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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS - CEJURPS.
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA
CPCJ
A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS: UMA
ANÁLISE A PARTIR DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT
MARCELO PAULO WACHELESKI
Itajaí [SC], 23 de agosto de 2007.
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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA
– PROPPEC
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA
CPCJ
PROGRAMA DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO
A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS:
UMA ANÁLISE A PARTIR DO PENSAMENTO DE HANNAH
ARENDT
MARCELO PAULO WACHELESKI
Dissertação submetida à Universidade
do Vale do Itajaí – UNIVALI como
requisito final à obtenção do título de
Mestre em Ciência Jurídica.
Orientadora: Prof. Dra. Cláudia Rosane Roesler
Itajaí [SC], 23 de agosto de 2007.
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AGRADECIMENTOS
Aos professores do Curso de Pós-Graduação
stricto sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI,
pelos instigantes debates.
À Professora Doutora Cláudia Rosane Roesler,
pela amizade e por apresentar uma nova maneira
de enfrentar desafios.
Aos meus colegas de Curso de Mestrado em
Ciência Jurídica, pelos momentos acadêmicos e
de bom convívio que compartilhamos e pela
amizade que colhi.
Ao amigo Lothar Katzwinkel Junior, pelo incentivo
e pelas horas infindáveis de conversa sobre o
trabalho .
Por fim, para não correr o risco de cometer uma
injustiça pela ausência de indicação de algum dos
inúmeros colaboradores, registro um
agradecimento geral aos bons amigos que me
prestaram grande auxílio na obtenção de
materiais e boas obras para leitura e pesquisa,
bem assim na formulação de críticas pertinentes,
sempre adequadamente acolhidas.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho:
Aos meus familiares, por serem sempre os
responsáveis pela concretização desses projetos.
À minha sobrinha, Isabelli, que veio ao mundo no
dia em que este trabalho se encerrou. À você,
esperança de que a natalidade seja fundadora de
novos tempos.
Aos meus amigos, que em todos os momentos
possíveis me ensinaram a beleza da simplicidade
de viver, e que sem ela, perdemos a nossa
própria felicidade.
Por fim, à família ISAHMEC, os que estão e aos
que passaram por ela, que conclamo a assinarem
o que escrevo como co-responsáveis – À vocês
que me ensinaram a desconfiar das leis e
acreditar nas pessoas, superar os sistemas e
códigos e construir uma ponte até o infinito
criativo que se constrói no próximo.
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo
aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do
Vale do Itajaí UNIVALI, a coordenação do Curso de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Ciência Jurídica CPCJ/UNIVALI, a Banca Examinadora e a
Orientadora de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí [SC], 23 de agosto de 2007.
MARCELO PAULO WACHELESKI
Mestrando
PÁGINA DE APROVAÇÃO
Esta Dissertação foi julgada APTA para obtenção do título de Mestre em Ciência
Jurídica e aprovada, em sua forma final, pela Coordenação do Curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI.
Itajaí [SC], 23 de agosto de 2007.
Professora Doutora CLÁUDIA ROSANE ROESLER
Orientadora
Professor Doutor PAULO MARCIO CRUZ
Coordenador Geral/CPCJ
Apresentada perante a Banca Examinadora composta pelos Professores
Professora Doutora CLÁUDIA ROSANE ROESLER
Orientadora e Presidente da Banca
[Professor Título Nome]
Universidade... – Membro
[Professor Título Nome]
Universidade... – Membro
[Professor Título Nome]
Coordenação da Monografia
ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS
UNIVALI Universidade do Vale do Itajaí
LICC Lei de Introdução do Código Civil
VS Versos
PUCSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
CR Constituição da República
EXP.
Expediente (em espanhol quer dizer “processo”)
STF Supremo Tribunal Federal
MC ADI
Medida Cautelar em Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade
BverfGE
Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional
Alemão)
SUMÁRIO
RESUMO........................................................................................... IX
ABSTRACT....................................................................................... IX
INTRODUÇÃO ..................................................................................11
CAPÍTULO 1 .....................................................................................15
DA FORMAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE LIBERDADE
AOS DIREITOS SOCIAIS-ECONÔMICOS: A NECESSIDADE DE
UMA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA.....................................................15
1.1 OS DIREITOS HUMANOS E A POSITIVAÇÃOS DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS CLÁSSICOS............................................................................15
1.2 CRISE DO ESTADO NACIONAL E EMERGÊNCIA DO ESTADO
CONSTITUCIONAL - DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS.......23
1.3 NOVOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS E AS RELAÇÕES SÓCIO-
POLÍTICAS: NEOCONSTITUCIONALISMO, POLÍTICA E DIREITO. .................30
1.4 O CARÁTER POLÍTICO DA CONSTITUIÇÃO...............................................37
CAPÍTULO 2 ....................................................................................41
A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS E AS
NOVAS DIMENSÕES DAS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA.........41
2.1 ENTRE O ESTADO E A POLÍTICA: A OPÇÃO POR HANNAH ARENDT....41
2.2 HANNAH ARENDT: DOS ANTIGOS À CRITICA DE MARX, NIETZSCHE E
KIERKEGAARD. ..................................................................................................43
2.3 A ESFERA PÚBLICA E O ESPAÇO DA POLÍTICA ......................................56
2.4 A ESFERA PRIVADA E O ESPAÇO DA ECONOMIA...................................65
2.5 A ERA MODERNA E O SOCIAL....................................................................68
CAPÍTULO 3 ....................................................................................80
A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA .................................................80
3.1 POLÍTICA E JUDICIÁRIO: AS NOVAS FACES DA ESFERA PÚBLICA......80
3.2 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA: ATIVISMO JUDICIAL, A JUDICIALIZAÇÃO
DA POLÍTICA E OS TRIBUNAIS CONTEMPORÂNEOS. ...................................81
3.3 OS DEBATES SUBSTANCIALISTA E PROCEDIMENTALISTA - GARAPON,
DWORKIN, HABERMAS E CAPPELLETTI .........................................................89
CAPÍTULO 4 ...................................................................................118
A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS ..........................118
4.1 A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS SOB A ÓTICA DA TEORIA
DE HANNAH ARENDT.......................................................................................118
4.2 JUDICIÁRIO INTERVENTIVO, ACESSO À JUSTIÇA E A JUDICIALIZAÇÃO
DAS RELAÇÕES SOCIAIS................................................................................119
4.3 A POTENCIALIZAÇÃO DO CONFLITO E AS NOVAS FACES DO PODER
JUDICIÁRIO. ......................................................................................................139
4.4 DIREITOS FUNDAMENTAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A
IMPLEMENTAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO ..............................................151
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................167
REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS .........................................172
RESUMO
Esta dissertação, numa perspectiva crítica pretende analisar o
fenômeno da judicialização das relações cio-políticas. Sua teoria de base é a
construção teórica de Hannah Arendt na problematização da formação e crise das
esferas pública e privada, que geraram a formação da esfera social.Seu objetivo
geral é analisar criticamente as causas e conseqüências da judicialização da
política e das relações sociais. O método empregado na investigação foi o
dedutivo, ou seja, estabelecida uma formulação geral, centrou-se a pesquisa nas
partes do fenômeno com o fito de sustentar aquela formulação. As fontes
adotadas, no geral, o as primárias. A dissertação apresenta-se por meio de
quatro capítulos: (1) aborda as transformações do paradigma estatal de produção
e aplicação do direito com o constitucionalismo; (2) a conceituação das esferas
pública e privada e o surgimento do social na filosofia de Hannah Arendt (3) a
judicialização das relações políticas e (4) a judicialização das relações sociais.
Após isso, os resultados são sumariados nas Considerações Finais, na qual se
assinala a judicialização das relações sociais e políticas como resultado das
transformações operadas nas esferas pública e privada que resultaram no
surgimento do social, bem como a postura de um judiciário intervencionista como
tentativa de concretização das promessas democráticas. Apesar de especificadas
ao longo do relato, algumas categorias jurídicas são aqui destacadas: esfera
pública, privada e social; constitucionalismo; judicialização das relações sociais e
políticas. Finalmente, com o compromisso de se manter o máximo fiel às idéias,
no relato da pesquisa, adotou-se citações diretas, paráfrases e citações mistas,
sempre tomando o cuidado de indicar as fontes de pesquisa. O trabalho está
vinculado ao grupo de pesquisas Políticas Públicas, Jurisdição e Argumentação,
da linha de pesquisa em Produção e Aplicação do Direito, área de concentração
Fundamentos do Direito Positivo, do Programa de Pós-Graduação strictu sensu,
da Universidade do Vale do Itajaí.
x
ABSTRACT
This critical dissertation wants to analyze the phenomenon of
the law regulamentation in the social and political relationships. Its theory has as a
base the theorist construction of Hannah Arent which talks about the problems
regarding the crises in the private and public environment, those generated the
social environment. Its general goal, is to make a critic analyses about the causes
and consequences of the law regulamentation in the politics and social
relationships. The method that is applied in the investigation is the deductive one,
that means, once a general formula is made, the search will be focused on the
phenomenon’s parts with the purpose of sustaining that formulation. The sources
are, in general, primaries. The text is divided into four chapters: (1) Talks about the
transformation in the state way of producing and applying the law with the
constitutionalism; (2) the definition of the public and private environment and the
arising of the social philosophy of Hannah Arendt (3) The law regulamentation of
the public relations and (4) the law regulamentation of the social relations. After
this, the results are summed up in the Final Considerations, in which the law
regulamentation of the social and political relations is pointed out as a result of the
changes made in the private and public environment from which come the social
changes, as well as the intervening judicial posture as a try to make concrete the
democratic promises. In spite of being specified through the text, some juridical
categories are highlighted here: public, private and social environment;
consticionalism; law regulamentation of the social and political relationships.
Finally, with the commitment to keep it faithful to the ideas in the text, direct
quotations, paraphrases and mixed quotations were used always caring for
indicating the sources. The work is linked to the searching group called Public
Politics, Jurisdiction and Argumentation in the line of search called Production and
applying of the law, concentration area bases of the positive law, the post-
graduation program called “strictu sensu” from the “Universidade do Vale do
Itajaí”.
INTRODUÇÃO
A presente Dissertação tem como objeto
1
fazer um estudo
sobre o A Judicialização das Relações Sociais e Políticas como fenômeno
iniciado com o Estado Social e impulsionado pela Constituição Federal de
1988, com a fixação de metas para o Estado na efetivação de direitos sociais
e econômicos. Os limites da pesquisa estão condicionados às transformações da
compreensão do direito com o início do Estado social e o ingresso da atividade
estatal em ações positivas expressadas por políticas públicas compensatórias,
que ganharam maior instrumentalidade com a presença desses direitos sociais e
econômicos no texto da Carta da República de 1988, trazendo a possibilidade que
o Poder Judiciário intervenha diretamente na atividade do Executivo com vistas a
garantir eficácia às medidas programáticas. A relevância que justifica o interesse
pelo tema, é a demonstração das transformações ocorridas com o Estado
Moderno, na compreensão das esferas tradicionalmente públicas e privadas,
revertendo, ambas, para o que se denominou de social, onde não clareza dos
valores que devem ser expostos ao debate público e aqueles que devem ser
reservados à privacidade do lar. É notória, por exemplo, a crescente invasão do
Estado, com medidas regulatórias e interventivas na educação, no trabalho e na
economia, espaços tradicionalmente livres da intervenção impositiva do Poder
Judiciário, que agora é chamado para garantir os objetivos e valores fixados no
texto constitucional. Na atualidade, ainda que se reconheça a necessidade de
transformação do direito positivo meramente formal para garantia de direitos
substanciais almejados pela Constituição, e mesmo, que se reconheça os fatores
positivos que autorizam uma magistratura mais ativa e responsável pela
concretização dos direitos fundamentais sociais, é de se alertar para a possível
clientelização do cidadão debaixo de um Estado provedor e de um Poder
Judiciário garantidor das promessas o cumpridas pela democracia imatura do
Brasil. Por fim, visa o trabalho, mais do que apresentar uma voz unívoca do
fenômeno da judicialização das relações cio-políticas, expor as vantagens e
1
PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica: idéias e ferramentas úteis para o
pesquisador do Direito. 8 ed. rev. Florianópolis: OAB/SC Editora- co-edição OAB Editora, 2003,
especialmente a p. 87 e 179-181.
12
vicissitudes de um novo projeto democrático centrado no Poder Judiciário, como
instância mediadora dos valores concretizados na Constituição Federal de 1988.
O seu objetivo institucional é a obtenção do Título de Mestre
em Ciência Jurídica pelo Programa de Mestrado em Ciência Jurídica do Curso de
Pós- Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica- CPCJ/UNIVALI.
O seu objetivo geral é analisar a Judicialização das Relações
Socais e Políticas como fenômeno resultante das transformações operadas na
concepção das esferas pública e privada, principalmente, após o declínio do
Estado Nacional, de cunho liberal, e a emergência do Estado Social, vinculado a
medidas compensatórias, processo potencializado com a Constituição Federal de
1988, que positivou diversos direitos sociais e econômicos que não encontraram
resposta na capacidade do Estado de realizá-los.
Os seus objetivos específicos são traçar os conceitos
operacionais de cada categoria chave, de tal sorte a possibilitar entender o
significado de suas conjugações; aprofundar conhecimento quanto aos modelos
procedimentalista e substancialista, capitaneados por Habermas, Dworkin,
Garapon e Cappelletti quanto à conveniência de um Poder Judiciário com maior
poder interventivo nas esferas políticas e sociais. O estudo das transformações
nas esferas públicas e privadas, tomando como norte a obra de Hannah Arendt,
especialmente no que se refere às conseqüências dessa mudança de paradigma,
para o que o homem definiu na modernidade, como valores a serem protegidos
na privacidade e no espaço público, e mais do que isso, se ainda é possível
discutir as esfera políticas do Estado a partir desses critérios. É também objetivo,
analisar a explosividade do conflito social no Poder Judiciário e a possibilidade de
que ele possa interferir em políticas públicas, para garantir as normas
programáticas presentes no texto da Constituição Federal de 1988.
Para tanto, principia–se tratando, no Primeiro Capítulo, do
Modelo de Estado Jurídico Positivista construído sob a base do legalismo, sua
crise e superação pelo modelo de Estado constitucional, com a superação das
regras legais pelos princípios constitucionais de forte carga valorativa e,
finalmente, a politização das Cartas constitucionais que surgiram desse período.
13
Para tanto, são analisados categorias e conceitos operacionais de Estado
Nacional, Estado Constitucional, Estado Social, Constitucionalismo e Politicidade,
Normas Jurídicas, Regras Jurídicas e Princípios Jurídicos. Finaliza-se, com o
reconhecimento das transformações dos textos normativos com a consolidação
dos Estados constitucionais democráticos, firmados em princípios e direitos
sociais e econômicos.
O Segundo Capítulo é reservado para estabelecer o cerne das
transformações dos paradigmas das esferas públicas e privadas, e ainda, o
surgimento do social como nova realidade produzida pela modernidade, onde não
se faz possível a identificação do que pertence a privacidade e aquilo que deve
ser exposto ao público. Trata-se da construção da teoria de base, com supedâneo
na obra de Hannah Arendt, que possibilitará lançar luzes sobre o fenômeno da
judicialização das relações sociais e políticas, enquanto preocupação pública com
problemas privados e a perda do interesse pelo destino comum da política.
No Terceiro Capítulo, busca-se definir, problematizar e
pesquisar o processo de judicialização das relações políticas, discutindo o
ativismo judicial da magistratura, consciente de sua responsabilidade de
concretização dos direitos fundamentais de liberdade, sociais e econômicos,
firmados no texto constitucional, que faz emergir os tribunais contemporâneos
como novos garantes das promessas democráticas; discute-se, ainda, as
principais teorias surgidas sobre o tema: os eixos procedimentalistas e
substantivistas, ligados às teorias de Garapon, Habermas, Dworkin e Cappelletti.
Por fim, o Quarto Capítulo debruça-se na judicialização das
relações sociais, enquanto fenômeno justaposto ao processo da
redemocratização do país, quando o Poder Judiciário utilizou-se da bandeira do
acesso à justiça para firmar sua presença institucional legitima como órgão de
controle e resolução dos conflitos sociais. Nesse capítulo, discute-se a fragilidade
estrutural e institucional do Poder Judiciário para atender a explosividade de
demandas judiciais; a potencialização do conflito, com a geração de normas
criminalizadoras de novos tipos penais, e por fim, a presença do Poder Judiciário
14
como órgão interventivo em políticas blicas estatais, previstas na Constituição
Federal de 1988 e não consolidadas pelos Estados burocráticos.
A presente dissertação se encerra com as Considerações
Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da
estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a Judicialização
das Relações Sociais e Políticas.
Quanto à Metodologia
2
empregada, registra-se que, na Fase
de Investigação e de Tratamento de Dados foi utilizado o Método
3
Dedutivo, e o
Relatório dos Resultados expressos na presente Dissertação é composto na base
lógica Dedutiva
4
. Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas
do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica
e Jurisprudencial
5
.
O trabalho está vinculado ao grupo de pesquisas Políticas
Públicas, Jurisdição e Argumentação, da linha de pesquisa em Produção e
Aplicação do Direito, área de concentração Fundamentos do Direito Positivo, do
Programa de Pós-Graduação strictu sensu, da Universidade do Vale do Itajaí.
É conveniente ressaltar, enfim, que, seguindo as diretrizes
metodológicas do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica-
CPCJ/UNIVALI , no presente trabalho as categorias fundamentais são grafadas,
sempre, com a letra inicial maiúscula e seus Conceitos Operacionais
apresentados no próprio texto ou em nota de rodapé.
2
COLZANI, Valdir Francisco. Guia para redação do trabalho científico. Curitiba: Editora Juruá,
2001, 233 p., p. 99.
3
Método: “é a forma lógico-comportamento-investigatório na qual se baseia o pesquisador para
buscar os resultados que pretende alcançar. PASOLD, César Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica:
Idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito. 2003 p. 87
4
Sobre os Métodos e Técnicas nas diversas Fases da Pesquisa Científica, vide PASOLD, César
Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica: Idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito. 2003.
p. 99-125.
5
Quanto às Técnicas mencionadas, vide PASOLD, César Luiz. Prática da Pesquisa Jurídica:
Idéias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito, especialmente p. 61-71,31-41, 45-58, e
99-125, nessa ordem.
15
CAPÍTULO 1
DA FORMAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE LIBERDADE
AOS DIREITOS SOCIAIS-ECONÔMICOS: A NECESSIDADE DE
UMA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA
1.1 OS DIREITOS HUMANOS E A POSITIVAÇÃOS DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS CLÁSSICOS
Cabe analisar neste capítulo, aspectos relativos ao
surgimento histórico dos direitos humanos e a sua positivação em direitos
fundamentais clássicos de liberdade. Da mesma forma, discutir a transformação
do paradigma de produção, aplicação e compreensão do direito a partir do
monopólio estatal até o paradigma de pós-positivismo e, os debates atuais quanto
à possibilidade de superação do Estado democrático. O estudo requer,
indispensavelmente, a análise da formação do Estado e suas mudanças de
paradigma ao longo da história, isso porque, não se pode ignorar na teoria jurídica
contemporânea, senão a exclusividade, pelo menos o Estado como fonte primária
de produção normativa.
Como afirma Bobbio
6
, a análise da história das instituições e
das doutrinas políticas, constitui importante fonte para o estudo do Estado. Tem
se mostrado, igualmente produtiva, a análise das alterações nos modelos
regulativos ocorridos nos períodos de monopólio da produção legislativa pelo
Estado. “Ao lado da história segue o estudo das leis, que regulam as relações
entre governantes e governados, o conjunto das normas que constituem o direito
público (uma categoria ela própria doutrinária): as principais histórias das
instituições foram histórias do direito [...].
7
6
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. 11 ed., Trad.
Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra. 2004. p. 53
7
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. 2004. p. 54
16
Ao final da Idade Média, e no seu período de transição com
o momento histórico definido como a Renascença a partir do séc. XVIII, é possível
identificar os traços inconfundíveis do Estado Moderno, mormente, de sua
principal característica a soberania. Muito antes, porém, de se afigurar como
expressão da vontade popular, o Estado Moderno veio com o objetivo de
expurgar as diferenças de poder existentes na Idade Média, e para isso,
representava, em seu início, a vontade do monarca, soberano, príncipe, ou seja, a
maior autoridade temporal na terra. A base teórica da construção do Estado
encontra-se, primeiramente, na obra de Maquiavel
8
, que o identificava com a
figura do príncipe e seu vínculo com a res publica.
9
Esse Estado Moderno pode
ser dividido em duas fases: a primeira, ligada à Monarquia e à doutrina da Igreja,
sendo seus principais teóricos Bodin e Maquiavel; a segunda fase, fundada de
início na obra de Hobbes, secularizou a legitimidade do Estado. Se antes, Deus
garantia e justificava a aplicação da lei, agora, a destruição dos fundamentos
metafísicos da legitimidade do poder, impõe a necessidade de um fundamento
racional para o exercício da força trata-se de erigir o princípio da segurança
jurídica nas relações sociais. O fundamento da teoria hobbesiana é a pré-
existência de um estado de natureza ao estado em sociedade. No mesmo sentido
que Rousseau
10
e Locke, segundo a teoria de Hobbes
11
, a partir da formação do
8
Segundo a Filosofia Política dominante, a expressão “Estado” foi criada por Maquiavel em sua
obra “O Príncipe”, porém, seu conceito somente se assentou mais tarde com elementos da seara
jurídica.
9
“A idéia de grandeza, majestade e sacralidade da soberania coroava a cabeça do príncipe e
levantava as colunas de sustentação do Estado Moderno, que era Estado da soberania ou do
soberano, antes de ser Estado da Nação ou do povo.” BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 5
ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 30
10
Rousseau, também contratualista, tenta formular uma teoria em que a natureza humana possa
ser transformada em leis civis, sem,contudo, trazer conflito com o estado de natureza. Essa
mudança de paradigma somente é possível com o uso da razão. “Mas é que, aqui, natural é
sinônimo de racional. Até a confusão tem sua explicação. Se a sociedade for obra humana, ela é
feita com forças naturais; ora, ela será natural, em certo sentido, se utilizar essas forças segundo
sua natureza, sem violentá-las, se a ação do homem consistir em combinar e em desenvolver
propriedades que, sem sua intervenção, teriam ficado latentes, mas que não deixam de ser dadas
nas coisas.” DURKHEIM, Emile. O contrato social e a constituição do corpo político. In QUIRINO,
Célia Galvão; SADEK, Maria Teresa; SOUZA, R. de. O pensamento político clássico: Maquiavel,
Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São Paulo: Queiroz, 1992. p. 353
11
Todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante eu não sei o que o outro deseja, e por
isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais prudente, mais razoável.
Como ele também não sabe o que quero, também é forçado a supor o que farei. Dessas
suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou
para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque possível: assim, a guerra se generaliza
entre os homens. Por isso, se não um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra
os outros é a atitude mais racional que eu posso adotar preciso enfatizar esse ponto, para
17
Estado, o homem trocava sua liberdade pela certeza de sua conservação. A
inovação trazida por Hobbes, em relação aos contratualistas antecedentes, é a
fusão em sua teoria entre o contrato de associação e de submissão: não
distinção entre sociedade e poder (Estado) - o governo existe justamente para
que os homens convivam pacificamente.
12
Todas essas teorias estavam presentes no início do séc.
XVIII, num período em que a Europa encontrava-se dividida pela necessidade de
reconstrução econômica e diante de uma organização social em desequilíbrio e
com grave crise política. Persistiam fortes divisões na sociedade européia
servos e pessoas livres sendo que essas últimas eram subdividas em três
estamentos sociais (clero, nobreza e plebeus livres em geral). A acentuada
diferenciação de classes culminou, muito mais na França do que no restante da
Europa, na marginalização do terceiro Estado das relações políticas da França,
ocupando-se, unicamente, das relações econômicas.
13
O alijamento do terceiro
estado das relações políticas é descrita por Sieyès, articulador constitucionalista:
O que é o Terceiro Estado? O que tem sido ele, até agora, na ordem
política? Nada [...] O que é preciso para que uma nação subsista e
prospere? Trabalhos particulares e funções públicas [...] Assim, o que é
o Terceiro Estado? Tudo, mas um tudo entravado e oprimido. O que
seria ele sem as ordens de privilégios? Tudo, mas um tudo livre e
florescente.
14
A conturbação social emergia e agregava um grande
número de adeptos à transformação sócio-econômica e exigia, agora, a
transformação da ordem jurídico-política, através do racionalismo
15
que surgia
ninguém pensar o “homem lobo do homem”, em guerra contra todos, é um anormal; suas ações e
cálculos o os únicos racionais, no estado de natureza.”RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o
medo e a esperança. In WEFFORT, Francisco C. (org.) Os clássicos da Política. 1 vol. 10 ed. São
Paulo: Ática, p. 55
12
RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In WEFFORT, Francisco C. (org.) Os
clássicos da Política. p. 63
13
“[...] o terceiro estado ocupar-se-á da vida econômica da sociedade ... Mas quem era
exatamente o terceiro estado? Resposta: era quase toda a população livre, excetuados nobres e
padres, os camponeses, o pequeno e incipiente proletariado urbano, os artesãos [...]” TRINDADE,
José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. São Paulo: Petrópolis, 2002. p. 28
14
SIEYÈS. Joseph Emmanuel. Que é o terceiro estado? 2 ed. Rio de Janeiro: U. Júris, 1988. p. 63
e seguintes.
15
“[...] pode-se dizer que o termo em foco compreende os seguintes significados: o
racionalismo religioso designa algumas correntes protestantes, ou um ponto de vista semelhante
ao de Kant. 2º O racionalismo filosófico designa propriamente a doutrina de Kant (que adotou esse
termo), ou então a corrente metafísica da filosofia moderna, de Descartes a Kant. Em sua
18
como nova ordem da ciência. A transformação vinha sendo anunciada com as
experiências de Copérnico
16
, Galileu Galilei, Newton e Descartes que abalavam
as estruturas da religião católica que sustentava o modelo feudal. O império da
razão encontrava solo fértil diante de tantas descobertas capazes de libertar a
natureza humana das certezas eternas da religião e a superação de suas
dificuldades através da engenhosidade e inteligência humana.
A presença do racionalismo do poder na teoria dos
pensadores - Rousseau, Locke, Hobbes e Montesquieu aliado à razão surgida
da ciência, propõe a mudança de paradigma da produção do direito não mais
decorrente do direito natural ligado à religião -, mas agora, um direito fundado na
natureza humana, em sua razão. “O direito, portanto, poderia ser
descoberto/produzido pelo espírito humano, desde que se procedesse à sua
investigação com os rigores do raciocínio, configurando-se como expressão moral
de possibilidades inalienáveis, universais e eternas do ser humano [...]”.
17
Restava, ainda, superar o modelo vertical de poder da
organização social da sociedade feudal. A idéia de privilégios e de exclusão do
terceiro estado dos relacionamentos políticos não era coerente com a nova ordem
constituída de indivíduos livres e iguais, “[...] cidadãos (não súditos), todos
sujeitos de direitos, submetidos a leis comuns para todos, chamando a nação a
soberania para si, não mais para um monarca detentor de poder absoluto.”
18
Ao
lado das transformações na política e na filosofia, novas áreas de conhecimento
exigiam o status científico a economia política liderada pelos fisiocratas, que
exigiam o afastamento do Estado das relações econômicas que movimentam-se
naturalmente e deveria restringir-se a garante da propriedade e da liberdade
econômica. Apropriando-se e superando a idéia de liberalismo dos fisiocratas, em
significação genérica, pode ser usado para indicar qualquer orientação filosófica que recorra à
razão. Mas, nessa acepção tão vasta, esse termo pode indicar as filosofias mais díspares e carece
de qualquer capacidade de individualização.” ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad.
Alfredo Bosi. São Paulo: Mestre Jou, 1970. p. 822
16
“Copérnico causou sacrossanto estupor ao concluir que a Terra não era o centro do Universo
[...] Galileu Galilei, além de comprovar o heliocentrismo [...] lançou as bases do método científico
[...] Newton revolucionou a física e a matemática. Descartes desenvolveu o método lógico, como
na matemática, para a busca da verdade.” TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos
direitos humanos. 2002. p. 35
17
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. 2002. p. 37
18
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos.2002. p. 38
19
1776, Adam Smith lançava sua obra A Riqueza das nações: investigação sobre
sua natureza e suas causas, o que se torna o manual a ser seguido pelos
burgueses na busca do livre comércio como promessa de “[...] uma ordem social
natural que aumentará rapidamente a riqueza das nações e o bem-estar dos
indivíduos competidores”.
19
Antes da efetivação de uma Constituição, firmou-se o
entendimento entre os deputados quanto à necessidade de formulação de uma
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que viriam a firmar o momento
revolucionário da França. “É considerada o atestado de óbito do Antigo
Regime.”
20
A declaração, com visão claramente jusnaturalista declarou
a igualdade de todos perante a lei, porém, trata-se tão somente de uma
conotação formal da igualdade e não fez ligação com a igualdade social.
Trindade
21
, demonstra a compreensão da ideologia burguesa da Declaração:
Os constituintes deram-se por bem servidos gravando na Declaração de
1789 uma certa noção de liberdade que estava em voga entre os
revolucionários liberais, que não precisava ir além do significado de
garantia formal contra o Estado.
Assim, firmavam-se as garantias de resistência dos
burgueses contra a onipotência do poder estatal garantindo-lhes o direito de
comércio livre.
Em 1789, com as Constituições Francesas da Revolução,
inicia-se o Estado Constitucional, que vem firmar o princípio da liberdade nas
relações sócio-políticas. “Começa então o capítulo da limitação do poder; do
Homem-povo, do Homem-cidadão, do Homem-político, do Homem que faz lei,
que governa, ou se deixa governar, que cria a representação, que toma
consciência da legitimidade, que é poder constituinte e poder constituído.”
22
19
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. 2002. p. 39
20
“Com base num novo projeto (vários anteriores foram desprezados) cujos principais redatores
foram Mirabeau e Sieyés, a declaração começou a ser votada em 20 de agosto e foi aprovada no
dia 26 desse mês, com dezessete artigos.” TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos
direitos humanos. 2002. p. 53
21
TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. 2002. p. 57
22
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 2004. p. 35
20
Ergue-se um Estado com a idéia central de povo, iniciando a consciência da
necessidade do exercício democrático do Poder, e com isso, a construção de
direitos fundamentais. Por fim, com a queda da Bastilha na segunda metade do
séc. XVIII, finda-se a era do Estado Feudal, firmando-se definitivamente o Estado
Moderno, que “[...] simboliza, por derradeiro, a ocasião única em que nasce o
poder do povo e da Nação em sua legitimidade incontrastável.”
23
O ponto crucial a ser notado dentro da idéia inspiradora do
Estado Moderno, é a transição de um Estado absoluto para um Estado
constitucional. Desse momento em diante, exige-se que a nação seja governada
por leis e não mais por homens. A legalidade passa a premissa básica e
inafastável da atuação estatal e é expressada com veemência nos códigos e
legislações.
O Estado Moderno desse momento histórico pode ser
abordado sob enfoques diferentes. Pelo menos dois deles interessam ao presente
estudo. A proposta de Georg Jellinek
24
, no inicio do séc. XX, que propôs a
distinção entre a doutrina sociológica e a doutrina jurídica do Estado. Se por um
lado o Estado era reconhecido como principal órgão de produção jurídica e assim,
do ordenamento jurídico, não se omitia sua importante função, através do direito,
de organização social. Se sua primeira função deveria ser tratada pelos juristas, a
segunda, seria objeto da sociologia como ciência geral, surgida nesta época, e
que englobava a teoria do Estado entre seus objetos de estudo.
25
A distinção proposta por Jellinek, é adotada por Max Weber,
um dos fundadores da sociologia jurídica, que reafirma a necessidade de
distinção entre o ponto de vista jurídico e o sociológico ao se tratar de direito,
ordenamento jurídico ou norma jurídica, acrescendo ainda, que, enquanto o
23
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 2004. p. 36
24
JELLINEK, Georg. Teoria General Del Estado. Cidade do México: FCE, 2002.
25
“Essa distinção tornara-se necessária em seguida à tecnicização do direito público e à
consideração como pessoa jurídica, que dela derivava.”BOBBIO, Norberto. Estado, Governo,
Sociedade: para uma teoria geral da política. 2004. p. 56
21
direito se ocupa da validade ideal das normas, a sociologia se prende a validade
empírica.
26
Esse posicionamento somente se desestrutura com a
afirmação da doutrina do estado puro de direito formulada por Kelsen. Para
Kelsen, o Estado é unitário e como tal, não se dissocia como entidade diversa do
direito, que regula e executa a formação e aplicação das normas jurídicas. Na
teoria kelseniana, o Estado não é uma força por detrás do Estado ou do direito. É
ele, a própria eficácia da ordem jurídica, razão pela qual o poder do Estado tem
caráter normativo. Nessa proposta, Kelsen
27
supera o dualismo entre Estado e
Direito, pois todo Estado teria de ser um Estado de Direito no sentido de que todo
Estado é uma ordem jurídica.
De sua formação no momento histórico indicado, até nossos
dias, importante perceber que o Estado constitucional aparentou-se em duas
fases: o Estado constitucional da separação de Poderes (Estado Liberal), e o
Estado constitucional dos direitos fundamentais (Estado Social).
28
O Estado constitucional da separação dos poderes situa-se
logo após a eclosão da Revolução da Independência Americana e Revolução
Francesa, ocorridas na segunda metade do século XVIII. Enquanto a Revolução
26
Bobbio ao comentar a teoria de Weber, preleciona: “Este tratado torna-se um capítulo da teoria
dos grupos sociais, dos quais uma espécie são os grupos políticos, que por sua vez se tornam
Estados (no sentido de “Estado Moderno”) quando dotados de um aparato administrativo que
avança com sucesso a pretensão de se valer do monopólio da força sobre um determinado
território.”BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. 2004.
p. 57
27
O Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o Direito
possa justificar o Estado que cria este Direito e se lhe submete. E o Direito pode justificar o
Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do Estado, oposta à sua
originária natureza, o poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em qualquer sentido. Assim o Estado
é transformado, de um simples fato de poder, em Estado de Direito que se justifica pelo fato de
fazer direito.” KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.
316
28
Tomamos como referência a classificação histórica apresentada por Bonavides. Contudo, o
Autor divide as fases do Estado constitucional em três períodos, acrescendo, além daqueles
indicados, o Estado constitucional da Democracia participativa (Estado Democrático-Participativo),
pretendendo a efetividade do direito fundamental à democracia, que no entanto, não será objeto
de estudo neste trabalho. Bonavides define o Estado Democrático Participativo, como sendo, o
“[...] o Estado onde se busca levar a cabo, em proveito da cidadania/povo e da cidadania/Nação,
concretamente dimensionadas, os direitos da justiça, mediante um Constitucionalismo de normas
indistintamente designadas como principiais, principais, principiológicas ou de principio.”
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 2004. p. 48
22
Americana fez surgir o espírito Republicano e proporcionou a emancipação de
diversas colônias no continente, a Revolução Francesa disseminou em toda
Europa a idéia de uma constituinte democrática. Foi, sobretudo, com a teoria de
Montesquieu e o texto da Declaração dos Direitos do Homem
29
, que viu-se
inaugurar a fórmula da divisão dos Poderes, e com isso, selou-se a convicção de
que a concentração de poderes deveria ser evitada, e a fórmula perfeita deveria
prever o controle de um poder pelo outro.
À evidência, percebe-se a clara intenção do novo Estado em
garantir as liberdades e os direitos políticos e civis. Essa primeira versão do
Estado constitucional teve claro compromisso com a lei, o digo, a necessidade
de segurança jurídica, com a soberania e a autonomia da vontade, com a
separação, a harmonia e o controle dos poderes, especialmente do governante
por fim, a promessa da emancipação. No governo das leis, inclusive o soberano
deveria a elas se submeter. Assim, o Estado
30
firma-se como monopólio da
produção normativa, firmando o princípio da legalidade como critério para
reconhecimento do direito válido e vigente
31
.
Deve-se observar que as matizes desse Estado
constitucional da separação dos poderes é marcadamente liberal. O poder,
imprescindível para ordenação do Estado, pode, facilmente, se tornar opressor
das liberdades da sociedade. “Na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o
fantasma que atemorizou o individuo. O poder, de que não pode prescindir
29
A Filosofia política, expendida em livros do quilate do Contrato Social de Rousseau ou do
Espírito das Leis de Montesquieu, teve na época sentido altamente subversivo, porquanto,
inspirando a ação revolucionária, traçou a linha-mestra das mutações profundas da sociedade. Foi
sobretudo, o breviário do novo credo, a cartilha por onde rezaram os constituintes de 1791 e 1793,
depois de escreverem, iluminados das lições de tão sábios preceptores, a célebre Declaração dos
Direitos do Homem.” BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 2004. p. 38
30
“El primer modelo es el fruto de la revolución que se produjo com el nacimento del estado
moderno como monopolio de la producción jurídica y con la afirmación del principio de legalidad
como norma de reconocimiento del derecho existente.” FERRAJOLI, Luigi, Positivismo crítico,
derechos y democracia. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/. Acesso em: 10/04/2006.
31
Nesse modelo de Estado, trata-se ainda, os conceitos de validade e vigência, num sentido
puramente formal, conforme se verá mais adiante.
23
ordenamento estatal, aparece, de início, na moderna teoria constitucional como o
maior inimigo da liberdade.”
32
Do ponto de vista institucional, o Estado liberal, e, posteriormente,
democrático, [...], caracterizou-se por um processo de acolhimento e de
regulamentação das várias demandas provenientes da burguesia em
ascensão por uma limitação e uma delimitação do poder tradicional.
