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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO − PPGE
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
MARIA DE LOURDES SOUZA FARIAS
VIOLETA PARRA: IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA
MODERNA
CRICIÚMA, SETEMBRO DE 2007
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MARIA DE LOURDES SOUZA FARIAS
VIOLETA PARRA: IDENTIDADE CULTURAL LATINO-AMERICANA
MODERNA
Dissertação apresentada à Diretoria de Pós-graduação
da Universidade do Extremo Sul Catarinense
UNESC, requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Educação sob a orientação do Prof. Dr.
Gladir da Silva Cabral.
CRICIÚMA, SETEMBRO DE 2007
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Dedico este trabalho aos meus filhos,
Vanessa e Ramon, meus melhores amigos, a
minha mãe Anna Budny de Souza que,
apesar do pouco acesso à formação
acadêmica, incentivou-me incessantemente,
pois, sempre compreendeu e priorizou a
importância da formação superior e contínua.
5
Agradecimentos
Agradeço muitíssimo ao meu orientador, professor Dr. Gladir da Silva Cabral, pelo
interesse, dedicação e paciência que lhe foram exigidos em meio aos caminhos da
pesquisa.
A todos os professores do PPGE, pelo comprometimento com nossa formação.
Ao secretário do PPGE, Walter Corrêa de Fáveri, pela prestatividade permanente.
A todos os colegas do Mestrado em Educação nesta Universidade primeira turma”:
Amalhene Baesso Reddig, Ana Lúcia Ioppi Zugno, Andréia Martins de Freitas, Ângela
Maria Zandonadi, Ariete Inês Minetto Fagundes, Aurélia Regina de Souza Honorato,
Aurélia Lopes Gomes Goulart, Cássio Pereira de Souza, Claudete Bonfante Vieira,
Daniel Skrsypesak, Eloir Fátima Mondardo Cardoso, Evelyn Cristina Mergener de
Arruda Calixtro, Isabel Conti Shilling, Isabel Scarabelot Medeiros, Luiz Donato Casteler,
Mágada Tessmann Schwalm, Maria Cristina Keller Frutuoso, Marlene Pires Amorim,
Nádia Regina Almeida Couto, Paula Rosane Vieira Guimarães, Paulo Sérgio Osório,
Vanilda Maria Antunes Bert e Viviane Raupp Nunes de Araújo, pela afetividade,
conselhos, sugestões, alegrias, ansiedades, leituras e textos compartilhados.
Especial agradecimento pelos momentos agradáveis de “intercâmbio de conhecimento”
à Nádia Regina Almeida Couto, Amalhene Baesso Reddig e Isabel Conti Shilling, por
dividirem comigo as angústias inerentes ao processo.
Aos meus muito amados filhos, Vanessa e Ramon, pelo permanente apoio e
entendimento de que às vezes necessitamos de momentos de refúgio, de recolhimento,
para poder expandir nossos projetos, nossos objetivos. Obrigada por compartilharem
de minha ansiedade durante todo o percurso, no labor das leituras e escrituras desta
dissertação.
Aos meus amados pais Pedro (in memorian), e Anna, pelo permanente carinho, afeto e
incentivo.
Aos meus queridos irmãos: Tereza, Sérgio, Sônia, Lourival, Iolanda, Ivan, Edson, Hélio,
José Paulo e Suzana, pela afetividade, interesse e torcida nesta minha caminhada.
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À professora Antônia Javiera Cabrera, pela importante e agradável companhia em
nossa viagem de pesquisa ao Chile, terra de Violeta e Nicanor Parra, nossos objetos de
estudos. Muita coisa ultrapassou nossas expectativas na ocasião.
Às Diretoras e amigas Maria Gricelda Guglielmi Coelho e Cleide Arent Warmling, da
Escola de Educação Básica Ignácio Stakowski, pelo interesse e compreensão nos
momentos mais árduos desta minha maratona, o meu Muito Obrigada.
“Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos. É porque não
ousamos que as coisas se tornam difíceis”.
Sêneca
7
RESUMO:
O objetivo desta pesquisa é investigar e entender como se constrói a identidade.
Procuro compreender o processo dessa construção na era moderna. Nesta pesquisa,
explicito os cinco importantes movimentos universais que descentraram o pensamento
humano e provocaram a fragmentação das identidades na modernidade. Também é
objetivo deste estudo retratar a poeta e musicista Violeta Parra como sujeito
representante da cultura latino-americana, seu percurso histórico, biográfico e artístico
no Chile, na América Latina e na Europa, e dada sua importância cultural –, inseri-la,
por meio de sua obra musical no campo da Educação. Analiso várias de suas
importantes composições, apontando nelas o caráter educacional enquanto críticas à
sociedade moderna, que retratam a preocupação da autora em preservar o que é
tradicional, para garantir um comportamento mais ético e saudável às gerações futuras.
A fundamentação teórica abrange as questões que permeiam os Estudos Culturais,
especialmente no território que trata da construção da identidade na modernidade,
tendo como base a interlocução entre Nestor García Canclini, Stuart Hall, Anthony
Giddens, Peter McLaren e Tomaz Tadeu da Silva. Textos de Katheryn Woodward,
Mariza Vorraber Costa e Maria José R. F. Coracini foram a base para o presente
estudo com referência à educação. Trazendo a obra de Violeta Parra para este campo,
faço sua interlocução com alguns teóricos educacionais como Paulo Freire, Peter
Mclaren e Tomaz Tadeu da Silva.
Este estudo é embasado em pesquisa bibliográfica e documental.
É uma reflexão a respeito da construção identitária nos atuais tempos modernos.
Palavras-chave: Cultura. Identidade. Educação. Modernidade.
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RESUMEN
El objetivo de esta pesquisa es investigar y entender como se construye la identidad.
Busco comprender el proceso de esa construcción en la era moderna. En ella
explicito los cinco importantes movimientos universales que descentraron el
pensamiento humano, provocando la fragmentación de las identidades en la
modernidad. También es objetivo de este estudio, poner a la poeta y musicista
Violeta Parra como sujeto representante de esta cultura, su percurso histórico,
biográfico y artístico en Chile, en América Latina y en Europa, y – por su importancia
cultural –, inserirla, por medio de su obra musical, en el campo de la educación.
Analizo varias de sus importantes composiciones, mostrando en ellas el carácter
educacional de sus críticas a las sociedades modernas, donde retratan la
preocupación de la autora con la preservación de lo tradicional, para garantizar un
comportamiento más ético y saludable a las futuras generaciones. La
fundamentación teórica abarca las cuestiones que hacen parte de los estudios
culturales, especialmente en el territorio que trata de la construcción de la identidad
en la modernidad, teniendo por base la interlocución entre Néstor García Canclini,
Stuart Hall, Anthony Giddens, Peter McLaren e Tomaz Tadeu da Silva. Textos de
Katheryn Woodward, Mariza Vorraber Costa y Maria José R. F. Coracini fueron el
suporte para el presente estudio, en lo que se refiere a la educación. Trayendo la
obra musical de Violeta Parra para este campo, hago su interlocución con algunos
teóricos como Paulo Freire, Peter Mclaren y Tamaz Tadeu da Silva.
Este estudio está embasado en pesquisa bibliográfica y documental.
Es una reflexión respeto de la construcción de la identidad cultural en los actuales
tiempos modernos.
Palabras-clave: Cultura. Identidad. Educación. Modernidad.
9
SUMÁRIO
1 Introdução
...........................................................................................................
2 Violeta Parra: trajetória biográfica, cultural e artística...........
........................
2.1 A infância de Violeta Parra........................…………………...........…….............
2.2 O casamento com Luis Cereceda e a trajetória artística...................................
2.3 Violeta Parra como pesquisadora e divulgador
a do folclore chileno..................
2.4 Viagens ao exterior e viagens pelo interior do país...........................................
2.5 Uma artista multifacetada..................................................................................
2.6 Dramas sociais, alegrias e dilemas pessoais....................................................
2.7 Repercussões de sua obra e influência sobre as novas gerações....................
3 Identidade: formação e transformação…….................................
....................
3.1 Cultura: berço da construção identitária.............................................................
3.2 Identidade e identidade cultural: a complexidade dos conceitos……................
3.3 Movimentos descentralizadores do sujeito…….................................................
3.4 A Identidade cultural latino-americana na modernidade....................................
3.5 O discurso como instrumento que identifica......................................................
3.6 O lugar da linguagem na identidade do sujeito..................................................
3.7 Multiculturalismo e globalização.........................................................................
3.8 Cultura popular e identidade..............................................................................
3.9 Cultura, identidade e educação.........................................................................
3.10 A arte poética e musical de Violeta Parra como um projeto pedagógico.........
4 Viole
ta Parra e a música chilena no cenário da modernidade:
El cantar la diferencia
”.....................................................................................
4.1 Pesquisa e divulgação do folclore chileno.........................................................
4.2 A identidade cultural presente nas canções.......................................................
4.3 O caráter educacional da obra de Violeta Parra................................................
4.4 Canções d
e celebração da vida e do amor........................................................
4.5 Criticidade, denúncia: educação para a resistência cultural..............................
4.6 A identidade pessoal e cultural nas Décimas de Violeta Parra...........
...............
5 Considerações finais ........................................................................................
6 Referências bibliográficas.................................................................................
7 Anexos....
.............................................................................................................
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1 Introdução
O território da pesquisa, da investigação – especialmente a região onde se
situam o sujeito, seu contexto e sua obra – sempre foi o “alvo” de minhas curiosidades,
de minhas “vontades de saber”, de conhecer, território onde me vejo começando a
caminhar agora, com esta Dissertação de Mestrado em Educação, da Universidade do
Extremo Sul Catarinense – UNESC.
Introduzo-me e começo a mover-me nele sem esquecer que tudo isso teve uma
pré-estréia quando fui aluna, também de pós-graduação em nível de Especialização em
Língua e Literatura Espanhola e Hispano-americana, na Universidade Federal de Santa
Catarina UFSC. Na verdade, nessa época, em 2000, apenas “pisei” neste território
que ora começo a caminhar, objetivando satisfazer minhas curiosidades e vontades de
saber para, então, compartilhar esse conhecimento com outros curiosos e desejosos de
conhecer a latinidade. Minha aspiração é ampliar e compartilhar saberes no terreno dos
Estudos Culturais, onde o sujeito, sua identidade e representação, seu contexto e
discurso têm prioridade. Há em mim um interesse permanente em conhecer obra,
contexto e vida de figuras femininas e suas relações com a Cultura, História e
Educação.
Segundo Anthony Giddens (1991, p. 44):
Nas culturas tradicionais, o passado é honrado e os símbolos
valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A
tradição é um modo de integrar a monitoração da ação com a
organização tempo-espacial da comunidade. Ela é uma maneira de
lidar com o tempo e o espaço, que insere qualquer atividade ou
experiência particular dentro da continuidade do passado, presente e
futuro, sendo estes por sua vez estruturados por práticas sociais
recorrentes. A tradição não é inteiramente estática, porque ela tem que
ser reinventada a cada nova geração conforme esta assume sua
herança cultural dos precedentes. A tradição não resiste à mudança
como pertence a um contexto no qual há, separados, poucos
marcadores temporais e espaciais em cujos termos a mudança pode
ter alguma forma significativa.
Essa argumentação de Giddens, principalmente quando diz que a tradição “tem
que ser reinventada a cada nova geração conforme esta assume sua herança cultural
dos precedentes”, aguça minha curiosidade e meu querer saber, ao mesmo tempo em
11
que impulsiona e provoca o surgimento desta pesquisa, que a Violeta Parra o seu
lugar de destaque como sujeito representativo da identidade cultural latino-americana
da era moderna. Violeta Parra foi uma artista chilena multifacetada que, especialmente
na poesia e na música, “reinventou a tradição”, depois de ter buscado, pesquisado e
ouvido dos mais antigos camponeses, a voz dos seus “nossos” ancestrais. Esse
argumento de Giddens tem relação com o sujeito, o contexto e a obra da folclorista
Violeta Parra, que nesta pesquisa figura como objeto de estudo.
O presente trabalho objetivou, num âmbito geral, identificar de que maneira a
identidade se forma e se transforma, de que maneira ela é construída. Além disso, foi
também objetivo geral da pesquisa destacar, na América Latina, a figura de Violeta
Parra, poeta e musicista chilena no território da identidade cultural, situando-a no
campo da educação.
Este trabalho tenta fazer entender o processo de formação e transformação da
identidade, dando especial enfoque à identidade na modernidade; traz conceitos de
identidade e cultura formados em diferentes perspectivas e na visão de diferentes
pensadores e autores; dá uma panorâmica sobre os três tipos de indivíduo, quanto à
sua evolução no terreno das idéias, do pensamento da humanidade; explica cada um
dos cinco importantes fatores que contribuíram para o descentramento do pensamento
humano na era moderna, e que interferiram diretamente na transformação da sua
identidade; evidencia Violeta Parra como sujeito representativo da identidade cultural
na América Latina; analisa a obra musical da poeta chilena, enfatizando seu importante
papel educacional e conscientizador.
Numa visão que compreende a identidade como algo não estático, maleável e
em constante transformação, e tendo como objetivo geral entender esse seu
dinamismo e essa sua maleabilidade, a presente pesquisa contemplou uma abordagem
qualitativa, bibliográfica e documental.
Iniciou-se com uma revisão bibliográfica referente aos temas da cultura, da
identidade e da educação. Depois, foram analisadas as canções de Violeta Parra. Com
leituras e releituras da crítica e dos estudos culturais, foi-se construindo a base para o
aprofundamento necessário ao desenvolvimento das idéias e à escritura desta
dissertação.
Faz parte dos objetivos da pesquisa identificar e situar Violeta Parra como figura
representativa da identidade cultural latino-americana na modernidade, evidenciando o
aspecto educacional de seu trabalho de compilação e recriação do folclore chileno.
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Para tanto, procedeu-se a uma seleção de suas músicas, na qual foram escolhidas
treze delas. O critério de escolha das canções foi o seu caráter educacional, a sua
referência ao contexto cultural, político e social do país. Foram selecionadas as
seguintes canções: Casamiento de negros, Yo canto la diferencia, Santiago penando
estás, Maldigo del alto cielo, Arauco tiene una pena, Arriba quemando el sol, Según el
favor del viento, Gracias a la vida, Volver a los diecisiete, Al centro de la injusticia,
Ayúdame Valentina, Me gustan los estudiantes, Violeta ausente. Essas composições
aludem à história do Chile e do povo chileno, trazendo também aspectos sobre a
identidade do campesino, além de elementos que evidenciam o trabalho educacional
da poeta e musicista Violeta Parra.
Acrescentou-se a essa seleção importantes estrofes de suas Décimas
autobiográficas, que evidenciam elementos mostrando a sua identidade pessoal e
representando a identidade do povo chileno. Em função da pesquisa, fez-se, também,
uma viagem ao Chile, de dezembro de 2005 a janeiro de 2006, com o intuito de,
primeiramente, conhecer in locoo espaço e a cultura, berço dessa importante poeta e
musicista que viveu entre 1917 e 1967. Em segundo lugar, intentou-se com a viagem
conseguir materiais autênticos que enriquecessem este trabalho de pesquisa. Nessa
viagem visitaram-se importantes lugares da quinta e da sexta região – centro do país –,
além do famoso Cemitério Geral de Santiago, onde está sepultada Violeta, e as
famosas casas do poeta Pablo Neruda, hoje transformadas em pequenos e importantes
museus históricos. Conhecer e conversar com Nicanor Parra, importante escritor e
poeta, irmão de Violeta, foi um acontecimento dos mais importantes nessa viagem,
além da aquisição de importante bibliografia sobre Violeta Parra, que foram relevantes
para minha pesquisa.
A presente escritura contempla os temas da cultura, da identidade e da
educação e leva o título: Violeta Parra: identidade cultural latino-americana
moderna. O texto está dividido em quatro capítulos, além das considerações finais,
referências e anexos.
Depois do capítulo primeiro, que introduz este trabalho, o segundo Violeta
Parra: uma trajetória biográfica, cultural e artística –, permite um trânsito pela sua
biografia, em contraposição com o contexto histórico, político e cultural em que ela
vivia. Destaca-se, neste capítulo, a trajetória da poeta ao descobrir e divulgar o folclore
do povo indígena chileno e toda a diversidade cultural que fazia parte do mundo rural,
em contraponto ao mundo urbano da capital, Santiago. Este capítulo traz, com base em
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dois grandes estudiosos da literatura e da cultura chilena, a saber, Leonidas Morales T.
e Fernando ez, bem como o livro de Isabel Parra, filha de Violeta, El libro mayor de
Violeta Parra e o livro Toda Violeta Parra, de Alfonso Alcalde, a trajetória biográfica,
cultural e artística de Violeta, seu nascimento e pobreza, sucessos e desventuras, sua
juventude, alegrias e desilusões.
No terceiro capítulo, Identidade: formação e transformação, tenta-se explicar,
a partir do trabalho de alguns estudiosos e pensadores modernos da identidade e dos
Estudos Culturais, não só o processo que forma e transforma a identidade do indivíduo,
do grupo e da sociedade, mas os elementos desse processo. Inicia-se com uma breve
panorâmica sobre o tema da cultura, onde se apresentam alguns conceitos sobre
cultura, elaborados através dos tempos, segundo diferentes correntes de pensamento.
Na perspectiva cultural, e seguindo o que se entende sobre identificação, busca-
se conceituar os termos identidade e identidade cultural com base, principalmente, em
Stuart Hall (2004; 2003), Tomaz Tadeu da Silva (2005) e Anthony Giddens (1991), que
comungam da idéia da complexidade da constituição da identidade, sua natureza
discursiva, totalmente imersa nas relações de poder e sujeita a constantes mudanças.
Este capítulo esboça, também, os movimentos descentralizadores do sujeito da era
moderna, no paradigma estruturalista, desde os estudos e pensamento marxista do
século XIX, seguido da descoberta do inconsciente por Freud considerados grandes
iconoclastas da cultura –, passando pela lingüística moderna de Saussure e pela
filosofia histórica e educacional de Foucault, culminando com os novos movimentos
sociais especialmente o feminismo –, que emergiram na década de 1960. Situa-se
então a figura de Violeta Parra no seu tempo e no seu espaço social e como objeto de
estudos nesta pesquisa.
O quarto capítulo, Violeta Parra e a música chilena no cenário da
modernidade: “El cantar La diferencia”, é dedicado à análise de sua obra musical.
Faz-se uma releitura de treze de suas principais composições, a partir do ângulo
educacional, mostrando seu trabalho de resgate e re-dimensão do folclore, no afã de
fazer preservar a raiz cultural do povo chileno, sua verdadeira identidade. Transporta-
se, quase ao final do capítulo, sua obra para o campo educacional, em: Violeta Parra e
sua obra no território da educação, onde apontam-se pontos em comum no trabalho de
Violeta e de Paulo Freire, sua filosofia educacional, ressaltando-se a preferência de
ambos em ajudar o povo oprimido. Ao final, analisam-se alguns fragmentos das
Décimas, autobiografía en verso, de Violeta Parra, que traz importantes estrofes nas
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quais a poeta e compositora mostra sua identidade campesina, suas lutas e sacrifícios
para sobreviver ao ninguneo”. Sua identidade que é a identidade do seu povo, o povo
chileno. Em 472 estrofes com 10 versos e cada verso com oito sílabas poéticas, Violeta
mostra-se, retrata-se de forma rara, bela e inteligente, inclusive em pontos menos
relevantes em uma biografia.
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2 Violeta Parra: Trajetória biográfica, cultural e artística
“Toda mi vida fui muy sola, por eso me he
metido en tanto camino. Muchas espinas. Muy
oscuro. Muy seco todo y muy salado”.
(Violeta Parra)
Yo creo que todo artista debe aspirar a tener como meta
el fundir su trabajo en el contacto directo con el público.
Estoy muy contenta de haber llegado a un punto de mi
trabajo en que ya no quiero ni siquiera hacer tapicería ni
pintura, ni poesía, así, suelta. Me conformo con mantener
la carpa y trabajar esta vez con elementos vivos, con el
público cerquita de mi, al cual yo puedo sentir, tocar,
hablar e incorporar a mi alma” (Violeta Parra).
Lo que expresaba Violeta en el párrafo inicial era también
la culminación de un largo, tenso y fecundo período de
trabajo, durante el cual se produjo una fusión admirable y
aleccionadora: la de la vida con la obra” (Isabel Parra,
1985, p. 9)
Violeta en L’Escale, boite del barrio
latino de París, 1953.
Fonte: PARRA, 2005.
Neste capítulo apresenta-se a trajetória da artista, agitadora cultural, pesquisadora
e divulgadora do folclore chileno, Violeta Parra. Dedica-se um capítulo inteiro aos
aspectos históricos da vida de Violeta tendo em vista a importância de seu trabalho
educacional, entendendo-se aqui educação em seu sentido mais amplo, abrangendo
espaços não necessariamente escolares ou acadêmicos.
O capítulo segue uma ordem cronológica, a partir da qual alguns destaques e
comentários serão feitos à medida que for necessário explorar e enfatizar algum
aspecto da obra de Violeta. Primeiramente, tratar-se-á da infância da poeta, suas
origens campesinas e humildes e seus primeiros passos no campo da criação
artística. Em seguida, comentaremos suas primeiras atividades e apresentações
musicais, seu casamento com Luis Cereceda e seu progressivo engajamento
político, que se refletirá em suas canções. Na seqüência, destacaremos seu trabalho
de descoberta e pesquisa do folclore chileno, suas viagens pelo interior do país.
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Depois, fala-se de sua crescente popularidade, das viagens ao exterior e finalmente
de sua influência na vida cultural chilena e latino-americana.
2.1 A infância de Violeta Parra
Violeta Parra nasceu na província de Ñuble, na comuna de San Carlos, situada na
oitava região do Chile, região de Biobío o país é dividido em 13 regiões e 51
províncias. A oitava região possui quatro províncias: Arauco (capital Lebu), Biobío
(capital Los Ángeles), Concepción (capital Concepción) e Ñuble (capital Chillán),
onde está situada a comuna de San Carlos, um lugar de muita pobreza, 90 anos
atrás. Nesse lugar, ao sul do Chile, nasceu Violeta Parra, que enfrentou grande
precariedade durante boa parte de sua trajetória de vida familiar, cultural e artística.
Esse fator, porém, ao provocar uma resposta, uma resistência, pode tê-la
impulsionado ao desenvolvimento e ao sucesso de sua vida artística, transformando-
a na figura representativa da identidade cultural latino-americana da era moderna,
uma figura que, conforme comenta Fernando Sáez,
Detrás de ella, una historia impresionante de inteligencia y fuerza, de
sacrificio y voluntad, que comienza el día cinco de octubre de 1917, a
las once de la noche, fecha y hora del nacimiento de Violeta Parra
Sandoval. (SÁEZ, 1999, p. 18)
Filha de campesinos pobres, Violeta nasceu e cresceu numa modesta casa em
meio a oito irmãos. O pai, antes de ser professor primário e de música, trabalhava
esporadicamente como inspetor de estradas e vigilante de presídio, embora fosse
dedicado, sobretudo, à boemia. A mãe, dona de casa e costureira, também gostava
muito de tocar violão e de cantar acompanhada pelo marido, exímio tocador de
violino, harpa e piano (NAVARRETE, 2005). Assim, os dois conservavam a alegria
na família por meio do canto e da poesia, embora vivessem na miséria e em meio ao
desemprego freqüente, que os obrigava a mudar de um lugar a outro, às vezes
pedindo favores a parentes. Segundo Sáez,
La tierra que la vio nacer era un pueblo pequeño, rural, de unos ocho
mil habitantes. La casa de la familia, en la calle El Roble, número 5,
quedaba a pocas cuadras de la estación y del camino que llevaba a
Chillán, en el extremo sur de San Carlos. Han pasado demasiadas
décadas y los cambios profundos hacen difícil imaginar la
precariedad del lugar. La pobreza y sensillez de la vida de campo no
variaban demasiado en ese pueblo, cuya existencia se sostenía em
el movimiento agrícola de los alrrededores. El caserío sólo era un
17
pasillo entre el campo y las ciudades más importantes. Nada del
desarrollo incipiente de comienzos de siglo alteraba su calma. (SÁEZ,
1999, p. 18-19)
Um de seus irmãos, Eduardo Parra, igualmente poeta e musicista, descreve em
Décimas, suas lembranças sobre o nascimento de Violeta:
En el año diecisiete
vino al mundo la Violeta,
sin quejidos ni receta,
sólo tiene su chupete.
La madre merece un siete
por el gran alumbramiento,
el padre brinda contento
por esta niña morena...
“¡Si parece una azucena!
él grita a lo’ cuatro viento’.
[…]
Su padre, gran profesor;
su mamita, campesina;
trinaban las golondrina
‘la Violeta es un primor’.
Le gorgorió el ruiseñor,
el aire la bendecía,
sonríen las tres Marías
como flor de la mañana,
repicaban las campanas,
el mundo se estremecía.
(SANDOVAL, 1998, p. 12, 18-20)
Violeta cresce em meio à pobreza, enfrentando ao mesmo tempo muitas
enfermidades, inclusive a varíola, que deixou marcas profundas por todo o seu corpo
e rosto. Ela era dona de uma capacidade poética muito fecunda e um admirável
senso de observação do cotidiano. A semeadura, a colheita, os moinhos, as
brincadeiras infantis, os parreirais, a religiosidade do povo, tudo é um mágico
estímulo no seu mundo e no daquela família singularmente unida pela música. E
Violeta, “la niña vivaz, quando o estava doente, fazia peraltices com os irmãos
mais velhos ou estava sempre no meio dos pais, assimilando tudo e cantarolando
junto. se manifestavam seus prodígios, e era muito querida por todos da família.
Nessa época, Violeta crê ser feliz e celebra a felicidade, aproveitando as ingênuas
alegrias de viver, cantando. Isso ela mesma conta em Décimas, neste belíssimo
fragmento de sua auto-biografia:
18
Con mi abundante inocencia,
poquito a mi se me daba,
mi paire me acariciaba
con su estimable paciencia.
Mi maire de mucha ciencia,
gracias da a Dios por su niña
cuando me pierdo en la viña
armando mis jugarretas;
yo soy la feliz Violeta,
el viento me desaliña.
1
Violeta desenvolve, durante a infância e até a adolescência, seu gosto estético, ao
mesmo tempo em que vai formando sua consciência ética e social, em um ambiente
familiar regional marcado fortemente pela presença da cultura tradicional chilena,
principalmente na arte do canto e da música, a pesar da pobreza. Em 1923 inicia
seus estudos na Escuela Normal de Santiago e começa desde cedo a estudar o
violão e o canto junto a seus irmãos Hilda, Eduardo e Roberto (NAVARRETE, 2005).
Eles mesmos dão o seguinte depoimento:
“Fue muy perra la infancia de nosotros, poca alegria, éramos muy
pobres. Vendí diários, lustré, vendí piñones, la Violeta cantaba...”,
recuerda Roberto Parra. “Vivíamos todos en una sola pieza. Mi niñez
transcurrió a pie pelado, jugando con los niños de la población en los
basurales y el barro. De ahí nace todo el dolor, toda la protesta de mi
poesía”, testimonia Nicanor. Sólo la belleza de las Décimas
autobiográficas de Violeta aliegran esas condiciones, sin omitirlas.
(SÁEZ, 1999, p. 29)
E numa entrevista que seu irmão, o poeta Nicanor Parra, deu ao escritor e
professor Leonidas Morales em 2 de maio de 1990, ele faz uma rápida panorâmica
de como era o ambiente doméstico da família Parra nos anos da infância de Violeta:
N.P. jate tu. Esos detalles los recuerdo yo, que tienen que ver con
ella. Y por cierto que ella desde muy chica era un personaje que tenía
que ver con el espetáculo, ¿ah? Porque siempre en la casa el papá
como profesor primário, músico y medio poeta, era muy aficionado a
armar pequeños actos literários, en la casa, con sus hijos. Y la
Violeta que se lucía evidentemente. Ella sabía las canciones que se
cantaban.
1
Fragmento extraído do livro Décimas: autobiografía en verso, de Violeta Parra, publicado pela
Editorial Sudamericana de Santiago do Chile (1998, p. 48), com apresentações de Pablo Neruda,
Nicanor Parra e Pablo de Rokha.
19
L.M. Así es que en los actos organizados por el padre, la Violeta
intervenía con numeritos musicales.
N.P. Y ya con guitarra, eso sí. No, no, no, ella desde chica con
guitarra. Y ella reproducía entonces las canciones que salían de las
victrolas. Pero también, y eso era lo importante, las canciones de las
hermanas Aguilera, en el campo. Cantoras campesinas, cantoras de
trillas, de faenas agrícolas. (MORALES, 2003, p. 71-72)
No entanto, aos poucos Violeta foi percebendo que a pobreza e a simplicidade da
vida no campo não mudavam nunca, nada evoluía. Notava que a mãe impunha
ordem e autoridade entre os filhos, dando-lhes sempre uma atividade, cuidando para
que estivessem sempre ocupados com trabalho e com estudos, enquanto ela se
envolvia com costuras e bordados, com os quais ajudava na manutenção da casa e
no sustento da família. Esse fato, Violeta relembra com saudade, e sobre ele
escreve. Nas estrofes das décimas auto-biográficas, a seguir, notam-se algumas das
qualidades de dona Clarisa Sandoval:
Por suerte, la inteligencia
a mi mamá la acompaña,
haciendo mil musarañas
con la costura, su ciencia,
son finas sus reverencias;
si llega la Pascualita,
recibe la costurita
y luego, cuando la entrega,
un matecito le ceba
mientras guarde una varita.
[…]
Y no era cosa tan fácil
seguir con estos milagros.
Pa’ proteger nueve cabros
exige de ser muy ágil,
velando hasta en lo más frágil.
Mi mama, qué gran orgullo,
si aprovechaba hast’ el yuyo
con muy claro entendimiento,
y en los actuales momentos
sabroso hace el cochayuyo.
(PARRA, 1998, p. 53-54)
A vida difícil de Violeta Parra, obrigou-a a trabalhar muito prematuramente. Se a
situação financeira nunca havia sido boa, com o pai ficando desempregado, os filhos
são obrigados a enfrentar as ruas, os circos, no início vendendo doces, engraxando
20
sapatos atividade exercida por pouco tempo, pois Violeta logo percebeu que aquilo não
lhes daria futuro algum –, mais tarde atuando no picadeiro. Assim nos conta seu irmão
Eduardo (1998, p. 44-46):
La Violeta se alegraba
de que se lustre la gente
Charlaba con los clientes
y la plata ella guardaba.
Algún dinero gastaba
en rico pan amasa’o;
yo mirando para un la’o
después me tocaba a mi;
tortilla con mucho ají
¡con un cuarto de arrolla’o!
[…]
Varios meses estuvimos
con la Violeta lustrando;
la vida sigue pasando
y con eso no vivimos.
Parecemos unos mimos
o momias de un gran museo,
Nos chuparemos el de’o
si seguimo’ en el lustrín:
¡iremos al volantín
esos son nuestros deseo’!
[…]
De payasos escurciamos,
hicimos función de circo;
de tony se puso Mirco,
a todos entusiasmamos.
Nicanor sería el amo
o mejor era el galán,
Roberto de sacristán,
La Hilda hizo ‘e clonesa...
¡la mamá desde una mesa
nos aplaudía a rabiar!
Na década de 1930, por iniciativa do poeta Nicanor, seu irmão mais velho,
muda-se para Santiago, onde continua seus estudos com bastante dificuldades
financeiras, vivendo de favores em casa de parentes conforme palavras de seu
irmão Eduardo –, e, sem parar de compor, se forma professora pela Escola Normal
de Santiago. Ser professora era uma das vocações que desde cedo se manifestava
em Violeta:
21
La Violeta estudiaba
en la calle Matucana;
con las notas de la diana
a las seis se levantaba.
A su maestra adoraba
esta niña prodigiosa;
con alas de mariposa
todo el mundo puede ver:
¡será famosa mujer
entremedio de las rosa’!
En la casa de unos tíos
se ganaba la comida;
era niña muy sufrida
y no le temía al frío.
Atendiendo a unos críos
que eran medio parientes,
siempre sigue la corriente
sirviéndole a los demás;
no descansa ella jamás,
‘ta mirando pa’l poniente.
Enseñándome lectura
lo pasa toda la tarde;
lo digo sin un alarde,
¡es más clara que los cura’!
Me da clases de cultura
y cantos con sentimiento;
que no me crea de cuento
de los malos compañeros,
Que a los que no son sinceros
¡los despida en el momento!
(SANDOVAL, 1998, p. 54-55)
A vida escolar de Violeta Parra foi difícil, marcada por discriminações desde
os primeiros anos, devido não só à pobreza, como também pelas notórias marcas
deixadas pela varíola. Isso levou-a a sentir-se feia. Em algumas ocasiões chegou a
definir-se como “a mulher mais feia do planeta, que espantava aos que por acaso
aproximavam-se dela”, como mostra estas duas estrofes de suas décimas auto-
biográficas:
Aquí principian mis penas,
lo digo con gran tristeza,
me sobrenombran “ maleza”
porque parezco un espanto.
Si me acercaba yo un tanto,
miraban como centellas,
diciendo que no soy bella
22
ni pa’ remedio un poquito.
La peste es un gran delito.
para quien tiene su huella.
De llapa, mis compañeras
eran niñitas donosas,
como botones de rosa
o flores de l’azucena.
P’a más desgracia, docenas
lucían su buena plata,
la Viola, una garrapata
menor d’un profesorcito
de sueldo casi justito,
se nos volvía ojalata.
(PARRA, 1998, p. 49-50)
Há escritores e estudiosos de sua biografia que acreditam ter sido esse
sentimento que a levou ao desenvolvimento e paixão pela arte, não da
composição e do canto, bem como, mais tarde, pela arte da tapeçaria, da cerâmica,
do bordado e da pintura. Como por exemplo, Fernando Sáez em La vida intranquila,
Violeta Parra – biografía esencial, assim argumenta:
Para Violeta comienza una época difícil. Las notorias marcas que la
viruela dejó en su cara no pasan desapercibidas para sus
compañeras. Éstas la señalan y le hacen burla de su defecto con
todo ese envalentonamiento de la crueldad veraz de esa edad que no
conoce de concideraciones ni lástima. Para sobreponerse a la
vergüenza, ella se empeña en los estudios y saca a relucir
creatividad y viveza, reconocida y alentada por su profesora, la
señorita Berta, quien la distingue con su aprecio, ocupando su
imaginación y sus cualidades de organizadora para los muchísimos
festejos y celebraciones que se desarrollan durante el año: Fiestas
Patrias, cumpleaños de la directora, cualquier fecha sirve de pretexto
para revertir la apatia del ambiente. En esas actividades Violeta es la
encarregada de los cantos, de inventar coplas alusivas que alguien
todavia recuerda... la señora directora / piquito ‘e zorzal / será
siempre feliz / debajo ‘el peral... y en esas ocasiones aparece
actuando con un desconocido desplante que deja olvidados por
algunos momentos los malos ratos con sus compañeras. (SÁEZ,
1999, p. 27)
Violeta foi, assim, tornando-se uma excepcional artista e criadora de seus
poemas, décimas e canções. Sua visão da cultura popular era, particularmente,
integral, como veremos adiante. Compôs aproximadamente 130 canções e poemas
originais e compilou, organizou e difundiu cerca de três mil temas.
