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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
LINHA DE PESQUISA: POLÍTICA E CULTURA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
COMÉDIAS DE COSTUMES DE MARTINS PENA: UMA CARICATURA
DA SOCIEDADE IMPERIAL BRASILEIRA
Fernanda Simões Teles
Rio de Janeiro
Julho de 2007
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
COMÉDIAS DE COSTUMES DE MARTINS PENA: UMA CARICATURA DA
SOCIEDADE IMPERIAL BRASILEIRA
Fernanda Simões Teles
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro-
UERJ como requisito à obtenção do grau
de Mestre em História
Orientador:
Prof. Dra. Márcia de Almeida Gonçalves
Rio de Janeiro
Julho de 2007.
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Teles, Fernanda Simões [19.12.80]
Comédias de costumes de Martins Pena: uma caricatura da
sociedade imperial brasileira.
Rio de Janeiro – UERJ, 2007
Dissertação: Mestrado em História. UERJ.
I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
II. Martins Pena / Teatro / Costumes e práticas sociais
DEDICATÓRIA
A minha avó materna Maria Ruth
por toda confiança que sempre
dedicou a mim, pela ajuda de
todas as horas, pelas palavras
amáveis em momentos difíceis e
para quem a cultura obtida pelos
estudos é a melhor conquista.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos que me ajudaram a tornar possível a realização
desse trabalho.
A Deus, pela saúde que me deu para chegar até aqui e por colocar em minha
vida pessoas tão especiais que me auxiliaram a alcançar meu objetivo.
Aos meus pais Sueli e Fernando, pelo carinho, atenção e paciência comigo
durante todo o processo de elaboração deste trabalho. Amo vocês!
A tia Sônia, por toda ajuda ao longo da minha vida. Serei sempre grata!
A Rosângela, pela ajuda quando necessária e por todo interesse que sempre
demonstrou por este trabalho. Muito obrigada!
A Darli, pela confiança na minha capacidade de superação. Agradeço de
coração!
Ao meu namorado Anderson, que compreendeu os momentos de desespero por
falta de tempo ou de inspiração e me incentivou até o fim.
As minhas amigas, pelos momentos de desabafo e pelo encorajamento de todas
as horas.
E, finalmente, a minha mais que querida e eterna orientadora Márcia Gonçalves.
Exemplo de profissional, de dedicação e de paciência que levarei para o resto de minha
vida. Foi uma honra ter sido sua orientanda.
RESUMO
O objetivo da dissertação está relacionado à análise dos valores
comportamentais da sociedade imperial brasileira, na forma como os mesmos vieram a
ser representados nas comédias teatrais de Luis Carlos Martins Pena. Valendo-se, entre
outras figuras de linguagem, da ironia, Martins Pena construiu e caracterizou
personagens cujas atuações nos permitem criticar os costumes da ordem social vigente
no Império do Brasil. A obra de Martins Pena, “um romântico” nas inovações propostas
para o teatro, assumiu como performance do mundo em foco, uma dimensão
pedagógica, e, a partir dela, propôs padrões de civilidade. Através dos diversos tipos e
situações sociais apresentados pelo comediógrafo, é possível perceber valores e visões
do Brasil oitocentista, que tinha na Corte, no Rio de Janeiro, o pólo irradiador de cultura
do momento em questão.
ABSTRACT
This work analyses the behaviors values of the Brazilian Imperial society by the
way they were represented in Luis Carlos Martins Pena’s comedies theater. Using,
between others figurative languages, irony, Martins Pena created social types that help
us to criticize the customs in Imperial Brazil. The Martins Pena’s work took as
performance of the world in focus, a pedagogic dimension and, from this point,
proposed standards of civilization. Through many types and social situations presented
by the playwright, it’s possible to realize values and views of eighteenth century
Brazilian society, identifying, the city of Rio de Janeiro, the court, as the center of
cultural irradiation of that moment.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .............................................................................................P. 07
CAPÍTULO I: REPRESENTAÇÕES DO MUNDO: O TEATRO ROMÂNTICO
NO IMPÉRIO DO BRASIL ................................................................................P. 12
CAPÍTULO II: CONTRADIÇÕES EM CENA: MARTINS PENA, O TEATRO,
A CRÍTICA. ........................................................................................................P. 31
CAPÍTULO III: A SOCIEDADE IMPERIAL NO TEATRO DE MARTINS
PENA ...................................................................................................................P. 57
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................P. 92
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. P. 96
APRESENTAÇÃO
“Muitas são as formas de estar em uma sociedade e vivenciar sua cultura, sua
economia, suas relações de poder e de dominação. Muitas também são as formas de
percebê –la, pensá –la e mostrar de maneira particular uma visão própria sobre o que
nela ocorre.”
1
Luis Carlos Martins Pena mostrou de maneira muito própria a sociedade
imperial do século XIX. Apresentou sua visão da época na qual viveu em suas comédias
teatrais, fazendo rir ao mesmo tempo em que a criticava. Suas obras são, do ponto de
vista de nosso trabalho, fontes ricas para se entender um pouco do Império do Brasil,
especialmente em sua primeira metade.
A partir desse pressuposto, buscamos analisar os valores comportamentais da
sociedade imperial, na forma como esses vieram a ser representados nas peças de teatro
de Luis Carlos Martins Pena. Seus trabalhos, como sabemos, produzidos durante o
período das regências e o início do governo pessoal de D. Pedro II, desfrutaram, já
naquele momento, de relativo sucesso. Seus personagens, em alguma medida,
retrataram a visão que o autor possuía dos habitantes e das relações sociais e políticas
do seu tempo.
A releitura das comédias de costumes desse teatrólogo nos permite perceber as
contradições e os conflitos de uma sociedade bastante hierarquizada e caracterizada pela
1
VENTURA, Dayse Mery do Carmo. Quem ri consente: A construção da Sociedade Imperial no Riso de
Martins Pena. 1993. Dissertação (Mestrado em História Social das Idéias) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1993, p. 9.
busca de uma ordem política e social que reproduzisse tal hierarquia. Valendo-se, entre
outras figuras de linguagem, da ironia, Martins Pena construiu e caracterizou
personagens cujas atuações nos permitem criticar os costumes da ordem social vigente
no Império brasileiro.
O tempo de vida e de produção intelectual de Martins Pena coincidiu com o
período de formação do Estado e da nação nas terras do Brasil. Para tanto, os
condutores desse projeto, membros da chamada “Boa Sociedade”, procuraram construir
e expandir uma determinada ordem, adequada aos interesses da classe senhorial, e
realizar e constituir padrões de civilidade associados à vida na Corte, entendida como
pólo irradiador de cultura do século em questão.
Sua produção teatral igualmente nos possibilita analisar o projeto civilizador e
civilizatório proposto e aplicado por letrados e dirigentes do Brasil oitocentista,
revelando, entre outros aspectos, a dimensão pedagógica de valores do teatro romântico.
Essa dimensão pedagógica e civilizadora do teatro romântico visava a sensibilizar seus
espectadores e consumidores, tornando-se um campo privilegiado de intervenção social,
no momento em que encurtava a distância entre a língua falada e escrita, facilitando o
entendimento das ações e valores que compuseram a cena de cada espetáculo.
Martins Pena, na criatividade e imaginação de suas peças, fez o público, rir de si
mesmo, no instante em que apresentava quase como caricatura, as atitudes quotidianas
dos grupos que vivenciavam e protagonizavam os valores de uma sociedade em
processo de transformação. Suas comédias, nesse sentido, tornaram-se um gênero
privilegiado para a representação dessa sociedade, em especial, por sua dimensão
irônica, criticando a realidade por todos partilhada.
O momento que, em especial, nos interessa, iniciou-se em 1830, estendendo-se
aos anos de 1850, período de produção da obra de Martins Pena e que correspondeu na
história do país recém-independente, às Regências e aos primeiros anos do governo
pessoal de D. Pedro II. A cena política foi marcada pela vitória do projeto conservador e
pela aplicação das Leis do Regresso que inauguraram o período de maior centralização,
consolidando o ideal de unidade como sustentador da ordem imperial
2
.
Não podemos, no entanto, deixar de destacar a importância de um momento
anterior ao que nos propomos a analisar, aquele da vinda da Família Real portuguesa
para o Brasil, em 1808. Alguns atos de D. João VI, como a criação de bibliotecas e
escolas superiores e a abertura dos portos tiveram ressonância cultural significativas. O
Estado, na pessoa do Monarca, tornou-se um importante estimulador de produções
culturais, no campo das letras e das artes.
Martins Pena escreveu ao todo vinte comédias, dezessete completas e três
incompletas. Entre os textos completos foram encenados dezesseis, a maior parte a
partir de 1840
3
. Nosso autor construiu personagens comuns, do quotidiano,
perfeitamente representados e facilmente identificados pelo público que freqüentava os
teatros e o aplaudia euforicamente. O meio urbano e rural foram retratados em suas
peças. A exploração destes ambientes e seus tipos sociais fizeram com que muitos
críticos o vissem como portador de certa brasilidade, como o pai do teatro nacional.
O teatro foi um campo bastante afetado pelas formulações românticas e tornou-
se um instrumento na busca pela configuração do nacional. O teatro romântico quis
romper com o classicismo de então, opondo, o cômico e o trágico numa só peça.
Martins Pena apresentou em suas primeiras comédias, nos anos pós-1840,
críticas contundentes aos efeitos da descentralização política. O eixo de suas peças
deslocou-se para a Corte, apresentando personagens e situações que reforçavam o papel
da cidade como local de civilização.
2
MOREL, Marco. O período das Regências (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
3
DAMASCENO, Darcy. Comédias de Martins Pena. Edições críticas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1956.
Nesse sentido, particularmente as peças cujo cenário foi à própria cidade-Corte,
com seus personagens e tipos urbanos, nos parecem ser registros valiosos para o
exercício de compreender como comportamentos e códigos sociais foram
protagonizados por essa gente que habitava as ruas da capital do Império do Brasil, em
processo contraditório de constituição.
As principais fontes utilizadas para elaboração de nosso trabalho serão, como já
mencionamos, as peças de teatro do comediógrafo Luis Carlos Martins Pena. Foram
utilizadas: “O Noviço”, representada em 1845, “O Diletante”, representada em 1845,
“Os três médicos”, representada em 1845 e “Os Dous e o inglês maquinista”,
representada em 1845. A escolha dessas quatro peças, num universo tão grande da
produção de Martins Pena, explica-se pelo fato de serem estas peças urbanas, que
representam o espaço da Corte, apresentando personagens desse universo, na década de
1840.
Para contemplar o objetivo citado, o trabalho se dividirá em três capítulos, a
saber: o primeiro analisará as ambiências letradas e culturais, no curso da primeira
metade do século XIX, com destaque para a caracterização do Romantismo e de sua
produção teatral, valorizando sua dimensão realista e como essa veio a ser materializada
nas peças de Martins Pena.
No nosso entendimento, e de acordo com alguns dos que criticaram os trabalhos
de Martins Pena, este autor realizou uma aproximação dos personagens e de suas
situações de vida com a realidade do Império brasileiro.
Cumpre nesse sentido destacar que o teatro adquiriu enorme importância entre as
artes valorizadas pelas sensibilidades românticas, tornando-se mais um meio na busca
pela configuração do nacional. Mais do que isso, o teatro tornou-se um campo
privilegiado de intervenção social.
O segundo capítulo tratará especificamente da trajetória intelectual de Martins
Pena. Além de ser autor teatral, de dramas e comédias, ele foi folhetinista, funcionário
público, censor, ajudando a fundar o Conservatório Dramático Brasileiro.
Luis Carlos Martins Pena pode ser considerado um articulador social. Sua visão
da realidade histórica que vivenciou construiu uma determinada concepção de mundo
sobre a sociedade imperial. O alcance de suas produções foi enorme, tornando
fundamental entender o autor e suas obras como difusores de idéias, no contexto social
do Império brasileiro, no momento convulsionado de sua constituição, no decorrer da
primeira metade do século XIX.
E por fim, no terceiro capítulo, analisaremos as peças já citadas e os
personagens urbanos criados por nosso teatrólogo. Ao fazê-lo, buscaremos identificar os
personagens enquanto tipos sociais que exemplificaram os padrões de conduta da época.
Interessa-nos destacar os personagens que protagonizaram em seus papéis e falas uma
espécie de consciência crítica daquela sociedade e de seus valores. O intelectual Martins
Pena, cioso da pedagogia existencial que os risos poderiam causar em uma platéia
composta por muitos iletrados, viu no teatro um campo de atuação e de recriação, pela
sensibilização do público, da realidade que a tantos beneficiava e que a tantos afligia.
Com esses três capítulos, assim divididos, pretendemos finalizar o trabalho
proposto. Sem a pretensão de esgotar a busca pelas especificidades da sociedade
imperial brasileira, mas deixando o caminho aberto a novas possibilidades de análise e a
novos estudos acerca das obras de Luis Carlos Martins Pena.
1- Reapresentações do mundo: o teatro romântico no Império do Brasil
Para iniciar nosso trabalho, avaliamos como importante caracterizar o
Romantismo e sua produção teatral, valorizando sua dimensão realista e como essa veio
a ser materializada nas peças de Martins Pena. No nosso entendimento, e de acordo
com alguns dos que criticaram os trabalhos de Martins Pena, este autor realizou uma
aproximação dos personagens e de suas situações de vida com a realidade do Império
do Brasil. Para tanto, Martins Pena fez uso do gênero cômico, carregando seus textos
teatrais com o uso da ironia como figura de linguagem, encenando, a sua maneira, a
crítica dos valores que regiam tal sociedade, no quotidiano de seus hábitos e costumes.
Cumpre nesse sentido destacar que o teatro adquiriu enorme importância entre as
artes valorizadas pelas sensibilidades românticas, tornando-se, em diversas sociedades,
mais um instrumento configurador de imagens da identidade nacional. Mais do que isso,
o teatro tornou-se um campo privilegiado de intervenção social. O teatro romântico
rompeu com a racionalidade e a funcionalidade das formulações do classicismo,
misturando elementos trágicos e cômicos numa só peça, opondo, dentro do mesmo
contexto, o riso e a lágrima. A sociedade era mostrada como um todo, cada personagem
com sua linguagem, exprimindo-se através do palavrão ou da reflexão lírica e filosófica.
Assuntos delicados de serem tratados em público, até então, passaram a ser explorados
pelo teatro romântico
1
.
O Romantismo, na qualidade de manifestação cultural e intelectual, caracterizou
cenários europeus, em fins do século XVIII e meados do XIX. Apesar de se apresentar
como um dos conceitos mais vagos e indefinidos, na história da literatura, podemos
1
GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1985, p. 178.
afirmar se tratar de um “movimento sociocultural complexo e de múltiplas faces”
2
. Tal
movimento é fruto de mudanças radicais na história européia, em muito associadas aos
efeitos da Revolução Francesa e da Revolução Industrial, na sua dimensão inglesa.
A reflexão romântica sobre a realidade nasceu com a Revolução Francesa, a
partir da qual, trouxe mudanças significativas nas doutrinas, costumes e
comportamentos do momento em questão. Como argumentou Elias Thomé Saliba
3
,
a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, na dimensão inglesa, imprimiram na
Europa da época uma série de transformações. Tais mudanças excederam as
dimensões objetivas das transformações e chegaram a uma força simbólica capaz de
alterar a realidade, delimitando os contornos de uma nova tomada de consciência dos
homens.
O impacto dessas mudanças foi diferente nas diversas sociedades européias e
o próprio ritmo dessas transformações, tanto nas imagens quanto na realidade, foi
desigual e de faces variadas em cada país, porém aspectos comuns podem ser
apontados, como a reação intelectual frente aos acontecimentos a partir da Revolução
Francesa. Para esses letrados, essas mudanças aceleradas significaram a ruína do
mundo existente e as reflexões românticas surgiram para dar sentido e ou significar
esse mundo.
Os românticos tentaram criar algo novo e imprimir à criação cultural uma
dimensão afirmativa. Uma afirmação de um mundo melhor e mais valioso,
universalmente obrigatório e legítimo sem restrições, que seria essencialmente
diferente do mundo real e da luta cotidiana pela existência. Acreditavam que todo e
qualquer indivíduo poderia, por si mesmo, realizar aquele mundo ideal e valioso.
2
SALIBA, Elias Thomé. Utopias românticas. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 14.
3
Idem, p. 19.
Tudo isso era um rico manancial para formulações de utopias, fossem elas
cerceadoras ou libertadoras.
Entretanto, a característica mais definidora do imaginário romântico foi a sua
permeabilidade ao instável, dessa forma, a imagem projetada de uma sociedade
oferecendo a cada homem a possibilidade de desenvolver-se e, até mesmo de
transformá-la, superestimaram a realidade européia da época. Além de resquícios da
hierarquia do passado, esta sociedade, começa a mostrar sua verdadeira face,
sobretudo após a revolução de Julho de 1830, a face da tirania do dinheiro, mais
terrível do que a anterior por nascimento.
Surge daí talvez o impulso às utopias românticas. Esse fracasso dos projetos
mais conseqüentes de transformações sociais, inerentes à Revolução Francesa,
fracasso vivenciado sob crise de identidade, propiciou o ingrediente básico das
utopias modernas: o desenraizamento do tempo presente, negando o presente e
interrogando o futuro. A possibilidade de ruptura com uma organização já
estabelecida, abandonando convenções e comportamentos tradicionais, sem sequer
esboçar a possibilidade de uma outra ordem a ser construída, ainda que sob forma de
representação mental, deixou espaço para uma reflexão sobre possibilidades e
impossibilidades de uma cidade utópica.
O imaginário romântico pode ser visto como um conjunto difuso de
representações mentais de toda a experiência humana individual ou social na época
indicada, porém não podemos deixar de destacar que tal imaginário constituía uma
dimensão implícita das sociedades européias do século XIX.
As proposições românticas se estabeleceram em diálogo com os valores do
classicismo, por vezes reelaborando-os, por vezes, os negando, com pendores de querer
instaurar o novo, em especial no que se referia ao cumprimento de regras no campo da
produção artística. Os anos de 1800 centralizaram o conflito entre classicismo e
romantismo em torno das encenações teatrais.
O classicismo simbolizava a ordem, a racionalidade, a inspiração submetida ao
crivo da lógica. As peças se estruturavam sobre o princípio da verossimilhança, não a
verdade, mas aquilo que pudesse ser admitido como tal pelos espectadores. O tempo
fictício e o tempo real, com certa margem de tolerância, deveriam coincidir. Usar a
imaginação caminhando por épocas ou países, quando na realidade ainda estava na
poltrona do teatro, seria abusar da inverossimilhança. No momento que era necessário
alguma referência a tempo e espaço mais amplos para compreensão do enredo,
utilizava-se o recurso da narração.
Esse desejo de lógica interna e externa era reforçado pela unidade de tom, pela
distinção entre tragédia e comédia, concebidas pelos classistas, como gêneros
complementares e mutuamente exclusivos. Não deveriam ser misturados, conservando
certo decoro público e particular, conferindo à peça a racionalidade e funcionalidade
presentes nos modelos clássicos.
O classicismo não desconhecia e nem mesmo renegava as paixões humanas. O
ciúme, a ambição, o crime, a traição, o suicídio, o amor desesperado eram correntes,
mas a perfeição, os rigores da construção distanciavam o sofrimento. Havia fronteiras,
formuladas ou implícitas, que abrangiam desde a moral até a etiqueta.
O romantismo abusou da imaginação, do lirismo, da liberdade criadora,
misturava elementos trágicos e cômicos, não somente na mesma peça, como na mesma
personagem. A sociedade era mostrada como um todo, cada personagem com sua
linguagem, exprimindo-se em verso ou em prosa, através do palavrão ou reflexão lírica
e filosófica. O tempo e o espaço são tratados com a igual desenvoltura.
A ação não é contínua, mas construída pela soma de pequenas cenas, que se
entrelaçam configurando o enredo, que em sua maioria, constituía-se de subenredos que
terminam por se encontrar.
A beleza, no sentido da idealização, cede lugar ao pitoresco, à cor local, ao
característico, a tudo o que, pelo efeito de surpresa ou de contraste, faça ressaltar
vivamente a realidade. A natureza inteira, o disforme como o perfeito, o miserável
como o poderoso, o bom como o mau, tudo era matéria de arte.
As modificações estruturais introduzidas ou reintroduzidas pelo romantismo
proporcionaram um aceleramento da ação. A peça não girava em torno de um só eixo, o
enredo ocupa a atenção antes dispensada ao psicológico da personagem. A dinamização
do espetáculo deixa de lado o aprofundamento humano ou social em favor de
reviravoltas e revelações em que se constituía um enredo romântico típico.
Portanto, a poética romântica não se desejava dogmática, partia de uma
concepção do homem, tentava manter-se aberta. Buscou romper com o ideal único de
perfeição, mesmo porque esse ideal, na perspectiva dos românticos não tem como
existir, já que no mundo predominam a variedade e as peculiaridades de cada povo.
A imaginação romântica parte de um mundo real, buscando valorizar as
especificidades de cada local. O romantismo será um forte aliado na construção do
nacional, através da experimentação nas diversas formas de produção cultural como as
letras e o teatro, esse movimento tentará imprimir a chamada “cor local” em suas obras.
A língua, por exemplo, era o mais significativo dos fenômenos culturais e o
idioma, a herança particular de cada povo. Segundo Saliba, “as palavras, ao
relacionarem os sentimentos com as coisas, o presente com o passado, e tornar
possível a memória e a imaginação, acabavam por criar a família, a sociedade, a
literatura e a história
4
.
Nesses termos tais formas de perceber e apresentar o mundo alimentou uma
série de utopias, no sentido de formulações onde cada qual, a sua maneira, imaginava
um lugar que quisesse estar.
Torna-se importante destacar a estreita relação entre romantismo e a questão da
nacionalidade. A idéia de “nação”, relacionada à concepção de Estado organizado em
termos políticos, data do século XVIII e logo ganhou força, apesar de, no século
seguinte, ainda haver discussão acerca de sua definição.
