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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
André Essenfelder Borges
CAMINHOS DA CULTURA INDÍGENA: O PEABIRU E O NEOINDIANISMO
Dissertação apresentada para a obtenção
do título de mestre no Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientador: Dr. Oscar Calávia Sáez.
FLORIANÓPOLIS
2006
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Agradecimentos
Agradeço primeiramente as instituições financiadoras, CAPES e CNPQ, cujo apoio
possibilitou este trabalho. Também ao programa de Pós Graduação em Antropologia Social
da UFSC, local onde fiz amigos. Ao pessoal do Núcleo de Transformações Indígenas, pelas
idéias e críticas. Aos professores Márnio e Míriam, que foram meus tutores. Ao meu
orientador, Oscar Calávia, por ter dado liberdade nesta construção e me feito pensar em
questões que antes eram invisíveis.
Agradecimentos também a todos que acompanharam a viagem. Aos informantes das
cidades de Barra Velha, Pitanga, Campina da Lagoa, Palotina, Guaíra, Salto del Guairá, La
Paloma e Kuruguaty, que provavelmente se reconhecerão no texto.
Por fim agradecimentos a todos que me acompanharam durante minha formação
como pesquisador, aos professores e amigos.
Dedico este trabalho à Márcia, pelo equilíbrio.
A meu pai, pelo conhecimento.
ii
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Caminhos da cultura indígena: o Peabiru e o neoindianismo
Englobando os atuais estados do sul do Brasil existem, ainda hoje, trechos
preservados de um caminho muito peculiar que vem sendo interpretados como ramais do
caminho do Peabiru. Segundo alguns cronistas, que passaram por ele durante o século XVI,
o caminho formava um leito coberto por gramíneas e fazia a ligação entre o Oceano
Atlântico e o Pacífico. Atualmente, autores acadêmicos falam dele como pertencente aos
grupos Ge, outros argumentam ser de origem guarani. Fora do circuito acadêmico, o
Peabiru aparece ora vinculado ao império incaico, ora vinculado a São Tomé ou Pai Zumé.
Além destes, ainda outros grupos conectam discursos new age sobre exploração
ecoturística e sustentabilidade ao mesmo caminho. Percebe-se que as interpretações sobre
esta trilha são diversas e, a partir do contraste entre os discursos da oralidade popular e
memória, história e escrita erudita faremos uma arqueologia do caminho, dos seus usos e
significados em vários contextos, localizando durante o processo o local que ocupa o
elemento indígena, a memória pessoal e a história de cada cidade e região. Portanto, não
haveria nem respostas fechadas, nem uma busca pela verdade, mas pelas interpretações da
realidade ou construções contextualizadas e como estas se compõem e se relacionam. As
informações foram obtidas em quatro municípios que, em tese, estariam na trajetória do
caminho. Inicialmente a cidade de Barra Velha (SC), depois os municípios de Pitanga e
Campina da Lagoa, no centro do Estado do Paraná, e por fim, o município de Kuruguaty,
no Paraguai.
Palavras Chave: Caminho do Peabiru; memória; construção contextualizada; neo-
indianismo.
Ways of the aboriginal culture: the Peabiru and the neo-indianism
The vestiges of a peculiar trail, called the Peabiru Way, are often interpreted as
reminiscences of an ancient road that extends between Peru and South Brazil. Historical
writings of the sixteenth century describe the way as a grass covered trail linking the
Atlantic to the Pacific. Informal conversations were held with inhabitants of four cities,
between March and June of 2005, supposedly lying along the Peabiru Way. Starting in
Barra Velha (SC), through Pitanga and Campina da Lagoa (PR), ending in Kuruguaty,
Paraguay. Academics currently disagree about the origin of the Peabiru Way. Some
attribute it to the linguistic group Gê, others to the Guarani. Passed the University walls, the
Peabiru is sometimes mentioned in association with the Incaic Empire, and other times
even to São Tomé or Pai Zumé (Saint Thomas). Others still explore it as, for example, eco-
tourism, sustainable development or new age superstition. Clearly, interpretations are
diverse. From the contrast between popular orality/memory, history/erudite writing, I have
traced an archaeology of the Peabiru Way, its uses and meanings. The role of the
indigenous elements, their personal memory and the history of each city and region, were
recognized during the process. We stress that such a work provides neither closed answers,
nor a search for truth; instead, it supplies a sort of interpretation of reality, which I shall
define as a contextualized construction.
Keywords: Way of the Peabiru; memory; context construction; neo-indianism.
iii
Índice
Parte I - Um Caminho Etnográfico
1
Negociação de idéias 1
Sobre o trabalho de campo: entre nativos e forasteiros 6
Sobre a forma: entre a viagem, o nomadismo e a errância 11
Sobre o texto: relato etnográfico e literatura 13
Sobre autoridade etnográfica: experiência e autoria 16
Parte II – A Costa
22
A Velha Barra do Rio Itapocu 22
Biblioteca, escola e o historiador: porque procurar nestes locais 23
A bicicletaria 27
Fotocópias na rodoviária 28
Seu Silvino, Seu Domingos e Jaqueline, a filha da Dona Conceição 29
O Mercado de Peixe e a Baixada 32
Parte III – Peregrinação na Serra da Pitanga
35
Pitanga e o Centro Geodésico do Paraná 35
O Povão Hotel e Restaurante 37
A Mulher 38
O Negro 38
O índio 39
Universidades: quando alguém fabrica uma fonte? 39
Sobre Fontes e Documentos 42
Clemente Gaioski e o IBGE 45
Reminiscências 48
Barão de Capanema, IHGB e IBGE 51
A construção da invenção e da resignificação 56
Luis Galdino, purismo etnológico e as teorias de contato 61
Pioneiros do pinhalão 64
Pitanga e os índios: uma guerra moderna 66
Beato José e a peregrinação 67
A primeira fogueira 70
A segunda fogueira 72
A costela dois fogos 74
Museu e Casa da Memória 75
Peregrinação e a Pós-graduação sobre o Peabiru 76
Therezinha e o Lendário Caminho do Peabiru na Serra da Pitanga 77
Tiken Xetá 78
O Pomar de Pitangas 78
iv
Caminho moderno 79
Dialeto 79
O caboco macho, a arma e seu carro 80
A visagem 81
A comida 81
Parte IV– Mudança de rumo
83
Peabiru - Campo Mourão ou Campina da Lagoa? 83
A Campina das Três Lagoas: Pedro Altoé e Igor Chmyz 83
Grupos Gê e seus deslocamentos ou como trocar uma verdade por outra 86
Casa da Memória e Secretaria da Cultura 88
Doca: pioneiro, caçador e Juiz de Paz 88
Conceição Pereira e o livro de 1920 91
Minhoca e a teoria/prática novamente 95
Assis Chateaubriant/ Palotina/ Guaíra 96
Parte V – Paraguay, mundo guarani?
99
Relações de fronteira 99
Mais um historiador local 103
João, a guampa de mate e a cadeira paraguaia 105
Os Guayaki e os guarani 108
Menonita, eu? 109
UNINORTE: Universidade e política 110
Guarani: língua, moeda, política e território 111
Crianças 112
A prata paraguaia 112
Parte VI – O que trouxemos na bagagem
114
O retorno 114
Epistême, Indianismo e neo-indianismo 115
Recapitulando o imaginado 120
Diagrama: objetivação e positividade do campo 123
Referências Bibliográficas
125
Bibliografia de Apoio
131
v
COMENTÁRIO INICIAL
ara o leitor, gostaria de esclarecer os movimentos efetuados
durante a construção desta dissertação. As idéias de projeto dificilmente são dadas,
na grande maioria das vezes devem ser construídas. Objetos que a primeira vista não
nos dizem muita coisa, dependendo de como observados e de como sua abordagem é
feita podem se tornar brilhantes objetos de pesquisa.
O projeto aprovado durante a seleção do mestrado 2004 no PPGAS da UFSC
tinha pouco a ver com o que finalmente se constituiu. A princípio o tema era a
viagem exploratória de Dom Alvar Nuñes Cabeza de Vaca abordando os contatos
que sua expedição teve com os povos tupi guarani da região que hoje comporta os
estados do Paraná e Santa Catarina. A tentativa era de identificar cerâmicas
arqueológicas nos museus que se encontrassem na rota descrita pelo explorador e
tentar conectá-las com as populações que realmente tiveram contato com Cabeza de
Vaca.
Com os créditos do primeiro semestre cumpridos, logo percebi a irrelevância
deste tipo de estudo para a antropologia e, a partir de conversas com meu orientador
tive acesso a cinco livros que mudariam os rumos do projeto. Levi-Strauss, Tvetzan
Todorov, Serge Gruzinski, Jacques Le Goff e Maurice Halbwachs. O trabalho seria
então direcionado aos contatos do eu com o outro, o pensamento ameríndio e os
diálogos recorrentes entre os povos da América, a história de longa duração, a
formação do pensamento mestiço e as diferenças entre história e memória.
Depois de escrever um segundo projeto basicamente enfocando a formação
de um pensamento mestiço a partir do contato entre brancos e indígenas, ainda
sobravam arestas. Estava me direcionando para um tema perigoso e que custou caro
a diversos pesquisadores. Durante o segundo semestre, nas disciplinas de etnologia,
vi
ministradas pelos professores Oscar Calávia e Márnio Teixeira, a mestiçagem passou a
ter um papel secundário. Sendo orientado a ler “Jamais Fomos Modernos” de Bruno
Latour, surgiria a discussão entre a hibridação e a purificação das próprias idéias de
ciência, quase um estudo epistemológico.
Bruno Latour possibilitou a abertura para um outro tema, a construção dos
discursos e das memórias sobre o Caminho do Peabiru. Durante a qualificação do
projeto, a banca ainda orientou uma observação mais minuciosa quanto aos diálogos
presentes entre as diversas memórias e como estas se relacionam, muitas vezes,
utilizando trechos e fragmentos de outros discursos, emitidos em outros contextos.
Assim, o tema, o Caminho do Peabiru já estava presente desde o primeiro
projeto, porém tomado por uma invisibilidade que, com o passar do tempo, das leituras,
das disciplinas e da orientação foi sendo clarificado. Simultaneamente o objeto se
modificou da cerâmica indígena para os processos de mestiçagem chegando até os
discursos e memórias sobre o caminho, seu diálogo e a percepção de como são
construídos e como se relacionam.
Depois de definido como seria olhado o tema, através da memória, restava
definir o conceito. Para isto fui levado a uma aventura entre os meandros da memória e
dos diferentes usos tanto do conceito como da palavra. Memória é um termo que
ouvimos o tempo todo, desde “1984” de George Orwell, até as pesquisas modernas
sobre o Mal de Alzheimer; de Maurice Halbwachs e sua teoria sobre a memória coletiva
até as pesquisas recentes sobre a memória subterrânea de Michel Pollak e os estudos
sobre cognição e memória em humanos, animais domésticos e selvagens.
Nesta discussão senti algo que já tinha vivido mas ainda não tinha percebido, os
movimentos efetuados por um projeto. Com certeza, os trabalhos de campo mudariam o
projeto mais uma vez segundo os interesses e características das pessoas que
participaram da construção dos dados de campo e segundo os próprios limites impostos
pela escrita de uma dissertação.
vii
Durante a escrita do trabalho, outros problemas apareceram. A transcrição dos
diários de campo mostrou que os estudos sobre memória poderiam não ser o elo
fundamental entre todos os relatos, apesar de ter utilidade em diversas análises. Optou-se
então por discutir o porque das diferentes formas de relatar, não através do conceito de
memória, mas pelo conceito de epistemologia e do cruzamento entre as disciplinas da
história, da antropologia e da literatura. Assim, foram incorporados na teoria trabalhos de
Michel Foucault e Friedrich Nietzsche que ampliaram ainda mais a discussão. Com a
combinação apareceu também a necessidade de autocrítica e da observação em
perspectivas múltiplas deste próprio trabalho; foi dado espaço para que os informantes
relatassem seu texto integralmente o que permite ao leitor visualizar as diferenças entre os
discursos. Perguntas como: O que é a verdade?; dificultaram análises fechadas e
interpretações por parte do autor, forçando o leitor, a interpretar o texto, se quiser.
Enfim, o caminho ainda será longo. Este texto inicial propõe que o leitor participe
não apenas de algo finalizado e acabado, mas que me acompanhe na construção deste
relato/dissertação desde seu início.
Escrito em 14 de fevereiro de 2005 e revisado em 27 de dezembro de 2005.
viii
Parte I - Um Caminho Etnográfico
No fundo da prática científica existe um discurso que diz:
nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a todo momento existe
uma verdade talvez adormecida, mas que no entanto está somente a
espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser
desvelada. A nós cabe achar uma boa perspectiva, o ângulo correto,
os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está
sempre presente aqui e em todo lugar. (...) A verdade, como o
relâmpago, não nos espera onde temos a paciência de embosca-la e
a habilidade de surpreende-la, mas que tem instantes propícios,
lugares privilegiados, não só para sair da sombra como realmente
para se produzir.
Michel Foucault, Microfísica do Poder, 1979. p.113.
Negociação de idéias
m boa parte do sul e sudeste do Brasil temos a presença de caminhos, por vezes
muito antigos e que suscitam a curiosidade da historiografia brasileira desde o início do
século XX (CAPISTRANO DE ABREU, 1998 [1907]). Englobando os atuais estados de
São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul existem, ainda hoje, trechos
preservados de um caminho muito peculiar e que vem sendo interpretados como ramais do
caminho do Peabiru. Segundo alguns cronistas que passaram por ele durante o século XVI
o caminho fazia a ligação entre o Oceano Atlântico e o Pacífico. Segundo o padre jesuíta
Ruiz de Montoya (1985 [1585]), o Peabiru tinha cerca de 80 cm de largura e 40 cm de
profundidade, formando um “leito”, coberto por um tipo de gramínea em toda a sua
extensão
1
.
Sérgio Buarque de Holanda (HOLANDA, 1994) assim como Capistrano de Abreu
apresenta a idéia de que a colonização de grande parte do que hoje é o Brasil só teria sido
possível devido aos caminhos utilizados pelos ameríndios em períodos pré-coloniais. O que
1
Na tradução da palavra Peabiru, segundo BORDONI (Dicionário da língua tupi na geografia do Brasil, s/d.)
peabiru consta... pé...caminho + abiru... entulho = caminho conservado, consertado, (OB) Orlando Bordoni.
Também constando piabuçu como estrada larga ou caminho largo (SB) Francisco da Silveira Bueno
(Vocabulário Tupi-Guarani Português). Outras interpretações do nome Peabiru aparecerão no decorrer do
texto. Em Barra Velha, uma delas se refere ao termo como o caminho ao Aviru, um rio localizado no
território peruano. Outra diz ser o Caminho do Peixe Fresco, pois os índios levavam peixes oceânicos até os
Andes.
1
depois viemos a conhecer como a Trilha do Ouro (MG) ou o Caminho do Itupava (PR)
seriam caminhos indígenas retificados durante o processo de colonização e reutilizados de
uma nova maneira (BORGES, 2000; MOREIRA, 1975). Este processo de marcar e trilhar
caminhos desenvolvidos pelos indígenas foi ainda descrito por diversos autores como
Koch-Grünberg, Martius e Stradelli podendo ser percebido de formas diferentes da
morfologia citada acima como vemos na descrição de HOLANDA, onde explana que os
indígenas criavam “códigos” para a demarcação de trilhas, portanto, trilhas subjetivas que
em nada se assemelhariam a uma estrada atual ou um caminho fortemente marcado:
Quando em terreno bem coberto por vegetação alta, distinguiam-se os caminhos graças a
galhos cortados a mão de espaço em espaço, correndo muitas vezes tortuoso ou seguindo as
curvas de nível dos vales. Nas expedições breves serviam como balizas ou mostradores da volta.
Onde houvesse arvoredo grosso, os caminhos eram assinalados a golpes de machado. Koch-
Grünberg descreve uma destas marcas de caminho na Serra do Tunuí, Roraima, constando
simplesmente de uma vareta quebrada em partes desiguais, a maior metida na terra e a outra em
ângulo reto com a primeira mostrando o rio
.(HOLANDA, 1994. p.24)
Foram muitas as interpretações produzidas sobre o caminho do Peabiru. A
arqueologia paranaense, vinculada aos meios acadêmicos, nos indica ser de origem
Kaingang, pois todos os trechos coincidem com vestígios de cerâmica relacionados a este
grupo (CHMYZ & SAUNER, 1971; CHMYZ et alli, 1999). Uma outra teoria produzida
por alguns arqueólogos acadêmicos ligados a UFRJ esgarça a temporalidade deste caminho
considerando-o muito mais antigo. As primeiras trilhas ligando os vales do rio Paraná com
o litoral Atlântico teriam surgido com os deslocamentos sazonais de grupos caçadores-
coletores ligados a Tradição Humaitá
2
(MENTZ RIBEIRO, 2000).
Outra corrente, também acadêmica, atribui o caminho ao povo Guarani e a sua
busca pela “Terra Sem Males” na direção do sol nascente (LADEIRA, 1992). Outras
interpretações acadêmicas, vêm do Setor de Ciências Exatas da Universidade Federal do
Paraná onde existe um grupo que estuda “Arqueoastronomia Guarani”. Em geral estão
empenhados em levantar dados e mensurações em sítios arqueológicos para interpreta-los
2
A Tradição Humaitá é uma classificação formulada pelo PRONAPA em 1969. Consenso entre os
arqueólogos brasileiros para classificar tradições arqueológicas e cerâmicas. A
Tradição Humaitá está
presente no vale do rio Paraná com sítios que datam desde 6000 anos antes do presente e, segundo Pedro
Augusto Mentz Ribeiro, a região de ocupação da Tradição Humaitá acompanha as áreas de floresta que
conectavam a costa aos vales interiores.
2
segundo observações astronômicas modernas. Também estudam como os grupos indígenas
olham para o céu, como explicam as constelações e os mitos relacionados às variações
celestes. O mentor do projeto é o professor Germano Afonso, mantêm um site na internet
3
e
vende um CD Rom com estes dados publicados.
Seguindo uma transição sutil, iniciada com o saber acadêmico e afastando-se dele,
Luis GALDINO (1972) e Hernani DONATO (1973), ligados ao IHGB – Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, arrematam com a interpretação de que o caminho teria sido
construído pelos Incas e jornais locais chegam inclusive a constatar a presença de vestígios
de pirâmides no litoral brasileiro (JORNAL GAZETA DO POVO, 2004)! Ainda uma outra
autora, catarinense e também ligada ao IHGB, desenvolve suas idéias a partir da expedição
de Aleixo Garcia pelo mesmo caminho e vêm fazendo uma compilação de dados
documentais, etno-históricos e arqueológicos em vários municípios do interior do Paraná,
Santa Catarina e Paraguai (BOND, 1998).
Ainda outro grupo, não acadêmico, vem a algum tempo, organizando uma rede de
contato entre todos os municípios que fazem parte da suposta rota do caminho. Durante os
três últimos anos foram organizados os Congressos de Estudiosos do Caminho do Peabiru
em municípios chave desta trajetória numa tentativa de promover o turismo e a
sustentabilidade das localidades. Participantes ligados ao curso de jornalismo da UFSC,
editam nestes três anos, a Revista Cadernos da Ilha composta por reportagens, artigos e
entrevistas com participantes destes Congressos
4
. Dentre os vários temas abordados, chama
atenção à vinculação do caminho a São Tomé, um apóstolo de Cristo que teria pregado na
América no início dos tempos, segundo o jesuíta Ruiz de Montoya (1986 [1585]), e uma
outra idéia que inventa este caminho como o “Caminho de Santiago de Compostela da
América” (REVISTA CADERNOS DA ILHA, 2004).
Além destes recortes, podemos acrescentar outros como um vídeo produzido pela
UNISUL, de Santa Catarina e o Ministério da Cultura, que conta a história de Aleixo
Garcia como o primeiro branco que trilhou o caminho do Peabiru. O vídeo já em fase de
3
Os links eletrônicos para estas publicações mudam com freqüência. É interessante operar uma busca pelo
termo “arqueoastronomia guarani”.
4
Interessante notar que Rosana Bond, Germano Afonso, Luis Galdino, Hernani Donato, Clemente Gaioski,
Igor Chmyz e Pedro Altoé, já participaram ou foram citados durante estes encontros e compõe parte dos
informantes, como veremos adiante.
3
produção terá cinco mil cópias distribuídas em bibliotecas e escolas públicas de todo o
estado Catarinense. Semelhante desdobramento do tema é perceptível em Florianópolis
onde a Escola de Samba Consulado, do bairro da Caieira, organizou o desfile de carnaval
de 2005 com o tema: “Da Terra Sem Mal ao Império do Sol – o Eldorado de Aleixo
Garcia”, sendo classificada como escola campeã do carnaval 2005 de Florianópolis.
Percebemos que as interpretações sobre esta trilha são diversas, mas não nos cabe
definir uma ou dar um significado fechado para este monumento e sim contabilizar os
diversos significados e interpretações, contextualizando-os. Com este panorama de
negociação de idéias que ocorre a alguns anos sobre as origens do Peabiru, a presente
dissertação pretende buscar as memórias orais e as memórias escritas fazendo um contraste
entre a oralidade popular e a oralidade de eruditos orgânicos
5
em relação ao passado da
região, a populações indígenas e as ruínas do caminho.
Quanto a buscar o contraste entre a oralidade popular e a oralidade de eruditos
orgânicos remete a uma discussão longa sobre as diferenças entre a cultura oral e o mundo
da escrita. Voltaremos nisso, mas por ora basta dizer que estamos atrás das diferenças entre
os discursos da oralidade e da escritura por personificar uma oposição metodológica, dentro
da historiografia, localizada nas discussões entre memória e oralidade popular; história e
escrita erudita.
Farei então uma arqueologia antropológica do caminho, desenterrando alguns de
seus usos e significados em vários contextos, localizando durante o processo o local que
ocupa o elemento indígena nestes discursos por dois motivos. Primeiro pelas diversas
fontes que atribuírem o Caminho do Peabiru ao elemento indígena, seja ele Inca, Jê, Carijó
ou Guarani, como já falamos. Em segundo pelas contingências dos trabalhos de campo
quando me deparava com situações onde o informante não conhecia o Peabiru e as
perguntas passavam a ser no sentido da história regional e memória do informante. A
primeira vertente de dados mostrou-se interessante logo nos primeiros momentos do
campo, pois da representação sobre o indígena sempre se retiravam informações. O que é
5
Eruditos orgânicos podem ser definidos como pessoas responsáveis pela memória de localidades, guardam
registros documentais e colecionam fatos históricos regionalmente localizados. Orgânico deve-se ao fato de
serem, em geral, gestados no seio da localidade. Podemos ainda substituir este termo por historiador local,
porém, em diversos casos estes informantes não se identificam como historiadores, mas como pesquisadores
ou curiosos. Para o conceito de erudito orgânico ver também a obra de Gramsci.
4
um índio para você? A resposta descortinava secções nas cidades, as representações, a
mestiçagem, a purificação e a descendência. Um jogo de espelhos sobre o que as pessoas
acham que seria um índio, uma idealização, um reflexo do real. Nas trocas entre a
visibilidade e a invisibilidade do índio imaginado, discorrem outros fatores como a
presença deste índio idealizado compondo as origens do Peabiru.
Anuncia-se aqui também, um novo recorte sobre o que genericamente
conhecemos como indianismo, fenômeno que se inicia com o romantismo em solo
brasileiro e que apresenta suas manifestações na literatura, na arte, na música. Este
“resgate/recorte” indianista, suscitado pelo Caminho do Peabiru, se constitui atualmente na
medida em que discursos new age sobre turismo e “sustentabilidade” agregam o elemento
indígena ao caminho de várias maneiras diferentes, e por vezes, extremamente
contraditórias
6
.
Assim, a linha mestra de informações foi se compondo com o passar da pesquisa e
os temas giravam em torno de caminhos, mais especificamente o Peabiru; a representação
sobre o indígena, sobre o bugre, conectado ou não ao caminho; e informações relacionadas
à memória pessoal e a história da cidade e da região, os pioneiros, a colonização e seus
processos compõem assim os quadros de informação que se entrelaçam em certos
momentos e se afastam em outros, como perceberemos no decorrer do texto.
Portanto, não haveria nem respostas fechadas sobre o tema nem uma busca pela
verdade, mas pelas interpretações da realidade ou construções contextualizadas, como
chamaremos, e como estas se compõem e se relacionam. Desta maneira convido o leitor a
me acompanhar em uma viajem de dois meses pelo meu caminho do Peabiru e observar
alguns de seus significados.
6
Estes elementos evidenciam uma idéia mais ampla da antropologia e das bases da filosofia da ciência,
adiante, Bruno Latour (1994) nos ajudará a discutir os conceitos de hibridação e de purificação para ampliar a
percepção sobre os meios pelos quais a própria ciência vem se construindo. Colocando em relação de
diferença as macro-divisões das disciplinas acadêmicas, levanta-se a questão do contexto histórico, das
possibilidades e limites de invenção das interpretações sobre a realidade. Segundo estes contextos e invenções
possíveis, é contingente ao leitor, perceber as nuances e a diferença relativa entre os discursos dos diversos
interlocutores. Ao final do texto há um diagrama realçando estas diferenças.
5
Sobre o trabalho de campo – entre nativos e forasteiros
Partindo do município de Barra Velha, litoral norte de Santa Catarina, percorri cerca
de mil e duzentos quilômetros até a cidade Kuruguaty, no Paraguai. Ao todo foram nove os
municípios visitados durante sessenta e cinco dias. Em quatro municípios foram retiradas as
informações que compõem a discussão desta dissertação, Barra Velha, litoral norte de Santa
Catarina, Pitanga no centro e Campina da Lagoa no centro oeste do Estado do Paraná e
Kuruguaty no distrito de Canindeyu, região leste do Paraguai.
Gravura mostrando a rede hidrográfica e o deslocamento efetuado durante a pesquisa de campo
Em cada cidade, uma nova situação se compunha. Em Barra Velha facilmente
consegui uma casa sendo bastante integrado pela família que me acolheu. Porém, as
situações conspiram a favor, esta cidade é um balneário de veraneio e, quando estive lá,
várias casas estavam vazias sendo fácil encontrar uma. Em outras localidades, como
aconteceu no Paraguai, as famílias alugam quartos, praticamente um hotel dentro da casa de
uma família. Em outras ainda, a estrutura da cidade não permitia que coisas assim
pudessem acontecer, em Pitanga a casa das famílias, em geral, não tem espaço para
6
visitantes e existem chácaras com espaço, mas são afastadas demais. Assim, os hotéis do
centro oferecem boas oportunidades de integração.
A partir das pesquisas de campo foi constatado um jogo de reflexo e anti-reflexo
com relação às fontes sobre o Peabiru sendo interpretadas de maneiras bem diferentes,
assim como a possibilidade de existência e a rota do caminho. No município de Pitanga,
por exemplo, ele aparece com a sua materialidade, em outras localidades pesquisadas o
caminho aparece quase virtual, no campo da lenda, da fonte, ou da memória da
colonização. Às vezes aparece como mito, outras ainda como monumento a ser descoberto
e preservado, também como uma memória do outro e em casos extremos, o Peabiru sequer
existia. Nossa abordagem estaria focada em perceber as transformações dos usos e
significados deste monumento e como as fontes sobre ele estão sendo utilizadas ou
“resgatadas” por diversos agentes envolvidos na sua construção
7
.
Além desta relação de diferença aparente dos significados do Peabiru e do elemento
indígena, através do contraste entre as localidades apareceram outros temas que também
sofriam modificações. Os pratos típicos se alteravam, os sotaques presentes na linguagem
coloquial popular, as metáforas e piadas também. Os conceitos nativos de autodenominação
podem aparecer nestas relações de diferença. Em Barra Velha é fácil encontrar pessoas que
se autodenominam nativos. Em Pitanga esta palavra não existe, mas o conceito sim e o
termo utilizado seria o de caboclo. Em Campina da Lagoa os “nativos” passam a ser
chamados de pioneiros e no Paraguai este conceito se perdeu, às vezes aparece como
pueblo, às vezes como paraguaio apenas para marcar a diferença com relação ao brasileiro.
As fontes citadas pelos mais diversos informantes durante as pesquisas de campo
abordaram desde os primeiros relatos de exploradores e das Missões Jesuíticas,
bandeirantes e tropeiros, Império e sua transição á República com as produções do IHGB,
até as atuais pesquisas históricas e arqueológicas sobre o tema. A partir destas informações,
7
Pensemos neste conceito a partir das discussões sobre epistemologia. Como as ciências, os discursos
científicos, a literatura, ou a arte constituem-se na medida da sua época e da sua geografia. O indianismo
romântico representa uma imagem do elemento indígena e seu retrato em uma época. Hoje com relação ao
Peabiru, os discursos estão colocados em outras bases, mas continuam a ser construídos com pensamentos que
tem “a nossa idade e a nossa geografia”. Em outras palavras, a epistême necessária para se construir um
objeto de certa maneira, e não de outra.
7
percebe-se que algumas são analisadas isoladamente, fora de seu contexto. Os fatos e fontes
compõem uma época, estavam indexados em uma seqüência de outras viagens
exploratórias, acidentes, naufrágios, acordos e desacordos pelo tamanho do território e o
grupo que teria seu domínio. Também hoje, a utilização destes fatos e fontes encontra-se
indexada em contextos, em grupos, em regiões. Assim, percebe-se que os agentes não são
neutros e suas ações, escolhas e interpretações dependem, em parte, de todo o seu contexto,
do seu mundo vivido e da sua experiência.
È interessante notar que os discursos coletados em campo compõem um mosaico
das fontes em voga com relação ao caminho do Peabiru. A grande parte das informações
obtidas com historiadores locais passa por alguns fatos, nomes e datas específicos. Estes
“heróis” coloniais, constantemente citados, compõem de certo modo a história oficial do
processo de descoberta e conquista da Bacia Hidrográfica do Rio da Prata pelo elemento
branco europeu e, a partir de cada conjunto de fontes oficiais surgem explicações,
interpretações e roteiros extra-oficiais para o caminho do Peabiru.
O acaso pode ter sido um bom ingrediente do campo, as roupas que eu usava
8
, o
meu sotaque absolutamente perceptível pelos moradores locais, ora afastavam, ora atraiam
informantes. Em todas as localidades, as redes de informantes eram localizadas ao acaso,
no início, depois se definiam pessoas chave entre estas redes. Minha experiência me faz
pensar em Rabinow e como entra em contato com o interior da Medina Marroquina, por
uma sucessão de informantes que levam o pesquisador a compor uma rede cada vez maior
de pessoas interconectadas e aprofundam cada vez mais o entendimento sobre o grupo
(RABINOW, 1977). É importante perceber que esta rede, provavelmente, compõe uma
parte da localidade. Quando eu apresento um desconhecido (pesquisador por exemplo) para
alguém, sempre o colocarei em contato com uma rede de amigos, jamais de inimigos.
Assim, este aprofundamento gradual na localidade se daria de modo unívoco, apresentando
apenas uma parte do grupo. A composição de redes de informantes deve, então, acontecer
em várias frentes na tentativa de conhecer grupos opostos e, geralmente, em conflito.
8
Em dois casos estas questões de diferença apareceram. Em Pitanga as pessoas aparentavam certa antipatia
comigo até que comprei um chapéu, tipo cawboy. Depois passei a ser tratado de outra maneira. Comprei
também um macacão azul, mas que só teve significação depois que entrei no Paraguai. Quanto ao chapéu,
apesar de ser bem tratado em Pitanga, devido a ele, nas outras localidades eu era o ridículo, pois apenas
idosos usavam chapéu. Tive que carregar o chapéu até o fim da viagem e passar por isto nas demais
localidades.
8
Em certo momento dos trabalhos de campo percebi que recebia alcunhas dos
moradores locais, dos informantes. Obviamente estes “apelidos” não eram os mesmos e
foram se transformando, até mesmo se repetindo. Na primeira situação em que me dei conta
dos apelidos que recebia foi em Pitanga onde freqüentemente me chamavam de forasteiro,
de astronauta (devido a uma bota que eu usava) e de cowboy, devido ao chapéu. Em
Campina da Lagoa me transformei em gaúcho; e novamente em cawboy na cidade de
Palotina. Na fronteira do Paraguai, em Salto del Guairá fui identificado como hippie e em
Kuruguaty eu já era americano (norte-americano), mórmon e menonita, devido ao macacão
jeans que usava.
Afinal, o que é o antropólogo em campo? As coisas em que pode se transformar
seriam ilimitadas? A explicação seria, como já falamos, da criação de uma diferença
relativa, presente como base do método comparativo, em parte, e nas próprias teorias
estruturalistas da linguagem e da etnologia, em outro. As diferenças de significado
apareceriam então apenas depois de colocar significados em relação.
Como acontece a passagem de informação entre um e outro, ou como se dá a
relação entre o antropólogo e o nativo? Para responder poderíamos pensar pela perspectiva
descrita por Cliford Geertz (1998) e sua antropologia interpretativa de sistemas
significativos. Dentro de uma perspectiva epistemológica, o antropólogo deveria
compreender como seus nativos criam suas compreensões, uma contextualização dos
pensamentos e práticas inseridos entre descrições detalhistas e estruturas globais. Porém,
depara-se com a impossibilidade de entrar na pele do nativo para saber como ele realmente
pensa e assim o antropólogo consegue vislumbrar apenas práticas simbólicas que seus
nativos usariam para perceber o mundo. Claramente, Geertz, fala do Circulo Hermenêutico
de Dilthey onde uma visão totalizante composta de várias partes oscila para uma visão das
partes através da totalidade, que seria a causa de sua existência. Assim, busca-se fazer com
que uma (as partes) seja a explicação da outra (a totalidade).
Pode ser interessante pensar assim, mas à medida que caminhava, as mesmas
situações, a roupa, o chapéu, o Eu, ganhavam significados diferentes. Não eram cidades que
me identificavam desta ou daquela maneira, segundo a possibilidade de interpretação dos
habitantes, mas relações que se criavam com cada informante específico. Em contraponto a
Geertz, caímos em uma perspectiva relacional, seriamos nativos ou antropólogos com
9
relação a um outro. Viveiros de Castro (2002) nos fala sobre uma meta-relação, uma
relação que se transforma na medida que acontece, uma interação relacional, intersubjetiva.
Desta maneira o outro não seria um objeto, mas a expressão de um mundo possível e as
perguntas do antropólogo são formuladas a partir das perguntas que os nativos nos
apresentam. O que varia nesta meta-relação antropólogo/nativo não é o conteúdo das
relações, mas sua idéia mesma; o que conta como relação nesta ou naquela cultura, ou
como nos diz Viveiros de Castro “Não são as relações que variam, são as variações que
relacionam” (2002, p.122).
Quanto a esta interação prática entre o antropólogo e o nativo temos, na
antropologia, desde pesquisadores que realizaram suas pesquisas visando o máximo de
visibilidade para o nativo, e no outro extremo, antropólogos que fizeram de tudo para não
serem percebidos em campo. Diferentemente de Malinowski, por exemplo, não escondi
meu diário de campo, o trabalho propriamente dito e o diário estão juntos, misturados, o
que deixa esta dissertação com um aspecto de inacabada. Se fosse uma casa, seria
construída deixando os encanamentos aparentes e compondo a própria estrutura da
habitação. Especificamente, o texto deixa transparecer as dificuldades, os erros e as
mudanças ocorridas com o próprio pesquisador durante os encontros meta-relacionais que
teve.
O leitor mais acostumado com a literatura antropológica pode estranhar a
morfologia da pesquisa de campo efetuada por este trabalho. Assemelha-se, de início a um
survey, uma espécie de viagem etnográfica de reconhecimento. Um trajeto que se percorre
para observação e onde se escolhe um local propício para uma pesquisa mais aprofundada.
Como falado acima, muitas cidades foram visitadas, mas apenas algumas foram estudadas
em profundidade, em contrapartida o campo produziu uma leitura geral de todo o percurso
com algumas cenas mais detalhadas. Porém, gostaria de direcionar a discussão
considerando este campo não como um survey, mas como um relato de viagem. O caminho
percorrido, obviamente, dependeu de toda uma formação, um contexto, interesses, escolhas,
acaso, interação. Deve-se então observar este trabalho como relato, mas também como uma
etnografia, contextualizando até mesmo o olhar do pesquisador.
Assim, o presente relato/dissertação discutirá uma questão específica, as
transformações dos usos e significados do Caminho do Peabiru e como as fontes sobre ele
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estão sendo utilizadas ou “resgatadas” por diversos agentes envolvidos na sua construção.
Fica claro que o olhar do viajante se direciona para pontos específicos, observa questões
melhor do que outras e escolhe a rota, selecionando também o que é seu objeto de estudo e
como olha para ele. Como uma seleção, atualiza e expressa o dilema de toda escolha, que
supõe sempre uma série ilimitada de renúncias. É importante então, empreender uma
tríplice operação que identifique os critérios de escolha, assinale o caráter representativo da
seleção feita e, finalmente, verifique a existência, ou não, de uma explicitação do arbitrário
presente nessa como em qualquer seleção.
Um dos critérios desta seleção é o desejo de uma escolha polifônica que permita ao
leitor um diálogo com diferentes perspectivas e latitudes analíticas, em um coro de vozes,
porque “todo relato é sempre uma réplica, um diálogo que se estabelece com outros relatos”
(ROUANET,1999: 20). Ainda, como queria o poeta Blas de Otero, o texto tece, “nas
malhas da letra” (SANTIAGO, 1989), o tecido com o qual será possível fabricar o velame
para empreender a aventura de nossos descobrimentos, já que, como nos ensina DeCerteau
(1990: 251) “os leitores pertencem à linhagem dos viajantes” (NEVES, 2000).
Sobre a forma - entre a viagem, o nomadismo e a errância
A atividade da viagem aparece como um tema interessante e abrangente.
Geralmente, os relatos de viajantes sempre fascinam. Quem nunca se impressionou com os
relatos da Odisséia. Marco Pólo e Ibn Bathutha, muito tempo depois, fariam descobertas de
caminhos e rotas comerciais não conhecidas dos europeus, mas utilizadas pelas populações
do Oriente e Médio Oriente desde tempos muito recuados. As rotas aparecem com a função
de comerciar especiarias, tecidos, objetos e obras de arte exóticas quando retiradas de seu
contexto. As rotas de comércio continuam a fazer parte dos desejos do Ocidente, basta
lembrarmos que uma interrupção nas rotas terrestres entre Ocidente e Oriente nos daria o
motivo principal para a descoberta de outras rotas, agora pelos Oceanos. Partindo do
comércio, cria-se uma complexa tecnologia de navegação que culminaria na descoberta da
América, alguns séculos depois.
Hoje é fácil encontrarmos empresas de turismo e viagem que vendem passeios pela
Rota da Seda entre Turquia e Paquistão. O Caminho das Índias por sua vez, não mereceu,
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pelo menos até agora, o título de patrimônio turístico nos moldes atuais. Existe, nos últimos
anos, um movimento de recriação de diversos caminhos que passam a ter significados
diversos para cada grupo que os percorre. Nas Montanhas Rochosas, nos Estados Unidos
existe um caminho que dizem ser indígena. No Brasil proliferam-se rotas como as do
Caminho Real que se localiza entre Minas Gerais e Rio de Janeiro e seria a antiga rota de
escoamento de ouro durante o Império. No Lago da Usina de Itaipu existe também o
Caminho das Águas e em Minas Gerais existe o Caminho da Fé, rotas de peregrinação que
levam a locais supostamente sagrados que contariam a história de santos locais e igrejas
com grande peso simbólico.
