus liames dourados e ocultos;
tu não o sentes, não o vês; terás horror de ti mesmo, quando deres com
ele de rosto. Deus que te lê, sabe perfeitamente que entre o teu coração e
214
Helena, p. 275.
215
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 398.
98
tua consciência há um véu espesso que os separa, que impede esse
acordo gerador do delito.
Mas que é, padre-mestre?
Melchior inclinou-se e encarou o mo
ço. Os olhos, fitos nele, eram como
um espelho polido e frio, destinado a reproduzir a imagem do que lhe ia
dizer.
Estácio, disse Melchior pausadamente, tu amas tua irmã.
216
A nítida imagem que o padre Melchior apresenta de Deus é a imagem do
Deus mantenedor, organizador da vida e que pune; trata-se do Deus que dá, mas que
também cobra: O Deus de que falo, não é essa sublime necessidade do espírito,
que apenas contenta alguns filósofos; falo-te do Deus criador e remunerador, do
Deus que no fundo de nossas consciências, que nos deu a vida, que nos de dar
a morte e, além da morte, o prêmio ou o castigo.
217
Raimundo Faoro entendeu, a
partir desse mesmo fragmento, que o crer e o viver devem ser mantidos como um
importante consórcio ou como duas dimensões inseparáveis.
218
O ser humano que as
separar certamente estará diante da agudeza de uma vida que se move por intermédio
das experiências que beiram os limites de um mundo autônomo. O Deus para o qual
se dirige a conjunção entre o crer e o viver é um Deus pessoal, imprescindível à
condição humana e que oferta a garantia de um prêmio ou de um castigo, como
afirma o padre Melchior. Entendemos também que não se deve somente olhar para as
possíveis ações objetivas de Deus em relação à vida do ser humano machadiano, mas
também para o sentido que ele assume. Este sentido é facilmente identificável pela
sua incondicionalidade. Deus se apresenta como símbolo mesmo de resposta ao ser
humano quando a própria condição humana encontra-se em seu trágico limite. Do
ponto de vista da experiência religiosa poderíamos dizer que, em alguns momentos, o
Deus que se revela na estética machadiana assume o sentido de realidade última.
Mesmo com este quadro criado em torno das imagens de Deus e de sua
relação com o ser humano que emerge da literatura machadiana, o nosso foco foi
presidido pelo surgimento de uma imagem gris de Deus, que no caso de Dom
Casmurro foi também acompanhada de um processo de desordenamento do mundo
da personagem Bentinho. A perda do sentido de Deus pode ser constatada ainda nos
chamados romances da primeira fase quando as questões relativas à existência do ser
216
Helena, p. 363-364.
217
Helena, p. 363-364.
218
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 399.
99
humano e Deus aparecem. Um importante exemplo pode ser visto no romance Iaiá
Garcia (1878). Raimundo Faoro vê semelhanças entre a angústia de Estácio do
romance Helena e a que é encontrada na jovem Iaiá, pois diante de seu abismo
existencial não consegue encontrar amparo nem mesmo nos us. Mergulhada,
possivelmente, na inquietude que o amor provoca, Iaiá percebe-se desamparada por
ter sobre si uma questão existencial em aberto:
Capítulo XIII
A tranq
üilidade era aparente. Nessa noite, recolhida aos aposentos, a
moça deu largas a dous sentimentos opostos. Entrou ali prostrada. Que
estou fazendo? Disse ela apertando a cabeça entre os punhos. Abriu a
veneziana da janela e interrogou o céu. O céu não lhe respondeu nada;
esse imenso taciturno tem olhos para ver, mas não tem ouvidos para
ouvir. A noite era clara e serena; os milhões de estrelas que cintilavam
pareciam rir dos milhões de angústias da Terra. Duas delas despegaram-
se e mergulharam na escuridão, como os figos verdes do Apocalipse.
Iaiá teve a superstição de crer que também ela mergulharia ali dentro e
cedo. Então, fechou os olhos ao grande mudo, e alçou o pensamento ao
grande misericordioso, ao Céu que se não vê, mas de que há uma parcela
ou um raio no coração dos símplices. Esse ouviu-a e confortou-a; ali
achou ela apoio e fortaleza. Uma voz parecia dizer-lhe: Prossegue a
tua obra; sacrifica-te; salva a paz doméstica. Restaurada a alma, ergueu-
se do primeiro abatimento. Quando abriu de novo os olhos, não foi para
interrogar, mas para afirmar, para dizer à noite que naquele corpo
franzino e tenro havia uma alma capaz de encravar a roda do destino.
Tarde conciliou o sono. Já dia claro, sonhou que ia calcando a beira de
um abismo, e que uma figura de mulher lhe lançava as mãos à cinta e a
levantava ao ar como uma pluma. Pálida, com o olhar desvairado, a boca
irônica, essa mulher sorriam, de um sorriso triunfante e mau;
murmurava algumas frases truncadas que ela não entendia. Iaiá bradou-
lhe em alta voz: Dize-me que não me amas e eu te amarei como te
amava! Mas a mulher sacudindo a cabeça com um gesto trágico, e
colando-lhe os lábios nos lábios, soprou ali um beijo convulso e frio
como a morte. Iaiá sentiu-se desfalecer e rolou ao abismo [...]
219
Poderíamos nos perguntar o que verdadeiramente pode ser encontrado no
coração dos símplices mesmo que em pequena parcela ou apenas como um pequeno
raio. O que é ou quem é esse que a ouviu, a confortou e a apoiou, mesmo sabendo
Iaiá que o céu teria olhos para vê-la, mas nada poderia lhe responder, pois não tem
ouvidos para ouvir.
220
O desaparecimento da imagem de Deus, bem como o sentido
religioso que deveria rodear as metáforas que servem de sinalização de sua Presença,
219
IG, p. 473.
220
IG, p. 473.
100
ficam cada vez mais acentuadamente vazios e desprovidos de significação para o ser
humano da estética machadiana. Seguindo as pistas lançadas por Faoro, uma vez
mais, nos deparamos em Quincas Borba com esta mesma situação. No encerramento
do romance de 1891, Faoro nos induz a perceber que ao grande mudo ou ao grande
misericordioso só cabem o silêncio e que Ele, sendo muitas vezes representado pelas
imagens celestiais, encontra-se indiferente à sorte dos homens. Em Iaiá Garcia
temos nitidamente os indícios de tal indiferença: os milhões de estrelas que
cintilavam pareciam rir dos milhões de angústias da Terra. Em Quincas Borba os
céus se transformaram apenas na sede do Cruzeiro:
Capítulo CCI
Eia! chora os dous recentes mortos, se tens l
ágrimas. Se tens riso ri-
te! E a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar como
lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas
dos homens.
221
Interessante notar que o fenecimento da imagem de Deus em determinados
momentos da estética machadiana revela simultaneamente a debilidade do sentido
que Ele assume diante do ser humano machadiano e o senso de auto-referência que
este ser humano passa a carregar sobre si. A perda do sentido de Deus diante do ser
humano machadiano pode ser descrita como um processo de não reconhecimento de
Deus como fundamento último, todavia como o Deus das relações de causalidade.
Talvez isto responda o porquê de existir no íntimo do coração de Iaiá Garcia um raio
de algo que o próprio narrador do romance o pôde mensurar. Mesmo que os céus
estivessem mudos, Iaiá, imersa em sua finitude, conseguiu ser confortada pelo
sentido de algo que não pode ser corroído e tocado. Certamente, podemos com este
diminuto percurso entender parcialmente o porquê de Deus ter se tornado um alvo
fácil de ser atacado no interior do mundo moderno. Se as representações de Deus
estiverem sempre alocadas nas relações causais e objetivas da própria dinâmica da
vida humana, este ser humano poderá sempre, como pôde exemplarmente com
chamada morte de Deus, pretender experimentar o mundo de forma autônoma,
mesmo reconhecendo sobre si um forte senso de finitude. Paul Tillich fez uma
importante advertência ao cristianismo quando afirmou que a causalidade tornou o
221
QB, p. 806.
101
mundo dependente de Deus.
222
O que acontece então ao ser humano do universo
machadiano, do ponto de vista de sua experiência religiosa, quando este, a partir de si
mesmo, perde o nexo causal com o Deus pessoal que se revela?
Se respondermos esta pergunta a partir do que foi possível compreender em
nosso estudo anterior, diríamos que a caoticidade seria a expressão representativa do
sentido do mundo do ser humano machadiano. A autoafirmação do ser humano
machadiano frente ao mundo que se descortinava sem o imperativo da promessa feita
por dona Glória e assimilada por Bentinho, se apresentava de certa forma para o
próprio protagonista do romance. A perda do nexo causal com o Deus da promessa
fez precipitar em Bentinho um sentimento de autorealização. A quebra da promessa
promoveu, segundo nossa interpretação no trabalho anterior, o apagamento de Deus
diante da vida de Bentinho. O fim da promessa veio com a idéia da substituição
daquilo que deveria ser entregue a Deus. Escobar, amigo íntimo de Bentinho, é o
autor da idéia do substituto.
Capítulo XCVI / UM SUBSTITUTO
Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois
bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você.
[...]
Entendo, entendo, é isso mesmo.
Uma observação deve ser feita. A tessitura do fim da promessa é iniciada pelo
amigo e também seminarista Escobar, todavia levada a cabo com autenticação do
padre Cabral, amigo da família, e posteriormente autorizada pelo Bispo. Note-se que
entre a terra e o céu mais do que a representação do esvaziamento da imagem de
Deus do ponto de vista do ser humano machadiano. Há também uma explícita
representação dos agenciamentos que são feitos pelos intermediários de Deus. Sendo
a presença da religião um elemento notadamente presente no romance Dom
Casmurro, pudemos então concluir em nosso trabalho anterior que o esfacelamento
das cosmovisões religiosas alcançou, dentro do romance, não o ser humano religioso
(homo religiosus), mas também os emissários da fé. À guisa de digressão, vale notar
a esterilidade da vida sacerdotal que a estética machadiana aponta em diversos
momentos. A separação entre as esferas políticas e religiosas certamente fizeram
222
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 201.
102
com que o papel do sacerdote se destacasse do centro da vida religiosa. A literatura
machadiana espelha o que poderia ser chamado de decadência da vida sacerdotal.
Um comentário de Faoro é significativo para entender o que estamos afirmando. O
padre Melchior do romance Helena, segundo Faoro, mesmo sendo apresentado pela
narrativa como verdadeiro varão apostólico, homem de sua Igreja e de Deus,
íntegro na fé, constante na esperança, ardente na caridade, já se denunciava o
sacerdote incompatível com a missão sacerdotal. De acordo com Faoro, ele é perfeito
em seus caminhos, mas seus caminhos são os da terra. Apresenta-se muito mais
como um mantenedor da moral do que como intermediário da divindade e do
sacrifício. Melchior não converte, admoesta. O padre Cabral de Dom Casmurro é a
paradigmática figura do padre doméstico. O espírito conciliador que o referido
sacerdote apresenta diante do fim da promessa é para Raimundo Faoro um traço
marcante da mundanidade presente nessas personagens.
223
Sem a intransigência do missionário, despida a roupeta do herói, o padre
de portas adentro quer durar na estima dos filhos, transigindo com suas
inclinações, embora velando pela moralidade. Moralidade que é, em
regra, o padrão social da família, pelo qual zelam, mas sem admitir que
a sociedade se feche, abertos à ascensão social, eles próprios, muitas
vezes, fruto da escalada de baixo para cima.
224
Se admitirmos que o protonotário Cabral tivesse alguma consciência da
dessacralização da função sacerdotal, poderemos afirmar então que não mesmo
nenhuma justificativa para que Bentinho seja padre num mundo desteíficado como o
que emerge da narrativa de Dom Casmurro. Como afirma Faoro, o homem religioso,
o cristão, o católico, passam a ser extravagâncias e inutilidades na máquina do
mundo.
225
A autorealização de que falavámos pode ser vista, metaforicamente, na saída
de Bentinho do seminário, que é descrita por ele mesmo quando velho em suas
memórias. O imperativo da auto-afirmação que recaía sobre Bentinho surgia em sua
vida sob a frase construída e pronunciada por ele mesmo de maneira inconsciente:
Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz.
226
223
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 448.
224
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 448.
225
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 391-392.
226
DC, p. 906.
103
Capítulo C / TU SERÁS FELIZ
BENTINHO
No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel da lata, ia
pensando na felicidade e na glória. Via o casamento e carreira ilustre,
enquanto José Dias me ajudava calado e zeloso. Uma fada invisível
desceu ali, e me disse em voz igualmente macia e cálida: tu serás feliz,
Bentinho; tu vais ser feliz.
E porque não seria feliz? perguntou José Dias , endireitando o tronco e
fitando-me.
Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também, espantado.
Ouviu o quê?
Ouviu uma voz que dizia que eu seria feliz?
É boa! Você mesmo é que está dizendo...
