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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA
A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO
OLHAR DA CRIANÇA
CRICIÚMA, MARÇO DE 2008
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1
ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA
A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO
OLHAR DA CRIANÇA
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Educação no curso de Mestrado em
Educação da Universidade do Extremo Sul
Catarinense, UNESC.
Orientador Prof.: Dr Celdon Fritzen
CRICIÚMA, MARÇO DE 2008
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2
S587c Silveira, Rosilene de Fátima Koscianski da.
A contribuição da literatura no processo de alfabetização e
letramento: uma reflexão mediada pelo olhar da criança /
Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira; orientador:
Celdon Fritzen. - Criciúma: Ed. do Autor, 2008.
116 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado) - Universidade do Extremo Sul
Catarinense. Programa de Pós-Graduação em Educação,
2008.
1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Literatura. 4.
Educação.
l. Título.
CDD. 21ª ed. 372.4
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Bibliotecária: Flávia Cardoso – CRB 14/840
Biblioteca Central Prof. Eurico Back – UNESC
3
ROSILENE DE FÁTIMA KOSCIANSKI DA SILVEIRA
A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NO PROCESSO DE
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: UMA REFLEXÃO MEDIADA PELO
OLHAR DA CRIANÇA
Dissertação aprovada pela Banca
Examinadora para obtenção do grau de
Mestre em Educação, no curso de Mestrado
em Educação da Universidade do Extremo
Sul Catarinense, UNESC, com linha de
pesquisa em História, Formação e Exercício
Profissional.
Criciúma, 18 de Março de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Celdon Fritzen – Doutor em História e Teoria Literária – (UNESC)
Orientador
Profª. Ana Claudia De Souza – Doutora em Lingüística – (UFSC)
Profª. Maria Isabel Leite – Doutora em Educação – (UNESC)
4
Dedico....
À minha mãe Otilia (em memória) – sabedoria
profunda... com ou sem palavras!
AGRADECENDO...
Aos CO-AUTORES desta pesquisa, alunos da
primeira série do Ensino Fundamental da
Escola de Educação Básica Irmã Edviges,
Criciúma – SC, que aceitaram dialogar...
ALBANO, Josué Medeiros
ALVES, Lara Fabian Leacina
BITENCOURT, Francielen Soares
COLOMBO, Vitor Carlos
CORREA, Rodrigo Daminelli
DUARTE, Stefani Borges
JOAQUIM, Isaac Borges
JOSEPHINO, Elton Bacelar
LOCKS, Pâmela Henrique
MIRANDA, Luiz Filipe Pavesi
OENNING, Juliano Bittencourt
PEDROSO John Kennedy Vargas
PORTO, Karoline Gonçalves
REBELO, Sarah das Almas
RINALDI, Rafaela Pedro
ROSA, Bruno Teixeira da
SANTOS, Bruno Cardoso dos
SANTOS, Thiago Monteiro dos
SANTOS, Willian Caetano dos
SILVA, Luiz Filipe Alano da
VALIM, Mariany Nicolau
Minha gratidão!
5
AGRADECENDO...
Ao professor Celdon, orientador atento e
amável – guia primoroso.
À banca de qualificação e defesa pelas
intervenções necessárias e frutíferas
professora Ana Claudia atenta aos detalhes,
Professora Bel – a generosidade em pessoa.
Aos professores do mestrado, por compartilhar
seus conhecimentos.
Aos colegas do curso com quem partilhei o
projeto de pesquisa, em especial, Adriana e
Luciana que acompanharam de perto as
alegrias e percalços da sua realização.
Ao Walter – secretário atencioso.
Aos parceiros do GEDEST, GPEI e Grupo de
Estudos em Walter Benjamim em especial,
Ana Maria – valiosíssimas contribuições.
Ariane e Valquiria, mais que assessoria
tecnológica.
À direção, funcionários, corpo docente e
discente da EEB Irmã Edviges, pelo
acolhimento de uma idéia.
Ao esposo Albertino fiel colaborador,
exercendo múltiplas funções, inclusive a de
cinegrafista amador.
Ao filho José Vinícius, que chegou trazendo
mais um motivo para eu ouvir e tentar
compreender as crianças.
Ao meu pai Carlos, de quem herdei o otimismo
profissional.
Aos queridos Claudair, Joana, Valdenir,
Luciana e Alice, pela compreensão nas
minhas ausências.
À amiga Rosângela, com que compartilhei a
expectativa do ingresso no curso.
A Seicho-No-Ie, filosofia que faz a diferença.
A todas as pessoas que de alguma forma
contribuíram para o êxito desse projeto.
Muito Obrigado!
6
“Uma vida humana é uma ficção
que o homem inventa à medida
que caminha”.
(HELD, 1980, p.18).
7
RESUMO
Esta pesquisa teve como alvo refletir sobre a contribuição da literatura no processo de
alfabetização e letramento da criança a partir da escuta desta. Com vistas à consecução
do estudo, a pesquisa utilizou a abordagem qualitativa com as estratégias propostas pelos
espaços de narrativa, cuja base teórica contempla autores que entendem a linguagem
como essencial na constituição dos sujeitos, e a criança como ator social que produz
linguagem e cultura. Inicialmente, este estudo procede a uma análise das conexões
históricas e teóricas da alfabetização e do letramento com a literatura; depois, a uma
discussão das possibilidades desencadeadas pela literatura, enquanto canal de
experiência estética e poética, na formação do leitor/autor. Em seguida, descreve-se o
trabalho realizado em parceria com 21 crianças da primeira série do Ensino Fundamental,
da Escola de Educação Básica Irmã Edviges vinculada à Rede Pública Estadual, situada
no município de Criciúma-SC. A partir das falas das crianças, as quais tiveram abertura de
espaços para a narração e/ou criação de histórias e poesias, buscou-se uma forma de
pensar tanto a criança como protagonista do processo da sua aprendizagem, quanto o
papel da literatura na escola, como linguagem viva, dinâmica e mobilizadora de saberes e
de sujeitos.
Palavras-chave: alfabetização, letramento, literatura e pesquisa com crianças.
8
ABSTRACT
This research has the objective of studying the contribution of literature to literacy and to the
alphabetization process of children, taking into consideration the voice of the child. In order
to achieve this objective the research used the qualitative approach and strategies proposed
by the narratives spaces, a theory whose authors understand language as having
fundamental importance in the subjects’ formation, and children as social actors who
produce language and culture. First, this study presents an analysis of the historical and
theoretical connections among alphabetization, literacy and literature; then, it presents a
discussion on the possibilities created by the literature as a channel of aesthetic and poetic
experience, in the reader’s, author’s formation. Later on, this research describes the work
done in partnership with twenty-one children who study in the first year of the primary school
at Escola de Educação Básica Irmã Edviges, a public school situated in Criciúma (SC).
Based on the children’s oral production (narratives and poems), this work proposes a way
of thinking the children as protagonists of their learning process and the role of literature in
schools as a living, dynamic language that mobilizes of knowledge and subjects.
Keywords: alphabetization, literacy, literature, research with children.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I ........................................................................................................................ 16
1 A ALFABETIZAÇÃO, O LETRAMENTO E A LITERATURA ........................................... 16
1.1 ALFABETIZAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E TEÓRICO ......................................... 17
1.1.1 A escrita e a alfabetização na sociedade moderna ................................................ 17
1.1.2 A alfabetização.......................................................................................................... 19
1.1.3 A alfabetização no Brasil.......................................................................................... 22
1.1.4 A alfabetização e o letramento................................................................................. 25
1.1.5 Modelos de letramento............................................................................................. 28
1.2 A LITERATURA ............................................................................................................ 30
1.2.1 A literatura infantil .................................................................................................... 32
1.2.2 Os livros para criança e a qualidade literária ......................................................... 35
1.2.3 A cartilha: um livro infantil para além do didático.................................................. 38
1.2.3.1 Objeto histórico e cultural..................................................................................... 39
1.2.3.2 A cartilha, o leitor e a leitura ................................................................................. 42
1.3. A ABORDAGEM NA PESQUISA COM CRIANÇAS .................................................... 47
1.3.1 A construção da infância ......................................................................................... 49
1.3.2 A infância na contemporaneidade........................................................................... 51
1.3.3 Propostas metodológicas na pesquisa com crianças ........................................... 53
CAPÍTULO II ....................................................................................................................... 59
2 O CANTEIRO DE OBRAS OU O CAMPO DE PESQUISA .............................................. 59
2.1 APRESENTANDO O CAMPO DE PESQUISA.............................................................. 59
2.1.1 “[...] Agora mudei de idéia!”: a entrada em campo e as primeiras percepções ... 63
2.2 FALAS, HISTÓRIAS, POESIAS: CONSTRUINDO AS CATEGORIAS DE ANÁLISE... 64
2.2.1 A formação do grupo e as experiências iniciais..................................................... 65
2.2.2 “Quero contar uma história” ou a narração e co-autoria na interação com a
literatura ............................................................................................................................. 68
10
2.2.3 “Poesia do menino, que sou eu [...]”: a experiência lúdica com a linguagem
poética................................................................................................................................ 78
2.2.4 “A primeira palavra que aprendi foi meu nome...”. Aprender a ler e escrever:
criando estratégias, buscando e produzindo significados............................................. 89
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 95
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 103
ANEXOS ........................................................................................................................... 110
11
INTRODUÇÃO
Ao sistematizar o relato dessa pesquisa que teve como foco central do trabalho
investigativo o propósito de reflexionar sobre a contribuição da literatura no processo de
alfabetização e letramento da criança, exponho inicialmente e com satisfação o quanto esse
objetivo agigantou-se a partir do momento em que optei por desenvolver a pesquisa de
campo convidando a criança a tornar-se depoente, investigando o problema, considerando o
seu ponto de vista. Essa opção requereu certa dose de coragem, pois foi necessário despir-
me de algumas certezas e ir a campo aberta ao que pudesse ser encontrado e tecer
reflexões e entendimentos a partir dos achados junto aos sujeitos participantes.
Os objetivos específicos pretendidos se constituíram na análise da conexão
histórica e teórica da alfabetização e do letramento com a literatura; na discussão das
possibilidades desencadeadas pela literatura na formação do leitor/autor, a partir das falas
da criança; e na abertura de espaços para a narração e/ou criação de histórias e poesias
para e pelas crianças, refletindo sobre o lugar da linguagem literária no processo de
aprendizagem do código escrito e na escola como um todo.
A definição desses objetivos
pautou-se na percepção de que embora nas últimas décadas a criança e o seu
desenvolvimento harmônico e integral tenham se tornado freqüentemente motivo de estudos
para pesquisadores de todas as áreas, as ações efetivas da escola ainda não se
solidificaram nessa proposição. Embora avançando teoricamente, a escola tem preservado
um caráter disciplinador e regulador do comportamento, abrindo pouco espaço para o
pensamento, a voz, e principalmente para a imaginação da criança.
Ao referir-me ao pensamento falo da criança-sujeito-pensante, agente ativo da sua
aprendizagem que aprofunda a consciência de si mesmo e desenvolve capacidades
lingüísticas (e muitas outras) também no processo de alfabetização com letramento a
despeito das formas em que este possa ser conduzido. Uma aprendizagem pensada na
perspectiva vigotskiana, que considera a interação fator essencial. E mais do que isso, tem
na interlocução entre as múltiplas vozes presentes no espaço escolar seu elemento
constitutivo e na qual a imaginação pode ser componente deflagrador na construção dos
saberes e dos próprios sujeitos. A imaginação entendida não como “algo distinto da razão,
mas sim o que flexibilidade, energia e vivacidade à razão” (EGAN, 2007, p.34) e que no
processo de aprendizagem da linguagem escrita torna esta mais significativa e dinâmica.
Esse foi um dos principais fatores que levei em conta para pensar esse momento escolar
específico vivenciado pela criança como parte integrante e extremamente importante do seu
processo de formação e não como um aspecto isolado. Além disso, na grande maioria dos
12
estudos relacionados à infância
1
a criança ainda é considerada objeto e não sujeito
participante de uma pesquisa.
Em relação à literatura, não pretendi focalizar o tênue limite (se existente) entre
os gêneros adulto e infantil, mas abordei-a como um elemento significativo da aprendizagem
que se inicia muito antes da criança chegar à primeira série
2
do Ensino Fundamental. Da
mesma forma que entendo não ser possível estabelecer fronteiras rigorosas entre o gênero
adulto e infantil na literatura sem correr o risco de parecer arbitrário, tampouco acredito ser
possível demarcar com precisão o início e o fim do processo de alfabetização e letramento.
Pois, tomando como ponto de partida uma visão sociointeracionista “a alfabetização,
enquanto processo individual não se completa nunca, visto que a sociedade está em
contínuo processo de mudança, e a atualização individual para acompanhar essas
mudanças é constante” (TFOUNI, 2002, p. 15). Apenas, como uma delimitação
metodológica, direcionei o foco deste estudo para as crianças
3
que freqüentam a primeira
série do Ensino Fundamental, buscando uma interlocução com elas, enquanto protagonistas
do processo. As crianças co-autoras desta pesquisa encontravam-se nos momentos iniciais
da alfabetização (formal/escolar), uma vez que a pesquisa de campo foi realizada no
primeiro semestre do ano letivo – 2007.
Esse ano letivo abarcou a implementação das leis 11.114 de maio de 2005 e
11.274 de fevereiro de 2006, que promoveram alterações em alguns artigos da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9394/96, implementando o Ensino
Fundamental de nove anos que prevê o ingresso da criança aos seis anos de idade.
Para realizar a pesquisa, parti do pressuposto de que a alfabetizar e letrar é
transcender os limites da mera aquisição técnica da leitura e da escrita iniciando a formação
de um leitor que se faz autor nesse percurso e torna-se capaz de escrever, compor, criar,
imaginar, pensar, levantar hipóteses e, de fato e de direito, se habilita a compreender e se
expressar através da linguagem oral e escrita no seu tempo e espaço. Pensar o processo de
alfabetização e letramento nessa perspectiva é imaginar, em primeiro lugar, uma escola com
abertura para a emoção e a imaginação enquanto características inerentes ao ser humano.
É sonhar com um ambiente que possibilite o desenvolvimento integral do sujeito,
repensando e re-significando o uso das ferramentas utilizadas no ambiente escolar, entre as
quais está a literatura.
1
In-fans, aquela que não fala. JOBIM e SOUZA, Solange. II Seminário “Educação, Imaginação e linguagens
artístico-culturais” Criciúma, 28/08/2006.
2
Com a implementação do Ensino Fundamental de nove anos, o Ministério da Educação deixou em aberto para
que os sistemas pudessem utilizar a nomenclatura mais adequada aos sistemas (série, ano, ciclo). O Estado de
Santa Catarina na Rede Pública Estadual (a qual a escola em que foi desenvolvida a pesquisa está vinculada)
optou por continuar utilizando a denominação série. Portanto, nesse estudo, ao referir-se à turma participante
identificarei como “primeira série”.
3
Como a pesquisa aconteceu no ano de implementação da lei, a maioria das crianças que dela participou,
completa sete anos em 2007.
13
Os termos alfabetização e letramento
4
aparecem juntos em todos os momentos
da pesquisa, pois embora cada termo possua sua especificidade, na qual a alfabetização é
entendida como a aprendizagem do código escrito e o letramento como a utilização da
competência de ler e escrever para comunicar-se na prática social, o entendimento que
busco fortalecer é de que não é possível alfabetizar sem objetivar o letramento ou vice-
versa. Portanto, são termos complementares e indissociáveis.
A primeira e a segunda série da Educação Básica representam, pela nova
realidade legal, as classes para a alfabetização
5
. A estas, entre outras atividades, cabe
ocupá-las, durante o período de dois anos, em desenvolver as habilidades técnicas da
escrita e da leitura. Um tempo que, suficiente ou não, assume vital importância na história
escolar de uma criança quando os seus primeiros movimentos se direcionam no sentido de
constituir formas peculiares para lidar com a aprendizagem. São nesses primeiros
movimentos que a criança busca se autoperceber estabelecendo uma relação saudável (ou
não) com a escola e com o conhecimento. Afinal, esse período representa um marco
significativo na vida da criança.
Ao planejar as estratégias metodológicas para estudar a temática, inicialmente
pensei em desenvolver oficinas que têm, de certa forma, uma identificação com o que Leite
(2006) chama de espaço de narrativa
6
. Principalmente pela idéia básica de ouvir a fala da
criança, observar o que ela tem a dizer, criando situações de encontro onde realizássemos
contação de histórias fantásticas, leituras de poesias, criação de enredos... Enfim, interagir
por meio da literatura com a linguagem oral e escrita, com os sujeitos da pesquisa e, nessa
interação, observar a contribuição da literatura no processo de alfabetização. A aproximação
inicial com os procedimentos previstos pelos espaços de narrativas despontou como um
caminho possível e realizei a pesquisa, experimentando essa metodologia.
O estudo realizado, embora esteja diretamente relacionado aos campos da
linguagem e da arte uma vez que o objetivo maior é compreender a contribuição literária
(na sua dimensão estética e poética) no processo de alfabetização e letramento da criança -
está atravessado por outros corpos teóricos, principalmente pela antropologia, psicologia e
filosofia. Na antropologia, por convidar a criança como sujeito-co-autor da pesquisa e
4
No estudo sobre alfabetização organizado pela Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina Gerência
de Criciúma, no segundo semestre de 2007, discutiu-se a idéia de desenvolver a alfabetização com letramento,
uma idéia que não difere da proposta que explicito anteriormente, por isso, posso usar os termos ligados por “e”
ou “com” o sentido permanece inalterado.
5
No estudo acima referido, foi enfatizado a constituição de “classes para alfabetização” ao invés de “classe de
alfabetização” tratando da primeira e da segunda série do Ensino Fundamental, que em tese, representa um
tempo maior para que a criança possa consolidar a aquisição da leitura e da escrita.
6
Essa é uma expressão cunhada no Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação Estética – GEDEST, na
UNESC, do qual faço parte, a partir de discussões metodológicas de pesquisa, por isso ela sempre aparece em
itálico neste texto.
14
percebê-la agente da sua aprendizagem; pela possibilidade de capturar as significações
atribuídas por este “outro criança”, compreendendo-a enquanto categoria social e histórica.
Na psicologia, porque ao problematizar a relação entre literatura e educação reivindica-se a
abertura de um espaço para abordar na escola assuntos de certa forma preteridos por ela,
ou vistos de forma estigmatizada, e que dizem respeito aos conflitos e a própria condição
humana. E pela filosofia, por reconhecer a predominância de modelos teóricos objetivos no
processo de formação humana que, segundo Azevedo (2005, p. 32), apresentam:
um mundo idealizado, regido por normas abstratas e pré-concebidas,
onde a priori tudo se encaixa. [...] Nesse modelo, o ser humano é
apresentado como um elemento lógico e previsível, sempre buscando
sua natural e mecânica integração no status quo.
A duração de dois anos para o curso de mestrado é um fator que dificulta, mas
não inviabiliza a pesquisa. Ir a campo dentro desse limite de tempo implicou em riscos de
colher ou tratar os dados de forma acelerada, um risco que decidimos correr (eu e o
orientador). Valendo-me do espaço de narrativa como procedimento metodológico de
pesquisa, efetivamos os encontros e por meio do diálogo aberto pudemos reflexionar sobre
a forma como ela [a criança] vivencia esse momento e como a literatura pode vir a atuar no
processo. Realizei a pesquisa de campo em uma escola da rede pública estadual do
município de Criciúma, em Santa Catarina. As crianças, alunas da primeira série, são
consideradas co-autoras não apenas porque suas falas, opiniões e produções (orais e
gráficas) foram imprescindíveis para as reflexões e entendimentos possíveis dentro do
contexto em que o diálogo foi estabelecido. Mas, principalmente pela imprevisibilidade da
própria metodologia utilizada que confere aos sujeitos um alto grau de interferência nos
rumos da pesquisa. Em nenhum momento pretendi uma verdade final, mas empenhei-me na
escuta sensível da voz da criança, nas angústias que permeiam esse momento de sua vida
e nas idéias, histórias e poesias que elas são capazes de produzir a partir da interação com
a literatura, uma vez que esse era o propósito.
O caminho que me fez chegar ao problema de pesquisa, além da justificativa
pautada nos resultados que a escola vem produzindo em termos da relação entre os
sujeitos e o código escrito, que percebo também por estar imersa nesse universo, tem uma
forte ligação com as reminiscências que conservo da minha própria infância. Eu poderia
afirmar que a opção pelo objeto de estudo e as reflexões que pude realizar estão, de alguma
forma, relacionadas com a experiência que tive com a linguagem literária na infância e que
influenciaram o meu modo de lidar com a leitura e com a escrita em situações dentro ou fora
da escola. Em função disso, elaborei um memorial que, temendo ser excessivo para a
introdução, pode ser consultado ao final deste trabalho (vide ANEXO 1).
15
O percurso investigativo, a metodologia adotada e a interação entre sujeitos
participantes conduziram a uma reflexão acerca do(s) conceito(s) de infância(s) que
permeiam as ações, os espaços e os instrumentos presentes na escola. Suscitaram ainda
outras interrogações que extrapolam os limites desse estudo. Registrei essa experiência
com consciência de que nela contém muito do que sou enquanto professora e dos co-
autores que a tornaram possível, organizando a dissertação em dois capítulos, que
representam dois momentos diferenciados e interligados na pesquisa.
Apresento no primeiro capítulo a sustentação teórica, com a trajetória da
alfabetização; o surgimento e a influência do termo letramento; a literatura, a literatura
infantil e o entrelaçamento com a educação; a reflexão sobre a qualidade dos livros
destinados às crianças, incluindo a cartilha tratada na atualidade como livro de
alfabetização. Trago ainda questões relacionadas à construção histórica e social da infância,
os conceitos coexistentes nos dias atuais e a opção metodológica da pesquisa com
crianças, denominada espaços de narrativa.
No segundo capítulo, propositadamente chamado de Canteiro de obras, trato da
pesquisa de campo, que se concentra em torno de três categorias de análise: a primeira é
constituída do registro (na íntegra) das histórias narradas pelas crianças e das reflexões que
elas suscitaram; a segunda traz, além dos textos inéditos construídos pelas crianças, a
problematização do lugar da poesia na escola e na vida dos sujeitos; e a última, igualmente
tecida com as palavras das crianças, tornaram-se fontes reveladoras dos temores,
expectativas, estratégias e das nuances pessoais envolvidas no aprendizado do código
escrito. Seguindo as pistas que pude encontrar, fui teorizando a experiência que finalizo com
algumas considerações e tentando responder a interrogação que me acompanhou durante o
trajeto: seria a linguagem literária uma aliada no processo de alfabetização com letramento?
16
CAPÍTULO I
1 A ALFABETIZAÇÃO, O LETRAMENTO E A LITERATURA
A investigação do processo de alfabetização e letramento constitui uma tarefa
árdua, principalmente pela pluralidade de entendimentos existentes acerca dos termos.
Pesquisar a contribuição da literatura nesse processo, considerando o ponto de vista dos
atores sociais implicados diretamente, ou seja, das crianças, torna essa tarefa ainda mais
complexa, porém instigante na mesma proporção. Ao fazer o percurso teórico pelas obras
com as quais entrei em contato, constatei que existe uma extensa bibliografia que trata
especificamente de cada conceito que compõe o título desse capítulo e embora eu tenha
desenvolvido a pesquisa de maneira articulada é necessário fazer uma delimitação teórica
das especificidades de cada termo, bem como da perspectiva sobre a qual a análise foi
alicerçada.
Quero esclarecer, inicialmente, que apresento os termos alfabetização e
letramento juntos em todos os momentos da escrita e que essa é uma ação proposital que
defende a ênfase da indissociabilidade de ambos na prática pedagógica, sem ignorar a
especificidade que cada conceito possui. Pois, compreendo que a alfabetização precisa ser
pensada na perspectiva do letramento e, nesse sentido, o próprio conceito de alfabetização
amplia seus horizontes e passa a ser visto como “um processo ativo de leitura e
interpretação, onde a criança não decifra o código escrito, mas também o compreende,
estabelece relações, interpreta” (KRAMER, 1986, p. 168) e pelo qual descobre “que a
palavra escrita é mais uma forma de expressar as coisas, idéias e sentimentos [tornando-se]
[...] a base fundamental para a aquisição da leitura e da escrita” (idem, p. 170).
Se conseguíssemos assumir isso, permanentemente, não haveria a
necessidade de distinção, chamaríamos [apenas] de alfabetização como fizemos no
passado. Mas, reconhecendo que esta não é, ainda, a nossa realidade, é necessário
distinguir alfabetização de letramento, pelo menos em termos técnicos. É o que nos adverte,
Magda Soares (2004), enfatizando o quanto o surgimento do termo e as discussões acerca
do letramento ampliaram, sim, o conceito multifacetado de alfabetização, mas que uma
diferenciação entre ambos é necessária, principalmente em países onde a questão da
alfabetização não foi debelada. Então, de forma introdutória e simplificada, poderia definir a
alfabetização como a aprendizagem técnica do código escrito e o letramento como a
utilização da competência de ler e escrever para comunicar-se na prática social. Sem, com
isso, perder o horizonte de trabalhá-los, concomitantemente.
17
A alfabetização desenvolvida na perspectiva do letramento pode ter na
linguagem literária uma ferramenta indispensável, pois “como arte, é a literatura, em suas
diferentes formas, que propicia ao leitor o acesso à sua interioridade e o estabelecimento de
relações de seu mundo interior com o exterior” (SARAIVA et al, 2001, p. 13). Sob esse
enfoque, “a aprendizagem da leitura é uma experiência que deve ultrapassar o domínio da
decodificação sígnica, para transformar-se em meio de autoconhecimento e apreensão do
real” (Idem). Zaccur (2001, p. 34), refletindo a partir de que modos e sentidos se faz a
alfabetização, afirma que cada um de nós é um ser em construção e o processo de
aprendizagem se constitui num movimento em espiral que se realimenta na dinamicidade de
interações e iterações. A autora faz um questionamento que considero pertinente para as
relações que podem ser estabelecidas entre a alfabetização, o letramento e a literatura: Por
que não pensar que cada criança estará não se alfabetizando, mas também se
alfabecriando ao se apropriar da escrita como linguagem sua?
Permitir à criança alfabecriar é proporcionar-lhe a sua forma própria de lidar com
a linguagem e de atribuir significados, é realizar a sua experiência pessoal, única e
intransferível numa escola que consinta aos seus sujeitos a oportunidade de poder brincar
com um código que é arbitrário. Desse modo a escola propiciará a vivência de situações
lúdicas, prazerosas, poéticas e criadoras pelos caminhos da leitura e da escrita sem medo
do fracasso. É em busca dessa escola que encaminho a reflexão, utópica de certa forma,
mas possível quando seus atores sociais puderem compartilhar experiências num cenário
em que a criança seja vista como produtora de cultura.
1.1 ALFABETIZAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E TEÓRICO
1.1.1 A escrita e a alfabetização na sociedade moderna
Segundo Tfouni (2002), a escrita (produto humano por excelência) data de cerca
de 5.000 anos antes de Cristo, porém o processo de difusão e a adoção dos sistemas
escritos (pictográficos, ideográficos e fonéticos) pelas sociedades antigas aconteceram de
forma lenta e condicionada aos fatores políticos e econômicos. Dessa forma, foi somente
nos séculos V e VI a.C. que foi possível reconhecer a sociedade grega como “letrada”. Essa
sociedade passou por um processo de transformação cultural, política e social que propiciou
o aparecimento, entre outras coisas, do pensamento lógico-empírico e filosófico, a
formalização da história e da lógica enquanto disciplinas intelectuais, e a própria democracia
grega que tem íntima relação com a escrita fonética na Grécia e Jônia” (p. 14).
18
A escrita é uma forma de memória do conhecimento produzido pela humanidade
e uma ferramenta a mais no sentido de elaborar e comunicar coisas, idéias e sentimentos.
“Pode ser tomada como uma das causas principais do aparecimento das civilizações
modernas e do desenvolvimento científico, tecnológico e psicossocial da sociedade nas
quais foi adotada de maneira ampla” (TFOUNI, 2002, p. 14). Mas, é também, segundo a
autora, um instrumento de poder e, portanto, não é produto neutro.
A instrumentalização do homem para o uso do código escrito foi histórica e
predominantemente assumida pela escola e a alfabetização uma decorrência necessária
para possibilitar a aquisição de habilidades requeridas para a leitura e a escrita. Durante
muito tempo a alfabetização foi entendida no sentido elementar do termo como sendo o
processo pelo qual nos apropriamos de um código escrito [o alfabético]. Giroux (apud
TFOUNI, 2002) faz uma crítica à alfabetização definida principalmente em termos
mecânicos e funcionais que de maneira geral confunde-se com a escolarização.
A alfabetização enquanto sinônimo de escolarização no sentido reducionista dos
termos correlaciona a aquisição da escrita com o desenvolvimento cognitivo. Uma visão que
muitas vezes pode ser usada para separar grupos letrados e não-letrados nas sociedades
modernas que usam a escrita, instaurando uma dicotomia na qual essa divisão “vem
substituir as divisões mais antigas entre povos primitivos e povos avançados, pré-lógicos e
lógicos, tradicionais e modernos, pensamento mítico e pensamento científico” (KLEIMAN,
1995, p. 23). Os estudos que apontam a associação da escrita ao desenvolvimento cognitivo
carregam ainda outros problemas, entre eles o de legitimar argumentos que reforçam o
preconceito
7
“chegando até criar duas espécies, cognitivamente distintas: os que sabem ler
e escrever e os que não sabem” (idem, p. 27). Essa visão da escrita caracteriza o modelo
autônomo
8
de letramento e alfabetizado que, sob essa ótica, seria o cidadão capaz de
dominar os sistemas gráficos de uma língua (codificando, decodificando, lendo,
escrevendo), pois desenvolveu e usa a capacidade metalingüística em relação à linguagem.
“É alfabetizado porque é capaz de distinguir palavras, sílabas, morfemas, grafemas, etc., [...]
principalmente aprendidos na escola, como resultado de uma competência individual”
(COSTA, 2000, p. 15).
Não podemos esquecer que a alfabetização é fundamental para a formação do
leitor e numa sociedade letrada (como a nossa) o seu domínio é entendido como
possibilidade de ascensão social, como forma de participação efetiva na sociedade e
contribui para a emancipação do sujeito. Mas, lamentavelmente, ela tem sido tratada como
um problema e usada como um mecanismo político-ideológico de dominação e exclusão.
7
RATTO (1995) faz uma análise da materialização do preconceito que a sociedade letrada constrói associando a
imagem do analfabeto ao de um primata.
8
Explicito o modelo autônomo no item 1.1.5 – modelos de letramento.
19
1.1.2 A alfabetização
Os estudos referentes à alfabetização passaram por diferentes concepções em
sua trajetória histórica
9
, sendo que na primeira metade do século XX o âmbito da pesquisa e
do discurso acadêmico focalizava a questão do ensino, com prioridade para a investigação
dos métodos
10
de alfabetização com a fundamentação teórica centrada na Psicologia,
principalmente no Associacionismo
11
.
Nessa época, de forma geral, a preocupação girava em torno de pelos menos
dois métodos diferentes, com duas formas diferenciadas de se pensar a alfabetização: os
métodos sintéticos
12
(que insistiam na correspondência entre a linguagem oral e escrita e
que esta deveria partir de elementos mínimos, “as letras” ou “fonemas” no caso do método
fonético, para os maiores, “silabas/palavras/frases”, como o caso do método alfabético) e os
métodos analíticos (nos quais a leitura é concebida como um ato “global” e “ideovisual”, que,
portanto deveria se iniciar com unidades significativas para a criança que partiria do todo
para o elemento menor). Paralelo a esses métodos e tentando utilizar o que haveria de
melhor em ambos, se propôs ainda o chamado método “misto” ou “global”, que segundo
Ferreiro e Teberosky (1999, p. 23) “participariam da benevolência de uns e de outros”.
De acordo com Silva (2004), nos anos 60, a questão da alfabetização começa
ser estudada a partir do fracasso escolar. A ideologia do ficit é amplamente divulgada
atribuindo aos alunos oriundos das camadas populares uma desvantagem, pois o meio em
que viviam não lhes oferecia as condições ideais para o pleno desenvolvimento e a escola
teria a função de compensar essa deficiência. Essa questão é aprofundada por Carraher
(1986), que discute alfabetização e pobreza, e Kramer (1982) que explicita a política de
educação compensatória no pré-escolar na obra: A política do pré-escolar no Brasil: a arte
do disfarce.
Na segunda metade do século XX, o esforço em compreender os processos de
aquisição da leitura e da escrita se intensifica. Ferreiro e Teberosky, com base na teoria
9
Barbosa (1994) mostra o trajeto histórico da alfabetização considerando o ano de 1789 como marco
fundamental da associação entre alfabetização e escola. Refere-se ao ideal republicano de universalização da
cultura escrita, concretizando o modelo que concebe a alfabetização como “aprendizagem coletiva e simultânea
dos rudimentos da leitura e da escrita” (p.16).
10
Números que comprovam essa tendência estão em SOARES (2006).
11
Segundo o modelo associacionista a aquisição da linguagem na criança se dá pela imitação do meio social que
a cerca. Por exemplo, quando os adultos apresentam um objeto para a criança, acompanham essa apresentação
com uma emissão vocálica por reiteradas associações entre emissão sonora e a presença do objeto, a emissão
do som acaba por se transformar em signo do objeto, se faz “palavra” (nessa perspectiva a criança espera
passivamente o reforço externo).
12
Maiores detalhes sobre os métodos do ensino da leitura ver FERREIRO e TEBEROSKY, 1999; uma
revisitação aos métodos empregados para alfabetizar, em CARVALHO, 2005.
20
piagetiana
13
, desenvolvem seus estudos buscando descobrir o sujeito cognoscente, ou seja,
“o sujeito que busca adquirir o conhecimento [...] aquele que procura ativamente
compreender o mundo que o rodeia e trata de resolver as interrogações que este mundo
provoca” (1999, p. 29) e publicam
14
os resultados na obra: Loz sistemas de escritura em el
desarollo del niño” traduzido para o português como Psicogênese da língua escrita. Essa
obra causou um grande impacto na educação brasileira e foi considerada por alguns
estudiosos como um marco divisório na história da alfabetização. As discussões anteriores
mantinham o foco na avaliação dos métodos de ensino e a partir dos estudos desenvolvidos
pelas autoras o eixo central foi deslocado do ensino para a aprendizagem, partindo não de
como se deve ensinar, mas de como a criança aprende. Até então, a idéia mais aceita era
de que havia pré-requisitos para que a criança pudesse aprender a ler, um conjunto de
habilidades conhecidas como prontidão para alfabetização.
Para Ferreiro e Teberosky (1999), até 1962 a maior parte dos estudos sobre a
linguagem infantil ocupava-se predominantemente da quantidade e variedade de palavras
utilizadas pela criança: neles, a preocupação maior era com o método de alfabetização
utilizado. Essa etapa foi tomada como ponto de partida (pelas autoras) para fazer a distinção
entre métodos de ensino e processos de aprendizagem.