Outros dois Caminhos chamam a atenção pois são utilizados a bastante tempo neste
tipo de atividade de viagem e peregrinação. Um deles seria Machu Pichu, no Peru, um caso
diferente, a quase trinta anos serve a uma clientela bem variada que percorre toda a Trilha
Inca. O que leva as pessoas a fazerem este caminho seria uma curiosidade histórico-
arqueológica, para alguns, ecoturística, para outros e ainda vínculos a uma curiosidade ou
uma crença em rituais ligados aos movimentos da Nova Era. O Caminho de Santiago de
Compostela, na Espanha, seria utilizado pelo mesmo tipo de público que freqüenta a Trilha
Inca, porém, cria um novo vínculo, um vínculo religioso, cristão.
Em geral, todos estes caminhos, são utilizados por uma clientela bastante variada,
não existem respostas homogêneas dadas pelos peregrinos e cada um justifica seu motivo
de maneira bastante complexa e abrangente. O que então ligaria todo este público
diferente? Porque os humanos, ou pelo menos estes, gostam tanto de caminhar?
Quem pratica caminhada sabe do tipo de atividade que está fazendo. Quase todos
falam em autoconhecimento: “andar por um caminho é ter um olho na trilha e outro dentro
de si”. Outros justificam seus motivos pela vontade de conhecer coisas novas, paisagens,
pessoas. Em geral utilizados como diferenciação simbólico-social, os deslocamentos de
viagem seriam maneiras encontradas pelas pessoas para re-visitar suas próprias paisagens
mentais, redescobrindo-as com outros significados, como se os sujeitos estivessem
fechados em si mesmos, a revisitar-se quando viajam (NERY, 2003).
Em nosso caso específico, que as pessoas andem por caminhos históricos pelo seu
bel prazer não há problema algum, o que devemos pensar é: o que um antropólogo faz num
destes caminhos? Os cientistas naturais Spix e Martius ou Saint-Hillaire, por exemplo,
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fizeram caminhadas belíssimas pelo território brasileiro sendo os dois primeiros, os
precursores da antropologia, ou melhor, de um tipo bem específico de descrição do outro.
Como fazer então que um deslocamento, uma viagem, ganhe valor antropológico, ou
etnográfico para a atualidade?
A resposta estaria em como colocamos em relação as informações coletadas em
campo. Um etnólogo colocaria em relação uma sociedade indígena com ela mesma. No
presente trabalho, faremos a criação de diferenças relativas aparecerem por comparação
entre as quatro principais cidades pesquisadas. Assim, nada no relato seria banal, as
observações do pesquisador sobre as cidades, a descrição de termos utilizados pelos
moradores, as comidas típicas, piadas e metáforas, a roupa, o chapéu e as significações do
Eu, como já dissemos, constroem a comparação que apenas ganha significado na medida
que se acumula, na medida em que o pesquisador se desloca no espaço. Assim, a pesquisa
de campo errante, o nomadismo teórico e o relato etnográfico encontram-se entrelaçados e
inseparáveis.
Sobre o texto – relato etnográfico e literatura
Dentre as primeiras manifestações do romance, na Antigüidade tardia, o relato de
viagem constitui uma das principais modalidades. É o período de apogeu do Império
Romano, cujos domínios se estendem por toda a costa Mediterrânea, nos três continentes
vizinhos. São comuns narrativas de viagens a regiões longínquas, que deleitam o público
leitor – urbano, culto – com a descrição de terras distantes e estranhos costumes. O gênero
perdura na Idade Média, incorporando a si um componente intrínseco à época: o
maravilhoso cristão. A viagem real torna-se a viagem metafísica ou alegórica, como mais
tarde se daria na Divina Comédia. A viagem extraordinária é também uma viagem de
aprendizagem, iniciática. Da mesma forma, quando se inicia o ciclo de navegações da
modernidade, os relatos de naufrágios que se multiplicam tomam por matriz o “modelo de
relato medieval de viagem, principalmente nas narrações de viagens fantásticas para o
além”, o que se comprova pela existência de uma estrutura narrativa: partida, tempestade,
naufrágio, abordagem, peregrinação (TODOROV, 1970). Do mesmo modo, repetem-se os
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objetivos da viagem: desejo de lucro – material ou espiritual; curiosidade pelo
desconhecido e vontade de conquista.
Em torno do final do século XVIII verifica-se uma grande ruptura no pensamento
europeu que irá afetar profundamente tanto os posicionamentos epistemológicos como as
formas de saber: trata-se, como indicou Foucault em As palavras e as coisas, da passagem
da ordem clássica à história. A história não será mais compreendida somente como “a
coleção das sucessões de fatos, tais como puderam ser constituídas”, mas, sobretudo como
“o modo fundamental de ser das empiricidades, aquilo a partir do qual elas se afirmam, se
apresentam, se dispõem e se repartem no espaço do saber para conhecimentos eventuais e
para as ciências possíveis” (Foucault, 1981:231).
A separação entre a literatura e os estudos históricos acentuou-se desde então, tendo
como motivação a questão da possibilidade de escrever factualmente sobre a realidade
observável.
Nesse sentido, é importante lembrar que no século XIX, a literatura e a história
eram consideradas como tendo a mesma função — narrar a experiência e o acontecido com
o objetivo de orientar e elevar o
homem. Até então, ambas podiam ser associadas a um
esforço para subjugar o caos, mediante a edificação de modelos capazes de assegurar aos
homens tanto a orientação como a verdade.
Florestan Fernandes, em 1949, é o primeiro a chamar a atenção para a constituição
dos relatos de viagem como etnografia levando em consideração fatores como a
confiabilidade da observação e do registro presentes nos relatos. O autor, no trabalho “Um
balanço crítico da contribuição etnográfica dos cronistas” (FERNANDES, 1975), faz uma
compilação de 36 cronistas que escreveram sobre a sociedade tupi e desenvolve uma lista
de temas que aparecem de maneira mais ou menos homogênea em todos os relatos com
relação a este grupo. Hoje tal prática estaria fora de propósito, pois alguns antropólogos têm
inovado no tratamento de documentos históricos e relatos de viagem considerando-os
enquanto expressão de ideologias de e sobre o passado.
Para que as observações dos relatos façam sentido para uma etnografia moderna é
necessário delimita-las com relação ao tempo e ao espaço. Os registros devem ser
contextualizados não em sua homogeneidade ou fechado ao estudo das mudanças históricas
e das diferenças regionais. Atualmente é contingente ao pesquisados localizar a informação
e contextualizá-la. O próprio estilo literário, a crônica, constituía-se, no século XVII, e
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XVIII como uma técnica elaborada para comunicar, uma determinada atitude diante da
realidade e, uma forma definida de transmissão das experiências pessoais acumuladas
(FERNANDES, 1975 p.272).
É preciso dar um estatuto teórico tanto ao objeto como a forma de investigação,
no caso, as crônicas e relatos de viagem devem ser pensados enquanto uma produção
intelectual, um tipo de produção específica realizada por certos atores sociais e de acordo
com um conjunto de regras e expectativas sociais historicamente definidas. A crônica deve
ser conceituada enquanto uma modalidade especifica de produção intelectual, orientada por
normas técnicas de recorte, verbalização e sistematização da realidade observada. De
grande relevância é o fato do relator ou do cronista ter passado por um processo específico
de preparação que o capacitou a perceber certos fenômenos (e não outros), a falar deles de
certa forma e a propor certos tipos de explicação. A produção intelectual, neste caso, não se
faz em um vazio social dirigido por certas normas técnicas e ideais de “como” ou “o que”
fazer, mas sim dentro de um sistema de relações sociais que articula entre si os diferentes
tipos de produtores intelectuais, os papéis e as posições que assumem segundo seu grau de
acesso e controle de certos aspectos materiais da produção, segundo a própria legitimidade
que possuem e os critérios de hierarquização que dispõe seus produtos em relação a outros.
Assim, segundo Pierre Bourdieu, uma análise interna da estrutura de um sistema
de relações simbólicas só consegue reunir fundamentos sólidos se estiver subordinada a
uma análise sociológica da estrutura do sistema de relações sociais de produção, circulação
e consumo simbólicos, onde tais relações são engendradas e onde se definem as funções
sociais que elas cumprem objetivamente em um dado momento do tempo. Cumpre-lhe
também determinar as leis de funcionamento que caracterizam propriamente este campo
relativamente autônomo de relações sociais, leis capazes de explicar a estrutura das
produções simbólicas, bem como suas transformações. A ciência deve aplicar a estes
campos o principio da teoria do conhecimento antropológico, segundo o qual os sistemas
simbólicos que um grupo produz e reproduz no âmbito de um tipo determinado de relações
sociais, adquiram seu verdadeiro sentido quando referidos as relações de força que os torna
possíveis e sociologicamente necessários (BOURDIEU, 1974, p.175-176).
Atualmente, os relatos de viagem são usados como dados de conhecimento que
exigem reflexão crítica, uma vez que espelham fatos vividos e impressões narradas cujo
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conteúdo e modo de produção fornecem a imagem construída de um olhar, em geral,
estrangeiro (LEITE, 1996). A temática "etnografia dos relatos de viagem" tem importância
devido a esta reflexão crítica sobre o uso dos relatos de viagem na produção da
antropologia, questionando-se o caráter da objetividade presente na transposição da
experiência etnográfica para a construção dos textos antropológicos (MARCUS, 1994). A
utilização dos relatos de viagem teria, então, importância instrumental no fazer
antropológico.
A possibilidade de utilização de relatos de viagem como instrumento, diários de
campo ou diários e cartas de viajantes deve evidenciar um conjunto de representações que
traduzem uma matriz cultural com valores específicos por refletirem de modo privilegiado
o olhar que os constrói, ou ainda pela confluência com uma produção que enfoca a
literatura de viagem como produção cultural, num diálogo permanente com as áreas da
"literatura" e da "história". Desse modo, a "literatura de viagem", passa por uma reflexão
mais sistematizada a respeito do uso na antropologia desse material como fonte estratégica
de pesquisa contribuindo para inventariar criticamente aquilo que já se fez, como se fez e o
campo em que se circunscreve.
Sobre autoridade etnográfica – experiência e autoria
Discutimos anteriormente, de forma breve, uma diferenciação entre dois autores,
Geertz e Viveiros de Castro e suas idéias sobre a relação antropólogo e seu objeto/sujeito
de estudo. A história da antropologia nos levaria a uma discussão mais aprofundada sobre
esta relação já que não sou o primeiro a pensar sobre isto. Durante o século XX diversos
problemas foram colocados pelos mais diversos autores sobre a questão que começou como
método de pesquisa participante, passou a ser interacionismo e termina por ser discutido em
termos de tradução intercultural.
Diversos trabalhos produzidos depois da década de 1970 mostram claramente as
dificuldades e dúvidas sobre os procedimentos utilizados na representação de grupos
humanos. As etnografias passariam então a apresentar uma luta consciente para evitar a
construção dos “outros” abstratos e a-históricos. Desde o final do século XIX os interpretes
da vida nativa, por excelência eram missionários, administradores coloniais e viajantes. A
16
imagem do pesquisador de campo formaria uma autoridade baseada na singular
experiência pessoal onde, depois da década de 1920, Malinowski seria o melhor exemplo.
Em geral, os estudos britânicos gerariam profissionais de campo que se
reconheceriam como antropólogos e trabalhariam ativamente para aliar a experiência
empírica, a análise cultural e a descrição etnográfica. Este novo estilo de pesquisa,
claramente diferente daquele desenvolvido por missionários fazia parte de uma tendência a
elaborar de modo mais articulado os componentes empíricos e teóricos da pesquisa
antropológica. Esta geração de pesquisadores reunia nomes como Boas, Radcliff-Brown e
Malinowski. O campo em geral era curto, semelhante a uma iniciação e não se
posicionavam como se fizessem parte da cultura estudada, de certa maneira mantinham a
atitude documentária e observadora de um cientista natural.
Malinowski nos daria a imagem do “novo antropólogo” acocorando-se junto da
fogueira, olhando, ouvindo e perguntando, registrando e interpretando a vida trobriandesa.
Ele estava certo também quando percebia na etnografia a distancia entre os resultados finais
da pesquisa e o material bruto das informações coletadas em campo. Este mesmo autor
ainda utiliza uma técnica de escrita diferenciada que serviria para que sua própria
experiência adquirida pela experiência com os nativos pudesse se tornar também a
experiência do leitor.
Seria na década de 1920 que tomaria forma a etnografia, a partir de teóricos
pesquisadores de campo que desenvolvem este novo gênero científico e literário. A
etnografia seria então uma descrição cultural sintética baseada na observação participante.
Na década de 1940, Evans-Pritchard publica Os Nuer e amplia as discussões sobre a
complexa subjetividade da observação participante. Esse amalgama peculiar entre a
experiência pessoal intensa e a análise científica, entendida como rito de passagem e como
laboratório, emergiu como um método de observação participante. Este método passa a
servir como uma fórmula de apreensão das relações entre interior e exterior. Captando o
sentido de formulas, gestos específicos através da empatia, daria seu contraste com a
contextualização destes significados. Assim, acontecimentos singulares adquiririam
significação mais profunda ou mais geral.
Como falamos anteriormente, a relação entre a experiência e a interpretação passa
por uma crítica na atualidade. Qual tipo de experiência seria necessária para interpretar um
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fato de tal maneira e não de outra? Seguindo a linha hermenêutica de Wihelm Dilthey, a
autoridade experiencial estaria baseada numa sensibilidade para o contexto estrangeiro,
uma espécie de conhecimento acumulado. Na visão deste autor, o ato de compreender os
outros inicialmente deriva do simples fato da coexistência num mundo que é partilhado. A
dificuldade do etnógrafo é exatamente a de criar esta intersubjetividade, de partilhar a
cultura estrangeira como sua. Assim, a esfera comum deve ser estabelecida a partir da
construção de um mundo de experiências compartilhadas em relação a qual todos os textos,
eventos e fatos terão suas interpretações construídas.
A antropologia interpretativa, um dos desdobramentos possíveis da dialética
experiência/ interpretação, contribui para uma crescente visibilidade dos processos criativos
pelos quais os objetos culturais são inventados e tratados como significativos (WAGNER,
1981). Trataria-se do processo pelo qual o comportamento, as falas, as crenças, a tradição
oral e outras manifestações não escritas vem a ser marcados como um corpus, um conjunto
potencialmente significativo.
Embarcar no conceito de possibilidade de interpretação pode explicar vários
problemas, porém, observa-se o outro inscrito e sua cultura como texto ou como livro,
esperando apenas algum pesquisador para lê-la. A cultura como texto nos daria a impressão
de algo fixo, acabado, mas ao tratarmos o outro como uma relação, tudo isso se transforma.
Assim, construiremos nossos outros como inscritos em um corpus significativo de práticas,
e estes significados serão construídos na interação com o pesquisador. Malinowski, por
exemplo, chegou mesmo a odiar seus nativos, os trobriandeses, e escreveu isto em seu
diário que felizmente não foi publicado. Seus dados brutos foram traduzidos, sua
experiência se transformou em texto e toda aquela realidade dolorosa da experiência de
campo ficou escondida até que sua esposa publicasse seus diários em 1967.
No caso de Malinowski, os autores reais são separados de seus textos, as
memórias, os significados são retirados de seu contexto, desmembrados, analisados e
reconstruídos no laboratório, bem longe do local onde foram coletados. Ao separar os
autores de suas produções uma espécie de sujeito genérico deve ser inventado e é assim que
surgem “os trobriandeses”, “os dogon” ou “os nuer” (CLIFFORD, 1998).
A partir deste ponto de vista teórico, na década de 1960, Levi-Strauss faz uma
distinção fundamental entre a realidade do modelo e o modelo da realidade. A busca de leis
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gerais no conjunto das relações não dá sentido a existência do indivíduo, mas encontram a
sua realidade na realidade que descrevem. O que as pessoas fazem e falam não estão dados
sendo os modelos nativos apenas indicativos e o antropólogo o responsável pela síntese
entre modelos decorrentes da experiência humana.
Em “A noção de estrutura em etnologia” na obra Antropologia Estrutural I, Levi-
Strauss inicia citando Kroeber quando se refere à noção de estrutura como uma moda, o
interessante seria pensar sobre a estrutura da noção; um estudo epistemológico então. Para
Levi-Strauss os modelos nativos seriam tidos como grupos de transformação que
explicariam os fatos observados e onde se pode prever a reação do modelo através de
observação e experimentação. Os modelos nativos estariam entre o consciente e o
inconsciente. O parentesco, por exemplo, seria inconsciente e ganharia significação dentro
de um sistema onde as prescrições de atitudes seriam idênticas, obscurecendo uma lei geral.
Evidenciaria uma existência sociológica somada a elementos do discurso, seria composto
de um sistema terminológico e de um sistema de atitudes, ambos interdependentes, um
sistema dinâmico em perpetuação onde as relações de aliança envolveriam os indivíduos
em uma perspectiva diacrônica e sincrônica simultaneamente. Estes sistemas seriam então
um fato social semelhante à linguagem onde a mutualidade, a reciprocidade, o direito e a
obrigação permeariam as relações entre as famílias. Remetem ainda à direitos e deveres, a
relações de afinidade, reciprocidade e troca de maneira simétrica onde o interessante seria
notar o que é trocado, qual o valor da coisa trocada e quais valores estão em jogo no
momento (LEVI-STRAUSS, 1982).
Em 1978, Héléne Clastres publica o livro Terra Sem Mal: o profetismo Tupi-
Guarani, onde argumenta sobre a natureza intrínseca do grupo, não reativa ao contato e que
depois eclodiria em movimentos migratórios. Baseando-se em referências como Schaden,
Nimuendaju e Cadogan a autora desenvolve hipóteses sobre a concepção Guarani de
Natureza, de Sociedade e de Pessoa. È a Hélene Clastres que devemos o esboço da visão
Guarani do Homem, que o constrói como lugar de compromisso instável e perigoso entre a
animalidade e a divinidade. Eduardo Viveiros de Castro, em Araweté: os deuses canibais,
descreve esta inconstância ou instabilidade como um tipo de filosofia, com recortes lógico-
filosóficos subjacentes na maioria das cosmologias sul-americanas.
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Com esta diferença na abordagem teórica do outro, os indígenas deixam de ser
apenas exóticos e passam a se diferenciar de modo fundamental das sociedades ocidentais.
A construção do conceito de pessoa como devir, como instável e em transformação
constante, não apenas refletiria, mas se combinaria de maneiras complexas na construção e
significação de outros conceitos em uso nas sociedades Tupi-Guarani. A antropologia passa
gradualmente a observar os conceitos e o ponto de vista dos nativos, o entendimento das
metáforas e o outro em sua integridade.
Ainda outra autora, Marilyn Strathern publica “Kinship at the Core”, sobre
Elmdon, uma pequena vila na Inglaterra (STRATHERN, 1999). Elmdon é um antigo
povoado formado em meados do século XVII por algumas famílias que mantêm relação por
todo este período. Por uma difusa conexão entre o casamento, as ramificações dos grupos
de trabalho e o pertencimento de uma família de descendência longínqua no local surge a
possibilidade de um indivíduo ser um morador real da vila ou villager. Estas relações
fizeram emergir uma identificação imediata aos de fora, os outsiders, pessoas que não
pertencem ao grupo das famílias mais antigas. Esta distinção também está marcada na
distribuição do espaço na vila, os reais habitam as partes centrais, os estrangeiros as
periferias. Outra fronteira de distinção seria o idioma, certas famílias identificariam certas
nuances lingüísticas e imediatamente classificariam o orador.
A idéia de antiguidade das famílias depende delas acreditarem, classificarem e
interpretarem o parentesco, o idioma, a estrutura da ocupação de trabalho e da distribuição
geográfica. Resgatando um pouco os fundamentos relacionais das teorias da aliança,
percebe-se a extrema fluidez da definição de villager, a fronteira da língua, o número e os
interesses dividindo os moradores inevitavelmente constroem estereótipos conforme a
observação. A dicotomia estrutural entre villager/outsider ainda define o grupo
ocupacional, a reputação, a habitação familiar, o estilo de vida e a proeminência na vila.
Porém, cada um destes status são compostos conforme a ocasião, conforme a relação que
se coloca para dois ou mais interlocutores.
Neste momento percebemos que existem mais do que termos genéricos para definir
grupos culturais, existem pessoas em carne e osso, com suas visões, seus problemas
próprios suas preocupações e portanto, ninguém entende melhor o outro como ele mesmo.
Ou ainda como nos ensinou Marilyn Strathern: a arte da antropologia é a arte de determinar
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os problemas postos por cada cultura, não a de achar soluções para os problemas postos
pela nossa. O ponto de vista nativo passa a ser levado a sério e conseqüentemente, nem a
experiência, nem a atividade interpretativa do pesquisador podem ser consideradas
inocentes. Torna-se necessário conceber a etnografia não como a experiência e a
interpretação de uma outra realidade, mas como uma negociação construtiva envolvendo
pelo menos dois sujeitos conscientes e politicamente significativos. Os paradigmas de
experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e
polifonia.
No caso específico desta dissertação, deste relato de viagem ou desta literatura
acadêmica, seu formato transita entre a narrativa literária e a linguagem jornalística. Foram
usados certos elementos textuais incomuns como notas de rodapé, longas citações
transcritas das falas dos informantes, citações de teóricos e o próprio autor. Até certo ponto
poética na construção dos títulos e subtítulos, as letras Capitol no início dos capítulos e as
descrições minuciosas de fatos e lugares transformam o texto, afastando-o do formato
acadêmico clássico. A polifonia implícita pode ser transcrita no diálogo entre o autor e seus
informantes, mas também entre os informantes e de maneira egocêntrica em fluxos de
consciência do próprio autor.
Esta primeira parte constitui-se portanto como uma auto-análise do trabalho, uma
perspectiva crítica da própria escrita, da interação e obtenção de fontes, da experiência
histórica do pesquisador, da nossa epistême, , da nossa época e da nossa geografia.
21
Parte II - A Costa
Bem, mas tu não vês, Crátilo, que aquele que segue
nomes em busca das coisas e analisa seus sentidos
corre grande perigo de ser enganado?
Platão. Diálogos, Crátilo.
A Velha Barra do Rio Itapocu
arra Velha, município do litoral norte de Santa Catarina, foi o lugar escolhido
para se iniciar as pesquisas de campo porque aparece nos relatos de Pero Hernandez,
escrivão de Cabeza de Vaca, o rio Itapocu (CABEZA DE VACA, [1580?] 1999)
(SOARES, 2001). Barra Velha é uma pequena cidade litorânea com cerca de 17 mil
habitantes e como em muitas localidades da costa sul-sudeste brasileira, com a chegada do
verão e das férias escolares a população chega a 500 mil na alta temporada. Algumas
semanas depois do carnaval, o ritmo normal se re-estabelece, lojas, sorveterias e bares
baixam as portas, as ruas ficam vazias. A tarefa neste caso era descobrir onde estava a
população moradora da cidade, em geral funcionários ou prestadores de serviços aos
turistas que enchem as praias uma vez ao ano.
Geograficamente a cidade se estende por uma costa de quase 20 Km com um
grande bairro de casas de veraneio com moradores anuais esparsos. No centro existe uma
boa infraestrutura, bancos, postos de gasolina, restaurantes, lojas de departamentos e um
mercado de peixe. Em uma praça localizada na parte central exibe-se fragmentos da ossada
de uma das ultimas baleias mortas na cidade na beira de uma grande lagoa que se estende
ao norte por quase 10 Km. Esta lagoa seria o rio Itapocu muitos anos atrás. Uma enxurrada
assoreou a boca do rio e em uma outra enxurrada o rio abriu outra boca mais ao norte.
Barra Velha seria então a velha barra do rio Itapocu.
Outra informação sobre a toponímia seria com relação ao rio Itapocu, tendo o
significado de pedras compridas, segundo alguns porque nas nascentes existiriam muitas
pedras lajeadas e segundo outros porque na sua foz existem pedras alinhadas formando uma
linha perpendicular à costa
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.
9
No dicionário de Orlando Bordoni consta Itapucú: ita = pedra + pucú = comprido. Pedra comprida, ferro
comprido, alavanca.
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Logo de início a aproximação com alguns moradores se fez no sentido de
descobrir alguém que soubesse o porque do nome Barra Velha. Na seqüência a
identificação de historiadores locais, visitas a biblioteca e ao sebo, banca de revistas e
depois de alguns dias passei a conversar com os pescadores e moradores mais antigos.
Biblioteca, escola e o historiador: porque procurar nestes locais.
A princípio, os trabalhos de campo seriam uma busca por informações com dois
grupos sociais distintos (para a minha cabeça), os letrados e os não letrados. Esta discussão
de oposição ou simplesmente de um tipo de pensamento ou de memória diferenciado para
estes dois grupos é longa. Platão já apresentava em Diálogos a história do Farmakon,
veneno e remédio representado pela escrita (DERRIDA, 2004). Para um antigo sacerdote
egípcio, a escrita seria uma palavra morta, fixa, parada, passiva. Em contraposição a um
tipo de palavra viva, mais próxima da narrativa, do interlocutor que participa, que altera o
que diz dependendo da situação.
Toda uma tradição historiográfica percebia a escrita ou palavra morta como uma
prova de veracidade, um retrato fiel de uma época. O que teria sido escrito no passado
permaneceria inalterado e, ao ler um manuscrito do século XV, estaríamos observando a
época, questão também implícita na discussão sobre documento/monumento que veremos
mais adiante. Da mesma forma, a palavra viva, a narrativa ou o que depois seria também
chamado de memória estaria do lado oposto. A fala estaria sujeita a interpretações, desejos
e humores do interlocutor o que a tornaria talvez menos verdadeira. Toda uma tradição
atual de historiadores utiliza o conceito de história oral para contrapor a história oficial ou
factual, a que permaneceu registrada pela escrita e, teoricamente “mais verdadeira”.
Hoje achamos que as coisas não acontecem bem assim. A distinção que estamos
propondo pode ser percebida relacionando o conhecimento e o poder. Michel Foucault já
falava do poder de um médico, que o detém apenas porque possui um conhecimento.
Também a disponibilidade de conhecimento em uma sociedade dá seu valor, assim, a
raridade ou a escassez de um tipo específico de conhecimento determinaria parte de seu
valor e da posição social do seu detentor. O que estaríamos tentando abordar com esta
divisão letrado/não-letrado, seria exatamente esta participação em círculos específicos de
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poder. Poderíamos falar em sábios locais, os que deteriam um conhecimento e
conseqüentemente participariam de grupos sociais distintos daqueles que não tiveram a
oportunidade de participar destes círculos letrados. Porém, as pessoas que se mantém fora
dos círculos das letras, participa e cria outros poderes baseados em conhecimentos
específicos, não baseados nas letras, mas na observação, na empiricidade, na concretude.
A partir dos trabalhos de campo, a impressão que tive dos historiadores locais
letrados era de que seus discursos se assemelhavam. Lembravam do que tinham lido, às
vezes, suas memórias não eram suas, eram memórias do Saint-Hillaire, do Thevet ou do
Bigg-Whither, mas também dos seus avós e pais. Entre o segundo grupo, os não letrados, a
percepção da lembrança me pareceu mais ligada ao mundo concreto e aos dados sensíveis,
construindo assim, um tipo de memória genealógica. Suas narrativas vinham de relações
sociais próximas como parentes ou compadres não citando autores nem autoridades e ao
perguntar para um destes se conhecia uma trilha que subia a Serra, ele respondeu: “Mas
rapaz, aqui era tudo trilha...!”.
Dentro deste quadro, a solução encontrada foi à união entre os dois tipos de
informantes, os letrados me dariam a informação sobre a construção do caminho pelas
citações e re-citações de fontes, e os não letrados dariam pistas sobre a dinâmica social
local o que poderia evidenciar a importância dada, naquele contexto, a um tipo de fonte em
detrimento a outra.
Mas ainda falta discutirmos: o que é uma fonte?
É importante conceituar o que estamos chamando de fonte. Tanto nos relatos
coloniais como nas entrevistas coletadas durante o campo, percebe-se um processo
homólogo de observação, memórias, criação, invenção e construção dos fatos. Cada qual na
sua época emite discursos, fabrica fontes e constrói interpretações a partir de um referencial
simbólico mais ou menos limitado. Assim, as memórias, relatos, discursos, interpretações e
fontes poderiam ser observados pelo termo construções contextualizadas. Continuaremos a
utilizar os termos com o seu sentido tradicional, porém, sob a perspectiva do contexto e das
relações que se impõe no momento.
Um dos primeiros locais que visitei na cidade foi a biblioteca municipal onde
conheci a pessoa que me hospedaria durante o período da pesquisa. A Neide morava com a
mãe e um irmão, nascidos no Vale do Itajaí, seu sogro é um dos pescadores mais velhos da
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Colônia de Pescadores de Barra Velha e o irmão é professor e ex-diretor da escola
municipal. Sobre a história da região, Neide me aconselhou a falar com Cacá, ou José
Carlos assim como diversos outros informantes fizeram posteriormente, principalmente
outros letrados, pois ele seria um especialista na história da região e na época da pesquisa
exercia o cargo de diretor da escola municipal.
Entre os informantes que se enquadrariam em um grupo de dominantes das letras
estaria então José Carlos, claramente localizável, um professor de história que cumpre um
papel importante pesquisando e publicando em jornais locais textos sobre a história, lugares
e movimentos de períodos diversos. Durante as quase três semanas em que estive na cidade
freqüentemente me encontrei com ele, o que gerou um acúmulo grande de informações
históricas, principalmente. Mostrou-me um acervo de fotos do início do século XX que
documentam os primeiros ciclos econômicos dos imigrantes alemães vindos do Vale do
Itajaí. Mostrou-me ainda uma gravura do busto de um suposto Aleixo Garcia e de Cabeça
de Vaca.
Entre estas construções contextualizadas citou Palmier de Goneville em “20 luas”
devido à proximidade com São Francisco do Sul, local onde teria aportado. Avé Lallemant
contando que em Barra Velha e Penha, volta e meia os índios matavam alguns. John Mawe
em “Viajem ao sul do Brasil” e Aires Casal na “Chorografia Brasilica” fizeram referencia
ao Itapocu. Saint-Hilaire (p. 158-159) falaria do Itapocu e de um ataque de índios a Barra
Velha e a Joinvile que teria causado correria nestas cidades.
E ainda citou outras como Sergio Milliet no “Dicionário Crítico”, Conde D´Eu na
“Viajem Militar ao Rio Grande do Sul”, André Thevet em “Singularidades da França
Antártica”, Jean De Léry, Rosana Bond e Eduardo Bueno em ”Traficantes náufragos e
degredados” onde também falariam sobre o Peabiru.
Falou também de Silvio Coelho dos Santos (1987) e sua publicação sobre os
Xokleng em um livro onde há uma foto do Martin Bugreiro, um caçador de bugres que,
entre outros, se encarregavam de exterminar os indígenas habitantes nos vales do Itajaí e do
Itapocu, devido aos constantes conflitos com os recém imigrados europeus. O informante
ainda acrescentou que seu pai lembrara de ter ouvido falar no Martim Bugreiro que teria
agido entre Luis Alves e Blumenau contratado pelas empresas colonizadoras para fazer
uma limpeza étnica na região.
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Ainda citou outros documentos como Acácio Borba que localiza em Barra Velha
um ramal do Peabiru e conta sobre vicentistas
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faiscadores que teriam se instalado
próximo ao Escalvado, devido à descoberta de minas de rubi e ouro. O ramal seguia o rio
Itapocu sendo por aí que aconteceu a colonização do território. Falou ainda de uma
atividade que existia em Barra Velha, as fiandeiras de tucum, atividade que teria sido citada
também por Gabriel Soares de Souza (1971[1587]) como um tecido feito a partir das fibras
da palmeira tucum. Livro de que encontrei um exemplar na biblioteca municipal.
Em uma das conversas ainda disse: “Na cidade de Garuva, um lugar chamado Topo
do Padre existe um trecho de caminho que sobe a Serra”. Um dado ao qual não foi dada
relevância, porém, com o decorrer da pesquisa se mostrou interessante, pois evidenciou
duas grandes vertentes discursivas sobre este ramal de Barra Velha. Com o decorrer da
descrição ficará mais claro e voltaremos a isto quando estivermos em Pitanga.
José Carlos trabalhou ainda com os sambaquis da região, no Sambaqui do
Escalvado, por exemplo, construíram uma piscina sobre o sitio e encontraram laminas de
machado, mão de pilão e fósseis humanos. O Sambaqui da Faisqueira ainda está sem
datação e sem trabalhos. Existe ainda um outro na foz do rio Perequê, perto do Sinuello e
na ilha do Grant, o Padre Rohr, encontrou um sitio sepultamento raso.
Em uma manhã, depois de conversarmos sobre estas coisas, me levou para observar
algumas oficinas líticas presentes no Costão de Barra Velha. Subimos no Morro do Cristo
(um morro com um Cristo em cima) com uma vista fantástica da região. Durante as
conversas me falou que os carijó chegaram no litoral pelo Peabiru, originalmente seriam da
região do Paraguai e Bolívia e vieram pra esta região pela crença na Terra sem Males.
Chegaram na região pelo ano 1000 d.C. e criaram alguns topônimos como em Itajubá onde
há um parcel
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chamado Pedra do Bugre. E entre o Ribeirão Baleado e o Rio do Peixe
existiria um lugar chamado Vargem do Ranho, onde as pessoas que viviam ali seriam
descendentes de índios, da família Nogueira. “Uma mulher morreu com mais de 100 anos e
outros ainda moravam no mato”.
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Trata-se de moradores originários da vila de São Vicente que, segundo as teorias mais difundidas, teriam
migrado ao sul efetuando o povoamento e a fundação de novas vilas como Cananéia, Paranaguá e Barra
Velha.
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Parcel é um recife, um baixio.
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Sobre a história indígena da região certa vez arrematou:
A verdade e a mentira para a história são subjetivas. Na década de 1960, quando
Barra Velha foi transformada em município, tinha-se a necessidade de heroicizar, construir
uma referência, um passado, uma história. Na historiografia desta época era comum inventar.
Assim, Barra Velha tem como primeiro habitante na história oficial um açoriano de nome
Joaquim Alves da Silva, mas não acredito que ele realmente tenha existido.
Em suas pesquisas ele percebeu que a relação entre data e memória também seria
subjetiva: “As pessoas não lembram as datas e sempre temos que verificar as datas corretas
nos documentos”. Dentre tudo o que conversamos, certa vez disse que teria entrado com
um pedido para fundar uma rádio comunitária, se chamaria Rádio Peabiru!
A bicicletaria
Com o passar dos dias percebi que muitas pessoas andavam de bicicleta e certa
vez fui a bicicletaria Cuitelinho onde conheci Giovane, o proprietário, que chegou a fazer
metade do curso de Engenharia Química em Blumenau. Fizemos certa amizade e durante o
período em que permaneci na cidade nos encontramos diversas vezes. As horas passadas no
estabelecimento foram interessantes, conversava muito com os clientes que representavam
uma grande parcela da população. Todas as faixas etárias e trabalhadores em diversos
ramos de atividade se encontravam ali.
Quanto ao Caminho do Peabiru disse que nunca tinha ouvido falar, mas contou
sobre uma estrada que margeia o rio Itapocu até Massaranduba indo a Guaramirim e
chegando em Jaraguá do Sul pelo Bairro Ilha da Figueira. Desta cidade a estrada segue até
Corupá e antes de São Bento tem uma cachoeira chamada Salto da Mula, local onde teria
caído um animal da tropa guiada pelo primeiro dono das terras da atual Jaraguá do Sul.
Próximo a esse Salto, seguindo pela linha férrea, tem um lugar que chama Rio Vermelho
com trechos de um caminho com pedras e madeira, um morro cortado e nivelado para fazer
o caminho calçado, seu pai diz que era usado por tropeiros. A partir de São Bento, a estrada
ruma para Lençol e Rio Negrinho e assim chega-se a Campo Alegre, já em campos do
Primeiro Planalto.
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Com o passar das conversas, Giovane ainda me disse que se achava meio bugre,
que algum antepassado deveria ser indígena e começou a identificar diversas cidades nas
redondezas batizadas com nomes tupi-guarani
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. Disse que seu pai, nascido em Jaraguá do
Sul sabia sobre o Peabiru e que nos próximos dias ele me falaria alguma coisa. Descobriu
então se tratar de um caminho que chegava do Atlântico aos Andes e que era milenar. Ao
interroga-lo sobre como obtivera aquela informação, a resposta foi: “da Enciclopédia
Barsa”!
Fotocópias na rodoviária
Maria Aparecida é pedagoga e proprietária de uma sala no terminal rodoviário
onde guarda alguma quantidade de livros que servem para pesquisa local e também
empréstimo, na sala há uma máquina de fotocópias e um computador. Seu público é
variado, desde músicos, até crianças da escola, empresários e funcionários públicos. Apesar
de não conhecer o Peabiru, já tinha ouvido algo sobre, mas não se lembrava aonde. No dia
seguinte tinha feito uma pesquisa na internet sobre o caminho na qual continha um texto:
“Entrevista com a jornalista, escritora e correspondente de IHGB em Florianópolis, Rosana
Bond”. Uma impressão, sem fonte, mas com o título “História das civilizações nativas da
América do Sul – A desconhecida maravilha indígena”. Falou ainda do Peabiru tendo seu
final em Barra Velha, contrariando outros que o abordam como iniciando neste local.
Questionou ainda o termo índio, como sendo da Índia, pois os primeiros descobridores
achavam que tinham chegado na Índia.
Também me encontrei diversas vezes com esta informante, na biblioteca
municipal comecei a encontrar diversas referências interessantes, um livro sobre os
Araweté de Viveiros de Castro e o Tratado Descritivo de Gabriel Soares de Sousa. Diversos
outros materiais impressos foram copiados e durante o processo registrei o tipo de interesse
de outro grupo na cidade. No caso desta informante, as memórias ligavam-se a motivos e
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José Carlos, o historiador, me forneceu uma cópia do Decreto Lei n. 941 de 31 de dezembro de 1943, do
interventor Nereu Ramos, no qual altera o nome do município de Bananal para Guaramirim observando o
disposto no decreto federal de 1938, que previa a aplicação de nomes tupi-guarani a localidades brasileiras – a
questão de dar relevância a topônimos deve ser cada vez questionada. Da mesma forma, a presença de um
nome que remeteria a algum grupo indígena criaria uma memória e um referencial construído por decreto,
literalmente.
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fatos políticos, não uma política distante como as comemorações cívicas, mas da prática
política, do engajamento e da cidadania em seu próprio micro-cosmo.
Seu Silvino, Seu Domingos e Jaqueline, filha da Dona Conceição
Três informantes privilegiados que, segundo a nossa classificação inicial,
enquadrar-se-iam como não letrados, foram identificados com o passar do tempo. Silvino,
parente da família que me hospedou foi o primeiro e sobre suas lembranças foi logo
dizendo:
“a da gente é pouca”, mas com o passar dos dias as conversas foram ficando mais
longas. O nosso primeiro encontro foi nas canoas de pesca, no centro da cidade, em frente
ao Banco do Brasil. Estava no território dele. Nos outros encontros cheguei mesmo a sentar
na varanda de sua casa e conversar por horas.