23
2.2 O casamento com Luis Cereceda e a trajetória artística
Em 1938, Violeta casa-se com Luis Cereceda, maquinista ferroviário e militante do
Partido Comunista chileno, e tem dois filhos: Isabel e Ángel, que seguem os mesmos
passos da mãe. Nessa época, Violeta cantava num restaurante chamado No me
olvides, em Llay-Llay, na Quinta Región (NAVARRETE, 2005). Na rotina diária, tinha
o perfil de e e esposa dedicada, e muito hábil na cozinha como toda mulher
camponesa. Além disso, madrugava escrevendo poesias que fluíam naturalmente,
segundo Sáez (1999, p. 41-42):
(...) En la rutina de la casa, ella era madrugadora, obsesiva con la
limpieza y hábil en la cocina. En ese tiempo es cuando comienza a
llenar cuadernos con una poesía que le brota naturalmente y que,
según describe su marido, es una habilidad superior a su empeño
con la guitarra. Con seguridad, una veta descubierta por su hermano
Nicanor quien, en su admiración, intentaba siempre darle tareas,
ponerla a prueba, inventarle un aliciente que la obligara a descubrir
nuevas posibilidades en la creatividad vislumbrada.
Esse casamento, porém, dura apenas dez anos. O cotidiano estreito e
sacrificante da vida familiar e proletária deixava-a triste, com a sensação de estar
condenada a viver na “mediocridade” e no esforço diário de sobrevivência. Esse
sentimento leva Violeta a mover-se em busca de uma realização íntima, a realização
de algo em princípio para ela indefinível, alguma coisa que normalmente a
inteligência intui, mas a realidade, muitas vezes, se encarrega de refutar.
Então, em meio a um emaranhado mundo de idéias, projetos e desejos, tem
início sua conturbada vida artística, tendo como marco sua participação e vitória num
concurso literário, pouco tempo depois do nascimento de Ángel, seu segundo filho,
em 1943.
Violeta seguía con la escritura y tuvo su primer reconocimiento aL
presentarse a un concurso organizado para la Fiesta de la Primavera en el
vecino pueblo de Quillota, donde obtuvo una mención honrosa por su poema
titulado “A la reina”. (SÁEZ, 1999, p. 43)
Ainda nesse tempo Violeta canta canções espanholas e argentinas e une-se a
uma companhia de teatro que viaja por todo o país. Muda-se para vários lugares:
serra Los Placeres, rua Andes 3756. Também participa de um concurso de canto no
Teatro Baquedano em 1944. Ao lado do marido Violeta se envolve na atividade
24
política e participa da campanha eleitoral de Gabriel González Videla.
Em 1945, fascinada pela música e a dança espanhola, em moda na época,
Violeta tornou-se exímia bailarina participante em concursos:
La moda de la música española – pasodobles, farrucas y sevillanas
se había introducido por la llegada de numerosos inmigrantes
españoles y republicanos, al finalizar la guerra civil. Sus canciones y
bailes entusiasmaron a Violeta quien llegó a ser una experta, tanto
como para presentarse a un concurso de baile español en el Teatro
Balmaceda donde inesperadamente sacó el primer premio,
compitiendo con veinte españolas auténticas. (SÁEZ, 1999, p. 43)
Violeta começou a assumir compromissos de bailes e cantos. Em 1948 a
separação foi inevitável, diante de constantes exigências do marido que a queria
“dona de casa”, idéia da qual ela não compartilhava. Sobre a separação dos pais,
Isabel Parra diz em seu livro que, em certa ocasião, em que Violeta era entrevistada
e perguntada a respeito, ¿y el padre de sus hijos, su marido? Ela respondeu
enfaticamente, usando da sinceridade e naturalidade qualidades que lhe eram
peculiar: Estoy separada de él. No apreciaba mi trabajo y no hacía nada cuando
estaba con él. Quería una mujer que le limpiara y le cocinara(PARRA, Isabel, 1985,
p. 34). A própria Violeta, em suas Décimas autobiográficas, escreve sobre o
casamento e a separação:
Anoto en mi triste diario:
Restaurán el Tordo Azul;
allí conocí a un gandul
de profesión ferroviario;
me jura por el rosário
casório y amor eterno;
me llega muy dulce y tierno
atá’ con una libreta
y condenó a la Violeta
por diez años de infierno.
[...]
A los diez años cumplí’os
por fin se corta la guincha,
tres vueltas daba la cincha
al pobre esqueleto mío,
y p’a salvar el sentí’o
volví a tomar la guitarra;
con fuerza Violeta Parra
y al hombro con dos chiquillos
se fue para Maitencillo
a cortarse las amarras.(PARRA, Violeta, 1988, p. 147-148)
25
2.3 Violeta Parra como pesquisadora e divulgadora do folclore chileno
Em 1949 casa-se pela segunda vez, agora com Luis Arce, que também tinha
muitas afinidades com o mundo das artes, por isso Violeta teve todo apoio e
companheirismo de que precisava para pôr em prática seus projetos inerentes a
essa nova inspiração e aspiração: a de resgatar a tradição do povo campesino
chileno. Também em 1949, começa a cantar com sua irmã Hilda, gravando inclusive
discos pela RCA Victor (NAVARRETE, 2005).
Em 1952, o casal fundou a companhia cultural de variedades Estampas de
América, da qual Violeta era a diretora, além de vendedora dos ingressos e roteirista.
Tratava-se de uma companhia de circo popular. E assim percorriam inúmeras
províncias do país, distanciadas desse tipo de entretenimento cultural. Nessas
viagens, Violeta unia a arte do canto e da dança com o trabalho voluntário de
pesquisa e compilação do folclore. O interesse pelo folclore teve duas causas
principais: o contato direto com o povo campesino e sua riqueza cultural, e a
influência de seu iro Nicanor, quem a estimulou a recopilar e pesquisar a música
folclore do Chile e seus mais variados ritmos e gêneros.
Es en el año 1953 cuando Violeta Parra comienza la ardua tarea de
recopilar, sin medios, sin estudios, con la pura fuerza del empeño y la
convicción. Meses de trabajo y conocimiento fueron dando un cambio
radical que se percibía también en su aparência, como si se
despojara y abjurara de toda banalidad y le fuera imposible aceptar la
más pequeña impostura. Una especie de soberbia de quien posee
una verdad se le fue encarnando. Era ella misma y a la vez no era
más que una auténtica y absoluta representante de toda esa cultura
que permanecia escondida. Y ese fanatismo y convencimiento la
convertían en una monja de religión inventada a quien nada ni nadie
doblegaría. (SÁEZ, 1999, p. 55)
Nesse trabalho de viajar por todo o país, resgatando o canto folclórico e
aprendendo novos ritmos e danças, Violeta encontrou a si mesma, assumindo a
identidade que lhe era verdadeira, tornando-se a autêntica representante da cultura
raiz do povo chileno. Mas, como argumenta Morales (2003, p. 28), às vezes se
entristecia por sentir que as tradições do povo chileno estavam desaparecendo:
26
(...) A comienzos de la década del 50, cuando inicia sus viajes de
recopilación del canto tradicional a lo largo de todo el país,
“desterrando” folclor, como ella decía, llega a una conclusión, para
ella, sin duda desastrosa: “la tradición es casi ya un cadáver. Es
triste...
É curioso notar que desde o período compreendido entre as décadas de 1940
e 1950, tem início na vida de Violeta Parra um processo que a conduz à consciência
de que a cultura tradicional de onde ela vinha e à qual se mantinha fortemente
unida já começava a desaparecer por força da expansão do modernismo. Mas
esse processo, embora a entristecesse, não a faz desistir nem diminui sua
identificação com a alma da cultura folclórica, ao contrário reforça ainda mais sua
sede de transmitir seus valores a um público moderno. E, quanto mais anotava as
canções, quanto mais compilava, mais deslumbrada ficava com a riqueza da
tradição, que parecia esquecida e tão diferente do que se ouvia no radio naquele
mesmo tempo. Para Violeta, o que se ouvia no rádio não tinha a profundidade nem o
sabor da poesia e da música folclórica. Assim, além de anotar as canções, ela
também ia classificando os costumes, as comidas, as bebidas as roupas e
acessórios folclóricos. Violeta se convencia cada vez mais da grande distância
existente entre o tradicional e o moderno. Por isso, e por sua paixão pela tradição,
tornou-se uma pessoa obcecada, conforme os argumentos de Sáez:
Buscar las fuentes del folklore se convertió en una obsesión que la
hacía interrogar hasta en la Plaza de Armas, en las micros, donde
fuera, a qualquier cabeza blanca, preguntándoles si venían del norte
o del sur, indagando por parientes, persiguiendo qualquier seña que
la llevara a un hallazgo. (SÁEZ, 1999, p. 59)
uma fala de Hernán Godoy, historiador chileno, em seu livro Estructura
social de Chile (1971, p. 342 e seguintes), usada pelo Dr. Leonidas Morales T.
(2003, p. 36) para explicar que, da segunda metade do séc. XIX até a década de
1940, seu país, por força de um movimento de reprodução da sociedade burguesa
industrial, experimentou um processo de erosión y desarticulación de la cultura
folclórica, esta cae en un estado crítico: O campesino emigra para a cidade,
fascinado pelas “ofertas” e facilidades oferecidas pelas indústrias, e movido pelo
sonho de experimentar uma vida moderna:
27
Son numerosos los factores que participan en ese proceso erosivo:
la emigración del campesino a las ciudades (la población urbana
supera a la campesina en la década del 40), el aumento de la
presencia de escuela en los campos (en 1920 se había dictado la
Ley de Introducción Primaria Obligatoria), la influencia de las radios y
sus programaciones, la posibilidad de escuchar en las casas discos
de música popular urbana mediante aparatos mecánicos de
reproducción (“victrolas”), una comunicación más fácil con los
centros urbanos por la construcción de nuevos caminos, la difusión
del automóvil. Y en el trasfondo, una intensa industrialización del
país, que pone al alcance de los sectores campesinos productos de
consumo masivo, con el inevitable abandono de los tradicionales
(alimentos, vestuario, decoración).
2
E é nesse período, mais especificamente nas décadas de 1930, 1940 e 1950, que se
acentuam os estudos e as investigações sobre o folclore chileno, com o apoio das
universidades, incumbidas de resgatar e difundir a poesia e o canto folclóricos.
Violeta, então, começa a despontar” com sua arte, como diz Morales T. (2003, p.
37):
El más importante de los trabajos en esta última área, es el de
Violeta misma.
3
Ainda nesse período, em 1952, Violeta oferecia recitais em universidades
chilenas, apresentada pelo escritor, editor e professor Enrique Bello Cruz. Assim
também vai à Escuela de Verano de Concepción e ministra cursos de folclore na
universidade em Iquique (NAVARRETE, 2005).
Em 1953, grava suas primeiras canções em um disco da EMI Odeón. Uma
delas está baseada num tema folclórico a partir do qual Violeta compõe:
Casamiento de negros”. A outra canção é Qué pena siente el alma”. Esse disco
deu a Violeta grande popularidade. Ao mesmo tempo, Violeta continua seus contatos
com músicos campesinos, que lhe ensinam a tocar o guitarrón, um instrumento de
25 cordas e outros instrumentos do folclore chileno (NAVARRETE, 2005).
Todo esse trabalho, esse descobrimento apaixonante impulsiona sua própria
criação, embora sem recurso financeiro, muitas vezes pedindo patrocínios. E sempre
acompanhada dos filhos que, mal caminhavam, eram iniciados na arte da dança,
do canto e da guitarra, participando desde muito cedo nas apresentações de palco.
Como argumenta Sáez, gravidez e parto eram coisas naturais para Violeta e,
2
MORALES, T. Leonidas. Violeta Parra: la última canción. Santiago: Editorial Cuarto Propio, 2003, p.
36.
3
Op. cit., p. 37.
28
literalmente, seus filhos eram parte dela mesma:
Los embarazos, el parto, la maternidad, resultaban para ella algo
natural, propio de la vida corriente y cotidiana, sin que nada de esto
impidiera ni npostergara sus labores. Sus hijos eran parte de ella, en
un sentido muy literal. Isabel, Ángel y luego Carmen Luisa la
acompañaban en su trabajo, participaban de sus proyectos y apenas
caminaban cuando ya tomaban la guitarra para bailar y cantar.
(SÁEZ, 1999, p. 75)
Não só seus filhos, mas seu segundo marido, Luis Arce, a acompanhava
ajudando em tudo e era o mais otimista com relação ao sucesso de suas canções,
principalmente quando Violeta inscrevia-se em concursos. Ela normalmente recebia
o primeiro prêmio.
2.4 Viagens ao exterior e viagem pelo interior do país
Em 1954, ano em que nasceu sua filha Rosita Clara, Violeta apresentava
programa na Radio Chilena. Esse programa alcançou grande popularidade,
chegando ao primeiro lugar na preferência nacional (NAVARRETE, 2005). Nesse
mesmo ano, Pablo Neruda dedica a Violeta Parra um poema, confirmando a
importância de sua obra na histórica da cultura chilena. E ainda nesse ano, Violeta
inicia um projeto de pesquisa folclórica que a faz percorrer todo o país, entrevistando
cantores populares, dançarinos, sábios, contadores de história. A tudo Violeta
registrava por escrito e em gravações sonoras. É então que recebe o Prêmio
Caupolicán como melhor folclorista do ano.
Esse período frutífero na vida de Violeta marca também suas primeiras
viagens ao exterior. Participa de um Festival de Juventude na Polônia, viaja pela
União Soviética, Suíça, Inglaterra, mora por dois anos na França e tem contato com
vários intelectuais europeus (NAVARRETE, 2005). No exterior, Violeta continua seu
projeto de gravação musical e de divulgação da cultura chilena. Esse contato com o
mundo europeu é extremamente importante para a confirmação da identidade
cultural tão marcadamente apresentada nas canções e na postura de Violeta Parra.
Fazendo um trocadilho com uma das canções mais famosas da cantautora,
Morales (2003) comenta que Violeta sofre, luta, cai, levanta e recomeça tudo de
novo, dando gracias a la vida”. Então ela canta, dança e celebra a alegria de viver,
embora muitas vezes sentisse inexplicável tristeza e solidão que raramente
29
externava. Seu canto é de resistência e teimosia pela preservação da cultura do
povo campesino chileno:
(...) la tradición, como fuente de los valores que alimentan la verdad
artística, tiene su horizonte clausurado y se ha convertido en “casi ya
un cadáver”. Por eso la “tristeza” no puede ser desalojada de las
formas artísticas: “Mis trabajos son una verdad simple y alegre dentro
de la tristeza que hay en cada uno de ellos. Yo soy un pajarito que
puedo subir en el hombro de cada ser humano, y cantarle y trinarle
con las alitas abiertas, cerca, muy cerca de su alma”. (MORALES,
2003, p. 29)
Essas palavras de Violeta nos permitem perceber não a importância da
tradição na sua trajetória de vida, cultural e artística, bem como a dimensão da
tristeza que ela sentia ao vislumbrar um futuro fúnebre às raízes da sua cultura, da
cultura chilena que, para ela são alicerces da verdade em qualquer criação artística.
A canção Qué pena siente el alma”, gravada em 1953, retrata esses sentimentos
de tristeza e solidão de que Violeta era acometida frequentemente, embora seja
preciso separar obra de autor:
Qué pena siente el alma
cuando la suerte impía
se opone a los deseos
que anhela el corazón.
Qué amargas son las horas
de la existencia mía
sin olvidar tus ojos
sin escuchar tu voz.
Pero me embarga a veces
la sombra de la duda
que por mi mente pasa
como fatal visión.
Qué pena...
Em 1955, ao receber o Prêmio Caupolicán de melhor folclorista ela aceita,
também, o convite para participar do Festival da Juventude em Varsóvia. Violeta não
queria perder a chance de viajar para a Europa e divulgar seu trabalho, embora
admitisse que não seria fácil ausentar-se da família por tanto tempo. Ela lamentava,
principalmente, ter de deixar Rosita Clara, seu bebê de apenas nove meses. Ao seu
marido, Luis Arce e a Ángel, seu filho de treze anos, na época, coube a
responsabilidade de cuidar da bebê. Violeta parte com uma delegação de 70
pessoas entre chilenos, argentinos e uruguaios, em 3 de julho desse mesmo ano,
rumo a Buenos Aires e de lá para a Europa, no dia 7.
30
Fernando Sáez conta que:
Durante quince días el festival se realizó en el enorme Palácio de la
Cultura y la Ciencia Stalin recién donado por La Unión Soviética. Allí
los países presentaban las distintas manifestaciones de teatro, ballet,
marionetas, bailes y canciones típicas que luego repetían al aire libre
en parques y calles donde había numerosos escenarios. También a
orillas del stula por las noches continuaban las fiestas con fuegos
artificiales, mientras en el estadio se realizaban competencias
atléticas. En diversos teatros se representaban a su vez el Gran Circo
de Moscú, la Ópera China y el ballet Bolshoi. La intensa vida social
se daba en las calles, pero también en las recepciones oficiales en
los Palacios de las Embajadas de Russia y China. (SÁEZ, 1999, p.
80-81)
Em meio a vários recitais nessa temporada e trabalhos intensos, almejando
sempre o sucesso, menos de um mês de sua viagem a União Soviética, Violeta
recebe a notícia da morte da bebê Rosita, que a deixou desesperada, ainda mais
sabendo que qualquer esforço para voltar e interromper seu projeto imediatamente,
seria inútil diante da distância e a dura realidade.
Terminado o festival em Varsóvia, Violeta tratou de cumprir seus propósitos e
todos os compromissos assumidos na ocasião, viajando para a França, seu primeiro
objetivo.
Luego, por su cuenta y riezgo, se inscribió para actuar en el
escenario del anfiteatro de La Sorbone donde se realizaba el Festival
Internacional Folclórico, representando a Chile, sola con su guitarra,
en medio a las numerosas y organizadas delegaciones de los otros
países.
(...) Con cartas de presentación de Pardo y Cuto Oyarzún, emprendió
viaje a Londres. Para su sorpresa, lo que en París le había costado
meses, allí lo logro en diez dias. Tres casas grabadoras se
interesaron por ella. Pero por sus obligaciones anteriores grabó solo
con Odeon un disco larga duración con dieciocho canciones. Dejó su
voz en los archivos de la BBC, actuó en dos programas de televisión,
dió dos recitales en la Cunning House y fue invitada a casa de
intelectuales y artistas donde también canto. (SÁEZ, 1999, p. 86)
Um ano e meio de separação e as conseqüências da morte de Rosita Clara,
afetando diretamente a relação conjugal, o segundo casamento também fracassa.
Violeta volta ao Chile no final de 1956, para junto de seus filhos. Mais uma vez
reunidos, ela recomeça sua infatigável divulgação do canto folclórico chileno, e as
tentativas de conseguir apoio para continuar seu trabalho de pesquisa e compilação
desse rico material.
31
Em 1957 é convidada pela Universidade de Concepción, no Sul do Chile, para
fazer tal trabalho de pesquisa e oferecem-lhe moradia na casa onde funcionava o
Instituto de Arte. Finalmente, Violeta ganha a oportunidade de pôr em prática seus
grandes projetos:
No podía ser un lugar más auspicioso para los proyectos en grande
que Violeta siempre soñaba para sus afanes. Comenzó su trabajo de
recopilación en las zonas campesinas de Hualqui, Bellavista, Santa
Juana, encontrando una impresionante variedad y cantidad de
cuecas comunes, cuecas literarias, sólo para ser recitadas, cuecas
valseadas, donde las parejas bailan tomadas, cuecas largas, y
cuecas balanceadas, para cuando está la fiesta decaída y la cantora
va introduciendo en el texto los nombres de los presentes como una
manera de obligarlos a recomponer-se. (SAEZ, 1999, p. 96-97)
Nesse percurso de compilação, é presenteada com diversos instrumentos e
antigos livros de música. Isso a motiva a propor, à mesma Universidade, a criação de
um museu do folclore. Cedem-lhe mais duas salas e, no período de um ano, em
janeiro de 1958, é inaugurado o Museo Nacional del Arte Folklórico Chileno:
Con la celeridad con que ella hace las cosas, inaugura su flamante
Museo Nacional del Arte Folklórico Chileno, el veintidós de enero de
1958, coincidiendo esta fecha con el inicio de los cursos de la
Escuela Internacional de Verano que dirigía el poeta Gonzalo Rojas.
En el museo juntó con gramófonos primitivos, arpas, guitarrones
antiquísimos, charangos, panderetas, cultrunes y tomos centenarios
de canciones españolas que había descubierto en perdidos rincones
de la zona. (SAEZ, 1999, p. 97)
Durante esse período, Violeta compôs cerca de quarenta músicas, inclusive
musicou alguns poemas de Pablo Neruda: No te quiero sino porque te quiero,
Canto General e El Pueblo”, e de seu irmão, o poeta Nicanor Parra, Cueca de los
poetas” eEl hijo arrepentido”. Violeta chega a participar do II Encontro de Escritores
de Concepción (NAVARRETE, 2005).
2.5 Uma artista multifacetada
No ano de 1959, uma enfermidade a deixou de cama alguns meses e, por
ordem médica, necessitava repouso absoluto, idéia intolerável para ela, motivo pelo
qual deu início à arte do bordado, da pintura e da cerâmica. Ela mesma fala como
teve a primeira inspiração para a arte do bordado e tapeçaria:
32
Un a vi frente a un trozo de tela y empecé a hacer cualquier
cosa, aunque no pude producir nada esa primera vez, la segunda vez
quise copiar una flor, salió como una botella, después quise poner un
tapón me salió como cabeza, entonces dije, eso es una cabeza. Le
puse nariz, ojos, boca. La flor no era una botella, era una señora y
esa señora mira... El problema no es el más simple del mundo, no sé
dibujar”, respondió tiempo después en una entrevista cuando sus
arpilleras ya eran parte de ella misma. (SAEZ, 1999, p. 104-105)
Entusiasmada com a beleza e o colorido dos fios de lã, dedicou-se ao bordado
ponto por ponto, e sem desenho prévio. Em qualquer tecido, ela deixava as idéias
fluírem como numa canção ou num poema. Foi adquirindo prática à medida que se
recuperava da doença. Em pouco tempo, já estava voltando à vida cultural de
Santiago, no Café São Paulo, um ponto de encontro de escritores, artistas,
intelectuais, atores, jornalistas, poetas e dançarinos que iam chegando a uma hora
da tarde e se juntando ao grupo de interesse de cada um. Fernando Sáez conta que:
Nacían amores y amistades a esa hora del día en que la única bebida
era el café, en medio de conversaciones y discusiones intensas,
donde se comentaban libros y espetáculos del momento. Se
organizaban también las fiestas para la noche, se intercambiaban
datos de trabajos, se daban a conocer proyectos, se concertaban
entrevistas para los diarios, conviviendo la política y el arte en el ir y
venir constante del mediodía. Quien quería estar vigente, no podía
faltar al São Paulo. Violeta era una clienta habitual. Allí encontraba a
sus amigos y era su momento de recreo después de sus diligencias
por el centro, cobrando derechos de autor, siempre escurridizos,
comprando lana y géneros para su trabajo, moviendo sus contactos
en radios y siempre con algún proyecto que necesitaba sacar
adelante. (SAEZ, 1999, p. 105-106)
Nessa ocasião, aprende com a amiga Teresa Vicuña famosa na época a
arte da cerâmica, depois de insistentes palpites sobre o trabalho da escultora, que
sugeriu que ela mesma pusesse a mão na argila e produzisse também para si. O
resultado foi surpreendente, moldando figuras de homens e mulheres simples e
primitivos, inspirados em cenas de sua infância.
Também nessa mesma época a Universidade de Antofagasta a convida para
dar cursos sobre o folclore, o que Violeta desempenhou muito bem. De volta a
Santiago, hospeda Victor Jara, brilhante estudante de teatro da Universidade do
Chile, que conheceu no Café São Paulo.
A convite do Ministro da Educação, viaja à Ilha de Chiloé, para dar cursos de
folclore, pintura e cerâmica, além de fazer inúmeros recitais (NAVARRETE, 2005).
33
Dessa viagem, Violeta trouxe vasto material sobre novas danças, que aproveitou
para apresentar em festivais organizados pela Faculdade de Música. Nesse mesmo
tempo escreve um livro de folclore, resultado de sua longa pesquisa, reunindo
fotografias, partituras de músicas e depoimentos. Participa em filmes documentários:
Mimbre, Casamiento de negros, La Tirana e La trilla. Grava o LP Toda Violeta Parra.
Em dezembro de 1959 participa da primeira Feira de Artes Plásticas, uma feira ao
ar livre com quase mil expositores, onde Violeta modelava figuras em argila e as
vendia, juntamente com suas telas bordadas ou pintadas. Sáez (1999, p. 113) traz
interessante detalhe sobre esse trabalho de Violeta:
A los artistas también se sumaron escritores y poetas, que ofrecían
sus libros con el respectivo autógrafo: Pablo Neruda, con su
característica tinta verde, agregaba a la firma un pequeño dibujo. Se
mostraban además las técnicas de cada especialidad, trabajando
todos a la vista del público. En un pequeño espacio, Violeta desplegó
sus arpilleras, que hoy muchos se arrepienten de no haber
comprado, y sus discos, distribuyendo su tiempo entre la
interpretación de canciones y el modelaje de figuras de greda...
No ano seguinte, assina um contrato com a Radio Minería, para apresentar
os programas alusivos às Fiestas Patrias e, ao mesmo tempo, a Universidade do
Chile inaugura um importante canal de televisão, dando-lhe a oportunidade de ser a
apresentadora de rios programas pioneiros no país. Para tanto, preparou-se muito
bem, com o mesmo afinco e seriedade, sempre acima do que era exigido. Violeta era
naturalmente simples e ingênua, mas muito exigente consigo mesma, e minuciosa
quando se tratava de relação com o público.
2.6 Dramas sociais, alegrias e dilemas pessoais
Em 5 de outubro de 1960, dia em que completava 43 anos, Violeta conheceu
Gilbert Favré, um antropólogo suíço interessado em folclore, com quem viveu e
compartilhou intensamente sua paixão pela cultura, pela arte poética e pela música,
até pouco tempo antes de morrer. Nesse mesmo ano homenageia o poeta Thiago de
Mello com uma figura em bordado do poeta, que era diplomata do governo brasileiro.
Nos dois anos seguintes se apresenta algumas vezes na Argentina, onde
também expôs suas telas e esculturas. Ao mesmo tempo, cumpre um contrato de
três programas para o canal treze da emissora de televisão de Buenos Aires,
34
aproveitando a oportunidade para gravar um disco para a gravadora Odeón, que
teve sua venda proibida por conter uma música com letra “corrosiva”: Porque los
pobres no tienen”:
Porque los pobres no tienen
adonde volver la vista,
la vuelven hacia los cielos
con la esperanza infinita
de encontrar lo que su hermano
en este mundo le quitan, ¡palomita!
¡qué cosas tiene la viday, zambita!
Porque los pobres no tienen
adonde volver la voz
La vuelven hacia los cielos
buscando una confesión
ya que su hermano no escucha
la voz de su corazón, palomitay,
¡qué cosas tiene la viday, zambitay!
Porque los pobres no tienen
en ese mundo esperanza
se amparan en la otra vida
como en justa balanza
por eso las procesiones,
las velas, las alabanzas, palomitay,
¡qué cosas tiene la viday, zambitay!
Essa canção traz a mais importante característica de Violeta Parra em sua arte
poética: o jogo, a combinação, a relação do homem com a natureza. O campesino
chileno em sua visão unitária do ser com a natureza, no seu labor oral de
transmissão de seu saber, perturbado pelo poder da sociedade urbana moderna.
De tiempos inmemoriables
que se ha inventado el infierno
para asustar a los pobres
con sus castigos eternos
y al pobre que es inocente
con su inocencia creyendo, palomitay,
¡qué cosas tiene la viday, zambitay!
Ela manifesta o conflito campo-urbanidade e critica duramente o governo, que
ignora o campesino, no lo escucha, no lo ampara, y él, entonces, vive ‘en ese
mundo de esperanza, con su inocencia creyendoem Deus e obedecendo as leis da
Santa Madre Iglesia. Outra crítica que Violeta faz à Igreja Católica e seus dogmas de
fé, que na sua opinião são ilusórios.
35
Y pa’ seguir la mentira
lo llama su confesor
le dice que Dios no quiere
ninguna revolución
ni pliego ni sindicato
que ofende su corazón, palomitay
¡qué cosas tiene la viday, zambitay!
(PARRA, 2005, 95)
Era abril de 1962. Seu maior entusiasmo, nesse período que passou em Buenos
Aires, foi o convite para dar um recital no Teatro Popular Israelita, localizado no
bairro Once, com capacidade para quinhentas pessoas, no dia vinte e sete às vinte e
uma horas, onde Violeta pode cantar e expor sua “artesanía”.
Um mês depois, prepara-se para viajar a Helsinki, na Finlândia, para um Festival
da Juventude. É nessa oportunidade que ela realiza um dos seus maiores sonhos,
que era o de estar trabalhando em família, todos juntos, formando um grupo artístico
autêntico e incomparável:
A fines de mayo de 1962 se embarcan en el Yapeyú sumándose a la
delegación de Chile y a las de Argentina y Uruguay que viajan al
Festival. Al grupo de Violeta, formado por Angel, Isabel y su nieta
Tita, se incorporo Quico Bello, bailarín y músico, hijo de Henrique
Bello, un antiguo amigo de Violeta, de gran influencia en el mundo
cultural chileno, creador de la Revista Pro Arte. Durante la travesía,
Violeta enseñó cueca a la delegación y prepararon coreografías para
la presentación del grupo, entre ellas una alegoría de Casamiento de
Negros. (SAEZ, 1999, p. 127)
O grupo conseguiu o primeiro lugar no festival, o que lhe proporcionou
inúmeros convites. Apresentaram-se em várias cidades da União Soviética, seguido
de muitos recitais na Alemanha, Itália e França. Em meio a tanto trabalho, Violeta
tem uma forte crise de vesícula e é internada num hospital, onde, erroneamente,
operam-na de apendicite. O grupo segue cantando sem ela.
Recuperada da cirurgia, mas tensa pelos muitos problemas causados pela
separação inesperada do grupo talvez sentisse que não mais conseguiria
acompanhá-los –, decide partir para Paris, onde se instala, sozinha, no Hotel de
Flandre, na rua de Cujas, número 17. Segundo Sáez (1999), Violeta buscava um
pouco de silêncio, buscava paz:
(...) convirtiendo rápidamente su habitación en un taller de trabajo
donde se dedicaba a sus arpilleras y cuadros. Por las noches
36
comenzó a actuar nuevamente en L’Escale donde, después de cuatro
años, parecía que nada había cambiado, el mismo humo, las mismas
batallas para conseguir silencio en medio de sus actuaciones. Este
silencio que siempre exigía, no era un capricho, nacía del
conocimiento cabal de lo que era su música. Cualquier ruido,
cualquier interferencia, cualquier conversación, transgredía de
inmediato la atención que esta música precisaba. El silencio es y
sigue siendo el único requisito para escuchar las interpretaciones de
Violeta Parra y compenetrarse con ellas, para poder apreciar su
indudable valor y trascendencia. (SAEZ, 1999, p. 129)
Escreve muitas cartas ao marido, Gilbert Favré, que havia ficado em Santiago.
Mais um casamento em crise. Em 1963, Gilbert volta para a Suíça e retoma seu
trabalho. Violeta adoece novamente em Paris e ele a translada para Genebra.
Recupera-se e prepara um recital de cantos e danças latino-americanas a convite do
Departamento de Arte e Cultura da Universidade de Genebra. Gilbert, que era um
exímio flautista, também se apresentou com o grupo dos Parra. Entretanto, Violeta
queria voltar para Paris, onde havia combinado exposições em várias galerias.
Separou-se de Gilbert, prometendo-lhe cartas.
Sempre muito ocupada e preocupada em não perder tempo, quase não
participava dos grupos que se reuniam no Café Le Danton. se encontrava com
Diego Ortíz de Zárate, que transcrevia suas composições para o Francês e Frida
Sharim, que a acompanhava às editoras, conseguindo, assim, em 1965, a
publicação de Poésie populaire des Andes (NAVARRETE, 2005; SAEZ, 1999).
Em setembro de 1963, participou da festa anual do diário L’Humanité, junto
com Ángel e Isabel, para uma platéia de seiscentas mil pessoas. Em 1964, depois de
várias tentativas e três meses de preparação, expõe no Museu do Louvre, na
enorme sala del pabellón Marsan, inaugurando a exposição no dia dezoito de abril e
encerrando em onze de maio. Foi a primeira vez que um artista latino-americano
expõe nesse museu. Uma façanha histórica. Assim nos conta Sáez:
Hasta la fecha del cierre, el once de mayo, Violeta permaneció casi
todo el tiempo en el lugar, cantando con su guitarra y trabajando en
nuevas arpilleras frente al público que asistía, muchos de ellos
interesados en comprar su obra. Por esos días vendió varias piezas
de su trabajo. Los chilenos Arturo Prat y Elena Walker compraron El
Guitarrista, la psiquiatra Françoise Dolto, la tapicería El Árbol de La
Vida y la Baronesa de Rotschild, atraída por las favorables críticas
aparecidas en los diarios, eligió Thiago de Mello que Violeta había
hecho en 1961, en homenaje a su amigo agregado cultural del Brasil.
(SAEZ, 1999, p. 136)
37
No mesmo mês de encerramento da exposição no Louvre, Violeta se
apresenta num musical no Théatre de Plaissance, na Rue du Chateau, onde já havia
se apresentado em janeiro, num recital de poetas latino-americanos. Com todo êxito
obtido e sua arte num constante desenvolvimento, planejava comprar uma
caminhonete Volkswagen tipo furgón e percorrer a Europa na companhia de
Gilbert, levando a todos os lugares sua música e seus trabalhos de arte. Voltou para
Genebra, mas não convenceu o marido sobre seu projeto. Ele não estava
suportando mais a vida noturna de Violeta. Ali mesmo, então ela continuou
trabalhando. Fez inúmeras esculturas em papier maché e ensinou a arte.