Dado que essas demandas foram feitas em nome ou em forma de direito
à resistência ou à revolução, o processo que deu lugar ao Estado liberal
e democrático pode bem ser chamado de processo de
‘constitucionalização’ do direito de resistência e de revolução.
33
A consolidação do Estado constitucional, amparado
fortemente no princípio da legalidade, foi indispensável para garantia das
liberdades perante os poderes públicos. A nova face do Estado, foi a garantia da
nova organização social, com a manutenção de instrumentos de controle das
ações dos governos e governantes.
1.2 CRISE DO ESTADO NACIONAL E EMERGÊNCIA DO ESTADO
CONSTITUCIONAL - DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS
O segundo momento do Estado constitucional é marcado
pelas preocupações com os critérios de justiça que deveriam nortear a atuação
estatal. Com a positivação dos direitos fundamentais de liberdade e autonomia,
definidos como de primeira geração, passa a ser necessária a promoção de
debates sobre a efetivação da justiça, enquanto garantia de direitos sociais e de
desenvolvimento, colocados como direitos de segunda e terceira geração.
O Estado liberal clássico da primeira fase do
constitucionalismo foi alvo de severas críticas, tanto por parte do socialismo
utópico, requerendo a reforma social, como pelo socialismo científico, pleiteando
a extinção do Estado, visto somente como garante dos privilégios burgueses. A
32 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo:Malheiros, 2001. p.
40
33
BOBBIO, Norberto. Política e Direito in Teoria geral da política a filosofia política e as lições
dos clássicos. Org. Michelangelo Bovero. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. 9 reimp. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2000. p. 256
24
partir da segunda década do séc. XX as estruturas do Estado Liberal passam a
desabar com questionamentos que pretendiam dissociar legitimidade e
legalidade. Ora, o Parlamento, representante direto e legítimo do povo, erigia
normas gerais de cunho universal e vinculante
34
, o que gerava a crença da
legitimidade estar na lei. Com a mudança de paradigma e a inserção de novos
paradigmas econômicos, políticos e sociais, começa-se a formatar as linhas do
Estado Social
35
, que busca sua legitimidade não mais na lei, e sim, na
concretização dos direitos sociais garantidos nas cartas constitucionais
mormente expressos como princípios.
Quando prevaleciam por única constante na caracterização do Estado
Moderno os direitos da primeira geração, a lei era tudo. Quando se
inaugurou, porém, a nova idade constitucional dos direitos sociais, como
direitos de segunda geração, a legitimidade – e não a lei – se fez
paradigma dos Estatutos Fundamentais. [...] A legitimidade é o direito
fundamental, o direito fundamental é o princípio, e o princípio é a
Constituição na essência; [...] Ou colocado em outros termos: a
legalidade é a observância das leis e das regras; a legitimidade, a
observância dos valores e dos princípios. [...] A regra define o
comportamento, a conduta, a competência. O princípio define a justiça, a
legitimidade, a constitucionalidade.
36
Na primeira fase do Estado constitucional as decisões
jurídicas e administrativas deveriam corresponder ao texto normativo, assim como
posto, para garantir sua legitimidade. Trata-se, portanto, de um critério de
vigência formal
37
, ou seja, a correspondência da decisão com o conteúdo
normativo é garantia de sua segurança e justiça, independentemente de seu
conteúdo. A partir da constitucionalização do direito dentro do Estado Social, na
segunda fase do constitucionalismo, insere-se um novo critério de verificação da
34
Reflexo do princípio hobbesiano auctoritas, non veritas facit legem.
35
“[...] erro usual de muitos que confundem o Estado social com o Estado socialista, ou com uma
socialização necessariamente esquerdista, da qual venha a ser o prenúncio, o momento
preparatório, a transição iminente. Nada disto. [...] O Estado social representa efetivamente uma
transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. [...] ele conserva sua
adesão à ordem capitalista princípio cardeal a que não renuncia. [...] O Estado social que temos
em vista é o que se acha contido juridicamente no constitucionalismo democrático.” BONAVIDES,
Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 2001. p. 183, 184, 187
36
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 2004. p. 44/45
37
“Según la concepción prevaleciente entre los máximo teóricos del derecho de Kelsen a Hart y
Bobbio la <<validez>> de las normas se identifica, sea cual fuere su contenido, com su
existencia: o sea, com la conformidad com las normas que regulan su producción y que tambíen
pertencem al mismo.” FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Trad. Andrés
Ibáñez y Andréa Greppi. Madrid: Trotta, 2001. p.19
25
validade da lei, ou seja, um critério de vigência substancial
38
que nada mais é do
que a adequação da lei ordinária ao conteúdo positivado no texto constitucional.
Deste momento em diante, todos os poderes estão subordinados à Constituição,
inclusive o Legislativo, na medida em que lhe é imposta uma limitação no direito
de legislar, impedindo qualquer ferimento aos direitos fundamentais.
Portanto, é na segunda metade do século XX, que se criou o
controle de constitucionalidade das leis ordinárias.
39
Esse fato coincide com dois
eventos político-institucionais importantes: a criação de Constituições rígidas e o
surgimento do Estado de bem-estar
40
.
A partir da Revolução Russa de 1917, a burguesia mais
flexível e com a única finalidade de preservar seus privilégios, admite maior
intervenção do Estado nas relações sociais e econômicas, evitando assim, o total
colapso das instituições, do mercado e da política. Com essa mudança de
paradigma, o bem estar passa a ser a prioridade, enquanto anteriormente,
buscava-se a inviolabilidade da propriedade. “Houve uma espécie de substituição
no conceito de liberdade, com a propriedade sendo substituída pelo Bem-Estar
como condição para que o indivíduo fosse livre.”
41
38
En efecto, el sistema de las normas sobre la producción de normas habitualmente
establecido, en nuestros ordenamientos, com rango constitucional – no se compone solo de
normas formales sobre la competencia o sobre los procedimientos de formación de las leyes.
Incluye también normas sustanciales, como el principio de igualdad y los derechos fundamentales,
que de modo diverso limitan y vinculam al poder legislativo excluyendo o imponiéndole
determinados contenidos. Así, una norma por ejemplo, una ley que viola el principio
constitucional de igualdad por más que tenga existência formal o vigência, pude muy bien ser
inválida y como tal suscptible de anulación por contraste con una norma sustancial sobre su
producción.” FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. p.19/20
39
ATIENZA, Manuel; FERRAJOLI, Luigi. Jurisdiccion y argumentación en el Estado constitucional
de derecho. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, 2005. p.88
40
“Estado de Bem-estar é o produto da reforma do modelo clássico de Estado Liberal que
pretende superar as crises de legitimidade que este possa sofrer, sem abandonar sua estrutura
jurídico-política. Caracteriza-se pela união da tradicional garantia das liberdades individuais com o
reconhecimento, como direitos coletivos, de certos serviços sociais que o Estado providencia aos
cidadãos, de modo a proporcionar iguais oportunidades a todos.” CRUZ, Paulo Márcio. Política,
Poder, Ideologia e Estado Contemporâneo. Florianópolis: Diploma Legal, 2001. p. 207
41
CRUZ, Paulo Marcio. Intervenção e regulação do Estado. Disponível em: Intervenção e
regulação do Estado. Disponível em: www.univali.br/cpcj. Acesso em: 20 de fevereiro de 2007,
Acesso em: 20 de fevereiro de 2007.
26
O surgimento desse novo modelo social de Estado, retira o
poder público da passividade e passa a exigir sua atuação direta na promoção da
igualdade de oportunidade de todos no acesso a políticas sociais e econômicas
em contraposição ao modelo vigente fundado no liberalismo ortodoxo.
Com o surgimento do Estado de bem-estar e principalmente
em seu âmbito, do direito do trabalho, vê-se o fim da clássica separação entre o
Estado e a sociedade civil. A partir dele, com a crescente expansão do princípio
democrático, verificou-se uma institucionalização do direito na vida social
rompendo-se com a nítida distinção entre as relações privadas e públicas –
provocando a publicização das relações privadas que passam a ser mediadas por
instituições políticas democráticas ao mesmo tempo em que provocou a
judicialização das relações políticas.
42
Conjuntamente a este fenômeno e até mesmo em
decorrência dele, surgem nesta época as primeiras Constituições rígidas
43
. Dentro
de seu texto inscrevem-se direitos fundamentais que impõem limitações ao direito
do Parlamento de legislar, inserindo direitos que, por serem indispensáveis para a
vida e a liberdade, estão fora do âmbito do decidível
44
. De outra forma, este novo
paradigma constitucional coloca o Poder Judiciário à disposição da sociedade civil
como meio de reparação dos danos e violações em seus direitos. Ademais, as
Constituições contêm princípios que se colocam como meta-regras de conteúdo
axiológico impondo ao Poder Público não só seu respeito, mas também sua
efetivação
45
.
42
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio
de Janeiro: Revan, 1999. p. 16/17
43
Rígida é a constituição somente alterável mediante processos, solenidades e exigências
formais especiais, diferentes e mais difíceis.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 40
44
“Este ámbito de lo no decidible” el qué” no és licito decidir (o decidir) no es sino lo que en
las constituciones democráticas se convino sustrair a la voluntad de la mayoría. En cualquier
convención democrática a dos cosas que se deben sustraer a las decisiones de la mayoria,
porque son condiciones de la vida civil e razones del pacto de convivência: [...] la tutela de los
derechos fundamentales, empezando por la vida y la libertad [...]”.ATIENZA, Manuel; FERRAJOLI,
Luigi. Jurisdiccion y argumentación en el Estado constitucional de derecho. 2005. p. 96
45
Princípios constituem em mandados de otimização, com forte carga valorativa e ética, via de
regra, derivados de opções políticas que os colocam como direção a seguir. A direta ligação entre
princípios e valores é facilmente reconhecida segundo Alexy, “por una parte, de la mima manera
que puede hablarse de una colisón de principios y de una ponderación de principios, puede
27
Os direitos fundamentais de liberdade - negativos, de defesa
constituem-se em impedimentos de ações do Estado. Trata-se do direito de não
ser impedido a determinadas ações; de não ser perturbado em certas
propriedades e situações; e, por fim, a garantia de que o Estado não eliminará
determinadas posições jurídicas de seus titulares.
46
Por outro lado, a constitucionalização de direitos sociais
à sociedade civil o direito a prestações positivas do Estado. Cronologicamente, no
Brasil, a concretização dos direitos sociais está ligada à sua constitucionalização,
ocorrida por movimentos sócio-políticos que se desenvolveram em diversos
países e tiveram suas bases principalmente nas classes trabalhadoras.
Em alguns países, a conquista de direitos sociais foi impulsionada por
revoluções ou movimentos políticos, fundados nas classes trabalhadoras
do campo e das cidades. Um desses eventos foi a Revolução Mexicana
(1910-1917), [...], culminando com a Constituição de 1917, que poderia
rivalizar com a de Weimar em termos de direitos políticos e sociais. [...].
Algo semelhante ocorreu no Brasil, após a vitória do movimento armado
de 1930, que ensejou nos anos seguintes o reconhecimento legal dos
sindicatos (postos, no entanto, sob tutela e controle do Estado), institui
seguros obrigatórios contra a velhice e a invalidez e, a partir de 1940,
salários mínimos para as diferentes regiões do país.
47
De acordo com o modelo de Estado Social, além do governo
regular a economia, devia implementar políticas públicas, desenvolvendo
programas de emprego, saúde e previdência, matérias que dependem de leis
específicas. “Assim como o princípio de justiça social fora infiltrado no direito
privado mediante a criação do Direito do Trabalho, no Welfare State tal princípio
passaria a fazer parte da Administração.”
48
también hablarse de una colisión de valores y de una ponderación de valores; por outra, el
cumplimiento gradual de los princípios tiene su equivalente em la realización gradual de valores.”
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios
Constitucionales, 1993.p. 138
46
“Los derechos del ciudadano frente al Estado a acciones negativas del Estado (derechos de
defensa) pueden dividirse em três grupos. El primero está constituído por derechos a que el
Estado no impida u obstaculice determinadas acciones del titular del derecho; el segundo, por
derechos a que el Estado no afecte determinadas propiedades o situaciones del titular del
derecho; y tercero, por derechos a que el Estado no elimine determinadas posiciones jurídicas del
titular del derecho.” ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. 1999. p. 189
47
SINGER, Paul. A cidadania para todos. In PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.).
História da Cidadania. São Paulo: Ed. Contexto, 2003. p. 240
48
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 17
28
Se a ciência política acolheu o Estado social como
indispensável para efetivação do princípio da igualdade e a infiltração do senso de
justiça no meio social, restou à ciência jurídica o problema de redefinir a atuação
legislativa e judiciária diante da necessidade de criar novas formas de garantias a
tornar eficazes os comandos positivos da Constituição sem, contudo, transformar-
se em acalento paternalista. Altera-se o paradigma anterior do Poder Judiciário
que diante de uma violação de direito individual de liberdade poderia declarar
nulo, por falta de validez diante da norma constitucional, um ato administrativo ou
legislativo, e agora, vê-se diante de lacunas legislativas que deve apontar e criar
instrumentos para impulsionar a ação do parlamento, sob pena de tornar esses
direitos unicamente programáticos.
O primeiro problema teórico encontrado no Estado social é a
inexistência de mecanismos de garantia de sua efetividade como aqueles
existentes no projeto de Estado liberal. De forma mais clara, é possível dessa
análise concluir que as reflexões suscitadas pelos direitos sociais são de ordem
econômica e política e que requerem uma transformação na produção de
garantias e instrumentos jurídicos para evitar um extensivo sobrecarregamento do
poder público que, recorrendo ao welfare pode tornar-se paternalista e clientelista
de prestações.
49
As teorias dogmáticas fundadas no liberalismo econômico,
se subdividem em teoria da vontade-eleição (Windscheid, Austin) e teoria do
interesse-beneficiário (Jhering, Bentham), que vinculam critérios rígidos para
definição da ação estatal perante o indivíduo.
50
A teoria jurídico-constitucional
49
“[...] tanto porque estos derechos, a diferencia de otros, tienen um coste elevado, aunque
seguramente no mayor que el de su tutela em las formas paternalistas, y clientelares de
prestación, como porque, de hecho, a falta de adecuados mecanismos de garantia, su satisfación
quedado confiada en los sistemas de welfare a uma onerosa y compleja mediación política e
burocrática [...] En otras palabras, el Estado social, al no hallar respaldo em modelos teóricos-
juridicos equiparables a los que se encuentam en la base del Estado liberal, se ha desarrollado sin
ningún proyecto garantista, por medio de uma caótica acumulación de leyes, aparatos y prácticas
politico-administrativas.” FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: La ley del más bil. 2004. p.
109/110
50
“Estas teorias, não abdicam, ainda hoje, da liberdade do titular e ou do interesse (benefício)
resultante da obrigação de outrem, como elementos indispensáveis à rigorosa caracterização do
direito subjectivo. [...] Estas teorias, suficientemente operatorias como técnicas juridicas do
liberalismo económico, convetem-se em impasse teórico, em vez de se afirmarem como
instrumentos auxiliares do direito, quando se analisam os modernos direitos a prestações.”
29
contemporânea propõe o alargamento dos direitos fundamentais sociais, incluindo
em seu conceito: o direito de exigir proteção do Estado; direito à exercício de
outros direitos promovidos pelo Estado (exemplo, participação em órgãos
colegiais); direito a prestações fáticas como direito ao trabalho, saúde, etc.
51
Na expressiva contribuição doutrinária de Canotilho
52
, a
posição jurídica prestacional reabilitou direitos fundamentais antes desacreditados
por grande parte da doutrina, e assim definidos:
1) no plano político-constitucional, as posições jurídicas prestacionais
são posições claudicantes, pois a sua optimização pressupõe sempre
uma reserva econômica do possível, que os órgãos ou poderes públicos
interpretarão ou densificarão segundo os modelos político-económicos
dos seus programas de governo;
2) no plano jurídico-dogmático, assiste-se a uma inversão do objecto do
direito subjectivo: os clássicos direitos de defesa reconduziam-se a uma
pretensão de omissão dos poderes perante a esfera privada; os direitos
a prestações postulam uma proibição de omissão, impondo-se ao Estado
uma intervenção activa de fornecimento de prestações;
3) nos planos metódico e metodológico, enquanto a densidade, das
normas consagradoras de direitos de defesa permite, tendencialmente, a
justicialidade destes direitos, jurídico-individualmente accionada, os
preceitos consagradores dos direitos a prestações estabelecem
imposições constitucionais vagas e indeterminadas, dependentes da
interpositio do legislador e demais órgãos concretizadores.
A doutrina jurídico-política base dos direitos sociais, fomenta
a inclusão desses direitos dentro da esfera dos direitos subjetivos, e assim, sua
efetivação através de instrumentos processuais de garantia acionáveis pela
jurisdição, o que traria a superação do método subsuntivo e ascensão do caráter
político da atuação do juiz.
A mudança de paradigma trazida com a superação do
Estado nacional (liberal), aperfeiçoamento do Estado social, e com ele, a
ampliação da concepção de direitos fundamentais pela ciência jurídica, vem
tornar claramente exigíveis em juízo os direitos à prestação como direitos
CANOTILHO, José Joquim Gomes. Estudo sobre direitos fundamentais. Coimbra: Ed. Coimbra,
2004. p. 45/46
51
CANOTILHO, José Joquim Gomes. Estudo sobre direitos fundamentais. 2004. p. 50
52
CANOTILHO, José Joquim Gomes. Estudo sobre direitos fundamentais. 2004. p. 52/53
30
subjetivos, o que antes, reservava-se, unicamente, ao âmbito do Poder Executivo,
enquanto responsável pela implementação de políticas públicas.
A construção teórica dos direitos sociais como direitos
fundamentais, pretende efetivar a inclusão da ética pública e de critérios de justiça
dentro dos textos constitucionais. Entende-se que o direito, juntamente com os
valores e os princípios, formam parte do conteúdo da justiça de uma sociedade
democrática moderna e tem como objetivo último ajudar a que todas as pessoas
possam alcançar um nível ximo de humanização. Se todas as dimensões de
direitos com suas características cumprem função indispensável na concretização
da dignidade humana, - objetivo último do direito não motivo para excluir
dessa concepção os direitos econômicos e sociais. Somente uma pessoa que
tenha suas necessidades vitais míninas atendidas poderá desfrutar
adequadamente dos direitos civis e políticos e decidir livremente na vida pública e
privada.
53
1.3 NOVOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS E AS RELAÇÕES SÓCIO-
POLÍTICAS: NEOCONSTITUCIONALISMO, POLÍTICA E DIREITO.
A teoria geral do direito na contemporaneidade tem se
dedicado ao estudo das transformações provocadas pelos novos ordenamentos
constitucionais nas sociedades ocidentais. O período pós-guerra, em resposta ao
horror dos sistemas totalitários, reaproximou o direito da ética e a filosofia jurídica
se voltou contra o positivismo independente de vínculo morais. A obediência da
lei, passa a estar relacionada com sua dimensão ética e correspondência com os
53
MARTINEZ, Gregório Peces-Barba. Los derechos econômicos, sociales y culturales: su gênesis
y su concepto. p. 29/30. “Los derechos econômicos, sociales y culturales pretenden, igual que los
restantes tipos de derechos fundamentales anteriores, favorecer em la organización dela vida
social el protagonismo de la persona, pero no parten de la ficcion, em que se basan los restantes
derechos, de que basta ostentar la condición humana para ser titulares de los mismos, sino que
intentan poner em manos de los desfavorescidos instrumentos para que, de hecho, em la realidad,
puedan conpetir y convivir como personas com los que no tienen necesidad de esas ayudas. En
los derechos econômicos, sociales y culturales la igualdad como diferenciación es um médio para
alcanzar como meta la iguadad como equiparación [...]”p. 32/33
31
valores presentes na sociedade. Essa nova concepção traz em si o novo
paradigma do direito constitucional o pós-positivismo. Esse novo modelo
perpassa as duas grandes fissuras das correntes jus-filosóficas: o jusnaturalismo
e o positivismo, procurando, não mais a prevalência de um ou outro sistema, mas
a profusão de ambos num único modelo denominado de pós-positivismo.
54
O jusnaturalismo moderno, formula-se a partir do século XVI,
convergindo as teorias da razão e da lei sobre uma mesma nota, fundando-se em
princípios de justiça universal, e firmando-se como o novo paradigma da filosofia
do direito adotada pelos liberais presentes nas Revoluções. Essa concepção
somente foi abalada com as concepções positivistas do século XIX, que
pretendendo dar uma conotação científica ao Direito, criaram critérios de validade
e legitimidade para o direito equiparando este com a lei e desligando-o de
qualquer vínculo com a ética ou a moral. A concepção positivista experimentou
seu fracasso com a queda dos regimes fascistas e nazistas, que estavam
ancorados em suas premissas e foram responsáveis por uma das maiores
tragédias da história.
A impossibilidade histórica de manutenção do modelo
jusnaturalista e o fracasso do positivismo, reascenderam novas discussões para
reaproximação do direito com sua função social, moral e ética. Nesse contexto,
que surge o pós-positivismo que “[...] busca ir além da legalidade estrita, mas não
despreza o direito posto. Procura empreender uma leitura moral do Direito, mas
sem recorrer a categorias metafísicas.”
55
Esse momento pós-positivista é marcado pela prevalência
da norma constitucional, de uma nova postura em sua interpretação e pela
expansão da jurisdição vinculada à constituição com vistas a garantir direitos
54
“O marco filosófico do novo Direito Constitucional é o pós-positivismo. O debate acerca de sua
caracterização situa-se na confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem
paradigmas opostos para o Direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes,
singularmente complementares. A quadra atual é assinalada pela superação ou, talvez,
sublimação — dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de idéias, agrupadas sob o
rótulo genérico de pós-positivismo.” BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo: O triunfo
tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: <http://buscalegis.ccj.ufsc.br. Acesso em:
04 fevereiro de 2007.
55
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo: O triunfo tardio do Direito Constitucional no
Brasil. Disponível em: <http://buscalegis.ccj.ufsc.br. Acesso em: 04 fevereiro de 2007.
32
fundamentais (de liberdade e sociais), firmados no texto constitucional. A esse
novo modelo se denominou neoconstitucionalismo, teoria que propõe um novo
modelo teórico para explicação e descrição do direito nos Estados
Constitucionais, caracterizando-se por negar a tese juspositivista de separação
entre direito e moral.
56
Esse novo modelo vêm recompor a fissura existente entre
os Estados constitucionais tradicionais e a democracia. Isso porque, no modelo
constitucional anterior, ou se colocava em favor do povo soberano, e assim,
contra uma idéia de lei fundamental vinculante para o futuro, ou, em favor da
Constituição como ideal de estabilidade e equilíbrio, opondo-se, desta forma, a
idéia de povo soberano.
57
As razões que fundamentam as críticas
neoconstitucionalistas ao positivismo estão baseadas no surgimento das novas
Cartas Constitucionais que transformaram o estado legalista moderno em Estados
constitucionais, subordinando a lei ao texto constitucional, sob critérios de
validade não somente formal, mas também material. A possibilidade de que o
Estado de direito possa variar de conteúdo em cada sociedade que esteja
presente, fez com que a teoria positivista do direito buscasse a conceituação de
um Direito baseado tão somente em suas propriedades formais, de modo que o
“dever ser” do Direito seja tão semelhante quanto possível, frente ao ideal de
qualquer sistema jurídico que seja avaliado.
O Estado de direito, na precisa conceituação de Ferrajoli
58
,
tomado num sentido débil ou formal, corresponde aos ordenamentos em que os
poderes públicos são conferidos pela lei e exercidos segundo os procedimentos
estabelecidos na legislação. Em outro sentido, o Estado de direito em sentido
forte, designa o somente aqueles ordenamentos jurídicos em que os poderes
públicos estão vinculado à lei não somente quanto à forma, mas também, quanto
56
POZZOLO, Susanna. Un constitucionalismo ambíguo. In CARBONELL, Miguel.
Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Ed. Trotta. 2005. p. 188. “Neoconstitucionalismo es un término
que há entrado em el léxico de los juristas hace poco tiempo y que, [...] será empleado para indicar
uma precisa prospectiva iusfilosófica que se caracteriza por ser constitucionalista (o sea, por
insertarse em la corriente iusfilosófica dedicada a la formulación y presdisposición delos limites
juridicos al poder politico) y antipositivista.”
57
ARIZA, Santiago Sasire. La ciência jurídica ante el neoconstitucionalismo. In CARBONELL,
Miguel. Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Ed. Trotta. 2005. p. 239
58
FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. In CARBONELL, Miguel.
Neoconstitucionalismo (s). 2005. p. 13
33
ao conteúdo. São os Estados constitucionais em que o poder legislativo está
vinculado aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais.
Conjugando-se a interpretação neoconstitucionalista dos
textos constitucionais modernos com a reaproximação na teoria contemporânea
entre o direito, a moral e a ética, traz nova relevância aos princípios
constitucionais, sobretudo, aqueles que disciplinam os direitos fundamentais (de
liberdade e sociais), relevando o caráter político da Constituição e a entrada na
esfera pública do Poder Judiciário como garante de eficácia e concretização
desses direitos.
Nessa nova perspectiva dos Estados neoconstitucionais,
uma de suas forças meta-teóricas, é a alteração no paradigma que colocava a
Constituição como declaração programática para aceitá-la, agora, como norma
jurídica com força jurisdicional. Por essa nova postura, a Constituição não se
presta para regular apenas as relações entre os Estados, ou entre estes e os
cidadãos, mas para disciplinar todas as relações sociais. Também, as relações
políticas passam a ser intermediadas pelo texto constitucional devido ao forte
peso moral e político dos princípios, permitindo a intervenção dos Tribunais para
examinar e interpretar a valoração política que sustenta a norma jurídica.
59
A constitucionalização (neoconstitucionalismo), apresentou
distinções em relação ao sistema legislativo anterior, que segundo Figueroa
60
, são
principalmente de ordem material, estrutural e funcional e um aspecto político. No
aspecto material está presente a debatida aproximação axiológica do direito
com a moral. No aspecto estrutural se encontra a forma de argumentação que se
sustenta, com a nova relevância concedida aos princípios que tem seu âmbito de
aplicação expandido. No que se refere ao aspecto funcional, os princípios
rompem com o método subsuntivo de aplicação da norma, e sobrelevam o caráter
da ponderação nos novos textos constitucionais. Assim, se no aspecto material
59
“Los princípios consitucionales com su fuerte inpronta moral y politica intervienen em la
argumentacion política, rigen las relaciones entre los poderes del Estado y, [...] permitem así a
órganos juridicionales cmo el Tribunal Constitucional entrar a examinar la argumentación política
que subyace a lãs normas jurídicas.” FIGUEROA, Alfonso Garcia. La teoria del Derecho em
tiempos de Constitucionalismo. In CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo (s). 2005.
60
FIGUEROA, Alfonso Garcia. La teoria del Derecho em tiempos de Constitucionalismo. In
CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo (s). 2005. p. 165/167
34
verificou-se a aproximação do direito com a moral, agora, nas caracteristicas
funcionais, o raciocínio jurídico se aproxima do raciocínio moral e o estudo do
fenômeno jurídico tende a ser concebido como um estudo específico da
argumentação prática em geral.
A importância das transformações apontadas pelos aspectos
material e funcional, é que a aproximação do direito com a moral e com a
argumentação prática traz como consequência direta e determinante nos novos
modelos constitucionais o protagonismo do Poder Judiciário e o papel
coadjuvante do Poder Legislativo.
A tensão provocada por esse novo modelo, evidencia-se
pela insuficiência do modelo lógico-formal para aplicação da norma juridica
através da subusunção, pois os critérios (hierárquico, cronológico e de
especialidade), não dão conta da complexidade dos princípios constitucionais
tendo-se que recorrer à ponderação. O amplo espaço de discricionariedade que
se formula, fomenta as críticas quanto à aplicação mediata ou imediata dos
princípios, requerendo a presença do legislador para apresentar o sentido exato
ou apontando para interpretação judicial do sentido aplicável ao conteúdos dos
princípios. Mesmo na teoria de Ferrajoli
61
, que pretende apontar caminhos para
diminuir a discricionariedade dos juízes, encontra-se, a importante observação de
que os juízes somente tem a obrigação de aplicar as leis que consideram
constitucionais.
A proposta neoconstitucional provoca fissura também na
concepção de ciência jurídica adotada pelo positivismo juridico
62
, que exige a
neutralidade e o modelo descritivo. Nos Estados constitucionais, aporta-se à uma
61
FERRAJOLI, Luigi. Democracia, Estado de Derecho y Jurisdicción em la Crisis del Estado
Nacional. In ATIENZA, Manuel; FERRAJOLI, Luigi. Jusridicción y Argumentación en el Estado
Constitucional del Derecho. 2005. Apontando a possível contradição no pensamento de Ferrajoli:
ARIZA, Santiago Sasire. La ciência jurídica ante el neoconstitucionalismo. In CARBONELL,
Miguel. Neoconstitucionalismo (s). 2005. p. 243
62
O positivismo jurídico inclui, várias perspectivas. Numa delas, refere-se a separação entre o
direito e os outros campos (separabitily thesis), tendo como principal representante o jurista Hans
Kelsen, com sua obra Teoria Pura do Direito. Outras referências do positivismo jurídico são
encontradas em sua tese social representada por Herbert Hart, em sua obra O conceito de Direito.
Outras variantes do positivismo jurídico são encontradas em Joseph Raz e no realismo
escandinavo de Alf Ross.
35
reivindicação não de um ponto de vista externo, mas também a adoção de um
ponto de vista interno, com a confluência de juízos de valor na análise do direito e
a primazia de um caráter prático da ciência jurídica frente a sua apresentação
como um estudo de expressão científica.
O positivismo jurídico em sua formulação teórica kelseniana,
procurava estabelecer uma ciência jurídica genuína seguindo os critérios da
função e do método da ciência moderna.
63
Através da função se estabelecia o
distancimaneto da ciência jurídica de qualquer aspecto prático ou axiológico da
filosofia jurídica. Essas duas características da ciência são formulada dentro do
direito através dos princípios kelsenianos para o Direito, relacionados à
neutralidade e à autonomia. O direito, enquanto função, teria tão somente que
descrever o direito. Não é correto dizer que Kelsen negava o aspecto social
presente no Estado, tão somente, apregoava que esse assunto não deveria ser
tratado pelo Direito. O método requer da ciência juridica a formulação de um
sistema normativo capaz de explicar o Direito.
64
Outra perspectiva do positivismo
jurídico formulada por Ross
65
, buscando da mesma forma que Kelsen, alcançar
uma Ciência do Direito pura, elege o caminho neoempirista dando importante
relevância a eficácia em sede jurisdicional da norma jurídica. Ao contrário do
desenvolvimento teórico de Kelsen, o descritivismo de Ross não desemboca no
objetivismo e traz, antes, certo relativismo que o direito vigente depende da
aplicação dos Tribunais.
66
A obra de Hart
67
, tida como a forma mais sofisticada do
63
Claudia Rosane Roesler, apresenta em sua obra, Theodor Viehweg e a Ciência do Direito:
Tópica, Discurso, Racionalidade, as características básicas do modelo moderno de ciência.
Segundo Roesler, “Nessa concepção, as idéias-chave sobre a ciência podem ser assim
resumidas: a) ciência é um discurso bem estruturado; b) o método faz da ciência algo que pode
ser ensinado; c) o método pode ser usado como um critério de demarcação entre o que é
científico e verdadeiro e o que não o é. Em adição a essas três teses, outras duas devem ser
consideradas: d) o método da ciência é universal e único; e) este método consiste numa bem
definida e apropriada sucessão de etapas.” ROESLER, Claudia Rosane. Theodor Viehweg e a
Ciência do Direito: Tópica, Discurso, Racionalidade. Florianópolis: Momento Atual, 2004. p. 35/36
64
“Este riguroso monismo metodológico supone defender la separación dela ciencia jurídica
respecto del resto de lãs ciências, concretamente de las ciencias empiricas, que se ocupan delos
hechos que suceden em el âmbito del ‘ser’, y también de la ética, que se encarga de lãs normas
morales, o sea, de enunciados de ‘deber ser’de caráter axiológico.” ARIZA, Santiago Sasire. La
ciência jurídica ante el neoconstitucionalismo. in CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo (s).
2005. p. 247
65
Para aprofundar o tema ver ROSS, Alf. Direito e Justiça. São Paulo: Edipro, 2000.
66
“Finalmente, el carácter abierto del descriptivismo rossiano, que pretende reconocer la
importância de la eficácia y la presencia dela ideologia, termina por acerca em exceso la
dogmatica a la sociologia juridica y a la politica del Derecho.”ARIZA, Santiago Sasire. La ciência
36
positivismo jurídico, procura superar as insuficiências das concepções de Kelsen
e Ross. Partindo da necessidade de que o estudo descritivo do Direito deve
considerar as regras aceitas, e assim, avocando o papel essencial da eficácia
para a norma jurídica. Para Ariza
68
, em relação a ciência jurídica poderiam ser
destacados da obra hartiana dois importantes aspectos: 1) a eficácia tem um
caráter transcedental na identificação do Direito que esta se realiza através de
uma regra de reconhecimento que aparece com a convergência do
comportamento dos juízes quando da definição do conteúdo da lei por critérios de
validez. 2) a necessidade de utilizar-se um conceito amplo de direito que permita
a descrição tanto do Direito justo quanto do injusto, frente a um critério restrito
que termina por incorporar a justiça ou a moral como critério de validez.
O neoconstitucionalismo afirma a limitação dogmática
provocada na Ciência Jurídica através do positivismo jurídico para resolução de
problemas práticos, e assim, a impossibilidade desse modelo em sistemas
jurídicos complexos, onde, o modelo descritivo tem servido para ocultar o caráter
político da Ciência Jurídica. De outra forma, o neoconstitucionalismo serviu pra
mostrar a dificuldade de definir os limites entre os modelos descritivos e
prescritivos da Ciência Jurídica, pois enquanto algumas descrições podem ter
caráter político, nem todos os juízos de valor podem ser colocados no mesmo
plano teórico – não conduzindo necessariamente à subjetividade.
69
A ausência de distinções claras entre o caráter descritivo e
prescritivo da Ciência Jurídica, bem como, a confluência dessas duas
caracteristicas no modelo neoconstitucionalista, releva a importância dos valores
jurídica ante el neoconstitucionalismo. In CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo (s). 2005.
p. 248
67
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Trad. Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa: Função
Calouste Gulbenkian, 1986.
68
ARIZA, Santiago Sasire. La ciência jurídica ante el neoconstitucionalismo. In CARBONELL,
Miguel. Neoconstitucionalismo (s). 2005. p. 249
69
“Así, se puede hablar de juicios de valor débiles, que son los que intervienen em los esquemas
concptuales que posibilitan la tarea cognoscitiva (como insistido el constructivismo
epistemológico), juicios de valor que tienen um fuerte componente descriptivo, como los que
expresan uma valoración que es compartida por um determinado grupo social, juicios de valor que
se formulan com la intención de justificar o aceptar ciertas decisiones o comportamientos (que
presuponen la adopción delpunto de vista interno), y juicios de valor fuertes que se realizan desde
una posición crítica com el propósito de enjuiciar o proponer algo (que indican que se asumido
la perspectiva del punto de vista externo)”. ARIZA, Santiago Sasire. La ciência jurídica ante el
neoconstitucionalismo. In CARBONELL, Miguel. Neoconstitucionalismo(s). 2005. p. 254
37
e princípios constitucionais na prática judiciária. Essa nova postura constitucional
abre espaço para a discricionariedade dos juízes e a superação do paradigma
formal de apreciação do texto constitucional em sede jurisdicional, permitindo que
os Tribunais revejam não somente aspectos relacionados à competência e a
formalidade, mas também, o conteúdo das ordens emitidas pelo poder público, a
partir de uma análise axiológica frente ao texto constitucional, escoando as
tensões sociais e políticas do parlamento para o Poder Judiciário, e assim,
derivando na judicialização das relações sócio-políticas.
1.4 O CARÁTER POLÍTICO DA CONSTITUIÇÃO
Como afirmado, a partir de 1960, a filosofia política
determinou fortes críticas ao Direito considerado expressão da força e da
violência e distante da legitimidade social. Somente a partir da década de 80 é
que se experimenta um retorno ao Direito e a busca dos fundamentos de sua
legitimidade longe dos auspícios da força e da violência. “Consequentemente, o
retorno ao direito é a via através da qual se evita a violência, dada a
inexorabilidade do pluralismo e do conflito nas democracias contemporâneas.”
70
Porém, a qual Direito se pretende retornar, e sua força, nas
sociedades atuais, provêm de onde? Cittadino
71
, propõe dois caminhos capazes
de trazer respostas à legitimidade do Direito após seu fundamento se afastar da
metafísica sacra. No primeiro, o direito deve possuir uma racionalidade autônoma
e independente de qualquer qualidade moral e ética. Sob essa perspectiva o
direito somente pode ter um momento de incondicionalidade se for encontrado no
sistema de direito positivo ou, tem-se um direito unicamente instrumental. No
segundo caminho, procura-se encontrar um fundamento transcendente ao direito
como faziam os antigos e romper com a sistemática racionalista instrumental.
Esse é o caminho trilhado tanto pelos liberais quanto pelos comunitários e critico-
70
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumenjuris,
2004. p. 141/142
71
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva. 2004. p. 142
38
deliberativos
72
, que têm como ponto comum a necessidade da presença da ética
no âmbito do direito. “É, portanto, contra a racionalidade sistêmico-instrumental do
positivismo jurídico que o movimento de retorno ao direito se constitui.”
73
Ainda
que com contornos distintos as teorias liberais, comunitárias e deliberativas,
parecem ter caminhado por dois temas centrais a Constituição e a interpretação
constitucional.
No Brasil, a partir da década de 30, as conquistas históricas
dos trabalhadores resultam no reconhecimento dos sindicatos, seguros contra
velhice, invalidez e instituição do salário mínimo.