A idéia de nacionalidade é resultado de um processo de construção que se fez, e
se faz, através de instrumentos socioculturais como a escrita em geral e a História em
particular. Desse modo, pintar tal natureza permitia aos escritores brasileiros o duplo
movimento necessário ao estabelecimento de uma identidade: a imagem do “eu” e a
diferença em relação ao “outro”. Esse foi o objetivo da criação do Instituto Histórico e
Geográfico em 1838, utilizar as letras no projeto de construção da nação.
A literatura tomou parte nesse projeto de construção da nacionalidade e tornou-
se instrumento com a função de escrever o que quer que fosse para alcançar o objetivo
proposto. Segundo Ronald de Carvalho:
“Um povo sem literatura seria, [...], um povo mudo, sem tradições e sem
passado, [...]. De todas as artes é a palavra, [...], aquela que exerce uma influência
mais penetrante, um papel mais saliente na formação da nacionalidade[...]”
5
.
4
Idem, p. 44.
5
JOBIM, José Luís. Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999, p. 18.
A literatura coube a função de difundir os elementos que passariam a ser
patrimônio comum de todo um grupo e tornar “fatos” e “dados” reais para todos
aqueles que deveriam compartilhar esse patrimônio, ou seja, tornar visível o que não o
é necessariamente.
A natureza foi o tema escolhido pelo romantismo para começar a “pintar” o
Brasil. Ela aparece com diversas feições: como aquilo que o poeta contempla para
tomar consciência do seu universo próprio, como representação simbólica das verdades
da existência humana e também como o ideal contrastando com a civilização que teria
acarretado desilusões para o homem contemporâneo
6
.
Nesse ponto a literatura ganha espaço na construção da nacionalidade, no
momento que a natureza já era vista como traço característico do continente em relação
ao “outro”.
Nesses termos, “pintam” o retrato da natureza brasileira e, simultaneamente,
evidenciam a diferença existente nessas terras, valorizando a “pátria” pelo que ela
possui e que a Europa não pode ter.
Além disso, esse momento teve importância porque a ‘pintura’ da natureza
tipicamente brasileira representava a possibilidade de fazer uma literatura que fosse
autenticamente nacional. Não se podia esquecer, no entanto, um dado importante para
construção de uma identidade própria, o fato de que a literatura aqui produzida era
escrita na língua do antigo colonizador, tal fato poderia atrapalhar os êxitos
conseguidos pelos brasileiros. A solução para esse problema seria falar de temas
diferentes dos temas lusitanos e assim, usando a criatividade e imaginação, criar uma
literatura autenticamente brasileira.
6
Idem, p. 22.
O romantismo surgiu no Brasil no século XIX. No caso da produção letrada de
autores brasileiros, os textos entendidos como românticos surgiram na década de 1830.
Foi um período de intensa tematização do nacional, da busca pela formação de uma
nação autenticamente brasileira.
Uma literatura nacional era entendida por uns como a celebração da pátria, por
outros como indianismo e para outros como algo que nos exprimisse. Na ausência de
uma definição precisa, ao menos os materiais necessários para construí-la eram
conhecidos, a saber: tradições, religião, costumes, instituições, história, natureza entre
outros.
“Os costumes são, se assim me posso exprimir, a cor local da sociedade, o
espírito do século. Seu caráter fixa-se mais ou menos segundo as crenças, as tradições
e as instituições de um povo. Eles devem transparecer em toda poesia nacional, para
que o poeta seja compreendido pelos seus concidadãos [...]. Quanto à natureza,
considerada como elemento da nacionalidade da literatura, onde ir busca-la mais cheia
de vida, beleza e poesia (...) do que sob os trópicos?”
7
O patriotismo torna-se, para o escritor, um estímulo não apenas a cantar a sua
terra, mas a considerar suas obras uma contribuição ao progresso, denotando a literatura
sua função de contribuir para a formação da nação.
O nacionalismo engloba o nativismo, predominando o sentimento da natureza,
mais o patriotismo, ou seja, o sentimento de apreço pela jovem nação e o intuito de
dotá-la de uma literatura independente, uma literatura brasileira, desprezando as regras
universais e evidenciando o individual, o único.
As reflexões românticas ganham destaque nesta busca pelo nacional,
concebendo um novo papel para o artista, um novo sentido para a obra de arte,
7
CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1964, 2
volumes, p. 10.
liquidando a convenção universalista dos clássicos, em benefício de inspirações locais.
Diante dessas concepções, o individualismo e o relativismo podem ser considerados a
base da atitude romântica.
O experimentalismo modificou o discurso, derrubando a hierarquia das palavras
e procurando uma expressão única para cada caso, cada nova necessidade. Em meio a
essa revisão de valores proposta pelos românticos, destaca-se o desejo de imprimir à sua
visão um selo próprio, manifestando um ponto de vista único, um ângulo pessoal.
Tais atitudes estão de acordo, e em parte, se devem as novas posições do
escritor, entregue à carreira literária, a si próprio e ao público, em contraposição ao
escritor pensionado, quase confundido na criadagem dos mecenas do período anterior.
É necessário destacar ainda, para compreensão desse momento de construção do
nacional, a importância da vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808.
Alguns atos de D. João VI como a criação de bibliotecas e escolas superiores, abertura
dos portos às nações amigas, tiveram ressonância culturais significativas. Nesse
momento se fizeram presente a europeização dos valores e a introdução de hábitos
comportamentais e de lazer em consonância com as necessidades da Corte.
A literatura romântica, tributária das questões suscitadas pela independência,
sempre expressou sua ligação com a política e, ao lado da euforia da liberdade e do
desejo de construção de uma pátria brasileira, surgiu também o desejo de criação de
uma literatura própria do Brasil. Os românticos abandonam aos poucos o tom lusitano
em favor de um estilo mais próximo da fala brasileira, provocando com isso a censura
de muitos puristas da época, que achavam que nossos escritores deviam continuar fiéis à
linguagem literária praticada em Portugal.
Esse mundo das letras se apresentou como um instrumento, dos mais
importantes, de criação da nação, expressando, através de suas experimentações, o
desejo de mudança, de fundar algo novo ressaltando as particularidades nativas. A
instabilidade causada pela ruptura com o Estado metropolitano valorizou um olhar para
aquilo que era especificamente nacional, portanto a literatura estava associada às
mudanças que se faziam sentir em solo brasileiro.
A produção letrada, como campo de caracterização de algo próprio, particular,
somado à identificação do “nacional”, passa também a ser um lugar de experimentação.
Nesse processo, para alguns, o momento era de elaborar uma “literatura nacional”.
A literatura, segundo Gonçalves de Magalhães
8
, tem grande importância para
um povo por representar as idéias de cada época, ser sua única representante para a
posteridade, isso é uma concepção de literatura, em tudo associada ao desejo de fundar a
nação.
“A literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais
sublime nas idéias, de mais filosófico no pensamento, de mais heróico na
moral, e de mais belo na natureza; é o quadro animado de suas virtudes e de
suas paixões, o despertador de sua glória, e o reflexo progressivo de sua
inteligência; e quando esse povo, ou essa geração desaparece da superfície da
terra com todas as suas instituições, crenças e costumes, escapa à literatura
aos rigores do tempo para anunciar ás gerações futuras qual fora o caráter e
a importância do povo, do qual é ela o único representante na posteridade”.
9
A sensibilidade romântica dentro do quadro de tensões associado ao processo de
construção de um Estado independente e de criação de valores de uma identidade
nacional, vai buscar elaborar, através de seus autores, o nacional.
8
MAGALHÃES, Gonçalves. Discurso sobre a história da literatura do Brasil. In: Afrânio Coutinho- org-
Caminhos do pensamento crítico. RJ: Pallas/Mec, 1º volume, 1980, p. 24.
9
Idem, p. 24.
Segundo Machado de Assis
10
, o período do romantismo no país, se caracteriza
não como um romantismo uniforme, porém marcado por uma busca pelo nacional, pelo
que seria a “cor local”. Esse instinto de nacionalidade, como o autor assim intitula, se
apresentava nas obras do período e até mesmo nas manifestações de opinião pública
quando já se aplaudiam avidamente aquelas com toques nacionais. Entre os elementos
da cor local brasileira foi recorrente em autores e obras variados, tematizar o habitante
nativo, o índio, e a natureza.
Ocorre, então, de acordo com Antônio Cândido
11
, uma tomada de consciência
onde se explicou o significado real do indianismo como útil presença do característico e
a necessidade do escritor de não se restringir a ele, a fim de poder atingir a maturidade
que permite ser brasileiro, independente do tempo.
O romantismo foi tributário ao nacionalismo. Principalmente nos países novos,
adquirindo independência, o nacionalismo traz uma tomada de consciência, advindo daí
a soberania do tema local e sua importância em tais países entre os quais fazemos parte.
A descrição de costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de sentido nacional,
era libertar-se da literatura clássica, comum a todos, afirmando em contraposição, o
espontâneo, característico, particular.
Os românticos acreditavam ter a missão de exprimir a realidade específica da
sociedade brasileira. Essa consciência social imprime nas obras desses artistas um
cunho realista que provém da disposição de fixar literariamente a paisagem, os
costumes, os tipos humanos de sua época.
As transformações acarretadas pelo romantismo na concepção do homem e ao
temário da literatura, não poderiam se manifestar sem mudanças nas formas de
10
ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. In: Afrânio Coutinho – org- Caminhos do pensamento
crítico. Rio de Janeiro: Pallas/Mec, 1980, p. 357
11
Antônio Candido. Op. Cit. p. 18.
expressão, tanto gêneros quanto estilo e técnicas, interferindo na valorização e uso
recorrente do romance, da prosa, ficção, nas suas experiências com a poesia e também
no teatro.
A partir da vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, o incentivo ao
teatro se fez sentir. Buscava-se trazer ao Brasil, o divertimento à corte e ao próprio
monarca. Não só a futura capital do Império como também em outros locais do país,
casas de espetáculos se proliferaram e junto com elas surgiram às primeiras companhias
dramáticas de declamação.
O teatro se fez presente apresentando valores e concepções da realidade,
compartilhados por autor, atores e espectadores. O espetáculo torna-se um momento
importante de reflexão na medida em que estabelece uma relação ao vivo entre autor-
obra-público numa representação da realidade, que muitas vezes acaba por envolver
emoções, no instante do reconhecimento da linguagem ou mesmo das situações
apresentadas.
As encenações teatrais sempre acompanharam os momentos históricos. No
período próximo a abdicação, por exemplo, o Teatro São Pedro de Alcântara, cujo
nome fora uma homenagem ao primeiro Imperador, passava a se chamar Constitucional
Fluminense. Ao mesmo tempo em que os acontecimentos políticos perturbaram as
atividades teatrais, estes também contribuíram na construção de nossa consciência
nacional, na construção de uma nação brasileira.
O ambiente cultural transformou-se com a abdicação de D. Pedro I,
representando ampliação e diversificação na esfera pública cultural e literária. O público
leitor cresceu, composto, sobretudo, por jovens da classe alta, a quantidade de
impressos, a diversidade de debates políticos e a palavra rimada se misturam a
construção de uma nova nação, da qual faziam parte a chamada “Boa Sociedade”, ou
seja, composta desde os políticos mais influentes aos fazendeiros, passando pelos
profissionais liberais – todos brancos, livres e proprietários de escravos.
O teatro nacional nasce em meio a esse turbilhão de novidades trazidas pelo
romantismo e torna-se um aliado na busca pelo nacional, por uma identidade de nação.
Mais que isso, o teatro torna-se um campo privilegiado de intervenção social.
As comédias de costumes de Martins Pena foram um exemplo muito bem
sucedido deste tipo de intervenção. Ele escolheu o teatro como forma de se expressar
diante dos acontecimentos e da sociedade de sua época. Sociedade essa apresentada
com todos os seus defeitos e mesmo assim fazendo rir.
Armado de imaginação e criatividade, o nosso comediógrafo trouxe personagens
comuns, do quotidiano, perfeitamente representados e facilmente identificados pela
“Boa Sociedade”, que freqüentava os teatros e os aplaudia euforicamente. O meio
urbano e rural eram revistos em suas peças teatrais
12
.
Considera-se que o teatro nacional foi fundado em 13 de Maio de 1838 com a
representação da tragédia “Antônio José” de Gonçalves de Magalhães. Martins Pena
virá logo após com sua comédia de costumes. João Caetano, ator e produtor, aparece
em seguida completando a obra dos dois primeiros
13
.
A Gonçalves de Magalhães se deve o mérito de ser o autor da primeira peça
teatral nacional escrita por um brasileiro. Logo em seguida, aparece Martins Pena com
sua comédia denominada “O Juiz de paz da roça” representada no teatro São Pedro em
04 de Outubro de 1838.
12
VENTURA, Dayse Mery do Carmo. Quem ri consente: A construção da Sociedade Imperial no Riso
de Martins Pena. 1993. Dissertação (Mestrado em História Social da idéias) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói. 1993, p. 32.
13
SOUSA, J. Galante de. O teatro no Brasil. Rio de Janeiro: Ministério da educação e cultura, Instituto
nacional do livro, 1960, p. 167.
Segundo Luís Francisco da Veiga
14
, a peça de Martins Pena citada acima foi
elaborada em 1833, quando o autor era ainda estudante do segundo ano da Aula de
comércio e tinha 18 anos de idade. Temeroso que o teatro lhe dificultasse a obtenção de
emprego público, não tentou a representação da peça de imediato. Isso somente ocorreu
em 1838, como já dito, quando então já exercia a função de amanuense da Mesa do
Consulado da Corte. Tem-se notícia, segundo ainda nosso Francisco da Veiga, que as
peças “A família” e a “Festa da roça” seriam composições anteriores do teatrólogo.
Depois da música, o teatro foi uma das expressões mais usadas pelos
românticos. Autores que se quiseram românticos, quase todos escreveram alguma coisa
para o teatro. Entre tais autores destacam-se José de Alencar, Gonçalves de Magalhães,
Gonçalves Dias e Araújo Porto Alegre.
Este último, Araújo Porto Alegre, por exemplo, como os outros, projetaria na
atuação cultural um potencial reformista de grandes proporções. Como um homem de
letras, escreveu alguns textos para revistas do Rio de Janeiro e para o teatro, em ambas
as ocasiões, tentaria difundir novos costumes e valores na sociedade da corte.
Os letrados brasileiros se engajariam no teatro realista, que ganhava o gosto de
público. Porto Alegre, por exemplo, acrescentou temas próprios à sociedade brasileira,
fazendo uma reflexão moral sobre os costumes da sociedade do Rio de Janeiro.
O contraste entre a essência das personagens e a aparência social seria um tema
caro às obras do autor, configurando uma crítica que apontava a necessidade de buscar
para os dilemas do Império soluções livres de modelos externos.
À força de uma apresentação caricata das personagens, Porto Alegre tomava
claramente posição quanto ao projeto de melhoramento dos costumes do Império:
14
VEIGA, Luís Francisco da. Apud: J. Galante de Sousa. Op. Cit. p. 170.
tratava-se de aprimorar os hábitos brasileiros de costumes demasiado embebidos no
passado colonial.
Temas como casamento por dinheiro, cobiça pelo luxo, nomes e títulos dando
legitimidade a quem os portava, ironias aos hábitos europeizados das elites brasileiras,
concentradas em adaptar o Império à civilização foram recorrentes nas encenações
teatrais desses autores que se quiseram românticos.
Teatros proliferaram no Brasil Imperial e o entusiasmo do público era tão grande
que acabou se formando “partidos” em torno desta ou aquela atriz e as lutas entre as
diversas facções, saíam muitas vezes do terreno dos aplausos para as brigas de verdade
ou mesmo chegavam à imprensa em polêmicas intermináveis. Era assunto levado a
sério pelo público que freqüentava os teatros
15
.
Na primeira metade do século XIX se firma nos jornais a conjugação entre
imprensa e literatura. Sobre isto, Silvio Romero afirmou que:
No Brasil, mais ainda do que noutros países, a literatura conduz o jornalismo e
este à política que, no regime parlamentar e até no simplesmente representativo, exige
que seus adeptos sejam oradores. Quase sempre as quatro qualidades andam juntas: o
literato é jornalista, é orador e é político”
16
.
A afirmação de Silvio Romero era verdadeira. Os homens de letras faziam
imprensa na época em questão. Muitos eram colaboradores nos jornais como José de
Alencar no Diário do Rio de Janeiro; Gonçalves Dias na Revista Popular; Luis Carlos
Martins Pena no Jornal do Comércio entre outros. Esses intelectuais fizeram não só
15
Idem, p. 183.
16
SODRÉ, Nelson Werneck. Historia da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 1999, p. 212.
imprensa como também teatro, para tanto obtinham uma liberdade relativa em suas
criações literárias, pois para qualquer peça ser levada à cena, devia passar pela censura
do Conservatório Dramático Brasileiro e pela Polícia.
O Conservatório Dramático Brasileiro foi criado a 30 de Maio de 1843 e se
extinguiu em 1864. Porém, a primeira manifestação de censura teatral no Brasil foi o
edital de 29 de Novembro de 1824, expedido pelo Intendente Geral da polícia da Corte,
Francisco Alberto Teixeira.
A primeira diretoria do Conservatório era constituída pelo presidente Diogo
Soares da Silva de Bivar, o vice- presidente Cônego Januário da Cunha Barbosa, o 1º
secretário José Rafino Rodrigues de Vasconcelos, o 2º secretário era Luis Carlos
Martins Pena, como tesoureiro José Florindo de Figueiredo Rocha e procurador Luís
Garcia Soares de Bivar.
A finalidade óbvia era exercer oficialmente a censura teatral.
Não devem aparecer em cena assuntos nem expressões menos conformes com
o decoro, os costumes e as atenções que em todas as ocasiões se devem guardar,
maiormente naquelas em que a Imperial família honrar com a sua presença no
espetáculo”.
17
Este Conservatório, que seguia o modelo do francês e do português, tinha o
objetivo de promover estudos dramáticos e o melhoramento da cena brasileira, para essa
finalidade pretendia fundar uma escola de declamação e arte dramática para atores, criar
um jornal onde se divulgassem os trabalhos da associação, estabelecer a crítica literária
17
Idem, p. 311.
e ainda dar parte lingüística de todas as composições em português que lhes fossem
enviadas para exame
18
.
Possuía uma natureza literária, porém seus associados queriam efetivamente
formular e implantar políticas oficiais. Acerca disto o Conservatório se colocava a
disposição para:
“ [...] censura das peças que subirem à representação nos teatros públicos da
Corte, ou ainda a sua inspeção moral, o Conservatório se prestará prontamente a este
encargo, podendo propor e requerer o que lhe pareça acertado para seu mais cabal
desempenho”.
19
Os letrados que faziam parte deste Conservatório eram nomes que atuavam no
IHGB, na Academia de Belas Artes e haviam passado pela atividade jornalística. A
imprensa foi importante, neste sentido, como forma de ingresso no mundo dos homens
de letras no momento em que expandia contatos e funcionava, portanto, como porta de
entrada para o mundo político e social.
Atuar em jornais era fundamental não só porque essa atividade fazia parte de um
caminho para uma ascensão intelectual, mas também porque os periódicos eram à base
da circulação de idéias. O jornalismo tinha um papel de formador de opinião, sendo
percebido como uma espécie de dimensão complementar e essencial da atividade
política.
18
SOUZA, Silvia Cristina Martins. As noites do ginásio: teatro e tensões culturais na corte (1832-1868).
São Paulo: Ed da Unicamp, 2002, p. 145.
19
Idem, p. 145.
Nos jornais, a crítica teatral ganha espaço junto aos romances. Martins Pena
ocupa o espaço do rodapé de um desses periódicos sob o título de “Semana Lírica”. Foi
o primeiro crítico musical brasileiro a ensaiar sua autodefinição. Sua obra assinala o
entrecruzamento de forças aparentemente contraditórias: dramalhão, tragédia, comédia e
ópera. Uma força incide sobre a outra, em surto de influências e entretextos
20
.
Era freqüentador do mundo da ópera da Corte, das redações de jornal e do teatro
dramático, obtendo seu material de trabalho diretamente da fonte por ser censor do
Conservatório Dramático Brasileiro.
Segundo Martins Pena o papel do crítico é duro, mas tem seus momentos bons.
Seu trabalho crítico utilizava o tom cômico para tratar de episódios trágicos. Muitas
vezes incorre da farsa e da paródia para dar conta dos espetáculos que assistia. Percorria
os teatros em busca das peças todas as noites. Ouvia as récitas das óperas e academias e
escrevia sobre elas, corrigindo os cantores, analisando os músicos, derrubando
pretensões, narrando o entrecho das óperas, censurava vestuários e cenários, denunciava
problemas administrativos e desonestidades, apontando os descasos da censura e
demonstrando as reações entre artistas e platéias.
Os jornais também eram portadores dos lançamentos das obras literárias. Muitas
delas eram folhetins que, por fazerem sucesso, transformavam-se em livros após algum
tempo. As traduções de folhetins franceses, por exemplo, eram bastante aguardadas
pelos leitores. Estes romances impressos nos rodapés dos jornais quase diariamente,
faziam parte de uma estratégia desses periódicos, na qual esses folhetins publicados em
pequenos capítulos alimentavam a curiosidade dos leitores que para acompanharem o
desfecho de seus romances preferidos, compravam os jornais todos os dias e assim esse
veículo de comunicação aumentava sua renda mensalmente.
20
GIRON, Luís Antônio. Minoridade crítica: a ópera e o teatro nos folhetins da Corte. Rio de Janeiro:
Ed. Ediouro, 2004, p. 127
O fenômeno romance-folhetim se estendeu à todos os jornais da Corte
significando uma relação direta entre o aumento das vendagens dos jornais e a
publicação dos folhetins. Devido a isso, os jornais se modificavam constantemente no
formato, na diagramação, nos rodapés, nos anúncios mostrando que o folhetim era
imprescindível a vida de um periódico no Brasil Imperial.
O folhetim brasileiro do século XIX tornou-se célebre como veículo primordial
de divulgação de obras de ficção. Na realidade, constituía um espaço reservado nos
jornais e revistas não apenas à ficção, mas também à discussão de idéias e à crítica
acerca das artes, principalmente na corte do Rio de Janeiro, onde a vida cultural da
época fervilhava com óperas, peças de teatro e outras manifestações culturais.