227
Pudemos afirmar em tal ocasião que o lançar-se sobre a vida sem garantias
possuía um caráter estéril e efêmero, pois sem as certezas da sustentabilidade de um
mundo construído debaixo dos nexos causais estabelecidos com o Deus da promessa,
não poderiam produzir outras experiências senão as de natureza caótica. Teríamos
nesta mesma parte das memórias outros motivos que poderiam nos levar a pensar
mais detidamente naquilo que insistimos ser o fenecimento da imagem de Deus.
Como vimos anteriormente, é o agregado da família, José Dias, quem denuncia ao
próprio Bentinho o pequeno momento de delírio que é acompanhado da afirmação
Tu serás feliz. José Dias o perguntou por que não seria feliz. Bentinho o respondeu
dizendo ter ouvido uma voz que afirmava a sua felicidade: Ainda agora sou capaz
de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos
versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro para fora [...]
228
. Por
qual motivo Bentinho não associou a voz que falou de dentro para fora como sendo a
voz do Deus da promessa, mas a associou a uma personagem tão fantástica quanto
Deus? Quem poderia acima de Deus garantir-lhe o ordenamento de seu mundo?
Suspeitamos que Bentinho escondia sobre si a certeza de que o Deus da promessa
havia verdadeiramente sido morto. Kuschel, num preciso comentário sobre Rilke,
afirma que, não havendo mais uma contraparte para onde o ser humano pudesse se
dirigir, tornava-se necessário, no auge da modernidade, assumir a escuridão e
reconhecer apenas as estruturas que constituem as relações horizontais neste
227
DC, p. 906.
228
DC, p. 906-907.
104
mundo.
229
Portanto, o desordenamento da vida de Bento Santiago nos aponta a
pergunta pelo lugar do ser humano no mundo. Comparativamente, podemos dizer
que a auto-percepção do caos diante da vida Bentinho se aproxima do sentimento que
é expresso pelo eu-poético da primeira Elegia de Rilke, pois o eu manifesto,
encontrando-se numa situação similar de abandono, invoca um possível refúgio, o
em Deus, mas noutras imagens fantásticas ou celestiais como os anjos. Se Deus não
pode mais ouvi-los (Bentinho ou o eu da Elegia), quem o poderia fazê-lo. O eu-
poético da primeira Elegia de Rilke se pergunta:
Quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos
me ouviria?
230
O flagrante processo de desarmonização incide sobre vida de Bentinho sob a
forma da perda de todas a suas referências, inclusive as referências religiosas, como
vimos. O não reconhecimento do outro e da natureza, sobressaltos que são invocados
por uma sua consciência alienada e individualizada, figuram ainda dentro do
romance Dom Casmurro como representação de mundo em que o ser humano sente-
se em condição de abandono. O que justificaria sentir ciúmes do mar senão uma vida
submetida a um processo de reificação? [...] mas não é por isso que torno a ela
afirma o autor das memórias , é para que não cuides que a vaidade de professor é
que me fez padecer com a desatenção de Capitu e ter ciúmes do mar [...]
231
.
Com
este percurso, é possível afirmar, juntamente com Lucien Goldmann, que la voix de
Dieu ne parle plus dune manière immédiate à lhomme.
232
O que se construiu em
Dom Casmurro foi evidentemente uma representação da perda do sentido de Deus,
sobretudo, se vista a partir de Bento Santiago. O senso de finitude no qual submerge
Bentinho é reconhecido por sua companheira como a perda da fé em Deus. Deus
enquanto símbolo da realidade última, como elemento que imprime sentido a vida
quando esta se depara com possibilidade do não-ser, torna-se ausente para Bentinho.
Portanto, afirma enfaticamente Capitu:
Capítulo CXXXVII / SEGUNDO IMPULSO
[...] É natural; apesar do seminário não acredita em Deus; eu creio.
233
229
Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 106.
230
Cf. RILKE, Elegias de Duíno, p. 17.
231
DC, p. 912-913.
232
Cf. Lucien GOLDMANN, Le Dieu caché, p. 45.
233
DC, p. 938.
105
A narrativa é seguida pela ida de Capitu à Igreja. Ao regressar confessa a
Bentinho que confiara a Deus todas as suas amarguras. Parece haver em Capitu um
raio do Deus que para Bentinho já é morto. Bento Santiago não omite de suas
memórias a busca de Capitu pelos céus: “– Confiei a Deus todas as minhas
amarguras, disse-me Capitu ao voltar da Igreja [...]
234
Fugir da promessa significa também ir ao encontro de algo. Percebíamos
ainda em Fuga da promessa e nostalgia do divino a existência de uma bipolar
interpretação do ser humano machadiano. A imagem teológica que pudemos
construir em Dom Casmurro nos remeteu às ruínas em que o mundo moderno, do
ponto de vista religioso, se encontrava. A despeito de tudo que pontuamos em
direção ao romance de 1899, não seria possível dizer que, no interior de um mundo
em colapso, não haveria mais a possibilidade da presença de experiências religiosas,
já que nosso foco é presidido pela antropologia da estética machadiana. Queremos
chamar de experiência religiosa toda experiência que toma o ser humano
incondicionalmente. A própria estética tillichiana nos incita a ponderar o material
cultural produzido pelas manifestações artísticas da transição do século XIX para o
século XX. Como vimos no primeiro capítulo, o expressionismo que era visto como
arte degenerada pôde expressar uma incondicionalidade subjacente ao que
representava plasticamente. Não queremos dizer que a estética machadiana deve ser
compreendida a partir dessa perspectiva, até mesmo por que, como se pôde perceber
em Dom Casmurro, o problema da religião e sua relação com o ser humano estão
postos na superfície do texto e o em dimensões subterrâneas. Apenas elegemos
outra porta de entrada para que nossas lentes pudessem ser aumentadas sobre a
questão da promessa. Estamos defendendo que o fato de o ser humano machadiano
ter sido compreendido através do processo desteificação enquanto meio de
diagnóstico da perda do sentido de Deus não anula a possibilidade mesma de se
encontrar, a partir dessa mesma perspectiva antropológica, representações de
experiências religiosas. Essa é a autocrítica que fazemos ao nosso trabalho anterior.
Se o Deus da promessa não pôde mais ser afirmado por Bentinho, bastava a ele então
afirmar a vida como dimensão incondicional.
234
DC, p. 938.
106
2.3. Paradoxos nas representações da experiência religiosa da estética
machadiana
Este novo sentido que poderemos atribuir ao texto machadiano, do ponto de
vista teórico, fica a cargo da atuação metafórica.
235
O excesso de sentido que um
texto literário carrega consigo necessita de uma sustentação teórica para que sejam
explicitados os meios pelos quais ele se dá. Concluímos o tópico anterior intuindo
que outra via interpretativa da literatura machadiana poderia nos revelar, no interior
de um mundo dilacerado, a emergência de uma experiência de natureza religiosa.
Tomando mais uma vez o ser humano representado ficcionalmente
236
como foco,
seria possível perceber que a oscilação do campo semântico que ele (ser humano
criado ficcionalmente) assume no conjunto estético de Machado de Assis nos levará
à representação daquilo que o toma incondicionalmente. Percebemos agora que não
se trata mais de reconhecer a incondicionalidade da revelação de Deus como
expressão da experiência religiosa do ser humano machadiano. O que deve
prevalecer, portanto, são as representações textuais que nos remetam ao que envolve
de maneira última o humano machadiano. No primeiro capítulo estabelecemos, a
partir de Paul Ricoeur, os procedimentos hermenêuticos que adotaremos deste
momento em diante. Em primeiro lugar, cabe dizer que o novo campo de sentido que
a antropologia machadiana pode evocar se deve, como já dissemos, ao processo
metafórico-enunciativo operado pela metáfora.
237
A atuação metafórica que
explicaria a oscilação semântica que pode ser encontrada em Dom Casmurro por
meio da bipolaridade Deus vs vida (imanência) e que por sua vez é estabelecida a
partir da quebra da promessa manter-se-ia ligada a uma dimensão primordial de
sentido, que poderíamos chamar de simbólica, pelo fato de tais extremidades (Deus
ou vida) nos remeter, através dos elementos pertencentes à superfície textual, ao
reconhecimento das experiências religiosas que procuramos nos escombros da ficção
do desencanto. Portanto, não é possível afirmar que o romance Dom Casmurro seja
apenas uma emblemática representação de uma estética do ser humano sem Deus.
Em Dom Casmurro há também uma estética da incondicionalidade que se assume
sob a forma de um profundo processo de intensificação da vida. As marcas dessa
235
Supra, p. 21-30.
236
Supra, p. 21-30
237
Supra, p. 21-30.
107
incondicionalidade poderão ser vistas sob as lentes de uma vida que precisa ser
afirmada, já que não há mais nada que a sustente. A morte de Deus em Dom
Casmurro fez o ser humano machadiano assumir-se diante da vida de forma
intransitiva. Sem o além e sem as garantias do céu, o que tem de ser afirmado é a
possibilidade de uma vida imanente. Paralelamente ao mundo regido por Deus no
romance Dom Casmurro existe um outro movido pela pulsão erótica do ser humano
da estética machadiana. Não queremos dizer que um mundo regido por Deus ou pelo
Deus da causalidade como Aquele que é revelado em Dom Casmurro exclui a
dimensão erótica da vida humana, contudo o que se quer afirmar é que a quebra da
promessa potencializou nosso olhar em torno de tal questão. As cinzas de um
incêndio extinto estão em toda parte, em todas as consciências [...]
238
e, portanto,
não há mais Deus no espaço literário machadiano. Portanto, emerge da estética
machadiana um novo eixo em torno do qual passa a girar o ser humano. É a sinfonia
ditirâmbica da vida que passa a ordenar as ões do ser humano do mundo
machadiano. É por causa da promessa de amor à Capitu que Bentinho decidiu
abandonar a promessa de sua mãe. Mesmo mergulhado em suas consternações,
Bento Santiago foi capaz de reconhecer que o amor que sentia por Capitu era de fato
uma ferida aberta e que ainda latejava dentro dele o acorde de Eros. Diante do que
expomos anteriormente, Capitu poderia ser considerada de fato aquilo que tomava
incondicionalmente Bento Santiago: Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia
nem trabalhava que não fosse pensando nela [...]
239
. A experiência mais radical da
transcendência, afirma Leonardo Boff, é a experiência do enamoramento ou do amor,
por tocar incondicionalmente a profundidade de nós mesmos. Para Leonardo Boff a
experiência do enamoramento é uma experiência de êxtase, extática, fora da
realidade, portanto, religiosa.
240
Capítulo XII / NA VARANDA
Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a
eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu!
Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam,
estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro
palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais
238
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 393.
239
DC, p. 919.
240
Cf. Leonardo BOFF, Tempo de transcendência, p. 42. Vale ressaltar que o exemplo usado por
Leonardo Boff é a experiência do amor de Bentinho por Capitu.
108
me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra
sensação da mesma espécie.
241
O fenecimento da imagem de Deus e o aparente caos em que a vida de Bento
Santiago mergulhou fez com que ele produzisse um ardente sentimento de morte:
quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de
tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte
não se gasta.
242
A consciência da morte não se apresentava mais como uma questão crucial,
mas como uma possível solução para os escombros de sua vida. O que é importante
notar é o fato de que Bento Santiago reage positivamente diante de seu mundo sem
Deus, admitindo, portanto, certa esperança na vida a partir dela mesma. O narrador
confirma ter assistido a uma representação de Otelo na noite em que seu destino
caminhava para o pleno vazio e que ao regressar à casa escrevera uma carta a Capitu:
[...] a última [...]
243
Poderemos observar que Bento Santiago se entrega a
sentimentos opostos e o que prevalece é o sentimento de afastar o senso de finitude
que paira sobre sua vida: [...] Pois não, senhor: tinha perdido o gosto à morte. A
morte era a solução; eu acabava de achar outra [...] rejeitei a morte [...]
244
Descobrir
a pulsão vital nos escombros de um mundo não mais regido por Deus significa para
as personagens machadianas, entre outras coisas, afirmar a vida diante da
possibilidade do não-ser e da circundante consciência da morte. Podemos afirmar
então que no espaço da estética machadiana pode haver simultaneamente a entrega
da regência da vida para Deus e a emergência de uma expressão vital que é regulada
pela auto-consciência do ser humano, que passa a admitir sobre sua vida seu próprio
arbítrio, sem pensar em Deus, porém sem perder o horizonte de uma experiência de
natureza incondicional. Esta forma de experimentação da vida seria uma expressão
da experiência religiosa da dimensão antropológica da estética machadiana, sem que
necessariamente a identifiquemos como a experiência cristã de Deus. É preciso
resguardar a dimensão simbólica da incondicionalidade que o ser humano
machadiano expressa diante da intensificação da vida num mundo sem Deus. A
representação de uma experiência intransitiva diante da vida, se vista a partir desse
241
DC, p. 821.
242
DC, p. 934.
243
DC, p. 935.
244
DC, p. 938.