Paralelo aos estudos de Ferreiro e Teberosky, outras pesquisas relacionadas à
aquisição da linguagem escrita, visando outros aspectos além dos métodos, estavam sendo
desenvolvidas, entre elas, a de Smolka (1980). A pesquisadora fez um estudo entrevistando
crianças de vários contextos sócio-econômicos no intuito de investigar os processos e as
estratégias que as crianças pequenas usam para interpretar a escrita no meio em que vivem
e identificar os conceitos que a Educação Infantil desenvolve sobre esse tipo de linguagem
antes de iniciar a instrução formal na escola. Nas palavras da autora, a aquisição da
linguagem escrita se configura como uma questão ampla e complexa que nos remete para
além dos métodos e nos faz:
[...] buscar historicamente, sócio-culturalmente, psicologicamente, raízes e
origens desta forma de linguagem. Levanta a questão do signo, da
capacidade humana de criar sinais e símbolos. Leva-nos a considerar, na
sua nese, do ponto de vista de nossa cultura ocidental, a relação
pensamento/linguagem no movimento das interações humanas, [...] remete
às teorias do conhecimento, ao aspecto filosófico da questão; e falar no
movimento das interações humanas nos abre a dimensão política (p.21).
Magda Soares (2006), analisando a transformação paradigmática ocorrida a
partir dos anos 80 e acompanhando o movimento que se fez a partir deles, faz um alerta
que em decorrência do questionamento da validade dos métodos tradicionais se difundiu
13
Ferreiro e Teberosky utilizam os pressupostos epistemológicos centrais da teoria de Jean Piaget para aplicá-los
à análise do aprendizado da língua escrita. Sobre isso ver: AZENHA,(Ática, 1995).
14
Os estudos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky foram publicados em 1979.
21
uma idéia de certa forma equivocada: a idéia de que não era necessário haver um método
para a alfabetização. Essa discussão ainda se mostra bastante polêmica nos dias atuais e
segundo a autora contaminada por duas questões: a primeira pelo fato de que os problemas
de aprendizagem da leitura e da escrita foram considerados, sobretudo metodológicos e, em
segundo lugar, porque na área da alfabetização o conceito “método” tornou-se
estereotipado, “sinônimo de manual ou um artefato pedagógico que tudo prevê e que
transforma o ensino em uma aplicação rotineira de procedimentos e técnicas” (p. 93).
Além de evidenciar uma visão reducionista do processo de aprendizagem da
língua materna, a crítica intensa aos métodos de alfabetização conduziu a perda da
especificidade do processo e na prática pedagógica gerou uma incerteza generalizada, não
solucionando e em certos casos até agravando o problema do fracasso escolar. Silva (2004,
p. 35) afirma que em geral a utilização dos métodos não tem garantido a apropriação do
código lingüístico, e mesmo seu aprendizado não responde hoje às necessidades de leitura
e de escrita”, porém é necessário repensar essa questão superando o desconforto sofrido
pelos alfabetizadores, retomando o sentido de método no âmbito educacional. Para Magda
Soares (2006, p. 93), “método, na área de ensino, é um conceito genérico sobre o qual pode
ser abrigado tantas alternativas quantos quadros conceituais existirem ou vierem a existir”. E
ainda que numa re-significação e ampliação conceitual é possível compreender que:
Particularmente no campo do ensino das línguas (materna ou estrangeira,
oral ou escrita), um “método” é a soma de ações baseadas em um conjunto
coerente de princípios e hipóteses psicológicas, lingüísticas, pedagógicas,
que respondem a objetivos determinados. Um método de alfabetização
será, pois, o resultado da determinação dos objetivos a atingir (que
conceitos, habilidades, atitudes caracterizarão a pessoa alfabetizada?), da
opção por certos paradigmas conceituais (psicológico, lingüístico,
pedagógico), da definição enfim, de ações, procedimentos, técnicas
compatíveis com os objetivos visados e as opções teóricas assumidas
(SOARES, 2006, p. 93).
Como é possível perceber, a autora defende sim um método consistente de
alfabetização, não no sentido estreito do termo, mas que considere as diferentes dimensões
imbricadas no processo. E mais ainda, que este seja balizado por uma concepção outra dos
processos de aprendizagem da língua escrita, na qual a criança seja vista como sujeito e
contemplada na sua dimensão psicológica, lingüística e, sobretudo, a social e política.
Nessa perspectiva, a noção de letramento, no sentido ideológico (explicitada no item 1.1.5)
é uma das possibilidades.
Para compreender a forma com que o processo de alfabetização e letramento
tem sido efetivado nos diferentes sistemas educacionais (brasileiros) nos dias atuais e quais
as veredas que as discussões teóricas têm tomado, trago alguns indicadores,
acompanhados de dados sobre a alfabetização no Brasil. Um percurso necessário para
22
aclarar a análise da introdução e da influência do termo letramento em nosso sistema de
ensino.
1.1.3 A alfabetização no Brasil
Na tentativa de perceber a realidade que envolve a alfabetização e o letramento
no âmbito educacional brasileiro poder-se-ia lidar com alguns indicadores, com pontos
diferenciados, mas totalmente interligados entre si: os índices históricos
15
de analfabetismo
16
que, por sua vez, vêm apresentando um decréscimo num ritmo significativo que a julgar por
este movimento estaria próximo de 0% nas décadas seguintes; as taxas de escolarização
17
no sentido da universalização
18
da Educação Básica que, amparada legalmente,
apresentam um crescimento sistemático e conseqüentemente têm contribuído para reduzir
os índices de analfabetismo; a repetência
19
e a evasão nas séries iniciais como “outro”
problema ainda não solucionado e que tem na primeira série
20
do Ensino Fundamental o
índice mais elevado. Contudo, deixo esse leque de fatores que estão relacionados ao
problema de pesquisa para focalizar uma questão mais subjetiva: os diferentes (e
rudimentares) níveis de letramentos produzidos pela escola.
Os níveis rudimentares de alfabetização e letramento de uma grande parcela da
população brasileira é um problema que precisa ser enfrentado, o apenas pela escola,
mas principalmente por ela. É elevado o número de sujeitos que passam pelos bancos
escolares e “aprendem” a técnica da escrita e da leitura, mas não se habilitam a utilizarem
essa ferramenta de forma competente, com autoria e autonomia na prática. Soares (2005)
15
Os dados oficiais do Ministério da Educação em relação aos índices de analfabetismo no Brasil (por década)
registram os seguintes números: ano 1820 mais de 99%; 1872 (ano do primeiro censo) com 82,3%; 1920 com
71,2%; 1940 com 61,1%; 1950 com 57,1% em 1960 com 46,7%; em 1970 com 38,7%; em 1980 com 31,9%; em
1990 com 24,2% e no ano 2000 com 16,7% . Esses dados foram exibidos no programa Salto para o futuro no dia
29/03/2003.
16
Entre 1986 e 1995 a taxa de analfabetismo no Brasil, na população de 15 anos e mais de idade, passou de
20,0% para 14,7%. Os valores para os anos de 1987, 1988, 1989, 1990, 1991, 1992, 1993 e 1995 foram,
respectivamente, 20,0%; 17,0%; 19,7%; 19,0%; 19,0%; 18,3%; 16,3% e 15,5%. (IBGE, Censo Demográfico
1991 e Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1986-1990, 1992-1993, 1995, dados não publicados).
17
Os dados do IBGE também apontam o aumento da escolarização das crianças e adolescentes na última década
que por sua vez tem contribuído para a redução do analfabetismo no Brasil
.
18
Todo o esforço governamental se concentra no sentido de colocar “todas” as crianças na escola, com
oportunidade de ingresso, o que não significa que elas estarão em igualdade de condições.
19
Segundo BARROS, (2006) os índices de repetência e evasão nas séries iniciais colocam o país na 3posição
no ranking
mundial atingindo 21% dos alunos matriculados, em torno de 1,3 milhões de crianças que tiveram
que repetir a primeira série em 2004.
20
Os dados do Ministério da Educação divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira- (INEP) em 2001 apontam que: “[...] no período 1995/1996, a repetência no Brasil era de 30,2%, os
dados atuais indicam uma queda de 28,5% em relação àquele período. A primeira série tem o maior índice de
repetência, de 39,3% [...]”.
23
discute os dados oficiais e o conceito de analfabeto que pelo censo de 1991 estariam em
torno de 18% correspondente às pessoas que responderam “não” a pergunta: do
recenseador: “Sabe ler e escrever um bilhete simples?”. Segundo a autora, é no correr dos
anos 90 que começa a se discutir o conceito de alfabetização, reconhecendo que o é
possível reduzi-la ao “reconhecimento e uso das relações entre cadeia sonora da fala e a
cadeia gráfica da escrita, limitando-se ao primeiro ano de escolaridade, à chamada classe
de alfabetização” (Idem, [s.p.]).
A ampliação do conceito de alfabetização sugere uma abordagem diferenciada
para tratar da questão. A diferença que se apresenta, nos dias atuais, em nosso país (não
somente) é o fato de atentarmos para os níveis considerados precários de letramento,
pressupondo debelada a questão do acesso à escola, mas com poucas garantias de
aprendizagem efetiva. Na verdade, grande parte da população brasileira que está passando
pelos bancos escolares apresenta desempenho incipiente em leitura, interpretação e
produção textual. Seria impreciso quantificar essa população, mas não inviável analisar os
possíveis motivos que podem conduzir as pessoas a essa condição. É possível ter uma
idéia da gravidade do problema em Soares (2005) que faz menção à nota do jornal A Folha
de São Paulo, edição de 02/09/91, que apresenta como título da matéria “Analfabetos no
país somam 60 milhões”. Segundo a autora, seria um absurdo se fosse considerado o
conceito técnico de analfabeto, pois esse número seria equivalente a quase metade da
população brasileira, mas em seguida vem a explicação: “Dados do IBGE dizem que apenas
18% são analfabetos, mas o número de “desqualificados” é muito maior” (idem [s.p.]), ou
seja, uma parcela significativa da população brasileira se encontra não ou semi-alfabetizado
mesmo tendo freqüentado a escola regular e/ou concluído o Ensino Fundamental, ou será
que essa situação teria se modificado?
Compreendendo que as circunstâncias pouco se modificaram, pois de maneira
geral continuamos produzindo rudimentares níveis de letramentos na escola, considerei
essa questão como um ponto chave para tratar a problemática da pesquisa. Uma vez que,
para além dos números oficiais ou reais que possamos acessar e deles fazer múltiplas
leituras, ou tomá-los como objeto de estudo, a minha indagação maior foi no sentido de
tentar compreender de que forma a literatura pode contribuir para efetivar um processo de
alfabetização com letramento no sentido amplo da formação humana, favorecendo a
educação de um sujeito capaz de expressar-se com autonomia por meio da linguagem oral
e/ou escrita assumindo a autoria do seu discurso. Ou seja, um sujeito que possa pensar e
interferir em sua realidade social. Buscar perceber a significação da literatura nesse
movimento, especificamente pelo olhar da criança imersa no processo de alfabetização e
letramento foi o desafio que me propus. Pensei, portanto, o problema de pesquisa a partir
das questões suscitadas pelos níveis de letramentos, considerados baixos, por entender
24
que a tarefa de alfabetizar e letrar precisa ser pensada no âmbito da significação, do fazer
sentido para o sujeito, mais do que dominar o objeto escrita, o sujeito precisa saber o que
fazer com ele.
Sem desconsiderar, evidentemente, a importância dos muitos elementos
envolvidos no processo de alfabetização, entendo ser o precário desempenho no uso do
código escrito na prática uma das mais graves manifestações desta problemática porque
oculta uma faceta política, social e ideológica de preservação de um modelo excludente que
faz com que a maior parcela da população não tenha acesso ao capital cultural produzido
pela humanidade. Resultado de um sistema de educação que se mostra ineficiente na
formação do homem (no sentido integral) e do leitor/ autor com autonomia para pensar e
produzir significados dentro do seu contexto específico. Porém, um sistema que se
configura, inegavelmente, o fator maior (quando não único) de possibilidade para a iniciação
de muitos sujeitos ao mundo da escrita e da leitura.
Os resultados gerais que a escola tem apresentado são ainda insuficientes. É
preciso admitir que apesar dos esforços que têm sido empreendidos no campo prático e
teórico da educação brasileira, o fracasso na alfabetização ainda é uma realidade,
infelizmente. Uma realidade que precisa ser inevitavelmente discutida, pois um problema
que surge na base tende a se perpetuar progressivamente, atingindo as diferentes áreas e
níveis educacionais. Basta uma simples análise das produções textuais apresentadas por
alunos do ensino médio para constatar a dificuldade na produção escrita. E isso vai além,
nos cursos de graduação podemos encontrar alunos com dificuldade de expor de forma
clara e consistente suas idéias. É possível encontrar monografias, dissertações e teses, com
idéias soltas, pensamentos mal-elaborados, dessa forma, guardadas as devidas proporções,
o problema se manifesta em todos os níveis educacionais e eu me pergunto: quais os
fatores que levam a escolarização a ser ineficiente no que se refere ao desenvolvimento da
capacidade de compreensão e elaboração escrita do sujeito?
É verdade que os problemas que envolvem os sistemas escolares são inúmeros
a começar pela própria estrutura física, os rituais, o material didático, a disposição dos
espaços, a prática pedagógica... Uma somatória de fatores que impossibilita a interação dos
sujeitos e o aprendizado com o outro, dificultando o fluxo da elaboração cognitiva. Com essa
estrutura a aprendizagem tende a assumir um caráter mecânico, desprovido de significados
e a partir do processo de alfabetização e letramento essa característica se torna presente e
conduz a grande maioria dos alunos a abrir mão” da própria aprendizagem
.
O saber da
escola é, muitas vezes, um saber artificializado e desarticulado dos anseios humanos. A
escola na sua grande maioria trabalha apenas com o “certo” não abre espaço para a dúvida,
a intuição, a imaginação, a emoção [...] Para Ostetto (2006, p. 22) é preciso “provocar as
25
amarras racionalistas que impedem a viagem ao desconhecido” possibilitando à criança um
processo de aprendizagem que inclua a fantasia, a beleza e a ludicidade.
Reflexionando acerca das formas com que a educação, de forma geral, e
especificamente a alfabetização tem sido efetivada nos diferentes sistemas educacionais
brasileiros, gerando os resultados acima mencionados, percebo que uma transformação
depende igualmente de diferentes fatores, entre os quais o repensar e re-significar o próprio
papel da escola; o uso dos instrumentos inseridos em seu contexto; a compreensão da
função e do posicionamento teórico e político do professor enquanto sujeito privilegiado e
mediador do processo educacional. No Brasil, os problemas relacionados à alfabetização
estão longe de alcançar resultados satisfatórios. É um campo que se mostra amplo e aberto
para o debate na busca de uma educação emancipatória, que permita a expressão autoral e
autônoma do sujeito em todos os níveis de ensino.
1.1.4 A alfabetização e o letramento
Em meados dos anos de 1980, surge no contexto dos estudos e da discussão
sobre alfabetização no Brasil a noção de letramento. Uma das ocorrências do uso da
expressão letramento
21
segundo Soares (2001) foi feita por Kato em 1986, em que a autora
diz acreditar que a língua falada culta é conseqüência do letramento, e Tfouni, em 1988,
distingue a alfabetização de letramento. A partir desse momento, o uso do termo torna-se
cada vez mais freqüente no discurso escrito e falado de professores e especialistas, e
motivo de pesquisa nos meios acadêmicos. Porém, a palavra letramento, segundo Soares
(2001) ainda não estava dicionarizada
22
, tinha sido introduzida muito recentemente na língua
portuguesa e alguns autores preferiam, no lugar de letramento, utilizar a palavra
alfabetismo, mais próxima da língua portuguesa, porém não tão familiar quanto seu oposto,
analfabetismo” (SILVA, 2004, p. 37).
Para Kleiman (1995, p.15-16):
O conceito de letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos
numa tentativa de separar os estudos sobre o “impacto social da escrita”
[...] dos estudos sobre a alfabetização cujas conotações escolares
destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita.
Eximem-se dessas conotações os sentidos que Paulo Freire atribui a
21
Versão para o Português da palavra literacy, da língua inglesa. “Etimologicamente, a palavra literacy vem do
latim littera (letra), com o sufixo –cy, que denota qualidade, condição, estado [...], ou seja: literacy é o estado ou
a condição que assume aquele que aprende a ler e escrever (SOARES, 2001, p.17)”.
22
No dicionário Caldas Aulete, indicado como termo antigo ou antiquado aparecia a palavra letramento um
século atrás e significava “soletrar”. Uma palavra que deixou de ser usada, retornando em 1986 com outro
significado. Em 2001 o Dicionário Houaiss dicionarizou a palavra letramento e o adjetivo letrado, a ela
correspondente.
26
alfabetização que a vê como capaz de levar o analfabeto a organizar
reflexivamente seu pensamento, desenvolver a consciência crítica,
introduzi-la num processo real de democratização da cultura e de
libertação.
De acordo com Soares (2004), o uso do termo letramento aparece decorrente da
necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais
avançadas e complexas que as práticas do ler e escrever resultantes da aprendizagem do
sistema da escrita. Para a autora, este fenômeno acontece simultaneamente ao
aparecimento do illettrisme, na França, e da literacia em Portugal. Nos Estados Unidos e na
Inglaterra, embora o termo literacy estivesse sendo usado desde o final do século XIX foi
também nos anos de 1980 que se tornou foco de atenção e discussão nas áreas da
educação e da linguagem, evidenciado pelo grande número de artigos e livros publicados
sobre o tema. Convém ressaltar que, aproximadamente nesta época (final dos anos 1970), a
UNESCO
23
propõe a ampliação do conceito de literate para functionanally literate, sugerindo
que as avaliações internacionais sobre o domínio de competências de leitura e de escrita se
fizessem de forma mais ampla, além do medir apenas a competência de ler e escrever.
Ainda segundo Soares (2004), se houve coincidências quanto ao momento
histórico em que as práticas sociais de leitura e escrita surgem como fundamentais em
sociedades distanciadas nos aspectos geográficos, socioeconômicos e culturais, as causas
e o contexto deste surgimento se caracterizam como diferentes nos países em
desenvolvimento, como o Brasil, dos países desenvolvidos como França, Estados Unidos e
Inglaterra. Uma das diferenças que pode ser destacada é o grau da ênfase colocada nas
relações entre as práticas sociais de leitura e de escrita e aprendizagem do código escrito,
ou seja, entre o conceito de letramento (illetrisme, literacy) e o conceito de alfabetização
(alphabétisation, reading, instruction, beginning literacy). Nos países de primeiro mundo, as
práticas sociais de leitura e escrita assumem a natureza de problema relevante na
constatação de que a população, embora alfabetizada, não possuía habilidades de leitura e
escritas suficientes para uma participação efetiva e competente, tanto no contexto social
como profissional, envolvendo a língua escrita. Nesta perspectiva, nesses países a
discussão sobre os problemas da aprendizagem inicial da escrita, ou da tecnologia da
escrita (alfabetização) e o domínio precário de competências de leitura e de escrita
necessárias para a participação em práticas sociais letradas (letramento) são tratados de
forma independente, revelando o reconhecimento de suas especificidades e uma relação de
não causalidade entre eles.
No Brasil, o movimento se fez na direção oposta. A discussão sobre a
importância de habilidades para o uso competente da leitura e da escrita tem sua origem
23
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
27
vinculada à aprendizagem inicial da escrita, desenvolvendo-se a partir do questionamento
do conceito de alfabetização. Dessa forma, os conceitos de alfabetização e letramento se
mesclam e freqüentemente se confundem, com uma progressiva extensão do conceito de
alfabetização em direção ao letramento, do saber ler e escrever em direção ao ser capaz de
fazer uso da leitura e da escrita.
Para Soares (2004, p. 8), “a invenção do letramento, entre nós, se deu por
caminhos diferentes daqueles que explicam a invenção dos termos em outros países”.
Apesar da diferenciação sempre proposta na produção acadêmica, existe uma inadequada
e inconveniente fusão dos dois processos, com prevalência do letramento conduzindo a
uma certa extinção do termo alfabetização, a que a autora atribui o nome de desinvenção
da alfabetização para descrever a progressiva perda da especificidade do processo de
alfabetização que vem ocorrendo nas escolas ao longo das duas últimas décadas. Para a
autora, na concepção atual, a alfabetização não precede o letramento, os dois processos
são simultâneos.
Nas últimas (duas) décadas, os estudos sobre o letramento se intensificaram
provocando uma série de indagações e hipóteses a respeito do próprio significado, o sentido
se pluralizou provocando entendimentos diferenciados. Para Scribner e Cole (
apud
KLEIMAN,
1995, p. 19) o letramento pode ser definido como “um conjunto de práticas
sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em
contextos específicos, para objetivos específicos”. Tfouni (2002, p. 23) afirma que o termo
letramento “não tem um sentido único, nem descreve um fenômeno simples e uniforme.
Pelo contrário, está intimamente ligado à questão das mentalidades, da cultura e da
estrutura social como um todo”.
Para Costa (2000, p. 15) o termo letramento pode interpenetrar-se com a
concepção paulofreiriana de alfabetização no sentido de auxiliar no desenvolvimento de
“uma consciência crítica e reflexiva do sujeito, para que ele possa ter acesso à cultura e se
liberte como cidadão. Portanto um processo (ou uma prática) social/coletivo de
democratização do saber”. Para Silva (2004, p. 43), a noção de letramento não apenas
amplia o conceito de alfabetização como poderia fortalecê-lo resgatando a dimensão
política, filosófica, dialógica, cultural e ideológica”. Cecília Goulart (2006) destaca não
apenas a dificuldade para conceituar o letramento como a possibilidade de conceber
letramentos, ou seja, uma pluralidade em torno deste termo que resulta numa falta de
condições para estabelecer os diferentes níveis de letramentos. A autora afirma ainda que a
discussão contemporânea sobre letramento é densa, complexa e está atravessada pelo viés
político-ideológico.
O conceito de letramento, vê-se, ainda está se consolidando. De qualquer modo,
foge ao âmbito deste trabalho aprofundar essa questão. Aqui, relacionado à alfabetização, o
28
letramento é bússola, é perspectiva pela qual o ensino e a aprendizagem do objeto escrita
se apóiam, enquanto a aprendizagem do sistema escrito torna-se ferramenta que amplia
gradativamente os níveis de letramento.
1.1.5 Modelos de letramento
Kleiman (1985), analisando os modelos de letramento encontrados na prática de
alfabetização escolar, aponta pelo menos dois que levariam a duas perspectivas e
conseqüências diferenciadas: o modelo autônomo e o modelo ideológico.
Costa (2000, p. 16), fundamentado em Kleiman, explicita inicialmente o modelo
autônomo de letramento, bem como o que este conceito representa em termos de
implicações sociais:
O modelo autônomo possui uma concepção quase absoluta de que nas
instituições e nas classes letradas (escola, igreja, classe média,...) está a
gênese da verdade. Assim a escola seria, com suas práticas, a principal
agência de letramento e a escrita seria objeto de comunicação distinto da
oral (visão polarizada entre oralidade e escrita), priorizando, portanto, na
/pela escrita, um tipo especifico de letramento – a alfabetização.
Esse modelo seria um modelo completo em si mesmo, instrumento neutro,
a-social, a-histórico, justamente por não levar em conta o contexto social ou
cultural que determina as práticas de letramento.
Para o autor, o modelo autônomo de letramento reforça a crença de poder
resolver as dificuldades de comunicação oriundas da diversidade sociocultural e lingüística
por meio da educação formal escolar baseado principalmente na certeza de que quanto
maior o nível de escolarização, melhor a performance do sujeito na comunicação. Esse
modelo enfatiza a dimensão individual da aprendizagem e o letramento é concebido como
um atributo pessoal. Além de outros problemas, modelos de letramentos que enfatizam a
ótica individual, segundo Silva (2004, p. 39), concebem o ato de ler
24
e escrever
25
como
uma mesma habilidade, não levando em conta a especificidade de cada um; por outro lado,
quando compreendem a distinção dos dois processos acabam por enfatizar um deles”.
A autora destaca ainda o fato de que o ensino da leitura e da escrita
desconsidera muitas vezes as experiências anteriores do sujeito e o conflito necessário para
que ele memorize e compreenda o sistema alfabético. “Esse conflito só é possível na
24
A leitura é “um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de
decodificar palavras até a capacidade de ler textos escritos” (SOARES apud SILVA, 2004, p.39)
25
A escrita também requer um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas, mas diferentes daquelas
exigidas pela leitura, “as habilidades de escrita estendem-se desde a capacidade de registrar unidades de som até
a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor em potencial” (SOARES apud SILVA,
2004, p. 40).
29
interação com o outro, pois é a partir do outro que a criança se conta das situações e
condições em que se produz a escrita e a leitura em sala de aula. Lemos e escrevemos o
que?, para quê, para quem, por quê?”(SILVA, 2004, p. 41). Embora enfatizando a questão
individual, a aprendizagem do código escrito é um fenômeno de caráter social e se faz na e
por meio da atividade discursiva.
O modelo ideológico leva em conta a determinação do aspecto social e cultural
nas práticas de letramento para uma sociedade e a significação do código escrito depende
do contexto em que foi adquirido. “Esse modelo não propõe a relação de causalidade para
ascensão social do sujeito, acesso aos seus bens sociais ou desempenho nas práticas
comunitárias” (COSTA, 2000, p. 16). Segundo o autor, enquanto o modelo autônomo possui
uma confiança absoluta de que o que é universalmente confiável ou válido provém das
instituições como a escola, a igreja, entre outras, no modelo ideológico essa confiabilidade é
relativizada.
O modelo ideológico, interpretado não como um atributo particular, mas na
dimensão social, pode ainda ser visto sob duas perspectivas, progressista ou liberal e a
revolucionária ou radical (SOARES apud SILVA, 2004, p. 42). Na ótica progressista ou
liberal, o letramento prevê tão somente que o individuo desenvolva práticas sociais de leitura
e escrita que o adaptem as condições do meio em que está inserido, enquanto na
perspectiva revolucionária ou radical o sujeito é encorajado a interferir no contexto criando
inclusive novas regras de participação.
É no âmbito do modelo ideológico de letramento, com sua possibilidade de ser
transformador ou revolucionário, que percebo uma ampliação, numa visão outra das
discussões sobre alfabetização. Mencione-se ainda que não apenas o uso social do código
escrito (letramento) está condicionado aos aspectos culturais de um determinado grupo
como a própria aquisição técnica desse código (alfabetização) se dá necessariamente
relacionada a uma maior ou menor valorização atribuída à escrita, de acordo com o contexto
em que o sujeito está inserido. Nessa perspectiva, o objeto de estudo (código escrito) pode
ser trabalhado para além da decodificação, visando à interpretação e à produção de
significados, pois somente dessa forma poderá contribuir para uma alfabetização e um
letramento na perspectiva de iniciar a formação de um leitor/autor.
Para Varrela (2001, p. 33), o grande desafio da atualidade imposto aos
professores em relação à leitura e a produção escrita é “alfabetizar crianças tendo o texto
como unidade básica e ensinar a ler e escrever a partir da reflexão sobre o processo
envolvido”, principalmente porque a “autonomia na leitura desenvolve-se com o aumento da
experiência, na medida em que ocorre a ampliação de conhecimentos que servem de apoio
à identificação de palavras, de frases e de modalidades de textos” (idem). Quando Varella
refere-se ao texto, é preciso ressaltar que a preferência pela polissemia e polifonia contida
30
nos textos literários contribui para potencializar a interação acerca de diferentes opiniões
sobre uma unidade temática. Os textos providos de diferentes significados podem
proporcionar aos que estão aprendendo a ler e escrever uma competência “para além do
domínio do sistema de escritura, melhor pronunciando, enunciando, e anunciando seu estar
no mundo, seu jeito de estar e de fazer sua humanidade, produzindo cultura” (PAIVA, 2005,
p. 113), consolidando não apenas o processo de alfabetização, como também o de
letramento.
O fantástico ficcional presente na literatura é um elemento que desencadeia o
pensar, o imaginar e o descobrir novas verdades. Sobretudo, a leitura literária pode
impulsionar o sujeito (leitor/autor) a não ter medo de enfrentar suas próprias idéias
representadas por meio da linguagem oral ou escrita. Ao ler me torno um co-autor
simplesmente pelo fato de não permanecer indiferente ao texto, ou seja, produzo
paralelamente um texto novo e ao escrever estarei dialogando com o outro, pois cada
palavra é uma forma de expressão de um tempo e um espaço constituído culturalmente.
Esse fator assume vital importância para a criança no momento da aquisição da linguagem
escrita que precisa necessariamente ter significado. A competência técnica é adquirida
paralelamente e/ou em conseqüência da constante interação com textos diversificados,
científicos e ficcionais, ou seja, o letramento se faz concomitantemente ao processo de
alfabetização.
1.2 A LITERATURA
O termo literatura permeia o trajeto desse estudo de forma muito evidente sem
reivindicar a necessidade de explicitar um conceito acerca do mesmo. Entretanto, ao tentar
focalizar com maior precisão o que a literatura representa para a formação do sujeito de
maneira ampla, e especificamente em que sentido está alocada nessa pesquisa, deparei-me
com a desconcertante tarefa de tentar responder: afinal, o que é a literatura?
A literatura é arte acima de tudo, mas é também um objeto cultural que
apresenta muitos aspectos fugidios, razão pela qual, pareceu-me mais sensato ao invés de
explicitar um conceito empenhar-me em apontar algumas características que tornam um
texto literário. Além disso, um evento lingüístico qualquer de hoje poderá amanhã se tornar
literatura reconhecida se a sociedade que o produziu ou o ler assim o determinar. Mais do
que destacar as características ou qualidades atribuídas à linguagem literária, percebo a
necessidade de me ater a uma delas em especial: o seu caráter formativo. Pois é a partir do
reconhecimento de que o texto literário configura-se como um objeto relevante na formação
do leitor, que faço a reflexão acerca da sua contribuição no processo de alfabetização e
31
letramento da criança. Compreendendo ainda que essa formação se inicia muito antes da
criança chegar à primeira série do ensino fundamental, acredito que quanto mais cedo ela
entrar em contato com a literatura maior será o seu repertório, com o qual vai dialogar e
constituir-se leitora.
Segundo Zilberman (1990, p. 12), quando a literatura nasceu, na Grécia antiga,
chamava-se poesia e sua função principal era divertir a nobreza nos intervalos entre uma
guerra e outra. “A Ilíada e a Odisséia devem seu aparecimento a essa circunstância, porém
sua permanência no tempo não se explica da mesma maneira”. Esses dois poemas épicos
tornaram-se para os gregos, de acordo com a autora, algo semelhante à Bíblia para os
hebreus: um instrumento que contava as origens da nação, explicitava as diferenças entre
homens e deuses, servia para legitimar o modelo político adotado e ainda ditava as normas
de comportamento privilegiadas por aquela sociedade. Dessa forma, a literatura assumiu
desde muito cedo uma propensão educativa. No decorrer do tempo ela sofreu inúmeras
transformações, surgiram novos gêneros, mas uma certeza manteve-se com o tempo: “a de
que o texto poético favorece a formação do indivíduo cabendo, pois, expô-lo à matéria-prima
literária, requisito indispensável a seu aprimoramento intelectual e ético” (ZILBERMAN,
1990, p. 13).
É esse aspecto formativo da linguagem literária que abona sua presença em
todos os níveis de escolarização como fator que contribui não apenas para a formação do
leitor, mas de uma forma abrangente atua na constituição do sujeito. Porém é preciso re-
significar a maneira de lidar com os textos literários no cotidiano escolar. Para Zilberman
(1990, p.17) “não pode ser a que desempenhou na Antiguidade, por que a escola se
interpôs entre a obra e o leitor, com conseqüências inegáveis”. Também não pode ser a
pedagogização da literatura, ou seja, utilizá-la apenas como um recurso para apreender
aspectos relacionados à estrutura da língua.
A linguagem literária caracteriza-se pela possibilidade de leitura do mundo real
de diferentes formas. Uma linguagem que vai se distanciando da objetividade e da
explicação única e propondo verdades que são construídas na interlocução entre autor(es),
texto(s) e leitor(es) e por isso está sempre em aberto. As significações que ela pode
suscitar a partir dos personagens, tempos ou eventos fictícios, dizem respeito à busca de
compreensão da própria condição humana, seus medos, suas paixões, suas eternas
dúvidas ainda sem respostas e como resultado de muitas vozes inquietas. Ligia Cademartori
sintetiza o que provisoriamente poderíamos tomar como um conceito de literatura, apenas
para convergir reflexões momentâneas, pois o próprio significado é escorregadio e não nos
permite apreendê-lo na sua abrangência:
32
A obra literária recorta o real, sintetiza-o e interpreta-o através do ponto de
vista do narrador ou do poeta. Sendo assim, manifesta através do fictício e
da fantasia, um saber sobre o mundo e oferece ao leitor um padrão para
interpretá-lo. Veículo do patrimônio cultural da humanidade, a literatura se
caracteriza, a cada obra, pela proposição de novos conceitos que provocam
uma subversão do já estabelecido (1986, p.22).
Nas palavras de Azevedo (2004, p. 39), algumas características que constituem
“essa forma de arte feita com palavras convencionalmente chamada de Literatura” dão
conta de que em primeiro lugar ela é ficção e discurso poético. A ficcionalidade retrata o
mundo de forma subjetiva, analógica, intuitiva, imaginária e fantástica. Por meio do discurso
poético, afirma o autor, abrimos mão da linguagem objetiva, sistemática, impessoal,
coerente e unívoca dos livros didáticos para poder inventar palavras, transgredir as normas
oficiais da Língua, criar ritmos inesperados, brincar com trocadilhos e duplos sentidos,
recorrer a metáforas e poder ser ambíguo e até mesmo obscuro. O texto literário é, portanto,
constituído pela plurissignificação, se distancia do texto didático-informativo, possibilitando
que diferentes leitores cheguem a diferentes interpretações. Para o autor, “é possível afirmar
que quanto mais leituras um texto literário suscitar, maior será sua qualidade” (p. 40).
Vê-se que a literatura é um modelo de pensamento que se utiliza da ficção e da
linguagem poética para interpretar o mundo. Nas situações ambíguas e contraditórias de
personagens fictícios e imaginários discutem-se as contradições que caracterizam os
sentimentos e as paixões humanas, permitindo não apenas a reflexão, mas a busca do
autoconhecimento e a construção da identidade de um “eu” em relação ao “outro”. A leitura
de textos literários, além dos atributos acima citados, faz com que seu leitor produza um
texto paralelo e inédito que representa o seu posicionamento em relação ao que outras
vozes lhe falam, é um impulso ao “eu” autor que num movimento ininterrupto revela que “era
uma vez um escritor que escreveu para um leitor que virou escritor que escreveu para outro
leitor [...] percebendo mais profundamente as perplexidades da vida e muito provavelmente,
plasmando – juntos – outras maneiras de existir” (SILVA, 1990, p. 23).
1.2.1 A literatura infantil
O que é Literatura infantil?
Para Aguiar et al (2001, p.16) “são as histórias e os poemas que ao longo dos
tempos, seduzem e cativam a criança, embora às vezes não sejam destinados ao público
infantil (e o livro Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, é um exemplo)”.