74
Correlatamente, desenvolve-se
o direito do trabalho que
, a
lém de devolver à sociedade a autonomia para
reivindicar seus direitos, juntamente com o sindicalismo trouxeram ao direito, novo
paradigma de justiça ligado à sociedade. Essas manifestações trazem à
exposição da esfera pública problemas resguardados na esfera privada, gerando
novos conflitos que exigem uma posição que supere os limites da legalidade
aproximando a decisão judicial da política.
Com maior ênfase, no Brasil, a constitucionalização dos
direitos sociais é um marco teórico e tico desse movimento a que se denominou
de judicialização das relações sociais. Verifica-se com a Revolução de 30, e a
ascensão de Getúlio Vargas ao poder, e ainda, com maior visibilidade com a
Constituição de 1934, inclinando-se para questão social e econômica. “Ao lado da
clássica declaração de direitos e garantias individuais, inscreveu um título sobre a
ordem econômica e social e outro sobre a família, a educação e a cultura, com
72
“É exatamente no âmbito desta segunda via, que busca dar um sentido ao direito para além de
um positivismo cuja marca fundamental é um ceticismo ético associado à idéia de
desencantamento do mundo, eu podemos compreender como liberais, comunitários e crítico-
deliberativos retornam ao direito nestes últimos anos.” CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e
justiça distributiva. 2004. p. 142
73
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva. 2004. p. 143
74
Em alguns países, a conquista de direitos sociais foi impulsionada por revoluções ou
movimentos políticos, fundados nas classes trabalhadoras do campo e das cidades. Um desses
eventos foi a Revolução Mexicana (1910-1917), [...], culminando com a Constituição de 1917, que
poderia rivalizar com a de Weimar em termos de direitos políticos e sociais. [...]. Algo semelhante
ocorreu no Brasil, após a vitória do movimento armado de 1930, que ensejou nos anos seguintes o
reconhecimento legal dos sindicatos (postos, no entanto, sob tutela e controle do Estado), institui
seguros obrigatórios contra a velhice e a invalidez e, a partir de 1940, salários mínimos para as
diferentes regiões do país.SINGER, Paul. A cidadania para todos. In PINSKY, Jaime; PINSKY,
Carla Bassanezi (orgs.). História da Cidadania. 2003. p. 240
39
normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição de
Weimar.”
75
Contudo, ao contrário das Constituições anteriores,
originadas de um contexto pré-definido onde é possível identificar claramente as
forças construtoras de seu texto, a Constituição de 1988 inova ao surgir do seio
da Assembléia Constituinte. É possível identificar as Constituições de 1891, 1934
e 1946 como conclusões de um movimento político hegemônico. Ao contrário
dessas, a Carta de 1988 acabou sendo elaborada sem contar com um anteprojeto
e no contexto muito particular em que ela própria era parte do processo de
transição do autoritarismo à democracia política, e não uma conclusão dele.
76
É a
primeira que não se origina através de uma ruptura com a ordem constitucional
vigente, ainda que tenha advindo do maior período nacional de cerceamento das
liberdades públicas.
77
Essa nova roupagem do constitucionalismo moderno,
presente na Carta Política de 1988, promove uma reaproximação do Direito com a
ética
78
e os valores
79
, o que havia sido negado pelo positivismo jurídico
80
consubstanciado no Estado Moderno da separação dos poderes. Esses valores
75
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 84
76
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 38
77
A observação é feita por BONAVIDES e ANDRADE, segundo os quais, a constatação de
inexistência de ruptura é apenas aparente, “porquanto, se a Carta Magna não foi precedida de um
ato de independência, como a Carta Política do Império, de 1824, ou da queda de um império,
como a de 1891, ou do fim de uma república oligárquica a chamada Pátria Velha carcomida,
posta abaixo pelas armas liberais da Revolução de 1930 como a Constituição de 1934, ou da
ruína de uma ditadura e dissolução do Estado Novo, como a de 1946, ou até mesmo de um golpe
de Estado que aniquilou com um violento ato institucional uma república legítima, qual o fez a de
1967, nem por isso a ruptura deixa de ser a nota precedente do quadro constituinte instalado em
1987, visto que ela se operou na alma da Nação, profundamente revelada contra o mais longo
eclipse das liberdades públicas; [...]”. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História
constitucional do Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 451
78
“Ethica; Em geral, a ciência da conduta. Existem duas concepções fundamentais dessa ciência:
a que considera como ciência do fim a que a conduta dos homens se deve dirigir e dos meios
para atingir tal fim; e deduz tanto o fim quanto os meios da natureza do homem; a que a
considera como a ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas
a dirigir ou disciplinar a mesma conduta.” ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 1970. p.
360
79
O uso filosófico do termo começa quando o seu significado é generalizado para indicar
qualquer objeto de preferência ou escolha; e isso aconteceu pela primeira vez com os Estóicos os
quais introduziram o termo no domínio da ética e chamaram V. os objetos das escolhas morais.”
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 1970. p. 952
80
“Assim Hans Kelsen chamou a sua doutrina formalista do direito e do Estado.ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de Filosofia. 1970. p. 746
40
compartilhados pela sociedade são inseridos explicita ou implicitamente no texto
constitucional sendo identificados como princípios. Servem ao mesmo tempo para
dar harmonia e unidade ao texto constitucional, bem como, para reduzir as
tensões internas das normas. “Estes os papéis desempenhados pelos princípios:
a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do
intérprete.”
81
Por outro lado, uma Constituição definida inteiramente por
princípios, torna-se claramente aberta e, ao contrário das anteriores, agora admite
a influência de valores externos, deixando aos seus intérpretes a função de dar-
lhe o seu sentido e direção.
Princípios constituem mandados de otimização com forte
carga valorativa e ética, via de regra, derivados de opções políticas que os
colocam como direção a seguir. A direta ligação entre princípios e valores é
facilmente reconhecida quando a eficácia de princípios e a busca de sua
otimização representam diretamente a realização de valores.
82
Um texto constitucional firmado em princípios requer para
sua efetividade uma ampla regulamentação, o que provocou uma inflação
legislativa, criando uma sociedade altamente regulada e normatizada. Por outro
lado, a alta carga valorativa dos princípios constitucionais traz como
conseqüência a discricionariedade deixada nas mãos dos juízes, de poder fazer
escolhas e impor determinações em assuntos antes reservados ao crivo do
legislador. A partir dessa constatação torna-se necessária a discussão quanto aos
limites, a necessidade e a conveniência de um judiciário politizado.
81
BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (pós modernidade, teoria crítica e pós-positivismo) in BARROSO, Luis Roberto (org.). A
nova interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003. p. 30
82
“[...] por una parte, de la mima manera que puede hablarse de una colisón de principios y de una
ponderación de principios, puede también hablarse de una colisión de valores y de una
ponderación de valores; por outra, el cumplimiento gradual de los princípios tiene su equivalente
em la realización gradual de valores.”ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales.
1993. p. 138
41
CAPÍTULO 2
A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SÓCIO-POLÍTICAS E AS
NOVAS DIMENSÕES DAS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA
2.1 ENTRE O ESTADO E A POLÍTICA: A OPÇÃO POR HANNAH ARENDT
Na construção teórica e intelectual da segunda metade do
século XX, Hannah Arendt prestou contribuição singular e inconfundível. As
análises do fenômeno político totalitário da Alemanha nazista eram realizadas, em
sua maioria, por cientistas políticos refugiados, até que em 1968, Arendt ingressa
neste círculo com a obra As origens do totalitarismo. “Ela nunca havia escrito uma
obra de lego nos campos da história ou da teoria política. [...] Nos 24 anos
seguintes Arendt conquistou, com seus inúmeros ensaios e livros, renome
internacional e um lugar proeminente entre os teóricos de sua geração.”
83
Passada a experiência totalitária, Arendt declarou: “O mundo
e as pessoas que o habitam não são a mesma coisa. O mundo encontra-se entre
as pessoas.”
84
A partir das experiências do momento, produziu críticas radicais
contra a tradição política européia. “Em A condição humana ela escreveu sobre a
ação; para a segunda edição de As origens do totalitarismo, preparou um epílogo
sobre o sistema de conselhos; e planejou Sobre a revolução.”
85
A reavaliação da tradição do pensamento político, e, em
especial, ao revisitar a teoria marxista, Arendt aponta distorções na compreensão
de conceitos políticos fundamentais relacionados a vita activa (ação, trabalho e
labor), e ao iluminar a compreensão da ação política utiliza-se da literatura não-
filosófica do mundo clássico.
83
YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt. Trad.
Antonio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997. p. 11
84
ARENDT, Hannah. On humanity in Dark Times: Thoughts about lessing, em Men in Dark Times,
p. 12. citado por YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah
Arendt. 1997. p. 11
85
YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Por amor ao mundo: a vida e a obra de Hannah Arendt. 1997. p.
241
42
A originalidade de Arendt sobressai de seu ponto de partida,
quando afirma ser a natalidade e não a mortalidade a chave para compreensão
do fenômeno político. De fato. Toda tradição do pensamento metafísico está
sustentada na morte e no desejo de alcançar o eterno, experiências vividas no
singular, como observa Arendt, na teoria de Platão, quando escreve a
República.
86
Ao contrário da tradição, para Arendt, a política somente se
realiza na pluralidade não existimos isolados, mas coexistimos. Se é possível
pensar isoladamente, somente é possível agir em conjunto. “Esta diferença de
postura é a razão pela qual, com poucas exceções entre as quais Hannah
Arendt realça Kant, o Kant da Critica do Juízo e da mentalidade alargada, ligada
ao pensamento do que o outro pensa os filósofos tendem a ser hostis a toda
política.”
87
Firmado o pressuposto teórico de sua compreensão política,
é possível entender porque a ação democrática participativa do indivíduo é a fonte
de geração de poder, quando realizada em conjunto, diferentemente da idéia de
não intervenção geradora da liberdade moderna. Mais do que isso, de acordo
com Lafer, Arendt é capaz de demonstrar que a liberação da necessidade para o
espaço público pode tornar obtusa a própria compreensão da atividade política,
tão ligada à palavra e à ação.
A compreensão do sistema político originado da era
moderna, e o próprio Estado que se constituiu no momento pós-guerra,
analisados de forma extremamente cuidadosa na teoria de Arendt, o
construções teóricas possíveis de serem utilizadas na compreensão do atual
estágio da política imersa no social. Quando se propõe a institucionalização da
política no debate hermético do Poder Judiciário, é uma fonte interessante de
discussão, reavaliar a capacidade democrática desse poder responder à
compreensão pluralista da política presente na obra de Arendt, e superar seu
86
LAFER, Celso. A política e a condição humana. in ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad.
Roberto Raposo. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1997. 348
87
LAFER, Celso. A política e a condição humana. in ARENDT, Hannah. A condição humana.
1997. 349
43
modelo positivista como mero executor da legislação, sem considerações morais
ou éticas.
A análise da desestruturação das esferas pública e privada,
e o surgimento do social, podem verter em possíveis respostas para dificuldade
de se distinguir, atualmente, aquilo que seja próprio da política e o que deve ser
resguardado no âmbito privado. O Poder Judiciário se propõe a oferecer
respostas políticas a problemas sociais que não têm características nem públicas
nem privadas, na perspectiva da obra arendtiana. É o caso das concepções sobre
a constituição familiar ou sobre a educação infantil, temas que ganharam a esfera
pública e tradicionalmente estavam ligados ao privado, e agora, são tratados na
esfera social. O que a obra de Arendt demonstra, é que não se pode discutir com
segurança na esfera pública do judiciário, o que seja político e o que seja privado
na atualidade.
É nesse sentido que se justifica a opção pela obra de
Arendt, como teoria base desse trabalho. É a partir da apresentação de seus
conceitos fundamentais sobre as transformações nas esferas pública, privada e
social, após a era moderna e a constituição do Estado ligado à economia e à
sobrevivência, que se propõe uma análise do atual deslocamento da política para
o âmbito do judiciário, problematizando o processo democrático nesse novo
contexto político e jurídico.
2.2 HANNAH ARENDT: DOS ANTIGOS À CRITICA DE MARX, NIETZSCHE E
KIERKEGAARD.
A análise da obra de Arendt, sobre a política e a ação, sobre
as esferas pública e privada, deve ser tomada a partir de sua postura a respeito
da filosofia do culo XX que ao mesmo tempo que rompeu com a tradição
chegou ao seu exaurimento teórico interno. “A tradição de nosso pensamento
político teve seu início definido nos ensinamentos de Platão e Aristóteles. Creio
44
que ela chegou a um fim não menos definido com as teorias de Karl Marx”
88
. São
essas constatações que tornam indispensável repensar criticamente a tradição,
observando a ruptura da mesma como resultante de certos eventos políticos,
como as duas grandes guerras mundiais, e não somente como o desenvolvimento
necessário no plano teórico da tradição filosófica.
89
O que Marx, Kierkegaard e
Nietzsche, na esteira de Hegel fizeram, foi antecipar no plano teórico a ruptura
que os eventos do séc. XX fariam com a tradição mantida sob o fundamento na
autoridade
90
. Hegel, apontado, como inspirador desses filósofos, sustentou a
correlação entre a identidade ontológica da idéia com a matéria através do
movimento dialético “– o real é racional e o racional é real desgastando,
conseqüentemente, o sentido clássico da aporia imanência versus
transcendência.”
91
O que Marx fez foi transpor o homem da contemplação para
a valorização do trabalho como fonte irremediável da igualdade e libertação,
mostrando, nesse ponto, a incompatibilidade entre o pensamento político
moderno, com as idéias das Revoluções Francesa e Industrial, responsáveis pela
sobreposição hierárquica do trabalho como a mais desprezível das características
da vita activa, para ser o caminho certo da libertação e da igualdade, força que
88
“O início deu-se quando, na alegoria da caverna, em A República, Platão descreveu a esfera
dos assuntos humanos, tudo aquilo que pertence ao convívio de homens em um mundo comum,
em termos de trevas, confusão e ilusão, que aqueles que aspirassem ao ser verdadeiro deveriam
repudiar e abandonar, caso quisessem descobrir o céu límpido das idéias eternas. O fim veio com
a declaração de Marx de que a Filosofia e sua verdade estão localizadas, não fora dos assuntos
dos homens e de seu mundo comum, mas precisamente na esfera do convívio, por ele chamada
de ‘sociedade’, através da emergência de homens socializados” ARENDT, Hannah. Entre o
Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 43
89
“Em si mesmo, o evento assinala a divisão entre a época moderna – que surge com as Ciencias
Naturais no século XVII, atinge seu clímax político nas revoluções do século XVIII e desenrola
suas implicações gerais após a Revolução Industrial do século XIX – e o mundo do século XX, que
veio à existência através da cadeia de catástrofes deflagrada pela Primeira Guerra Mundial.
Responsabilizar os pensadores da idade moderna, especialmente os rebeldes contra a tradição do
século XIX, pela estrutura e pelas condições do século XX é ainda mais perigoso que injusto.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 2003. p. 54
90
A autoridade, relacionando-se ao mais enganoso destes fenômenos e, portanto, sendo um
termo do qual se abusa com freqüência, pode ser investida em pessoas [...] ou pode ser investida
em cargos como, por exemplo, no Senado romano [...]. Sua insígnia é o reconhecimento
inquestionável por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são
necessárias [...]. Conservar a autoridade requer respeito pela pessoa ou pelo cargo. O maior
inimigo da autoridade é, portanto, o desprezo, e o mais seguro meio para miná-la é a risada.”
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
p. 37
91
LAFER, Celso. Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt. in Prefácio à obra ARENDT,
Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 7
45
antes era reservada para a ação política.
92
Marx, com isso, submeteu todo
pensamento político à necessidade, e colocou a liberdade como um ponto utópico
e sem sentido, já que a própria política desapareceria.
93
Kierkegaard e Nietzsche, por outro lado, romperam com o
pensamento teórico da tradição em outros dois importantes pontos. Kierkegaard
94
,
mostrou a impossibilidade de convivência entre a ciência moderna e a religião,
pois o espírito de dúvida da ciência a fez acreditar somente naquilo que ela
mesma produzisse, ou seja, trouxe para o mundo da a dúvida que sustentava a
ciência. “Assim, as reflexões de Kierkegaard apontaram a incompatibilidade entre
o ‘espírito da dúvida’, prevalecente nos temos modernos desde Descartes, e o
caráter ‘revelado’ da experiência religiosa.”
95
A saída não vitoriosa de
Kierkegaard, foi pregar a falibilidade da razão humana, o que, em caminho
inverso, acabou consagrando a dúvida também na religião. De imediato, a
objeção de Kierkegaard traz desconfiança e descrédito naquilo que nos circunda
e fragiliza o senso comum, fato realçado pela ciência contemporânea. A ciência
repulsou a linguagem comum e o senso comum, construiu uma linguagem técnica
com o objetivo de alcançar o que se escondia por detrás da natureza. Como
observa Lafer
96
, em prefácio à obra de Arendt,
O progresso da Ciência implicou numa linguagem científica cuja
formalização crescente esvaziou de sentido a nossa percepção concreta
e, ademais, não só converteu, através da mediação da técnica, o nosso
meio ambiente em objetos criados pelo homem, como também
92
o fato da incompatibilidade básica entre os conceitos tradicionais que fazem do trabalho o
símbolo mesmo da sujeição do homem à necessidade e a época moderna, que viu o trabalho
elevado para expressar a liberdade positiva do homem, a liberdade da produtividade. É do impacto
do trabalho, isto é, da necessidade no sentido tradicional, que Marx visou salvar o pensamento
filosófico, destinado pela tradição a ser o núcleo de todas as atividades humanas. ARENDT,
Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 2003. p. 60
93
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt.
São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 157
94
“Só a verdade que edifica é verdade para ti” KIERKEGAARD, O pensamento de sentir-se
culpado diante de Deus traz em si duas conseqüências, a saber, a cessação da dúvida e o
impulso para a tarefa. É edificante, portanto, o pensamento de sentir-se sempre culpado diante de
Deus. [...] A partir do culo XVIII esse campo semântico passou a ter também um valor
metafórico, estando ligado aos valores éticos e religiosos.PINZETTA, Inácio. O edificante em
Hegel e Kierkegaard. Publicações científicas UNISINOS, 2005. p. 349
95
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt.
2000. p. 156
96
LAFER, Celso. Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt. in Prefácio à obra ARENDT,
Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 2003. p. 12
46
conseguiu modificar, por meio da ação humana, o desencadeamento dos
próprios processos da natureza, como o evidencia a fissão do átomo.
Nietzsche, por fim, impôs a inversão do modelo de avaliação
transcendente do mundo sensível, herdados pela tradição desde o platonismo. “O
que ele descobriu em sua tentativa de ‘transvaloração’ foi que, dentro deste
quadro de referência categórico, o sensível perde sua própria raison dêtre
quando privado de substrato no supra-sensível e no transcendente.”
97
Nietzche
sustenta o homem inclinado a ânsia de poder em contraposição ao homem
racional da tradição do pensamento de sua época. Esse desejo de poder levou-o
a combater os conceitos transcendentes que serviam de avaliação da ação
humana e que, na era moderna foram substituídos por valores funcionais, o que
foi analisado com firmeza por Arendt, em sua obra A Condição Humana. “De fato,
se no século XX, o filistinismo da classe média em ascensão fez da cultura um
instrumento de mobilidade social - uma mercadoria social iniciando a
desvalorização dos valores, a sociedade de massas contemporânea levou este
processo adiante ao consumir cultura na forma de diversão.”
98
Em sentido inverso das concepções teóricas da era
moderna, para Arendt, ação e política parecem estar diametralmente conexas ao
passo que se referem às características unicamente humanas. Refugiando-se na
análise de Aristóteles, reforça sua afirmação homo est naturaliter politicus, id est,
socialis, ou seja, o homem é por natureza, político, isto é, social. No entanto, até a
doutrina Tomista, a compreensão da doutrina de Aristóteles levava ao
entendimento de que a característica humana fundamental estava relacionada
com a ação política e não ao fato de viver em sociedade, - característica que
comunga com os demais animais, levados pelas necessidades biológicas.
99
97
ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 2003. p. 58
98
LAFER, Celso. Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt. in Prefácio à obra ARENDT,
Hannah. Entre o Passado e o Futuro. 2003. p. 12
99
É somente com o ulterior conceito de uma societas generis humani, uma << sociedade da
espécie humana>>, que o termo <<social>> começa a adquirir o sentido geral de condição
humana fundamental. Não que Aristóteles ou Platão ignorasse ou não desse importância ao fato
de que o homem não pode viver fora da companhia dos homens: simplesmente não incluíam tal
condição entre as características especificamente humanas. Pelo contrário, ela era algo que a vida
hu8mana tinha em comum coma vida animal – razão suficiente para que não pudesse ser
fundamentalmente humana.” ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 32/33
47
A natureza humana é oposta a associação natural derivativa
da família, e centrada na casa (oikia). Segundo Arendt, é fato histórico que antes
da fundação da cidade-estado, operou-se a extinção de todos os agrupamentos
sociais fundados nas relações de parentesco, assim, o homem além de sua vida
privada conservava uma participação política visando a proteção do que é comum
a todos.
100
Arendt em posição contrária a de Coulanges
101
, demonstra
que é um erro histórico aproximar a formação política na Grécia daquela
encontrada em Roma. Na Grécia, a religião cultuada na família era superior e
separada daquela que originou e mantinha o Estado, ao passo que, em Roma, o
culto do lar passou a fazer parte do culto oficial e político após sua segunda
fundação.
102
O uso da violência, enquanto meio de obrigar alguém a fazer
algo é, em Arendt, um caminho pré-político da herança antiga. Discurso e ação,
são caminhos conexos, que somente tomaram rumos distantes na experiência da
polis, quando “[...] A ênfase passou da ação para o discurso, e para o discurso
como meio de persuasão não como forma especificamente humana de responder,
replicar e enfrentar o que acontece ou o que é feito. O ser político, o viver numa
polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não
através da força ou violência.”
103
Com o abandono do discurso persuasivo para a
utilização da força e violência iguala-se ao paradigma do ambiente familiar e de
sua organização, onde o chefe de família atua de forma imperativa reger as
relações familiares.
A tradição do pensamento político parece não dissociar as
noções de poder e violência, colocando, alguns, a violência como a mais flagrante
100
“O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, <<além de sua vida
privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas
ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion)
e o que é comum (koinon)>>. ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 33
101
“A vida privada não escapava a tamanha onipotência do Estado. Muitas cidades gregas
proibiam o celibato. Esparta punia não somente quem não se casasse, mas também quem
casasse tardiamente. O Estado podia prescrever, em Atenas, o trabalho e, em Esparta, a
ociosidade. COULANGES, Fustel. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 248/249
102
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 34
103
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 35
48
manifestação de poder, e outros, o poder como a manifestação da violência de
forma mitigada, o que, como pondera Arendt
104
, redunda na mesma compreensão
sobre os institutos. Segundo, Arendt, esses equívocos foram originados pela
definição dos termos a partir da experiência do absolutismo que acompanhou o
surgimento do Estado-nação, nas teorias de Jean Bodin e Hobbes, também
coincidentes com os termos usados na antiguidade grega para definir as formas
de governo como o domínio do homem sobre os homens.
105
O poder para Arendt, [...] corresponde à habilidade humana
não apenas para agir, mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade
de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência apenas na
medida em que o grupo conserva-se unido.”
106
Falar-se numa personalidade
poderosa ou homem poderoso, é utilizar o termo metaforicamente. A força,
freqüentemente utilizada como sinônimo de violência deveria resumir-se a
designar as forças da natureza, indicando “a energia liberada por movimentos
físicos ou sociais”
107
. Violência, a seu turno, distingue-se por ser caráter
instrumental e pelo fato de seus implementos serem planejados e utilizados com o
propósito de multiplicar o vigor natural até que possam substituí-los.
108
Frequentemente, cai-se na tentação de equacionar os conceitos de poder e
violência, ligando o termo poder a relação entre comando e obediência, equívoco
agravado pela compreensão do próprio sentido do termo político na era moderna.
O equívoco do termo político na tradução da compreensão
de político como social, na teoria de Aristóteles, é da mesma forma, repetida
quando se tentou apresentar a expressão zoon logon ekhon (um ser vivo dotado
de fala), como animal rationale
109
, e apontar essa característica como presente no
pensamento aristotélico. Sobressai do pensamento aristotélico que a mais alta
104
Arendt se refere as obras de Bertrand de Jouvenel, Passerin d’Entrèves a Mao Tse-Tung.
105
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 1994. p. 33
106
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 1994. p. 33
107
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 1994. p. 33
108
“O vigor inequivocamente designa algo no singular, uma entidade individual; é a propriedade
inerente a um objeto ou pessoa e pertence aos eu caráter, podendo provar-se a si mesmo na
relação com outras coisas ou pessoas, mas sendo essencialmente diferente delas. [...] Talvez não
seja supérfluo acrescentar que estas distinções, embora de forma alguma arbitrarias, dificilmente
correspondem a compartimentos estanques no mundo real, do qual, entretanto, são extraídas.”
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 1994. p. 37/38
109
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 36
49
capacidade humana estava relacionada a contemplação e não a palavra, que
aquela não poderia ser reduzida a esta. A pretensão de adaptar o pensamento
grego ao romano-cristão, resultou além da confusão na tradução dos termos
indicados, no equacionamento entre as esferas pública e social, agravando-se
com o uso moderno da palavra sociedade.
As transformações percebidas na compreensão do público,
do privado e do social, aquilatou-se na emergência da era moderna, por
conseqüência, tornando difusos os contornos do que é pertencente ao privado e à
família, e o que deve ser discutido na esfera pública por ser de interesse comum.
O interesse público passou a girar em torno das necessidades da coletividade e a
forma de sua manutenção. O Estado passou a ser administrado como uma
grande família buscando sua sobrevivência. “O pensamento científico que
corresponde a essa nova concepção já não é a ciência política, e sim a
<<economia nacional>> ou a <<economia social>> [...]”
110
. Para os antigos,
acredita Arendt, o termo “economia política” se constituiria numa contradição
insolucionável, pois, aquilo que fosse relacionado a prover a sobrevivência da
família e de dos homens não poderia ser assunto político, mas estritamente
doméstico e privado. Assim, “[...] o que chamamos de <<sociedade>> é o
conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-
símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de organização é
denominada <<nação>>.”
111
É provável, para Arendt, que o surgimento da cidade-estado
e da esfera pública tenha ocorrido com a expansão sobre a esfera privada, no
entanto, a propriedade
112
não foi violada na polis, que, se constituía em fator
indispensável para superação das necessidades e ingresso na vida pública.
110
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 337/38
111
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 38
112
Importante, frisar, como apontado por Arendt, que a propriedade para os antigos não tinha o
mesmo sentido adquirido com a modernidade. Na polis grega, a propriedade tinha tão somente o
condão de garantir a proteção da família e a superação das necessidades físicas, o que se
constituía em requisito indispensável para o ingresso na esfera pública, portanto, longe do
conceito moderno que a vincula ao acumulo de riquezas. Parece acertada a posição de Arendt,
quando se analisa a obra de Coulanges: Em algumas cidades os cidadãos eram obrigados a
recolher suas colheitas em comum, ou, pelo menos, a maior parte delas, devendo consumi-las
também em comum; portanto, por notável contradição, era proprietário absoluto do solo.”
50
O que resta é a incontestável e visível distinção, para os
antigos, dos assuntos reservados ao debate público e aqueles mantidos sobre a
sombra do privado. Prover a própria sobrevivência é tarefa que impõe aos
homens viver associados e é tão somente esse o motivo que justifica essa
permanência. “Portanto, a comunidade natural do lar decorrida da necessidade:
era a necessidade que reinava sobre todas as atividades exercidas no lar.”
113
Por
outro lado, a esfera da polis era a que permitia a expressão da liberdade, e essa
clara oposição à esfera privada, demonstra que a única aproximação possível
entre as duas é que a superação das agruras, da necessidade dentro do lar era o
que permitia o ingresso na esfera pública. A limitação da autoridade da política a
partir da Idade Média somente se justifica pela colocação da liberdade, ou como
afirmado por Arendt, em alguns casos a pseudoliberdade, no plano do social e a
força e a violência figurando como monopólio do governo.
114
A liberdade, em
Arednt, tem dois sentidos, primeiro, como superação das necessidades, segundo,
como exercício, entre os iguais, da atividade política livre da força ou coação,
derivada somente da persuasão e convencimento recíproco. Assevera-se, que
distinta da igualdade dos modernos, correlacionada à idéia de justiça, a liberdade
de que fala Arendt, é o fato de que “[...] todos têm o mesmo direito à atividade
política profundamente marcada pela isegoria, ou seja, a liberdade de falar. A fala
e ação constituíam, para os gregos, dois modos inseparáveis de manifestação da
liberdade.”
115
O poder pré-político legado ao chefe de família, tomado
como necessário sob o argumento de que o homem é um animal social, antes de
ser político, discrepa da teoria política do séc. XVII, que conceituou o “estado
COULANGES, Fustel. A cidade Antiga. 2002. p. 248/249. Porém, a aparente contradição apontada
por Coulanges, é rebatida por Arendt, segundo quem, “[...] não se trata de contradição, porque, no
conceito dos antigos, os dois tipos de propriedade eram completamente diferentes.” ARENDT,
Hannah. A condição humana.1997. p. 39
113
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 40
114
“O que todos os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na
polis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é
primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a
força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencerem a
necessidade por exemplo, subjugando escravos e alcançar a liberdade.” ARENDT, Hannah. A
condição humana.1997. p. 40
115
RAMOS, César Augusto. O conceito (político) de liberdade em Hannah Arendt. in DUARTE,
André; LOPREATO, Christina; MAGALHÃES, Maria Brephol de. A banalização da violência: a
atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 2004. p. 176
51
natural”, onde a guerra e o terror de todos contra todos somente era evitável com
o estabelecimento de um governo de dominação. “Pelo contrário, todo o conceito
de domínio e de submissão, de governo e de poder no sentido em que
concebemos, bem como a ordem regulamentada que os acompanha, eram tidos
como pré-políticos, pertencentes à esfera privada, e não à esfera pública.”
116
Pressupondo a existência de pontos conflituosos no mundo
natural, o Estado, para Hobbes
117
, se afigura como único instrumento de poder
visível e capaz de promover o reequilíbrio da sociedade, mesmo que o caminho
requeira a imposição do temor e o castigo àqueles que se afastem dos desígnios
legais. As imposições morais são colocadas pelo soberano de fora para dentro,
de cima para baixo. Desse ponto, é observável que a teoria hobbesiana, não
aponta para um Estado onde se encontra a liberdade incondicional do indivíduo,
em função da necessidade de garantia da ordem estatal que poderia ser
comprometida com o embate dos interesses grupais, e ainda, é de se considerar
que a soberania também requer a liberdade para sobreviver.
118
Inserir na política e na comunidade política comportamentos
de submissão e temor, não correspondem as idéias presentes na polis. A cidade-
estado pressupunha a existência de iguais. Condição sine qua non para liberdade
era a igualdade, e, por conseqüência, a ausência de qualquer submissão.
Evidentemente, que a igualdade apontada, é a própria essência da liberdade, e
não pode ser tomada no seu conceito moderno vinculado a justiça. “A igualdade
era derivada do acontecimento político da liberdade, isto é, do fato dos homens
viverem juntos como cidadãos. Eles eram iguais não porque nasciam iguais, mas
como o resultado do status político que adquiriam como membros da polis
119
. A
116
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 41
117
RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental. A aventura das idéias dos pré-
socráticos a Wittgenstein. Trad. Laura Alves e Aurélio Rebello. 5. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,
2001, p. 275.
118
“Para obter a qualidade de cidadão, o homem natural abandona ao Estado racional sua
liberdade natural em favor de uma liberdade sob a forma de segurança; abandona sua liberdade
natural em favor da permanência e da distinção sob a forma de propriedade; e abandona sua
liberdade natural em favor da autonomia sob a forma de responsabilidade”. ANGOULVENT, Anne-
Laure. Hobbes e a moral política. Trad. Alice Maria Cantuso. São Paulo: Papirus, 1996.p.65.
119
RAMOS, César Augusto. O conceito (político) de liberdade em Hannah Arendt. in DUARTE,
André; LOPREATO, Christina; MAGALHÃES, Maria Brephol de. A banalização da violência: a
atualidade do pensamento de Hannah Arendt. 2004. p. 177
52
igualdade antiga pressupunha a existência de desiguais (mulheres e escravos),
que constituíam grande parte da população, “[...] ser livre significava ser isento da
desigualdade presente no ato de comandar, e mover-se numa esfera onde não
existiam governo nem governados.”
120
Essas são, para Arendt, as últimas características
claramente distinguíveis entre os conceitos antigos e modernos de política. Na
modernidade, as esferas sociais e políticas confluíram, e esta passou a ser uma
função da sociedade, fundamentos esses que foram herdados dos economistas
políticos modernos e aprofundados por Marx em suas teorias.
121
Se por um lado
Arendt se recusa a vincular a imagem de Marx com o totalitarismo moderno, por
outro, não afasta a incontestável constatação de que sua teoria contribuiu para o
esvaziamento da esfera pública, na medida em que erigiu a violência como motriz
da história, o trabalho como a atividade fundamental do homem e a formação das
sociedades de massa conectadas pela produção.
122
A colocação dos holofotes sobre a sociedade que imergiu do
interior dos lares para as luzes da esfera blica, para Arendt, é responsável o
somente pela impossibilidade de se estabelecer os limites entre o público e o
privado, mas muito mais, alterou o sentido próprio dos termos. Ao que denomina-
se privado atualmente é um espaço da intimidade que remonta ao último período
da civilização romana e que era desconhecido da cultura grega até o advento da
era moderna.
123
Denota-se que a intimidade contrapôs-se não à esfera
pública, mas muito mais, ao social. Não se trata para o moderno individualismo,
120
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 42
121
“Esta funcionalização torna impossível perceber qualquer grande abismo entre as duas esferas;
e não se trata de uma questão de teoria ou de ideologia, pois, com a ascendência da sociedade,
isto é, a elevação do lar doméstico (oikia) ou das atividades econômicas ao nível público, a
administração doméstica e todas as questões antes pertinentes à esfera privada da família
transformaram-se em interesse <<coletivo>>. ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 42
122
Em sua discussão do pensamento de Marx e dos assim chamados ‘elementos totalitários no
marxismo’, Arendt demonstra uma atitude cautelosa, evitando estabelecer qualquer linha direta
entre ambos os pólos.[...] As três teses fundamentais do pensamento de Marx, nas quais Arendt
concentra sua atenção, são as seguintes: 1) ‘O trabalho (labor) é o Criador do Homem’, segundo a
expressão de Engels; 2) ‘A violência é a parteira da historia’; 3) ‘Os filósofos até agora se
resumiram a interpretar o mundo; cabe transformá-lo” DUARTE, André. O pensamento à sombra
da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt. 2000. p. 156
123
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 48
53
de proteger a intimidade antes reservada ao lar, mas sim, garantir a intimidade do
coração.
124
No plano de governo do Estado, a sociedade alcança seu ápice no
final da era moderna com a burocracia, modelo de governo característico da era
moderna, onde ninguém governa e ninguém pode ser responsabilizado pelo caos
atual “[...] o governo de ninguém não significa necessariamente a ausência de
governo; pode, de fato em certas circunstancias, vir a ser uma das mais cruéis e
tirânicas versões.”
125
O que em comum se verifica em todas as esferas analisadas
é que a sociedade impregna uma cultura que exclui a ação e impõe o
comportamento. Espera-se que os indivíduos comportem-se segundo padrões
desejáveis, abolindo a espontaneidade e sugerindo a normalização. Essa coalizão
de comportamento refluiu os agrupamentos numa grande sociedade de massas, e
a igualdade moderna representa “[...] o reconhecimento político e jurídico do fato
de que a sociedade conquistou a esfera pública, e que a distinção e a diferença
reduziram-se a questões privadas do indivíduo.”
126
A crença e a expectativa de que os homens comportem-se
ao invés de agir, trouxe à cena a economia moderna juntamente com o
surgimento da sociedade, e com seu principal apoio: a estatística
127
. Somente em
culturas massificadas com grande número populacional é que faz sentido a
aplicação da estatística como meio de identificar os comportamentos desviantes e
indicar os caminhos desejáveis para o convívio em sociedade. O alto
desenvolvimento das ciências exatas, e o imperativo de suas leis como guias para
o desenvolvimento de todas as ciências sociais tornou estas, mecanismos de
dominação social através do desejo de normalização. “A triste verdade acerca do
124
“O primeiro eloqüente explorador da intimidade e, até certo ponto, o seu teorista foi Jean-
Jacques Rousseau; [...] Jean-Jacques chegou à sua descoberta mediante uma rebelião, não
contra a opressão do estado, mas contra a insuportável perversão do coração humano pela
sociedade, contra a intrusão desta última numa região recôndita do homem que, até então, não
necessitara de qualquer tipo de proteção especial.” ARENDT, Hannah. A condição humana.1997.
p. 48
125
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 50
126
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 51
127
“A uniformidade estatística o é de modo algum um ideal científico inócuo, e sim o ideal
político, agora não mais secreto de uma sociedade que, inteiramente submersa na rotina do
cotidiano, aceita pacificamente a concepção científica inerente à sua própria existência.” ARENDT,
Hannah. A condição humana. 1997. p. 53
54
behaviorismo e da validade de suas <<leis>> é que quanto mais pessoas existem,
maior é a possibilidade de que se comportem e menor a possibilidade de que
tolerem o não-comportamento.”