109
novo traçado da antropologia machadiana poderá ser identificada como resultado de
uma nova interpretação possível através da atuação da metáfora a qual, por sua vez, é
presidida por um simbolismo que nos remete a uma experiência de natureza
religiosa.
110
CAPÍTULO III
VITALIDADE: DIMENSÃO RELIGIOSA DA ANTROPOLOGIA
MACHADIANA
Que significa viver? Viver é continuamente
afastar de si algo que quer morrer;
viver é ser cruel e implacável com tudo o
que em nós, e não apenas em nós,
se torna fraco e velho[...]
Nietzsche
3.1. Finitude e o ser humano machadiano
A questão que se abre com a nova perspectiva antropológica da estética
machadiana deve antes se opor a uma estética do desencanto.
245
Nos escombros do
mundo tardomoderno torna-se possível entender que a literatura de Machado de
Assis nos obriga a interpretá-la a partir de sua dimensão pendular. Em Dom
Casmurro a ambivalência e a polissemia que acompanham a estruturação dos
aspectos religiosos são apresentadas de um lado pela perda do sentido de Deus e por
outro pelo surgimento de uma forma de transcendência que se nos limites da
própria vida. A inauguração da vida como espaço intransitivo de manifestação das
experiências religiosas se realiza mais propriamente, cremos, no romance Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881).
A tentativa de decifração da experiência do ser humano no mundo
machadiano e a busca por sua expressão religiosa terão a colaboração interpretativa
245
Questões em torno de uma estética do desencanto, Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario,
p. 111-120.
111
da compreensão que Jürgen Moltmann empreende da condição humana no mundo
tardomoderno.
246
Um importante passo dado por Moltmann tem a ver com a
discussão sobre a significação que a dimensão religiosa pôde assumir diante das
ambíguas experiências de vida que o ser humano vivenciou dentro de um mundo
aparentemente colapsado. A tentativa de captar a expressão do dado religioso a partir
do século XX fez que com Moltmann criasse uma esfera dialógica dos seus
pressupostos teológicos com os resultados conferidos aos processos que alavancaram
o mundo moderno. A sua preocupação sobre a tentativa de perguntar sobre o
significado de Deus e da vida diante da autoconsciência humana do mundo moderno
pôs em movimento sua percepção teológica, a ponto de considerar a recuperação do
dado transcendente a partir de uma realidade onde só a imanência seria possível.
No horizonte do romance MpBC e da imagem humana criada artisticamente
(antropologia) emergente, nesta obra, a pergunta que não quer calar pode ser
apresentada a partir dos seguintes termos: sob que expressão poderemos observar as
a dimensão religiosa da vida dos personagens machadianos em MpBC? O problema
subjacente é saber se diante da forte consciência do eu, traço que marca
profundamente a obra de 1881, poder-se-ia perguntar por uma experiência em nível
incondicional. A hipótese que queremos desaprovar como a que é defendida por
Faoro em determinados momentos de sua obra A pirâmide e trapézio é a de que
com a chegada do romance MpBC instala-se na estética machadiana a supressão da
presença do autêntico elemento religioso. O que chamamos no capítulo anterior de
apagamento da imagem de Deus seria para Raimundo Faoro a constatação de que a
autêntica presença da religião no espaço literário de Machado de Assis tornava-se
impossível. Fazendo naturalmente menção ao catolicismo oitocentista presente na
literatura machadiana, Faoro afirma que a religião íntima, sem Deus transcendente e
despida do culto e da oração, não é religião.
247
O desamparo para o qual é lançado o
ser humano machadiano e a evidente perda das conexões metafísicas seriam os
indícios da perda daquilo que é autenticamente religioso, segundo Faoro, mas
também seria ao mesmo tempo, em nossa ótica, a procura do sentido da vida no
mundo, em face do caos que se abre diante do ser humano machadiano.
246
Cf. Jürgen MOLTMANN. O espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis, RJ: Vozes,
1998.
247
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 402.
112
Ao observar o processo de secularização das sociedades modernas por meio
da literatura machadiana, Faoro procurou equivalências entre a dimensão normativa
que religião exercia sobre a vida humana e o novo paradigma normativo
desempenhado pela ciência, política e pelo direito.
248
O pecado, por exemplo, dentro
de uma sociedade racionalizada, transmutou-se, afirma Faoro, em infração moral,
ficando, portanto, esvaziado em seu autêntico conteúdo religioso.
249
Entretanto, o
que Faoro não percebe é que a fragmentação da religião e a ascensão de outras
esferas normativas da vida não nos impedem de perguntar pela existência daquilo
que seriam os aspectos mais elementares da religião, sem aqui pretendermos
essencializá-la. Estamos à procura das situações em que a experiência religiosa se
tornaria possível para o ser humano machadiano num mundo onde supostamente não
haveria espaço para as experiências de tal natureza. Na esteira de Tillich, poderíamos
apostar na compreensão de que uma experiência religiosa seria toda e qualquer
experiência que toma o ser humano incondicionalmente.
A crítica que fazemos ao diagnóstico de Faoro recai mais propriamente sobre
sua impossibilidade de perceber que a dissolução da antiga imagem religiosa do
mundo não promove a total supressão do sentido religioso que a vida pode assumir,
mesmo que vista de dentro de um espaço desteificado. Mesmo debaixo das críticas
que desferimos em direção à relação causal que o protagonista de Dom Casmurro
estabeleceu com o Deus da promessa, foi possível constatar em nosso trabalho
anterior que nos escombros da vida de Bentinho havia ambigüamente certa nostalgia
do divino, o que revela a insistência do ser humano pela busca daquilo que a ele
escapa.
250
Seguindo Moltmann, a concretização da autoconsciência do sujeito humano a
partir do mundo moderno fez com que o próprio sujeito humano constituísse um
mundo sob a égide de experiências possíveis ou determinadas por ele mesmo. A
própria noção de experiência de Deus, segundo os critérios de constituição do mundo
248
O termo secularização representa a perda de poder e de validade das visões tradicionais de mundo
que quando inquiridas em sua substância pelos novos critérios da racionalidade instrumental foram
transformadas em convicções e éticas subjetivas [...] A religião encontrar-se-ia, a partir da
modernidade, fora deste novo panorama social, pois seu vínculo com o mundo e a sua legitimação
pertenceria ao contexto pré-moderno, lugar de onde não se vê de forma clara a separação entre normas
éticas e normas jurídicas. Cf. Luiz Bernardo Leite ARAÚJO, Religião e modernidade em Habermas,
p. 37.
249
Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 403.
250
Tillich afirmaria que o fato de o homem ter uma preocupação última revela a sua capacidade que
algo que está em sua natureza de transcender o fluxo contínuo de experiências finitas e passageiras.
Cf. Paul TILLICH, Dinâmica da fé, p. 10.
113
moderno, não pode mais ser possível, pois Deus não é objetivamente reconhecível ou
experienciável.
251
A noção teológica subjacente ao ponto de partida de Moltmann
admite também que o sujeito humano o mais poderia ser constituído passivamente
por nenhuma experiência.
252
Se ao ser humano do mundo moderno não é mais
permitido ter uma experiência objetiva de Deus, para Moltmann somente seria
possível falar em experiência de Deus.
253
Não queremos aqui, juntamente com
Moltmann, trazer a imagem de Deus que se constitui a partir das relações de
causalidade, mas sublinhar a incondicionalidade que a realidade Deus pode trazer
consigo. Como afirma Paul Tillich, Deus transcende seu próprio nome.
A nova face do ser humano da estética machadiana deve ser vista no interior
de um mundo onde o conceito de experiência e mais propriamente o de experiência
religiosa deve possuir dimensões um pouco mais alargadas, pois os limites da
possibilidade das experiências não podem ter a marca da imobilidade (centro para o
qual elas se convergiriam), mas antes devem ser mantidos em aberto (novas
possibilidades de experimentar). Portanto, nos é muito cara a intuição de Moltmann,
que admite desistir da estreita referência à autoconsciência moderna como centro
produtor de uma auto-experiência destrutiva para descobrir transcendência em toda
experiência do ser humano. Daqui deriva o conceito de Transcendência Imanente.
254
A noção de Transcendência Imanente em Moltmann inclui a compreensão de que a
experiência de Deus constaria de toda forma de experiência do ser humano. O ajuste
que pretendemos dar a esta compreensão reside no tratamento que Moltmann confere
à idéia de Deus. Se toda experiência de Deus no ser humano for uma experiência
com aquilo que Tillich chamava de preocupação última
255
com o que toma o ser
humano incondicionalmente poderemos dizer que a nova face do ser humano
machadiano poderá ser vista como referência de uma antropologia que estabelece sua
experiência religiosa nos limites da própria vida, transgredindo, dessa forma, a lógica
de um mundo onde a manifestação de uma experiência dessa natureza não seria mais
possível. Chamaremos de religiosa essa dimensão experiencial da antropologia
machadiana, porque o adjetivo que qualifica e caracteriza tal dimensão como algo
extraordinário é nascido das experiências de vida e, portanto, não poderá ser visto
251
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 41.
252
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 40.
253
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 42.
254
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 44.
255
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 180.
114
como uma província isolada na vida secular e diária, mas sim como algo que está
presente em, com e sob todas as experiências de coisas, ocorrências e pessoas.
256
A resposta que esta nova imagem do ser humano machadiano dá a si mesmo
deve ser considerada como contraponto de uma consciência que revela um profundo
sentimento de finitude: [...] Pois não, senhor: tinha perdido o gosto à morte. A morte
era a solução; eu acabava de achar outra [...] rejeitei a morte [...]
257
A rejeição à
morte pode constatar que o problema da finitude também revela uma porta para o
sentimento de infinitude que se abre a partir da vida. Note-se que do ponto de vista
teológico a ultimacidade que cabe ao que Deus representa no nível simbólico se
metamorfoseia numa ultimacidade a partir da qual a vida passa a ser tomada. A
melhor afirmação que poderemos desferir em direção à nova imagem do ser humano
machadiano deve ser estruturada nos seguintes termos: o ser humano machadiano
quer afastar de si todo e qualquer instinto de morte; portanto não quer morrer. Como
bem afirma Paul Tillich, em todo ser consciente, a vida está cônscia de sua
exauribilidade e é a consciência existencial da finitude própria ao ser humano que
validará ou não a continuação de uma existência finita. Enquanto existir vida, afirma
Tillich, o sensor que indica a finitude ao ser humano terá diante de si o contraponto
que se dará através da auto-afirmação da vida e do desejo de manter uma identidade,
mesmo que seja a identidade de um indivíduo finito ou exaurível.
258
Por isso, a
afirmação de Bento Santiago: [...] rejeitei a morte [...]
259
. Por mais que a quebra da
promessa e a vida que não se realizou ao lado de Capitu atuem como elemento
despontecializador da vida, podemos notar que a antropologia machadiana, de forma
criativa, reinventa os impulsos vitais que se manifestam através da intensificação da
vida.
Mas a experiência da morte é uma realidade para o ser humano machadiano.
A auto-experiência do ser humano da estética machadiana constitui-se, nos romances
autodiegéticos (DC, MpBC e MA), a partir de um testamento biográfico-literário.
256
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 38.
257
DC, p. 938.
258
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 428. Nas Memórias póstumas... há uma preocupação
muito forte do protagonista Brás Cubas com a questão da finitude. Diante do ocaso de sua mãe, Brás
Cubas espanta-se com a experiência da morte: Mas esse duelo do ser e do não-ser, a morte em ação,
dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa
foi a primeira vez que a pude encarar. Cf. MpBC, p. 545. E ainda: Jamais o problema da vida e da
morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo do Inexplicável;
faltava-me o essencial, que o estímulo, a vertigem [...], p. 545.
259
DC, p. 938.
115
Essa evidência nos faz pensar se o espaço autobiográfico das personagens
machadianas não poderia também ser visto como um espaço de suas experiências
vividas. Particularmente em MpBC, por ser o narrador não um [...] autor defunto,
mas um defunto autor [...]
260
, as memórias assinaladas no livro que carrega o nome
do protagonista são marcadas, na abertura, pela experiência da morte.
261
Essa
inescapável condição o tom inicial das inquietações humanas que são
apresentadas dentro das memórias póstumas. Estando sob os domínios dos instintos
que o remete ao senso de vacuidade, o ser humano machadiano será de algum modo
impulsionado, como dissemos acima, a admitir a vida como uma possibilidade,
mesmo que se reconheça sua dinâmica finita.
Se trabalharmos com a idéia de insistência em torno da tematização da morte,
veremos, exemplarmente, no conto O imortal (1882) e na peça Viver! (1886) as
implicações que essa questão apresenta no legado estético de Machado de Assis. O
problema da morte deve ser acompanhado pela tematização da vida, não apenas esta
como extremo ou oposto da morte. Queremos assinalar que a questão apresentada
pela estética machadiana não se debruça necessariamente sobre o problema da
imortalidade, embora ele esteja presente em diversos momentos, mas sim sobre o da
intensificação da vida: Era absurdo supor que um tal líquido pudesse abrir uma
exceção na lei da morte.