Para
Cristiane Madanêlo de
Oliveira (2005) a autêntica literatura infantil não
deve ser feita essencialmente com intenção pedagógica, didática ou para incentivar hábito
33
de leitura” [s.p.]; a designação infantil para essa modalidade literária não deve ser vista
como "menor", mas na perspectiva de que:
A palavra literatura é intransitiva e, independente do adjetivo que receba, é
arte e deleite. Sendo assim, o termo infantil associado à literatura não
significa que ela tenha sido feita necessariamente para crianças. Na
verdade, a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde, de
alguma forma, aos anseios do leitor e que se identifique com ele (idem).
A Literatura Infantil tem sua origem
26
no final do séc. XVII, época em que
ocorreram mudanças estruturais na sociedade. Entre essas mudanças, três delas
contribuíram de forma determinante para o surgimento do gênero literário: a reestruturação
da família (burguesa); a reorganização da escola e o reconhecimento da infância enquanto
categoria social. A reorganização da família fez emergir o sentimento de infância que até
esse momento não era reconhecido e a partir da visão moderna de família se estabelece um
conceito de infância repleto de diferentes interesses e entendimentos. A escola foi
reformada e assumiu a função de cuidar do desenvolvimento intelectual infantil.
O surgimento da literatura infantil vinculado ao nascimento do conceito moderno
de infância e unido à escola de modo não acidental produziu os primeiros textos deste
gênero, expressando um apelo educativo, principalmente porque foram escritos por
pedagogos. Essa característica sobreviveu ao andar histórico e nos dias atuais podemos
encontrar um grande número de obras preservando tal pretensão. Fato que, segundo
Zilberman (1998, p. 14), torna problemática a relação literatura e educação, pois: “de um
lado, o vínculo de ordem prática prejudica a recepção das obras [...] e a crítica desprestigia
globalmente a produção destinada aos pequenos, antecipando a intenção pedagógica, e
sem avaliar os casos específicos”. Por outro lado, a autora reafirma que a “sala de aula é
um espaço privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um
importante setor para o intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito
menos desmentida sua utilidade” (idem).
A estreita relação entre literatura infantil e a educação intensifica seu caráter
utilitário no processo de alfabetização e letramento. Encontram-se disponíveis no mercado
editorial alguns livros que se dizem adequados para introduzir a criança ao universo da
leitura e da escrita. Essas obras são tomadas como um mero instrumento didático com o
qual a assimilação da tarefa escolar fica evidente. Segundo Zilberman (1988), são obras que
não apresentam as características básicas da ficção, tais como a ação narrativa entre o
26
Segundo Oliveira (2005 [s.p.]) a célula máter da Literatura Infantil, hoje conhecida como “clássica”, encontra-
se na Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia. Descobriu-se que, desde essa época, a palavra
impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como ameaçar,
construir ou destruir. São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura
primordial. Nela foi descoberto o fundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjaram durante séculos a.C., e
se difundiram por todo o mundo, através da tradição oral.
34
aparecimento de um problema a resolver e a sua solução, a presença de personagens
animadas, um espaço e um tempo fictícios. Além disso, como a preocupação maior é a
aquisição e domínio do código escrito, alguns deles apresentam ao leitor as letras na
seqüência em que o alfabeto as ordena e na variedade de suas diferentes formas gráficas.
Ainda, segundo Zilberman (1988), os livros direcionados às crianças em
processo de alfabetização possuem uma transitoriedade, limitando o seu uso. Nessa fase, a
criança ainda não domina o código escrito e, portanto, não tem fluência e segurança para
poder escolher e ler uma obra e ao superar essa fase, esses livros podem ser dispensados,
o que, segundo a autora via de regra acontece. Dessa forma, essas obras além de serem
produzidas dentro de um modelo metodológico com uma concepção de aprendizagem
essencialmente pragmática, encontram-se atrelados ao fim que se destinam e representam
a parcela mais descartável e efêmera da literatura infantil.
Sisto (2005) faz uma “brincadeira-séria” utilizando a ficção para assinalar o
quanto à relação da literatura infantil com a escola pode ser problemática:
Nosso personagem chama-se Literatura Infantil e acabou de ser chamado
na sala da coordenadora da escola, para se defender da acusação de ser
coisa sem importância, desnecessária, sob a ameaça de perder o lugar na
escola, e pior, na vida das pessoas [...] (p. 134).
Tal qual a crítica exacerbada aos métodos tradicionais de alfabetização que
geraram uma crença equivocada de que estes não eram mais necessários, também a
literatura infantil entendida como pedagogizante pode ter sido preterida no ambiente escolar.
O fato de muitas obras, em meio à diversidade existente, possuírem um caráter didático não
significa que não possamos encontrar qualidade literária e negar a contribuição do gênero
para a formação humana. Azevedo (2005, p. 25) reafirma o papel determinante que a
escola possui na formação de leitores, na qual “grande parte das pessoas tem sua primeira
chance de estabelecer contato com textos de ficção e poesia”. Embora, pois, a literatura
infantil tenha um percurso histórico marcado pela característica didática, ela supera essa
fragilidade atingindo o estatuto de arte literária, segundo Zilberman (1998), quando se
distancia de sua origem comprometida com a pedagogia e apresenta textos de valor
artístico a seus pequenos leitores.
A literatura (infantil ou não) tem necessariamente um componente que a torna
capaz de sensibilizar e encantar o leitor independente da idade (cronológica). É um
elemento que transcende o tempo e o espaço, pois ao ler uma história o leitor pode ser
“sugado” para o seu interior e se permitir uma vivência para além do real, para um
imaginário, ainda que possível apenas como imaginário que, para Ieda Oliveira (2005)
consiste numa certa “loucura” saudável que o prazer estético proporciona. Quando leio uma
35
história de ficção, produzo outra paralela e se estabelece um diálogo subjetivo entre escritor,
obra e leitor e na subjetividade dos diálogos nasce um terceiro livro, que ficará por
escrever. São diálogos para sempre inéditos” (QUEIRÓS, 2005, p. 171) que me possibilitam
mais do que leitura, o exercício de uma leitura com autoria.
Ao compreender o importante papel que a literatura (infantil) pode desempenhar
no processo educacional, reconhecendo as múltiplas possibilidades que podem advir da
presença e permanência não exatamente na escola, mas, nas mãos das crianças, uma
preocupação se instala de imediato: a questão da qualidade. É preciso saber reconhecer a
qualidade de uma obra literária do gênero infantil ou juvenil. Como realizar essa tarefa?
1.2.2 Os livros para criança e a qualidade literária
O livro para crianças é também um objeto de consumo e atende uma parcela do
mercado, motivo pelo qual a quantidade de obras existentes nos dias atuais é imensa e a
sua qualidade nem sempre compromisso de todos os autores que se dispõe a escrever para
o público infantil. Durante o percurso desta pesquisa refleti sobre os parâmetros para poder
distinguir uma obra do gênero infantil de qualidade entre as demais e percebi que o meu
olhar [o de professora] construído por meio da experiência com a literatura no cotidiano de
uma sala de aula está muito mais relacionado à intuição (incluindo minhas preferências
pessoais) e baseado na observação da relação que as crianças estabelecem com as obras
literárias que chegam às suas mãos. Evidentemente, a experiência pode apontar alguns
caminhos, mas se mostra insuficiente para uma abordagem sólida ou para possibilitar
escolhas seguras, pois para poder aferir se uma obra do gênero possui qualidade literária é
necessário levar em conta alguns critérios, a começar pelo aspecto físico do objeto-livro,
materializado, comercializado – produzido cultural e historicamente.
Quando se trata do objeto-livro Fanny Abramovich faz uma lista de pormenores a
ser percebida, envolvendo vários aspectos:
A começar pela capa (se bonita, feia, atraente, boba, sem nada a ver com a
narrativa), do título que, afinal, são o primeiro contato que se tem com o
volume: o impacto visual e a curiosidade despertada ou adormecida...E por
que não discutir a encadernação, do desprazer que é ver um livro amado
desfolhando, descolando, não dando mais nem para virar a página? [...]
olhando muito do bem olhado se a ilustração corresponde ao que está
escrito na gina ao lado, se está muito compactado, muito apertado, sem
espaço para respirar... ou ao contrário, se ficou muito pouca coisa escrita ou
desenhada em cada folha, sobrando partes em branco [...] (1997, p. 145).
A adequação do tamanho e disposição das letras, da ilustração e do texto nos
livros, a escolha do formato mais adequado, são outros cuidados citados pela autora que,
por sua vez, representam investimentos maiores ou menores na edição de cada obra.
36
Esses e outros aspectos tornaram-se objeto de reflexão no livro organizado por
Leda Oliveira em 2005, denominado O que é qualidade na literatura infantil e juvenil? Com a
palavra o escritor. Nessa obra, autores que são também escritores de literatura infantil e
juvenil tentam responder a pergunta central, destacando as características entendidas como
necessárias para garantir a qualidade literária dos livros para jovens e crianças – eles tratam
principalmente da qualidade do teor literário, sem desconsiderar a importância dos
elementos extra textuais e da formatação gráfica para se fazer um “bom” livro ou uma boa”
literatura. De maneira sintetizada, selecionei algumas idéias e opiniões apontadas por
Celso Sisto, Ricardo Azevedo, Gustavo Bernardo, Anna Claudia Ramos, Luiz Antonio de
Aguiar e Bartolomeu Campos de Queirós, alguns dos autores que participaram da referida
obra.
Celso Sisto defende que a diversidade deveria ser a palavra chave na questão
da qualidade. Que a literatura infantil, além do encantamento, poder de sedução, impacto e
magia, precisa ter compromisso com o leitor. Um compromisso que se manifesta desde a
produção textual com uma linguagem autêntica (não empolada, boba ou artificial) mantendo
a coerência entre personagens, voz narrativa, tempo narrativo e espaço histórico, até a
formatação do aspecto físico com materiais adequados. Na questão da linguagem literária,
afirma o autor, podemos concebê-la como desvio desvio da linguagem cotidiana. Esse
lugar desviante fica sendo o território onde pode emergir o poético, que é o que provoca o
estranhamento e a singularização (uma vez que a linguagem cotidiana seria automatizante)”
(p.120). Boas histórias e bons escritores resultam em livros que possibilitam o exercício
lúdico e livre da leitura com o protagonismo do leitor, que, para testar a validade do grau de
qualidade tem que resistir a outras leituras leitura de outros leitores e do mesmo leitor
muitas vezes.
Ricardo Azevedo ao enfocar o conteúdo de uma obra literária, assegura que um
dos pontos principais é que diante da ficção e da poesia, abandonamos o campo da
linguagem utilitária e passamos a vê-la como matéria viva, passível de invenção e
experimentação. Nesse sentido, os textos que compõe a literatura (infantil ou não) devem
ser textos subjetivos, movidos por visões pessoais e não consensuais, abordando os
aspectos psicológicos e emocionais, as contradições e ambigüidades, as vivências
concretas, a efemeridade humana, as questões do imaginário coletivo e individual e outros
assuntos relevantes e relativos à condição humana. Luiz Antonio de Aguiar complementa
essa visão defendendo a autonomia literária para explorar os meandros humanos, livres de
utilitarismos, didatismos ou doutrinações, sejam elas políticas, religiosas ou morais. O autor
defende ainda que a literatura possa forjar uma cumplicidade com o leitor, tornando-se
amiga, parceira, amante... pois ela [a literatura] “alcança seus momentos mais belos quanto
37
mais se aproxima tanto da realidade e da intimidade, quanto da imaginação do seu leitor” (p.
117) . O que não significa que Gustavo Bernardo não tenha razão quando diz que “a ficção
é boa, se e somente se, não tem tudo a ver com a realidade; [...] se e somente se, não tem
tudo a ver com o leitor” (p. 14) [grifos do autor].
A literatura alimenta a alma e faz a imaginação se alargar, assegura Anna
Claudia Ramos. Por isso, segundo a escritora, a literatura infantil precisa ter qualidade
estética que possibilite qualquer pessoa ler e se encantar, mas que deixe espaço para o
leitor pensar, sentir, interagir e descobrir sentidos escondidos. Que apresente personagens
que moram em mundos aparentemente ilógicos, mas repletos de vida, de sonhos, desejos e
segredos escondidos. Personagens paradoxais que podem mudar de idéia, pensar e
descobrir maneiras de mudar o que não está bom. Para criar tais personagens, o escritor
precisa captar o imaginário infantil e se comunicar diretamente com a alma da criança. E,
partindo do princípio de que existe uma suposta divisória entre públicos distintos e de
autores que se propõe escrever para o público infantil, Resende (1988, p. 22) ressalta o
compromisso ético para com pequenos leitores, pois “se a infância é evocada no processo
de escritura de alguns escritores, resta saber se serão suficientemente habilidosos, para não
deixar sua seriedade adulta prejudicar a ludicidade da criança”, o escritor precisa saber
brincar com seriedade. A autora destaca obras criadas sem intencionalidade de público
infantil, como as de Ziraldo e de Ana Maria Machado, que permitem derrubar os limites e
eliminar distinções injustificadas entre duas literaturas. Resende afirma ainda que não
coerência na classificação que pretende distinguir duas linguagens e duas concepções
diferenciadas de arte, pois quando se escreve visando o público infantil “é preciso colocar-se
ao lado do leitor, ver o mundo através dos seus olhos, ajudando-o a ampliar esse olhar nas
mais variadas direções” (AGUIAR et al, 2001, p. 21). O fato de a literatura infantil ter como
destinatários os pequenos, não justifica o uso de uma linguagem infantilizada pois “a criança
possui senso aguçado mesmo para uma seriedade distante e grave, contanto que essa
venha sincera e diretamente do coração” (BENJAMIM, 2002, p. 55).
Bartolomeu Campos de Queirós defende que a qualidade de um texto literário
está na divergência pretendida, pois “quanto mais diversificadas as considerações, quanto
mais individuais as emoções, mais rico se torna um texto [...] não há que se perguntar qual a
mensagem do livro, mas o que o sujeito pensa sobre o que foi lido por ele” (p. 171).
Enquanto escritor menciona o extremo cuidado diante da matéria prima do seu trabalho: a
palavra. Pois, “a mesma palavra que estabelece a verdade [...] configura a mentira. A
mesma palavra que fere, acaricia. A mesma palavra que acusa, perdoa. A mesma palavra
que liberta, aprisiona” (p. 169 - 170). Portanto, as palavras são compostas e permitem que
cada leitor possa adjetivá-las de acordo com sua experiência.
38
A qualidade em literatura (infantil ou não), sem dúvida, passa pelo cuidado com
a palavra. Essa que segundo Bakthin (2000) é polifônica e polissêmica polifônica porque
não existe uma palavra (minha) original todo discurso verbal traz as marcas das outras
tantas vozes que o constituem; é polissêmica porque possui múltiplos significados,
vinculados ao conteúdo ideológico, o sentido de cada palavra é determinado pelo seu
contexto e pode ser compreendido (numa pretensa totalidade) no interior das condições
sociais, históricas, políticas e culturais que o produziram. Um livro de qualidade é aquele
que fala com seu leitor – uma fala viva! “A compreensão de uma fala viva, de um enunciado
vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa [...]; toda compreensão é
prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz(idem, p. 290).
Para
Bartolomeu Campos de Queirós não existe texto literário sem qualidade, existe texto
que não é literário e o valor de uma obra de literatura (infantil) “se dá na medida em que elas
produzem alteração ou expansão dos horizontes de expectativas dos leitores de sucessivas
épocas”. (AGUIAR et al, 2001, p. 49). Portanto uma obra literária de qualidade não
envelhece facilmente, ela se mantém atual enquanto possibilita diferentes leituras para
diferentes épocas e leitores.
Na escola, ou fora dela, estar atento aos aspectos textuais e materiais da
literatura é sobretudo reconhecer o direito da criança ao acesso aos bens culturais. Em
termos de qualidade literária muitos elementos a serem levados em conta, muitas
direções a serem exploradas em relação ao suporte (livro) e ao teor textual. Mas, pelo
menos uma posição clara entre pesquisadores e autores acerca da ameaça que arrisca a
qualidade em literatura, seja ela infantil ou não: quando indicada para atender objetivos
curriculares, ou para transmitir padrões e valores ideologicamente pré-determinados, a
experiencia estética do leitor pode ser comprometida.
1.2.3 A cartilha: um livro infantil para além do didático
Ao fazer a reflexão sobre a contribuição da literatura no processo de
alfabetização e letramento percebi uma certa “obrigação” de mencionar um instrumento que
por séculos se fez e se faz presente na vida de meninos e meninas que estão aprendendo a
ler e escrever: a cartilha. Esta, ao longo do tempo, adquiriu ares” contemporâneos,
nomenclaturas diferenciadas e se apresenta na atualidade com as mais diferentes versões,
algumas preservando “velhas” concepções pedagógicas, sobre as quais se alicerçam a vida
escolar da criança desde os seus primeiros movimentos, outras buscando acompanhar o
ritmo da discussão teórica e o esforço dos pesquisadores no sentido de tornar a
alfabetização e o letramento processos mais eficientes, auxiliando o aluno “a se apropriar da
39
língua e da linguagem com autonomia, desenvoltura e prazer” (GARCIA, 2001, p. 2
27
). Mas,
sobretudo a cartilha constituiu-se num dos instrumentos de maior acesso para as crianças
nesse momento da sua vida.
Nos dias atuais, raramente nos referimos ao livro didático específico destinado à
criança em processo de alfabetização e letramento como cartilha. Embora essa
nomenclatura pareça antiquada, esse fato não a isenta de uma produção nos moldes do
livro didático e de expressar as concepções pedagógicas que lhe dão sustentação. A
configuração dos livros (e de outros objetos) destinados às crianças é resultado de uma
construção cultural que condensa o pensamento da sociedade no seu tempo e espaço. Os
livros infantis didáticos ou não, e especificamente a cartilha, além de abarcarem o conceito
de infância
28
, ou seja, a forma como o autor, ao produzi-los, concebe a criança, agregam
ainda a visão idealizada de leitura e leitor, de escritura e escritor.
1.2.3.1 Objeto histórico e cultural
O livro infantil tem sua origem histórica na Alemanha, no século XVII. “Ao lado da
cartilha e do catecismo, também a enciclopédia ilustrada, o vocabulário ilustrado, ou como
queira chamar o Orbis pictus de Amos Comenius, encontra-se nas origens do livro infantil”
(BENJAMIN, 2002, p. 55). De acordo com o autor, o Iluminismo se apropriou à sua maneira
dessas obras, colocando em prática um programa de formação humanista, pois, “se o
homem era piedoso, bondoso e sociável por natureza, então deveria ser possível fazer da
criança, ser natural por excelência, o homem mais piedoso, mais bondoso e mais sociável”
(idem). Desta forma, é possível perceber que a preocupação maior nessa época era com a
formação moral e religiosa.
As primeiras e antigas cartilhas
29
do séc. XVI e XVII, elaboradas em compasso
com o pensamento pedagógico da época, apresentavam características peculiares daquele
momento histórico e cultural. Segundo Walter Benjamim (2002), traziam em seus textos
palavras com combinações silábicas extravagantes, como, por exemplo, “chichleuchlauchra”
“xakbak”, “zauzezizau” e outras “monstruosidades fonéticas” que perseguiam as crianças
com pretextos pedagógicos, impondo caprichos e manias adultas por meio de uma
27
Manual do professor.
28
O conceito de infância é abordado nos itens: 1.3.1 e 1.3.2.
29
No Brasil, segundo Barbosa (1994) uma das mais antigas cartilhas foi Cartinha de aprender a ler, de autoria
de João de Barros, impressa em 1539 em Lisboa. Acredita-se que essa cartilha foi usada para o ensino das
primeiras letras e da religião. Segundo o autor, noticias também de outras cartilhas, uma elaborada por Frei
João Soares, impressa em 1539 e reeditada várias vezes e uma outra chamada o Método Castilho para o Ensino
Rápido e Aprazível do Ler Impresso, Manuscrito e Numeração do Escrever, produzida por Antonio Feliciano de
Castilho em 1850, em Lisboa. Portanto, nossas cartilhas têm origem em Portugal.
40
autoridade abusiva. Para o autor, os mestres que propuseram as cartilhas, nesse tempo,
com essas “palavras”, as imaginaram úteis pelo menos no sentido de impedir a trapaça da
criança em tentar adivinhar ao invés de ler. O autor afirma, ainda, que os pedagogos desse
período não foram capazes de perceber que aprender a ler é em boa parte aprender a
adivinhar. Essas “palavras” sumiram nas cartilhas modernas, que na busca de uma
aproximação maior com o universo infantil, abriram espaço para a ludicidade.
A cartilha moderna surgiu apresentando a proposta de articular o conhecimento
em torno de um aspecto fundamental da aprendizagem da criança: a ludicidade. Segundo
Walter Benjamim (2002), a cartilha lúdica resultou da idéia de unir o livro infantil ao caderno,
criando-se espaços para a criança desenhar, rabiscar e brincar, pois foi produzida a partir da
observação/constatação de que a criança brinca e isso a caracteriza. A primeira cartilha
lúdica, lançada por Ton Seidaman Freud em Frankfurt (1930), propunha uma metodologia
de alfabetização inovadora para a época, que possibilitava questionar a “seriedade” adulta
predominante no ambiente escolar e inaugurar uma forma outra de inserir as crianças ao
mundo letrado.
Em toda parte tomou-se cuidado de preservar a soberania da criança que
brinca, de não deixar que ela perca força alguma junto ao objeto de
aprendizagem e de banir o horror com que as primeiras letras e algarismos
gostam de se impor como ídolos às crianças. [...] O charme e ao mesmo
tempo o elevado desempenho pedagógico desses livros escolares es
na maneira pela qual eles captam em si a descontração que corresponde a
essa atitude soberana e que talvez a criança procure primordialmente fora
dos livros (BENJAMIN, 2002, p. 153).
A cartilha lúdica trouxe explícita a combinação dialética de utilizar as inclinações
infantis a serviço da aprendizagem da leitura e da escrita, imaginando loterias de letras,
dados, quebra-cabeças, jogos infantis, e toda forma de fazer com que a criança aprendesse
brincando. Essa proposta foi levada adiante e venceu a barreira do tempo. As cartilhas
(brasileiras) da atualidade, chamadas agora de livro de alfabetização, continuam fazendo
uso dos jogos e das brincadeiras para introduzir a criança ao mundo da leitura e da escrita,
embora não deixem muito evidentes os motivos pelos quais o fazem.
No sentido de perceber a questão da ludicidade, analisei dois livros de
alfabetização disponíveis na escola onde foi desenvolvida a pesquisa de campo: o livro
Alfabetização: todas as letras, de autoria de Marisley Augusto, e o livro Minhas descobertas:
alfabetização, de Elizabete Garcia. O livro Alfabetização: todas as letras, embora não faça
menção quando esclarece os princípios teóricos e metodológicos e dos eixos organizadores
da obra sobre a importância da ludicidade na aprendizagem da criança, utiliza jogos de
bingos de letras, trava-línguas, parlendas, adivinhas, cantigas de roda, quadrinhas, entre
outras. O livro Minhas descobertas: alfabetização apresenta as sessões: “Brincando
também se aprende, com atividades lúdicas, mas não menos didáticas, relativas à língua e à
41
linguagem” (GARCIA, 2001, p. 13). São exemplos de propostas de brincadeiras nessa obra,
as adivinhas (p. 41), o jogo de bingo com palavras, (p. 135), o jogo da memória do par
contrário, (p. 148). Embora os jogos e brincadeiras se façam presentes nas duas cartilhas, é
possível perceber que eles são vistos como uma forma de auxiliar a aprendizagem, como
recurso pedagógico, e não como um reconhecimento de que o próprio ato de brincar
constitui uma aprendizagem.
Dietzsch (1996), na análise que faz sobre as cartilhas, afirma que:
Em nome de princípios lingüísticos e de bom comportamento, são
improvisadas sentenças toscas e emblemáticas. Assim, sílabas que se
repetem, bichos arremedando gente, letras dançantes, figuras que
pretendem dialogar com seus leitores, na verdade se transformam em
textos inverossímeis e ficam deslocados num espaço em que supostamente
deveriam ser respeitadas a imaginação e a disponibilidade infantil para a
descoberta da palavra e do mundo (p. 42).
Com a reflexão da autora, constata-se que algumas cartilhas, ao utilizarem a
ludicidade como recurso pedagógico, infantilizam o conteúdo para torná-lo “adequado” às
crianças. Pressupõem necessário traduzir o conhecimento, por princípio pertencente ao
universo adulto, para uma linguagem infantil, e, nesse sentido menor, “apequenada” para
que uma criança seja capaz de compreendê-lo. Nessa ação está implícita não apenas a
idéia de que a criança é um ser ainda incapaz de abarcar o saber do mundo adulto, portanto
separa criança e adulto, a criança como um “vir-a-ser”; e sugere que a aprendizagem
precisa transformar em “coisas”, personagem, as palavras, letras e algarismos, para que
uma criança seja capaz de aprendê-los. Dessa forma, algumas cartilhas e outros livros
didáticos apresentam na verdade conteúdos insignificantes que tratam o universo infantil,
separado do mundo adulto, menor e com pouca seriedade.
A forma como se concebe a aprendizagem da leitura e da escritura na esfera
escolar se aproxima ainda muito da copiação e decifração em oposição à co-autoria,
interpretação e produção textual. A despeito das tentativas de tornar a aprendizagem lúdica
e significativa para a criança, desde o início do século passado, as cartilhas e a escola como
um todo tem preservado a ênfase no desenvolvimento do aspecto racional, na apropriação
mecânica do código escrito, permitindo pouco espaço para a imaginação; dessa forma,
fragilizam-se, tecendo uma aprendizagem estéril e desarticulada da vida da criança.
Outro elemento que desempenha um papel determinante nas páginas da cartilha
e nos livros de literatura infantil é a ilustração. A relação entre imagens, palavras e
significados é um recurso do qual os autores não abrem mão. Porém, às vezes, a tentativa
de retratar desenho e palavra provoca uma situação forçada que não convence a criança.
A modificação ocorrida com as cartilhas contemporâneas em relação à ilustração
está muito mais relacionada às exigências de mercado do que à evolução das concepções
teóricas e ao compromisso com o leitor iniciante. A maioria delas apresenta muitos excessos
42
de coloridos e brilhos nas capas e pouca diferença e/ou consistência textual. Os livros
didáticos, de uma maneira geral e, principalmente, os de alfabetização, possuem um
conteúdo imagético por vezes exagerado.
Lins (1977, p. 134) atribui o excesso de imagens (fotografias, reproduções de
obras de artes e desenhos) dos livros didáticos aos princípios colocados na sociedade e
reproduzidos pelos autores na produção dos livros didáticos; entre os princípios, o autor
destaca o fato de que “estamos na era da imagem; o aluno, habituado à TV e às revistas em
quadrinhos, resiste à página escrita, tendo dificuldade de captar imagens verbais”. E, ainda,
que as formas que se apresentam às ilustrações pressupõe uma média muito baixa de
inteligência dos alunos, dadas às noções elementares que são traduzidas pelas imagens.
No caso específico da cartilha, o uso excessivo de imagens utilizadas para
ilustrar as palavras compromete, em muitos casos, a qualidade dessas imagens, tornando-
as caricatas. Muitas vezes a criança não reconhece a ilustração que o autor apresenta, tal é
a precariedade, ou faz uma leitura equivocada, como, por exemplo, “letra I de castelo”,
quando na verdade a ilustração se refere a uma igreja. A ilustração das cartilhas
contemporâneas se distanciou “anos-luz” das litogravuras em branco e preto de desenhistas
alemães do séc. XIX, mencionadas por Walter Benjamim: [...] as lições apresentavam
litogravuras bem cuidadas que, em cores ou branco e preto, ostentavam meninas vestidas à
européia, brincando com suas bonecas e animais de estimação [...] (DIETZSCH, 1996, p.
44)”. Essas cartilhas destinavam-se a poucas crianças, privilegiadas. No Brasil, segundo
Barbosa (1994, p. 60) houve uma queda na qualidade gráfica das cartilhas a partir da
Segunda Guerra Mundial, quando as ilustrações “inicialmente realizadas por artistas
famosos, aos poucos passaram a ser confiadas a desenhistas primários, o que também
favoreceu o barateamento dos custos”.
Para além da preocupação com a aprendizagem que permita a expressão da
ludicidade da criança, para além da contribuição que as imagens possam ter no
entendimento da mensagem, essas imagens que nos dias atuais de certa forma saturam o
nosso cotidiano e inviabilizam um olhar mais atento à mensagem a ser comunicada também
nas páginas de um livro escolar, que se perguntar qual é a preocupação implícita neste
livro – cartilha - com a formação do leitor e com a busca de sua emancipação?
1.2.3.2 A cartilha, o leitor e a leitura
O livro didático infantil traz implícita uma forma de ser e de organizar uma
sociedade, possui uma concepção de homem. A nossa sociedade capitalista e excludente
dissemina essa concepção atuando no sentido da preservação de sua estrutura social por
43
meio de práticas de leitura que, ao invés de auxiliarem a criança na construção da
autonomia enquanto sujeito-leitor, atuam no sentido inverso. Ao ocupar-se
demasiadamente, principalmente na alfabetização, com a aquisição da competência técnica
da decodificação de letras, sílabas e palavras, de forma separada, distorce o significado da
leitura e limita suas possibilidades. Amâncio (2002, p. 186)
30
observa que as cartilhas
apresentam pseudotextos sem coesão, coerência e/ou frases que ferem princípios
lingüísticos básicos e que essa “linguagem falsa das cartilhas [...] invade o espaço da
linguagem verdadeira, viva e dinâmica, que possibilita a interlocução, as interações pessoais
e que é constitutiva das relações sociais e da construção do conhecimento”. Foucambert
(1994, p. 110) constata que uma preocupação excessiva com a alfabetização na qual o
ensino da decodificação segue uma progressão rigorosa que vai do simples ao complexo,
com grupos homogêneos de crianças, que, aos olhos do adulto, estão no mesmo estágio, e
que essa “sessão de ‘leitura’ soletrada será mantida durante todos os anos de escolaridade,
conservando seu aspecto oral e coletivo”. E neste ponto me ocorrem outras interrogações:
qual é o leitor que está sendo construído na escola por meio dos instrumentos didáticos
disponíveis e/ou utilizados de forma pouco questionada? Quais seriam as possibilidades, no
livro didático (enquanto instrumento) produzido neste início de século, que trariam uma
forma “outra” de pensar a emancipação do leitor?
Garcia (2001), nas recomendações destinadas aos professores que utilizam a
cartilha, esclarece que pensa/projeta um leitor capaz de “compreender nas mensagens orais
e escritas de que é destinatário direto ou indireto: saber atribuir significado, começando a
identificar elementos possivelmente relevantes segundo os propósitos e intenções do autor”
(idem), e espera que, ao ler os textos contidos em sua obra, a criança possa combinar
“estratégias de decifração com estratégias de seleção, antecipação, inferência e
verificação”. A autora consciente de que o livro de alfabetização é um instrumento que
carrega a pretensão de introduzir a criança ao mundo da leitura e escrita na qual está
subjacente o aprendizado do mecanismo técnico, propõe/pondera que essa habilidade
possa ser construída na interação com a diversidade textual desenvolvendo outras
habilidades na criança-sujeito que pensa, que atribui significados e que relaciona o
conhecimento com seu repertório cultural.
A proposta de utilizar textos significativos para a criança é também adotada por
Augusto (2004) no livro de alfabetização Todas as letras. Nesta obra, a autora faz uma
seleção ampla de textos de variados gêneros, preservando sua autoria e integridade, mas
usa-os como pretexto para aprendizagem das letras e das sílabas. Ela organiza o conteúdo
30
A autora realizou seu estudo dialogando com outros autores, especialistas e professoras alfabetizadoras,
analisando os textos das cartilhas, as lições e situações vivenciadas em sala de aula para perceber a pertinência e
validade que esse recurso didático pode ter/assumir nas relações de ensino, o lugar que ocupa na escola e as
concepções de aprendizagem e de linguagem que permeiam essas relações.
44
da obra seguindo a ordem alfabética com o objetivo de focalizar a aprendizagem da letra e
da sílaba, confirmada pela chamada dos textos feita por um nome de criança cuja letra
inicial é a mesma, por exemplo: Ana e o anel, Eva e o elefante, Igor o irmão de Pedro, Oto e
o ovo, [...]. Numa classificação propostas por Barbosa (1994, p. 55) este livro representa um
modelo de cartilha mista ou analítica sintética que, por sua vez, combina duas orientações,
ou busca contemplar um método eclético de alfabetização. As cartilhas mistas partem de
palavras-chaves que são destacadas de uma frase, [ou de um texto] para logo a seguir,
realizar sua decomposição em sílabas, compondo-se com estas sílabas novas palavras” e
ainda “estabelece-se uma hierarquia de dificuldades [...] na apresentação das sílabas, essas
cartilhas tem sempre o cuidado de começar pelas que tem uma relação biunívoca com o
oral, para depois apresentar sílabas com relações mais complexas com o oral” (idem).
Foucambert (1998, p. 23) afirma que “a necessidade de conhecer os elementos
simples e suas combinações, e a necessidade de partir daquilo que interessa a criança,
portanto de um texto complexo dotado de sentido” são dois pontos de vista que divergem há
séculos na questão do leitor-aprendiz. Mas o equilíbrio de forças se somente em nível
teórico, pois a alfabetização de massa continua a ser feita pelo caminho da decifração,
enquanto o trabalho contextualizado não passa de pequenas experiências, ainda muito
incipientes.
O ensino da decodificação (decifração) predominante se contrapõe às formas de
leitura mais consistentes que poderiam ser desenvolvidas apesar da estrutura escolar, pois
infelizmente em nosso país, a grande maioria da população tem acesso à leitura apenas por
meio da escola; e a forma escolarizada de leitura, ou seja, desarticulada das questões que
permeiam o contexto social dos sujeitos, é muitas vezes a única. É uma leitura esterilizada,
desprovida de significações mais profundas, é a leitura da e para a escola. Os livros
didáticos, em especial a cartilha, ocupam-se muito mais da decodificação do que da
atribuição de significados. Entretanto, Foucambert (1994, p.115) esclarece que “a criança
aprende a ler lendo, da mesma maneira em que aprende a falar... falando”. Ao considerar o
sistema regular (francês) de ensino, o autor aponta como fragilidade a forma artificial e
descolada das questões de contexto do sujeito, re-afirma que “o único pré-requisito do
aprendizado da leitura é ser uma pessoa questionadora do mundo; [...] a criança não
aprende fazendo de conta, ela se confronta com os textos sociais dos quais precisa como
criança e não como aluno” (idem).
O confronto com os textos sociais (reais e ficcionais) numa leitura não
escolarizada requer um aprendizado. A criança aprende dialogando com a diversidade
textual, compreendendo as diferenças intertextuais e produzindo diferentes significados. Ela
fala inventando um saber ler que nunca existiu, o dela mesma, e ela só pode inventá-lo a
partir das diversas maneiras de saber ler vigentes em seu meio” (FOUCAMBERT, 1998, p.
45
28). Colomer (2001, p. 126) destaca a importância da reflexão pedagógica sobre a leitura
de textos com significado, de utilizar a leitura como um instrumento integrado às tarefas
educativas ou de levar em conta às habilidades básicas envolvidas na aprendizagem para
além da decifração.