128
O que Arendt tenta demonstrar, e nisso se afasta da doutrina
de seu tempo, é que o princípio comunístico já estava presente nos próprios
liberais, antes de Marx. A definição de um interesse comum, na teoria dos liberais,
é que faz supor uma “mão invisível”, capaz de mediar os interesses conflituosos e
conduzir os comportamentos. O que distingue a teoria de Marx, é que este, foi
capaz de perceber que a socialização do homem conduziria, naturalmente, à
harmonia de todos os interesses, e para isso, propôs, expressamente a ficção
comunística. O que Marx não previu, e Arendt aponta, é que condicionar
comportamentos e construir uma sociedade sobre um único interesse, afasta-lhe
frontalmente do ideal de liberdade, pois, evidente, que a proposta comunística
assemelhava-se com um lar de dimensões de nação, e portanto, as regras da
vida privada não são regidas pela igualdade de seus pares.
129
Nesse período o que se denominava Estado é substituído
por administração, e a ciência econômica que foi determinante para normalização
dos comportamentos nessa esfera, foi seguida pelo alto desenvolvimento das
ciências sociais do comportamento, que apropriando-se do homem como objeto
de estudo, colocaram-no como animal que se comporta de forma condicionada.
130
Com a emergência da sociedade, sua tendência natural tem
sido sobrepor-se às esferas pública e privada. Ponto mais claro nesse processo é
a exposição pública da necessidade de sobrevivência. Até esse período, os
desejos e necessidades, por ser característica humana comum com os demais
128
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 53
129
Arendt, sustenta seus argumentos na obra de Myrdal, quando sustenta que “[...] que o
utilitarismo liberal, e não o socialismo, é <<forçado a manter uma ‘ficção comunística’insustentável
acerca da unidade da sociedade>>, e que <<a ficção comunística (é) implícita na maioria das
obras sobe economia.>> Myrdal demonstra categoricamente que a economia só pode vir a ser
uma ciência se presumir que um interesse permeia a sociedade como um todo. Por trás da <<
harmonia de interesses>>, está sempre a <<ficção comunística>> de um interesse único, que
pode então ser chamado de <<welfare>> ou de <<commonwealth>>. Consequentemente, os
economistas liberais foram sempre guiados por um ideal <<comunísticos>>, ou seja, pelo
<<interesse da sociedade como um todo>>. (194/95). In ARENDT, Hannah. A condição Humana.
1997. p. 53
130
ARENDT. Hannah. A condição humana. 1997. p. 54
55
animais, eram mantidas na sombra do lar. Com o crescimento da sociedade, e
sua transformação numa sociedade de operários, onde está presente um
interesse único na humanidade, esses desejos puderam tomar a esfera pública.
131
Para Arendt, além de mudar a estrutura da esfera pública, as
próprias atividades que passaram a ser admitidas em público alteraram seu
significado. Emblemática é a alteração na concepção que se tem do labor
132
,
quando admitido às luzes da esfera pública, que de lento e monótono
transformou-se em rápida alteração capaz de alterar o mundo habitado. O público
e o privado mostram-se incapazes de oferecer resistência ao crescimento do
natural, que supera, nessas sociedades, o perecimento normal desse processo na
esfera privada, “[...] foi como se o elemento de crescimento inerente a toda vida
orgânica houvesse completamente superado e se sobreposto aos processos de
perecimento através dos quais a vida orgânica é controlada e equilibrada na
esfera doméstica da natureza.”
133
Aumento da produtividade do trabalho (labor) e sua
organização, é o que ocorre na esfera pública e não encontrava respaldo para
estar presente na esfera privada. É nessa transformação que o labor (enquanto
divisão do trabalho), alcança a excelência, que nos antigos, jamais foi imaginada
para esta atividade humana. Para Arendt
134
:
Toda atividade realizada em público pode atingir uma excelência jamais
igualada na intimidade; para a excelência, por definição, sempre a
necessidade da presença de outros, e essa presença requer um público
formal, constituído pelos pares do indivíduo; não pode ser a presença
fortuita e familiar de seus iguais ou inferiores.
131
“Naturalmente, para que se tenha uma sociedade de operários não é necessário que cada um
dos seus membros seja realmente um operário ou trabalhador e nem mesmo a emancipação da
classe operaria e a enorme força potencial que o governo da maioria lhe atribui são decisivas
neste particular; basta que todos os seus membros considerem o que fazem primordialmente
como modo de garantir a própria subsistência e a vida de suas famílias.”ARENDT, Hannah. A
condição humana. 1997. p. 56
132
Das coisas tangíveis, as menos duráveis são aquelas necessárias ao próprio processo da
vida. Seu consumo mal sobrevive ao ato de sua produção. [...] Após breve permanência neste
mundo, retornam ao processo natural que as produziu, seja através de absorção no processo vital
do animal humano, seja através da decomposição;” ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997.
p.107
133
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 56
134
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 59
56
É claro ainda, que nem mesmo a supremacia da esfera
social fez perverter a inevitável conexão entre a excelência e a esfera blica,
porém, tornou evidente a fragilização da capacidade humana de discurso e ação.
A ruptura dessas concepções é apontada como resultado do incrível
desenvolvimento das ciências exatas e a par disso, a incapacidade das ciências
sociais em controlar e transformar a sociedade. Para Arendt, trata-se de
argumento falacioso, para velar a inevitável constatação de que não é possível a
excelência sem um espaço público que a ilumine.
2.3 A ESFERA PÚBLICA E O ESPAÇO DA POLÍTICA
Num de seus últimos textos, publicados postumamente,
Arendt considerou imprópria a afirmação de Charles Frankel de que nossos
direitos são privados e nossas obrigações são públicas.
135
De qualquer forma é
inequívoca em sua obra a conclusão de que as esfera pública e privada, devem
ser tratadas de modo diferente. Isso porque, em seu âmbito privado o homem tem
uma tendência natural a defender seus interesses e desconsiderar o bem comum.
“É por essa razão que ela contesta a idéia de que do jogo de interesses
individuais surge necessária e harmoniosamente o interesse público.”
136
O estudo do termo público, em Arendt, ganha dois sentidos
diversos, porém convergentes. Num primeiro momento, público, representa tudo
aquilo que pode ser exposto e visto por todos, aquilo a que se possibilita a maior
divulgação possível. A exposição pública dos fatos é o que nos garante a
realidade do mundo e de nós mesmos. Certo também, que a publicidade que
tanto preza Arendt, tem seus fundamentos hermenêuticos no domínio totalitário
obtido através do segredo. “O tudo ver sem ser visto é o que torna muito concreta
a observação arendtiana de que num Estado totalitário ‘o verdadeiro poder
135
ARENDT, Hannah. Public Rights and Private Interests. Citado por: LAFER, Celso. A
reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 1988. p.
237
136
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt. 1988. p. 237
57
começa onde o segredo começa”.
137
Desse ponto de análise, a possibilidade de
instituir um governo afastado do princípio da publicidade, leva a concretização do
Panopticon
138
de Bentham, tão bem esmiuçado por Foucault.
A preservação de um espaço público tem outra importante
função que é a palavra e a ação, que expostas à publicidade formam a
individualidade do homem. Externar sua opinião num espaço político, fazendo-se
ouvir e tomar conhecimento da perspectiva plural advinda do inter-relacionamento
deste espaço, é a própria constituição objetiva da imagem que se tem do mundo.
Se alguém quiser ver e conhecer o mundo tal como ele é ‘realmente’, só
poderá fazê-lo se entender o mundo como algo comum a muitos, que
está entre eles, separando-os e unindo-os, que se mostra para cada um
de maneira diferente e, por conseguinte, se torna compreensível na
medida em que muitos falarem sobre ele e trocarem suas opiniões, suas
perspectivas uns com os outros e uns contra os outros.
139
É nesse sentido que a pluralidade para Arendt, é a lei da
terra, pois tudo o que é na medida em que aparece, não existe no singular
requerendo a intersubjetividade. A palavra e a ação expostas no espaço blico é
que formam a realidade do que vemos e o os processos internos ou a base
psicológica.
140
A garantia da verdade e a nossa percepção da realidade surgem
da exposição pública dos fatos.
demonstrado, em Arendt, a íntima conexão entre a esfera
pública, a ação e a palavra como instrumentos da política e expressão da
liberdade. Em decorrência dessa conclusão é que Arendt julgou a Revolução
137
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt. 1988. p. 237
138
“Todos os mecanismos de poder que, ainda em nossos dias, são dispostos em torno do
anormal, para marcá-lo como para modificá-lo, compõem essa duas formas de que
longinquamente derivam. [...] O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição.
O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre, esta é vazada
de largas janelas [...] Basta então colocar um vigia na torre central, [...]. Em suma, o princípio da
masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções trancar, privar de luz e esconder só se
conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam
melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.” FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. p.
165/166
139
ARENDT, Hannah. O que é Política? Trad. Reinaldo Guarany. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2006. p. 60
140
LAFER, Celso. Hannah Arendt: Pensamento, persuasão e poder. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra,
2003. p. 74
58
Francesa como um desastre e a Revolução americana, que teve grande êxito, foi
relegada aos seus efeitos domésticos.
A Revolução Francesa, para Arendt, fracassou porque os
pobres levados por suas necessidades de sobrevivência, se socorreram aos
homens que estavam incumbidos da Revolução, e assim, “irromperam na cena da
revolução impregnando-a de simbolismo biológico, alimentando não as teorias
organicistas e sociológicas da história, como conferindo ao fato da pobreza a
denominação de questão social.
141
A conseqüência, como é verificada na história
é que “a prioridade teve de ser dada à libertação, e de que os homens da
revolução se desviaram cada vez mais daquilo que originalmente haviam
considerado seu mais importante objetivo, a elaboração de uma constituição.”
142
Com isso o cidadão da Revolução retorna a ser o individuo privado do século XIX
obliterando novamente o interesse pela liberdade política.
Porém, como alerta Arendt, nem todos os assuntos podem
suportar a exposição pública, por se tratar de espaço somente reservado aos
temas que tenham relevância para o comum, de sorte que o irrelevante deve ser
reservado para ser apreciado na esfera privada. Isso, como bem lembra
Arendt
143
, não significa que a vida privada seja fugaz e fútil, mas sim, que
assuntos da vida pública podem assumir extrema relevância para subsistência e
equilíbrio da vida privada e que seriam desvirtuados quando colocados sob os
olhos públicos.
Ao exemplificar historicamente o fundamento de suas
afirmações, Arendt, aponta os atos de amor como essencialmente privados e,
141
BRESCIANI, Stella. Política e Violência em da Revolução de Hannah Arendt. in DUARTE,
André; LOPREATO, Christina; MAGALHÃES, Maria Brephol de. A banalização da violência: a
atualidade do pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 2004. p. 209
142
ARENDT, Hannah. Da Revolução. Trad. Fernando Dídimo Vieira. São Paulo: Ática, 1988. p.
106
143
O que a esfera pública considera irrelevante pode ter um encanto tão extraordinário e
contagiante que todo um povo pode adotá-lo como modo de vida, sem com isso alterar-lhe o
caráter essencialmente privado. O moderno encantamento com <<pequenas coisas>>, embora
empregado pela poesia do século XX em quase todas as línguas européias, encontrou sua
representação clássica no petit bonheur do povo francês. Após o declínio de sua vasta e glorioso
esfera pública, os franceses tornaram-se mestres da arte de serem felizes entre <<pequenas
coisas>>, dentro do espaço de suas quatro paredes, entre o armário e a cama, entre a mesa e a
cadeira [...]”.ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 61
59
quando trazidos para esfera pública, tornam-se, irrelevantes e pseudo-
sentimentos. “Dada a sua inerente natureza extraterrena, o amor pode
falsificar-se e perverter-se quando utilizado para fins políticos, como a
transformação ou salvação do mundo.”
144
Nesse ponto, Arendt, afirma a política
dentro do mundo dos homens e afasta a metafísica como fundamento do poder
político. Outra constatação importante nesse período, é a exaltação das
“pequenas coisas”, presente na sociedade e cultura francesa após o incrível
declínio da esfera pública daquele país. Impulsionado pela poesia do século XX, o
povo francês passou a uma postura de encantamento com as atividades que a
vida entre quatro paredes lhes proporcionava. Esses dados, importam no
reconhecimento do atrofiamento da esfera pública, e, notadamente, significa que
a “grandeza cedeu lugar ao encantamento”.
145
Num segundo sentido, Arendt
146
coloca o termo público
enquanto o próprio mundo em que vivemos e comum a todos nós e ao mesmo
tempo diferente do espaço que nos cabe dentro dele. Ressalve-se, porém, que
não se confunde com o planeta ou a natureza enquanto espaço limitado
geograficamente que permite a locomoção dos homens. Antes, está relacionado
ao produto artificial produzido pela mão humana. É a produção humana que se
coloca entre o homem e que, ao mesmo tempo em que o separa, possibilita seu
inter-relacionamento. “A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na
companhia uns dos outros e, contudo evita que colidamos uns com os outros, por
assim dizer.”
147
Nas duas posições em que o termo blico é trazido por
Arendt, de plano, suas análises não podem ser aproximadas da teoria construída
144
ARENDT, Hannah. A condição Humana. p. 61
145
O que a esfera pública considera irrelevante pode ter um encanto tão extraordinário e
contagiante que todo um povo pode adotá-lo como modo de vida, sem com isso alterar-lhe o
caráter essencialmente privado. O moderno encantamento com <<pequenas coisas>>, embora
empregado pela poesia do século XX em quase todas as línguas européias, encontrou sua
representação clássica no petit bonheur do povo francês. Após o declínio de sua vasta e glorioso
esfera pública, os franceses tornaram-se mestres da arte de serem felizes entre <<pequenas
coisas>>, dentro do espaço de suas quatro paredes, entre o armário e a cama, entre a mesa e a
cadeira [...].” ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 61
146
A esfera pública, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo
evita que colidamos uns com os outros, por assim dizer.” ARENDT, Hannah. A condição Humana.
1997. p. 62
147
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 62
60
por Habermas. As duas construções teóricas distanciam-se, basicamente como
apontado por seus comentadores, por ter, Habermas pensado numa esfera
pública capaz de cristalizar o princípio da igualdade e colocar os agentes numa
igualdade discursiva, desconsiderando a pluralidade apontada por Arendt, como
essencial para formação política da esfera pública.
148
Para Arendt, na história somente a filosofia cristã, baseada
na idéia de comunidade, se propôs a manter unidos homens que não tinham
interesse num mundo comum. A idéia de irmandade que é fio condutor de toda
comunidade, impõe o princípio da caridade, fundamentado no amor, este,
sentimento extraterreno, e portanto, a política volta a ter uma essência metafísica.
A estrutura de uma comunidade, é guiada pela idéia de omissão do orgulho
(princípio da filosofia cristã), e submissão a regras e regulamentos, como os
existentes nas ordens monásticas (a grande família cristã). “O caráter apolítico e
não-público da comunidade cristã foi bem cedo definido na condição de que
deveria formar um corpus, cujos membros teriam entre si a relação que m os
irmãos de uma mesma família.”
149
A intenção de viver uma vida transitória sem qualquer
pretensão de construir algo que permaneça além de sua própria existência é o
mais claro resultado da filosofia cristã, que não preparava homens políticos mas,
servos comprometidos com sua própria salvação. A pretensão de imortalidade,
para Arendt, é indispensável para constituir uma esfera pública sólida. “Sem essa
transcendência para uma potencial imortalidade terrena, nenhuma política, no
sentido restrito do termo, nenhum mundo comum e nenhuma esfera pública são
possíveis.”
150
É indispensável, nesse sentido, romper com a concepção de mundo
148
“Como vários comentadores têm reconhecido, a visão habermasiana da esfera pública não leva
em conta as dimensões performativas da ação humana e a possibilidade de revelação e
constituição da identidade pessoal que o espaço público permite. Para ele, a esfera pública não
possibilita a transformação da identidade nem fornece a chance de desenvolver uma existência
mais autêntica do que em outras dimensões humanas. A identidade se constitui antes da entrada
na esfera pública, o que representa a sua diferença fundamental com Arendt. Da mesma maneira,
Habermas não considera a pluralidade, que se encontra na base da teoria da ação arendtiana.
Sua teoria aponta antes para a superação das diferenças. Eu modelo postula uma igualdade
discursiva que anula as diferenças entre os agentes, as quais são tratadas como pertencentes à
esfera do interesse privado.” ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida,
Foucault. 2000. p. 21/22.
149
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 63
150
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 64
61
comum cristão ligado à salvação da alma e fixá-lo, como o espaço que nos
posicionamos ao nascer e deixamos ao morrer. “Transcende a duração de nossa
vida tanto no passado quanto no futuro: preexistia à nossa chegada e sobreviverá
à nossa breve permanência. É isto que temos em comum não com aqueles
que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e
aqueles que virão depois de nós.”
151
A preocupação pela construção de algo que
garantisse a sua imortalidade, que sobrevivesse a sua própria existência foi
sufragada pela metafísica cristã e o desejo de salvar a alma na intimidade de
suas orações.
A indiferença da era moderna pelas coisas terrenas, em
consonância com o princípio cristão que voltava as atenções para o extra-
sensorial, intensificou o uso e o gozo das coisas produzidas, reforçando a
futilidade daquilo que é produzido. Nesse ponto, a opinião desse momento
histórico sobre a esfera pública, é que a admiração pública poderia ser medida
em proporções monetárias. “A admiração pública é também algo a ser usado e
consumido; e o status, como diríamos hoje, satisfaz uma necessidade como o
alimento satisfaz a outra: a admiração pública é consumida pela vaidade
individual da mesma forma como o alimento é consumido pela fome.”
152
A
referência monetária passa a direcionar todas as relações firmadas na esfera
pública, e a mortalidade buscada é controlada pelo valor alcançado no trabalho
desenvolvido.
O que a vida pública oferece, e nem mesmo o mais amplo e
irrestrito convívio familiar pode proporcionar é a exposição pública de um mesmo
fato e a possibilidade de que seja visto por diversos ângulos, formando assim, a
realidade do mundo.
153
Nesse sentido, Arendt, é colocada como uma das
principais críticas da democracia representativa, sob a perspectiva que esse
151
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 65
152
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 66
153
Ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos
diferentes. É este o significado da vida pública, em comparação coma qual até mesmo a mais
fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer somente o prolongamento ou a multiplicação de
cada individuo, com os seus respectivos aspectos e perspectivas.[...] Somente quando as coisas
podem ser vistas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de
sorte que os que estão à sua volta sabem que vêem o mesmo na mais completa diversidade, pode
a realidade do mundo manifestar-se de maneira real e fidedigna.” ARENDT, Hannah. A condição
humana. 1997. p. 67
62
modelo contribuiu para a despolitização das sociedades conduzindo à inércia da
ação política. Os partidos políticos, para Arendt, não oferecem adequadamente o
espaço que foi suprimido na esfera pública, servindo, quando muito, para legitimar
as oligarquias no poder, mediante a inteligente utilização dos meios midiáticos
para manipulação de opiniões e posições políticas.
154
O modelo de partidos nos Estados Unidos e na Grã-
Bretanha, analisados por Arendt em, Da Revolução, demonstram que, o máximo
que os partidos podem proporcionar aos seus representados, é a viabilidade de
seus interesses frente aos interesses dos outros grupos representados, mas
jamais, fazer prevalecer suas ações ou opiniões, assim, dificilmente pode-se
entender que o cidadão seja participante dos negócios públicos. O que se
consegue nesse modelo, é apenas o bem-estar pessoal através força da
chantagem, o que se encontrava na esfera privada e não deveria ter jungido à
esfera blica. A palavra somente seria capaz de frutificar num espaço aberto e
democrático, de verdadeiro embate na busca do interesse público, lugares em
que não estão presentes estas características o que se tem são, nas palavras de
Arendt, estados de ânimo.
155
Arendt, se coloca no lado contrário àqueles que vêem na
natureza humana o ponto em comum entre os homens. Mais do que isso, o que
importa, é que homens diferentes tenham interesse na preservação de um
mesmo mundo em comum, respeitadas as diversas perspectivas possíveis de se
ver esse mundo. As tiranias e as sociedades de massa, retiram do mundo comum
muitos aspectos pelos quais ele se apresenta à pluralidade humana.
Em ambos os casos, os homens tornam-se seres inteiramente privados,
isto é, privados de ver e ouvir os outros e privados de ser vistos e
ouvidos por eles. São todos prisioneiros da subjetividade de sua própria
154
ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000. p. 19
155
“As opiniões se formam num processo de discussão aberta e de debate público, onde o
existe oportunidade para a formação de opiniões, o que pode haver são estados de ânimo das
massas ou dos indivíduos, esses não menos inconstantes e falíveis do que aqueles -, mas não
opiniões. Dessa forma, o melhor que um representante pode fazer é agir como seus
representados agiriam, se eles próprios tivessem a oportunidade de fazê-lo. [...] Em todos esses
exemplos, o eleitor age impulsionado pelos interesses de sua vida privada e bem-estar pessoal, e
o poder com que um chantagista força sua vítima à obediência do que ao poder que emerge da
ação e deliberação conjugadas. ARENDT, Hannah. Da Revolução. 1988. p. 214/215
63
existência singular que continua a ser singular ainda que a mesma
experiência seja multiplicada por inúmeras vezes. O mundo comum
acaba quando é visto somente sob um aspecto e se lhe permite uma
perspectiva.
156
Na atualidade, o que se verifica, é que a difusão dos limites
entre as esferas pública e privada, confluindo para o social, trará uma
sobreposição do Poder Judiciário sobre os demais poderes, e, em conseqüência
que, unicamente, pelo seu ponto de vista, sejam decididas ao mesmo tempo
questões políticas e privadas aquelas que se referem à administração do
Estado e também as que se restringem à administração do lar (educação,
sobrevivência, etc.).
Tratar de assuntos políticos por uma esfera não
democrática, é impossível para constituição de cidadãos de ação e opinião.
Requisito inafastável da política é a possibilidade de que um assunto possa ser
visto e discutido sob diversos enfoques diferentes, o que impede sua redução a
uma única esfera. “Sua teoria performativa da ação e sua visão agonística da
política indicam antes uma ação política instantânea, múltipla: política como
acontecimento e começo, como interrupção de processos automáticos.”
157
O
esfacelamento da esfera pública ocorre, justamente, quando são suprimidas as
diversas possibilidades pelas quais ela pode ser concebida e a deixam atrelada
ao Estado ou qualquer outro espaço institucionalizado. Ação e discurso são
elementos indispensáveis para constituição da esfera pública e colocam-se como
condições para que o homem possa revelar sua identidade e autenticidade.
A era moderna como já demonstrado, também alterou a
forma de aquisição e aplicação do poder, não admitindo a justificação de
concessão divina ou argumentos transcendentes para seu exercício, nem mesmo
admite-se, seguramente, a necessidade de forças externas para sua sustentação.
Notadamente, a esse fenômeno, a era moderna propiciou um novo modelo de
ciência normativa e jurídica, com a positivação do direito e a reivindicação pelo
Estado do monopólio de sua aplicação.
156
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 67/68
157
ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault. 2000. p. 25
64
O que se percebe com o constante afastamento dos
cidadãos da esfera pública, e a busca, no Estado-juiz, dos direitos e interesses
pessoais, e o mais comuns, é o reflexo de uma das vertentes da crise de
comunidades políticas fluídas totalmente no social, naquela estrutura
organizacional onde não existe um interesse comum, e onde os cidadãos se
distanciam dos centros de decisão do poder político. A solução de problemas
políticos e sociais nas barras do Poder Judiciário, trouxe, em última instância
sérios questionamentos quanto a legitimidade. “Isto significa admitir, ao menos
tipificadamente, que os sistemas sociais perdem sua força integradora na medida
em que os indivíduos não mais se sentem vinculados aos centros de decisão e
não mais apóiam, nem tacitamente, suas diretrizes.”
158
Problematizar o local onde as decisões devem ser tomadas,
para que sejam legítimas, assim entendidas, quando satisfaçam minimamente as
expectativas de seus destinatários, é colocar frente a frente o direito e a política
para redefinir seus espaços de atuação. Na esteira da teoria de Arendt, é sabido
que as fissuras encontradas entre as práticas da era moderna e a
incompatibilidade do desenvolvimento teórico de seu tempo, têm provocado
grande instabilidade política e visível fragilidade dos ordenamentos jurídicos para
protegê-la efetivamente. O desenvolvimento da atuação dos Poderes, e nele
incluído o Poder Judiciário, tem se adaptado mais facilmente ao desenvolvimento
tecnológico, que a própria garantia de expressão do poder legítimo. Como define
Adeodato
159
:
No âmbito especificamente jurídico-político, sem esquecer o evidente
condicionamento ontológico entre direito, política, moral, religião e outros
enfoques para conhecimento do social, existe crise quando o se sabe
se as decisões tomadas pelo centro formal do poder o poder
anteriormente instituído no grupo serão suficientes para dirimir os
conflitos, sem comprometer o equilíbrio entre o ordenamento jurídico e a
realidade político-social a que se refere.
158
ADEODATO, João Mauricio Leitão. O problema da legitimidade: no rastro do pensamento de
Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 7
159
ADEODATO, João Mauricio Leitão. O problema da legitimidade: no rastro do pensamento de
Hannah Arendt. 1989. p. 6
65
Atualmente, política e direito tomaram distanciamentos
difíceis de superar, mas facilmente verificável o fechamento dos espaços abertos
e democráticos de debate, para definição daquilo que é importante para o comum
além dos interesses individuais de seus integrantes.
2.4 A ESFERA PRIVADA E O ESPAÇO DA ECONOMIA
Tomar a distinção entre o público e o privado sob a
perspectiva deste, é avaliar aquilo que pode e deve ser mostrado em público, ou,
ganhar a esfera pública por constituir interesse comum, e aquilo que pode e deve
ser omitido, resguardado para o segredo dos lares. A concepção do termo privado
é tomada em contraposição às múltiplas acepções possíveis para o termo público.
Quando vive uma existência restrita ao conforto de seu lar, o indivíduo se priva
das relações objetivas que resulta das inter-relações com seus pares. As relações
dialógicas advindas do convívio público não podem ser suprimidas por uma vida
tombada nos estritos limites do lar, e exclui a possibilidade de discursar e ouvir, e
assim, realizar algo que permaneça após sua passagem pelo mundo. Nesse
ponto, que o termo privado ganha o sentido próprio de privação.
160
No entanto,
pelo simples fato de não ser exposto à publicidade da esfera pública, não reduz a
importância de uma esfera privada, inclusive, para estabilidade do domínio
político. “Existem, observa Hannah Arendt, traços do privado que foram
historicamente encarados pelos gregos e pelos romanos como positivos e que,
neste sentido, são independentes e antecedem à descoberta e à tutela da
intimidade.”
161
O afastamento dos homens das relações públicas na era
moderna, principalmente verificado pelo fenômeno da solidão nas sociedades de
160
“É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo <<privado>>, em sua
acepção original de <<privação>>, tem significado. Para o indivíduo, ser destituído de coisas
essenciais à vida significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida
verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por
outros, [...]”ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 68.
161
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt. 1988. p. 237
66
massa, é acompanhado também pelo esfacelamento da esfera privada o
espaço sagrado do lar, garantidor da segurança e conquista do povo romano que
entendia a necessidade de sua coexistência ao lado do público. No entanto, a
preocupação de passar uma vida insignificante no lar, sem qualquer participação
política na esfera pública, desapareceu com o advento da filosofia cristã, que
insistia para que cada um se ocupasse das suas tarefas e preocupações no
interior de suas casas, reservando a atuação política àqueles que se prestavam
fazer o bem comum.
A diferença de Marx e da filosofia cristã, de acordo com
Arendt
162
, não se estende às suas concepções sobre a esfera pública, mas tão
somente, à concepção que tinham da natureza humana. Tanto em Marx como na
doutrina cristã a esfera pública retrocedeu e enxugou a atuação do governo até
alcançar uma economia doméstica de proporções nacionais. Facilmente, se
percebe que o declínio da esfera pública foi seguido pela queda da esfera
privada.
Marx inverte a proposta aristotélica que guiou o lugar do
trabalho e da política da Grécia antiga. Ciente do lugar privado que o trabalho
ocupava, e que sua função era, essencialmente a de livrar o homem de suas
necessidades e ascender à esfera pública, relegando ao desaparecimento do
Estado e da política para substituí-los pela administração dos negócios. Duas
conseqüências lógicas desse momento são percebidas por Arendt: por um lado, a
transformação da esfera pública política em esfera privada, por outro, a colocação
da propriedade como fonte de acúmulo de riquezas.
163
A própria concepção de
homem para Marx se altera com essa ruptura de paradigma a principal
162
“O que é impossível perceber de um ponto de vista ou de outro é que a <<decadência do
estado>> de Marx havia sido precedida pela decadência da esfera pública ou, antes, por sua
transformação numa esfera muito restrita de governo. Nos dias de Marx esse governo já começara
a decair ainda mais, isto é, a ser transformado numa <<economia doméstica>> de dimensões
nacionais, até que, em nossos dias, começa a desaparecer completamente sob a forma da esfera
ainda mais restrita e impessoal da administração.” ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997.
p. 70
163
“Na sociedade ideal de Marx, pensa Arendt, os homens ocupariam seu tempo livre não coma
discussão e a ação políticas, mas com a proliferação de hobbies privados, alusão ao idílio utópico
de uma sociedade da abundancia em que os homens poderiam se dedicar à pesca, durante o dia,
e à critica literária, à noite.” DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e
Filosofia em Hannah Arendt. 2000. p. 82
67
característica humana sempre colocada no discurso, na ação e na sua
capacidade racional, aloca-se, agora, também em sua força produtiva, ou, na sua
capacidade de trabalho. “Para Arendt, Marx não mais define o homem como o
animal rationale ou o animal socialis da tradição tomista, mas como um animal
laborans, um ser do trabalho e para o trabalho.
164
Importante, livrar Arendt de um
erro comum de interpretação da teoria marxista, a afirmação de que Marx negou a
capacidade racional humana e concentrou-se no trabalho. Ao contrário de toda a
tradição, o que Marx pensou, de acordo com Arendt, é que a capacidade racional
do homem somente se perfaz na materialização do trabalho, enquanto atividade
vital da espécie humana.
Os conflitos dessas transformações refluiu para discutir o
lugar da propriedade privada em relação ao próprio termo “privado”. Antes da era
moderna, a propriedade privada não tinha a conotação de riqueza, e muito
menos, tinha oposição direta com a esfera pública, era antes, indispensável para
estabilidade dessa. Inicialmente, a propriedade significava tão somente que o
individuo tinha um lugar no mundo que lhe proporcionava segurança e superação
das agruras da sobrevivência, assim, permitindo seu sobressalto para ser
admitido no desfrute da liberdade junto com seus pares na esfera pública. Como
afirma Arendt
165
:
O atual surgimento, em toda parte, de sociedades real ou potencialmente
muito ricas, nas quais ao mesmo tempo não existe propriedade, porque
a riqueza de qualquer um dos seus cidadãos consiste em sua
participação na renda anual da sociedade como um todo, mostra
claramente quão pouco essas duas coisas se relacionam entre si.
A prova de que a riqueza não se vinculava com a aquisição
da cidadania ou a aproximação teórica do conceito de propriedade é que,
estrangeiros ou escravos ricos não poderiam ascender à esfera pública, mesmo
detentores de grandes propriedades ou riquezas. A propriedade, nesse momento,
ocupava o lugar das coisas ocultas juntamente com o nascimento e a morte -, e
por isso deveria ser mantida na privatividade do lar, e alcançava o status de
164
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt.
2000. p. 83
165
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 71
68
sagrado, na medida em que os homens não entendiam como se dava o seu
fenômeno.
A aparência de oculto dessas esferas é que, segundo
Arendt, era importante para a cidade. A lei reservava-se a definir os limites entre
essas esferas. Enquanto o lar garantia o processo biológico da sobrevivência e do
labor, a lei, ainda que não fizesse parte da ação política, definia os muros dessa
ação.
166
Desta forma, é engano afirmar que a propriedade era fator
indispensável para inclusão na vida política. A propriedade tinha muito mais do
que essa função, era indispensável para sobrevivência e superação das
necessidades, e assim, permitir que o homem livre de suas necessidades
participasse da vida livre da polis. Porém, jamais nesse período, o conceito de
propriedade esteve vinculado ao valor da propriedade enquanto significado de
riqueza.
167
2.5 A ERA MODERNA E O SOCIAL
Conforme visto anteriormente, a ascensão da preocupação
pública com a propriedade foi fator determinante para a solidificação do que se
denominou de social. Note-se bem, que neste momento, propriedade não é mais
compreendida no sentido dos antigos, como o lugar no mundo indispensável para
166
“A lei da cidade-estado não era nem o conteúdo da ão política (a idéia de que a atividade
política é fundamentalmente o ato de legislar, embora de origem romana, é essencialmente
moderna e encontrou sua mais alta expressão na filosofia política de Kant) nem um catálogo de
proibições, baseado, como ainda o são toda as leis modernas, nos <<Não farás>> do Decálogo.
Era bem literalmente um muro, sem o qual poderia existir um aglomerado de casas, um povoado
(asty), mas não uma cidade, uma comunidade política. Essa lei de caráter mural era sagrada, mas
o recinto delimitado pelo muro era político.” ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p.
73
167
“Caso o dono de uma propriedade preferisse ampliá-la ao invés de utilizá-la para viver uma
vida política, era como se ele espontaneamente sacrificasse a sua liberdade e voluntariamente se
tornasse aquilo que o escravo era contra a sua vontade, ou seja, um servo da
necessidade.”ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 75 “Até o inicio da era moderna,
este tipo de propriedade nunca foi visto como sagrado; [...] De qualquer forma, os modernos
defensores da propriedade privada, que unanimemente a vêem como riqueza particular e nada
mais, pouco motivo têm para apelar a uma tradição segundo a qual não podia existir uma esfera
pública livre sem o devido estabelecimento e a devida proteção da privatividade. Pois o enorme
acúmulo de riqueza ainda em curso na sociedade moderna, que teve início com a expropriação
[...] jamais demonstrou grande consideração pela propriedade privada; ao contrário, sacrificava-a
sempre que ela entrava em conflito com o acúmulo de riqueza. ARENDT, Hannah. A condição
humana. 1997. p. 76/77
69
se libertar das necessidades e agruras humanas e viver a liberdade com seus
pares na esfera pública, aqui, ela é tomada como sinônimo de riqueza, e o que os
burgueses fazem, é buscar seu acúmulo, entendendo indispensável para isso, a
proteção da esfera pública. Esta uma das importantes rupturas de paradigma
desse momento histórico, quando, ao invés de arrogarem-se o direito de participar
da esfera pública pela aquisição da propriedade, a burguesia prefere, utilizá-la
como sustentáculo para que continuem acumulando riquezas. o se trata de
uma mudança inocente, que alterou a própria concepção que se tem do mundo
no momento em que a riqueza tomou a esfera pública, o mundo tornou-se
instável e consumível, findável com seu proprietário. “Somente quando a riqueza
se transformou em capital, cuja função única era gerar mais capital, é que a
propriedade privada igualou ou emulou a permanência inerente ao mundo
compartilhado por todos.”
168
A riqueza por aparentar ser comum pode trazer a falsa
impressão que se constituiu uma nova esfera blica. No entanto, a riqueza
permanece privada e, em comum, os proprietários apenas mantêm um governo
que os separe e garanta a segurança na competição por mais riqueza, portanto,
sem qualquer interesse pelos assuntos da política. Arendt, quando se refere ao
governo, aponta sua contradição óbvia:
A contradição óbvia deste moderno conceito de governo, onde a única
coisa que as pessoas têm em comum são os seus interesses privados,
não deve nos incomodar como ainda incomodava Marx, pois sabemos
que a contradição entre o privado e o público, pica dos estágios iniciais
da era moderna, foi um fenômeno temporário que trouxe a completa
extinção da própria diferença entre as esferas privada e pública, a
submersão de ambas na esfera do social.
169
As conseqüências óbvias dessas transformações foram que,
a esfera pública se submeteu completamente à esfera privada, enquanto esta,
tornou-se a única preocupação da esfera pública. Dessas constatações, Arendt
tira duas importantes observações: a primeira, é o perceptível surgimento da
intimidade como resgate do sentido perdido da esfera privada, ou seja, a busca
168
Segue ainda Arendt: “Essa permanência, contudo, é de outra natureza: é a permanência de um
processo e não a permanência de uma estrutura estável. Sem o processo de acumulação, a
riqueza recairia imediatamente no processo oposto de desintegração através do uso e do
consumo.” ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 79
169
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 79
70
de um local onde os sentimentos possam ser preservados das luzes do público;
segundo, é a construção moderna na obra de Marx, da “força de trabalho”,
concebida como propriedade, porém, em contradição com seu conceito
tradicional, agora, uma propriedade móvel, fungível e transformada em
pecúnia.
170
A filosofia política moderna, parece ter acompanhado esse conceito
de propriedade, como se verifica na obra de Locke, citado por Arendt
171
, como um
dos indícios dessa nova concepção da origem da propriedade, como resultante
das mãos do próprio homem.
Os mais evidentes resultados dessa transformação são, em
primeiro lugar, que a necessidade ascende à prioridade da sociedade para qual a
propriedade serve, e de outra forma, garante, na filosofia política desse período,
os malefícios sociais da apatia para um grande desenvolvimento da riqueza; em
segundo, que o homem perde o espaço somente seu; o local onde se esconde da
publicidade e do risco de uma vida superficial. Nesse ponto, Arendt
172
choca-se
frontalmente a filosofia de Locke, que exige a propriedade como indispensável
para uma vida com valor.
Quando conjuga as principais características da vita activa
labor
173
, trabalho
174
e ação
175
Arendt, ressalva, a importância de se manter os
firmes limites entre a esfera blica e privada, mormente, quando, antes da era
moderna, visualiza-se, facilmente, que cada uma daquelas características tinha
seu lugar no mundo. Não se trata de dizer que somente o que está em público é
170
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 80
171
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 80
172
“[...] as nossas posses particulares, que usamos e consumimos diariamente, são muito mais
urgentemente necessárias que qualquer parte do mundo comum; sem a propriedade, como disse
Locke, <<de nada nos vale o comum>>.”ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 81.