262
A imortalidade, enquanto questão aberta para o ser
humano machadiano, é uma realidade que emerge, pontualmente, como
possibilidade, diante da hipótese do o-ser. Diante da iminência morte, o pai do Dr.
Leão reconsidera o absurdo que seria o elixir, porque o senso de finitude certamente
o afrontava: agora a morte era certa, que perderia ele com a experiência? [...]
Quem sabe, dizia ele consigo se os homens não descobrirão um dia a imortalidade
[...]
263
A descoberta da imortalidade não nos parece ser o ponto nevrálgico da
estética machadiana. Dr. Leão afirma, ao narrar a história do imortal, que a conquista
da imortalidade trouxe também, à alma de seu pai, um grau de profunda melancolia:
Nada o contentava; nem o sabor da glória, nem o sabor do perigo, nem o do
amor.
264
Mergulhado numa atmosfera de quimera, Ahasverus, personagem do conto
Viver!, compreende que a condenação à vida eterna transforma a própria vida em
260
MpBC, p. 513.
261
Cf. Luiz Costa LIMA, Dispersa demanda, p. 71.
262
O Imortal, p. 889.
263
O Imortal, p. 889-890.
264
O Imortal, p. 899.
116
fastio ou em tedium vitae
265
: Sou o último homem; posso morrer. Morrer! deliciosa
idéia! [...] Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me.
266
A vida nos
parece não poder se realizar sob a égide da eternidade como dimensão teleológica.
Prometeu, personagem mítica e interlocutor de Ahasverus, tenta convencê-lo de que
a imortalidade, se mantida, promoveria a possibilidade de ler todos os capítulos da
história da vida e a não apenas um capítulo. Entretanto, o que deve ser posto no
centro não é senso de conservação da eternidade, mas a intensidade que os finitos
capítulos da vida devem conter: Ai, ai, ai, está morrendo e ainda sonha com vida
[...] senão porque a amava muito
267
, afirmam as águias que passavam no horizonte e
contemplavam o sono de Ahasverus. A profunda dissipação de um sentido
teleológico para a vida não despede a finitude enquanto realidade para o ser humano
machadiano, como também o o obriga a eleger novos horizontes metafísicos ou
mesmo recorrer aos que foram extintos. A dissipação de um sentido prévio para a
existência aponta para os processos intensificação da vida. No conto A segunda vida
(1884), seria indiferente, confessa José Maria ao Monsenhor Caldas, voltar da
eternidade para nova vida como potentado ou mendigo, desde que lhe garantissem a
experiência que imaginava ter faltado à primeira. Todavia, confessa também ao
velho clérigo que a segunda vida era na verdade uma mocidade expansiva e
impetuosa.
268
A dimensão religiosa que procuramos a partir de MpBC poderá ser
encontrada sob o prisma das relações estabelecidas no horizonte da vida e através da
capacidade de ação e reação que a nova imagem antropológica da estética
machadiana possui quando é defrontada profundamente com senso de finitude. Daí a
importância de se descobrir um significado maior para existência que pudesse
imprimir sobre ela o tom intransitivo peculiar aos processos de intensificação vida e
ao mesmo tempo resguardá-la do pólo metafísico e negativo da eternidade. Podemos
concluir até aqui que a intensificação da vida não deve ser equivalente, no espaço
literário machadiano, ao desejo de eternidade. Se o ser humano for de fato o espelho
no qual se torna nítida a teia de relação construída entre o finito e o infinito
269
,
certamente, a polaridade do infinito, do ponto de vista da nova imagem do humano
265
Cf. Viver!, p. 564. (In Várias histórias)
266
Viver!, p. 563-564. (In Várias histórias)
267
Viver!, p. 569. (In Várias histórias)
268
A segunda vida, p. 442.
269
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 451.
117
machadiano, será representada pela intransitividade da vida. O ser humano
machadiano aceita o risco de transcender à tragédia que se põe diante da vida
humana e ao sentimento de vacuidade e, por isso, se lança para além deles nos
limites da própria vida. O protagonista das memórias póstumas se põe a perguntar o
Que há entre a vida e a morte?
270
Uma curta ponte
271
é a resposta que encontra.
É preciso, portanto, lançar-se à travessia dessa ponte. Sem correr os riscos dessa
travessia não como estabelecer nenhuma forma de experiência.
272
Paradoxalmente, dentro das memórias póstumas o centro hermenêutico se constitui a
partir da afirmação da incondicionalidade da vida: Ânimo, Brás Cubas, não me
sejas palerma [...] trata de saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do
choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante
das águas.
273
Só um mal para quem se compraz com a festa da vida; Porquanto,
verdadeiramente há só uma desgraça: é o nascer.
274
A descoberta da
intransitividade da vida significa também, para o ser humano machadiano, em nossa
compreensão, a descoberta da dimensão religiosa nas experiências de vida. Ao tomar
a vida como forma última de realização de sua expressão vital, o ser humano
machadiano inaugura uma dimensão incondicional, porque é a partir desses impulsos
que se consegue superar a finitude e alocar o senso de infinitude nos limites da
própria vida. A intransitividade da vida torna-se, em certa medida, o horizonte para o
qual se dirige o ser humano da estética machadiana. A justificativa para a morte de
Brás Cubas nasceu exatamente de um impulso que pretendia aliviar o absurdo da
vida. Perplexo e diante da possibilidade do nada, lugar para onde a vida do
protagonista parecia se dirigir, Brás Cubas meteu-se a criar um medicamento
sublime, diferente do elixir da eternidade do conto O Imortal, e com efeitos um
pouco mais modestos. A pneumonia que o levou para o outro lado da vida foi apenas
uma conseqüência fortuita do resultado verdadeiramente cristão
275
que o emplasto
anti-hipocondríaco deveria produzir contra a nossa melancólica humanidade.
276
A melancólica humanidade de Brás Cubas foi percebida por ele após ter
vivido intensamente uma vida da qual certamente não desejava se despedir de forma
270
MpBC, p. 620.
271
MpBC, p. 620.
272
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 34.
273
MpBC, p. 626.
274
MpBC, p. 614 -615.
275
MpBC, p. 514 -515.
276
MpBC, p. 515.
118
tão breve. A idéia do emplasto, que é narrada pelo defunto autor, nos remete a um ser
humano que reconhece sobre si a força da finitude e ao mesmo tempo reconhece
também o desejo de retornar à mesma vida que vivera. O filósofo do Humanitismo, o
desvairado Quincas Borbas, nos dá uma importante pista do significado
incondicional que a vida assume nas memórias póstumas, ao afirmar que ela é o
maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte [...];
segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora
suprema da missa espiritual.
277
Essa luta contra morte é a expressão de uma
autêntica antropologia que não é movida pelo desejo de eternidade, mas que é
tomado por uma dimensão incondicional no espaço imanente da vida e na realização
das experiências concernentes a ela, como a experiência do amor. Brás Cubas nos
indica, por meio das experiências que podem ser realizadas no horizonte da vida,
uma forma própria de transcender na imanência sem se perder.
278
A perda dos
antigos horizontes absolutos, no caso de Brás Cubas, não implica a instalação de
processos despotencializadores da vida destrutivamente ou que a instrumentaliza de
alguma forma.
277
MpBC, p. 615.
278
Cf. Paul TILLICH, A coragem de ser, p. 62.
119
3.2. Vitalidade
O reconhecimento da ameaça do o-ser é uma prova de que o ser humano
machadiano se lança à auto-afirmação da vida que acontece na imanência.
279
Para
Brás Cubas, a vida não deve se estender à eternidade. A questão da morte dentro das
memórias póstumas deve ser tomada como uma dimensão que impede a continuidade
de tudo que venha a ser uma forma de intensificação da vida e não como uma via
para o salto à eternidade. A idéia das memórias pode ser vista como um recurso
criado pelo narrador defunto para driblar o tempo, que segundo Brás Cubas é o
ministro da morte. A recordação é uma maneira própria de retornar ao mesmo ou à
experiência vivida e por isso a vida deve ser compreendida a partir de todo esforço
que ofereça a ela a maior intensidade possível, pois a advertência de Cubas é
categórica: ninguém se fie apenas da felicidade presente.
280
Reagi a mocidade,
era preciso viver. Meti no Baú o problema da vida e da morte [...]
281
O tom da
intensidade das experiências de Brás Cubas é construído através uma paixão pela
vida a partir da qual ela se torna intransitiva. A vida nas memórias póstumas ganha
um significado maior do que a promessa da eternidade. A eternidade é para Cubas a
representação do nada e o lugar para onde o punhado de pó, que é o destino do ser
humano, será espalhado pela morte.
282
Sob a ótica do ser humano machadiano, a dissolução da imagem de uma vida
alicerçada na eternidade, imóvel e ordenada demonstra a emergência da afirmação de
uma presença intransitiva no mundo. Esconde-se nessa nova imagem do ser humano
machadiano a necessidade da descoberta de um campo de sentido sobre o qual a vida
finita deve acontecer.
283
Mesmo que a efetivação de uma vida intransitiva se por
meio de experiências objetivas como na vida de Brás Cubas, a dimensão que deve
permanecer em evidência, intocável ou mesmo indecifrável é o mistério que leva o
ser humano machadiano a ser tomado incondicionalmente pela auto-afirmação da
vida. A vida que se deriva de um processo de auto-afirmação representa de algum
modo a superação de algo que trai ou nega o eu.
284
Poderíamos dizer juntamente com
279
Tillich argumenta que a coragem de ser é a coragem de afirmar a nossa própria natureza por e
sobre o que é acidental em nós. Cf. Paul TILLICH, A coragem de ser, p. 10.
280
MpBC, p. 518.
281
MpBC, p. 547.
282
MpBC, p. 518.
283
Cf. Clara ROCHA, As máscaras de Narciso, p. 17-18.
284
Cf. Paul TILLICH, A coragem de ser, p. 19.
120
Paul Tillich que a nova imagem do ser humano machadiano se constitui sobre a
coragem de afirmar a vida, a despeito de todas as ambigüidades que ela carrega
consigo, e por isso mesmo esse humano não se acovarda quando é confrontado por
qualquer forma de antecipação da morte. A este intenso processo de amor à vida
chamaremos de Vitalidade.
285
De acordo com Moltmann, é através dessa
incondicional manifestação de auto-afirmação que o ser humano machadiano pôde
dissipar toda e qualquer instrumentalização moral da vida e dele mesmo em favor de
um livre intensificação vida.
286
A vitalidade é o principal instrumento da sinfonia
ditirâmbica que Brás Cubas compôs.
No capítulo O Delírio, Brás Cubas, antes mesmo de sentir o hálito da morte,
narra a viagem que fez através dos tempos. Sentiu-se transformado na Suma
Teológica de S. Tomás, impressa num volume. A teologia tomista tornou-se um
alvo do humor machadiano. Brás Cubas dizia que a transformação em Suma
Teológica deu ao seu corpo a mais completa imobilidade.
287
Levado ao Éden por
um hipopótamo, Brás Cubas viu surgir diante de si o vulto de uma mulher que se
apresentou da seguinte forma:
Chamam-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
[...]
Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela
vida que se afirma.
288
No diálogo que segue, Brás Cubas demonstra certa preocupação com a sua
existência ao perguntar à Pandora se ainda vive:- Vivo? perguntei eu [...] como para
certificar-me da existência [...] “– Sim, verme, tu vives, respondeu Pandora. A
estupefação de Brás Cubas diante da possibilidade do o-ser assume maiores
proporções quando Pandora anuncia que a vida que lhe é cobrada naquele momento
285
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 89.
286
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 89. A compreensão que temos de vitalidade deve,
como aponta Moltmann, se distanciar do espírito hedonista que se instalou nas sociedades modernas.
Ela aqui também o deve ser confundida com o impulso que levou a sociedade burguesa tardia ao
endeusamento (culto) da saúde, ao culto do corpo e à exaltação da força vital como eficiência.
Portanto, a vitalidade que surge do amor à vida deve se opor aos processos que nos entorpecem em
nossas rotinas dentro de uma sociedade tecnocrata. Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p.
90.
287
MpBC, p. 520.
288
MpBC, p. 521.
121
não passa da devolução de algo que a ele foi emprestado: tu estás prestes de
devolver-me o que te emprestei.
289
Pandora ou Natureza parece de fato conhecer toda a existência de Brás Cubas
ao chamá-lo de grande lascivo. Certamente, ela relaciona a lascívia de Brás Cubas à
sua paixão pela vida, ao intenso amor dispensado à Marcela e depois à Virgília:
[...] Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
290
A absurdidade que a possibilidade do não-ser apresenta aciona o nosso senso
de auto-afirmação da vida. A vitalidade emerge diante da iminência da morte como
incondicional manifestação de amor, plenificação e conservação da vida. Podemos
nitidamente perceber que a súbita reação de Brás Cubas, ao ouvir de Pandora que o
momento seguinte de sua existência seria o nada, se movimenta sobre essa coragem
de se auto-afirmar.