Apresentou-se algumas vezes e deu entrevistas para a televisão suíça, com toda a
simplicidade, que lhe era natural:
Vestida con un traje hecho por su madre, con pedazos de géneros de
múltiples colores, recibió a Madelaine Rumain para una entrevista
documental que, con una duración de veinte minutos, trasmitió la
televisión suiza. En un francés simple, fluido y musical, Violeta contó
de sus orígenes, de la imposibilidad de explicar su obra, que la razón
de hacer todo eso provenía solamente de los sentimientos, de la
sensibilidad. “Todo el mundo puede inventar, no es mi especialidad”,
respondía con seguridad, aunque con cierta timidez, convencida de
que lo que hacía nacía de la necesidad de comunicarse. Y que
finalmente, los cuadros, sus composiciones, eran la manera de no
quedarse con los brazos cruzados... (SÁEZ, 1999, p. 141)
2.7 Repercussões de sua obra e influência sobre as novas gerações
Segundo Sáez, nessa época, as notícias que recebia do Chile eram
animadoras, principalmente as referentes ao aparecimento de um movimento de
novas músicas chilenas interpretadas por Patricio Mans, Rolando Alarcón, Victor
Jara e a dupla Isabel e Angel Parra. Eles começavam a renovar o ambiente musical
chileno. E Violeta, sentindo-se ausente de tudo isso, dessa oportunidade de seu
trabalho ser acolhido como merecia um trabalho de tantos anos e feito por amor à
história de seu povo, de sua terra, por amor à arte –, decide voltar e deixa sua obra
dividida e guardada por amigos, até sua volta, prevista para dali a seis meses, pois
pretendia viver seis meses em cada um desses dois países:
Todo lo que ella despreciaba estaba en desuso y además iba
apareciendo, paralelamente, un movimiento de nuevas canciones
chilenas en las voces de Patricio Manns, Rolando Alarcón, Víctor
Jara y el duo de Isabel y Ángel Parra, comenzando a agitar y renovar
38
el ambiente musical. Esas circunstancias decidieron su vuelta a
Chile. Ella no podia estar ajena, ausente, si se vislumbraba, por
primera vez, la posibilidad de que su empecinado trabajo de tantos
años pudiera obtener la acogida que creia merecer. (SÁEZ, 1994, p.
142)
Chega com Gilbert no dia dezoito de agosto, depois de ter ficado uma semana
no Brasil Rio de Janeiro por motivo de perda de vôo, e escreve aos filhos o
seguinte telegrama:
Estoy en Rio de Janeiro, llego el miércoles via Varig. Abrazos, mamá
Violeta. (apud SÁEZ, 1994, p. 143)
Como não parava de brazos cruzados”, aproveitou esses dias para fazer um
novo bordado. Admirando a beleza do Cristo Redentor, teve a idéia que deu forma a
um de seus mais belos e importantes quadros: un cristo crucificado al que un pájaro
le arranca los clavos”, conforme nos diz, Sáez:
En esos días de espera en Brasil, armó una nueva tapicería que
mostró a los periodistas a su legada. Un cristo crucificado al que un
pájaro le arranca los clavos. (SÁEZ, 1999, p. 143)
Em Santiago, instalados na Pena de los Parra”, uma antiga casa onde viviam
diversos artistas, acompanharam o apogeu da chamada nueva ola chilena”, eram as
interpretações de músicas norte-americanas, feitas em castelhano. E nesse
panorama, a dupla Angel e Isabel Parra alcançou os maiores sucessos.
Isabel Parra, em seu livro El Libro Mayor de Violeta Parra (1985), comenta
sobre a intensa atividade cultural de sua e e a grande aceitação de seu trabalho
pelo público chileno, e comenta que:
La Viola quiso convertirme en su secretaria y pretendió que yo
respondiera las cartas que recibía. Eran miles, y llegaban de todos
los puntos del país. Las poníamos en inmensos sacos y las
llevábamos a la casa. Era imposible responderlas. Le pedían foto, y
le agradecían el hecho de reencontrarse con su verdadera música,
que muchos no oían desde su infancia. Eran cartas emocionantes y
llenas de cariño.
Segundo Sáez, Violeta logo se integrou, embora impressionada com as
rápidas mudanças ocorridas em tão pouco tempo. Com orgulho confundido com
39
estranhamento, custava aceitar a independência que haviam adquirido seus filhos, e
observa com nitidez, a invasão cultural norte-americana, que é – na sua concepção –
uma ameaça à tradicional cultura chilena, à identidade cultural de seu povo:
El enorme éxito de todos se reflejaba también en la aparición de un
disco Peña 65 que se vendia por esos dias con las grabaciones de
estos nuevos valores. Desde luego, Violeta se integró al grupo de
artistas que actuaban en Carmen, muy impresionada de todos los
cambios ocurridos con tanta rapidez y en tan poco tiempo.
Observaba asimismo los logros de sus hijos con esa mezcla de
orgullo y estrañeza con que los padres, dificultosamente, asimilan el
proceso de crecimiento y realización de éstos, pareciéndoles que
siempre van a seguir siendo dependientes y necesitados. (SÁEZ,
1999, p. 145)
Violeta e Gilbert apresentavam-se no Teatro Silvia Piñeiro, na rua Tamaracá,
todas as quartas-feiras, onde acontecia um festival de folclore, parte de um programa
dirigido por René Largo Farias chamado Chile e y Canta. Em um mês de volta ao
Chile, grava dois discos, um com Gilbert: El tocador afuerino e outro sozinha:
Recordando a Chile: Canciones de Violeta Parra, com várias músicas feitas em
Paris.
Em setembro do mesmo ano (1965), constrói uma grande carpa (barraca) na
Feira Internacional do Parque Cerrillos, em sociedade com uma amiga alemã: Gretel.
Nesse mesmo local situava-se a Penha de los Parra, e Violeta passou a apresentar-
se nos dois espaços. Mas seu projeto era fundar ali um Centro de Arte Popular, algo
parecido com uma Universidad del Folklore. Conversou com o prefeito, Fernando
Castillo Velasco, que a apoiou e lhe deu a concessão por trinta anos de um
enorme terreno chamado Parque La Quintrala, na rua La Cañada 7.200. Com a
ajuda de amigos e parentes, com muito empenho, pois ela era minuciosa e exigente,
procederam à construção e transferência de todos os materiais e equipamentos. Em
dezessete de dezembro três meses depois ocorreu a cerinia de inauguração
com todos os detalhes, seguido de uma grande festa (SÁEZ, 1999).
Ainda em 1965 Violeta viaja a Genebra, onde participa de um documentário
para a televisão sobre sua obra. O documentário leva o título Violeta Parra:
bordadora chilena (NAVARRETE, 2005).
Em janeiro de 1966, separada de Gilbert, que não mais suportou seu humor
instável e exigências, Violeta tenta o suicídio. Segundo Fernando Sáez, Violeta foi
levada às pressas a um posto de saúde por ter cortado os pulsos:
40
Si la prensa no la había apoyado nunca como ella hubiera querido,
cuando intentó suicidarse, estuvo en la primera plana de los diarios
de esa tarde del viernes catorce de enero de 1966. Se había cortado
las venas y fue llevada con urgencia esa mañana a la posta 4 del
barrio Ñuñoa. Estaba arrepentida, pero agobiada. Se sentía perdida y
sola, dijo a sus hijos y algunos amigos, como Héctor Pavez y Rubén
Nouzeilles que la visitaron, prometiéndole apoyo y ayuda. Recibió a
la prensa al día siguiente negando que hubiese intentado matarse.
(1999, p. 152)
Nessa época, a Universidade do Chile patrocinava um programa de televisão
no canal nove de Santiago, dirigido pelo brasileiro Paulo Alberto Monteiro, Preto no
Branco, para o qual convenceram-na a participar como convidada especial. Violeta
aceitou, mas exigiu que não se fizesse nenhuma referência à tentativa de suicídio:
Violeta apareció con su pelo largo y enmarañado y la sencillez de su
vestuario. Sin una gota de maquillaje, por supuesto. Con un
estudiado temor a las cámaras y aparentando ingenuidad, respondió
directamente a todas las preguntas deslizando ironías, sin detenerse
en concesiones, planteando sus verdades. “Nunca tuve miedo de
sentarme en el banquillo. En este mundo de pecadores todos
debemos sentarnos un segundito en el banquillo de la conciencia. De
todos modos creo que Negro en el Blanco es una maravillosa treta
para hacer pisar el palito a los incautos y como yo no estoy ajena a
ellos, me sometí tranquila”. Declaro después de su aparición. (SÁEZ,
1999, p. 153)
Em seguida, Violeta compõe e grava “Gracias a la vida” e
Volver a los
diecisiete”, suas mais nostálgicas canções nas quais, de forma direta, numa
linguagem muito simples, define a vida, o tempo e o amor com grandeza e dignidade
poética.
Em abril de 1966 viaja à Bolívia, na tentativa de reconciliar-se com Gilbert,
ocasião em que faz algumas apresentações na Peña Naira, em La Paz, mas retorna
sem Gilbert. Volta ao Chile com um grupo de músicos andinos e faz diversas
apresentações, inclusive na televisão. Grava então seu LP Las últimas
composiciones.
Violeta passou a se dedicar com mais afinco ao trabalho, convencida de que
os dezoito anos de diferença na idade dos dois estava estampada com todas as
letras e sinais.
Gilbert fazia sucesso com seu grupo boliviano Los Jairas. Em uma ocasião, nesse
mesmo ano, vieram apresentar-se em Santiago, quando ele anunciou seu
41
casamento com uma jovem boliviana. Foram dias muito difíceis para Violeta, pode-se
dizer, decisivos para suas futuras tomadas de decisões.
Desde então ela tornou-se visivelmente inquieta, às vezes irracional, o que
chamava a atenção de seus parentes e amigos, embora aparentemente
demonstrasse firmeza nos planos de voltar à Europa, rever suas obras guardadas
por amigos e percorrer os países levando sua música e arte.
Com passagens compradas, de ida, para o dia oito de fevereiro, e de volta
para o mês de março, o que seria o remédio para distrair-se um pouco e tentar
esquecer Gilbert, havia inclusive postergado uma visita ao consultório da psiquiatra
Adriana Schnake para quando voltasse e, inexplicavelmente, no domingo, dia cinco,
ao final da tarde, suicida-se com um tiro no peito, usando um revólver de fabricação
brasileira, comprado na Bolívia para, segundo ela, defender-se dos assaltantes em
sua carpa.
Segundo Sáez, sempre que, em reuniões de amigos, se questionava sobre o
tema da morte, Violeta repetia:
Uno tiene que decidir su muerte, ¡mandarla! No que La muerte venga
a uno. (apud SÁEZ,1999, p. 163)
E cumpriu, pois, o que para ela era uma “máxima”.
Muitos poeta e escritores, contemporâneos ou o de Violeta, têm
questionado, escrito e até poetizado sobre ela e sobre o impacto que sua morte
causou para a sociedade chilena:
¿Será necesario intentar desentrañar la desventura de esta
determinación final? ¿Cómo hacer para recorrer el camino incierto de
alguién que ha perdido el sentido objetivo de las cosas y su
sensibilidad extrema le juega una mala pasada? ¿Cómo penetrar ese
ensimismamiento que la dejó atrapada en el tormento del fracaso y la
incomprensión? ¿Cómo darle sentido a esa sensación aplastante
donde sólo emerge poderosa la soledad y la obsesión frente a una
respuesta que no aparece?
[...] Faltando quince minutos para las seis de la tarde se escuchó la
detonación. El mismo disparo que termicon su vida, esparció su
obra hacia todos nosotros. (SÁEZ, 1999, p. 163-164)
Camilo Rojas Navarro, em seu poema em décimas “Brindis por Literatura”,
resume em uma se suas estrofes o panorama dos últimos dias vividos por Violeta
42
Parra, essa figura que representará por muito tempo a identidade cultural latino-
americana moderna:
Brindaba Violeta Parra
por el arpa y el arpín
por el piano y el violín
el rabel y la guitarra.
Y en una noche de farra
brindaba por un cantor
y ese brindis con dolor
lo convirtió en un lamento
brindando por el tormento
de no conseguir su amor.
(NAVARRO, 2005, p. 119)
Violeta foi uma artista de profundo conteúdo humano. Sua grande qualidade e
valor histórico-social e educacional está representado na sua criação folclórica
impregnada de sentimento e que transpõe fronteiras, transformando-a em um
verdadeiro mito a quatro décadas de sua morte.
O trabalho de Violeta Parra é de enorme importância não só para a educação,
como para a própria formação da identidade do povo latino-americano, na medida
em que representa as diversas culturas do seu país, as histórias, as festas, as
tradições, a linguagem e os mitos mais caros, questionando relações de poder,
motivando o pensamento e a reflexão sobre o que é ser chileno e latino-americano.
Uma defensora da paz ao mesmo engajada em diversas lutas pela liberdade de
expressão e manifestação cultural. Violeta vivenciou o exercício de professora, para
o qual havia estudado, mas fora do ambiente acadêmico. Desenvolveu a educação
em seu sentido mais amplo, ocupando espaços informais, como tablados, circos,
teatros, bares, programas de rádio e TV, até o cinema, e formais também, como
universidades, escolas e museus.
3 Identidade: formação e transformação
43
Neste capítulo, tenta-se explicar, a partir do trabalho de alguns estudiosos e
pensadores modernos da identidade e dos Estudos Culturais, não só o processo que
forma e transforma a identidade do indivíduo, do grupo e da sociedade, mas os
elementos desse processo.
Inicia-se com uma breve panorâmica sobre o tema da cultura, berço da
identidade individual e coletiva e sua ligação direta com a educação. A seguir,
apresentam-se conceitos diversos sobre cultura e opta-se pela definição com a qual
se trabalhará nesta dissertação.
Na perspectiva cultural, e seguindo o que se entende sobre identificação,
busca-se conceituar os termos identidade e identidade cultural, com base
principalmente em Stuart Hall (2003; 2004), Anthony Giddens (1991), Kathryn
Woodward (2000) e Tomaz Tadeu da Silva (2005), que, dialogando entre si,
concordam quanto à complexidade que cerca o fenômeno da identidade, de
natureza marcadamente discursiva, totalmente imersa nas relações de poder e
sujeita a constantes mudanças.
Este capítulo esboça, tamm, os movimentos descentralizadores do sujeito
da era moderna, desde as suas origens no pensamento iluminista, passando pelas
alterações trazidas pela perspectiva sociológica, pelas contribuições do pensamento
marxista do século XIX, seguido da descoberta do inconsciente por Freud, passando
pela lingüística moderna de Saussure e pelos estudos filosóficos de Michel Foucault,
culminando com os novos movimentos sociais especialmente o feminismo que
emergiram na década de 1960.
Aborda-se também o tema da identidade latino-americana no mundo
globalizado, centralizando-se no tempo e no espaço social a figura da poeta,
musicista, tapeceira, pintora e folclorista chilena Violeta Parra, objeto de estudo da
presente pesquisa.
Um pressuposto importante dos Estudos Culturais, e levado em consideração
neste trabalho, é a noção do discurso como instrumento que identifica, tema que é
trabalhado neste capítulo, com base nas elaborações teóricas de Tomaz Tadeu da
Silva e Kathryn Woodward. Faz-se também, aqui, referência ao papel da linguagem
na construção da identidade, tendo como referência os trabalhos de Kathryn
Woodward (2000), Mariza Vorraber Costa (2000) e Maria José Coracini (2003).
Neste estudo, levam-se em consideração também as importantes constrições
e pressões trazidas pelo fenômeno da globalização e do entrechoque entre culturas
44
nacionais, étnicas e regionais, agentes diretos na formação e transformação das
identidades na era moderna. Basilares são os estudos e idéias de Peter Mclaren
(1999; 2000) e Néstor García Canclini (1984; 2006), bem como Paulo Freire (1987)
referenciais importantes na discussão da educação e seus desdobramentos para a
construção da identidade cultural.
Finaliza-se o presente capítulo abordando a inter-relação entre identidade,
cultura e educação com base, principalmente, em Paulo Freire, Tomaz Tadeu da
Silva e Peter McLaren.
3.1 Cultura: berço da construção identitária
“No mundo moderno, as culturas nacionais
em que nascemos se constituem em uma
das principais fontes de identidade cultural.
Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos
que somos ingleses ou indianos ou
jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso
estamos falando de forma metafórica.
Essas identidades não estão literalmente
impressas em nossos genes” (Stuart Hall,
2004, p. 47).
“A cultura molda a identidade ao dar
sentido à experiência e ao tornar possível
optar, entre as várias identidades
possíveis, por um modo específico de
subjetividade”
(Kathryn Woodward, 2005, p. 18-19).
O tema da cultura é hoje um veio de intensas discussões que retratam
preocupações associadas, entre outras coisas, aos fenômenos históricos e sociais, à
educação e à identidade. Outrora compreendida como somatório de conhecimentos
técnicos, artísticos, filosóficos ou humanísticos revelados por indivíduos privilegiados
ou de destaque, a cultura precisa ser redefinida de acordo com critérios mais sociais
e politicamente pertinentes.
Entendida como “o modo de viver” ou como “a experiência vivida” de um grupo, de
uma sociedade ou de um povo, a cultura apresenta-se como um campo
independente, autônomo e dinâmico da vida social, pois é por meio dela que o
homem se define e se constrói social e individualmente. Stuart Hall, um dos maiores
45
autores no campo dos Estudos Culturais, vem chamando a atenção para a
importância do fenômeno cultural, conforme testemunha Mariza Vorraber Costa
(2000):
[...] vem recorrentemente chamando a atenção para a “centralidade
da cultura”, isto é, para a forma como a cultura investe, hoje, em
cada recanto da vida social, não podendo mais ser concebida com o
sentido estrito de acumulação de saberes ou de processo estético,
intelectual e espiritual. Segundo ele, precisamos compreendê-la
levando em conta a enorme expansão de tudo que esassociado a
ela. Sua penetração em nossas vidas é tão evidente que ela não
pode mais ser estudada como uma variável secundária ou
dependente. Ela não é um componente subordinado, ela é
eminentemente interpelativa, constitutiva das nossas formas de ser,
de viver, de compreender e de explicar o mundo. (apud CANDAU,
2000, p. 33-34)
Em seu artigo “A cultura antes do ciberespaço”, o professor Marcelo Bolshaw
Gomes (1997), da UFRN, traz diferentes definições para o termo “cultura”, que
literalmente significa “lavoura”, “cultivo dos campos”, mas que também pode
significar instrução”, conhecimentos adquiridos”. Cultura é uma palavra latina que
surgiu, segundo ele, em Roma no início do nosso milênio; antes disso, os grego
usavam o termo “máthêma” para designar “algo abstrato”, em oposição à concretude
do termo “natureza”. Num sentido antropológico, o termo “cultura” aparece pela
primeira vez em 1793, no dicionário alemão Adelung, no verbete “Kultur”, como: “A
cultura é o aperfeiçoamento do espírito humano de um povo”. Ainda, conforme
explicação do professor Gomes,
Assim, haveriam diferentes níveis de “aperfeiçoamento espiritual”
entre as etnias e subentende-se que cada povo teria um determinado
grau de desenvolvimento nesta escala. Desde o início a noção de
cultura foi etnocêntrica porque desqualificava as sociedades
‘primitivas’ e tradicionais frente a sua própria e suposta superioridade
cultural (na verdade: superioridade militar, tecnológica e científica). A
partir da Revolução Francesa, com o aparecimento da CIVILIS ou do
ideal de cidadania, o termo “cultura” será freqüentemente associado
à idéia de um sistema de atitudes, crenças e valores de uma
sociedade e posto à noção de “civilização”, geralmente visto como
seu complemento material. Por volta de 1850, o termo “cultura”
passou a ser utilizado para distinguir a espécie humana dos outros
animais. Desde então, a noção de cultura passaria por diversas
transformações e metamorfoses.
Ainda abordando as transformações da noção de cultura’, vale lembrar da
proposta de E. Sapir, segundo a qual “cultura é o conjunto de atributos e produtos
46
resultantes das sociedades que não são transmitidos através da hereditariedade
biológica” (apud GOMES, 1997). Gomes ainda destaca as diferentes abordagens,
como a do Positivismo, por exemplo, que tende a definir cultura em termos de
dominação e controle científico da natureza; a do Marxismo, que traz a idéia da luta
de classes e da relação dialética entre determinismo e ão social, com destaque
para os modos de produção; a psicanálise de Freud, que trouxe o reconhecimento
das forças ativas e destrutivas do inconsciente e seus desdobramentos para a vida
em sociedade; o Estruturalismo, representado por Claude Levi Strauss, que
aprofunda análise da tensão entre natureza e cultura, enfatizando agora a
impossibilidade de se impor uma cultura a outra; e o pós-estruturalismo de Michel
Foucault e Deleuze, que discutiram profundamente os processos e práticas do poder
na sociedade e seus vínculos com a produção do saber (GOMES, 1997).
Trabalha-se aqui com as noções estruturalistas e pós-estruturalistas de
cultura, que levam em consideração a diversidade cultural, as implicações e tensões
entre discursos, práticas e instituições sociais, bem como a íntima relação entre
saber e poder. Dessa maneira, entende-se que cultura não é propriedade exclusiva
de um indivíduo nem é algo que se possa simplesmente possuir, mas experiência
social e articulada com uma complexa rede de simbolismos, valores, relações,
discursos, práticas e instituições.
Ao mesmo tempo que essas idéias e noções sobre cultura vão sendo
construídas e reconstruídas, percebe-se quanto as constantes e rápidas
aproximações e encontros interculturais que acontecem no mundo atual têm
provocado interferências entre culturas, fenômeno diretamente relacionado com a
construção das identidades. Essas interferências têm gerado freqüentes conflitos e
questionamentos, propiciando interessantes estudos e intensos debates sobre a
identificação cultural das sociedades humanas e, mais recentemente, do indivíduo
moderno e pós-moderno.
Nessa perspectiva, e com a preocupação de atender a respeito da forma
como se a construção da identidade num mundo cada vez mais complexo e
atravessado pelas tensões multiculturais causadas pela globalização e entender a
produção da cultura, diante de uma vasta gama de diferentes possibilidades de
estruturação social, os Estudos Culturais vêm contribuir para o estudo do fenômeno
social das construções identitárias, afirmando que a identidade não é única e nem
fixa. Ela é múltipla e maleável. Múltipla no sentido de que ela pode ser nacional,
47
étnica, de gênero, de idade, classe social e de indivíduo. Maleável porque ela não é
uma experiência pronta, acabada, mas um processo histórico, dinâmico sujeito a
ininterruptas alterações.
Relacionando a noção de cultura com a área da educação, Tomaz Tadeu da
Silva argumenta que a “cultura” apresenta-se com diferentes conotações e
diferentes sentidos nas várias vertentes da teoria educacional. Segundo ele:
Na teorização introduzida pelos Estudos Culturais, sobretudo
naquela inspirada pelo pós-estrururalismo, a cultura é teorizada
como campo de luta entre os diferentes grupos sociais em torno da
significação. A educação e o currículo são vistos como campos de
conflito em torno de duas dimensões centrais da cultura: o
conhecimento e a identidade. (SILVA, 2000, p. 32)
Entretanto, é preciso que se diga também que, pensar em cultura e identidade
na modernidade transformada pelos avassaladores processos de globalização é
pensar nas relações multiculturais e no manejo das diferenças entre as diversas
formas de prática e organização social. As discussões sobre identidade são
diretamente afetadas pela fenômeno da globalização, próprio do mundo pós-
moderno (Hall, 2004), já que, como afirma Giddens: “A modernidade é
inerentemente globalizante” (GIDDENS, 1991, p. 69).
Ora, a globalização traz uma situação paradoxal na medida em que se
percebe uma tendência a minimizar a diversidade cultural por meio da difusão da
cultura de massa (televisão, jornais, rádio, música, Internet, cinema e revistas), o
que ocasiona os diversos descentramentos, as fragmentações culturais e as
múltiplas reações no sentido de se proteger a cultura local e regional. Entende-se
que esses e outros fenômenos inerentes à cultura contribuem para o processo
de formação e transformação das identidades.
3.2 Identidade e identidade cultural: a complexidade dos conceitos
“Em uma primeira aproximação, parece ser
fácil definir ‘identidade’. A identidade é
simplesmente aquilo que se é: ‘sou
brasileiro’, ‘sou negro’, ‘sou heterossexual’,
‘sou jovem’, ‘sou homem’. A identidade
assim concebida parece ser uma
positividade (‘aquilo que sou’), uma
característica independente, um ‘fato’
autônomo. Nessa perspectiva, a identidade
só tem como referência a si própria: ela é
48
auto-contida e auto-suficiente.
(Tomaz Tadeu da Silva, 2005, p. 74)
Ao longo da vida e das convivências que desenvolvemos, vamos construindo
a imagem que de nós fazemos. E essa construção, que é discursiva e
impermanente, se em meio a deslocamentos, em meio a novas e constantes
identificações provocadas por atitudes, comportamentos, valores e discursos
elaborados na interação com pessoas e instituições com as quais mantemos contato.
Disso resulta o que se pode chamar de “conjunto de características e circunstâncias”
que nos individualizam, que nos identificam.
A cada dia percebe-se quão difícil é afirmar uma identidade, tendo em vista as
constantes e aceleradas transformações que o mundo vem sofrendo, seja pelos
movimentos da modernidade e da globalização, de modo que tudo nos é
apresentado numa espantosa velocidade acompanhada pela transitoriedade, seja
pelo atravessamento da mídia. Quanto mais rápido as coisas, as notícias, as
informações nos chegam, mais provisórias elas se tornam.
Buscando entender melhor o termo identidade, vemos que Tomaz Tadeu da
Silva (2005) aborda-o como sendo a construção da subjetividade do indivíduo, que
está diretamente ligada ao seu currículo, portanto é formada no decorrer de sua
“corrida”, de seu percurso. Então, durante a vida, segundo o autor, o indivíduo
constrói sua identidade.
Acrescenta-se também que a identidade construída pelo indivíduo durante em
seu trajeto de vida esconde uma pluralidade de vozes em consonância e dissonância
na medida em que inclui elementos de identificação étnica, etária, de gênero e de
nacionalidade.
Também, em Identidade e diferença, a perspectiva dos estudos culturais,
Silva, ao nos dizer o que a identidade é e o que ela não é, reafirma o caráter
dinâmico e instável das construções identitárias. Isso nos permite maior clareza
sobre o termo e seu conceito:
Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é um dado ou
um fato seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa,
estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é
homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro
lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito,
um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A
identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente,
49
inacabada. A identidade es ligada a estruturas discursivas e
narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A
identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (2005, p.
96-97).
Como também considera Stuart Hall (2004), o conceito de identidade é
demasiadamente complexo na modernidade tardia, além de pouco desenvolvido e
muito menos compreendido dentro da ciência social contemporânea, pois as
sociedades modernas têm passado por transformações muito rápidas em suas
estruturas. São sociedades de permanentes e rápidas mudanças, que ocasionam a
fragmentação das antigas e lidas paisagens culturais de classe, gênero, etnia e
nacionalidade, o que afeta e transforma, também, nossas identidades pessoais.
Distinguindo três concepções de sujeito desenvolvidas ao longo da história da
modernidade, Stuart Hall delineia-nos a compreensão do conceito de identidade, a
saber: a do sujeito concebido pela perspectiva iluminista, a do sujeito na perspectiva
sociológica e a do sujeito na modernidade tardia. Segundo ele, o sujeito do
iluminismo era totalmente centrado, unificado em seu caráter racional e autônomo,
nascia e se desenvolvia, mas permanecia essencialmente o mesmo “idêntico”. O
“eu” do sujeito iluminista era a sua identidade, dotada de razão, consciência e ação
(HALL, 2004, p. 10-11).
O sujeito concebido pelo iluminismo era, então, consciente de seus atos e
constituído de uma essência interior que definia – ou identificava – seu caráter e que,
supostamente, revelava sua identidade, até então tida como verdadeira e única.
Esse sujeito desenvolvia suas capacidades, mas sempre numa concepção
individualista, autônoma e auto-centrada.
A perspectiva sociológica do sujeito surgiu posteriormente como aquele cuja
essência interior era formada e modificada continuamente devido aos contatos com a
sociedade organizada, exterior. Estavam estampadas, na noção sociológica de
sujeito, a efervescência e a complexidade do mundo moderno, que passava a levar
em consideração os movimentos sociais e a inter-relação entre o indivíduo e a
comunidade a que pertencia. não mais auto-suficiente, esse tipo de sujeito tem
seu “eu” formado por meio de modificações constantes em decorrência do
permanente diálogo com identidades, instituições e práticas culturas as mais
diversas. No dizer de Hall, é um sujeito “suturado” e estabilizado pela identidade à
estrutura do mundo em que habita e com o qual se unifica:
50
O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”,
mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os
mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos
oferecem. (HALL, 2004, p. 11)
Essa noção de sujeito, o sociológico, rompia com a concepção do indivíduo de
identidade centrada, racional e unificada. Ele apresenta-se com uma identidade
construída pela interação com outros sujeitos, outras identidades. Isso resultou no
descentramento do sujeito cartesiano, que se tornou mais limitado e dependente
diante da complexidade do mundo moderno, embora conservando seu “eu real”, sua
essência interior. Assim, a identidade do sujeito sociológico alinhava-se – ou nivelava
a subjetividade com a objetividade no mundo social e cultural, ao mesmo tempo
em que internalizava valores e significados que lhe eram apresentados pelos
mundos culturais “exteriores” (HALL, 2004, p. 11-12).
A terceira noção, a do sujeito na modernidade tardia, não tem identidade fixa,
permanente. Ela é vel: forma-se e transforma-se continuamente na inter-relação
com os inúmeros sistemas culturais que a rodeiam. Antes unificada, “suturada” ao
seu mundo e com a identidade estável, hoje a noção de sujeito apresenta-se
fragmentada, o que faz do indivíduo um ser composto de identidades diversas. Essa
fragmentação, muitas vezes, coloca-o em situações contraditórias, confundindo-lhe
seu próprio “eu”. Essa concepção de sujeito marca o indivíduo da modernidade
tardia e seus “eus”, um sujeito que se metamorfoseia diante das repentinas
mudanças sociais, das influências multiculturais e das realidades transitórias do
mundo contemporâneo. Tudo isso faz do indivíduo da modernidade tardia um sujeito
marcado pela indeterminação e pela transitoriedade, mais reflexivo, conforme
argumenta Anthony Giddens em As conseqüências da modernidade. Ele diz:
A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as
práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz
de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando
assim constitutivamente seu caráter. (GIDDENS, 1991, p. 45)
As várias identidades que o sujeito pós-moderno interioriza durante o seu
percurso esbarram-se e “empurram-se” em direções incertas e diversas. Daí que
O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos
51
em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e
problemático. (HALL, 2004, p. 12)
Pelo exposto acima, percebe-se que Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall
comungam do mesmo raciocínio para definirem identidade, principalmente quando
afirmam ser, a identidade, uma construção, uma ação performativa, logo, inacabada.
Conforme palavras de Hall:
O sujeito e a identidade são apenas dois dos conceitos que, tendo
sido solapados em duas formas unitárias e essencialistas, proliferam
para além de nossas expectativas, através de formas descentradas,
assumindo novas posições discursivas. (HALL, 2003, p. 111).
Convém dizer que essas concepções sobre identidade pessoal e cultural,
embora diferentes entre si, incluem a idéia de retrato, de identificação: o termo
“identidade” pode ser entendido, então, como a representação do que somos, do que
nos tornamos. Pode-se entender “identidade”, portanto, como uma questão de
conhecimento, uma questão de currículo etimologicamente, a palavra “currículo
vem do latim curriculum, que significa “pista de corrida” –, pois é nele que ela se forja
e porque ele é texto, é discurso, é território, trajetória, espaço, viagem, percurso, é
documento que identifica.
O sujeito concebido na modernidade tardia vivencia as incertezas quanto a
seus papéis relativos à sua nacionalidade, etnia, gênero e classe social, sentindo-se
um sujeito provisório, como tudo ao seu redor, fragmentado e em constante
transformação. Essa concepção de sujeito é fruto dos avanços na teoria social e nas
ciências humanas assunto de que trataremos a seguir a partir de Marx e sua
crítica do capitalismo, Freud e a descoberta da psicanálise, os estudos lingüísticos
de Saussure, as iias de Foucault, além dos movimentos populares – o feminismo e
vários movimentos em luta pelos direitos civis –, que descentraram o sujeito
cartesiano.
3.3 Movimentos descentralizadores do sujeito
“Uma característica de deslocamento é nossa
inserção em cenários culturais e de informação
globalizados, o que significa que familiaridade e
lugar estão muito menos consistentemente
vinculados do que já estiveram.
(...) O correlativo do deslocamento é o
desencaixe. Os mecanismos de desencaixe
52
tiram as relações sociais e as trocas de
informação de contextos espaço-temporais
específicos, mas ao mesmo tempo propiciam
novas oportunidades para sua inserção”.
(GIDDENS, 1991, p. 141-142)
A “interação entre o indivíduo e a sociedade se por processos. Esses
processos acontecem por meio de estágios de mudança que geram crises,
deslocando as estruturas e as referências que antes ancoravam socialmente esse
indivíduo.
Stuart Hall, em A identidade cultural na pós-modernidade (2004, p. 34-46),
chama de descentramento a todo esse movimento identitário do indivíduo moderno,
que torna as identidades “fragmentárias”.
A partir do paradigma estruturalista, que tem raízes na visão materialista do
mundo social de bases fundamentadas nos estudos e idéias de Karl Marx –, que
por sua vez propõe uma crítica ao status quo e sugere ao homem uma prática mais
politizada de vida, a noção de indivíduo se fez mudar. Antes de Marx, a realidade da
vida humana era pautada no idealismo de Hegel, filosofia na qual o mundo material e
objetivo pode ser compreendido plenamente através do aperfeiçoamento de sua
verdade espiritual ou subjetiva. Os estudos desenvolvidos por Karl Marx centram-se
em pontos fundamentais de análise da realidade: o modo de produção, a estrutura
econômica e o processo histórico das sociedades. O indivíduo, portanto, se vê
pressionado por forças e circunstâncias que estão além do seu controle e que na
verdade o constroem.
Conforme Hall, na modernidade ocorreram cinco grandes avanços na teoria
social e nas ciências humanas que modificaram o pensamento humano e
provocaram impacto, descentrando o sujeito cartesiano. Hall diz que o primeiro
movimento importante de descentramento se deu pelo impacto das idéias de Karl
Marx, segundo as quais os “homens fazem a história sob as condições que lhes são
dadas”, ou seja, Marx coloca as relações sociais de produção no centro de seu
sistema teórico, e isso afeta a filosofia moderna no que diz respeito à autonomia do
ser humano (HALL, 2004, p. 34-35). Embora os escritos de Marx sejam do século
XIX, na década de sessenta do século XX é que foram redescobertos e
reinterpretados a partir de sua máxima: “homens fazem a história, mas apenas sob
as condições que lhes são dadas”. A teoria marxista rejeita a “noção de essência
universal do homem, como alma, alojada em cada sujeito individual”, que surge com
53
o nascimento e o acompanha intacta até a morte. Rejeita o indivíduo com faculdades
e necessidades definidas. A partir das idéias marxistas a noção de indivíduo, tida até
então, cai por terra, dando lugar à idéia do indivíduo construído ou produzido em
interação com uma variedade incontável de relações sociais. As idéias marxistas
tiram o ser humano da posição central que ocupava e colocam as relações sociais
(modos de produção, ou seja, os circuitos do capital). O anti-humanismo de Marx
“expulsou as categorias filosóficas do sujeito do empirismo” reinante até então. A
partir de Marx, a produção desempenha o papel central na base econômica da
sociedade moderna.
O segundo e grande movimento descentralizador do pensamento ocidental
moderno deu-se com a descoberta do inconsciente, por Sigmund Freud, que
questionou o “penso, logo existo” do sujeito cartesiano, causando profundo impacto
sobre o pensamento humano na modernidade. A teoria freudiana mostra que a
identidade do indivíduo não é fixa e unificada, ela é construída em meio a muitos
impulsos e forças do inconsciente (HALL, 2004, p. 36-39). Freud conectou a
psicanálise com a cultura, com o campo social. Nossa sexualidade, nossos desejos,
são formados no nosso inconsciente por processos psíquicos e simbólicos que não
se limitam aos ditames da razão. Na teoria freudiana o “eu” é o outro, é dividido, é
social. O sujeito freudiano é sempre posicionado em relação ao outro, é “alienado”,
separado, cindido. Segundo Hall, isso significa que
a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através
de processos inconscientes, e não algo inato, existente na
consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo
“imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece
sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo
formada”. As partes “femininas” do eu masculino, por exemplo, que
são negadas, permanecem com ele e encontram expressão
inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na vida adulta.