O Conservatório Dramático Brasileiro com sua função de controlar a qualidade
literária e o conteúdo das peças em cartaz tentava conciliar a censura de costumes e
crítica literária.
Essa censura era feita por intelectuais como o nosso comediógrafo Luis Carlos
Martins Pena, o qual além de criar peças teatrais que faziam a “Boa Sociedade” rir de si
mesma visualizando nos personagens apresentados uma crítica aos seus próprios
costumes, também exerceu a função de folhetinista crítico-teatral quando corrigia os
costumes teatrais por meio de textos analíticos e que, apesar disso, divertiam os leitores.
A representação cômica da vida nacional surgiu do jornalismo satírico da
Regência e mais tarde nos folhetins cômicos do período da Maioridade, no Segundo
Reinado. Aprofunda-se uma longa tradição de humor brasileiro, que será ativado e
realimentado no período republicano através das fortes relações entre humor e imprensa
periódica.
A ironia pode ser lida como a arte de dizer pela negação daquilo que algo parece
ser. Dessa maneira, entre o dito e a coisa objeto do enunciado se instala um hiato, uma
descombinação que pode alimentar o riso ou a raiva. Essa é a força retórica do ato de
ironizar, algo que guarda seu potencial de crítica. Para o jovem teatrólogo, alvo do
nosso estudo através de suas comédias de costumes, não havia outro caminho senão a
utilização do riso para registrar sua época.
Esta sociedade se vê nas comédias de Martins Pena e admite a realidade ali
representada no momento em que rindo se torna cúmplice das situações ali
apresentadas. Rindo, ela consente ao autor a crítica e o endosso de seus projetos e de
suas tentativas acertadas ou não de efetivação deles. A concepção romântica do cômico
pode ser definida:
“ O riso foi enviado á terra pelo diabo, apareceu aos homens com
a máscara da alegria e eles o acolheram com agrado. No entanto,
mais tarde, o riso tira a máscara alegre e começa a refletir sobre
o mundo e os homens com a crueldade da sátira”
21
.
O mundo de suas personagens englobava, sobretudo, o povo simples da roça e a
gente comum das cidades. O tema das peças gira em torno de casamentos, heranças,
dívidas, festas da cidade entre outros, dessa forma o quotidiano é retratado de forma
caricatural, porém real, o que atraiu vários componentes da classe senhorial ao teatro
para rir de seus próprios costumes, os cenários e a linguagem eram reconhecidas pelos
espectadores. O teatro de costumes era a única veia autêntica do palco nacional no
século em questão.
Em pleno movimento romântico do século tratado e sua busca por uma literatura
nacional, o comediógrafo Martins Pena, resgata a vida na província fluminense,
colocando em contato seus habitantes diante de um público que ria e consentia o que
21
MIKAIL, Bakhtin. A cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987, p.17.
via. Sua linguagem simples facilitava tal contato e seus personagens eram logo
reconhecidos pelo público que aplaudia cada nova produção. Martins Pena não apenas
expressava aquilo que pensava, mas compartilhava com seu público as suas idéias,
específicas daquela realidade reconhecida por todos.
2- Contradições em cena: Martins Pena, o teatro, a crítica.
“Se perdessem todas as leis, escritos e memórias da história brasileira dos
primeiros cinqüenta anos deste século dezenove, que está a findar, e nos ficassem
somente as comédias de Pena, era possível reconstituir por elas a fisionomia moral de
toda essa época.”
1
O texto acima escrito por Silvio Romero no final do século XIX, remonta ao
momento da “monumentalização” do autor Luis Carlos Martins Pena. Esse
reconhecimento do seu talento só ocorreu após sua morte. Em sua época de produção
teatral, que se estendeu entre 1830 e 1845, nosso autor não era uma unanimidade,
tornando-se um grande nome do teatro nacional somente após uma tuberculose tirar sua
vida.
No seu tempo de vida, Luis Carlos Martins Pena exerceu diversas atribuições.
Foi autor teatral, de dramas e comédias, folhetinista, funcionário público, censor,
ajudando a fundar o Conservatório Dramático Brasileiro.
Este segundo capítulo tem por objetivo, portanto, realizar algumas análises sobre
a atuação de nosso autor como letrado na Corte Imperial, destacando a pluralidade de
suas formas de atuar, em especial, quanto à produção teatral. Nesse sentido, torna-se
importante ressaltar o papel do teatro entre as artes valorizadas pelas sensibilidades
românticas, na época em questão, visto como mais um espaço configurador da
identidade nacional.
1
Silvio Romero. Apud: MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Martins Pena e sua época. 2 edição. São
Paulo: LISA, 1972, p. 253.
O teatro com dimensão realista, que surgia no alvorecer dos oitocentos, integrou
as diversas práticas de instaurar o novo no que se referiam as normas da produção
artística. O objetivo era buscar a “cor local”, mostrando a variedade e as especificidades
de cada povo dentro do país.
Esse novo gênero teatral rompeu com o classicismo, sua racionalidade e
funcionalidade. Assuntos delicados de serem tratados em público, até então, passaram a
ser explorados pelo teatro romântico. O adultério, o estupro, o incesto escandalizaram,
num primeiro instante, aquelas pessoas que assistiam aos espetáculos. Porém, a lotação
dos teatros demonstrou que a poética romântica, sem princípios ou normas rígidas,
estava sendo entendida. Permitia-se que o teatro tocasse em assuntos proibidos. O
Romantismo não defendeu, mas também não condenou nenhum dos assuntos tratados,
deixando no ar as possibilidades perturbadoras, as sugestões tentadoras e maléficas
2
.
Martins Pena foi um grande representante desse romantismo mais realista, e
como tantos outros que se disseram românticos, buscava um teatro essencialmente
nacional. Sobre ele, José Veríssimo diria:
E Martins Pena não é senão isto, um escritor de teatro. Do autor dramático
possui em grau de que se não antolha outro exemplo na nossa literatura, as qualidades
essenciais ao ofício e ainda certos dons, que as realçam: sabe imaginar ou arranjar
uma peça, combinar as cenas, dispor os efeitos, travar o diálogo, e tem essa espécie de
observação fácil, elementar, corriqueira e superficial, mas no caso preciosa, que é um
talento do gênero. Não raro tem o traço psicológico do caricaturista, e o jeito de
apanhar o rasgo significativo de um tipo, de uma situação, de um vezo. Possui veia
cômica nativa, espontânea e ainda abundante, infelizmente, porém (defeito desta
mesma virtude) com facilidade de se desmandar na farsa. Martins Pena e Manuel de
Almeida, o singular e malogrado autor das “Memórias de um sargento de milícias”,
são porventura os melhores, senão os únicos, exemplos de espontaneidade literária que
apresenta a literatura brasileira. A maior parte das peças de Martins Pena são antes
farsas que comédias. Independentemente dessa denominação, que ele próprio lhes deu,
a sua feição e estilo é de farsa. Ele exagera o feitio cômico das situações e
personagens, acumula o burlesco sobre o ridículo, manifestamente no intuito de melhor
2
PRADO, Décio de Almeida. O teatro romântico: a explosão de 1830. Apud: GUINSBURG, J. . O
Romantismo. 2 edição. São Paulo: Editora perspectiva, 1985, p. 178.
divertir, provocando-lhe o riso abundante e descomedido, o seu público. É tradição que
o conseguiu plenamente. Ainda hoje se representam as comédias de Pena com o mesmo
sucesso de franca hilaridade que lhe fizeram nossos pais. A mais de meio século de
distância, lidas ou ouvidas, deixam-nos a impressão de representarem suficientemente
no essencial e característico o meio brasileiro que lhes serviu de modelo e tema. E só
talvez delas, em todo o nosso teatro, se poderá dizer a mesma cousa.”
3
Esse teatro, de víeis romântico, na forma como Martins Pena o criou, tornou-se
um campo privilegiado de intervenção social, no instante em que aproximava a
linguagem escrita e falada, facilitando o entendimento das ações e valores encenados a
cada peça.
A realidade imperial, com as atitudes e valores daqueles que vivenciavam e
protagonizavam aquela sociedade em transformação, eram apresentados nos espetáculos
e faziam rir. Esse riso poderia ser entendido como aceitação e consentimento frente a
determinados costumes e valores comportamentais identificados pelo público na cena
teatral.
Segundo Dayse Mery Ventura
4
, a comédia, devido a sua face sarcástica e crítica,
ironizava a realidade por todos partilhada, e as risadas proporcionadas, demonstravam
ao autor que ele estava sendo compreendido, que era possível rir da regra.
Martins Pena escolheu o teatro, em toda sua dimensão pedagógica e civilizadora,
como forma de se expressar diante dos acontecimentos e da sociedade da sua época. Na
emissão de juízos de valor, em muitas das falas de alguns personagens de suas
comédias, o autor buscava sensibilizar, pelo riso, a platéia, tentando, de alguma
maneira, educá-la, fosse pelo consentimento com o juízo emitido, fosse pelo
3
José Veríssimo. Apud: DAMASCENO, Darcy. Comédias de Martins Pena. Rio de Janeiro: Ediouro,
1956, p. 10.
4
VENTURA, Dayse Mery do Carmo. Quem ri consente: A construção da Sociedade Imperial no Riso de
Martins Pena. 1993. Dissertação (Mestrado em História Social das idéias) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1993, p. 17.
estranhamento ou certo incômodo que o mesmo pudesse suscitar. Isso caracterizava o
teatro pedagógico de nosso autor.
Luis Carlos Martins Pena nasceu no dia 5 de Novembro de 1815, no Rio de
Janeiro. Filho do mineiro João Martins Pena, juiz da freguesia de Santa Rita, depois
desembargador, e da carioca Francisca de Paula Julieta Pena, ficou órfão de pai quando
tinha apenas um ano de idade e depois de mãe aos dez anos. Daí por diante foi criado
por tutores, primeiro seu avô materno e depois seu tio, os quais o incentivaram a
aprender as artes do comércio.
Matriculou-se, em Março de 1832, na aula de comércio no Rio de Janeiro
5
, cujo
curso completou, distinguindo-se por sua aplicação. Já emancipado da tutela de seu tio
materno, freqüentou durante algum tempo, a Academia de Bellas Artes, onde adquiriu
conhecimentos de arquitetura e pintura. Mais tarde dedicou-se ao estudo da história,
geografia, literatura e línguas inglesa e italiana, aperfeiçoando-se na francesa, sem
mestre, falando e escrevendo coerente e corretamente todas as línguas.
Em 1838, foi nomeado amanuense da Mesa do Consulado da Corte, emprego
que exerceu até 28 de Abril de 1843. Foi então transferido, exercendo a mesma função,
para Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e ali ficou até 12 de Outubro de
1847, quando partiu para Europa, nomeado adido de primeira classe à legação brasileira
em Londres, onde se estabeleceu até Outubro de 1848
6
.
Durante esse período deixou que se agravasse uma moléstia pulmonar que
contraíra, a qual se desenvolveu por completo em Londres devido ao clima frio e úmido
do local. Pediu licença para voltar ao Brasil e tentar se recuperar, não conseguiu chegar
ao seu país, morrendo em 7 de Dezembro de 1848, em Lisboa, de tuberculose
5
Apesar de muito pesquisar, não nos foi possível conseguir a informação do nome da instituição onde
Martins Pena obteve as aulas de comércio.
6
VEIGA, Dr. Luiz Francisco da. Biografia dos brasileiros ilustres por armas, letras, virtudes, etc. In:
Revista do IHGB, Rio de Janeiro, volume 40, p. 375-407, 1877.
O jovem escritor não começaria sua carreira de autor teatral pela comédia, antes
tentaria o conto e a crônica, voltando a esta, aliás, no fim de sua carreira, como autor
dos folhetins teatrais do Jornal do Comércio.
O primeiro trabalho do autor que chegou ao conhecimento do público, quando
Martins Pena tinha 23 anos incompletos, foi o conto “Um Episódio de 1831”, que
apareceu na revista Gabinete de Leitura a 8 de Abril de 1838. Somente sete meses
depois uma de sua peças “O Juiz de paz da roça” seria representada num dos teatros da
Corte
7
.
Além desse texto, outras obras do autor foram publicadas na revista dos irmãos
Eduardo e Henrique Laemmert, intitulada “Correio das modas”. A primeira foi o conto
Sorte grande” em Janeiro de 1839, no mesmo mês publicou a crônica “Minhas
aventuras numa viagem de ônibus”. Em Fevereiro escreveu outro conto e publicou,
chamado “O poder da música” e a última crônica foi “Uma viagem na Barca a Vapor”.
Tudo indica que Martins Pena pertenceu à redação desta revista, para a qual
provavelmente também teria feito traduções e adaptações de narrativas estrangeiras.
Logo se desligou devido, tanto por sua atração pelo teatro como também por ter sido
absorvido pelo seu primeiro emprego público
8
.
Levado pelo cunhado, Joaquim Francisco Viana, casado com sua irmã Carolina
Pena Vianna, alto funcionário da Alfândega e depois deputado geral pela Província do
Rio de Janeiro, Martins Pena foi nomeado amanuense e designado para servir na mesa
de rendas da Ponte de Consulado, no cais dos mineiros, onde estava instalado um dos
principais trapiches da cidade. Permaneceu nesta função por quatro anos e meio.
Valendo-se mais uma vez do prestígio do cunhado, agora Ministro da Fazenda,
nosso autor foi transferido para o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Abril de
7
Raimundo Magalhães Junior. Op. Cit. p. 11.
8
Idem, p. 17.
1843. Iria trabalhar na Secretaria do Estado, preparando-se para servir como diplomata.
Durante dez anos – 1838 a 1848 – Martins Pena seria não só um homem de letras, mas
também burocrata. Não conseguiria viver somente da pena. Como tantos outros letrados
do seu tempo, buscou o emprego público para se manter.
O ano de 1838 foi decisivo para produção teatral da Corte, pois foram encenadas
as obras originais de dois autores cariocas, Domingos José Gonçalves de Magalhães e
Luis Carlos Martins Pena. Primeiros autores a produzirem algo autenticamente
brasileiro, vistos, portanto, como referência da dramaturgia nacional.
Gonçalves de Magalhães escreveu uma tragédia intitulada “Antônio José ou O
Poeta e a Inquisição”. Nela historiava a perseguição religiosa e a condenação à morte,
na fogueira, do judeu que escreveu as peças “Guerras de Alecrim e da Manjerona”.
João Caetano encenou aquela tragédia em 13 de Março de 1838, no Teatro
Constitucional Fluminense, nome dado durante o período regencial ao antigo Teatro
São Pedro de Alcântara.
Ser representado por João Caetano era a maior honra a que poderia aspirar
qualquer autor. João Caetano, ainda jovem, exerceu a carreira militar, mas por não
gostar da profissão, voltou-se para o teatro. Adquiriu seu talento observando e
aprendendo com os experientes artistas portugueses importados para o país. Aos 30
anos, já estava no auge do prestígio e com dez anos de experiência teatral, como ator e
produtor.
Estreara como ator no drama “O carpinteiro da Livônia”, na cidade de Itaboraí,
então em plena expansão econômica como produtora de café. Pouco depois, ia fazer
parte da companhia que atuava no Teatro de São Pedro de Alcântara, contratado por 30
mil réis mensais. Nesta temporada conheceu a ex-bailarina e jovem atriz Estela
Sezefreda, a ela se ligando definitivamente.
Dez meses após a estréia de “Antônio José ou o Poeta e a Inquisição”, Martins
Pena tinha a alegria de ver representada a primeira de suas comédias, “O Juiz de Paz da
Roça”. Tarefa artística da esposa de João Caetano que, ao contrário deste, que se negava
a participar das representações cômicas devido sua falta de habilidade para tal intento,
Estela aparecia tanto em tragédias como em comédias.
Ninguém mais do que João Caetano, levaria tantas peças de Martins Pena aos
palcos, não só em vida como já depois do falecimento de nosso comediógrafo. Esse ator
sempre punha em cena as comédias de costumes de Martins Pena como também
escalava os melhores atores cômicos de sua companhia para encená-las.
Apesar de tal fato, existia um boato de que João Caetano desprezava o talento de
nosso teatrólogo. No nosso entendimento, o produtor não gostava de comédias, porém
elas enchiam os teatros, portanto, era vantajoso tê-las no repertório de seus espaços
teatrais. A questão, no nosso ponto de vista, era de gosto pessoal e não um conflito entre
autor e ator. O drama clássico era mais aceito no Império em formação, valorizado
como um teatro de alta qualidade e visto como boa cultura pela classe senhorial, a
chamada “Boa sociedade”, que aspirava tornar-se equivalente a sociedade européia.
A comédia, no Brasil imperial, era vista pela “Boa sociedade” como um teatro
“popularesco”, como um gênero menor ao drama. A comédia era satírica, mostrava as
deficiências daquele Império hierárquico tentando manter uma ordem que legitimasse
tal hierarquia.
A princípio, o nome de Martins Pena não era mencionado nas encenações e
jamais era citado nos anúncios. Talvez o próprio autor seja responsável por esse
silêncio, dada a sua condição de funcionário público, tanto mais que, em geral, essas
peças continham críticas à atualidade brasileira.
Martins Pena introduziu nas suas peças a realidade da vida cotidiana, sobretudo
as intrigas e os costumes do meio carioca, entre outras coisas, a hipocrisia da Igreja e os
abusos políticos. No seu teatro há um grande arejamento moderno: a tese desaparece
para dar lugar à anedota de costumes, e os seus personagens sem doutrinarem à velha
maneira clássica, com profundeza de reflexão, de crítica, ou com intenções
reformatórias da sociedade, encarnam figuras vulgares, tiradas do meio que bem
representam, sendo esta só a sua mais assinalada característica.
A comédia de costumes caracteriza-se pela criação de tipos e situações de época,
com uma sutil sátira social. Proporciona uma análise dos comportamentos humanos e
dos costumes num determinado contexto social, tratando freqüentemente de amores
ilícitos, da violação de certas normas de conduta, ou de qualquer outro assunto, sempre
subordinados a uma atmosfera cômica. A trama desenvolve-se a partir dos códigos
sociais existentes, ou da sua ausência, na sociedade retratada. As principais
preocupações dos personagens são a vida amorosa, o dinheiro e o desejo de ascensão
social. O tom é predominantemente satírico, espirituoso e cômico, oscilando entre o
diálogo vivo e cheio de ironia e uma linguagem às vezes conivente com a amoralidade
dos costumes.
O sobrinho de nosso comediógrafo, José Francisco Viana, contou que seu tio
havia escrito “O Juiz de Paz da Roça” em 1833 deixando, porém, dentro de uma gaveta
por medo de não conseguir o emprego público que tanto almejava. Dizia José
Francisco: “receoso de que o conhecimento de sua vocação literária pudesse dificultar a
realização do seu desejo de obter um emprego público”, o que lhe parecia indispensável,
“por serem insuficientes os rendimentos que herdara de seus maiores”
9
. Tal anonimato
9
Depoimento feito a Luis Francisco de Veiga. Op.Cit.
só cessaria quando, animado pelo êxito de suas comédias, sempre muito aplaudidas,
começaria a publicá-las sob seu nome.
A tendência inicial de Martins Pena, como autor cômico, era a de explorar o
meio rural, cujos tipos não lhe eram de todo estranhos, embora fosse ele criado na
antiga Corte do Império. Nosso autor passava períodos fora do Rio de Janeiro, em
propriedades rurais ou cidades do interior fluminense.
A primeira foi o “O Juiz de Paz da Roça”, encenada em 1838. Continuou na
mesma tendência comUm Sertanejo na Corte”, sem registro de que tenha sido
encenada, mas provavelmente escrita entre 1833 e 1837, prosseguiu emA família e a
Festa na Roça”, encenada em 1840 e ainda escreveu “O namorador ou a Noite de São
João”, encenada em 1845.
A produção de Martins Pena constituiu-se de comédias e dramas. Sendo, porém,
aclamado por suas comédias e recebendo críticas bastante negativas a respeito de seus
dramas. Segundo Raimundo Magalhães Júnior “Martins Pena produzira o que de
melhor e pior se escreveu em nosso teatro na primeira metade do século dezenove”
10
.
No Brasil Imperial existia uma hierarquia entre dramas e comédias. Os dramas
eram vistos como um teatro de mais valor, voltados para “Boa Sociedade”, enquanto as
comédias eram mais populares. O drama designava o teatro clássico, o uso da
racionalidade e funcionalidade, o desejo da coerência, de lógica interna e externa, da
unidade de tom e, portanto, era valorizado pela classe senhorial. Em detrimento deste
gênero teatral, surgia a comédia romântica mostrando a vida cotidiana, os burgueses, o
povo, misturando o trágico e o cômico, tempo e espaço tratados com desenvoltura e,
principalmente, a aproximação entre fala e escrita, fazendo a ligação do público com a
10
Raimundo Magalhães Júnior. Op. Cit. p. 43.
mensagem que está sendo dita. O texto romântico, nas comédias de costumes de
Martins Pena, nos permite pensar o quadro de valores daquela época.
Momento de uma sociedade, por si só, hierárquica. Dividindo o Império entre
“três mundos”
11
. O mundo do governo, mundo do trabalho e mundo da desordem.
Interpenetravam-se, mas jamais se confundiam.
A “Boa Sociedade” por seus membros brancos e detentores de liberdade e
escravos faziam parte do mundo do governo. Formavam a elite imperial. Os escravos
negros que trabalhavam formavam o mundo do trabalho. Mantinham uma relação de
força com os membros da “Boa Sociedade”. O mundo da desordem era composto de
homens livres e pobres, que se estendiam irregularmente por todo território do país.
Nas comédias teatrais essas diferenças eram sinalizadas, de forma satírica e
irônica, identificando cada tipo social daquele império e o papel que exercia.
À medida que exercitava seu talento e adquiria experiência, Martins Pena
dominava com mais segurança a técnica teatral. Progredia, principalmente, conforme se
perdiam as ilusões de vir a ser um grande dramaturgo e se dedicava com mais afinco à
comédia.