Quando esta palavra ecoou espera-te a voluptuosidade do nada -,
como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último
som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição
súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais
alguns anos.
291
Observamos que não é a eternidade que é posta em questão, mas sim os anos
a mais que pede a Pandora. Essa atitude de Brás Cubas revela nitidamente a
consciência de que a vacuidade é uma expressão da ameaça do não-ser e que o
resultado da equação apresentada não pode ser outro termo senão um prolongamento,
mesmo que diminuto, da vida que acontece.
292
Certamente, nos instantes a mais que
pede para viver, Brás Cubas poderia uma vez mais presentificar as experiências de
maior expressão vital, como por exemplo, a do amor eros. O argumento de Pandora
tenta convencer Brás Cubas de que a vida sempre resulta num vazio. Sendo assim, o
que mais poderia querer o grande lascivo?
Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de
vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do
289
MpBC, p. 521-522.
290
MpBC, p. 522.
291
MpBC, p. 522.
292
Tillich chama de ansiedade o que nomeamos consciência do vazio. A ansiedade seria determinada
pela autoconsciência do eu finito como finito. Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 164.
122
espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos
torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia. a melancolia da tarde, a
quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior
benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
293
Se a vitalidade (o amor à vida) é a categoria a partir da qual poderemos
interpretar aquilo que toma Brás Cubas incondicionalmente, a resposta do grande
lascivo à pergunta derradeira de Pandora (Que mais queres tu, sublime idiota?) não
poderia ser outra senão:
Viver somente, não te peço mais nada. Quem me s no coração este
amor da vida [...]
294
Paul Tillich tem muita razão ao afirmar que diante da autoconsciência estão
unidas a ansiedade da transitoriedade e a coragem de um presente auto-afirmado. A
experiência de Brás Cubas, cremos, é um emblemático exemplo da conjunção dessas
duas dimensões.
295
A experiência radical do ter-que-morrer é o que impulsiona
fortemente Brás Cubas para o enfretamento da magnitude da vida.
296
Desse processo
advém a elevação das relações objetivas da vida à categoria de sentido último como
uma espécie de representação do infinito no finito. Em nossa ótica, essa é a
capacidade que Brás Cubas possui de aceitar a finitude que lhe assola, mas também
tal capacidade demonstra que ele não é um ser humano fechado às experiências e por
isso mesmo pode ser tomado incondicionalmente por algo que pertenceria em
princípio ao temporal ou ao efêmero. Paul Tillich chama tal processo de coragem de
afirmação do finito, todavia irá exigir da emergência dessa coragem a denúncia de
sua origem.
297
Optaremos aqui por entender que a vitalidade, enquanto categoria que
nos faz compreender melhor o ser humano machadiano, é a possibilidade mesma de
estabelecer, sob a perspectiva da efetivação das relações de amor (eros), a afirmação
da vida apesar de tudo aquilo que a diminui, apesar das suas fraquezas, de seus
293
MpBC, p. 522.
294
MpBC, p. 522.
295
Dessa percepção deriva, segundo Paul Tillich, o caráter ontológico do tempo. Cf. Paul TILLICH,
Teologia sistemática, p. 165.
296
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 296.
297
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 178.
123
obstáculos e apesar de uma das mais radicais experiências que acontece dentro dela,
que é a experiência do embate da vida contra a morte.
298
Por mais insensível e despercebido que seja o ser humano dificilmente
deixará, de algum modo e ou em algum momento de sua vida, de sentir a indefinível
presença ou ausência de algo que o transcende ou que o abarca.
299
Esta imagem
totalizante do ser humano certamente foi contemplada pela estética machadiana.
Resta-nos saber de fato se esta força estética presente na literatura de Machado de
Assis possui uma singularidade. A exigência que deve ser cumprida diante da
literatura machadiana é a de saber se as operações hermenêuticas que empregamos,
em alguma medida, confrontam ou mesmo confirmam determinadas interpretações
teológicas sobre o ser humano. Dissemos em outro momento que enquanto
hermenêutica, a teologia apresentaria, portanto, uma profunda afinidade com o
discurso literário, pois tanto a teologia, sob esta nova ótica, quanto a literatura
constroem a partir da capacidade que elas possuem em lidar e de identificar as
regiões simbólicas na realidade formas de conhecimento do ser humano e do
mundo, que por sua vez fazem apelo às operações de natureza hermenêutica para a
revelação do excesso de sentido que caracteriza a maneira pela qual eles são
representados por elas.
300
Observando de forma superficial o interior da cultura ocidental perceberemos
que a história do pensamento, a teologia e as manifestações artísticas sempre
rodearam, cada uma a sua maneira o problema da finitude, e a identificaram como
uma questão que não se resolve facilmente no horizonte do ser humano. Sócrates,
membro perpétuo da cultura grega, aqueceu o problema da finitude, sobretudo, no
Fédon, com as tematizações em torno da imortalidade da alma.
301
No interior da
cultura judaica, é marcante a tematização do problema da finitude, até mesmo porque
grande parte da nossa experiência religiosa cristã foi construída a partir dele. A
emblemática presença de Jesus Cristo e as construções soteriológicas que se
298
Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 90. O conceito de vitalidade de Tillich também
nos é muito caro. Para ele esta noção deve ser entendida como o poder que mantém um ser vivo com
vida e crescendo. Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 154.
299
Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 409.
300
Supra...
301
[...] ela a alma se dirige, para o que é invisível, para o que é divino, imortal e bio; é para o
lugar onde sua chegada importa para ela na posse da felicidade, onde divagação, irracionalidade,
terrores, amores tirânicos e todos os outros males da condição humana cessam de lhe estar ligados,e
onde, como se diz dos que receberam a iniciação, ela passa na companhia dos Deuses o resto do seu
tempo. Cf. PLATÃO, Fédon. In Diálogos, p. 86.
124
edificaram em torno dele (sobretudo o dogma da ressurreição) são autênticos
testemunhos de que a vida sempre fora confrontada com uma espécie de sentimento
trágico. Gregos, Judeus e nós, homens e mulheres forjados pela bricolagem que
marca o encontro dessas culturas, passamos a reconhecer mais fortemente tal
sentimento trágico da vida quando a morte, que foi possível para o homem que
também era Deus, passou a ser descoberta como uma realidade plausível.
302
Não
seria de se espantar se pensássemos que Aquiles, personagens da mais alta mitologia,
preferiu a morte gloriosa a uma vida inglória. O problema que pode ser levantado
reside no fato de termos privilegiado os processos que supostamente nos levariam a
neutralizar o senso de finitude. Em outras palavras, dentro da nossa tradição religiosa
(paulina) e filosófica (socrática) sempre fomos impulsionados a pensar que a
descoberta da finitude deveria ser ofuscada pela descoberta da imortalidade.
303
Como
bem afirma Miguel de Unamuno, essa descoberta, a da imortalidade
304
, preparada
pelos processos religiosos foi especificamente cristã.
305
Para Unamuno, a descoberta
da morte é o que nos revela Deus.
306
Paul Tillich também aposta que o sentido de
Deus, resguardando as particularidades que essa categoria assume dentro de seu
pensamento nasce da resposta à pergunta que está implícita na finitude do homem. É
claro que o instinto de sobrevivência também está presente e que também ele é
confrontado com o nosso senso de finitude. Unamuno procura compreender que a
morte não pode ser tomada como certeza absoluta, total, completa e como
irrevogável aniquilação da consciência pessoal, pois se assim fosse a vida tornar-se-
302
A morte de Cristo foi para Unamuno a suprema revelação da morte. Cf. Miguel de UNAMUNO,
Do sentimento trágico da vida, p. 60. O interlocutor de Equécrates parece-nos também ter tido uma
impressão muito semelhante à de Unamuno, a respeito da morte de Sócrates: Tal foi, Equécrates, o
fim de nosso companheiro. O homem de quem podemos bendizer que, entre todos os de seu tempo
que nos foi dado conhecer, era o melhor, o mais sábio e o mais justo. Cf. PLATÃO, Fédon, p. 126.
303
A serenidade de Sócrates frente à morte soa-nos, particularmente, de forma perturbadora: “– Que
estais fazendo? exclamou Sócrates. Que gente incompreensível! Se mandei as mulheres embora,
foi sobretudo para evitar semelhante cena, pois segundo me ensinaram, é com belas palavras que se
deve morrer. Acalmai-vos, vamos! dominai-vos! A inquietude dos discípulos diante da morte do
mestre é ofuscada pela certeza de que a vida que se esvai é muito menor do que a vida para onde se
destina: Ao ouvir esta linguagem, ficamos envergonhados e contivemos as lágrimas[...] Cf.
PLATÃO, Fédon. In Diálogos, p. 126.
304
O dogma central para o Apóstolo convertido afirma Unamuno foi o da ressurreição de Cristo.
O importante, para ele, era que Cristo se tivesse feito homem e tivesse morrido e ressuscitado, não o
que fez em vida, não sua obra moral e pedagógica, mas sua obra religiosa e eternizadora: Ora, se é
coerente pregar-se que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como, pois, afirmam alguns dentre vós que
não há ressurreição de mortos? E, se não há ressurreição de mortos, então Cristo não ressuscitou. E, se
Cristo não ressuscitou, é vã nossa pregação e vã a nossa fé... E ainda mais: os que dormiram em Cristo
pereceram. Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de
todos os homens.(I Cor., XV, 12-14 e 18-19). Cf. Do sentimento trágico da vida, p. 61.
305
Cf. Miguel de UNAMUNO, Do sentimento trágico da vida, p. 61.
306
Cf. Miguel de UNAMUNO, Do sentimento trágico da vida, p. 60.
125
ia impossível. Unamuno desconfia de que a dimensão que se opõe à morte enquanto
aniquilação absoluta da consciência é sempre possível, porque num esconderijo, o
mais recôndito do espírito, talvez sem o saber, o mesmo que cestá convencido de
que, com a morte, acaba sempre sua consciência pessoal, sua memória, nesse
esconderijo resta-lhe uma sombra, uma vaga sombra de sombra de incerteza, e
enquanto ele se diz: Eia! Vamos viver esta vida passageira, que não outra!, o
silêncio daquele esconderijo lhe diz: Quem sabe...! Talvez creia não o ouvir, mas
ouve.
307
A incerteza ou certeza do se houver outra vida está perenemente presente no
íntimo do ser humano e por isso torna-se incompreensível para Unamuno a
afirmação daqueles que dizem jamais terem sido atormentados pela perspectiva do
além da morte.
308
Nesse arco histórico que vai do pensamento grego às construções teológicas
mais atuais parece-nos haver uma insistência de contornar uma questão radical que
não é propriamente a questão da finitude.
309
Se a finitude é de fato um dos termos
principais da equação que se aloca no horizonte da vida, certamente ela requererá,
por ser equação, o outro termo. A chamada vida sem ambigüidades é a vida sem
307
Cf. Miguel de UNAMUNO, Do sentimento trágico da vida, p. 115.
308
Seria importante ressaltar que Maurice Blanchot construiu, a partir da literatura de Kafka, uma
forma muito particular de compreensão das questões sobre finitude e infinitude. O ocidente conseguiu,
através da criação da imortalidade como recompensa de uma vida, acabar com a morte. Não é mais
possível morrer. A desgraça do homem ocidental é exatamente a impossibilidade de morrer. Para
Kafka, segundo Blanchot, um silêncio agradável após a morte de um homem sobrevém por algum
tempo até que os lamentos se iniciem à cabeceira do morto e tenha, no fundo, como razão o fato de
que ele não está morto no verdadeiro sentido da palavra. Entre o desespero da vida e a esperança de
continuarmos vivos existe a certeza de que a morte termina com a nossa vida, mas não com a nossa
possibilidade de morrer. Como não podemos sair da existência, ela não está terminada, ela o pode
ser vivida plenamente. Esta forma de descoberta da infinitude nos leva a perceber que a vida sempre
será possível ao passo que a morte torna-se apenas uma possibilidade. O impasse desta questão estaria
na incapacidade de morrermos, pois a infinitude só pode ser alcançada através da morte: é a morte
que nos domina, mas ela nos domina com a sua impossibilidade, e isto quer dizer que nascemos, mas
também que estamos ausentes da nossa morte. Para Maurice Blanchot, o tema tratado no interior de
A metamorfose pode ilustrar a querela infinita da esperança com o desespero, criada pela literatura.
Transformando-se num inseto, Gregor permanece vivo num estado de profunda decadência. Próximo
da absurdidade e da impossibilidade de viver, Gregor busca, mesmo na condição de inseto, a saída da
sua desgraça ao lutar por um lugar sob o sofá. Ao morrer na solidão morre feliz, pois é a chegada a
hora da libertação, da esperança de um fim definitivo. Entretanto, a narrativa de A metamorfose não
permite que a morte tenha sua vez. Kafka faz ressurgir na irmã de Gregor uma absurda vontade de
viver, que para Blanchot significa nada mais que possibilidade de escapar do inevitável. Cf. Maurice
BLANCHOT, A parte do fogo, p. 15-18.