173
“O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano [...] A condição
humana do labor é a própria vida.”ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 15
174
“O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana [...]. Dentro de
suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a
transcender todas vidas individuais.” ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 15
175
A ão [...] corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o
Homem, vivem na terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma
relação com a política. Mas esta pluralidade é especificamente a condição – não somente a
conditio sine qua non, mas a conditio per quam de toda vida política. ARENDT, Hannah. A
condição humana. 1997. p. 15
71
que merece importância e atenção para o melhor desenvolvimento humano.
176
Resta sim, em sua teoria como indiscutível, que cada uma das condições
humanas, para que exerça sua função na vida do indivíduo seja mantida ou sobre
a sombra da esfera privada ou exposta às luzes da esfera pública.
Uma das principais conseqüências do surgimento do social é
a constituição das massas. Esse novo modelo de organização da sociedade,
conglomera multidões sem qualquer interesse em comum ou aptidão política.
“Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das
pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e
raramente exercem o poder do voto.”
177
O traço inconfundível da definição das
massas, é que o agrupamento de pessoas que se forma não tem qualquer
interesse em comum, mostrando-se, mesmo individualmente, indiferentes a si
mesmos.
178
As massas, produto de fácil maleabilidade para os regimes
totalitários, traz o sentimento de ser dispensável num mundo em que prevalece a
ruptura e a indiferença com o senso comum e a preocupação com os interesses
públicos. Nesses modelos, não o aplicáveis as distinções básicas da filosofia
política quanto a forma de governo em oligarquia, monarquia, aristocracia ou
democracia. É necessário, segundo Arendt, acrescentar uma última e mais
eficiente forma de dominação representada pela burocracia, “ou o domínio de um
sistema intrincado de departamento nos quais nenhum homem, nem um único
nem os melhores, nem a minoria, pode ser tomado como responsável, e que
deveria mais propriamente chamar-se domínio de Ninguém.”
179
176
“Embora a distinção entre o privado e o público coincida com a oposição entre a necessidade e
a liberdade, entre a futilidade e a realização e, finalmente, entre a vergonha e a honra, não é de
forma alguma verdadeiro que somente o necessário, o fútil e o vergonhoso tenham o seu lugar
adequado na esfera privada. O significado mais elementar das duas esferas indica que coisas
que devem ser ocultadas e outras que necessitam ser expostas em público para que possam
adquirir alguma forma de existência. ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 83/84
177
ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Comentários presentes em DUARTE, André. O
pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt. 2000. p. 48
178
“A massa é, portanto, um agregado numeroso de indivíduos atomizados, quer dizer,
individualizados e isolados em função da dissolução das relações sociais costumeiras. Estes
indivíduos são também desenraizados, ou seja, destituídos de referencias comuns, permanecendo
alheios a qualquer interesse, seja ele comum ou próprio.”
179
“Se, de acordo com o pensamento político tradicional, identificarmos a tirania com o governo
que não presta contas a respeito de si mesmo, então o domínio de Ninguém é claramente o mais
tirânico de todos, pois aí não há ninguém a quem se possa questionar para que responda pelo que
está sendo feito. É este estado de coisas, que torna impossíveis a localização da responsabilidade
72
O impacto visível desse processo de transformação das
relações entre o público, o privado e o social e suas expressões na ação,
fabricação e trabalho é, nas sociedades de massa, a fixação da instrumentalidade
e do consumo como fonte básica de relacionamento com o mundo. “A era
moderna é, para Hannah Arendt, mais adequadamente pela alienação em relação
ao mundo: no duplo sentido do abandono da Terra em direção ao universo e
abandono do mundo em direção ao seu interior.”
180
Bem definido por Arendt, é a
própria perda do mundo, percebida, principalmente com os três eventos que
marcaram a modernidade a chegada dos europeu à América, a Reforma
Protestante e a invenção do telescópio.
Em cada espaço próprio de conhecimento os três eventos
modernos apontados por Arendt, permitiram um distanciamento cada vez maior
do homem em relação a terra, ao passo que o tornou introspecto, preocupado
com suas próprias angústias e indiferente ao comum.
181
Por outro rtice, “[...]
nada que possa ser medido pode permanecer imenso; toda medição reúne
pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade onde antes havia
distância.”
182
Essa possibilidade de ter o universo próximo dos olhos foi propiciada
pelo telescópio e a partir daí, se estabelece um novo paradigma, o de que a
movimentação corporal na terra obedece as leis exatas que regem os corpos
celestes, o que justificaria o estabelecimento da matemática como a principal
ciência da era moderna, que produz suas leis através da própria mente sem a
necessidade de qualquer estímulo externo a não ser a si mesma.
e a identificação do inimigo, que está entre as mais potentes causas da rebelde inquietude
espraiada pelo mundo de hoje, da sua natureza caótica, bem como da sua perigo tendência para
escapar ao controle e agir desesperadamente.” ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Trad. André
Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 33
180
CORREIA, Adriano. O deságio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. in
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 227.
181
“A chegada a América teria promovido uma ampliação do espaço e um encurtamento da
distância (na relação das pessoas entre si e com o espaço terrestre), ao passo que a invenção do
telescópio teria lançado a humanidade para a descoberta para além dos limites da terra. A
Reforma, por outro lado, teria levado a cabo a alienação em direção a um mundo interior,
coroando a desterritorialização com a universalização do individuo humano enquanto ser racional.”
CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In MORAES,
Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. 2001.
p. 227/228
182
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 262
73
Não é de ser esquecido como demonstra Arendt, que a era
moderna e as conseqüências de seus eventos, não são frutos do pensamento
filosófico da época, e sim, da própria ciência
183
. Os métodos científicos advindos,
basicamente, dos sentidos e da razão tornam-se insuficientes para satisfazer a
dúvida cartesiana. “Através da matemática se reduziu tudo o que está para além
do homem à estrutura da sua própria mente e simultaneamente se instaurou o
ambiente de suspeita e desespero advindo da constatação da impotência dos
sentidos ante a regra única que guia tanto o universo quanto o mundo da ação e
do pensamento.”
184
Da doutrina de Descartes, o que resta indubitável ao homem
é o estabelecimento da dúvida em sua mente, e esta constatação, aproxima
inexoravelmente certeza e introspecção. Essa certeza é assegurada pelo fato de
que em sua produção somente interveio o seu produtor.
185
O que Descartes fez, foi transferir o ponto arquimediano de
conhecimento do homem de fora da Terra, para dentro de sua própria mente,
resultando, na confiança do homem somente nos processos que produzisse e
controlasse.
186
A conseqüência imediata, que trouxe a segurança buscada pela
teoria de Descartes, após o assombro da descoberta de Galileu, é que a
transferência do ponto de vista arquimediano, para um processo mental que reduz
o conhecimento às equações matemáticas substituindo a fragilidade das
impressões trazidas pelos sentidos a relações lógicas entre símbolos criados pelo
183
Como dissemos acima, não são idéias, mas eventos que mudam o mundo: o sistema
heliocêntrico, como idéia, é tão velho quanto a especulação pitagórica e tão persistente em nossa
historia quanto as tradições platônicas, e nem por isso jamais mudou o mundo ou a mente
humana.” ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 262
184
CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 228
185 “De fato, a introspecção não a reflexão da mente do homem quanto ao estado de sua alma
ou do seu corpo, mas o mero interesse cognitivo da consciência em relação ao seu próprio
conteúdo (e esta é a essência da cogitatio cartesiana, onde cogito sempre significa cogito me
cogitare) deve produzir a certeza, pois na introspecção está envolvido aquilo que a própria
mente produziu; ninguém interfere, a não ser o produtor do produto; o homem vê-se diante de
nada e de ninguém a não ser de si mesmo.” ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 293
186 “Se o Ser e a Aparência estão definitivamente separados – e este, como observou Marx certa
vez, é realmente o pressuposto básico de toda a ciência moderna -, então nada resta que possa
ser aceito de boa fé; tudo de ser posto em dúvida.” ARENDT, Hannah. A condição
humana.1997. p. 287
74
próprio homem. “E o pressuposto é que nem um Deus nem um mau espírito pode
alterar o fato de que dois e dois são quatro.”
187
O que traz importantes transformações para a constituição
política da era moderna, é a alteração que esse novo modelo de ciência
proporcionou na estruturação da vita activa, com a supremacia do homo faber
num espaço antes reservado à contemplação. “O progresso da ciência depende
cada vez mais do gênio experimental do cientista aliado ao avanço da tecnologia,
e a partir dconhecer e fazer uso de instrumentos passaram a ser momentos
complementares.”
188
Essa postura está em consonância com sua nova convicção
de que somente estará seguro em processos por ele mesmo provocados.
Inicia-se uma nova concepção da própria convicção do
homo faber, assumindo o processo de fabricação como etapa mais importante
que o próprio produto final alcançado. Como comenta Correia
189
, ao falar da
modernidade na obra de Arendt:
Vai haver uma inversão dentro da vita activa, pois a cientifização da
política passa pela valorização do homem como construtor e fabricante,
prerrogativas do homo faber. Em conseqüência, a preocupação do
conhecimento irá voltar-se para o ‘como’ e não mais para ‘o que’, isto é,
a história tornou-se objeto da ciência, à medida que é a noção de
Processo que passa a fornecer ao fabricante a possibilidade de repetir
na experimentação.
A era moderna passa a ser caracterizada, principalmente,
pela presença em sua constituição das atitudes típicas do homo faber, como sua
intrumentalização do mundo e a confiança e valorização na produtividade do
fabricante de objetos artificiais; a presunção de reduzir todas as questões sobre o
princípio da utilidade; a idéia de que o mundo se constitui em matéria prima,
manipulável e transformável pela vontade humana; seu desprezo pelo
pensamento que não gere, imediatamente, um processo de fabricação de coisas
artificiais, e por fim, sua constante identificação da ação com a fabricação.
187 ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 297
188 CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 230
189
CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 231
75
O final da ruptura da superioridade do paradigma da vita
contemplativa e da inversão entre a compreensão entre ação e fabricação é a
vitória do animal laborans sobre o homo faber. A compreensão da difusão dos
conceitos do labor e da fabricação na era moderna é indispensável para chegar-
se à sua base teórica.
190
A durabilidade e a estabilidade das coisas que estão no
mundo o frutos da fabricação, enquanto resultado da atividade do homo faber
de trabalhar sobre materiais. Em sentido diverso, a atividade do homo laborans
não é distinguível dos materiais, se consumindo no próprio processo vital. “A
diferença entre fabricação e trabalho é análoga à que se entre o uso e o
consumo, entre o desgaste e a destruição.”
191
Embora o produto da fabricação sofra os desgastes naturais
de sua utilização, ele goza de certa durabilidade, ao contrário do fruto do trabalho
que se consome no próprio processo de produção. Neste caso, identifica-se
algum tipo de estabilidade somente no próprio processo para sua realização. A
fabricação é capaz de oferecer alguma estabilidade ao mundo, na medida em
que, estabelece uma relação de objetividade do homem com as coisas que o
rodeiam, quando este presente algo invariável, permitindo sua identificação
com o objeto. Um mundo, sem a presença da fabricação, destinado somente ao
consumo e sem qualquer presença do uso, fará com que o homem dissolva sua
subjetividade nas coisas e a objetividade do mundo em sua consciência, quando
percebe que as coisas existem independente e para além de seu produtor. “A
subjetivação da época moderna pode ser explicada pelo fato de que quase toda
obra (work) passa a ser executada sob a forma de trabalho (labor).”
192
Se o sentido de uma atividade se revela em seu fim, como
afirma Arendt, é desastroso que num mundo estritamente utilitário, a relação
190
“Mesmo Hannah Arendt reconhece quão inusitada, tendo como referência a tradição pré-
moderna do pensamento político e as teorias do trabalho, é a sua distinção entre labor (trabalho) e
work (obra ou fabricação).” CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade
de consumo. In MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos,
reflexões, memórias. 2001. p. 232
191
CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 233
192
CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 233
76
meio-fim, se torne interminável, pois a curta duração dos resultados, transforma-
se no começo para um novo processo, tornando as cadeias meios e fins
infindáveis. Numa sociedade em que o produto permanece como objeto de uso,
este, naturalmente, se converterá num meio, e assim, estabelecendo o ciclo
indicado. “Quando a utilidade é promovida a fonte de significação, gera a
ausência de significado, uma vez que no mundo do homo faber, por todos os fins
se converterem em meios, os significados são alterados, e estes se definem
precisamente por sua relativa permanência.”
193
Com a instrumentalização pelo homo faber e a redução de
todas as coisas ao processo de meios e fins, elas perdem o seu significado e
valor intrínseco. Decorrência dessa alteração, é que enquanto o homo faber
especializa seu repertório de instrumentos para serem usados, o animal laborans,
apropria-se desses instrumentos com vistas a aumentar sua fertilidade natural e
gerar maior número de bens de consumo, no que, os únicos elementos duráveis
são os instrumentos utilizados. O que sustentava Marx, segundo Arendt
194
, era a
crença de no futuro as horas vagas conseguidas pelos movimentos dos
trabalhadores, faria com que os operários voltassem suas atenções para
atividades superiores, como óbvia conseqüência da necessidade de utilizar-se a
energia produtiva em outras atividades. Atualmente, de acordo a autora, vemos
quão ingênuo foi Marx. O homem operário produzido pela era moderna gasta seu
tempo no consumo, e a ânsia de consumir é sempre proporcional ao tempo que
dispõe para o lazer. Decorrência disto, é que o consumo superou o objetivo de
suprir as necessidades da vida para garantir-lhe também o supérfluo, e o grave
perigo das sociedades de massa “[...] é que chegara o momento em que nenhum
objeto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do
consumo.”
195
193
CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 234
194
Para Arendt, “O modelo que inspirava esta esperança de Marx, era sem dúvida, a Atenas de
Péricles que no futuro, graças ao vasto aumento da produtividade do trabalho humano,
prescindiria de escravos para sustentar-se e tornar-se-ia realidade para todos.” ARENDT, Hannah.
A condição humana. 1997. p. 146
195
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 146
77
O que se evidencia é que na atividade do animal laborans,
ao contrário do homo faber, é a ausência de distinção entre o processo e o fim
almejado. No trabalho, o homem é o instrumento de construção e a emergência
da mecanização apenas substitui o ritmo do corpo humano. Mas o homo faber
inventou os instrumentos para construir um mundo e não para servir ao processo
vital humano. “A questão que se coloca, segundo Hannah Arendt, não é se somos
senhores ou escravos das máquinas, mas se elas servem ao mundo e às coisas
ou aos processos automáticos que passaram a dominar e mesmo a destruir o
mundo e as coisas.”
196
Os objetos ganham a forma das máquinas e perdem sua
essência de utilidade ou beleza, para reduzirem-se à função operacional. Nesse
quadro, para Arendt, conclui-se que a era moderna, ainda que tenha erigido o
trabalho como fonte de todos os valores, não foi capaz de apresentar a distinção
básica entre o trabalho de nosso corpo e o produto de nossas mãos, limitando-se
a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo.
A causa primeira desse fenômeno que promoveu a
transformação de toda obra em trabalho, é possível de ser encontrada na inclusão
de todas as atividades essenciais para o processo vital como preocupações
únicas da esfera pública, formando a esfera denominada de social.
Evidentemente, que numa sociedade “socializada” e de operários, a antiga
distinção entre trabalho e labor perde seu significado, que todas as funções
estão destinadas à satisfação do processo vital. O cuidado com o produto durável
de sua criação, característica básica do homem fabricante, foi perdido na
futilidade e transitoriedade da obra do animal laborans, que não tem compromisso
com sua criação para além do consumo. Esse novo paradigma humano, o animal
laborans, ainda que não esteja fora do mundo, não se sente dentro dele pois
permanece escravizado à satisfação de suas necessidades. A crença na
realidade do mundo somente é alcançada quando nos deparamos com um mundo
que gere permanência para além de nossa própria existência. O fenômeno das
massas, demonstra a alienação política desse período histórico, momento em que
196
CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 235
78
os indivíduos estão completamente alheios a qualquer relação discursiva ou
interesse político em comum.
Para Arendt, é incontestável nesse processo que o animal
laborans foi admitido como senhor da esfera pública, o que impede que esta
exista de forma plena, mas presenciemos somente a exposição pública de
problemas privados.
O resultado é aquilo que eufemisticamente se chama cultura de massas;
e o seu profundo problema é a infelicidade universal, devida, de um lado,
à perturbação do equilíbrio entre o trabalho e o consumo e, de outro, à
persistente exigência do animal laborans de perseguir uma felicidade
que só pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e
regeneração, de dor e de alijamento da dor, estão em perfeito
equilíbrio.
197
A exigência universal de felicidade, num mundo em que ela
se torna cada vez mais escassa, condiz com uma sociedade operária que precisa
consumi-la diariamente, pois somente o animal laborans, tem essa preocupação,
ausente do artífice ou no homem de ação, que nunca tiveram a pretensão de ser
felizes num mundo mortal. A sociedade de massas, fundada numa economia de
desperdício, onde todas as coisas são criadas e devoradas instantaneamente,
impedem o fim do processo e mantém sua circulação.
A elevação do trabalho como fonte do debate da esfera
pública, consistiu na promoção dos assuntos privados como sua preocupação, e
como estes estão intrinsecamente ligados à sobrevivência, temos que, a esfera
pública passou à albergar exclusivamente o debate econômico. “O
desaparecimento da esfera pública tem como conseqüência o predomínio de um
modelo de sociedade que impõe conformidade e isolamento, o cumprimento de
comportamentos predizíveis e o estabelecimento de uma forma burocrática de
governo: a sociedade de massas.”
198
Sobressai desse modelo de constituição
social, que as pessoas não acreditam ter nada em comum a não ser sua própria
constituição física e necessidades orgânicas. Outra importante constatação de
Arendt, é que a emancipação foi do próprio trabalho, em relação as demais
197
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1997. p. 146
198
CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. in
MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO, Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões,
memórias. 2001. p. 239
79
atividades da vita activa, e não do trabalhador como pretendiam os teóricos
modernos, como Marx. O risco apontado pela Autora, é que a emancipação do
trabalho ao invés de promover a autonomia do sujeito e liberá-lo da necessidade
vai torná-lo ainda mais sujeito a ela, pois, quando os livrar do trabalho os
escravizará no consumo. O paradoxo apontado por Arendt, é a possibilidade “de
uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade
deixada a eles. Seguramente nada poderia ser pior.”
199
A grave constatação das
sociedades de massa, é que o se constrói um mundo com base no consumo,
mas em coisas para serem usadas, e portanto,com certa durabilidade. A
alienação dos indivíduos do próprio processo em que estão envolvidos, poderá
obliterar a consciência da futilidade do mundo que construíram, que gerou a perda
do senso comum e o desprezo da esfera pública política.
199
ARENDT, Hannah. The Human Condition. p. 5 citada por: CORREIA, Adriano. O desafio
moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. in MORAES, Eduardo Jardim; BIGNOTO,
Newton (org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. 2001. p. 240
80
CAPÍTULO 3
A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
3.1 POLÍTICA E JUDICIÁRIO: AS NOVAS FACES DA ESFERA PÚBLICA
Na Constituição Federal de 1988, inseriu-se a previsão de
um extenso rol de legitimados para o controle abstrato da constitucionalidade das
leis. Esta situação fez o país se aproximar do que vem se denominando de
judicialização das relações políticas, quando através da formação de uma
comunidade de intérpretes da constituição se permite o controle da vontade do
soberano.
A proposta neste capítulo, seguindo a ordem estabelecida
neste trabalho, é avaliar esse fenômeno a partir dos conceitos de poder, política e
consenso obtidos na obra de Hannah Arendt.
Tenta-se contrastar as atuações dos tribunais
contemporâneos, guiados pelo que se define como ativismo judicial para se firmar
como intervencionistas nas atuações dos demais poderes. Nesse controle da
constitucionalidade da legislação, se discute a conveniência de um Tribunal
Constitucional com força vinculativa em decisões classicamente reservadas para
o debate aberto e plural da esfera pública.
Aliás, pluralidade e liberdade de expressão são os
pressupostos de constituição de uma esfera pública onde se queira a
concretização da política, segundo a construção teórica de Hannah Arendt.
A teoria constitucional tem se debatido em torno de dois
eixos: o procedimentalismo
200
e o substancialismo
201
, que se opõem quanto à
posição dos Tribunais Constitucionais nas sociedades atuais.
200
“O paradigma procedimentalista pretende ultrapassar a oposição entre os paradigmas
liberal/formal/burguês e o do Estado Social de Direito, utilizando-se, para tanto, da interpretação
política e do direito à luz da teoria do discurso. Parte da idéia de que os sistemas jurídicos
81
Nesse caminho, o debate proposto neste capítulo é acerca
da conveniência e possibilidade de formação legítima de uma esfera pública
judicial, em substituição as tradicionais arenas de debate político.
3.2 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA: ATIVISMO JUDICIAL, A JUDICIALIZAÇÃO
DA POLÍTICA E OS TRIBUNAIS CONTEMPORÂNEOS.
A presença do Poder Judiciário com maiores poderes de
controle sobre os demais poderes republicanos, tem sido material germinante
para diversos estudos transdisciplinares nas ciências sociais. A problematicidade
da invasão das ordens vinculantes dos Tribunais sobre a vida social e política tem
aferrecido o debate sobre a relativização da separação dos poderes, e por outro
lado, criou um novo espaço de debate público institucionalizado longe dos
clássicos espaços de debate político.
No cerne deste fenômeno está o novo ativismo judicial,
favorecido nos sistemas de common law pelo fomento da criatividade judicial, e
nos sistemas continentais pela configuração de um novo sistema constitucional
firmado estruturalmente por princípios fundamentais abertos e a delimitação de
objetivos ao novo Estado social desejado. Isso culminou com a abertura do
espaço da interpretação constitucional, “já sendo possível falar em um ‘direito
judicial’ em contraposição a um ‘direito legal’.”
202
O sistema de common law,
especialmente pela tradição republicana dos Estados Unidos da América, trouxe
surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados Sociais, denotam uma
compreensão procedimentalista do Direito.” STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m)
crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004. p. 41/42
201
“Em síntese, a corrente substancialista entende que, mais do que equilibrar e harmonizar os
demais Poderes, o Judiciário deveria assumir o papel de um intérprete que põe em evidencia,
inclusive contra maioria eventuais, a vontade geral implícita no direito positivo, especialmente nos
textos constitucionais, e nos princípios selecionados como de valor permanente na sua cultura de
origem e na do Ocidente.” STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração
hermenêutica da construção do Direito. 2004. p. 45
202
CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, constitucionalismo democrático e separação de
poderes. in VIANNA, Luiz Werneck (org.) A democracia e os três poderes no Brasil. 2002. p. 18
82
importante contribuição para o processo de tribunalização da política, através do
princípio do judicial review, qualificado como a grande contribuição do sistema
jurídico americano para a teoria política. Mesmo diante da inexistência de
previsão expressa na Constituição norte-americana para o controle pelo Poder
Judiciário da constitucionalidade das leis, reconhece-se o pioneirismo do país no
judicial review, no entanto, permanece em aberto os limites desejáveis dessa
intervenção judicial.
203
Em todos os sistemas que se olhe, o aumento vertiginoso da
justiça no ambiente decisório político tem a ambivalente intenção de assegurar os
valores fundamentais inscritos nas Constituições ao passo que também busca a
concretização dos princípios sociais abraçados pelo texto constitucional. É nesse
ponto, que parece emergir forte tendência à normatização de direitos
indisponíveis e difusos e o reforço das instituições da Magistratura e do Ministério
Público para reprimir os crimes definidos como políticos ou a formalização de
algum tipo de Tribunal supranacional.
A preocupação comum nos textos que discutem esse novo
fenômeno trata de definir os limites da intervenção do “poder” do direito em
substituição ao consenso obtido pela política. Seria condenar a política ao fim e
reconhecer a supremacia da força jurídica?
204
Indiscutivelmente, sistemas
democráticos que não tem capacidade de discernimento entre o que é jurídico e o
que é político, correm o risco de cair em autoritarismos, porém, não podemos nos
deparar ingênuos frente a supremacia exercida pelo Poder Judiciário, frente aos
demais poderes e a conseqüente alienação política que pode estar sendo
causada por este fenômeno.
203
MELO, Manuel Palacios Cunha. A Suprema Corte dos EUA e a judicialização da política: notas
sobre um itinerário difícil. in VIANNA, Luiz Werneck (org.) A democracia e os três poderes no
Brasil.2002. p. 67
204
“Falar de um processo de judicialização da política, de outra parte, evoca necessariamente
algumas indagações. relação entre a ‘força do direito’e o tão propalado ‘fim da política’? As
democracias marcadas pelas paixões políticas estão sendo substituídas por democracias mais
jurídicas, mais reguladoras? Uma idade racional do direito sucede a uma idade teológica da
política? Parece razoável afirmar que não. Confundir a política com o direito é certamente um risco
para qualquer sociedade democrática.”CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política,
constitucionalismo democrático e separação de poderes. In VIANNA, Luiz Werneck (org.) A
democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: 2002. p. 18
83
O que se firmou com os novos modelos constitucionais, é
uma comunidade aberta de intérpretes com vistas a democratizar o processo de
hermenêutica, abrindo-o a todas as forças públicas e poderes envolvidos como
forma de garantir sua concretização. “Parece não restar dúvida de que esta
concepção de ‘comunidade de intérpretes da Constituição’ está inequivocamente
associada a um processo de democratização da hermenêutica constitucional e,
nesta perspectiva, exige uma cidadania ativa que, por esta via, concretiza ou
realiza a Constituição.”
205
A proposta da doutrina constitucional com o
alargamento do círculo hermenêutico, é sem dúvida, garantir a concretização
material e não somente formal, do princípio da igualdade. Admitir uma
interpretação aberta do texto constitucional, é interagir com diversos elementos
extranormativos angariados nos subsistemas sociais, de forma a adequá-la a
realidade. “A tarefa do intérprete terá sucesso [...] se o texto constitucional
admitir interpretações abertas e diferentes, permitindo diversas leituras legítimas,
suscetíveis de ser adaptadas às contínuas mudanças sociais.”
206
A Constituição Federal de 1988 é fruto de grande conjunção
entre a sociedade e a esfera política. Os movimentos sociais anti-autoritarismo a
partir da década de 70, com mais força nos anos 90, buscaram a afirmação dos
direitos humanos e o desenvolvimento dos direitos econômicos e sociais. Os
problemas políticos foram codificados e ganharam estrutura normativa de
princípios, com normas assecuratórias de seu cumprimento. Uma análise dos
princípios e fundamentos da Constituição Federal de 1988, demonstra que a
inserção da dignidade humana e do pluralismo político como seus fundamentos
(art. 1, incisos II,III e V), e a concretização de seus objetivos fundamentais de
erradicar a pobreza e as desigualdades sociais, requer um esforço teórico e
interpretativo para garantir-lhe a idéia de sistema. Nas seguras palavras de
Cittadino
207
:
205
CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, constitucionalismo democrático e separação de
poderes. In VIANNA, Luiz Werneck (org.) A democracia e os três poderes no Brasil. 2002. p. 24
206
DANTAS, David Diniz. Interpretação constitucional no pós-positivismo: teoria e casos práticos.
2 ed. São Paulo: 2005. p. 15
207
CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, constitucionalismo democrático e separação de
poderes. in VIANNA, Luiz Werneck (org.) A democracia e os três poderes no Brasil. 2002. p. 27
84
Não se trata, como poderia parecer à primeira vista, de uma mera
reconstrução do Estado de Direito após anos de autoritarismo militar.
Mais do que isso, o movimento de retorno ao direito no Brasil também
pretende reencantar o mundo. Seja pela adoção do relativismo ético na
busca do fundamento da ordem jurídica, seja pela defesa intransigente
da efetivação do sistema de direito constitucionalmente assegurados e
do papel ativo do Judiciário, é no âmbito do constitucionalismo
democrático brasileiro que se pretende resgatar a força do direito,
rompendo com a tradicional cultura jurídica.
A doutrina constitucional que se firmou com a Constituição
Federal de 1988, voltou-se ao mesmo tempo contra o sistema jurídico brasileiro
enquanto marcadamente positivista e o constitucionalismo liberal que orientava o
país
208
. A perspectiva era garantir juntamente com os direitos individuais de
defesa, a implementação dos direitos sociais econômicos, o que importava,
necessariamente, romper com a autonomia eminentemente privada que guiava o
ordenamento jurídico até aquele momento.
A posição da nova doutrina constitucional passa a falar em
constituição dirigente
209
e constituição aberta
210
, buscando, no primeiro caso,
romper com a idéia de que a constituição é um complexo de garantias para limitar
a atuação do poder público para colocar a proposta de uma constituição garantia.
No segundo caso, advogam um ordenamento jurídico que sobreleva os valores do
ambiente sociocultural com a abertura do texto constitucional. Nesse mesmo
contexto, é possível falar de constitucionalismo comunitário e societário, que
208
Nesse sentido, CITTADINO, Gisele; SILVA, José Afonso; BONAVIDES, Paulo.
209
“Ao utilizar a expressão ‘Constituição Dirigente’ (dirigierende Verfassung), Peter Lerche estava
acrescentando um novo domínio aos setores tradicionais existentes nas Constituições. Em sua
opinião, todas as Constituições apresentariam quatro partes: as linhas de direção constitucional,
os dispositivos determinadores de fins, os direitos, as garantias e repartição de competências
estatais e as normas de princípio. No entanto, as Constituições modernas se caracterizariam por
possuir, segundo Lerche, uma série de diretrizes constitucionais que configuram imposições
permanentes para o legislador. Estas diretrizes são o que ele denomina de ‘Constituição
Dirigente’. Pelo fato de a ‘Constituição Dirigente’ consistir em diretrizes permanentes para o
legislador, Lerche vai afirmar que é no âmbito da ‘Constituição Dirigente’que poderia ocorrer a
discricionariedade material do legislador.” BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e
Constituição Dirigente. in BONAVIDES, Paulo (et. al). Constituição e Democracia: estudos em
homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 242
210
“Este ponto de partida carece de <<descodificação>>: (1) é um sistema jurídico porque é um
sistema dinâmico de normas; (2) é um sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica
(Caliess), traduzida na disponibilidade e <<capacidade de aprendizagem>> das normas
constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções
cambiantes da <<verdade>> e da <<justiça>>; (3) é um sistema normativo, porque a estruturação
das expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas, é feita através de normas;
(4) é um sistema de regras e de princípios, pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob
a forma de princípios como sob a sua forma de regras.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
Direito Constitucional. 2003. p. 1159
85
compreende a constituição como conjunto de valores que na relação jurídica
analisa a totalidade da vida coletiva. “As Constituições dos Estados democráticos,
pela via da abertura constitucional, abrem-se a outros conteúdos, tanto
normativos (direito comunitário), como extranormativos (usos e costumes) e
metanormativos (valores e postulados morais).”
211
A Constituição Federal de
1988, fixou o direito à segurança jurídica, não somente aos direitos individuais de
liberdade, mas também, quanto à efetivação dos direitos sociais, consagrados
pela cláusula de proibição de retrocesso.
212
O fortalecimento do Poder econômico
na atualidade, tem fragilizado as instituições de segurança social do Estado
Social, pela necessidade de adequação de seus valores a uma sociedade de
valores cambiantes. A cláusula de proibição de retrocesso se consolidou a partir
da concretização que os direitos sociais obtiveram como direitos subjetivos a
prestações do Estado que fulminam de inconstitucionalidade todas as normas que
pretendam reduzir os padrões de prestações adquiridos na comunidade
constitucional. Nesse sentido se posiciona Sarlet
213
, ao falar dos direitos sociais
como:
[...] direitos subjetivos a determinadas prestações estatais e de uma
garantia institucional, de tal sorte que não se encontram mais na (plena)
esfera de disponibilidade do legislador, no sentido de que os direitos
adquiridos não mais podem ser reduzidos ou suprimidos, sob pena de
flagrante infração do princípio da proteção da confiança (por sua vez,
diretamente deduzido do princípio do Estado de Direito) [...]
211
CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, constitucionalismo democrático e separação de
poderes. in VIANNA, Luiz Werneck (org.) A democracia e os três poderes no Brasil. 2002. p. 29
212
“O ponto de partida de uma fundamentação constitucional [...] de uma proibição de retrocesso
encontra-se diretamente conectado às contradições inerentes ao próprio Estado Social e
Democrático de Direito, especialmente no âmbito da crise de efetividade e identidade pela qual
passam tanto o Estado, a Constituição e os direitos fundamentais [...]. Com efeito, seja em virtude
do incremento dos níveis de exclusão sócio-econômica e da implantação, em maior ou menor
escada daquilo que Boaventura Santos designou de ‘fascimo societal’ em todo o planeta [...] certo
é que hoje, a problemática da sobrevivência do assim denominado Estado Social e Democrático
de Direito – e, consequentemente, da efetiva implementação de padrões mínimos de justiça
social- constitui um dos temas centras da nossa época.” SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de
retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais: manifestação de um
constitucionalismo dirigente possível. in BONAVIDES, Paulo (et. al). Constituição e Democracia:
estudos em homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho. 2006. p. 306
213
SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos
sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. in BONAVIDES, Paulo (et. al).
Constituição e Democracia: estudos em homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho. 2006. p.
309/310
86
Como aponta Canotilho
214
, nesse aspecto a cláusula de
retrocesso aparece como direito de defesa as ações estatais de cunho
retrocessivo que tenham por objeto a redução ou destruição de direitos sociais.
As normas programáticas como princípios otimizadores da atuação estatal
impõem-se como determinações para atuação dos poderes públicos.
O movimento pós regime autoritário fez um resgate do país
ao Direito, buscando, além de refazer o ordenamento jurídico, resgatar os
próprios princípios que estruturariam o novo Estado em formação, principalmente
sob a via do constitucionalismo comunitário. Notadamente, esse movimento que
se designou de constitucionalismo comunitário se voltou contra a aparência
marcadamente privada e positivista do ordenamento jurídico brasileiro,
preocupado com as liberdades negativas e indiferentes aos direitos sociais e
econômicos. A doutrina jurídica no país, ainda mesmo quando se fale dos
publicistas, é arraigada ao texto legal e começam, a partir de então, sofrer as
fissuras de novos pensamentos que buscam inserir um tom ético aos
fundamentos e a legitimidade do novo ordenamento constitucional.
215
A idéia do constitucionalismo comunitário é que a
concretização dos direitos inscritos como garantias constitucionais são resultados
da inserção de valores históricos de uma comunidade no texto constitucional. A
posição doutrinária que defende uma Constituição comunitária revela oposição à
sua concepção como defensora das liberdades negativas contra o Estado, e a
posiciona como abrigo dos valores defendidos por uma comunidade. Assim, antes
de ser direito individual, é representação dos valores tidos como elementares para
214
“Concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas
significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização
(imposição constitucional); (2) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo
estes tomá-las em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos
momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação, na
qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura,
sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam.” CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 2003. p. 1177
215
Desse posicionamento CITTADINO, cita José Afonso da Silva, Carlos Roberto de Siqueira
Castro, Paulo Bonavides, Fábio Konder Comparato, entre outros. Acrescenta ainda a Autora: Em
outras palavras a cultura jurídica brasileira está majoritariamente comprometida com um
liberalismo de modus vivendi. Se tivéssemos que associá-la a uma determinada matriz política,
certamente falaríamos mais de Hayek e Nozick do que Rawls e Dworkin, muito embora as fontes
talvez sejam outras.” CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da
Filosofia Constitucional Contemporânea. 2004. p. 14
87
uma sociedade segundo o binômio dignidade humana - solidariedade social. “As
constituições dos Estados democráticos, pela via da abertura constitucional, se
abrem a outros conteúdos, tanto normativos (direito comunitário), como
extranormativos (usos e costumes) e metanormativos (valores e postulados
morais).”
216
Os comunitários sustentam suas teorias a respeito dos
direitos fundamentais sobre dois pilares importantes no direito constitucional.
Primeiro, ao colocarem os direitos fundamentais como valores históricos inseridos
no texto constitucional, rompem com a postura do direito natural que os abordava
de uma perspectiva supraconstitucionais ou supra-estatais, e, nesse momento,
como valores constitucionais tornam-se o núcleo de orientação interpretativa
desse sistema.
217
Num segundo momento, ao abordá-los como direitos
positivados são tidos como objetivos e metas a serem alcançadas pelo Estado,
sob um ideal ético-político e assim, abandonam o posicionamento de uma
dignidade humana estanque e dogmática como valor abstrato, para ser “[...]
traduzida por autonomia ética de indivíduos históricos [...]”
218
, que somente pode
ser realizada pela expansão do círculo de intérpretes da constituição que
possibilitará a participação político-jurídica.
Altera-se também os signos que conceituam os institutos
constitucionais, alterando a idéia de direitos públicos subjetivos para direitos
fundamentais do homem, proposições que no direito positivo representam
garantias de uma convivência digna e livre numa sociedade democrática. “A
expressão direitos fundamentais do homem não significa, portanto, esfera privada
contraposta à esfera pública, como simples limitação do Estado, mas restrição
imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela
dependem.”
219
216
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2004. p. 17
217
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2004. p. 18
218
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2004. p. 19
219
CITTADINO, Gisele. Judicialização da Política, constitucionalismo democrático e separação de
poderes. in VIANNA, Luiz Werneck (org.) A democracia e os três poderes no Brasil. 2002. p. 30
88
Aspecto preocupante dessa crescente invasão do Poder
Judiciário na esfera pública política é a sua sobreposição crescente nos demais
poderes constituídos, o que pode, senão melhor controlado, trazer sérios
prejuízos ao sistema democrático de separação dos poderes. O agravante dessa
nova realidade, é o fato constitucionalmente posto de que o Poder Judiciário é o
responsável pelo controle e garantia das liberdades públicas, e quando este
passa a responder como a mais alta instância moral da sociedade, cria-se um
poder sem qualquer controle.