Seu primeiro drama, provavelmente, teria sido “Fernando, ou o Cinto
Acusador”, escrito em 1837, não foi representado e nem publicado
12
. Conforme
Raimundo Magalhães Júnior: “Além das falas por demais extensas, dos solilóquios
quilométricos, há abundância de apartes, de que se vale o autor para fazer marchar a
ação e para comunicar à platéia as secretas intenções dos personagens.”
13
Martins Pena, no entanto, continuou buscando o reconhecimento através dos
dramas. Dedicou mais três anos a elaboração de peças dramáticas.
11
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. A formação do Estado Imperial. 4 ed. Rio de
Janeiro: Accesse editora, 1994.
12
Darcy Damasceno. Op. Cit. p. 14.
13
Raimundo Magalhães Júnior. Op Cit. p. 44.
Escreveu seu segundo drama, “Dom João de Lira ou o Repto”, em 1838, que
como sua antecessora, não foi representada em vida do autor. Sua obra dramática inclui
ainda os dramas “D. Leonor Teles”, escrita em 1839 e “Itaminda ou o Guerreiro de
Tupã”, provavelmente escrita antes de 1839. O ensaísta e crítico Paulo Ronái escreveu
sobre o contraste entre a vulgaridade dos dramas e a originalidade das comédias de
nosso escritor:
“Nos dramas não aponta o menor sinal de tão deliciosa originalidade. Em
nenhum momento o autor consegue interessar-nos pela Lisboa de D. Leonor Teles, pela
Espanha de Vitiza ou pela Nápoles de Conde Strozzi, tanto menos que se mete em
apuros incômodos para familiarizar o espectador com os antecedentes históricos dos
enredos. As personagens lançam-se a monólogos enormes ou contam às outros
sucessos que deveriam estar cansadas de saber para nos dar lições de história
espanhola ou portuguesa. Abundam as coincidências, deus ex-machina,
reconhecimentos, ressurreições alternando com os requisitos mais lúgubres do
melodrama, cuja ingenuidade ainda mais avulta pelo estilo grandiloquente e vazio. Em
suma, os dramas em nada contribuem para a glória do escritor Martins Pena, mas
também não diminuem a grandeza do comediógrafo.”
14
O drama em verso “Vitiza ou o Nero de Espanha”, escrito em 1840-41 foi a
única obra deste gênero de nosso autor a ser representada em 1841, mesmo assim, sem
grande louvor.
Martins Pena carregaria a frustração de não ter conseguido fama como
dramaturgo, esforço que o consumiu por quatro anos. Deixando tal intento de lado
voltou-se o autor para a comédia com intuitos de crítica social, iniciando o caminho que
o levaria a sua consagração como teatrólogo.
Em suas peças, esse autor vai compartilhar sua visão do mundo em que vivia e
suas críticas aos costumes e tradições de sua época. A capacidade do comediógrafo para
14
RONÁI, Paulo. Martins Pena redivivo, artigo publicado no suplemento literário do Diário de Notícias a
19 de Maio de 1957, sobre a edição do INL, p. 52.
descrever o meio social e artístico de seu tempo, satirizando os ridículos, da cidade que
era então o Rio de Janeiro, onde viviam apenas 205.906 pessoas no perímetro urbano e
destas somente 155.846 eram livres e libertas
15
, justificam o sucesso de Martins Pena.
Além de grande comediógrafo, nosso autor foi censor teatral dos mais ativos.
Sua atuação no exame dos textos representados nos teatros do Rio de Janeiro estendeu-
se por cerca de três anos, a partir da instalação oficial da associação denominada de
Conservatório Dramático Brasileiro a 30 de Maio de 1843
16
.
Firmou grande número de pareceres sobre peças de todos os gêneros: farsas,
que eram peças cômicas de um só ato e ação burlesca; dramas, peça teatral em que o
cômico se mistura com o trágico; tragédias, peça teatral que termina em regra por
acontecimentos fatais; comédias, representação teatral em que predominam a sátira e a
graça; e óperas, drama inteiramente cantado com acompanhamento de orquestra, ou
intercalados com diálogos falados, ou com recitativo.
A fundação do Conservatório Dramático Brasileiro retirou da alçada policial o
exame das peças teatrais. Uma das primeiras manifestações oficiais, no campo da
censura, data de 29 de Novembro de 1824, sendo um edital do Intendente Geral de
Polícia da Corte e Império do Brasil, desembargador Francisco Alberto Teixeira de
Aragão, que estabelecia:
“Logo que for designado o espetáculo, que se pretenda oferecer ao público, se
participará circunstancialmente ao Intendente Geral da Polícia, remetendo-se-lhe as
peças originais, para que este, antes de qualquer ensaio ou publicação, possa proibi-lo,
quando seja contrário aos bons costumes e às leis do Império.”
17
15
Conforme o recenseamento de 1850, executado sob direção de Roberto Jorge Hassock Lobo, cujo
resultado foi publicado no Jornal do Comércio. In: MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Op. Cit. p. 79.
16
SOUZA, Silvia Cristina Martins de. As noites do Ginásio: teatro e tensões culturais na corte (1832-
1868). São Paulo: Editora Unicamp, 2002, p. 144.
17
Idem. p. 140.
Estes termos do artigo, pelo qual se percebe a preocupação com a segurança
pública, fornecia o suporte necessário para a polícia intervir nas questões relativas ao
teatro, isso perdurou ao longo de todo século XIX.
Anterior ao Conservatório, em 1839, foi formada uma comissão de censura
constituída por homens de letras para atuar numa área tradicionalmente reservada a
polícia. Tal comissão foi criada no contexto do projeto da antecipação da maioridade do
Imperador, nesse sentido algumas instituições ligadas à cultura passaram a ter função
significativa no momento em que se transformam em local de produção do saber e de
um discurso voltado para construção de uma identidade nacional para o país.
Entre tais instituições estava o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), criado em 1838. Os objetivos desse projeto passavam pela pesquisa e pelo
agrupamento de documentos. O fazer historiográfico estava compromissado com um
projeto de definição de nação brasileira, e de fortalecimento e consolidação do Estado
monárquico
18
.
A história se apresentava imbuída de uma espécie de função social, capaz de
resgatar do passado ensinamentos úteis que poderiam promover o progresso da
sociedade. Nesse sentido, os membros do IHGB tinham consciência de uma função
considerada civilizadora.
Outra instituição importante foi a Academia de Belas Artes. Para Letícia
Squeff
19
, no livro “O Brasil nas letras de um pintor: Manuel de Araújo Porto Alegre”, a
Academia Imperial de Belas Artes, inaugurada em 1826, tinha como função primordial
18
Sobre o IHGB ver: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção de sua
Majestade Imperial. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1889). Rio de Janeiro; Brasília:
Revista do Instituto Histórico/Imprensa Nacional, 1997 e GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e
civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história
nacional.” In Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 1, 1988, p. 5-27.
19
SQUEFF, Letícia. O Brasil nas letras de um pintor: Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-1879). São
Paulo: Editora Unicamp, 2004.
divulgar a imagem do Império, uma imagem civilizada para Monarquia e para sua
capital, o Rio de Janeiro. O neoclassicismo ajudou na pretensão de aproximar a Corte da
tradição européia, dotando a cidade de elementos da antiguidade clássica, associando o
Império, com sede na América, a formas-símbolos carregados de significados seculares
compartilhados por outras nações civilizadas. A arte era vista como canal para
divulgação de mensagens e valores transformadores, portanto com grande potencial
civilizador. Propagar o belo era uma forma de promover o melhoramento da sociedade.
Os homens de letras tiveram papel importante para execução dos planos
imperiais da construção de um Estado-nação. Prova desta importância foi a oficialização
da instituição criada por eles mesmos , em 1843, o já citado, Conservatório Dramático
Brasileiro, com as atribuições de censura anteriormente exercida pela comissão de 1839.
Este Conservatório, que seguia o modelo do francês e do português, tinha o
objetivo de promover estudos dramáticos e o melhoramento da cena brasileira, para essa
finalidade pretendia fundar uma escola de declamação e arte dramática para atores, criar
um jornal onde se divulgassem os trabalhos da associação, estabelecer a crítica literária
e ainda dar parte lingüística de todas as composições em português que lhes fossem
enviadas para exame, corrigindo os defeitos por meio de uma análise em que seriam
apontados os métodos para emendá–los, e, a “exemplo de Portugal, organizar e
submeter à apreciação do governo imperial um projeto de lei sobre a propriedade
literária”
20
.
A questão lingüística merece destaque nesse momento. A preocupação com uma
fala teatral nacional era recorrente entre os censores. A língua é uma identidade,
portanto o português dito aqui deveria se afastar do português de Portugal. Era
20
Silvia Cristina Martins Souza. OP Cit. p. 145.
importante para configuração de uma nação brasileira, buscar sua própria identidade
lingüística.
A aproximação, nas artes, de uma oralidade bem próxima do português falado
no Brasil, do português “popular”, da “rua” se tornou objetivo central desses letrados.
Entre eles, Martins Pena, que utilizava tal recurso de encurtar a distância entre a
linguagem falada e escrita em suas comédias. Nesse sentido, voltamos a sinalizar o
novo trazido pelo teatro romântico, rompendo com a linguagem clássica, requintada e
buscando a linguagem do país.
Foram nomeados para direção do Conservatório, Diogo de Bivar como
presidente, Januário da Cunha Barbosa como vice-presidente, José R. de Vasconcelos
como primeiro secretário, Luis Carlos Martins Pena como segundo secretário, Luiz
Garcia Soares de Bivar como procurador e José Florindo de Figueiredo Rocha como
tesoureiro
21
. Todos os escolhidos já faziam parte da comissão anterior ou eram do
IHGB ou do Instituto de Belas Artes, deixando claro que a escolha desses passava por
uma rede de sociabilidades. Prática comum no Brasil Imperial.
Nesse sentido, vale uma pequena análise das culturas políticas no período
imperial. A cultura política, com toda sua multiplicidade, é a resposta mais satisfatória
dentro das pesquisas desenvolvidas pelos historiadores do campo político, no tocante as
investigações a respeito dos comportamentos políticos no decorrer da história,
permitindo uma melhor adaptação ao enredamento do comportamento humano.
A definição para cultura política é complexa, Serge Berstein dialoga com a
definição de Sirinelli
22
, o qual afirma ser esta um código, um conjunto de referentes,
formalizados em um partido ou em um meio familiar, ou até mesmo sob a forma de uma
tradição política. Berstein destaca a importância do papel das representações na
21
Biblioteca Nacional, setor manuscritos, papéis avulsos do CDB, n 0013.
22
BERSTEIN, Serge. A Cultura política. In: Jean-Pierre Rioux e Jean-François Sirinelli – org - Para uma
História Cultural. Editorial Estampa, 1998, p. 349.
definição de uma cultura política, através de símbolos, ritos e da diversidade social, que
faria dela não um conjunto de tradições estáveis e imutáveis, mas que evoluem através
do tempo. O caráter plural dessas culturas políticas não deve deixar de ser lembrado.
Cultura política não é algo doutrinal, mas valores e normas partilhados. Cada
sociedade tem uma cultura política dominante e ao seu redor outras antagônicas, que
acabam por absorverem partes da cultura dominante. A cultura política nasce em
resposta aos grandes problemas e as grandes crises da história de uma sociedade e,
muitas vezes, se apresentam inovadoras e, portanto, demoram a conseguir se impor.
O estudo de cultura política serve aos historiadores para compreensão das
motivações que levam o homem a adotar este ou outro comportamento político. Ela
interessa pela descoberta das raízes e das filiações dos indivíduos através dos discursos,
do argumentário, do gestual. Por outro lado, também se torna especial o seu estudo pela
sua dimensão coletiva, a qual fornece uma chave necessária para se compreender a
coesão de grupos organizados à volta de uma cultura.
No Brasil do século XIX, esses grupos de letrados formavam uma rede de
sociabilidades, onde, por meio dela, tais personagens alcançavam seus cargos ou mesmo
objetivos na produção artística, vindo a transformarem-se em diretores de teatros,
autores de muitas representações ou censores de grandes instituições. Essa rede era uma
ponte, muitas vezes para se chegar aonde queria.
Nosso autor mesmo fez uso dessa ponte. A atividade de censor do
Conservatório, não remunerada, era exercida por Martins Pena não só pela boa vontade
em cooperar com o poder público, por sua paixão pelo teatro, mas também porque
percebeu nessa oportunidade um passaporte para o reconhecimento como autor.
O Conservatório tinha a atribuição de examinar previamente as peças teatrais, a
associação passou a atuar como instrumento oficial em prol de uma política de controle
dos divertimentos públicos considerados convenientes aos habitantes da cidade.
Para uma peça ser levada à cena, deveria passar pela aprovação de um censor.
Caso o voto deste fosse negativo, tal peça seria analisada por um segundo censor, se a
licença fosse novamente negada, a peça não poderia ser representada. Entretanto, se as
opiniões divergissem, ficaria a cargo do presidente da instituição, dar ou negar a
permissão para a peça ser encenada.
O grupo de censores que fazia parte do Conservatório Dramático Brasileiro foi
recrutado nos meios artísticos, jornalísticos, literários e nas altas esferas políticas.
Alguns eram extremamente severos. Martins Pena foi um censor tolerante e liberal,
cujos pareceres, primando pela concisão, só de raro em raro faziam restrição às peças
examinadas. No início se alongava mais em seus pareceres:
“Li com atenção a comédia em 5 atos Lês Chansons de Désaugiers; e não encontrando
em seu entrecho (ainda que pouco engenhoso) posições equívocas, e em suas cenas
expressões que ofendam a moral pública, a julgo nas circunstâncias de ser
representada. Rio de Janeiro, 30 de Abril de 1844. L. C. M. Pena.”
23
Com o tempo e a experiência, seus pareceres se resumiam a uma ou duas linhas:
“Julgo que a farsa O Usuário pode ser representada. R.J., 3 de Julho de 1844.
L.C.M.Pena”.
24
23
Raimundo Magalhães Júnior. Op Cit. p. 106.
24
Idem, p. 108.
Nosso autor também teve de esperar a licença de suas peças para que as mesmas
fossem representadas e não demoraria a perceber que ajudara a fundar uma engrenagem
que poderia esmagá-lo.
Sua primeira peça a ser representada, esteve próxima a ser proibida pelo
Conservatório após seis anos de representação e sucesso. Quem salvou “O Juiz de Paz
da Roça” da guilhotina foi o censor Joaquim Norberto de Sousa Silva, com o seguinte
parecer:
“Li o drama O Juiz de Paz da Roça, já bem conhecido nos nossos teatros e
agora limpo de alguns termos a que, por concerto das frases anfibológicas, tomavam-se
facilmente à má parte e que eram muito de reprovar, atendendo à delicadeza do sexo
ao qual não é vedado o espetáculo de comédias como na antiga Grécia. Sou, pois, de
parecer que se conceda a licença para ser representado. Rio de Janeiro, 21 de Maio de
1844.”
25
Após tal parecer, o presidente do Conservatório deu a licença para a continuação
das representações da peça de Martins Pena, apesar desta continuar a receber críticas,
umas inofensivas e superficiais, outras contundentes e profundas.
No ano de 1844, as atividades de censor de nosso autor foram intensas, no
entanto, sempre mostrando seu liberalismo e a extensão de suas leituras. Analisou
muitas peças e era cada vez mais sucinto em seus pareceres.
Em fins de 1846, desligava-se ele do Conservatório Dramático Brasileiro.
Afastamento motivado pela dureza com que fora tratado pela instituição que ajudara a
fundar e a que tanto servira. A tentativa de proibição de levar a comédia “Juiz de paz da
roça” à cena pelo Conservatório, a perda do concurso para encenar uma peça sua no
Teatro de São Francisco de Paula, trataremos do assunto mais adiante, e as divergências
25
Idem, p. 107.
internas na instituição foram os fatores que tiraram nosso autor da função de censor do
Conservatório Dramático Brasileiro.
Sua produção teatral, no entanto, continuava crescendo, suas peças continuavam
sendo representadas nos teatros do Rio de Janeiro com muito sucesso. O seu auge
ocorreu entre 1846 e 1847.
Há traços comuns entre quase todas as comédias de Martins Pena. Nas dos
primeiros tempos, além da preocupação de fixar tradições e costumes populares, essa
opção é acentuada por certos recursos de que o autor lança mão: as intrigas domésticas,
os namoros e casamentos, a caça aos dotes vantajosos, as manobras e astúcias para
chegar às filhas conquistando antes os pais. Em várias de suas peças os assuntos se
repetem, trocando-se apenas nomes e ambientes.
O talento de Martins Pena floresceu numa época em que existiam poetas e
versejadores de todo espécie, favorecidos pelas facilidades do romantismo, que surgia
valorizando o nacional, abrindo caminho, ou tentando abrir um caminho para uma
identidade nacional. Em suas comédias, valia-se de episódios da vida quotidiana,
encontrados, muitas vezes, no noticiário da imprensa da Corte. Neste o que
predominava não era propriamente a invenção, mas seu dom de observação.
O sucesso de suas comédias vinha exatamente da mistura de realidade e leveza,
levando o público a rir do que assistia, mesmo reconhecendo naquelas personagens e
situações seu próprio quotidiano ou suas deficiências.
Como tantos outros letrados, recorreu também à imitação, prática comum na
época. Por encomenda ou por iniciativa própria, Martins Pena fez adaptações de temas
cômicos alheios, na esperança de colocá-las aos empresários, dando-lhes garantia de
êxito. Como exemplo de tal atividade, temos “As casadas solteiras”, adaptação de Les
Trois Dimanches, peça teatral francesa representada no Théâtre Du Palais Royal, de
Paris, a 19 de Agosto de 1838. Esse trabalho executado em 1845, sendo aprovado pela
censura do Conservatório Dramático Brasileiro, chegou à cena em 18 de Novembro do
mesmo ano, no Teatro de São Pedro de Alcântara.
No auge de seu prestígio como autor teatral, por volta de 1846 e 1847, Martins
Pena recebeu o convite da direção do Jornal do Comércio para que publicasse,
semanalmente, um folhetim de comentários dos espetáculos líricos realizados na Corte
do Império. Precisamente ao escritor que ridicularizara os excessos dos fanáticos da arte
operística, que o jornal entregava a tarefa de apreciar tais espetáculos, esperando
encontrar neles equilíbrio e isenção.
O folhetim brasileiro do século XIX tornou-se célebre como veículo primordial
de divulgação de obras de ficção. Na realidade, constituía um espaço reservado nos
jornais e revistas não apenas à ficção, mas também à discussão de idéias e à crítica
acerca das artes, principalmente na Corte do Rio de Janeiro, onde a vida cultural da
época fervilhava com óperas, peças de teatro e outras manifestações culturais.
Nosso comediógrafo e amanuense do Ministério dos Negócios Estrangeiros
estava bem aparelhado para tal função, que exerceu de 08 de Setembro de 1846 a 06 de
Outubro de 1847. Martins Pena discorria com a maior segurança sobre as peças
apresentadas. Por vezes ele se queixava das dificuldades de sua tarefa e procurava
definir os seus objetivos, mostrando quanto lhe custava manter a imparcialidade no
meio das paixões que tumultuavam a Corte do Império.
“A tarefa de folhetinista crítico-teatral torna-se de dia em dia mais espinhosa e
difícil. Os partidos formam-se no teatro, não pelo merecimento dos artistas, mas sim
pelas cartas de recomendação que este trouxeram, por amizade, ou por...etc. Temos
visto levantarem-se lutas, e lutas sérias e renhidas, por causa de certas cantoras.
Principiam pelas palmas, vão às coroas e ovações, e depois às descomposturas e, por
felicidade nossa e descanso da polícia, fica o negócio aí, e cai no esquecimento, para
dar lugar a novo partido. Assim, vivemos nesta agitação.”
26
O trecho acima nos remete novamente a questão das sociabilidades, das
conquistas pelas amizades que se tem com pessoas influentes e pelo prestígio e poder
que os membros da sociedade imperial sempre almejavam.
Segundo Martins Pena o papel do crítico era duro, mas tinha seus momentos
bons. Seu trabalho crítico utilizava o tom cômico para tratar de episódios trágicos.
Muitas vezes incorre da farsa e da paródia para dar conta dos espetáculos que assistia.
Percorria os teatros em busca das peças todas as noites, ouvia as récitas das óperas e
academias e escrevia sobre elas, corrigindo os cantores, analisando os músicos,
derrubando pretensões, narrando o entrecho das óperas, censurava vestuários e cenários,
denunciava problemas administrativos e desonestidades, apontando os descasos da
censura e demonstrando as reações entre artistas e platéias.
Comparou nosso autor, o folhetinista crítico-teatral como aquela pessoa do mal
que assistia as óperas apenas para prestar atenção aos defeitos e erros que ela poderia
apresentar, e continuou fazendo um paralelo com os espectadores que freqüentavam os
teatros, mas podiam, caso a peça fosse desagradável, se retirarem do ambiente ou
mesmo travarem conversações com os vizinhos, enquanto o crítico tinha que prestar a
devida atenção até o fim do espetáculo para estabelecer as correções necessárias à peça
assistida:
“Pode-se comparar o folhetinista crítico-teatral ao homem que, tendo diante de
si uma cesta de frutas, escolhe de preferência para saborear as danificadas e
imperfeitas, deixando de lado as sazonadas e sãs. Vai o público ao teatro para gozar o
26
GIRON, Luís Antônio. Minoridade Crítica: A ópera e o teatro nos folhetins da corte. São Paulo:
Ed:Edusp, 2004, p. 256.
que há lá de bom, e o folhetinista para esmerilhar o que há de mau; agradável
passatempo é aquele, desagradável ocupação é esta. Sobe à cena qualquer ópera
medíocre: o espectador indiferente não volta ao teatro para ouvi-la segunda vez, e o
desgraçado crítico, como amarrado ao incômodo poste, segue-a em todas as suas
sonolentas representações, até que para todo sempre desapareça. Sai para o tablado
um cantor ordinário, ou mesmo bom, mas que por desleixo canta mal, e os dilettanti,
escandalizados, fecham os ouvidos ao canto, travam conversação com o vizinho, ou
assestam os binóculos para os camarotes; porém o desgraçado folhetinista há de beber
até as fezes este cálice de amargura, ouvir até a última nota desse canto infernal,
porque assim é mister para estabelecer correção”.