309
O trabalho que José Carlos Barcellos constrói em busca de uma teologia dramática a partir da
literatura de Julien Green debruça-se, p. ex., sobre a tragicidade da condição humana com único
propósito de apresentá-la à mensagem evangélica da salvação. Assim quando Green afirma
spirituellement ma vie est un désastre, ele está reconhecendo o caráter dramático, trágico mesmo, da
frustração existencial e religiosa vivenciada no seio mesmo dos mais altos projetos e desígnios [...]
pois Cristo veio precisamente para o que estava perdido. Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da
salvação..., p. 126.
126
contradições.
310
Para Paul Tillich, a vida sem ambigüidade é a vida que se realiza
quando se descobre o rumo ao qual ela se auto-transcende. A vida sem ambigüidade
foi, segundo Tillich, muito bem expressada por meio de um processo de estruturação
simbólica, que é a partir da religião que o ser humano recebe a resposta para o seu
absurdo, para o que está ausente ou mesmo para o que o toma incondicionalmente. O
simbolismo religioso produziu três símbolos principais para expressar a vida sem
ambigüidades: Espírito de Deus, Reino de Deus e Vida Eterna.
311
Como bem afirma
Paul Tillich, o material simbólico do simbolismo da Vida Eterna é retirado da
estrutura categorial da finitide e carrega consigo a presença dos outros dois
simbolismos.
312
É claro que o domínio de compreensão e do sentido que tais
símbolos são portadores é o domínio da teologia cristã ou nascem do advento Jesus
Cristo, pois o simbolismo da Vida Eterna, por exemplo, deve assumir a direção da
conquista das ambigüidades da vida para além da história.
313
Uma tarefa
hermenêutica se esconde no espaço de interpretação dessa estrutura simbólica. Se
couber, portanto, à teologia a tarefa de tematizar aspectos da vida como a finitude,
bem como a de interpretar as construções simbólicas que a religião é capaz de
construir como forma de dar vida às respostas nascidas das ambigüidades, como
chama Paul Tillich, cabe-nos então perguntar, em nosso caso, qual é a função da
literatura machadiana ao exercer o mesmo esforço imposto tanto pela teologia quanto
pela filosofia, ao problematizar as mesmas questões e ao apresentar as respostas
exigidas pelos dilemas humanos travados em sua dimensão propriamente estética.
314
Literatura e teologia são formas autônomas de decodificação dos símbolos
universais de onde emergem os aspectos essenciais da vida do ser humano. Quando a
literatura é percebida para além da mímesis e da pura representação do real o há,
no confronto com a teologia, uma relação de subordinação. Quando se descortinou
em Brás Cubas a realização de uma vida intransitiva e impulsionada pelo senso de
auto-afirmação emergente no ser humano machadiano, descortinou-se também,
segundo nossos pressupostos interpretativos, uma singularidade que acompanha esse
310
Cf. Paul TILLLICH, Teologia sistemática, p. 466.
311
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 467.
312
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 468.
313
Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 468.
314
Se houver de fato uma função ou funções para a literatura, de algum modo será(ão) devedora(s) do
campo de sentido que ela é capaz de criar. Compreender um texto literário, portanto, é acima de tudo
torná-lo significativo para nós. Por isso, os textos literários não devem ser vistos como realidades
portadoras de um sentido prévio. O sentido de um texto deve ser construído a partir de operações
hermenêuticas. Cf. Paul RICOEUR, Do texto à ação, p. 130.
127
ser humano. Estando o ser humano machadiano confrontado com questão da finitude,
não em sua forma de resolver essa questão uma obediência à matriz soteriológica
que permeia nossa tradição religiosa e teológica.
O cristianismo é bom para as mulheres e os mendigos, e as outras
religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela mesma
vulgaridade ou fraqueza [...] Verás Brás Cubas o que é a religião
humanística [...] é a reconstituição da substância, não o seu
aniquilamento
315
O que estamos afirmando é que a teologia de Paul Tillich permanece ainda
com uma dívida com a matriz soteriológica construída pela tradição cristã.
316
Dissipar a possibilidade da eternidade e o apego radical à vida que acontece
transformariam as memórias póstumas, em nossa ótica, numa grande ode à vida sem
que ela e a plena superação da finitude dependessem de uma dimensão utópica além
da história. O amor incondicional à vida (Viver somente, não te peço mais nada
[...]
317
ou Viver não é a mesma coisa de morrer[...]
318
), o amor vivido com
Marcela (Gastei trinta dias para ir do Rossio Grande ao coração de Marcela, o
cavalgando o corcel do cego desejo [...]
319
) e depois a descoberta da paixão por
Vírgília (Vejam: o meu delírio começou na presença de Virgília; Virgília foi o meu
grão pecado da juventude
320
[...] Virgília era o presente; eu queria refugiar-me nele
[...]
321
Virgília era o travesseiro do meu espírito [...]
322
) formam o epicentro das
memórias. Observemos apenas como contraponto que a vida sem ambigüidades,
como postula Paul Tillich, deve ter como horizonte o simbolismo religioso que é
construído dentro da matriz religiosa cristã e a ele de certa forma deve se subordinar.
As particularidades da estética machadiana serão mais acentuadamente percebidas
quando observarmos que a questão mais importante do diálogo da teologia ou da
filosofia com a vida não está propriamente na identificação das questões mais
radicais como a finitude, mas sim na resposta que ela a literatura apresenta para
315
Esta afirmação é dada por Quincas Borba, amigo de Brás Cubas e criador do humanitismo. Cf.
MpBC, cap. 157.
316
Para Paul Tillich a resposta à busca de uma vida sem-ambigüidades é a experiência da revelação e
salvação. Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 469.
317
MpBC, p. 522.
318
MpBC, p. 536.
319
MpBC, p. 534.
320
MpBC, p. 525.
321
MpBC, p. 575.
322
MpBC, p. 575.
128
os dilemas que já se tornaram consenso. o é a exposição da questão radical da
finitude a singularidade da estética machadiana, mas sim a possibilidade de o ser
humano construído artisticamente vislumbrar que a vida pode se despedir das
exigências soteriológicas e mergulhar num processo de auto-afirmação do presente:
Teria de escrever um diário e não umas memórias, nas quais entra a substância
da vida.
323
Por mais que o simbolismo da Vida Eterna aponte, a partir de seu
campo de sentido, algo maior do que uma vida perfeita além da história, cremos
haver na antropologia machadiana uma dura crítica à eternidade como efetivação
objetiva de uma vida sem riscos, pois a eternidade seria uma espécie de consolação
suprema ou mesmo de instrumentalização por subordinar a vida de forma repressiva
a um processo de salvação. A antropologia que permite experimentar a dimensão
incondicional a partir da vida sem ultrapassar os limites da imanência não deve ser
inteiramente comparada ao que se convencionou chamar de homo religiosus;
324
propomos antes que se deva chamá-la de homo vitalis.
323
MpBC, p. 544.
324
Cf. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
129
3.3. O homo vitalis
O homo vitalis
325
não é uma construção categorial criada especificamente em
oposição ao homo religiosus proposto por Mircea Eliade. O homo vitalis é antes, e
assim cremos, um evento metafórico-enunciativo emergido do arcabouço estético da
literatura machadiana, que nos exige tal enquadramento conceitual para uma
compreensão um pouco mais alargada das expressões religiosas sob o ponto de vista
antropológico, depois da chamada morte de Deus.
O cenário caótico do mundo tardomoderno configurado exemplarmente pelas
experiências de destruição movidas pelas mãos das guerras não nos deixaram de
forma clara uma dimensão que pudesse apontar para a presença explícita das
expressões religiosas, quer do ponto de vista antropológico quer do ponto de vista da
natureza. O próprio trabalho de uma teologia da cultura em Paul Tillich, sobretudo
seu esforço de ressignificação da estética da desmaterialização representada pelo
movimento expressionista, pode ser visto como uma tentativa de busca do
incondicional nos escombros de um mundo onde as antigas cosmovisões religiosas
estavam claramente dilaceradas. À guisa de digressão tocaremos de forma sutil no
problema que levantamos aqui. Para autores como Mircea Eliade, seja qual for o
contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita sempre que existe
uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se
manifesta, santificando-o e tornando-o real.
326
Essa visão estabelece uma
significação cristalizadora das formas através das quais o ser humano estabelece sua
relação ou é tomado por aquilo que o escapa. A idéia força de Eliade, para justificar
o essencialismo em que o homo religiosus é mergulhado, parte da premissa de que no
mundo moderno o ser humano assume uma nova situação existencial que é marcada
pela rejeição a todo e qualquer apelo à transcendência.
327
Tal premissa não se
distancia muito do que trouxemos como fator de discussão da situação religiosa do
ser humano no mundo tardomoderno, nem tampouco se distancia da interpretação
corrente do que foi a relação da religião com a modernidade. O problema que vemos
325
Do Latim vitalis Adj. Da vida, relativo à vida [...] 2. Que conserva a vida [...] 3. Fig. Digno de
ser vivido [...] - Vitalitas f. Vitalidade, força vital (Marco Túlio Cícero) - Vitaliter Adv.
Vitalmente, com vida [...] Cf. Antonio Gomes FERREIRA. Dicionário de Latim-Português. Porto:
Porto Editora, 1976.
Cf. tb.
Vitalité (francês) Vivification Revivification [...]
326
Cf. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 164.
327
Cf. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 165.
130
é que a subsistência do chamado homo religiosus é promovida por uma linha
sucessória que o liga ao que Eliade nomeia de homem a-religoso. Segundo Eliade,
esta seria a maneira própria para classificar o homem moderno. Numa ponta estaria o
homo religiosus e na outra o homem a-religoso. Nessa infinita discussão que se
movimenta dentro das polaridades sagrado vs profano, o homem a-religioso (o
homem moderno), aquele que se dessacraliza, dessacraliza o mundo e que somente
se sentirá verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus, será o
somente visto por Eliade como uma dimensão antropológica que carrega consigo
apenas alguns vestígios do homo religiosus.
328
A questão que se abre para Eliade faz
com ele estabeleça um processo incessante de comparação entre o homem mais
primitivo (homo religiosus) e o mais moderno (homem a-religioso) para justificar a
substancialização que pretende conferir ao homo religiosus . Não estamos convictos
de que esta hipótese, a que determina a expressão religiosa do ser humano através de
uma matriz rígida e primitiva ou mesmo essencialista, mesmo que lida, seja a
melhor maneira de compreender a complexidade e as formas de efetivação das
experiências religiosas dos seres humanos. Não basta provar que o ser humano é um
ser de abertura ao transcendente, porque certamente correríamos o risco de lançá-lo
ao vazio que se apresenta a toda proposta essencialiadora e ao mesmo tempo
perderíamos de vista as particulares expressões religiosas que o ser humano pode
assumir.
329
O homo vitalis é uma questão de sentido. Por se tratar de um evento delineado
pelo discurso literário que atinge a realidade através de um processo de
referenciação, o homo vitalis não assumi a tarefa de enquadrar ou de se propor
como matriz da expressão religiosa do ser humano do mundo tardomoderno. O homo
328
Cf. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 165-166.
329
Essa crítica também pode ser direcionada a determinados trabalhos que, a partir da interface
teologia e literatura, constroem imagens engessadas tanto de Deus quanto do ser humano. Alguns
trabalhos têm demonstrado, do ponto de vista metodológico e teórico, uma rigidez teológica
condicionadora. Este é o caso de trabalhos como o de José Carlos Barcellos e o de Antonio Manzatto.
Cf. BARCELLOS. José Carlos. O drama da salvação: espaço autobiográfico e experiência cristã em
Julien Green. Rio de Janeiro: PUC Rio, Tese. Departamento de Teologia. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, 2000. Cf. MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão
teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994.
A crítica que fazemos tem um duplo movimento: 1. Ao tematizar as relações entre Deus e o ser
humano tais trabalhos não conseguem se desfazer dos gidos sistemas teológicos como eixo
hermenêutico dessa relação. 2. Partem de um princípio teológico que pressupõe uma revelação de
Deus definida e delimitada, o que impede a possibilidade da construção de novas percepções
religiosas tanto do ponto de vista teológico quanto do ponto de vista antropológico. Deus é
comumente visto como resposta para as questões relacionada à condição humana. Sobre tais críticas,
cf. tb. Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras. São Paulo: Paulinas, 2001.
131
vitalis e suas singularidades são eventos discursivos produzidos pela força poética da
literatura machadiana; de acordo com Paul Ricouer, ele seria uma metáfora viva,
dinamicamente atuante no tecido literário assumindo, segundo nossa perspectiva, no
campo semântico, uma expressão religiosa relacionada ao ser humano.