Sobre o caminho do Peabiru, especificamente, nada conhecia. Nunca tinha ouvido
falar desde caminho e também não sabia de ninguém que subira a Serra do Mar antes das
estradas de asfalto. Porém sobre o elemento indígena as informações foram muitas:
Na época do pai e da mãe, o sogro contava que os índios mataram uma mulher num
engenho de farinha e o marido tava morrendo quando os outros chegaram e os índios correram.
O engenho era feito de ripa em pé, o boi passava perto da parede, de repente o boi dava um
tranco, era os índios cutucando com um pau. Teve ainda uma mortandade, os índios mataram
muito, no tempo do sogro, uns 90 anos atrás e matavam as pessoas a pau na invasão de Barra
Velha.
Com as conversas me falou mais sobre os índios, contou que:
(...) eles viviam no mato e corriam quando vinha gente perto. Estavam sempre se
escondendo e as vezes via um ao longe, trepado numa árvore, olhando. E também tinha um
homem de nome Alberto Frederico Henz, alemão, que se juntou com uma índia, a Dona Antônia
e moravam lá na Barra, no fim da Lagoa. Existe um rapaz, o Manuel, o afilhado desse homem,
certa vez encontrou um índio que juntava passarinho e atirou e acertou o índio.
Durante um tempo, uma família de índios veio morar nas margens da Lagoa e os
pais do Silvino disseram para chamar os mais velhos de tio e tia, eram “pobrezinhos,
coitados”. Não lembrava de ter visto eles plantando nada, mas depois falou: “os tios tinham
aipim e milho, pouco, eles sofriam muito, era a gente que mais sofria, não tinham o que
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comer. Não iam trabalhar, eram preguiçosos”. E ainda completa: “Os bugre eram uma raça
de gente que não queria trabalhar”.
Conforme os assuntos apareciam as perguntas se modificavam e eu as direcionava
para cada informante na tentativa de relacionar as respostas de diversos informantes. Foi
então que perguntei para o Silvino sobre o Martin Bugreiro, nome referido por outro
informante, e a resposta foi afirmativa. Disse que já tinha ouvido falar que “o Martin
Bugreiro se comunicava muito com os índios” e em seguida citou, quase numa referência
sem nexo, a antiga cadeia da cidade chamada de Ovo do Morro.
O segundo informante desta categoria foi o Seu Domingo. Logo que cheguei na
cidade, ao lado da Prefeitura, em um terreno espremido entre duas avenidas movimentadas,
havia uma casa de madeira muito velha. Seu estilo de construção, as telhas chatas, as
cortinas, o fogão a lenha e o quintal varrido remetiam a algo que não encontraria
semelhante durante toda a minha estada. Assim, que olhei esta casa, percebi que ali estaria
um informante privilegiado. Parecia que a cidade tinha crescido e englobado aquela casinha
de madeira que continuava intacta, parada no tempo. Durante semanas passei em frente da
casa, mas nunca via ninguém. Nos últimos dias vi um senhor de idade avançada limpando o
quintal e fui conversar. Depois das apresentações fiz a primeira pergunta: “O Sr. sabe se
havia alguma trilha que subia a Serra?” Ele respondeu: “Mas rapaz, aqui era tudo trilha!”
Enquanto a conversa desenrolava, pegou um cigarro de palha do bolso e foi até o fogão
buscar um tição de madeira para fumar.
Contou sobre a casa, ela estava lá desde 1969 e antes era feita de taquara e barro,
com o passar do tempo quiseram expulsa-lo dali e o único comprador de suas terras morreu
atropelado na BR 101 no dia em que fechou o negócio. Sobre os bugres contou duas
histórias interessantes sobre um conflito. Uma delas foi sobre um vizinho seu que criava
pacas e todas as noites os índios vinham roubar sua criação até que desistiu. A outra
história conta que certa vez uma índia largou uma criança em uma roça de batatas. A
choradeira atraiu a atenção e uma mulher pegou a criança indígena e a criou. Um dia,
depois de adulto, vieram alguns índios para leva-lo de volta; este rapaz saiu correndo pela
praia, entrou na água e nadou até uma pedra para escapar e ficou lá até aquela “bugrama” ir
embora. E foi assim que aquela pedra na praia de Itajubá recebeu o nome de Pedra do
Bugre. Assim que retornou do “esconderijo”, o rapaz organizou um grupo armado e foi
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encontrar os perseguidores. Quando chegaram ao acampamento dos bugres, estavam todos
dormindo e foi um horror o que teria acontecido, mataram todos, inclusive mulheres e
crianças, restando apenas um que correu para o mato.
Interessado pela mistura que a história evidenciava perguntei quem seria a criança
deixada na roça de batatas, se hoje a sua família ou descendentes ainda moravam na região,
e sua resposta foi: “Não sei quem é, só sei que hoje já tão tudo misturado!”.
A terceira informante privilegiada teria falecido durante o último verão. A Dona
Conceição como era conhecida teria falecido com 115 anos, segundo alguns, e me
indicaram ela devido a sua idade avançada. A esta altura diversas pessoas achavam que eu
estava atrás de descendentes de indígenas e começavam a me indicar pessoas que eles
achavam que seriam indígenas, e foi o que aconteceu com a Dona Conceição. Assim, fui
atrás do local onde morava esta senhora e acabei conhecendo a sua filha, Jaqueline. A casa
era completamente diferente, quatro pequenos galpões no terreno formavam a casa que não
tinha interligações. Em sua cozinha, local onde conversamos havia uma pia e uma mesa,
algumas bacias e facas. O resto da casa não possuía móvel algum, apenas cortinas e um
mosquiteiro em um dos cantos. O fogo deveria ficar em um dos galpões, pois não consegui
ver onde era e também notei a ausência de geladeira na casa, mas que contava com um
enorme relógio de parede.
Jaqueline me contou que sua mãe era muito forte e que mesmo depois de fraturar o
fêmur numa queda, continuou trabalhando em suas terras sozinha, arrastando a perna. Ficou
com este problema porque não permitiu que os médicos a olhassem sob a saia e assim, teve
que morar com a filha. Por quase dez anos ficou presa a cama, sendo alimentada e lavada
pela filha todos os dias. Muitas pessoas, ao me contar sobre elas falavam que a filha era
descuidada com a mãe, que era tudo culpa dela etc, etc. Porém, ao saber o outro lado do
fato, fiquei surpreendido. A mesma surpresa tive em saber que a Dona Conceição, que teria
falecido com 115 anos, teria nascido em 1904.
Das histórias que me contou, uma delas remete diretamente ao depoimento do
Silvino sobre o habito de caçar pássaros que os bugres tinham. Jaqueline me contou que seu
avô era bem bugre, nascido no rio do Peixe, em Medeiros, teria morrido com mais de 100
anos e sempre saia com ele para caçar aves com bodoque
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e todos ajudavam a fazer
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Uma espécie de arco que invés de atirar flechas atira pedras.
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bolinhas de barro cozido para caçar. Disse que não gostava de ir com o avô, pois achava
meio nojento ter que comer passarinho. Na época em que Jaqueline era criança viviam da
roça, na cozinha havia um caldeirão de fero e uma chapa ou colocavam a panela direto no
fogo. Fazia farinha, esteira, balaio sendo a casa de palha e o chão batido, sem nenhum
móvel.
A informante ainda falou dos palmitos que se viam em todos os lugares e da guerra
que sua avó contava. “Ela tava na venda quando passou a guerra que já tava indo embora.
Mataram um boi e deram um pouco para os moradores. A minha mãe ainda viu a guerra,
mas a vó falava. Era uma turma de cavalo com armas”. A informante contou ainda, com
certa repulsa, que a sua mãe: “fumava cachimbo fedido o dia inteiro. Plantava o fumo e
fazia a corda. Fumava e cuspia, fumava e cuspia”. Sobre sua avó a informante deu detalhes
sobre remédios que preparava como sabugueiro, picão e garrafadas e que também tinha a
atividade de benzedeira. “Benzia sapinho, susto, costelinha caída, campainha inchada e
também era parteira”.
Quando perguntei se a informante sabia algo sobre indígenas na região, me disse
que há algum tempo atrás existiam alguns índios morando em uma rua, próximo ao rio
Itapocu. “Eram índios mesmo, falavam na língua deles e moravam numa barraca de lona
preta”.
O Mercado de peixe e a Baixada
Dois lugares que sugerem pensar sobre a cidade e algumas de suas secções seriam o
Mercado de peixe e o bairro da Baixada. O Mercado é o local onde ficam as canoas de
pesca, no centro da cidade, em frente ao Banco do Brasil. Ali uma praia protegida por um
costão rochoso reúne, a dezenas de anos, os barcos recém chegados do mar todos os dias de
bom tempo, pela manhã. Em dias chuvosos ficam apenas homens conversando, emendando
redes e concertando um barco ou outro. Hoje, as reclamações são freqüentes devido à
drástica diminuição do pescado: “não tem mais peixe como antes”. As explicações para este
fato podem ser muitas, porém, mesmo com a escassez de peixe e todas as proibições que
pesam sobre os ombros destes trabalhadores do mar, eles continuam no mesmo local,
tentando desenvolver as mesmas atividades de antes. Pela localização e movimentação
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neste mercado, parece que a cidade, a administração pública, o mantém em funcionamento
quase como um mostruário do “tradicional”. È o mercado a céu aberto que daria uma cara
de balneário de pesca para a cidade de Barra Velha, um diferenciador que atrairia outro tipo
de turismo. Uma “tradição” que teria desaparecido engolida pela especulação imobiliária,
porém, hoje resiste ou está sendo mantida propositadamente em um espaço razoável, entre
os mais valorizados no local.
Mas a pergunta inevitável era com relação ao espaço de habitação destes
pescadores. A grande maioria não residia no centro valorizado sendo um processo
demorado que tive de percorrer para encontrar estes locais. Até que descobri, num mapa da
cidade, a existência de um outro bairro, do lado oeste da BR 101. Ali, afastado da praia, um
bairro imenso, escolas, praças públicas, bares, mercados e lanchonetes, atendiam a uma
clientela quase autóctone, cujo trabalho era a manutenção das casas de veranistas ou as
atividades de pesca. Se do lado leste da BR, próximo a praia, a cidade tem uma cara de
cidade fantasma, do lado oeste a vida pululava. Pessoas nas ruas, animais e uma
efervescência cotidiana que não era vista do outro lado. Enfim, descobri onde ficavam os
moradores anuais da cidade.
Foi então que percebi o jogo do qual estava participando, já que as pessoas
achavam que eu procurava índios e seus descendentes na atualidade, me indicavam
informantes que teriam estas características, como já dissemos. Estaria tudo bem se não
fosse pelo fato de que, ao conversar com estes informantes indicados como descendentes de
indígenas, esses, negavam qualquer possível descendência. Surpreendentemente percebi
que naquela cidade, muitos achavam que ali existiriam índios ainda, mas ninguém queria
ser o índio!
Ao leitor gostaria de relembrar algumas discussões feitas em páginas passadas
agora a luz da experiência etnográfica adquirida em campo. Como podem perceber, nem
sempre tudo saiu como o esperado. Primeiramente, ao abordar o “outro” como informante
estaríamos fazendo o pesquisador desaparecer por completo ou estaríamos fazendo o
próprio informante sumir. Utilizar o termo dado, para nos referirmos às informações
adquiridas em campo seria apenas uma manifestação de força de expressão. Sabemos, e
falamos nisso no início, que não existem dados, mas construídos, ou melhor, dados
construídos na interação, na interlocução do pesquisador com o outro.
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Ao perceber que não coletava apenas os dados propostos no projeto, as coisas
significantes e que eram efetivamente anotadas no diário foram aparecendo na medida em
que o campo se desenrolava. As pessoas foram me conhecendo, me inscrevendo, fomos
criando um corpus de significações em comum e quando isto aconteceu, minhas perguntas,
as informações que deveria pesquisar ganhavam outras significações, outros contornos ou
tornavam-se completamente insignificantes para as pessoas do lugar. Assim, a minha teoria
sofreu modificações na medida que apreendia a teoria do outro, em alguns casos minhas
perguntas tornaram-se frágeis frente aos problemas de cada localidade, ou de cada
interlocutor. Desta maneira nada seria banal na descrição que desenvolvemos apenas
ganhando significação na medida que formos acumulando outras descrições.
As descrições são então acompanhadas dos mais diversos assuntos e, em geral,
procurei rastrear em outras localidades estes mesmos assuntos, como por exemplo, o
tratamento que se dá às mulheres, expressões que evidenciavam representações sobre a
mestiçagem, expressões denotadoras de racismo, vícios de linguagem, piadas, metáforas,
hábitos alimentares. Cada um destes elementos foi comentado como significante, porém,
por não fazer parte dos planos iniciais de pesquisa, não foram efetivamente inscritos nas
teorias norteadoras do trabalho. Ou como nos diria Jorge Luis Borges, um mapa do Império
do tamanho do próprio Império não seria útil pois os mapas dependem de recortes e são
feitos mediante observações sobre temáticas específicas.
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Parte III - Peregrinação na Serra da Pitanga
Eram cinco cegos que não conheciam este animal (o elefante)
e um dia foram apresentados a ele. Um dos cegos apalpou suas patas
e concluiu: o elefante assemelha-se a grossas colunas. Outro tomou
sua tromba e pensou ser ele semelhante a uma cobra, sinuoso e
flexível. O terceiro, pegando a cauda, imaginou o elefante como um
chicote, fino e com fios na extremidade. Já o quarto, tateando suas
presas, teve a imagem dele como um bastão maciço. E finalmente o
último cego, ao apalpar as orelhas do animal, ponderou que ele mais
parecia um leque maleável.
O que isto significa? Que o nosso conhecimento sobre
qualquer coisa depende da maneira como a “pegamos”, depende do
nosso ângulo de visão e dos instrumentos que temos para estuda-la
João Francisco Duarte Jr. A política da loucura: a antipsiquiatria. 1983. p.9-10.
Pitanga e o Centro Geodésico do Paraná
o rumo do caminho, saindo de Curitiba, lembro-me de ter ficado durante quase
cinco horas seguindo na direção do poente. A transição dos planaltos, da área costeira para
o arenito em Ponta Grossa e para a Terra Roxa, em Guarapuava faz mudar não só a
paisagem, mas as vendas da beira da estrada, seus produtos, o tipo de ocupação que vemos
da janela. Depois da cidade de Ponta Grossa, percebemos os campos de soja, a monocultura
das terras mecanizadas. Destruíram tudo para deixar a terra viva, retiraram até mesmo as
pedras que havia no terreno. Até Guarapuava as imagens se repetiram. Lembrei da
conquista dos Campos de Guarapuava em 1700 e 1800, os conflitos com indígenas, a sua
expulsão e extermínio. Porém, entre Guarapuava e Pitanga o cenário muda, as vendas na
estrada se multiplicam, a monocultura da soja diminui e a agricultura familiar feita em
terras relativamente pequenas aparecem com freqüência. Extensas áreas de pinheirais e
florestas formam grandes extensões de ambos os lados da estrada e inúmeras famílias
vendem pinhões nas margens das estradas.
Pitanga se localiza no centro geodésico do estado do Paraná e, segundo Ruy
Wachowicz (1972), seria o limite da ocupação do que ele chama de Paraná Tradicional.
Com hábitos relacionados à movimentação de tropas, e à criação de bovinos, eqüinos e
suínos, principalmente. Liga-se aos processos de ocupação do “sertão interior” da Província
do Paraná a partir de Ponta Grossa, Castro e Guarapuava. Foi escolhida para compor esta
35
dissertação devido a vestígios arqueológicos relacionados ao caminho e a habitações
subterrâneas localizadas e pesquisadas
14
. Também foi escolhida por sediar, há quatro anos,
o Congresso de Estudiosos do Caminho do Peabiru e por possuir um grupo empenhado em
organizar peregrinações pelo caminho. Atualmente a cidade conta com cerca de 35 mil
habitantes.
Em Pitanga passei a minha estada em um local chamado Hotel e Restaurante “O
Povão”, bem em frente ao terminal rodoviário. Junto ao hotel existe um bar com mesas e
um grande balcão onde se reuniam pela manhã e aos finais de tarde moradores da cidade,
lavradores, corretores, funcionários de cooperativas dos quais consegui muitas informações
relevantes com relação ao modo de vida do lugar. As piadas que se contam, as metáforas,
alguns hábitos e principalmente as maneiras com que estes informantes se referem aos
indígenas. Fora estes, também havia um informante privilegiado, Clemente Gaioski, um
dos mentores das peregrinações pelo Caminho do Peabiru, uma das quais tive a
oportunidade de participar. Uma caminhada de 94 Km em três dias, passando pelo vale de
dois importantes rios da região central do Paraná, o Ivaí e o Piquiri, mas voltaremos a isto.
Nesta cidade foram coletadas informações de cinco maneiras distintas. Primeiro
com diversos informantes no balcão da lanchonete “O Povão”; também com Clemente que
tive pelo menos quatro longas conversas. Um terceiro foco de emissores foi a peregrinação,
com 60 participantes. Três dias de caminhada transformaram-se numa fonte de informações
sobre os grupos que estão envolvidos com o Peabiru, ou melhor, com este esquema, com
este recorte do caminho. Perguntei a diversos participantes o que estavam fazendo ali,
quem eram, de onde, qual a profissão, como ficaram sabendo da caminhada e também
sobre as suas explicações sobre o caminho, como usavam as fontes e davam a legitimidade
desejada ao que estavam fazendo. Um quarto grupo de informantes foi localizado nas
universidades, uma estadual UNICENTRO, e outra particular UCP.
Um quinto grupo de informantes foram os “velhos”, os pioneiros como chamam
os primeiros a chegar na região, pessoas que viram a transformação do “pinhalão” e do
“picadão” em casas e ruas. As primeiras memórias que surgiam no início das conversas, em
14
Mais adiante o leitor terá contato com explicações detalhadas sobre a relevância destas habitações
subterrâneas. Por hora basta esclarecer que se trata de sítios arqueológicos, provavelmente, relacionados com
as populações gê do sul do Brasil.
36
um caso, se tratavam da relação com fatos violentos, assassinatos, brigas por terras em
outro. Estes pioneiros, como são referidos, iniciaram o processo de ocupação da região de
Pitanga por volta de 1915 culminando esta migração com a Guerra dos Índios em 1923,
como ficou conhecida na cidade. Muitos contam que os primeiros imigrantes invadiram o
espaço que era anteriormente dos kaingang. Estes degolaram a esposa de um pioneiro.
Desesperados os novos habitantes fugiram deixando tudo o que tinham. Os kaingang
beberam muito e foram para a igreja onde ficaram dançando e cantando. Os imigrantes
cercaram então a igreja e mataram todos. Contam ainda que a igreja estava tão suja de
sangue que foi preciso queimá-la. Uma das versões diz que a mulher degolada estava
grávida e, além de pendurar sua cabeça em uma árvore, os índios teriam arrancado seu feto
do ventre e espalhado as tripas. Em outra versão conta-se que os imigrantes teriam
estuprado uma índia, o que levou a uma vingança.
Logo na primeira noite, ao sair para comer algo, parei em uma lanchonete com um
imenso balcão de imbuia. Enquanto lanchava perguntei coisas sobre os índios da região e,
pacientemente o proprietário me explicou: “Eles não fazem pote, só cestos, não tem religião
e também não são gente, pois não tem entendimento sobre as coisas.” Para não generalizar
muito completou dizendo que alguns índios teriam conseguido se tornar gente depois que
passaram a compreender a palavra de Deus e que a cidade só teria se desenvolvido após a
vinda de migrantes gaúchos, do Rio Grande do Sul.
O Povão – Hotel Restaurante
O Hotel e Restaurante “O Povão”, bem em frente ao terminal rodoviário, como já
dissemos, se reuniam pela manhã e aos finais de tarde lavradores, corretores, funcionários
de cooperativas e com eles muitas informações com relação ao modo de vida, as piadas que
se contam, as metáforas e as maneiras com que se referem aos indígenas.
Foi sentado neste balcão que fiz as primeiras observações sobre índios kaingang
chegando, no terminal rodoviário pela manhã, com vários cestos e indo embora no final de
tarde. Nos finais de semana muitas famílias dormiam em frente ao hotel ou na praça do
terminal sob um pomar de pitangas.
37
Logo nas primeiras conversas que tive com o Sr Eloi, proprietário do hotel, fiz
perguntas relacionadas ao nome da cidade. Explicou-me que era devido à existência de
muitas pitangueiras na região onde hoje estaria o cemitério. Eram árvores plantadas em
linha que serviam como ponto de encontro para criadores de porcos da região de Campo
Mourão que levavam os animais até Ponta Grossa. No “lugar das pitangas” tinha
mercadores que trocavam porcos machucados, que não agüentariam a marcha, por milho e
outros víveres para a viajem. Sobre o caminho, o Sr Eloi me falou sobre Vicente Desubate,
advogado e ex-candidato a prefeito de Pitanga, que já se interessava pelo Peabiru há muito
tempo. O Desubate seria nascido em Pitanga e possuiria uma propriedade na região de
Barra Bonita, local por onde passaria o caminho. “O caminho passa dentro da propriedade
dele” como deixou claro um outro informante.
Ainda em outra ocasião ouvi histórias sobre uma família que havia na cidade,
ninguém conseguia conversar com eles, falavam muito alto por serem descendentes de
italianos puros. Sobre as piadas, entre outras, ouvi coisas do tipo: “O boi só pula a cerca se
o pasto de lá é melhor” e “Quando vão atropelar uma mulher, se diz: não se mata nada que
se possa comer vivo”!
A mulher
A mulher se insere depois das piadas devido a uma conexão forte que observei
com relação aos espaços ocupados por cada gênero. Um dos casos aconteceu no “O Povão”
onde o Sr. Eloi tinha em uma das prateleiras do Bar, misturado com garrafas de Amargo,
Conhaque e Jurubeba, um falo (um pênis) de plástico, que na verdade era um abridor de
garrafas. Por diversas vezes observei mulheres entrando no bar e pedindo um refrigerante.
Imediatamente, quem estivesse atrás do balcão a servia, abrindo a garrafa com o dito
objeto. O espanto era geral e realmente “espantava” em poucos minutos as mulheres que
tentavam ser freguesas.
No decorrer do texto comentaremos mais sobre estas relações de gênero nas
comunidades rurais observadas.
O negro
Certa vez um homem negro entrou no bar. Estava bem vestido, de terno e com
uma pastinha tipo 007. Todos pararam de falar e ficaram olhando para o sujeito. Um pouco
constrangido virou-se para mim e perguntou quem era o proprietário do estabelecimento,
38
pois era vendedor de carvão vegetal e queria saber se ali alguém queria comprar. Um dos
clientes, que estava sempre lá, interrompeu o vendedor dizendo que ali não se podia vender
carvão, que o IBAMA não deixava, só com autorização e que ali ninguém queria
complicação com a lei, etc, etc...
Depois que o homem saiu do bar, realmente percebi o que as pessoas pensavam
ouvindo os comentários que fizeram. “Preto, vendendo carvão? Há, Há, Há!”.
O índio
Quanto ao elemento indígena, presente todo o dia na cidade, um dos funcionários
do bar me disse com convicção que: “índio só anda descalço, é lazarento e relaxado”.
Também se referiu aos índios como cambê que, segundo a sua tradução significaria
“veado” (homossexual). Outras palavras também pronunciadas foram capucho e cambeci
15
,
com o mesmo significado, para se referir genericamente a todos os índios. Uma outra
situação que envolve O Povão com relação aos indígenas está descrita mais à frente com o
título “Pitanga e os índios - uma Guerra Moderna“.
Universidades: quando alguém fabrica uma fonte?
Logo nos primeiros dias trabalhei na localização dos informantes letrados. Sabia
de antemão da existência de duas universidades na cidade e tratei de contatá-las. Na
Universidade Estadual do Centro do Paraná consegui contato com dois professores e quatro
alunos do curso de história.
Sobre o Peabiru, o professor Edgar, que ministra disciplina relacionada com
história contemporânea me indicou uma professora de Guarapuava, que estaria trabalhando
com o tema. Sabia do envolvimento da Itaipu Binacional, da questão da Terra Sem Males e
todo este contexto. Edgar falou que lembrava do caminho no Rio Grande do Sul, sua terra
natal, e que se relacionava com os caminhos indígenas que iriam até as missões
guaraníticas. Teria dois alunos de Guarapuava desenvolvendo monografias sobre o
caminho do Peabiru. Sabia de lugares em Pitanga onde o caminho estava preservado,
15
No dicionário de Orlando Bordoni A língua tupi na geografia do Brasil, Cambí= cam (cama) = seio, peito + i
(y) água = Água do seio, líquido do seio, leite.
39
porém todo o estudo acontecia em Guarapuava onde não mais haveria vestígios do
caminho.
Continuando o professor falou:
As discussões sobre o Peabiru em Pitanga acontecem como um discurso de surdos
para mudos. As pessoas não têm a menor idéia do que é o caminho. A disputa toda está em
relação a quem sabe alguma coisa e já se ouviu coisas absurdas como o Peabiru sendo de
extraterrestres ou ligado a cidade de Atlântida e por aí vai. O Cabeza de Vaca que teria olhado
para as estrelas e descoberto o caminho por ali. Enfim, se discute muito, mas não há nada
sistematizado. Tem a Rosana Bond, que é meio folclórica e tem umas idéias interessantes a ser
trabalhadas. Outra coisa, têm uma série de pequenas lendas sobre isso, que os índios escondiam
este caminho, que o caminho tinha várias ramificações. Um astrônomo já marcou o caminho
pela astronomia e tem até um planetário que fala disso. Existe também uma memória de muita
lendinha, lendas aqui e ali, mas para amarrar tudo concretamente, não vejo como. Os potes de
ouro dos índios também está no meio disso tudo e também tem a lenda do pote de ouro do
jesuíta que escondeu quando estavam sendo atacados.
Efetivamente, tem um caminho deste, de grama, construído aqui na região agrária.
Este trecho foi achado, é um vestígio arqueológico, mas também já ouvi dizer que é um vestígio
meio aberto a facão. Tinha uma parte pequena e os caras abriram para dar a impressão que era,
mas já não sei se é uma lenda ou não. Parece que está acontecendo uma construção do caminho.
Pegaram a Terra Sem Males dizendo que eram os guaranis que usavam, mas não eram os
guarani, se fosse, eram os incas. Foi em 1943 a última marcha que os guarani fizeram saindo do
estado de tribo e indo para um estado de chefia, saíram marchando em busca de uma terra
prometida. Os incas não tinham esta perspectiva.
Tenho a impressão que eles tão querendo desenvolver o turismo e estão usando isso
aí como vínculo. Tem grupos políticos mexendo com isso, Itaipu. Se for pensar bem, eles tão se
apropriando de uma coisa que não tem indício e estão construindo. Igual a Tiradentes, se você
não tem uma foto dele, tu constrói um homem branco, barbado, parecido com Jesus. Constrói
um imaginário sobre ele, mas não como um alferes de cavalaria. O Hobsbawn e José Murilo de
Carvalho sobre a construção do imaginário na República explicam como vai se criando uma
perspectiva.
Existe alguma coisa com relação a este caminho, mas agora ele está sendo
resignificado com um propósito moderno que é desenvolver o turismo, apoiar certos grupos
políticos, desenvolver o comércio. Na verdade não se tem nada, está se reconstruindo alguma
coisa a partir do nada. Como um louco que fala sobre isto e criaria uma teoria. Se lançou a pedra
fundamental não com interesses obscuros, mas com interesses variados e agora estão chamando
a atenção.
Os caras mapearam mais de 50 caminhos e ramais, mas vão mapear como, um
caminho que desapareceu? De onde estão tirando estes indícios? Em uma palestra mostraram
um mapa com o caminho perfeito, inteiro, Paranaguá, Santa Catarina, São Paulo. Os caras já
tem um caminho pronto e agora estão buscando coisas para construir este caminho e não sei de
onde tiram. Já existe, então agora temos que fazer ele passar por aqui. Se não tem, vão abrir uma
picada aqui para ser o caminho. Tem três alunas de história na outra mesa, tenho certeza que se
eu perguntar a elas, não vão saber o que é. E elas são do município de Palmital, o Peabiru
passava por ali.
Teve ainda uma autoridade política que veio dar uma palestra sobre o Peabiru aqui
em Pitanga e imediatamente virou uma “autoridade da fala”. Criou uma fonte de uma memória
que não existe, o cara está criando da cabeça dele.
Em seguida fui conversar com as alunas de história que estavam na mesa de trás e
ao perguntar sobre o Peabiru a resposta foi que “conheciam muito pouco”. Uma delas sabia
40
que o caminho passava no município de Laranjal. E perguntei, mas como você sabe que o
caminho passava lá?
Eu sei por causa daquele curso que teve, eu não fiz, mas a Melissa, uma amiga minha
fez e me contou que ele passava por ali. Parece que existem provas, vestígios, alguma coisa
assim, que o professor palestrante (a determinada autoridade política) contou.
Recapitulando a fala do professor Edgar, podemos perceber que ele inicia
enumerando as diversas fontes ou teorias sobre a origem do Peabiru, as lendas, os dados
astronômicos, a memória, potes de ouro de índios e potes de ouro de jesuítas, depois vê esta
diversidade de teorias como uma tentativa de construção do caminho por dois interesses
específicos, um deles político, o outro turístico. Pouco depois, claramente diz estar o
Peabiru passando por uma re-significação com propósitos modernos. Em seguida comenta
sobre a autoridade política que fez um discurso sobre o Peabiru e imediatamente criou uma
fonte devido a autoridade de sua fala.
Teríamos então três coisas. Primeiramente o professor Edgar encontra-se emerso
nas relações de saber e poder que comentamos no início. Não apenas ele, mas a outra
autoridade política também. Detendo conhecimento e por isso mesmo mantendo um poder
devido a este conhecimento, a autoridade de ambos aparece nas funções que ocupam. A
partir deste poder, suas falas transformarem-se em fonte devido a sua legitimidade é apenas
um passo, mais ou menos como acontece com antropólogos e sua autoridade. O professor
não quer que sua fala se transforme em fonte, para ele permanece uma visão crítica comum
aos historiadores, uma relação ética com o conhecimento. Já a autoridade política não
observa suas falas criticamente, as impõe e pouco se preocupa com a citação e re-citação
descontextualizada de suas palavras. Para um político, a suposta autoridade estaria em
outro campo, na sua própria legitimidade depositada pelos seus eleitores.
Um terceiro ponto estaria relacionado a manutenção ou construção deste caminho
na região para fins de turismo e de melhoria econômica às populações locais, mas sobre isto
comentaremos mais adiante.
Na outra universidade da cidade (UCP, particular), conheci várias pessoas e num
dos primeiros relatos sobre os índios que obtive com um estudante de Direito foi: “Os
índios são primitivos, não importam para mim, eu não consigo nem ver eles, eles são
invisíveis”. E sobre o Peabiru comentou que tinha feito um trabalho onde citava o caminho
41
como uma ligação entre o Paraguai, a Bolívia e o Peru, mas que o Professor Eliseu e o
Clemente saberiam me dar mais informações até sobre um vestígio que eles encontraram,
um cano de barro feito pelos jesuítas.
Pelos relatos parece haver uma mistura de fontes diversas e uma disputa sobre esta
autoridade do conhecimento. Uma espécie de disputa entre duas ou três vertentes que
reivindicam serem os primeiros a falar e pesquisar sobre o Caminho do Peabiru, porém, não
questionam nem as fontes, nem o que é falado efetivamente.
Sobre fontes e documentos
As alterações de significados são freqüentes em documentos, tornando-se
extremamente difícil definir o sentido que este caminho adquire em cada período e para
cada grupo. Em toda a presente discussão o Peabiru será abordado como um
documento/monumento. Primeiro por causa de sua suposta grandiosidade, segundo, devido
à construção desta monumentalidade como um caminho carregado de significados que
preenchem o imaginário de diversos grupos. Desta forma, como nos diria Nietzsche, os
fatos do passado são escolhidos por grupos para que cumpram papéis no presente. Em
outras palavras, as fontes seriam dotadas de sentido conforme os interesses presentes
daqueles que abordam o passado (BORGES NETO, 1989). A tese de Nietzsche diria que os
homens voltam-se ao seu passado em função de seus interesses e necessidades do presente.
Assim, Nietzsche propõe três formas diferenciadas que os homens tem para resgatar
o passado. A História Monumental seria feita por quem busca no passado aliados para as
lutas do presente, busca a legitimação para sua posição, é a história dos heróis e dos
vencedores. Esta história seleciona aspectos do passado, lhes atribui uma grandeza perene e
os usa como alavanca para um futuro de grandeza. A História Tradicionalista é feita pelo
antiquário, feita por quem julga que o melhor presente é o que não altera o passado. Esta
história observa todos o passado em fragmentos atribuindo-lhes o mesmo valor, valoriza o
passado apenas por ser passado e repudia o novo. Por fim, a História Crítica feita pelos
oprimidos e sofredores que buscam no passado as causas de seu estado presente julgando-o
e condenando-o. Este é um tipo de história que troca o passado que foi pelo que deveria ter
42
sido para que o sofredor se liberte da sua opressão presente. Este último tipo seria, em
geral, escrita pelos vencidos.
A estrutura composta pelas fontes históricas em um constante jogo de reflexo e anti-
reflexo entre monumentos e documentos e sua graduação de relevância, foi abordado por
Walter Benjamim, em “Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie” (1987), onde
são discutidas as possibilidades de um objeto, uma habitação, ruínas de um período
obterem significados conforme são escolhidas para representar uma sociedade; conforme
são mostradas ou escondidas. Alguns tipos de monumentos históricos, presentes hoje,
ganharam visibilidade em datas determinadas e passaram a ser significativos, passiveis de
estudos e de preservação. Os rituais de tombamento patrimoniais têm a sua origem datada
no início do século XX sendo a escolha dos bens representativos da história da nação
permeados por um discurso também datável (GONÇALVES, 1996). Desde então, fomos
treinados ou “ensinados”, que casas antigas, fachadas, ruínas, sítios arqueológicos devem
ser preservados como testemunhos do passado. Preservados para que a história do povo
brasileiro tenha a possibilidade de uma antiguidade.
Para Jacques Le Goff (1992), os documentos e monumentos seriam os materiais
com os quais se constrói a memória coletiva e sua forma científica, a História. O autor
discute os monumentos e documentos como heranças do passado que passam pelo crivo da
escolha do historiador. Desta forma não teriam um status de permanência, pois sempre
seriam descobertos, encobertos, esquecidos e lembrados. Vale indicar que as diversas
categorias de documentos, aceitas hoje, não foram sempre consideradas como
representantes de uma memória. Durante os séculos XVII e XIX, alguns textos escritos
tornaram-se monumentos e Zumthor descobre que esta dinâmica de elevação de status
acontecia quando um documento passava a ser utilizado pelo poder (LE GOFF, 1992: 545)!
A Revista “Annales d´stoire économique et sociale”, já anunciava em 1930 que: “A
história, além de documentos deveria fazer-se com palavras, signos, paisagens e telhas, com
as formas do campo e as ervas daninhas, com eclipses e com a atrelagem dos cavalos”.
(FEBVRE, L. 1949 In: Le Goff, 1992: 540). Marc Bloch (1957) recomendava que se
ampliasse o conceito de documento, podendo ser escrito, ilustrado, transmitido pelo som,
imagem ou de qualquer outra maneira. O que permitiria que na década de 1960 houvesse
uma “revolução documental” onde o fato que conduzia a uma história linear seria
43
substituído por uma memória progressiva, privilegiando o dado, levando assim a uma série
e a possibilidade de uma história descontínua.
Porém, foi Michel Foucault que delineou e questão da crítica ao documento:
O documento não é o feliz instrumento de uma história que seja, em si própria,
memória: a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto à elaboração de uma
massa documental da qual não se separa
(FOUCAULT, 1986: 13).
E sobre a história ainda completa:
Onde dantes se tentava reconhecer em negativo o que eles tinham sido, apresenta agora
uma massa de elementos que é preciso depois isolar, reagrupar, tornar pertinentes, colocar em
relação, constituir em conjunto
(ibidem: 13).
Le Goff também define o historiador como um escolhedor de documentos, o qual
extraindo esse do conjunto de dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um
valor de testemunho que, pelo menos em parte depende da sua própria posição na
sociedade, da sua época e da sua organização mental. Da mesma forma o documento seria o
resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente da história, da época, da sociedade
que o produziu, mas também das épocas sucessivas das quais continuou a viver, talvez
esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (Le Goff,
1992: 547) E completa:
O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para se impor
ao futuro, voluntária ou involuntariamente, determinada imagem de si própria. Não existe um
documento verdade. Todo documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de
ingênuo.
(ibidem: 548).
No início falamos de Nietzsche que serviria para propor algumas possibilidades
sobre a escrita da história e suas significações. O que não acontece de forma neutra pois o
historiador seleciona suas fontes, escolhe o que é significativo em cada momento. Falamos
sobre a preservação do Patrimônio Histórico que está sujeita a mesma não neutralidade. Até
a década de 1980 a possibilidade de preservação era relevante apenas em situações de
patrimônio material, como casas antigas e ruínas, estando totalmente emerso na concretude
material da história. Durante a década de 1990 observa-se o deslocamento da preservação
44
de bens históricos também para temas imateriais. Rituais, músicas e técnicas passam a ser
objetivados e delineados pela preservação que, por fim, os corrompe e os transforma em
bens materiais. Apesar da possibilidade de preservação de bens imateriais, ainda não
sabemos muito bem como lidar com um patrimônio que se transforma e que se sustenta
através desta transformação.
Le Goff nos deu as cartas para pensar nesta transformação dos próprios documentos,
ou melhor, quando algo se torna documento, porque e como transpassa para a categoria de
monumento. Foi este autor também que nos chamou a atenção para as conexões existentes
entre os documentos e sua utilização pelo poder, o que elevaria seu status. A autoridade da
fala observada na cidade de Pitanga e descrita pelo professor Edgar entraria exatamente
neste hall. Quanto a sua maneira de pensar a História e suas formas de abordar o passado,
seria substancialmente diferente daquelas propostas por Nietzsche. Hoje em dia já existem
diversas outras formas de abordar o passado, a História Crítica se mantêm, mas para o
professor Edgar, por exemplo, a História Deconstrutivista seria uma espinha dorsal de seu
pensamento.
Clemente Gaioski e o IBGE
Clemente Gaioski era o informante que vim procurar na cidade de Pitanga. Ele
aparece como um dos responsáveis pela organização da peregrinação pelo Peabiru e
também pelos Congressos de Estudiosos do Caminho. Aposentado pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística), já andou por muitos lugares na região, conhece
estradas vicinais e fazendas distantes. A partir de seu trabalho no IBGE começou a coletar
as primeiras evidencias do caminho como trechos preservados, cerâmica, lugares com
relevante beleza cênica como cachoeiras e também os conhecidos por lendas de
assombração e visagens. Pode ser definido como um erudito orgânico e desta maneira
iniciou conversas com Luis Galdino e Rosana Bond. Hoje, reúne em sua casa um conjunto
de referências bibliográficas, material arqueológico fora de contexto e um vídeo sobre o
caminho, produzido em Florianópolis. Entre as referências estão Thomas P. Bigg-Whither,
Luis Galdino e Lucio Tadeu Motta.