27
Outro ponto citado pelo folhetinista se referia ao teatro como local de
divertimento para os habitantes do Rio de Janeiro e onde se podia criar amigos. Para o
crítico, no entanto, tornava-se um lugar onde se levantava inimizades pela censura que
se fazia a essa ou aquela peça teatral, a esse ou aquele cantor. Essa inimizade não surgia
somente com os envolvidos nas críticas, mas também com aqueles que eram partidários
dessa ou daquela peça e desse ou daquele cantor.
Nos folhetins da Semana Lírica, publicados em volume em 1956, percebe-se que
Martins Pena não se limitava a criticar os espetáculos, o desempenho dos cantores e das
orquestras. Ocupava-se também de outras particularidades, atinentes à administração
dos teatros, em linguagem sempre muito franca, mesclada, não raro, de ironias e rasgos
humorísticos.
A efervescência da vida cultural contagiava a todos e a busca por um teatro
essencialmente brasileiro tornou-se um dos objetivos do ator João Caetano, que com sua
influência, tentava criar um teatro representado por uma companhia de artistas
nacionais.
Usando seu prestígio, reconstruiu o Teatro de São Francisco, reabrindo-o em
1846. Resolveu, na inauguração, representar uma obra de autor nacional e publicou no
27
Ibidem, p. 269.
jornal uma nota em que convocava os autores do país que tivessem obras originais, que
as enviasse ao Conservatório Dramático Brasileiro para que fosse escolhida a melhor
para ser representada na reabertura do teatro.
Martins Pena concorreu, mas não foi feliz. O júri do Conservatório, na sessão de
22 de Maio de 1846, excluía a sua peça. A peça preferida foi um drama, escrito em
1843, por Joaquim Norberto de Sousa Silva, tal drama tinha um fundo histórico e se
chamava “Amador Bueno, ou a Fidelidade Paulistana”.
Por muito tempo, Martins Pena guardara suas queixas do Conservatório
Dramático Brasileiro. Ao escrever sua peça “Os ciúmes de um pedestre”, recebera
censuras, advertências e restrições que quase desencadearam a proibição total da
comédia. No concurso de João Caetano fora alijado, através de opiniões formuladas de
maneira excessivamente rude. Tudo isso lhe incomodara.
Quando passou a escrever sua coluna no Jornal do Comércio a fim de nelas
abrigar seus folhetins teatrais, pôde então expor suas opiniões acerca daquela instituição
que tanto lhe irritara. E, para melhor fortificar as suas críticas, não fazia alusão explícita,
por mais leves que fossem aos seus motivos pessoais.
Nosso autor aproveitou o anúncio da representação de “Les Diamants de La
Couronne” pela companhia lírica francesa e iniciou seus ataques ao Conservatório.
No folhetim de 14 de Janeiro de 1847, Martins Pena dá a entender que o público
da Corte poderia ter assistido a tal espetáculo antes:
“De há muito que se falava na representação dos Diamants de La Couronne,
mas o Conservatório Dramático Brasileiro, com a sua censura inquisitorial, proibiu
que esta ópera fosse à cena, porque nela se via uma rainha de Portugal vendendo os
diamantes da coroa para acudir às necessidades do Estado sem que fosse preciso
sobrecarregar com impostos os seus amados súditos”.
28
O adjetivo “inquisitorial” deixa perceber quanto o comediógrafo se irritara com
as impertinências dos censores da instituição de que fora um dos fundadores e, por
tantos anos, segundo secretário. Não esperou mais uma semana para voltar às colunas
do jornal e continuar suas críticas. O novo artigo dizia:
“Na capital de um vasto império, liberal e ilustrado, que de há muito anos goza
da vantagem do regime representativo e da liberdade, isto é, da vantagem de ler,
quatro ou seis meses por ano, discursos demostênicos, cotidianamente discussões e
novidades jornalísticas e, de vez em quando, o seu trecho de interessante, moralíssima
e espirituosa novela. Nessa capital, onde, se é solta a língua dos palestrantes, não
menos soltas são as penas dos jornalistas de profissão ou dos jornalistas acidentais;
nesta capital, enfim, que se chama o Rio de Janeiro, havia uma associação mais ou
menos literária, composta de... todo o mundo e de mais alguns literatos de polpa, com o
fim de fecundar o solo dramático brasileiro, e fazer crescer e medrar a arte teatral no
império. A essa sociedade o governo, protetor das letras, querendo dar um sinal de sua
atenção e fazer-lhe honra, cometeu a atribuição policial da censura das composições
dramáticas, para vedar a representação de peças imorais, de declamações que
solapassem as bases da sociedade civil, religiosa e política. Querem alguns que o
governo não podia fazer isso... Deixamos, porém, esses chicanistas com as suas
argumentações; prova de que a podia é o que fez; fê-lo já lá vão seus bons cinco anos,
e fá-lo, e todos se lhe sujeitam; ergo...”.
29
Tal passagem indica ter havido quem levantasse a preliminar da ilegalidade da
delegação da função policial então exercida pelo Conservatório Dramático Brasileiro,
embora sem que isso alterasse a irregular situação criada.
28
Ibidem, p. 217.
29
Jornal do Comércio, 17 de Janeiro de 1847.
Suas críticas continuaram, recaindo ao presidente da instituição, Diogo de Bivar,
acusando-o de ter feito do Conservatório coisa sua, e pondo em dúvida os critérios de
julgamento da instituição. O presidente Diogo nunca respondeu a tais críticas.
A crônica publicada no Jornal do Comércio de 29 de Junho de 1847 era
inteiramente dedicada à crise teatral:
“O teatro está em crise pecuniária, e a sua bancarrota é inevitável, se o
governo não lançar atentas vistas sobre este estabelecimento de tanta utilidade pública.
Algum ou alguns de seus acionistas, por brio e pundonor da sociedade, podem ainda
salva-lo, porém momentaneamente, porque os sacrifícios de dinheiro sem recompensa
não são de longa duração. A dívida que o vexa é avultada e, segundo nos informam,
monta a cem contos de réis”
30
.
Tais artigos irritaram os diretores de teatro São Pedro que não o deixaram sem
resposta:
“Agradecemos sinceramente ao presumido censor a excelente ocasião que nos
dá de produzirmos a defesa duma diretoria que, por seus serviços relevantes ao teatro,
tem adquirido jus ao público reconhecimento. Tão regular e extreme de erros tem sido
a diretoria do teatro que os seus inimigos, para guerreá-la, se tem visto na necessidade
de recorrer à calúnia ; pois sentem a falta absoluta de fatos censuráveis. Por felicidade
da diretoria essas calúnias tem sido de naturezas tais que, sem grande dificuldade, hão
desaparecido ao menor sopro da verdade. Igual resultado não esperávamos que
tivessem as imputações que lhe fizesse o discreto folhetinista: o Sr. Pena, o compositor
de comédias, poderia arranjar um romance que a alguém iludisse; que obrigasse a
direção a recorrer à evidência das provas dos fatos de sua defesa, para destruir a
impressão da historieta, que escrevesse o Sr. Pena. Porém, infelizmente para o míope
farçola, os fatos que ele inventou, e dos quais fez elegante aglomeração, são tão
conhecidamente mentirosos que poderiam dispensar séria refutação; e não nos
encarregaríamos dela, se não estivéssemos de alguma sorte comprometidos a não
deixar sem resposta tudo o que saísse dessa pena”.
31
30
Raimundo Magalhães Júnior Op. Cit. p. 228.
31
Idem, p.229.
O trecho é cheio de insinuações malévolas, mas pode conter alguma coisa de
verdadeiro, no tocante às aspirações de Martins Pena, que bem poderia desejar, aliás,
muito legitimamente, um posto na direção do teatro São Pedro.
Com sua atitude combativa, nosso comediógrafo devia saber que corria o risco
de ver fechadas as portas dos teatros para suas peças. Entretanto, isso não se deu de
imediato. Provavelmente por intervenção de terceiros.
Nosso comediógrafo, censor e folhetinista marcou sua despedida da carreira
jornalística, que durou treze meses, com as críticas ao Teatro São Pedro. Encerrava
também suas relações diretas com o meio teatral brasileiro. Tentaria a profissão de
diplomata.
No tempo do Império a Secretaria dos negócios Estrangeiros era uma verdadeira
escola prática de formação de diplomatas. Martins Pena obteve, a 20 de Agosto de
1847, a nomeação para adido de primeira classe, na legação do Brasil em Londres.
Nessa promoção, devemos identificar o dedo de seu cunhado novamente.
Após um tempo em Londres, seu estado de saúde se agravou e então pediu
licença para retornar ao seu país, esperançoso de obter alguma melhora devido nosso
clima mais quente. Embarcou em Novembro para Lisboa, de onde pretendia vir para o
Brasil noutro navio. Mais era tarde demais. A 07 de Dezembro morria Luis Carlos
Martins Pena sendo enterrado na capital portuguesa.
A notícia da morte de nosso autor só chegou ao Brasil em 1849. A imprensa da
época não lhe deu muito destaque. No período de sua produção não obteve
reconhecimento pela maioria, lotava os teatros, mas não era uma unanimidade.
Na verdade, só desaparecera o funcionário meticuloso, e burocrata exemplar,
porque o escritor continuava vivo. No ano da transladação de seus restos mortais, em
1850, era freqüente a representação de suas peças nos teatros da Corte. A atenção que
não recebera da crítica em vida, receberia depois da morte. Nesse momento inicia-se a
monumentalização do autor, a construção da imagem de comediógrafo talentoso e
unanimimente aplaudido.
A publicação de uma coletânea de peças de Martins Pena organizada por Melo
Morais pela casa Garnier em 1898, produziu grande impacto em Arthur Azevedo, que
era então, a figura mais expressiva do nosso teatro de comédia. Na celebração do
Cinqüentenário da morte de Martins Pena, o ator Dias Braga recitou um soneto escrito
pelo próprio Arthur Azevedo:
“De Martins Pena foi bem triste a sorte:
Moço, bem moço, quando o seu talento
Desabrochava, num deslumbramento,
Caiu ferido pela mão da morte!
Era, entretanto, um lutador, um forte
E, como não merece o esquecimento,
Que a nossa festa, ao menos um momento,
O seu risonho espírito conforte.
Quem o amou e o leu em vão procura
O seu nome na placa de uma esquina
Ou sobre a pedra de uma sepultura!
Porém, voltando à brasileira cena,
Há de brilhar a estrela peregrina
Que se chamou Luis Carlos Martins Pena!
32
Sobrevive, assim, o teatro de Martins Pena. O resgate de suas obras nos mostra
perfeitamente a sociedade do Império do Brasil do século XIX, justificativa suficiente
para a monumentalização do autor tanto tempo depois de sua morte. O valor de suas
32
Idem, p. 251.
comédias é inestimável para memória do país, tratando fielmente, os agentes sociais,
seus valores comportamentais e suas atitudes diante daquele tempo.
Martins Pena, com seu teatro de víeis romântico, utilizando uma dimensão
pedagógica e civilizadora, levou os personagens de suas peças a lotar os espetáculos
teatrais e a rir de si mesmo, absorvendo, de uma alguma maneira, as mensagens que o
autor queria emitir, fosse uma crítica ou uma simples representação da vida real do
Império, nosso comediógrafo alcançou seu objetivo de chegar até o público, fazê-los
compreender o que estava sendo dito, configurando um teatro autenticamente brasileiro.
Luis Carlos Martins Pena nos deixou, através de suas comédias de costumes, um retrato
importante de sua época.
3 - A Sociedade Imperial no teatro de Martins Pena
Este terceiro e último capítulo de nosso trabalho têm por objetivo fazer uma
análise de quatro comédias de costumes de Martins Pena. Na interpretação dos textos
das peças selecionadas, buscaremos observar os personagens enquanto tipos sociais que
exemplificaram os padrões de conduta da época. Alguns deles, como nos interessa
identificar, se mostram uma espécie de consciência crítica acerca da sociedade na qual
viviam e, principalmente, acerca dos valores que regulavam tais maneiras de viver. Em
muitas das opiniões desses personagens, o autor Martins Pena emitiu juízos na
qualidade de críticas de costumes.
Nas falas desses personagens, sua oralidade interferia na compreensão e
circulação das idéias e valores que ali estavam sendo veiculados. As situações poderiam
ser imediatamente reconhecidas por todos os presentes ao espetáculo devido à
aproximação da linguagem escrita e falada nas comédias de viés romântico, elaboradas
por Martins Pena. A dimensão pedagógica e civilizadora do teatro romântico se
manifestava, para além de um conteúdo de idéias, nessa oralidade tipificadora de
expressões e garantidora da recepção da mensagem.
As comédias escolhidas para tal finalidade, dentre tantas de nosso comediógrafo,
foram “O Noviço”, “Os três médicos”, “O diletante” e “O Dous ou o inglês
maquinista”, todas tiveram como cenário a cidade do Rio de Janeiro, a capital do novo
país, onde se encontrava a Corte Imperial, sede das legações diplomáticas, maior porto
do território e área de forte concentração urbana de escravos.
A cidade do Rio de Janeiro apresentava uma estrutura social hierarquizada e
excludente. O sentimento aristocrático dominava aquela sociedade e referenciava os
diferentes critérios que permitiam não só estabelecer distinções, mas também e, antes
de mais nada, hierarquizar os elementos que a compunham, “não só as diversas raças
nunca se confundiam mas que muito pelo envez disso, cada raça e cada uma das
classes nunca deixavam de mais ou menos manter e de conhecer o seu lugar”.
1
Ao longo do século XIX, a cidade do Rio se modifica bastante. Já em meados do
século em questão, beneficiadas pela ação do poder público, que abria e conservava as
estradas e caminhos que demandavam os arrebaldes da cidade, as classes de renda mais
alta, as únicas com poder de mobilidade, puderam se deslocar do antigo e congestionado
centro urbano em direção à Lapa, Catete e Glória, Botafogo e São Cristóvão
2
.
Iniciaremos nossa análise com a comédia “O Noviço”, escrita e representada em
1845, quando então, o Brasil se encontrava no período da maioridade, governo pessoal
de D. Pedro II.
O fim da Regência e o início do governo pessoal de D. Pedro II trazem à cena
política a vitória conservadora e as Leis do Regresso que inauguraram o período da
centralização, buscando resolver a preocupação com a Unidade e com a Ordem do
Império.
Martins Pena apresenta em suas primeiras comédias, nos anos pós-1840, críticas
contundentes aos efeitos da descentralização política. O eixo de suas peças desloca-se
1
REZENDE, Francisco de Paula F. Minhas recordações. Apud: ILMAR, Rohloff de Mattos. O tempo
Saquarema: A formação do Estado Imperial. 4º edição. São Paulo: Acess Editora, p.106.
2
ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1987, p, 37.
para a Corte, apresentando personagens e situações que reforçam o papel da cidade
como local de civilização
3
.
A comédia “O Noviço” é composta de três atos e apresenta personagens e
situações importantes para entendermos um pouco da sociedade imperial do século
XIX.
Dentre os personagens destacam-se o Sr. Ambrósio, homem pobre e ganancioso
que busca num casamento por interesse a oportunidade de tornar-se rico. Ele casa-se
então com a D. Florência, mulher viúva e rica que se encanta (e se engana) com a
possibilidade de um novo relacionamento vivido com um homem desinteressado pelo
seu dinheiro e que poderá ajudá-la a administrá-lo da melhor forma possível.
D. Florência possui dois filhos, a Emília e o Juca, os quais foram obrigados a
aceitar uma futura vida num convento por opinião de seu padrasto que convenceu sua
esposa de ser este o melhor caminho para a felicidade dos mesmos.
No curso da trama, a personagem de D. Rosa, primeira mulher de Ambrósio,
chega ao Rio de Janeiro. Deixou o Ceará para ir à busca do marido desaparecido, agora
casado com Dona Florência. O noviço Carlos, sobrinho de Florência, descobrirá toda
farsa do interesseiro homem e o obrigará a tirá-lo do convento, já que não tem nenhuma
vocação para a calmaria do lugar e, onde, aliás, arrumava frequentemente inúmeras
confusões, além disso, conseguiu impedir que Emília e Juca fossem enviados para lá.
A relação que se estabelece entre Corte e Roça cria um movimento de idéias
inspiradas por uma linha de transmissão de costumes entre Europa-Corte-Roça, onde a
Corte funciona como mediadora da relação, por um lado como centro de uma Nação
3
VENTURA, Dayse Mery do Carmo. Quem ri consente: A construção da Sociedade Imperial no Riso de
Martins Pena. 1993. Dissertação (Mestrado em História Social das Idéias) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 1993.
civilizada, e por outro como o único local onde é possível ser civilizado ou mesmo
aprender a sê-lo
4
.
Na comédia “O Noviço”, quando Rosa vem do Ceará atrás do marido
desaparecido, ela reconhece a sua diferença em relação aos habitantes do centro
político-cultural do Império.
“Sou provinciana, não possuo talvez a polidez da Corte,
mas tenho paixões violentas e resoluções prontas”
(O Noviço, ato III cena XVII)
Rosa sabe que não pertence ao mundo civilizado da Corte, mas sabe também que
deve lutar pelo que quer, neste caso o marido, que lhe prometera ganhar muito dinheiro
para os dois em Montevidéu, no entanto desaparecera. Ele fora para a Corte e usou de
sua inteligência, como ele mesmo, Ambrósio, afirma, para casar-se com uma viúva rica
e usufruir de seu dinheiro.
“No mundo a fortuna é para quem sabe adquirí-la. Pintam-na
cega... Que simplicidade! Cego é aquele que não tem
inteligência para vê-la e a alcançar. Todo homem pode ser
rico, se atinar com verdadeiro caminho da fortuna.
Vontade forte, perseverança e pertinácia são poderosos
auxiliares. Qual o homem que, resolvido a empregar todos os
meios, não consegue enriquecer-se? Em mim se vê o exemplo. Há
oito anos, era eu pobre e miserável, e hoje sou rico, e mais
ainda serei. O como não importa; no bom resultado está o
mérito...”
(O Noviço, ato I cena I)
4
Idem, p. 27.
Nessa sociedade, a riqueza, entendida como posse de terras e escravos, é o
principal critério de escolha para um casamento. Homens e mulheres buscavam obter ou
mesmo manter, o status e os privilégios conseguidos pelos mais afortunados. A
rivalidade entre casamento por dinheiro ou por amor é tema frequente nas comédias de
Martins Pena. Muitos personagens, como Ambrósio, simbolizavam os valores
recorrentes entre a “Boa Sociedade” no Império do Brasil.
Se a Corte era local da civilidade, era também onde estavam os espertos,
aproveitadores que faziam vítimas entre os habitantes da Roça e da própria Corte, foi
justamente nas comédias passadas na Corte, pós-1840, que apareceram pessoas como
Ambrósio, contribuindo para a construção de uma singularidade no Império, a vida sem
ofício, numa sociedade onde o trabalho estava referido aos escravos, componentes
incluídos no “mundo do trabalho”, controlado pelo “mundo do governo”, onde se
encontravam a “Boa Sociedade”, já o restante, homens livres pobres, se enquadravam
no “mundo da desordem
5
.
Não só o trabalho como também as leis pareciam ter sido feitas somente para os
pobres, pois a impunidade que a riqueza trazia, era uma constante naquele momento.
Ambrósio sabia disso e, portanto não se preocupava em ser descoberto, havia se tornado
rico, então pensava:
“Mas um dia pode tudo mudar. Oh, que temo eu? Se em algum
tempo tiver de responder pelos meus atos, o ouro justificar-me-á
e serei limpo de culpa. As leis criminais fizeram-se para os
pobres...”
(O Noviço, ato I cena I)
5
Ilmar Rohloff de Mattos. Op.cit, p. 106.
Pela certeza da impunidade, benefício trazido pela riqueza, ele engana a
Florência que, completamente encantada, se entrega a Ambrósio, pensando ser este um
homem sem interesse algum em seu dinheiro
“Se não fosse este homem com quem casei-me segunda vez, não
teria agora quem zelasse com tanto desinteresse a minha
fortuna. É uma bela pessoa...” (O Noviço, ato I cena IV)
Dentro da sociedade do século XIX, era sabido que a justiça estava sempre ao
lado daqueles que pudessem lhe dar alguma vantagem, ou seja, daqueles homens ricos.
Num diálogo com Rosa, a primeira esposa de Ambrósio, o noviço Carlos faz uma
crítica sutil à justiça da época:
“Assim enganar-me! Não há leis, não há justiça?...”
“Há tudo isso, e de sobra. O que não há é quem a
execute.” (O Noviço, ato I cena XIII)
As leis foram feitas para manter a ordem vigente no Império, porém tal ordem se
traduzia na manutenção da hierarquia e benefícios da “Boa Sociedade”, a elite
proprietária de escravos e terras. Através da rede de sociabilidades existentes na Corte,
podia se obter os favores almejados, inclusive não cumprir as leis.
Sabendo disso, Ambrósio mantém seu plano de reunir toda a fortuna de
Florência em seu poder, para tanto, a convence a mandar os dois filhos para o convento,
dessa forma as “legítimas”, dinheiro dado ao marido da filha ou ao filho no momento
em que se casassem, ficariam em seu poder.
“ (...) O que é este mundo? Um pélago de enganos e traições, um
escolho em que naufragam a felicidade e as doces ilusões da
vida. E o que é o convento? Porto de salvação e ventura, asilo
da virtude, único abrigo da inocência e verdadeira
felicidade... E deve uma mãe carinhosa hesitar na escolha entre o
mundo e o convento?” (O Noviço, ato I cena II)
Nessa fala de Ambrósio, nosso autor faz uso mais uma vez da ironia para
demonstrar as verdadeiras intenções do personagem. Ele diferencia mundo e convento,
de acordo com a visão que quer passar à Florência, fazendo-a acreditar que o melhor
para seus filhos é o caminho religioso. E assim, manter toda a fortuna da mulher sob seu
domínio.