Na diversidade textual proposta, pesquisadores como Osman Lins e Regina
Zilberman defendem a inserção e intensificação da literatura na escola desde os momentos
iniciais da aprendizagem. O livro didático é também uma das formas de trazer a literatura
para a escola, desde que seus autores tenham o compromisso ético de não utilizá-la de
forma fragmentada, comprometendo-a, mas sim preservando a integridade textual e autoral.
Para Lins (1977, p. 140), é preciso intensificar, na escola, “o convívio dos alunos com os
textos literários”. Zilberman (1998, p. 14) assegura que a “sala de aula é um espaço
privilegiado para o desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um importante setor
para o intercâmbio da cultura literária, não podendo ser ignorada, muito menos desmentida
sua utilidade. Garcia (2001) recomenda que esta seja “uma prática regular nas salas de
alfabetização” (p. 24) e apresenta, no livro de sua autoria, uma diversidade de textos
literários com a devida referenciação.
O leitor destinatário do livro de alfabetização é alguém que precisa ser tutelado.
E o autor enquanto adulto e detentor do conhecimento é quem mostra o caminho por onde o
leitor iniciante deve trilhar. A produção da cartilha está amparada por uma visão
adultocêntrica, produzida pelo adulto a partir da forma com que ele acredita ser útil para
“conduzir” a criança à leitura. O autor constrói o seu leitor-modelo, pressupondo as formas
como o texto será recebido, a partir das suas concepções de infância, de conhecimento e
aprendizagem, de leitura e de leitor, de escritura e de escritor. Nesse sentido, formata o
livro dentro de um recorte possível, o de autor. Essa forma, por si só, é restrita e unilateral;
principalmente porque, ao tentar, por um lado, se adequar aos avanços teóricos, e por outro,
dialogar com a criança na prática, pode não atingir nem uma coisa nem outra. É frágil na
base teórica, pois enquanto produto comercializável
31
tende acatar as exigências de um
mercado consumidor e inconsistente quando busca justapor as propostas de atividades a
uma posição teórica.
Marislei Augusto (2004) explicita que o seu livro está amparado na concepção
piagetiana
32
de construção de conhecimento. Ela relaciona no manual destinado aos
31
Barbosa (1994) refere-se ao mercado editorial de livros para a alfabetização como um grande negócio e reúne
informações sobre algumas cartilhas que foram editadas muitas vezes, permanecendo por um longo período no
mercado consumidor. Cartilha do povo, para ensinar a Ler Rapidamente, foi uma delas, produzida por Manoel
Bergstrõn Lourenço Filho, atingiu até 1961 1176 edições, outro exemplo foi a Cartilha para Ensino Rápido da
Leitura de Mariano de Oliveira que teve até 1965 um total de 1134 edições com milhões de exemplares vendidos
em todo o país; Caminho Suave também foi uma cartilha de grande aceitação, produzida na década de 50 por
Branca Alves Lima, foi utilizada no sistema educacional brasileiro até 1997.
32
Sobre isso ver: AZENHA. (1995) e KRAMER (2006).
46
professores as hipóteses levantadas por Ferreiro e Teberosky sobre as etapas de
desenvolvimento da criança com o intuito de viabilizá-las ou reformulá-las. Essa tentativa de
sistematizar o ensino da escrita, pautado na sucessão dos padrões evolutivos da
aprendizagem é, segundo Azenha (1995, p. 99), uma interpretação equivocada que serve
mais como um impedimento para o avanço do que de estímulo para a reflexão sobre a
linguagem escrita, conteúdo sem o qual a criança não pode aprender”, pois além de supor
que se devam construir situações de aprendizagem consideradas ótimas para crianças pré-
silábicas, silábicas, etc., acredita-se que estas crianças farão percursos homogêneos na sua
aprendizagem.
que se levar em conta que um livro didático é apenas um dos diferentes
instrumentos e uma das inúmeras possibilidades que a escola possui; uma cartilha é
insuficiente para dar conta de alfabetizar/letrar um sujeito que está integrado ao mundo, faz
parte dele e atua não passivamente, mas imprime ao seu redor a sua marca, quer a escola
queira ou não. Da formação do leitor, da qual a primeira série do Ensino Fundamental toma
para si a tarefa de instrumentalizar tecnicamente e dar os passos iniciais no sentido de
projetar um leitor autônomo, a escola não tem dado conta, muito menos a cartilha.
Entretanto, existem outros aspectos a serem considerados e aprofundados (não inclusos
nesse texto) que podem ser determinantes para afiançar (ou não) o uso do livro de
alfabetização como instrumento auxiliar no processo de alfabetização e letramento, fato que
me leva a refazer, nos dias atuais, a pergunta feita por Kramer (1986, p. 39) “por que negar
às crianças [...] o acesso a livros didáticos (cartilhas, no caso) de boa qualidade e que
tragam conhecimento da área organizado e estruturado adequadamente?”.
Entre os elementos constitutivos da cartilha, mencionados ou não, ainda um
fator pouco considerado que acredito merecer atenção, principalmente por se tratar de um
livro para crianças – é a relação sentimental que ela [a criança] pode estabelecer no
momento em que recebe, abre e toma posse de um objeto que acredita poder conduzi-la ao
“caminho” da leitura. Atingida pelo olhar de Walter Benjamim (2002), eu poderia ver/pensar
a/na cartilha como o primeiro livro da criança na escola e na significação afetiva que pode
assumir esse objeto, na revelação que faz o autor, preservando a cartilha com que sua
própria mãe aprendeu a ler ovo, chapéu, rato... e com ele advertir, irônica e/ou
poeticamente, “que não seja dito nada contra essas cartilhas. E como alguém que aprendeu
a ler com essas cartilhas poderia revoltar-se contra elas? Quanto de tudo aquilo que esse
alguém enfrentou na vida posterior se deve ao rigor e à segurança com que essas letras
penetraram em seu íntimo?” (p. 155). Para uma criança à revelia de qualquer crítica a
seriedade da vida “fala” de dentro de uma cartilha. Para Walter Benjamim (2002), o dedo
47
que percorre suas linhas ultrapassa o limiar de um reino de cujo território nenhum viajante
retorna, o terreno do “preto no branco”.
1.3. A ABORDAGEM NA PESQUISA COM CRIANÇAS
Os estudos realizados no campo da infância, durante muito tempo, pautaram-se
preponderantemente em abordagens que pretendiam entendimentos sobre a infância e o
seu desenvolvimento, principalmente nos campos da psicologia e da pedagogia. Dessa
forma, tratavam da criança como objeto e não como sujeito de pesquisa de maneira que ao
lançar-se a campo para compreender melhor o universo infantil, os pesquisadores
entrevistavam pais, babás, professores, enfim, qualquer pessoa adulta que pudesse
oferecer alguma informação, menos a criança. Pode-se dizer que durante muito tempo a
criança não teve direito a falar e ser ouvida.
O movimento que tenta virar esta página da história na qual a criança é vista
como objeto vai se delineando a partir de algumas decisões que garantem a ela direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana. A aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente ECA
33
em 1990 foi um marco decisivo do ponto de vista legal. A mudança
cultural se faz sentir por meio do esforço de pesquisadores que buscam uma forma outra de
ver e atuar junto às crianças. Uma premissa fundamental para entender essa proposta
consiste em superar a visão romântica compreendendo que a infância é uma construção
cultural, portanto existem múltiplas e diferentes infâncias.
Esse outro olhar lançado à infância tem seus movimentos iniciais inspirados em
Walter Benjamim e Lev Semyanovich Vigotski que contribuíram para estabelecer as bases
paradigmáticas sobre as quais a criança deixou de ser considerada coadjuvante para ser
vista e tratada como protagonista de uma história em construção. A compreensão da
historiografia da infância tem como ponto de partida os estudos do historiador francês
Philippe Ariès, que segundo Kramer (1996, p. 18) “inaugura uma linha de investigação: a
história da infância”. A autora destaca ainda a contribuição de Bernard Charlot, que, na
década de 70, discutiu a significação ideológica da idéia de infância presente no
pensamento pedagógico comum, entre os filósofos e nos sistemas mais amplos.
Benjamim (1993 –1994 2002), em seus estudos, trata dos excluídos da
história, problematizando o conceito linear de história e seus desdobramentos. Aproxima-se
da criança buscando capturar o seu ponto de vista e desvela o olhar infantil para o
brinquedo, para o livro, enfim, para o mundo; por meio da análise do adulto inquiridor retrata
33
Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990.
48
a infância do menino-Walter em Berlin. Esses escritos contribuem de forma determinante
para romper com a concepção romântica de infância e, segundo Kramer (2002, p. 45),
superam a visão da criança como filhote de homem, ser em maturação, cidadão do futuro,
para entendê-la como “parte da humanidade, fruto da sua tradição cultural que é também
capaz de recriá-la, refunda-la; criança que reconta e ressignifica uma história de barbárie,
refazendo essa história a partir dos despojos de sua mixórdia cultural [...]”.
Vigostski (1984 1987) fundamenta seus estudos no campo da psicologia na
história e na sociologia. Ao investigar a relação entre pensamento e linguagem desenvolve
o conceito de desenvolvimento proximal destacando a participação criadora da criança, a
capacidade de discernimento, de tomar iniciativa, de começar a fazer sozinha o que antes
conseguia fazer com a mediação e, portanto, reconhece que a aprendizagem se na
interação com o outro. Nessa ótica, o autor compreende a criança como produtora de
cultura e re-significa o papel da brincadeira.
A contribuição de Bakhtin (1988 1998) está nas suas reflexões acerca da
linguagem fundamentadas na história e na sociologia e nos estudos em metodologia da
pesquisa em ciências humanas e sociais, formulando entre outros o conceito de exotopia,
que implica na necessidade de considerar o lugar de onde o pesquisador observa, escuta,
pergunta, mede, pois o objeto pesquisado nas ciências humanas está sempre carregado de
interesses e intenções. Para Silva et al (2005), a abordagem filosófica de Vigotski , Bakthin e
Benjamim representa uma combinação necessária para conhecer interações e práticas
entre crianças e adultos nos espaços de educação infantil e ensino fundamental escolhidos,
mas também para compreender de que modo a cultura contemporânea se manifesta nesses
espaços.
Ao investigar o significado que a literatura assume para a criança no processo de
alfabetização e letramento, buscando compreender o problema no diálogo com ela e por
meio do seu olhar, uma exigência se impôs: conhecer o perfil do ator social que está no
centro desta reflexão. Dessa forma, empreendi uma breve passagem pela construção
histórica e social da infância com a re-leitura de alguns dados, impregnada pelo olhar dos
interlocutores já mencionados e em diálogo com outros pesquisadores da infância que
encontrei pelo caminho. Os estudos referentes à infância são subsídios necessários para
lançar luzes ao problema da pesquisa principalmente porque “perceber a diferença das
visões que são possíveis ao pensarmos nas crianças pode modificar, sobremaneira, as
idéias que levantamos acerca das investigações que nos propomos a fazer com elas
(HONORATO et al, 2006 [s.p.]).
49
1.3.1 A construção da infância
Ao longo do percurso histórico que a humanidade vem trilhando, a infância tem
sido compreendida de diferentes formas. O entendimento que uma sociedade possui acerca
da criança está refletido nos espaços e objetos destinados a ela, dessa forma, vestimentas,
brinquedos, livros, ou qualquer outro elemento constituem uma espécie de enciclopédia
carregada de significados culturais que permitem perceber os diferentes conceitos
coexistentes. Para Honorato et al (2006) esses diferentes conceitos vão desde a
inexistência do sentimento de infância na Idade Média, passando pela perspectiva etapista
e faseológica que compreende a infância como mera passagem para a idade adulta com a
acumulação de experiência e conhecimento até a formulação, nos dias atuais, de um
entendimento de criança ator social, pessoa de pouca idade
34
que se apropria e recria a
cultura na qual está inserida
O historiador francês Philippe Ariès (1981), como um dos primeiros
pesquisadores da infância, realizou seus estudos baseados em iconografias (pintura,
escultura); examinou diários antigos de família, registros em igrejas e túmulos (a partir da
Idade Média), explicitando a formação e as transformações do sentimento
35
de infância e da
família em relação à organização social no correr dos séculos. O autor trouxe à luz a
formação da consciência da particularidade infantil. Ariès levantou e analisou dados que
evidenciavam a forma como as crianças eram tratadas na Idade Média e no início dos
tempos modernos, buscando compreender o sentimento dos adultos em relação à infância.
Constatou que esta era desconhecida na Idade Média, ou melhor, desconsiderada: adultos
e crianças partilhavam os mesmos espaços e atividades sem uma preocupação
diferenciada. Nessa época, a criança muito pequena não contava, pois havia uma alta taxa
de mortalidade infantil e sua sobrevivência era improvável.
Na sociedade medieval [...] o sentimento de infância não existia o que o
quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou
desprezadas. [...] assim que a criança tinha condições de viver sem a
solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na
sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes (ARIÈS,1981, p.
156).
Analisando o movimento evolutivo da sociedade e a forma com que a infância é
representada, Ariès identifica dois sentimentos distintos em relação às crianças. O primeiro
deles é a paparicação, pelo qual a criança por sua ingenuidade e graça torna-se fonte de
34
De acordo com o ECA, art.2º, criança é a pessoa até doze anos de idade incompletos.
35
Não significa gostar ou não da criança, mas a consciência de infância como momento singular da vida
humana, dotado de significados constituídos socialmente.
50
distração para o adulto. Um sentimento que provocou muitas críticas no final do séc. XVI e,
sobretudo no séc. XVII, gerando outro sentimento: o da moralização. Esta, por sua vez,
pode ser representada pela hostilidade de Montaigne
36
que considerava insuportável a
atenção que se dispensava às crianças. A paparicação teve origem no meio familiar e a
moralização, ao contrário, proveio de uma fonte exterior à família, partiu dos educadores,
eclesiásticos ou dos homens da lei, preocupados com a disciplina.
A formação da consciência da infância no séc. XVII é decorrência das
transformações constantes ocorridas nas formas de organização da sociedade. Segundo
Sarmento, a constituição de infância enquanto categoria social, na modernidade, é
“resultado de um processo complexo de produção de representações sobre as crianças, de
estruturação de seus quotidianos e mundos de vida, e especialmente, de constituição de
organizações sociais para as crianças” (2004, p. 11). O autor faz uma análise de alguns
fatores que contribuíram para o que denomina institucionalização da infância no início da
modernidade e destaca: o recentramento do núcleo familiar; a criação de instâncias públicas
de socialização da criança, especialmente a escola; a produção de disciplinas e saberes
periciais; e a promoção da administração simbólica da infância.
A criação da escola pública está associada à construção social da infância, pois em
meados do século XVIII foi constituída (inicialmente direcionada apenas para rapazes de
classe média urbana) e progressivamente ampliada com a proclamação da escolaridade
obrigatória. Para Ariès (1981, p. 232), “a substituição da aprendizagem pela escola exprime
também uma aproximação da família e das crianças, do sentimento de família e do
sentimento de infância, outrora separados”. A família passou a ser o núcleo de convergência
das relações afetivas, retomando o cuidado, proteção e estimulando o desenvolvimento da
criança, tornando-a destinatária dos anseios de mobilidade social ascendente pelo
investimento na sua formação.
De acordo com Sarmento (2004), a modernidade propiciou a elaboração de um
conjunto de procedimentos configuradores da administração simbólica da infância que
definem e direcionam a vida da criança na sociedade. São normas que não estão escritas
ou definidas formalmente, mas, estabelecidas na prática social e aceitas como adequadas.
O consenso sobre a freqüência ou não de crianças a determinados ambientes, a dieta
alimentar permitida ou proibida, a admissibilidade de participação na vida coletiva em áreas
36
Michel Eyquem de Montaigne forneceu a base para que Jean Jacques Rousseau pudesse desenvolver sua tese
sobre a bondade natural do ser humano. Ele nos chama a “atenção para a necessidade de educarmos a criança
logo cedo, para que se torne possível dar a ela a formação que seja peculiar a sua natureza. É neste sentido que
nos diz o seguinte: ‘Os filhotes de ursos e de cães mostram sua tendência natural; os homens, porém, metendo-se
desde logo em hábitos, preconceitos, leis, mudam ou se mascaram facilmente’ [I, p. 74]”. DIONIZIO, Manoel
Neto. Rousseau: um Olhar Sobre a Infância e a Educação. 2001, [sp]. Disponível em: http:
//www.unicamp p.br/~jmarques/cursos/rousseau2001/mdn.htm. Acesso em 21-01-2007
51
reservadas aos adultos (espaços culturais, ações cívicas, política). Trata-se de um código
construído socialmente que define o papel que deve ser desempenhado pela criança.
Ainda entre os fatores que contribuíram para formar a consciência da
particularidade infantil está o surgimento de um conjunto de saberes que colocou a criança
como objeto de conhecimento. Esses saberes deram origem à pediatria, à psicologia do
desenvolvimento e à pedagogia que entre outras questões buscaram focalizar a atenção à
criança e suas necessidades.
Com as transformações econômicas, políticas e culturais, a concepção de
infância e o papel social da criança também se modificaram e, de certa forma,
condicionaram a sociedade (os adultos) a compreender melhor a criança. Entretanto, ainda
é desafiador nos interrogarmos até que ponto o movimento dialético que desencadeia essas
transformações sensibiliza a nossa forma de ver e agir em relação ao outro, quando esse
outro é uma criança. Podemos perguntar-nos como vemos e tratamos efetivamente a
infância real no início desse novo milênio e qual a perspectiva de professores, psicólogos e
demais profissionais em relação aos meninos e meninas com os quais atuamos. De fato,
estamos nos posicionando em relação à criança como sujeito? Afinal, sabemos quem é a
criança do século XXI?
1.3.2 A infância na contemporaneidade
O conceito de infância difundido nos meios acadêmicos, com referenciais que
estiveram (e estão) presentes em curso de formação de profissionais que atuam com a
criança, tem na sua grande maioria, a base na psicologia do desenvolvimento. Esta traz
implícita uma concepção de infância (predominante nos dias atuais) que pode ser chamada
de romântica, pois parte do princípio de que a criança é igual em qualquer tempo e/ou
espaço, pautada na essência ou natureza infantil.
A concepção de criança baseada em uma natureza infantil atravessa as ações
da escola (e de outros espaços destinados à infância) legitimando as diferentes formas de
atuação. A infância é entendida a partir de um determinado modelo natural e igual,
desconsiderando as diferentes realidades sociais e culturais que, por sua vez, produzem
diferentes infâncias.
Sônia Kramer, em artigo escrito e publicado em 1978, explicita a visão de
infância presente no senso comum e na pedagogia:
Um conceito de criança abstrato, delineado com base em padrões fixos de
desenvolvimento, de linguagem e de socialização, uma infância definida
pela falta, por aquilo que não é, que não tem, que o conhece,
fundamentalmente, uma criança compreendida pela negação de sua
humanidade: filhote do homem, a ela cabia ser moldada ou no máximo se
52
desenvolver para ser alguém no dia em que, adulta, deixasse de ser criança
(2005, p. 16).
A autora discute essa idéia de infância habitualmente entendida em oposição ao
adulto e estabelecida principalmente pelo fator idade, pelo qual a criança é vista como um
ser que ainda não possui maturidade. Kramer assegura que o fator idade é insuficiente para
definir a infância, uma vez que esse limite estará relacionado aos papéis e desempenhos
específicos para a criança dependendo da classe social à qual ela pertence. Ela advoga em
defesa de uma infância considerada na sua dimensão de cidadã, inquestionável do ponto de
vista legal, mas longe de tornar-se uma conquista de fato. Argumenta que para ampliar o
entendimento sobre infância, levando em consideração a criança real, constituída histórica e
socialmente, a visão natural precisa ser superada porque não é possível estabelecer um
conceito global de infância se as condições de origem e contexto social de cada criança são
diferentes. Kramer (1982, p. 16) afirma ainda que “ao se adotar uma concepção abstrata de
infância, está-se [...] distanciando-a de suas condições objetivas de vida e como se estas
fossem desvinculadas das relações de produção existentes na realidade”. E ao formatar os
espaços para a criança de acordo com essa premissa está se desconsiderando as
diferenças resultantes do meio de onde ela provém.
Azevedo (2005) alerta para o fato de que uma divisão mecânica de pessoas em
função da faixa etária pode, entre outros problemas, gerar um fosso entre crianças e adultos
que poderá ser superado quando os mesmos descobrem o quanto são parecidos nos
aspectos fundamentais da vida, pois tanto os adultos quanto as crianças são, em grau
diferente, atingidos por fatores afetivos, sociais e outros, sentem dores físicas, envelhecem,
manifestam sentimentos de ciúme, ódio, amor, tristeza ou alegria, gostam de conforto,
detestam ser rejeitados, são sexuados, entre outras semelhanças que poderiam ser ainda
acrescentadas.
Fritzen (2006) apresenta as imagens de infância produzidas pela literatura
brasileira no final do século XIX, que por sua vez, influenciaram o modelo educacional
vigente. A visão de infância feliz e inocente traduzida pelo Romantismo e a imagem da
criança enquanto ser bruto que precisa ser disciplinada e ter os instintos adaptados a ordem
social:
Usando da imagem de ente não contaminado pela corrupção do mundo
moderno, o Romantismo a apresentou repetidamente na literatura, sempre
a associando à inocência angelical, cujo emblema mais notável no Brasil se
tornou “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu. Porém, embora ainda
permaneça como clichê em nossa época, a natureza anterior ao pecado e
à corrupção do mundo do trabalho e da sexualidade adultas que era
atribuída à criança, conferindo-lhe traços nostálgicos de uma estadia no
Éden indesejadamente interrompida, foi sendo alterada ao longo do século
XIX. É como ser que antecipa o adulto e que deve ser vigiado e controlado
de modo a ter seus instintos adaptados às
exigências da sociabilidade e
produção econômica que, principalmente nos discursos da pedagogia, da
53
psicologia e da psicanálise, a infância foi recebendo novas significações (p.
124).
Os discursos acadêmicos, nos dias atuais, estão buscando novas significações
para a infância em abordagens que permitam reconhecer que diferentes formas de ser
criança e que estas são constituídas no contexto histórico e social. -se que as crianças
“são, desde que nascem, sujeitos atuantes em sua realidade, atores sociais. É então a partir
dessa compreensão de criança e de seu lugar como ator social, que precisa ter seus direitos
assegurados – sendo ouvida, respeitada” (HONORATO el al, 2006, [s.p.]). O horizonte
focalizado por pesquisadores e demais profissionais que atuam com crianças apontam para
essa perspectiva de infância que surge como realidade social; mas o esforço precisa ser
intensificado, pois apesar da discussão teórica se mostrar bastante avançada, na prática, a
autoridade e o controle do adulto constituem-se ainda discurso corrente, aceito e efetivado
(com grau maior ou menor) dependendo do contexto sócio-cultural.
Não obstante, em
qualquer contexto, ela [a criança] não absorve de forma passiva a cultura, os valores, a
ideologia do meio, ela transgride-os. Essa interação infratora também contribui para que as
transformações na relação criança-adulto se efetivem.
1.3.3 Propostas metodológicas na pesquisa com crianças
Uma vez delineadas as condições que possibilitam uma abordagem outra nas
pesquisas em ciências humanas e sociais, e em especial as que almejam como sujeito a
criança, alguns autores contemporâneos realizam uma série de estudos voltados para a
infância no campo da sociologia, da psicologia e em outras áreas do conhecimento. No
artigo intitulado: Questões teórico-metodológicas na pesquisa com crianças, Silva et al,
(2005, p. 47- 48) apresentam uma parcela desses estudiosos que têm nutrido esse campo
de análise e buscam relacionar “o conhecimento teórico sobre a criança, a discussão
metodológica, o delineamento da técnica e a construção da sensibilidade do olhar”. Nessa
perspectiva, esses pesquisadores almejam suplantar “o mito do protagonismo infantil e
analisar criticamente as mudanças nos papéis e nas formas de interação entre crianças e
adultos, compreendendo a infância como categoria e as crianças como sujeitos empíricos
em interação constante” (idem).
As propostas metodológicas que se constroem sintonizadas com a perspectiva
de infância como categoria da história procuram instrumentos que ajudem o pesquisador a
evitar olhar sobre as crianças (ou jovens e adultos), capturando apenas o reflexo dos seus
54
conceitos pré-estabelecidos. Embora um estudo dessa natureza possa ter alguns pontos em
comum com a pesquisa etnográfica
37
, Quinteiro (2002, p. 41) esclarece que:
Contudo, falta por parte dos estudos etnográficos, da pesquisa participante,
do inventário dos artefatos, das produções culturais, das histórias de vida e
das entrevistas biográficas propiciar um conjunto integrado de métodos e
técnicas que possa subsidiar as pesquisas relativas à criança e à infância
no campo educacional.
Percebendo a carência de uma metodologia específica para conduzir pesquisas
com crianças, para a qual as estratégias e metodologias usualmente utilizadas em
diferentes campos se mostravam ineficientes, Leite (2006, p. 3) propõe a construção de um
procedimento diferenciado que pretende tê-la como depoente privilegiado: os espaços de
narrativa. Essa é uma proposta de pesquisa que tem como intenção rever e reformular a
atuação junto às crianças, favorecendo a captura da sua contribuição. É uma possibilidade
que implica além da mudança conceitual e metodológica, a re-significação dos instrumentos
utilizados no campo.
Somamos a estes estudos a leitura crítica de uma bibliografia que começa
aos poucos a despontar na área e a companhia lado a lado de autores
como Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin e Lev Vygostsky fez com que
construíssemos, de alguma forma, no grupo de pesquisa, estratégias
teórico-metodológicas de investigação estratégias nas quais as crianças
pudessem participar de tal forma que se constituíssem não como objeto de
estudo, mas como sujeitos co-participantes destes estudos. A estes
encontros pesquisador-criança chamamos espaços de narrativa (LEITE,
2006, p. 3).
Na proposta do espaço de narrativa, a metodologia e os instrumentos de
pesquisa estão para além da observação participante. A criança assume um papel ativo de
participante proponente, intervencionista e provocador, pois buscando ser aceita, ela está
geralmente pronta a participar e disposta a dar sua contribuição. Para Alderson (2005), as
crianças demonstram muito interesse pela pesquisa, principalmente porque “muitas delas
estão acostumadas a questionar, investigar e aceitar resultados inesperados, mudar de
idéia, e assumir que seus conhecimentos são incompletos e provisórios” (p. 426), enquanto
um grande número de adultos (pesquisadores ou não) busca o caminho mais confortável, no
sentido da confirmação de hipóteses pré-elaboradas e evitando as incertezas.
Dentro dessa ótica, a criança é sujeito de fato e de direito e participará do estudo
por opção. O pesquisador precisa consultar em primeiro lugar a própria criança para
conhecer o seu desejo e disposição em participar do estudo e então sua adesão será
voluntária e não uma imposição autoritária do adulto. A mesma preocupação em resguardar
37
Esse tipo de pesquisa baseia-se na observação direta do comportamento e do desenvolvimento do ser humano
individualmente ou em grupos e, na produção de uma descrição escrita dos resultados, mantém uma dimensão
ampla e compreensiva dos fenômenos tratados em seu enfoque cultural. A idéia de cultura é central para a
pesquisa etnográfica. SILVA, Marize Borba da e SCHAPPO, Vera Lúcia. Introdução à pesquisa em educação,
Florianópolis: UDESC, 2002.
55
seu direito de optar livremente pela participação na pesquisa recai sobre a preservação e o
cuidado com a produção da criança. Ela é autora de falas, de textos, de desenhos e
pinturas; dispõe-se a fornecer imagens, cenas, fotografia, entre outros. A questão ética e
legal deve permear todo o trabalho do pesquisador, pois é um direito assegurado pelo
art.17, cap. II do ECA: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física,
psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da
identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.
A questão ética, por ser subjetiva, está ligada ao comprometimento e a
responsabilidade do pesquisador. Entrevistar e ouvir a criança requer respeito à voz e a
opinião. E mais do que isso, é necessário que o pesquisador desarme-se dos preconceitos e
das próprias intenções sob o ponto de vista do seu objeto de estudo, uma vez que ela pode
apontar elementos até então desconhecidos, ou novas formas de ver o objeto em questão.
É preciso estar preparado para ser surpreendido e não apenas para provar as hipóteses
levantadas inicialmente, pois, ouvir de fato a criança pode significar inclusive um novo rumo
às próprias intenções de investigação. Como produtora de cultura, a criança pode relatar um
prisma imperceptível para o olhar adulto e nas respostas não-esperadas, ou não-evidentes,
colocar o pesquisador em situações desconcertantes. Ouvir a criança não significa apenas
registrar o que ela diz de forma audível. É imprescindível estar atento às palavras não ditas,
aquilo que fica “no ar”, às palavras articuladas pelo olhar, pelo movimento das mãos, do
corpo, pelo tom e pelas expressões utilizadas, ou ainda, o não querer falar. O silêncio da
criança pode ser uma resposta intencional. Para Ferreira (2005, p. 6), é preciso “levar a
sério a voz das crianças, reconhecendo-as como seres dotados de inteligência, capazes de
produzir sentido e com o direito de se apresentarem como sujeitos de conhecimento” e,
mais do que isso, o pesquisador deve “assumir como legítimas as suas formas de
comunicação e relação, mesmo que os significados que as crianças atribuem as suas
experiências possam não ser aqueles que os adultos que convivem com elas lhes atribuem”
(idem). Esta postura exige um esforço maior, uma vez que fomos ao longo da formação
acadêmica e pedagógica habituados a pensar a criança nos moldes do conceito
estabelecido pela psicologia do desenvolvimento como um ser em formação que se
desenvolve por etapas e segundo uma cronologia. Neste sentido, é muito comum olharmos
a criança como aquela que não sabe e que nada tem a contribuir.
Nas estratégias metodológicas propostas pelos espaços de narrativa pode-se
fazer uso de instrumentos como o gravador, a filmadora e a máquina fotográfica digital no
processo de captação e registro das falas e ações das crianças. Leite (2006) sugere ainda o
uso de um diário de campo. Uma espécie de caderneta onde se registram as observações e
se descrevem rigorosamente os acontecimentos evitando adjetivações desnecessárias. A
coleta dos dados por meio de filmagens, gravações e fotografias, segundo a autora, além da
56
finalidade de capturar e registrar os encontros tem ainda a possibilidade de devolutiva
38
para
que crianças e pesquisadores se vejam e reflitam sobre suas falas e ações, o que
caracteriza parte do caráter formador da pesquisa e ainda tira o sujeito do anonimato.
O tempo é um dos fatores que faz diferença nessa proposta de pesquisa. Em se
tratando de crianças como sujeitos-co-autores, na constituição dos espaços de narrativa,
pesquisador e criança precisam de tempo para estabelecer uma relação consistente e um
diálogo fértil e profundo. É preciso que ambos se entreguem a uma conversa “verdadeira”
para além das primeiras frases (feitas) e de muita disposição para buscar o significado que
ultrapasse os primeiros enunciados. É fundamental conquistar a confiança da criança e
ouvir de fato a sua voz, essencialmente porque a profundidade é o critério de validade nas
pesquisas em ciências humanas (BAKHTIN, apud SILVA et al, 2005).
Outro aspecto relevante para permitir o diálogo entre os atores envolvidos na
pesquisa, segundo Leite (2006, p. 7), é o local onde acontecem os encontros. Se a (minha)
pesquisa trata da relação entre literatura e alfabetização e, enquanto pesquisadora pretendo
compreender de que forma a criança percebe e interage com a literatura no processo formal
de aquisição da linguagem escrita, não poderia buscar a fala da criança na sala de aula,
porque “o local, por si só, é carregado de valores, regras e hierarquias que as crianças
rapidamente decodificam e essa percepção interfere fortemente em suas respostas” (idem).
As crianças com a atenção permanente ao seu redor, rapidamente percebem o que o
pesquisador quer ouvir e oferecem as respostas desejadas. Um fator que pode não
inviabilizar, mas comprometer o resultado. O ideal é que o local escolhido seja um espaço
livre, onde os sujeitos participantes sintam-se abertos a uma fala autêntica e que as crianças
não reconheçam no pesquisador um adulto típico
39
do local e possam estabelecer um
diálogo desembaraçado e produtivo.
Um dos maiores
e
ntraves na pesquisa com crianças é o “adultocentrismo”
presente em nossa sociedade, construída por e para os adultos. Segundo Leite (2006, p. 4),
buscar a criança como participante implica em trazê-la “ao palco do diálogo e buscar
estabelecer com ela uma parceria”, o que significa transgredir com o estabelecido e buscar
meios de minimizá-lo, uma vez que é impossível suplantar as relações desiguais de poder
entre adultos e crianças.
Silva et al (2005) explicitam que, para o pesquisador das ciências
humanas poder avançar, ele precisa reconhecer os próprios limites, situando o ponto de
38
A devolutiva é o momento em que trazemos novamente os textos, falas e outras produções do campo de
pesquisa para que os sujeitos possam analisar, re-organizar, confirmar ou não a autorização concedida. Também
expressão cunhada no GEDEST (ver nota de rodapé 6).
39
FERREIRA, (2005) desenvolve o conceito de adulto típico referindo-se aos adultos e suas ações esperadas, ou
o papel mínimo, de acordo com o ambiente, por exemplo, os adultos típicos da escola são: professor, orientador,
diretor, entre outros. O pesquisador precisa se colocar como atípico para afetar o outro com sua presença,
despertando interesse e curiosidade.
57
vista de onde realiza a investigação fator essencial para
derrubar o mito da neutralidade
cientifica. Uma das condições para assegurar o rigor da pesquisa é explicitar passo a passo,
não apenas os procedimentos metodológicos, como também o contexto, ou melhor, o
prisma de onde o pesquisador está analisando e atribuindo significações a sua questão de
pesquisa.
A partir dessa ótica, um dos primeiros passos foi procurar compreender-me
enquanto sujeito-pesquisador-educador, contextualizando a minha fala e a origem desta; os
conceitos e pré-conceitos imbricados e a justificativa para determinadas posturas e atitudes
do ambiente escolar que me afetam gerando a necessidade de reflexão e que até então, eu
considerava natural. Como pesquisadora, sou antes professora e filha de professor. Este é
um elemento marcante; a maior parte da minha vida estive dentro de uma sala de aula. Meu
pai foi professor de séries iniciais numa escola “isolada”
40
durante muitos anos e me colocou
numa sala de aula (mutisseriada) por volta dos dois anos de idade [...] .Constitui-me
pedagoga, a escolha da profissão não se deu por acaso.
Apesar da familiaridade com o ambiente escolar, existem algumas coisas que
me incomodam profundamente. Citando apenas algumas das que têm relação mais próxima
com o meu objeto de pesquisa: a aprendizagem da leitura e escritura na esfera escolar que
se aproxima muito mais da cópia e decifração em oposição à co-autoria e produção textual;
a literatura, que na maioria das vezes, não entra na escola enquanto arte, mas como motivo
pedagógico, e nesta perspectiva se desqualifica, perde o seu encanto, torna-se mero
instrumento de aprendizagem racional; a falta de espaço para a imaginação, tornando a
aprendizagem mecânica, estéril e desarticulada da vida da criança; e, (recentemente)
percebi que as interrogações relacionadas ao processo de alfabetização e letramento da
criança estão, geralmente, direcionadas aos adultos, pedagogos e especialistas, que a priori
são os que sabem, e não aos sujeitos envolvidos e interessados diretamente, ou seja, às
crianças. Não temos perguntado a elas como vivenciam o primeiro ano da educação básica,
quais são seus medos, suas angústias... e tampouco como percebem a presença ou
ausência da literatura no seu processo de alfabetização e letramento.