45
Uma das referências que me fez pensar em outras questões foi Marcel Homet “Os
filhos do sol: nas pegadas de uma cultura pré-histórica no Amazonas”, publicado em 1959.
Pela folheada que dei neste livro, o autor discorre sobre a presença da cidade de Atlântida
na América do Sul e conecta a ela os mitos do Jurupari na Amazônia e o mito do Sol e da
Lua. O argumento seria de que existe uma correspondência entre estes mitos por toda a
América, o que provaria a ocupação do continente por uma grande civilização. Assim,
segundo Marcel Homet o mesmo mito seria contado por diversos grupos diferentes na
América e por isso todos seriam os descendentes desta grande civilização
16
.
Discutindo algo semelhante, mas com outra perspectiva, Levi-Strauss indica em
seus trabalhos sobre os mitos uma teoria que gostaria de chamar de “teoria do contato
eterno”. Os grupos indígenas americanos, segundo o diálogo evidenciado pelos mitos, pelas
trocas de histórias, inversões de significados e pelo compartilhamento de uma linguagem
simbólica mais ou menos homogênea, nos mostram que sempre tiveram contato entre si.
Não pela existência de uma grande civilização de onde teriam se dispersado, como propõe
Homet, mas devido às próprias relações de alteridade e de contato com o outro que os
ameríndios apresentam. Hoje em dia, a tese com relação à definição de “índios isolados”
também se tornou limitadora. Basta pensarmos na questão do isolamento para quem?
Certos grupos permanecem isolados para a sociedade branca, mas entre eles o contato pode
ter sido intermitente
17
.
Certa vez Clemente me levou a sua chácara nas proximidades da cidade. No local,
várias lagoas onde cria camarão da Malásia e peixes. Também tem um casal de araras
muito bem adaptado e que já compõe uma família de sete indivíduos. Durante a tarde toda
ficamos conversando, tomando mate e comendo pinhão. Dentre as várias coisas que
conversamos, me chamou a atenção o fato que traz a veracidade para o caminho de Pitanga.
A base dos vestígios são pedras com gravações que se assemelhariam a mapas e podem ser
vistas na internet.
16
Quanto a existência de uma “cidade de Atlântida” ou uma grande civilização vale lembrar o leitor sobre os
achados arqueológicos recém-escavados no baixo amazonas e que indicam grandes áreas de ocupação
(NEVES, 1999) (ROOSEVELT, 1992). Seguindo a mesma linha também já foram desenvolvidas pesquisas
que apontam para uma migração tupi subindo o Amazonas e descendo a bacia do rio Paraná e Paraguai sendo
o atual estado de Rondônia, uma grande área de dispersão destes grupos (TENÓRIO, M.C. Pré-história da
terra brasilis. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. 2000).
17
Voltaremos a isso mais adiante quando for discutida questões referentes a purificação etnográfica.
46
Porém, as pedras encontram-se regularmente distantes umas das outras e
compõem um alinhamento no sentido leste/ quarto-noroeste
18
. No mesmo alinhamento
encontrou também espécies de altares com visão privilegiada da região e compostos por
pedras encaixadas, mas já destruídas e algumas inscrições das quais defende a hipótese de
serem fenícias e egípcias (também na internet e abaixo).
Seguindo esta rota de alinhamento
o informante e outros colaboradores já
teriam encontrado vestígios do caminho
desde o município de Castro até Palmital.
Um destes seria um alinhamento com
extrema regularidade de um conjunto de 4
a 8 pedras, marcando os pontos cardeais,
bem no meio de um banhado sem
nenhuma outra rocha
19
. Nestes percursos o
informante já teria encontrado pontas de
flecha foliáceas e pedunculadas, cerâmicas
grossa (guarani) e fina (Itararé)
20
, porém, interpreta uma mó-de-pilão indígena como sendo
uma representação da fertilidade inca: “o falo”!
Sobre o Peabiru citou os trabalhos de Rosana Bond com ressalvas, pois estaria
equivocada quanto ao caminho percorrido por Aleixo Garcia. Luis Galdino, (2002), para
comprovar a existência do caminho, descreve como vestígios incas na região muros de
pedras encaixadas e aterros. Muros em forma de cone truncado, morros com muradas e
fossos durante todo o percurso entre a Colônia Theresa e os Campos Gerais. Como
comprovação da intercomunicação entre os ameríndios da região setentrional da América,
Galdino cita Moisés Bertoni (1982) e suas teorias sobre a Parehá, o correio guarani
21
.
18
Segundo um amigo, oceanógrafo, todas as fraturas da crosta terrestre, na região do Paraná, Santa Catarina e
São Paulo seguem este alinhamento leste-quarto noroeste, sendo perceptível este direcionamento geo-físico
pela direção tomada pelos importantes rios deste território.
19
Mais adiante, durante a peregrinação pelo caminho, há uma descrição mais detalhada deste local. Este
“sítio” também foi dimensionado pelo professor Germano Afonso da “arqueoastronomia guarani”.
20
Segundo a classificação do PRONAPA 1969.
21
Parehá é identificada por Bertoni como um código de comunicação a distância baseado em uma seqüência
de elementos, sementes, ossos, pedras gravadas, que em conjunto teriam um significado. Em bolsas, os signos
eram levados de um ponto a outro, transmitindo assim, notícias entre os grupos guarani que dominavam as
áreas adjacentes do Peabiru.
47
Os altares com grande visibilidade da paisagem, para Clemente Gaioski
corresponderiam aos locais onde os mensageiros deste correio parariam e trocariam esta
espécie de bolsa com as informações codificadas. Com postos de troca de tempos em
tempos, em todo o percurso do caminho, os mensageiros se cansariam menos e a mensagem
chegaria com antecedência ao destino. Este tipo de técnica no envio de mensagens também
já foi descrito para os povos andinos ligados as tradições incaicas que também utilizariam
uma rede de caminhos e ramais que atualmente percorrem, comprovadamente, cinco países
da América Latina
22
.
Sobre os indígenas atualmente, o informante disse serem atrasados porque tiveram
a cultura degenerada pelos bandeirantes que usavam homens jovens no trabalho e mulheres
como reprodutoras, sobrava apenas velhos e crianças que não davam condição para a
cultura se manter como era.
Este tipo de visão sobre o indígena e especialmente sobre a cultura recebe uma
forte carga de senso comum. Apesar da antropologia já ter superado um estilo de análise
retratista da cultura, ainda hoje, muitos não se acostumaram a trabalhar com o conceito de
cultura como um objeto em transformação. Como nos diria Sahlins, a cultura não se
extingue, a não ser que o conceito seja construído a partir de um retrato fixo de um grupo,
imutável. Principalmente no Brasil, como falaremos mais adiante, a cultura indígena para o
senso comum é permeada por imagens do passado, não se admite a mudança e ao constatar
as transformações decorrentes de processos históricos, imediatamente trata-se de re-
classificar este povo que deixa de ser índio, pelo menos para o senso comum.
Reminiscências
Espero que o leitor se lembre de algumas páginas passadas, quando falávamos de
Barra Velha, e foi indicado um caminho que subia a Serra pela cidade de Garuva pelo
historiador local da cidade. Em Pitanga encontrei uma referência bibliográfica na casa do
Clemente onde aparece outra vertente sobre o traçado do Peabiru. Em Barra Velha, as
22
Outros sistemas de “correio” semelhantes podem ser encontrados em regiões tão distantes como as das
atuais China e Mongólia, onde recebia o auxílio de cavalos e também desenvolvida por povos como os Zande
e os Dogon, na África.
48
informações sobre este caminho eram de que se tratava de obra de jesuítas, tanto que o
local com os vestígios chama-se “Topo do Padre”. O livro encontrado em Pitanga foi
escrito por Olavo Raul Quandt com o nome “Peabiru: o caminho velho” (QUANDT, 2003).
A idéia fundamental que este autor trabalha seria em relação à lógica do deslocamento pelo
continente sul americano a partir da própria realidade vinda com a observação da paisagem.
Na divisa do Estado do Paraná com Santa Catarina existe uma complexa serra
com vales enormes e intransponíveis. O Vale do Itapocu, principal teoria de rota do Peabiru
fica extremamente distante da costa, dificultando muito o acesso ao Planalto. Hoje em dia,
ao observarmos mapas e até mesmo depois de viajar entre estes dois estados pela BR101,
percebemos o vale do Rio Cubatão (local onde passa a estrada entre Garuva e Curitiba)
como uma via natural. Percebe-se também que é na cidade de Garuva onde a Serra se
aproxima bastante da costa, o que diminuiria a caminhada ao Planalto. Olavo Quandt inicia
seu livro discutindo as diferenças, para os espanhóis, dos termos “rio” e “ria” chegando à
conclusão fundamental. Um rio, em geral, não é visto quando se está no mar, porém, uma
ria, o que hoje chamaríamos de baía, pode ser observado do mar sendo perceptível aos
pilotos e também aos cartógrafos.
Tentando observar a costa como um espanhol de 1500, Quandt derruba as teses de
que o caminho do Peabiru subiria ao Planalto pelo vale do rio Itapocu com um adendo ao
seu livro que diz o seguinte:
Algumas semanas após a publicação do livro “Peabiru- o caminho velho”, recebi
uma cópia do depoimento prestado por Cabeça de Vaca aos juizes de Sevilha, declarando que o
desembarque ocorreu na baya de Ytabuan.
Na Información hecha por el Gobernador del Rio de la Plata, Cabeza de Vaca, que se
encontra nos Autos Fiscales año 1552, estante 52, cajon 5, do Archivo General de las Índias, em
Sevilha, na Espanha, consta o nome de baía onde ocorreu o desembarque, dos mais de 250
homens e toda a carga e bagagem da Nau Santa Luzia, inclusive os cavalos.
(...)O nome vaya de Ytabuan é repetido seis vezes, eliminando qualquer resquício de
dúvida. Para quem não conhece a região está bem claro que se trata aqui da atual Baia da
Babitonga. A antiga localidade de Ytabuan, atual Itapoá, está situada ao norte da baía da
Babitonga. No lado sul encontra-se a Ilha de São Francisco. Nos primeiros tempos a baia teve o
nome de Ria de San Francisco.
(...) Rios e baias são acidentes geográficos distintos. Não há como confundir uma
baía com um rio. A conclusão é de que a hipótese do desembarque no rio Itapocu, em Barra
Velha, pode ser descartada definitivamente.
Joinvile, 08 de outubro de 2003
Olavo Raul Quandt.
“Peabiru- o caminho velho”, p. 43.
E o autor ainda complementa:
49
No livro “Naufrágios e Comentários” editado em 1999 por L&PM, na página 155
consta: a maneira mais segura e próxima de entrar para a terra povoada é por um rio que está um
pouco acima, chamado Itabucu, que está na ponta da Ilha, a dezoito ou vinte légoas deste porto.
Na página 52 de “A Conquista do Planalto Catarinense”, de Cyro Ehlke, editado em
1973, consta: o ponto mais indicado para a entrada à terra era pela foz do rio Itapocu.
Na página 143 do livro “Náufragos, Traficantes e Degredados” de Eduardo Bueno,
editado em 1998 consta que: do porto dos Patos a tropa de Garcia se dirigiu até a foz do rio
Itapocu...próximo a cidade de Piçarras...considerado a porta de entrada para o sertão...Aleixo
Garcia venceu a Serra...caminho chamado Peabiru.
Na página 36 do livro “A Saga de Aleixo Garcia” de Rosana Bond, editado em 1998
consta: O Peabiru penetrava o interior na altura do rio Itapocu.
Na Página 24 do livro de Luiz Galdino “Peabiru: os incas no Brasil” editado em 2002
consta: Aleixo Garcia avançara para o interior, a partir do rio Itapocu, no atual litoral
catarinense.
Na página 148 do livro “Porto dos Patos” de João Carlos Mosimann editado em 2002
consta: a melhor forma de iniciar a jornada seria pelo rio Itabucu (Itapocu)...embarcaram em
uma nau com destino à foz do rio Itapucu...nas areias da praia de Barra Velha.
O desembarque, na realidade, não aconteceu no rio Itapocu, em Barra Velha, mas
sim na Baia da Babitonga, que anteriormente foi conhecida por diversos nomes, como Ria de
San Francisco e Baya de Itabuan. É possível que Pedro Hernandez, com o intuito de preservar o
sigilo oficial, tenha escrito rio Itabucu para não revelar o local exato do desembarque e assim
camuflar a localização privilegiada daquele porto seguro. A Baía da Babitonga é ótima para
grandes veleiros. Um erro de cópia, cometido por copistas e cartógrafos daquele tempo, pode ter
dado origem ao equivoco, repetido por historiadores ao longo dos séculos. (p.43)
Assim, Olavo Quandt, além de levantar uma hipótese interessante sobre a escrita
da história com a possibilidade de existirem “erros de copistas” ou táticas políticas e
militares de “camuflagem” dos bons portos, também evidencia que estes “erros” passam a
ser repetidos pelos historiadores subseqüentes. A proposta conclusiva do autor é considerar
o ramal Atlântico do Peabiru como tendo inicio na localidade de Três Barras, em Garuva,
Santa Catarina, passando pelo Monte Crista para chegar ao Planalto e de lá continuar para o
interior do continente.
Temos aqui uma nova versão para o caminho com alguns problemas novos que
vale a pena recapitular. Em Barra Velha, o professor José Carlos falou sobre uma
necessidade de inventar a história durante a década de 1960, sendo nesta época que aparece
o nome dos primeiros imigrantes açorianos na cidade, vindos ainda no século XVII para a
região. Esta é a história oficial que se conta. Encontramos também pessoas, fora dos
círculos de poder, que lembram de outras coisas desconhecendo estas versões oficiais.
Em Pitanga, outro professor, Edgar, também falou em invenção de fontes pela
autoridade da fala. Indo além, fala de tentativas de construção do Peabiru por grupos
específicos e que planejam utilizar o tema para finalidades também diferenciadas. Sobre
estes dados podemos rever Nietzsche quando fala de resgates específicos do passado para
50
cumprir finalidades presentes. Ora, os erros propositais de copistas também se fazem a
partir de finalidades encontradas no presente deles, assim como a escolha dos documentos
feita pelos historiadores. A história oficial trata-se de uma memória utilizada pelo poder
com finalidades específicas e todas aquelas outras que não interessavam no momento da
escolha se transformariam em memórias subterrâneas e história não oficial.
O encontro entre o saber e o poder aparece novamente e conseguimos vislumbrar
que a história oficial foi manipulada pelo poder ganhando outro status. Enquanto o Peabiru
era utilizado por tropeiros de varas de porcos, como veremos, ele era praticamente
ignorado, mas no momento em que a elite política e erudita começa a “descobri-lo”, ou
inventa-lo, ele ganha a possibilidade de ser visto como monumento e patrimônio passível
de preservação.
Barão de Capanema, IHGB e IBGE
As coincidências quanto à obtenção, citação e recitação das fontes históricas
referenciadas pelos informantes foram específicas. O caso do Quandt foi apenas um
exemplo. Outras destas coincidências se relacionam com a utilização de algumas fontes
pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A partir de uma comparação pode-se
perceber uma regularidade das construções sobre o Peabiru no contexto de Pitanga. Donato,
Galdino e Bond são três autores constantemente citados com relação ao Peabiru sendo, os
três, representantes do IHGB, um Instituto que tem uma história bastante singular no Brasil.
Existem então correspondências na forma de invenção e tratamento das diversas fontes
históricas e arqueológicas tanto pelo IHGB, como pelos autores ligados a cidade de Pitanga
e seu movimento pró-Peabiru.
Nesta localidade apareceu, e não pela primeira vez durante as pesquisas, as teorias
do Peabiru incaico. A citação deve-se a Luis Galdino, (Os Incas no Brasil, 2002) que fala
do Barão de Capanema como um dos primeiros a abordar o caminho do Peabiru como uma
criação dos incas. Porém, o discurso e o interesse científico deste Barão estava conectado a
sua época. O Barão de Capanema estava inserido em um contexto mais amplo da própria
formação do território e da transição do Império à República.
51
Regressando na história do território brasileiro desde o período da conquista, a
expulsão dos jesuítas e a redefinição das fronteiras ibéricas na América, consegue-se
perceber que o território português era fechado para exploradores estrangeiros sendo aberto
apenas em 1808. Desde então passam a vir cientistas de diversos países desenvolver
estudos ligados principalmente à história natural. Estes cientistas descobrem também
diversos grupos indígenas e olham para eles de uma forma bastante específica.
Assim, passam-se meses e anos, para o índio, em caçadas, guerras, festas selvagens e
tarefas caseiras rotineiras, numa vida rude e dura, ignorante de toda vocação nobre da
humanidade. Também, quando ele pouco a pouco começa, de certo modo, a entrar em contato
com os senhores da terra, desconhece em absoluto as virtudes sociais
(SPIX, [1823] 1981,
p. 239).
O Barão de Capanema (Guilherme Schuch) nasceu em 1825. Em 1838, jovem, vai
para a Europa estudar engenharia em Munich, local onde teve intenso contato com Martius.
Amigo pessoal do Imperador Dom Pedro I, em 1852 fundou o Telegrapho Nacional, do
qual foi o primeiro e único diretor
23
.
A implantação dos fios telegráficos no Brasil teve início em 1855 com a construção
de uma linha do Rio para Petrópolis. Em 1870, São João da Barra já havia sido atingida
pelo fio. No rumo do sul do Império, já estavam construídos, ao término da Guerra contra o
Paraguai, os prolongamentos de Pelotas a São João de Camaquan e o ramal de Paranaguá a
Morretes. Em 1874, a linha chegou a Vitória, Salvador e Aracajú; em 1875, à Paraíba; em
1876, à Natal e, em 1881, à Fortaleza. Em 1884, a linha chegou a São Luís do Maranhão.
Depois se ligou em Jaguarão o telégrafo brasileiro ao uruguaio e finalmente ao argentino,
pondo em contato direto o Rio de Janeiro a Buenos Ayres. Após esse período, as linhas
23
Barão de Capanema: Doutor em engenharia pela Escola Militar do Rio de Janeiro, professor de Física e de
mineralogia do Museu Nacional e da Escola de Engenharia. Capanema realizou a reconstrução da Fábrica de
Pólvora da Estrela, a construção de primeira fábrica de papel do Brasil, aproveitando uma queda dágua na
Serra de Petrópolis. Empregou a primeira turbina hidráulica na América do Sul. Reorganizou também a
Fábrica de Ferro de Ipanema, projetou e construiu os armazéns da Alfândega no Rio de Janeiro e chefiou a
Seção de Geologia da Comissão Científica de Exploração onde realizou importantes pesquisas geológicas e
paleontológicas no Nordeste. Inventou também uma grelha especial para facilitar a escrita dos telégrafos, uma
máquina para pulverizar e a substância química necessária para matar formigas (saúva), substância esta que
levava seu nome e que ficou famosa, para a qual construiu uma grande fábrica na Ilha do Governador.
Participou da Comissão Científica de Exploração, da instalação das primeiras estações meteorológicas no
Brasil e presidiu a comissão de introdução do sistema métrico decimal no Brasil. Foi, ainda, um dos
fundadores da Sociedade Brasileira de Estatística e do Instituto Politécnico Brasileiro. TELLES, P. História
da Engenharia no Brasil, séculos XVI a XIX. Segunda Edição, Clube de Engenharia, s/d. página 560 e 574.
52
telegráficas passaram a crescer rapidamente em direção ao norte e interior do país, numa
epopéia que duraria até o primeiro quartel do século XX com os trabalhos de Rondon e sua
equipe.
Seguindo o contexto histórico da vida do Barão de Capanema, percebemos as
facilidades que a existência de um caminho prévio traria com relação à instalação de linhas
telegráficas, porém não seria este o foco que estava em jogo na época. Em um artigo de
Lúcio Ferreira, “Arqueología y Geoestrategia: Las Fronteras Imperiales y el Uso de las
Fuentes Arqueológicas en Brasil (1838-1877)”, publicado em 2001, o autor discute que a
apropriação e reconhecimento das fontes seriam maneiras de inventar uma história do
território e dar um sentido de temporalidade à República que se formava.
Antes da transição do Regime Monárquico para o Republicano, o saber
historiográfico já se preocupava em escrever uma genealogia da Nação, buscava um maior
conhecimento dos habitantes primitivos do território, as sociedades indígenas, suscetíveis
em ser parte de um processo histórico continuista e linear, direcionado pelo progresso e
encabeçado por uma “civilização branca”. De qualquer forma, seria impossível conhecer as
sociedades indígenas sem realizar expedições científicas, sem viajar para ver e registrar. A
observação e o registro não se limitavam aos interesses etnográficos e arqueológicos,
tinham também objetivos geopolíticos, como pudemos perceber com relação a
comunicação telegráfica.
As pesquisas eram direcionadas para as regiões e áreas de fronteira, avaliavam seus
recursos e possibilidades de exploração econômica, vigiavam e fiscalizavam suas
instituições, mediam seus contornos físicos e esquadrinhavam suas populações. Nas
Revistas do IHGB, estes conhecimentos eram articulados com os propósitos de compor
uma identidade física e social da Nação, uma fisionomia histórico-cartográfica que
pretendia construir uma Ciência do Estado.
Uma Ciência política destinada a pensar no sentido de um corpus de saberes e práticas,
um conjunto discursivo que deveria acumular materiais e conhecimentos - por meio das
“viagens inquisitivas” e da sistematização de documentos - para garantir o funcionamento do
Estado Imperial e construir seu projeto político centralizador, a estruturação e a convivência
social da Nação
(FERREIRA, 2001).
53
As “viagens científicas”, financiadas diretamente pelo IHGB, tratariam de um plano
de registro direcionado pelas possibilidades de integração econômica e político-
administrativa das províncias, de suas instituições e populações. Este olhar organizava um
saber e legitimava a própria existência da Nação em construção. É assim que as “viagens
científicas” se dirigem prioritariamente para as regiões fronteiriças, e aos espaços pouco
conhecidos como a Colônia de Sacramento, a fronteira com a Guiana Francesa, e a fronteira
do Mato Grosso, lugares onde os conflitos datavam do período colonial.
Este seria o panorama geo-estratégico que circunscreveu a organização e a
sistematização das fontes durante o século XIX. A viagem etnográfica e arqueológica de
Ladislao Neto (1876) foi a primeira a estudar os concheiros do Sul do Brasil, interpretando-
os como estações de pesca, locais de ocupação esporádica das tribos do interior que,
fugindo do minuano (ventos de inverno), buscavam temperaturas mais amenas e pesca
abundante no litoral. Vindos do interior dos densos bosques, os índios desciam ao litoral
acompanhando o movimento decrescente das águas e a migração dos animais
24
.
Nestas viagens científicas com propósitos geoestratégicos houve ainda a
organização da Comissão Científica Brasileira (1858-1861) encarregada de explorar as
províncias do Império (RIHGB, 1856). Como um dos integrantes desta Comição estava, o
Barão de Capanema. O objetivo geral do IHGB na época gira em torno da obtenção,
descrição, classificação e registro de coleções de objetos para gerar um saber sobre os
grupos indígenas e uma cartografia que os localizasse, sua integração pela ocupação
econômica, pela abertura de novos caminhos, pela garantia das fronteiras. As fontes
arqueológicas e os fósseis receberam inversões políticas e serviram para desenhar os
contornos físicos da Nação, para traçar os limites incertos das fronteiras, para assentar
marcos científicos nas regiões provinciais, conferindo um atestado de antiguidade e
continuidade da ocupação do solo nacional, principalmente em áreas próximas ao Rio da
Prata, cenário de conflitos (FERREIRA, 2001).
A Guerra do Paraguai (1864-70) aumentou as tensões geopolíticas em áreas
vizinhas ao Rio da Prata, exigindo por parte do Império, a reafirmação de suas áreas
24
Todos os caminhos que se supõe indígenas hoje em dia partem deste mesmo tipo de explicação, a dinâmica
sazonal. Para exemplos de mudanças sazonais ver Marcel Mauss: Variações Sazoneiras dos Esquimó (1974).
Para outros exemplos de conexões entre caminhos e concheiros ver Pré-História da Terra Brasilis (org) Maria
Cristina Tenório (2000). Sobre caminhos e deslocamentos indígenas ver o Caminho do Itupava, PR, o
caminho Real em MG, o caminho dos Ambrósios, SC e o próprio caminho do Peabiru, PR/SC/PY.
54
fronteiriças como forma de garantir as vias de comunicação políticas e comerciais com as
províncias do Sul do país. Assim, é possível compreender um vínculo entre o
direcionamento das linhas telegráficas e a ressurgência de um caminho antigo que
demarcasse as fronteiras
(MACHADO, 1996), como também se torna compreensível as
inversões políticas dadas aos documentos fósseis, arqueológicos e históricos durante este
período.
Voltando ao Barão de Capanema, como vimos, era amigo pessoal do Imperador,
envolveu-se diretamente com grandes obras financiadas pelo Império e fez parte da
Comição Científica, grupos de pesquisadores em áreas diversas que esquadrinharam boa
parte do território, hoje, nacional. Quanto a documentação sobre Capanema, existem cartas
e relatórios escritos por ele mesmo, suas relações pessoais e profissionais. Ornitólogo por
paixão, dedicou boa parte do tempo, mesmo trabalhando para a companhia de Telégrafos,
ao estudo das aves. Estes documentos encontram-se disponíveis no Museu Imperial e,
devido ao volume de cartas, notas e relatórios não nos foi possível ampliar o estudo com
relação às idéias do próprio Barão. Um trabalho ainda por fazer.
O olhar, a regra para a observação e a relevância das fontes era específica nesta
época e, a princípio, as pesquisas de campo realizadas para este trabalho corroboram em
perceber o mesmo tipo de dinâmica de utilização de fontes sobre o Peabiru, ou seja, o
IHGB e seus associados continuam trabalhando com a história mais ou menos da mesma
forma. Foram, no passado, alguns integrantes do Instituto que primeiro chamaram a atenção
para os caminhos, para a “necessidade de abrir novos caminhos”, o desejo de existência de
um caminho prévio, indígena, que facilitaria a expansão telegráfica ou que auxiliasse nas
expedições científicas a se deslocarem por um território tão inóspito e cheio de perigos.
Hoje, as fontes utilizadas pelos afiliados do mesmo Instituto, ainda exprimem a
tentativa e desejo de construção de uma história verdadeira, pela busca de documentos e
vestígios que provem a verdade sobre a origem do caminho, sem perceber as limitações e o
contexto de suas próprias leituras e métodos. O grupo que teria dado os primeiros passos na
busca pela verdade com relação ao caminho do Peabiru seria o mesmo grupo que ainda
55
incentiva a pesquisa com o tema, mas em outro contexto histórico e com um outro tipo de
geoestratégia: o turismo e a política
25
.
A construção da invenção e da resignificação
O que eu lhe disser três vezes é verdadeiro.
Lewis Carroll. In: Gregory Bateson, 1979.
É interessante relembrar os termos utilizados pelo professor Edgar com relação a
invenção de fontes através da fala de autoridades e também seus comentários sobre a
resignificação pela qual o Caminho do Peabiru passa atualmente. Porém, que as coisas
sofrem resignificações ao cruzarem fronteiras lingüísticas e ecológicas já nos apontou Levi-
Strauss (1996). Quando um mesmo objeto ou fonte atravessa o tempo também pode sofrer
uma inversão de significados ou ainda, quando numa mesma sociedade e época, o objeto
passa a ser tratado por grupos políticos diferentes, também apresentaria algum tipo de
transformação do que poderia vir a dizer.
A diferença de tratamento dos objetos por grupos políticos diferentes já foi
levantado por Nietzsche (1983) quando fala das utilidades de história para a vida,
transformando cada lembrança, cada resgate de fontes e fatos históricos em uma maneira de
explicar ou justificar o que se necessita no presente. A história humana serve ao presente e
constantemente estamos a reescreve-la para legitimar atitudes presentes. Portanto, a
significação de um objeto, fonte ou fato seria construída a partir do contexto, assim como
as possibilidades de utilização e interpretação. Também, não basta apenas perceber que
existem estas alterações de significado e constatar as invenções, devemos saber como elas
operam, sob que termos e pressupostos são construídas e como se relacionam.
O termo construção vem sendo escrito desde o início do texto, como o leitor deve
ter percebido, agora devemos explicar como estamos abordando o conceito. As primeiras
bases teóricas já foram postas e encontram-se espalhadas pelas obras de Foucault,
Nietzsche, Le Goff, Levi-Strauss e Latour. Esta dissertação que a princípio aborda o
Peabiru, gradualmente se encontrará posicionada em uma discussão epistemológica,
25
O leitor perceberá mais detalhadamente esta transformação da função das fontes durante a peregrinação,
com a participação de estudantes do curso de Turismo e com a participação do prefeito de Santa Maria do
Oeste.
56
interconectada com discussões relativas à historiografia e a filosofia da ciência. Michel
Foucault utiliza o conceito de epistemologia para analisar grupos discursivos já
consolidados: as disciplinas acadêmicas e em particular a história das idéias. Nós o
utilizaremos aqui para analisar os discursos de fontes e informantes
26
.
Para que hoje possamos estar estudando estes conceitos, os saberes tiveram que
passar por algumas transformações. Nenhuma ciência empírica, observação do corpo,
análise de sensações, imaginação ou paixões poderia abordar o homem durante os séculos
XVI e XVII porque o homem, como conceito que conhecemos hoje não existia
(FOUCAULT, 1986). A partir do século XIX, o campo epistemológico se fragmenta em
direções diferentes e busca alinhar os saberes modernos com a matemática, submetendo
tudo a um ponto de vista único da objetividade do conhecimento. Um conhecimento
qualquer, mergulhado nestas condições daria as possibilidades de um objeto e de sua forma
científica. Decidiu-se, de uma forma ou de outra, trazer o homem para o campo da ciência e
construí-lo como um objeto científico.
Para Foucault, o homem, é um organismo vivo atravessado em todo seu ser por
representações graças as quais ele vive e a partir das quais detém esta capacidade de poder
se representar para a vida. Só existe ciência humana se observarmos as maneiras pelas
quais os indivíduos ou os grupos se representam e a seus parceiros na produção e na troca,
o modo como esclarecem, ignoram, mascaram, e a posição que ocupam. Também a
maneira como se representam para a sociedade, onde isto ocorre e o modo como se sentem
integrados ou isolados a ela.
Pode-se falar de ciências humanas desde que se busque definir as maneiras como
os indivíduos ou os grupos se representam na palavra, utilizam sua forma e seu sentido,
compõe discursos reais, mostram e escondem neles o que pensam. É neste jogo de
representações que nascem os estudos da literatura, dos mitos e dos processos
inconscientes. Os menores gestos, os mecanismos involuntários e até seus malogros têm
um sentido e tudo o que ele deposita em torno de si, objetos, ritos, hábitos, discursos e toda
a esteira de rastros que deixa constitui um sistema de signos (FOUCAULT, 1981).
26
Discurso, para Derrida e Lacan está diretamente associado às funções orais da palavra em oposição a
linguagem como sistema de leis e regras. Para Foucault, discurso seria um conjunto das seqüências
lingüísticas formuladas. Aqui abordamos o discurso como seqüências lingüísticas que podem ser emitidas
oralmente ou escritas, interessando exatamente as escolha dos termos e a ordenação destas seqüências.
57
Porém, os fragmentos desta realidade, os sistemas de signos não são combinados
ou criados involuntariamente, passam por negociações entre agentes que constroem sua
realidade segundo inclinações das mais diversas. Em certo sentido poderíamos falar em
invenções ou construções simbólicas, formuladas a partir das discussões feitas por
LATOUR (1994). O autor aborda o aparecimento dos híbridos na modernidade do século
XX que exigem uma nova formulação do pensamento científico, não podendo mais se
basear no dualismo entre ciências naturais e ciências do homem. As novas questões feitas
no século XXI descrevem linhas transversas as divisões científicas clássicas, que
necessitam passar por uma re-invenção. A proliferação dos híbridos não acontece por
acaso, é uma conseqüência desta separação do pensamento que até então via a divisão das
ciências como essencial, delimitadas por uma fronteira natural. Latour chama a atenção
para esse essencialismo e, argumentando com dados históricos, deconstrói esta fronteira
natural entre as disciplinas, reaparecendo como uma construção sujeita à transitoriedade das
transformações e revisões.
As primeiras “ciências” estavam fortemente ligadas a preceitos religiosos até fins
do século XVII. Liberados desta religiosidade, os homens tornaram-se capazes de criticar
os velhos preceitos ao desvelar os fenômenos naturais que esses dissimulavam, ao mesmo
tempo em que inventavam os fenômenos na redoma artificial do laboratório. Ao aplicar seu
padrão de leitura (sua epistême) viram nos antigos híbridos apenas misturas indevidas que
era preciso purificar, separando os mecanismos naturais das paixões, dos interesses e da
ignorância dos homens. Todas as formas de pensar de outrora se tornaram ineptas e
aproximativas (LATOUR, 1994: 39).
Durante o século XIX ocorrem as segundas Luzes, mas desta vez o conhecimento
preciso da sociedade e de suas leis permitiu criticar não apenas os velhos preceitos como
também os novos preconceitos das ciências naturais. Na mistura com a primeira, as
segundas Luzes viram uma mistura inaceitável que também era preciso purificar, separando
cuidadosamente a parte que pertencia as coisas em si e a parte devida a economia, ao
inconsciente, a linguagem ou aos símbolos. Assim, todas as formas de pensar de outrora
tornaram-se apenas inexatas e aproximativas (idem p.41).
Potencialmente, o mundo moderno é uma invenção total e irreversível que rompe
com o passado. Em rede, o mundo moderno, permite apenas prolongamentos de práticas,
58
aceleração na circulação do conhecimento, uma extensão das sociedades, numerosos
arranjos de crenças antigas. Quando olhamos para elas em rede, as inovações ocidentais
permanecem reconhecíveis, mas não há o bastante para se construir toda uma história, uma
história de ruptura radical. (idem p.52)
Esta arqueologia das invenções, seja de métodos e disciplinas acadêmicas, seja de
explicações e interpretações sobre o Peabiru, nos permite ver as continuidades, rupturas
epistemológicas e suas relações. Estaríamos também presos, enleados, atravessados em
nosso ser por toda esta realidade temporal transitória. Assim percebe-se que certos grupos
em localidades diferentes utilizam-se dos mesmos documentos para legitimar o Peabiru,
mas utilizam o documento de formas bem diferentes. Desta maneira o padrão de leitura
também apresentaria relação com o contexto. Para reforçar, um autor que produz trabalhos
ligados à filosofia da biologia chama atenção para o termo possibilidade histórica e
completa: “(...) as possibilidades históricas dependem das informações que nos foram
transmitidas” (DENETT, 1998: 112).
Neste sentido, os conceitos de invenção e construção podem ser aplicados a
inúmeros casos, basta lembrarmos da transformação do significado de indígena em outras
épocas. Como os índios eram vistos por Pizarro ou por Cabeza de Vaca? Em geral, a
América foi simbolicamente criada pelo europeu que apenas dava nome aos lugares e
tomava posse dele como se fosse virgem. A visibilidade do indígena se transforma
novamente quando observados documentos do IHGB. Capistrano de Abreu tratará do
mesmo tema dando a ele uma outra relevância: os caminhos indígenas seriam grandes vias
que integraram o território durante o período colonial. Capistrano tem o mérito de ser um
dos primeiros historiadores que insere a história das populações indígenas na história do
Brasil. Hoje em dia, apenas para esgarçar esta discussão, Viveiros de Castro, por exemplo,
observa os indígenas de maneira completamente diferente daquelas descritas
cronologicamente acima. O indígena passa a ser observado em sua integridade, passam a
estudar elementos significativos para ele e não para o pesquisador ou para a sociedade
desse. As perguntas não partem dos núcleos acadêmicos, mas são colocadas pelo grupo
estudado. As perguntas relevantes para a antropologia contemporânea seriam aquelas
formuladas pelos próprios “nativos”.
59
Entre outros temas discutidos pela perspectiva da invenção podemos coleciona-los
tanto nos domínios da História como nos da Antropologia e da Literatura. Hobsbawn
(1997) comenta sobre a origem do Kilt escocês. Para muitos é uma vestimenta que dataria
de séculos, talvez de milênios, mas foi inventada no século XIX com a finalidade de criar
uma tradição, uma identidade coletiva. Em antropologia teríamos análises relacionadas a
invenção de conceitos. Roque de Barros Laraia (1986), já falava sobre o conceito de cultura
e seus usos indiscriminados. Um conceito estritamente antropológico que sai da disciplina e
ganha as malhas do senso comum passando a ser utilizado com diversas significações
diferentes. Temos ainda exemplos como os colocados por Roy Wagner (1981) sobre a
invenção do conceito de cultura e de como as próprias culturas se inventam, se objetivam.
Por fim, Adam Kuper (1996), escreve sobre a invenção da Sociedade Primitiva, uma
categoria analítica que também se transforma, de conceito científico, em direcionamento
metodológico com um olhar evolucionista.
Gostaria de reforçar que estas invenções de temas, de objetos científicos, de
interpretações sobre o Peabiru, não se fazem ao acaso. Primeiramente, acontecem devido a
possibilidades históricas, informações transmitidas, a epistême, pensamentos com idade e
geografia contextualizadas. Também acontece a partir de negociação entre agentes, entre
grupos. Em cada contexto é dada importância e relevância para certas coisas em detrimento
a outras, como acontece nas escolhas. Assim, nada conteria uma essência, mas todas as
coisas seriam estruturadas em um jogo dinâmico de significações. Para o Peabiru seria
interessante perceber como grupos de agentes constroem seus discursos e quais fontes são
consideradas relevantes em cada localidade.
Na cidade de Barra Velha, por exemplo, as explicações e fontes são relacionadas
aos índios Carijó, aos primeiros exploradores. Fala-se muito dos sambaquis, dos imigrantes
do Vale do Itajaí e dos açorianos. Porém, apenas um informante comentou algo sobre
caminhos jesuítas antigos. Já em Pitanga, as explicações são colocadas em outros termos.
Os jesuítas apareceram diversas vezes nos relatos. Assim, as teorias formuladas sobre o
Peabiru apresentariam uma epistême em cada contexto. Informações transmitidas
historicamente gerariam possibilidades de interpretação sobre um fato, ou sobre um objeto,
gerando uma construção possível em cada contexto. Em outras palavras, devemos atentar
para a epistême necessária para produzir certas construções, e não outras.
60
Luis Galdino, Purismo etnológico e as teorias do contato.
Dir-se-ia que os universos mitológicos são destinados a
ser pulverizados mal acabam de se formar, para que novos
universos nasçam de seus fragmentos.
Franz Boas (1898), p.18. In: Levi-Strauss, A Estrutura
dos Mitos.
Na página 22 do seu livro, “Os Incas no Brasil” publicado em 2002, Galdino
rebate as idéias que desconsideram a hipótese da existência do Peabiru incaico usando,
entre outros argumentos, que não poderíamos mais falar desta ou daquela tribo indígena, a
não ser por um excesso de purismo etnológico. Evidencia, assim, um discurso que se tornou
comum na academia: os grupos indígenas não podem ser considerados isolados. Exemplos
atuais de relações de alteridade complexas somam-se, como o caso dos grupos isolados no
Vale do Javari que, apesar de não manter contato direto com a sociedade nacional, mantêm
contato com outros grupos que, este sim, já interagem há algum tempo com o Estado. Em
outra via, alguns chefes de aldeias tornam-se participantes de redes internacionais de
direitos indígenas e passam a cooperar e a realizar trocas com grupos localizados, por
vezes, do “outro lado do mundo”.