Não se discute que num Estado com constituições
marcadamente principiológicas, a função dos Tribunais como intérpretes é
indispensável. De qualquer forma, essa capacidade hermenêutica concedida pelo
legislador constituinte, não pode ampliar-se enquanto poder de criação do Direito,
sob pena de romper com a força normativa democrática advinda do império das
leis.
220
A nova interpretação constitucional, é marcada pela
concepção que esse sistema gerou do Direito, fixado em valores, arsenal de
orientação do juiz na formação de sua livre convicção racional
221
. São os valores
reconhecidos pela comunidade de intérpretes e consagrados no texto
constitucional que irão garantir a segurança do sistema jurídico firmado em
princípios, na medida em que são os limites objetivos da interpretação
jurisdicional.
220
“No entanto, a despeito da dimensão inevitavelmente ‘criativa’ da interpretação constitucional
dimensão presente em qualquer processo hermenêutico, e que, por isso mesmo, não coloca em
risco a lógica da separação dos Poderes -, os tribunais constitucionais, ainda que recorram a
argumentos que ultrapassam o direito escrito, devem proferir ‘decisões corretas’e não se envolver
na tarefa de ‘criação do direito’a partir de valores preferencialmente aceitos.” CITTADINO, Gisele.
Judicialização da Política, constitucionalismo democrático e separação de poderes. in VIANNA,
Luiz Werneck (org.) A democracia e os três poderes no Brasil. 2002. p. 38
221
“A aceitação dos princípios como norma e sua ampla invocação em todos os níveis de
realização do Direito aumenta a insegurança, fundada na incerteza do Direito, a clamar pelo
estabelecimento de limites razoáveis na margem de liberdade da interpretação. Esse marco
limitativo passa necessariamente pelo estudo dos valores, como elementos objetivos de
avaliação.” LIMA, Francisco Meton Marques de. As implicações recíprocas entre os valores e o
direito. in BONAVIDES, Paulo (et. al). Constituição e Democracia: estudos em homenagem ao
Professor J. J. Gomes Canotilho. 2006. p. 192
89
3.3 OS DEBATES SUBSTANCIALISTA E PROCEDIMENTALISTA - GARAPON,
DWORKIN, HABERMAS E CAPPELLETTI
Habermas e Garapon são os principais mentores da teoria
denominada procedimentalista, que analisa os prejuízos trazidos após anos da
colocação da agenda da igualdade sob a base do welfare state, e o alargamento
da interferência estatal sob a vida social, recrudescendo, por um lado, a
cidadania, e por outro, potencializando a dependência da sociedade em relação
ao Estado provedor. A igualdade, ao reclamar mais Estado em nome de uma
Justiça distributiva, não somente enredara a sociedade civil na malha burocrática,
como favorecera a privatização da cidadania.”
222
Nas sociedades atuais o Poder Judiciário tomou maior
espaço e os juízes colocam-se como esperança de resgate de uma democracia
enfraquecida. O desencantamento do homem cívico, público e preocupado com o
interesse comum é o primeiro fator para o fortalecimento de um ativismo judicial
focado na estabilização das esferas sociais e políticas. Em termos globais os
juízes somente ocupam o lugar tradicionalmente reservados as instâncias
políticas, pelo enfraquecimento destas e do Estado depois da globalização. “A
promoção contemporânea do juiz não se deve tanto a uma escolha deliberada,
mas antes a uma reacção de defesa perante o quádruplo desmoronamento:
político, simbólico, psíquico e normativo.”
223
A nova roupagem da modernidade
encontra um indivíduo e uma sociedade sem seus referenciais de autoridade e
sem estruturas ou instrumentos capazes de gerir as complexidades que geraram.
Nesse ponto o juiz torna-se a identificação de autoridade na qual se depositam
essas esperanças.
222
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 24
223
“A viragem judiciária da vida política primeiro fenómeno vê na justiça o último refúgio para
um ideal democrático desencantado. O activismo judicial, que é um dos sintomas mais aparentes,
não passa de uma peça de um mecanismo mais complexo que necessita de outros mecanismos
como o enfraquecimento do Estado, a promoção da sociedade civil e, obviamente, a força dos
media. Os juízes só podem ocupar tal lugar com a condição de encontrarem uma nova expectativa
política que as instâncias políticas tradicionais aparentemente não satisfazem.” GARAPON,
Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 22/23
90
Na agenda teórica de Tocqueville, a democracia é colocada
sob um duplo aspecto: tanto como uma organização política, como a ascensão da
agenda da igualdade de condições como seu guia. A igualdade, presente no texto
legal o correspondia à igualdade de fato, nem sempre existente, mas na
possibilidade de se alçar condições sociais melhores. O sentido dado por
Tocqueville à democracia é o de uma sociedade igualitária, diferente de um
sistema representativo normal. “Por sociedade igualitária ele não pretendia
designar uma sociedade de iguais e sim uma sociedade em que a hierarquia
não era a regra do princípio aceito de estrutura social”
224
.
Uma das respostas ao fenômeno da judicialização está na
demonstração da fragilidade das instituições políticas e na falta de consenso
quanto aos valores que a sociedade pretende garantir, fazendo necessário
recorrer ao Poder Judiciário como guardião das promessas democráticas de
igualdade. Os dois modelos recentes de política, liberal e Estado-providência,
estão esgotados e uma nova ordem está em formatação.
225
A lei que no positivismo é o sustentáculo da divisão entre os
poderes, e o muro divisor entre a soberania popular e o poder da pena dos juízes,
torna-se um instrumento caduco, na expressão de Garapon, quando seu conceito
é dissociado do conceito de justiça. Uma das prováveis causas de seu fracasso é
o enfraquecimento de seu poder regulamentador e por outro sua alta
maleabilidade e futilidade. Nos Estados atuais, o Poder Legislativo inflacionou a
produção de leis, como conseqüência tornou-as descartáveis. O principal efeito é
224
CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk. A tirania das maiorias: Alexis de Tocqueville.
Disponível em: www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/cademartori. Acesso em: 23 de julho de 2007.
Como afirma Tocqueville: “A igualdade produz efetivamente duas tendências: uma leva os homens
diretamente à independência e pode impeli-los à anarquia, e a outra os conduz por caminho mais,
mais secreto, porém, mais seguro, à servidão. [...] Longe de condenar na igualdade a indocilidade
que a inspira, é por isso mesmo que a louvo, admiro-a, vendo-a pôr no fundo do espírito e do
coração de cada homem esta noção obscura e esta inclinação instintiva pela independência
política, preparando assim o remédio para o mal que produziu.” TOCQUEVILLE, Alexis de. A
democracia na América. Tradução de Francisco Weffort. São Paulo: Abril, 1985. p. 308
225
O juiz torna-se o último guardião das promessas, tanto para o indivíduo como para a
comunidade política. Não tendo guardado a memória viva dos valores que os fundamentam, este
últimos pediram à justiça que zelasse pelos seus juramentos.” GARAPON, Antoine. O guardador
de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 22/23
91
a falta de obediência às regras e a necessidade do direito se resgatar a partir da
aproximação com os princípios.
226
Nos Estados firmados sobre o positivismo jurídico,
prevalecia a concepção monista, direito e Estado se confundiam, orientados pelo
formalismo e imperativismo da norma legal. O apego à segurança jurídica,
premissa da separação de poderes, tolhia a criatividade dos juízes e os tornavam
meras vozes da vontade do legislador, práticas de um paradigma racional e
instrumental.
A vulnerabilidade do texto legislativo é acompanhada pela
incapacidade do Parlamento em fazer leis com consistência e abrangência
suficiente para regulamentar a complexidade da vida social. Por um lado, a
legislação cai sob as mãos de burocratas e economistas que, cnicos na
economia complexa da modernidade, dão respostas provisórias e de acordo com
os interesses do mercado globalizado. Por outra perspectiva, a lei, quando
aprovada no legislativo, é mais reposta às coligações e acordos de interesses do
que expressão da vontade geral. “O compromisso preza os termos vagos e as
medida ambíguas que não suscitam o desacordo. A lei torna-se um produto
semiacabado que deve ser concluído pelo juiz.”
227
A judicialização dos problemas políticos alcançou níveis
supranacionais, e a busca da agenda da igualdade e da intervenção dos tribunais
nos problemas conflituosos promoveu a instalação do Tribunal Penal
Internacional, e de outras diversas cortes de justiça tanto na América como na
União Européia
228
. A intenção é que uma mesma justiça possa dizer e resolver
todos os problemas. Se todos os processos contemporâneos são justiciáveis, o
jurídico deve ser chamado para resolvê-los. É esclarecedor nesse sentido o
crescimento vultuoso da proteção dos crimes contra a humanidade. “A justiça não
226
“O recurso à regulamentação legislativa, de que o político usa e abusa, ameaça a esgotar o
sistema jurídico. É preciso que o direito recupere a sua destreza. Isto só será possível se conceber
não exclusivamente sob a forma de regras mas também sob a forma de princípios.” GARAPON,
Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 37
227
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 38
228
“Não será preciso relembrar que a construção européia foi jurídica antes de ser política. Esta
construção de um espaço supranacional é a demonstração de que uma comunidade política pode
prescindir aparentementedo seu executivo.” GARAPON, Antoine. O guardador de promessas:
Justiça e democracia. 1996. p. 39
92
pode apenas limitar-se a dizer o justo, ela deve simultaneamente instruir e decidir,
aproximar-se e manter as suas distancias, conciliar e optar, julgar e comunicar.”
229
Não se espera atualmente um judiciário somente árbitro mas que seja também
instituição que define o bem e o mal, ou seja, a última instância moral da
sociedade.
A crescente proliferação no momento pós segunda guerra
mundial de instrumentos internacionais de proteção da dignidade humana,
promovem uma revisão do sistema nacional de proteção de direitos e alavancam
a idéia de que o indivíduo tem garantidos direitos na esfera internacional na
condição de sujeito de direitos. A legitimidade postulatória, antes somente
garantida aos Estados-membros, tem se alargado para aceitar o peticionamento
direto das próprias vítimas.
230
A evolução do direito internacional e do direito humanitário
tem contribuído de forma decisiva para recolocar o indivíduo como sujeito de
direito internacional e não simplesmente como destinatário final da regulação e
dos tratados celebrados pelos Estados. Segue-se, neste caminho, para
reconhecer a plena capacidade postulatória dos indivíduos perante as Cortes
Internacionais como forma de efetivar e consolidar a proteção dos direitos
humanos.
231
229
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 21
230
Diante deste cenário, é necessário que se avance no processo de justicialização dos direitos
humanos internacionalmente enunciados. [...] a avaliação do legado dos último cinco anos (1998-
2002) permite vislumbrar a marca do crescente processo de justicialização do Direito Internacional
dos Direitos Humanos. Basta apontar quatro fatores: a) a criação do Tribunal Penal Internacional
[...] b) a intensa justicialização do sistema interamericano [...] c) a democratização do acesso à
jurisdição da Corte Européia de Direitos [...] e d) a adoção da sistemática de petição individual
relativamente a tratados que não incorporavam tal sistemática [...] cabendo menção [...] ao
Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
contra Mulher [...]” PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e a jurisdição constitucional
internacional. in. BONAVIDES, Paulo (et. al). Constituição e Democracia: estudos em homenagem
ao Professor J. J. Gomes Canotilho. 2006. p. 129
231
Carecem, definitivamente, de sentido, as tentativas do passado de negar aos indivíduos a
condição de sujeitos do direito internacional, por não lhe serem reconhecidas algumas das
capacidades de que são detentores os Estados (como, e.g., a de celebrar tratados). Tampouco no
plano do direito interno, nem todos os indivíduos participam, direta ou indiretamente, no processo
legiferante, e nem por isso deixam de ser sujeitos de direito.” TRINDADE, Antonio Augusto
Cançado. A personalidade e capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito no direito
internacional. in ANNONI, Danielle (coord.). Os novos conceitos do novo direito internacional.p. 6
93
A fácil constatação é de que o enfraquecimento da lei é
também resultado da aceitação no sistema jurídico interno de fontes
supranacionais. É exigência das Convenções e Tratados internacionais firmados
pelos países signatários, no âmbito da Comunidade Européia ou nos continentes
americanos, que o sistema jurídico interno esteja coerente com as exigências de
proteção à dignidade humana, cláusulas de proteção firmadas em convenções
internacionais. Esses textos firmam prerrogativas individuais que estão em
patamar superior às leis internas, trazendo aos juízes o poder de atualizar o
legislador de acordo com os princípios internacionais assumidos pelos países.
Esse duplo esgarçamento do político, por um lado o
esvaziamento de conteúdo da legislação, por outro a desnacionalização do direito
e da soberania parlamentar, demonstra esse deslocamento do reconhecimento do
justo nos métodos de justiça e não mais na política. “A justiça, aliás, forneceu à
democracia seu novo vocabulário: imparcialidade, processo, transparência,
contraditório, neutralidade, argumentação, etc.”
232
Nesse contexto de
significações os juízes figuram como nova representação ética das ações
coletivas.
A ação coletiva identifica-se mais com a forma processual do
que com a política. Quando se afigura a imparcialidade do Estado, termo ligado
essencialmente ao vocabulário jurídico, transparecendo ao mesmo tempo o
esfacelamento da crença na política e o direcionamento à justiça. “A justiça
encarna, hoje em dia, o espaço público neutro, o direito, a referência da acção
política, e o juiz, o espírito público desinteressado.”
233
O direito tornou-se referência para ação política, muito mais
pelo espaço público que os juízes vêm alcançando nas democracias atuais, do
que pela atuação específica dos membros da magistratura. O que se transforma
não é somente a atuação do judiciário, mas a compreensão própria da
democracia, desvinculada do âmbito político e aclamada por critérios de
justiciabilidade assegurados pelo Poder Judiciário. “Assim, o critério de
232
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 42
233
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 42
94
justiciabilidade substitui-se, de forma insidiosa, ao critério da positividade da lei. O
direito define-se não tanto pela imposição legitima da lei, mas antes pela
possibilidade de submeter um comportamento à apreciação de um terceiro.”
234
O deslocamento da democracia da base do Estado para a
justiça, ainda que tênue, não pode ser considerado insignificante pelas
conseqüências que expõe e gera. O sucesso da justiça traz o fortalecimento dos
juízes e do judiciário e por outro extremo expõe a falência das instituições
políticas tradicionais, que foram abandonadas por uma sociedade consumidora,
apática e interessada o somente por seus afazeres privados, “[...] mas
esperando do político algo que este não lhes saberá dar: uma moral, um projeto
duradouro.”
235
O judiciário expõe no processo um teatro onde atuam novos
atores, organizações e minorias, sem que para isso haja necessidade de
consenso político ou representações institucionais, o que não era permitido nos
moldes tradicionais de participação política. As inter-relações entre os atores da
democracia é mediada pelo direito e não mais pelo Estado, e a justiça, enquanto
espaço de exigibilidade da democracia, é um ambiente prevalecentemente
individual e permanente e o intermitente e coletiva como a política. “Através
desta forma mais directa de democracia, o cidadão-litigante tem a sensação de
dominar melhor a sua representação.”
236
O fator preocupante nesse deslocamento da democracia
para os Tribunais, é, principalmente, o teor das decisões jurisdicionais que
reafirmam o individualismo e a supervalorização do conflito, enquanto na política
o consenso e a compreensão dos processos de violência e conflito eram
caminhos indispensáveis para busca do bem comum. O fortalecimento do direito
e a preocupação incontrolável pelos direitos negativos de defesa afastam a
compreensão da política e dos limites das matérias dedicadas a cada uma das
234
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 43
235
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 45
236
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 46 “Num
Tribunal, o resultado da reivindicação não depende do braço-de-ferro entre as duas entidades
políticas um sindicato e o governo, por exemplo mas antes da pugnacidade de um indivíduo
que pode levar o Estado a ceder, estando ambos ficticiamente colocados em de igualdade.”
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 46/47
95
esferas. “O excesso de direito pode desnaturar a democracia; o excesso de
defesa pode bloquear a tomada de decisão; o excesso de garantias pode
mergulhar a justiça numa espécie de indecisão ilimitada.[...] Resumindo, um mau
uso do direito é tão ameaçador para a democracia quanto a escassez de
direito.”
237
Firme à sua vocação toquevilliana, Garapon, aponta o
esfacelamento da República que não mantém mais o fundamento essencial de
sua constituição a idéia de ordenação para um interesse comum da sociedade.
Como afirma Vianna, [...] depois de décadas de um processo de individualização
que erodiu a base da noção de bem-comum e de esgarçamento da sociabilidade,
ter-se-ia desnaturalizado o civismo deveria provir da invenção e de reformas
políticas que lhe devolvessem o alento da vida.”
238
Na proporção de Garapon, Habermas se coloca criticamente
frente ao Estado e ao direito social, com o objetivo de “[...] colocar sob novo
ângulo a questão do soberano e da conformação da vontade geral, concebendo a
sua proposta em favor de um paradigma procedimental do direito”.
239
Em sua
proposta é inaplicável a judicialização da política, que as interconexões entre a
democracia deliberativa e a representativa dependem de fluxos comunicacionais
e de uma livre e ativa cidadania. Pela proposta hermenêutica de Habermas, em
seu diálogo com liberais e comunitários, o paradigma procedimental de
interpretação constitucional deve compatibilizar o processo deliberativo com uma
interpretação de sentido deontológico das normas jurídicas. Nesse sentido, frente
ao pluralismo social, cultural e dos projetos individuais de vida, a interpretação e
prestação jurisdicional “[...] devem procurar estabelecer aquilo que é correto e
não, como defendem os comunitários, aquilo que é preferencialmente bom, dada
uma ordem específica de valores.”
240
A ética discursiva
241
de Habermas,
237
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 51
238
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 27
239
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 28
240
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2004. p. 204
241
“As considerações propedêuticas que fiz até aqui tiveram por objetivo defender a abordagem
cognitivista da ética contra as manobras dos cépticos relativamente aos valores e, ao mesmo
96
fundamenta as normas morais nos procedimentos discursivos que serão
submetidos a validade do consenso de todos os atingidos. Ao contrário da moral,
o direito está próximo de uma teoria procedimental ideal, pois é independente dos
participantes e pode, por estes e por observadores externos, ser observado e
corrigido, medida que se deve ao fato de ser vinculado com critérios
institucionalizados.
É nesse ponto que Habermas se aproxima da construção
teórica de Dworkin, no que concerne a compreensão da natureza obrigacional da
norma, porém, se afasta deste teórico, quando este fala em “[...] processo
hermenêutico orientado por princípios substantivos, como o enfoque monológico
de ‘um juiz que se sobressai por sua virtude e acesso privilegiado à verdade”.
242
O que se depreende da doutrina habermasiana é que a “[...]
combinação universal e a mediação recíproca entre a soberania do povo
institucionalizada juridicamente e a não-institucionalizada [...]”
243
, apresentam-se
como pontos chaves para compreender a forma democrática do direito sob o
prisma procedimentalista.
O núcleo da compreensão do sistema procedimentalista do
direito, é a “[...] combinação universal e a mediação recíproca entre a soberania
do povo institucionalizada juridicamente e a o-institucionalizada o a chave
para se entender a gênese democrática do direito”
244
. O substrato social
necessário para realização dos sistemas de direito, segundo Habermas, não é
orientado por uma sociedade de mercado, nem por um Estado de bem-estar que
tempo, encaminhar uma resposta para a questão: em que sentido e de que maneira podem ser
fundamentados os mandamentos e normas morais. Na parte construtiva de minhas considerações
quero, primeiramente, lembrar o papel das pretensões de validez normativas na prática quotidiana,
a fim de explicar em que a pretensão deontológica, associada a mandamentos e normas, se
distingue da pretensão de validez assertórica e a fim de fundamentar por que é recomendável
abordar a teoria moral sob a forma de uma investigação de argumentações morais. [...] A tentativa
de fundamentar a ética sob a forma de uma lógica moral tem perspectiva de sucesso se
também pudermos identificar uma pretensão de validez especial, associada a mandamentos e
normas, [...]” HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A.
de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 78/79
242
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2004. p. 205
243
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 27
244
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. 2003. p. 186
97
movimenta-se intencionalmente, “[...] mas pelos fluxos comunicacionais e pelas
influências públicas que procedem da sociedade civil e da esfera pública política,
os quais são transformados em poder comunicativo pelos processos
democráticos.”
245
Para Habermas, no paradigma procedimentalista do direito,
a esfera pública é colocada como um passo anterior à produção legislativa,
constituindo centro do debate político que gera impulsos comunicativos, sem que,
contudo, tenha a pretensão de assumir as funções especificamente políticas. As
diferentes formas de participação e de opinião pública que emergem dos espaços
públicos, geram um poder comunicativo com efeito duplo: “a) autorização sobre o
legislador, e b) de legitimação sobre a administração reguladora; ao passo que a
crítica do direito, mobilizada publicamente, impõe obrigações de fundamentação
mais rigorosas a uma justiça engajada no desenvolvimento do direito.”
246
A teoria procedimentalista procura dar luzes ao novo
contexto político-jurídico resultante do Estado de bem-estar. São pontos
importantes em seus fundamentos o reconhecimento sob o ângulo da teoria do
direito de que o Estado de Direito, se coloca como “[...] institucionalização de
processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma formação
discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita, a seu turno, o exercício da
autonomia política e a criação legítima do direito.”
247
Noutro ponto, Habermas
248
,
coloca a capacidade da comunicação jurídica de mediar sociedades globais
mesmo que extremamente complexas, e ainda, aponta para divergência da
compreensão dos modelos jurídicos liberal e do Estado Social, que absorvem a
realização do direito de maneira muito concretista, escondendo a relação interna
entre autonomia privada e pública. Os dois modelos, liberal e de bem-estar, que
procuram assegurar a igualdade jurídica e a igualdade fática, respectivamente,
estão firmados sobre equívocos por o manterem relação interna entre
245
Aponta Habermas, que, “Neste contexto, é fundamental o cultivo de esferas públicas
autônomas, a participação maior das pessoas, a domesticação do poder da mídia e a função
mediadora dos partidos políticos não-estatizados.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia:
entre facticidade e validade. Vol. II. 2003. p. 186
246
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. 2003. p. 187
247
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. 2003. p. 181
248
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. 2003. p. 181
98
autonomia privada e pública, resumindo-se à distribuição de direitos e de
benefícios sociais, em cada caso, buscando a realização da concepção individual
do cidadão acerca de uma vida digna.
249
O cerne da teoria procedimentalista
habermasiana, está na autonomia de indivíduos que ao se reconhecerem como
iguais numa comunidade jurídica tornam-se autores de seus direitos e não
resumem-se a destinatários do bem-estar. Dessa fórmula que decorre a
legitimidade do direito como vinculada a autonomia pública e privada do cidadão,
associando o direito legítimo à democracia.
250
Analisar a judicialização da política sob o enfoque
procedimentalista habermasiano, é reconhecer a transferência das competências
legislativas para os Tribunais como conseqüência da ineficiência do Parlamento
que não esgota sua função de regulamentar as matérias adequadamente. A
função precípua dos Tribunais é “[...] mobilizar as razões que lhe são dadas,
segundo o ‘direito e a lei’ [...]”
251
, enquanto ao legislador é imposta a obrigação de
interpretar e estruturar direitos. Nesse ponto a proposta procedimentalista
restringe as competências dos Tribunais constitucionais, postura que visa
proteger os espaços públicos e garantir o processo democrático, transformando,
consequentemente, o espaço deixado pelo cliente do Estado Social, para ser
ocupado pelo cidadão engajado politicamente na luta pela concretização do
princípio da igualdade.
252
249
“O equívoco de ambos os paradigmas, segundo Habermas, é acreditar que a justiça se vincula
a uma certa idéia de bem-estar, que pode ser assegurado ou pela igualdade jurídica paradigma
do direito liberal ou pela igualdade fática paradigma do direito ao bem-estar. Como
conseqüência desta concepção de justiça enquanto modelo distributivo, ambos os paradigmas
configuram uma mesma representação do cidadão enquanto ‘destinatário de bens’, equiparando,
por um lado, bens e direitos, e desprezando, por outro lado, o papel do cidadão comum enquanto
‘autor’do direito.” CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da
Filosofia Constitucional Contemporânea. 2004. p. 209
250
“Ao associar direito legitimo e democracia, o paradigma procedimental habermasiano
compartilha com os comunitários o compromisso com o processo político deliberativo que
assegura o apenas a produção como a interpretação dialógica do direito.” CITTADINO, Gisele.
Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea.
2004. p. 209
251
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. 2003. p. 183
252
Nesse aspecto VIANNA (et. al.), ao falar da teoria de Habermas, dispõe: “Nesses termos, no
paradigma procedimental de Habermas o cidadão não seria um simples participante de um jogo
mercantil nem um cliente de burocracias de bem-estar, e sim o ator autônomo que constituiria a
sua vontade e a sua opinião no âmbito da sociedade civil e da esfera pública, canalizando-a, em
um fluxo comunicacional livre, para o interior do sistema político.” VIANNA, Luiz Werneck (et. al.).
A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. 1999. p. 29
99
Nesse contexto, a jurisdição será conclamada a decidir em
“[...] zonas cinzentas que surgem entre a legislação e a aplicação do direito -”
253
,
exigindo uma nova fundamentação e justificação que poderia ser obtida através
da formação de um espaço público jurídico em substituição aos especialistas,
problematizando as decisões em controvérsias públicas.
Segundo Habermas
254
, o alargamento das competências
dos Tribunais, na doutrina construtivista de Dworkin, leva ao risco de tornar
indefinível os limites entre as competências típicas de julgar do judiciário e a
invasão na esfera legislativa que esse processo a levará, o que faria sucumbir a
estrita e necessária ligação entre a administração e a lei. A prática jurisdicional
alcança sua legitimidade quando está em conformidade com a lei, que por sua
vez, será legitima quando perseguir um processo legislativo constituído e
democrático que não está reservado aos órgãos jurisdicionais.
Ao passo que não é dado ao legislador contrapor as
decisões jurisdicionais para verificar sua pertinência com a intenção pela qual a
norma foi criada, também deveria se restringir a atuação dos tribunais no que
concerne à invasão sobre a lei construída pelo processo democrático. Assim, é
que a proposta de Habermas inclui que o controle da constitucionalidade das
normas seja atividade reservada ao próprio legislativo, através de um processo de
auto-reflexão. “Por isso, não é inteiramente destituído de sentido reservar essa
função, mesmo em segunda instância, a um autocontrole do legislador, o qual
pode assumir as proporções de um processo judicial.”
255
Muito mais importante do
que colocar os tribunais como protetores de uma ordem suprapositiva de valores
substanciais, em Habermas, como afirma Vianna (et. al.), a “[...] Côrte
Constitucional, originária ou não do Poder Judiciário, seria a de zelar pelo respeito
aos procedimentos democráticos para uma formação da opinião e da vontade
política, a partir da própria cidadania, e não a de se arrogar o papel de legislador
político.”
256
A importante divergência do ponto de vista procedimentalista, que o
253
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II. 2003. p. 183
254
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. 2003. p. 297
255
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. p. 301
256
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 29
100
distancia do paradigma liberal e do Estado social, é que não está fundado num
ideal de sociedade, não exclui, a priori, o bem e o mal das visões políticas, mas é
formal apenas no sentido de garantir a esfera pública e as condições para que os
cidadãos enquanto sujeitos do direito possam descobrir-se e identificar seus
problemas, advindo desse processo as suas próprias soluções.
257
Da contraposição entre o modelo liberal e seu substituto, o
Estado social, transparece uma transformação na conceituação dos direitos
fundamentais que se reflete na jurisprudência. No paradigma liberal era clara a
divisão entre a esfera dos indivíduos que buscavam, com autonomia, seus
interesses privados e a felicidade, dos interesses públicos/comuns tutelados pelo
Estado. “Tarefas e objetivos do Estado continuavam entregues à política; na
compreensão liberal, eles não eram objeto da normatização do direito
constitucional. A isso corresponde a compreensão dos direitos fundamentais
como direito de defesa, referidos ao Estado.”
258
Nesse sentido, que esse modelo
defende firmemente a ligação inextrincável entre a justiça e a administração à lei.
Também, afirma que o judiciário cabe decidir de acordo com a história das
instituições políticas legislativas, enquanto o legislador tem sua visão voltada para
o futuro e a administração se ocupa dos problemas atuais. Da junção dessas
compreensões, é que para os liberais a Constituição deve assegurar, antes de
mais nada, o conflito entre a população desarmada e o poder constituído do
Estado.
259
O que o Estado social faz, e o paradigma liberal repudia, é
aproximar a jurisdição da busca de fins, objetivo reservado ao Estado enquanto
administração, e para isso, flexibiliza a ligação da justiça com o legislador político,
“[...] na medida em que a argumentação jurídica se abre em relação a argumentos
morais de princípio e a argumentos políticos visando à determinação de fins.”
260
O
temor desse novo paradigma é a confirmação da estrutura jurisdicional como
257
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I, 2003. p. 10
258
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I, 2003. p. 305
259
“Ao passo que as relações horizontais entre as pessoas privadas, especialmente as relações
intersubjetivas, não têm nenhuma força estruturadora para o esquema liberal de divisão dos
poderes. Nisso se encaixa a representação positivista do direito, que o tem na conta de um
sistema de regras fechado recursivamente.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre
facticidade e validade. vol. I, 2003. p. 305
260
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I, 2003. p. 306
101
substituto ao legislador, solapando a legitimidade que não lhe foi concedida
democraticamente, e por outro viés, põe à evidência uma estrutura jurídica
volatilizada de acordo com as vontades da administração.
Ao trabalhar seus aportes teóricos no paradigma
procedimentalista, Habermas apresenta as distinções necessárias em paralelo
aos paradigmas liberal e republicano. Primeiro ponto, apontado por Habermas,
refere-se a própria compreensão das liberdades negativas dos cidadãos, que na
modernidade liberal referem-se ao direito de proteção contra as ingerências de
um Estado administrativo, e no republicanismo compreende as liberdades
positivas como a possibilidade de cidadãos participarem do espaço público com
igualdade de condições.
261
Porém, decisivo para distinção dos dois paradigmas é
a compreensão do próprio processo democrático. Para os liberais, segundo
Habermas, “[...] o processo democrático desempenha a tarefa de programar o
Estado no interesse da sociedade, sendo que o Estado é apresentado como
aparelho da administração pública, e a sociedade como sistema de seu trabalho
social e do intercâmbio das pessoas privadas [...]”
262
, organizando as estruturas
de acordo com a economia. A política nesse ponto, restringe-se a opor interesses
sociais privados para um Estado com função de aparelho administrativo com fins
coletivos. No modelo republicano, a política “[...] é entendida como forma de
reflexão de um contexto vital ético como o medium no qual os membros de
comunidades solidárias, mais ou menos naturais, tornam-se conscientes de sua
dependência recíproca [...]”
263
, e, conscientes de sua condição de cidadãos
configuram as relações de reconhecimento recíproco.
261
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I, 2003. p. 331
262
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I, 2003. p. 332
263
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I, 2003. p. 333.
Habermas aponta, ainda, outras distinções importantes: “(a) Em primeiro lugar, diferenciam-se os
conceitos do cidadão. Na interpretação liberal, o status dos cidadãos determina-se primariamente
a partir dos direitos negativos que eles possuem em relação ao Estado e outros cidadãos.
Enquanto portadores desses direitos, eles gozam, não somente da proteção do Estado, na medida
em que perseguem seus interesses privados no âmbito de limites traçados por leis, como também
a proteção contra a intervenção do Estado que ultrapassam o nível de intervenção legal. [...] Na
interpretação republicana, o status dos civis não se determina pelo modelo das liberdades
negativas que essas pessoas privadas, enquanto tais, podem reclamar. Os direitos dos cidadãos,
em primeira linha os direitos políticos de participação e de comunicação, são, ao invés, liberdades
positivas. [...] A justificativa da existência do Estado não reside primariamente na proteção de
direitos subjetivos iguais, e sim na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da
102
Viana (et. al.)
264
, identifica na teoria procedimentalista
habermasiana, uma simpatia ao republicanismo, e o fato de que o contrato social
roussseauniano seria renovado constantemente pela competição na esfera
pública, nas constantes revoluções no campo da produção do direito. Nessa
perspectiva, os princípios não devem ganhar qualquer vocação substantiva de
direitos materiais, e sim, garantir os processos de formação de opinião pelo
acesso de todos aos meios de comunicação e participação.
O resultado das conexões entre a democracia deliberativa e
a representativa, seria a chave para compreensão do pensamento
procedimentalista. Por democracia deliberativa, a teoria habermasiana entende o
lugar de influência de onde as associações voluntárias e as redes de organização
disseminam convicções práticas, no que, se afasta da compreensão de Garapon
como um circuito alternativo. Esse paradigma permitiria que o poder comunicativo
permeasse constantemente o poder político sem que viesse pretender tomá-lo
para si.
As formulações habermasianas o ignoram a necessidade
de que a sustentação do paradigma procedimentalista importa no fortalecimento
da consciência política da liberdade, do contrário, não é possível a formação de
uma vontade politicamente racional.
O saudosismo republicano é marca presente no preconceito
de Habermas e Garapon quanto à invasão do direito nas sociedades
contemporâneas. Em suas compreensões da atividade jurisdicional e no próprio
processo democrático na atualidade, não espaço para a intervenção de um
ativismo judicial ou a presença de um terceiro gigante, como teoriza Cappelletti.
265
vontade, dentro do processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, dentro do qual civis
livres e iguais e entendem sobre quais normas e fins estão no interesse comum de todos.”
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. I. 2003. p. 331/335
264
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil,
1999. p. 31 “O campo conceitual e político dos direitos humanos não entraria em competição,
desse modo, com a soberania popular, uma vez que eles tenderiam a se identificar. E a separação
entre os Poderes emergiria como um resultado lógico de um processo assim orientado, em razão
de, por sua própria natureza, não caber uma contraposição entre a formação da opinião de todos
e a vontade da maioria.”
265
É saudável lembrar que, como afirma VIANNA (et. al.), o resgate republicanismo se na obra de
Habermas pode ser tomado como sistemático, em Garapon é eclético, pois se serve da idéia de
“[...] república no seu diagnóstico,mas não em sua intenção normativo, quando parece aderir ao
103
Reserva-se ao Poder Judiciário somente a função de garante das regras do
procedimento discursivo, bem como a presença de todos no processo e na
formação política da opinião e vontade soberana.
Noutra borda do debate encontram-se as posições
construtivistas e substancialistas de Dworkin e Cappelletti. Porém, propor a
discussão da judicialização das relações políticas a partir do pensamento de
Dworkin e Cappelletti, requer, inicialmente, o cuidado de não homogeneizar suas
teorias, que apresentam grandes diferenças. Justifica-se a opção pelos autores
pelo fato de estar na base da teoria de ambos, um afastamento do republicanismo
democrático segundo o modelo herdado da Revolução Francesa, e aproximarem-
se do paradigma anglo-saxão, sustentando a esperança dos autores “na
capacidade de reprodução e no aperfeiçoamento do legado democrático do
Ocidente político. Em outras palavras, tal confiança remeteria à tradição e aos
valores comuns encarnados na trajetória ocidental do direito.”
266
Para Dworkin e Cappelletti, as Constituições modernas ao
trazerem em seu bojo grande número de princípios normativos, permitiram a auto-
reestruturação do sistema, caso o Judiciário esteja consciente de sua função de
guardião do texto constitucional, aproveitando a expansão que os sistemas
constitucionais fizeram ao expandir os princípios para locais antes não
admitidos.
267
A perspectiva de Dworkin e Cappelletti, é antes de tudo
pragmática, o que os leva a colocar uma proposta empírica em contraposição a
formação normativa do direito. Desse ponto, lançam olhares críticos em relação
ao sistema representativo, apontando a incapacidade desse modelo em incluir as
minorias no processo democrático. Como alude Dworkin
268
, “[...] o raciocínio
jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de que nosso direito constitui
enunciado pós-moderno de François Ost, com seu direito ‘liquido, intersticial e informal’, tal como
estaria sendo produzido pluralisticamente na periferia do sistema.” VIANNA, Luiz Werneck (et. al.).
A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, 1999. p. 32
266
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil,
1999. p. 32
267
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no
Brasil.1999. p.32
268
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. p. XI (Prefácio)
104
a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e de que ele é a
narrativa que faz dessas práticas as melhores possíveis”.
Na cadeia democrática, os Tribunais, e especificamente
falando da figura do juiz, Dworkin
269
, coloca-os sob a perspectiva de um dos
autores da produção criativa do direito, posicionado em momento posterior ao
legislador. O judiciário segue, de acordo com sua convicção o sistema legal
iniciado no Congresso, e assim, como responsável por interpretar essa legislação
de acordo com o contexto que a envolve. Nesse processo, é possível que as
decisões estejam apoiadas naquilo que foi debatido no Congresso, mas podem
também, ser dissociadas desse argumento caso questionem até que ponto o
Congresso deve submeter-se à opinião pública.
O método apresentado por Dworkin
270
, se opõe à teoria que
determina que o juiz se submeta no momento de aplicação da lei àquilo que
pretendia o legislador no momento de sua criação. Nessa base, a teoria exposta
pode ser tomada sob dois ângulos diferentes. Em primeiro plano, caberá ao juiz
tomar as declarações do Congresso nas justificativas de criação da lei como atos
políticos que deve ajustar-se, assim como, deverá tomar em conta sua explicação
ao próprio texto da lei e explicá-lo. Noutro norte, é apreciar esses eventos
políticos o como importantes em si, mas como reflexo do estado mental dos
legisladores e representativos da maioria deles, formando, o que Dworkin
denomina de ponto de vista do locutor, ou, de interpretação conversacional e o
construtiva.