(HALL, 2004, p. 38-39)
O terceiro movimento deu-se com o suíço Ferdinand de Saussure e sua
lingüística estrutural moderna, que sugere que os indivíduos o são os autores de
suas próprias afirmações, ou dos significados que expressam na língua, pois os
significados das palavras não o fixos em relação ao que existe fora da língua
(HALL, 2004, p. 40-41). Saussure argumentava que a língua preexiste a nós e, por
isso, ela é um sistema social e não individual que nos permite, por meio da utilização
de suas regras, produzir significados correspondentes a determinados sistemas
54
culturais. Segundo Mikhail Bakhtin, em Marxismo e filosofia da linguagem, para
Saussure,
não há no nosso entender, senão uma solução para todas estas
dificuldades (trata-se das contradições internas da linguagem” como
ponto de partida de sua análise): é preciso antes de tudo, instalar-se
no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as demais
manifestações da linguagem. Com efeito, em meio a tantas
dualidades, só a língua parece suscetível de uma definição autônoma
e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito (F. de
Saussure, Cours de linguistique générale, p. 24; itálicos de
Saussure). (BAKHTIN, 1997, p. 85-86)
O quarto avanço que causa o descentramento da identidade e do sujeito
moderno vem por meio dos estudos do historiador e filósofo francês Michel Foucault,
que, realizando uma espécie de “genealogia do sujeito moderno”, destacou um novo
tipo de poder: o “poder disciplinar”, com base no poder dos regimes administrativos,
do conhecimento especializado dos profissionais e no conhecimento fornecido pelas
“disciplinas” das Ciências Sociais. Esse “poder disciplinar”, segundo Hall (2004, p.
41-43), ocorreu ao longo do século XIX e teve seu momento máximo no século XX,
trazendo consigo duas importantes preocupações: uma com a regulação, a vigilância
do indivíduo ou da população de um modo geral, e outra com o corpo e o indivíduo.
Foucault (apud HALL, 2004, p. 42-43) nos explica que tal poder disciplinador surgiu
juntamente com as modernas instituições que se desenvolveram durante o século
XIX e proliferaram-se, policiando e disciplinando as populações modernas. Quartéis,
escolas, igrejas, oficinas, hospitais, clínicas, etc. foram criados para
manter “as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades e os
prazeres do individuo”, assim como sua saúde sica e moral, suas
práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina
(...) (HALL, 2004, p. 42)
Comentando as idéias de Foucault, Stuart Hall chama atenção para a relação
que entre poder e saber, do ponto de vista da história do sujeito moderno. Onde
poder resistência que individualiza cada vez mais o sujeito e envolve mais
intensamente seu corpo. O poder circula em uma relação com o saber, ao ponto de
motivar não o isolamento e a individualização do sujeito o que é um paradoxo,
55
tendo-se em vista que esse poder é produto das instituições coletivas modernas –,
mas, ao mesmo tempo, o envolvimento intenso do corpo desse sujeito que se cerca
de um meticuloso volume de documentos que, aparentemente, o identificam nas
sociedades modernas (HALL, 2004, p. 42-43).
O quinto e último movimento é representado pelo feminismo como crítica ou como
movimento social feminista, juntamente com os outros movimentos: os estudantis, os
movimentos pela paz, as lutas pelos direitos civis e todos os movimentos sociais que
surgiram na década de sessenta e que marcaram a modernidade tardia. Esses
movimentos, na opinião de Hall (2004, p. 45), apelavam cada qual para a identidade
que o sustentava, e isso fez nascer, historicamente, o que conhecemos como a
“política de identidade”.
O feminismo, especialmente, descentrou o sujeito cartesiano e sociológico,
modificando a noção de que homens e mulheres eram partes da mesma sociedade,
a “Humanidade” (HALL, 2004, p. 44-46). O movimento feminista questionou o
“privado” e o “público”, usando o slogan: o pessoal é político”, com o qual abriu
várias contestações sociais sobre a família, a divisão do trabalho doméstico, a
sexualidade aqui, politizando a subjetividade, a identidade e o processo de
identificação (como homens e mulheres, mães e pais, filhos e filhas), incluindo a
formação das identidades de gênero e sexuais. O feminismo, ao afirmar que “o
pessoal é político”, traz para a discussão pública temas até então considerados de
âmbito estritamente privado, re-significando, assim, o poder político e abrindo novos
espaços aos assuntos domésticos.
Todos esses movimentos intelectuais e sociais, segundo o autor, que a era
moderna produziu e produz em dado momento são causas e também efeitos da
modernidade, quando se quer focalizar a questão do sujeito e da identidade nos
processos de sua construção.
Stuart Hall (2004) finaliza dizendo que, embora haja quem ainda não aceite as
implicações intelectuais desses avanços do pensamento moderno, seus efeitos são
inevitáveis e profundamente desestabilizadores sobre as idéias e sobre a forma
como a questão da identidade e do sujeito são vistas:
Deixem-me lembrar outra vez que muitas pessoas não aceitam as
implicações conceituais e intelectuais desses desenvolvimentos do
pensamento moderno. Entretanto, poucas negariam agora seus
efeitos profundamente desestabilizadores sobre as idéias da
56
modernidade tardia e, particularmente, sobre a forma que o sujeito e
a questão da identidade são conceptualizados. (HALL, 2004, p. 46)
3.4 A identidade cultural latino-americana na modernidade
“As velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em
declínio. Novas identidades estão surgindo,
deixando o indivíduo moderno fragmentado
(HALL, 2004)
Segundo Stuart Hall, a modernidade imprimiu no sujeito moderno – e se
evidencia ainda mais no sujeito pós-moderno –, várias identidades que são entre si
contraditórias e que tentam acomodar-se em direções diferentes. Nas condições
sociais modernas, o indivíduo forja a sua auto-identificação. Isso em meio aos
deslocamentos, aos descentramentos de que ele fala quando tenta explicar o
processo de formação da identidade do sujeito de hoje (HALL, 2004).
E é esse terceiro sujeito – o da modernidade tardia – o foco maior da presente
pesquisa, que se destina a estudar a atual identidade do sujeito latino-americano,
sua identidade cultural. A polêmica figura da poeta chilena Violeta Parra,
apresentada e que conheceremos melhor no decorrer desta pesquisa, representa
claramente esse sujeito cultural da América Latina na era moderna. As canções de
Violeta Parra refletem suas experiências vivenciadas durante seu percurso, durante
sua vida, num tempo de polêmicos processos de modernização social, de
instabilidade política e de transformação educacional.
As palavras de Stuart Hall quanto às representações e interpelações nos
vários sistemas culturais nos asseguram de que, no mundo atual, globalizado, a
identidade encontra-se mergulhada em um processo de transformação e mudança
incessante, motivado pela prática das relações inter-culturais (HALL, 2004). Esse
processo teve início na segunda metade do século XIX, a partir do pensamento
materialista de Karl Marx, intensificando-se do século XX até hoje, com a
interpretação de seus textos, que tinham como idéia principal centralizar no
pensamento humano as relações sociais e de produção. Na doutrina filosófico-
materialista de Marx a produção desempenha o papel central na base econômica da
sociedade.
Segundo Abbagnano, em seu dicionário de filosofia,
57
O pressuposto desse cânon é o ponto de vista antropológico
defendido por Marx, segundo o qual a personalidade humana é
constituída intrinsecamente (em sua própria natureza) por relações
de trabalho e de produção de que o homem participa para prover às
suas necessidades. A consciência” do homem (suas crenças
religiosas, morais, políticas, etc.) é resultado dessas relações, e não
pressuposto. (ABBAGNANO 2003, p. 652)
Essas mudanças, essas transformações, acredita-se, continuam e
continuarão acontecendo, indefinidamente, enquanto houver interculturalidade.
No caso da América Latina – contexto imediato da presente pesquisa –, onde
a modernidade não se manifesta da mesma forma que na Europa, por exemplo, ou
nos Estados Unidos, torna-se difícil, porém muito importante, tentar traçar esse
cenário de mudanças e interferências, principalmente destacando-se o período e o
espaço em que viveu Violeta Parra – Chile, de 1917 á 1967 –, aqui objeto de
estudos e sujeito representativo da identidade cultural latino-americana.
Nós, latino-americanos, somos o resultado de uma mistura, de um hibridismo
étnico e cultural constante e, dessa maneira, demonstramos, hoje, ter nossa própria
trajetória, formada no interior do nosso próprio sistema social, mas sempre tendo
como fundo o outro, o estrangeiro, o europeu, o norte-americano, o oriental etc.
Essa autonomia latino-americana de produção cultural, essa “trajetória
própria” de nossos países começa a organizar-se, segundo Néstor García Canclini
(2006), por volta da década de 1930 com
As camadas médias surgidas no México a partir da revolução, as que
têm acesso à expressão política com o radicalismo argentino, ou em
processos sociais semelhantes no Brasil e no Chile, constituem um
mercado cultural com dinâmica própria.
Em todos esses países, migrantes com experiência na área e
produtores nacionais emergentes vão gerando uma indústria da
cultura com redes de comercialização nos centros urbanos.Junto
com a ampliação dos circuitos culturais que a alfabetização
crescente produz, escritores, empresários e partidos políticos
estimulam uma importante produção nacional. (CANCLINI 2006, p.
84)
Mas, entre as décadas de 1950 e 1970 é que a modernização
socioeconômica na América Latina se mostra firme na literatura, nas ciências sociais
e na arte.
Ainda conforme nos ensina Canclini, nesse período pelo menos cinco
fenômenos podem ser apontados como agentes motivadores de mudanças
estruturais:
58
a) O início de um desenvolvimento econômico mais sólido e
diversificado, que tem sua base no crescimento de indústrias com
tecnologia avançada, no aumento de importações industriais e de
emprego de assalariados.
b) A consolidação e expansão do crescimento urbano iniciado na
década de 40.
c) A ampliação do mercado de bens culturais, em parte por causa
das maiores concentrações urbanas, mas sobretudo pelo rápido
incremento da matrícula escolar em todos os níveis: o
analfabetismo se reduz a 10 ou 15% na maioria dos países, a
população universitária sobe, na região, de 250.000 estudantes
em 1950 para 5. 380.000 no final da década de 70.
d) A introdução de novas tecnologias comunicacionais,
especialmente a televisão, que contribuem para a massificação e
internacionalização das relações culturais e apóiam a vertiginosa
venda de produtos “modernos”, agora fabricados na América
Latina: carros, aparelhos eletrodomésticos etc.
e) O avanço de movimentos políticos radicais, que confiam que a
modernização possa incluir transformações profundas nas
relações sociais e uma distribuição mais justa dos bens básicos.
(CANCLINI, 2006, p. 85)
Assim, vê-se que, basicamente, o desenvolvimento urbano e o avanço dos
meios de comunicação de massa foram os elementos propulsores da modernização
na América Latina, bem como da hibridação da nossa cultura, promovendo a fusão
entre a tradição e a modernidade.
Hoje, em meio à atual explosão das diferenças culturais, étnicas, nacionais,
sexuais, históricas, educacionais etc. que o velozmente assistimos e que abrem
discussões sobre a construção e representação da identidade cultural, na
perspectiva latino-americana, emerge uma importante indagação: como se
apresenta o latino-americano moderno em seu percurso, enquanto sujeito exposto
ao multiculturalismo e à globalização?
Buscou-se, nos textos de Canclini, a resposta a partir de uma definição.
Canclini, antes de definir “hibridação”, diz que, ao sair da biologia para as ciências
sociais, a palavra “híbridação” ganhou polivocidade. Em questões religiosas, por
exemplo, continua-se usando “sincretismo”, em antropologia e história, “mestiçagem”
e em música usa-se “fusão”. Diz, ainda, que :
A multiplicação espetacular de hibridações durante o século XX não
facilita precisar do quê se trata. (CANCLINI 2006, p. XX)
Mas, ele explica que parte de uma primeira definição:
59
Entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas
ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam
para gerar novas estruturas, objetos ou práticas. (CANCLINI 2006, p.
XIX)
Esses processos socioculturais de combinação de estruturas e geração de novas
é o nosso território contextual, pois somos oriundos de uma matriz colonialista e
imperialista, difundida desde o século XVI até meados do século XX, que trouxe
consigo práticas políticas, econômicas, educacionais e de organização social que
seguem o modelo capitalista europeu, que ao longo do tempo se institucionalizaram
e se mesclaram com elementos ameríndios e africanos. Essas práticas, construídas
inicialmente pela modernidade européia e norte-americana, proliferaram-se pelo
mundo afora, impondo-se, inclusive, onde havia sinais de resistência, criando ideais
de progresso e ao mesmo tempo de futuros desejos emancipatórios das nações
rumo à “modernidade”. Fronteiras apagaram-se no cenário cultural, favorecendo a
hibridação. O que anteriormente era considerado distinto e separado, hoje não mais,
conforme nos afirma Silva em Documentos de identidade: uma introdução às
teorias do currículo, no seu artigo “A pedagogia como cultura, a cultura como
pedagogia”:
O que caracteriza a cena social e cultural contemporânea é
precisamente o apagamento das fronteiras entre instituições e
esferas anteriormente consideradas como distintas e separadas.
(SILVA, 2005, p. 141)
Além das matrizes colonialista e imperialista, as práticas européias e
estadounidenses delinearam os primeiros traços do perfil cultural da América Latina
de hoje. Um continente constituído de culturas híbridas, culturas resultantes de
misturas étnicas também chamadas mestiçagem. Além desse hibridismo, nosso
continente é lugar de sincretismos de crenças e religiões e outros matizes modernos
como o artesanato e a industrialização, o popular e o erudito.
Nas palavras de Canclini,
A mistura de colonizadores espanhóis e portugueses, depois de
ingleses e franceses, com indígenas americanos, à qual se
acrescentaram escravos trasladados da África, tornou a mestiçagem
um processo fundacional nas sociedades do chamado Novo Mundo.
Na atualidade, menos de 10% da população da América Latina é
indígena. São minorias também as comunidades de origem européia
que não se misturaram com os nativos. Mas a importante história de
60
fusões entre uns e outros requer utilizar a noção de mestiçagem
tanto no sentido biológico produção de fenótipos a partir de
cruzamentos genéticos como cultural: mistura de hábitos, crenças
e formas de pensamento europeus com originários das sociedades
americanas. (CANCLINI 2006, p. XXVII)
Para Canclini, o cenário da hibridação cultural atual se mostra tão fortemente
caracterizado que é impossível existir alguma identidade pura, dada a facilidade e
fluidez das comunicações, facilitando a apropriação de elementos de uma cultura
por outra:
De todo modo, a intensificação da interculturalidade favorece
intercâmbios, misturas maiores e mais diversificadas do que em
outros tempos; por exemplo, gente que é brasileira por
nacionalidade, portuguesa pela língua, russa ou japonesa pela
origem, e católica ou afro-americana pela religião. Essa variabilidade
de regimes de pertença desafia mais uma vez o pensamento binário
a qualquer tentativa de ordenar o mundo em identidades puras e
oposições simples. (CANCLINI 2006, p. XXXIII)
Essa intensificação das relações culturais, esses intercâmbios e misturas
diversas são ao mesmo tempo território e contexto social e histórico que deram
origem ao sujeito latino-americano moderno, um sujeito mestiço, brido de
nacionalidade, cor e identidade.
3.5 O discurso como instrumento que identifica
“No contexto da crítica pós-estruturalista, o
termo é utilizado para enfatizar o caráter
lingüístico do processo de construção do
mundo social. Particularmente, o filósofo
francês Michel Foucault argumenta que o
discurso não descreve simplesmente objetos
que lhe são exteriores: o discurso ‘fabrica’ os
objetos sobre os quais fala. Assim, ele analisou,
por exemplo, a sexualidade e a loucura como
61
efeitos de certos ‘saberes’, vistos como formas
particulares de discurso”.
(SILVA, 2000, p. 43)
Ao buscar-se a identidade de um grupo social ou de um indivíduo, caminha-
se pelo terreno das características que o definem e que o fazem diferente com
relação a outros grupos e a outros indivíduos.
Segundo Tomaz Tadeu da Silva, a identidade se constrói por meio das
relações e do discurso. Em seu artigo “Currículo e identidade social: territórios
contestados”, que fala sobre as políticas de identidade, regimes de representação e
currículos, Silva (2003) nos diz e vemos que ele concorda com Foucault que o
discurso dá significado às coisas no mundo social, cria representações. E essa
questão de representação, segundo ele, ocupa o principal lugar na política das
identidades.
Igualmente, Kathryn Woodward argumenta que tanto as práticas de
significação quanto os sistemas simbólicos fazem parte dos sistemas de
representação. Compreendidos como processos culturais, fornecem identidades e
ao mesmo tempo sentido àquilo que somos:
Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam
possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar. A
representação, compreendida como um processo cultural, estabelece
identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos
quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões:
Quem sou eu? O que eu queria ser? Quem eu quero ser?
(WOODWARD, 2005, p. 17)
Nessa perspectiva, o discurso age produzindo significado, produzindo
identidades e sujeitos, estabelecendo uma forte ligação com as relações de poder.
Conforme nos diz Silva, “os significados não pré-existem como coisas no mundo
social” :
É através dos significados, contidos nos diferentes discursos, que o
mundo social é representado e conhecido de uma certa forma, de
uma forma bastante particular é que o eu é produzido. E essa “forma
particular” é determinada precisamente por relações de poder.
(SILVA, 2003, p. 199)
O que equivale dizer –, parafraseando Roberto Machado quando, na “Introdução” de
Microfísica do poder, faz uma análise essencial das obras e teoria de Foucault,
dizendo que,
62
o indivíduo, na sua particularidade, é uma produção do poder. E, nas
sociedades modernas, as relações de poder – principalmente as
relações de poder disciplinar são positivas e não negativas,
dependendo da maneira como são trabalhadas e da tecnologia
empregada. (MACHADO, in: FOUCAULT, 2005, p. XIX).
Continuando nossa análise da relação entre discurso e poder no terreno da
identidade cultural individual ou coletiva, vemos em Mariza Vorraber Costa que:
As sociedades e culturas em que vivemos são dirigidas por
poderosas ordens discursivas que regem o que deve ser dito e o que
deve ser calado e os próprios sujeitos não estão isentos desses
efeitos.
(...) Quando se descrevem, explicam, desenham ou contam coisas,
quando variadas textualidades falam sobre pessoas, lugares ou
práticas, estes estão sendo inventados conforme a lógica, o léxico, a
semântica vigentes no domínio que produz o discurso. (VORRABER
COSTA, 2000, p. 32-33)
As relações de poder, assim, desempenham importante papel na construção da
identidade coletiva ou pessoal –, enquanto produtoras de subjetividade, pois as
sociedades modernas operam, segundo Foucault, uma “economia política da
verdade” de onde emanam a forma de discurso científico e as instituições produtoras
deste discurso. Por isso, para ele
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada
sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de
verdade: isto é, os tipos de discurso que ela escolhe e faz funcionar
como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se
sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são
valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que
têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
(FOUCAULT, 2005, p. 12)
Se as relações sociais e o discurso constroem a identidade, constroem o
sujeito, ainda no campo da representação é importante dizer que a literatura assume
um dos importantes locais de manifestação identitária de qualquer sociedade.
Universalmente, as sociedades conservam entre si uma relação de
semelhança e de diferença, que vão sedimentando-se de acordo com seus
respectivos contextos históricos, políticos e sociais de acordo com “o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro” (FOUCAULT,
63
2005), permitindo-lhes assumir uma determinada identificação sociocultural. Essa
identificação se reflete em várias manifestações, inclusive na literatura que tais
sociedades produzem e/ou que as representam. Ora, a construção dessa
identificação é particularmente visível na literatura, por seu caráter altamente
discursivo e representacional.
É importante frisar, a partir do aparato crítico elaborado pelos Estudos
Culturais, que a própria identidade individual a identidade do “eu” resulta das
elaborações narrativas que se constroem ao longo do tempo, com base em hábitos e
conhecimentos que se adquirem por meio da interação entre o indivíduo e a
sociedade, bem como entre grupos sociais diversos e instituições estabelecidas nas
sociedades. Essa interação forma e transforma o sujeito, que assume identidades
diversas para diferentes lugares e situações, conforme nos explica Hall (2004, p. 12-
13):
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados e interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam (Hall 1987). É definida historicamente, e não biologicamente.
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente.
Dentro de nós identidades contraditórias, empurrando em
diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma
identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas
porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma
confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade
plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
Assim, a interação entre os inúmeros sistemas culturais e suas respectivas
formas de representação e maneiras mútuas e diversificadas de interpelação influi
diretamente na formação e transformação cultural e identitária.
Silva (2000), repito, afirma que a “identidade cultural” é produzida
discursivamente e em conexão com a produção do “diferente”. É o que há de
marcante em um grupo social, que o faz diferente de outros:
(...) De acordo com a teorização pós-estruturalista que fundamenta
boa parte dos Estudos Culturais contemporâneos, a identidade
cultural pode ser compreendida em sua conexão com a produção
da diferença, concebida como um processo social discursivo. “Ser
brasileiro” não faz sentido em termos absolutos: depende de um
processo de diferenciação lingüística que distingue o significado de
“ser brasileiro” do significado de “ser italiano”, de ser “mexicano” etc.
64
(Silva, 2000, p. 69)
Podemos dizer que, quando afirmamos alguma coisa, estamos também negando
outra. Com isso estamos produzindo uma diferença, pois segundo Silva (2005, p.
76):
A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas
não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental,
mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos, no
contexto das relações culturais e sociais. A identidade e a diferença
são criações sociais e culturais.
Entende-se, então, que, no terreno da diversidade cultural, na presente era,
podemos compreender que “identidade” tem estreita relação com “diferença” e vice-
versa, e que ambas são, ao mesmo tempo, entidades independentes entre si,
segundo palavras de Tomaz Tadeu da Silva:
Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é concebida
como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em oposição
à identidade, a diferença é aquilo que o outro é: “ela é italiana”, “ela
é branca”, “ela é homossexual”, “ela é velha”, “ela é mulher”. Da
mesma forma que a identidade, a diferença é, nesta perspectiva,
concebida como auto-referenciada, como algo que remete a si
própria. A diferença, tal como a identidade, simplesmente existe.
(SILVA, 2005, p. 74)
Nessa perspectiva é que os termos identidade e diferença ganham relevância
nas teorias educacionais e pedagógicas atuais e no campo dos estudos sobre a
identidade. Nela eles são encarados como questões de conhecimento, embora
ainda sejam vistos como “temas transversais” nas propostas curriculares.
Por meio do diferente é que nos identificamos. Pode-se dizer que a
consciência que se tem de si mesmo vem depois da consciência que se tem do
“outro”. Por isso, embora distintas, a identidade e a diferença são insepaveis e
dependentes entre si, pois é através do “outro” que o eu identifica-se a si mesmo.
É por meio de uma rie de negações sobre o “outro” que se afirma o que se
é, conforme nos explica Silva em seu artigo “A produção social da identidade e da
diferença”:
Da mesma forma, as afirmações sobre diferença só fazem sentido se
compreendidas em sua relação com as afirmações sobre a
identidade. Dizer que “ela é chinesa” significa dizer que “ela não é
argentina”, “ela não é japonesa” etc., incluindo a afirmação de que
“ela não é brasileira”, isto é, que ela não é o que eu sou. As
65
afirmações sobre diferença também dependem de uma cadeia, em
geral oculta, de declaracões negativas sobre (outras) identidades.
Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende
da identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis. (Silva
2005, p. 75)
Sob uma ótica multicultural, pode-se dizer que o sujeito se afirma a si próprio,
se reconhece, por meio da noção de alteridade, por meio das observações que ele
faz do outro, do “diferente”.
3.6 O lugar da linguagem na identidade do sujeito
“Se a linguagem existe é que, por sob
identidades e diferenças, há o fundo das
continuidades, das semelhanças, das
repetições, dos entrecruzamentos naturais.”
(FOUCAULT, 1999, p. 169)
Um dos fatores que definem tanto a diferença quanto a identidade é a
linguagem, é o discurso. Nosso discurso, bem como o discurso do outro, nos
identifica. Ele é a parte central do processo de construção da identidade. E essa
identificação só tem sentido em relação a outras identidades discursivas.
Vivemos em sociedade e é nela que reside a “heterogeneidade subjetiva”. É
na sociedade que se constrói o sujeito que atualmente apresenta-se heterogêneo,
complexo e conflituoso. Um sujeito tecido na cultura, na sociedade e enredado na
linguagem. Um sujeito polifônico, de identidade fragmentada.
O sujeito da modernidade não é mais homogêneo, logocêntrico, igual a si
mesmo, como era o sujeito na concepção de Descartes, segundo Maria José R.
Faria Coracini (2003). Ele é um sujeito heterogêneo perpassado – inconscientemente
por desejos recalcados em função dos ditames da sociedade, recalques que se
irrompem via simbologia da linguagem. O sujeito mestre e dono de si mesmo e de
seu discurso, o sujeito cartesiano, transforma-se em sujeito psicanalítico, reflexivo,
complexo e heterogêneo, que tem na linguagem um instrumento para estabelecer
significações, para nomear e ser nomeado, para criar relações de poder e de saber,
para se identificar.
É por meio da linguagem que articulamos uma história pessoal em momentos
de identificação que se alternam e alteram-se constantemente, pois, conforme
Coracini:
66
Ora, se considerarmos o sujeito enquanto constitutivamente cindido,
heterogêneo, polifônico, atravessado pelo inconsciente e, portanto,
pouco afeito ao controle de si mesmo e do outro, que é habitado
por outros – sujeito psicanalítico, em que o outro é visto como
inerente à própria identidade do sujeito (ou à própria subjetividade)
e se considerarmos que a manifestação do inconsciente se via
simbólico, através da linguagem... (Coracini, 2003, p. 150).
Assim, pensar em identidade e linguagem na perspectiva da modernidade
demanda perceber que ambas, identidade e linguagem, estão vinculadas ao poder e
ao saber e que a linguagem é um meio que torna acessível a realidade das coisas.
Mas, convém lembrar também que, segundo Silva em seu artigo A produção social
da identidade e da diferença,
A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente,
inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e
narrativas. A identidade esligada a sistemas de representação. A
identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (SILVA,
2005, p. 96-97)
Ora, a linguagem é permeada por regras históricas e anônimas que governam não
o que deve ser dito, quando e quem deve dizer, mas o que deve ser calado,
quando e quem deve calar. Daí, também, o dizer que o sujeito da modernidade é
“assujeitado”, conforme Foucault:
(...) ”sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua
própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento” (p.
235) —, Foucault (1995) se refere a um sujeito capturado, que nas
tramas históricas do poder e do discurso torna-se sujeito a. Em
pronunciamento posterior, ele afirma que “as práticas sociais podem
chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem
aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas
também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de
sujeitos de conhecimento” (p. 8).
(apud COSTA, 2000, p. 31)
Ainda, conforme o panorama teórico do pensamento foucaultiano sobre o
lugar “das palavras e das coisas”, o lugar “da ordem do discurso” em nossas
identidades culturais modernas, entende-se que a linguagem deve ser concebida
não somente como narrativa oral ou textual, não apenas como discurso, visto que a
própria língua está diretamente ligada à formação da identidade. A linguagem, aqui,
deve ser entendida como toda forma de expressão, toda manifestação criativa,
inventiva e que sentido às coisas. Essa forma de expressão, seja ela qual for,
67
“representa” o seu sujeito e o outro, identifica-o, fala por ele, mesmo não sendo uma
expressão verbal.
3.7 Multiculturalismo e globalização
Segundo Stuart Hall (2003), o verdadeiro significado do multiculturalismo,
embora seja um termo universalizado, se desconhece. Seu conceito é bem
complexo e permanece, todavia, obscuro:
Assim como outros termos relacionados por exemplo, “raça”,
etnicidade, identidade, diáspora – o multiculturalismo se encontra tão
discursivamente enredado que só pode ser utilizado sob “rasura”
(Hall, 1996a). Contudo, na falta de conceitos menos complexos que
nos possibilitem refletir sobre o problema, não resta alternativa senão
continuar utilizando e interrogando esse termo. (HALL, 2003, p. 51)
Essa obscuridade do termo talvez se deva à própria conexão entre os dois
fenômenos multiculturalismo e globalização e também à interconexão e à
interpenetração entre as diversificadas regiões e comunidades locais da era
moderna. A própria modernidade em si é inerentemente globalizante e globalizada.
Nessa esteira de raciocínio, chega-se às complexas relações entre
“envolvimentos locais e interação através da distância” (GIDDENS, 1991, p. 69),
oriundas da problemática do distanciamento tempo-espaço e da estrutura conceitual
desse distanciamento, cujo nível, na era moderna, é surpreendentemente maior do
que em eras precedentes. Daí o vínculo entre identidade, multiculturalismo e
globalização, representados pelos contemporâneos movimentos de defesa,
afirmação ou contestação identitária.
No contexto atual dos estudos sobre multiculturalismo, globalização e política
de identidade, que admite a diversidade de grupos sociais e culturais, de
características diferentes entre si, pode-se compreender “identidade cultural” como o
resultado de um processo social que produz tais diferenças por meio de discursos,
representações, práticas e instituições sociais. Ou seja, na perspectiva da
diversidade cultural, retrato da sociedade contemporânea, o discurso se produz pela
inter-relação.
68
3.8 Cultura popular e identidade
A cultura popular ou folclórica, como uma das mais relevantes expressões
sociais na formação da identidade de um povo, carrega consigo um forte caráter de
construção identitária e educacional. Trata-se da memória das narrativas e pticas
seculares – às vezes milenares – de uma tribo, povo ou nação.
O grande dilema dos tempos atuais tempos modernos e de globalização é
justamente o de decidir entre preservar, abandonar ou reconstruir identidades
culturais, visto que a globalização que se nos apresenta como perspectiva de
progresso traz inevitavelmente desafios e ameaças a identidades tradicionalmente
estabelecidas.
O tema nos remete ao texto de Néstor García Canclini sobre a arte popular e
sua socialização, seu valor e representatividade cultural. Canclini nos faz entender,
inicialmente e é relevante neste estudo sobre a identidade cultural latino-
americana moderna –, que arte popular não tem o mesmo significado de arte para
as massas. Esta é produzida à base da ideologia burguesa e com vistas ao lucro
dos que detêm os meios de difusão, enquanto a primeira, a arte popular, segundo
Canclini, é:
produzida pela classe trabalhadora ou por artistas que representam
seus interesses e objetivos, põe toda a sua tônica de consumo não
mercantil, na utilidade prazerosa e produtiva dos objetos que cria,
não em sua originalidade ou no lucro que resulte da venda; a
qualidade da produção e a amplitude de sua difusão estão
subordinadas ao uso, à satisfação de necessidades do conjunto do
povo. Seu valor supremo é a representação e a satisfação solidária
de desejos coletivos. Levada às suas últimas conseqüências, a arte
popular é uma arte de libertação. (1984, p. 49-50)
É preciso compreender que a cultura popular, ao mesmo tempo que é algo
que permanece vivo em nós e que tem fortes elementos do nosso passado histórico
que construiu nossa identidade primeira, é também uma recriação constante, pois
não como segurar o tempo e impedir as mudanças históricas. Em outras
palavras, nossa identidade é marcada pelos saberes e fazeres da cultura popular,
tradicional, da cultura de nossos ancestrais, em constante releitura e atualização de
acordo com novos fenômenos históricos, econômicos, sociais e culturais.
69
Ao dizer que a identidade se define historicamente e não biologicamente,
HALL (2004) confirma a iia de que, em meio a fatos contextuais pouco aceitos e
às vezes “ameaçadores”, a identidade, durante seu trajeto e no exercício de
construção e reconstrução, muitas vezes invoca, no seu passado histórico, a origem
da qual ela parece não querer se desligar: a cultura popular, tradicional ou folclórica.
Nesse pensar, admite-se de fundamental importância a re-configuração e
preservação da cultura popular na construção identitária de um povo. Na verdade, a
cultura popular parece, em dado momento, misturar-se com a própria noção de
identidade nacional, ao mesmo tempo em que se mescla ao processo de construção
da identidade individual. A identidade individual se ancora na e por vezes se rebela
contra a identidade cultural
Em meio aos efeitos desestabilizadores provocados pelos deslocamentos e
descentralizações provocadas pela globalização, as identidades reagem na tentativa
de encontrar seu lugar de pertença e ancoragem no tempo e no espaço. Por isso, as
identidades inevitavelmente acabam procurando em suas raízes históricas como
forma de amenizar as sensações de pavor e ansiedade causados pela permanente e
veloz alteração de cenários sociais instalados nestes tempos de modernidade
globalizada.
Como nos fala Canclini em Culturas Híbridas, muitas vezes o culto ao
folclore, ao popular, surge como prática de defesa ou de resistência às contradições
contemporâneas.
Nessa época em que duvidamos dos benefícios da modernidade,
multiplicam-se as tentações de retornar a algum passado que
imaginamos mais tolerável. Frente à impotência para enfrentar as
desordens sociais, o empobrecimento econômico e os desafios
tecnológicos, frente à dificuldade para entendê-los, a evocação de
tempos remotos reinstala na vida contemporânea arcaísmos que a
modernidade havia substituído. A comemoração se torna uma prática
compensatória: se não podemos competir com as tecnologias
avançadas, celebremos nosso artesanato e técnicas antigas; se os
paradigmas ideológicos modernos parecem inúteis para dar conta do
presente e não surgem novos, re-consagremos os dogmas religiosos
ou os cultos esotéricos que fundamentaram a vida antes da
modernidade. (CANCLINI 2006, p. 166)
Pela cultura popular pode-se conhecer parte de uma nacionalidade, pois toda
nacionalidade é carregada de elementos populares, representados na culinária, nas
70
roupas, na religiosidade, nas artes manuais e muito fortemente através da música,
da literatura, da dança, da pintura e das demais manifestações artístico-culturais.
A relação do indivíduo com o seu universo popular ou folclórico tem
significado muito profundo, embora às vezes determinadas práticas folclóricas sejam
mal interpretadas, consideradas apenas como entretenimento, uma amostra de
exotismo e peculiaridade. Essa relação, pois, dá sentido aoexistir” e gera identidade
não ao participante, mas à comunidade na qual ele está inserido. Melhor dizendo,
a sensação que nos invade de “pertencer a um lugar, a um grupo social, onde
fomos inseridos ou nascemos, essa sensação se cristaliza e nos dá identidade.
3.9 Cultura, identidade e educação
Um dos aspectos que não pode ser esquecido neste trabalho é que educação,
como parte integrante dos fenômenos culturais, também ajuda a construir
identidades e alteridades, seja pela representação de estereótipos, seja pela
disposição e arranjo do currículo, seja pelas vozes privilegiadas no ambiente escolar,
seja exatamente pelas vozes denegadas ou esquecidas no processo de ensino e
aprendizagem.