Estas redes de contato intermitente, que de uma forma ou de outra
interconectariam os grupos indígenas de grandes porções da América foi uma das
discussões recentes na antropologia. Como já comentamos antes, nos trabalhos sobre os
mitos de Levi-Strauss, o autor argumenta que os grupos indígenas americanos trocam
histórias transformando seus significados e compartilhando uma linguagem simbólica mais
ou menos homogênea. Estas repetições homólogas, estes diálogos evidentes nos mitos
mostram que grande parte destes grupos sempre teve contato entre si. Seria perfeitamente
possível, então, existir um mito homólogo nas terras baixas do sudeste do Brasil, no Chaco
Paraguaio e até mesmo na Bolívia e Peru, como querem os defensores das teses do grande
ramal incaico.
Hoje, as teses com relação a definição de “índios isolados” também deixou de
funcionar. Basta pensarmos na questão do isolamento; isolamento para quem? Com relação
a que? Certos grupos permanecem isolados para a sociedade nacional, mas entre eles o
contato é intermitente. Também, em muitos casos, um grupo isolado que nunca viu o
branco tem, incorporado nos seus mitos, historias sobre ele. Basta lembrarmos que o branco
61
teria sido incorporado ao arcabouço mitológico dos tupinambá poucos anos após o primeiro
contato. Em História de lince (1993), Levi-Strauss fala sobre a familiaridade de um grupo
de mitos no Brasil, Peru e na América do Norte evidenciando a regularidade que as versões
mantêm com o passar do tempo e independentemente da região onde se encontram.
Outro tipo de “regularidade” que podemos comentar é sobre o cajado, que seria de
Pai Zumé, e teria se transformado de madeira em ouro no dia do nascimento de Atahualpa.
Nas terras baixas que compõe o sul e sudeste do Brasil aparece de maneira recorrente a
figura do Zumé, Sumé, ou Maíra. Porém, este último é utilizado ainda hoje por diversos
grupos tupi Amazônicos. Também a etnologia brasileira discute a algum tempo a questão
das transformações indígenas, o papel das máscaras, dos psicoativos, que ligariam mundos
sociais distintos, a transformação da pessoa e dos corpos e adentraríamos na própria
discussão do corpo ameríndio e da sua filosofia de construção.
No Peru, por sua vez, aparece o mesmo tipo de personagem mitológico, o herói
civilizador e a transformação de pessoas pelas máscaras e materiais. A princípio pode
parecer absurdo qualquer comentário, mas perceba o leitor que a justificativa utilizada por
Galdino seria a de que apenas uma pessoa (o Pai Zumé) teria transmitido e difundido esta
linguagem simbólica comum, das terras baixas da América às terras altas do Peru.
A transformação de qualquer material em ouro foi o sonho da humanidade durante
o período medieval, mas poderíamos conectar este fato aos conceitos de transformação da
América indígena
27
. Se, como nos diz Levi-Strauss, os povos americanos sempre estiveram
em contato intermitente, e se existe correspondência entre os mitos a partir de uma
linguagem simbólica comum, fica implícito que as relações entre o Sumé daqui e o Sumé
dos Andes tem sua origem baseada nos mesmos termos.
27
No noroeste da América um conjunto de mitos se estende pelos dois hemisférios e dos quais existem
formas muito próximas na América do Norte, no Brasil e no Peru. Diversas versões foram colhidas no século
XVI e XVII, outras durante os séculos XIX e XX, e mesmo pela distância temporal, permanecem próximas e
surpreendentemente reconhecíveis. André Thevet, sobre os tupinambá do século XVI conta que nos primeiros
tempos do mundo, o deus Monan, “O Antigo”, vivia entre os humanos e lhes distribuía suas benesses. Os
humanos mostraram-se ingratos, e o deus os fez morrer no fogo de origem celeste. Monan teria levado ao céu
apenas um homem e teria criado uma mulher para ele dando origem a uma segunda raça da qual pertencia
Maíra-Monan, “O Antigo Transformador”, senhor de todas as artes e de quem os brancos são os verdadeiros
filhos. Descontentes com sua transformação, os contemporâneos de Maíra-Monan queimaram-no numa
fogueira. Porém, antes de subir ao céu e se transformar numa tempestade deixou descendentes na terra sendo
Sommay (Sumé) um deles. Os filhos de Sommay, chamados Aricuté e Tamendonaré eram, um de índole
pacífica, outro com temperamento agressivo. O conflito entre os dois resultara num dilúvio. (...) Para uma
análise completa do mito, ver Levi-Strauss no trabalho História de Lince. Companhia das Letras. 1993, p.50-
66.
62
Durante a leitura do livro Incas no Brasil, além do Parehá e do purismo
etnográfico, outra questão chamou atenção. O principal argumento utilizado pelo autor para
comprovar que os incas estiveram no Brasil é uma seqüência de sítios arqueológicos,
formando um alinhamento e passando pelas cidades de Castro, Guarapuava, Colônia
Thereza e rumando em direção ao rio Piquiri. Estes sítios, nunca descritos pela arqueologia
paranaense, compõem-se de grandes áreas elevadas com fossos no entorno e muradas. O
autor interpreta estes vestígios como fortalezas utilizadas pelos incas para se proteger de
outros grupos. Apesar da força do argumento, o autor não apresenta desenhos, fotos,
localização geográfica além de não fazer comentários em profundidade
28
.
Outro texto que interpreta de forma diferente um vestígio muito semelhante é o
artigo de Gertrude Dole sobre os povos do Alto Xingu onde descreve:
Pesquisei também duas valetas paralelas de 3 m cada, contornando três lados de um
trato ovalado, medindo aproximadamente 113 ha. Os Kuikuro nada sabiam sobre a origem
das
valetas, levando a crer que tenham sido escavadas num período anterior a sua ocupação. A
profundidade e o comprimento dos fossos sugeriam-me a hipótese de que tenham sido
escavados por uma sociedade maior, mais populosa(...) Além disso, cacos cerâmicos
encontrados nas bordas e paredes das valetas indicavam que elas teriam sido escavadas pelo
mesmo povo que desenvolvera as largas panelas de fundo chato(...)
Tais conclusões foram rejeitadas por Simões (1967), que investigara valetas próximo ao
povoado de Jacaré e ao posto Diauarum. Simões sugeriu que as valetas representavam leitos
secos de antigos rios. Os irmão Vilas Boas (1973) reconheceram que foi produto da ação
humana, imaginando, porém, que teriam servido de “abrigo contra longos períodos de frio ou
contra correntes gélidas vindas do sul” (DOLE, 2001. p.67).
Com esta citação de Gertrud Dole, temos exemplos concretos e variados sobre a
possibilidade de resignificação de um monumento arqueológico ou de uma deformação no
terreno. Como vimos, Luis Galdino, o Barão de Capanema, Levi-Strauss, os Vilas Boas e
Gertrud Dole teorizam sobre uma coisa similar, cada um a sua maneira, a partir de sua
própria experiência, da sua idade e da sua geografia. Por vezes o pensamento de Galdino, e
de Levi-Strauss se aproximam, porém, partem de locais diferentes e chegam a outras
conclusões.
28
Esta morfologia de sítios arqueológicos parece ter sido descrita pelo Barão de Capanema em uma das
expedições que participou. Existem relatos e cartas de Capanema nas dependências do Museu Imperial, no
Rio de Janeiro dos quais tive acesso em parte, porém, a descrição não foi localizada.
63
Pioneiros do Pinhalão
Em uma das caminhadas diárias que fazia, fui ao cemitério. No alto de uma das
encostas que circundam a cidade. Em comparação com Barra Velha, este cemitério parecia
bem movimentado, estava sendo ampliado e contava com diversos túmulos simples sendo
construídos. Nenhuma árvore, mas com uma visão privilegiada de toda a cidade.
Continuando o passeio virei em uma esquina e vi em minha frente o Lar dos
Idosos Santana. No jardim, tomando sol, diversos senhores e senhoras conversando,
fumando, tomando mate. Obviamente parei para conversar e, um deles, veio diretamente ao
meu encontro. Era baixo, a pele escura e com pouca barba. Usava um chapéu tipo cawboy
de feltro e se apresentou como João. Contei a ele o que estava fazendo na cidade e disse
que ele poderia ser um informante privilegiado. Ficamos conversando algum tempo até que
percebi que estava perdendo muitas informações e perguntei se poderia gravar a conversa.
Com a resposta afirmativa continuamos. Veja alguns trechos transcritos:
E Graças a Deus eu não tenho o rabo preso com ninguém. A gente não lembra de
tudo. Eu to falando pro Sr, eu conheci aqui picadão, caminhando, tocando porco daqui Ponta
Grossa. Levava 63 dias para entregar a porcada. No mais, aqui era tudo pinhalão, bugio,
macaco, paca, onça, tudo quanto é bicho, até jacaré tinha por aqui. Tinha muito tamanduá,
ficava escondido e quando alguém passava eles pegava nas perna e fazia uns talho. Jibóia só
tinha no Ivaí, a uns 50 Km. Tem uns rios, o rio Pitanga, o rio Batista e o rio Marrequinha
deságuam tudo no Ivaí. O Cantu no Piquiri.
O meu pai era gaúcho e minha mãe era índia lá do “Cara Pintado”, da Marreca dos
Índio. Eu nasci entre estes dois lugares, pro lado de Guarapuava. Òi, o Dr qué grava, pode
grava! To aqui em Pitanga desde 1932 (...) a Pitanga não tinha casa e aqui onde nós tamo era o
cemitério dos índio, aqui em cima desse morro. Porque Pitanga era dos índio, e daí, quando deu
a revolta dos índio foi em 1923. Aí o povo ralo abandonou tudo e lá ficou criação, vila e
mantimento. O policiamento tinha no Chopinzinho, nem em Guarapuava não tinha e de lá que
veio o policiamento pra retirar os índio. Daí deu um quebra pau que foi bonito de ver; que Deus
o Livre.
O Sr pode liga o gravador. O Sr prozeo bem dize com um pioneiro daqui da Pitanga.
Pode levar lá pros teus amigo ouvi. (...) A minha mãe era índia, casada com gaúcho e depois que
casaram ela não teve mais contato com os índio. Tinha três tios, irmãos dela que eu conheci, o
Vergílio, o Vitoriano e o Veríssimo, que eu conheci, moravam lá no Cara Pintado. O Caçula
parou na casa da minha mãe, e por aí esparramou-se tudo.
Pois eu sô analfabeto e compreendido, e não gosto de prozeá com essa juventude,
eles acham que veio é mentiroso, ta só se gavando. Mas passou pelas minhas mão, eu enxerguei
com meus próprios zóio.
O Seu João era bom de prosa e ficamos conversando muito. Contou de uma
viagem que fez ao Paraguai, via Foz do Iguaçu até quase Assunção, levando a mudança de
um alemão, gado e todos os petrechos para construir uma casa. Depois de quase quatro
64
meses viajando a volta foi uma festa. Deu entrevista no rádio da cidade e foi bem recebido
com brincadeiras por todos. Uma das falas durante a recepção que me chamou a atenção foi
com relação à mandioca e com relação à mulher paraguaia.
Aí o Valdir falou: você comeu muita mandioca lá pra aquele lado? E não trouxe uma
paraguaia pra nós? Lá diz que é comprado paraguaia, não deu um quinhentão por uma
paraguaia?
Uma das primeiras coisas que lembrou antes de ser gravado foi de um assassinato
que presenciara na cidade, quando jovem. E ainda sobre a violência presente na cidade
disse que no passado havia muita morte por roubo de pinhal, pra madeira, não por roubo de
terra, mas que hoje era mais calmo.
Este relato nos trás mais uma discussão sobre os caminhos e o poder. Capistrano
de Abreu é um dos primeiros que percebe a importância dos caminhos indígenas e coloniais
para o povoamento do Brasil. Pensando nas funções geo-estratégicas que um caminho teria,
poderíamos depositar neles extrema importância em outros tempos. Nos estados do Sul do
Brasil, atualmente, existe uma memória muito forte sobre as tropas de gado, de mulas ou de
porcos. Os tropeiros que imediatamente imaginamos seria aquele responsável por
transportar gado e mulas da colônia do Sacramento (atual Rio Grande do Sul) até Sorocaba
e depois até as regiões das Minas (atual Minas Gerais). Estas tropas possibilitaram também
a formação de núcleos populacionais como Registro, Castro e Ponta Grossa e transitavam
por um caminho que hoje é conhecido como Caminho do Viamão (MOREIRA, 1975).
O tempo passou e estas tropas desapareceram, os tropeiros foram substituídos
pelos caminhoneiros, que exercem atividades extremamente semelhantes. Porém, pelo
relato do Seu João, as tropas não desapareceram totalmente e também são muito diferentes
do que imaginamos ou aprendemos na escola. As tropas de porco a que João se refere
seguiam por trilhas diferentes daquelas do Viamão, e também produziram núcleos
populacionais em seus entroncamentos. O hábito das tropeadas ainda existe na cidade de
Pitanga, as comidas a base de porco, selarias, os caminhos.
65
Pitanga e os índios – uma guerra moderna
A cidade de Pitanga ainda convive com as memórias da Guerra dos Índios
cotidianamente, todos conhecem esta Guerra. Na vizinhança, o município de Manoel Ribas
abriga uma reserva Kaingang sendo Pitanga um dos pontos de parada deste grupo para
comercializar principalmente cestos de taquara. Cheguei mesmo a conversar por horas com
um kaingang, 68 anos, Aparecido seu nome. No final do dia ele vinha com a mulher e um
neto parando sob uma árvore em frente à rodoviária, uma camada de palha seca no chão,
uma fogueira, chaleira e cuia de mate, uma gaita de boca, cestos de taquara e algumas
sacolas parecia ser tudo que tinham durante aquela viajem. Eu me senti um idiota
carregando uma mochila de 110 litros nas costas. Me contou que os kaingang não usam
caminhos hoje em dia, andam de ônibus, mas os brancos não gostam deles. Quando
perguntei sobre a guerra dos índios ele imediatamente respondeu “não lembro”, como se
quisesse tapar um vazio que aquela pergunta teria causado. Aparecido você não lembra
porque esqueceu ou porque não quer lembrar? Ele apenas sorriu.
Continuei por ali com Aparecido, sua esposa e seu neto, em silêncio. Tomamos
uma cuia de mate e ele aceitou um cigarro. Perguntou-me se eu gostava de música e
começou a tocar uma gaita de boca, um ritmo, não uma melodia. Tocou três músicas que
tinham no final um recurso idêntico para as três versões. De repente, finalizou a música e
falou rápido: “Vamo pará”! Quando olhei para o lado estavam vindo outros dois índios
jovens na nossa direção. Um deles se sentou e o outro foi embora. Seu nome era Roberto e,
como uma continuação da conversa que estava tendo com Aparecido, refiz para Roberto
algumas perguntas. Sobre a Guerra dos Índios ele me falou que ainda lembravam do fato e
que tinha sido muito triste para todos. E sobre a prática de caminhar falou que seus pais e
avós iam até Ponta Grossa a pé visitar parentes, mas hoje pegam ônibus. “É mais seguro”.
Na rua, neste momento, passa um carro com caixas de som anunciando o Circo
Pantanal dali à uma hora. Roberto olhou para mim e me convidou para ir ao circo, pois
nunca tinha assistido a um espetáculo deste tipo. Levantamos e fomos comer alguma coisa
no Bar Hotel “O Povão”. Eu já estava hospedado neste local a alguns dias e conhecia todos,
os proprietários, funcionários e alguns fregueses. Ao entrar com o Roberto no bar, todos
pararam o que estavam fazendo, um silêncio tomou conta do ambiente e ficaram nos
66
olhando. Parecia que diziam: “o que você ta trazendo este índio aqui?”. Fiquei
impressionado com a atitude. Pedimos ovo em conserva, “krakovia”, e enquanto comíamos
Roberto tirou moedas do bolso e pediu uma garrafa de cachaça “daquelas de prástico”.
Neste momento percebi o que tinha feito!
Saímos do bar, pois o clima não era dos melhores e fomos ao circo. Uma fila
enorme, só crianças e seus pais, eu e o Roberto. Todos nos olhavam, e o cara ao meu lado
com aquela garrafa de cachaça. Que exemplo. De repente Roberto saiu da fila e foi andando
para trás da lona do circo, esperei um pouco e quando fui até ele estava bêbado, dormindo,
tentei acorda-lo, nada. Tirei a garrafa de perto dele e fui embora. Não vimos o espetáculo!
Beato José e a peregrinação
(...) é uma maravilha ver como, quando um homem
deseja muito algo e se agarra firmemente a isso em sua
imaginação, tem a impressão, a todo momento, de que
tudo aquilo que ouve e vê, testemunha a favor desta
coisa.
Bartolomé de Las Casas. História I, 44. In: Todorov
(1988) p.22.
Através de mensagens eletrônicas diversas pessoas foram avisadas sobre a
peregrinação de três dias no caminho do Peabiru entre as cidades de Candido de Abreu e
Palmital. Todos os participantes deveriam pagar 30 reais e se encontrar às 6 da manhã na
UCP. Um caminhão F4000 levaria as mochilas até o local onde seria armado o
acampamento e nos acompanhariam uma moto com água potável, uma ambulância e uma
caminhonete com uma cozinha industrial para as refeições. No total 60 participantes se
inscreveram e saímos com um ônibus escolar e com um microônibus da prefeitura de
Pitanga do local e na hora marcados.
Um grupo que estava na cidade, eu inclusive, nos encontramos no dia anterior ao
da partida e dormimos em um alojamento conhecido como “Beato José”, ligado a igreja
católica. Afastado da cidade e tendo um espaço amplo, é neste local que aconteceram os
encontros dos Estudiosos do Caminho do Peabiru. Durante a noite ficamos ouvindo o
Clemente contar diversas histórias sobre o que veríamos nos dias posteriores. Entre as
histórias, contou sobre uma cabeça de boi gravada em uma rocha e veementemente disse:
67
Caso encontremos este vestígio, não podemos nunca duvidar de que foi por ali que passou a
expedição de Cabeça de Vaca. A pedra ta lá como uma homenagem a ele, nós precisamos
encontrar isto aí e segundo informações ela está na foz do rio Cantu. Um cara que participou de
uma outra expedição disse já ter visto a tal pedra, mas os caboclos retiraram do lugar para ver se
tinha ouro em baixo. O cara contou que perto desta existe outra gravação daquelas que parecem
mapas.
Clemente contou que nas suas andanças, perto de Castro, num lugar chamado
Lago tem uma igreja com a data de 1823 e o padre disse que aquela é a primeira igreja de
alvenaria de pedra, mas antes já existia uma outra, no mesmo local, datada de 1700. No
local foram encontrados machados líticos dos índios antigos e nas proximidades
encontravam-se quatro buracos redondos (provavelmente habitações subterrâneas). Por ali
também tinha um caminho muito antigo, contou o padre, mas estava abandonado. O
cemitério que existe no local é referido pelos moradores das proximidades como sendo dos
índios de antigamente. Eles tinham toldos e o cemitério cresceu muito, pois, por ali,
morreram muitos índios de “bexiga”, morriam de febre por conseqüência do europeu
29
.
No dia seguinte saímos às 5 da manhã, quebrando geada, rumo ao rio Ivaí. Lá
pelas 9 horas chegamos ao Faxinal dos Lacerda no município de Candido de Abreu. Fomos
recebidos com foguetório e uma mesa enorme com café colonial. Enquanto comíamos a
presidente da associação dos moradores fez um discurso que terminava assim: “Recebemos
vocês com satisfação e com os alimentos usados no tempo antigo de nossos avós”.
Em seguida o prefeito de Candido de Abreu anuncia as boas vindas ao grupo, fala
sobre a Colônia Thereza Cristina, o Fórum de Desenvolvimento Territorial, e do sonho com
o desenvolvimento e com a melhoria da qualidade de vida das pessoas que vivem na região.
Seu discurso terminou assim:
Finalizo dizendo que visitei o Memorial JK em Brasília e de lá tirei uma frase que
me marcou muito – para que os sonhos se tornem realidade é preciso ter audácia, coragem e
determinação - e é isso que desejo a todos nós para transformar este potencial em melhoria de
vida para toda a nossa região. Tenham todos uma boa caminhada, boa estadia e fiquem com
Deus.
29
Na cidade de Barra Velha ouvi relatos sobre febres que matavam os macacos, primeiramente, e depois
atingiam os humanos. Em Pitanga ouvi estas histórias, mais adiante, em Campina da Lagoa a ocorrência
aparece novamente. Perceba, o leitor, como também estas febres são explicadas e recebem interpretações
diferentes nas várias localidades pesquisadas.
68
Eliseu Kloster, vice diretor da UCP, em seguida realiza a sua fala. Começou pela
etimologia da palavra Faxinal, recorrente em todo o Paraná e que significaria um lugar sem
fronteiras, sem cercas, um lugar solidário, sendo isto que naquele dia encontrávamos no
Faxinal dos Lacerda. E continuando, fala:
O que vemos hoje aqui nos surpreende porque este é o produto turístico. Estivemos
aqui no ano passado e fomos bem recebidos por toda a comunidade e gostaria de agradecer a
toda a comunidade, a prefeitura de Candido de Abreu, ao prefeito e sua equipe. Hoje temos aqui
representantes de diversas instituições de ensino. O Prof Alexandre da UNIVALI. É muito
grande o que estamos fazendo aqui hoje. A Prof Virgínia coordenadora do curso de Turismo da
UNIBRASIL. A Prof Sinclair da FESUCAN de Campo Mourão. Professores de Ponta Grossa e
diversos professores e acadêmicos da UCP, da Educação Física a Prof Renata que está engajada
nesta luta, nesta caminhada, simplesmente por um objetivo comum. Primeiro para elucidarmos,
não só para a região, mas para todo o Paraná, que temos história e é do passado que se decide o
presente. O JK dizia também que para você conseguir realizar um sonho, tem que sonhar junto,
então, todas estas instituições juntas vão colaborar muito para que este projeto se torne
realidade.
Em seguida Clemente anunciou a presença da escritora Therezinha Aguiar Vaz
que escreveu o livro “O lendário Caminho do Peabiru na Serra da Pitanga” e falou das
intenções de criar um museu etnográfico na cidade, um local onde ficaria todo o material
histórico encontrado na região.
Terminados os rituais de boas vindas entramos em três ônibus que nos levariam
até a balsa, na margem do Ivaí. Por uma estrada de chão tudo corria bem até que chegamos
na Serra Grande, o borda do Vale. Tínhamos uns 30 Km até o rio, havia chovido nos dias
anteriores e a lama tomava conta da estrada. Um caminho íngreme, com canais de erosão
ao lado de um precipício que permitia uma visão espetacular de grande parte do Vale.
Eu estava no primeiro ônibus. Em uma curva, senti um tranco e a roda traseira
ficou livre em um canal de água que despencava uns dez metros. O ônibus ladeou e
encalhou. Depois de tirar o veiculo desta situação ainda havia outros dois. Logo, o segundo
ficou na mesma situação e desta vez o pessoal não conseguiu tirar. Muitos, inclusive eu,
seguimos a pé enquanto metade do grupo seguiu com o ônibus, não para serem carregados,
mas para carrega-lo. Neste percurso até o rio, atolaram o veículo mais umas oito vezes.
Ao chegar na balsa lá pelas 3 da tarde todos já tinham atravessado o rio exceto eu
e mais cinco, incluindo o Eliseu. A idéia era colocar um ônibus de 16 toneladas sobre uma
balsa estreita. Viraria um “João Bobo”, o rio estava cheio, pois tinha chovido muito e a
correnteza era forte. Depois de amarar a balsa na margem, construir uma rampa com toras e
69
tábuas o motorista deu a partida. Ao subir a rampa de tábuas, o ônibus empurrou a balsa,
uma das amarras arrebentou e o conjunto começou a seguir a direção da correnteza. As
tábuas e toras começaram a se mover para cima furando o radiador do veículo e
estabilizando o conjunto!
Quando achávamos que tudo estava perdido, estacionam duas caminhonetes com
quase dez pessoas. Um fazendeiro e seus capangas nos ajudaram a tirar o ônibus daquela
situação. Atravessamos uma das caminhonetes e ainda pegamos uma carona até o ponto de
encontro. Neste local, uma festa, todas as pessoas da região sabiam que passaríamos por ali
e estavam reunidos em um bar na beira da estrada rural na qual seguíamos. No bar apenas
homens, é claro, mas de todas as idades
30
. Os responsáveis, o Eliseu e o Clemente
acertaram o empréstimo de um ônibus que nos levaria até um próximo ponto e de lá outro
nos levaria até o local onde dormiríamos. Depois de entrarmos neste ônibus, as 4 da tarde,
só saímos dele às 7 da noite para entrar em outro no qual ficamos até onze horas. Os
participantes da peregrinação se revoltaram, alguns se apavoraram, mulheres passaram mal.
Estávamos sem comer desde o café no Faxinal dos Lacerda e parecia nitidamente que, tanto
o motorista, quanto os responsáveis estavam completamente perdidos em uma infinidade de
estradas rurais escuras e lamacentas. Durante esta crise vivida pelo grupo as pessoas
protestavam:
“Ninguém sabe falar? Não vou falar nada”, “perda total”, “gente, eu estou me
divertindo muito, isto aqui é o máximo e vou vir sempre”, “quero saber quem é o responsável”,
“os incompetentes que vieram guiar a gente, tem que mandar demitir tudo, nunca mais consegue
emprego em lugar nenhum”, “fi-as-co, fi-as-co”, “Calma aí moçada, já estamos chegando”,
“Isso vai estar na CBN amanhã cedo”, “esta caminhada é a primeira que vai fazer bolha na
bunda e não no pé”.
A primeira fogueira
Até que enfim chegamos ao local marcado para o acampamento. O caminhão com
as mochilas, comida pronta e uma fogueira de nó de pinho esperavam por todos. Depois de
comer e algumas pessoas irem dormir, exaustas, um grupo foi para a fogueira e foi neste
contexto que consegui inúmeras informações. Logo que sentei ao pé do fogo, fui
30
Questões de gênero nas cidades rurais – mulher não pilota trator, mas tem função importante no
provimento de alimentos, educação dos filhos e manutenção da casa. A questão da mulher no bar, o caso do
“O Povão” foi, de maneira semelhante, encontrada em Campina da Lagoa e em Palotina.
70
imediatamente questionado por um dos funcionários do “Fofo” (o prefeito de Santa Maria
do Oeste e candidato a Deputado Estadual) sobre o meu trabalho e sobre o que exatamente
eu estava pesquisando. Para explicar, tomei conta do assunto durante uns dez minutos,
enquanto outras pessoas me faziam perguntas. Falei sobre a arqueologia paranaense, sobre
mitologia, sobre alguns viajantes e as minhas perspectivas sobre o Caminho do Peabiru e o
que todos nós estávamos fazendo ali. Comecei a perguntar sobre as relações com os
Kaingang em Pitanga, de repente, envolta daquela fogueira, uma voz feminina: “Os índios
são uns vagabundos”. Quando puxei o gravador e pedi para ela repetir o que dissera: “Os
índios são trabalhadores”, repetiu com uma dose de sarcasmo.
Intervindo na discussão, Eliseu, lembrou as pessoas sobre o hábito de tomar banho
que os índios têm. Porém todos esquecem que os europeus aprenderam a tomar banho com
eles. E imediatamente outra menina completou: “É, mas agora estes índios são uns
vagabundos, não trabalham”. Sentindo-me até certo ponto culpado pela discussão e tendo
um desejo latente de não deixar estas pessoas pensando como estavam. E apenas tentando
deconstruir aquela idéia, rebati com a pergunta: “Você acha que o índio que caça uma paca
não está trabalhando? Você já tentou caçar uma paca?”
Enquanto pensavam, o funcionário do prefeito contou que já tinha estado numa
aldeia, divisa do Pará com o Mato Grosso. Contou que tinha andado mais de 100 Km para
chegar, terreno arenoso, muita chuva e foi muito bem tratado pelos índios:
Se você tem gravador eles iriam querer para te deixar passar na balsa, não é dinheiro
que querem, querem as coisas que nós temos. Dinheiro não adianta para eles.
Dentro do assunto Eliseu novamente toma a palavra e pergunta: “Alguém sabe se
o índio pode votar?” Ninguém respondeu! E continuou:
Para ver como é triste essa situação, eles conseguiram o direito de cidadania ontem,
1980. Não tinham isso. E veja, este país, esta terra era tudo deles. Tem o Deus deles, tem as
tradições e nós chegamos aqui, descendentes de europeus, exploramos, escravizamos e, agora,
ontem, que fomos começar a fazer o resgate da cultura e da história que eles deixaram.
O papo continuou em outros rumos até que as pessoas foram indo dormir, ficamos
em sete, dois de Campo Mourão, um de Santa Maria do Oeste, um de Palmital e um de
Pitanga. Perguntei então sobre as visagens e todos quiseram contar as suas histórias, todas
71
histórias ligadas a própria experiência concreta. Os fatos, fantasmas e sensações contadas
por cada um deles evidenciavam uma experiência vivida. A história da mulher de branco
que aparece na estrada. O trotar de um cavalo fantasma que se escuta nas trilhas. Um
terreno infestado por aranhas onde alguma entidade impede que as pessoas o atravessem.
A segunda fogueira
Na manhã seguinte, depois do café, partiram dois grupos. No segundo grupo
estavam o Eliseu, o Clemente e o Silvio (chefe do Clemente no IBGE, e também
aposentado). O Silvio, além de ser um ótimo informante, com um vasto conhecimento geral
da região ainda deconstruiu a divisão Letrado/não-letrado que tinha sido proposta no início
do trabalho. Propôs pensar uma diferenciação dos termos, não dependendo esta divisão
relacionada ao acesso a educação, ao analfabetismo, mas no acesso aos círculos de poder e
conhecimento.
O informante falou sobre o esconderijo do Che Guevara em Guarapuava, falou do
José Dirceu que nos tempos da ditadura, tinha uma família na região. Contou-me das suas
aventuras no Peru, em Cuzco e na Trilha Inca e também sobre a guerra do Contestado e
táticas de guerrilha utilizadas pelos revoltosos. Com o passar da conversa falei um pouco
do meu trabalho e da divisão das informações entre emissores letrados e não-letrados.
Imediatamente falou que eu o colocasse como não-letrado! Mas porque? “Porque hoje,
segundo definição da ONU, para ser alfabetizado você tem que saber falar duas línguas, eu
só sei falar uma, então eu me considero analfabeto!”
Andamos muito por estradas rurais e plantações de erva-mate até pararmos para
almoçar e catar alguns pinhões em um reflorestamento. À tarde também andamos muito até
chegar na estrada que liga Pitanga a Guarapuava e fomos até uma fábrica de farinha de
milho. Depois de provar a farinha ainda quente e conhecer todo o processo o grupo
caminhou até um pasto. Neste local, apenas quatro pedras alinhadas com os pontos cardeais
Norte/sul/leste/oeste. Os proprietários nos informaram que já tinham tentado tirar a pedra
com um trator, mas parece que era grande e estava muito enterrada. O terreno em declive
pode mesmo ter sedimentado uma espécie de monólito, segundo as informações do
Clemente.
72
Nas proximidades deste alinhamento tinha início uma depressão, um valo. Era o
Caminho do Peabiru. Seguimos no valo alguns metros e vi uma depressão redonda nas
margens do valo. Pelas informações de Clemente, aquela depressão tratar-se-ia de uma
habitação subterrânea ligada a Tradição Itararé
31
. Seguimos então o valo por quase três
quilômetros até chegar a um galpão enorme que depois fui saber que se tratava de um
barbaqua
32
. Neste dia comemos uma quirerada
33
e assistimos a um filme (aquele produzido
na UFSC) e uma apresentação de slides organizada pelo Clemente.
Depois fomos novamente para a fogueira e um dos que tinha estado na fogueira do
dia anterior (de Pitanga) recitou uma trova gaúcha impressionante que infelizmente não
pude gravar. Conversando depois, este informante contou sobre a influência do CTG,
Centro de Tradições Gaúchas, em Pitanga e a sua organização em diversos lugares do
Brasil. Depois de modas de viola regionais cantadas e tocadas pelos proprietários do
barbaqua a maioria foi dormir, ficando apenas aqueles sete.
Voltando ao assunto do meu trabalho, um deles me questionou sobre esta divisão
letrado/não letrado com o seguinte argumento: “Se eu te der uma motoserra para cortar um
cedro, como você faz?” Tendo certeza da resposta falei: “Primeiro corto uma cunha em um
dos lados do tronco e do outro faço um talho em um dos ângulos, a árvore tomba”. E ele
retrucou: “Se você fizer isto com um cedro ele racha no meio, inteirinho, e cai só a metade.
Perde toda a madeira. O cedro tem que sangrar. Enfia a motoserra de frente, bem no meio,
para sair a resina, no dia seguinte faz um corte reto na base. A arvore cai inteirinha”.
Continuando o informante ainda contou sobre a maneira e as utilidades de diversas outras
árvores como a peroba: “Madeira que tem que mexer enquanto é verde, depois de seca não
consegue botar nem um prego”; o manjoleiro: “Eu duvido quem corte um manjoleiro, sai
faísca da motoserra, é a madeira mais dura que tem”, o pinheiro e a imbuia não apodrecem
31
A Tradição Itararé foi definido pelo PRONAPA e atualmente aceita-se serem estes grupos ligados aos
grupos ge. Regionalmente no sul do Brasil, formaram os atuais Kaingang e Xókleng. Chmyz descreve para a
Tradição Itararé o habito de construir habitações subterrâneas, das quais tive o prazer de realizar uma
escavação completa e minuciosa no ano de 1999, na região metropolitana de Curitiba (BORGES, 2000).
32
Barbaqua é uma estrutura industrial utilizada para o beneficiamento de erva mate. Auguste de Saint-
Hillaire, em 1822 descreve ter estado em diversos barbaquas que se espalhavam por todo o território do atual
Paraná e Santa Catarina.
33
Quirerada é um prato típico das regiões que tiveram influencia das tropas de porco. Depois de fritar costela
de porco (fresca e defumada) e bacon com sal e cebola, adiciona-se a quirera (uma espécie de polenta) um
milho grosseiramente moído resultando em um caldo grosso com pedaços de carne de porco. Uma delícia!
73
e não tem cupim. Sobre este assunto, voltaremos mais adiante com a divisão inicial do
trabalho em letrado e não-letrado e discutindo a tensão entre o conhecimento prático e
teórico.
A costela dois fogos
No terceiro dia de caminhada (29 de maio) saímos do barbaqua e continuamos
caminhando pelo valão na direção oeste até a cachoeira do Gamelão, também conhecida
como Carrancas, onde existem inscrições gravadas na pedra de uma das paredes.
Seguimos a uma propriedade, um pasto gigantesco sobre diversas colinas que
tomava conta da paisagem e nitidamente formava um vale. Tínhamos que descer estas
colinas até um rio que se via ao longe. Este rio que estávamos observando era o rio Cantu e
o local compunha as cabeceiras deste rio. Neste momento estávamos no divisor de águas
entre os rios Ivaí e Piquiri.
Na margem do rio Cantu havia um ônibus da prefeitura de Santa Maria do Oeste
nos esperando para nos levar até o almoço na fazenda do Fofo. Fomos recebidos com
foguetório e logo vi quatro espetos enormes com as costelas de um boi inteiro. No entorno
apenas cinzas e um braseiro evidenciavam que tinha sido assada circundada pelo fogo no
chão. Além disso, um caminhão com um freezer cheio de cerveja. Foi o fim da viajem.....
No retorno, ao chegar em Pitanga novamente, tive uma sensação de familiaridade.
Parecia que estava chegando em casa. Quando falei isso para o Clemente ele disse:
Então agora você sabe o que é o Peabiru e seu verdadeiro sentido. O Peabiru é uma
trilha de auto conhecimento e de sentimento, muito sentimento envolvido, olhar para si, para a
trilha, para os outros; coisas boas e ruins, vontade de rir e chorar!
Com este mesmo sentido aparecem desde o século XIII os caminhos de penitência e
os rituais de peregrinação por rotas específicas e em geral sacralizadas. A peregrinação,
realmente envolve questões relacionadas com o auto-conhecimento. Também envolve
questões de construção do outro que por vezes se transforma na medida em que ocorre o
deslocamento. Assim, procurando o encontro com outros hábitos, buscando o auto-
conhecimento e a ilusão da fuga total da realidade cotidiana é que muitas pessoas se
envolveram nesta peregrinação pelo Peabiru.
74
Como sagrado, o Peabiru não apareceu para nenhum participante. As pessoas
fizeram o percurso por diversos motivos, alguns eram entusiastas e curiosos sobre o tema,
outros eram professores e pesquisadores que estavam lá com propósitos ligados a obtenção
de conhecimento. Havia políticos e turismólogos que vêem no Peabiru uma oportunidade
de marketing e trabalho. Outros eram desportistas, queriam o condicionamento físico do
trekking e das caminhadas, participantes de Clubes de Montanhismo, professores de
educação física ou estavam lá porque treinavam para ir ao Caminho de Santiago
Compostela. Dentre todos, a utilização que mais me chamou a atenção foi a de uma moça
que disse estar fazendo a caminhada para “tirar umas férias do marido”.
É interessante perceber, dentre os diversos caminhos de que falamos no início,
como acontece a utilização de cada um deles. O Peabiru, como vimos, parece ser utilizado
por uma grande parcela de motivos, menos por ser sagrado. Como sagrado existe o
Caminho da Fé, entre São Paulo e Minas Gerais e o de Compostela. Já a Trilha Inca, no
Peru, recebe visitantes estrangeiros, diferentemente do Caminho do Ouro, entre Minas
Gerais e Rio de Janeiro, que atrai principalmente desportistas, historiadores e curiosos.
Museu e Casa da Memória
Durante o discurso do Clemente no Faxinal dos Lacerda, no inicio da
peregrinação, ele citou o projeto de constituição de um museu ou casa da memória na
cidade de Pitanga que teria a função de guardar todos os vestígios históricos e
arqueológicos encontrados na região.
Ao retornar para a cidade, depois da peregrinação fui até a Casa da Memória e
trata-se de uma sala na secretaria municipal dos transportes. No local pode-se observar
desde lâminas de machado de pedra e potes de cerâmica indígenas até gramofones, selas e
estribos para montaria, panelas e tachos, petrechos médico-dentários e uma coleção de
revistas, livros e jornais. Também, em algumas paredes existem fotografias antigas, uma
coleção de fotos de todos os prédios escolares da cidade, desde a sua fundação. Também
aparecem fotos de famílias, da abertura de ruas e construção de pontes. Dentre todas,
chamou a atenção uma onde apareciam alguns tropeiros montados e outra, de execuções em
praça pública. Essa foto apresentava vigas de toras de onde pendiam, de cabeça para baixo
75
e amarrados pelos tornozelos, sete corpos que nitidamente tinham feições indígenas. No
entorno desta cena, em segundo plano apareciam umas cinqüenta pessoas, homens,
mulheres, crianças, observando e um segundo fotógrafo prestes e registrar o momento.