Entretanto, ciente dos limites, não somente da elaboração escrita, mas também
do enfoque aqui explicitado, reconheço que por maior que tenha sido o esforço em buscar a
contribuição da criança-depoente, ainda assim, fui eu, enquanto pesquisadora adulta, que
selecionei os dados e atribui os significados a partir de um olhar que carrega uma trajetória
situada. Afinal, segundo Silva et al (2005), os próprios “dados não são dados, mas sim
construídos [...] por trás do dado, há sempre um rosto, um corpo, um sujeito” (p. 43).
40
Nomenclatura usada para designar escolas localizadas em comunidades do interior e que abrigam as quatro
séries iniciais do ensino fundamental, numa única sala de aula.
58
O
caminho percorrido trouxe algumas respostas, incipientes em comparação ao
emaranhado de novas interrogações que surgiram e que conduzem o eu-pesquisador a não
perceber o espaço educacional da mesma forma, mas principalmente a aprender com
Walter Benjamim (2002, p. 103) a olhar o outro-sujeito-criança como um arquiteto sempre
presente num canteiro de obras, agindo, procurando e provocando desordem, pois “a Terra
está repleta dos mais incomparáveis objetos da atenção e da ação das crianças”; ou como o
artista disposto a brincar permanentemente com pincéis e tintas em busca de nuances ainda
não descobertas para imprimir no mundo a sua marca. É desta forma que a criança “grita”
revelando a sua presença e nos chamando a percebê-la.
A generosidade
41
da criança é algo muito evidente; ela está na maioria das
vezes pronta a aceitar o convite do adulto para um mergulho ao desconhecido, além disso,
segundo Ferreira (2005), as crianças são as melhores informantes do seu tempo e espaço;
são atores sociais, transformando e sendo transformados; são protagonistas competentes
das suas experiências e entendimentos do mundo que as cercam. Esses e outros tantos
motivos, mais do que justificar, revelam a necessidade de intensificar as pesquisas com
criança como uma das formas de nos aproximarmos da condição humana e compreendê-la
nas múltiplas dimensões. A criança, disposta a se entregar inteira ao momento presente
pode extrair de cada experiência conteúdos mais intensos e significativos e auxiliar o adulto
na tarefa de transformar o seu modo de ver e vivenciar as experiências humanas.
Realizei a pesquisa de campo seguindo as coordenadas fornecidas pelos
espaços de narrativa, gostaria de continuar conversando com os sujeitos participantes por
um tempo indeterminado [...], porém, foi necessário deixar o campo e realizar a análise que
apresento no capítulo II. Trago para o centro da reflexão as histórias narradas pelas
crianças, os textos poéticos construídos por elas e as suas falas e opiniões sobre a
aprendizagem da escrita e da leitura. A partir desses eventos, discuto a relação da literatura
com o processo de alfabetização e letramento.
41
Dos 21 alunos que compõe a turma convidada, obtive em alguns encontros a participação de 100%.
59
CAPÍTULO II
2 O CANTEIRO DE OBRAS OU O CAMPO DE PESQUISA
Este capítulo está organizado da seguinte forma: inicialmente trago a
contextualização do campo, especificando a escola onde a pesquisa foi desenvolvida, o
espaço físico, os instrumentos utilizados, os critérios adotados para a seleção dos sujeitos
participantes e algumas reflexões que atravessaram a temática no movimento de ação em
campo. Na seqüência, o marco decisivo deste estudo que se constitui na convergência das
falas, opiniões, histórias e poesias narradas/criadas pelas crianças em categorias de
análise. Relato ainda a maneira como o grupo foi se constituindo, mencionando as
percepções das primeiras interlocuções entre as crianças e a pesquisadora; as
interrogações pré-elaboradas que levei para o campo; a experiência de leitura da primeira
obra literária do gênero infantil com o grupo e as histórias e poesias que foram narradas
e/ou produzidas pelas crianças em momentos de criação e que deram origem às reflexões
posteriores.
Antecipo que algumas das minhas expectativas em relação aos encontros com
as crianças não se confirmaram. Uma delas está relacionada a minha experiência com a
literatura na infância. Em contrapartida, registro alguns textos inéditos que dizem muito do
momento em que foram concebidos e de seus autores e, nesse aspecto vão muito além
daquilo que eu esperava.
Vale lembrar que a proposta de problematização da tríade: alfabetização,
letramento e literatura se fez de maneira articulada sem no entanto esquecer que cada um
dos termos possui uma especificidade. Porém, não interessou, para esse estudo, aprofundar
cada elemento de forma isolada, mas sim reflexionar acerca das possibilidades que podem
advir da inserção da literatura como um elemento auxiliar no processo de alfabetização da
criança desenvolvido na perspectiva do letramento.
2.1 APRESENTANDO O CAMPO DE PESQUISA
A escola: a pesquisa de campo foi realizada com crianças, alunas de uma das
turmas da primeira série da Escola de Educação Básica Irmã Edviges. Essa unidade escolar
está situada num bairro periférico do município de Criciúma, em Santa Catarina e pertence à
Rede Pública Estadual. Atende aproximadamente mil alunos do Ensino Fundamental e
60
Médio. A primeira série do Ensino Fundamental possui 41 alunos no ano letivo 2007,
distribuídos em duas turmas, uma no período matutino e a outra no vespertino.
Como foi dito na introdução, na implementação das Leis 11.114/2006 e
11.274/2007 no âmbito federal ficou em aberto para que os sistemas pudessem optar entre
utilizar a designação série, ano, ciclo ou outro. O sistema de ensino da Rede Estadual de
Santa Catarina, ao qual a escola está vinculada, optou por continuar utilizando a
nomenclatura “série”. Portanto, o Ensino Fundamental das escolas da Rede Estadual de SC
organizam os alunos em nove delas, sendo que as duas primeiras constituem as classes
para a alfabetização. Registre-se que os sujeitos participantes desta pesquisa são crianças
da primeira série.
Os critérios:
a turma que participou da pesquisa foi a primeira série 02 que
freqüenta a escola no período vespertino. O critério que levei em conta para convidar essa
turma foi à conveniência de horário para as crianças e seus responsáveis.
Ciente de que a
pesquisa não poderia interferir no horário de aula das crianças, a opção era utilizar o horário
depois da aula; porém, para as crianças que freqüentam a aula de manhã esse tempo
coincide com horário de almoço e poderia causar transtornos aos responsáveis uma vez que
se trata de crianças que ainda não vêm à escola desacompanhadas.
Para fazer pesquisa com as crianças da primeira série que pela nova realidade
legal são crianças de seis
42
anos (relativamente pequenas) é preciso muita atenção e
cuidado. Enviei aos pais um documento detalhando data, horário e local em que os
encontros aconteceriam. Isso não funcionou, porque os responsáveis pelas crianças
esqueciam o compromisso assumido, buscando-as no horário regular. Foi necessário enviar
comunicados individuais um dia antes de cada encontro
43
.
Os nomes: em relação aos nomes das crianças, optei por mencioná-
los, completos, levando em consideração principalmente três fatores: a opinião das
crianças; o fato de que o tema abordado, as falas, histórias ou poesias das crianças
que foram convertidas em categorias de análise, uma vez registradas, não implicaria
em riscos de qualquer natureza para as crianças; e ainda como uma forma objetiva
do reconhecimento da autoria de cada sujeito participante.
Apresento, na ordem alfabética as crianças que participaram da pesquisa: Bruno
Cardoso dos Santos, Bruno Teixeira da Rosa, Elton Bacelar Josephino, Francielen Soares
Bitencourt, Isaac Borges Joaquim, Jhon Kennedy Vargas Pedroso, Josué Medeiros Albano,
42
Neste ano de 2007, como é o ano de implementação do Ensino Fundamental de nove anos, as turmas da 1ª
série abarcam alunos de seis e sete anos, situação que não ocorrerá no próximo ano letivo.
43
Foram realizados (9) nove encontros planejados e organizados e muitas outras conversas informais, antes
durante e depois da pesquisa de campo. Antes para me aproximar da turma, conhecer as crianças; durante para
acertar detalhes dos encontros; e depois para concluir a devolutiva.
61
Juliano Bittencourt Oenning, Karoline Gonçalves Porto, Lara Fabian Leacina Alves, Luiz
Filipe Alano da Silva, Luiz Filipe Pavesi Miranda, Mariany Nicolau Valim, Pamela Henrique
Locks, Rafaela Pedro Rinaldi, Rodrigo Daminelli Correa, Sarah das Almas Rebelo, Stefani
Borges Duarte, Thiago Monteiro dos Santos, Vitor Carlos Colombo e Willian Caetano dos
Santos.
Os instrumentos: para registrar os encontros com as crianças utilizei um
gravador tipo MP3, uma filmadora e um bloco de anotações que pode ser chamado de diário
de campo. Para que as crianças pudessem ter familiaridade com os instrumentos da
pesquisa, no encontro inicial, antes de qualquer coisa, fizemos o reconhecimento dos
instrumentos: elas puderam ver a câmera ligada, filmar e ser filmado, gravar e ouvir a
própria voz.
Em relação aos instrumentos, dentre aqueles que utilizei para captar imagens e
falas das crianças (e minhas), o uso da filmadora nessa experiência específica constitui-se
como o mais intrigante. Ciente de que é um instrumento que abre um leque de
possibilidades trazendo gestos e expressões que não são possíveis de perceber na
gravação, eu precisava usá-lo; porém, particularmente, o fato de estar sendo filmada me
impôs certo desconforto
44
. Percebi que na contação ou leitura de uma história, ou de uma
poesia o fato de estar sendo filmada, quebrava um pouco o encantamento que estas
poderiam proporcionar. Em contrapartida, para as crianças servia como um elemento
motivador, elas queriam aproveitar a oportunidade para marcar sua presença. Pude
perceber em muitos momentos, mas principalmente quando deixei a filmadora no tripé e
conversamos sentados em circulo no chão, de vez em quando uma delas levantava e se
dirigia até a câmera e fazia um gesto, uma pose. Além disso, quando contávamos com um
operador, a sua presença era suficiente para interferir no encontro.
Revendo o material gravado em vídeo, percebi que tivemos muitos momentos
em que esquecemos completamente que havia filmadora, gravador e nos entregamos ao
encantamento das histórias, das poesias, enfim, das palavras que fluíram e que foram
compartilhadas. Ao encerrar o encontro, eu buscava registrar imediatamente todo o
movimento efetuado, as análises possíveis e as reformulações necessárias para o próximo
encontro; pois, embora os instrumentos fossem eficientes para capturar falas e imagens, a
minha experiência, ali vivida, é que propiciaria a reflexão sobre os dados coletados. Daí ser
preciso aprimorar o registro logo após o encontro para não correr o risco de perder nuances,
impressões, vozes, gestos, enfim, dados que poderiam se mostrar importantes no decorrer
da pesquisa.
44
Essa pesquisa serviu inclusive para superar o desconforto que eu sentia em relação à filmagem ou gravação. A
experiência foi intensa e tive que ver e ouvir inúmeras vezes minha própria imagem e voz que essa ação se
tornou “natural”.
62
O ambiente: o espaço físico escolhido para esta experiência não foi uma sala de
aula. Existe na escola pesquisada um prédio que, apesar de situado no mesmo pátio, está
separado por um pequeno muro. Até 1998, abrigava as classes de Educação Infantil. Este
espaço é constituído de apenas uma sala ampla, onde estão um aparelho de televisão, um
vídeo cassete e um aparelho de DVD. É usado como sala de vídeo, de artes, de reuniões,
entre outros, e é conhecida pela comunidade escolar como a “sala do pré”. As crianças
mostram-se eufóricas quando são convidadas a ir para esse local. Percebendo a satisfação,
sugeri que fizéssemos os encontros nessa sala. Como a sugestão foi aceita, solicitei à
direção da escola a permissão para utilizá-la, fazendo os encontros nesse espaço, já que ali
ficaríamos mais à vontade.
A pesquisadora: o desejo de dialogar com as crianças foi intenso desde a
reformulação do projeto no início do curso de mestrado. Porém, eu atuo nesta unidade
escolar como professora de séries iniciais e venho trabalhando com a primeira série desde
2003, de forma que, inserida nesse contexto, fazer a pesquisa de campo com os meus
alunos não me permitiria um distanciamento necessário para uma análise depreendida ou
pretensamente crítica. Ao final do ano de 2006, me afastei das atividades em sala de aula e
convidei os alunos da primeira série vespertino, ano letivo 2007, para participar deste
estudo. Na proposta metodológica utilizada, esse é um fator que deve ser levado em
consideração, objetivando um diálogo com a criança no qual ela não esteja cerceada pelo
ambiente, nem constrangida pelo adulto (professor) e possa falar livremente.
É preciso dizer que, embora estivesse afastada da função de professor, não
consegui me descolar totalmente do papel pedagógico na atuação em campo. O que fiz foi
um exercício de estranhamento do que me foi familiar durante tanto tempo com a
oportunidade de olhar a sala de aula por outro viés. Eu me encontrava com uma turma de
crianças, que não eram meus alunos, não para “dar” aula, mas para conversar com elas e
intercambiar experiências. Em muitos momentos, agi e fui vista pelas crianças como
professora. Em outros, esquecemos a filmadora, o gravador e nos entregamos ao encanto
de uma história de ficção ou de uma poesia que arrancou aplausos espontâneos,
pensamentos profundos, os quais relato na seqüência. Estes momentos me fizeram não
apenas refletir sobre a temática, mas com a mesma ou maior intensidade, me emocionar...
A apresentação: considero que o início do trabalho de campo se deu no
momento em que foram estabelecidos os primeiros contatos com os sujeitos. Procurei me
manter atenta aos acontecimentos e aos diálogos que foram se construindo, buscando
significações, sem perder de vista, evidentemente, o foco central de análise. Quando
encontrei com as crianças pela primeira vez, iniciei o diálogo, desta forma:
Boa tarde, eu sou a Rosilene, (podem me chamar de Rosi) sou aluna
(pesquisadora) da UNESC, estou estudando e quero fazer uma pesquisa
com as crianças que quiserem participar. Eu gostaria de me encontrar com
63
vocês para conversar, ler, contar e inventar histórias [...] Eu gostaria de
gravar (filmar) para depois assistir com vocês. Queria saber quem vai
querer participar desta atividade, não vai ser no horário de aula. O que
vocês acham da idéia? Quem quer participar?
Ainda dentro da conversa inicial, na sala de aula propus às crianças que
definíssemos dentro das alternativas o melhor dia e horário para os nossos encontros.
Entramos em acordo de que ocorreriam preferencialmente uma vez por semana na quarta-
feira, após o horário regular de aula e poderiam durar de 30 a 45 minutos (ou mais),
dependendo de como pudesse fluir e encaminhar-se para diálogos produtivos ou não.
Após
a conversa inicial obtive a aceitação de 15 alunos, que estariam na dependência da
autorização dos pais, pela questão legal que ampara a pesquisa e também por se tratar de
horário extra classe. Na seqüência, formalizei a autorização dos pais, da professora
45
e da
direção da escola (vide ANEXO 2 e 3).
A devolutiva: as falas das crianças foram gravadas e transcritas. Antes de
comporem o texto final, foram devolvidas para que as crianças pudessem concordar (ou
não) com o conteúdo e a forma daquilo que foi dito e escrito. Foram possibilitados às
crianças momentos para ver as vídeo-gravações em situações de auto-análise, autocrítica e
re-construção dos textos.
A devolutiva teve dois momentos diferenciados: o coletivo e o individualizado. O
coletivo se fez assistindo conjuntamente as filmagens, re-lendo as histórias, falas e poesias,
com o grupo participando, opinando, modificando. O individual foi necessário para finalizar
os textos das crianças: fiz uma leitura marcada para que cada criança pudesse dispor da
forma mais adequada do (seu) texto. É preciso dizer que muitas coisas bonitas foram ditas e
não foram autorizadas e, então, ficaram simplesmente guardadas “para sempre” num
“lugarzinho secreto” de onde não podem ser vistas, nem ouvidas, mas... podem ser
imaginadas!
2.1.1 “[...] Agora mudei de idéia!”: a entrada em campo e as primeiras percepções
Nos movimentos iniciais da experiência de campo, percebi que embora o
primeiro encontro devesse ter um caráter formal, quando eu pretendia convidar as crianças
para participar da pesquisa e obter a autorização delas e de seus pais, essa conversa
primeira apontava elementos passíveis de reflexão. Entre as tantas vozes que se ouvem,
uma situação merece consideração, a resposta “em coro” que obtive quando perguntei se as
45
Para a professora da turma, solicitei a autorização apenas oralmente, uma vez que a pesquisa não alterava a sua
rotina de trabalho com as crianças.
64
crianças gostavam de histórias e poesias: a resposta foi “Siiiiiiiiiiiim”. Vocês querem
participar de uma pesquisa sobre literatura? O coro novamente se repetiu “Quereeeeemos”.
Percebi que as crianças responderam afirmativamente, porque em primeiro lugar
está subentendido que na escola o aluno não tem opção, alguém sugere e cabe ao aluno
acatar. Essas crianças não me conheciam e acatavam a minha proposta de imediato.
Perguntei se elas sabiam o que era pesquisa, literatura [...] a resposta em coro não veio e
falas tímidas e expressões surpresas apontaram que não. Fiz uma sucinta explicação sobre
literatura, pesquisa e sobre meu projeto. Elas ouviram e então como a assistente
pedagógica
46
havia me fornecido uma lista com os nomes dos alunos, comecei a perguntar
individualmente sobre o desejo de participar ou não do meu trabalho de investigação.
Percebi que ouve um momento de estranhamento, as crianças ficaram surpresas pelo fato
de serem convidadas individualmente. Dos 20 alunos presentes na sala de aula, quinze
decidiram participar e os demais disseram que não. Olhando de frente, chamando pelo
nome as crianças, compreendi que elas estavam dizendo “não” pelo simples fato de poder
dizê-lo. Elas queriam na verdade experimentar um exercício de autonomia de poder optar e,
embora elas dissessem que não, o seu desejo de participar era visível na expressão facial,
principalmente quando mencionei o fato de contar histórias.
Quando retornei para buscar as autorizações, três crianças que não queriam
participar me comunicaram que tinham mudado de idéia, Lara foi muito enfática na sua fala:
“você não me deu a autorização naquele dia porque eu disse que não queria, mas agora
mudei de idéia”. Providenciei as autorizações e mantive-me preparada para as novidades e
a instabilidade de “sim e “não que se seguiriam. Conclui os encontros contando com a
participação de todos os alunos da turma.
2.2 FALAS, HISTÓRIAS, POESIAS: CONSTRUINDO AS CATEGORIAS DE ANÁLISE
Embora o material registrado nos encontros com as crianças tenha inúmeras
possibilidades de reflexão, foi preciso fazer opções. As falas com e das crianças fizeram
emergir situações que, por aproximação de significados puderam ser convertidas em três
categorias de análise: a autoria na interação com a literatura; a experiência lúdica com a
linguagem poética; a alfabetização e o letramento na visão da criança.
Essas categorias surgiram a partir da fala das crianças. Em relação ao primeiro
eixo reflexivo quero destacar que a solicitação mais freqüente que ouvi das crianças durante
46
Designação do profissional que atua na Unidade Escolar e que tem, entre outras, a função de auxiliar no
atendimento da secretaria da escola.
65
os encontros foi: “Quero contar uma história”. Meninos e meninas participaram dos
encontros acreditando que teriam a oportunidade de poder contar uma, das muitas histórias
que eles conheciam. Ouviram atentamente as histórias que foram lidas, riram, se
emocionaram, se posicionaram, mas, se empenharam para garantir um espaço para narrar
a sua. A cada encontro, eu ouvia: “Eu quero contar uma história!”; “Deixa eu...”, “Hoje sou eu
[...]”. Então pude perceber que as narrativas, feitas de forma muito peculiar, preservavam a
estrutura do enredo e agregavam elementos da experiência da criança. Algumas de forma
sutil, outras mais ousadas, mas cada conto descortinava nuances de uma construção
paralela, única, personalizada. Ou seja, aflorava nesta ação uma apropriação da fala do
outro, uma experiência de co-autoria.
A segunda categoria de análise foi provocada a partir de um dos encontros em
que levei como proposta a leitura de poesias. A experiência lúdica com a linguagem poética
surgiu das tentativas que as crianças fizeram de compor textos poéticos e do quanto
pudemos rir ao brincar com as palavras de forma descompromissada, enquanto a leitura da
obra de Ruth Rocha, O menino que aprendeu a ver, tornou-se um instrumento mediador da
reflexão sobre o desconforto que angustia a criança que é pressionada a aprender a ler e
escrever de qualquer forma e o quanto antes, quando chega ao Ensino Fundamental.
2.2.1 A formação do grupo e as experiências iniciais
Marcado o primeiro encontro com as crianças que haviam concordado em
participar da pesquisa, chegamos à “sala do pré”. Iniciei a conversa e embora eu tenha
empreendido um grande esforço para não me colocar como adulto típico do espaço
pesquisado, naquele momento o meu papel de pesquisadora (adulta) me atribuía a
“obrigação” de iniciar o diálogo. Muitas seriam as possibilidades, pois estávamos frente a
frente produzindo uma análise intersubjetiva e ininterrupta. Assim como eu, as crianças
levaram para o encontro suas expectativas. Elas me dirigiam um olhar inquiridor com uma
sonora pergunta: “o que ela quer com a gente?”. Bakhtin trata da tensão discursiva que
existe em qualquer grupo, espaço social ou sociedade, e que pode ser explicada
dependendo de onde nos posicionemos” (apud GOULART, 2006, p. 454). Era necessário
administrar essa tensão e tentar conquistar as crianças para permanecerem na pesquisa
nos próximos encontros, pois elas poderiam desistir a qualquer momento, se assim o
desejassem.
Ao reunir as crianças e fazer um trabalho em grupo, cria-se a possibilidade de
emergir as falas, opiniões e sentimentos das crianças de forma mais autêntica. Mas é
preciso construir a relação de troca onde o diálogo possa avançar para além do que a
66
criança possa perceber que o adulto quer ouvir. Ela precisa sentir que vai falar e ser ouvida,
então “se apropria da linguagem, pondo-se em jogo e jogando com o que é próprio da
linguagem, a tensão entre regra e turbulência [...] além do senso de humor, suas respostas
intempestivas revelam agudeza de raciocínio, sedução, poder de negociação, colocando os
adultos diante do inesperado” (ZACCUR, 2001, p. 45).
Nesse encontro marcado, começamos pela apresentação dos sujeitos e
instrumentos da pesquisa. Levei um crachá (pronto) para facilitar a identificação, do qual o
Thiago reclama imediatamente ao recebê-lo: “aqui tem outra letra, sabia?!”, referindo-se à
letra “h” entre o t” e o “i” que eu não tinha colocado. Pouco a pouco constituímos um grupo
e passamos a tecer considerações, produzir significados e construir uma identidade coletiva
tendo como mediador a linguagem.
Antes de ir a campo preparei um roteiro com algumas perguntas que poderiam
ser abordadas durante os encontros com as crianças. Essas seriam uma espécie de fio
condutor na busca do entendimento de como a criança vive a experiência, ou qual a
percepção que ela tem da literatura no seu processo de alfabetização e letramento.
Entre as
muitas interrogações elaboradas antes do encontro e aquelas que surgiram no diálogo,
registro aquelas diretamente ligadas à temática em discussão e que se fizeram presentes
durante a pesquisa: Você gosta de histórias? Por que será que gostamos de ler e ouvir
histórias? O que você sente quando ouve uma história? Será que as histórias podem nos
ajudar a aprender ler e escrever? Como? Você seria capaz de inventar uma história? O que
é uma poesia? Você conhece alguma? O que você sente ou pensa ao ouvir ou ler uma
poesia? Você pode/quer criar uma poesia? De que forma você está aprendendo a ler e
escrever? Algumas dessas interrogações tiveram respostas e embora eu utilizasse a palavra
“você” para os questionamentos, eles eram dirigidos ao coletivo e não a uma criança em
específico.
A primeira obra que li para e com as crianças foi: Ida e Volta de Juarez
Machado. Ainda não tínhamos tido a oportunidade de falar sobre as suas histórias
preferidas, então com base em experiências anteriores optei por levar esse livro, que não
possui texto escrito: uma história contada por meio das imagens. Os acontecimentos vão se
seguindo sem que o autor aponte quem é o personagem, fator que encanta as crianças (e
adultos) porque permite múltiplas interpretações. Segundo Azevedo (2005, p.46), um livro-
imagem trabalha “com uma linguagem cheia de possibilidades”. Enquanto eu folheava as
páginas do livro, as crianças mantinham os olhos atentos aos detalhes e faziam comentários
diferentes sobre a ilustração e a seqüência dos fatos. Elas compunham a narrativa com
vozes múltiplas e como estávamos sentados no chão em forma de rculo elas se
colocavam fisicamente cada vez mais próximas a mim. Procurei criar um suspense,
perguntando às crianças se era possível contar ou escrever uma história sem palavras. As
67
falas o acontecendo, as crianças dialogam com o livro e com o grupo. Os fragmentos
registrados dão uma idéia da interação das crianças com a proposta do autor, nesta obra:
Esse livro não tem palavras [...] “(EU). “É para ler? Eu ainda não sei
ler!”(THIAGO). “Esse livro todo mundo pode ler, mesmo quem ainda não
sabe, é o livro chamado: Ida e Volta do Juarez Machado” (EU). “Ida e
Volta?” repete o Elton, em tom interrogador, ele pede: “vire, quero ver
atrás!”. “Deixa eu ver” (ISAAC). Quero ver” (MARIANY). “Deixa eu ver”
(PAMELA). O Josué afirma: “Ah! Esse livro eu vi no prézinho”. Eu pergunto:
você conhece esse livro? “Sim, mas eu não li” (JOSUÉ). À medida que
vamos folheando as páginas ilustradas, as crianças verbalizam a história:
“Saiu do banho, sem secar o pé!” (VITOR). “Sapato, roupas do Super-
homem” (JOSUÉ). “Roupas do Superman [...] tocando música” (KENNEDY).
“Ele está dançando! Dançando rock.” (ISAAC). “Pegando a sombrinha, o
guarda chuva” (JOSUÉ). “Saiu... saindo, tem cachorro, olha as pegadas
dele (ISAAC) “O cachorro está indo atrás dele!”(KAROLINE). É o cachorro
está indo atrás dele” (ELTON). “A porta fica aberta?” (BRUNO
47
) “Não é
cachorro é gato! (ELTON). “A maçã” (WILLIAN). “Olhe a curvinha, a
curvinha do dele” (LUIZ FILIPE
48
). O caroço ele jogou no lixo”
(BRUNO). “Ele tem que jogar no lixo senão é...” (BRUNO). “Pegadas do
cachorro, o cachorro faz xixi...” (KENNEDY). “Tem que achar um poste para
fazer xixi?”(EU), “é pra se esconder [...]” (JOSUÉ). O cachorro chegou em
casa” (PAMELA). “Lendo jornal, o personagem jornal” (KAROLINE). “É
uma mulher?”(JOSUÉ). “Como é que ele é?”(KAROLINE). “Quem
é?”(MARIANY). “O nosso personagem continua caminhando, vocês
imaginaram como que ele é?” (EU). “Eu acho que ele é por aqui”
(STEFANI)
49
. “Girando e quebrando a janela” (BRUNO). “Depois você vai
mostrar tudo de novo, não é?” (RODRIGO)
50
Fazendo embaixadinha, eu
sei como que é” (JOSUÈ) (O menino explica como se faz embaixadinha,
chutando a bola, sem sair do lugar ou deixá-la cair). Eu quero saber
como ele é?”(KAROLINE). “A história não mostra as pessoas, mostrou o
pezinho, a maçã, mas não mostrou o homem...” (SARAH). “Pegadas de
bicicleta” (KENNEDY). “Ah! Ele morreu!!!” (ISAAC) [...].
Esses fragmentos verbalizados dão uma idéia do enredo que vai se
estruturando, que, evidentemente é muito mais amplo do que se pode registrar apesar do
apoio da câmera e do gravador. Pude capturar o que foi dito, em parte, pois não foi possível
transcrever todas as falas das crianças que são simultâneas e paralelas, mas fico pensando
na riqueza dos pensamentos das crianças, inclusive daquelas que não falaram, mas que
acompanharam cada página do livro, andando por suas entranhas. Registrei aquelas falas
que se destacam, por estarem mais próximas do gravador, pois as crianças falam ao
mesmo tempo enquanto olham atentas o virar de cada página. Elas “caminham” atrás do
personagem que, nesse livro, não se mostra, oferecendo a oportunidade propicia para que
cada leitor construa o “seu” personagem ideal para a narrativa que se apresenta. Quanto à
ilustração, as crianças repetem o tempo todo: “deixa eu ver...deixa eu ver” elas querem e
precisam de mais tempo para ver.
47
Bruno Teixeira da Rosa.
48
Luiz Filipe Alano da Silva.
49
A menina refere-se a um personagem do seu tamanho e assinala com a mão.
50
Nós estávamos na metade do livro e o Rodrigo já perguntava se eu poderia mostrar “de novo” a mesma
história. Mais adiante, me reporto a esse gesto das crianças de ler ou contar “a mesma” história como sendo
sempre uma nova experiência. Walter Benjamim nos ajuda a compreender esse fato.
68
Para compreender a importância que a ilustração pode ter num livro para
crianças basta observar a forma com que elas direcionam o olhar à ilustração e se fixam
nela. Capturam elementos minúsculos que aos adultos passam despercebidos. Quantas
vezes eu tinha olhado essa obra... Nunca percebi “as roupas do Superman, as curvinhas
do do personagem” e muitos outros detalhes que foi possível enxergar porque olhei
com as crianças. A ilustração no texto é também texto que “não repete, mas acrescenta [...]
é a criança quem vê, é a criança quem lê, possibilidades criadas pela capacidade de
escrever/desenhar pelos olhos da infância” (MACHADO, 2007, p. 55).
O termo ilustração nos dias atuais está cedendo lugar a expressões como:
palavra&imagem, texto intersemiótico, e outras terminologias. Na literatura infantil a
linguagem visual é uma linguagem que se entrelaça com a linguagem verbal com o intuito
de promover o prazer estético. Ela é a porta de entrada para a obra e desempenha o papel
de mediador entre leitor e texto, mostrando em imagens o que o texto apresenta pela
presença ou ausência da palavra. Para Azevedo (2005), a qualidade na ilustração de um
texto de ficção consiste em apresentar imagens subjetivas, metafóricas, poéticas, arbitrárias,
fantasiosas, simbólicas, analógicas e ambíguas para possibilitar ao leitor um contato rico e
expressivo com a obra. O autor faz uma análise dos diferentes graus de relação entre texto
e imagem nas obras da literatura infantil contemporânea e constata que podemos encontrar
desde o livro-texto, sem imagens, eventualmente uma ilustração de capa, até o livro-imagem
sem texto escrito, cujo enredo é criado e construído exclusivamente através de imagens,
como é o caso da obra que escolhi para ler com as crianças.
As imagens se constituem no primeiro convite de um livro infantil, um elemento
que entusiasma o pequeno-grande leitor não apenas durante a leitura, mas influencia na
própria escolha da obra. Para Walter Benjamim (2002, p. 69), quando um livro ilustrado se
abre “não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as vai
imaginando a própria criança penetra nas coisas durante o contemplar [...]”, a magia
acontece porque, “diante do seu livro ilustrado, a criança [...] vence a parede ilusória da
superfície e, esgueirando por entre tecidos e bastidores coloridos, adentra um palco onde
vive o conto maravilhoso (idem)”.
2.2.2 “Quero contar uma história” ou a narração e co-autoria na interação com a
literatura
Quero contar uma história [...] ou a narração e co-autoria na interação com a
literatura constituiu-se uma categoria de análise por representar um pedido insistente dos
sujeitos que participaram desta pesquisa. Antes de ir a campo (como pretendia ler e contar
69
histórias) eu estava preocupada em fazer uma seleção adequada de obras literárias que
pudessem agradar os meus parceiros de estudo, mas percebi logo no primeiro encontro
que, mais do que ouvir historia ou poesias, essas crianças queriam partilhar o seu
repertório, insistindo num espaço/tempo para “contar as suas histórias”. Dessa forma, parte
do tempo em que estivemos juntos e falamos de literatura serviu para que elas fizessem
algumas narrativas. Essas narrativas das crianças foram revisadas (com e por elas) e
registradas na íntegra, observando o propósito de, em primeiro lugar, acolher a fala da
criança e a partir dela esboçar as considerações que se mostrassem relevantes no decorrer
da pesquisa.
Da experiência de contação de histórias para e pelas crianças alguns aspectos
podem ser depreendidos, entre os quais posso destacar a manifestação do desejo que as
crianças têm de serem ouvidas que é “denunciado” pelo pedido insistente de tempo/espaço
para contar uma história. Acredito que essa avidez por poder falar tenha relação tanto com
os espaços institucionais em que elas estão inseridas, desde muito pequenas, como
também com a forma que nós (adultos) tratamos/vemos as crianças no cotidiano desses
espaços, e que estão vinculadas, evidentemente, a uma concepção de infância. Outro ponto
que merece ser observado com maior atenção é o ato de narrar. O que podem revelar esses
textos oralizados de forma não planejada? Estariam, as crianças, experimentando formas de
assumir a co-autoria das histórias ao fazer ou ouvir as narrativas no grupo? Percebi que as
crianças contavam as histórias como “suas” e mais do que isso, várias crianças contavam “a
mesma” história de forma inaugural e o grupo ouvia com a mesma disposição: como se
ouvisse aquela narrativa pela vez primeira.
Nessa reflexão, está também o diálogo da linguagem literária com as diferentes
dimensões humanas, pois a interação com as fábulas, contos, personagens mitológicos,
enfim, com o encantamento dos figurantes ficcionais, possibilitam à criança (e ao adulto)
uma tomada de consciência de si mesma.
Re-faço, com Jobim e Souza, uma pergunta simples, mas que pode ter uma
infinidade de respostas: Por que contamos histórias? Como estas histórias abarrotadas de
significação potencializariam o processo de alfabetização com letramento, uma vez que a
linguagem literária, pode ser, segundo Pereira (2007, p. 32), comparada ao jogo se
considerada como atividade lúdica, realizada em estado de liberdade que, inventa seu
caminho e seu sentido e além de criar uma ordem, ele mesmo é uma ordem se constituindo
de disputa e tensão, mas também de harmonia, ritmo e regras. Dessa forma, afirma autora,
“o circulo mágico assim criado abraça outros mundos, simultaneamente reais e ilusórios,
que se sustentam na leveza do pensamento e na materialidade dos sinais gráficos e
sonoros” (idem). Reconhecendo a importância dos aspectos citados, procuro discuti-los,
buscando, por meio das narrativas documentadas, algumas pistas que me permitam
70
compreender como essa criança, do início do séc. XXI, aluna da primeira série do Ensino
Fundamental, percebe e interage com a literatura, levando em conta os pontos levantados.