É preciso que se diga, no entanto, que a educação não está restrita ao que
ocorre dentro dos âmbitos escolares, na dimensão do ensino formal e acadêmico. A
cultura de uma sociedade constrói vários espaços em que a educação ocorre,
espaços não formais, espaços alternativos, instâncias não controladas pelo Estado
ou pela escola. E é nesse sentido que a obra de Violeta Parra reveste-se de
importância e caráter educacional.
A educação é também espaço contestatório e contraditório. Nela pode-se
perceber a presença dos órgãos oficiais do governo, mas também pode-se ouvir
vozes de resistência e discordância. Sob um processo educacional bastante rigoroso
e conservador pode mover-se um processo de crítica e rebeldia, um processo
revolucionário. A educação torna-se ao mesmo tempo veículo de ideologias
dominadoras e patrióticas ou de aspirações transformadoras e nacionalistas num
sentido mais popular e autêntico. Portanto, por meio da educação, formal ou
informal, criam-se posições de identificação cultural.
A cultura popular constrói saberes que muitas vezes passam ao largo da
escola ou da universidade canções, histórias, épicos, poemas, pinturas, dramas,
71
práticas sociais, familiares, artesanais. Dessa maneira, estudar o contexto, o
percurso histórico e social de um povo, estudar principalmente seu discurso e suas
produções culturais, como o fez Violeta Parra é, antes de tudo construir novos e
importantes saberes, que podem ser devolvidos ao povo ou transmitidos a outros
povos, a fim de que se preserve suas raízes históricas e identitárias.
Esse processo educacional não se no isolamento de uma nação, mas pressupõe
o contato e a interação com outras nações. No caso da América Latina, o processo de
modernização deu-se no contexto da colonização” européia, que trouxe a imposição de
padrões e modelos prontos. A influência norte-americana apenas deslocou o eixo
econômico e cultural, complicando ainda mais o processo e gerando uma espécie de crise
cultural, portanto identitária, que até hoje se faz sentir. Hoje esse processo torna-se ainda
mais complexo na medida em que a economia se torna globalizada.
Na América Latina contemporânea, os artistas, os compositores e escritores
dispõem de um diversificado e farto material advindo de diversas culturas
desenvolvidas ao longo da história. Matrizes indígenas, experiências rurais,
contribuições de migrações diversas de África, da Europa, da Ásia constituem
ingredientes valiosos nas múltiplas propostas identitárias para os povos do
continente. Nesse contexto, a educação pode se dar em vários níveis, sempre
agregando uma mistura de elementos díspares, heterogêneos e alógenos que estão
na base da cultura latino-americana e que se expandem ou se contraem. Poderia-se
pensar em “fusão” de culturas, no entanto trata-se de “convivência” das
manifestações culturais na contemporaneidade latino-americana, embora ela
apresente tendências ao sincretismo, dada a interação e a inter-relação de sistemas
culturais completamente diferentes dentro de um mesmo espaço.
3.10 A arte poética e musical de Violeta Parra como um projeto pedagógico
Nosso espaço latino-americano “pós-colonial” continua um território colonizado.
Agora, com esta diferença: colonizado pelo moderno imperialismo global das
grandes nações estrangeiras. D que estamos cada vez mais enredados em
sistemas globais de domínio e exploração. As construções identitárias culturais e
seus laboratórios educacionais se dão nesse contexto de presença, invasão e poder.
Ora, dentro dos múltiplos sistemas culturais que constituem a modernidade, o campo
da educação figura entre os mais delicados e cruciais, tendo em vista sua posição
estratégica na produção de identidades.
72
Na América Latina, num tempo e num cenário em que se delineiam profundas
transformações, o século XX, surgem duas figuras de enorme relevância na
formação da identidade cultural do povo latino-americano: Paulo Freire e Violeta
Parra. Paulo Reglus Neves Freire, Paulo Freire, como é conhecido mundialmente.
Intelectual corajoso, um dos primeiros pensadores da educação que, conforme Peter
Mclaren (1999, p. 16),
(...) atentou integralmente para a relação entre educação, política,
imperialismo e libertação. Considerado como o filósofo inaugural da
pedagogia crítica, Freire conseguiu proceder a uma reorientação
global da pedagogia, direcionando-a no sentido duma política radical
de luta histórica, perspectiva que desenvolveu como projeto de vida.
Violeta Carmen Parra Sandoval, Violeta Parra, poeta, compositora e cantora,
importante folclorista, também conhecida internacionalmente e que, segundo
palavras do poeta Pablo Neruda e de Nicanor Parra, irmão mais velho de Violeta e
um dos maiores poetas chilenos:
Violeta Parra es un caso singularísimo en la creación artística chilena
y latinoamericana. Compositora, cantante y poeta ella misma, pero
además, pintora, bordadora, ceramista e investigadora del folclore,
llevó a cabo, junto a Atahualpa Yupanqui, la renovación de la canción
popular. Con ellos desaparece el pintoresquismo fácil, el
melodramatismo vacío y las visiones estereotipadas de América
Latina. Sin embargo, fue necesario que viajara al extranjero y
trajinara allí su identidad para que su nombre obtuviera el
reconocimiento que hoy merece.(contra-capa do livro Décimas,
autobiografía en verso, de Violeta Parra).
Um nordestino brasileiro e uma sulista chilena, contemporâneos, unidos na
preocupação pela construção da uma identidade cultural, no interesse pelos
processos educacionais, embora jamais tendo-se encontrado pessoalmente e
vivendo em ambientes bastante distintos, ambos militaram por transformações
sociais em seus países, ambos lidaram com a educação popular, ambos foram vistos
como ameaças pelos governantes, ambos questionavam as desigualdades de uma
sociedade caracterizada pela opressão e pela exploração do trabalhador, seja do
camponês, seja do mineiro, seja do pobre nas ruas das grandes cidades, seja do
retirante, do índio, do pobre que vive na periferia.
As afinidades entre a filosofia pedagógica de Paulo Freire e a proposta
artístico-cultural de Violeta Parra se dão em muitos níveis: no desmascaramento de
73
hipocrisias político-partidárias, religiosas e de discursos ideológicos, na denúncia da
injustiça, na valorização do conhecimento popular, do folclore, na luta pela
conscientização política das massas, no engajamento social, na importância que
deram aos aspectos econômicos e cotidianos da vida do trabalhador. Ambos
trabalhavam em favor dos oprimidos e buscavam dar voz aos calados, aos
silenciados pela história e pelas instituições políticas.
Segundo Peter Mclaren, em Utopias provisórias, as pedagogias críticas
num cenário pós-colonial,
A vida de Freire desvela veementemente as marcas duma trajetória
vivida às margens do poder e do prestígio. Freire foi sempre objeto
de controvérsia, pelo fato de seu trabalho centrar-se nas questões
das mudanças sociais e políticas, especialmente em relação ao
pensamento educacional dominante na Europa e América do Norte.
(MCLAREN, 1999, p. 22)
Unindo as categorias história, política, economia e classe aos
conceitos de cultura e poder, Freire conseguiu desenvolver ao
mesmo tempo uma linguagem de crítica e uma linguagem de
esperança que trabalham conjunta e dialeticamente e que
mostraram ter obtido sucesso em ajudar gerações de excluídos a
libertar-se. (MCLAREN, 1999, p. 24)
Violeta, com seu trabalho de compilação e recriação do folclore, seguido da
divulgação nos grandes centros urbanos, assume não o papel de artista da arte
musical e poética, mas o importante papel de educadora, pelo caráter educacional
de suas pesquisas folclóricas e de suas composições autorais. Violeta preocupava-
se com o campesino pobre e marginalizado pela sociedade moderna, não admitia
que suas raízes fossem relegadas ao esquecimento. Daí sua preocupação em
investigar o folclore autêntico do povo do interior e também sua proposta de compor
canções que dialogassem com esse folclore, que o recriassem em sua versão
pessoal e única, que o atualizassem. Leonidas Morales, pesquisador e professor
chileno, lamenta que Violeta Parra também tivesse a vida marcada pela
marginalização por parte do poder e fosse objeto de desdém,
Pero algunas sombras se levantan y perturban la lectura. Cuando se
propone divulgar el canto y la poesía recopilados, la mayoría de las
radios de Santiago le niegan la oportunidad: no existe interés. el
folclor, el de Violeta, el autentico, era una antigualla que no encaja en
las expectativas del público urbano, cuyos gustos las mismas radios
modelan y comercializan. (MORALES, 2003, p. 45)
74
Assim como Violeta, Paulo Freire também foi perseguido como agitador
político e por causa de seus envolvimentos com as causas populares, por causa do
caráter político e integral de sua proposta educacional. Ambos demonstram
verdadeiro destemor em relação às ameaças dos governos autoritários de seus
respectivos países. Ambos fazem a leitura de seu momento histórico e propõem uma
leitura de mundo, uma leitura da vida a partir da ótica campesina e a partir das vozes
silenciadas do povo.
4 Violeta Parra e a música chilena no cenário da
modernidade: “El cantar la diferencia”
“Yo canto a la chillaneja
si tengo que decir algo
y no tomo la guitarra
75
por conseguir un aplauso
yo canto la diferencia
que hay de lo cierto a lo falso
de lo contrario, no canto.”
4
(Violeta Parra)
Este capítulo apresenta uma análise da obra de Violeta Parra, focando em
sua atividade como pesquisadora e divulgadora do folclore chileno, o caráter
educativo, crítico e conscientizador de suas canções e o aspecto identitário presente
em suas Décimas. No trabalho de folclorista, será enfatizado sua contribuição para a
reconstrução de uma identidade cultural nacional que levasse em conta as matrizes
indígenas e campesinas da cultura popular chilena. Na análise das canções será
focada a representação do papel da ciência, dos estudantes, das escolas e da
educação como crítica política e trabalho de conscientização social.
4.1 Pesquisa e divulgação do folclore chileno
O ruralismo chileno foi, durante todo o século XIX e início do século XX, o que
fundamentou a cultura no país, ancorado na idéia de um idealizado, porém defasado,
mundo rural, comparando-se à efervescente sociedade industrial que se avizinhava.
Esse ruralismo teve origem por volta dos séculos XVII e XVIII, quando se
cantavam e se dançavam em comemorações populares, com acompanhamento de
viola, os fandangos”, as seguidillas e os zapateos”. Entretanto, a expressão
popular mais genuína do folclore chileno era o contraponto ou “trova”, apresentado
nas importantes festas religiosas e cívicas da época, onde se reuniam os mais
famosos trovadores (NAVARRO, 2005).
Mas, antes de tudo isto, segundo Lucy Lara Rocha em: Historia del folclore
chileno, houve, no Chile, episódios que tornam-se razões para a marcante
expressividade na música chilena:
Antes de la llegada de los españoles, en nuestro país los indígenas practicaban
la música en sus distintas agrupaciones y en ella predominaba lo religioso, lo
social, lo utilitário siendo por ello muy expresiva. Luego la música autóctona
4
Primeira estrofe da canção “Yo canto la diferencia”, uma toada ao estilo de sua terra natal, Chillán, composta em
1960 para as festas em comemoração aos 150 anos de independência de seu país (PARRA, Violeta, 2005).
76
fue confinada a los reductos indígenas y poco a poco se va dejando de lado y
entonces comienza a adoptar en forma predominante lo que la cultura que el
conquistador conocía como música. (2007)
Nessa época no Chile, a música, como universo de identificação cultural, era
expressa, principalmente em toadas e cuecas típicas, na interpretação de alguns
pequenos grupos de músicos populares: os chamados “conjuntos urbanos”.
No período entre as décadas de 1930 e 1950, no Chile cantavam-se e
dançavam-se toadas, que são cantigas de melodias simples e monótonas, de textos
geralmente curtos que contam fatos da história, que falam de religião ou da natureza,
e cuecas, dança típica, tida como dança de assédio amoroso. Segundo Camilo Rojas
Navarro em Historia y teoría de la poesía popular chilena (vista por un cultor),
la cueca es de origen africano, que la habrían traído unos negros de
Guinea que, acampados en Quillota, esperando ser vendidos a sus
nuevos amos, bailaban entre hombres y mujeres dando vueltas en
semi rculo al son de la guitarra y el canto y acompañados en el
ritmo por las palmas de los asistentes que hacían rueda al rededor
de los bailarines. Este baile se llamaba LARIATE y es el mismo que
con los años se convierte en “Zamba Clueca” y que, debido a la
dificultad de los negros en pronunciar la letra ele, se convierte en
“Zamba Cueca”, para quedar definitivamente en “Cueca”.
(NAVARRO, 2005, p. 54)
Violeta Parra, como grande pesquisadora, catalogadora e divulgadora do
folclore chileno, muito contribuiu para que os ritmos e gêneros musicais populares se
tornassem conhecidos nos grandes centros urbanos e por todos os países por onde
viajava. As capas e os encartes de seus discos, bem como os livros com as letras de
sua obra musical, não traziam apenas os nomes das canções e outras informações
técnicas como o tempo de duração da gravação, mas também o ritmo tradicional da
canção e a sua origem. Havia em sua obra uma grande preocupação didática, de
modo a formar um público conhecedor do folclore chileno.
Com o desenvolvimento turístico proporcionado pela instalação da estrada de ferro e
do aeroporto na capital chilena, Santiago, e com o crescimento das cidades, o Chile
passou a apresentar-se com uma imagem social e culturalmente mais
diversificada. Daí, rapidamente, o país chega ao “auge da modernização” das
sociedades urbanas e da entronização do mundo popular, favorecidos pelo
aparecimento do rádio, dos discos e do cinema sonoro novos meios de
comunicação de massa que, inevitavelmente, favoreceram a que Violeta Parra
tecesse sua própria e incomum arte musical.
77
Iniciava-se uma época de grandes projetos político-sociais que marcariam por
muitos anos a história do país e do povo chileno. Nesse período, Violeta já se
identificava profundamente com a cultura campesina e tradicional, tendo absorvido e
interiorizado desde a infância suas raízes culturais, e se aventurava, cada vez mais,
a pôr em prática seu grande sonho de levar, através da música, um pouco do mundo
campesino para a cidade, uma experiência que, segundo Morales (2003, p. 39): lenta
y dolorosamente, reforça-lhe a consciência de sua identidade camponesa.
Violeta desde muito cedo entendeu que a vida no Chile necessitava de
mudanças. Entendeu que era preciso agir, pois os grandes projetos político-sociais”
apresentados pelo governo tinham um certo grau de radicalidade que exigiam
adesões sem possibilidades de diálogo, e isto faria aumentar a exclusão. Foi
que Violeta engajou-se na luta do seu povo, na preservação de suas raízes culturais,
levando para a cidade suas histórias, seus hábitos e o mais importante: suas
reivindicações, que a modernidade estava “aniquilando” a tradição histórica do
chileno. Passou a trabalhar criativa e intensamente na compilação de canções e
cantos folclóricos, no afã de preservar a identidade de seu povo.
A poesia e a música escritas e cantadas pelo povo da terra o camponês que vivia
nos lugares mais distantes da civilização urbana –, era o alvo principal de seu
projeto, era o ponto de chegada para suas inúmeras partidas, algumas delas
clandestinamente. Fernando Sáez em seu livro La vida intranquila: Violeta Parra,
biografía esencial, diz que:
Absorbida por esta nueva inspiración, desaparecia de su casa a
veces por quince días, recorriendo algún campo, instalándose con
paciencia en un caserío. Allí debía lograr que los más antiguos
habitantes abandonaran sus aprehensiones, comenzaran a
acompañarla en los cantos, se decidieran a soltar prenda y
entendieran lo que ella venía a hacer. Violeta, cuaderno y lápiz em
mano, anotaba posturas, rasgueos y letras, impregnándose de la
manera profunda y simple del quehacer campesino, de sus gestos,
de toda ese protocolo natural exento de pose.
Sus hijos recuerdan que partía sin plazo ni rumbo fijos, con El
material a cuestas para Rancagua, San Carlos, Temuco. Ángel, a
veces, la acompañaba, cargando la grabadora, andando kilómetros
78
por caminos difíciles hasta un campo donde, por supuesto, no había
electricidad... (SÁEZ, 1999, p. 56 e 59)
Violeta empreendia um verdadeiro trabalho de arqueologia da música
campesina, uma tarefa de pesquisa cultural, social, de contato direto com segmentos
diversos da população, um projeto também pedagógico na medida em que se
propunha a divulgar o folclore nacional. Ela percorria as diversas regiões dos
campos chilenos desde a década de 1950, conforme vimos no segundo capítulo
desta dissertação, e conforme palavras da própria Violeta desenterrando folclor”,
descobria as raízes ancestrais do canto folclórico, corrigia, recriava, imitava, ou
geniamente compunha, musicava e ela mesma cantava, divulgando, assim, a poesia
e o canto do povo no seu espírito mais autêntico, um acervo folclórico muito diferente
do que era tido e oferecido como “folclorepela arte popular urbana da época. Eis a
Violeta educadora, não no sentido escolar, certamente, mas no sentido mais amplo,
social, de pesquisa, formação e divulgação cultural.
No “auge” da modernização da sociedade chilena, Violeta Parra traz à tona o
canto tradicional ou folclórico, o canto nacional-popular, abrindo espaço para a
coexistência das duas modalidades de música: a urbana, moderna, e a rural,
tradicional ou folclórica, representações bem diferentes entre si que coexistiram em
meio a conflitos e rejeições.
Esse empreendimento de Violeta, essa “escavação”, esse trabalho
arqueológico da música e da cultura popular tradicional acabou por trazer-lhe o título
de ícone oficial da cultura nacional-popular chilena, por ser ela uma árdua defensora
de um canto novo, que revelava as diferenças culturais do país.
Segundo alguns estudiosos de Violeta Parra, como Ignácio Valente, o folclore
que ela levava para a cidade era dos mais expressivos, talvez pela autenticidade e
pureza da linguagem:
El folklore al que se adscribe Violeta Parra es otro, más
subterráneo y profundo, más ligado a las verdaderas raíces del
pueblo, más auténtico y, por supuesto, más arraigado a ese
fenómeno cultural maravilloso que es la auténtica poesía
popular, simple ingeniosa, mágica, heredera de tradiciones
antiquísimas que se remontan, según algunos, nada menos que
a la poesía de los trovadores provenzales de hace tantos
siglos.
5
5
Fragmento do texto 21 Son los Dolores”, escrito por Ignacio Valente, para o jornal El Mercurio, em 1977 e
publicado no site: www.letras.s5.com/violeta110502.htm, Tu Salón de Lectura en Español Proyecto
Patrimônio, acessado em 7 de agosto de 2006.
79
As palavras de Ignácio Valente confirmam a importância e a profundidade da
“escavação” feita por Violeta e trazem implícita a dimensão de seu sentimento
patriótico e do amor por sua terra e por sua gente campesina. Esse mesmo folclore
coletado e assimilado era divulgado em diversos canais, como o rádio e a televisão,
sem cair no comercialismo banalizante, sem virar souvenir ou exotismo para
satisfação da curiosidade de turistas. O programa de rádio Canta Violeta Parra, por
exemplo, era feito num ambiente todo caracterizado pelo mundo rural, em meio a um
cenário especialmente construído:
[...] Canta Violeta Parra se transmitia los viernes a las ocho de la
tarde y su grabación se reproducía los domingos en la mañana. Cada
programa era una divulgación de aspectos del folclore que incluía
canciones y como novedad incorporaba toda una ambientación para
abordar temas referidos a costumbres, campesinas, diversas fiestas,
como la trilla, la vendimia o los velorios de angelitos. Violeta hacía el
libreto y se preocupaba de toda la producción, [...]
[...] Algunas veces grababa con doña Rosa Lorca en el restaurante
de su madre, echándole trigo a gallinas y patos, haciendo balar a una
oveja, obteniendo de este modo un cuadro campesino de total
realismo. También invitaba a los personajes de quienes había
recopilado textos y repetía ante la audiencia la forma en que
trabajaba [...]
[...] El realismo de la ambientación se conseguía en medio de trifulcas
para lograr que gallinas y patos, caballos y chanchos, lanzaran sus
característicos gritos para que quedaran registrados. (SÁEZ, 1999, p.
67-71)
Tudo isso era feito no intuito de preservar a atmosfera campestre e invocar a
realidade em que vivia o povo interiorano. A vida campesina parecia, a Violeta, mais
autêntica e mais próxima da sua, pela característica simplicidade, dura labuta,
aspereza de linguagem e riqueza cultural. É claro que a aspiração ao resgate de
uma identidade fundante pura e “verdadeira” é na verdade uma ilusão, visto que
todo cambia el momento”, como ela mesma diz em suas canções. Ela mesma
estava plenamente consciente disso e propôs em suas canções autorais uma
releitura possível do folclore chileno, uma apropriação toda pessoal e própria.
Violeta Parra tinha um cantar diferente não pelo estilo trovadoresco de
interpretação e seu timbre rouco, que parecia brotar de múltiplas fontes sonoras
fortalecendo ainda mais a marca folclórica de sua arte mas pelo seu jeito de se
comunicar com o público de maneira direta e espontânea, um jeito despojado de
todo e qualquer artifício, sem a distância o comum entre cantor e público. Suas
80
canções falam de um comprometimento ético, de matiz mesclado de princípios
cristãos de solidariedade, verdade e esperança, juntamente com categorias oriundas
do materialismo histórico e dos movimentos latino-americanos de esquerda.
Rodrigues y Recabarren, uma de suas críticas sociais musicadas, estampa tais
afirmações enquanto alude a fatos históricos provocados pela injustiça do poder:
(...) qué vergüenza en el planeta de haber matado un poeta nacido de sus
entrañas. Un río de sangre corre por los contornos del mundo y un grito surge
iracundo de todas las altas torres, no habrá temporal que borre la mano de la
injusticia.
Violeta revelava profundo cuidado e respeito pelas pessoas que ia
conhecendo durante seu percurso afanado de restituidora de uma memória quase
dissolvida.
A popularidade do programa de rádio Canta Violeta Parra é atestada por
Fernando Sáez, que comenta que, quando Violeta apresentava o programa,
Aunque muchas personas que trabajaban en la radio consideraban
esto una extrañeza sin destino y la figura de Violeta y sus canciones
eran motivo de burlas que la obligaban a una posición desafiante y
agresiva, el éxito del programa fue apabullante. Nadie podia dar
crédito a los cientos y cientos de cartas que llegaban de los lugares
más apartados del país agradeciéndole la difusión de todo ese
material que despertaba en ellos recuerdos añejos, arrumbados y
fragmentados en la memoria familiar. CANTA VIOLETA PARRA se
fue convirtiendo en el programa más exitoso de la emisora.
Ese apoyo anónimo y masivo le confirmaba la validez e importancia
de su labor y le otorgaba la confianza para seguir en ese camino
porque había conseguido el respaldo de la gente que constituía para
ella el verdadero pueblo de Chile, las personas con las que se
identificaba y a quienes queria representar. (SÁEZ, 1999, p. 71)
4.2 A identidade cultural presente nas canções
Violeta Parra preocupou-se muito com a reconstrução da identidade do povo
camponês, invocando suas raízes ancestrais indígenas. Essa preocupação pode ser
evidenciada na canção Casamiento de negros”, que se baseia em um tema
tradicional folclórico chileno (a primeira estrofe), um canto de saudação e parabéns,
com desenvolvimento autoral de Violeta e que representa a condição em que vive o
81
camponês. Esta canção, do início dos anos 1950, é fruto das pesquisas que ela
fez junto ao povo campesino e também uma reelaboração.
Conforme palavras de Claudio Rolle, da Pontifícia Universidade Católica do
Chile, no artigo: De yo canto la diferencia a Qué lindo es ser voluntario. Cultura de
denuncia y propuesta de construcción de una nueva sociedad (1963-1973):
En esa ciudad, la intérprete de la música tradicional chilena tuvo una
experiencia decisiva, que cambió profundamente su vida. En esa capital
llena de estímulos de toda índole, con ambientes muy creativos y con
multiplicidad de espacios y ofertas artísticas de ámbitos culturales muy
variados, ella pudo desarrollar su dimensión de cantautora, hasta
entonces subordinada a su esfuerzo como recopiladora del folclore e
intérprete. Ya había conseguido éxito con su Casamiento de negros y ya
había compuesto canciones de enorme potencia crítica como Yo canto
la diferencia. Sin embargo, será la distancia de Chile y de su familia, así
como los sucesos de su país mirados desde lejos, lo que la empujaría a
componer, a crear canciones que abrirán el camino a lo que luego se
llamará la Nueva Canción Chilena. (ROLLE, 2005)
A ocasião que a canção apresenta é festiva, um casamento, mas a situação é
trágica:
Se ha formado un casamiento
todo cubierto de negro,
negros novios y padrinos
negros cuñados y suegros,
y el cura que los casó
era de los mismos negros.
de início percebe-se que a cor negra traz a marca da etnicidade, uma
condição que iguala a todos os participantes da festa, e um paradoxo, que espera
que o branco seja a cor prevalecento numa festa de casamento. Todos compartilham
da mesma condição, da mesma matriz cultural e social noivos, padrinhos,
cunhados, sogros e até o padre − todos são negros. O qualificativo negro, é bom que
se diga, não guarda relação direta com a cultura africana, mas aponta para as
origens indígenas do povo araucano, de pele morena, queimada pelo sol, o índio
camponês. Embora a canção comece com esse tom festivo, a referência à cor negra
pode sugerir uma nota de desconcerto, que vai se confirmando à medida que a
composição se movimenta:
Cuando empezaron la fiesta
pusieron un mantel negro
luego llegaron al postre
se sirvieron higos secos
82
y se fueron a acostar
debajo de un cielo negro.
Nesta segunda estrofe, confirma-se uma metáfora que aparece na anterior,
a metáfora da cobertura, da cor negra que cobre todos os rostos e tudo o mais.
Neste caso, a canção fala de um mantel negroque em espanhol quer dizer: toalha
preta, que vem cobrir a mesa onde estão dispostas as comidas e aqui observa-se
que inclusive a sobremesa, los higos secoso negros ou bem escuros. Até os
noivos estão sob um céu negro que os cobre. Neste caso, a cor negra predominante
quer significar noite permanente, sinal de uma vida de sacrifícios desse camponês,
para quem tudo é escuro, inclusive sua festa de casamento. A própria vida do índio
camponês torna-se escura, pela privação que sofre:
Y allí están las dos cabezas
de la negra con el negro,
amanecieron con frío
tuvieron que prender fuego,
carbón trajo la negrita
carbón que también es negro.
Para suportar o frio e a escuridão, a negra traz o carvão. Essa imagem de
desconforto vai se tornando mais forte na medida em que a canção se desenrola e
traz um fato novo: a doença. O médico é chamado e vem de longe, e sua receita é
um emplastro de barro, também negro. O emplastro reforça a metáfora do barro
escuro, negro, que cobre a pele negra do índio:
Algo le duele a la negra
vino el médico del pueblo
recetó emplastos de barro
pero del barro más negro
que le dieron a la negra
zumo de maqui de cerro.
O fim trágico se aproxima. A figura da morte vem cobrir a negra com um
caixão pintado de negro. E o velório, uma cena que lembra a presença de velas
acesas e, que supostamente deveria trazer alguma luz à casa enlutada, torna-se um
momento desesperador e sombrio. Nas entrelinhas da canção está subentendido o
processo violento e injusto da colonização e do avanço da modernidade. O índio é
representado aqui como vítima de um destino atroz, de uma condição lamentável.
Ya se murió la negrita
83
que pena pa’l pobre negro,
la puso dentro un cajón
cajón pintado de negro,
no prenderon ni una vela
ay que velório más negro.
Violeta descreve, num ritmo bastante descontraído e alegre, uma festa de
casamento que se transforma em velório, num tom que sugere bastante ironia e
criticidade. A identificação do povo latino-americano é aqui marcada pela cor negra,
camada sobre camada, tom sobre tom, negro sobre negro. Na vida do camponês as
alegrias são poucas e duram pouco, tamanha é a pobreza e a falta de perspectiva. A
falta de uma vela acesa, no velório da negrita também confirma a metáfora da
cobertura. A própria idéia da terra cobrindo o corpo é sugerida pela imagem do
velório.
A canção não se propõe a ser um nonsense”, conforme o intérprete Les
Baxter sugeriu ao regravá-la com o título de La melodia loca(SÁEZ, 1999). O que
Violeta faz é uma crítica social muito lógica e bem articulada, tudo isso a partir de um
tema popular. Segundo Nicanor, seu irmão, a canção trouxe bons rendimentos
autorais a Violeta, configurando-se como seu primeiro grande sucesso (MORALES,
2003).
Em várias de suas canções, principalmente as de cunho social, ela se mostra
natural, espontânea e ao mesmo tempo ríspida e enfática, como se percebe no
decorrer desta análise. Essas são características marcantes de Violeta e de sua
obra.
As canções de Violeta movem-se entre dois contextos opostos: o folclórico e o
urbano. Seu canto é el canto diferente, propondo que a cidade conhecesse de perto
o mundo rural, o seu berço histórico. Daí que, no território da indústria musical local,
ela desponta com uma nova versão do gênero da música popular baseada no
folclore.
Uma das canções de Violeta que exemplifica esses aspectos é Yo canto la
diferencia”, composta no meado da década de 1950 em comemoração aos 150 anos
de independência do Chile. Nela, Violeta conserva o estilo folclórico regional a
chillaneja”,
6
da região de Chillán, sua terra natal –, e se declara pubicamente uma
6
Percebe-se a preocupação pedagógica de Violeta Parra ao nomear cada ritmo de suas canções
conforme os ritmos tradicionais chilenos, andinos. Dessa forma, ao ouvir seus discos, o público era
levado a conhecer e apreciar a riqueza da diversidade cultural popular. O interesse de Violeta era por
84
cantora preocupada com as diferenças sociais. Ela mesma diz: no tomo la guitarra
por conseguir un aplauso”. Esse verso revela uma Violeta engajada nas causas e
questões sociais, uma educadora, empenhada no objetivo de denunciar o erro, o
abuso político, indo muito além do querer ser aplaudida. Ela quer que sua canção
seja um instrumento de conscientização do povo humilde, do trabalhador, do
campesino, ao revelar o seu verdadeiro valor numa sociedade preocupada
unicamente com a modernização. Ela queria ser ouvida, em primeiro lugar: atención
al auditorio, que va a tragarse el purgante”. Percebe-se que o tom irônico ainda se
faz presente na voz da poeta.
“Yo canto la diferenciaé uma canção meta-lingüística, pois trata da condição
do poeta num momento histórico crítico. Ela marca o início do movimento La nueva
canción chilena”, contrastando de modo gritante com a música comercial daquela
época até pela extensão da letra, que ultrapassa o formato ligeiro exigido pelo
mercado fonográfico. Nela, o bucolismo do canto tradicional lugar à música de
protesto, de denúncia, típica dos ambientes urbanos, uma forma de resistir à força
envolvente da modernidade. Nessa canção, a questão da “diferença” abriga um forte
caráter moral e pedagógico ao apresentar duas perspectivas contrastantes da
realidade: o “certo” e o “falso”: yo canto la diferencia que hay entre lo cierto y lo
falso”.
Yo canto a la chillaneja
si tengo que decir algo.
y no tomo la guitarra
por conseguir un aplauso.
Yo canto la diferencia
que hay de lo cierto a lo falso,
de lo contrario no canto.
O caráter ético da canção sugere que o papel do cantor não é o de mero
promotor de diversão, mas a defesa do que é correto. Sua música é um instrumento
à disposição da sociedade. Violeta almejava, acima de tudo, uma sociedade mais
consciente de suas raízes, de sua história, de sua identidade cultural. Nessa crítica
de caráter político, a ironia torna-se o grande instrumento da cantora, que faz de sua
canção um remédio indigesto, un purgante”, e um lamento pelo amor não
correspondido entre povo e pátria.
preservar na memória coletiva do país e divulgar nos grandes centros urbanos os ritmos populares
criados ao longo da história do Chile.
85
Les voy hablar en seguida
de un caso muy alarmante
atención al auditório
que va a tragarse el purgante
ahora que celebramos
el 18 más galante
la bandera es un calmante.
Yo paso el mes de septiembre
con el corazón crecido
de pena y de sufrimiento
de ver mi pueblo afligido
el pueblo amando la pátria
y tan mal correspondido
la bandera por testigo.
O “eu” lírico da autora vem à tona de pena y de sufrimiento de ver el pueblo
aflijido”, e sua voz que na verdade encarna a voz do próprio povo campesino,
trabalhador, sofrido e menosprezado denuncia o sentimento de revolta ao ver que
os poderosos fazem juramento falso à bandeira do país, e que os humildes
campesinos, os que realmente amam a pátria, apesar disso, não são
correspondidos. Aqui, a identidade do povo é construída como em meio a conflitos
de poder e hierarquia. uma voz que é excluída, silenciada, a voz do povo. A
poeta torna-se quase que uma profetiza na denúncia ao estado de injustiça e
banalidade. A tensão da canção é gritante, entre a identidade nacional representada
pelo patriotismo e pelo respeito aos símbolos nacionais e a violência patrocinada
pelo Estado. O Estado não é o povo e seus guardas vêm de outro planeta. A poeta
se dirige ao ministro da justiça. E sua canção vem carregada de um tom
denunciatório.
En comandos importantes
juramento a la bandera
sus palabras me repican
de tricolor las cadenas
con vigilantes armados
en plazas y en alamedas
y al frente de las Iglesias.
Los Ángeles de la guarda
vinieron de outro planeta
porque su mirada turbia
su sangre de mala fiesta
profanos suenan tambores
clarines y bayonetas.
Afirmo señor ministro
que se murió la verdad
hoy dia se jura en falso
86
por puro gusto no más
engañan al inocente
sin ni una necesidad
y me hablan de libertad.
Violeta protesta contra a religião institucionalizada e sua passividade diante da
realidade social, diante desse cenário de diferenças tão evidentes. A cantora ironiza
a cena do vigário benzendo banderitas y medallitase as distribuindo às crianças,
quando o que elas precisam é de comida e assistência social. A religiosidade aliada
à injustiça torna a situação particularmente insuportável.
Ahí pasa el señor vicario
con su palabra bendita
podría, su santidad,
oírme una palabrita?
los niños andan con hambre,
les dan una medallita,
o bien una banderita.
Por eso su señoria
dice el sábio Salomón
hay descontento en el cielo
en Chuqui y en Concepción
ya no florece el copihue
y no canta el picaflor
centenario de dolor.
As desigualdades sociais trazidas pela modernidade são evidentes em toda
parte, a começar pela negligêngia dos poderosos para com os trabalhadores
humildes e para com os campesinos. Com o crescimento e expanção das cidades,
os pássaros desapareceram, e ya no florece el copihue– a flor símbolo do Chile. E
Violeta externaliza a tristeza de ver un Caballero pudiente”, um político “poderoso”
deslizando em seu cadillac”, festejando os 150 anos de emancipação: y viva la
libertad!” enquanto a maioria do povo chileno, o campesino morre de fome e de frio,
sem casa, sem roupa e sem comida: sem dignidade.
Un Caballero pudiente
agudo como un puñal
me mira con la mirada
de un poderoso volcán
y con relámpagos de oro
desliza su cadillac.
y viva la libertad!