Pelas informações da responsável pelo local, aquela foto datava de 1947, portanto, posterior
a grande Guerra dos Índios em 1923.
Esta atendente reclamou da falta de recursos e da falta de interesse da
administração pública em incrementar o local. No momento, a Casa da Memória de
Pitanga, mais parece um depósito do esquecimento com materiais sem referências e
nenhum tipo de registro, nem livro Tombo!
Estas Casas da Memória tem um significado muito particular para algumas pessoas
da região. Ao pensarmos em quem fala sobre elas, sobre a vontade de constituição de um
Museu que guarde a história da região vemos que pertencem a grupos específicos. Todos os
pesquisadores curiosos, historiadores locais ou sábios locais reivindicam este tipo de
instituição e desenvolvem trabalhos de resgate da memória dos velhos e pioneiros, uma
memória não oficial portanto.
Peregrinação e a Pós-Graduação sobre o Peabiru
No início da peregrinação, cerca de meia hora após sairmos do Faxinal dos
Lacerda, quando o ônibus onde eu estava atolou pela primeira vez, estava conversando com
uma professora de Campo Mourão. Esta professora estava participando da peregrinação
com dois alunos do curso de Turismo da mesma cidade. Os três já tinham participado de
outras caminhadas, em anos subseqüentes, e pareceram estar bastante envolvidos com o
planejamento do Peabiru. Os alunos conheciam um paraguaio que organizava passeios e
conhecia fontes e vestígios do caminho em seu país. Pela descrição, ele deveria fazer um
papel semelhante ao de Clemente, porém, em sua própria região acerca de Assunção.
Dentre os diversos fatos e fontes que este grupo de Campo Mourão conhecia ou já
teria vivido, uma delas me chamou muito a atenção, e trata-se não de um fato ou uma fonte,
mas de uma possibilidade. Como já falamos, as construções contextualizadas acontecem a
partir de referenciais simbólicos em contextos específicos e a partir de lógicas particulares.
76
Neste caso, especificamente, a informação obtida girava em torno da organização de uma
Pós-Graduação sobre o Caminho do Peabiru na cidade de Campo Mourão!
Longe de conseguir uma resposta, paira ainda agora, a pergunta sobre o que
levaria estas pessoas à possibilidade de pensar sobre um curso com este tema. De uma
forma ou de outra, a presente dissertação também se constituiu pela possibilidade de tratar
o Caminho do Peabiru como um tema científico. A diferença está em não explicar fatos,
não interpretar vestígios nem tentar provar uma verdade, mas considerar os múltiplos
olhares sobre um tema e como se relacionam os recortes sobre esta realidade.
Therezinha Aguiar e o Lendário Caminho do Peabiru na Serra da Pitanga
Em Pitanga, na única banca de revistas da cidade, encontrei logo nos primeiros
dias o livro “O lendário Caminho do Peabiru na Serra da Pitanga” de Therezinha Aguiar.
Depois de ler, conheci a autora pessoalmente durante a peregrinação, com a qual conversei
muito. Entre as informações que me deu, contou a história da guerra dos índios, também
conhecida como Abril Sangrento, da seguinte maneira:
Uma índia da Marrequinha tinha amizade com índios e brancos porque costurava.
Ela começou a reunir índios de vários toldos da região e um dia invadiram a igreja. Os
brancos se armaram e começaram a matar eles dentro da igreja e no fim era tanto índio morto
que tiveram que incendiar a igreja, pois era tanto sangue que não dava nem pra limpar. Os
índios que sobraram fugiram para a Terra Santa, na descida da Serra Grande no Vale do Ivaí,
próximo ao Faxinal dos Lacerda.
Os colonos que fugiram espalharam a notícia e de Curitiba veio o exército e o
soldado Pedro Nolazo que passou a perseguir os índios. Onde achasse índio degolava,
homem, mulher, criança. Os últimos índios conseguiram se enfiar na Terra Santa e o soldado
Nolazo foi atrás deles com facão, para matar todos que tinham sobrado.
Dizem que até milagre aconteceu na Terra Santa.
Podemos perceber a diferença de teor dos relatos sobre a Guerra dos Índios. Um dos
informantes iniciou com um crime cometido pelos brancos, outro por um crime cometido
pelos índios. Therezinha inicia seu relato já na invasão da igreja pelos índios e amplia a
história até a perseguição dos índios pelo soldado até na “Terra Santa”. O leitor já deve ter
percebido a inconstância das memórias deste tipo, como em Barra velha e as explicações
sobre a origem do topônimo Pedra do Bugre.
77
Tiken Xetá
Durante a peregrinação, Eliseu Kloster certa vez me contou sobre os Xetá, um
grupo indígena de caçadores coletores que teria sido extinto como população na década de
1940 (SILVIA, 1998) devido a ocupação de toda a região do norte do Paraná. Kloster citou
os trabalhos de Vladimir Kozak e sua câmera de cinema de onde teriam sido obtidas as
primeiras e únicas imagens do grupo
34
. Depois dos primeiros encontros com pesquisadores,
com fazendeiros e com o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), os Xetá teriam se
desorganizado e perdido contingente populacional de forma drástica. Existem imagens de
alguns indivíduos fotografados pelo SPI onde aparecem crianças e jovens vestidos de terno
em frente a Lagoa do Passeio Publico, em Curitiba.
As últimas notícias sobre os Xetá são de que existem ainda oito indivíduos
espalhados por várias reservas. Um destes oito membros reside atualmente nas cercanias da
cidade de Pitanga sendo conhecido como Tiken Xetá e infelizmente não me foi possível
conversar com ele, pois, devido a seu trabalho estava fora da cidade.
Pelas informações que obtive com Eliseu, descobri que Tiken atualmente
trabalhava na Polícia Militar do município e, ao entrar em contato com a corporação ouvi
diversos elogios a ele. “Tiken Xetá é um bom policial”; “ele não é mais índio, já conhece a
lei e o que aconteceu foi há muito tempo”!
O Pomar de Pitangas
35
Pareceu-me, por contraste com Barra Velha, que ali todos sabiam diferenciar
muito bem quem era e quem não era índio, tendo inclusive opinião formada sobre eles, e
conhecimento sobre suas crenças, hábitos e cultura material.
Com o decorrer das caminhadas e das conversas percebi a cidade de Pitanga como
uma comunidade rural. Tudo gira em torno da agropecuária. As roupas vendidas em lojas
são fortes, duráveis, utilitárias, roupas para o trabalho no campo, jeans, botinas, selas para
34
Os rolos de filme originais são tombados e encontram-se acondicionados na Reserva Técnica do Museu
Paranaense, em Curitiba.
35
Pitanga é uma fruta da família das mirtáceas. Pequena e de coloração vermelha intensa, tem gosto azedo e
uma semente muito grande em comparação com o tamanho da fruta. Este trecho, portanto, é como as
pitangas, composto de pequenos objetos que chamaram a atenção durante o campo.
78
montaria. Grande parte do assunto nas rodas é com relação ao preço da soja, defensivos
agrícolas, as cotações de câmbio para o dólar. Mostra-se assim, uma intensa relação com a
cidade, com a bolsa de valores. A comunidade rural de Pitanga não se mostra idílica, fora
da realidade do capital, das discussões sobre melhoramento genético, mas pelo contrário,
encontra-se intensamente conectada a tudo isto
Caminho moderno
Percebi também um caminho ainda vivo, um Peabiru moderno que flui de acordo
com migrações mais recentes. Em Barra Velha existiam diversos condomínios de
veranistas. Conjunto de casas ou sobrados, iguais, da mesma cor e arquitetura e na frente
escrito Condomínio Maringá ou Jardim Cascavel. Em diversas ocasiões me falaram destes
condomínios pertencentes a pessoas destas cidades, do norte do Paraná que veraneiam em
Barra Velha. O José Carlos, aquele historiador local de Barra Velha mostrou-me fotos da
construção da estrada de Ferro São Francisco do Sul - Joinvile - Porto União na década de
1920. Também encontrei em Barra Velha, um rapaz, morador da cidade há três anos, mas
nascido em Santa Maria do Oeste, uma cidade vizinha a Pitanga. Alguns informantes de
Pitanga vêm de Porto União e ainda mantêm relações de parentesco entre ambas as cidades.
Da mesma forma, o contato a oeste se evidencia por circos que possuem lhamas e
freqüentemente visitam a cidade e por uma loja de peças para automóvel denominada Auto
Peças Titikaka. Também um dos informantes teria viajado ao Paraguai há 40 anos, estando
a cidade de Pitanga, conectada, em tempos modernos, com as cidades a leste Guarapuava e
Ponta Grossa e a oeste com Foz do Iguaçu e Assunção.
Dialeto
Outro fato marcante quanto a ligação com um mundo rural foi o dialeto da língua.
Com freqüência ouvia termos como zóio, veia, vorta, arto, muié, fiquemo, falemo. Em
inúmeros casos, durante as conversas, forcei-me a utilizar estes termos. O uso, pelo
pesquisador, de uma linguagem dialetal culta dificultava a entrada e a participação em
diversos grupos e voltamos a pensar sobre as relações antropólogo/nativo. Percebe-se
também que as variações dialetais também não acontecem por acaso e estão conectadas de
forma complexa a todas as transformações históricas locais. Franz Boas já chamou a
79
atenção da antropologia para as relações da cultura com a linguagem e concretamente
observa-se alterações de pronúncia e gírias ou metáforas diferenciadas ao compararmos as
localidades de Barra Velha e Pitanga.
O que no início definimos como Paraná Tradicional tem a ver com todo um
corpus de significados, que vai desde os hábitos alimentares às metáforas, lendas e gírias. A
partir de Pitanga, rumo a Oeste perceberemos uma influência cada vez maior de migrantes
do Rio Grande do Sul, os gaúchos, que apresentam hábitos diferenciados, inclusive no
emprego da língua.
O caboco macho, a arma e seu carro
Inicialmente este projeto pensava uma divisão entre letrados e não-letrados de
uma outra maneira, a segmentação inicial se dava em categorias bastante genéricas como
professores e caboclos. Definição que amadureceu e tomou outros rumos. Depois de alguns
dias em Pitanga percebi que as pessoas chamavam umas as outras pelo termo de caboclo,
ou melhor, “caboco”. Todo mundo era caboco
36
. Dentro deste vinculo estava um outro que
ligava o caboclo ao homem macho, ao sertanista andejo. E foi com extrema surpresa que
ouvi, no entorno de uma fogueira, durante a peregrinação um rapaz contando que ao fazer
sete anos seu pai colocou um revolver sobre a mesa e disse: “filho meu vai aprender a
mexer com arma e todo domingo vai lavar o carro”.
Conheci pessoas que se envolveram em homicídios e que utilizaram seus
automóveis também como arma. Em três casos, após festas, o retorno com o motorista
alcoolizado e em alta velocidade teve final trágico. Também é impressionante o modo
como os outros vêem os motoristas acidentados, se sobrevivem transformam-se quase em
celebridades. Um destes informantes me levou a um bar com uma foto da cidade em 1953.
A foto foi tirada da praça onde hoje está a Câmara dos Vereadores e na época existiam
apenas alguns casarões de madeira. No alto da colina no centro da foto observa-se a
36
Saint-Hillaire (1978) cita, na sua passagem pela Província do Paraná, o hábito que a população tinha de
utilizar o termo caboco, uma corruptela de caboclo. Na publicação da Editora Itatiaia de 1978, a página 103,
nota 181, o autor identifica claramente o termo caboclo com a definição e nomenclatura das raças mestiças do
Brasil. O termo aqui trata-se não exatamente de uma categoria nativa, mas um termo utilizado numa
linguagem coloquial, com significado assemelhado as gírias “cara” ou “companheiro”.
80
fachada da delegacia, que permanece inalterada até a atualidade. Ao invés da igreja a
delegacia ocupava o local mais alto da cidade!
Boa parte dos informantes disse que hoje a cidade era calma, mas no passado era
violenta. A violência deixa-se transparecer nas piadas por exemplo. “Dizem que o cemitério
foi fechado porque encontraram uma mina de chumbo lá”. Ou ainda: “Pitanga é terra de
caboco macho, até pouco tempo atrás não tinha anestesia, dente se arrancava com alicate e
barba fazia na faca”!
A visagem
Quanto às visagens, fato que estava certo que encontraria, apareceu nesta cidade
de maneira muito forte. Quando estava em Barra Velha, perguntei para um informante
descendente de alemães sobre as visagens, ele retrucou: “Fantasma? Você acha que eu
tenho medo de fantasma? Isso não existe!”. Em Pitanga esta informação é proveniente de
um grupo de jovens universitários que reproduziram para mim algumas histórias sobre estes
fenômenos.
Uma destas histórias conta que existe, em uma cachoeira nas terras do Zé Capitão,
uma corrente chumbada sobre a água com um baú cheio de ouro. O informante disse que já
tinha ido acampar na cachoeira, mas ninguém consegue devido ao “Berrador! Barulhos,
gritos, mato quebrando, moendo mato, quebrando taquara, duvido o ”caboco” que dorme
lá”.
Relembremos ainda das outras histórias de visagens comentadas durante a
peregrinação, a história da noiva, que aparecerá na próxima cidade, mas de maneira
bastante diferente, em sonho. A visagem das aranhas, do cavalo e do escravo morto pelo
seu senhor para que cuidasse de um pote de ouro para a eternidade.
A comida
Havia um restaurante onde sempre almoçava. Mantinham sempre aceso um fogão
a lenha e panelas de ferro como um típico self service. No cardápio, muita carne de porco,
virado de feijão, uma mistura de feijão com farinha de mandioca, torresmo de porco,
mandioca cozida, couve com bacon e outros vegetais crus. Enquanto estive em Pitanga,
81
almoçava todos os dias neste local e não sentia fome durante todo o dia, fazia apenas uma
refeição por dia, refeição esta a base de carne de porco e feijão.
Como falamos, gostaria de chamar a atenção do leitor para estas descrições
aparentemente deslocadas e fragmentárias. Alguém pode se perguntar, mas pra que eu
quero saber o que o pesquisador almoçava? Estamos tratando aqui de um deslocamento
sendo exatamente o que permitirá o contraste de hábitos, de informações, de interpretações.
Os cardápios ganham significado na medida em que mudam durante a viagem, cria-se uma
diferença relativa assim como acontece com as visagens ou com a toponímia. Em uma
cidade come-se peixe e marisco, mas também carne de boi. Na seguinte apenas porco com
variações sobre o tema, porém, com a seqüência do deslocamento veremos que estes
cardápios além de estarem ligados a toda uma história regional, podem também ter sido
inventados a pouco tempo e tornado-se tradicionais.
82
Parte IV- Mudança de rumo
Peabiru - Campo Mourão ou Campina da Lagoa?
princípio, o projeto estava direcionado para a cidade de Peabiru no norte novo do
Paraná, rumando na direção das fronteiras com o Mato Grosso do Sul. A partir de Pitanga,
a cidade de Peabiru fica ao norte, depois de Campo Mourão. Seguindo este curso eu me
afastaria da fronteira com o Paraguai encontrando a divisa apenas em Puerto Soares (Mato
Grosso do Sul).
Ao observar mapas do Paraguai percebi a baixíssima densidade populacional
daquela região decidindo então rumar para a fronteira com a cidade de Guaíra e Salto del
Guairá para adentrar ao Paraguai. Com esta alteração de rota, optando rumar na direção
noroeste, a cidade que se evidenciou no traçado foi Campina da Lagoa. Região também
pertencente ao norte novo com ocupação a partir da década de 1940 e apesar de não ter o
nome do caminho também foram encontrados vestígios em seu entorno. Esta cidade
aparece nos relatórios de Igor Chmyz sobre o vale do rio Piquiri, inclusive com
agradecimentos a Pedro Altoé, historiador local, que imediatamente passou a ser o
informante que deveria ser procurado.
A Campina das Três Lagoas: Pedro Altoé e Igor Chmyz
Pedro Altoé é um professor de sociologia muito respeitado na cidade. Apesar de já
ter certa idade permanece ativo nas discussões de políticas públicas e no arquivamento de
material histórico sobre a região. Publicou, em 1984, um livro sobre a história da cidade,
possui fotografias, livros, material arqueológico e diversas referências sobre a região.
O professor Altoé me contou sobre a sua trajetória nos estudos de Ciências Sociais e
nos movimentos estudantis relacionados ao período da ditadura militar dos quais teria
participado. O professor Igor Chmyz, arqueólogo da UFPR, que trabalhou na região
durante a década de 1960 hospedava-se na sua casa durante o período das pesquisas. Estes
trabalhos arqueológicos desenvolvidos na região visavam identificar sítios dos mais
83
diversos e, entre eles, hoje se registram as minas do Tambo de Fero e algumas ruínas de
reduções jesuíticas no município vizinho de Nova Cantu. Dentre os vestígios a equipe do
CEPA/UFPR identificou também habitações subterrâneas e trechos de um valo contínuo,
imediatamente relacionados a morfologia do Caminho do Peabiru. Vamos ouvir um pouco
sobre as histórias do professor Altoé:
O município de Peabiru tem esse nome devido aos entroncamentos dos ramais, um
deles ia a Campo Mourão, Mamborê, Juranda, Campina da Lagoa, Ubiratã. Na época que
participei do recenseamento do IBGE conheci o Peabiru por aqui, mas com a mecanização da
lavoura estes trechos foram destruídos. Os valões, um trecho de 3 ou 4 m de largura com um
capim rasteiro para evitar erosão. Eles tinham uma certa orientação, todos caminhavam para o
Paraguai, hoje infelizmente, se tiver algum resíduo aqui é nas encostas. Existem ainda as teorias
do caminho de São Tomé, mas os kaingang não viviam da exploração agrícola eram nômades,
acabava as frutas e mudavam de lugar, se utilizavam dos caminhos. Pelas teorias, tem as lendas
do Tomé, e não deixa de ter uma certa veracidade. Porque não só aqui na região tem a lenda
como no Paraguai, Mato Grosso e Amazônia, mas não com o mesmo nome, mas com
semelhança da tradição cultural, as historias são as mesmas, mas com outros nomes, aparecem
na Bolívia, no Peru. Se é verdade ou mentira que ele existiu, não há prova, mas tem uma série
de coincidências juntadas, ele não caminhava sobre as águas. Na história do Brasil, ele foi
descoberto por Pedro Álvares, mas bem antes teve um navegador que parou em Fortaleza, mas
não tomou posse da terra. São coisas que deixam uma interrogação no ar. O Peabiru existe sobre
grandes dúvidas. Fala-se até que os primitivos habitantes da terra estiveram por aqui. Tem um
pessoal do Mato Grosso que esteve aqui, em Pitanga, eles percorreram o antigo traçado do
caminho do Peabiru, vieram ver meu material, acho que são professores ou uma equipe de
“aventureiros”. Um bandeirante moderno.
Neste trecho há uma semelhança com o discurso dos outros professores, Pedro
Altoé levanta dúvidas sobre a historiografia, sobre como contamos a história do Brasil.
Quem foi o primeiro a chegar? E quem levou o crédito pela descoberta? Porque a história
oficial nos conta os fatos com tantas certezas?
Existe na fala, duas coisas diferentes do que vimos até então. É o primeiro
informante que fala tão diretamente da lenda do Pai Sumé e também é o primeiro que se
aproxima bastante dos argumentos colocados por Levi-Strauss em seus trabalhos sobre
mitos e em especial na obra História de Lince. O professor fala: “(...) não só aqui na região
tem a lenda como no Paraguai, Mato Grosso e Amazônia, mas não com o mesmo nome,
mas com semelhança da tradição cultural, as historias são as mesmas, mas com outros
nomes, aparecem na Bolívia, no Peru”.
Sobre os grupos indígenas que freqüentam a cidade de Campina da Lagoa falou:
Dez ou dose vezes por ano vem umas famílias kaingang aqui, vendem balaio, 5 ou 6
pessoas. O povo não cria problema com eles, aqui neste particular os índios são bem tratados.
84
As vezes acampam ao lado da igreja onde tem pouco movimento. Acampar é modo de falar,
dormem ali, as crianças brincando, a mulher no fogo, outros saem para vender balaio, as pessoas
vem aqui e dão “marmitecs”, pão. Interessante ir a Nova Cantu, tem restos de redução onde o
Chmyz esteve conosco, foi coletado material, borra de ferro, restos de carvão. Alicerces de
pedra, não tinha nada edificado, mas ali tinha uma construção muito rudimentar, o Igor deve ter
estas fotos, em volta destes restos de construção, duas ou três habitações subterrâneas no
entorno, devia ser uma redução kaingang. Nossos índios não usavam ferro, por isso devia ser
redução. Foi feito escavação, pouca, superficial e em uma delas foi encontrada borra de ferro,
possivelmente resto do forno onde derretia o minério de ferro.
E sobre o caminho do Peabiru:
Os vestígios do peabiru vão para o Mato Grosso e atravessam ao Paraguai, passa por
Naviraí e Porto Casado. As ramificações, Pitanga, Cantu, Campina da Lagoa, Ubiratan, Juranda.
A cidade de Piabiru se chama assim devido ao ramal que vinha de Campo Mourão, direção
Norte - Sul. A cidade de fênix tem esse nome porque os primeiros habitantes formaram um
povoado perto da redução jesuítica. Ao lado, formaram o aglomerado próximo a redução,
nascido das próprias cinzas. Em Cantu, os vestígios estão sendo afetados, a reserva florestal do
Slaviero é fundamental aqui na região pela preservação destes espaços. Um grupo de sem terra
tentou invadir a reserva, e o Slaviero não pensou duas vezes, doou um pedaço pro movimento e
não se incomodou mais eu assinei como testemunha em 1983 ou 84.
Às vezes entra alguém lá pra cavocar pra ver se encontra o ouro dos jesuítas. O lugar
onde está a reserva em Nova Cantu se chama Santo Rei devido a imagens que foram
encontradas na região. Aí este resto de reserva deu o nome de distrito de Nova Cantu de Santo
Rei. As imagens já foram extraviadas, ninguém sabe.
Infelizmente a preservação do passado é difícil de fazer. Teve um cidadão aqui, veio de
fora, se apresentou como pesquisador e tentou comprar meu material arqueológico para vender
em Campo Mourão, para um museu recém montado na cidade. Queria cerâmica, pedra de raio,
que na verdade era a machadinha. Nunca vi pesquisador comprar nada. Quando apareceu aqui a
segunda vez, saiu corrido daqui....
Pedro Altoé coleciona a historia da cidade há quase 50 anos, é um curioso, um
erudito orgânico e um historiador local. As suas lembranças mais antigas foram com
relação ao tempo de duração dos deslocamentos:
Hoje o pessoal reclama das duas horas que precisa para ir a Campo Mourão, eu, na
época levava dois dias no mesmo caminho, se chovia era lama, se não era uma poeira danada.
Aqui não tinha tropa, mas temos as lembranças de uma chacrinha que comprava a criação
pequena de todo mundo e três quatro caminhões saiam daqui por semana para levar a Campo
Mourão. Sempre tivemos ligados a Campo Mourão, aqui era distrito. Campina começou em
1942 com os primeiros colonizadores, colonos brasileiros e não europeus. Pequena comunidade,
passou a ser povoado e distrito administrativo de Campo Mourão, tinha um administrador da
cidade, depois começou nos anos 60 a briga pela criação do município, 4 de novembro de 61 foi
a lei. O nome Campina das Três Lagoas é o nome original da cidade. Era um topônimo, a
campina das três lagoas, mas quando o projeto foi sancionado pelo governador mudaram o
nome para Campina da Lagoa.
O Igor sempre me mandou muito material dele, publicações sobre pesquisas na região.
Ele é um dos principais pesquisadores da área, ou talvez o único. O Igor tem um amontoado de
material, não é propriamente um museu, era no laboratório dele, continua lá, tem algum material
la que é daqui.
85
Na Revista Cadernos da Ilha, 2004, há uma entrevista com Igor Chmyz que inicia
seu depoimento assim:
Meu primeiro contato com vestígios do sistema Caminho de Peabiru aconteceu de
forma imprevista. Em 1970 estávamos desenvolvendo uma pesquisa no oeste do Paraná, no
município de Campina da Lagoa. Um morador de lá Pedro Altoé, entrou em contato com o
CEPA (Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas da UFPR) e informou sobre a existência
de sítios arqueológicos. Falava de buracos de bugre, coisas assim. Então nos dirigimos para
aquela região, fizemos uma vistoria e verificamos que de fato havia muitos sítios arqueológicos.
(...) Havia habitações subterrâneas, aterros funerários e depressões no solo como se fossem
caminhos (...)Verificamos que havia uma relação direta dos sítios com trechos do caminho (...)
nós o acompanhamos por quase 30 Km (...) Curiosamente o caminho não subia elevações. Ele
as contornava. Sempre pelos flancos, era uma caminho lógico que aproveitava os terrenos
menos inclinados (...)Depois fiz trabalhos em outras partes do Brasil e numa determinada área
de Minas Gerais, no Triângulo Mineiro encontramos vestígios de um caminho muito parecido
com o Peabiru. Até vimos trechos preservados dele. Eram os caminhos indígenas usados pelos
bandeirantes que se dirigiam para o Mato Grosso e Goiás da mesma maneira como aconteceu
aqui (
Revista Cadernos da Ilha, 2004).
Grupos Gê e seus deslocamentos ou como trocar uma verdade por outra
Nos trabalho de Luis Galdino o caminho do Peabiru teria sido trilhado por Sumé e
mantido pelos incas durante períodos de expansão. Depois de abandonado teria sido
utilizado pelos grupos guarani que, segundo cronistas dominavam grande parte da região
sul, hoje território brasileiro e paraguaio. Outra autora, Rosana Bond (1998) propõe que
este caminho teria sido construído pelo guarani durante sua expansão que teria chegado nas
fronteiras do império incaico. Tradicionalmente, estes guarani realizariam migrações
religiosas segundo suas concepções cosmológicas na direção do sol nascente, mantendo
assim o caminho conservado.
Porém, o que acabamos de ver com os depoimentos do prof. Chmyz propõe algo
diferente. Em Minas Gerais, os vestígios de caminhos encontrados estavam em áreas de
influência de grupos caiapó, também Ge. E no sul, os caminhos que estes autores atribuem
aos guarani seriam obras de grupos ge, ancestrais dos atuais Kaingang e Xókleng
conhecidos também como cabeludos, campeiro ou guaianá. Grupos com influencia no
Planalto Central que migram ao sul e passam a ocupar grande parte do cone sudeste
brasileiro. Na arqueologia estes grupos são conhecidos como Tradição Itararé (PRONAPA,
86
1969), populações ceramistas que habitavam no que hoje compreende o Paraguai e os
estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo.
A Tradição Itararé vem sendo subdividida em cinco Fases: Açungui, Cantu, Casa de
Pedra, Candói e Catanduva. As Fases Açungui e Cantu apresentam na grande maioria das
vezes vestígios de habitações subterrâneas, depressões usadas como habitação em épocas
frias, e sua datação oscila entre 2000 e 1000 anos antes do presente. Eram populações
nômades e confeccionavam utensílios cerâmicos de pequenas dimensões em forma de potes
e jarros cilíndricos, em alguns casos decorados com pintura vermelha, em outros, por meio
da impressão da polpa dos dedos. Quanto às peças líticas, esta tradição apresenta: artefatos
como “quebrador de coquinhos”, lâminas de machado polidas, além de peças não muito
elaboradas, lascas e fragmentos.
Outra consideração a ser levada em conta aqui é o deslocamento destas populações.
Possivelmente, os sítios eram utilizados apenas como acampamento pela cultura Itararé.
Semi-nômades, não permaneciam por muito tempo no mesmo local; a cerâmica é de
pequenas dimensões para ser carregada sem esforço o que sugere intensa locomoção. A
presença de caminhos entre os acampamentos destas populações foi constatado na região
do rio Piquiri (CHMYZ & SAUNER 1969), exatamente a região de Campina da Lagoa,
Mamborê e Juranda.
Em um trabalho monográfico estudando uma habitação subterrânea, foi constatada
além da presença de um caminho próximo, outros sítios menores espalhados em um raio de
até cinco quilômetros do sítio principal. Estes outros locais seriam como áreas de influência
e serviriam como oficinas para obtenção de recursos específicos. Quanto à distribuição
geográfica regional da Tradição Itararé e suas fases, em geral, acompanha os vales de
grandes rios. Encontram-se vestígios do grupo em toda a extensão do rio Iguaçu, no Vale
do rio Piquiri e também no vale do rio Ribeira do Iguape em sua porção alta (BORGES,
2000).
Desta maneira temos mais uma explicação sobre o mesmo fato. O Caminho do
Peabiru que até agora teria servido a espanhóis, jesuítas, bandeirantes, teria sido construído
inicialmente ora pelos incas, ora pelos guarani e agora pelos ancestrais dos Kaingang.
Teríamos nesta situação, na pior das hipóteses, que aceitar explicações que desaguariam em
87
múltiplas verdades, mas não qualquer verdade, mas legitimadas e possibilitadas pelos
diversos contextos.
Casa da Memória e Secretaria da Cultura
Logo no primeiro dia de conversas com o prof. Pedro Altoé, ele me levou até a
Secretaria Municipal de Turismo e me apresentou para a secretária e demais funcionários.
Com estes tive um intenso contato enquanto fiquei na cidade e sem perceber começou a
tomar forma uma espécie de disputa pela minha atenção. Organizaram um passeio, queriam
me mostrar os pioneiros, queriam minha participação na constituição de uma Casa da
Memória e idéias para a constituição de um museu.
Com o passar do tempo percebi nitidamente dois grupos políticos nesta cidade por
dois motivos. Primeiramente por uma entrevista com Doca Pianaro, avô da Secretária de
Turismo que me foi indicado pelo grupo da Secretaria como um dos mais antigos da cidade.
Algum tempo depois conheci um geógrafo, Murilo, pertencente ao outro grupo e que me
apresentou Conceição Pereira, também um dos primeiros pioneiros.
Neste momento lembrei-me ainda de Barra Velha quando fazia perguntas cruzadas
para dois informantes opostos. Em geral, se os dois informantes se conheciam, tendiam a
falar coisas diferentes não sendo em poucos casos onde houve trocas de acusações entre
ambos. Assim, também percebi que estava transitando entre dois grandes grupos, e que
ambos disputavam a atenção do pesquisador da universidade
37
.
Doca – pioneiro, caçador e Juiz de Paz
Este informante me foi apresentado por ser avô da secretária municipal e teve todas
as suas falas gravadas de maneira bastante formal. Inicialmente perguntas abertas
progressivamente buscavam o passado da região e as representações sobre o indígena e os
37
Não esqueçamos das discussões feitas no início sobre as considerações contidas em Fieldwork in Marroco,
de Paul Rabinow (1977). Em Campina da Lagoa, cada informante me levou ao interior do seu grupo o que
evidenciou dois grupos em oposição.
88
caminhos. O informante tem 79 anos e chegou em Campina da Lagoa em 1951, fazendo
frete de caminhão. Disse que pegou um frete enganado:
Tinha um cara que morava aqui e pediu um frete, ia abrir um boteco e pegou o
caminhão pra trazer telha, feijão. Fizemo a estrada em 6 dia, abrindo picadão. Eu sou de Irati e
depois deste frete, falei com meu irmão e viemo pra cá.
A gente fez uma mangueira para porco e fizemo criação, mas já tinha uma empreitera
de Mamborê e um monte de peão que abria posse. Já tinha umas oito família que moravam aqui
quando eu vim. A primeira festa que fizemo tinha só 80 pessoas. Fui até Campo Mourão
comprar bebida pra festa. No lugar da festa eu fiz uma casa pra mim, colocamo um comércio e
fazia sorvete. Compramo a sorveteria no meio do mato, do Mambore até aqui é uma escuridão,
mas a sorveteria tinha motor e por aqui tinha luz. Tinha uma campina por aqui, como uma
clareira, uma capoeira com floresta envolta, por isso o nome da cidade.
Depois deixamo o bar e fomo plantar café. derrubamo mato, ia plantar café e as mulher
iam cuidar do bar, e ai fomo pelejando. O bar era bem em cima das tartaruga do cruzamento
entre as duas avenida. Em 1952 construí a casa, e quiseram me embargar, mas não tinha rua
nem nada, e se passar uma rua eu taco fogo, era casa de madeira. Quando tivemo que muda, nós
amarramo e arrastamo. Uma vez com o bar funcionando, sem desmontar, fazia uns pinherinho
redondo, erguia no macaco e puxava com o caminhão, mudemo duas veiz. Daí foi
desmanchado. A casa era de madeira, dois andar, minha mulher era professora, a cada 2 meses
tinha que ir em reunião em Campo Mourão. Quando separo de Campo Mourão eu fui o 1
o
Juiz
de Paz. Não dava briga, era só de bêbado, não tinha briga de terra.
Lá em Pitanga é violento, lá é famoso. Quando abrimo a campina, apareceu a Sinop
(empresa colonizadora), lá pra Ubiratã ainda não tavam abrindo, mas tinha um paulistão grosso
que tinha uns jagunço que matavam quem entrava na área deles, matavam e jogavam no rio
Tricolor, mas aqui não morria muita gente não.
Sobre os índios, que nitidamente confundem-se com os paraguaios e estes que
também nitidamente nesta localidade confundem-se com os responsáveis pelo caminho o
informante relata nunca ter visto ninguém, só vestígios e uma explicação “O povo conta
que tinha!”. Observe:
Isso aqui já foi habitado pelos índio e pelos paraguaio a muitos anos atrás. Quando eu
vim já não tinha mais ninguém. Eles faziam casa de barroca, tirava barro da lagoa e fazia casa,
isso era os paraguaio que faziam. Tinha a roça deles. Campo Mourão, Campina e Foz do Iguaçu.
O avô do Noronha achou um acampamento grande dos índios, tinha uns pesinho de erva mate.
Entre Campo Mourão e Pitanga também tiveram os paraguaio, moringa, pote dos índios eu
achei muito por aqui. Mas nunca vi índio aqui, ali em Guaraniaçu tem índio.
Uma fazenda aqui perto tinha a estrada dos Paraguaio, tem um lugar que ainda dá pra
enxergar, passando do rio Tricolor pro Piquiri, no porto Nair. Atravessa o Piquiri para foz do
Iguaçu. É o mesmo caminho do peabiru. Qué vê, o finado Carula veio a campina pelo caminho
velho dos paraguaio, era tudo mato né, ele pegou um índio que conhecia aqui, mato fechado,
vinham cutucando com facão pra ver onde era mais duro pra seguir, demorou 4 dias. Até
Mambore dava pra fazer, as vez perdia o rumo, mas tinha vestígio do caminho. Ficaram mais de
um dia em cima duma árvore pra achar o trilho de novo, aí perceberam que a lagoa era perto por
causa das garças, elas voaram e viram, é lá.
Sempre tiveram as três lagoas, no inverno quase secava. Uma delas a prefeitura secou e
fez um bairro em cima. Tinumbla em português é lagoa e a água das lagoas cai no rio Azul e de
lá pro Piquiri.
89
O informante falou coisas interessantes sobre a impossibilidade de tratamentos
médicos no tempo do pioneirismo e disse não conhecer remédios ou qualquer planta útil
naqueles matos justificando ser nascido em Campo Largo. Contou ainda sobre a sua
perspectiva de mestiçagem e sobre as visagens:
Sou italiano com alemão, minha mulher era polonesa. Tenho filho que casou com
índio, português, tenho 6 bisneto, tem um neto que casou com japonês e agora minha filha vai
casar; tem 6 ou 7 sangue diferente na família. É difícil, pois italiano puro nem o diabo gosta.
O primeiro campinense legitimo é meu, outros nasceram mas não foram registrados aqui.
Um tal de goiano contava de visagem aqui, mas eu nunca vi, não acredito. Na lagoa ele
viu uma visage, era velho, e bebia. Chegou num bar e disse que tinha visto um troço na lagoa.
Era um homem gigante, do tamanho de uma árvore, que teria passado na frente dele, em dois
passos atravessou a lagoa e cada passo dava uns 20 metros.
E sobre a história da região citou além de uma fonte escrita desconhecida, vestígios
concretos observados em campo, durante suas caçadas:
Um livro que falava dum lugar a 20 ou 22 Km do encontro do Piquiri com o Cantu,
este lugar é aqui. Aqui é Campina Vitorina que chama na verdade, não tem outra campina por
aqui e eu sei disso porque um amigo meu tinha um livro. Eu tinha uns 9 ou 10 anos, ele falou
que era do bisavo dele, o nome dele era Jose Almeida qualquer coisa. Era sapateiro de Ponta
Grossa e tinha esse livro grosso, um livro bem escrito com letras grandes, e dizia que era dos
jesuítas...
Quanto ao elemento indígena na época do pioneirismo disse desconhecer, não havia
ninguém morando na campina. Sempre que perguntas relacionadas aos indígenas eram
feitas o informante direcionava o assunto para a caça ou para as missões jesuíticas
antigamente existentes na região. Observe:
Eu conheci dois índio, um me contou uma história de um cabedar
38
de ouro enterrado
perto de Guarapuava, dizem que precisava de 60 mula pra carregá o cabedar. E um outro
perto
de Ponta Grossa que foi um outro que me contou. Ele era curador em Ponta Grossa. Eu era
menino, minha mãe levava a gente.
O encontro entre o Piquiri e o Cantu tem umas coisas lá, tem uns pinheiro grande, quem
plantou? Aqui não tem pinheiro. Uns 500 metro pra cima tinha uns bananal.
Os jesuítas passaram por aqui, na beira do Piquiri tinha uma fazenda com 4000 mil telha
empilhada na beira do rio, era dos jesuítas, quem foi que fez isso? Tinha um carrero de limão até
a beira do rio, uns 200 metros, laranja brava é nativa, tem demais, mas limão não. E os pinheiro?
lá em Irati, minha terra, Gralha Azul é praga, e aqui eu nunca vi uma Gralha Azul.
38
Cabedar seria a corruptela de cabedal, que corresponde a um conjunto de bens que formam o patrimônio de
alguém. No dicionário Aurélio consta também como estimativa que se faz de coisas e pessoas.
90
Conceição Pereira e o livro de 1920
Como falamos no início, Rabinow contextualiza seu gradual aprofundamento nas
redes de informação numa Medina marroquina. Neste caso, ao escolher um informante que
nos leve a outro e a outro e depois a outro, teoricamente, a rede produzida estará inserida
em um grupo direcionado pelo primeiro informante. Em Campina da Lagoa, estes dois
pioneiros, Doca e Pereira, compõem grupos distintos, politicamente opostos e que
praticamente revezam os cargos de administração pública da cidade.
Depois de conhecer a Secretaria da Cultura, um dos funcionários apresentou-me a
outro informante, desta vez um geógrafo que desenvolveu trabalhos sobre a história e sobre
as condições das bacias hidrográficas da região. Foi este informante que me levou a
Conceição Pereira, também pioneiro, mas de outro grupo.
As primeiras conversas com os Pereira também aconteceram de maneira bastante
formal. Marcamos uma hora, no fim da tarde, para tomar mate e realizar a entrevista,
confira alguns trechos:
Cheguei na Campina em 1943. Primeiro meus parentes vieram, em 1941. De 42 para 43
fizeram a roça e como estavam sozinhos, trouxeram outros. Mexia com porco. Em 43 fizemo a
primeira viagem, trouxemo um carroção com cavalo e os petrecho. Gastava 3 dias neste
cargueiro até Campo Mourão. E ficamo por aí, mexendo com porco. Aí em 47 eu me casei, faz
58 anos que estou casado. Minha mulher tem o mesmo nome que eu. O pai dela era primo irmão
do meu pai.