Da perspectiva do paradigma do locutor,
271
as conclusões
são relatadas como sendo as da própria lei, ao passo que do ponto de vista do
269
DWORKIN, Ronald. O império do direito, 1999. p. 377 “Tratará o Congresso como um autor
anterior a ele na cadeia do direito, embora um autor com poderes e responsabilidades diferentes
dos seus e, fundamentalmente, vai encarar seu próprio papel como o papel criativo de um
colaborador que continua a desenvolver, do modo que acredita ser o melhor, o sistema legal
iniciado pelo Congresso. Ele irá se perguntar qual interpretação da lei [...] mostra mais claramente
o desenvolvimento político e envolve essa lei.”
270
DWORKIN, Ronald. O império do direito, 1999. p. 378
271
Para os que adotarem essa postura, Dworkin acredita ser necessário responder uma série de
questões. “Quais personagens históricos devem ser considerados legisladores? Como devemos
agir para descobrir suas intenções? Quando essas intenções de algum modo diferem umas das
outras, como devem ser combinadas na intenção institucional compósita? Suas respostas devem,
105
direito enquanto integridade e numa postura construtiva, os juízes não estão
comprometidos com essa leitura do estado de espírito do legislador, mas
apropriam-se dos eventos políticos que circundam o processo democrático como
autônomos em si mesmos.
Guiar-se pela intenção do locutor, importa descobrir
inicialmente quem sãos os legisladores. Para Dworkin
272
, os juízes no momento
de decidir de acordo com a intenção do locutor, teriam que considerar as
deformidades do sistema representativo, os lobbies, as pressões públicas e os
interesses privados presentes no Congresso. O eixo procedimentalista torna-se
inadequado frente as objeções construtivistas de Dworkin, por não existir garantia
no processo democrático de que os partidos políticos, enquanto formadores de
opinião, oportunizarão igualdade de acesso ao espaço público. Como comenta
Viana (et. al.)
273
:
O viés pragmático do eixo que valoriza o ativismo judicial tem como
ponto de partida essa ‘empiria adversa’ à teoria clássica da soberania
popular, adversidade essa que somente poder ser removida pelo fiat de
um ator externo, no caso o Legislativo e o Executivo, e o pela própria
sociedade, salvo na eventualidade de uma revolução.
Na proposta de interpretação como integridade
274
, que está
no cerne do ativismo judicial de Dworkin, o juiz deve tomar em conta não somente
sobre suas convicções de justiça, mas também, e sobretudo, apoiar-se nos “[...]
além disso, estabelecer o momento exato em que a lei foi pronunciada, ou em que adquiriu todo o
significado permanente que tem.” DWORKIN, Ronald. O império do direito, 1999. p. 380
272
Assim, seus juízos sobre as idéias que contam serão sensíveis a seus pontos de vista sobre a
antiga questão de se os legisladores representativos devem ser guiados por suas próprias
opiniões e convicções, responsáveis apenas perante suas próprias consciências, e sobre uma
questão mais recente, a de se os lobbies, os conluios e os comitês de ação política representam
uma corrupção do processo democrático ou expedientes positivos para tornar o processo mais
eficiente e eficaz.” DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad 1999. p. 384
273
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p.33
274
Um direito enquanto integridade para Dworkin, é uma teoria não cética das pretensões
juridicamente protegidas das pessoas de ganhar um processo. É a certeza de que uma decisão
será melhor justificada quando estiver coerente com as decisões políticas do passado. Ao
contrário do pragmatismo, não se fixa na idéia de que elas não terão direito àquilo que seria pior
para comunidade, apenas porque alguma legislação determinou desta forma. Nesse sentido,
importante a referência de suas construções em DWORKIN, Ronald. O império do direito. 1999. p.
186
106
ideais de integridade e equidade políticas e de devido processo legal, na medida
em que estes se aplicam especificamente à legislação em uma democracia.”
275
Os princípios da justiça, equidade e devido processo legal,
são os que abrigam a melhor justificativa prática do direito como um todo para
proteção das pretensões jurídicas dos indivíduos. “O princípio da integridade
desempenha o papel de equilibrar a justiça, a equidade e a legalidade. É um
chamado aos juízes para que atuem com ‘coerência narrativa’ na captação do
fenômeno jurídico.”
276
O juiz quando defronte a um caso difícil deve se perguntar
qual das alternativas que se apresentam melhor respondem, na sua perspectiva,
a concretização e coerência entre os três princípios da integridade: equidade,
devido processo legal e justiça.
Assim, a condução das decisões jurisdicionais seriam
baseadas na integridade e equidade. A integridade traz como pressuposto a
fundamentação numa justificativa ajustada a essa lei e coerente com o sistema
normativo, o que impõe, coerência com princípios e políticas. A eqüidade, por sua
vez, imporá o limite entre as convicções pessoais dos juízes e a sensibilidade à
opinião pública, o que será possível pela justificativa de suas decisões de acordo
com os textos do processo legislativo que originou a lei.
277
A tomada do direito
como integridade sobreleva uma dupla exigência: que ao tempo que se garanta a
conformação da lei aos princípios e a justificação moral não se perca a necessária
certeza do direito. É dessa forma que a integridade exige uma fundamentação
das decisões judiciais e do processo legislativo segundo os princípios políticos.
O paradigma jurisdicional adotado por Dworkin leva-o à
simpatia com o ativismo judicial e influencia na própria concepção que adota do
direito. Sua leitura dos direitos individuais coloca-os como mecanismos de defesa
contra políticas públicas estabelecidas por decisões majoritárias, isso porquê, sua
compreensão concebe-os como comandos imperativos e não somente como
275
DWORKIN, Ronald. O império do direito. 1999. p. 405
276
DANTAS, David Diniz. Interpretação constitucional no pós-positivismo: teoria e casos práticos.
2005. p. 75
277
DWORKIN, Ronald. O império do direito. 1999. p. 409
107
valores preferenciais numa ordem democrática.
278
A compreensão de Dworkin
sobre o direito é a resposta a três pilares básicos do sistema jurídico: o
positivismo jurídico, o realismo e o utilitarismo.
No que se refere à crítica ao positivismo, centra-se na
utilização por este de regras como método de resolução de conflitos, o que é
incompatível com as decisões dos juízes que apropriavam-se de standards,
revelados pelos princípios.
279
Contra o realismo, Dworkin aponta dois
inconvenientes: o primeiro, democrático, na medida em que a discricionariedade
violaria o princípio da separação dos poderes, que compete ao Legislativo a
elaboração de normas e não pode o Judiciário se apropriar dessa função. “Do
argumento liberal decorre que não é admissível legislar ex post facto, ou seja, não
se admite a aplicação retroativa de normas editadas posteriormente às hipóteses
fáticas previstas in abstracto nessas normas.”
280
Por fim, o utilitarismo de
Bentham, é rejeitado por Dworkin, quando firma a preferência por direitos morais
individuais e contra os cálculos conseqüencialistas das correntes utilitaristas.
281
Os argumentos de Dworkin, como liberal, são guiados pela
idéia de que um sistema jurídico constitucional deve privilegiar os direitos
fundamentais contra as posições majoritárias que sejam vozes contrárias ao
modelo liberal, “[...] que assegura o espaço do desacordo razoável, a Constituição
deve fixar um âmbito de liberdade imune a interferências externas indevidas.”
282
A tomada dos direitos fundamentais, assim como sua própria
concepção do direito, é um viés contraposto à compreensão do positivismo, o que
278
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2004. p. 182
279 “Argumentamos em favor de um princípio debatendo-nos com todo um conjunto de padrões
eles próprios princípios e não regras que estão em transformação, desenvolvimento e mútua
interação. Esses padrões dizem respeito à responsabilidade institucional, à interpretação das leis,
à força persuasiva dos diferentes tipos de precedente, à relação de todos esses fatores com as
praticas morais contemporâneas e com um grande número de outros padrões do mesmo tipo. Não
poderíamos aglutiná-los todos uma única ‘regra’, por mais complexa que fosse.” DWORKIN,
Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 65
280
DANTAS, David Diniz. Interpretação constitucional no pós-positivismo: teoria e casos práticos.
2005. p. 74
281
DANTAS, David Diniz. Interpretação constitucional no pós-positivismo: teoria e casos práticos.
2005. p. 74
282
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2004. p. 183
108
faz Dworkin tomar em mãos a formação de um sistema normativo formado
também por princípios, e nesse ponto, trata-se da aproximação de sua teoria do
direito com sua justificação moral. Como ressalta Cittadino, Dworkin, “[...] supõe
que a argumentação moral constrói historicamente princípios capazes de justificar
as instituições da sociedade, em função dos seus próprios conteúdos e de sua
força argumentativa.”
283
O passo seguinte seria a tradução desses princípios para
uma linguagem neutra e codificada do direito, de forma a permitir a certeza e a
segurança necessárias aos juízes no momento de decidir. Nessa fórmula Dworkin
refuta com apenas um argumento, todas as propostas do positivismo e apresenta
a conexão possível e necessária entre moral, direito e política.
284
Sob a perspectiva doutrinária de Cappelletti, a
incompetência dos poderes políticos que sucumbem facilmente frente aos
reclamos do poder econômico entre outros exemplos possíveis, tornam factíveis o
crescimento do Poder Judiciário, que os juízes não dispõem de tanta liberdade,
garantindo maior controle sobre sua atuação. Da mesma forma, aponta o
crescimento da criatividade da produção do judiciário como reflexo do próprio
pluralismo político atual, que requer dos juízes maior reflexão de modo a não
deixá-los sem controle. Nesse contexto, decorre a necessidade de que o judiciário
se transforme e se adapte a sua nova realidade e exigências. “Esse processo, de
outra parte, não se e nunca deverá ser levado ao ponto de suprimir as
283
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. 2004. p. 187. Lembra ainda, Cittadino, “[...] que por invocar
princípios morais Dworkin não pode ser identificado como um representante do pensamento
jusnaturalista clássico. Afinal, da sua postura antipositivista não decorre um compromisso
jusnaturalista com uma moral objetiva que pressupõe a existência de princípios universais e
inalteráveis que devem apenas ser descobertos pela razão humana. Os princípios morais não
resultam de um processo ‘contemplativo’, mas, ao contrário, de um processo ‘construtivo’.”
284
Cittadino, ao comentar a teoria de Dworkin contra o positivismo, ressalta: Com efeito, se os
princípios decorrentes da moralidade política migram para o interior do direito positivo, o
ordenamento jurídico nem resulta, como assegura Austin, da vontade política de um legislador
soberano, nem, como supõe Hart, de uma regra de reconhecimento.” CITTADINO, Gisele.
Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea.
2004. p. 188
109
profundas diferenças institucionais existentes entre os órgãos judiciários, de um
lado, e os assim chamados ramos políticos de outro.”
285
A crítica de Cappelletti
286
, é quanto à presença, na
magistratura, de uma orientação fortemente conservadora e pouco sensível às
finalidades sociais protegidas pelo Welfare State. Os juízes ainda apresentam
forte vícios conservadores e condicionados a julgar problemas penais e cíveis,
sem apresentar sensibilidade ou capacidade técnica de responder
adequadamente aos problemas de interpretação e aplicação das leis
programáticas e promocionais, normalmente, asseguradoras de direitos
prestacionais sociais. “Faltava-lhes, além disso, o tipo de conhecimento e
experiência especializada, necessários para a adequada compreensão das novas
e complexas situações de vida, sobre as quais amiúde as intervenções do estado
sociais são chamadas a operar.”
287
Mais grave ainda é que estavam fortemente
apegados à cultura contenciosa, aplicando procedimentos marcadamente formais
e demorados, e assim, incompatíveis com a nova ordem imposta pelo welfare.
Por outro lado, o enfraquecimento do legislativo é tomado
pela imensidão de leis formuladas que não encontram eco na realidade social,
seja porque vieram tarde para o momento, seja porque são ambíguas ou
contraditórias, normalmente, respostas de classes representadas no congresso e
não produzidas racionalmente pela contraposição objetiva de custos e objetivos.
O compromisso com a economia e com os interesses privados fez surgir o
fenômeno da inflação legislativa, derramando ao mundo um grande número de
normas descartáveis e distorcidas.
Por outro vértice, o declínio do reconhecimento legítimo do
Parlamento é a assunção e supremacia dos Estados administrativos guiados pela
burocracia, outro grande risco a fomentar o paternalismo estatal ou o
autoritarismo, momento em que os indivíduos sentem-se perdidos pela máquina
burocrática, e com isso, incapazes de reunirem-se em grupo exercendo cidadania
285
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993. p. 90
286
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. 1993. p. 91
287
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. 1993. p. 51
110
ativa em busca de seus interesses comuns. “Não é decerto sem boas razões que
tão grande parte da filosofia, psicologia e sociologia modernas trata exatamente
dos temas da solidão e do sentido de abandono e alienação do individuo atual, a
sua ‘solidão na multidão’, tornados de escaldante atualidade.”
288
A objeção mais firme contra a criação judicial do direito, vem
daqueles que a consideram antidemocrática, já que advinda da pena e da
valoração pessoal de um pessoa, ainda que contra a vontade da maioria. Tal,
afirmação se agudiza pela autorização ao judiciário de controle das leis, quando
podem declarar sua pertinência ou não com o ordenamento jurídico.
Cappelletti
289
, refuta, por diversos motivos o argumento de
que o judiciário se constitui em plano antidemocrático para essas decisões. A
primeira vista, parte da constatação da ciência política quanto à incapacidade dos
poderes políticos executivo e legislativo de representar o consenso dos
governados, ao contrário do judiciário, firme expressão da democracia
representativa, notadamente, entre os três, com maior blindagem quanto à
influência de interesses particulares. Certamente o Estado social não é criação
jurisdicional, e sim, legislativa, porém, o assoberbamento do congresso com a
criação de infinidades de leis e arrogando-se inúmeras competências, fez com
que aparentasse um certo congelamento e incapacidade de responder
imediatamente aos desejos da sociedade o que fez, por certo, trazer ao judiciário
essa competência de dizer o direito com maior segurança. Essa excessiva
influência externa de interesses privados sobre a produção legislativa é que faz
questionar a legitimidade democrática do legislativo para produção da norma, e
assim, destrói o argumento de antidemocrático pichado sobre o judiciário.
O segundo argumento apontado por Cappelletti
290
como
demonstrativo da falácia antidemocrática do judiciário, é o fato de que tanto nos
países de Comon Law, quanto nos de Civil Law, nestes, pela criação dos
Tribunais Constitucionais, as nomeações de seus membros ocorrem de forma
288
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. 1993. p. 45
289
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. 1993. p. 94
290
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? 1993. p. 97
111
política e com muita freqüência, trazendo grande oxigenação do pensamento
político em suas decisões.
Noutra perspectiva, o eixo substancialista defendido por
Cappelletti, acredita que o ativismo judicial poderá reforçar o próprio sistema
representativo político. Isso se explica pelo fato de que mesmo nas democracias
mais desenvolvidas o acesso ao espaço público, onde é permitida a exigibilidade
de seus direitos, está demasiadamente enfraquecida nos sistemas políticos,
reforçando a responsabilidade dos Tribunais em dar voz e visibilidade à
sociedade.
Segundo Cappelletti, é extremamente saudável um sistema
de representatividade onde os representados tenham acesso à fonte de poder. No
entanto, os sistemas atuais estão extremamente burocráticos e inacessíveis, ao
contrário do procedimento jurisdicional que desenvolve-se “[...] em direta conexão
com as partes interessadas, que têm o exclusivo poder de iniciar o processo
jurisdicional e determinar o seu conteúdo, cabendo-lhes ainda o fundamental
direito de serem ouvidas. Neste sentido, o processo jurisdicional é até o mais
participatório de todos os processos da atividade pública.”
291
Não se omite o fato
de que juízes também podem tornar-se excessivamente distantes e burocráticos,
porém, a ordem legal do sistema democrático tem condições de intervir para
corrigir essas deformações.
O erro mais evidente nas análises até o momento
realizadas, segundo Cappelletti, é querer exigir da atividade jurisdicional o mesmo
modelo de legitimação obtido pelos Poderes Legislativo e Executivo
292
. O
processo jurisdicional está legitimado sempre que o Tribunal esteja garantido pela
imparcialidade e independência, e ainda um terceiro elemento sempre desejável
para os Estados de direito que as decisões judiciais estejam sustentadas na lei.
“O verdadeiro problema não é portanto o de uma abstrata legitimação, mas é
291
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. 1993. p. 100
292
“Para Dworkin, com para Cappelletti, a criação jurisprudencial do direito também encontraria o
seu fundamento na primazia da Constituição, documento em que se declararam os direitos e as
liberdades fundamentais que se impõem à vontade da maioria.” VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A
judicialização da política e das relações sociais no Brasil. 1999. p.34
112
sobretudo um problema de restrições completas.”
293
O cerne da contenção da
criatividade judicial do direito, para Cappelletti, está nos mecanismos de controles
que se fazem dessa atividade que reputa inevitável, legítima e democrática. “Os
juízes não podem fazer menos do que participar na atividade de produção do
direito, ainda que, no limite, tal não exclua inteiramente a possibilidade de o
legislador ab-rogar ou modificar o direito jurisdicional.”
294
Essa possibilidade de
revisão do direito jurisprudencial ordinário ou constitucional, pelo legislador, é
medida que representa a vontade majoritária e por isso, sempre admitida. No
entanto, um sistema democrático não é somente aquele que assegura a vontade
da maioria, mas também, e muito mais importante, aquele que garante a
expressão e preservação da pluralidade e das minorias. Disso é que se reveste a
importância da atuação de um Poder Judiciário ativo como checks and balances
em torno do crescimento dos poderes políticos.
Superadas as diferenças de fundo em suas teorias, o que as
duas matizes teóricas Cappelletti, Dworkin e Habermas, Garapon, - apresentam
em comum é a incontestável realidade das democracias contemporâneas
fundamentadas sobre Constituições marcadamente principiológicas e políticas,
trazendo para o círculo de debates do Poder Judiciário a moral e o rastro político
dos direitos. Como ressalta Vianna (et. al.), ao falar dos dois eixos teóricos:
Controvérsias à parte, esses dois eixos analíticos teriam em comum o
reconhecimento do Poder Judiciário como instituição estratégica nas
democracias contemporâneas, não limitada às funções meramente
declarativas do direito, impondo-se entre os demais Poderes, como uma
agência indutora de um efetivo checks and balances e da garantia da
autonomia individual e cidadã.
295
A colocação do Poder Judiciário como contrapeso aos
poderes políticos, assegurando a autonomia e a emancipação da sociedade civil,
está na base das promessas do novo paradigma que exulta a criatividade
jurisdicional do direito, como mecanismo de proteção das liberdades individuais e
sociais insertas no texto constitucional.
293 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. 1993. p. 103
294 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. 1993. p. 103
295 VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 24
113
3.4 A POLÍTICA INSTITUCIONALIZADA NO PODER JUDICIÁRIO: UMA
ANÁLISE A PARTIR DE HANNAH ARENDT
A compreensão arendtiana sobre a Constituição e a lei, é ponto
importante na análise da força política transformadora que esse instrumento
alcançou na atualidade. Arendt é simpática ao republicanismo romano, por
entender que estes souberam compreender a importância da lei enquanto
contrato, capaz de unir a pluralidade de sujeitos pertencentes ao mesmo espaço.
A tradição da lei como instrumento unificador da sociedade foi retomada no
século XVIII por Montesquieu e Maquiavel, que afastavam o fundamento
transcendental do poder, fortemente defendidos pela tradição cristã e
absolutista.
296
A constituição enquanto momento fundacional de algo novo,
presente na Revolução Americana, tomada como exemplo por Arendt, demonstra
a capacidade de um corpo político negar a ordem estabelecida e instituir um novo
modelo, desde que haja em concerto.
297
A história dos Estados Unidos demonstra a importância do
republicanismo para o país por ter permitido, “[...] não apenas a instituição do
novo, mas também a sua permanência em uma base distinta da romana, isto é,
através do constitucionalismo e de uma tradição de direitos que atualiza o ato
fundacional que antecedeu a existência do próprio governo.”
298
Porém, esses
movimentos demonstram que a instituição de um novo modelo político obtido pelo
ato fundacional da lei, que i gerar o poder somente é possível pelo
consentimento e apoio popular resultante da livre troca de opiniões entre iguais.
299
Nesse ponto, importante distanciar o pensamento de Arendt
da tradição política que ela contestou. Isto porquê, a análise da importância da lei
296
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt.
2000.
297
“Não foi nenhuma teoria teológica, política ou filosófica, mas sua própria decisão de deixarem
para trás o velho mundo e se aventurarem em um empreendimento inteiramente seu, que deu
origem a uma seqüência de atos e acontecimentos em que teriam perecido senão tivessem [...]
descoberto a gramática elementar da ão política [...] cujas regras determinam o nascimento e o
ocaso da ação política”.ARENDT, Hannah. Da Revolução. 1988. p. 170 e seguintes.
298
AVRITZER, Leonardo. Ação Fundação e Autoridade em Hannah Arendt. n. 68. São Paulo: Lua
Nova, 2006. p. 166
299
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt.
2000. p. 249
114
como geradora do poder e da legitimidade deste, somente é possível quando se
tem claro que a categoria poder em Arendt, “[...] corresponde à habilidade
humana não apenas de agir, mas para agir em concerto.”
300
, o que requer, de
plano, a pluralidade de sujeitos construtores da ordem social e não, como
pensado pela tradição do pensamento filosófico, dentro das limitadas relações de
ordem e obediência.
301
Das distinções conceituais da obra de Arendt, conclui-se
que o poder é o ato fundacional da comunidade política. É através do apoio do
povo que as leis ganham vida no mundo e pela qual mantém sua legitimidade. O
apoio e acordo que geram o poder o traços que demonstram a aproximação de
Arendt com o contratualismo. Porém não se trata de vinculação com o
jusnaturalismo
302
ou o contratualismo vertical de Rousseau e Hobbes, mas o
contrato firmado de acordo com a teoria de Locke.
Dessa compreensão arendtiana tem-se que a Constituição é
uma convenção baseada no consenso geral da comunidade que define as regras
de ação e poder.
303
Como garantidoras das regras do jogo, as constituições
ganham estabilidade pelo consenso da comunidade e somente por esta poderá
ser alterada. O consentimento pensado por Arendt não é a simples aquiescência
com o texto legal, mas a participação ativa em sua elaboração no espaço blico.
O consentimento pressupõe o dissenso, como fonte de sua legitimidade.
304
300 ARENDT. Hannah. Sobre a violência. 1994. p. 36
301
A tradição que entende o poder como uma relação de mando e obediência (amplamente
hegemônica no pensamento político ocidental) operaria do seguinte modo: de um lado, define
como tema central dos estudos políticos a relação de mando e obediência, guiando-se sempre
pela questão “quem manda em quem?”; de outro, e por conseguinte, entende o poder como
sinônimo de violência.” PERISSINOTTO, Renato M. Hannah Arendt, poder e a crítica da
“tradição”. São Paulo: Lua Nova, n. 61. 2004. p. 107
302
De fato, Arendt confere grande importância à capacidade de prometer entendida como
capacidade de compactuar, mas isso não implica que ela se agarre à ficção do contratualismo
jusnaturalista moderno, compreendido como artifício para fomentar e justificar a obediência ao
poder constituído, isto é, como um típico fruto da mentalidade do homo faber [...].” No que chamou
de versão vertical do contratualismo, Arendt, diz que os cidadãos visando por fim a guerra de
todos contra todos cedem todos os seus direitos ao soberano. No que denominou versão
horizontal, os indivíduos definem uma aliança e contratam uma forma de governo, se reservando o
direito à resistência. DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em
Hannah Arendt. 2000. p. 251
303
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt. 1988. p. 225
304
O consentimento e o direito de divergir tornaram-se os princípios inspiradores e organizadores
para a acao, os quais ensinaram os habitantes deste continente a ‘arte de se associar uns com os
outros’”. ARENDT, Hannah. Crises da República. Trad. José Volkmann. São Paulo: Perspectiva,
2006. p. 84
115
Porém a estabilidade da legislação, somente é possível
numa esfera política constituída e permanente. Com a vitória do animal laborans,
a ação e o homo faber, foram sufocados e excluídos da vita activa,
desaparecendo tudo o que não é necessário para o metabolismo da vida humana.
“Desapareceram as atividades e passaram a preponderar as rotinas e os
processos.”
305
É fato que as conseqüências para o direito da vitória do
animal laborans na era moderna não foram objeto de estudo de Arendt. Porém, é
possível afirmar no lastro de sua obra, que a perda da estabilidade e segurança
jurídica da legislação atual, está no fato que numa sociedade guiada pelo labor o
consumo é mais importante que a durabilidade dos objetos criados.
306
Na esfera
social, onde o animal laborans se desenvolve, o produtor de sua atividade deve
ter utilidade para o consumo de suas relações, não havendo qualquer
preocupação com a coisa comum que justifique a estabilidade da norma jurídica.
A postura substancialista predominante no direcionamento
dos Tribunais Constitucionais parece pretender o deslocamento da esfera pública
para o âmbito do Poder Judiciário, onde a política seria discutida dentro das
regras democráticas. A concretização de melhores condições sociais no período
pós-guerra, produto das políticas do welfare state, redimensionou a relação entre
os Poderes do Estado, assumindo o Poder Judiciário a arena política, “[...] como
uma alternativa para o resgate das promessas da modernidade, onde o acesso à
justiça assume um papel de fundamental importância, através do deslocamento
da esfera de tensão, até então calcada nos procedimentos políticos, para os
procedimentos judiciais.”
307
É a partir desse ponto que a atividade do Parlamento pode
vir a conflitar com a atividade jurisdicional. Nos Estados constitucionais, admite-se
a revisão judicial da legislação para avaliar sua adequação com o texto
305
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt. 1988. p. 226
306
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt. 1988. p. 226
307
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 2004. p. 40
116
constitucional. Reverte-se a relação ontológica entre direito e política, quando
aquele ao tempo que servia de suporte para definir as regras do jogo político, era
também objeto do debate da política. “Uma vez que o direito já não está
subordinado à política como se dela fosse instrumento, senão que é a política que
se converte em instrumento de atuação do Direito, subordinada aos vínculos a ela
impostos pelos princípios constitucionais; [...]”.
308
Com a possibilidade de ingresso de Ações Diretas de
Inconstitucionalidade e Mandado de Injunção, a citar alguns dos instrumentos
constitucionais de controle do Parlamento, chama-se o Poder Judiciário ao centro
do debate político com a possibilidade de negar vigência à leis que obedeceram
ao procedimento legislativo e emanaram de autoridades competentes. Não se
trata de dizer que legislações violadoras de direitos fundamentais devem
prevalecer no sistema jurídico, mormente, quando não se recusa a missão do
Poder Judiciário como controlador da legalidade dos demais Poderes. O que se
questiona é a legitimidade de um Tribunal intervir no modo como os
representantes populares decidiram conduzir a sociedade que representam.
309
Ainda que o acesso aos Tribunais seja democrático, a
atuação legislativa e intervencionista do Poder Judiciário parece não se adequar
ao sentido teórico da política encontrado nos textos de Arendt. A política somente
pode surgir da pluralidade e da espontaneidade dos homens, que são
pressupostos para constituição de um espaço entre eles, onde a coisa blica
vem à evidência nos debates políticos.
310
O espaço buscado por Arendt, “[...] está
muito acima da compreensão usual e mais burocrática da coisa política, que
308
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 2004. p. 49
309
À título de exemplo segundo informações de Vianna (et. al.), entre os anos de 1988 a 1998,
ingressaram no Supremo Tribunal Federal 507 Adins, de Governadores. No mesmo período a
Procuradoria Geral de Justiça deu entrada em 77 Adins; cerca de 199 foram propostas por
Associações de trabalhadores, profissionais e empresariais e outras 45 pela OAB. VIANNA, Luiz
Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. 1999. p. 76/90/105
310
“Na diversidade absoluta de todos os homens entre si- maior do que a diversidade relativa de
povos, nações ou raças a criação do homem por Deus está contida na pluralidade. Mas a
política nada tem a ver com isso. A política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de
acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas.ARENDT, Hannah.
O que é Política?. 2006. p. 25
117
realça apenas a organização e a garantia da vida dos homens.”
311
Da mesma
forma, como estudado anteriormente, a política estabelece leis que o aceitas
pela comunidade política pelo consenso, ou seja, pela consciência de que
surgiram do agir em conjunto. Nessas condições a política é persuasiva, segundo
Arendt, porque o Estado não age pela coerção para impor suas determinações.
O Poder Judiciário parece padecer dessa possibilidade.
Desembocar a esfera política para um ambiente que não detém espaço para a
participação de homens livres que possam expor suas idéias, e ainda, de um
Poder que possui força coercitiva para impor suas decisões, parece uma posição
que está na contramão do sentido clássico da política e declara sua total falência
na modernidade. O espaço hermético do Poder Judiciário não possibilita que os
homens se comuniquem coletivamente e possam agir através da palavra, o que
torna perigosa a confusão moderna entre a esfera política e a esfera social.
311
SONTHEIMER, Kurt. Prefácio in ARENDT, Hannah. O que é Política? 2006. p. 12
118
CAPÍTULO 4
A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
4.1 A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS SOB A ÓTICA DA TEORIA
DE HANNAH ARENDT
A judicialização das relações sociais é o fenômeno que se
intensificou com a instituição do Welfare State, e a crescente invasão do direito e
do Poder Judiciário em práticas sociais, inclusive, aquelas reservadas
tradicionalmente à vida privada, onde o Estado mantinha-se afastado.
Trata-se de uma extensa transformação das práticas
jurídicas e sociais, com o surgimento de novos atores judiciais, novos direitos
individuais e coletivos, reconhecimento de questões familiares e de gênero,
incluindo ainda, meio ambiente, consumidor e relações de trabalho.
As pesquisas sobre o tema têm se focalizado na bibliografia
da ciência política e da sociologia. A proposta do presente trabalho é inserir no
debate da judicialização das relações sociais a teoria de Hannah Arendt,
especialmente, suas apreciações sobre as transformações ocorridas nas esferas
pública, privada e o surgimento do social e nesse quadro o Poder Judiciário
tomaria a vanguarda.
Propõe-se o debate, analisando a possível ascensão do
Poder Judiciário como conseqüência do auge da esfera social na atualidade. Num
momento em que os limites entre o que é blico e o que é privado não são mais
identificáveis, e a economia, a sobrevivência e os paradigmas das relações
familiares tomam o centro do debate político, uma inflação legislativa, com caráter
mais imperativo do que diretivo das ações é a resposta conseguida pelo Estado
social.
119
Nessa perspectiva é que se analisará as conexões possíveis
entre o fortalecimento do Poder Judiciário, como garantidor do princípio da
igualdade e a alienação dos indivíduos em relação à política, para se tornarem em
consumidores num fenômeno de sociedades de massa.
O desenvolvimento do texto permeia os debates do acesso à
justiça até a explosão de conflituosidade ocorrida na sociedade atual, propondo
uma reavaliação da conveniência de um Poder Judiciário interventivo e regulador.
4.2 JUDICIÁRIO INTERVENTIVO, ACESSO À JUSTIÇA E A JUDICIALIZAÇÃO
DAS RELAÇÕES SOCIAIS.
A expansão da força reguladora do direito não tem
alcançado somente a esfera prioritariamente concedida à política, mas vem, cada
vez mais, se apropriando dos espaços notadamente privados do âmbito familiar,
da educação e das relações econômicas, ou seja, áreas propriamente sociais. A
ampliação se deu sob duas frentes distintas, porém, conexas: a assunção de
novos direitos decorrentes do Estado Providência/Welfare, e também, pelo
surgimento de novos atores. Nas duas formas, admite-se maior atuação do Poder
Judiciário em temas que antes atuava somente por exceção. Ao lado deste novo
fenômeno, traz-se a constatação da incompetência democrática dos Poderes
Executivo e Legislativo de oferecerem respostas seguras à demanda social por
justiça o que exige a implementação de direitos assegurados formalmente na
Constituição Federal de 1988. Como esclarece Vianna (et. al.)
A emergência do Judiciário corresponderia, portanto, a um contexto em
que o social, na ausência do Estado, das ideologias e da religião, e
diante de estruturas familiares e associativas continuamente
desorganizadas, se identifica com a bandeira do direito, com seus
procedimentos e instituições para pleitear as promessas democráticas
ainda não realizadas na modernidade.
312
312
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 149
120
Outra resposta aceita para o processo de judicialização do
social, que não exclui a primeira, mas a complementa, é a prevalência dada nos
sistemas constitucionais à agenda igualitária, que colocou no palco novos atores
sociais afro-descendentes, ambientalistas, etc. -, que cobram maior regulação e
normatização de seus direitos de forma a torná-los efetivos jurisdicionalmente.
Também as esferas familiar e do trabalho, áreas
estritamente privadas incorporaram características públicas exigindo maior
intervenção do Poder Judiciário e da legislação. No contexto familiar, a legislação
tem procurado se adaptar às fortes transformações da instituição, que deixou o
modelo tradicional, para admitir direitos à concubina, aos parceiros
homossexuais, às famílias monoparentais, afetivas, etc. No âmbito do direito do
trabalho, a complexidade dos meios de produção gerados pelo capitalismo e pelo
mundo globalizado, exigiram maior proteção do trabalhador com aspectos antes
desconhecidos, como a fadiga e as patologias mentais, decorrentes do excesso
de trabalho ou da atribulação da vida diária.
Na realidade brasileira, a invasão do direito é resposta o
à substituição das instituições representativas da República pelo Poder
Judiciário, mas à expressão da ampliação da igualdade num ambiente que
desconheceu as instituições da liberdade. “Neste sentido, o direito não é
‘substitutivo’ da República, dos partidos e do associativismo ele apenas ocupa
um vazio, pondo-se no lugar deles, e não necessariamente como solução
permanente.”
313
Essa permanente autonomia e expansão em relação à
política é vista com preconceito pelas forças republicanas de soberania popular
firmadas sob a regra da maioria. A própria absorção pelo direito de todos os
aspectos da vida social, como economia, família, escola e o mundo do trabalho,
“[...] é apontada como responsável por uma patológica colonização do mundo da
vida que se veria enredado na malha de um processo de juridicização, do que
resultaria uma cidadania passiva composta de clientes da ação administrativa do
313
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 150
121
Estado.”
314
Se por um lado, a juridicização através do ativismo judicial corrompe a
própria soberania popular, noutro norte, corrói o próprio direito, que perderia sua
identidade, ao passo que haveria uma contínua dependência da sociedade,
fortalecendo o aspecto material e decaindo sua dimensão formal que lhe é
própria.
As contribuições mais lúcidas à respeito da atuação do
Poder Judiciário nas sociedades contemporâneas são fornecidas pelos estudos
da sociologia jurídica
315
, especialmente quando combinados seus resultados com
a Filosofia, a Antropologia e a Ciência Política. No primeiro quartel do século XX,
a visão normativista e substantivista do direito prevaleceu sobre os estudos
sociológicos, como bem apontado por Santos
316
, que se utiliza, no tema que se
debate, a estruturação apresentada por Ehrlich, como: o direito vivo e a criação
judiciária do direito.
A distinção construída por Ehrlich, e resgatada por Santos,
entende por direito vivo a tradicional contraposição entre o direito oficialmente
estatuído e formalmente vigente e a normatividade emergente das próprias
relações sociais pela qual decorrem soluções para os conflitos sociais. A segunda
distinção, e a mais importante para o nosso debate, revolve a clássica distinção
entre a norma abstrata instituída pelo legislador e a normatividade resultante da
decisão do juiz. Esse segundo momento, como apontado por Sousa, “[...] ao
deslocar a questão da normatividade do direito dos enunciados abstractos da lei
para as decisões particulares do juiz, criou as pré-condições teóricas da transição
314
VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo. Revolução processual do direito e democracia
progressiva. In VIANNA, Luiz Werneck (org.). A democracia e os três poderes no Brasil. 2002. p.
340
315
“A sociologia do direito só se constituiu em ciência social, na acepção contemporânea do
termo, isto é, em ramos especializado da sociologia geral, depois da segunda guerra mundial. Foi
então que, mediante o uso de técnicas e métodos de investigação empírica e mediante a
teorização própria feita sobre os resultados dessa investigação, a sociologia do direito
verdadeiramente construiu sobre o direito um objecto teórico específico, autônomo, quer em
relação à dogmática jurídica, quer em relação à filosofia do direito.” SANTOS Boaventura de
Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 11 ed. São Paulo: Cortez,
2006. p. 161
316
“Uma das ilustrações mais significativas deste peso dos precursores consiste no
privilegiamento, sobretudo no período inicial, de uma visão normativista do direito em detrimento
de uma visão institucional e organizacional e, dentro daquela, no privilegiamento do direito
substantivo em detrimento do direito processual, uma distinção ela própria vinculada a tradições
teóricas importadas acriticamente pela sociologia do direito.” SANTOS Boaventura de Sousa. Pela
mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 2006. p. 161
122
para uma nova visão sociológica centradas nas dimensões processuais,
institucionais e organizacionais do direito.”
317
Também dessa tradição da
sociologia jurídica, está a compreensão de Weber, que conforme Santos
318
,
afirma o direito nas sociedades capitalistas como um monopólio estatal conduzido
por critérios de racionalidade e funcionários especializados segundo processos
lógicos e burocráticos.
Weber concebe o direito como aquilo que o legislador,
democraticamente ou não, definiu segundo um processo institucionalizado. As
ordens estatais modernas, nessa compreensão, são desdobramentos da
dominação legal mantidas somente por uma crença na legalidade como
legitimidade. Assim, não qualquer vinculação entre direito e moral, que o
direito dispõe de uma racionalidade independente.
319
A concretização material
dos direitos pleiteadas frente ao Estado social não tem coerência com a
formulação de uma ordem jurídica racional e formal. “A racionalização do direito,
nos estudos de Max Weber, contempla a racionalidade dos conceitos e práticas
legais (o tipo e grau de racionalidade do direito, o caráter formal ou material dos
procedimentos e critérios de decisão utilizados), em direção a um direito racional-
formal.”