A comédia, em sua face irônica, é um gênero privilegiado, pois brinca com a
realidade e faz rir, numa demonstração que se pode rir da regra e, talvez, nessa reflexão
que o teatro proporciona até mesmo reelaborá-la.
Carlos, sobrinho de Florência, foi mandado para o convento, mesmo não tendo
inclinação alguma para tal ofício. Isso ocorreu pela intervenção de Ambrósio, segundo
marido de sua tia, o qual visando à riqueza da esposa, a convence a mandar o menino
para uma vida monacal. O noviço vivia fugindo do convento e se via revoltado com a
obrigatoriedade e mesmo à falta de respeito à vocação profissional de cada um. A
conseqüência disso pode ser exemplificada por um diálogo entre Carlos e Emília, filha
de Florência
“E os nossos parentes quando nos obrigam a seguir uma carreira
para a qual não temos inclinação alguma, dizem que o tempo
acostumar-nos-á.”
“O tempo acostumar! Eis aí porque vemos entre nós tantos
absurdos e disparates. Este tem jeito para sapateiro: pois vá
estudar medicina... Excelente médico! Aquele tem inclinação
para cômico: pois não senhor, será político... Ora, ainda isso
vá. Estoutro só tem jeito para caiador ou borrador: nada, é ofício
que não presta... Seja diplomata, que borra tudo quanto
faz. Aqueloutro chama-lhe toda a propensão para a ladroeira;
manda o bom senso que se corrija o sujeitinho, mas isso não
se faz: seja tesoureiro de repartição, fiscal, e lá se vão os
cofres da nação à garra... Essoutro tem uma grande carga
de preguiça e indolência e só serviria para leigo de convento,
no entanto vemos o bom do mandrião empregado público,
comendo com as mãos encruzadas sobre a pança a pingue
ordenado da nação”. (O Noviço, ato I cena VII)
Numa sociedade extremamente hierarquizada e patriarcalista como era a
sociedade imperial, era comum obrigar os filhos a seguir a profissão escolhida pelo pai.
Se o filho tinha inclinação para médico e o pai não via na profissão conveniência, então
ele seria político, por exemplo, formando profissionais deficientes e sem gosto algum
pelo que faziam.
A questão não se resumia somente aos desmandos dos pais, mas também ao
próprio Brasil, a sociedade que estava construindo e aos valores empregados pela
mesma, que acabava por diminuir determinadas profissões, pagando pouco e obrigando
as pessoas a exercerem ofícios diferentes de suas inclinações exclusivamente para tentar
conseguir sobreviver, continua Carlos
“Este nasceu para poeta ou escritor, com uma imaginação fogosa
e independente, capaz de grandes cousas, mas não pode seguir sua
inclinação, porque poetas e escritores morrem de miséria, no
Brasil... E assim obriga a necessidade a ser o mais somenos
amanuense em uma repartição pública e a copiar cinco horas por
dias os mais soníferos papéis. O que acontece? Em breve matam-
lhe a inteligência e fazem do homem pensante máquina estúpida, e
assim se gasta uma vida! É preciso, é já tempo que alguém olhe
para isso, e alguém que possa.” (O Noviço, ato I cena VII)
O personagem de Carlos, o noviço, representa nessa comédia, uma espécie de
consciência crítica daquela sociedade e principalmente dos valores aplicados por ela.
Suas opiniões acerca das profissões se mostram verdadeiras críticas de costumes
daquela sociedade. A inadequação de Carlos a vida monacal é, não só uma crítica a
“ordem” estabelecida ou que se tentava estabelecer pela classe senhorial, como também
uma crítica as imposições exercidas sobre cada indivíduo, o que acabava por reprimir a
liberdade de cada um.
Carlos é um homem jovem, inteligente, personagem que desarticulará o golpe de
Ambrósio, e que, fundamentalmente busca ser livre e feliz. Para tanto, sabe que para
alcançar estes objetivos, um bom começo seria mudar a sociedade do país onde vive.
Um Brasil ainda em construção, composto e liderado por indivíduos altamente
patriarcalistas, escravistas e que pretendiam manter a hierarquia vigente até então como
forma de se obter a “ordem” desejada.
Essa “ordem” favorecia a “Boa Sociedade” que por ser a camada mais rica do
país e viver na Corte, onde se acreditava encontrar a representação da civilidade, se
beneficiava diante da justiça que os protegia e somente se fazia presente para cumprir a
lei em desfavorecimento aos homens pobres.
Martins Pena, em “O Noviço”, utilizou os dois personagens masculinos,
Ambrósio e Carlos, simbolizando respectivamente, uma “velha ordem” e uma “nova
ordem”, no que se refere aos comportamentos e regras que unem indivíduo e sociedade.
Essa “velha ordem” representa a sociedade hierarquizada, escravista que busca
uma Nação civilizada, e que para obter tal reconhecimento impõe padrões de
comportamentos e muitos valores, como o da riqueza, valor supremo dessa classe
senhorial, sobre os indivíduos, impedindo-os de serem livres e felizes.
Como a maioria dos personagens do nosso comediógrafo, Carlos quer ser livre e
feliz. Ele representa a “nova ordem”, a busca por uma identidade nacional livre de
comparações e semelhanças com outros locais, que se diziam civilizados. Uma ordem
onde cada indivíduo pudesse decidir sobre o seu destino sem ter que se preocupar com
normas comportamentais estabelecidas e valores distorcidos.
O objetivo de se ter uma justiça que funcione e profissionais competentes
trabalhando por um país justo era o que pregava Carlos, sem dúvida a consciência
crítica dessa comédia de costumes, a qual se utilizou do riso, não um riso degradante,
mas a ironia para se fazer uma caricatura da sociedade imperial.
Através dos tipos sociais criados por Martins Pena, podemos perceber sua visão
da época em que viveu, no momento em que seus personagens emitem, em suas falas,
juízos de valor acerca dos ideais imperiais estabelecidos no século XIX.
O uso da ironia foi providencial, pois pela inversão, as críticas àquela realidade
aparecem e são compartilhadas entre os espectadores do teatro. Concordando ou não
com tais críticas, esses indivíduos poderiam vir a decifrar a mensagem que se queria
transmitir. E nesse fato se encontra o sucesso do autor.
A segunda comédia a ser analisada por nosso trabalho chamava-se “O
Diletante”, comédia em 1 ato. Essa peça se constitui de personagens como o Sr. José
Antônio, rico proprietário de terras e exemplo de um autêntico diletante. Personifica
aqueles indivíduos que freqüentavam assiduamente as óperas da Corte e ainda faziam
das canções seu entretenimento caseiro. José de Alencar, em uma de suas crônicas,
publicadas em 12 de Novembro de 1854 no Correio Mercantil, descreveu um diletante:
“Quando falamos em diletante, não compreendemos o homem apaixonado por
música, que prefere ouvir uma cantora, sem por isso doestar a outra. Diletante é um
sujeito que não tem nenhuma destas condições, que vê a cantora, mas não ouve a
música que ela canta; que grita bravo justamente quando a prima-dona desafina, e dá
palmas quando todos estão atentos para ouvir uma bela nota.”
6
O diletante, portanto, era aquele apaixonado por uma cantora do teatro lírico e
foi utilizando esse “personagem” real da cidade do Rio de Janeiro que Martins Pena
escreveu a peça que estamos tratando e a figura do Sr. José Antônio, que só pensava em
óperas, não se contentando apenas em ouvi-las, mas querendo também cantá-las e
obrigando sua família e todos que estavam em sua casa que também o fizessem.
Seu núcleo familiar é formado por D. Merenciana, sua esposa e Sra Josefina, a
filha do casal. Além destes, outros personagens formam essa comédia. Gaudêncio, um
parasita que corteja a filha do personagem central, Sr. José Antônio, objetivando seu
dote, existe ainda o Marcelo, um rico paulista e D. Perpétua, seduzida e abandonada
pelo caça-dotes Gaudêncio.
6
ALENCAR, José de. Ao correr da Pena. Correio Mercantil, São Paulo, 12 de Novembro. 1854.
O enredo gira em torno da disputa pelo casamento com Josefina e,
principalmente, pelo grande entusiasmo do Sr. José Antônio pela ópera.
Na cidade do Rio de Janeiro do século XIX, a ópera era uma mania entre a
classe senhorial. Tal gênero teatral chegou ao Brasil com a vinda de D. João VI, que
trouxe junto com sua família e sua Corte imperial, os castrati italianos, os quais
permaneceram no país mesmo após a partida do rei para Lisboa em 1821. D. Pedro II e
sua esposa D. Teresa Cristina continuaram incentivando o teatro operístico.
As óperas italianas encantavam os diletantes brasileiros, ou seja, os apreciadores
mais exaltados dos espetáculos de ópera. Um oficial do corpo de soldados alemães, C.
Schlichthorst, escreveu em seu livro “O Rio de Janeiro como é – 1824-1826 (uma vez e
nunca mais)”
7
acerca da freqüência com que esses cantores italianos participavam dos
saraus na cidade, deixando claro que a ópera vinda da Itália tornara-se uma mania
nacional. Sobre os espetáculos teatrais descreve:
“Os espetáculos teatrais (no Rio) dividem-se geralmente em três partes.
Primeiramente, representam uma tragédia, ou grande ópera. Depois um bailado. Por
fim, uma farsa. Em regra as óperas são cantadas em italiano e repetidas
frequentemente, como na Itália.”
8
A paixão pela ópera entre a classe senhorial suscitou a formação de partidos,
entre os indivíduos com tal gosto aristocrático, em torno de certas cantoras. Os
7
SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro como é 1824-1826 (Uma vez e nunca mais). Trad. Emmy
Dodt e Gustavo Barroso. Rio de Janeiro: Ed. Getúlio Costa.
8
Idem, p. 122.
membros desses partidos levavam a sério essa disputa e muitas vezes se desentendiam
em pleno teatro.
O Sr. José Antônio, o diletante da comédia de mesmo nome, tinha verdadeira
fixação por Norma, cantora italiana residente no Brasil. Quando questionado acerca de
sua adoração por tal cantora, dizia ele:
“Que graça? Uma graça divinal e sentimental! Quando eu vou ao teatro e ouço
esses sublimes acordes, essas harmonias brilhantes, essa melodia arrebatadora, sinto-
me outro....O prazer enleva-me; quero aproveitar a mais pequena nota e estendo o
pescoço, aplico o ouvido e sinto que não me desse Deus umas orelhas mais compridas
para aproveitar o mais pequeno átomo de harmonia.”
(O Diletante, cena IV)
A ópera lhe faz tão bem que acabou por tornar-se o centro do seu pequeno
mundo, o seu maior prazer. O José Antônio acredita fielmente que a música pode trazer
regeneração ao mundo, num diálogo com Gaudêncio, o cortejador de sua filha, diz:
“Preparei um trabalho que será de grande transcendência moral! Que terá
resultado estupendíssimo e que muito lucrará com ele a sociedade. Numa palavra,
provo nesse trabalho toda evidência que se criasse uma escola de música vocal e
instrumental em toda prisão e presigangas, em breve os crimes desapareceriam da face
da terra. Criadas essas escolas, as funções do júri seriam mais suaves e humanas. Do
seu seio não sairiam condenações de prisão, galé e morte; seriam suas sentenças assim
formuladas: Condeno o réu fulano, por crime de roubo, com infração, a um ano de
flauta. Ou: Condeno ao réu sicrano, por crime de assassinato, com circunstâncias
agravantes, a quatro de fagote e canto vocal. E assim por diante. Enfim, o júri se
dirigiria por um código musical que fosse dando a última demão. É impossível que
assim os maiores criminosos não se emendassem...”
(O Diletante, cena XI)
A idéia fixa do personagem, no caso a ópera, faz com que ele acredite numa
espécie de poder da música, esse poder traria a regeneração aos criminosos do Brasil ou
de qualquer local do mundo que seguisse o tal código musical criado por ele.
O código musical, como citado na fala do seu criador, seria uma espécie de
conjunto de leis por onde se baseariam os juízes no momento da condenação de um réu.
Assim, as penas variariam entre aprender flauta, canto vocal, piano e demais
instrumentos musicais.
Segundo José Antônio, esse tipo de condenação transformaria a moral presente
no país, mais especificamente, a moral do indivíduo que sofreria a pena. A música seria,
então, capaz de elevar, positivamente, o conjunto de hábitos e condutas válidos para
aquela sociedade.
A comédia se desenrola ainda e, em grande parte, a partir da preocupação de
José Antônio em casar sua filha Josefina. Dois pretendentes disputam o posto de
marido. O amigo do Sr. José, e preferido, Marcelo e o Gaudêncio que se finge de
apreciador de óperas para obter o dote desejado.
Marcelo é um rico proprietário paulista e estava visitando a Corte pela primeira
vez, hospedado na casa de nosso personagem central, que assim o descreve:
“...O amigo Marcelo é homem rico, honesto e bom, ainda rústico. Coitado,
nunca saiu de São Paulo! É [a] primeira vez que vem à corte; anda espantadiço. Só
uma coisa desgosta-me nele: o não gostar da música. Levei-o ontem ao teatro para
ouvir Norma e dormiu a sono solto durante toda apresentação. Dormir, quando se
canta Norma! Isto só se faz um paulista dos sertões! Dormir, quando se pode ouvir esse
canto incomparável do cisne da Itália! Infeliz mancebo! Bellini inimitável, rei das
almas sensíveis, portento de harmonia, morreste, e tão pouco nos deixaste! Morreste...a
terra te seja...melodiosa!”
(O Diletante, cena III)
Nesse trecho destacado, nosso comediógrafo trata, através da fala de seu
personagem, da questão Corte-Roça. A Roça era vista pelos habitantes da Corte como
local de ignorantes, no sentido da ausência de cultura, seus hábitos são mostrados como
não civilizados. A Corte, no entanto, revela todo seu lado civilizador, ou seja, onde se
podia ser civilizado, onde os padrões europeus estavam presentes, portanto, tornou-se o
pólo irradiador de cultura da nação que buscava a civilidade.
Nos dois ambientes estavam presentes um dos valores dados como importantes
por aquela sociedade: a riqueza. Porém, esta não bastava para ser considerado
civilizado, era necessária a adoção de padrões somente encontrados na Corte e que, em
certa medida, funcionavam como espelho e pólo de atração para muitos dos habitantes
da roça.
O personagem Marcelo, visitando a Corte pela primeira vez, é uma exceção
nesse sentido. Ele não se encanta com a ópera apresentada por seu, talvez, futuro sogro
e diz gostar mesmo é de fado, gênero musical que se podia dançar. José Antônio, apesar
de ver em Marcelo, um bom marido para sua filha, se incomodava com o fato de seu
favorito para casar com Josefina, não gostar de ópera. Para um diletante carioca, isso era
imperdoável e muito incompreensível. José Antônio se irritava, sempre defendendo a
música italiana:
“Que horror! Preferir um fado à música italiana! Não diga isto a ninguém, que
se desacredita. A música italiana, meu amigo, é o melhor presente que Deus nos fez, é o
alimento das almas sensíveis.”
(O Diletante, cena IV)
Após essa discussão em torno da ópera italiana e do fado e da preocupação de
José Antônio com o afastamento da filha do Rio de Janeiro e acima de tudo, das óperas
italianas, pois se o casamento com Marcelo se confirmasse, Josefina teria de ir morar
em São Paulo com o marido. Martins Pena faz uma alusão, numa fala do suposto futuro
marido, acerca da Revolução Liberal de 1842, quando o personagem em questão diz ter
perdido muitas cabeças de gado:
“Há muitas cabeças de gado, uma fazenda grande que vai ser senhora. Podia
dar mais, se não fosse a rebelião. Perdi muito dinheiro; não me meto noutra.”
(O Diletante, cena IV)
Os anos de 1822 e 1840 seriam marcados por uma enorme flutuação política, por
uma série de rebeliões e pelas tentativas contrastantes de organizar o poder. Os liberais,
que haviam sido responsáveis pela maioridade antecipada de D. Pedro II, perderam o
governo para os conservadores em 1841, estes iniciaram a anulação das conquistas da
Regência, num movimento chamado Regresso, ou seja, à volta ao sistema vigente no
Primeiro Reinado. Foi recriado o Conselho de Estado, foi extinto o Ato Adicional e
ocorreu a reforma do Código do Processo Criminal.
Os liberais se levantaram contra isso e eclodiu em São Paulo e Minas Gerais, a
Revolução Liberal de 1842, objetivando tirar as forças conservadoras do poder. Em São
Paulo, residência de nosso personagem Marcelo, tal revolta foi liderada por Rafael
Tobias de Aguiar, que havia presidido a província de 1831 a 1835 e depois de 1840 a
1841, quando os liberais perderam o poder em favor dos conservadores. Antes mesmo
da marcha pretendida pelos revoltosos acontecer, o movimento foi reprimido pelas
tropas imperiais.
Marcelo demonstra em sua conversa com José Antônio como tal Revolta o fez
perder dinheiro. Nosso autor, citando a Revolta e a fala do fazendeiro indica que mesmo
criticando os costumes do país em suas produções, revela sempre seu espírito
conservador, condenando, através do personagem, a Revolução Liberal de 1842.
Voltando a história do casamento de Josefina, esta confessa a mãe que gosta
mesmo é de Gaudêncio, Bacharel carioca que fizera seu curso em São Paulo. D.
Merenciana é contra essa união e explica porque:
“Ai menina, logo um doutor de São Paulo! Se ao menos fosse de Paris ou
Coimbra!”
Josefina retruca:
“E em que valem mais os de Paris e Coimbra?”
D. Merenciana:
“Em muitas coisas! Basta dizer que os de São Paulo não passam o mar e que
todos os anos nos chegam aos centos...Encontras em cada canto. E quanto mais
houverem, peor: menos que fazer encontram. Nem todos podem ser juízes de direito.”
(O Diletante, cena VI)
O diálogo entre mãe e filha nos remete a dois pontos importantes que
permeavam a sociedade Imperial. A visão admirável da Europa, tudo que vinha do outro
continente era visto como melhor.
A relação que se estabelece entre Europa e Corte do Rio de Janeiro é a de
transmissão de costumes, onde a Corte recebe tais costumes e torna-se o único local
onde é possível, dentro do Brasil, ser civilizado ou aprender a sê-lo.
Outro ponto de destaque nesse diálogo é a questão do emprego. As
oportunidades na Corte não conseguiam acolher toda demanda de profissionais do país.
Para determinados cargos e exercícios profissionais, a dependência dos favores e das
redes de influência eram fatores condicionantes. Não esqueçamos igualmente dos
estigmas relativos ao trabalho braçal, tão caro a valores de uma sociedade escravista.
Gaudêncio, ao contrário do seu oponente Marcelo, se faz passar por diletante e
assim ganha méritos com o pai de Josefina, inclusive, para satisfazê-lo, cantava na casa
deste que supunha que seria seu futuro sogro.
Um acontecimento, no entanto, muda o rumo da história, quando Marcelo
descobre um bilhete destinado a Gaudêncio:
“Escrevo-te esta às pressas. A tua amante sabe que freqüentas a casa do Sr.
José Antônio com a intenção de te casares com a filha. Está desesperada: saiu de casa
com teus dois filhos e jura vngar-se. Cuidado! Teu amigo Júlio.”
(O Diletante, cena XVI)
Marcelo, após ler o bilhete, arruma as malas para ir embora, porém quando
Josefina conversa com ele, explicando seu amor por Gaudêncio, o fazendeiro não
agüenta ver a menina tão enganada e desfaz toda farsa, mostrando-lhe o bilhete.
Em meio a essa confusão, Marcelo descobre que a amante enganada por
Gaudêncio era sua própria irmã, que anos atrás, havia fugido de São Paulo com um
carioca, o pretendente da filha de José Antônio. Nesse meio tempo, Perpétua, a irmã e
amante enganada, chega a casa do pai de Josefina e a história se espalha para todos da
casa.
Gaudêncio é obrigado a casar com Perpétua, obtendo um dote cedido por José
Antônio, que não vê a hora de se livrar de toda aquela confusão. Quanto a sua filha
Josefina, esta afirmou que não queria se casar com Marcelo, este também não enxerga
futuro numa relação com a menina e tal decisão é acatada por todos.
O diletante José Antônio, então, mais calmo, propõe:
“Ora, meus amigos, já que tudo se arranjou a contento geral e que estamos aqui
reunidos, não poderíamos cantar o final de Norma?”
(O Diletante, cena xx)
Ninguém concorda. Mas a comédia não termina nesse momento, o desfecho
ainda estava por vir. José Antônio recebe uma carta que contém a seguinte mensagem:
“Meu amigo, dou-lhe a mais triste e infausta notícia. Fecha-se o nosso teatro e
a Companhia Italiana vai para a Europa.”
(O Diletante, cena XXI)
Após ler tal notícia, nosso personagem cai morto. O final, porém, nada tem de
trágico, pois as circunstâncias da morte se tornam cômicas pelo seu próprio absurdo. Só
mesmo um diletante fervoroso com uma paixão operística imensa morreria por esse
motivo. É a sátira de Martins Pena se fazendo presente desde o início da ação.
A próxima comédia escolhida por este trabalho foi “Os três médicos”, encenada
em 03 de Junho de 1845 no Teatro São Pedro.
Esta peça satiriza as rivalidades entre clínicos, adeptos de diferentes escolas, em
conflito e sinaliza mais uma vez a questão do casamento imposto pelo pai aos filhos.
A comédia é composta de personagens, como Marcos, o velho pai de Rosinha e
Miguel, este Tenente da Marinha. De um amigo de Marcos chamado Sr. Lino das
Mercês e de três médicos, o Dr. Miléssimo, o Dr. Cautério e o Dr. Aquoso.
Martins Pena, usando sua criatividade, nomeou os médicos nesta obra de acordo
com o tipo de medicina exercida por cada um deles.