Tinha uma conversa que tinha uma campina a mais do que essa. Um home veio pra
procurar a dita campina. Chegava por aqui com os cargueiro, a estrada velha. Carula, Nanias,
eu. Foi em setembro de 47, não to certo do dia. Nós varamo o rio e atravessamo pra chegar na
campina. Eu acho que não existia outra, era esta mesmo a única campina. E eu to aqui desde
aquele tempo.
Nunca tive comércio, sempre trabalhei na roça. Em 1953 o Doca chegou aqui, já tinha
umas casas, mas não tinha ponte. Era tudo mato, muita pedra. Era muito difícil. Tinha no mato
uns sinar de um caminho. Uma tropa caminhando um atrás do outro vai fazendo um sinal, fica
um valo. O sinal era aqui na estrada velha, e tinha um acampamento grande. Passava por ali,
sempre tinha uns pote quebrado, o pessoal dizia que era de ouro.
Caçava muito, eu e meu irmão matamo a primeira onça da campina. A carne é boa pra
comer, tem uma carne macia, um bicho que só come carne fresca, então tem que fazer o charque
e fica muito boa.
Daqui até Mamborê fazia em um dia a cavalo. Ia pelas estrada e caia uns galho com
mel e a gente catava pra comer. Aqui não tinha bugre, eles já tinham afastado. Na Pitanga foi
feio, foi antes de 40. Mataram os índios dentro da igreja. Meu pai contava, eu lembro. Naquela
época nós morava em Campo Mourão, aqui não era aberto. Tinha muito sertão no Paraná, não
tinha o norte, era tudo mato. Conheci a cidade em Guarapuava, gastava 20, 28 dias de viagem
pra ir até lá. Aqui , na Campina ninguém criava porco, mas em Mamborê sim, trazia as tropa de
porco. Eles andam em fila né.
Tinha um monjolo pra descascar arroz e um dia, de noite, escutamo uns barulho no
mato, tipo um rugido e foi se aproximando sabe. No monjolo, meu pai guardava uns dois saco
de arroz descascado. De manhã, quando fomo vê, tava tudo no chão. Deve ter sido uns índio. No
outro dia, tinha umas cestas espalhadas e aí meu tio disse, vamo pega. Na outra noite ele
91
espalhou cinza no chão pra marca as pegada. Você acredita que eles subiram por cima da bica
d´agua pra pega o arroz e não fica marcado. Entravam e não pisavam. Arrebentaram uma cerca.
Meu tio tava sozinho e quando amanheceu tava aquele monte de casca de lima espalhada em
montinhos. Aí, trouxemo um cachorro, e meu tio disse que não ficava sozinho no monjolo
nunca mais. Mas nois sabia que eram os índio que tavam fazendo aquilo.
Fiz 81 anos em março. Sou parente dos Batista lá da Pitanga. Lá tem o rio Batista, esse
nome é dos parente. Meu pai era nascido em Santa Cruz do Rio Pardo. Na época dele, lá
também não tinha nada. Os pionero de Campo Mourão eram meus tio. Tem uma Avenida
Irmãos Pereira. Eram nove irmãos. Uns vieram pra cá, outros foram pra Campo Mourão.
Vieram de Castro, Ponta Grossa, Guarapuava, Pitanga. Vieram procurando Campo Mourão. Lá
é um campo, não tem floresta. Tinha outro campo, o Campo Bandeira, lá tinha índio, um deles
que tinha o nome Bandeira e ficou. Também têm uma campina.
Aqui tinha três Lagoas, mas um dos prefeitos mandou seca tudo. Numa delas tinha um
botinho dos paraguaio. Quando nóis viemo, fazia 20 anos que os Paraguaio tinham ido embora.
Usavam um barco, tava podre, mas dava pra vê bem. Um tronco cavado, como uma canoa que
diziam. Feito na madeira, como um cocho.
Perguntei então se paraguaios e índios não eram a mesma coisa e a resposta do Sr.
Conceição foi: “Os paraguaio não são os índios, são diferente”. E em seguida, falou: “O
paraguaio e o bugre tem a mesma aparência”.
Nesta entrevista não estávamos sozinhos, acompanhavam-nos a esposa de
Conceição Pereira, com o mesmo nome que ele e sua filha, professora da rede municipal de
ensino. O trecho a seguir é de Dona Conceição:
Tinha um outro negócio. Um toco de Tarumâ, madeira forte, não apodrece. Fazia 20
anos que já tava lá e até dois anos atrás ainda tava lá. No toco tinha sinar de que foi tirado mel,
era cortado no machado.
Continuando, Conceição Pereira (o marido) falou:
Minha filha é professora, a gente lê bastante, jornal leio bastante, escreve um pouco. Eu
tinha sete anos quando estudei pela ultima vez, sempre fui comprando livro de história, gosto e
fui lendo. Não adquiri riqueza, mas nunca faltou nada, não adquirimo fazenda, mas num
pedacinho de terra e conseguimo criar os filho. Os filho também não estudaram muito, os mais
novo já se pegaram mais no estudo, ficou mais fácil, estrada.
Esse livro eu estudei nele. Eu tinha 7 anos. A professora passava um livro de um aluno
pro outro. Meu irmão usou, a professora passou este livro e eu peguei, minha irmã estudou aqui,
e ta com 96 anos. Ela marcou no livro o dia que ela saiu da aula. 12 de junho de 1920.
Luis Pereira 1932. Tem até a letra dela. Cada um que estudou deixava o nome...
Ele tem história e memória
Era difícil, a escola não era como é hoje, não tinha médico, tinha uma benzedeira que
curou muita gente, picada de cobra.
E Dona Conceição completa:
Eu que consertava quando alguém quebrava o braço. Mas hoje, é uma pena, os jovens
não respeitam os velhos. Acham que a gente mente.
92
Sobre os dois últimos trechos vale a pena comentar duas coisas, primeiro a
perspectiva de memória e de história, em seguida o conceito de mentira para estes
informantes. O livro que estávamos observando era velho, páginas amareladas e soltas.
Um livro de história do Brasil que tinha Emílio Goeldi como um dos editores. Era um
livro de história, portanto, para o Sr. Conceição, ter história era um tanto óbvio, mas ter
memória apenas porque havia algumas poucas palavras (nomes e datas dos usuários)
escritas a lápis se tornou bastante significativo.
Já comentamos antes sobre a perspectiva historiográfica que coloca em oposição
a história e a memória, uma ligada a escrita, vista quase como eterna, e outra, a
memória ligada a oralidade e a narrativa, que faria um contraponto também à história
oficial. No caso do livro da família Conceição, a história é remetida ao escrito, ao
impresso e a memória a anotações anexas que identificam seu dono com uma
comunidade de afeto como chamaria Halbwachs (1950). O livro os fez lembrar de
outras épocas, da família, da irmã, tem memória portanto na medida em que estava
significativamente disponível nas lembranças dos informantes.
Continuando a conversa, mas já aparentando um certo cansaço, o Sr. Conceição
fala de fatos marcantes:
Tudo passou, e hoje tamo na cidade, graças a Deus. Não falta amizade.
Morava num rancho, lá no meu terreno eu já fiz quatro casas. Não tinha nem serraria.
Daí uns quatro cinco anos começou a cerraria. Tocada no motor. Aí, veio outra serraria, mas já
tinha estrada. Aí comprei uma carroça. Em 60, virou município. Quando foi em 70....
Precisava de uma autorização pra ocupar a campina, pra cortar mato, tudo. A gente tirava o
registro, mas nunca vinham fiscalizar.
Aqui teve problema com posse, as companhias, a SINOP. Na Pitanga é feio, vem gente
e vende três vezes a mesma terra. Tem ainda a estrada velha. Ela foi usada muito durante a
Guerra do Paraguai, passava carga, tropa.
E sua esposa, dona Conceição mais uma vez se pronuncia sobre uma praga, fato
marcante para ela e sobre as visagens. Perceba o leitor, o alto teor moral presente nas
descrições das mulheres. O fato das coisas sumirem ou não existirem, está diretamente
relacionado com comportamentos específicos, o não cumprimento das regras implicaria
então numa punição. Observe:
93
Quando começou a vir mais gente pra cá. Muita gente abria posse e entrava nos mato,
sabe. Daí os macaco começaram a morrer tudo e alguns pegaram, ficava com febre, dias. Foi em
1951, morreu muita gente, não sobrou nenhum macaco. Dias, quantas vezes vi passando gente
quase morta. A gente acha que era febre amarela. Mas falam em paratifo, os dente ficam tudo
pretinho.
Tinha umas visagem também. As vezes vinha um cheiro de gasolina sabe. E não tinha
nada lá fora, nem carro tinha. Uma vez, a noite, começou uns barulho de tábua batendo,
empilhando tábua. De manhã fomo vê, não tinha nada.
Sabe como é pra sapecar erva? Minha mãe tava esquentando erva e dando uns saco pra
nóis levar e a gente ia empilhando, quando fomo vê, não tinha mais nada.
A mãe do meu primo foi pra minas pra tentar tirar um encosto, ele dizia que sempre
tinha alguma coisa seguindo ele, as vezes entrava correndo em casa dizendo que tavam atrás
dele. Quando ia olha, não tinha nada.
Falando sobre a mesma coisa, a filha do casal tenta explicar melhor a história:
Dizem também que teve um cara que encontrou uma panela de ouro e daí ele sumiu.
Minha irmã contava esta história. É da noiva, minha irmã contava que em sonho aparecia uma
noiva, diversas vezes. Um dia a noiva disse um lugar pra ela, uma pedra, era pra ela ir lá que
tinha uma panela de dinheiro. Diz que não era das grandes, era das médias, sabe. A noiva disse
pra ela também não ser gananciosa, que ela dizia o lugar, mas o dinheiro tinha que ser dividido
com os pobres. Aí a moça foi no lugar e pegou a panela, diz que só a panela era a coisa mais
linda e foi saindo. No caminho encontrou um pobre que pediu pra ela dar um pouco pra ele.
Como disse não, a panela que tava embaixo do braço dela, sumiu.
Lá no Caratuva encontraram outra dessa, todas nessa linha da estrada velha que vai no
sentido de Mamborê.
Com toda esta conversa, a hora já estava avançada para os horários rurais, já
passava das dez horas da noite. De repente chega um sobrinho do Sr. Conceição. Eu já o
tinha visto em dias anteriores pois estava hospedado no mesmo hotel. Imediatamente nos
reconhecemos e depois de explicar a ele um pouco sobre o meu trabalho ele contou sobre a
pedra de raio:
Outra história é da pedra de raio. Sempre nos pinheiro. Ela cai e vem torneando o
pinheiro e para no pé dele. Uma forma meio cônica, acho que ela vai desgastando quando cai.
Eu já vi uma pedra dessa no alto de um pinheiro. Ela é polida.
Aqui derrubava pinheiro pra tirar uma caixa de abelha. Tinha muito. Onça, comia muita
onça, e vendia o couro. Se deixar onça solta, é perigoso até pras criança. Igual a sucuri, mataram
uma, lá no Mato Grosso, e tinha um cara dentro. Eu vi as fotos, tem umas três.
Por fim, continuando o assunto dos animais da região, Dona Conceição falou sobre
um “sapo alucinógeno”:
Tinha um sapo por aqui, que a pessoa que tocasse nele ficava tonta, parecia bêbada
sabe. Eu vi vários assim, vi até criança, ficava com a cara vermelha e tontinha, tontinha.
94
Logo em seguida terminamos a entrevista e eles me convidaram para voltar a casa
deles no dia seguinte. Disseram ter colhido três sacos de milho verde para fazer pamonha,
mas precisavam de ajuda, tinham que fazer um mutirão, ralar e cozinhar todo o milho.
No dia seguinte as nove da manhã já estávamos descascando milho, almocei com
eles e fomos comer a pamonha lá pelas quatro da tarde. Durante o processo conversamos
muito, perguntei sobre os grupos políticos da cidade, para ter certeza do que disse acima.
Entramos em assuntos sobre educação, o cotidiano rural e outros que interessam apenas por
um enriquecimento pessoal.
Minhoca e a teoria / pratica novamente
Um sábio contrata um canoeiro para atravessar um rio. No rio, o sábio tentando
puxar conversa pergunta ao canoeiro se ele conhecia astronomia e o movimento dos astros. Não
senhor, responde o canoeiro. Então você perdeu metade da sua vida, indaga o sábio.
Em uma nova tentativa, o sábio pergunta se o canoeiro conhecia as leis da física e da
química. Não senhor, responde o canoeiro. Então você perdeu metade da sua vida, fala o sábio.
Então como uma última tentativa o sábio pergunta se o canoeiro conhecia as leis dos homens e
das sociedades. Não senhor, responde o canoeiro. Então você perdeu metade da sua vida, indaga
o sábio.
De repente o canoeiro pergunta ao sábio se ele sabia nadar. Não, responde o sábio.
Então o senhor perdeu a sua vida inteira porque a canoa furou, arremata o simplório canoeiro.
Esta anedota me foi contada por um informante. O Minhoca, como é conhecido,
administra uma padaria, referência na cidade por ser excelente e por ser a mais antiga. O
forno a lenha foi construído em 1950 e nunca precisou de reparos. Um dos hábitos prediletos
deste informante é sentar num balcão de bar defronte a sua casa para conversar com pessoas e
foi assim que nos conhecemos.
O que parece uma tensão entre dois tipos de conhecimento diferenciados seria uma
manipulação diferenciada deste conhecimento e foi constantemente remarcado em suas
fronteiras. Apareceu em Pitanga durante aquela conversa sobre como cortar um cedro com a
motoserra, apareceu também no projeto original onde metodologicamente enfocaríamos dois
grupos de informantes, os letrados e os não letrados. Esta relação diferenciada com o
conhecimento exposta, por exemplo, em grupos de leitores e de não leitores faria mais
sentido se formulada como uma diferença da oralidade de eruditos orgânicos ou sábios locais
95
e a oralidade popular, como já dissemos. Em muitas situações esta divisão mostrou-se
totalmente artificial, porém, em outras, foi reiterada pelos próprios informantes
39
.
Assis Chatoubriant/ Palotina/ Guaíra
Assis Chatoubriant, Palotina e Guaíra são cidades que fizeram parte do meu
caminho apenas como passagem. Em Assis Chatoubriant pude apenas perceber, da janela
do ônibus, as mangueiras usadas na arborização da cidade, carregadas de frutos. Desde
Campina da Lagoa até Salto del Guairá no Paraguai, a ocupação do espaço é semelhante.
Nas margens das estradas só existe terra mecanizada e plantio de soja, nas cidades ou
aglomerações humanas as árvores se concentram em um número absurdo. A arborização
das cidades do interior do Paraná é riquíssima, com variedade de espécies segundo danos,
frutos e funções. Em relatos que obtive em Palotina, as mangueiras no verão dão muitos
frutos que não são consumidos e a cidade fica com um cheiro desagradável devido a
fermentação das mangas que se desprendem das árvores.
Em Palotina conheci ainda o Campus de Medicina Veterinária da Universidade
Federal do Paraná e obtive algumas descrições minuciosas sobre o mundo rural da região.
O machismo, a violência e as piadas de sexo caminhando sempre em paralelo. “Alguém,
por acaso, já viu uma mulher dirigindo trator?” me perguntou um dos informantes.
Também percebi que as elites controlam moralmente esta relação entre o machismo,
violência e sexo, apresentando estes elementos de forma sutil, assim, as elites rurais contam
outros tipos de piada.
Em Guaíra fiquei por alguns dias, a cidade fica nas margens do rio Paraná, que faz a
divisa com o Paraguai. Cidade de fronteira, perigosa, me avisaram para não sair a noite com
dinheiro. Nas caminhadas conheci dois lugares interessantes onde obtive algumas
informações. Um deles, um porto no rio, Associação Beira Rio, local muito freqüentado por
automóveis e barcos que vinham do Paraguai! Um segundo local, próximo a este foi o
Museu Histórico Municipal onde obtive informantes e como eles contam a história de
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Para uma discussão mais aprofundada com relação a esta tensão entre a teoria e a prática ver Levi-Strauss
em O Pensamento Selvagem, capítulo 1, A Ciência do Concreto, onde o autor expõe que as classificações são
formuladas a partir de dados sensíveis, dados concretos.
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Guaíra. A cerca de 16 Km rio Paraná acima ficam as ruínas de Ciudad Real del Guairá,
fundada por Rui Diaz Melgarejo e abandonada devido aos ataques dos bandeirantes. A
região ficou abandonada até 1900 quando a Companhia de Erva Mate Laranjeiras começou
a construir um império com a exportação da planta. A cidade se constituiu neste momento.
Cassinos, hotéis, trens e até aeroporto foram construídos pela empresa. As redes
ferroviárias e hidrográficas se estendiam ao sul até Buenos Aires e ao norte até Itu, via rio
Tietê.
Em conversas com funcionários do Museu Histórico Municipal percebi uma outra
possibilidade de caminho. Quando perguntei sobre o caminho do Peabiru, se conheciam, se
sabiam algo sobre, a resposta foi surpreendente. Desconversaram, não responderam por um
momento e rebateram com outra pergunta: “Ah!, mas você conhece o Caminho das Águas?
É muito mais legal. Um barco navega pelo lago de Itaipu visitando vários lugares”.
Estaríamos assim, diante de mais um caminho possível. Porém, um caminho das águas
seria possível apenas nas margens de um grande lago como o de Itaipu, o que justificaria
esta possibilidade.
Depois começaram a me mostrar e explicar uma fotografia ampliada das Sete
Quedas onde aparecia uma “imagem” de Jesus Cristo. A personificação do Cristo nas Sete
Quedas, como me explicaria um outro funcionário, “seria uma bênção para os visitantes!”,
me disse ele. E em seguida comenta: “Em cinco anos que estou aqui, apenas uma pessoa
conseguiu ver a imagem”!
Sobre esta imagem de Jesus Cristo que apenas uma pessoa conseguiu ver é
necessário identifica-la como uma interpretação isolada, substancialmente diferente
daquelas memórias que nos remeteram ao tropeirismo páginas atrás. Quem nunca olhou
para nuvens e observou semelhanças com imagens reconhecíveis. Um cavalo, uma girafa,
um velho barbudo fumando cachimbo... Caso um grego olhasse para o céu, veria as
mesmas imagens? As constelações estrelares, astros como o sol e a lua apresentam lugares
específicos em cosmologias nativas e são interpretados por cada grupo de maneira mais ou
menos homogênea. O astro é o mesmo, mas as possibilidades de interpretação variam para
um Inca, para um Kaingang e para um cientista. A individualidade de uma interpretação
também não seria completamente livre e aconteceria na medida das possibilidades do
contexto. Assim, as imagens possíveis devem estar conectadas ao contexto histórico de um
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grupo e as significações relevantes para cada indivíduo seriam aquelas diferentemente
rememoradas. Em outras palavras, indivíduos diferentes teriam memórias diferentes, mas
as possibilidades de interpretação de qualquer memória seriam mais ou menos limitadas.
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Parte V – Paraguai, mundo guarani?
Relações de fronteira
o dia que decidi partir ao Paraguai era o quinto dia útil do mês de junho, saquei
uma boa parte da bolsa e fui pegar um ônibus que atravessaria o rio Paraná em uma balsa.
Eu estava apavorado. Parecia que todas as pessoas da cidade ficam esperando um momento
propício para se aproveitar, tirar vantagem. Um troco errado, a cobrança de um preço
diferente daquele escrito na vitrine, etc...
O rio Paraná com o seu gigantismo separa dois mundos. Do outro lado as pessoas
eram bastante diferentes. A cidade de Salto del Guairá é simples. Tudo no Paraguai é mais
simples. Uma cadeira e uma guampa
40
de mate parecem suficientes. Diferente do estilo de
vida paraguaia, os brasileiros invadiram estas regiões de fronteira impondo seus hábitos. A
cidade de Salto tem uma rua central com comércio de eletroeletrônico e as conhecidas
quinquilharias paraguaias de todo tipo que atraem consumidores brasileiros. Os donos e
funcionários de algumas lojas, paraguaios em geral, passam o dia em frente ao seu
estabelecimento sentados em cadeiras características (armação de metal com tiras de
plástico colorido) com suas guampa de mate. Ao lado, um isopor com água gelada e suco
de limão. Ao chegar clientes na loja, levantam-se, com a guampa na mão e realizam assim
o atendimento.
Depois de dormir uma noite na cidade de Salto del Guairá fui para a cidade de La
Paloma del Espírito Santo. Como não conhecia o caminho pedi para que o motorista me
avisasse da chegada. O ônibus tomou um rumo oeste durante duas horas. A paisagem era a
mesma, terra roxa mecanizada.
Umas três horas depois, o motorista me avisa da chegada. Quando desci do ônibus,
parecia que tinha chegado ao nada. A cidade era a estrada, nas suas margens estendia-se por
cerca de quinhentos metros uma concentração de casas. Rumei a um hotel e fui andar pela
cidade. Durante dois dias fiquei em La Paloma e funcionou como uma escala de
40
Guampa é uma espécie de copo para tomar mate feito de chifre de boi. O mate é chamado de terere, te ou
mate, no Paraguai, e bebe-se gelado, não quente, como os gaúchos do sul o fazem.
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aclimatação e adaptação. Não tomar café, apenas mate, comer pão com funcho, a língua
castelhana e guarani.
Num dos passeios encontrei um motorista de táxi para saber sobre a região e sobre
populações indígenas. Falou-me de uma tribo guarani a cerca de trinta quilômetros de
distância e sobre o modo como os paraguaios tratam os índios:
No Paraguai as pessoas são civilizadas, sabem tratar bem os índios. No Brasil, o índio é
igual animal. No Paraguai se matar um índio cometerá dois crimes. Para homicídio a pena é de
15 anos, se for índio a vítima, o culpado fica 30 anos preso.
Neste dia, no final da tarde, quando retornava ao hotel percebi assobios, um surto
coletivo de assobios, como códigos. Era por volta de seis da tarde e depois disso, as pessoas
começaram a fechar as lojas, pegar bicicletas. O mesmo ocorreu em Salto del Guairá, mas
no momento, me pareceu insignificante.
Gostaria de chamar a tenção do leitor para este tipo de descrição apresentada.
Aparentemente sem nenhuma relevância, mostra uma inabilidade do pesquisador e também
sua transformação. Dados como estes do assobio, dos hábitos alimentares, dos apelidos,
metáforas e piadas dão volume ao trabalho e ajudam a compor um quadro de diferenças
significativas. Como falamos, o deslocamento é o valor e o contraste entre os pontos de
parada aconteceram na medida deste deslocamento.
Com outro informante, Bernardo, tive a informação de que no Brasil os índios
seriam mais inteligentes porque sabiam construir casas. No Paraguai os índios moravam em
casas de lona preta. Ao perguntar a ele sobre a língua guarani
41
e sua relação com
indígenas, a resposta foi que não existia esta relação. A língua guarani falada no Paraguai
não teria, para este informante, nenhuma relação com a indianidade. Uma identidade do
povo paraguaio que não remete a construções baseadas em nenhum passado indígena da
região, nem com a diáspora dos guarani do território brasileiro.
No hotel, durante as refeições, conseguia informações também. Sobre a legalidade
no Paraguai, um dos hóspedes que estava com sua casa em reforma, disse ter escolhido o
Paraguai porque ali não se paga imposto. Também não existe qualquer tipo de
41
A língua guarani todos aprendem na escola e falam o mesclado, mistura de castelhano com o guarani.
100
infraestrutura dada pelo governo. Assim, a medicina convencional fica ausente e as pessoas
passaram a constituir um conhecimento baseado em fitoterápicos, rezadeira e benzedeiras.
Em La Paloma comprei um dicionário guarani/espanhol e um mapa do Paraguai.
Assim, escolhi Kuruguaty como destino, uma cidade grande como me informaram. O
ônibus passou por Puente Kihjá e Katuetê, também cidades de beira de estrada. De repente
uma serra, pequena, uns 200 metros de desnível. A cor do solo já não era a mesma,
apareciam cupinzeiros, os cultivos além de não ser monoculturas extensivas eram menores
e separados em sítios familiares. A repetição de um padrão de habitação, três casas
geminadas com cerca de 10 metros quadrados cada uma e cobertas com palha apareciam
em espaços regulares de 500 metros. Em muitas destas propriedades observei também emas
em cativeiro e cavalos diferentes daqueles que via em Pitanga. Um cavalo esguio, forte e
negro.
Esta Serra denomina-se Cordilheira de Mbaracayú e vem sendo constantemente
citada em publicações sobre o Peabiru. Ela separa as bacias hidrográficas de dois grandes
rios da região, o Paraná e o Paraguai estendendo-se até as bordas do Pantanal
Matogrossense e também delimitando a transição para o Chaco paraguaio
42
. Estava
caminhando na fronteira mais densa que teria passado durante as pesquisas de campo. O rio
Paraná, a língua, os hábitos, o ecossistema, era tudo diferente. Neste momento escutei meu
telefone celular avisar que estava sem sinal. Dali em diante, teria de enfrentar o diferente
sozinho.
Mais algumas horas e comecei a ver da janela do ônibus: borracharia Kuruguaty,
mini-mercado e carniceria kuruguaty, etc. Logo já estávamos no centro da cidade, na
rodoviária. Quando desembarquei e olhei em volta vi um pátio de terra batida, poeirenta,
com um prédio em construção onde funcionavam os guichês de passagem. No entorno
dezenas de bares, casebres feitos com chapas de madeira onde se come e bebe. Neste
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A área geográfica conhecida como Grã-Chaco, ou simplesmente Chaco, situa-se no sul da Bolívia, oeste do
Paraguai, norte da Argentina e ainda numa pequena parte do oeste do Brasil. Fica entre a margem direita dos
rios Paraná e Paraguai, de um lado, e o sopé dos Andes, de outro. Como limite norte podemos tomar como
referência a estrada de ferro Corumbá, Santa Cruz de la Sierra. No sul, passa pouco a pouco para os Pampas.
Trata-se de uma área plana, de baixa altitude, pouco inclinada. Sua pluviosidade média é baixa, sendo que
as chuvas se concentram de novembro a abril, e são sucedidas por uma estação seca e poeirenta. Alterna a
extrema secura com chuvas torrenciais que alagam os terrenos em depressão. Seus rios (o Verde, o Pilcomaio,
o Bermejo e o Salado), afluentes da margem direita do Paraná, cruzam a área com águas captadas nos Andes e
suas vizinhanças, e também alternam cheias com a quase estagnação. Certos setores desta área são salinosos
ou salitrosos e imprestáveis para a agricultura. De modo geral cobre o Chaco uma mata seca e pouco densa.
101
cenário, uma multidão de pessoas andando apressadas, carregando sacolas, frangos vivos,
cestas com mandioca.
Bem em frente, em uma casa em reformas uma placa: hostal. Depois de me instalar,
fui andar e conhecer a cidade. Fazia muito calor, as ruas de terra e a poeira contribuíam
para criar uma cena tipo faroeste. Foi então que observei um mercado atrás da rodoviária.
Semelhante aos bares, a organização apesar de ser retilínea, era caótica. As chapas de
madeira e as varandas ficavam abarrotadas de produtos durante o dia. Porém, o movimento
de pessoas durava apenas até o meio dia, depois da siesta
43
, poucos voltavam para a rua.
Logo no primeiro dia, sentei na varanda do hotel com o irmão do proprietário, o
João, vizinho e também dono de um hotel e de um açougue chamado Carniceria
Carnicentro. Sentados naquelas peculiares cadeiras paraguaias ficamos conversando até
onze horas da noite. Um diálogo, um querendo conhecer o outro, ambos estávamos em
busca de informação. Tudo o que eu perguntava a ele sobre o Paraguai, ele me fazia o
mesmo, com relação ao Brasil.
Dentre diversos assuntos que conversamos as tardes, durante os dez dias em que
permaneci na cidade, alguns tem relação direta com o tema desta dissertação, outros são
interessantes para observar o Paraguai, outros ainda fazem parte de um enriquecimento
pessoal que não nos interessa aqui. Porém, uma questão que foi pensada depois do trabalho
ter sido finalizado foi a transformação deste informante em interlocutor. Chamar as
diversas pessoas que deram informações de informantes é subsumir sua importância. Em
muitos casos não foram realizadas entrevistas, foram conversas de onde surgiram laços de
amizade. Neste caso especificamente, João transformou-se em interlocutor mais do que em
qualquer outro caso descrito anteriormente.
A primeira coisa que me contou sobre Kuruguaty foi que era a quarta capital do
Paraguai, a quarta cidade mais importante até a Guerra do Paraguai, quando foi arrasada
pelas tropas da Tríplice Aliança. A cidade foi saqueada e incendiada. Até hoje se encontram
telhas, ouro e prata sobre a terra em alguns lugares. Ficou abandonada desde então até
começar a ser reconstruída a uns quarenta anos.
43
A siesta é um hábito de descansar após o almoço até três ou quatro horas da tarde, o comércio fecha até
este horário e depois volta a abrir até seis ou sete horas da noite. A palavra vem da “hora sexta” do sistema
horário romano, que equivalia as três da tarde.
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Sobre o assunto da indianidade me deu uma resposta surpreendente. Disse que por
ser paraguaio, não tinha nada a ver com indígenas. Os índios eram puros e os paraguaios
eram mesclados, misturados com alemão italiano, brasileiro. Quanto ao caminho do Peabiru
nada sabia, mas quando falei Tape Aviru ele reconheceu a raiz guarani Tape = caminho e
que conhecia a expressão Tape Poy = caminho prévio ou sendero. Neste dia, João, me
indicou também um historiador local chamado Julio Ferrera e fui localiza-lo no dia
seguinte.
Mais um historiador local
Julio Ferrera é um senhor. Curioso e colecionador de livros mantêm uma biblioteca
na Casa de Cultura Kuruguá onde reúne jovens para auxiliar na coleta da memória dos
pioneiros da cidade. Trabalham com resgate cultural, com a criação de um museu, mantém
um grupo de danças típicas paraguaias e vende os trajes, camisas chamadas Chomba
44
.
Sobre o Peabiru me explicou muita coisa.Também identificou o Tape Poy e os
senderos como trilhas usadas durante a colonização. O caminho conhecido ligaria
Hernandárias até Kuruguaty e esta ao rio Paraguai. Seria uma extensão do caminho feito
pelos fugitivos de Vila Rica Del Spiritu Sanctu e de Ciudad Real del Guairá durante os
ataques bandeirantes no século XVII. Fazia portanto a ligação de Vila Rica, Ciudad Real,
Salto del Guairá até as nascentes do rio Jejuy, já pertencente à bacia hidrográfica do rio
Paraguai.
A rota de Aleixo Garcia, segundo Julio Ferrera, foi de Salto del Guairá até
Assunção. O caminho mais usado partia do rio Paraná, da localidade de Itacurupucu, antigo
nome de Hernandárias, passava por Itaquiri, Kuruguaty, San Istanislao, Puerto Rosário e
chegava ao rio Paraguai. Este era conhecido como o caminho da erva, pois, por ele era feito
o escoamento da produção de erva mate do Paraguai durante todo o 1800. Outro caminho
existente no Paraguai se localiza ao norte e sai de Kuruguaty para Ypehu e de lá adentrava
o Brasil pela região de Pedro Juan Cabalero e Ponta Porá, já no Pantanal brasileiro.
44
A Chomba é uma camisa feita em algodão cru e com bordados geométricos nos ombros e peito. A camisa
não tem botões e o colarinho é um cadarço para amarração. De cores cruas, os bordados, em geral, são da cor
azul ou vermelho. Um traje rústico, forte, sendo que seus produtores concentram-se na cidade de Vila Rica.
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Existe uma referência com relação à cidade de Vila Rica do Spiritu Sanctu fundada
por Rui Diaz Melgarejo. Existem várias cidades de Vila Rica. Hoje, no Paraguai existe esta
cidade, também conhecida como Ibitiruzu, e se trata de uma cidade de eruditos e poetas.
Uma cidade que representaria o símbolo da produção cultural letrada paraguaia, como me
informaram. Por sua vez, Kuruguaty, também já foi Vila Rica até ser refundada em 1716 e
destruída, depois, pela Tríplice Aliança entre 1865 e 1870. No Brasil, existe localizada a
cidade de Vila Rica del Spiritu Sanctu, uma cidade espanhola construída a partir 1632 e
destruída em 1686 quando foi atacada pelos bandeirantes (PARELLADA, 1997). Estas
ruínas ficam nas proximidades da cidade de Fênix, no estado do Paraná e existem registros
de outras três fundações no território brasileiro, porém, sem localização exata. Pelos dados
de Julio, os paraguaios dominavam boa parte do atual território sul brasileiro e produziam
erva em grande escala, conduzindo o produto ao Paraguai através deste caminho conhecido
como Camino de la Hierba.
Na Época de Lopez, entre 1840 e 1862, o caminho já era menos usado, foi então
refeito e mudou de nome. Lopez modificaria o nome do Camino de La Hierba para Camino
Real, Camino Cierto. Nos rios, a passagem era chamada de Passo Real e a reforma permitiu
a passagem de carretas (carros de boi com rodas grandes). Até hoje, existem portos e
cidades que cresceram nestes passos de rio e que permanecem com o mesmo nome de
Passo Real.
Sobre os indígenas, Julio disse que os Avá Guarani já teriam perdido sua identidade
por andarem de motocicleta, bicicleta, usar relógio. Já os Mbya Guarani ainda tem cultura e
andam por estes caminhos que falamos anteriormente. Na região existem também grupos
de indígenas Guaiaky Ache
45
, que dominavam a região, mas em 1970 foram incorporados a
sociedade nacional paraguaia. Assim, perderam toda a sua identidade, só não perderam a
vontade de não trabalhar. Para Júlio Ferrera, os indígenas não fazem nada por conta
própria, precisam de um comando para trabalhar. Porém, os Guaiaky são diferentes, são
45
Os Guaiaki Ache são grupos indígenas de caçadores coletores que encontram-se em reservas do governo
localizadas na centro sul e norte do Paraguai. Os Ache tiveram dificuldades com as mudanças impostas pela
vida sedentária. Em geral, tem uma alimentação rica em proteínas provida da caça de pequenos animais.
Outro fator importante para o grupo é a concepção e aplicação da reciprocidade entre as pessoas e entre a
sociedade Ache e os “outros”. Para uma descrição mais detalhada sobre a reciprocidade durante um
nascimento ver Crônica dos ìndios Guaiaki Ache, de Pierre Clastres.
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muito trabalhadores. Por fim, Julio falou-me sobre a origem do nome Kuruguaty como se
tratando de uma fruta, semelhante ao melão, de nome Kuruguá, abundante na região.
Novamente aparece nos relatos a visão de cultura como monilítica. No caso de
Júlio, caso a cultura indígena sofra alguma transformação, as pessoas deixam de ser índios,
o que anularia por completo uma possibilidade de transformação. Neste relato aparece
também as possibilidades de interpretação de toponímia, mas especificamente sobre o uso
destes termos falaremos logo adiante.
João, a guampa de mate e a cadeira paraguaia
Outros dias se passaram na cadeira da varanda e, sobre os indígenas, João falou que
eles não entendiam de história, mas entendiam de bicho, de planta. Para saber história, tem
que ler e ir para a escola, ler muito. Contou-me que estudou pouco, mas que sempre leu os
livros das filhas. Cinco filhas ao todo, sendo uma já cursando uma Universidade em
Kuruguaty. Como outros tinham feito, ele testava os meus conhecimentos e os seus, João
ficava pedindo para que eu perguntasse o nome das capitais mundiais para ele. Até que a
resposta sobre qual seria a maior montanha da América foi: “O Everest”!
O Paraguai, desde a Tríplice Aliança permanece isolado no centro da América
Latina. Foi visto como ameaça também pela Bolívia, que invadiu parte do Chaco entre
1932 e 1935, anexando exatamente a área rica em petróleo e gás natural. João me disse
mais de uma vez, comentando sobre nomes de rios e regiões do Brasil, que os nomes de
etimologia guarani seriam a prova de que o território paraguaio se estendia até Paranaguá,
por exemplo. O “verdadeiro” território paraguaio estender-se-ia então por Santa Catarina,
Paraná, Argentina e parte do Mato Grosso do Sul.
Hoje, o Paraguai continua a ser visto como ameaça pelos seus vizinhos, Brasil,
Argentina e Bolívia. Lembremos o caso da Febre Aftosa em outubro de 2005 ou questões
ligadas a narcóticos e tráfico de armas. Os paraguaios com que conversei apresentam uma
mágoa com relação ao Brasil devido a Guerra com a Tríplice Aliança. João me contou que
o seu país, hoje, não teria nem território. Foi anexado totalmente pela Argentina na Guerra,
mas eles “emprestaram para o povo”. Depois disso, o Brasil fechou suas fronteiras e tudo o
que passa por ela é genericamente chamado de contrabando. O paraguaio, por sua vez,
105
aproveitou-se desta ilegalidade e começou a suprir estas necessidades dos seus vizinhos.
Assim, o Paraguai, não possui pólos industriais significativos e tudo o que se produz em
seu território deve ser consumido pela própria população. Nem frutas podem atravessar a
fronteira com o Brasil, exceto como contrabando. Existe ainda o caso da soja que, em geral,
é produzida por brasileiros que mecanizaram terras paraguaias e trata-se do único produto
que pode, legalmente, atravessar a fronteira com o Brasil.
Por tudo isso, em diversos momentos me sentia constrangido em ser brasileiro, mas
freqüentemente recebia elogios por ser um dos poucos que tentava falar castelhano, “os
outros brasileiros acham que nós temos que entende-los”, me falou certa vez uma atendente
de supermercado.
Uma das anedotas que me contou João sobre a produção paraguaia. “O Brasil
produz aviões, o Paraguai produz niños” sendo uma das palavras em Guarani que me
ensinou foi: cunha poã = mulher bonita. Ficava me mostrando mulheres, “chicas muy
ricas”, nas ruas e falando que o Paraguai tinha poucos homens e que precisavam de outros
casando com suas mulheres. A justificativa foi a de que, devido a Guerra, a população do
Paraguai é pequena, até hoje. “El Paraguay es muy chico, es necesario pueblo”
46
.
Certo dia, um amigo de João estava conversando conosco. Era moreno, quase negro
e então começaram a falar de cor de pele. João surpreendentemente disse não gostar de
negros porque eram feios. Justificou o brasileiro como um povo feio devido ao excesso de
negros em sua população. O Paraguai nunca teve escravidão, explicou ele, por isso o povo é
mais bonito, só italiano e alemão misturado. Deu o exemplo de “feiúra” representado pelo
negro através do Ronaldinho Gaúcho, jogador de futebol. Na cidade de Missiones, no
Paraguai o povo é bonito porque é branco argumenta ele e logo em seguida me pergunta
quantos anos eu tinha. Trinta, respondi. E quantos filhos você tem? Nenhum. E
imediatamente retruca, então sua mulher é negra?