3.3.1. As expressões da incondicionalidade no homo vitalis
O homo vitalis é tomado incondicionalmente por um amor à vida (vitalidade)
que se apresenta como fator de intensificação da própria vida. A descoberta do amor
por Marcela nos faz lembrar o que Rudolf Otto chama de or. Tal dimensão seria a
responsável pelas expressões simbólicas de vida, de paixão, de sensibilidade,
vontade, de força, de movimento, de excitação, de actividade e de impulso.
330
O
amor por Marcela revela-se como uma face da incondicionalidade assumida por Brás
Cubas perante a vida, porque esse amor é construído sem que sobre ele recaía
qualquer condição. Brás Cubas chama a linda espanhola Marcela de meu primeiro
cativeiro pessoal.
331
De todas por
ém a que me cativou logo foi uma [...] uma não se diga;
este livro é casto; ou se de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi
uma dama espanhola, a linda Marcela. Como lhe chamavam os
rapazes do tempo.
332
Não se põe em pauta nas memórias póstumas as questões morais de uma
sociedade conservadora como a que Brás Cubas pertence e representa
333
, porque a
paixão por Marcela é conservada mesmo que sua descrição denuncie que fosse boa
moça, lépida, sem escrúpulos [...] luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de
rapazes. O amor por Marcela pode ser reconhecido como um elemento que promove
temporariamente um desgoverno nas ações de Brás Cubas, pois ela assume
momentaneamente, no trânsito de sua vida, o lugar de horizonte último:
330
Rudolf OTTO, O sagrado, p. 34.
331
MpBC, p. 532.
332
MpBC, p. 533.
333
Cf. MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. o Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
132
Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada
menos.
334
Sem poder perpetuar sua paixão por Marcela em razão de uma imposição
familiar, Brás Cubas reconhece que sobre si paira a neblina do amor: [...] ficando a
sós, derramei todo o desespero do meu coração
335
. A bordo do navio que o levava
do Rio de janeiro para Portugal, Brás Cubas confessa intimamente: o mundo para
mim era Marcela
336
Podemos notar que as ações vitais de Brás Cubas tentam se
esquivar da tirania situações repressivas e instrumentalizadoras da vida. As
ambigüidades da vida enfrentam constantemente o sentido vital a partir do qual a
vida de Brás Cubas se move. Dilacerado, Brás Cubas é visitado pelo senso de
finitude, porque sua vida, a que se pretendia intransitiva, momentaneamente
transitava sobre uma esfera despontencializadora ao se radicar na ausência do amor
de Marcela: Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio
ter comigo.
337
Todavia, o horizonte de Brás Cubas é a vida e o amor eros, que dela
ou por ela emerge, se torna a dimensão que a pontencializa. Como afirma o próprio
defunto autor, diante de um incidente que possivelmente promoveria uma ameaça à
sua vida ou a antecipação de sua morte, [...] o preço da minha vida [...], - essa era
inestimável
338
Depois do amor dispensado à espanhola Marcela, Brás Cubas descobriu que a
intensidade de sua vida não reconhecia os desvãos, porque cada estação da vida é
uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição
definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.
339
A próxima estação de sua vida
seria Virgília:
Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço,
precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins
334
MpBC, p. 536.
335
MpBC, p. 537.
336
MpBC, p. 539.
337
MpBC, p. 540.
338
Cf. MpBC, Cap. XXI, p. 542-543. Neste capítulo, Brás Cubas narra o incidente com o almocreve.
Tendo o seu jumento intentado sair em disparada enquanto passeava por Portugal, um almocreve
dominou o animal salvando Brás Cubas do que poderia ter sido um desastre. O impasse que se instala
é o de saber o que fazer para recompensar aquele que lhe salvou a vida. Mesmo que sua vida fosse
inestimável, Cubas recompensa o almocreve com um cruzado de prata depois de ter pensado em lhe
oferecer cinco moedas de ouro. Notamos também que o problema da ameaça da vida ou o da
antecipação da morte promovem em Brás Cubas um senso de absurdidade e perplexidade diante da
vida.
339
MpBC, p. 549.
133
secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira,
ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e
alguma devoção, devoção, ou talvez medo; creio que medo.
340
A ressurreição do corpo uma vez mais retorna ao centro das memórias
póstumas. Para Brás Cubas, reacender-se diante da vida é acima de tudo fugir da
obscuridade e do que é ínfimo.
341
Como o ser humano machadiano está lançado à
transcendência de uma vida imanente, o elemento regente dessa vida se configura
notadamente através dos impulsos vitais. Poderíamos dizer que o itinerário de Brás
Cubas é marcado episodicamente pela paixão pela vida e por suas eróticas aventuras
amorosas com Marcela e Virgília.
342
A mais nova estação da vida de Cubas passou a
ser a doce Virgília. O casamento de Virgília com Lobo Neves não impediu que a
aproximação de Brás Cubas se realizasse. Eis uma prova de que o ser humano
machadiano busca se esquivar das tutelas das convenções sociais
instrumentalizadoras dos impulsos vitais.
343
O casamento com Lobo Neves não
impediu que Brás Cubas afirmasse: [...] É minha!
344
O amor recíproco vivido por
Brás Cubas e Virgília é descrito da seguinte forma pelo amante:
Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e
pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva,
que, dentro em pouco, era mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos
bosques [...] Uniu-nos esse beijo único [...] breve como a ocasião,
ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de
remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de aflições que
desabrochavam em alegria [...] único freio de uma paixão sem freio
[...]
345
Esse desgoverno ordenado que agora se presentifica através da paixão pela
vida e por Virgília toma incondicionalmente a existência de Brás Cubas. Tornou-se
340
MpBC, p. 549.
341
Cf. MpBC, p. 550.
342
Brás Cubas constrói uma brilhante paródia um torno da reflexão aristotélica sobre o primeiro motor
imóvel: Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o
impulso, e eis a segunda boa a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se
chama... Marcela, - é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que
Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, o qual, cedendo à força
impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e
eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma
cousa que poderemos chamar solidariedade do aborrecimento humano. Cf. MpBC, Cap. XLII, p 560.
343
Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos deveras [...]. Cf,
MpBC, p. 571.
344
MpBC, p. 566.
345
MpBC, p. 569.
134
necessário dar cordas ao relógio que antes lhe tirava sono.
346
Se a insônia era uma
espécie de metáfora da monotonia e do enfado da vida, diante da recíproca vívida
paixão por Virgília, tornava-se agora a vigília que uma vida intensa requer:
O mais singular
é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que
ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus
instantes perdidos [...] Naquela noite não padeci essa triste sensação de
enfado, mas outra e deleitosa. As fantasias tumultuavam-me cá dentro,
vinham umas sobre outras, à semelhança de devotas que se abalroam
para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos,
mas os minutos ganhados [...] o meu pensamento, ardiloso e traquinas,
saltou pela janela fora e bateu as asas na direção da casa de Virgília.
achou no peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaram-se e
ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio,
necessitados de repouso, e os dous vadios ali postos, a repetirem o velho
diálogo de Adão e Eva..
347
Eis o velho diálogo de Adão e Eva:
BRÁS CUBAS ......................................?
VIRG
ÍLLA ...............................
BR
ÁS CUBAS........................................................................................
....................................................................................................
VIRGÍLIA................................................................................!
BRÁS CUBAS .................................
VIRG
ÍLIA...................................................................................................
..........................................? ....................................................................
.....................................
BR
ÁS CUBAS.........................................................
VIRG
ÍLIA.......................................................
BR
ÁS CUBAS
....................................................................................................................
............................... ................................................... ..!..................
....................................!...............................................................................
.....................................................!
VIRG
ÍLIA
.
........................................................?
346
MpBC, p. 569.
347
MpBC, p. 569-570
135
BRÁS CUBAS ....................................!
VIRG
ÍLIA ............................................!
348
[...]
S
im, senhor, amávamos.
349
Distanciando-se cada vez mais dos imperativos morais da sociedade
oitocentista, essa forma de afirmação da vida encontrada por Brás Cubas e Virgília se
tornava a mais autêntica expansão da vontade: Virgília amava-me com fúria [...] era
a vontade patente.
350
A subversão momentânea de tais aspectos morais nos remete a
uma forma de liberação da dimensão vital que é, por seu turno, um fator essencial
para o estabelecimento de relações existenciais um pouco mais livres e pautadas no
afloramento de uma ordem instintiva. Ao contrário do que se poderia esperar, se
tomarmos os dois amantes como arquétipo do ser humano do mundo tardomoderno,
talvez fosse possível perceber que a efetivação de uma vida intransitiva, sem os
processos repressivos e instrumentalizadores não nos conduziria a um retrocesso do
ponto de vista individual ou social, porque segundo Marcuse o estabelecimento de
uma ordem não-repressiva só pode ser possível se os instintos sexuais (traço da
dimensão vital) puderem, em virtude de sua própria dinâmica e sob condições
existenciais e sociais mudadas, gerar relações eróticas duradouras. Essa noção de
uma ordem instintiva não-repressiva deve ser testada, afirma Marcuse, nos mais
desordenados de todos os instintos: os da sexualidade.
351
Portanto, torna-se patente
que a dinâmica de intensificação da vida construída por Brás Cubas e Virgília não
oferece riscos à vida. Para Norman Brown, o instinto de vida ou instinto sexual
requer um tipo de atividade que, em contraste com os nossos modos correntes de
atividade, somente pode ser chamado de jogo (sedução). Essa incondicionalidade
assumida diante da vida, alimentada por Brás Cubas e Virgília, é nascida daquilo que
Brown chama de instinto de vida. Essa dimensão instintiva não é baseada na
ansiedade e na agressão do outro ou do mundo, mas no senso narcisista dos seres
humanos e na exuberância do erótico.
352
O que os cúmplices amantes experimentam
348
MpBC, p. 570.
349
MpBC, p. 571.
350
MpBC, p. 576. O contraponto que realça a nossa afirmação pode ser feito a partir do discurso do
padre feito a Estácio: [...] Digo te que tens uma raiz de má erva no coração;esta é a cruel verdade [...]
A poesia trágica pode fazer do assunto uma ação teatral; mas o que a moral e a religião reprovam, não
deve achar guarida na alma de um homem honesto e cristão. Cf . Helena, p. 365.
351
Cf. Herbert MARCUSE, Eros e civilização, p. 175.
352
Cf. Norman O. BROWN, The resurrection of the body. In Life Against Death, p. 307.
136
são, portanto, as forças de afirmação e não os poderes de negação da vida
353
, porque
para Brás Cubas a vida é um doce.
354
A vida intransitiva também cria seus mecanismos de autodefesa. A passageira
possibilidade da perda de Virgília ecoou em Brás Cubas como um cortejo fúnebre.
Ao escaparem da possível separação que se daria em face da nomeação de Lobo
Neves a um ministério, Brás Cubas sentiu visceralmente certo desvanecimento de
sua vida que por sua vez o fez reconhecer que: quem escapa a um perigo ama a vida
com outra intensidade.
355
Portanto: entrei a amar Virgília com muito mais ardor,
depois que estive a pique de a perder, e a mesma coisa lhe aconteceu a ela.
356
Todavia, cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que
será corrigida também, até a edição definitiva [...]
357
. Rumo à estação da velhice,
notamos que as memórias de Brás Cubas nos lançam de certo modo ao
reconhecimento de que o fluxo intenso no qual sua vida fora construída poderia a
partir de então ser substituído por um fluxo mais perene, mesmo estando ele
consciente de que uma vida pautada num tipo qualquer de ascetismo seria a
expressão acabada da tolice humana.
358
Sentia-me tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de
canalizar a vida. Por que não? Meu coração tinha ainda que explorar;
não me sentia incapaz de um amor casto, severo e puro. Em verdade, as
aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida [...]
359
A despedida de Virgília marca profundamente a vida de Brás Cubas:
[...]
- Custa-me muito.
- Mas é preciso; adeus, Virgília!
- Até breve. Adeus!
360
A partir daquele momento Brás Cubas também reconheceu que uma outra
neblina, não a neblina do amor, mas a neblina da melancolia pairava sobre sua vida:
353
Cf. Jürgen MOLTMANN, O Espírito da vida, p. 11.
354
MpBC, p. 591.
355
MpBC, p. 594.
356
MpBC, p. 594.
357
MpBC, p. 549.
358
MpBC, p. 610.
359
MpBC, p. 609.
360
MpBC, p. 613.
137
Eles iam mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta da
mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e vazios [...]
361
Brás Cubas
declara: Fiquei tão triste com fim do último capítulo que estava capaz de o
escrever este, descansar um pouco, purgar o espírito da melancolia que o empacha, e
continuar depois. Mas não, não quero perder tempo.
362
Contudo, o imperativo da
vontade de viver, não obstante as circunstâncias da vida de Brás Cubas, permanece
aceso: Se a idéia do emplasto me tem aparecido nesse tempo, quem sabe? não teria
morrido logo e estaria célebre. Mas o emplasto não veio. Veio o desejo de agitar-me
em alguma coisa e por alguma coisa.