Trilhando esse caminho, entendo que tais narrativas recuperam fatores importantes que
dizem respeito à linguagem literária e a sua contribuição na formação de saberes e de
sujeitos e ao compartilhar o repertório, mais do que exercitar o pensar e o sentir, as crianças
foram revelando formas contemporâneas de enxergar o mundo e de atribuir significações.
A leitura da obra de Juarez Machado, Ida e volta, foi a porta de entrada que
encontrei para me aproximar das crianças, uma vez que não havíamos conversado ainda
sobre as preferências do grupo. E foi nesse dia que perguntei se alguém queria contar uma
história, fiquei surpresa ao perceber que esse era o desejo da grande maioria, e que em
cada encontro um pedido se repetia: “hoje, deixa eu contar uma história?” (VITOR); “Eu
também quero contar uma história”(JOSUÉ), “Eu Também” (PAMELA) e outras crianças
solicitavam, optei por deixar que cada criança conquistasse o espaço e a atenção do grupo
para falar ao invés de sugerir uma ordem a elas. O Vitor e o Josué foram os primeiros a
contar história. O Vitor apresenta João e o de feijão, um dos contos de Hans Christian
Andersen que embora se desenrole no mundo fantástico da imaginação, tem a preocupação
de mostrar o problema da miséria. Para esse conto, o menino elabora a seguinte versão:
É o João e o de feijão. Eles estavam sem comida. Na casa tinha
goteira. Na barraca que o João morava tinha água. tinha aranha.
Eles não tinham nada, tinham a vaca. O João caminhou e encontrou
um grande homem e perguntou: O senhor quer comprar essa vaca? O
senhor quer trocar essa vaca por um saco cheio de feijão mágico? O
homem respondeu: eu troco essa vaca por umde feijão mágico! O João
ganhou o pé de feijão, levou pra mãe que viu o pé de feijão. O João plantou
o pé de feijão que cresceu e subiu até no céu. O João passou pela porta
e viu o gigante. O gigante falou bem assim: que cheiro de criança! ele
viu que era o Joãozinho. O Joãozinho ficou atrás dos copos e o gigante
não sabia mais o que fazer, daí o Joãozinho nunca mais ficou sem comida
porque pegou o pato e todos os ovos para ele e sua mãe. (VITOR).
Ao perceber que o Josué iria contar a “mesma” história do Vitor fiz o seguinte
comentário: essa história nós conhecemos”. Foi uma fala insensível da qual (felizmente)
as crianças não tomaram conhecimento e que tem a ver com a perspectiva inaugural da
criança fazer “de novo” a mesma coisa e apropriada para a literatura, pois “contar histórias
sempre foi à arte de contá-las de novo” (BENJAMIN, 1994, p. 205). Sem se importar com o
fato de acabar de ouvir a história do João e o pé de feijão, o Josué faz a sua narrativa:
Um dia a mãe do João foi fazer comida e não tinha. Eles tinham leite de
vaca. Daí o João estava passeando e encontrou um velho que lhe deu uma
semente de feijão, era um feijão mágico! Ele plantou o pé de feijão que ficou
grande. O Joãozinho foi até no céu e achou um castelo com um gigante.
A mulher do gigante achou o João e escondeu no guarda-comida, o gigante
queria pegar comida e a mulher dele não deixava. O gigante dormiu e
depois acordou, caiu do céu e desmaiou. O Joãozinho pegou o sapato do
gigante. (JOSUÉ).
71
O Joãozinho? Mas ele é bem grande como é que o Joãozinho vai usar o
sapato do gigante? Ele tropeça? Pergunta o Juliano.
Josué responde: Ah! Já sei! O Joãozinho acha a coisa mágica
Tanto Vitor, quanto Josué re-contam João e o de feijão, apontando outras
versões à narrativa. Os elementos evidenciados pelo Vitor estão mais voltados à descrição
da casa do João, sinalizando a situação econômica da família. Em relação à venda da vaca
ele coloca o menino como quem propõe a venda e não o contrário, invertendo os papéis dos
personagens e desmontando a história que gira em torno do fato do Joãozinho ser
enganado ao trocar uma vaca por algumas sementes de feijão. Josué também destaca a
questão da miséria, afirmando que a família não tinha comida. Conta que o Joãozinho
ganhou um feijão mágico que também não foi trocado pela vaquinha, o único bem da
família. Um dos pertences do gigante pelo qual o João se interessa é o sapato na versão
contada pelo menino Josué, que é contestada pelo Juliano: “O Joãozinho? Mas ele é bem
grande como é que o Joãozinho vai usar o sapato do gigante? Ele tropeça?”. Josué garante,
“Ele usa a coisa mágica...”. A narrativa de Josué teve colaborações relevantes: a
interferência de Juliano como interlocutor atento e crítico que participa da composição do
texto, questionando suas falas e sugerindo outras e a de Thiago que contesta a versão dos
colegas enquanto espera um momento oportuno para assumir o discurso.
A importância da voz do outro pode ser entendida na atitude do Thiago que
queria contar a história do João e o de feijão, pois em sua opinião, tanto Vitor quanto
Josué teriam contado “tudo errado”. Ele ouviu as narrativas dos colegas mostrando-se
inconformado pelas versões apresentadas. Faz uma análise atenta e minuciosa em cada
versão que ouve, aguardando a oportunidade de tornar-se o narrador com o firme propósito
de manter-se o mais fiel possível da versão da história que ele conhecia. Thiago faz sua
narrativa de maneira ininterrupta e no momento em que surgem idéias diferentes, ele as
coloca de lado, deliberadamente, mas, acaba incluindo outros elementos:
O menino chamado João que a sua mãe do João falou assim: Joãozinho
acabou a comida e o dinheiro vai até cidade vender a nossa vaquinha o
único bem que nos resta. Ele foi pro mato e encontrou um velho que falou:
com essa semente você nunca mais sentirá fome. Quando a mãe do
Joãozinho viu, jogou tudo pela janela. Na manhã seguinte, o João acordou
com muita fome, foi até o quintal e viu um de feijão enorme que chegava
até o céu, ele nem falou pra mãe, subiu e viu um castelo enorme, queria ver
mais de perto e viu uma mulher enorme também. (A mulher do gigante
complementa o Vitor) Ai a mulher falou assim para o João: menino o que
você está fazendo aqui? Você será meu escravo, mas o gigante não poderá
vê-lo, senão vai querer comê-lo. O gigante chegou e falou: sinto cheiro de
crianças vou farejar por todo lado. A mulher respondeu: não senhor é o
cheiro da comida que eu estou fazendo para o senhor. Ai o Joãozinho ficou
escondido dentro do armário, depois saiu do armário, pegou a galinha dos
ovos de ouro e uma cobra que cantava. Joãozinho saiu carregando uma
embaixo de cada braço e gritou assim: mamãe, mamãe tem um gigante
atrás de mim! Dá o machado, porque o gigante está atrás de mim. O
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Joãozinho derrubou a árvore e o gigante morreu. Eles, o Joãozinho e a mãe
ficaram felizes para sempre, a galinha botava os ovos de ouro e a cobra
cantava. Eles nunca mais sentiram fome (THIAGO).
O menino Thiago faz sua narrativa sem interrupção. É uma história relativamente
longa, mas ele não apenas consegue narrá-la de uma vez, como tem a atenção do seu
público apesar da história estar sendo contada pela terceira vez. As crianças intuem que é
“outra” história e uma experiência única. É possível perceber que as narrativas das crianças
carregam no seu percurso muito mais do que um enredo ficcional. Elas trazem elementos da
experiência da criança em constante diálogo com a obra. Isso não acontece apenas com a
linguagem literária, evidentemente. Mas, em igual proporção nas relações que as crianças
estabelecem com um mundo de coisas, e, nessa ação, segundo Benjamim (2002, p. 58),
elas estão “menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer
uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais”. O conto
maravilhoso é um produto de resíduos do qual a criança se apropria e, segundo o autor:
talvez o mais poderoso que se encontra na história espiritual da
humanidade: resíduos do processo de constituição e decadência da saga.
A criança consegue lidar com os conteúdos do conto maravilhoso de
maneira tão soberana e descontraída como o faz com retalhos de tecidos e
material de construção. Ela constrói o seu mundo com os motivos do conto
maravilhoso, ou pelo menos estabelece vínculos entre os elementos do seu
mundo.
Re-narrando uma história os meninos agregam diferentes elementos ao texto,
invertem a ordem, estabelecem relações múltiplas e, dessa forma, indicam que a linguagem
literária pode libertar o sujeito do caminho único, da certeza inquestionável, e talvez por
esse mesmo motivo pode se constituir como fonte para a formação de leitores críticos:
vivendo o desafio de interpretar vazios, ambigüidades, novas relações, novos modos de
viver, conhecer e falar” (GOULART, 2007, p. 64). Além disso, quando se trata de possibilitar
a leitura e contação de histórias para e pelas crianças no âmbito da sala de aula, Zaccur
(2001, p. 48) nos assegura que:
penetrando no mundo habitado pela palavra do outro, as crianças tomam a
iniciativa de pedir, tomar e recriar o que lhes parece belo e necessário á
vida. Em pouco tempo a criança passa de ouvinte à contadora de história.
Ao narrar costuma se valer dos recursos expressivos que apreciou e dos
quais se apropriou: a entoação, o gesto, o colorido da fala sublinhando as
passagens, chega mesmo a usar de recursos mais sutis, como a aliteração
diante do público ampliado [...].
As características que a autora menciona são facilmente identificáveis no
percurso narrativo das crianças, mas além dessas características podemos encontrar outros
elementos agregados ao enredo. Mariany nos contou a história do Chapeuzinho Vermelho.
Sua narração, da mesma forma que as histórias contadas pelos meninos, está repleta de
dados apontados por ela, revelando formas de co-autoria. Assinalo esse como um dos
73
aspectos de maior relevância que, por sua vez, podem apontar um viés ainda não pensado
numa obra produzida e reconstituída inúmeras vezes. Possuímos uma visão romantizada da
capacidade criativa e costumamos entendê-la como “um momento mágico, reservado a
alguns especialmente tocados pela arte e agraciados com a genialidade” (BARON, 2001, p.
58), quando na verdade o ato criador se constitui a partir dos elementos presentes em
nossas experiências em diálogo com o outro.
Essa foi uma das minhas expectativas em relação à narração das histórias
pelas crianças. Pensei inicialmente que elas contariam histórias inéditas, logo nas primeiras
experiências, com base, evidentemente, na minha experiência de infância, na escola, na
qual criávamos histórias para contar aos colegas e ao professor. Contrariando minha
espera, nenhuma das crianças quis inventar algo novo, pois todas as narrativas feitas por
elas são bastante conhecidas, João e o pé de feijão, Chapeuzinho vermelho, Os três
porquinhos, O leão e o ratinho e outras. São contos que fazem parte do nosso acervo
cultural e que foram e serão re-contados por rias gerações. Possivelmente, continuarão
dialogando com diferentes crianças em outros tempos e contextos. Mas foi a forma com que
as crianças narraram “suas” histórias, mostrando a novidade no percurso do conhecido que
me convenceu de que não é necessário criar algo novo, totalmente inaugural, para exercitar
a autoria, a criatividade e a imaginação. Pelos caminhos das muitas histórias já criadas e
inúmeras vezes re-contadas, existem muitos espaços vazios para serem preenchidos. O
jeito com que cada sujeito se apropria desse objeto e atribui significação é que conta. Nessa
perspectiva, perguntar-se-ia: quais idéias, pensamentos ou dúvidas desprendem-se de uma
história quando dela me aproximo? Estaríamos nós [os adultos] dispostos a ouvir uma,
duas, ou muitas vezes a “mesma” história? O que nos ensinam as crianças com este gesto?
Problematizando o conceito de autoria, não como algo que surge por “inspiração” para uns
poucos privilegiados, mas como produto de um processo rico de interações com a
linguagem, trago Chapeuzinho Vermelho, sob a interpretação de Mariany:
A Chapeuzinho Vermelho ajudou a mamãe fazer um bolo bem gostoso.
Ela colocou a cobertura de chocolate dentro de um pacote e espremeu,
espremeu e foi enfeitando o bolo. Depois a mamãe botou numa cestinha e
disse assim: Vai filhinha, não pare pra conversar com seus amiguinhos em
lugar estranho, não pela floresta. Daí ela foi. No caminho tinha uma
Bambi que estava chorando porque era o aniversário da mãe e ela não
tinha nada pra dar pra ela. Daí ela deu uma flor para Bambi dar à sua mãe.
Depois, saiu um passarinho que estava com a asinha machucada, porque
derrubaram ele. Então a Chapeuzinho Vermelho colocou geléia na asa do
passarinho. Ela chegou na casa da vovó, bateu assim: pã pã pã, pã! O lobo
disse assim: Quem é? Daí ela respondeu: Sou eu Chapeuzinho Vermelho!
Daí o lobo disse assim: é puxar a tranca. Ela puxou a tranca, entrou e
falou, ela disse assim: Oi vovozinha! Daí ela foi e quis abrir uma outra
porta para pegar úcar e fazer café para a vovozinha que falou assim:
Não mexa! Depois ela disse assim: Vovó porque esses braços tão
grandes? Pra mexer no teu lindo rostinho! Depois ela disse assim: Pra que
essa boca tão grande? Pra te comer melhor! E saiu correndo. Daqui a
74
pouco ela estava se balançando e o balanço deu bem na cara do lobo. O
lobo não morreu, apareceu um monte de passarinhos. o caçador pegou
o lobo e matou, saiu muito sangue e os passarinhos voaram e foram
embora (MARIANY).
Essa foi a versão da menina para Chapeuzinho Vermelho. Ela conhece a história
e ao contá-la insere, como foi mencionado, elementos da própria experiência em diálogo
com o enredo. Na narrativa da menina encontramos alguém “muito pobre” que não tem
nada para dar para a mãe que está de aniversário, um ssaro de asa machucada que
requer cuidados, uma menina-personagem que sabe fazer café, braços grandes no lobo que
servem para mexer no seu lindo rostinho”, o lobo atropelado pelo balanço, entre outros.
Mariany se coloca como personagem e ao mesmo tempo como co-autora da história, ela
produz um texto paralelo, significativo para as suas experiências, no qual está re-afirmando
valores e construindo significados em relação ao mundo que a cerca.
Nós somos ao mesmo tempo, personagens e criadores das histórias, diz
Jobim e Souza (2006), como personagem nos relacionamos de forma afetiva com os
acontecimentos, uma sensação que obscurece a razão. Como narradores nos colocamos no
lugar do personagem que estabelece o equilíbrio entre o sensível e o racional. Contar e re-
contar nossas histórias é uma forma de conciliar a experiência subjetiva e a condição
humana na sua universalidade. Além disso, segundo Aguiar (2007) aquilo que vivemos na
fantasia adquire uma concretude existencial, pois as experiências imaginadas acionam
sentimentos reais que mobilizam outros comportamentos e, nesse sentido, por meio da
linguagem literária, é possível descobrir a coragem, o amor, a liberdade e a capacidade para
enfrentar a dor, transferindo para o cotidiano os achados e possibilitando a transformação
da nossa própria vida. A ficção possibilita a re-significação dos nossos pensamentos,
comportamentos e valores, principalmente porque “nos textos literários pulsam forças que
mostram a grandeza e a fragilidade do ser humano; a história e a singularidade, entre outros
contrastes” (GOULART, 2007, p. 64).
Bernardo (2005, p. 20) problematiza a definição de catarse na literatura
quando o leitor se identifica com o personagem. Essa é, em sua opinião, uma definição
incompleta, pois o autor não cria um personagem com a nossa cara, mas é a transformação
ocorrida, sem perceber que nos torna ligeiramente diferentes do que éramos antes de abrir
um livro, “o processo de catarse é na verdade, o processo de reconhecimento de si mesmo
com alguém que pouco não se era, isto é, um processo de produção dinâmica,
permanente, infinita de si mesmo” (idem).
As crianças demonstraram muita disposição para esta atividade. Mesmo
saindo da escola, depois de quatro horas de aula, elas se mostravam entusiasmadas para
ler, ouvir e/ou narrar histórias. Num dos encontros, a Pamela apresentou uma versão de: Os
75
Três porquinhos e a Sarah uma versão sintetizada de O leão e o ratinho. A fábula dos três
porquinhos foi uma das mais comentadas pelas crianças. A menina faz a narrativa de uma
forma totalmente descontraída e solta, imitando os personagens:
Era uma vez três porquinhos, um fez a casinha de palha, outro fez a
casinha de tábua e o outro fez a casinha de material. Um certo dia apareceu
um lobo, que cantou assim: eu sou o lobo mau, eu gosto de pegar os
porquinhos pra fazer mingau. O lobo mau disse: abre essa porta se não eu
vou soprar, os três porquinhos disseram: não abro. Ele começou soprar fuu,
fuu, fuu! Essa casinha destruiu tudo. Daí eles foram para a casinha de tábua
que era um pouquinho mais forte, eles entraram bem rapidinho, trancaram a
porta e ficaram bem escondidinhos embaixo da cama. O lobo mau chegou,
bateu na porta e disse: abre essa porta se não eu vou soprar! Os
porquinhos disseram: não abro! Abre essa porta, se não eu vou soprar! Eles
disseram: não abro! O lobo começou fuu...cada vez mais forte. Essa
casinha destruiu. Essa não tem mais! Daí eles foram para a casinha de
tijolo, que nunca destrói e ficaram embaixo da cama. O lobo mau chegou na
porta e cantou de novo: eu sou o lobo mau, eu gosto de pegar os
porquinhos pra fazer mingau. O lobo soprou, mas a casinha não destruiu. O
porquinho falou: irmãozinhos, o lobo não vai conseguir destruir minha casa.
Ele soprou de novo e a casinha não destruiu. O lobo soprou, soprou,
cansou de tanto soprar e viu a chaminé em cima, pensou em subir pela
escada, os porquinhos escutaram, colocaram uma bacia de água quente e
fogo. O lobo subiu, caiu e pegou fogo no rabo dele, os porquinhos riram,
riram da cara dele, o lobo fugiu e os três porquinhos ficaram felizes para
sempre (PAMELA).
O Leão e o ratinho: Um dia tinha um leão com a pata encima do ratinho,
depois passou o tempo e o ratinho pensou assim: eu acho que eu também
vou ajudar o leão e cortou a rede dele (SARAH).
As meninas re-contaram as fábulas de maneira lúdica, descontraída, mas ao
mesmo tempo comprometida. Para Walter Benjamim isso nada tem a ver com os
ensinamentos morais que estão embutidos nessas narrativas, para o autor:
podemos duvidar que os jovens leitores apreciem a fábula em virtude da
moral que a acompanha, ou que utilizem para aperfeiçoar a capacidade de
compreensão, como por vezes supunha, e sobretudo desejava, uma certa
sabedoria alheia à esfera das crianças. Seguramente, os pequenos se
divertem mais com o animal que fala de forma humana e age racionalmente
do que com o texto mais rico de idéias (2002, p. 58).
A aproximação com as crianças e o contato com a linguagem literária,
especialmente com histórias consideradas do gênero infantil que conhecemos desde muito
cedo, me levou a pensar sobre as perguntas feitas por Jobim e Souza (2006, p. 1): “Por que
contamos história?” “Por que ouvimos história? A autora levanta algumas possibilidades
como a necessidade de dar ordem aos fatos cotidianos de nossa vida e de estarmos
constantemente buscando sentido para alcançarmos uma compreensão que nos convença
de uma certa harmonia. Parece que as histórias têm a missão de dar sentido à aparente
falta dele na experiência de estar no mundo, pois, cada vida é única e se constitui num
enigma a ser decifrado. Sendo assim, a ficção nos ajuda na compreensão enquanto
humanos porque por meio das histórias “todas as vozes da humanidade se encontram”
76
(idem). Além disso, quando se trata de crianças em pleno processo de alfabetização e
letramento, ler, ouvir ou contar histórias é uma das formas de exercício da imaginação que,
por sua vez, conduzem o sujeito a diferentes experiências na interação com a linguagem e
impulsionam para a construção de significados. Nesse caminho, a conseqüência mais
importante é a oportunidade para a criança progredir na capacidade de recepção e
interlocução com a linguagem literária.
As crianças que contaram as histórias ainda não estão alfabetizadas, mas
assumem a autoria no ato narrativo até mesmo porque “a função-autor não é prerrogativa
possível apenas para aqueles que aprendem ler e escrever” (TFOUNI, 2002, p. 45).
Portanto não é preciso dominar a técnica da leitura e da escrita para exercer o papel de
autor, pois esta “é uma função ligada a um tipo de discurso – isto é o discurso letrado – que,
por ser social e historicamente constituído (como, aliás, todos os discursos o são), pode
estar também acessível àqueles que não dominam o código escrito” (idem).
Quem conta um conto aumenta (ou diminui) um ponto. Nas palavras de Zaccur,
(2001, p. 48) “a criança ouvindo e recriando, intuiria que a cada conto recontado algo novo
seria apropriado?”. Talvez esse seja um dos motivos que faz uma criança, ainda que
conheça e que tenha ouvido muitas vezes a “mesma” história, insista para ouvi-la de novo.
Será que narradores ou “ouvintes [crianças] intuiriam o quanto à narrativa realimenta e
dinamiza a apropriação da linguagem, na dinamicidade que lhe é própria, implicando em
inter-ação e diálogo, espaço-tempo em movimento ao sabor de acasos e imprevistos?”
(idem).
Num dos encontros com as crianças tive a oportunidade de ler para elas
Soldadinho de Chumbo, mas o grupo também ouviu essa história na interpretação do
menino Kennedy:
Uma princesa estava dormindo no sofá. Daí a mãe chamou para dar o
presente dela. O presente era um soldadinho de chumbo. O soldadinho de
chumbo era um robô que se levantou e saiu caminhando. Muitos ratos
apareceram e pegaram o soldadinho de chumbo. Depois o soldadinho de
chumbo conseguiu pegar os ratos e jogar para a rua. A princesa estava
dentro de uma porta trancada e amarrada e teve uma hora que os ratos
viram e daí eles pegaram ela e estavam jogando dentro do fogo. O
soldadinho de chumbo conseguiu salvar a princesa e eles conseguiram sair
do castelo. O castelo caiu tudo. Chegou a hora do casamento, o soldadinho
de chumbo e a princesa se casaram. Mas, a princesa estava sonhando!
Era um sonho e ela acordou! (KENNEDY).
Quando li essa história, o menino Kennedy estava entre as crianças que não
gostaram do final, por isso ele se propôs a narrar uma versão com outras aventuras para os
personagens principais.
Voltando ao fato de que, mais do que ouvir, as crianças quiseram aproveitar
os encontros para contar suas histórias, percebo que elas deixaram muito evidente uma
77
reivindicação: preciso falar, quero ser ouvida! Essas crianças, assim como um grande
número de meninos e meninas, desde muito cedo, ocupa espaços institucionalizados e nos
quais têm acesso a livros, mídias com diferentes suportes para o acervo literário. Na escola
em que foi feita a pesquisa, por exemplo, no ano de 2007, chegaram obras literárias de
excelente qualidade e estão disponíveis para as crianças a qualquer momento. O que talvez
ainda não esteja disponível é o espaço/tempo para a criança poder falar e ser ouvida,
estabelecendo um diálogo simétrico com os outros (adultos ou crianças) que estão à sua
volta. É preciso reconhecer que a escola ainda trabalha muito mais com a idéia de que são
os adultos (o professor) que têm a dizer para as crianças e não o contrário. É o professor
que ensina, que fala, que alfabetiza... e para os alunos, aquelas respostas coletivas,
padronizadas, que registrei no primeiro encontro, nas quais “todos” respondem siiiiiiiim,
quereeeemos”, além de ser preponderante, podem traduzir a falta que a criança sente, na
condição de aluno, de poder estabelecer diálogos produtivos, necessários em qualquer
etapa de sua formação. O cômico é que uma das maiores reclamações dos professores é:
como falam essas crianças! Mas, se perguntarmos “o que elas dizem?”, possivelmente
ficaríamos sem resposta. Abrir espaços para o diálogo é um caminho a ser construído
permanentemente a literatura (na escola e fora dela) pode nos auxiliar nessa tarefa,
Jaqueline Held, nos dá um exemplo:
que sátira implacável que Pinóquio, por exemplo, nos oferece de um mundo
em que os homens não são iguais, de uma sociedade onde alguns sempre
têm fome, de uma forma de escolha aparvalhante e repressiva onde todos
devem submeter-se ao molde comum, enfim, de um universo em que o
“professor” em algum sentido em que o entendemos sempre tem razão,
simplesmente porque é o mais forte! (1980, p.169).
Ao documentar as narrativas das crianças e fazer a reflexão em torno do que
teria a literatura de elemento potencializador no processo de alfabetização com letramento,
tomando como referência à experiência realizada, percebi que as crianças têm um profundo
interesse pela literatura (assim como pela infinidade de outros objetos presentes em seu
contorno) e que nessa interação elas fazem muito mais do que ouvir, ou ler, elas de fato se
apropriam de uma história e vão paralelamente elaborando versões personalizadas,
agregando elementos da sua experiência. Percebi que as crianças contam as histórias como
sendo “suas” e mais do que isso, elas contam a “mesma” história de forma inédita. Esse
movimento de elaboração imaginativa e cognitiva pode ser entendido como os primeiros
passos na formação do leitor, cativado pela linguagem literária, e do autor que tem algo a
dizer da forma como essa linguagem o afeta. Seguindo esse caminho chegamos na
poesia... Como foi a experiência com as crianças?
78
2.2.3 “Poesia do menino, que sou eu [...]”: a experiência lúdica com a linguagem
poética
Levar a poesia para essa experiência foi uma das formas de dialogar com as
crianças, brincando com as palavras de maneira descontraída e ao mesmo tempo
provocadora. Parti do pressuposto que o texto poético pode sensibilizar o sujeito e
impulsioná-lo a reagir, a perceber a beleza e a atribuir significação, mas a experiência lúdica
com a linguagem poética somente se constituiu um eixo reflexivo porque as crianças
aceitaram a provocação e entraram na brincadeira.
Analisar o material produzido durante esse encontro significou perceber que
vários fios que se entrelaçam e se mostram pertinentes nas falas capturadas. Entretanto,
para manter o foco na questão norteadora (como a criança da primeira série do ensino
fundamental, em pleno processo de alfabetização com letramento, lida com a linguagem
literária e, nesse caso, especificamente com o texto poético) requereu, em princípio, dois
olhares diferenciados: o primeiro, sobre a prática materializada nessa experiência efêmera,
no encontro entre pesquisador e crianças; e, um segundo, de consistência teórica sobre o
objeto poesia como uma obra de arte e nas suas possibilidades de mediação entre o sujeito
e a linguagem (padrão). Esses olhares entrelaçados possibilitaram a discussão de alguns
pontos principais, que incluíram o lugar da poesia na escola e na vida das crianças-sujeitos,
o papel da poesia na formação do leitor-autor e a reflexão sobre o compromisso da poesia
com a beleza, a emoção, a ludicidade e a invenção da linguagem, libertando a palavra do
uso convencional. Buscando pistas, fui teorizando a experiência na tentativa de
compreender, entre vozes e reações, o diálogo entre a poesia e as crianças.
Tratando de poesia para crianças (sem necessidade de separação categórica),
Cunha (2005) afirma que podemos compreendê-la no âmbito de pelo menos duas correntes
principais, a lírica que abriga obras primas da literatura infantil brasileira, com autores
consagrados como Cecília Meireles, Roseana Murray, Bartolomeu Campos de Queirós e
muitos outros; e a poesia que se distingue pelo humor. Essa segunda corrente, talvez não
tão valorizada como deveria “existe em contraste com a primeira, mas não necessariamente
em oposição a ela tanto que diversos poetas transitam entre as duas” (idem p. 80). De
toda forma, compreendo que as poesias podem ser apreciadas por crianças e adultos
estejam elas incluídas em uma ou outra tendência, desde que tenham acesso a essa forma
de linguagem, dentro ou fora da escola. Como posso gostar de algo que não conheço?
Como as crianças podem gostar, construir pensamentos ou re-significar seu cotidiano com a
poesia, se na escola, quando ela aparece, está prioritariamente, carregada de didatismos e,
dessa forma, esvaziada do seu valor poético e estético?
79
Situando a poesia no contexto teórico faz-se necessário ressaltar que ela “não
constitui o adorno e o supérfluo, ou o verniz do processo educacional” (OSAKABE, 2007, p.
49), pelo contrário, deve ocupar um lugar de destaque no contexto escolar “por sua própria
constituição, que ela se apresenta como a instância que permite flagrar algumas
diferenças cujo enfrentamento trará conseqüências nada desprezíveis na formação do
aluno” (idem). No processo de alfabetização da criança, que com os estudos atuais se quer
necessariamente com letramento, a linguagem literária se configura como um elemento
indispensável no sentido de possibilitar o acesso ao código lingüístico de forma significativa,
principalmente porque “hoje tem-se bem claro que o domínio da linguagem oral e escrita e
de uma norma considerada socialmente como padrão é requisito para a sobrevivência do
aluno e sua inserção numa sociedade estratificada como a nossa” (idem, p. 47). Em
determinados momentos da nossa educação, em especial no trabalho com a alfabetização,
defendeu-se (e ainda se defende) a idéia de trabalhar a linguagem-realidade do aluno
51
na
tentativa de reduzir a distância entre o discurso da escola (padrão/científico) e o do aluno
(cotidiano) como uma forma de sanar as fragilidades do aprendizado e do uso competente
da língua. Isso é válido se considerado como ponto de partida, pois:
A história mais recente da educação lingüística tem evidenciado resultados
bastante problemáticos de um ensino desmobilizante, em que a simples
valorização da variante do aluno não lhe resolve a sua condição subalterna
de modo a prepará-lo para enfrentar as exigências de uma sociedade que
mais e mais cobra o domínio da língua escrita padrão, que se não se afirma
como superior a outra variante, é aquela que uma certa história consagrou
como veículo privilegiado dos intercâmbios necessários à integração do
sujeito (OSAKABE, 2007, p. 40).
Evidentemente, também essa linguagem padrão, que o autor se refere é
cambiante, sendo constantemente transformada pelos e para os sujeitos sociais. Entretanto,
o dialogo entre a criança (com sua cultura) e a linguagem padrão (com a qual a escola
alfabetiza) é muitas vezes uma fala improdutiva. Uma ação discursiva divergente em que o
que se fala/lê/escreve parece não ter nenhum significado para o sujeito que aprende. Para
Goulart (2006, p. 451), a constituição da linguagem escrita pela criança faz parte da
constituição geral da linguagem e se faz pela continua interação entre fala e escrita. Nesse
sentido, “as duas modalidades de linguagem verbal dialogam continuamente na perspectiva
do letramento”, além de que, no processo de alfabetização e letramento da criança é
necessário pensar de que forma é possível estabelecer uma relação entre modalidade oral e
escrita de forma que uma não se sobreponha à outra, mas que “uma contribua com a outra
para que os conhecimentos e sentidos historicamente confrontados sejam entendidos
criticamente” (idem, p. 454). Esse princípio também é válido na questão da linguagem-
51
Idéias elaboradas (e tratadas de forma reducionistas em determinados contextos) a partir das propostas de
Paulo Freire para a alfabetização de adultos trabalhadores. Sobre isso ver: FREIRE (1980).
80
realidade do aluno e aquela supostamente padrão, não é uma questão de sobreposição,
mas de possibilidade de um diálogo fecundo entre ambas, no sentido de que o sujeito
possa, de fato, compreender a linguagem e apropriar-se desta com autonomia, assumindo a
autoria do seu discurso.
Os recortes teóricos acima referidos têm como pano de fundo uma concepção
de homem como sujeito ativo, pensante e transformador. Nessa perspectiva, a criança é
vista como uma pessoa de pouca idade, mas que pensa, que cria estratégias para a sua
aprendizagem e que na interação com o outro produz conhecimento, ou seja, um sujeito que
tem a dizer do momento e das experiências que vivencia. Por esse motivo foi convidada a
ser parceira nesta pesquisa; é co-autora uma vez que suas falas, opiniões e produções
foram imprescindíveis para as reflexões e entendimentos possíveis dentro do contexto em
que o diálogo foi estabelecido dialogo, que por sua vez, determinou o enfoque de análise.
Também é relevante retratar um pouco do cenário da pesquisa para dar uma idéia mais
próxima de como pode ser a conversa com as crianças participantes e reconhecer que
mesmo quando falam “sério” elas dão um jeito de brincar, ou vice-versa. Então a brincadeira
pode nos aproximar.
Discorrendo sobre o encontro propriamente dito, é preciso dizer em princípio
que, pelo percurso que havíamos trilhado até o momento, tínhamos conquistado certa
intimidade. Sentados em rculo, no chão, ficamos muito à vontade e de vez em quando
uma das crianças tocava meu cabelo, ou fazia algum outro gesto de carinho. Para iniciar a
conversa daquele dia perguntei às crianças: Vocês sabem o que é uma poesia? O Bruno
52
responde: eu não sei, não”. Vocês conhecem alguma? Algumas crianças respondem sim,
outras não, outras devolvem a pergunta: poesia? O que é isto? Lara, por sua vez declara:
“eu sei o que é uma poesia!”, e roubando a cena começa a recitar a que ela conhece:
Eu queria ser poeta
Mas, poeta, não posso ser,
Porque poeta pensa muito
E eu só penso em você!
Ao perceber que o grupo apreciou a sua poesia, Lara recitou mais duas vezes
e todos ouviram encantados. Percebi que o que importava naquele momento era a forma
como ela se entregava à interpretação daquele pequenino texto e nos oferecia como um
presente com a voz suave, mas com uma autoridade absoluta. Era possuidora de algo que
tornava aquele público seu” por alguns instantes; o público parou, ouviu, se emocionou e a
aplaudiu, foi um momento de êxtase! A menina inaugurou o encontro daquele dia
surpreendendo, colocando emoção ao recitar o seu poema. Foi também uma conquista de
espaço, de poder, de aprendizado e de autonomia, pois fazer a narrativa era uma forma de
52
Bruno Teixeira da Rosa.
81
compartilhar sua tradição, seu repertório cultural. Com esse gesto ela desperta no grupo a
vontade de querer participar, principalmente porque “palavra puxa palavra, idéia evoca idéia,
criação realimenta criação” (ZACCUR, 2001, p. 33). Ouvir a Lara fez com que as outras
crianças quisessem revelar seus “guardados”. O Bruno
53
foi o primeiro a se manifestar, ele
diz não conhecer nenhuma poesia, mas uma música, “a da Isabel e do Renato” e pergunta
se poderia cantar um pedacinho, mas, como o grupo não lhe concede espaço, a “sua”
música aguarda outra oportunidade, sem constrangimentos.
Retomo a palavra para dizer às crianças que trouxe algumas poesias.
Pergunto, inicialmente se posso fazer a leitura de uma poesia escrita por Manoel de Barros
e chamada O menino viu o sol. Como a resposta é afirmativa, faço a leitura pausadamente e
as crianças ficam em silêncio.
O menino viu o Sol
se encolher por dentro de um inseto.
Era muito perigoso que o sol
estourasse dentro do inseto.
Ia ser um estrondo.
O menino, com medo,
se escondeu atrás da porta.
Mas o inseto continuou bem na flauta
a dar voltas pelo jardim.
E o estouro não aconteceu.
Depois o menino viu
que o Sol nem cabia no inseto!
Isso era.