Ainda durante outros dias fiquei conversando com a família de João, sua mulher e
três das suas cinco filhas. Quando vieram para Kuruguaty, há trinta anos atrás não havia
nada. Viviam da caça de porco, veados, onças. Frutas existiam várias, mas índios apenas os
Guaiaky e os Guarani. Com os segundos, a convivência era tranqüila, já os Guaiaky vinham
46
A idéia: “o Paraguai tinha poucos homens e precisavam de outros casando com suas mulheres” pode ser
muito sugestiva, a justificativa dada é a Guerra. Poderíamos ainda questionar esta justificativa e pensar sobre
a possibilidade da idéia de povo paraguaio se apoiar em relações de alteridade amerindia.
106
à cidade roubar cavalos para comer. A esposa de João me contou uma história sobre os
Guaiaky. Veio, certa vez uma índia com uma criança pequena no colo. Queria tirar laranjas
no pomar e trocou a criança pelas frutas. A avó da informante pegou a criança e criou como
branca. No início, a criança sempre queria “comer raton”, mas não davam. Mandaram a
criança para a escola, mas ela não quis. Contrataram um professor particular. Casou-se com
um paraguaio e vive hoje em Assunção. Certa vez, um político espanhol radicado no
Paraguai fez uma campanha para reunir todos os índios em suas tribos originais novamente.
Esta menina Guaiaky fez sua mãe de criação jurar que ela era sua mãe legítima. Ela não
queria ser índia de jeito nenhum e inclusive casou na igreja para legalizar sua condição de
branca.
Contaram-me também sobre o processo educacional paraguaio e me emprestaram
diversos livros didáticos de várias séries. Todos, no Paraguai tem estudo obrigatório
durante nove anos. Além de ser obrigatório, pagam uma mensalidade que chamam de soldo
e as crianças não ganham nenhum tipo de alimentação na escola.
Sobre a política do país, um fato marcante foi a guerra civil entre os Colorados,
partidários de Stroessner e os liberais. O ditador Stroessner só dava vagas nas universidades
para as pessoas do seu partido. Agora, depois da queda do ditador, é que todos puderam
freqüentar a universidade. Relataram isto como um dos fatos mais tristes vivenciados pelo
país.
Os Guayaki e os Guarani
Na concepção de João, os Guaiaky são diferentes dos guarani. Tem alguns brancos
de olhos azuis, são muito civilizados e falam espanhol, guarani e a sua própria língua;
vivem numa terra doada pelo governo. Os guarani são diferentes, vivem afastados, são
marginais e vivem em toldos de palha. Em geral o bugre vive apartado da vida citadina
paraguaia, vai aos centros apenas vender ervas medicinais, mas são marginais e não querem
ajuda. Completando, João fala: ”eles tem uma mentalidade indígena, uma mentalidade
atrasada”. Os índios quase não entram na escola, vivem quase como animais “en el monte”
e o problema das instituições de auxílio ao indígena, é que em geral são controladas por
107
paraguaios. O governo dá terra ao indígena, terra linda, o problema é que o indígena não
trabalha.
O racismo que falamos acima se apresentou novamente no discurso de João sobre os
Guaiaky. Disse que existem de dois tipos, duas raças de Guaiaky. Alguns são brancos,
lindos, olhos azuis, puxados como os japoneses. O outro tipo é feio, tipo bugre, “bem feio,
pequeno e preto”. Outros informantes falaram dos guarani como sujos e largados.
Existia um lugar na cidade onde se concentravam pessoas, mulheres com crianças e
ali ficavam o dia todo. Andavam descalças ou com chinelos Rider. As roupas eram
amassadas e encardidas com a cor da terra da região. Eram também de baixa estatura e com
pele morena. Eu tinha certeza que eram indígenas. Quando me aproximei e fiz a pergunta
obtive a resposta negativa. Assim, para os paraguaios, os guarani são sujos e largados,
feios. Para mim, esta noção se encontra em outro plano, os paraguaios, para os padrões
brasileiros, pelas referências que levava comigo seriam sujos e largados. Também para
diversos brasileiros, dos quais recebi informações, os paraguaios teriam todas as
características atribuídas aos guarani. Estava numa zona de fronteira, como dissemos
acima, mas também, em uma fronteira de significação e significados. Uma fronteira de
representações sobre o indígena.
A distinção entre Guayaki e Guarani também não se apresenta por acaso, pois estes
dois grupos têm uma organização social substancialmente diferenciada. As diferenças
iniciam no tipo de espaço ecológico ocupado por dois grandes grupos, os Guarani e os
Guaicuru. Os primeiros ocupam áreas relacionadas a florestas e os segundos são
preferencialmente habitantes do Chaco e seu entorno. Os relatos de conflito entre estes dois
grupos remetem a épocas da colonização da América, ver por exemplo, em Comentários de
Cabeza de Vaca (1999)
47
.
Um ramo dos guaicurus, os paiaguás, ao invés de adotar o uso do cavalo, dominava
o curso do rio Paraguai, desde sua foz até o Pantanal, e o rio Paraná através da utilização de
canoas. Mas seu comportamento para com os vizinhos era semelhante ao dos guaicurus
47
Segundo Júlio César Melati, foi nas bordas do Grã-Chaco que se concentraram as diferentes sociedades
que logo no primeiro século de colonização européia adotaram o uso do cavalo. Foram também atraídas pelas
oportunidades de comércio, saque e raptos que os colonizadores de Assunção e os guaranis, que lhes estavam
sujeitos, lhes poderiam oferecer.
Branislava Šusnik (1989) nos um excelente apanhado histórico das populações indígenas que
simultânea ou sucessivamente se concentraram nas vizinhanças de Assunção, do outro lado do rio Paraná e
que punham em constante sobressalto os colonizadores.
108
cavaleiros, combinando comércio, raptos, saques e indenizações pela devolução dos
raptados. De um modo geral, esses índios desenvolveram sociedades estratificadas, com
uma camada nobre ou de chefes, outra de comuns e uma terceira de cativos, havendo
também mecanismos de incorporação dos cativos como membros de pleno direito segundo
o mérito.
Menonita, eu?
A 30 Km de Kuruguaty existe uma colônia menonita
48
. O paraguaio acha meio
estranho, como me disseram:
São holandeses que não falam outra língua e trabalham em propriedades comunais
produzindo frutas, legumes e derivados do leite que vendem. O dinheiro arrecadado serve para a
manutenção da colônia como um todo. Mantém ainda cooperativas e um hospital que atende a
população das áreas rurais de Kuruguaty. Dentro do grupo não existe a circulação de moeda,
apenas troca de produtos.
Estes menonitas não seriam holandeses, seriam alemães originalmente. No início do
século XX migram para a Rússia, pais onde seriam perseguidos poucas décadas depois.
Quase como fugitivos de guerra, perseguidos, ganham terras na América onde estariam até
a atualidade. Provavelmente falam algum dialeto Russo, usam roupas peculiares, as
mulheres vestem chapéus de palha com um lenço amarrado no queixo e um vestido longo,
com um lenço colorido na cintura. Os homens vestem um macacão jeans azul e camisa
branca com chapéu. Este macacão era exatamente igual ao que comprei em Pitanga por
R$10,00. Roupas rurais, resistentes e feitas para o trabalho. Como minhas alcunhas e
apelidos que recebia foram se transformando, no Paraguai fui reconhecido como
Americano, mórmon e menonita, sendo os dois últimos apelidos designados devido ao
macacão azul.
UNINORTE – Universidade e política
48
Menonitas, juntamente com os Suabios seriam grupos muito antigos de imigrantes alemães que se
deslocaram para a Rússia. Durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais foram perseguidos pela União
Soviética e, como refugiados, vieram para o Brasil.
109
Kuruguaty se encontrava praticamente isolada até cerca de um ano. A UNINORTE
funciona a seis anos e depois da pavimentação da estrada, a cidade cresceu e com ela a
universidade, devido aos deslocamentos efetuados pelos professores que, em geral, vem de
Assunção. 4 horas de ônibus em 100 Km de estrada de terra. As “Carreras” são, Ciências
Contábeis, Ciências da educação, Obstetrícia, Direito, Escrivania, Pós-Grado em Didática e
Administração. Ao todo duzentos e cinqüenta alunos estão matriculados que pagam uma
média de R$ 250,00 por mês.
Em 1999, com o partido liberal no poder, tiveram a iniciativa de fundar Faculdades
Comunitárias que seriam centros de carreras próximos das pessoas que querem estudar,
reduzindo os custos. No início a Faculdade funcionava apenas sextas e sábados com uma
carrera. Depois foi se ampliando. A didática educacional estaria voltada para a formação de
pessoas locais, como me informou a reitora da UNINORTE, Eulogia Segovia de Vera.
Quanto ao acesso de indígenas nas carreras, a informante disse haver um aluno
indígena matriculado, um guarani. Faz Ciência da Educação e ministra aulas de educação
indígena na escola de sua aldeia. A reitora ainda comentou sobre a Casa de Cultura
Kuruguá dizendo que tinham um papel importante, mas os organizadores se cansaram,
mantendo em funcionamento apenas os grupos de danças típicas. E ainda sobre os
indígenas comentou que eles vêm às cidades vender bichos de madeira e ervas medicinais,
remédios. Falou dos índios do Chaco com certo receio por serem canibais ainda hoje e
completou dizendo que o Paraguai tinha coisas bonitas como a cidade de Vila Rica, cidade
dos poetas e das letras.
Quando falei sobre algumas representações brasileiras sobre o Paraguai, a
informante estranhou a comparação entre Paraguai e mundo indígena dizendo que falavam
guarani, mas não eram indígenas. Ela concordou com a proposição de que os brasileiros
trabalhavam mais que os paraguaios com a justificativa de que os brasileiros tinham mais
dinheiro e conseguiam assim, mecanizar as terras. Voltando aos indígenas, disse que os
guaranis de Fortuna, (uma localidade próxima) não queriam mais ser índios, cada vez mais
querem participar do mundo dos brancos, querem comida, roupas, principalmente os mais
jovens.
110
Em Kuruguaty existe ainda uma outra universidade, a Politécnica Artística del
Paraguay que implementa carreras mais curtas de educação artística ou professorado, mas
não tive oportunidade de conhecer.
Guarani – língua, moeda, política e território
No Paraguai, a moeda e a língua são o guarani. É obvio para mim a identificação
destes nomes, inclusive da região paraguaia, como sendo de domínio indígena,
principalmente guarani, ou pelo menos eu teria aprendido desta forma. Porém, os
paraguaios não pensam bem assim. Eles claramente me disseram que não tinham nada de
índios. Será que a história contada no Brasil e no Paraguai sobre o Paraguai pode ser
diferente? No Brasil achamos que os paraguaios são descendentes de indígenas, no
Paraguai os índios são tratados como no Brasil, não fazem parte das tradições históricas.
Tanto no Brasil como no Paraguai falam de índios sujos e que não querem mais ser índios.
Assim, a língua e a moeda são manipuladas para representar uma suposta tradição
indígena, não uma tradição histórica ou cultural herdada, mas uma tradição político-
territorial. “O Paraguai se estendia até Paranaguá”. Esta tradição aparenta ser um vínculo
com o mundo indígena mantido apenas no campo político e territorial, como se suprisse a
sensação de perda que as sucessivas guerras teriam causado ao país.
Crianças
Havia um restaurante onde sempre almoçava, um lugar familiar agradável. A
comida era Chipá Guazzú
49
, mandioca cozida, carnes ensopadas e vegetais diversos. Um
cardápio diferente do Brasil, temperos diferentes, funcho ou erva doce, por exemplo. Nas
vezes que estive lá, algumas crianças ficavam meio curiosas pelo forasteiro, sentado, lendo
ou escrevendo. Tinham entre sete e treze anos de idade. De início, quando falei que era
brasileiro, me informaram que o restaurante era freqüentado por todos os brasileiros que
visitavam a cidade.
49
Um bolo de milho com queijo.
111
Era diferente em arquitetura, de tijolos e não de madeira ou chapas. Também era
diferente do estabelecimento paraguaio pela iluminação e pelo tamanho. Porém, na entrada,
as típicas cadeiras paraguaias e as pessoas tomando mate. Aquelas crianças de que
falávamos, inseridas nesse contexto, me perguntaram se sabia falar guarani. Com a
negativa, começaram a me ensinar e me colocaram em um mundo básico da alfabetização
na língua com a qual tinham contato. Por um momento, virei criança, aprendendo a falar e a
dar os primeiros passos num universo até então paralelo.
A prata paraguaia
Como falei no início da Parte V, atravessar a fronteira entre o Brasil e o Paraguai foi
uma experiência densa. Mais por preconceito com relação ao Paraguai, temia por uma
efetiva agressão por parte dos paraguaios e me senti amedrontado com o novo.
Logo na fronteira, antes de partir ao Paraguai, fui praticamente hipnotizado por uma
senhora que “lia as mãos”. Depois de me pedir fogo para acender um cigarro, disse que
leria meu futuro sem cobrar nada. Envolvendo-me numa rima poética e falando coisas tão
genéricas que poderiam servir a qualquer pessoa, fiquei praticamente sem ação. Ela teria
conseguido criar um ambiente tão seguro e envolvente que nem percebi quando me pediu
para benzer meu dinheiro. Meu último dinheiro!
No Paraguai, em Salto del Guairá, observei toda a sorte de produtos falsificados e
lembrei dos Waujá do Xingu que identificam o falsificado como “Paraguai”. Em La
Paloma, dois rapazes que a princípio poderiam ser informantes, me convidaram para assistir
a um jogo de futebol entre Brasil e Argentina em uma cidade próxima. Disseram que um
amigo, de táxi, passaria para nos pegar e depois nos traria de volta! Por uma desconfiança
inexplicável, decidi não ir.
Depois, em Kuruguaty, várias lojas de artigos de prata vendiam jóias caras. Ao
pegar em uma destas, um anel, percebi que era extremamente leve. Fiquei intrigado...
Alguns dias depois encontrei um camelô que vendia jóias e parei pois vi um anel tão
brilhante quanto o da loja. Conversando, indaguei que tinha visto lojas de prata na cidade e
perguntei se o Paraguai detinha minas de prata no seu território, ou se a prata era importada
de outros países da região. O vendedor me disse se tratar da “Plata paraguaya” e me
112
mostrou aquele anel, muito semelhante ao da joalheria. A mesma leveza, o mesmo brilho. E
perguntei: Mas afinal, o que é a Plata paraguaya? É alumínio polido, me respondeu. Para
anéis, pega-se um tubo e corta do tamanho!
113
Parte VI – O que trouxemos na bagagem
O retorno
onstantemente ouve-se falar de antropólogos e viajantes que, depois de uma
experiência etnográfica radical, retornam aos seus lares, mas passam a não ser mais os
mesmos. Nestes casos o retorno se deu apenas em uma dimensão física. A possibilidade
que uma experiência etnográfica nos dá para observar criticamente nossa própria realidade
pode vir a transformar a relação deste etnógrafo/viajante/leitor com a sua sociedade. De
qualquer forma, sempre voltaremos diferentes do campo/leitura/viagem; transformados.
Durante o retorno do campo fiz uma parada na cidade de Campina da Lagoa por
dois dias, sábado e domingo. Sabia de antemão do Bar do Tino onde todo o domingo era
uma festa com bingo e sorteio de leitão, frango e costela recheada. Na outra passagem pela
cidade, perdi o evento, mas as pessoas me falavam que “toda a cidade vai ao Tino, no
domingo” e foi neste local que descobri a essência desse trabalho.
Ao chegar sentei no balcão e fiquei observando as pessoas. Muitas. Algumas
conhecidas e comecei a conversar com o Geraldo, dentista da cidade. Enquanto
conversávamos sobre outros pioneiros, que não tem seus nomes em ruas e vias públicas, me
ofereceram uma cartela do bingo. Ele me falava de um tipo de memória subterrânea,
conceito que foi norteador das teorias desta dissertação durante todo o período de
construção do projeto. Segundo Michel Pollak (1989), existiriam memórias que, por
diversos motivos, seriam extra-oficiais. Desconhecidas pela maioria, seriam histórias
diferentes lembradas apenas por alguns e que talvez, por motivos políticos, não teriam
entrado no rol dos documentos representativos da memória oficial da região.
Geraldo me disse que sua família chegara aqui em 1944, um pouco depois do que a
família Pereira, mas sua família nunca teria ganhado prestígio na cidade. Não soube me
explicar porque. Neste caso, os pioneiros oficiais seriam os informantes que entrevistamos,
Doca e Conceição. Duas famílias diferentes e dois grupos politicamente opostos, mas que
contavam com registros públicos ou oficiais sobre a sua história e suas memórias (eram
inclusive nomes de ruas). Diferente destas, a família Bittencourt, não tinha os mesmos
114
registros oficiais, e estava, como me pareceu, nos subterrâneos da memória oficial do
pioneirismo na região.
Conversando com Geraldo, fazendo anotações no meu diário, tomando cerveja,
jogando bingo e observando as pessoas. As coisas foram agradavelmente se desenrolando e
quando percebi gritei: “Bingo”. Eu tinha ganhado a costela recheada. Um prato típico de
Campina da Lagoa, mas que segundo alguns, teria aparecido à cerca de cinco anos atrás.
Novamente, mais uma invenção que tem o poder de se tornar uma representação coletiva,
transformando-se no referencial do tradicional oficial de uma localidade.
Epistême, Indianismo e neo-indianismo
A língua deste gentio toda pela Costa he, huma: carece
de três letras —scilicet, não se acha nella F, nem L, nem
R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem
Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e
desordenadamente.
Pero Magalhães Gandavo [
1570].
one can determine structures in history - and vice verse
Marshall Sahlins
Uma questão que se coloca, talvez desde o início deste texto, é como podem os
discursos ter tanta variação? O que é a verdade? Afinal o Caminho do Peabiru existe, ou
não? E sobre que termos há possibilidade para a sua existência?
Seria suficiente para alguns, as explicações de Michel Foucault sobre a diversidade
de pensamentos científicos que somos capazes de inventar e inventariar. A constatação de
que existe esta transformação também parece um tanto óbvio, apesar de muitos cientistas
ainda basearem suas pesquisas na regularidade como regra e não na transformação.
Percebemos que os discursos variam no tempo, de um século para o outro por exemplo,
mas também variam no espaço, dentro de uma mesma temporalidade.
A possibilidade de invenção ou construção de um discurso não seria totalmente livre
de preceitos e preconceitos, como vimos, mas estaria ligada a referenciais simbólicos mais
ou menos limitados, o que limitaria também o poder de invenção em cada contexto.
Inevitavelmente, a meu ver, chegamos a uma relação mais profunda entre a história e a
antropologia. Estes referenciais simbólicos seriam constituídos na medida de uma
experiência vivida por um grupo, por códigos construídos durante diversas gerações, as
115
habilidades, os dialetos lingüísticos, um jeito especial de ver e estar no mundo. Neste
conjunto ou neste corpus de práticas, como falamos no início, insere-se as possibilidades e
perspectivas de história e também de memória. Percebe-se, durante o trajeto da viagem, a
variação de status ou de importância do que foi lembrado pelos informantes. Todas as
memórias e as histórias oficiais coletadas variam, mas importa verificar como se estabelece
esta importância e a valorização de uma em detrimento a outra nos vários contextos.
Nestes termos, tanto a sociedade Nacional brasileira como a literatura ou as
disciplinas da história e da antropologia já modificaram bastante as formas pelas quais
constroem seu mundo e seus objetos. A questão indígena, por exemplo, um dos temas
norteadores deste texto, está preso nas mesmas malhas epistemológicas de que nos falava
Foucault e emite seus discursos a partir das construções de que nos falava Latour. Como
forma de exemplificar um destes discursos contextualizados sobre o indígena veremos o
que aconteceu com a maneira como vemos o indígena e como a elite retratou o mesmo
assunto no caso do Indianismo.
Durante o primeiro século de conquista da América, o índio era visto como um
parceiro comercial dos europeus. Com o primeiro governo geral do Brasil e a instalação da
Colônia, as relações se alteraram e passam a ser feitas de uma mistura de simbiose e
conflito. O índio deixa de ser parceiro de escambo e se transforma em mão-de-obra para a
empresa colonial. Com o passar, a Coroa Portuguesa transforma estes índios em guardiões
que garantiriam a manutenção das fronteiras do Império.
Neste período começa a ser gestada a possibilidade de uma memória nacional que
contaria com os índios e com portugueses, enquanto a mão-de-obra negra e escrava, não
participava, ou participava em menor grau da história oficial do território. Nesse projeto de
construção e embelezamento, história e literatura vão se aliar em diferentes momentos e de
formas variadas para forjar uma imagem de unidade, que se supõe necessária à idéia de
nacionalidade (FIGUEIREDO, 2000).
O recurso à tradição histórica iria se mostrar difícil, no Brasil, devido à
independência do país, mas os trabalhos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
ajudaram a forjar esta unidade e a antiguidade do território. O romantismo brasileiro irá
privilegiar a contemplação da natureza, elegendo o tropical como traço distintivo do
continente americano. Junto a isso, o índio, anterior à colonização portuguesa, será eleito
116
enquanto elemento possível (e passível) de estabelecer o vínculo entre a natureza tropical e
uma forma de vida que será caracterizada como brasileira. Esta idéia será levada a cabo
principalmente através da história e do romance histórico que tratará de incorporar não
apenas o indígena, mas o gaúcho, o caipira, o caboclo (MACHADO, 1996).
Para entender melhor esse movimento, torna-se necessário inseri-lo no contexto do
século XIX, considerando-se que, ao se engajar no projeto de invenção da nação brasileira,
a nossa elite intelectual estava em perfeita consonância com o que se passava na Europa, ou
seja, a construção das identidades nacionais era, por várias razões, inclusive razões de
ordem econômica uma demanda da modernidade naquele momento (PADILHA, 2006).
As Revistas do IHGB delimitam o território e a geografia da população, a história é
reescrita e insere o índio no passado da futura nação, a literatura romântica constrói todo
um imaginário sobre este índio e a música canta e reforça estas relações. Clássicos como a
ópera O Guarani e Iracema, na Literatura, constroem o índio como referencial da memória
nacional. Os escritores românticos se impuseram a tarefa de escolher um ponto de partida
para a marcha em direção ao progresso, definindo um começo histórico e inventando uma
tradição que nos imprimisse um perfil de nação coesa.
Porém, este índio na ópera ou na literatura, sempre morre. O índio que passa a fazer
parte do passado da nação brasileira seria o índio morto, apenas lembrado como um ideal.
O índio puro da época do contato, pelado, com cores, penas e plumas; exótico. Hoje este
índio está enquadrado em reservas e terras específicas e, pelo menos para o senso comum,
todos os que estiverem fora deste contexto deixam imediatamente de ser índios. Da mesma
forma os relógios, carros, aparelhos de televisão ou barracas de lona preta, cada vez mais
freqüentes nas reservas indígenas, comprometem, para o senso comum, a pureza da cultura
indígena.
A narrativa da nação e o lugar que ocupa o elemento indígena podem ser encarados,
como propõe Homi Bhabha, como “uma poderosa idéia histórica” que emerge “de tradições
do pensamento político e da linguagem literária.” (BHABHA, 1990/1997). Uma das
características marcantes do romantismo enquanto movimento artístico seria sua estreita
relação com o nacionalismo. No caso brasileiro, a coincidência entre o surgimento da
chamada escola romântica e a independência política do país reforçaria essa relação.
117
Essa história, como indica Bhabha (1990/1997: 52), “está sugerida no ponto de vista
de Benedict Anderson sobre o espaço e o tempo da nação moderna como corporificado na
cultura narrativa do romance realista” e permite contestar:
A autoridade tradicional dos objetos nacionais de conhecimento — Tradição, Povo,
Razão de Estado e Alta Cultura, por exemplo — cujo valor pedagógico quase sempre se apóia
em sua representação como conceitos holísticos localizados dentro de uma narrativa
evolucionista de continuidade histórica (ibidem).
Os discursos de nação são então construídos dentro de referenciais simbólicos
contextualizados que variam. A possibilidade de conexão entre índios e memória nacional
não foi e não é livre de preceitos. Até mesmo o uso de uma língua indígena “oficial”, o tupi
foi privilegiado em detrimento aos tapuias. Ou o decreto de Nereu Ramos que prevê nomes
tupiguarani para localidades brasileiras, como comentamos no início. Assim o índio tupi
genérico é o que foi eleito para representar a história oficial da Nação. O contraste acontece
quando tomamos conhecimento das histórias extra-oficiais, das memórias subterrâneas
contadas por aqueles informantes afastados das elites e do poder do conhecimento letrado.
Nesta representação popular, no senso comum, a histórias oficiais e extra-oficiais se
modificavam ganhando relevância, ou não, dependendo do contexto.
Durante a segunda metade do século XIX, a cobiça se volta para os territórios e
terras indígenas, um século mais tarde, o subsolo destes territórios ganhariam notoriedade
por suas riquezas. Em 1910 aparece o SPI, o Serviço de Proteção aos Índios sendo extinto
em 1966 e substituído pela FUNAI, Fundação Nacional do Índio. O desenvolvimentismo,
implementado durante a década de 1970, força a re-alocação de grupos que impediam a
passagem de grandes obras como a Transamazônica e usinas hidrelétricas. Como desfecho,
na década de 1980, estes mesmos índios passaram a ser um impedimento para o
desenvolvimento e tornam-se questão de segurança nacional o que leva a uma militarização
da questão indígena (SÁEZ, 2004).
Podemos perceber também como os antropólogos vêem os índios hoje em dia, na
sua integridade, as questões da corporalidade, da filosofia ameríndia, os referenciais e as
linguagens simbólicas comuns no continente americano passam a ser significativas depois
da década de 1980. Houve uma mudança epistemológica e o tema passou a ser olhado sob
outra perspectiva.
118
De tempos em tempos as disciplinas acadêmicas fazem uma autocrítica e
transformam seus referenciais teóricos
50
. Na antropologia não podia ser diferente e cada
vez mais se deixa o nativo falar. A busca atual da antropologia é a tradução de uma cultura
para outra da forma menos traidora possível. Assim, o movimento seria o de dar voz aos
informantes e não tentar traduzir e interpretar suas falas. A transformação em vias de
ocorrer na antropologia brasileira seria a de dar voz plena aos informantes e a eles creditar
suas autobiografias em seu formato e integridade.
Hoje, os informantes consultados durante os trabalhos de campo e as fontes
documentais, também se espelham em formas específicas de ver o índio, o caminho do
Peabiru e as relações possíveis entre os dois. Em grande parte das informações coletadas
em campo, percebe-se o índio afastado da realidade das cidades, resgatado à moda do
Romantismo, sempre de forma imaginativa e idealizada como índio puro. Assim, o resgate
da cultura indígena e sua influência na história nacional lembra o indianismo romântico,
porém, se faz em outros termos. Hoje o propósito de enxertar o tema indígena num projeto
turístico ou fazer um projeto turístico a partir de referencias indígenas agregaria valor
cultural e criaria conexões com a historia oficial. O problema é como acontece este resgate,
sobre quais termos? Quais memórias serão resgatadas? O índio como idílico? O índio como
defensor do meio ambiente? Ou ainda criar um Caminho do Peabiru sem o índio, a partir do
jesuíta. Ou pertencente a qual grupo indígena, Gê, Guarani ou Inca?
Porém, os vínculos com estas histórias oficiais que coletamos nos parecem
contraditórios depois de coletar informações extra-oficiais. Nos livros didáticos de escolas
públicas ou no discurso de eruditos orgânicos o elemento indígena existe apenas nas
primeiras páginas ou no início da história. O relevante seria descobrir o mesmo indígena
dos discursos não oficiais, mas sem mascaramento. Literalmente me falavam “os índios são
vagabundos” ou “índio não trabalha” remete inicialmente a uma “mentalidade indígena”
como ouvi em Kuruguaty, ou uma outra perspectiva sobre o ato de trabalhar. Uma outra
vertente nos remeteria a construções sobre o indígena que o manteriam fora da sociedade
nacional e da economia do capital sendo índios, mantendo sua identidade apenas se
estivessem enquadrados em reservas.
50
A epistemologia seria exatamente o estudo destas transformações. A ciência que estuda as ciências e a
transformação de seus referenciais teóricos.
119
Fora da academia, os discursos sobre o índio e sobre o Peabiru simplificam o objeto,
plastificam a cultura indígena tornando-a vendável. Em todos os municípios pesquisados,
existe a vontade de criar e organizar uma Casa da Memória, um lugar como uma dispensa
que serviria para tirar do caminho tudo o que não se usa mais. De cadeiras de dentista, a
lâmina de machado indígena encontrada na roça, passando por jornais velhos e gramofones
quebrados. A tentativa seria a de isolar ou enquadrar o antigo, o índio também, tira-los do
caminho e mantê-los apenas na memória, longe da realidade cotidiana. Não é por acaso que
o elemento indígena oscila entre o visível e o invisível conforme seguimos a marcha da
pesquisa.
Recapitulando o imaginado
O ser humano, tal como o imaginamos, não existe.
Nelson Rodrigues
O caminho do Peabiru imaginado, idealizado e enriquecido pelo elemento indígena
embelezador acontece em alguns locais, em outros não. De maneira surpreendente o foco
dispersor das idéias de construir um caminho turístico, a cidade de Pitanga, é a única que
apresenta o elemento indígena cotidianamente, mas é também a única onde este elemento
não se encontra nas teses de construção do caminho. Nesta localidade, o Peabiru seria
Caminho de São Tomé, havendo inclusive a participação de grupos religiosos na
organização dos passeios turísticos. Na cidade de Campina da Lagoa o índio desapareceu
antes que os pioneiros chegassem. Nas redondezas da cidade existem diversas ruínas de
missões o que reflete na possibilidade do Caminho ter a sua história ligada aos jesuítas.
Mais adiante, no Paraguai, o Peabiru ou Tape Aviru não existe nestes termos, a não
ser para um pequeno grupo da elite política, o Ministério do Turismo do Paraguai. Para
todo o restante do país, ou pelo menos para meus informantes, existe apenas a possibilidade
do Caminho Real construído pelo ditador Lopes (o pai), o antigo Camino de la Hierba.
Parafraseando a epígrafe poderíamos dizer que o Caminho do Peabiru, tal como o
imaginamos, não existe. O ser humano pode ser construído sobre bases históricas e
epistemológicas específicas, e pode ganhar significados específicos em cada contexto. O
Caminho do Peabiru também se constrói sobre bases histórico-epistemológicas, assim
como a noção de indígena, e a relação entre as duas coisas. Também não estamos buscando
120
padrões entre a experiência histórica e as interpretações formuladas para estes temas, mas
chamando a atenção para uma conexão possível entre as construções da realidade e as
experiências históricas.
Para chegar a esta conclusão percorremos um caminho teórico um tanto rebuscado.
Vamos recapitular. Inicialmente foi dado um perfil preliminar das idéias sobre o Caminho
do Peabiru. Algumas, pois havia muitas mais que apenas inchariam o texto e dificultariam a
análise. Uma segunda parte teórica discute as transformações do antropólogo e do nativo,
basicamente uma discussão sobre a construção do eu e do outro. Uma terceira parte faz uma
auto análise do próprio texto, do olhar do antropólogo/leitor/viajante com relação ao que
será descrito e com relação aos métodos de obtenção destes registros.
Buscando as relações entre os discursos e sua transformação ou repetição fomos
atrás da historiografia. Assim como se emitem discursos e idéias, escreve-se a história. As
discussões sobre história verdadeira, seu uso, sobre a validade de um documento e a
relevância ou invenção de uma fonte não puderam ser deixados de lado. Neste contexto
discutiu-se também uma divisão relacionada a teoria do conhecimento onde se propõe a
distinção entre a oralidade de eruditos orgânicos e a oralidade popular. Mas realmente
existem diferenças entre a cultura oral e o mundo da escrita? Em alguns contextos sim, em
outros não. Decidiu-se não separar para comparar os padrões implícitos em cada uma destas
formas de se relacionar com o mundo, mas aliar as duas. Cada uma, cada grupo de
informantes nos daria pistas sobre questões específicas. Os letrados apresentariam o que é
lido na região, os não letrados nos dariam acesso aos códigos de cada localidade. Falamos
das construções contextualizadas, uma simplificação de diversos conceitos como
interpretação, invenção, fonte, visão de mundo.
O relato da experiência vivida pelo pesquisador acompanha tudo isso e fornece a
direção que a teoria segue. Como dito no prefácio, a dissertação foi se constituindo na
medida em que os informantes falavam de pontos importantes para eles. No Paraguai, o
Peabiru não aparece no discurso da maioria dos informantes e foi deixado de lado pois não
foi comentado. O Peabiru não existe no Paraguai! Da mesma maneira, como pitangas,
diversos temas que apareceram importantes aos informantes foram pontuados no texto e
deixados sem discussão ou aprofundamento.
121
No trecho Sobre Fontes e Documentos voltamos a historiografia para ver como os
monumentos, ruínas, sítios arqueológicos ganham significação e peso histórico dependendo
do que a história oficial queira legitimar em dado momento. Assim, órgãos como o IPHAN,
ou IHGB manipularam e manipulam o discurso oficial sobre a lembrança. As Casas da
Memória tem o poder de cumprir o mesmo papel, mas viraram depósitos do esquecimento.
Assim, o poder manipula a história elegendo, ou não, a veracidade de um documento, ou
sua elevação de status e a conseqüente preservação daquele objeto e não de outro. Da
mesma forma que a utilização de um documento pelo poder pode transforma-lo em
monumento, a memória, quando utilizada pelo poder pode transformar-se em história.
O mesmo acontece com os documentos, as fontes e os discursos relacionados ao
Peabiru. Contraditórios em muitos casos, foram interpretados como invenções e
construções contextualizadas historicamente. Percebemos que os informantes explicam o
peabiru em termos muito diferentes, em alguns casos, e quase idênticos, em outros. Na
tentativa de interpretar esta imensa variação dos discursos buscamos uma perspectiva
epistemológico-construcionista. São as perspectivas herdadas historicamente que geram as
possibilidades de um pensamento, e não outro, ou a construção de um objeto de certa
maneira, e não de outra. Seria então uma história de rupturas e continuidades da visão de
mundo, da epistême, do espírito da época que trariam visibilidade e possibilitariam
construir o caminho do Peabiru como jesuíta ou como inca.
Cada vez mais nos aproximamos de uma correspondência entre a história e a
antropologia. A experiência vivida pelo grupo e a sua visão de mundo, um corpus de
práticas. Fomos então coletando contextos e como os informantes nestes locais
interpretavam e explicavam tanto o Peabiru como o índio, mesmo que um não estivesse
conectado ao outro. Os pratos típicos e as piadas, os preconceitos com relação ao negro e
com relação a mulher foram aparecendo em campo e foram expostos como exemplos da
variação desta visão de mundo.
A abordagem final termina por comparar a construção ou invenção do Caminho do
Peabiru com o indianismo romântico. Da mesma forma, o índio inventado pelo romantismo
tinha propósitos específicos; a unificação do Estado Nacional e a criação de um imaginário,
de uma história. Hoje, as invenções peabirúticas têm propósitos distintos, políticos para
122
alguns grupos, econômicos para outros. Com a participação dos indígenas, em algumas
localidades ou com este elemento ausente, em outras.
Diagrama: objetivação e positividade do campo
A seguir, na tentativa de objetivar, organizar e sistematizar tudo o que foi visto, o
leitor poderá observar um diagrama com as subdivisões básicas deste trabalho. Na primeira
coluna da esquerda estão a oralidade de eruditos orgânicos e a oralidade popular. Na
primeira linha observa-se as quatro localidades pesquisadas e logo abaixo a subdivisão
entre o caminho do Peabiru e a representação sobre o indígena. Nas outras células,
correspondentes ao cruzamento destas variáveis, encontram-se as informações obtidas
durante o campo. Este quadro gera a transformação dos discursos sobre o Peabiru e sobre
os indígenas a partir do afastamento gradual do conhecimento letrado e a partir de um
deslocamento terrestre, entre Santa Catarina, Paraná e Paraguai.
Neste diagrama existem duas variáveis, o Peabiru e a representação sobre o
indígena. Gostaria de ressaltar que outras variáveis são possíveis, mas foram deixadas de
lado para que estes dois temas permanecessem sempre como foco norteador das
informações. Outros temas possíveis seriam as perspectivas de mestiçagem para os diversos
informantes e, respeitando a mesma subdivisão, percebe-se que também estes conceitos de
pureza cultural, mistura e identidade sofrem modificações durante o deslocamento.
Questões relacionadas com o conceito de memória também apareceram diversas
vezes na fala de informantes. Falamos sobre isto apenas sobre uma perspectiva, a memória
subterrânea quase como sinônimo de história não oficial, mas podemos perceber, com uma
sistematização do que foi falado, que as lembranças sofrem transformações semelhantes, o
ritmo narrativo, a composição do discurso, o valor de cada lembrança e o que efetivamente
pode ser lembrado.
Também com relação a interação do pesquisador com seus informantes, pode-se
compor diagramas semelhantes com relação aos apelidos e as significações diferenciadas
para o chapéu e o macacão jeans, por exemplo, ou para temas como os hábitos alimentares,
a história regional, a toponímia, os etnômios. Porém todos estes temas apenas ajudaram a
compor cenários e a estrutura de uma escrita diferenciada. O texto e os temas encontram-se
portanto abertos a outras leituras possíveis e podem ser boas idéias para discussões futuras.
123
local
Barra Velha Pitanga
tema
Caminho do Peabiru Representação
sobre o indígena
Caminho do Peabiru Representação sobre o
indígena
Oralidade
de
eruditos
orgânicos
-Várias referências
-Cabeza de Vaca/
Aleixo Garcia
-internet
-Enciclopédia Barsa
-história oficial
contada e questionada
inventada
-Super veloz – peixe
fresco
-longevo
-Dizem que existe,
mas ninguém
assume
- índio carijó
- completo (mapas)
-monumento
-valão
-jesuíta / São Tomé
-Inca
-IHGB
-turismo
- história como
invenção – autoridade
da fala
-Atrasados
-Primitivos
-Invisíveis
-Relaxado
-índio Kaingang
-A Guerra dos Índios
-Os kaingang andam de
ônibus, por segurança.
Oralidade
popular
-Não existe
-era tudo trilha
- nunca ouviu falar
-preguiçoso
- não trabalha
- longevo
- barraca de lona
preta
- língua própria
- escondido no mato
- Caminho de Tropa
de Porco
- cambê
- Não é gente
- Pitanga era dos índios/
cemitério dos índios
- A Guerra dos Índios
local
Campina da Lagoa Kuruguaty
tema
Caminho do Peabiru Representação
sobre o indígena
Caminho do Peabiru Representação sobre o
indígena
Oralidade
de
eruditos
orgânicos
-Kaingang
-São Tomé
- Bandeirantes
-Estrada velha da
Guerra do Paraguai
- história oficial
-Kaingang vende
balaio
-Kaingang na
Redução de Santo
Rei
-índio sorrateiro
-índio esperto
- Trilhas de
colonização
- Caminho da erva
-caminho real
- legalmente protegido
-Ava Guarani perderam
identidade
-Mbia Guarani tem
identidade e usam os
caminhos
-Guayaki trabalham,
espertos, falam várias
línguas
Oralidade
popular
-Caminho dos
Paraguaio
-das missões
-valo- sinal de tropa
-Não tinha
-Já tinha afastado
-o povo diz que
tinha
-Tape =caminho em
guarani
-Tape poy = caminho
prévio
-Casas de lona preta
-Guayaki ladrão – come
cavalo e troca criança
- índio não trabalha
- mentalidade indígena
-Guarani – sujo; largado
124
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