De arriba alumbra la luna
87
con tan amarga verdad
la vivienda de la Luisa
que espera maternidad
sus gritos llegan al cielo
nadie la puede escuchar
en la fiesta nacional.
Esta canção guarda um caráter educacional que pode traçar paralelos com a
perspectiva da pedagogia freireana. A preocupação de Violeta Parra com as
discrepâncias entre a cidade e o campo, entre os valores tradicionais e os “valores”
da modernidade, com a tensão entre um Estado autoritário e um povo oprimido são
muito evidentes na canção. Peter Mclaren, em Utopias Provisórias, ao reportar-se
ao educador brasileiro Paulo Freire, argumenta que,
Freire lamentava a realidade brutal de que era testemunha, em que
os oprimidos viviam sempre como apêndices destacáveis dos sonhos
e desejos de outros. (MCLAREN, 1999, p.24)
Paulo Freire assemelhava-se a Violeta Parra na denúncia à opressão e no
engajamento pela conscientização da população rural e urbana. O contraste entre a
a exuberância da parada militar e a triste condição de uma mulher pobre chamada
Luisa, com seu filho recém-nascido, sem-teto, é excruciante.
No tiene fuego la Luisa
ni una vela ni un pañal
el niño nació en las manos
de la que cantando está
por un reguero de sangre
va marchando un cadillac
cueca amarga nacional.
La fecha más resaltante
la bandera va a flamear
la Luisa no tiene casa
la parada militar
y si va al parque la Luisa
adonde va a regresar
cueca larga militar.
O cantar de Violeta Parra tem efeito cortante, suas palavras criticam a
moderna sociedade e os abusos do Estado militarista. Ao final ela parece cantar a
um auditório e tem plena consciência do caráter “ofensivo” de sua canção:
Yo soy a la chillaneja
señores para cantar
88
si yo levanto mi grito
no es tan sólo por gritar
perdóneme el auditório
si ofende mi claridad
cueca larga militar.
Ao criticar o poder e os opressores Violeta Parra se harmoniza com os ideais
sociais e políticos presentes na filosofia de educacional de Paulo Freire, principalmente
no que se refere à contradição opressor/oprimido:
A violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não
instaura uma outra vocação a do ser menos. Como distorção do ser
mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem
os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos ao
buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não
se sentem idealisticamente opressores, nem se tormam, de fato,
opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em
ambos. E está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos
libertar-se a si e aos opressores.
[...] Quem, melhor que os oprimidos se encontrará preparado para
entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem
sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles,
para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que
não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo
conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela.
(FREIRE, 1987, p. 30-31)
No aspecto musical ou melódico, segundo Juan Armando Apple em Violeta
Parra: una memoria poético-musical, artigo divulgado na página: Archivo Chile, web
de estúdios Miguel Enriquez – CEME historia político-social, movimiento popular
7
,
[...] las marcas del nuevo estilo están señaladas en el uso de
estructuras y elementos del canto campesino tradicional, connotando
una actitud de retorno a lo simple y austero. La figura ritmo-melódica
del canto y su acompañamiento con fluctuación entre 6/8 y 3/4
son característicos de la tonada tradicional. Asimismo, la recurrencia
de sonoridades y gestos armónicos característicos del canto a lo
poeta como ciertas inflexiones modales: acorde tónica acorde II
mayor. Su estructura es del tipo de canción sin estribillo, conformada
por un único período repetido tantas veces como estrofas tiene el
texto (ciclo de 17 compases,organizados en la secuencia de
4+(1)+4+4+2+2(2). Interesante, dentro de ese marco, es su dinámica
interna flexible al fluxo de las palabras y su caráter épico-narrativo;
también lo es el efecto del último verso como sentencia o remate a
manera de su condensado estribillo.
7
Disponível em: www.archivochile.com/Cultura_Arte_Educacion/vp/s/vpsobre0066.pdf.
89
Essa renovação no jeito de compor e cantar suas músicas, utilizando toda a
riqueza e recursos rítmicos e poéticos do acervo folclórico nacional, marca a
produção artística de Violeta Parra e solidifica sua maneira nova de expressão e
construção identitária como artista.
A partir daí, o Chile e a América Latina começam a se redescobrir por meio da
arte musical e a buscar uma nova representação, começam um novo percurso, uma
“reconstrução” da sua identidade cultural por meio da música, da composição e da
interpretação dos valores culturais nacionais.
Muitos compositores, cantores e intérpretes, até mesmo grupos de cantores,
mostravam-se claramente sensíveis a diversos temas sociais, usando discursos
denunciadores, talvez influenciados por Violeta Parra e seu cantar la diferencia.
Violeta via na cultura urbana uma espécie de agressor da cultura tradicional. Para
ela, a cultura da cidade cultura moderna de certa forma agredia os verdadeiros
valores humanos e artísticos, repletos de beleza e de dignidade. Violeta sentia que a
modernidade matava a cultura folclórica, a raiz cultural não do povo chileno ou
latino-americano, mas de todo e qualquer povo. Esse processo em pouco tempo
alastra-se pelo continente, conforme palavras de Morales em Violeta Parra: La
última canción:
De modo inevitable, la intuición irá universalizándose en la
conciencia: el agresor despoja, degrada culturalmente tanto al
campesino como al obrero (que no sido sino un campesino
emigrado a las ciudades), y la misma agresión de cumple en Chile,
en Latino-América, en todos los rincones del planeta. (p. 47)
No Chile, atravessava-se um período de crises políticas e sociais em função
do crescimento urbano acelerado e desordenado. De 1958 a 1964, o governo chileno
de Jorge Alesandri não conseguiu atender às necessidades básicas de um país que,
aceleradamente, tornava-se maior e mais urbanizado, empobrecendo o campo e
gerando muitas manifestações de descontentamento e revolta da população
trabalhadora, dos estudantes e dos intelectuais, conforme argumenta Claudio Rolle
em seu artigo: De yo canto la diferencia a Qué lindo es ser voluntario. Cultura de
denuncia y propuesta de construcción de una nueva sociedad (1963-1973)”, do
Programa de estudios Histórico-Musicológicos da Pontificia Universidad Católica de
Chile (Cátedra de Artes, n. 1, p. 81-97, 2005).
90
Somando-se a tudo isso, os enormes prejuízos causados por um terremoto de
alta escala, em 1960, que devastou importante região, e outros fatores como as
tensões provocadas pela revolução cubana, afetaram diretamente a vida dos
chilenos. Marcas dos acontecimentos desse período na vida do povo campesino
chileno estão presentes na obra poética e musical de Violeta Parra, a exemplo de
“Santiago penando estás”, que é uma crítica social na qual se misturam duas
atitudes: 1) denúncia contra os governos e seus discursos permeados de falsas
promessas e 2) queixa por tudo estar “diferente”, por tudo estar cada vez pior.
Na primeira estrofe, a canção usa a metáfora do jardineiro, ou do anti-
jardineiro que cultiva flores de la traicióne rencor”. É um lamento pela situação
social crítica em que vive o país. Os pássaros não têm onde pousar e cantar. Os
meninos viraram soldados, a alegria se perdeu. À medida que a cidade cresce e as
construções avançam, o “antigo” lugar ao “moderno”, provocando sérias
alterações, não só na natureza, mas na vida e na identidade do seu povo, a começar
pelas crianças. Violeta vê tudo isso com preocupação e assombro, e diz:
los pajaritos no cantan,
no tienen donde anidar,
ya les cortarán las ramas
donde solían cantar,
después cortarán el tronco
y pondrán en su lugar
una letrina y un bar.
El niño me causa espanto
ya no es aquel querubín,
ayer jugaba a la ronda
hoy juega con el fusil,
no hay ninguna diferencia
entre el niño y el aguacil,
soldados y polvorín.
nesta canção um pessimismo exacerbado com relação à situação da
capital chilena, Santiago, e à vida dos santiaguinos nas mãos do governo. Segundo
ela, o desenvolvimento acabou com Santiago e com o amor que se tinha pela
cidade:
Adónde está la alegría
del Calicanto de ayer,
se dice que un presidente
lo recorría de a pie,
no había ningún abismo
entre el pueblo y su merced,
91
el de hoy, no sé quién es.
Santiago del ochocientos
para poderte mirar,
tendré que ver los apuntes
del archivo nacional,
te derrumbaron el cuerpo
y tu alma salió a rodar,
Santiago penando estás.
Por isso Violeta sofre e chora, como ela mesma diz ao iniciar a canção:
Mi pecho se halla de luto,
por la muerte del amor,
en los jardines cultivan
las flores de la traición,
oro cobra el hortelano
que va sembrando el rencor,
por eso llorando estoy.
E nesse cantar ela se faz bem explícita em seus lamentos e protestos, como
em Maldigo del alto cielo” –, mostrando a evocação de uma ferocidade trágica,
decorrente das manifestações da alma dolorida de quem sofre crescentes e
sucessivas decepções com a sociedade moderna, maldizendolos estatutos, la
bandera, la tierra, la cordillera, el ancho mar, la primavera, los desiertos, el blanco, el
negro, el amarillo”. Maldizendo, inclusive, a palavra amor, segundo ela própria:
porque me aflige un dolor por culpa de un traicionero”.
Esta canção externaliza o sentimento de quem vê o descaminho político do
país como uma ameaça, o discurso da modernidade como uma arma de destruição
do que é raiz histórica, uma ameaça à identidade nacional de um povo. Demonstra o
sentimento de quem guarda na alma o luto e a tristeza pela morte do amor e o
respeito pela verdadeira nacionalidade, amaldiçoando tudo entre o céu e a terra,
desde o profano ao divino, tamanha é sua dor. As imagens transitam entre os altos
céus e as montanhas dos Andes e todo o país:
Maldigo del alto cielo
la estrella con su reflejo,
maldigo los azulejos
destellos del arroyuelo,
maldigo del bajo suelo
la piedra con su contorno,
maldigo el fuego del horno
porque mi alma está de luto,
maldigo los estatutos
92
del tiempo con sus bochornos,
cuánto será mi dolor.
Maldigo la cordillera
de los Andes y de la Costa,
maldigo, señor, la angosta
y larga faja de tierra,
talvez la paz y la guerra,
lo franco y lo veleidoso,
maldigo lo perfumoso
porque mi anhelo está muerto,
maldigo todo lo cierto
y lo falso con lo dudoso,
cuánto será mi dolor.
A aflição da poeta é tanta que ela passa a maldizer as estações do ano, os
movimentos da natureza. Em seguida, ela maldiz a bandeira e os símbolos
nacionais:
Maldigo la primavera
con sus jardines en flor
y del otoño el color
yo lo maldigo deveras;
a la nube pasajera
la maldigo tanto y tanto
porque me asiste un quebranto,
maldigo el invierno entero
con el verano embustero,
maldigo profano y santo,
cuándo será mi dolor
Maldigo la solitaria
figura de la bandera ,
maldigo cualquier emblema,
la Venus y la Araucaria,
el trino de la canaria,
el cosmos y sus planetas,
la tierra y todas sus grietas
porque me aqueja un pesar,
maldigo del ancho mar
sus puertos y sus caletas,
cuánto será mi dolor.
Finalmente, volta à sociedade e passa a maldizer os reis, os nobres, a guerra,
as religiões institucionalizadas e, também, las aulas”, isto é, a educação também é
afetada pelo estado revoltante em que se encontra a nação. Um traidor político
envenena o país.
Maldigo luna y paisaje,
los valles y los desiertos,
maldigo muerto por muerto
y el vivo de rey a paje,
al ave con su plumaje
yo la maldigo a porfía,
las aulas, las sacristías
93
porque me aflige un dolor,
maldigo el vocablo amor
con toda su porquería,
cuánto será mi dolor.
Maldigo por fin lo blanco,
lo negro con lo amarillo,
obispos y monaguillos,
ministros y predicandos
yo los maldigo llorando;
lo libre y lo prisionero,
lo dulce y lo pendenciero
le pongo mi maldición
en griego y en español
por culpa de un tricionero,
cuánto será mi dolor.
A perspectiva de Violeta Parra para com a modernidade era nítida e certa, era
a visão de quem previa péssimas conseqüências para a sociedade, a começar pela
perda de suas identidades culturais, que seriam seriamente afetadas.
Violeta, do seu modo, previa o que Anthony Giddens chama de “desencaixe”:
Por desencaixe me refiro ao deslocamento” das relações sociais de
contextos locais de interação e sua reestruturação através de
extensões indefinidas de tempo-espaço. (GIDDENS, 1991, p. 29)
Tendo em mente as conseqüências previstas – ou sentidas – por ela, pode-se
citar ainda Giddens quando diz que:
Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam
de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que
não tem precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua
intensionalidade, as transformações envolvidas na modernidade são
mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos
dos períodos precedentes. Sobre o plano existencial, elas serviram
para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo;
em termos intensionais, elas vieram a alterar algumas das mais
íntimas e pessoais características de nossa existência humana.
(GIDDENS, 1991, p. 14).
Em Mazúrquica modérnica”, Violeta usa de um tom sarcástico, pois se
muito desencantada e incomodada com tudo, inclusive com os questionamentos a
que é submetida, em razão de suas críticas cortantes à sociedade que se moderniza
sob um governo problemático e repressor. Nesta canção, Viola apresenta seu canto
como resposta a uma pergunta infantil sobre o perigo que representaria sua canção.
O ritmo da canção é referido no título, mazurca, uma dança de origem polonesa em
94
ritmo ternário. Chama a atenção o curioso jeito de falar da cantora, como a inventar
uma língua nova, um jogo infantil que torna todas as palavras proparoxítonas.
Me han preguntádico varias persónicas
si peligrósicas para las másicas
son las canciónicas agitadóricas
ay que pregúntica más infantílica
sólo un peñúflico la formulárica
pa’ mis adéntricos yo comentárica.
A poeta apresenta sua resposta mostrando que mais perigoso que tudo é a
fome que passa o povo e que é capaz de gerar grandes revoluções. Mais perigoso
são os políticos falsos, os partidários do governo, os que se revestem de autoridade
e assinam documentos e determinam a destruição do povo inocente.
Le he contestádico yo al preguntónico
cuando la guática pide comídica
pone al cristiánico firme y guerrérico
por sus poróticos y sus cebóllicas
no hay regiméntico que los deténguica
si tienen hámbrica los populáricos.
Preguntandónicos partidirísticos
disimuládicos y muy malúlicos
son peligrósicos más que los vérsicos
más que las huélguicas y los desfílicos,
bajito cuérnica firman papélicos
lavan sus mánicos como piláticos.
Caballeríticos almidonáticos
almidonáticos mini ni ni ni ni…
le echan carbónico al inocéntico
arrellenádicos en los sillónicos
cuentan los muérticos de los encuéntricos
como frivólicos y bataclánicos.
De modo muito bem humorado, Violeta nos remete às páginas da história
cheias de matanza e injustiça. Ela dirige-se a um censor, a um fiscal do governo.
Sua arma principal é o humor, a ironia e a criatividade.
Varias matáncicas tiene la histórica
en sus pagínicas bien imprentádicas
para montárlicas no hicieron fáltica
las refalósicas revoluciónicas
el juraméntico jamás cumplídico
es el causántico del desconténtico
ni los obréricos ni los paquíticos
tiene la cúlpica señor fiscálico.
95
Violeta diz que está apenas respondento a perguntas de pessoas
inconvenientes e que está cansada. Seu canto é resposta a uma provocação,
portanto uma reação. Sua crítica tem como alvo a truculência do governo que aflige
o povo. O objetivo da canção é fazer pensar, fazer refletir, portanto seu caráter é
fortemente educacional no sentido freireano de conscientização e engajamento com
transformação social.
Lo que yo cántico es una respuéstica
a una pregúntica de unos graciósicos
y más no cántico porque no quérico
tengo flojérica en los zapáticos,
en los cabéllicos, en el vestídico,
en los riñónicos y en el corpíñico.
O caráter didático, político e cultural do artista é explícito na canção. Violeta
não vê a arte popular como outra coisa senão a denúncia contra a injustiça e a
representação de um povo oprimido em busca de sua dignidade. Arte é linguagem e
declaração política. Mesmo quando usa um tom jocoso e um rítmo leve, como no
caso de “Mazúrquica modérnica”, a cantora desenvolve temas sérios e urgentes.
4.3 O caráter educacional da obra de Violeta Parra
Tendo-se educação como um processo reflexivo e amplo de atividades
envolvendo os vários aspectos e instâncias da cultura, que levam ao
desenvolvimento de saberes e ao estímulo à participação política para transformação
da condição de vida social, admite-se como educacional o trabalho de Violeta Parra,
que teve grande impacto não só na sociedade chilena, mas na América Latina
moderna em geral e até na Europa.
Para conceituar o termo “educação”, buscamos embasamento em Abbagnano
(2003, p. 305), que assim se expressa:
Em geral, designa-se com esse termo a transmissão e o aprendizado
das técnicas culturais, que são as técnicas de uso, produção e
comportamento, mediante as quais um grupo de homens é capaz de
satisfazer suas necessidades, proteger-se contra a hostilidade do
ambiente físico e biológico e trabalhar em conjunto, de modo mais ou
menos ordenado e pacífico. Como o conjunto dessas técnicas se
chama cultura, uma sociedade humana não pode sobreviver se sua
cultura não é transmitida de geração para geração; as modalidades
96
ou formas de realizar ou garantir essa transmissão chama-se
educação.
Abbagnano usa o termo “técnicas culturais”, relacionadas às necessidades
básicas do ser humano e à sua sobrevivência, e relaciona a educação ao processo
de transmissão e preservação dessas técnicas. Embora não diretamente ligada ao
cultivo de alimento e satisfação de necessidades básicas, a música é também uma
dos elementos culturais importantíssimos à sobrevivência humana, assim como a
narrativa, a poesia, a dança, a pintura, a escultura ou qualquer outra arte. As
cavernas pré-históricas estão cheias de desenhos que não tinham outra função
senão a fruição estética e a reflexão. Arte é cultura. Arte é educação.
O educador brasileiro Paulo Freire, refletindo sobre a educação como um
processo emancipador, contrastou-a com o que chamou “educação bancária”, que é
metaforizada pela ação de “depósito” de informações, enquanto que a educação
libertadora
Refere-se a atividades educacionais ligadas a um projeto político
mais amplo de luta contra a opressão e a dominação. De acordo com
as implicações do conceito freireano de “conscientização”, a
libertação relativamente às estruturas sociais de opressão e
dominação esestreitamente conectada à libertação relativamente
às formas ideológicas pelas quais aquelas estruturas são
internalizadas na consciência, tornando-se aceitáveis. Utiliza-se
também, no mesmo sentido, o termo “educação emancipadora” (apud
SILVA, 2000, p. 48)
E, referindo-se ao termo “educação popular”, para Paulo Freire:
refere-se a uma gama ampla de atividades educacionais cujo objetivo
é estimular a participação política de grupos sociais subalternos na
transformação das condições opressivas de sua existência social
.
Em muitos casos, as atividades de “educação popular” visam o
desenvolvimento de habilidades básicas como a leitura e a escrita,
consideradas como essenciais para uma participação política e social
mais ativa. Em geral, seguindo a teorização de Paulo Freire, busca-
se utilizar métodos pedagógicos – como o método dialógico, por
exemplo que não reproduzam, eles próprios, relações sociais de
dominação. (apud SILVA, 2000, p. 48)
Violeta Parra experimentou dois tipos de educação: a informal, adquirida na
família e na comunidade – e o mais importante, por meio do folclore, das estórias, da
tradição popular –, e a formal, oferecida pelas instituições escolares e adquirida por
meio dos livros, permitindo-lhe perceber a diferença entre a cultura rural, que era o
97
seu berço, e a cultura urbana, vista por ela como coisa moderna, curiosa, mas, às
vezes, ameaçadora.
O compromisso de Violeta Parra com as raízes culturais e a identidade do
povo chileno, seu engajamento com a educação no sentido mais amplo está
evidente não em suas canções, mas em todas as outras manifestações artísticas
que experimentou, incluindo a música, a poesia, a cerâmica, a pintura e a tapeçaria.
Conforme argumenta Morales,
[...] Diversos son los materiales primarios empleados: palabra,
sonido, color, Lana, metal. Y diversas son las figuras e imágenes
construídas com estos materiales [...]
[...] Los géneros, tópicos, motivos en que se apoya o de donde
arranca la creación, tienen el mismo origen: todos pertenecen a la
cultura folclórica y campesina chilena. El saber artístico y el saber del
hombre que guían el movimiento creador, son los mismos en todos
los casos: siempre se trata del saber de la cultura folclórica
reelaborado desde el interior de una cultura urbana que condiciona la
perspectiva de la reelaboración. Y también es el mismo el mensaje
que de este saber plasmado se desprende: un mensaje
profundamente latino-americano, a la vez de exaltación y de agonía,
donde el canto y el lamento conviven o entremezclan sus tonos.
(MORALES, 2003, p. 32)
Por meio de suas canções que por si são um instrumento
representativo da educação e da cultura popular –, Violeta Parra estimula, em
consonância com os princípios de Paulo Freire, a participação política de grupos
oprimidos. Violeta propõe ao campesino por meio da música que repense sobre
a sua condição de vida às margens da sociedade moderna. Dessa forma ela propõe
a reflexão sobre a identidade cultural do seu povo, que é vista em sua perspectiva
histórica, social e política. Para tanto, Violeta invoca a memória dos valores culturais
antigos e a recriação de novos valores, aproximando folclore e modernidade, vida
camponesa e vida urbana.
Violeta Parra pode ser reconhecida como educadora na medida em que propõe
uma formação popular que ofereça uma problematização da realidade histórica, a
localização do povo dentro de um contexto social, o posicionamento. É Paulo Freire
quem comenta que
A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente
através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão
sendo no mundo com que e em que se acham.(FREIRE, 1987, p. 72)
98
E Paulo Freire argumenta, ainda, que,
A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é
futuridade revolucionária. Daí que seja profética e, como tal,
esperançosa. Daí que corresponda à condição dos homens como seres
históricos e à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como
seres mais além de si mesmos como “projetos” –, como seres que
caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o
imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para trás não deve ser
uma forma nostálgica de querer voltar, mas um modo de melhor
conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Daí que se
identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os
homens, como seres que se sabem inconclusos; movimento que é
histórico e que tem seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu objetivo.
(FREIRE, 1987, p. 73)
Violeta foi uma pessoa extraordinariamente ativa e criativamente
comprometida com a educação de valores humanos, morais e sociais mais amplos,
baseados no direito à vida, na justiça, na busca da liberdade de expressão e na
solidariedade. Nessa perspectiva, admite-se relevante grau de identificação entre a
figura da poeta e musicista Violeta Parra e a do filósofo e educador Paulo Freire,
ambos incansáveis nos seus projetos em favor dos camponeses, dos trabalhadores
e dos oprimidos. Ambos acreditavam que, pela conscientização das massas, era
possível alterar a realidade social. Ambos sugeriam em teoria e prática que era
preciso aprender a ler a palavra e ler o mundo, isto é, interpretar os movimentos da
história e da sociedade, agindo com autonomia e criticidade.
Para Paulo Freire, segundo Peter Mclaren, e vê-se que Violeta era solidária
à idéia –, é preciso oportunizar ao oprimido maneiras de solucionar seus problemas
sociais e de emancipação. Para isso é necessário encorajá-lo à busca do
conhecimento, é preciso alertá-lo quanto a sua condição, é preciso problematizar o
seu estar no mundo e o seu existir na história:
Freire ensinava que os oprimidos, para materializarem suas próprias
ações em força revolucionária, devem desenvolver uma consciência
coletiva da sua própria constituição ou formação enquanto classe
subalterna, bem como um ethos de solidariedade e
interdependência. (MCLAREN, 1999, p. 23)
A opção preferencial pela temática dos pobres e das classes oprimidas era
característica marcante em Violeta Parra, como pode ser observado em muitas de
suas composições, preferência que figura como base filosófica da pedagogia de
Paulo Freire. A sua Pedagogia do oprimido, por exemplo, é um grito que ecoa por
99
entre as estruturas da exploração capitalista, uma vez que propõe alternativas à
reconstrução democrática em prol de uma vida melhor para os oprimidos e suas
gerações futuras. E as canções de Violeta Parra proporcionam, justamente, o
encorajamento do campesino oprimido, a sua conscientização, a sua politização,
favorecendo seu “crescimento” intelectual, cultural, social e humano.
Das composições de Violeta que explicitam essa postura pedagógica e
educacional freireana, pode-se citar Arauco tiene una pena”, Arriba quemando el
sol” e “Según el favor del viento.
“Arauco tiene uma pena, além de representar uma importante aula de
Geografia e História, é um convite a que se repense a história da conquista do país
pelos espanhóis. A saber, Arauco é uma das províncias de BíoBío, na oitava região,
ao sul do Chile. Era o lugar onde habitavam os Mapuches, os índios araucanos.
Como consta nesta composição de Violeta, o sofrimento do araucano, do
período da conquista, dura até hoje. ainda muitas injustiças sociais contra os
descendentes desses nativos Mapuches, os campesinos. A canção é endereçada
diretamente ao povo indígena.
Arauco tiene uma pena
que no la puedo callar,
son injusticias de siglos
que todos ven aplicar,
nadie le ha puesto remedio
pudiéndolo remediar.
Levántate, Huenchullán.
Un dia llega de lejos
Huescufe conquistador,
buscando montañas de oro,
que el indio nunca buscó,
al indio le basta el oro
que le relumbra del sol.
Levántate, Curimón.
Durante toda a composição a autora insiste para que as tribos, as
comunidades levantem-se, organizem-se e defendam-se das injustiças, da pobreza a
que são submetidos, da pena más grande que su chamal”. Trata-se de um convite
ao levante, à resistência cultural e política, portanto à afirmação da identidade
cultural do povo indígena. O segundo verso sugere o choque cultural em relação ao
valor que os espanhóis davam ao ouro. Para os índios bastava o sol.
Antes eram os conquistadores que, buscando montañas de oro, que el indio
nunca buscó”, aproveitavam-se da ingenuidade e pureza dos nativos explorando-os
100
aos extremos. E, agora, ya no son los españoles, los que los hacen llorar, hoy son
los propios chilenos, los que les quitan su pan”.
Esta composição é de grande efeito pedagógico e educacional, não pelos
ensinamentos que traz, como também pelo seu efeito impulsionador às tribos
Mapuches para defenderem seus direitos de cidadãos chilenos, defenderem sua
identidade pessoal, sua identidade nacional e cultural. Tais efeitos aparecem muito
evidentes quando Violeta insiste conclamando aos chefes das diversas tribos, aos
antigos caciques para que encarem, enfrentem as injustiças e se defendam:
levántate, Huenchullán”; “levántate, Currimón”; “levántate, Manquilef”; levántate,
pues, Calful”; levántate, Callupán”; levántate, Pailahuán”. A insistência da autora
para que o campesino lute pelos seus direitos de certa forma encontra afinidade com
as idéias e princípios pedagógicos e educacionais freireanos, pois
Os escritos de Freire exibem uma percepção singular de que os
oprimidos não reconhecerão sua opressão pelo simples fato de que
alguém as apontou a eles. Reconhecê-la-ão através da própria
experiência diária da luta pela sobrevivência. A luta cotidiana aos
oprimidos uma razão para que levem a sério o tipo de auto-reflexão
que confere autoridade a seus esforços diários pela satisfação de
suas necessidades materiais e para serem tratados com dignidade e
respeito. (MCLAREN, 1999, p. 26)
A identidade cultural do povo chileno e em geral do povo latino-americano
aparece estampada do início ao fim da composição. Ela mostra que a modernidade,
com a expansão da indústria, caminha junto da marginalização e até da extinção do
povo nativo ingênuo, humilde e desprotegido: o índio. Em Arauco tiene una pena
ele é um ser vencido pela urbanização. As relações de poder aqui o nitidamente
marcadas pelas injusticias de siglos que todos ven aplicar”. Os governos, um após
outro, nada fazem em favor dos nativos, dos campesinos que muito tempo vivem
à margem da sociedade urbana modernizada.
A canção conclama a uma revolução social que, segundo a autora, ninguém
consegue impedir. O branco “extrangeiro”, o afuerino”, mata o índio, rouba-lhe a
terra e silencia-lhe a voz, que Violeta Parra consegue devolver por meio da música:
Entonces corre la sangre,
no sabe el indio qué hacer,
le van a quitar su tierra,
la tiene que defender,
el indio se cae muerto,
y el afuerino de pie.
101
Levántate, Manquilef.
Adonde se fue Lautaro
perdido en el cielo azul,
y el alma de Galvarino
se la llevó el viento Sur,
por eso pasan llorando
los cueros de su cultrún.
Levántate, pues, Calful.
Nesta canção, Violeta retoma, em poucas e fortes palavras, a memória
histórica do Chile na perspectiva do índio vencido pelo poder. Ela a verdadeira
identidade nacional indígena se perdendo, dando lugar a uma outra, construída à
base de violência. A ameaça de extinção cultural pelo extrangeiro (espanhol) é
substituída pela ameaça do compatriota chileno:
Del año mil cuatrocientos
que el indio afligido está,
a la sombra de su ruca
lo pueden ver lloriquear,
totoral de cinco siglos
nunca se habrá de secar.
Levántate, Callupán.
Arauco tiene una pena
más grande que su chamal,
ya no son los españoles
los que los hacen llorar,
hoy son los propios chilenos
los que les quitan su pan.
Levántate, Pailahuán.
E Violeta tenta, a todo momento, despertar no índio a consciência de si
mesmo, usando inclusive um tom de rebeldia, sugerindo-lhe para aproveitar o
período de novas eleições governamentais para uniren-se contra a prepotência do
poder e a negligência que vêm sofrendo há muitos anos. A poeta, no entanto, sugere
que o processo supostamente democrático simbolizado aqui pelas eleições ignora a
voz dos índios, cuja queixa é totalmente ignorada.
Ya rugen las votaciones,
se escuchan por no dejar,
pero el quejido del indio
por qué no se escuchará?
Aunque resuene en la tumba
la voz de Caupolicán.
Levántate, Huenchullán
102
Mesmo sabendo que os bravos líderes Mapuches já se foram há muito tempo,
ela invoca suas valentias: Aunque resuene en la tumba la voz de Caupolicán”, um
dos mais valentes caudillos que lutou bravamente durante as conquistas españolas.
A canção revela plena consciência de que a construção da identidade se dá em meio
à luta pelo poder, pelo direito à voz. Não é um processo pacífico e unânime, mas
contestatório. Ela sabe que a construção da identidade passa pelo discurso
afirmativo de resistência.
“Arriba quemando el sol” é uma canção que condensa a representação
dualista dos opostos, tendo como pano de fundo a pobreza e a injustiça. Nela
uma severa crítica social, motivada pela decepção que Violeta teve quando de sua
viagem à região dos pampas, onde presenciou uma grande pobreza e precariedade
na vida do povo daquela região. A forte comoção lhe causou tamanha tristeza que a
deixou perplexa e muda. Ela fala da perda da pluma e da voz, que quer dizer: ficou
sem jeito, desconcertada e emudeceu:
Cuando fui para la pampa
llevaba mi corazón
contento como un chirihue
pero allá se me murió
primero perdí las plumas
y luego perdí la voz.
Y arriba quemando el sol.
Violeta chega a comparar as minúsculas e toscas casas enfileiradas, às
conchas dos caracóis, que servem para abrigar precariamente apenas um morador,
e diz comovida:
Cuando vide los mineros
dentro de su habitación
me dije mejor habita
en su concha el caracol
o a la sombra de las leyes
el refinado ladrón.
Y arriba quemando el sol.
Las hileras de casuchas
frente a frente si señor
las hileras de mujeres
frente al único pilón
cada una con su balde
com su cara de aflicción.
Y arriba quemando el sol
103
Curiosamente, ao falar do destino dos mineiros, um povo que supostamente
trabalha sob a terra, portanto à sombra, um povo que raramente a luz do sol,
Violeta enfatiza a metáfora do sol escaldante. O mesmo sol que os índios antes
adoravam se torna agora símbolo de tormento. Certamente ela viu um povo sofrido,
triste, embrutecido. Evidentemente, a percepção da realidade da opressão é tão
dolorosa quanto sair da escuridão da mina e ver a claridade, sentir o calor do sol. Um
povo, segundo ela, morto, pois um povo sem justiça e sem voz não existe, está
também enterrado. É um povo com a identidade perdida o que Violeta Parra não
admite, e tenta estimulá-lo a resgatar –, e sem perspectivas de melhor futuro.
Paso por un pueblo muerto
se me nubla el corazón
aunque donde habita gente
la muerte es mucho mayor
enterraron la justicia
enterraron la razón.
Y arriba quemando el sol.
Ricos e pobres, patrões e trabalhadores o os pares que simbolizam, nesta
canção, a pobreza e a injustiça, conseqüências diretas da estrutura de poder de um
governo, representado pela figura do presidente. Essas desigualdades são
conseqüência da modernidade, de que fala Anthony Giddens:
Em condições de modernidade, uma quantidade cada vez maior de
pessoas vive em circunstâncias nas quais instituições
desencaixadas, ligando práticas locais a relações sociais
globalizadas, organizam os aspectos principais da vida cotidiana.
(GIDDENS, 1991, p. 83)
E sobre o semblante das mulheres sofridas, amarguradas, a canção descreve:
las hileras de casuchas / frente a frente señor / las hileras de mujeres / frente al
único pilón / cada una con su balde / con su cara de aflicción”. A poeta discute a
condição em que vivem as mulheres dos mineiros e suas famílias.
Si alguien dice que yo sueño
cuentos de ponderación
digo que esto pasa en Chuqui
pero en Santa Juana es peor.
el minero ya no sabe
lo que vale su dolor.
104
Y arriba quemando el sol.
Para Violeta Parra, é inconcebível tanto sofrimento e desconforto para o
mineiro, que enriquece os mineradores com seu trabalho. Ao final, a poeta volta seu
olhar para a capital do país, onde estão os chefes das companhias mineradoras. A
questão que Violeta discute é a da opressão do trabalhador, do operário, o processo
de alienação em que vive o campesino, transformado em mineiro pela necessidade
que tem de trabalhar.
Me volví para Santiago
sin comprender el color
con que pintan la noticia
cuando el pobre dice no.
Abajo la noche oscura
oro, salitre y carbón.
Y arriba quemando el sol.
Em Según el favor del viento, ela descreve as condições de vida do povo
chileno pescador do sul do país e a submissão da qual eles são vítimas passivas. O
chileno, segundo ela, “vai vivendo”. Según el favor del viento significa, neste caso,
viver “com o que a vida oferece”, significa “viver conforme sua sorte”, “viver com o
pouco que tem”.
Según el favor del viento
va navegando el leñero,
atrás quedaron las rucas
para dentrar en el puerto,
corra Sur o corra Norte
la barquichuela gimiendo, llorando estoy,
según el favor del viento, me voy, me voy.
Del norte viene el pellín
que colorea en cubierta,
habrán de venderlo en Castro
aunque la lluvia esté abierta,
o queme el sol de lo alto
como un infierno sin puerta, llorando estoy,
o la mar está revuelta, me voy, me voy.
Nesta canção, Violeta mostra que o chileno leva uma vida miserável e
alienada, agravada pela indiferença do governo. Tudo o que resta à poeta é chorar, é
lamentar tal sorte.