Termino a leitura e elas permanecem em profundo silêncio... Buscando as falas
das crianças, pergunto “vocês querem que eu leia novamente?” Com esse gesto obstruo um
momento de fruição! Não era necessário perguntar. Eu fiz de fato a leitura do poema
novamente e poderia ter feito sem quebrar o encantamento da leitura inaugural da mesma
forma que fez a menina Lara, uma, duas, três vezes [...] sem perguntas, ela simplesmente
recitava. Analisando essa atitude, me perguntei, se teria o aspecto pedagógico se
sobressaído e cobrado um retorno imediato e mensurável daquilo que não tinha como
proposta ser medido. Por quantas vezes podemos repetir esse gesto na sala de aula,
quando levamos um texto poético, uma história de ficção e ao invés de possibilitar que
sejam simplesmente desfrutados, vamos interpelando os alunos com inúmeros
questionamentos? Por que o silêncio das crianças me incomodou? Como conter uma
postura didático-pedagógica tão arraigada em nossa formação? Um momento de deleite, de
introspectividade, teria eu interrompido? Teríamos necessidade de tempos diferentes para
ouvir e escutar; pensar e compreender; olhar e ver? O tempo da criança é diferente do
adulto? Prestando mais atenção nesses aspectos, fiz a leitura de Quadrilha de Carlos
Drummond de Andrade
:
53
Bruno Teixeira da Rosa.
82
Quadrilha
João amava Tereza que amava Raimundo
Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém .
João foi para os Estados Unidos, Tereza para o
convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
Que não tinha entrado na história.
Observando a forma como as crianças ouvem o texto poético foi possível
perceber que elas vão construindo as cenas imaginativamente. Meninos e meninas ouviram
atentamente a poesia Quadrilha e me olhavam curiosamente. Em alguns momentos
repetem em tom de voz baixo pequenas partes do texto. Quando termino, elas caem na
risada!!! Quando o riso cessa, e talvez, inspiradas pelo clima de romance da poesia, as
crianças começam a cantar uma música, comandada pela voz do Luiz Felipe
54
e da Sara,
repetindo várias vezes o seguinte trecho: Se quiser, sempre que quiser um beijo eu vou te
dar, sua boca vai ter tanta sede de me tomar [...]”. Então, um poema surgiu,
espontaneamente, em forma de canção! E depois de muita cantoria, algumas crianças
suspiraram profundamente. Aproveito o clima e apresento a elas, outra poesia, a de Sidônio
Muralha:
Boa Noite
A zebra quis
ir passear
mas a infeliz
foi para a cama
- teve que se deitar
porque estava de pijama.
Para Aguiar (2007, p. 18) na etimologia da palavra verso está o movimento da
linguagem voltada para si mesma, uma “linguagem que escava o caminho para o seu
interior” e nesse movimento estabelece relações importantes “com o ritmo, a sonoridade e
os efeitos de sentidos, presentes nos jogos lingüísticos e estruturais da composição, que
dão margem a inúmeras interpretações, possibilitando as mais variadas leituras” (idem).
Possibilitar o diálogo entre a poesia e a criança no processo de alfabetização e letramento é
criar condições para que ela possa pensar sobre a linguagem como um objeto vivo e
dinâmico e sobre a produção dos significados inerentes a ela. Além disso, viabilizar o
acesso ao acervo produzido pode ser um compromisso da escola, e entenda-se o acesso
amplo e irrestrito para não incorrermos no equívoco de defender “para poucos [...] o domínio
e o acesso aos objetos mais sofisticados da cultura; à grande massa, só aquilo que ela pode
assimilar, logo, literatura de quinta linha” (OSAKABE, 2007, p. 48). Entendo que mais do que
ler e ouvir poesias feitas para ela ou não, a criança pode ser provocada para experimentar a
54
Luiz Felipe Pavesi Miranda.
83
criação do texto poético, por isso, após a leitura das poesias, convidei-as para criarem
textos ou ensaiarem composições com palavras que chamaríamos de poesia. Entre risos e
gracejos, o convite é aceito pelo Josué, Vitor, Bruno
55
, Bruno
56
, Thiago, Sara, Willian e
Rodrigo que se mostravam dispostos a brincar com as palavras, inclusive algumas crianças
demonstram estar preparando seus textos (mentalmente) desde os momentos iniciais
quando foram sensibilizados por Lara.
Enquanto as crianças produziam suas falas, foi possível perceber que o seu
gesto criativo surgia tomando como suporte suas experiências. Estas experiências re-
instauravam uma nova ordem e se revestiam de outros significados. Cada palavra
pronunciada revelava uma tentativa de estabelecer ritmo, musicalidade e graça. De alguma
forma, o contato com a poesia “produz no leitor, como qualquer obra de arte, uma
percepção nova sobre determinada experiência, ou constitui ela própria uma experiência
sempre renovada, como se guardasse sempre o frescor de sua criação” (OSAKABE, 2007,
p. 49). A impressão que tive é que o envolvimento ainda pode ser maior, no sentido de um
sujeito sensibilizado projetar palavra sobre palavra e criar uma obra” sobre outra. Trago as
poesias que foram ensaiadas naquele encontro e que tiveram a oportunidade de serem
revisadas por seus autores, na devolutiva, antes de compor esse texto. O Josué, havia
contado uma história em outro encontro e mostrava-se confiante para ser o primeiro a
compor a sua poesia que vai chamar de Mulher atrás do gato:
Mulher atrás do gato
O gato
Pulou na janela,
Saiu correndo...
A mulher correu
Atrás do gato,
O gato fugiu.
O cachorro foi atrás
E mordeu
O rabo do gato!
Ouvindo uns aos outros, pensando e expressando seu pensamento, as crianças
vão produzindo (oralmente) textos significativos. O Josué faz uma composição sobre o gato
e inspira os colegas a pensar em outros animais e então um festival de poesias vai surgindo,
uma atrás da outra, nas quais, gato, rato, cachorro, tornam-se os elementos inspiradores:
elas têm caráter humorístico, algumas crianças querem deliberadamente provocar risos. As
composições possuem originalidade e dizem muito das experiências vividas por cada uma
delas e das tentativas de articular as idéias e compartilhar com o outro. Os bichos começam
a aparecer nos textos improvisados de variadas formas e tornam-se excelentes motivos
para exercitar a imaginação. A imaginação que se revela no ato da criação. A zebra de
55
Bruno Teixeira da Rosa.
56
Bruno Cardoso dos Santos.
84
Muralha que “quis ir passear, mas teve que ir pra cama, porque estava de pijama” foi quem
“abriu a porteira” para os bichos entrarem na imaginação das crianças! O Vitor inventa a sua
poesia falando de ratos e gatos, que têm na vida real” relações perigosas que os adultos
têm dificuldade de perceber:
Janela
Uma janela
Matou o rato,
Outro rato veio.
O gato fugiu
E bateu na ração
Mulher atrás,
Saiu de casa
Dez vezes
E não viu nada
Até que, enfim,
Viu...
Como vimos, o texto do Vitor assinala de forma sutil e bem humorada uma crítica
a falta de atenção dos adultos. Cunha nos lembra que uma das “maiores armas do humor é
justamente apresentar, por trás da despretensão e da irreverência, uma visão crítica, um
olhar de estranhamento, uma nova forma de pensar o mundo e revelar seus absurdos, suas
contradições, suas injustiças” (2005, p. 88).
O Bruno
57
faz um esforço tentando resgatar da memória um verso pronto, faz
movimentos faciais revelando que não conseguiu lembrar de nada, então, tenta criar,
improvisa um título e narra, segundo ele, um episódio ocorrido com seu animal de
estimação:
A cachorra e a mosca
A mosca foi atrás da cachorra.
Quando o cachorro nasceu...
Da cachorra mãe.
A cachorra morreu
O filhotinho?
Morreu também.
A mosca soltou veneno
Saiu uma fumacinha...
Ouvindo o Bruno Cardoso e o Thiago, pensei: estariam eles utilizando a relação
gato-cachorro para falar da repetição, do infindável retorno das coisas. Não sei se foi essa a
intenção, talvez isso não tenha tanta importância quanto o fato de poder exercitar a
linguagem de forma lúdica e autônoma, de assumir a autoria do seu discurso e poder
partilhar formas de pensamento que foram se traduzindo em poesias:
Gato e cachorro correm
Era um gato e um cachorro
Eles viviam, viviam
Brigando
57
Bruno Teixeira da Rosa.
85
Brigando
Brigando
A dona deles disse:
Vai pra fora gato!
Em vez de o gato ir, o cachorro foi
Ela disse: vai pra fora gato!
O cachorro voltou...
O Gato,
Estava correndo.
O cachorro comeu o gato.
O cachorro vomitou,
O gato saiu da boca dele
E comeu o rato!
A Sarah faz uma poesia que fala de amor, encontrando outro motivo para
exercitar a linguagem poética. O Juliano, o Rodrigo, o Willian e a Rafaela também deixam os
animais de lado para pensar na vida e na morte. Suas poesias
58
falam das dúvidas que
perpassam a existência humana, revelando a forma como a criança atribui significação ao
que vivencia ou ao que toma conhecimento ouvindo os adultos. O pensar sobre o vivido nos
leva a re-criação e nesse movimento ininterrupto vamos nos constituindo sujeitos, assegura
Zaccur (2001, p. 33). Para a autora no sentido original da palavra Poiesis está a
possibilidade de “um espaço de continua recriação, sem separação: entre o fazer e o
pensar, entre o inato e o adquirido [...] imagem de permanente mudança mundo e seres
humanos permanentemente inacabados”. As crianças capturam o pacto da poesia com a
emoção, com a beleza e com as coisas que fazem sentido e manifestam em forma de rimas,
repetições, elas acham graça dos próprios textos. A Sarah elaborou seu texto, desta forma:
Amor
Meu amor é legal
Eu nunca queria abandoná-lo
Se eu o abandonasse
Meu amor iria morrer
O Rodrigo criou um texto que, segundo ele, tem a ver com a sua historia:
Poesia do menino
Que sou eu,
Que vai para a escola,
Que os dois avôs morreram,
Que o meu tio Rodrigo
Também morreu
Porque botou a mão na tomada.
Estava brincando
58
O Juliano e a Rafaela não criaram as poesias que são aqui apresentadas naquele encontro. O Juliano construiu
seu texto no momento em que vivenciava a perda do avô. A Rafaela diz tê-la feito em casa e perguntou se
poderia colocá-la no meu trabalho, uma vez que durante os encontros ela não quis nem contar histórias, nem
criar poesias porque ficou com vergonha de falar. Assegurou-me que é autora das idéias que foram organizadas
por sua irmã que está na sexta série do Ensino Fundamental.
86
Com seu amigo
Em Tubarão.
Tinha seis anos.
O amiguinho foi embora,
O meu pai estava vendo bois,
O meu pai já conhecia minha mãe,
Mas eu nem tinha nascido.
Eu queria meu tio, de novo,
Ele era engraçado,
Bobalhão!
O William
59
se dirige ao avô (já falecido) poeticamente para comunicar-lhe que
“já sabe ler”:
Eu queria meu avô
Que já morreu.
O nome dele
É Zequinha.
Assinado:
Willian,
Vovô
Eu já sei ler!
Uma poesia singela, produzida a partir da matéria prima mais cara para o sujeito:
a sua própria vida, a sua história e o seu momento de experiência. Com sensibilidade
podemos apreender o que este pequeno–grande texto pode revelar sobre o seu autor e
perceber que ao transformar aspectos da vida cotidiana em poemas a criança está tirando
os elementos do contexto trivial para transformá-lo em elemento de reflexão. Sentimentos,
medos e frustrações são re-significados ao serem anunciados de forma autêntica nas
composições poéticas das crianças, é isso que faz Rodrigo com a poesia acima. O menino
pensa sobre a sua vida e sua história, trazendo para o centro de reflexão pessoas
importantes que sequer conheceu pessoalmente, mas que fazem parte da sua vida e
partilha a experiência. Já o Juliano, no texto a seguir, transforma em poesia a dor que sentiu
por ocasião da morte do seu avô:
Poesia pro meu avô Barriga
O meu avô morreu
Parou seu coração
Ele foi para o caixão,
E foi pro cemitério
Eu chorei,
Chorei,
Chorei muito.
O nome dele é
Altair.
59
Em final de outubro (quando a pesquisa de campo havia sido concluída) o William, veio falar comigo e me
pedir a sua poesia, fiz uma cópia e entreguei a ele. Uma semana depois, a sua mãe me relata, emocionada , sobre
o gesto do menino que por ocasião do dia de finados, levou a poesia ao cemitério e leu em frente ao tumulo do
seu avô.
87
Rafaela me entregou o texto abaixo e sugeriu: “coloque esta poesia no seu
trabalho!”. Ciente da proposta de ter as crianças como co-autoras, entendi que deveria
registrá-lo, reconhecendo que o que mais me chamou atenção na ação da menina foi o fato
de que ela se deu conta de que não teve participação de fala no decorrer da pesquisa e foi
buscar uma forma de se fazer presente, vencendo a própria timidez.
O que serei
O que serei?
Serei carpinteiro
60
Ou marceneiro
O que serei?
O que serei?
Serei cantor
Ou ator
O que serei?
O que serei?
Serei atleta
Ou poeta
O que serei?
A experiência com as crianças traz a impressão (para não dizer certeza) de que
elas têm maior facilidade para lidar com o texto poético por não ter vergonha de criar
poesias, ainda que seus textos possam parecer, aos próprios olhos, sem graça e
desengonçados. E que talvez a melhor parte está exatamente em perceber que ela [a
poesia] quando está nascendo, nem seu autor pode imaginar onde vai parar! As crianças
não se importam de passar muito tempo pensando em coisas desimportantes
61
, de falar de
qualquer coisa, pois o mundo está cheio de coisas que elas ainda vão descobrir. Piacentini
(2003) diz que “a palavra poética, a palavra literária, voa e faz voar gentes e reinos” (s.p.) e
as crianças parecem perceber isso intuitivamente. A autora, afirma ainda que a poesia
genuína, aquela que tem compromisso com a beleza, a emoção, a invenção da linguagem
ou a poesia que mostra a palavra em "estado de arte" liberta da relação convencional com a
linguagem em que as palavras vão e vêm batidas de rotina e perseguidas por todo tipo de
molde. Os gatos, cachorros e ratos que entraram na poesia das crianças já não são mais os
mesmos. Esses bichos se emanciparam, ganharam vida própria e permanecerão na
lembrança daqueles que o viram desfilar enquanto eram narrados pela linguagem poética
que possibilita ver o mundo e suas coisas por múltiplas formas.
Ouvir, gravar e transcrever a poesia de cada criança, bem como as muitas falas
paralelas e simultâneas, foi um exercício de muita reflexão. Além de documentar
cientificamente os textos que foram produzidos, foi possível perceber que a contribuição da
linguagem literária no processo de alfabetização e letramento da criança extrapola, e muito
60
Perguntei a Rafaela porque ela fez a poesia usando o masculino, ela me respondeu: porque eu e a minha irmã
decidimos assim.
61
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. [s/p]
88
as questões estruturais da língua (padrão) transformando-se em um instrumento potente de
reflexão para o sujeito sobre si mesmo. Os textos poéticos podem falar, principalmente das
coisas “imaginárias” ou “reais” que estão relacionadas a nossa condição humana, e isso
inclui sonhos, fantasias, sentimentos, emoções, o potencial e a fragilidade de cada
indivíduo. Aprender a ler e escrever lendo e criando textos significativos que tratam dessas
coisas pode ser um caminho sólido para edificar um leitor competente e um sujeito sensível,
capaz de assumir a autoria do próprio discurso. Mas ao lançarmos mão da poesia para o
leitor iniciante é necessário esclarecer que, segundo Cunha (2005, p. 89) ela “não deve ser
feita para ensinar bons modos, ecologia, patriotismo, datas comemorativas, regras de
trânsito e acentuação, “deve ser, antes de mais nada, um espaço para o prazer, a diversão,
o encantamento com a palavra e a partir da palavra”. O texto poético precisa estar na escola
por ele mesmo, arrebatando as pessoas e as provocando para interagir com as palavras e
“usar a linguagem com mais intimidade e segurança, mesmo que jamais se torne um poeta
[...]” (idem). Encaminhar o processo de alfabetização com letramento nessa perspectiva,
inclui “a reinvenção da linguagem, a expressão da subjetividade e as singularidades próprias
do código escrito” (VARELLA, 2001, p. 33).
Necessário se faz ainda lembrar que por força de lei
62
estamos vivendo um novo
momento no Ensino Fundamental, no qual as crianças devem ingressar aos seis anos de
idade na classe para alfabetização. Portanto, mais cedo elas terão a obrigatoriedade da
freqüência, da promoção e de outras responsabilidades próprias da escolarização. É preciso
olhar com carinho para esta nova realidade, para não permitir que mais cedo, elas sejam
desapropriadas da brincadeira, da imaginação e da fantasia porque chegou a hora de
“aprender a ler e escrever”. É preciso repensar práticas cerceadoras e padronizadoras dos
movimentos e das ações das crianças no espaço escolar. Se as crianças estão chegando
mais cedo à primeira série é exatamente por esse motivo que terão mais tempo para
vivenciar o processo de apropriação do código escrito numa perspectiva lúdica, prazerosa e
significativa. Podemos iniciar os pequenos escritores/leitores buscando uma forma outra de
lidar com o código escrito e isso inclui a linguagem literária, pois “o vínculo da criança com o
texto poético começa muito cedo. As cantigas infantis e as parlendas, por exemplo, podem
ser utilizadas para introduzir as crianças, já nos primeiros anos de vida, na linguagem
poética” (SOUZA, 2004, p. 64). Ao reconhecer que as crianças possuem um repertório com
cantigas e poesias procedentes da tradição oral brasileira, indicadoras de um estágio
embrionário de literatura, podemos, então, proporcionar espaços para socialização e
ampliação desse repertório na escola, em todos os níveis de ensino.
62
As Leis 11.114 de maio de 2005 e 11.274 de fevereiro de 2006 promoveram alterações em alguns artigos
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei 9394/96 implementando o ensino fundamental de
nove anos, com o ingresso das crianças na primeira série aos seis anos.
89
2.2.4 A primeira palavra que aprendi foi meu nome...”. Aprender a ler e escrever:
criando estratégias, buscando e produzindo significados.
A abordagem do tema (a contribuição da literatura no processo de alfabetização
e letramento da criança) foi feita de duas formas: direta e indiretamente ao longo dos
encontros, continuamente buscando compreender as falas das crianças e suas possíveis
significações. Nos diálogos, por entre as frestas, tentei capturar algumas das formas pelas
quais as crianças que participaram dessa experiência se relacionam com os textos literários.
Busquei ainda perceber de que forma a literatura potencializa o processo de alfabetização e
letramento no sentido de promover maiores interações da linguagem, pois é a linguagem
que, segundo Bakhtin (2000), constitui o sujeito e exerce um papel fundamental na
elaboração do conhecimento. Além disso, falamos da experiência das crianças em aprender
o código escrito. Elas me “confidenciaram” suas estratégias para atingir o objetivo de
dominar essa ferramenta, afinal, elas têm consciência de que foram para a escola para
aprender a ler e escrever.
Os sujeitos desta pesquisa vivenciavam o período inicial do processo
formal/escolar de alfabetização e letramento, pois a pesquisa de campo foi desenvolvida no
primeiro semestre do ano letivo, e além de ouvir e inventar histórias em nossos encontros,
as crianças tiveram a oportunidade de pensar e falar sobre a forma com que cada uma está
aprendendo a ler e escrever. Na troca de experiências e no diálogo, pude perceber que
diferentes eventos contribuem para que essas crianças desenvolvam a habilidade técnica de
decifrar o código escrito, mas que elas buscam, paralela e prioritariamente, atribuir um
significado à mensagem a ser decodificada e criam formas peculiares para lidar com a
escrita e com a leitura. E é nessa perspectiva que se torna “reconhecida, igualmente, a
importância da arte literária por ser capaz de situar o indivíduo diante de si mesmo e de seu
contexto; por possibilitar-lhe a percepção de variados pontos de vista e por estimular sua
criatividade” (SARAIVA, 2001, p. 24).
Para abordar o assunto em questão, continuamos no ritmo da contação de
histórias, queríamos falar de coisa séria” brincando, então lancei mão do livro O menino
que aprendeu a ver, de Ruth Rocha, para desencadear a reflexão sobre o processo de
alfabetização e letramento pelo olhar dos protagonistas do processo. Afinal, quem melhor
poderia informar o que é estar se alfabetizando, senão as próprias crianças situadas “no
olho do furacão”. Essa escolha deveu-se também ao fato de que na metodologia utilizada,
chamada de espaço de narrativa, o pesquisador exerce uma função provocativa das
reflexões. Dessa forma, desempenhando esse papel, não fiquei à espera de que as crianças
pudessem vir a falar espontaneamente sobre o tema, mas propositadamente selecionei
90
esse texto literário porque ele possibilitaria entrar na discussão do problema de pesquisa.
O texto de Ruth Rocha, em linhas gerais, narra a experiência de João, um
menino que está indo para a escola para aprender a ler e escrever e que percebe no
universo em que está inserido, coisas que ele não compreende. São as letras e os números
que o desafiam no sentido de tentar decifrar o que querem dizer. À medida que o
personagem vai participando das aulas e conhecendo as letras do alfabeto, começa a
percebê-las nas placas, nos cartazes e fica muito intrigado. Pergunta ao seu pai: “papai, o
que está acontecendo? Cada vez que eu vou para a escola, pintam nas placas, nos livros,
nos pacotes, nas paredes, as letras que eu estou aprendendo”. O pai então explica ao filho
que as letras estavam todas ali, era ele quem não as percebia, mas a partir do momento em
que aprendeu a ler e se apropriou de uma habilidade, abriu-se para ele um outro universo
de possibilidades.
A narrativa remete a muitos fatores que poderiam ser analisados, toma como
referência uma professora alfabetizadora que utiliza um método reducionista (bastante
criticado) que se fundamenta no exercício repetitivo, pelo qual apresenta aos seus alunos a
letra A e eles reproduzem A, A, A, e sucessivamente com outras letras. Uma história que
enfatiza a função pragmática da escrita (o menino e sua mãe precisam tomar o ônibus,
Qual? Como saber?) e trata das dificuldades de pessoas que não tem acesso à leitura para
viver numa sociedade em que o código escrito tem valor indiscutível, pois como assegura o
menino Isaac “quem não sabe ler não pode trabalhar”. Mas, para além de tudo isso, o meu
propósito ao selecionar esse texto para ler com as crianças foi seu aspecto literário: sua
forma narrativa que aborda os problemas vivenciados pela criança com a possibilidade de
discutir suas interrogações íntimas e inconfessáveis, de desvelar a sua relação com a
escola, com o código escrito e com a própria competência em processo de construção. Um
texto que fala com a criança e que compreende o seu momento. Pois, como pude observar,
a criança em determinado momento da história assume o papel de protagonista e vivencia o
episódio. Nesse caso, ela se faz João durante a narrativa, solidária nas suas dúvidas e
comemora o êxito do final feliz, no qual o personagem descobre que sabe ler. O menino
Kennedy se entusiasma com a experiência do personagem e relata que a descoberta das
palavras para ele foi semelhante ao personagem de Ruth Rocha porque “quando eu
estudava no Branca de Neve
63
todas as letras que a minha professora fazia no quadro eu
continuava vendo elas, pelo mundo”. Outras crianças falaram imediatamente após a leitura
da narrativa, a mesma frase: “eu ainda não sei ler”.
Essa história conduz às crianças a uma auto-análise, buscando compreender o
processo pelo qual estão passando. Elas olham ao redor, em busca das letras, das palavras
63
Nome da escola em que Kennedy fez a educação infantil.
91
para testarem o que são capazes de “ver”. Nos relatos das crianças, falando da sua
experiência de como estão aprendendo a ler e escrever, es o da Sarah, que afirma
saber ler e explica como aprendeu: “eu aprendi a ler, aprendendo o alfabeto, conseguia ler
tudo. Depois eu fui formando palavrinhas com o alfabeto, com o C e o A eu formei a palavra
casa”. Então perguntei a ela: “a primeira palavra que você aprendeu foi casa? Ela foi
enfática: não, a primeira palavra que eu aprendi foi o meu nome, depois dos meus irmãos:
Luana e Sabrina, eu tenho mais um irmão, mas ainda não sei escrever o nome dele”. Ao
falar da sua experiência com a linguagem escrita, a menina explica como faz a combinação
entre as letras para chegar à formação das palavras, relata as estratégias que usa e
evidencia a atribuição de significados, pois a sua “primeira” palavra é algo muito
significativo: o seu próprio nome. Essa também é a experiência da Stefani: “eu sei ler e
escrever o nome do meu pai, Jucemir e do meu irmão Talles e, é claro, também o meu”.
Magda Soares (2005) problematiza o verbo ler, intransitivo e sem complemento
quando simplesmente se refere às habilidades de decodificar palavras e frases; ler – “verbo
transitivo é um processo multifacetado: depende da natureza, do tipo, do gênero daquilo que
se lê, e depende do objetivo que se tem ao ler” (p. 30-31). Quando tratamos da
aprendizagem da leitura e da escrita poderíamos transpor essa idéia de transitividade tanto
para a escrita quanto para a leitura, pois ambas pré-supõem tal condição: a criança
quer/precisa aprender [ler] o quê?, para quê? Aprender [escrever] o quê? Para quê? As
falas das meninas oferecem uma pista dos [seus] pontos de partida ao referirem-se às
primeiras palavras que aprenderam a ler e escrever. Elas deixam explícito que não são
quaisquer palavras. Mas sim àquelas carregadas de significação que não podem ser
tratadas apenas como “objetos de mecânicas operações de decomposição e recomposição,
mas que se insiram num universo semântico de situações existenciais das quais brotem,
plenas de significados” (SOARES, 2006, p. 120).
Apontando essa perspectiva está, fundamentalmente, Paulo Freire, na sua forma
de conceber o processo de alfabetização (e a educação de forma geral) muito anterior à
discussão sobre letramento(s). Ele não foi o criador de um método de alfabetização como foi
apregoado, pelo menos não no sentido restrito que essa palavra tem sido compreendida no
universo pedagógico. Mas, ao defender sua proposta de alfabetização, incluiu-se entre
àqueles que preferem um método eclético, capaz de abarcar sínteses e análises. Freire
definia alfabetização sobretudo como um ato de criação, de conscientização e a percebia,
na prática, como um instrumento que possibilita ao sujeito a reflexão sobre a sua posição e
lugar no mundo. Foi um dos primeiros educadores a pensar a construção de uma
concepção outra de alfabetização que dá origem ao modelo ideológico de letramento.
Quanto aos métodos, eles devem estar a serviço da aprendizagem do sujeito e
não o contrário, devem ser constantemente re-inventados por aqueles que o utilizam. Nem o
92
professor nem o aluno são reféns de um (único) método, mas podem e devem utilizar
estratégias metodológicas (ou criar outras) que “assumem e respeitam o alfabetizando como
sujeito ativo que traz experiências e sabedoria que vive e sofre um lugar social” (SOARES,
2006, p. 121) num cenário onde interagem culturas, saberes e ideologias. Segundo a autora,
é também nessa perspectiva que se verifica a não neutralidade não apenas atrelada aos
métodos, mas de todo um conjunto de procedimentos, técnicas, conteúdos e objetivos que
materializam uma concepção de educação, de homem e de mundo, independente da
consciência que se possa ter sobre ela. Dessa forma, posso, enquanto professor, tanto
contribuir para “adaptar e submeter a valores, tradições, padrões de poder e dominação
quanto [...] questionar esses valores, tradições, padrões de poder e dominações” (idem, p.
122), contribuindo para a sua superação.
Outro aspecto que pude depreender não apenas das falas das crianças, mas
das formas como elas falaram sobre o assunto foi o quanto às pessoas do círculo de
relações da criança (de grande parte delas) exercem certa pressão ao “exigir”, logo no início
do ano letivo, resultados palpáveis e claros de sua aprendizagem. Karoline relata a forma
que a família dela vem ajudando-a no intento de aprender a linguagem escrita:
A minha mãe em casa às vezes me ensina, meu irmão está dando aula pra
mim [...]. Ontem à tarde quando cheguei da escola, fomos pra avó, ela tinha
um quadro de desenhar, daqueles pequenos e me deu [...], chegamos em
casa e meu irmão foi me ensinar ler e escrever, escrever emendado
64
e
fazer tarefa.
Aprender escrever é um pouco difícil, a gente mistura as letras e para
escrever sozinha tenho que primeiro saber as letras.
No relato da experiência da Karoline, percebe-se a participação da mãe, do
irmão e da avó, todos comprometidos em auxiliá-la. Esse mesmo empenho pode ser
percebido na fala do Bruno
65
, que conta a sua experiência: “antes eu não sabia ler o alfabeto
[então] a minha madrinha fez o alfabeto pra mim e colocou na minha parede e daí eu leio,
eu já sei ler todas as letras. Agora ela vai fazer os nomes, casa, tudo”.
Tenho percebido, na experiência com turmas de alfabetização, que o empenho
da família para auxiliar as crianças na tarefa de aprender a ler e escrever tem, de certa
forma, uma curta duração. A mobilização familiar (na sua grande maioria) intensa no início
do ano letivo diminui à medida que a criança consegue decodificar letras, sílabas, palavras.
Ela se com menor apoio quando conta de ler (decifrar) e escrever (copiar) sozinha.
Fico me perguntando o quanto poderíamos avançar em termos de interações e saberes se
esta empolgação primeira, demonstrada por familiares ou responsáveis (que inclusive
confere maior compromisso à escola) não diminuísse com o avançar do ano letivo e
pudesse ser percebida ao longo da vida escolar da criança. Além disso, aprender a ler e
64
A menina refere-se a letra cursiva.
65
Bruno Cardoso dos Santos.
93
escrever (no sentido técnico) é somente re-conhecer as letras do alfabeto e compreender
suas múltiplas combinações (algo que a criança faz com o próprio nome e com outras
palavras com as quais está familiarizada). É uma parcela do processo de alfabetização com
letramento que, para complicar a vida da criança, a escola tende a valorizar excessivamente
e o realiza hierarquizando o conteúdo do “simples ao complexo”. Evidentemente, esse é
reflexo de um posicionamento, político e ideológico que impõe à criança uma idéia de
dificuldade (aprender ler e escrever é muito difícil) e até de incapacidade, talvez mais
acentuado no contexto da escola pública, fazendo-a sentir-se pequena e impotente, imersa
num ambiente escolar pouco acolhedor, que não favorece a autoconfiança, como mostram
esses comentários:
“No começo da escola eu fiquei com muito medo, medo da professora ser muito
brava e de eu não conseguir aprender a ler” (JULIANO); “eu não sei ler nada e não consigo
aprender” (STEFANI); “a gente fica estudando e eu não consigo ler muito, é muito difícil!”
(KENNEDY); “no início eu fiquei com muito medo de reprovar, mas depois eu comecei a
aprender ler e escrever, aprendi o meu nome e também Criciúma” (BRUNO
66
).
As mesmas crianças que acabaram de afirmar que não sabiam “nada”, fazem
uma lista de palavras ortograficamente corretas, lêem e se dão conta: “é, eu já sei ler
algumas palavras!” (KENNEDY).
A forma como a criança percebe a escola e o seu ambiente é um dos fatores que
favorece ou dificulta o processo de aprendizagem. O que leva uma criança, na condição de
aluno, sentir-se incapaz? O quanto essa sensação real ou imaginária pode interferir no
processo de aprendizagem?
As falas das crianças revelaram ainda algumas estratégias e instrumentos que
elas criam/usam para apropriar-se do código escrito, por exemplo: “quando eu não sabia ler
eu aprendi fazendo o alfabeto com os dedos das mãos
67
que a minha mãe e o meu pai me
ensinaram” (JOSUÉ); “a minha irmã tem um quadrinho com o alfabeto emendado
68
e outro
não, ela deu os dois para mim, para eu aprender a ler” (JULIANO); eu imagino assim o C, o
A, o S e o A de novo e fico ‘vendo’
69
a palavra casa” (SARAH); eu peguei o joguinho de
letras do livro [de alfabetização], recortei e fiquei jogando, formando palavras e consegui ler”
(ELTON); “eu estou aprendendo a ler e escrever usando meu notebook (THIAGO); “a
minha tia Valdimara fez uma lista com todas as letras, assim: ba-be-bi-bo-bu [...] eu estou
lendo, mas eu não sei juntar esses pedaços para fazer palavras, e eu já vou fazer sete anos!
66
Bruno Teixeira da Rosa.
67
O menino faz uma demonstração para a turma, representando as letras do alfabeto utilizando o dedo das mãos.
68
Cursivo.
69
A menina usa a imaginação imaginação entenda-se “como experiência mental, composta por imagens e
idéias construídas pela linguagem” (CABRAL, p. 2007, p. 112).
94
(STEFANI); “eu sei ler mais que ele, o Bruno” (LUIZ FILIPE
70
) ; “verdade? O que está escrito
na tua camisa? (EU); Ah! Não sei! No outro encontro, o menino volta com a mesma
camisa e vem correndo contar: “eu sei o que está escrito na minha camisa: Braço do
Norte
71
”.
As crianças lêem aquilo que está ao seu redor, elas direcionam o olhar para o
objeto escrita e concentram esforços no sentido de identificar palavras do contexto e
compreender seu significado, numa ação volitiva de “ver” com olhar científico, focado, ou
seja “ler” lançando hipóteses, produzindo respostas aceitáveis e aproximando-se do objeto
até dominá-lo. Elas realizam esse movimento de muitas formas, incluindo esforço, vontade,
ludicidade, imaginação e criatividade, na escola e fora dela.
A alfabetização com letramento é um processo que cobra sentido e que tem
como uma das tarefas, trabalhar as competências (técnicas) da escrita e da leitura que, ao
contrário do que possa parecer não é facilmente mensurável. Portanto não é tão simples
“aferir” essa aprendizagem, ainda que se refira somente à escrita (cópia) ou à leitura
(decifração), principalmente porque ela inclui um sujeito e um caminho pelo qual esse sujeito
faz opção. Um caminho que é construído a partir das interações, dos atores sociais
envolvidos e do contexto em que se está inserido, mas a despeito de tudo isso, ainda é um
caminho exclusivo para um sujeito que é, simultaneamente, individual e coletivo. Um
processo dinâmico, complexo e multifacetado
72
que não pode ser tratado de forma
reducionista. Quase duas décadas inseridas no contexto educacional e os últimos anos
atuando especificamente nessa área me permitem inferir que a inovação teórica das últimas
décadas ainda não é consistente em termos práticos. É legitima a preocupação de Magda
Soares quando ela se reporta a uma espécie de (des)construção da alfabetização quando
se direcionam os debates e os estudos no sentido do letramento, supondo nossos
problemas técnicos com relação a aquisição da escrita/leitura resolvida. É a autora que
também reconhece o quanto as proposições formuladas por Paulo Freire foram reduzidas a
questões de “métodos” no seu sentido mais elementar, o quanto concepções profundas de
transformação paradigmática podem ser reduzidas a práticas efêmeras, a simples modismo.