O primeiro médico, Dr. Miléssimo é o homeopata; o Dr. Cautério é alopata e o
Dr. Aquoso é o hidropata. Os três travam na comédia de Martins Pena, uma batalha em
defesa, cada qual, da sua escola de medicina. No Rio de Janeiro daquela época,
observava-se o conflito entre essas três tendências da arte de curar.
A homeopatia, criação alemã, na época com apenas trinta e cinco anos de
nascimento, chegou ao Brasil trazida por médicos estrangeiros que aqui se fixaram para
fazer concorrência com os alopatas brasileiros. A alopatia é um sistema terapêutico que
trata as doenças por meios contrários a elas, ou seja, atacando com medicamentos a
doença, já a homeopatia, é baseada na cura pelos similares, são ministradas em doses
pequeníssimas
9
.
Com a novidade da homeopatia, muitos médicos brasileiros passaram a aderir a
esse novo método e a briga entre os dois ramos se acirrou.
Alguns médicos misturavam os dois sistemas, deixando a escolha para os
pacientes. Nos jornais havia anúncios como este:
“O Dr. Gabriel de Ploesquellec, de regresso à esta Corte, tem a honra de
participar ao respeitável público, aos meus amigos e fregueses, que assiste na rua da
Ajuda n. 55, onde pode ser procurado a qualquer hora. Ocupa-se de operações,
medicina e partos, e cura alopa e homeopaticamente. Trinta anos de estudos e de
experiência prática na arte de curar, revelaram-lhe o que há de seguro e conjectural na
doutrina hipócrita (sic); e tendo tido inumeráveis ocasiões de verificar os benefícios da
dita doutrina, em todas as qualidades de enfermidades, não pode, sem injustiça formal,
fazer uma total abnegação dos princípios alopáticos, para abraçar exclusivamente a
homeopatia.”
10
Essa mistura servia para atrair pacientes e com isso a polêmica crescia cada vez
mais. Nessa briga empenhavam-se quase todas as notabilidades da época, como a
Revista Médica Brasileira editada por Paula Brito. A Academia Imperial de Medicina,
9
MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. Martins Pena e sua época. 2 ed. Rio de Janeiro, INL, 1972, p. 88
10
Idem, p. 89.
em reunião no dia 10 de Agosto de 1842
11
repudiou a homeopatia, para alguns de seus
membros, tratava-se de charlatanismo, alguns outros, não se manifestavam, e assim a
polêmica aumentava, porque não havia consenso acerca do valor real desse tipo de
tratamento.
Outras formas de tratamento surgiram, entre elas, a hidropatia, também criação
alemã, era o tratamento pela água. Entre os anos de 1851 e 1886, essa forma de curar
reuniria dezenas de estudos e teses apresentados às faculdades de medicina da Bahia e
do Rio de Janeiro.
A comédia de Martins Pena “Os três médicos” tratou desta polêmica entre os
três mais famosos métodos de tratamento da época em questão e outros assuntos já
recorrentes em suas peças teatrais.
A peça se inicia com uma conversa entre o pai, Marcos, desencorajado para
viver, acreditando que sua morte está próxima e sem credulidade na medicina, pois já
havia consultado alguns médicos e nada melhorava, e seus filhos, Rosinha e Miguel.
O filho Miguel aconselha a chamar o Dr. Miléssimo, homeopata, amigo pessoal
dele para olhar o pai. Este aceita, mas sem grandes esperanças, já se consultara com Dr.
Cautério, médico de grande reputação e em quem confiava. Miguel, porém via na
proximidade de Miléssimo à sua casa a oportunidade de convencer o pai a casar sua
irmã Rosinha com esse seu amigo. Rosinha e o médico já namoravam as escondidas.
A preocupação de Marcos era morrer sem antes casar a filha e assim deixá-la
desamparada, pois seu irmão sendo Tenente da Marinha vivia viajando e a menina
ficaria sozinha. Ele, então anuncia sua decisão de casar Rosinha com seu amigo Lino,
companheiro de escola e da mesma idade dele, ou seja, muito mais velho que a menina:
11
Idem, p. 90.
“É homem probo e honrado; tem a alma de um anjo. Far-te-á feliz. Crê, minha
filha, que à borda da sepultura ponho todo desvelo em fazer-te ditosa...casar-te-ás com
ele, e em breve, que assim te pede teu pai...”
(Os Três Médicos, cena I)
Quando Lino fica sabendo da notícia, a felicidade não cabe em si. Iria se casar
com uma boa moça, filha de um amigo e teria muitos filhos. Mas Marcos confessa ao
amigo a principal causa de sua doença, na verdade, uma doença moral. Sua esposa, já
falecida Serafina, havia sido proibida de se casar com ele pelo pai. Em carta a um amigo
de escola, que julgava ser seu melhor amigo, chamava-se Maurício, desabafou dizendo:
“Meu amigo, ele negou-me a mão de Serafina, e suas desabridas palavras
deixaram-me a cruel certeza que eu nunca a gozarei. Daria metade de minha fortuna
para que este homem não existisse.”
(Os três médicos, cena III)
Oito dias depois dessa carta a Maurício, o pai de Serafina, aparece assassinado
misteriosamente. Quem o matou foi o suposto melhor amigo de Marcos e a partir de
então, de posse da carta, extorquia dinheiro do pai de Rosinha. Este continua sua
confidência a Lino:
“E eu tive a criminosa fraqueza de aproveitar-me deste crime atroz. Um ano
depois, eu estava casado com Serafina. Três anos de casado, morreu minha mulher,
deixando-me dois filhos. E que vida tem sido a minha, desde então! Metade de minha
fortuna dizia eu que daria para que o pai de Serafina não existisse; mais da metade
tenho dado a Maurício para que me entregue a carta fatal, mas o pérfido zomba de
mim, e novas exigências acompanham novas promessas. O que será de mim se ele a
publicar?
(Os três médicos, cena III)
Lino tentava acalmar o amigo dizendo que o assassino jamais publicaria tal
carta, pois assim perderia a renda da extorsão. E segue avisando que pediu ao seu
médico, um hidropata, para que viesse ver o amigo Marcos.
O primeiro médico a aparecer é o Dr. Cautério, o alopata, que já chega se
queixando da vida que levam os médicos:
“Estou cansadíssimo! Má vida, Sr. Lino, má vida é a de médico! Somos como
criados do povo. Julgam-se todos com direito ao nosso saber, tão arduamente
adquirido e tão pouco reconhecido! Não temos hora, dia nem descanso...salva-se o
doente, agradece-se à natureza; morre o doente, culpa-se o médico. Que recompensa a
noites de estudos e insônia! Em nossos braços morrem a esposa, o amigo, os filhos, sem
que lhe possamos valer. A nossos pés se arrasta a deplorada família pedindo a vida
para o seu pai, cabeça e arrimo, que todos os esforços da arte não puderam salvar. E
essas cenas de angústias se reproduzem diariamente. Que vida! E invejam-na!... e essa
súcia de inovadores, magnetizadores, hidropatas e homeopatas com que lutamos todos
os dias?”
(Os três médicos, cena V)
Além de reclamar da vida de médico, inicia uma discussão, na verdade, um
monólogo, pois mal dá espaço para seu interlocutor, Sr. Lino expressar sua opinião,
acerca dos outros meios de tratamentos existentes no país:
“Fomos os agredidos! Assim devia ser...Quando se não tem razão, responde-se
com insultos. E aonde iriam buscar os homeopatas razões convincentes para oporem às
nossas? Onde? Há sistema mais absurdo e ridículo do que a homeopatia? Onde as
bases em que se firmar – similia similibus curantur? Absurdo! Contraria contraiis
curantur – eis a verdade! Há nada mais natural e simples do que tratar o calor pelo
frio, o seco pelo úmido, os humores pelos laxantes, a sua acridade pelos álcalis, etc,
etc.? O contrário disto não tem senso comum. A alopatia é o grande e verdadeiro
sistema e...Mas, ai, que estou aqui a questionar e o doente está a minha espera!
(Os três médicos, cena IV)
Esse discurso a favor da alopatia do Dr. Cautério para com Sr. Lino, se
desencadeou devido a colunas que facilmente eram encontradas nos jornais da época,
como Jornal do Comércio, falando acerca da homeopatia ou mesmo um médico
homeopata esclarecendo, argumentando sobre os benefícios desse tratamento. Isso para
os alopatas brasileiros era uma ofensa. E então, as disputas se acirravam ainda mais.
Ambos querendo provar que sua maneira de curar era a correta.
Quando o Dr. Cautério vai ver o doente Marcos, entra o médico hidropata Dr.
Aquoso, esse nome é mais uma mostra da ironia e sátira de Martins Pena em seus
enredos. Este vai logo alertando o Sr. Lino do poder de dura da hidropatia:
“A hidropatia faz milagres! Meu caro, Deus não criou tanta água no mundo,
debalde. Água fria e mais água fria é a grande panacéia universal. Água para tudo,
com tudo e por tudo – água por todas as partes...e salve-se a humanidade!”
(Os três médicos, cena VII)
Após alardear acerca do bem que a hidropatia faz aos pacientes, o Dr. Aquoso
pede para ver o doente, mas Lino pede uma conversa ao amigo sobre o futuro
casamento com a filha do Sr. Marcos. Conta que o amigo lhe deu a mão da filha em
casamento e pergunta o que acha Aquoso dessa união. Após perguntar a idade de Lino,
sessenta e oito anos, o médico diz:
“Meu amigo, falar-lhe-ei com franqueza, que assim exigiu de mim. Não se case.
O homem de sua idade não deve fazer essa loucura; os inconvenientes são inumeráveis.
Deixe-se disso, não se case...”
(Os três médicos, cena VII)
O Sr. Lino fica indignado e, em mais uma sacada de criatividade e sátira de
Martins Pena, o personagem que quer se casar, responde:
“Tenho uma saúde robustíssima. Que importa a idade? Ainda tenho todos os
dentes (mostra os dentes), o peito está perfeitíssimo...(tosse). Que lhe parece? As
pernas vigorosas; sou capaz de dançar a polca. (dança). Se é loucura, estou resolvido a
praticá-la.”
No que responde Aquoso: “E terá muito juízo...”
(Os três médicos, cena VII)
Este momento deve ter levado a platéia ao riso solto, principalmente, depois que
Dr. Aquoso descobre que a noiva em questão tem quinze anos e sai rindo da cena para
examinar o doente.
O último médico a subir ao palco é o Dr. Miléssimo, amigo de Miguel e
pretendente de Rosinha. Este já entra discursando ao amigo sobre os benefícios da
homeopatia e falando mal dos alopatas, sem dar tempo a Miguel de lhe contar acerca do
casamento arranjado pelo seu pai entre sua irmã e Sr. Lino:
“Os estúpidos e ignorantes alopatas já vão reconhecendo a nossa supremacia.
Médicos carrascos, rotineiros, asnos enfim, que experimentam no mísero doente os seus
infernais medicamentos, que misturam de modo horroroso milhares de nojentas drogas
em uma só receita; que furam, atassalham, queimam, martirizam o desgraçado
paciente. Pobres doentes! Forte canalha! A homeopatia triunfa por toda parte. Os
esclarecidos soberanos a acolhem em seus Estados com braços abertos. A homeopatia
é o único e verdadeiro sistema médico. Quando nova doutrina aparece no mundo
médico, os mais virulentos críticos a perseguem, mas a verdade segue avante.”
(Os três médicos, cena IX)
Quando finalmente Miguel consegue contar ao médico sobre os planos do pai,
inicia-se um trabalho dos três, Rosinha, Miléssimo e Miguel, para dissuadir Lino de se
casar com a moça, pois somente com uma recusa do amigo, o Sr. Marcos aceitaria
mudar o marido para sua filha. O plano dos três consistia em fazer com que Lino
flagrasse uma cena de despedida entre Rosinha e Miléssimo, com a confissão mútua de
afeto, mas de total obediência aos desejos de Marcos. Após presenciar tal cena, o Dr.
Miléssimo se retira e Rosinha diz ao Sr. Lino:
“A severidade de meu pai tem-me trazido em abominável sujeição: Há muito
tempo que me desespera a pouca liberdade que tenho, e mil vezes tenho desejado casar-
me para fazer a minha vontade. Graças a Deus, felizmente apareceste, e vou recobrar o
tempo perdido! Seremos ditosos! Em bailes, partidas, teatros, jantares esplêndidos,
passeios campestres, passaremos a vida. Ainda não gozei do mundo, -sempre em casa,
fechada com meu pai! Venha agora a desforra! A teu lado serei a mais feliz das
mulheres. Daremos uma partida todas as semanas, convidaremos os nossos amigos,
teremos carruagem, carrinhos e caleças para passearmos, chácaras para passarmos os
domingos, camarotes para as companhias – italiana e Dramática – criados, damas de
companhia, esplêndidos aparelhos, casa suntuosa, enfim, passaremos vida de bem-
aventurados! Estarás sempre a meu lado, e quando os teus achaques – perdoe-me, se já
te falo com esta familiaridade – quando os teus achaques da velhice te prenderem em
casa, aí está o teu novo amigo para acompanhar-me ao passeio e ao teatro; para fazer
as tuas vezes nos jantares que dermos... Tu o receberás com candura... Em nossa casa,
haverá sempre um talher para ele. Que ventura, a minha! Como tardia o dia da nossa
feliz união!”
(Os três médicos, cena XI)
Rosinha diz isso tudo para Lino com a intenção de convencê-lo que o casamento
entre eles não dará certo e este realmente cai em si e resolve desmanchar tal
compromisso acordado com o amigo. Mas como fazê-lo? Já deu sua palavra a Marcos.
A história se complica quando Maurício, o assassino e chantagista envia um novo
bilhete ao pai de Rosinha e Miguel:
“Antes de ontem vi tua filha à janela. Gostei dela e quero que seja minha
mulher. Arranja isto de modo que dentro de oito dias esteja tudo concluído; ando
incomodado e não quero morrer sem mulher. Trata do dote, mas vê lá o que fazes –
quero que seja avultado. Só assim te entregarei aquela cartinha que me escreveste há
dezesseis anos...”
(Os três médicos, cena XIV)
Marcos mostra a Lino a nova chantagem e o amigo sugere que o viúvo de
Serafina se faça passar por morto, quando a notícia se espalhasse, a carta se tornaria
inútil e seria possível arrancá-la do chantagista. Enquanto se prepara à encenação, os
três médicos entram em conflito. O Dr. Aquoso entra com barris de água, Miléssimo
volta e quer ministrar-lhe os seus glóbulos homeopáticos e o Dr. Cautério reaparece
com um grande vidro cheio de sanguessugas para aplicar ao doente. Os insultos se
acirram entre eles, e a situação piora quando Rosinha entra na sala com a falsa notícia
de que seu pai morreu. Os médicos se culpam entre eles e a briga conduz a uma luta
corporal.
Em meio a tal confusão, surge Marcos vestindo o hábito de irmão terceiro de
Santo Antônio, sendo tomado, a princípio, por um fantasma. Aparece feliz, declarando –
se salvo:
“Uma causa moral trazia-me acabrunhado e em breve me levaria à sepultura.
Um homem existia cuja vida era o meu tormento; mas graças a Deus essa causa moral
desvaneceu-se e esse homem deixou de existir. O senhor Maurício morreu, e eu estou
salvo!”
(Os três médicos, cena XVIII)
Os mais engraçado de tudo isso, é que o Maurício era cliente de um dos três
médicos, que ficaram espantados com sua morte súbita. Um acusa o outro de ser o
médico assassino. O Dr. Cautério acusa o Dr. Miléssimo e Marcos feliz, quer
recompensá-lo, nesse momento Lino intervém e convence o amigo a dar a mão de sua
filha em matrimônio ao Miléssimo. Volta-se para o Dr. Cautério e diz que ele continua
sendo o seu médico. E para o Dr. Aquoso não ser o único a ser repudiado de alguma
forma, Lino pede que ele o trate.
A conclusão da comédia favorece a alopatia do ponto de vista médico, do
sentimental o homeopata sai ganhando. Mas o melhor desta obra é que ela espelha o
conflito do meio médico da época, como um documento vivo das polêmicas e das
rivalidades profissionais do Brasil imperial.
A última comédia a ser analisada é “Os Dous ou o Inglês Maquinista”, seu
momento de encenação não está exato, mas presume-se que tenha subido a cena em
1843.
Essa peça explora a rivalidade existente entre os ingleses e os que se
beneficiavam com o contrabando de escravos no Brasil. O problema dos meias-caras, ou
seja, os africanos introduzidos no país ilegalmente pelos barcos de traficantes, que
conseguiam furar o cerco dos navios ingleses, então policiando as rotas marítimas do
Sul do Atlântico.
Em 1826, o Império do Brasil e o Reino da Inglaterra assinaram um tratado pelo
qual, três anos após sua ratificação seria declarado ilegal o tráfico de escravos para o
Brasil de qualquer proveniência. A Inglaterra se reservou ainda ao direito de inspecionar
em alto-mar navios suspeitos de comércio ilegal. O acordo entrou em vigor em Março
de 1827, devendo ter eficácia a partir de Março de 1830. Uma Lei de 07 de Novembro
de 1831 buscou pôr em andamento o tratado, ao prever a aplicação de severas penas aos
traficantes e declarar livres todos os cativos que entrassem no Brasil após aquela data.
Tal Lei dizia, em seu artigo primeiro:
“Todos os escravos que entrarem no território, ou portos do Brasil, vindos de
fora, ficam livres. Excetuam-se: 1) Os escravos matriculados no serviço de
embarcações pertencentes a país, onde a escravidão é permitida, enquanto empregados
no serviço das mesmas embarcações: 2) os que fugirem do território, ou embarcação
estrangeira, os quais serão entregues aos senhores que os reclamarem, e reexportados
para fora do Brasil. Para os casos da exceção n. 1, na visita da entrada se lavrará
termo do número dos escravos, com as declarações necessárias para verificar a
identidade dos mesmos, e fiscalizar-se na visita da saída se a embarcação leva aqueles,
com que entrou. Os escravos que forem achados, depois da saída da embarcação, serão
apreendidos, e retidos até serem reexportados.”
12
No artigo segundo, dizia a mesma Lei:
“Os importadores de escravos no Brasil incorrerão na pena corporal do artigo
cento e setenta e nove do Código Criminal, imposta aos que reduzem à escravidão
pessoas livres, e na multa de duzentos mil réis por cabeça de cada um dos escravos
importados, além de pagarem as despesas de reexportação para qualquer parte da
África; reexportação que o governo fará efetiva com a maior possível brevidade,
contratando com as autoridades africanas para lhes darem um asilo. Os infratores
responderão cada um por si e por todos.”
13
O artigo terceiro definia como importadores comandantes, mestres e
contramestres de navio, o que cientemente deu ou recebeu a frete, ou por qualquer outro
título, a embarcação destinada para o comércio de escravos, todos os interessados na
negociação e todos os que cientemente forneceram fundos, ou deram qualquer ajuda a
favor, auxiliando o desembarque ou consentindo-o em suas terras e, ainda, os que
cientemente comprarem como escravos os que no artigo primeiro eram declarados
12
Idem, p. 56.
13
Idem, p. 56.
livres. No artigo quarto, dizia-se que se as forças nacionais do Brasil apreendessem fora
dos portos alguma embarcação fazendo o comércio de escravos esta seria considerada
como apreendida no próprio Império.
Os traficantes ainda não eram malvistos pelas camadas dominantes e se
beneficiavam também das reformas descentralizadoras realizadas pela Regência. Os
júris locais, controlados pelos grandes proprietários, absolviam os poucos acusados que
iam a julgamento. A Lei de 1831 foi considerada uma Lei “para inglês ver”.
O problema era criado pelo cruzeiro naval inglês. Muitos navios que
transportavam escravos foram apreendidos. Em 1846 deveria terminar o acordo
concedendo à Inglaterra o direito de visita, e o Brasil não se dispunha a prorrogá-lo. O
Jornal do Comércio, registrando tal atitude, escreveu em editorial publicado a 09 de
Março de 1845:
“Está consequentemente terminado o direito de visita que os cruzadores
ingleses exerciam sobre os nossos navios mercantes, e não é de presumir que torne a
ser reproduzido em um momento em que as nações que o estabeleceram perpetuamente
tratam de o abolir. Esperamos, pois, que os governos do Brasil e da Grã-Bretanha, sem
desistirem da honrosa empresa de reprimir o tráfico, adotarão outros meios que não o
direito de visita, que a experiência tem completamente demonstrado ineficaz, aviltante e
destruidor de toda a benevolência entre os dois povos. É motivo para nos
congratularmos com o comércio nacional que fica livre dos vexames que a violência
dos cruzadores britânicos o tinha sujeito e que o devia completamente aniquilar, mas é
um motivo também para darmos sinceros parabéns aos negociantes ingleses
estabelecidos no país, a quem a nova ordem de coisas não pode deixar de ser
proveitosa.”
14
O editorial deixa clara a posição dos brasileiros quanto à intromissão inglesa, de
forma tão violência dentro do país. Essa interferência atingia a soberania do Brasil como
nação livre e constitucionalmente formada. Tal argumento, em muito utilizado pelos
14
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 09 de Março de 1845.
dirigentes saquaremas, acabou por servir no debate, intensificado no decorrer na década
de 1840, contra as pressões do governo inglês acerca do fim do tráfico intercontinental
de escravos
15
.
As reações inglesas não tardaram. O Times, de Londres, dizia que o Brasil tinha
se convertido em quartel-general da escravidão mundial. O Parlamento inglês declarou
ser absurda a alegação brasileira de que o tratado havia caducado e aprovou um ato que
no Brasil ficou conhecido como “Bill Aberdeen”, em referência a Lord Aberdeen,
Ministro das Relações Exteriores do governo britânico. O ato autorizava a marinha
inglesa a tratar os navios negreiros como navios de piratas, com direito à sua apreensão
e julgamento dos envolvidos pelos tribunais ingleses, além da imposição de bloqueio às
costas da África.
Em 15 de Setembro de 1845, o Jornal do Comércio divulgava a notícia da Lei
inglesa, que logo suscitou protestos no Brasil. Os brasileiros julgavam ter sua soberania
atingida pela Grã-Bretanha.