En un rincón de a barca
105
está hirviendo la tetera,
a un lado pelando papas
las manos de alguna isleña,
será la madre del indio,
la hermana o la compañera, llorando estoy,
navegan lunas enteras, me voy, me voy.
Chupando su matecito
o bien su pescado seco,
acucurrado en su lancha
va meditando el isleño,
no sabe que hay outro mundo
de raso y de terciopelo, llorando estoy,
que se burla el invierno, me voy, me voy.
E esta não é a imagem do chileno que ela estava acostumada a ver. As cenas
que ela assiste são de sofrimento, de muita miséria e desolação. Nesta canção, a
educação aparece como falta, como ausência, como um direito que foi roubado ao
povo índio. Violeta percebe aqui que a educação é um privilégio ao qual os pobres
não têm acesso. E a educação mudaria radicalmente a realidade social a que
testemunha. Isso a faz sofrer e contestar:
No es vida la del chilote,
no tiene letra ni pleito,
tamango llevan sus pies,
milcao y ají su cuerpo,
pellín para calentarse,
del frío de los gobiernos,llorando estoy,
que le quebrantan los huesos, me voy, me voy.
Despierte el hombre despierte,
despierte por un momento,
despierte toda la patria
antes de que se abran los cielos
y venga el trueno furioso,
con el clarín de San Pedro, llorando estoy,
y barra los ministérios, me voy, me voy.
Violeta, então, convida-o a reagir, numa tentativa de encorajá-lo a mudar de
vida. Ela pede para que acorde, antes que seja tarde demais. Acorde, povo! Acorde
enquanto tempo! Lute por seus direitos! Defenda o que é seu! Fique atento à
astúcia do poder e à frieza dos governantes! A seguir, Violeta lamenta também a
religião como fuga, como ato de desespero:
De negro van los chilotes
más que por fuera, por dentro,
con su plato de esperanza
106
y su frazada de cielo,
pidiéndole a la montaña
su pan amargo centeno, llorando estoy,
según el favor del viento, me voy, me voy.
Quisiera morir cantando
sobre de un barco leñero
y cultivar en sus aguas
un libro más justiciero,
con letras de oro que digan
no hay padre para el isleño, llorando estoy,
ni viento para su velero, me voy, me voy.
Para Violeta, é muito triste ver ou viver tal situação, principalmente entendendo
que é conseqüência de um projeto de modernidade que se revelou violenta e
opressora sob a forma de colonização e dominação e da má administração do país.
Por isso, nessa canção ela diz e repete: llorando estoy, según el favor del viento, me
voy, me voy.
4.4 Canções de celebração da vida e do amor
A cancão Gracias a la vidatraz os mais radicais questionamentos sobre a
própria existência e nos faz refletir a respeito dos temas vida e morte, corpo e amor.
Ela traz uma visão de certa forma otimista, pois motivos para se dar graças pela
experiência de viver. A canção é organizada de modo a destacar os sentidos e as
partes do corpo humano: os olhos, os ouvidos, os pés, o coração, o riso, o pranto − a
geografia do corpo. E cada estrofe termina com uma referência ao amado. Destaca-
se nela a importância dada à linguagem e ao domínio da escrita. A partir da
linguagem, a poeta nomeia o mundo ao redor. A partir da sua arte, ela reconstrói a
realidade, usando as matérias primas do riso e do pranto:
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me dio dos luceros que cuando los abro
perfecto distingo lo negro del blanco
y en el alto cielo su fondo estrellado
y en las multitudes al hombre que yo amo.
Gracias a la vida que me ha dado tanto
me ha dado el oído que en todo su ancho
graba noche y día grillos y canarios;
martillos, turbinas, ladrillos, chubascos,
y la voz tan tierna de mi bienamado.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
107
Me ha dado el sonido y el abecedario
con el las palabras que pienso y declaro
madre, amigo, hermano, y luz alumbrando
la ruta del alma del que estoy amando.
[...]
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto,
así yo distingo dicha de quebranto,
los dos materiales que forman mi canto
y el canto de ustedes que es el mismo canto,
y el canto de todos que es mi proprio canto.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Tal perspectiva encontra grande afinidade com as idéias de Paulo Freire
quando lembra sua experiência de aprendizado da leitura da palavra, da leitura do
mundo e da leitura da palavra-mundo.
Além disso, Violeta assumia uma perspectiva que buscava definir a realidade
usando a linguagem poética, construindo imagens do mundo natural típica do povo
campesino –, tanto quando falava de amor quanto quando expressava ódio, esses
dois pólos sempre presentes em Violeta e na sua arte. Yo canto la diferencia e
“Maldigo del alto cielo”, por exemplo, expressam de forma contundente a revolta e a
indignação que sente a poeta diante das injustiças que sofre o povo. “Gracias a la
vida” e Volver a los diecisiete”, por outro lado, são composições que focam outros
aspectos da realidade, a relação amorosa, a celebração da vida e da ternura, que é
outro aspecto importante da construção identitária do povo latino-americano.
A canção Volver a los diecisiete traz uma belíssima celebração do amor
humano como uma experiência transformadora, engajada, responsável, muito além
do romantismo alienante. A canção nos leva a perceber o poder regenerador do
amor, que modifica a arquitetura do tempo, fazendo transitar o passado e o presente
por uma mesma porta. Por essa porta a autora resgata sua juventude, seus
dezessete anos, e ao mesmo tempo se volta ao presente:
Volver a los diecisiete
después de vivir un siglo
es como descifrar signos
sin ser sabio competente
volver a ser de repente
tan frágil como un segundo
volver a sentir profundo
como un niño frente a Dios
eso es lo que siento yo
108
en este instante fecundo.
Se va enredando, enredando
como en el muro la hiedra
y va brotando, brotando
como el musguito em la piedra
ay, sí, sí, sí.
Mi paso retrocedido
cuando el de ustedes avanza
el arco de las alianzas
ha penetrado en mi nido
con todo su colorido
se ha paseado por mis venas
y hasta la dura cadena
con que nos ata el destino
es como un diamante fino
que alumbra mi alma serena.
O caráter libertário do amor está presente na canção e envolve todas as coisas. Seu
caráter paradoxal e profundo torna as relações humanas em experiências de doação
e companheirismo, não apenas dominação e opressão. Para a poeta, o amor não
está em contraste ou conflito com a ciência, mas oferece um outro tipo de
conhecimento. O amor também constrói conhecimento, saber. E seu saber é
caracterizado pela ternura e pela sensibilidade em relação ao outro.
Lo que puede el sentimiento
no lo ha podido el saber
ni el más claro proceder
ni el más ancho pensamiento
todo lo cambia al momento
cual mago condescendiente
nos aleja dulcemente
de rencores y violencias
solo el amor con su ciencia
nos vuelve tan inocentes.
El amor es torbellino
de pureza original
hasta el feroz animal
susurra su dulce trino
detiene a los peregrinos
libera a los prisioneros
el amor con sus esmeros
al viejo lo vuelve niño
y al malo solo el cariño
lo vuelve puro y sincero.
O amor é descrito como uma experiência paradoxal, contraditória, que liberta ao
prender, que faz ascender a uma dimensão mais nobre da relação humana. Nesse
109
momento, Violeta usa a linguagem religiosa como símbolo de pureza angelical.
De par en par la ventana
se abrió como por encanto
entro el amor con su manto
como una tibia mañana
al son de su bella diana
hizo brotar el jazmín
volando cual serafín
al cielo le puso aretes
mis años en diecisiete
los convirtió en querubín.
(PARRA, 2005, p. 147)
Se educar é proporcionar a construção de saberes, é permitir que essa
construção aconteça, é possibilitar o crescimento intelectual, cultural e social, como
vimos anteriormente, Violeta pode ser considerada, sim, uma grande educadora. Ela
pesquisou, resgatou e transmitiu os saberes do povo, contribuindo para a construção
de novos saberes, divulgando a cultura folclórica em ambientes urbanos, “ensinando”
ao povo chileno e ao sul-americano sobre suas raízes, seu folclore, sua tradição
histórica e cultural, por meio da arte poética e musical.
4.5 Criticidade, denúncia: educação para a resistência cultural
Como educação é cultura (ABBAGNANO, 2003, p. 306), pode-se considerar
Violeta Parra uma importante figura representativa da identidade cultural latino-
americana na modernidade, tendo em vista seu trabalho reflexivo, educacional,
criativo e politizado.
Embora durante toda sua trajetória de vida e profissional, ela sofresse,
também, os efeitos do ninguneo, da marginalização, do menosprezo político,
principalmente, Violeta foi importantíssima pela coragem de usar, em suas
composições, a voz do povo falando pela massa sofrida e explorada em favor de
poucos abastados; importantíssima pela coragem de dizer: “yo canto la diferencia
que hay entre lo cierto y lo falso, de lo contrario, no canto.
Esse perfil de Violeta Parra é o maior testemunho de quem herda um contexto
social e político de inúmeros conflitos, como estampam estes fragmentos de um
discurso de Arturo Alesandri, candidato à presidência do Chile em 1920, proferido na
Convención Liberal de Santiago, em 25 de abril, segundo Hernán Godoy (1971):
110
(...) El país atraviesa por uno de los momentos más difíciles de su
historia. Vivimos desde hace años en medio de la anarquía y del
desgobierno. Toda clase de angustias y de dificultades obstaculizan
la marcha próspera de las actividades en esta patria tan cara a todos
nosotros.
(...) La impotencia del gobierno ante la situación, es profundamente
desastrosa para los altos y sagrados intereses sociales.
(...) En estos conflictos que, desgraciadamente, se van generalizando
tanto entre nosotros, hay siempre una parte débil frente a la otra que
es fuerte y poderosa;
(...) Las mujeres y los niños reclaman también la protección eficaz y
constante de los poderes públicos que, cual padres afectuosos y
vigilantes, deben defender a tan importante porción de sus vitales
energías económicas
(...) En el mecanismo de nuestra organización administrativa falta el
órgano adecuado para atender, desarrollar y fiscalizar todas las
cuestiones relativas a los problemas económicos-sociales. (apud
GODOY, 1971, p. 334-341)
Esse foi o contexto social e político chileno e sul-americano, também –,
herdado por Violeta, menina, seguido de longo período de ditadura vivido pela
Violeta mulher, que vai permiti-la desde cedo, em sua arte, transcender ao que é
pessoal, para expor seus sentimentos e posição de defesa dos pobres, dos
trabalhadores mal remunerados, principalmente o povo camponês nativo,
descendente dos índios araucanos, os Mapuches. A própria Violeta Parra comenta
em versos, na sua autobiografia, a passagem desse período:
Por ese tiempo el destino
se descargó sobre Chile;
cayeron miles y miles
por causa de un hombre indi’no.
Fue tanta la dictadura
que practicó este malvado,
que sufre’ el profesorado
la más feroz quebradura.
Así creció la maleza
en casa del profesor,
por causa del dictador
entramos en la pobreza.
Le dieron, por mucha cosa,
desahucio muy miserable,
111
si no le gusta, hay un sable
y un panteonero en la fosa.
(PARRA, 1998, p. 73-75)
O caráter educacional na arte de Violeta Parra – a da música e da composição
–, se evidencia, primeiramente, por sua inserção no processo de erosão da cultura
folclórica no período da primeira metade do século XX com o advento da
modernidade. Em segundo lugar, por sua participação direta no processo de
formação e transformação da identidade cultural do povo chileno –, enquanto
investigadora da cultura tradicional de seu povo e de seu país e divulgadora dessa
cultura.
Uma outra evidência educativa e cultural da arte musical de Violeta Parra é a
multiplicidade de temas abordados e interpretados com a majestade típica e natural
da mulher camponesa. Enquanto a maioria dos cantores preocupava-se com o que
era ditado” pela modernidade e com o retorno financeiro que a indústria cultural e
musical lhes proporcionaria, Violeta conservou a autenticidade e pureza do estilo da
mulher camponesa, rosto sem maquiagem, vestidos simples e comunicação direta
com seu público, na sua interminável lista de temas desenvolvidos.
As lições que nos são transmitidas através de suas canções são inúmeras e
vão desde política, sociologia, psicologia, filosofia, além de solidariedade e
patriotismo, tudo isso permeado de muita simplicidade e excepcional capacidade
propulsora da cultura de seu país.
Por tudo isso é que seu trabalho tem caráter educacional e pedagógico. E
bastaria somente citar suas incursões pelos vales chilenos, parte interior e esquecida
de seu país, nas primeiras décadas do século XX, ocasiões em que Violeta por
conta própria, não só resgatou o folclore chileno da música e da dança, como
também reavivou a alegria e a inspiração do povo das regiões mais humildes e
distantes em seu país, que passou a ouvir, no rádio, as músicas da sua gente, os
sons da terra, da sua história, suas raízes folclóricas, que estavam sendo esquecidas
ou menosprezadas. E como ela mesma afirmou: “la tradición es casi ya un cadáver.”
8
A partir do momento em que Violeta sentiu o folclore ameaçado de extinção,
em razão da cultura urbana, moderna, tratou de buscar sua fisionomia quase
perdida. Ela entendeu que, na diferença entre duas culturas, surgem problemas, pois
8
MORALES, Leonidas T. Violeta Parra: la última canción. Santiago de Chile: Editorial Cuarto
Propio, 2003, p. 46.
112
uma tende a extinguir-se, se o for defendida ou protegida de possível
marginalização, possível menosprezo. Por isso decidiu ir para a cidade e levar o
discurso camponês. E por meio desse discurso, desse “diálogo”, divulgar e preservar
as raízes culturais de seu povo, principalmente do camponês que, por longos anos
de sua história, emigrou como ela própria e sua família viveram essa experiência
diaspórica e sofreu toda espécie de carência e perigos, afetando inclusive sua
identidade. Vê-se, também aqui, a atitude de educadora que pratica a “educação
dialógica” freireana, pois para Freire,
Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em
comprometer-se com sua causa. A causa da libertação. Mas, este
compromisso, porque é amoroso, é dialógico. (FREIRE, 1987, p. 80)
As palavras melancólicas da própria Violeta a seguir (MORALES, 2003, p. 45)
registram sua intuição a respeito do futuro da cultura e da identidade campesina do
chileno em particular, e do latino-americano em geral:
Haciendo mi trabajo de búsqueda musical en Chile, he visto que el
modernismo había matado la tradición de la sica del pueblo. Los
índios pierden el arte popular, también en el campo. Los campesinos
compran nylon en lugar de encajes que confeccionaban antes en
casa. La tradición es casi ya un cadáver. Es triste... Pero me siento
contenta al poder pasearme entre mi alma, muy vieja, y esta vida de
hoy.
Esse diálogo entre as duas culturas, a rural e a urbana, por ela promovido,
possibilitou o surgimento da ”nova canção chilena” contendo a tradição com traços
da modernidade que, reestrutura, reconstrói a identidade cultural chilena e latino-
americana.
Novamente admite-se que, não só a obra poética e musical de Violeta Parra,
mas tudo o que ela empreendeu em nome do povo chileno, suas incursões pelos
campos, suas pesquisas, tem caráter educacional. Seu trabalho é, na verdade, uma
proposta, um resgate e uma defesa da identidade cultural do povo chileno e latino-
americano. Logo, seu trabalho situa-se no campo da educação.
Violeta consegue realizar seu projeto que era justamente fazer o elo entre
essas duas culturas, entre o folclórico e o moderno. Com isso acaba conquistando o
povo chileno, o latino-americano e até grande parte do povo europeu, pela sua
peculiar oralidade, pela escrita, por meio do canto e das composições, e mais tarde,
também pelas pinturas, tapeçarias e esculturas em arame.
113
Assim, um novo imaginário da cultura popular tradicional instala-se na
sociedade chilena e latino-americana com a arte de Violeta Parra principalmente a
arte do canto. O que estava sendo, até então, uma cultura marginalizada, ganha
importância graças à força expressiva, singular e espontânea com que Violeta
trabalha a sabedoria popular.
A importância de Violeta Parra no campo social, bem como no campo da
educação, está na posição de investigadora e divulgadora de sua raiz cultural, que
ela assumiu desde cedo. Pode-se dizer que Violeta foi educadora e pesquisadora.
Violeta desenvolveu e educou, durante a adolescência, seu gosto pela estética e sua
consciência ética e social, num ambiente de forte presença da cultura tradicional.
Cedo passa a trabalhar no resgate do folclore chileno, motivo pelo qual algumas
universidades a convidam para dar cursos periódicos e incentivam-na no seu
trabalho de resgate cultural e na criação de museu da cultura folclórica. Por isso,
também, sua importância no território dos estudos culturais.
Reside aí, mais uma vez, o efeito educacional de seu trabalho. Sua arte
musical oferece inúmeras possibilidades como material didático e monográfico a
serem trabalhadas o por pesquisadores, mas por professores em aulas de
língua e literatura, por exemplo, tamanho é o ensinamento que ela traz,
especialmente sobre a história sociocultural do Chile e da América Latina. E como a
prátida da interdisciplinaridade e dos temas transversais se consolida na educação
contemporânea, mais a arte de Violeta se torna relevante e viável como instrumento
pedagógico.
Aos quarenta anos de sua morte, Violeta Parra, artista universalmente
conhecida, foi uma compositora das mais criativas e prolíferas do continente latino-
americano, embora grande parte de suas composições tenham sido registradas por
autores e intérpretes chilenos, europeus, asiáticos e dos países nórdicos
(dinamarqueses, suecos e noruegueses), bem como em toda América Latina há
intérpretes de suas músicas.
Em 1965, compõe Al centro de la injusticia”, musicado por sua filha Isabel
Parra, logo depois de sua morte. Considera-se uma reflexão e ao mesmo tempo uma
crítica social sobre o Chile, sua localização e limites geográficos. Descreve detalhes
da vida nos povoados da parte central do país, formados por famílias de muchos
chiquillos”, que vivem na pobreza, enclausurados e alheios a tudo, multiplicando-se
espremidos nos vales, povo quase esquecido e marginalizado, pois, conforme ela
114
mesma diz, “la papa nos la venden naciones varias cuando del sur de Chile es
originaria”.
Violeta faz duras críticas ao sistema económico chileno pois, El minero
produce buenos dineros, pero para el bolsillo del extranjero”, por isso a fome e a
pobreza empurram as mulheres ao trabalho nas indústrias, y así tiene que hacerlo
porque el marido, la paga no le alcanza pa’l mes corrido.
Ela se dirige ao turista dizendo-lhe que nem tudo é bonito e colorido na pátria
chilena, conforme sua bandeira, pois o dinheiro que se gasta em parques e
alamedas para impressionar os estrangeiros daria para salvar vidas nos hospitais e
para matar a fome dos miseráveis.
Esta é uma de suas canções que expressam um sentimento conflitivo com
relação ao trabalho dos governantes e ao mau uso do poder. Esta canção é também
um grito como o de Paulo Freire que ecoa e perpassa a cordilheira, chegando
aos lugares mais distantes, fazendo-se ouvir não só pelos turistas, pelos
estrangeiros, mas, desde as cidades até os campos.
Linda se ve la patria señor turista,
pero no le han mostrado las callampitas.
mientras gastan millones en un momento,
de hambre se muere gente que es un portento
Por isso Violeta diz que Chile limita al centro con la injusticia”, esboçando
assim, um negativo e pessimista discurso patriótico e nos remetendo a uma aula não
de Geografia, mas de História e de Sociologia. Ali ela faz a crítica do abuso da
autoridade, da alienação política e do mercado internacional, que simboliza toda uma
dominação estrangeira que passa pela exploração do minério e do trabalho dos
mineradores. Violeta já discutia em suas canções os riscos da globalização, da
internacionalização da economia mundial.
La papa nos la venden naciones varias
cuando del sur de Chile es originaria.
Delante del emblema de tres colores
la minería tiene muchos bemoles.
El minero produce bueno dineros,
pero para el bolsillo del extranjero...
A canção mostra como o drama econômico mundial e nacional se reflete na
vida familiar dos mineiros chilenos, como as políticas econômicas externas se
115
tornam tragédia doméstica.
Y así tiene que hacerlo porque el marido
la paga no le alcanza pal mes corrido.
Pa’ no sentir la aguja de este dolor
en la noche estrellada dejo mi voz.
A poeta questiona o olhar do turista, do estrangeiro que visita o país e que
busca apenas o exótico, o típico, e não enxerga a fome pela qual passa o povo que
está a visitar. Suas denúncias são explícitas e fortes.
Linda se ve la patria señor turista,
pero no le han mostrado las callampitas.
Mientras gastan millones en un momento,
de hambre se muere gente que es un portento.
Mucho dinero en parques municipales
y la miseria es grande en los hospitales.
Al medio de la Alameda de las Delicias,
Chile limita al centro con la injusticia.
“Ayudáme Valentina é uma de suas várias composições de cunho filosófico e
científico, escrita entre 1960 e 1963. Nela, Violeta dialoga com a cosmonauta russa,
Valentina Wladmirovna Tereshkova – a primeira mulher na história a viajar no
espaço – sobre a grande quantidade de padres, pastores e profetas que têm surgido
nos últimos anos e que se valem da ignorância e da ingenuidade do povo para iludi-
lo com falsas crenças em falsos milagres. Falam de aparições, inferno, purgatório,
anjos e demônios.
Indiretamente, Violeta Parra critica o aparecimento de tantas religiões, tantas
igrejas, tantos pregadores que fazem tudo em nome de Deus, e pede à Valentina
que a ajude a resolver sérios problemas e sanar dúvidas com relação às instituições
religiosas, quando diz: “Qué vamos a hacer con tanto / tratado del alto cielo /
ayúdame Valentina / Ya que volaste lejos / dime de una vez por todas / que arriba
no hay tal mansión.
Nesta composição, Violeta Parra deixa transparecer que, para ela, a figura de
Valentina é de uma representante dos céus, contrapondo-se à imagem de Maria.
Violeta aqui traça quase um paralelo entre a ciência e a religião, entre a verdade e a
mentira. Depois, convida-a a romper toda essa teia de discursos criada pelas
116
instituições religiosas ou filosóficas con tanta mentira desparramada”. Violeta
externaliza sua revolta e sua posição contrária à manipulação do discurso que
obscurece a verdade. Ela reivindica a ciência e seu poder desmitificador. Portanto, a
canção celebra a bravura da mulher e o caráter luminar e emancipatório da ciência.
Entre as canções de Violeta Parra, a que mais diretamente trata da questão
da educação e a que marca seu posicionamento a favor do conhecimento, da ciência
e do aprendizado é “Me gustan los estudiantes, escrita entre 1960 e 1963. Trata-se
de uma de suas últimas composições de cunho social, que traz implícitos conceitos
pessoais sobre a importância das instituições de ensino, sobre os estudantes e sobre
a educação em si. Diante da injustiça dos poderosos, Violeta interpela contra a
manipulação da verdade e clama pela ciência para desmitificá-la:
Que vivan los Estudiantes,
jardín de las alegrias!
son aves que no se asustan
de animas ni policías
y no le asustan las balas
ni el ladrar de la jauría.
Caramba y zamba la cosa
que viva la astronomia!
Para ela, o caráter da educação é de reconstrução social e política constante,
é sinônimo de luta, de revolução, que promove sempre uma mudança e uma
melhora social e política. Educação é instrumento de transformação histórica. Por
isso ela diz que os estudantes são a esperança na recuperação dos valores sociais,
“son aves que no se asustan de ánimas ni policías y no le asustan las balas ni el
ladrar de la jauría.
Que vivan los estudiantes
que rugen como los vientos
cuando les meten al oído
sonatas o regimientos!
Pajarillos libertários,
igual que los elementos.
Caramba y zamba la cosa
vivan los experimentos!
Sua canção mostra a importância do estudante, portanto da educação, para a
vida do pobre, para os quais a educação chega como um pão saboroso, que mata a
forme e que traz sabor, prazer. Aliás o saber está sempre muito próximo do sabor.
117
Ademais, o conhecimento, para Violeta, está carregado de implicações éticas e
políticas. Não há conhecimento neutro, mas sempre historicamente localizado e
politicamente determinado
Me gustan los estudiantes
porque son la levadura
del pan que saldrá del horno
con toda su sabrosura,
para la boca del pobre
que come con amargura.
Caramba y zamba la cosa
viva la literatura!
Me gustan los estudiantes
porque levantan el pecho
cuando les dicen harina
sabiéndose que es afrecho,
y no hacen el sordomudo
cuando se presenta el hecho.
Caramba y zamba la cosa
el código del derecho!
O caráter questionador do conhecimento e da educação se manifesta na
medida em que os estudantes aprendem a enfrentar o poder militar, político e
religioso (do confessório e das indulgências), a contestar versões deturpadas de
realidade. “Me gustan los estudiantes” mostra, não o sentimento de amor que
Violeta tinha pelo povo, por sua nacionalidade, mas também sua preocupação com a
educação e a juventude. Nesta canção, ela não só proclama o valor da liberdade – a
liberdade proporcionada pelo saber, pela “educação libertária” –, como também
exalta a figura dos estudantes, que simbolizam a força da mudança social e
reconstrução nacional a partir das ruínas.
Em argumento de Peter Mclaren,
A pedagogia de Paulo Freire é antiautoritária, dialógica e interativa,
colocando o poder nas mãos dos estudantes e trabalhadores. E, o
mais importante, a pedagogia freireana situa a análise da vida
cotidiana no centro do currículo. (MCLAREN, 1999, p. 25)
E a canção prossegue sua celebração, seu “viva”. Ao final de cada estrofe, a cantora
celebra e destaca um aspecto da educação: que viva a astronomia, que vivam os
experimentos, que viva a literatura, que viva o código de direito, que vivam os
especialistas, os libros explicatórios, que viva toda a ciência.
Me gustan los estudiantes
118
que marchan sobre las ruínas.
con las banderas en alto
va toda la estudiantina:
son químicos y doctores,
cirurjanos y dentistas.
Caramba y zamba la cosa
vivan los especialistas!
Muitas de suas composições o assim, marcadas por um forte sentimento
patriótico, e é nessa perspectiva que ela vê a importância da educação,
representada na canção pelos estudantes, exaltando os futuros químicos, doutores,
cirurgiões, dentistas e demais “especialistas”.
A visão libertária de Violeta Parra, implícita nesta canção, se relaciona
diretamente com o conflito ideológico advindo da disputa pela importação de
modelos europeus e americanos, que sofreu e ainda sofre o Chile e mais
amplamente a América Latina , e que fazem parte do processo de modernização.
Esses conflitos interferem diretamente na educação e na identidade cultural de um
povo. E Violeta, que além de pesquisadora e divulgadora dos valores tradicionais da
cultura chilena e latino-americana por isso educadora –, expõe seus sentimentos
de cidadã patriota e sensível aos problemas nacionais provocados pela
modernidade.
Me gustan los estudiantes
que van al laboratorio,
descubren lo que se esconde
adentro del confesorio.
Ya tiene el hombre un carrito
que llegó hasta el purgatorio.
Caramba y zamba la cosa
los libros explicatorios!
Me gustan los estudiantes
que con muy clara elocuencia
a la bolsa negra sacra
le bajó las indulgencias.
porque, hasta cuando nos dura
señores la penitencia.
Caramba y zamba la cosa
que viva toba la ciencia!
Violeta estampa, em Me gustan los estudiantes, a crise gerada por essas
tensões sociais, como sintomas do contexto e do período em que viveu,
cuando los estudiantes rugen como los vientos
119
y marchan sobre las ruínas con las banderas en alto
y van al laboratorio y descubren, con muy clara elocuencia,
lo que se esconde a dentro del confesorio.
Por isso sua bela exaltação aos estudantes “pajaritos libertários”:
los químicos y doctores,
cirurjanos y dentistas
y todos los especialistas.
Que viva toda la ciencia!
Assim reconhece-se Violeta Parra como educadora e construtora de conhecimento,
identidade nacional e consciência histórica e política.
Uma última canção a ser analisada é a que leva o título de Violeta AusenteI”,
uma canção que retoma a experiência de exílio e distanciamento da pátria. Esta
canção foi selecionada porque traz a construção identitária a partir do estrangeiro, do
habitat do outro, do lugar da alteridade. Violeta está em Paris e lamenta sua saudade
da sua terra natal. Ela diz:
¿Por qué me vine de Chile
tan bien que yo estaba allá?
Ahora ando en tierras extrañas,
ay, cantando como apenada.
Tengo en mi pecho una espina
que me clava sin cesar
en mi corazón que sufre,
ay, por su tierra chilena.
Quiero bailar cueca,
quiero tomar chicha,
ir al mercado
y comprarme un pequén.
Ir por Matucana
y pasear por la quinta
y al Santa Lucía
contigo mi bien.
Antes de salir de Chile
yo no supe comprender
lo que vale ser chilena:
ay, ahora sí que lo sé.
Igual que lloran mis ojos
al cantar esta canción,
ay, así llora mi guitarra
penosamente el bordón.
Qué lejos está mi Chile,
lejos mi media mitad,
qué lejos mis ocho hermanos,
120
ay, mi comadre y mi mamá.
Parece que hiciera un siglo
que de Chile no sé nada,
por eso escribo esta carta,
ay, la mando de aquí pa' allá.
(composto entre 1954-1957)
A experiência da poeta é de sofrimento pela distância dos elementos de sua cultura,
os lugares familiares, seu povo, as canções, as festas, as danças, os irmãos. O
tempo do distanciamento parece arrastar-se por séculos, segundo a canção. De
qualquer forma, vale lembrar que nossa noção de identidade se intensifica a partir da
experiência da diáspora e do ser estrangeiro. Essa experiência contribuiu para que
Violeta percebesse ainda mais a importância de suas raízes culturais: “Antes de salir
de Chile / yo no supe comprender / lo que vale ser chilena: / ay, ahora sí que lo sé”.
4.6 A identidade pessoal e cultural nas Décimas de Violeta Parra
As décimas são um gênero lírico derivado da poesia culta espanhola do
século de ouro, que repercute na América Latina por ocasião da instalação de
colégios religiosos e das primeiras universidades. Caracterizam-se pela facilidade de
memorização que elas proporcionam aos poetas populares, bem como pela
facilidade de sua transmissão oral, de geração à geração (NAVARRO, 2005, p. 73).
Sobre sua definição, o dicionário Clave: diccionario de uso del español
actual, com prólogo de Gabriel García Márquez, traz o seguinte: Décimo, ma. En
métrica, estrofa formada por diez versos octosílabos de rima consonante y cuyo
esquema es abbaaccddc. Las primeras décimas aparecen en el siglo XVI, en un libro
de Vicente Espinel, titulado “Diversas rimas” (p. 545).
As Décimas o também chamadas de “espinelas”, por terem sido publicadas
pela primeira vez pelo escritor e poeta Vicente Espinel, segundo Navarro (2005 p.
72):
Fue así que a fines de siglo el escritor y poeta don Vicente Espinel
presenta su décima, también octosilábica, pero que establece de
cierta manera el orden de las rimas, dejándolas ABBAACCDDC y en
consonantes [...]
Ainda segundo Navarro (2005 p. 72), no século XVI as Universidades promoviam
concursos literários de décimas:
121
Así, la décima espinela se instala en pleno Siglo de Oro,
repercutiendo en el Nuevo Mundo a medida que se iban instalando
universidades y colégios religiosos. La Imperial Pontificia Universidad
Mexicana hacía concursos para premiar a los poetas, y de uno de
aquellos concursos resulto ganadora Sor Juana Inés de la Cruz,
célebre poetisa mexicana que escribió muchas “espinelas”.
No século XIX, na América-hispânica as Décimas tomaram conta do
repentismo, da improvisação e da literatura, segundo Navarro.
Comentando sobre a importância da publicação das Décimas para a
popularidade de Violeta, Alfonso Alcalde, em seu livro Toda Violeta Parra, assim se
pronuncia: La aparición de las ‘Décimas’, basfemante biografía escrita en versos
chilenos, la rescató definitivamente del olvido a donde estaba destinada por la crítica
oficial” (1981, p. 17).
Em tempos modernos, escrever e/ou cantar à moda dos poetas da
Antigüidade clássica requer inteligência, empenho, muita força fuerza de gallo
castizo –, requer vontade e obediência à rima e métrica, o que Violeta Parra confirma
logo no início de sua narrativa:
Pa’ cantar de un improviso
se requiere buen talento,
memoria y entendimiento,
fuerza de gallo castizo.
Cual vendaval de granizos
han de florear los vocablos
con muchas bellas razones,
como en las conversaciones
entre San Pedro y San Paulo. (p. 23)
También, señores oyentes,
se necesita estrumento,
muchísimos elementos
y compañero ‘locuente;
ha de ser güen contendiente,
conoce’or de l’historia;
pa’ entablar un desafío,
pero no me da el sentí’o
pa’ finalizar con gloria. (p. 23)
Nas suas Décimas, independentemente de serem ou não autobiográficas,
um magnetismo que brota em cada verso e reveste toda a estrofe. Em se falando
das décimas autobiográficas, esse magnetismo vem acompanhado de uma
atmosfera de dramaticidade, sem interferir na imagem da autora e protagonista, cuja
personalidade forte e calorosa se sobrepõe, deixando o leitor satisfeito e encantado
122
com tamanha habilidade e verossimilhança na composição de seus relatos. Em cada
verso que escreve, Violeta vai narrando a sua história, tecendo fios de sua própria
identidade pessoal e cultural, ligando-a com a de outras pessoas que vai
conhecendo pelo caminho. Como vimos no capítulo teórico, a identidade é de fato
construída pela narrativa, pelo discurso que fazemos de s mesmos.
Violeta Parra se auto-biografa de maneira espontânea e com muita
autenticidade, além de fazê-lo poeticamente. A onisciência da autora/protagonista
possibilita ao seu eu lírico expor-se naturalmente, expor sua identidade feminina de
filha, de esposa e de mãe, descrevendo seus diversos estados emocionais e
sentimentais experimentados nas relações com as outras pessoas, queridas ou não,
além de experiências obtidas em momentos de solidão.
En este mundo moderno
qué sabe el pobre de queso,
caldo de papa sin hueso.
Menos sabe lo que es terno;
por casa, callampa, infierno
de lata y ladrillos viejos
Cómo le aguanta el pellejo?
eso si que no lo sé.
Pero bien sé que el burguês
se pit’ al pobre verdejo. (p. 36)
Los tiempos se van volando
Y van cambiando las cosas;
creció en el trigo melosa,
la siembra fue castigando,
fue la cosecha mermando,
l’esperanza queda trunca,
la gente no sabe nunca
lo que mañana l’espera.
Cayéndose l’escalera
de manos se queda zunca. (p. 48)
De nuevo yo solicito
perdón por irme alejando.
Lo que les iba explicando
se me refala solito.
El pensamiento infinito
traicióname en cada instante,
no puede ni el más flamante
pasar en indiferencia
si brilla en nuestra conciencia
amor por los semejantes. (p. 48)
Em suas décimas ela conta e canta a vida com simplicidade e imaginação,
exaltando os mistérios e as surpresas cotidianas que permearam toda a trajetória,
123
sua e de sua família, que representa, na verdade, a identidade do povo camponês
chileno de sua época. Predomina em seu texto das Décimas a descrição do mundo
da pobreza, do mundo da oposição entre pobres e ricos. Um mundo de sofrimento,
insegurança e medo, o seu mundo, com o qual ela se identificava por duas razões:
pertencimento e ideologia. Sua identidade está íntimamente ligada à identidade do
seu povo.