Conversar com as crianças sobre o processo de alfabetização e letramento, no “agora” em
que elas estão vivenciando, representou, essencialmente, refletir com elas sobre os vários
aspectos que envolvem esse momento, encarando de frente” problemas encobertos,
disfarçados, esquecidos ou simplesmente banalizados. Impregnada pelo desejo de tentar
compreender se a literatura é, de fato, uma aliada no processo de alfabetização com
letramento, encaminho algumas considerações.
70
Luiz Filipe Pavesi Miranda.
71
Nome de um município de SC, vizinho de Criciúma.
72
SOARES, 2006.
95
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O arremate deste estudo é tarefa que realizo apenas formalmente, uma certeza
se impôs nesse percurso: é impossível finalizar! O diálogo com as crianças e o enfoque
priorizado me permitiu pensar sobre as possibilidades da linguagem literária não apenas no
processo de alfabetização e letramento, mas na formação e na vida dos sujeitos. Registrar
as histórias narradas pelas crianças, seus experimentos poéticos e suas falas e opiniões
sobre a aprendizagem do código escrito, além de indagá-las cientificamente, constituiu-se
numa oportunidade de refletir sobre o ato de ler, escrever e atribuir significados, sobre o uso
da escrita e da leitura na conquista da autonomia e da autoria; sobre as relações entre
sujeito e escola e da escola com a linguagem literária e outras questões não menos
importantes.
A urgência em aprofundar as reflexões acerca da alfabetização e do letramento
da criança, e especificamente da contribuição literária nesse processo, resulta da relevância
que a linguagem assume na constituição dos sujeitos. A literatura se apresenta como opção
privilegiada pelas características peculiares que possui e que falam diretamente ao ser ou
fazer-se humano. Enquanto patrimônio cultural ela é assimilada e transformada por nuances
pessoais, pela vontade de pensar e pelo desejo de conhecer e criar que são inerentes aos
sujeitos. Ao interrogar-me sobre o porquê da literatura desde os primeiros momentos da vida
(escolar) da criança, percebi que os textos literários não esgotam facilmente as
possibilidades. O seu exercício coloca em suspensão o mundo do leitor (e do ouvinte no
caso das crianças que ainda não sabem ler) para “transportá-los” para um outro mundo no
qual podem reconhecer os limites do próprio universo e (re)construir pontos de vistas,
valores e padrões de comportamentos por identificação ou por contraste, mas
principalmente “alcançar formas de prazer intraduzíveis ou difíceis de traduzir por meios
lingüísticos” (BRANCO, 2005, p. 103). Portanto, a leitura e a narração dos textos literários
na sala de aula (ou fora dela) compõem/ampliam o acervo pessoal de histórias, poesias,
ditos, pelos quais uma criança começa a perceber modelos de escrita e vai aprimorando o
seu critério de escolhas.
No processo de alfabetização e letramento, a linguagem literária desempenha
múltiplos papéis e o principal deles é de dar continuidade à composição do repertório que
vai se tornando cada vez mais amplo e significativo e com o qual a criança aprende a
dialogar, exercitando a fantasia e a imaginação. Ouvir, ler ou narrar uma história é apropriar-
se de um enredo que possibilita à criança oportunidades para que ela possa extrair, à sua
maneira, explicações que compõe o pensar humano, caracteristicamente ininterrupto. O
encantamento produzido pela obra ficcional captura a atenção e a emoção do ser humano,
adulto ou criança, aprisionando o tempo e o espaço para fruir uma história fantástica e
96
representam momentos extremamente criadores de significado e de conhecimento; de
elaboração e re-elaboração individual e social. Evidentemente, o prazer e o encantamento
que podemos vivenciar “não vem do significado psicológico de um conto (embora isso
contribua para tal), mas das suas qualidades literárias o próprio conto como uma obra de
arte”. (BETTELHEIN, 1980, p. 20). Além disso, “os contos de fadas, como todas as
verdadeiras obras de arte, possuem uma riqueza e uma profundidade variadas que
transcendem de longe o que mesmo um mais cuidadoso exame discursivo pode extrair
deles” (idem, p. 27).
Os contos de fadas e outras histórias estão presentes na vida de muitas pessoas
e grande parte delas começa a ouvi-las ainda no berço, ou antes. As crianças que
participaram desta pesquisa deixaram muito claro, quando elas chegam à primeira série já
dispõem de um acervo pessoal e querem compartilhá-lo. Tanto quanto ouvir ou ler, elas
querem/precisam exercitar a oralidade, fazer a narrativas das suas histórias como forma de
revelar e re-significar suas idéias, seus valores, sua cultura; e de aprender a exercer autoria,
mostrando-se capaz perante o outro.
Ao trazer as histórias narradas pelas crianças para o centro da reflexão, percebi
que elas revelaram não apenas uma reprodução estática das versões que têm acesso. O
Vitor, o Josué e o Thiago, por exemplo, contaram “a mesma história: O João e o de
feijão. Mas, cada criança ao narrar a “sua” apresentou-a de forma personificada, apontando
elementos modificadores com diferentes caminhos, finais múltiplos (felizes ou não) e nas
quais foi possível perceber um sujeito apropriando-se, protagonizando e assumindo em
muitos momentos formas de co-autoria. Foi possível observar que ao usar a imaginação, a
criança “trabalha subvertendo a ordem estabelecida, pois, impulsionada pelo desejo e pela
paixão, ela está sempre pronta pra mostrar uma outra possibilidade de apreensão das
coisas do mundo e da vida” (JOBIM E SOUZA, 1994, p. 149). É também nesse sentido, que
a inserção da criança na esfera letrada da literatura “representa o conhecimento de novos
modos de compreender a realidade, de organizá-la, abrindo-lhe as portas para conteúdos de
um novo campo de saber” (GOULART, 2005, p. 46).
Em relação à poesia, a experiência com as crianças foi surpreendente. No ouvir
o texto poético, o silêncio cauteloso, as emoções demonstradas, as risadas sem pudor... Ao
imitar o poeta e tentar fazer a sua obra a oportunidade de brincar com as palavras, como se
brinca com retalhos ou outros materiais residuais... Não tínhamos combinado, mas não
havia regras, ou melhor, uma única: todo texto criado seria chamado de poesia! Sem a
intenção de conceituar ou categorizar o objeto poesia, curtimos juntos essa experiência!
Uma experiência aparentemente simples, mas que abarca dimensões lingüísticas, estéticas
e poéticas
nas quais as crianças “não precisam despojar-se de seus conhecimentos,
linguagens, constituídas no cotidiano dos seus grupos sociais de origem” (GOULART, 2006,
97
p. 454), mas usam esse acervo para produzir outros conhecimentos, linguagens, culturas. A
criação de poesias pela criança além de revelar primor estético, sublinha a autoria e traduz
“a concepção de criança como sujeito ativo, com vez e voz, que, deixando marcas, fazendo
história e ressignificando seu cotidiano mostra-se cidadã, hoje” (LEITE, 2004, p. 35).
Pude perceber que o diálogo entre a poesia e a criança se reveste de fantasia,
de imaginação e de ludicidade. Quando brinca com as palavras, a criança imprime-lhe um
sentido que não está na busca de resultados objetivos, mas que pode representar e ir além
da realidade vivida ou imaginada, ou seja, ela produz significados e formas para
compreender e re-organizar essa realidade. A partir dessa ótica, as poesias passam a ser
vistas “não numa racionalidade lógica, mas na sofisticação da palavra como signo entre
signos, do texto como palco de construção de significados[grifo meu] (GOUVEA, 2007, p.
117). Além disso, a descoberta de si mesma pela linguagem e o compartilhamento das
experiências pessoais na produção do texto poético possibilitam à criança re-tratar a
condição humana com seus dilemas e mazelas pela lente da ficção. Um exemplo disso é a
poesia do Rodrigo que universaliza uma experiência peculiar quando fala do “menino que
sou eu... (como muitos outros) que vai à escola, que os dois avós morreram... (como muitos
outros avós que já morreram)” ou do Bruno relatando a experiência com a morte, lembrando
sua cachorrinha. As crianças falam poeticamente delas mesmas, mas falam dos muitos
“outros” presentes em cada um e nesse movimento retiram o olhar do seu ego-centro para
poder olhar também o outro. Esses aspectos tornam-se relevantes porque estão
diretamente relacionados aos sentimentos e as emoções da criança, embora na escola,
muitas vezes, fazemos de conta que eles não existem.
Interpretando a manifestação do desejo das crianças em poetizar suas
experiências cotidianas, faço das palavras de Ricardo Azevedo (2005) as minhas, para dizer
que nós precisamos criar espaços (na escola) para inferências mais amplas, nas quais “a
existência humana [seja apresentada] na sua complexidade, como um processo subjetivo
inevitavelmente contraditório (fazemos projetos futuros e sabemos que vamos morrer)” (p.
31); dizer ainda que nós, os seres humanos somos aprendizes, independente da faixa etária
e que é muito difícil “por vezes impossível, separar realidade e ficção e o que chamamos de
‘realidade’ e uma construção sócio-cultural” (idem). Em cada sujeito-criança presente na
sala de aula, ou dela excluída, está a vida repleta de idéias, desejos, possibilidades e
potencialidades, mas também de conflitos e contradições. Nos espaços de interlocução,
com o narrar das histórias e o fluir das vivências eu acredito estar uma das formas de
transformar o processo de aprendizagem numa experiência mais significativa, tanto
individual quanto coletivamente.
Ao re-afirmar a literatura como um instrumento expressivo no processo de
formação humana e defendê-la como parte integrante nas diferentes etapas da educação e,
98
obviamente incluindo o processo de alfabetização e letramento, não quero em absoluto
restaurar uma proposta de pedagogização, principalmente da literatura infantil. Até porque
segundo Regina Zilberman, enfatizando a autonomia da literatura (infantil) em relação aos
fins pedagógicos, podemos perceber que os elos entre os dois campos se reatam por outros
caminhos e, pela função formativa da literatura, o próprio livro se converte em “meio de
cultura e questionamento, [quando] liberto de uma inclinação doutrinária [...] incrementa no
leitor a capacidade de compreender o mundo e investigá-lo” (1998, p. 30). Dessa forma, o
próprio manuseio do objeto livro, favorece a aquisição e domínio da escrita, porque além de
despertar o interesse pela leitura permite a apropriação das características da língua escrita,
das relações existentes entre a forma lingüística e da representação gráfica.
Evidentemente, pela especificidade que possuem os textos literários, eles não
visam o deciframento da escrita, esse fato é mais uma decorrência do que um efeito
desejado. Porém “pela relação afetiva e intelectual que fundam com o leitor e pelo
convencionalismo de sua linguagem, os textos literários favorecem o processo de
alfabetização” (SARAIVA et al, 2001, p. 85) promovendo o desenvolvimento da consciência
lingüística na criança pelo acesso às convenções da língua escrita. Todavia, um dos
aspectos de maior relevância não está nesse fato, mas sim na ampliação do universo
imaginário da criança, pois ao ler ou ouvir uma história fictícia ela entra nesse jogo, pondo
de lado sua realidade momentânea, e passa a viver imaginativamente, todas as vicissitudes
das personagens da ficção [...] aceita o mundo criado como um mundo possível para si”
(AGUIAR e BORDINI, 1993, p. 14). Nesse sentido, quando aguça a imaginação da criança
afastando-a da realidade imediata, a literatura possibilita uma penetração mais profunda da
própria realidade.
Como o processo de alfabetização e letramento é também o momento em que a
criança está construindo maneiras de agir e estar na escola, é essencial que ela possa
exercitar a imaginação, criando a partir das suas experiências e usufruindo (intensamente)
da linguagem literária. A fantasia pode representar para a criança uma das formas de
atenuar o desconforto imposto aos pequenos (revelado nas falas das crianças, nesta
pesquisa) pela pressão de professores, pais e da própria sociedade (letrada) no sentido da
cobrança imediata do uso competente do código escrito. Mais do que suavizar a tensão que
a criança sente, é possível pensar a experiência da aprendizagem do código escrito numa
perspectiva lúdica, viva e dinâmica, na qual seja possível narrar ou recontar histórias vividas
ou imaginadas, individuais ou coletivas, tecidas na linguagem e que colocam o sujeito em
constante confronto com suas próprias criações.
Reconhecendo que o nosso modelo educacional tem inibido o pleno
desenvolvimento dos sujeitos e afastado do cotidiano das salas de aula tanto a emoção
quanto a imaginação; um modelo no qual a literatura foi (e ainda é em muitos contextos)
99
tratada como um mero instrumento didático; e tem produzido um número considerável de
alfabetizados que se consideram incapazes de utilizar o código escrito (e os diferentes
saberes) de forma eficiente em seu beneficio, e da sociedade; talvez por ser um modelo que
atua prioritariamente na perspectiva de um homem constituído pelas atividades utilitárias ou
pelas necessidades obrigatórias. Essa forma de conceber o sujeito-aluno está presente em
cada espaço educacional e longe de ser superada. A construção de uma outra perspectiva
de educação requer a superação da visão unilateral do homem com a abertura de espaços
para o desenvolvimento dos múltiplos aspectos que o compõem, atuando na construção e
elaboração não apenas do conhecimento, mas da própria identidade humana numa
realidade social concreta.
Quanto ao código escrito, é insuficiente aprender a ler e escrever no sentido
restrito das palavras é muito mais importante que as crianças aprendam o que a escrita
pode fazer com elas ou o que elas podem fazer com a escrita. Em relação à leitura
Bettelhein e Zelan (1984, p. 234) garantem que “as palavras serão aprendidas facilmente e
depressa se estivermos interessados naquilo que elas significam para nós”.
Uma criança percebendo o papel social de aluno a ela atribuído olha ao seu
redor na busca de dominar letras, palavras, testa habilidades e capacidades no uso dos
signos lingüísticos, utiliza diferentes ferramentas de que dispõe e começa exercitar a escrita
utilizando principalmente nomes próprios, seus e de familiares, dentro e fora da escola. Ela
não escreve ou não tenta escrever qualquer palavra, mas sim àquelas carregadas de
conteúdo afetivo. Como sujeito social, a criança traz experiências e conhecimentos, os quais
utiliza como ponto de partida para a aprendizagem. Ela não pode ser despojada desse
repertório para aprender outros conhecimentos, precisa, sim, da oportunidade para
estabelecer diálogos frutíferos entre a (sua) linguagem cotidiana e a linguagem padrão que
organiza o espaço escolar.
“Você quer escrever outra poesia que eu vou dizer pra ti?” (BRUNO)
73
. Uma
pergunta encantadora principalmente por ser posterior à pesquisa! Fazer o papel de escriba
dos enunciados das crianças foi uma sensação de lidar com algo íntimo e precioso para
muito além da construção de palavras e frases sem cor, som ou sabor... Penso que a
mediação do processo de alfabetização e letramento carece de muita sensibilidade! E,
sintetizando a questão norteadora dessa pesquisa eu poderia afirmar que existem duas
formas em que a leitura, a escrita e a aprendizagem de ambas pode ser experienciada: “ou
como algo de grande valor prático, importante se uma pessoa quiser ir adiante na vida; ou
como fonte de um conhecimento ilimitado e das mais comoventes experiências estéticas”
73
Bruno Teixeira da Rosa.
100
(BETTELHEIN & ZELAN, 1984, p. 50). Depois de conversar com as crianças, eu perguntaria
não dá para escolher as duas?
A constituição da linguagem escrita pela criança é parte da constituição geral da
linguagem e adquirida por meio da contínua interação com o código escrito, no qual as duas
modalidades (oral e escrita) se inter-relacionam promovendo a ampliação de ambas. Nesse
sentido, um dos desafios para o professor, é pensar formas de mediar essa relação o
sobrepondo, ou valorizando mais uma modalidade em prejuízo da outra mas possibilitar à
criança o exercício pleno das duas modalidades. Precisamos ouvir as crianças nos seus
experimentos com a linguagem desfrutando com elas o prazer de reconstituir e
compreender suas experiências. Nas conversas que tive com as crianças pude perceber o
quanto elas se envolvem emocional e cognitivamente em narrativas orais de histórias ou
poesias feitas por elas ou não e o quanto relacionam essa atividade à sua vida e contexto.
Textos aparentemente simples podem ter para a criança um valor incalculável. São
processos intensos de aprendizagem e de atribuição de significados entrelaçados com a
vida da criança.
Embora retire tais considerações das vozes desses meninos e meninas,
reconheço, ainda, que essas narrativas, bem como as vozes paralelas e simultâneas que
foram capturadas (e aquelas que deixei escapar) têm muito mais a dizer e suscitam
reflexões que extrapolam qualquer tentativa bem comportada de teorização e fechamento.
Principalmente levando em conta que o tempo de permanência em campo foi relativamente
pequeno e a análise realizada é uma aproximação primeira com a questão da pesquisa. Ou
seja, o que foi possível trazer nessa reflexão constitui apenas indícios do que a interação
constante com a linguagem literária pode possibilitar à criança no processo de alfabetização
e letramento. Assumo minha limitação, ciente de que deixei de lado pontos importantíssimos
a serem ser retomados a qualquer momento por pesquisadores que queiram e possam me
auxiliar nessa tarefa de ouvir o que as crianças têm a dizer, principalmente sobre a
aprendizagem da escrita e da leitura e da contribuição da literatura nesse processo. Com
isso poderemos projetar uma escola que colabore de forma mais efetiva na formação de
sujeitos-leitores-autores capazes de partilhar idéias e compreender o outro, numa
constante troca.
A noção de letramento foi trazida para o centro do debate e permanece como um
amplo foco de discussões e elaboração teórica que evidencia um movimento vivenciado nas
sociedades letradas pela necessidade de ampliar o conceito de alfabetização, na
perspectiva de um processo crítico e autônomo da leitura e da escrita.
Pois, a simples
apropriação da leitura (decodificação) e da escrita (copiação/reprodução) pouco pode
auxiliar a formação do sujeito, menos ainda proporcionar alterações na condição de
indivíduo nas dimensões sociais, psíquicas, lingüísticas, cognitivas. A discussão sobre o
101
letramento é ampla, resultando em conceitos pluralizados que desencadeiam em modelos
diferenciados, como o modelo autônomo e o modelo ideológico. O modelo autônomo de
certa forma prevê uma perpetuação da estrutura social vigente, enquanto o modelo
ideológico percebe as implicações da e na prática social e objetiva a formação de um sujeito
que possa interferir em seu meio a escolha é também política. Mas, não podemos ignorar
que é “função e obrigação da escola dar amplo e irrestrito acesso ao mundo da leitura, e isto
inclui a leitura informativa, mas também a leitura literária; a leitura para fins pragmáticos,
mas também a leitura de fruição; [...]” (SOARES, 2005, p. 33). Nas palavras de Baron
(2001, p. 71) reforço a importância de trabalhos com a pintura, a música
74
, a fotografia, a
contação de história, a escuta o olhar atento”, pois o processo de alfabetização com
letramento não se conclui no primeiro e no segundo ano do Ensino Fundamental, mas “diz
respeito às várias formas de leitura que acompanham o movimento de subjetivação ao longo
da vida” (idem). Quando penso no aluno leitor e autor, percebo que este se constrói em
interação com um mediador que assume a autoria das estratégias utilizadas em seu fazer
pedagógico e que compreende a incompletude do conhecimento e do próprio ser humano.
Como professora (e alfabetizadora) que não consegui deixar de ser, apesar da
tentativa que fiz me afastando (fisicamente) da sala de aula para olhar o problema por outro
ângulo, quero aprofundar o olhar para a criança, não apenas como o sujeito projetado
contextualmente, mas dialogar com ela sobre suas percepções e imaginações em estado de
potência. Reconheço que a sociedade moderna nos impõe uma dinamicidade galopante
com pouquíssimo tempo para apreciar seja um texto literário ou qualquer outro objeto
repleto de Vida.
Como observa Walter Benjamim (1994, p. 206), “o homem de hoje não
cultiva o que não pode ser abreviado”. Podemos facilmente nos acostumar a fazer
exercícios automatizados sem reflexão em todas as direções e atropelarmos as crianças... É
possível romper com a rigidez e permitir momentos fecundos de interiorização e atribuição
de significados subjetivos e intersubjetivos? Estamos dispostos a fazer isso? Ouvir uma,
duas, três vezes a “mesma” história com uma disposição inaugural? E aprender com isso?
“A pesquisa acabou?” Com a Lara temos a impressão de que tudo acaba
muito rápido! Ah! Essa foi uma reclamação das crianças: pouco tempo! O tempo da escola é
breve! Aliás, estamos abreviando muita coisa, a linguagem é uma delas, que digam os e-
mails ou as mensagens de telefone móvel. Qual o lugar da história não contada, da
experiência não intercambiada ou da poesia não desfrutada? No mundo atual predomina
uma forte tendência pelo imediato e nesse contexto a experiência sensível vai aos poucos
sendo aniquilada e talvez um dos desafios para a escola dos tempos modernos, afetada que
é pela tendência da utilidade, rapidez e abreviação, o de possibilitar experiências lúdicas e
74
As crianças falavam muito de música, queriam cantar! Qual o papel da música na aprendizagem... Outra
pesquisa!
102
encantadoras aos seus alunos. É preciso projetar sujeitos sensíveis, auxiliar na busca do ser
poético que nos habita, ainda que em possíveis fragmentos de tempo/espaço. Nesse
fechamento necessário e simbólico, sublinho um desafio para professores-pesquisadores:
problematizar as situações que envolvem o cotidiano escolar, não com um olhar
simplificador, mas para (se for preciso) ter a coragem de deixar para trás algumas certezas,
colocando-se de forma aberta ao diferente a partir de um exercício de reflexão constante. É
preciso olhar cada dia de aula como um novo e inaugural, como ele é! Em que não apenas o
professor, mas cada aluno é um outro acrescido das experiências anteriores, afinal, “não
podemos banhar-nos em um mesmo rio por duas vezes”. A célebre frase pronunciada por
Heráclito precisa chegar à escola e banir a impressão de que há muito tempo às coisas vêm
acontecendo sempre da mesma forma.
No momento em que uma criança diz quero contar uma história – ela quer muito
do que isso: quer falar e ser ouvida, quer principalmente revelar sua forma de ver e estar no
mundo. A disposição dos adultos para ouvi-la está relacionada à concepção que se tem
acerca do ser criança. O ambiente das escolas não favorece o diálogo, é quase sempre
muito formal e não está projetado para que as crianças possam expressar “seus anseios,
alegrias, medos, angústias, prazeres, enfim, suas vidas. pouco espaço e tempo para o
diálogo entre educadores e educandos, para ambos narrarem as suas experiências. A
linguagem está encarcerada, cristalizada, fossilizada” (ALGEBAILE, 2005, p. 122).
Quanto à contribuição da linguagem literária não apenas no processo de
alfabetização e letramento, mas na formação e na vida das pessoas, podemos sentir que “o
poder que as histórias têm de atrair e manter a atenção dos ouvintes é evidente” (EGAN,
2007, p. 24), por algumas vezes presenciei os olhares furtivos e a aproximação disfarçada,
dos responsáveis que chegavam para buscar suas crianças e percebiam que uma história
está sendo lida/contada... Eles tentavam “roubar” um pedacinho! Ao ouvir, registrar e pensar
sobre as narrativas e os experimentos poéticos que recebi como um presente destas
crianças, percebi ainda que histórias são elementos vivos que vão se agregando de maneira
quase imperceptível à vida das pessoas. Sem que nos demos conta, algumas delas
interferem de maneira significativa, desvendando potencialidades latentes, transformando e
sendo transformadas por nós; até porque como afirma Jaqueline Held (1980, p.18) “uma
vida humana é uma ficção que o homem inventa à medida que caminha”.
103
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110
ANEXOS
111
Anexo 1 – Registro memorial
AS MINHAS MEMÓRIAS E OS CAMINHOS DA PESQUISA
Criei esse espaço para confidenciar uma pequena parte da minha
experiência, na escola, por compreender que o entusiasmo e a opção pela temática foram
assinalados pelo ingrediente que me perseguiu como uma cortina invisível trata-se das
recordações da infância e de uma vida vivida praticamente “dentro” da escola. Nessas
lembranças estão as marcas de uma experiência que, numa concepção não-linear de tempo
se entrecruzam passado, presente e futuro e permitem entrever no agora a atmosfera que
dela emana são partes de um aprendizado. Lanço esse olhar para poder re-conhecer não
apenas as trilhas pelas quais passei, mas principalmente para poder compreender as
veredas que a própria pesquisa tomou. Se o diálogo com as crianças possibilitou-me evocar
essas lembranças e reavivar na memória histórias fictícias que me encantaram naquela
época, eu me permiti relatar alguns fragmentos dessa experiência, compartilhando os
motivos (pessoais) pelos quais cheguei ao tema de pesquisa. Além de que, essa também foi
uma forma de re-visitar minha própria infância, agora com um olhar adulto, desprendendo as
significações que possivelmente mereçam ser partilhadas.
Começo lembrando da literatura e não posso dizer que o acervo a que tive
acesso na escola
75
da minha infância fosse diversificado. Muito pelo contrário, posso
rememorar quase todos os exemplares de que dispunha por ser um número extremamente
reduzido.
Em compensação, tive um professor de séries iniciais que foi um contador de
histórias que, além de narrar “as suas”, provocava seus alunos para criarem narrativas
inéditas e partilharem com a classe. Uma das tarefas que ele freqüentemente propunha era:
invente uma estória
76
. Dessa forma, a literatura fez parte do meu processo de aprendizagem
e acredito que foi um dos fatores que me possibilitou estabelecer uma relação prazerosa
com a escola, com a escrita e com o conhecimento, um pressuposto que foi intuitivamente
incorporado à prática pedagógica.
Vivenciei minha infância em uma comunidade
77
, localizada muito próxima do “pé
da serra”, onde havia
78
uma escola e o meu pai foi quase o único professor que esta
comunidade conheceu durante vinte e oito anos. Fui “nomeada” sua assistente desde muito
75
Escola Isolada Estadual do Rio d’Areia do Meio.
76
Nessa época havia uma diferenciação do termo estória e história. A primeira se referia a ficção e a segunda
supostamente a fatos verídicos.
77
Esta comunidade chama-se Rio d’Areia do meio, situada na zona rural do município de Canoinhas – SC, junto
à Serra Santa Emidia, onde existe uma capelinha, fundada pelo Monge João Maria – ligado a guerra do
Contestado. Nesse local, o referido monge é considerado santo.
78
Existe apenas o prédio.
112
cedo, auxiliando-o em algumas tarefas. Era uma escola multisseriada e a experiência com a
literatura, apesar do acervo modesto, foi significativa. Havia alguns livros de literatura infantil
que tínhamos a oportunidade de ler. O professor contava/lia histórias (as clássicas: Branca
de neve e os sete anões, Chapeuzinho vermelho, A bela adormecida, entre outras) para os
alunos. Ele nos incentivava a criar outras histórias, a compor versos e fazer rima... Lembro-
me que essas tarefas eu realizava com prazer e, quando fazia a leitura para a classe,
reformulava algumas idéias que me ocorriam após concluir o texto. O professor e a classe
ouviam atentos cada narrativa, comentavam e complementavam, estivessem elas escritas
ou não.
Entre as histórias que li e ouvi naquela época, lembro-me de algumas que
tiveram seu enredo entranhado na minha memória: a história do Fogão de ferro que
abrigava um príncipe na floresta e que a filha do rei encontrou e tinha como missão salvá-lo.
Mas como ela tinha medo de voltar na floresta, mandava a filha do lenhador, do guardador
de porcos. Finalmente resolve ir pessoalmente libertar o prisioneiro, descobrindo um
príncipe encantado, por quem se apaixona ao mesmo tempo em que ele é lançado para um
reino muito distante e ela começa sua aventura em busca do amado [...]. Pedro da
Montanha
79
, na pele de um personagem jovem, bonito, rico, educado namorava Maria
Helena, mas durante um baile ocorre um assassinato e ele é acusado de ser o assassino.
Resolve fugir levando apenas o seu papagaio, um maço de fósforos e uma semente de
milho, acidentalmente escondida no bolso. Refugiado numa montanha, durante uma noite
de tempestade, a única entrada que dava acesso ao local em que ele se encontra
desmorona e ele fica preso, vivendo por muitos anos afastado da sociedade e com
saudades da amada, sua aventura é emocionante [...]. Outra história que marcou muito a
minha infância foi Braz e a primeira comunhão, um livro em preto e branco, que apresenta
uma das novelas da Condessa de Ségur e me fez banhar em lágrimas ao percorrer cada
página daquela obra. Ganhei este de livro de presente quando cursava a terceira série do
Ensino fundamental. Cheguei em casa abri o livro e literalmente entrei nele. Eu não podia
parar... Anos mais tarde encontrei um exemplar, levei para casa!
Iniciei meu trabalho como professora na mesma escola que estudei. Era uma
escola de difícil acesso, então fui contratada muito antes de estar habilitada para a função.
Recordo-me de um começo quase desprovido de teorias de ensino ou concepções de
aprendizagem, com uma bagagem relativamente pequena, composta essencialmente de
participação e observação de uma trajetória de interações. Interações vividas num espaço
em que o outro (aluno) era considerado sujeito capaz de aprender e de criar! Influenciada
79
Sobre Pedro da Montanha, estou até hoje procurando um livro chamado: O sorriso do anjo branco que
continuidade a história que conheci na infância.
113
que fui por esse quase único modelo, iniciei meu trabalho como professora de séries iniciais.
Quase duas décadas separam-me desse primeiro momento.
O percurso em busca do entendimento acerca da infância teve inicio mais
precisamente em 2006, no curso de mestrado, especificamente na disciplina Infância e
Produções Culturais, apesar de trabalhar com crianças desde 1988. Essa foi uma
oportunidade de re-pensar alguns conceitos nos quais apoiava a prática pedagógica, fato
que me levou (inevitavelmente) a rever e reformular o projeto de pesquisa. A partir das
leituras e debates na disciplina, a intenção de pesquisa assumiu uma configuração
diferenciada, pois na elaboração inicial eu me propunha a pesquisar o mesmo problema,
porém, dialogando com os adultos envolvidos no processo para falar da e sobre a criança.
Reformulei a base do estudo invertendo a posição da criança que passou de objeto, para
sujeito participante da pesquisa. A decisão de ir a campo dialogar com as crianças se
consolidou no segundo semestre de 2006, no curso da disciplina Seminário de pesquisa:
investigação com crianças, que foi apoiada pelo orientador. Essas disciplinas me
proporcionaram o encontro teórico com os pesquisadores da infância que formam a base do
estudo.
Outro fator importante nessa trajetória foi a participação no grupo de estudos
sobre o pensador alemão Walter Benjamim. Ali, entre outros textos, entrei em contato com a
obra Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, que traz uma visão de infância
ainda pouco discutida pela nossa sociedade atual.
Antes de realizar a pesquisa de campo, busquei preparar as bases para o estudo
no cotidiano da sala de aula. Como pesquisadora, procurei ajustar o foco de análise atuando
na alfabetização, uma vez que este é o meu campo de ação, embora sem o distanciamento
necessário para uma análise segura nesse período, me reporto à fala de Pedro Demo
80
sobre o professor-pesquisador. Para o autor, a pesquisa precisa ser desmistificada, não
pode ser considerada pesquisa somente aquilo que demanda sofisticação, mas é preciso
identificar a alma da pesquisa que está na capacidade de questionar inteligentemente a
realidade e em cima disso fazer uma elaboração própria. Percebo que depois da
caminhada teórica não posso mais entrar numa sala de aula apenas como professora é a
pesquisadora que insiste em estar presente com o olhar sensível para aquilo que não era
possível ser visto em passado muito recente.
A composição do sujeito-pesquisador, o estranhamento diante do familiar e a
base para o estudo de campo foram consolidados ainda no exercício da sala de aula e
apesar das condições da presença física (como professor) ser desfavorável para uma
análise distanciada, num local que está carregado de regras e valores o estudo foi se
80
A citação do autor foi extraída de uma conferência gravada em fita VHS e não possui data.
114
delineando na prática pedagógica. O diálogo com meus alunos (crianças da primeira série
em 2006) não pode ser aqui explicitado, uma vez que fazem parte de um universo escolar e
não me pertencem. Eticamente, não posso revelar falas, histórias, criações... Ah! Mas elas
ficaram em mim... E como contribuíram esses atores e autores para fortalecer o propósito de
dialogar com o sujeito-criança e ouvi-lo no seu desprendimento de querer dizer, criar e
construir com os adultos um mundo do qual elas façam parte efetivamente.
A experiência que tive na infância e na prática pedagógica com a linguagem
literária me fazia suspeitar de que se tratava de uma ferramenta de excelência na
aprendizagem, principalmente porque enquanto arte ela possui uma forma peculiar de
racionalidade. Contudo, foi mergulhando na pesquisa, ouvindo e conversando com as
crianças que pude então perceber e interpretar os significados que a literatura assume no
processo de alfabetização e letramento e principalmente como a criança a percebe. A
interação com as crianças e o diálogo sobre a percepção que elas têm da literatura, não
apenas deu consistência as reflexões que realizei como ainda me instigaram a registrar
parte da minha história reconstituindo um elo entre as diferentes experiências.
115
Anexo 2 – Modelo da autorização assinada pelas crianças e por seus responsáveis.
AUTORIZAÇÃO
Eu, _____________________________________________ , concordo em participar da
pesquisa proposta por Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira sobre A Contribuição da
Literatura no Processo de Alfabetização e Letramento: uma Reflexão Mediada pelo Olhar da
Criança e sei que posso desistir de participar a qualquer momento, sem problema algum.
Deixo que usem na pesquisa e mantenham guardadas na UNESC as minhas falas, os meus
desenhos ou outros trabalhos feitos por mim.
________________________________ (assinatura da criança)
Eu, ______________________________________, CI n
o
_________________, residente
______________________________________, autorizo meu/minha filho/filha
___________________________________________________ , a participar da pesquisa
proposta por Rosilene de Fátima Koscianski da Silveira , da UNESC, sobre A Contribuição
da Literatura no Processo de Alfabetização e Letramento: uma Reflexão Mediada pelo Olhar
da Criança. No período de ____/____/___ a ____/____/____. Autorizo, ainda, que sejam
feitas imagens a partir de filmadora, máquina fotográfica ou scanner dos trabalhos e
atividades realizadas, para uso da pesquisa e para fazer parte do acervo mantido pelo
Programa de Pós-graduação em Educação.
Por ser verdade, firmo o presente.
Criciúma, ________/_________/_________
(Assinatura)
116
Anexo 3 – Modelo da autorização assinada pela direção da EEB Irmã Edviges.
AUTORIZAÇÃO
Eu, (nome da diretora) responsável pela Direção da Escola de Educação Básica
Irmã Edviges, Criciúma, SC, autorizo a realização da pesquisa proposta por Rosilene de
Fátima Koscianski da Silveira, mestranda da Universidade do Extremo Sul Catarinense
UNESC de Criciúma-SC. O projeto de pesquisa com o título: A Contribuição da Literatura no
Processo de Alfabetização e Letramento: uma Reflexão Mediada pelo Olhar da Criança será
desenvolvido com as crianças da primeira série desta unidade escolar no primeiro
semestre/2007. Estou consciente de que a mesma será realizada fora do horário regular de
aula e que a pesquisadora assume a responsabilidade em relação aos procedimentos, local
e os sujeitos da pesquisa.
____________________________________________________
Nome e assinatura da diretora
EEB IRMÃ EDVIGES – FEVEREIRO/2007
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