363
Por sugestão de sua irmã Sabina, Cubas
vislumbrou a possibilidade de um casamento e a de ter filhos. Segundo Quincas
Borba, esse sobressalto dado por Brás Cubas era nada mais que a agitação de
Humanitas no íntimo do nosso protagonista.
Notamos também que o problema da ameaça da vida ou o da antecipação da
morte promove em Brás Cubas um senso de absurdidade e perplexidade diante da
vida. A agitação de Humanitas, traço que marca a presença dos impulsos vitais em
Brás Cubas, provinha de uma paixão em estágio inicial por Nhá-loló. Consternado
com a morte precoce de sua paixão não realizada nada lhe cabe dizer, porque: O
epitáfio diz tudo.
364
_________
AQUI JAZ
D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO
MORTA
AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE!
ORAI POR ELA!
____________
365
Brás Cubas revela em suas memórias que a morte de Nhá-loló parecia-lhe
ainda mais absurda que todas as outras mortes experimentadas por ele. A jovialidade
de Nhá-loló, abatida pelas mãos do inexplicável, revelava-se nas memórias como a
última aposta de Cubas naquilo que faz da vida algo mais elevado e mais intenso: o
amor. Este mesmo senso de impotência de realização do amor sobreveio também ao
361
MpBC, p. 613.
362
MpBC, p. 614.
363
MpBC, p. 617.
364
MpBC, p. 621.
365
MpBC, p. 621.
138
velho Conselheiro Aires em seu memorial. O paradoxo de Aires se constitui no vão
que separa a sua velhice da vívida juventude de Fidélia:
25 de janeiro
Ao v
ê-la agora, não a achei menos saborosa que no cemitério, e
tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa também. Parece feita
ao torno, sem que este vocábulo dê nenhuma idéia de rigidez; ao
contrário, é flexível. Quero aludir somente à correção das linhas, falo
das linhas vistas; as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pele
macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal à
viuvez. Foi o que vi logo à chegada, e mais os olhos e os cabelos pretos;
o resto veio vindo pela noite adiante, até que ela se foi embora. Não era
preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e na
conversação. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que pensei
da pessoa. Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso
justamente de Shelley, que relera dias antes em casa, como lá ficou dito
atrás, e tirado de uma das suas estâncias de 1821:
I can give not what men call love.
Assim disse comigo em ingl
ês, mas logo depois repeti em prosa nossa a
confissão do poeta, com um fecho da minha composição: Eu não posso
dar o que os homens chamam amor... e é pena!
Esta confiss
ão não me fez menos alegre [...]
366
O que se apontava no horizonte de Brás Cubas, depois da morte da jovem
Eulália, era a certeza de que a vida caminhava para um abismo de onde o poderia
sair nem mesmo pelas mãos do emplasto, embora apostasse na cura de nossa eterna
melancolia. O abismo não era infinito, mas se chamava velhice: Compreendi que
estava velho, e precisa de uma força [...]
367
Fica mantida, porém, em seu íntimo a
certeza de que não há outra coisa como a paixão do amor para fazer original o que é
comum, e novo o que morre de velho.
368
366
Memorial de Aires, 25 de março, p. 1.103-1.104. A idéia de aproximar este trecho do romance
Memorial de Aires do romance Brás Cubas se sustenta a partir da chamada transtextualité ou
transcendance textuelle du texte. A transtextuali seria toda a forma de um texto manter uma relação,
manifesta ou secreta, com outro(s) texto(s). Cf. Gérard GENETTE, Palimpsestes, p. 7. Cf. tb. Ana
RECIO MIR, Análisis textual de la transparencia.... In. ROMERA, Jose; YLLERA, Alicia; CALVET,
Rosa (Orgs.). Escritura Autobiográfica, p. 353: Toda lectura, toda obra literaria es inevitablemente
interpretada a partir de otras [...].
367
MpBC, p. 638.
368
Memorial de Aires, 13 de março, p. 1.187. Cabe aqui, sem nenhum esforço, uma aproximação com
o aforismo 26 da obra A gaia Ciência de Nietzsche: Que significa viver? Viver é continuamente
afastar de si algo que quer morrer; viver é ser cruel e implacável com tudo o que em nós, e não
apenas em nós, se torna fraco e velho [...], cf. NIETZSCHE, A gaia ciência, p. 77.
139
E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha o
livro e não lê as restantes. Para ela extinguiu-se o interesse de minha
vida, que era o amor. Cinqüenta anos! Não é ainda invalidez, mas já não
é a frescura [...] Tempora mutantur.
369
A travessia da vida ainda vige, porém com ela vige também, com a chegada
da velhice, o senso de vacuidade. Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e
não sou nada.
370
A voz que fala em primeira pessoa é a voz de um homem velho,
que tem a consciência de que não é mais possível se projetar sobre a vida com
mesma intensidade de outrora; portanto sabe que morre.
371
O sentido da vida de
Brás Cubas teve pleno significado quando admitiu que sua vida não deveria se
condicionar a nenhuma dimensão teleologicamente construída. Tendo a consciência
de que a vida humana será sempre confrontada com seu ocaso, Brás Cubas buscou no
emplasto uma metáfora para a cura da melancólica existência humana: divino
emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da
riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração dos céus. O acaso determinou o
contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos
372
A pergunta mas que diacho
há absoluto nesse mundo? pretende-se irônica, porque se tomada no horizonte de
sua vida demonstrará que todas as veleidades na verdade deram a ela uma
significante concretude: compreendi que estava velho, e precisava de uma força
[...]
373
A solidão pesava-me, e a vida era para mim a pior das fadigas [...] Diante
de todas as negativas que recaem sobre uma vida que se pretendeu intensa porém
finita conscientemente, fica por certo um saldo positivo. Como afirma Brás Cubas,
coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com suor do meu rosto e ainda a
derradeira negativa, que é o seu pequeno saldo positivo conquistado na vida: Não
tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
374
369
MpBC, p. 625.
370
MpBC, p. 628.
371
MpBC, p. 630.
372
MpBC, p. 639.
373
MpBC, p. 638.
374
MpBC, p. 639.
140
CONCLUSÃO
Terminado o percurso através da literatura machadiana, cabe-nos o dever de
perguntar pela contribuição que ela prestou aos estudos de religião quando, no
horizonte da cultura moderna, pôde criar uma hermenêutica particular do sentido da
vida e do ser humano. Reconhecemos, antes de tudo, com tal apontamento, a
dignidade que a literatura carrega consigo enquanto intérprete da existência e da
vida. Reconhecemos também sua força poética, que se expressa na criação de um
mundo referencial e regido pela atuação metafórica capaz de imprimir sobre a
escritura do texto o sentido religioso que buscávamos por meio da leitura. A despeito
de ter havido uma forte recepção da corrente positivista no Brasil do século XIX por
meio da cultura literária, a estética machadiana, ao nos permitir ir do nostálgico
sentido de Deus presente no romance Dom Casmurro até a transcendência imanente
à vida contida nas Memórias póstumas, nos diz que esteve atenta à captura daquilo
que toma o ser incondicionalmente humano e que rejeita uma interpretação da vida
que despreza aquilo que nos escapa. Tal oscilação (operada pela metáfora) reitera tão
somente que a dimensão subterrânea (região simbólica) de onde emergiu o sentido
que capturamos sobre a superfície dos referidos textos por meio de nossa
interpretação é notadamente religiosa.
O afastamento do tema da religião no espaço machadiano foi promovido
parcialmente por um tipo de crítica que buscou ver no interior da literatura do autor
de Brás Cubas somente uma recepção passiva das principais correntes de pensamento
dos séculos XIX e XX, quando em verdade havia a partir do legado machadiano um
franco processo de diálogo com o que estava a sua volta e com as principais questões
da vida. As críticas disparadas por Octávio Brandão e Afrânio Coutinho em direção à
literatura machadiana certamente encontraram outro alvo, pois o que sempre esteve
em jogo não era o pessimismo da antropologia machadiana, mas sim o tema da vida,
como apresentamos.
No primeiro capítulo tivemos a preocupação de construir, a partir da teoria
hermenêutica de Paul Ricoeur, um aparato interpretativo para dar conta das questões
de sentido contidas na indomesticável literatura de Machado de Assis. Tomamos
também referencialmente o problema da morte de Deus em Nietzsche como marco
141
contextual de um mundo e de uma expressão humana que urgia por uma nova
interpretação. Nietzsche apontava para o processo de desteificação do mundo ao
mesmo tempo em que indicava o momento extraordinário que emergia diante do ser
humano, configurado pelo senso de auto-referência de si mesmo.
A forte relação da religião e conseqüentemente dos temas teológicos com a
literatura fizeram com que muitos teólogos construíssem metodologias próprias para
dar conta da aproximação entre elas. Negamos com isto a possibilidade de ter na
literatura, apenas um arcabouço de temas teológicos. A aproximação da teologia com
a literatura mesmo que servisse somente para o trabalho da reflexão teológica, talvez
porque a teologia se sentisse, no limiar do século XX, impedida de algum modo de
realizar sua tarefa integralmente, construiu imagens extraordinárias e muito
particulares dos clássicos temas teológicos. Neste contexto estão os trabalhos de José
Carlos Barcellos e o de González de Cardedal.
Cabe, certamente, nesta conclusão um destaque para o que Antonio
Magalhães nomeia de todo da correspondência em sua obra Deus no espelho das
palavras. Não há na literatura machadiana uma preocupação em conceituar o que o
dado religioso é. na verdade um cuidado em dizer de modo muito particular de
que forma ele se expressa no horizonte da existência humana. Por um outro caminho
trilha a compreensão mais sistemática e conceitual de Jürgen Moltmann ao propor
que o ser humano do mundo moderno seja percebido a partir de um incondicional
amor à vida como expressão de sua nova espiritualidade. Neste ponto, tanto a
concretude que a literatura machadiana dá à vida do ser humano criado por sua força
poética (homo vitalis), quanto a interpretação que a teologia sistemática de
Moltmann confere ao humano da modernidade tardia são formas autênticas de
compreensão de uma antropologia que não se repelem ou se excluem, mas que se
correspondem. Neste caso, a correspondência dar-se-ia entre a imagem antropológica
que a literatura machadiana e a compreensão teológica de Jürgen Moltmann
promovem da condição humana diante de um mundo onde a auto-referência de si
teria em certa medida predomínio. Por reconhecer as diferenças e a importância que
tanto a teologia quanto a literatura possuem enquanto lugares de interpretação do
mistério que é a vida, o método da correspondência distanciaria de ambas, teologia e
literatura, a possibilidade de superposição da relação ente elas.
Particularmente, a literatura machadiana tem sobre si uma forma própria de
fazer emergir através de sua escritura a verdade que deseja que capturemos. Como
142
dissemos, a dignidade da literatura não reside no seu esforço de ser uma
manifestação de pensamento que somente ganha vida quando comparada ou mesmo
submetida aos grandes sistemas conceituais. Fazemos esta alusão por compreender
que, se há correspondências entre a compreensão que tanto a teologia de Moltmann
quanto a literatura machadiana construíram em torno da condição humana, devemos
também observar que a escritura do autor de Brás Cubas nos dá algo que ultrapassa o
sentido evocado por sua força poética e que procuramos ressaltar em nossa análise.
Em primeiro lugar, destacaríamos a antecipação, empreendida pela literatura de
Machado Assis, da forma pela qual o ser humano deveria reconhecer a finitude e
reinventar a sua vida incondicionalmente diante da constante presença dela. Isto
coube ao evento literário que nomeamos de homo vitalis. Em segundo lugar,
ressaltaríamos que o sobressalto promovido pela literatura machadiana sobre sua
condição mesma de obra artística se realiza ao criar, ainda que no plano poético, uma
correspondência conceitual entre o Humanitas do filósofo Quincas Borba e a
Vitalidade de Jürgen Moltmann. Eis aí sua dimensão prospectiva sobre a realidade
que se abria em direção ao século XX. Como bem afirma Antonio Magalhães, ao
acontecer na vida, o texto é sempre algo a se cumprir, um projeto a ser realizado.
Este heterologos poético que escorre da literatura machadiana, esta forma de
dizer poeticamente o que o ser humano é diante daquilo que o escapa, certamente nos
atinge e por isso penetra a nossa realidade, fazendo com que uma vez mais nos
interroguemos sobre o mistério de nossas vidas.
143
BIBLIOGRAFIA
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1985. Tomos I e III
_____. Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1962. Tomo II.
a.i. Obras citadas na tese
Romances
Helena (1876) Tomo I
Iaiá Garcia (1878) Tomo I
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) Tomo I
Dom Casmurro (1889) Tomo I
Quincas Borba (1891) Tomo I
Memorial de Aires (1908) Tomo I
a.ii Contos
O imortal (1882 Outros contos) Tomo II
A segunda vida (1884 Histórias sem data) Tomo II
Viver! (1886 Varias histórias) Tomo II
a.iii. Crônicas
Notas semanais (1878) Tomo III
A semana (1892-1897) Tomo III
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