Ela resgata sentimentos e recordações, expressando-os artisticamente:
Presencian mis dos pupilas
desfile muy singular
de cosas para entregar
cosidas por mi mamita.
Camisas y camisitas,
un traje pa’ levantarse,
un biombo para ocultarse
de ojos impertinentes,
cotonas de dependientes
y sábanas pa’ acostarse.
Un día muy de mañana
se acerca con su marido,
en busca de su vestido
una preciosa gitana.
Yo misma por la ventana
le paso aquel ancho traje,
variado como plumaje
de pavo chinesco real,
más tarde la vi bailar
con este hermoso ropaje. (p. 97)
Conforme descreve a Drª María Éster Martínez Sanz, da Pontifícia
Universidade Católica do Chile, as décimas de Violeta Parra são uma obra de arte:
Las Décimas se transforman así en obra de arte por su peculiar
proceso de enmarcamiento, por su audición curandera de la memoria
del clan, por sus bosquejos fallidos de una patria madrasta,
castigadora, que trascienden el territorio de lo evocado con un espacio
propio, peculiar del diálogo familiar entablado por la protagonista con
nosotros, sus lectores.
En resumen, la veracidad poética de las Décimas: autobiografía en
verso transforma el aquí y el ahora de una mujer llamada Violeta
Parra, en un símbolo de lo femenino. El yo poético revela imágenes
tan preñadas de significación, que las ideas y sentimientos devienen
un discurso cultural y, claramente, una conciencia femenina
heterosexual.
9
9
Fragmentos do texto: Las Décimas de Violeta Parra: Del yo individual a lo universal, da professora
da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Drª Maria Éster Martinez Sanz, publicado no site Tu
124
E, como se afirmou em capítulos anteriores que “identidade” é percurso, é
viagem, é trajetória, as décimas autobiográficas de Violeta Parra apresentam a
construção da sua identidade, marcada pela opção artística, pela música, pela
poesia:
Toco vihuela, improviso,
compongo mis melodías,
las noches las hago días
pensando si lo preciso;
buscando el oro macizo
salgo volando al camino,
y el versear “a lo divino”
es oro de gran quilate.
Si pa’ vos es disparate
pa’ mí no, pues, Secundino. (p. 38)
Gracias a Dios que soy fea
y de costumbres bien claras,
de no, qué cosas más raras
entraran en la pelea;
donde llueve y no gotea
se van pasando los años,
“cuesta subir los peldaños
si está apartando el amor”,
dice un seños locutor
a una artista en el escaño. (p. 158)
É a história do percurso de vida das mulheres que lutam, caem, levantam por
suas próprias valentias e voltam a lutar sem se deixarem abater diante de problemas
de qualquer espécie, sejam financeiros, sociais, políticos, amorosos ou familiares:
Yo siento cada mañana
la voz del padre cura’o,
no sabe ‘l mal que ha causa’o
le están blanqueando las canas.
Prosiguen las damajuanas
su desfilar ordinario,
ya no lo nombran los diarios;
yo sufro la confusión
de ver nuestra canción
en la jaula del canario.
Con la escasez del dinero
mezquino es el alimento,
son pocos los elementos
que cuentan en el puchero.
salón de lectura em Español – Proyecto Patrimônio”: www.letras.s5.com/violeta121002htm, acessado
e impresso em 28 de setembro de 2005.
125
No vino más el lechero,
de meditarlo no mermo,
lo veo cuando me duermo,
se me clavó en la razón,
no piensen que con rencor,
porque mi taita era enfermo. (p. 102)
El mundo es una escalera
el que no sube, pues baja
al hoyo con la mortaja
de la maldad pendenciera.
Aquel de malas maneras,
habrá de tener castigo,
no ha de quedar abrigo,
lo dice la Santa Biblia,
y en sus palabras auxilia
al triste y al perseguido. (p. 104)
Há, também, em suas Décimas, algumas evocações à infância e a momentos
felizes dessa época, como por exemplo, aqueles quando cometia travessuras com
seus irmãos:
Como nací pat’e perro,
ni el diablo m’echaba el guante;
para la escuela inconstante,
constante para ir al cerro.
Lo paso como en destierro
feliz con los pajaritos,
soñando con angelitos;
así me pilla fin de año,
sentada en unos escaños;
quisiera ser arbolito!
No allaba fiesta mayor
que andar con Tito en las rosas
cazando mil mariposas,
sanjuanes y moscardón,
palote y grillo cantor,
luciérnagas relumbrantes,
baratas y matapiojos,
hasta el dañino gorgojo
pa mi hermano estudiante. (p. 99)
Violeta, em sua auto-biografia em Décimas, descreve o mundo da pobreza em
que viva, seu sofrimento, medo e insegurança com relação ao futuro, na busca por
um trabalho:
No lloro yo por llorar
sino por allar sosiego,
mi llorar es como un ruego
126
que naide quier’ escuchar,
del ver y considerar
la triste calamidá’
que vive l’humanidá’
en toda su longitú’;
l’escasez de la virtú’
es lo que me hace llorar.
Ayer buscando trabajo,
llamé a una puerta de fierro,
como si yo fuera un perro
me miran de arrib’ abajo,
con promesas a destajo
me han hecho volver cien veces,
como si gusto les diese
al verme solicitar;
muy caro me hacen pagar
el pan que me pertenece. (p. 145)
Os casamentos, os amores doentios, as aventuras e desventuras, forjam na
identidade de Violeta Parra constantes indagações. E toda experiência adquirida a
orienta para a tomada de importantes decisões ao longo de sua vida:
Entré al clavel de amor
cegada por sus colores,
me ataran los resplandores
de tan preferida flor;
ufano de mi pasión
dejó sangrando una herida
que lloro muy conmovida
en el huerto del olvido,
clavel no ha correspondido,
qué lágrimas tan perdidas. (p. 195)
Este clavel lisonjero
me causa tal confusión
que deja mi corazón
a mil grados bajo cero,
quisiera que un relojero
me acompasara el latido
y me componga el sentido,
que es tanta mi oscuridad
por una loca maldad
d’este clavel ofensivo. (p. 195)
Empieza de nuevamente
mi corazón la batalla,
el hombre es una muralla
de piedras omnipotente;
127
¿por qué tu cuerpo consiente
los golpes de tal martillo?
Quien lo maneja es un pillo
criado en los callejones,
palabras de maricones
y sangre de vinagrillo. (p. 202)
Ao tecer sua auto-biografia, Violeta constrói sua identidade e a contextualiza na
história do seu país e na cultura do seu povo. As Décimas são um precioso
documento da construção identitária pessoal e cultural de uma importante
cantautora, pesquisadora e educadora (em seu sentido mais amplo) chilena.
Violeta, enfim, foi grande pesquisadora e agitadora cultural, revelando
preocupação com as questões sociais, com as novas gerações, com o aprendizado
e o ensino da ciência, com a comunicação da informação, com ação justa, com o dar
voz aos excluídos e silenciados do seu tempo. Seu trabalho multifacetado envolve
arte, linguagem, filosofia política, consciência histórica e posicionamento ético. Ela
propõe uma leitura de mundo e de história que afina-se em muito com os
pensamentos avançados de nosso educador Paulo Freire. Para ela, a educação é
vista como prática social, como participação, como engajamento.
5 Considerações finais
As curiosidades, as “vontades de saber” que provocavam o meu ser e
impulsionaram-me a esta pesquisa, ao contrário de saciar-me, como ingenuamente
eu acreditava acontecer, levaram-me a perceber o quão imensurável é o território
dos Estudos Culturais, e o quão prolífero e amplo se nos apresenta seu cenário de
temas a serem estudados, pesquisados, investigados.
E nesse vasto cenário dos Estudos Culturais, fixar-me no lugar onde se
posiciona a identidade já era um sonho que, por muito tempo permaneceu indefinível
128
em mim. Talvez por falta de coragem para “ousar” desvendá-lo, ou por medo mesmo,
do desconhecido. Hoje, concordando plenamente com Sêneca, também digo que
“muitas coisas tornam-se cada vez mais difíceis, cada vez mais indefiníveis, tantas
vezes quantas deixarmos de ‘ousar’ conhecê-las”. Se não investirmos na busca, na
descoberta, na investigação daquilo que nos inquieta, se não satisfizermos nossas
curiosidades, nossas vontades de saber, se não avançarmos em nossos saberes,
até quando suportaremos esta sede?
Das inquietudes advindas de minhas curiosidades e minhas “vontades de
saber”, emergiu-me um impulso quase maior que eu e, assim, avancei um pé,
depois outro, no terreno que ora caminho e que me traz até aqui. Um terreno de
pedras preciosas –, um terreno onde pretendo fixar residência, o terreno da
pesquisa e do saber. Nele quero permanecer.
Lembro-me, nitidamente, dos dias e dos momentos de expectativas, quando
das etapas que enfrentamos para conseguir uma das vagas para o ingresso no curso
de Mestrado em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESC.
Foram etapas vividas intensamente, uma a uma.
Devo confessar que não sou a mesma desde que iniciei o curso de
Mestrado em Educação. Primeiro, porque a Universidade e o próprio curso
ofereceram-nos o que há de melhor na área de ensino e pesquisa em educação.
Desde o programa, a coordenação, o corpo docente, mantiveram forte
comprometimento com a nossa formação. E segundo porque, pesquisar a identidade
latino-americana foi e está sendo como banhar-me num lago fantástico, formado
por águas claras e correntes. E, por isso, não posso furtar-me de agradecer a Deus
por esse privilégio.
Nesta pesquisa, os estudos dos textos de Stuart Hall, feitos com a visão de
quem tenta compreender o processo de formação e transformação das identidades,
proporcionou-me imenso prazer, permitindo-me conhecer um pouco sobre a
“metamorfose” roubando aqui o termo de Kafka por que passam as identidades
no decorrer dos tempos. Em minha pesquisa sobre identidade na modernidade pude
perceber, pelos ensinamentos de Hall, Giddens, Mclaren e demais teóricos dos
estudos culturais, que o próprio processo de identificação está se tornando cada vez
mais provisório e, conseqüentemente, problemático. Sendo assim, pode-se dizer
que, nem sempre o moderno é o melhor. Giddens (1991), ao escrever dizendo que a
modernidade tem seu lado “sombrio”, quis referir-se às conseqüências que
129
acompanham a modernização. Os descentramentos e a conseqüente fragmentação
das identidades são umas dessas conseqüências dos processos modernizadores.
Ao pensar o nosso continente e nossa identidade cultural na modernidade
globalizada, neste estudo compreendi que, à medida em que globalizam-se a
economia, cada vez mais complexo torna-se o processo de formação cultural e
identitária. E, conforme nos ensina Néstor García Canclini (2006), o território
contextual latino-americano é um lugar de constante processo social de mistura e
surgimento de novas estruturas. Dada a multiculturalidade latino-americana,
entende-se que as identidades, as culturas, quase se “diluem” enquanto se mesclam,
se entrelaçam e vão tomando conta umas das outras, acompanhando assim, os
movimentos evolutivos das sociedades e do pensamento humano, hoje provocados
pela globalização e pelo multiculturalismo. E, nesse raciocínio reporto-me a Violeta
Parra, ao estribilho da sua canção Volver a los diecisiete, que serve de metáfora a
esse processo de mestiçagem, de miscigenação, de “enredamento”: se va
enredando, enredando, como en el muro la hiedra, y va brotando, brotando, como el
musguito en la piedra.
O tulo desta pesquisa, Violeta Parra: identidade cultural latino-americana
moderna, levou-me à “hibridação das culturas”, de Canclini, e compreendi que o
sujeito latino-americano e a própria cultura encontram-se tão híbridos que, hoje é
quase impossível classificá-los quanto a sua pureza. Nós os latinos somos
constituídos de uma mistura étnica, uma mestiçagem e além disso outros matizes
provocados pela modernidade. A fusão entre o popular e o erudito é um desses
matizes. Daí a impossibilidade , segundo Canclini (2006) de existir, ou pelo menos de
se separar uma identidade de outras. É quase impossível falar, hoje, em uma
identidade pura.
E Giddens, corroborando argumentos de Canclini, fala-nos sobre As
conseqüências da modernidade e sobre Modernidade e identidade e assim,
permite-nos saber que, as instituições modernas, no seu dinamismo e seu grau de
interferência que mantém com o que é tradicional, tornam-se diferentes de todas que
as antecederam. Concordo com Giddens quando diz que a modernidade modifica
radicalmente nossa natureza social, nosso cotidiano, afetando inclusive, aspectos
pessoais, tranformando nossas identidades. Além disso, foi possível entender que
caminhamos para um outro tipo de ordem social diferente.(Giddens 2002-1991).
130
Ao pesquisar sobre educação, para fazer a inserção de Violeta Parra, seu
trabalho de folclorista e sua obra musical no território da Educação, recorri a Paulo
Freire, seu livro Pedagogia do oprimido e sua filosofia pedagógica que, em
inúmeros pontos foi podido relacionar o trabalho pedagógico de ambos, em prol do
oprimido, em prol do povo campesino. Além da latinidade de ambos, suas atividades
e idéias, em muitos pontos se identificam, como se mostrou no início desta
dissertação. De grande importância, para mim, foi constatar a relação entre a filosofia
educacional freireana e o trabalho de Violeta Parra no afã de conscientizar o povo
campesino de seu “ser” e de seu “estar” na sociedade. E é justamente esta posição
de Violeta que a faz educadora. Mas, além da constatação de pontos em comum no
trabalho de ambos, é relevante que se responda a seguinte indagação:
Qual a importância de Violeta Parra para a educação?
Bastaria o fato de ela ter sido uma pesquisadora, investigadora do folclore,
para lhe darmos a referida importância. Mas, Violeta não só investigou como também
compilou, reescreveu, redimensionou e divulgou a tradição cultural chilena.
Violeta por meio de suas canções, problematizou a realidade, iniciando um
processo de conscientização não do povo campesino mas, do povo urbano
também. Violeta chamou atenção para as discrepâncias entre o campo e a cidade,
para os prejuízos que a modernidade vinha causando, não na vida social do
chileno mas, na sua identidade pessoal e cultural.
Ao analisar suas canções, buscando “mirarlas” como importantes projetos
educacionais no sentido mais amplo não apenas institucional percebi que, na
realidade, sua importância como “técnica educacional” vai muito além do imaginado,
dada a riqueza de elementos históricos, educacionais, sociais e identitários de que
elas são constituídas. Muitos ensinamentos estão implícitos nas músicas de Violeta
Parra. Elas constroem uma identidade cultural, enquanto falam de política, história,
na exaltação aos Estudiantes”, enquanto falam do “aprender”, do abecedarioque
con él las palabras que pienso y declaro” e que ele é luz alumbrando”. Tudo isso dá
ao trabalho de Violeta Parra como folclorista o caráter educacional. A própria arte
musical que ela desenvolvia era verdadeiro projeto de restabelecimento, de
reconstrução de identidade. A identidade do campesino, a raiz da cultura chilena
que, como ela mesma constatou e disse, “parecía ya un cadáver”. Com suas
canções Violeta chamou o povo para a luta pelos seus valores, seus direitos, que se
perdiam velozmente, por pressão da economia mundial. Violeta encorajou o
131
campesino à luta em defesa da sua dignidade. Violeta ensinou o povo campesino a
“ler” o mundo, a ler a realidade em que ele estava inserido.
Nesta pesquisa, além dos autores citados, foram utilizados importantes textos
virtuais, formando assim, a base para o desenvolvimento desta escritura e, ao
mesmo tempo, para o alento às minhas inquietudes e aos meus desejos de saber.
O resultado maior e melhor desta pesquisa é a satisfação de perceber-me
transformada, crescida, interior e intelectualmente e desejosa de saber”, mais do
que antes, pois, habita em mim um interesse permanente em conhecer as “razões de
ser”, do comportamento, do discurso e das ações de determinados indivíduos, isto é,
um interesse em estudar o sujeito, seu contexto histórico e sua obra.
Eis o porquê da escolha desta linha de pesquisa: a do sujeito identitário latino-
americano da nossa era. Eis o porquê de eleger-se Violeta Parra como figura
representativa da identidade cultural na América Latina.
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135
ANEXOS
Casamiento de negros
Se ha formado un casamiento
todo cubierto de negro,
negros novios y padrinos
negros cuñados y suegros,
y el cura que los casó
era de los mismos negros.
Cuando empezaron la fiesta
pusieron un mantel negro
luego llegaron al postre
se sirvieron higos secos
y se fureron a acostar
136
debajo de un cielo negro.
Y allí están las dos cabezas
de la negra con el negro,
amanecieron con frío
tuvieron que prender fuego,
carbón trajo la negrita
carbón que también es negro.
Algo le duele a la negra
vino el médico del pueblo
recetó emplastos de barro
pero del barro más negro
que le dieron a la negra
zumo de maqui de cerro.
Ya se murió la negrita
que pena pa’l pobre negro,
la puso dentro un cajón
cajón pintado de negro,
no prendieron ni una vela
ay, que velório más negro.
Yo canto la diferencia
Yo canto a la chillaneja
Si tengo que decir algo
y no tomo la guitarra
por conseguir un aplauso
yo canto la diferencia
que hay de lo cierto a lo falso
de lo contrario no canto.
Les voy hablar enseguida
de un caso muy alarmante
atención al auditorio
que va a tragarse al purgante
ahora que celebramos
el dieciocho más galante
la bandera es un calmante.
Yo paso el mes de septiembre
con el corazón crecido
de pena y de sufrimiento
de ver mi pueblo afligido
el pueblo amando la patria
y tan mal correspondido
la bandera por testigo.
En comandos importantes
Juramento a la bandera
sus palabras me repican
de tricolor las cadenas
con vigilantes armados
137
en plazas y en alamedas
y al frente de las Iglesias.
Los ángeles de la guarda
vinieron de outro planeta
porque su mirada turbia
su sangre de mala fiesta
profanos suenan tambores
clarines y bayonetas
dolorosa la retreta.
Afirmo señor ministro
que se murió la verdad
hoy día se jura en falso
por puro gusto no más
engañan al inocente
sin ni una necesidad
y me hablan de libertad.
Ahí pasa el señor vicario
con su palabra bendita.
¿Podría, su santidad
oírme una palabrita?
los niños andan con hambre,
les dan una medallita,
o bien una banderita.
Por eso su señoría
dice el sabio Salomón
hay descontento en el cielo
en Chuqui y en Concepción
ya no florece el copihue
y no canta el picaflor
centenário de dolor.
Un caballero pudiente
agudo como un puñal
me mira con la mirada
de un poderoso volcán
y con relámpagos de oro
desliza su Cadillac.
¡Y viva la libertad!
De arriba alumbra la luna
con tan amarga verdad
la vivienda de la Luisa
que espera maternidad
sus gritos llegan al cielo
nadie la puede escuchar
en la fiesta nacional.
No tiene fuego la Luisa
ni una vela ni un pañal
el niño nació en las manos
de la que cantando está
138
por un reguero de sangre
va marchando un cadillac
cueca amarga nacional.
La fecha más resaltante
la bandera va a flamear
la Luisa no tiene casa
la parada militar
y si va al parque la Luisa
adónde va a regresar
cueca larga militar.
Yo soy a la chillaneja
señores para cantar
si yo levanto mi grito
no es tan sólo por gritar
perdóneme el auditório
Si ofende mi claridad
cueca larga militar.
Santiago penando estás
Mi pecho se alla de luto
por la muerte del amor,
en los jardines cultivan
las flores de la traición,
oro cobra el hortelano
que va sembrando rencor,
por eso llorando estoy.
Los pajaritos no cantan,
no tienen donde anidar,
ya les cortarán las ramas
donde solían cantar,
después cortarán el tronco
y pondrán en su lugar
una letrina y un bar.
El niño me causa espanto
ya no es aquel querubín,
ayer jugaba a la ronda
hoy juega con el fusil,
no hay ninguna diferencia
entre niño y alguacil,
soldados y polvorín.
Adónde está la alegría
del Calicanto de ayer,
se dice que un presidente
lo recorría de a pie,
no había ningún abismo
entre el pueblo y su merced,
el de hoy, no sé quién es.
139
Santiago del ochocientos
para poderte mirar,
tendré que ver los apuntes
del arquivo nacional,
te derrumbaron el cuerpo
y tu alma salió a rodar,
Santiago, penando estás.
Maldigo del alto cielo
Maldigo del alto cielo
la estrella con su reflejo,
madigo los azulejos
destellos del arroyuelo,
maldigo del bajo suelo
la piedra con su contorno,
maldigo el fuego del horno
porque mi alma está de luto,
maldigo los estatutos
del tiempo con sus bochornos,
cuánto será mi dolor.
Maldigo la cordillera
de los Andes y de la Costa,
maldigo, señor, la angosta
y larga faja de tierra,
también la paz y la guerra,
lo franco y lo veleidoso,
maldigo lo perfumoso
porque mi anhelo está muerto,
maldigo todo lo cierto
y lo falso con lo dudoso,
cuánto será mi dolor.
Maldigo la primavera
con sus jardines en flor
y del otoño el color
yo lo maldigo de veras;
a la nube pasajera
la maldigo tanto y tanto
porque me asiste un quebranto,
maldigo el invierno entero
con el verano embustero,
maldigo profano y santo,
cuánto será mi dolor.
Maldigo la solitaria
figura de la bandera,
maldigo cualquier emblema,
la Venus y la Araucaria,
el trino de la canaria,
el cosmos y sus planetas,
la tierra y todas sus grietas
porque me aqueja un pesar,
140
maldigo del ancho mar
sus puertos y sus caletas,
cuánto será mi dolor.
Maldigo luna y paisaje
los valles y los desiertos,
maldigo muerto por muerto
y el vivo de rey a paje,
al ave con su plumaje
yo la maldigo a porfía,
las aulas, las sacristías
porque me aflige un dolor,
maldigo el vocablo amor
con toda su porquería,
cuánto será mi dolor.
Maldigo por fin lo blanco,
lo negro con lo amarillo,
obispos y monaguillos,
ministros y predicandos
yo los maldigo llorando;
lo libre y lo prisionero,
lo dulce y lo pendenciero
le pongo mi maldición
en griego y en español
por culpa de un traicionero,
cuánto será mi dolor.
Mazúrquica modérnica
Me han preguntádico varias persónicas
si pelogrósicas para las másicas
son las canciónicas agitadóricas
ay que pregúntica más infantílica
sólo un peñúflico la formulárica
pa’ mis adéntricos yo comentárica.
Le he contestádico yo al preguntónico
cuando la guática pide comídica
pone al cristiánico firme y guerrérico
por sus poróticos y sus cebóllicas
no hay regiméntico que los deténguica
si tienen hámbrica los populáricos.
Preguntandónicos partidirísticos
disimuládicos y muy malúlicos
son peligrósicos más que los vérsicos
más que las huélguicas y los desfílicos,
bajito cuérnica firman papélicos
lavan sus mánicos como piláticos.
Caballeríticos almidonádicos
almidonádicos mini ni ni ni ni...
le echan carbônico al inocéntico
141
arrellenádicos en los sillónicos
cuentan los muérticos de los encuéntricos
como frivólicos y bataclánicos.
Varias matáncicas tiene la histórica
en sus pagínicas bien imprentádicas
para montárlicas no hicieron fáltica
las refalósicas revoluciónicas
el juraméntico jamás cumplídico
es el causántico del desconténtico
ni los obréricos ni los paquíticos
tiene la cúlpica señor fiscálico.
Lo que yo cántico es una respuéstica
a una pregúntica de unos graciósicos
y más no cántico porque no quiérico
tengo flojérica en los zapáticos,
en los cabéllicos, en el vestídico,
en los riñónicos y en el corpíñico.
Arauco tiene una pena
Arauco tiene una pena
que no la puedo callar,
son injusticias de siglos
que todos ven aplicar,
nadie le ha puesto remedio
pudiéndolo remediar.
Levántate, Huenchullán.
Un día llega de lejos
Huescufe conquistador,
buscando montañas de oro,
que el indio nunca buscó,
al indio le basta el oro
que le relumbra del sol.
Levántate, Curimón.
Entonces corre la sangre,
no sabe el indio que hacer,
le van a quitar su tierra,
la tiene que defender,
el indio se cae muerto,
y el afuerino de pie.
Levántate, Manquilef.
Adónde se fue Lautaro
perdido en el cielo azul,
y el alma de Galvarino
se la llevó el viento Sur,
por eso pasan llorando
los cueros de su cultrún.
Levántate, pues, Calful.
142
Del año mil cuatrocientos
que el indio afligido está,
a la sombra de su ruca
lo pueden ver lloriquear,
totoral de cinco siglos
nunca se habrá de secar.
Levántate, Callupán.
Arauco tiene una pena
más negra que su chamal,
ya no son los españoles
los que los hacen llorar,
hoy son los propios chilenos
los que les quitan su pan.
Levántate, Pailahuán.
Ya rugen las votaciones,
se escuchan por no dejar,
pero el quejido del indio
¿por qué no se escuchará?
Aunque resuene en la tumba
la voz de Caupolicán.
Levántate, Huenchullán.
Arriba quemando El sol
Cuando fui para la pampa
llevaba mi corazón
contento como un chirihue
pero allá se me murió
primero perdí las plumas
y luego perdi la voz.
Y arriba quemando el sol.
Cuando vide los mineros
dentro de su habitación
me dije mejor habita
en su concha el caracol
o a la sombra de las leyes
el refinado ladrón.
Y arriba quemando el sol
Las hileras de casuchas
frente a frente si señor
las hileras de mujeres
frente al único pilón
cada una con su balde
con su cara de aflicción.
Y arriba quemando el sol.
Paso por un pueblo muerto
se me nubla el corazón
aunque donde habita gente
la muerte es mucho mayor
143
enterraron la justicia
enterraron la razón.
Y arriba quemando el sol.
Si alguien dice que yo sueño
cuentos de ponderación
digo que esto pasa en Chuqui
pero em Santa Juana es peor.
El minero ya no sabe
lo que vale su dolor.
Y arriba quemando el sol.
Me volví para Santiago
sin comprender el color
con que pintan la noticia
cuando el pobre dice no.
abajo la noche oscura
oro, salitre y carbón.
Y arriba quemando el sol.
Según el favor del viento
Según el favor del viento
va navegando el leñero,
atrás quedaron las rucas
para dentrar en el puerto,
corra Sur o corra Norte
la barquichuela gimiendo, llorando estoy,
según el favor del viento, me voy, me voy.
Del norte viene el pellín
que colorea en cubierta,
habrán de venderlo en Castro
aunque la lluvia esté abierta,
o queme el sol de lo alto
como un infierno sin puerta, llorando estoy,
o la mar está revuelta, me voy, me voy
En un rincón de la barca
está hirviendo la tetera,
a un lado pelando papas
las manos de alguna isleña,
será la madre del indio,
la hermana o la compañera, llorando estoy,
navegan lunas enteras, me voy, me voy.
Chupando su matecito
o bien su pescado seco,
acucurrado el su lancha
va meditando el isleño,
no sabe que hay outro mundo
de raso y de terciopelo, llorando estoy,
que se burla el invierno, me voy, me voy.
144
No es vida la del chilote,
no tiene letra ni pleito,
tamango llevan sus pies,
milcao y ají su cuerpo,
pellín para calentarse,
del frío de los gobiernos, llorando estoy,
que le quebrantan, los huesos, me voy, me voy.
Despierte el hombre despierte,
despierte por un momento,
despierte toda la patria
antes que se abran los cielos
y venga el trueno furioso
con el clarín de San Pedro, llorando estoy,
y barra los ministerios, me voy, me voy.
De negro van los chilotes
más que por fuera, por dentro,
con su plato de esperanza
y su frazada de cielo,
pidiéndole a la montaña
su pan amargo centeno, llorando estoy,
Según el favor del viento, me voy, me voy.
Quisiera morir cantando
sobre de un barco leñero
y cultivar en sus aguas
un libro más justiciero,
con letra de oro que digan
no hay padre para el isleño, llorando estoy,
ni viento para su velero, me voy, me voy.
Gracias a la vida
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me dio dos luceros que cuando los abro
perfecto distingo lo negro del blanco
y en el alto cielo su fondo estrellado
y en las multitudes al hombre que yo amo.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado el oído que en todo su ancho
graba noche y día grillos y canarios;
martillos, turbinas, ladrillos, chubascos,
y la voz tan tierna de mi bienamado.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado el sonido y el abecedário
con él las palabras que pienso y declaro
madre, amigo, hermano, y luz alumbrando
la ruta del alma del que estoy amando.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado la marcha de mis pies cansados;
145
con ellos anduve ciudades y charcos,
playas y desiertos, montañas y llanos,
y la casa tuya, tu calle, tu patio.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me dio el corazón que agita su marco
cuando miro el fruto del cerebro humano;
cuando miro el bueno tan lejos del malo
cuando miro el fondo de tus ojos claros.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto,
así yo distingo dicha de quebranto,
los dos materiales que forman mi canto
y el canto de ustedes que es el mismo canto,
y el canto de todos que es mi proprio canto.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Volver a los diecisiete
Volver a los diecisiete
después de vivir un siglo
es como decifrar signos
sin ser sabio competente
volver a ser de repente
tan frágil como un segundo
volver a sentir profundo
como un niño frente a Dios
eso es lo que siento yo
en este instante fecundo.
Mi paso retrocedido
cuando el de ustedes avanza
el arco de las alianzas
ha penetrado en mi nido
con todo su colorido
se ha paseado por mis venas
y hasta la dura cadena
con que nos ata el destino
es como un diamante fino
que alumbra mi alma serena.
Estribillo:
Se va enredando, enredando
como en el muro la hiedra
y va brotando, brotando
como el musguito en la piedra
ay sí sí sí.
Lo que puede el sentimiento
no lo ha podido el saber
ní el más claro proceder
ní el más ancho pensamiento
todo lo cambia al momento
146
cual mago condescendiente
nos aleja dulcemente
de rencores y violencias
sólo el amor con su ciencia
nos vuelve tan inocentes.
El amor es torbellino
de pureza original
hasta el feroz animal
susurra su dulce trino
detiene a los peregrinos
libera a los prisioneros
el amor con sus esmeros
al viejo lo vuelve niño
y al malo sólo el cariño
lo vuelve puro y sincero.
De par en par la ventana
se abrió como por encanto
entró en amor con su manto
como una tibia mañana
al son de su bella diana
hizo brotar el jazmín
volando cual serafín
al cielo le puso aretes
mil años en diecisiete
lo convirtió en querubín.
Al centro de la injusticia
Chile limita al norte con el Perú
y con el Cabo de Hornos limita al sur,
se eleva en el oriente la cordillera
y en el oeste luce la costanera.
Al medio están los valles con sus verdores
donde se muitiplican los pobladores,
cada familia tiene muchos chiquillos
con su miséria viven en conventillos.
Claro que algunos viven acomodados,
pero eso con la sangre del degollado.
delante del escudo más arrogante
la agricultura tiene su interrogante.
La papa nos la venden naciones varias
cuando del sur de Chile es originaria.
delante del emblema de tres colores
la minería tiene muchos bemoles.
El minero produce buenos dineros,
pero para el bolsillo del extranjero,
exuberante industria donde laboran
por unos cuantos reales muchas señoras.
147
Y así tiene que hacerlo porque el marido
la paga no le alcanza pal mes corrido.
Pa’ no sentir la aguja de este dolor
en la noche estrellada dejo mi voz.
Linda se ve la patria señor turista,
pero no le han mostrado las callampitas.
Mientras gastan millones en un momento,
de hambre se muere gente que es un portento.
Mucho dinero en parques municipales
y la miseria es grande en los hospitales.
al medio de la Alameda de las Delicias,
Chile limita al centro con la injusticia.
Ayúdame Valentina
Qué vamos a hacer con tantos
y tantos predicadores
unos se valen de libros
otros de bellas razones
algunos de cuentos varios
milagros y apariciones
y algotros de la presencia
de esqueletos y escorpiones
mamita mía.
Qué vamos a hacer con tanta
plegaría sobre nosotros
que alega en todas las lenguas
de gloria de esto y del outro
de infiernos y paraísos
de limbos y purgatorios
edenes de vida eterna
arcángeles y demonios
mamita mía.
Qué vamos a hacer con tanto
tratado del alto cielo
ayúdame Valentina
ya que tú volaste lejos
dime de una vez por todas
que arriba no hay tal mansión
mañana la ha de fundar
el hombre con su razón
Mamita mía.
Qué vamos a hacer con tanta
mentira desparramada
Valentina, Valentina
rompamos la telaraña
señores bajo la tierra
la muerte queda sellada
148
y a todo cuerpo en silencio
el tiempo lo vuelve nada
mamita mía.
Me gustan los estudiantes
¡Que vivan los estudiantes,
jardín de las alegrías!
son aves que no se asustan
de ánimas ni policías
y no le asustan las balas
ni el ladrar de la jauría.
Caramba y zamba la cosa
¡que viva la astronomía!
¡Que vivan los estudiantes
que rugen como los vientos
cuando les meten al oído
sotanas o regimientos!
Pajaritos libertarios,
igual que los elementos.
Caramba y zamba la cosa
¡vivan los experimentos!
Me gustan los estudiantes
porque son la levadura
del pan que saldrá del horno
con toda su sabrosura,
para la boca del pobre
que come con amargura.
Caramba y zamba la cosa
¡viva la literatura!
Me gustan los estudiantes
porque levantan el pecho
cuando les dicen harina
sabiéndose que es afrecho,
y no hacen el sordomudo
cuando se presenta el hecho.
Caramba y zamba la cosa
¡el código del derecho!
Me gustan los estudiantes
que marchan sobre las ruínas.
con las banderas en alto
va toda la estudiantina.
son químicos y doctores,
cirurjanos y dentistas.
Caramba y zamba la cosa
¡viva los especialistas!
Me gustan los estudiantes
que van al laboratorio,
descubren lo que se esconde
149
adentro del confesorio.
ya tiene el hombre un carrito
que llegó hasta el purgatorio.
Caramba y zamba la cosa
¡los libros explicatorios!
Me gustan los estudiantes
que con muy clara elocuencia
a la bolsa negra sacra
le bajó las indulgencias.
Porque, hasta cuando nos dura
senores la penitencia.
Caramba y zamba la cosa
¡que viva toda la ciencia!
Violeta ausente
¿Por que me vine de Chile
tan bien que yo estaba Allá?
Ahora ando en tierras extrañas,
ay, cantando pero apenada.
Tengo en mi pecho una espina
que me clava sin cesar
en mi corazón que sufre,
ay, por su tierra chilena.
Quiero bailar cueca,
quiero tomar chicha,
ir al mercado
y comprarme un pequén.
Ir a Matucana
y pasear por la quinta
y a Santa Lucía
contigo mi bien.
Antes de salir de Chile
yo no supe comprender
lo que vale ser chilena.
ay, ahora si que lo sé.
Igual que lloran mis ojos,
al cantar esta canción,
ay, asi llora mi guitarra
penosamente el bordón.
Que lejos está mi Chile
lejos mi media mitad,
que lejos mis ocho hermanos,
ay, mi comadre y mi mamá.
Parece que hiciera un siglo
que de Chile no sé nada,
por eso escribo esta carta,
150
ay,la mando de aqui pa`allá.
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