Quando em 1848 um gabinete conservador tomou o poder no país, foi escolhido
para Ministro da Justiça Eusébio de Queirós, filho de um juiz luso-angolano, nascera em
Angola e se casara com uma moça proveniente de família ligada aos negócios urbanos
do Rio de Janeiro. Partiu de seu gabinete um projeto de Lei que trazia medidas mais
eficazes contra o tráfico, reforçando a Lei de 1831. O projeto se converteu em Lei em
1850. A entrada de escravos no Brasil caiu de cerca de 54 mil cativos em 1849 para
menos de 23 mil em 1850 e 3300 em 1851, desaparecendo, praticamente, a partir de
então.
Diante de todo esse quadro, conhecido por Martins Pena, ele escreveu a peça
teatral “Os Dous ou o inglês maquinista”.
15
Ver Tempo Saquarema. Ilmar Rohloff de Mattos. Op. Cit.
Os personagens centrais que constituem essa comédia são D. Clemência, que se
considera viúva, pois o marido, Alberto, foi supostamente morto no Rio Grande do Sul,
em plena Revolução Farropilha. Os outros personagens de grande importância são o Sr.
Negreiro, chamado sempre dessa maneira por ser um negociante de negros novos e o Sr.
Gainer, um inglês maquinista, muito esperto que tenta obter recursos com os mais
ingênuos para produzir uma máquina que fabricaria açúcar usando ossos como matéria-
prima.
Nosso comediógrafo usando sua criatividade escolheu como figuras centrais de
seu enredo, um traficante de negros e, ao mesmo tempo, colocou na comédia, como seu
rival, um inglês, isto é, um cidadão do país mais empenhado em acabar com o tráfico.
Simbolizou, aos olhos do público, os dois grupos em choque naquele momento, além de
compor a personagem de D. Clemência, a terceira parte importante, pois era um símbolo
dos aproveitadores de tráfico ilegal.
Os demais personagens da comédia se formam em torno da suposta viúva,
senhora bem sacudida e de muitos recursos. Ela possui duas filhas, a mais velha
chamada Mariquinha, para quem queria arranjar um marido rico e, Júlia, uma menina de
dez anos. Ainda consta neste enredo um sobrinho de D. Clemência, o Felício, que não
esconde sua paixão pela prima, mas sabe que uma união entre eles seria difícil porque
sua tia não deixaria a filha se casar com um funcionário público, mal remunerado,
enquanto ela tem dois outros grandes partidos à sua disputa, o negreiro e o inglês,
ambos de olho apenas no dote da menina.
A peça se inicia com D.Clemência reclamando do custo de vida no Rio de
Janeiro com o Sr. Negreiro, dizendo que arregala os olhos cada vez que chega a conta
do armazém e, principalmente, das modistas. Além dos dois, também se encontra na
sala o sobrinho Felício, que não tarda a fazer provocações ao seu rival pelo casamento
com Mariquinha. Ele começa a lhe perguntar se sabe de quem era o navio “Veloz
Espadarte”, pego em flagrante pelo cruzeiro inglês quando desembarcava escravos perto
da Fortaleza de Santa Cruz, ao que responde o traficante de escravos:
“A um pobre diabo que está quase maluco...Mas é bem feito, para não ser tolo.
Quem é que neste tempo manda entrar pela barra um navio com semelhante
carregação? Só um pedaço de asno. Há por aí além de uma costa tão longa e algumas
autoridades tão condescendentes!...”
(Os Dous ou o inglês maquinista, cena I)
Felício logo retruca que essas tais autoridades são condescendentes porque não
cumprem o seu dever, o negreiro responde:
“Dever? Perdoe que lhe diga: está muito moço... Ora, suponha que chega um
navio carregado de africanos e deriva em uma dessas praias, e que o capitão vai dar
disso parte ao juiz do lugar. O que há de este fazer, se for homem cordato e de juízo?
Responder do modo seguinte: “Sim, Sr. Capitão, pode contar com a minha proteção,
contando que vossa senhoria.... Não sei se me entende?” Suponha agora que este juiz é
um homem esturrado, destes que não sabem aonde tem a cara e que vivem no mundo
por verem os outros viverem e que, ouvindo o capitão, responda-lhe com quatro pedras
na mão: “Não, senhor; não consinto! Isto é uma infame infração da lei e o senhor
insulta-me, fazendo semelhante proposta!” E, depois deste aranzel de asneiras, pega na
pena e oficia ao governo. O que lhe acontece? Responda.”
(Os Dous ou o inglês maquinista, cena I)
Felício responde que este seria um juiz íntegro e de bem. E o negreiro continua:
“Engana-se; fica na conta de pobre, que é menos que pouca cousa. E no entanto
vão os negrinhos para um depósito, a fim de serem ao depois destribuídos por aqueles
de quem mais se depende, ou que tem maiores empenhos. Calemos-nos porém que isto
vai longe.”
(Os Dous ou o inglês maquinista, cena I)
Este diálogo entre os dois exemplifica claramente a mentalidade da época. A
justiça era falha, visando somente seu interesse. Grandes nomes da sociedade imperial
recorriam constantemente aos tribunais para anular apreensões de cargas de escravos. A
lei era burlada das duas maneiras, não só se mantinha a introdução de africanos no
Brasil, como aqueles que eram pegos, não eram reexportados como a lei determinava.
Esses meias-caras, aqueles recebidos de graça por apreensões, embora sendo livres
como a lei dizia, eram escravizados, vendidos no mercado clandestino.
A nossa suposta viúva continua a conversa com o negreiro dizendo que recebeu
um meia-cara da Casa de Correção. Esta casa era um dos locais de depósitos de
africanos apreendidos. Ela o explica como o conseguiu:
“Empenhei-me com minha comadre, minha comadre empenhou-se com a
mulher do desembargador, a mulher do desembargador pediu ao marido, este pediu a
um deputado e eu fui servida.”
(Os Dous ou o inglês maquinista, cena I)
D. Clemência indicou mais um motivo da lei não ser cumprida, a troca de
favores que existia naquela sociedade. Uma verdadeira cadeia de interesses pessoais e
políticos. Antes de se retirar de cena para mostrar ao negreiro sua nova aquisição,
afirma que agora que a tinham dado aquele negro, ninguém o arrancaria dela.
Quando eles se vão, se encontram na sala Felício e Mariquinha que começam
uma trama para impedir o casamento dela com um de seus dois pretendentes, pois os
primos se amam e querem se manter juntos. Felício tem a idéia de colocar um contra o
outro, ou seja, o inglês contra o negreiro e vice versa, dessa forma eles se destruirão e os
dois poderiam casar.
E começa a por seu plano em prática, intrigando o inglês contra o negreiro:
“Mas veja como os homens são maus. Chamarem ao senhor, que é o homem o
mais filantrópico e desenteressado e amicíssimo do Brasil, especulador de dinheiros
alheios e outros nomes mais.”
(Os Dous ou o inglês maquinista, cena VII)
Após contar que foi o negreiro quem disse tal coisa, Gainer, o inglês, sai
desesperado dizendo que vai contar às autoridades que o outro é traficante de meia-cara.
O negreiro entra neste instante oferecendo a D. Clemência um negrinho pequeno
como presente para servir a Mariquinha como pagem, esta o recusa, mas sua mãe logo
aceita o agrado e leva o meia-cara para junto dos outros negros. Aproveitando a
oportunidade de estar sozinho com negreiro, Felício inicia sua intriga:
“O Sr. Gainer, que há pouco saiu, disse-me que ia ao juiz de paz denunciar os
meias-caras que o senhor tem em casa e ao comandante do brigue inglês Wizard os
seus navios, que espera todos os dias.”
(Os Dous ou o inglês maquinista, cena XIV)
A partir daí a comédia gira em torno desta rivalidade que tem como
conseqüência uma luta corporal entre os dois homens. Essa cena acaba revelando mais
uma parte do enredo, que é o interesse de D. Clemência por Gainer, o inglês maquinista.
Em meio a socos e palavras ríspidas, o negreiro diz à viúva que o maquinista
freqüenta sua casa porque também tem a ambição de casar-se com Mariquinha. D.
Clemência espantada com a notícia, pois acreditava que o desejo do inglês era casar-se
com ela, nega a união de sua filha com Gainer.
A suposta viúva Clemência não desisti de sua intenção de casamento com o
inglês e o manda uma carta para que vá a sua casa, onde pretende ela, declarar-se para o
homem. Porém, o negreiro ouve tudo isso escondido atrás das cortinas. Como se não
bastasse todos os acontecimentos, reaparece em cena o marido de Clemência, dado
como morto, Alberto. Este estava preso por dois anos no Rio Grande do Sul dominado
pelos revolucionários farropilhas.
Pretendia fazer uma surpresa para sua família, mas, ao entrar em casa, encontra
o negreiro atrás da cortina e este lhe põe a par dos acontecimentos. Alberto, o marido
que retornou, além de saber das intenções da mulher de casar com outro, ainda ouve
uma conversa entre sua filha e Felício acerca de uma suposta fuga dos dois para se
casarem.
Após perdoar a mulher a pedido das filhas e obrigar Felício a se unir a
Mariquinha, a comédia se encerra com uma cantoria festiva. A peça se passa em noite
de Reis, cuja festa participava vizinhos e amigos, que enchem a última cena cantando:
“Ó de casa, nobre gente, escutai e ouvireis, são chegados os três Reis”.
Após a leitura das peças do comediógrafo Martins Pena, podemos perceber
determinadas especificidades da sociedade imperial brasileira. Nesses termos, ao
lermos e analisarmos algumas de suas comédias, verificamos o quanto o autor repete
determinados assuntos em seus enredos.
A questão do casamento por interesse, da crítica à justiça brasileira da época são
alguns aspectos que se mantém em quase todas as suas obras. A riqueza e a posição
social eram valores supremos da sociedade em questão. A busca por um casamento bem
recompensado era muito comum àqueles habitantes. Martins Pena coloca em evidência
esse tal valor comportamental em todas as quatro comédias por nós analisadas.
Enriquecer era o objetivo de grande parcela da população, em destaque os que eram ou
queriam vir a ser considerados como a “Boa Sociedade”. O dinheiro trazia status e a
proteção perante a justiça.
Outro aspecto destacado diz respeito a particularidades do exercício do poder
judiciário no Brasil dos oitocentos. Os vícios, muito mais do que as virtudes, pareciam
dar o tom das ações dos protagonistas desse campo de atuação política. Havia leis,
porém não eram feitas para todos. A riqueza trazia impunidade. Esse ponto é mostrado
na comédia “O noviço” e em “Os Dous e o inglês maquinista”. As leis se faziam
cumprir para os pobres, os mais afortunados obtinham favores aqui e ali e não eram
punidos. A troca de favores, na última comédia analisada por este trabalho, centraliza
boa parte do enredo construído. Valendo-se de posições e amizades, a conquista de um
bem como um escravo africano, obtida pela suposta viúva D. Clemência, fazia da lei em
vigor, a mesma que garantiria a liberdade do cativo, coisa para inglês ver.
A questão das profissões é tratada, de forma diferenciada em duas dessas
comédias. Em “O noviço”, o personagem Carlos destaca a imposição da profissão a ser
seguida. Imposição feita pela própria família, sem levar em consideração, a vocação do
indivíduo para o exercício da mesma. Na peça “Os três médicos”, a questão profissional
é vista por outro ângulo. Martins Pena demarca o conflito entre três tipos de tratamento
medicinal existentes na época especificada.
As hierarquias e exclusões da ordem social vigente perpassam, quase que como
naturalizadas, o quotidiano dos que viviam em terras do Brasil. Em especial, a “Boa
Sociedade” e tantos de seus hábitos e comportamentos, ocuparam a cena para, em
alguns casos, fazer valer a reificação da unidade e da ordem que viabilizava reproduzir
seu ideal de ordem e civilização.
Não podemos deixar de ressaltar o caráter crítico de Martins Pena que nos revela
o quotidiano destes grupos sociais, suas relações com o Estado e seus representantes,
mostrando seus valores, ideais e preconceitos desta sociedade.
Seus personagens representam pessoas reais, que viviam e vivenciavam todas
aquelas situações indicadas nas ações dos enredos de suas comédias. A linguagem
simples de suas peças aproximava o público de seus trabalhos, e, portanto as cenas
representadas eram logo reconhecidas pelos espectadores.
Através da ironia e da sátira, fazendo uso de sua criatividade, Luis Carlos
Martins Pena nos deixou um legado acerca da sociedade em que viveu. O Império do
Brasil e seus costumes, população, idéias, anseios e desejos ficaram marcados em cada
comédia desse teatrólogo. Um registro caricatural e realista, deveras interessante, da
sociedade imperial brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das obras de Martins Pena nos deu a oportunidade de refletir acerca
das visões e valores da sociedade imperial brasileira, nos ajudando no entendimento do
século XIX. Sobre isso Raimundo Magalhães Junior assim se expressou:
“Martins Pena, morto há cem anos, não deve ser avaliado apenas pela sua obra
dramática, mas igualmente pelas influências que nos legou. E essas influências na
verdade estabelecem a tradição inicial e a mais autêntica em nosso teatro. Escrevendo
numa época em que ainda se tinha o vezo de imitar clássicos, abandonou os velhos
modelos e os temas gastos, para se voltar para a realidade brasileira. Seu gênio
dramático foi eminentemente brasileiro. Escreveu, na realidade, alguns dramas e
tragédias de assunto espanhol e português, mas o que dele ficou e ficará, em nossa
literatura, e o que constituiu a parte mais importante de sua obra, são as comédias
como “O noviço”, “Os irmãos das almas”, “O Judas em Sábado de aleluia”, “O juiz
de paz da roça”, etc. Essas comédias estão cheias de preciosas anotações. Mostram-
nos, admiravelmente, o que era o Brasil da Regência e dos primeiros anos do Segundo
Reinado. A precária administração da justiça, a ausência de polícia, o recrutamento sui
generis, até mesmo as traficâncias e fatos e coisas de antanho, revelam em Martins
Pena um agudo espírito crítico, sempre pronto a apontar mazelas e a documentar
coisas carecedoras de emenda. Não exagerou Silvio Romero quando, na sua História
da Literatura Brasileira, declarou que, se todos os documentos e fontes históricas nos
faltassem, seria possível reconstituir a vida da sociedade brasileira tão somente através
das comédias de Martins Pena, porque essas comédias constituem “documentos
sociológicos” da maior importância. Podemos dizer que Martins Pena fundou, no
Brasil, uma escola – a da comédia de costumes- que não desapareceu nem deve
desaparecer do nosso teatro”
1
As proposições românticas, na forma realista como nosso autor as apresentou,
cumpriram o papel do teatro como interventor social, no momento em que em suas
1
Raimundo Magalhães Junior. Apud: DAMASCENO, Darcy. Comédias de Martins Pena. Edições
críticas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1956, p. 11.
comédias de costumes encurtava a distância entre a língua falada e escrita, facilitando a
compreensão do público, das ações e valores que compuseram a cena de cada
espetáculo. O uso da ironia por nosso autor, facilitou a apresentação da crítica. Seus
personagens, através da inversão inerente a esta figura de linguagem, apresentavam a
realidade partilhada por todos e, ao mesmo tempo, faziam rir.
Houve, acreditamos, na produção teatral de Martins Pena, a intenção de por em
cena o mundo que ele conheceu, e mais, apontar acertos e desacertos de padrões de
civilidade, na dimensão em que esses se materializavam nas atitudes e valores de grupos
e indivíduos. Na emissão de juízos de valor, em muitas das falas de alguns personagens
centrais de suas comédias, o teatrólogo buscava sensibilizar, pelo riso, sua platéia, e, ao
fim, numa medida não totalmente mensurável, educá-la, fosse pelo consentimento com
o juízo emitido, fosse pelo estranhamento ou certo incômodo que o mesmo pudesse
suscitar. Nesse ponto, reside, em estreita interdependência, o caráter performático e
pedagógico do teatro de Martins Pena, e também sua significação particular entre as
proposições e realizações dos que dialogaram com o Romantismo.
Romantismo esse que fez uso da experimentação, tentando criar algo novo. Para
tanto, muitas vezes reelaborou, outras tantas, negou os valores do classicismo. No
romantismo, aquele apresentado por Martins Pena, a sociedade era mostrada como um
todo, cada um dos personagens utilizando sua linguagem, se expressando da maneira
que melhor aproximasse o público do teatro, daquilo que estava sendo encenado.
Essa oralidade interferia na compreensão e circulação das idéias e valores que ali
estavam sendo veiculados. As situações poderiam ser imediatamente reconhecidas por
todos os presentes ao espetáculo devido à aproximação da linguagem escrita e falada
nas comédias de viés romântico, elaboradas por Martins Pena. A dimensão pedagógica e
civilizadora do teatro romântico se manifestava, para além de um conteúdo de idéias,
nessa oralidade tipificadora de expressões e garantidora da emissão da mensagem.
Mesmo com toda essa imaginação e criatividade, Martins Pena não foi uma
unanimidade em seu tempo. Tentou escrever dramas, estilo mais privilegiado pela
classe senhorial, visto como um teatro mais valoroso, mas não obteve sucesso. Suas
comédias, apesar de lotar teatros, faziam parte de um estilo “popularesco”, portanto de
menor valor para aquela mesma classe que aspirava tornar-se equivalente a sociedade
européia.
Após a leitura das comédias de costumes de Luis Carlos Martins Pena,
conseguimos compreender determinadas especificidades da sociedade imperial
brasileira. A riqueza e a posição social eram valores supremos da sociedade em questão.
Nomes e títulos funcionavam como uma máscara que dava legitimidade a quem os
portava. Havia leis, porém, não eram feitas para todos. A riqueza trazia impunidade.
A questão da hierarquia e do patriarcalismo desta sociedade, também escravista,
foi bem demarcada pelo autor, caracterizando a “Boa Sociedade” e as conseqüências de
suas atitudes, valores e identidades. A hierarquia deveria estar assegurada. O Estado
deveria mediar os conflitos e o pai deveria liderar a família, ambos impedindo a
desordem da “Casa” e da “Rua”. Para tanto, os escravos seriam mantidos como mão-de-
obra, o povo seria controlado pelo Estado e a Corte se transformaria em referência de
civilidade e da ordem, caminhos corretos para a tão sonhada civilização.
Certos temas são recorrentes como o casamento por interesse financeiro; a
profissão do indivíduo escolhida pela família mesmo não tendo aptidão para tal cargo; a
justiça priorizando os mais afortunados, salvaguardando aqueles que possuíam maior
prestígio em detrimento da maioria pobre da população; os amores proibidos,
conseqüência dos interesses econômicos dos indivíduos. Outros assuntos aparecem em
uma peça específica como a questão dos conflitos entre os diversos tipos de medicina
presentes no Brasil oitocentista e a paixão pela ópera na Corte.
Alguns de seus personagens se mostraram uma espécie de consciência crítica
daquela sociedade e de seus valores. Era o nosso autor nos informando sobre seu tempo,
utilizando esses personagens não como elementos descritivos apenas, mas para
construção de uma dada visão de sua época, incorporando “a idéia de que é da Corte
que se faz o Brasil, e ser brasileiro é manter-se unido em torno do seu centro civilizador
localizado no Rio de Janeiro”
2
Com temática repetida ou distinta, Martins Pena fez um retrato de sua época,
apresentando a fisionomia moral daqueles tempos. Seus personagens eram farsas que
através da ironia, dizer algo pela inversão, identificaram os diversos tipos humanos e as
relações sociais presentes no Império do Brasil no século XIX.
2
VENTURA, Dayse Mery do Carmo. Quem ri consente: A construção da Sociedade Imperial no Riso de
Martins Pena. 1993. Dissertação (Mestrado em História Social das idéias) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, p. 111.
BIBLIOGRAFIA
A- Fontes primárias:
A.1) Periódicos: Jornal do Comércio e Diário do Rio de Janeiro (1845-1847)
A.2) Comédias de Luis Carlos Martins Pena:
1. O Noviço
Escrita em 1845 e representada no mesmo ano.
2. O Juiz de paz da roça
Escrita em 1833 (?) e representada em 1838
3. Judas em Sábado de Aleluia
Escrita em 1844 e representada no mesmo ano.
4. Os irmãos das almas
Escrita em 1844 e representada no mesmo ano.
5. Um sertanejo na Corte
Escrita entre 1833 e 1837; não foi representada e está incompleta.
6. A família e a festa na roça
Escrita em 1837 e representada em 1840
7. Os Dous ou o inglês maquinista
Escrita em 1842 e representada em 1845
8. O Diletante
Escrita em 1844 e representada em 1845
9. Os três médicos
Escrita em 1844 e representada em 1845
10. O Namorador ou a noite de São João
Escrita em 1844 e representada em 1845
11. O cigano
Escrita em 1845 e representada no mesmo ano
12. O caixeiro da Taverna
Escrita em 1845 e representada no mesmo ano
13. As casadas solteiras
Escrita em 1845 e representada no mesmo ano
14. Os meirinhos
Escrita em 1845 e representada em 1846
15. Quem casa quer casa
Escrita em 1845 e representada no mesmo ano
16. Os ciúmes de um pedestre ou o terrível capitão do mato
Escrita em 1845 e representada em 1846
B- Livros e artigos:
- ABREU, Martha. O Império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio
de Janeiro 1830-1900. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
- ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (org.). História da vida privada no Brasil:
Império. São Paulo: Companhia da Letras, 1997. 2 vol.
- AREAS, Vilma Samt’Anna. Na tapera de Santa Cruz: uma leitura de Martins Pena.
São Paulo: Martins Fontes, 1987.
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Caminhos do pensamento crítico. Rio de Janeiro: Pallas/Mec, 1980.
- BURKE, Peter. Peter Burke. “Origens da história cultural”. In: Variedades de
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Martins Editora, 1964, 2 volumes.
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- VENTURA, Dayse Mery do Carmo. Quem ri consente: A construção da Sociedade
Imperial no Riso de Martins Pena. 1993. 135 f. Dissertação (Mestrado em História
Social da idéias) – Universidade Federal Fluminense, Niterói. 1993.
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