320
As necessidades de maior intervenção do Estado na
realidade social são decorrentes da materialização do direito burguês no Estado
social e não são unicamente decorrências do crescimento das prescrições
jurídicas nas sociedades complexas. O Estado social atendeu aos reclamos por
maior justiça e com isso partiu estrategicamente para conferir um sistema de
compensações e regulamentações. A diferenciação objetiva das esferas jurídicas
depende de forma convexa das estruturas técnico-jurídicas e também de uma
317
SANTOS Boaventura de Sousa. Pela o de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
2006. p. 163
318 SANTOS Boaventura de Sousa. Pela o de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
2006. p. 163
319
“Isso significa que o direito moderno tem que legitimar o poder exercido conforme o direito,
apoiando-se exclusivamente em qualidades formais próprias. E, para fundamentar essa
‘racionalidade’, não se pode apelar para a razão prática de Kant ou de Aristóteles.” HABERMAS,
Jürgen. Direito e Democracia: entre validade e facticidade. vol. II. 2003. p. 193
320
MARTINS, Queila Jaqueline Nunes. Sociologia do direito em Max Weber: processos de
racionalização e de juridicização das relações sociais. In Produção científica CEJURPS 2006/
Universidade do Vale do Itajaí – Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí, 2006. p. 33
123
estrutura de associação política, fatores que influenciam no desenvolvimento
formal do direito.
Nesse ponto entra em debate a célebre distinção dos
conceitos weberianos entre “formal” e “material”, aduzindo que a introdução desse
último no ordenamento jurídico, destrói sua racionalidade formal. Weber
comprova sua tese, utilizando principalmente exemplos do direito liberal privado,
cuja função era garantir, através de leis públicas, abstratas e gerais, a vida, a
liberdade e a propriedade e a propriedade dos sujeitos de direitos privados que
celebram acordos.”
321
Noutro canto, buscando a materialização de direitos estão
nas áreas do direito social, no direito do trabalho, do cartel e da sociedade.
A compreensão da tendência de materialização do direito é
melhor compreendida quando contraposta à construção formal de seu conteúdo,
o que segundo Habermas, na teoria weberiana é justificada pelo trabalho
acadêmico de dogmáticos do direito. Os três aspectos destacados por
Habermas
322
, para um direito formal são:
Em primeiro lugar, a estruturação sistemática de um corpus de
proposições jurídicas claramente analisadas coloca as normas vigentes
numa ordem visível e controlável. Em segundo lugar, a forma da lei
abstrata e geral, não configurada para contextos particulares especiais,
nem dirigida a destinatários determinados, confere ao sistema de direitos
uma estrutura uniforme. E, em terceiro lugar, a vinculação da justiça e da
administração à lei garante uma implementação confiável dessas leis.
Com esse compasso, a juridicização provocada pelo Estado
social, suprime a distinção entre direito público e privado e não esfacela a unidade
do direito, inclusive, quanto a compreensão da hierarquia normativa. O ponto de
inflexão é que um sistema legal de objetivos e programas finalísticos elastecem a
clara distinção que existia entre a lei e a administração da justiça, e ainda,
introduz no ordenamento legal preocupações exteriores de ordem política e moral
que não podem ser previstas facilmente.
323
321
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre validade e facticidade. vol. II. 2003. p. 195
322
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre validade e facticidade. vol. II. 2003. p.
195/196
323
“Nesta medida é possível falar, em sentido descritivo, de uma ‘materialização’do direito. Para
atribuir a esta expressão um sentido crítico, Max Weber estabeleceu duas relações
esclarecedoras: a) a racionalidade do direito está fundamentada nas suas qualidades formais; b) a
124
São essas críticas que fazem Weber colocar o direito na sua
compreensão unicamente formal, entendendo a materialização de direitos
advindos do Estado social, como uma juridicização que leva o Poder Judiciário
navegar em áreas que não lhe pertencem. Necessário, nessa altura, definir qual a
compreensão de Weber sobre racionalidade, o que, para Habermas
324
, pode ser
tomada em três aspectos:
Em primeiro lugar, ele parte de um conceito amplo de técnica, que inclui
o sentido de técnica de oração, de pintura, de educação, etc., a fim de
mostrar que aquilo que em geral segue uma regra é importante para uma
certa racionalidade do agir. Padrões de comportamento confiavelmente
reproduzíveis podem ser previstos. E, quando se trata de regras técnicas
e perfectíveis da dominação da natureza e do material, a racionalidade
geral de regras assume o significado mais estrito de racionalidade
instrumental. Em segundo lugar, Weber fala em racionalidade de fins,
quando não se trata mais de aplicação regulada de meios, mas de
seleção de fins, tendo em vista valores dados preliminarmente. [...] Em
terceiro lugar, Weber também considera racionais os resultados do
trabalho intelectual de especialistas, os quais enfrentam analiticamente
os sistemas simbólicos tradicionais [...]. Tais realizações doutrinarias são
expressão de um pensamento científico-metódico, que tornam o saber
ensinável mais complexo e específico.
Tomando em conta a racionalidade das regras e da
construção de um sistema jurídico lógico-formal, tem-se um direito moralmente
neutro, basicamente, orientado pela aplicação de regras a comportamentos,
criando um modelo matemático de ações e conseqüências jurídicas. Como define
o próprio Weber
325
:
O trabalho jurídico atual, pelo menos naquilo com que alcançou o mais
alto grau de racionalidade lógico-metódica, isto é, a forma criada pela
jurisprudência do direito comum, parte dos seguintes postulados: 1) que
toda decisão juridica concreta seja a ‘aplicação’ de uma disposição
jurídica abstrata a uma ‘constelação de fatosconcreta; 2) que para toda
constelação de fatos concreta deva ser possível encontrar, com os meios
da lógica jurídica, uma decisão a partir das vigentes disposições jurídicas
abstratas; 3) que, portanto, o direito objetivo vigente deva constituir um
sistema ‘sem lacunas’ de disposições jurídicas ou conter tal sistema em
estado latente, ou pelo menos ser tratado como tal par aos fins da
aplicação do direito; 4) que aquilo que, do ponto de vista jurídico, não
pode ser ‘construído’ de modo racional também não seja relevante para
materialização configura uma moralização do direito, isto é, a introdução de pontos de vista da
justiça material no direito positivo. Disso resultou a afirmação crítica, segundo a qual, o
estabelecimento de um nexo interno entre direito e moral destrói a racionalidade que habita o
medium do direito enquanto tal. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre validade e
facticidade. vol. II. 2003. p. 197
324
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre validade e facticidade. vol. II. 2003. p.
197/198
325
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 1996. p. 13
125
o direito; 5) que a ação social das pessoas seja sempre interpretada
como ‘aplicação’ou ‘execução’ou, ao contrário, como ‘infração’de
disposições jurídica [...] isto porque, de modo correspondente à ausência
de lacunas no sistema jurídico, também a ‘situação jurídica
ordenada’seria uma categoria básica de todo acontecer social.
Com o processo de judicialização típico do Estado social,
esses aspectos formais do direito são prejudicados e o legislador passa a soterrar
a estrutura social com um emaranhado de normas reguladoras e compensadoras,
que abrem um espaço amplo de decisão do Poder Judiciário. “Os Tribunais m
que trabalhar com cláusulas gerais e, ao mesmo tempo, fazer jus ao maior grau
de variação de contextos, bem como à maior interdependência de proposições
jurídicas subordinadas.”
326
Um panorama sobre a construção teórica da sociologia
jurídica, demonstra, segundo Santos
327
, como mesmo de forma diversificada
todas essas nuances ocorridas no século XX, privilegiaram a vertente normativista
e substantivista, na análise das lebres dicotomias entre o direito vigente e o
direito eficaz ou na capacidade de contribuição do direito na transformação e
desenvolvimento cio-econômico das sociedades tradicionais, esquecendo da
importância das questões processuais, institucionais e organizacionais. Essa
conjuntura somente se alterou a partir do início da década de 60, especialmente,
por três fatores apontados por Santos
328
:
Em primeiro lugar, o desenvolvimento da sociologia das organizações,
um ramo da sociologia que tem em Weber um dos principais
inspiradores, dedicado em geral ao estudo dos agrupamentos sociais
criados de modo mais ou menos deliberado para a obtenção de um fim
específico [...]. A segunda condição teórica é constituída pelo
desenvolvimento da ciência política e pelo interesse que esta revelou
pelos tribunais enquanto instancia de decisão e de poder políticos. [...] A
terceira condição teórica é constituída pelo desenvolvimento da
antropologia do direito ou da etnologia jurídica.
Ao lado dessa estruturação teórica propícia, as condições
sociais, com o surgimento de novos movimentos a par dos movimentos operários,
326
MARTINS, Queila Jaqueline Nunes. Sociologia do direito em Max Weber: processos de
racionalização e de juridicização das relações sociais. 2006. p. 38
327
SANTOS Boaventura de Sousa. Pela o de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
2006. p. 164
328
SANTOS Boaventura de Sousa. Pela o de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
2006. p. 164
126
inseriram a luta da igualdade em outro plano, confrontando-a com a desigualdade
advinda da lei. O papel democrático de intermediação entre a sociedade civil e o
Estado era realizado pelos partidos políticos, que no entanto, passam a ser
representados por oligarquias que visam atender unicamente seus interesses. Por
outro lado, a complexidade das sociedades modernas, cria diversos grupos de
interesse que precisam de espaço público para escoar suas reivindicações
através de organizações que facilitem a comunicação de suas vontades.
329
O recuo das instituições tradicionais de representação da
sociedade, como os partidos políticos e sindicatos, fez emergir a partir dos anos
80, grande número de organizações não-governamentais buscando a efetivação
de direitos básicos. O papel político dessas organizações tem se afirmado nas
várias Conferências e em atuações práticas, como monitoramento de atividades
do parlamento, atuação nas eleições através do debate das plataformas dos
candidatos, mobilizações para reforma social e desenvolvimento democrático
[...]”.
330
Esses movimentos produzem grande transformação comunicativa e
discursiva nos espaços públicos, e ainda, na interação com o Estado, não se
fixando somente como “[...] um contrapoder, mas um poder de convocação, mas
um poder de convocação, inovação e experimentação social. A participação
assume, assim, formas mobilizatórias, reivindicatórias, de gestão e co-gestão de
serviços, ou institucionais e simbólicas, [...]”
331
.
329
“A idéia central que defendemos é de que duas instâncias que podem estar articuladas,
porém, com papéis diferenciados, ainda que nem tão dicotomizados como assinala Quere. Na
instância mediadora esfera pública também se produz visibilidade e as ações e atores devem
aparecer, até porque a sociedade como um todo deve conhecer e debater as questões e
mobilizar-se para que propostas sejam aceitas pelos agentes do Estado. De igual maneira, na
outra instância espaço público realizam-se debates, negociações, entre os diversos atores,
para que se formulem as propostas a serem apresentadas da esfera pública.” TEIXEIRA, Elenaldo
Celso. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã. 3 ed. São Paulo: Cortez:
Recife: EQUIP; Salvador: UFBA, 2002. p. 46/47
330
Mais recentemente, vêm-se combinando ões judiciais à ação direta, caso do Movimento
Nacional de Aliança dos Povos na Índica (Bangladesh), que procura ocupar terras urbanas vazias
e construir habitações, tentando depois legalizá-las pela via administrativa ou judicial [...] Na
América Latina, combina-se a implementação de projetos para melhoria de condições de vida,
financiados por ONGs e agencias internacionais, com amplos debates de questões institucionais e
dos direitos humanos [...]”TEIXEIRA, Elenaldo Celso. O local e o global: limites e desafios da
participação cidadã. 2002. p. 96/97
331
TEIXEIRA, Elenaldo Celso. O local e o global: limites e desafios da participação cidadã. 2002.
p. 98
127
A segunda condição social, determinante para esse novo
quadro da sociologia jurídica, foi o interesse nas transformações operadas pelo
Estado-providência
332
, resposta dada pelas lutas sociais ao Estado liberal,
objetivando recuar as desigualdades econômicas que esse provocou. Esse
período é marcado pelo início da crise da administração da justiça fenômeno
ainda presente. “A consolidação do Estado-Providência significou a expansão dos
direitos sociais e, através deles, a integração das classes trabalhadoras nos
circuitos do consumo anteriormente fora do seu alcance.”
333
Se por um lado o Estado-Providência foi um alento na
possibilidade de superar as desigualdades sociais, por outro esvaziou a
capacidade dos espaços democráticos da política de apresentar propostas que
reunissem um consenso sobre o interesse comum, e ainda, apresentou uma nova
sociedade consumidora e operária. Ora, uma sociedade predominantemente
formada por operários e com novos direitos sociais garantidos, traz a necessidade
que os conflitos advindos de sua relação com o capital sejam dirimidos pelo
judiciário. De outro lado, a inserção maciça da sociedade nos meios fabris incluiu
o corpo de trabalho feminino que redimensiona o nível das relações familiares,
trazendo a mulher como provedora financeira, alterando radicalmente a relação
matrimonial, de manutenção do lar ou em medidas como o modo de educar os
filhos, resultando em conflituosidade que destrona o patriarcado do direito de
família e reboca os conflitos para o Poder Judiciário.
A conflituosidade administrada pela justiça trouxe o
congestionamento do Poder Judiciário com grande número de processos e logo
demonstrou inevitáveis constatações: o Estado não detinha capacidade financeira
para cumprir com as promessas sociais do Welfare, e uma das conseqüências, foi
a incapacidade de investimento na administração da justiça, que se agravou a
partir da década de 70, “[...] num período em que a expansão económica
332
“Welfare State (Estado do Bem-Estar Social) representa um modelo de Estado que desenvolve
políticas de bem estar social, com significativa intervenção na economia e na sociedade. A social
democracia é a base para a formação do Welfare State e as políticas keynesianas formam, por
sua vez, a face econômica do mesmo Estado.” RAMOS, Flávio. É possível esquecer o Welfare
State e as políticas regulatórias? In BOEIRA, Sérgio Luís. Democracia & Políticas Públicas:
diversidade temática dos estudos contemporâneos. Itajaí: UNIVALI, 2005, p. 51
333
SANTOS Boaventura de Sousa. Pela o de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
2006. p. 165
128
terminava e se iniciava uma recessão, para mais uma recessão com carácter
estrutural.”
334
A ruptura com o modelo liberal de Estado e como
conseqüência do próprio paradigma abstencionista da administração da justiça,
trouxe à cena novos atores, principalmente, dos movimentos operários que
resultaram em conquistas públicas por melhores condições de trabalho, ambiente
normalmente reservado a privacidade. “O Direito do Trabalho, nascido dos êxitos
daquele movimento, conferiu um caráter público a relações da esfera privada,
como o contrato de compra e venda da força de trabalho, consistindo em um
coroamento de décadas de luta do sindicalismo.”
335
Essa imersão das
preocupações privadas na esfera pública fizeram desaparecer os limites que
separavam o Estado da sociedade civil. No mesmo passo, o direito do trabalho,
ao procurar compensar os menos favorecidos (trabalhadores), transmutou a
ordem liberal para trazer à esfera pública uma preocupação com a concretização
da igualdade também nas relações privadas, e assim, inseriu na agenda política o
tema da justiça social.
336
A codificação do direito do trabalho dentro da área do direito
público significou a aproximação de princípios desta esfera com princípios de
direito privado ou seja, a disponibilidade da força de trabalho com a proteção do
economicamente desfavorecido -, a exemplo do que prevê a ideologia do welfare
quanto a conexão entre a administração pública e o mercado. “Se o direito
privado clássico se assentava sobre a liberdade individual e sobre o pressuposto
da autolimitação dos indivíduos, o fato de ele ter admitido um elemento de justiça,
como a proteção do ‘economicamente desfavorecido’ introduzida pelo Direito do
334
SANTOS Boaventura de Sousa. Pela o de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
2006. p. 166
335
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 15
336
“Portanto, na raiz da legislação welfareana esteve presente um movimento social que, após se
afirmar no terreno da sociedade civil, alcançou, pela mediação dos partidos políticos, a esfera
pública. Nos países de organização política liberal, a concretização dos direitos do welfare não é,
pois, estranha à trajetória clássica da democracia representativa, uma vez que a passagem do
paradigma do direito formal burguês, na designação de Habermas, para o direito welfareano
resultou da manifestação do voto de maiorias parlamentares, a partir de uma prévia e favorável
sedimentação da opinião no terreno da sociedade civil.” VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A
judicialização da política e das relações sociais no Brasil. 1999. p. 16
129
Trabalho, emprestou-lhe um novo significado, pondo-o também a serviço da
justiça social.”
337
A idéia marcante do welfare é a contraposição da
compreensão do trabalho na aurora do capitalismo como troca da força produtiva
pela remuneração, inserindo uma legislação social protetiva, que atravessa nas
relações privadas um cunho civilizatório. “Aquele direito penetra as relações
privadas, retirando-as dessa esfera de arbítrio onde impera a lei do mais forte.”
338
O redimensionamento da relações trabalhistas, insere no debate jurídico a
tomada da pessoa humana sob outro ponto de vista -, em sua singularidade,
identidade e liberdade.
Desde sua criação na década de 40, a justiça do trabalho
está em franco desenvolvimento com o aumento contingencial do número de
processos anuais. Enquanto nas décadas de 70 e 80 a média de acréscimo do
número de processos era pouco superior a 35 mil por ano, nos anos 90, verificou-
se o ingresso de mais de 110 mil processos por ano. É saliente a forte relação
entre o crescimento das demandas trabalhistas com o período de maior liberdade
de expressão democrática dos organismos de classe na conjuntura política,
representando para Cardoso, maior acesso à justiça, fenômeno que tem seu
ápice na década de 90.
339
As transformações paradigmáticas parecem ter ecoado
primeiramente no direito privado, o que se explica em grande parte pela
337
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 16
338
CARDOSO, Adalberto Moreira. Direito do Trabalho e relações de classe no Brasil
contemporâneo. in VIANNA, Luiz Werneck (org.). A democracia e os três poderes no Brasil. 2002.
p. 510
339
1 – entre 1941 e 1961 o ritmo de acesso à justiça cresce em média 14% ao ano, [...] atingindo
155 mil processos acolhidos nas Juntas de Conciliação e Julgamento [...] ao acréscimo médio de
7.024 processos ao ano no movimento processual. 2 entre 1962 e 1970 o movimento processual
sofre seu primeiro salto importante, com picos em 1963 (ano da turbulência social sob Jango) e
1970, já em meio à repressão do AI-5. [...] o acréscimo médio de 32.532 processos ao ano [...]. 3 –
entre 1971 e 1973 o crescimento torna-se negativo, coincidindo com o período mais negro da
ditadura. A queda é de mais de 14 mil processos ao ano, em média. 4 de 1974 a 1987 ocorre
novo crescimento vertiginoso [...] Cada ano acrescenta novas 36.293 unidades ao movimento
processual. 5 entre 1988 e 1997 ocorre efetiva explosão nas demandas, com cada ano
recebendo 112.489 processos a mais que no ano anterior [...]. 6 finalmente entre 1998 e 2000 a
queda é constante, a uma taxa próxima do acréscimo anterior. , Adalberto Moreira. Direito do
Trabalho e relações de classe no Brasil contemporâneo. In VIANNA, Luiz Werneck (org.). A
democracia e os três poderes no Brasil. 2002. p. 340
130
preponderância de seu desenvolvimento colocado sob a Ciência Jurídica e o
direito aplicado pelos juízes. No decorrer do culo XIX, até o código civil de
1900, o direito privado estruturava-se de forma hermética, situação que somente
veio se alterar com o movimento constitucionalista democrático. Como assinala
Habermas
340
:
Sob a premissa da separação entre Estado e sociedade, a estrutura
doutrinária partia da idéia de que o direito privado, ao passar pela
organização de uma sociedade econômica despolitizada e subtraída das
intromissões do Estado, tinha que garantir o status negativo da liberdade
de sujeitos de direito e, com isso, o princípio da liberdade jurídica; ao
passo que o direito público, dada uma peculiar divisão de trabalho,
estaria subordinado à esfera do Estado autoritário, a fim de manter sob
controle a administração que operava sob reserva de intervenção e, ao
mesmo tempo, garantir o status jurídico positivo das pessoas privadas
mantendo a proteção do direito individual.
A doutrina civilista, não vendo com bons olhos o que
denominou de submissão do direito privado à princípios de direito público
disfarçados pela face constitucional, alegou a ruína de um edifício autônomo e
unitário onde tinha se construído a teoria civilista. Nessa nova situação a
dificuldade do direito civil é trabalhar com a emergência do Estado social e a
sobreposição dos critérios de justiça que orientaram sua gestão. A primeira
convicção a esbarrar na ideologia do Estado social foi a autonomia de contratar e
a disponibilidade de direitos que direcionavam a doutrina do direito privado, e
passam, a sofrer interferências com a introdução de princípios éticos que não
visavam somente a autodeterminação individual mas a justiça social. “O ponto de
vista da justiça social exige uma interpretação diferenciadora de relações jurídicas
formalmente iguais, porém diferentes, do ponto de vista material, sendo que os
mesmos institutos jurídicos preenchem funções sociais distintas.”
341
Ainda que
não se tenha verificado nenhuma alteração na compreensão da autonomia
privada, que permanece sendo o máximo de liberdade de ação subjetivas iguais
para todos, o que se altera é o espaço onde se realiza essa autonomia privada.
Desmistificando o postulado liberal de que a esfera do mercado e da sociedade
econômica são espaços isentos de poder, somente se prevê a concretização da
340
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre validade e facticidade. vol. II. 2003. p. 132
341
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre validade e facticidade. vol. II. 2003. p. 134
131
liberdade jurídica após o Estado social com a materialização do direito vigente ou
a criação de novos direitos.
Assim o welfare que já havia garantido a proteção do
mercado de trabalho, tem no legislativo um operário constante de uma legislação
que redimensiona as relações entre o público e o privado, pondo a própria
economia e as relações sociais sob os auspícios da administração pública. Com
essa intervenção da justiça social no direito privado, as relações sociais passam a
ser mediadas por instituições democráticas e não dependem mais exclusivamente
da esfera privada. Essa mediação da macroeconomia pelo direito, inclui seus
procedimentos em todas as ações do capitalismo que se consolida nesse período.
“A progressiva racionalização [...], na medida em que supõe ação tempestiva,
conhecimento específico em matérias de alta especialização e perícia técnica no
momento da intervenção, esteve na raiz da ultrapassagem do Legislativo pelo
Executivo, em termos de iniciativa das leis e da regulação normativa do
welfare.”
342
A inflação legislativa de um Estado administrativo e paternalista, com
forte aspecto burocrático e controle político, trouxe como conseqüência uma
cidadania apática e reduzida a ser clientela do Estado.
A própria queda do paradigma do Estado nacional a partir da
década de 80, como apontado no capítulo I, foi momento decisivo para retirada
de campo da participação estatal na economia e sua intervenção com medidas
reguladoras e políticas públicas, com a abertura do mercado para oferta de
serviços como educação, saúde, habitação, energia ou telecomunicações. O
Estado reservou-se a comparecer somente em condições adversas provocadas
por deturpações climáticas ou sociais. “As novas formas de gestão fariam parte
dessa tentativa de contornar a concepção neoliberal de Estado mínimo, mas
também de fugir do padrão do estado centralizador e, consequentemente, ineficaz
para atender demandas sociais multifacetadas.”
343
342
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 19
343
RAMOS, Flávio. É possível esquecer o Welfare State e as políticas regulatórias? in BOEIRA,
Sérgio Luís. Democracia & Políticas Públicas: diversidade temática dos estudos contemporâneos.
2005, p. 56
132
Uma das promessas da democratização do acesso aos
tribunais é a concretização da garantia do próprio acesso à justiça, não somente
jurídico-formal, mas especificamente a equalização de forças processuais
capazes de superar as desigualdades sócio-econômicas que relacionam o
processo civil e a justiça social. Essa nova preocupação do acesso à justiça
material e não somente formal, é preocupação resultante da consolidação dos
direitos sociais após a segunda guerra mundial. A nova compreensão colocou o
acesso à justiça como “[...] um direito cuja denegação acarretaria a de todos os
demais.”
344
A partir de então, tornou-se necessária a remodelação de toda a
justiça civil, para transpor seu paradigma técnico e formal, socialmente neutra e
dar-lhe uma vocação também social e responsável pelas transformações
operadas pelos direitos sociais.
Como assevera Cappelletti, a definição terminológica e
jurídica de acesso à justiça é difícil, porém, indispensável para nortear as
finalidades básicas do sistema jurídico. Numa perspectiva de amplo acesso como
garantia da justiça social, para Cappelleti, a definição deve representar “[...] o
sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus
litígios sob os auspícios do Estado. Primeiro, o sistema dever ser igualmente
acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e
socialmente justos.”
345
A mudança do paradigma que direciona a compreensão
sobre acesso à justiça para incluir o efetivo direito individual e social, ocorreu
juntamente com as alterações na disciplina do processo civil, marcadamente
influenciado pelos liberais burgueses. Nos auspícios dos séculos XVIII e XIX, o
acesso à justiça era tido como direito natural, e estes, não requeriam proteção
positiva do Estado, mas apenas a garantia formal de que o seria violado o
direito individual de acesso à justiça. “O Estado, portanto, permanecia passivo,
com relação a problemas tais como a aptidão de uma pessoa para reconhecer
344
SANTOS Boaventura de Sousa. Pela o de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
2006. p. 168
345
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 8
133
seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática.
346
As práticas do sistema
jurídico civil, aguardam a provocação das partes e se limitam a arbitrar para uma
delas o objeto jurídico litigado. Segundo Roesler
347
:
A característica básica da instituição judiciária é a sua capacidade de
dirimir os conflitos sociais pela emissão de uma decisão final e
inapelável, que deve contar ainda com meios coativos para ser imposta
se necessário for. Tal perfil institucional corresponde a um modelo de
Sociedade, de papel do poder público e de conflito jurídico. Nesse
sentido ele está ligado à concepção liberal clássica, à teoria da
separação de poderes e a um conflito que se instaura entre duas partes
individualmente caracterizadas em torno de um objeto definível e que é
adjudicado a uma delas.
Para Roesler
348
, a reforma processual brasileira tem o
desafio de adaptar o direito processual às novas posturas colocadas pelo Estado
de bem-estar, com grande foco na instrumentalidade e efetividade do processo e
flexibilizando a exigência de autonomia e abstração em relação ao direito
material, marcas da disciplina nos séculos XIX e XX.
A responsabilidade pela “pobreza no sentido legal”
349
, não
era pauta das preocupações do Estado. A justiça no sistema de laissez faire,
como outros bens economicamente adquiríveis, reservava-se aos que pudessem
por ela pagar. O sistema se preocupava, eminentemente com o acesso formal à
justiça, ainda que não representasse o acesso efetivo.
As alterações na concepção sobre o efetivo acesso à justiça
foi reflexo das próprias alterações ocorridas nos sistemas de direito. Com a
complexidade adquirida pelas sociedades regidas pelo laissez faire,
paulatinamente, foi se deixando a ação individual para iniciar um movimento
coletivo. Para Cappelletti, exemplo dessa transformação é o preâmbulo da
Constituição Francesa de 1946, que fez a previsão de diversos direitos sociais. A
referência política desse período era marcadamente o welfare state, que permitiu
346
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 9 “Esses direitos eram considerados
anteriores aos Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles
fossem infringidos por outros.”
347
ROESLER, Claudia Rosane. A reforma do processo civil no Brasil e a crise do Poder Judiciário.
Disponível em: www.advocaciapasold.com.br. Acesso em: 15 de fevereiro de 2006.
348
ROESLER, Claudia Rosane. A reforma do processo civil no Brasil e a crise do Poder Judiciário.
Disponível em: www.advocaciapasold.com.br. Acesso em: 15 de fevereiro de 2006.
349
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 9
134
ingresso nos sistemas constitucionais maiores garantias de acesso à justiça com
vistas a “[...] armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua qualidade
de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos.”
350
A partir desse momento histórico, o acesso à justiça, numa
visão substancial, tem ocupado lugar especial nas pesquisas dos processualistas
e colocada dentre os direitos humanos fundamentais. A nova percepção do
processo civil deve levar em consideração à função social nas regras processuais
como sistema jurídico não meramente secundário, mas com impacto social. O
‘acesso’ não é apenas um direito social fundamental, crescentemente
reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna
processualística.”
351
O caminho para concretizar o acesso à justiça, segundo
Cappelletti, importa no reconhecimento e na superação dos obstáculos presentes
no ordenamento jurídico para a sua presença. O primeiro obstáculo apontado,
refere-se ao alto custo para que se possa litigar em juízo. Ainda que o Estado
suporte os gastos com juizes e funcionários, as custas judiciais para ingresso em
juízo e ainda, associado aos honorários de advogados e a própria sucumbência
são fatores que afastam a presença da sociedade nos tribunais com vistas a
garantir seus direitos.
352
Outro entrave ao acesso à justiça, está relacionado à
desigualdade financeira das partes quando em juízo e a incapacidade de
reconhecer um direito e propor uma ação. O processo civil, marcadamente
individual, impõe às partes o dever de produzir as provas que demonstrem seus
direitos. Se a parte demandada tem maior poder financeiro, poderá, unicamente
por aspectos formais, sucumbir o direito da outra parte por sua insuficiência
financeira
353
. Noutra ponta, a própria formação cultural e o status social, são
fortes impedimentos para o acesso à justiça. As aptidões pessoais dos litigantes
350
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 11
351
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 13
352
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 18
353
Julgadores passivos, apesar de suas outras e mais admiráveis características, exacerbam
claramente esse problema, por deixarem às partes a tarefa de obter e apresentar as provas,
desenvolver e discutir a causa. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 22/23
135
em juízo, podem ser limitadas pela dificuldade que tenham de reconhecer um
direito, por falta de conhecimento jurídico sico; a precária informação do modo
de se propor uma ação e por fim, a indisposição psicológica de recorrer aos
procedimentos judiciais, mesmo quando tenham conhecimento de profissionais
qualificados capazes de orientá-las.
354
Por fim, uma terceira barreira ao acesso à justiça, está na
constituição de novos direitos difusos e coletivos. Os entraves na defesa e
judicialização das violações desses direitos, está, principalmente, na dificuldade
de organização das partes atingidas. O processo civil ainda não está armado
suficientemente de instrumentos processuais para oferecer respostas seguras em
demandas coletivas. “Em suma, podemos dizer que, embora as pessoas na
coletividade tenham razões bastantes para reivindicar um interesse difuso, as
barreiras à sua organização podem, ainda assim, evitar esse interesse seja
unificado e expresso.”
355
A análise dos fatores que impedem o efetivo acesso à
justiça, demonstra, para Cappelletti
356
, maiores dificuldades para os pobres em
propor ações individuais contra grupos corporativos e organizacionais. Assim, a
adequação do ordenamento jurídico as exigências de garantias de direitos do
Estado de bem-estar, demonstram a inadequação da garantia substancial de
acesso à justiça, quando em lados opostos estão consumidores e fornecedores,
ou a sociedade contra os poluidores, etc.
As respostas a essas dificuldades de acesso à justiça,
promoveram, a partir de 1965 três ondas reformistas que pretendiam dar
respostas a falta de efetividade material ao acesso à justiça. A primeira onda foi a
assistência judiciária, a segunda, denominada de representação jurídica para os
interesses ‘difusos’; e a terceira, como enfoque de acesso à justiça
357
.
354
“Procedimentos complicados, formalismo, ambientes que intimidam, como o dos Tribunais,
juíze e advogados, figuras tidas como opressoras, fazem com que o litigante se sinta perdido, um
prisioneiro num mundo estranho.” CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 24
355
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 27
356
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 28
357
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 31
136
A assistência judiciária, primeira onda de reforma processual
para garantir o acesso à justiça, tem conseguido bons resultados ampliando a
oferta de orientação técnica jurídica as classes menos favorecidas
economicamente. Porém, os advogados públicos normalmente são financiados
pelo Estado, e para garantir a grande demanda social por assistência judiciária,
principalmente para apoio na reivindicação de novos direitos, que não aqueles da
área de família e criminal, seria necessária a contratação de muitos profissionais,
sendo que em economias de mercado, encontra impedimento sério nos
orçamentos dos Estados.
358
A segunda onda de reforma, centrou-se principalmente na
defesa dos direitos difusos, provocando uma forte reforma na idéia que direcionou
o processo civil nos século XVIII e início do século XIX. A magistratura, com as
novas leis do processo coletivo, teve que redimensionar as noções de litígios de
direito público, direito de ser ouvido, representação ou coisa julgada. A proposta
de Cappelletti
359
para proteção dos direitos difusos, requer uma solução
pluralística (mista), com a interação de uma assessoria pública, ações de grupos
particulares e com ações coletivas que podem tornar-se medidas capazes de
garantir certa eficiência para a defesa dos direitos difusos.
A terceira onda do enfoque de acesso à justiça, não exclui
as duas primeiras apresentadas, mas vai além, prevendo de forma mais
complexa, o acesso à justiça como a conjunção da presença de advogados
públicos para assistência individual e coletiva com a presença de instituições e
mecanismos para processar e prevenir o surgimento de novos litígios.
360
358
Em economias de mercado, como já assinalamos, a realidade diz que, sem remuneração
adequada, os serviços jurídicos para os pobres tendem a ser pobres, também. Poucos advogados
se interessam em assumi-los, e aqueles que o fazem tendem a desempenhá-los em níveis menos
rigorosos.” CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Fabris, 1988. p. 47/48
359
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. 1988. p. 66/67
360
Inicialmente, como assinalamos, esse enfoque encoraja a exploração de uma ampla
variedade de reformas, incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura
dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto
como juízes quanto como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar
litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos
litígios. Esse enfoque, em suma, não receia inovações radicais e compreensivas, que vão muito
além da esfera de representação judicial. [...] Ademais, esse enfoque reconhece a necessidade de
137
A segunda perspectiva a ser analisada na judicialização das
relações sociais, concerne a politização da magistratura, de modo a torná-la mais
sensível aos problemas políticos que abalam e corroem o sistema social com
desigualdades e injustiças. Esta reflexão se torna importante, quando se
reconhece o direito como um subsistema político, e assim, ao revés de influências
externas em suas decisões e, emitindo decisões que trarão diversas
conseqüências no próprio meio social.
Essa postura de politização da magistratura, traz uma tripla
crítica a atuação dos juízes, quanto à parcialidade, o comportamento contestador
da lei e a intromissão em competências que não lhe cabem. As três, no entanto,
são, para Campilongo
361
, infundadas e reducionistas. A primeira crítica, referente
a necessária imparcialidade do juiz, mormente, por ser um terceiro distante das
partes com a função de decidir, decai quando verifica-se que essa compreensão
está fundada numa visão reducionista da política vinculada unicamente ao
mecanismo de partidos. O segundo equívoco estaria na própria interpretação do
que se compreende por submissão do juiz à lei. Hodiernamente, tem-se centrado
no controle da discricionariedade e arbitrariedade das decisões judiciais, porém,
não se nega a possibilidade de se tomar diversas soluções para o mesmo caso
concreto de acordo com a interpretação legislativa adotada. “De outra parte,
porém, contesta-se o caráter absoluto de ‘certeza do direito’ ou da univocidade da
interpretação da lei. [...] A politização da magistratura é expressão de um aumento
das possibilidades de escolha e decisão e não de um processo de contestação ou
negação da legalidade.”
362
A terceira crítica contra a politização da magistratura, está
ligada à sua pretensão de suprir o déficit democrático dos sistemas
representativos, gravemente desgastados pelos níveis de corrupção e ineficácia
de suas decisões, sendo constantemente substituídos por organizações da
correlacionar e adaptar o processo civil ao tipo de ligitio. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça.
1988. p. 71
361
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídica e decisão judicial. São Paulo: Max
Limonad, 2002. p. 57
362
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídica e decisão judicial. 2002. p. 58 “Não
existe, na hermenêutica jurídica contemporânea, nem quem defenda a completa liberdade do juiz
nem quem encare sua atuação como o resultado de uma irretorquível lógica de aplicação da lei.”
138
sociedade civil. Nesse contexto o judiciário é resgatado como reforço e garante do
sistema político. Não se trata, como adverte Campilongo
363
, de partidarizar a
magistratura, o que seria desastroso para o sistema democrático, mas de tornar o
magistrado aberto as influências que a política lhe traz fenômeno inevitável na
contemporaneidade, sem contudo, comprometer sua vinculação ao direito, à
legalidade e a fundamentação de suas decisões.
O risco dessa operação de acoplamento entre o sistema
jurídico e o político, na visão de Campilongo
364
, é que o judiciário venha a tomar
os códigos do sistema político como instrumento de tomada de suas decisões, ou
mesmo, o inverso, que o político seja tomado pela burocracia do sistema jurídico
e esvazie o teor democrático de suas manifestações.
No entanto, ainda que a politização da magistratura seja
uma das propostas com maior desenvolvimento após o processo de
redemocratização, os próprios membros da magistratura tem dificuldades de
reconhecer sua parcela de responsabilidade na crise do judiciário e na facilitação
do acesso à justiça, atribuindo a fatores externos dos quais o tem controle ou
possibilidade de reverter. Mesmo que a maioria dos juízes reconheça a existência
de crise no Poder Judiciário, atribuem essa fraqueza de seu funcionamento as
deficiências estruturais e institucionais.
365
A morosidade do Poder Judiciário é
363
“A função política do magistrado resulta desse paradoxo: o juiz deve, necessariamente, decidir
e fundamentar sua decisão em conformidade com o direito vigente; mas deve, igualmente,
interpretar, construir, formular novas regras, acomodar a legislação em face das influências do
sistema político. Nesse sentido, sem romper com a clausura operativa do sistema (imparcialidade,
legalismo e papel constitucional preciso) a magistratura e o sistema jurídico são cognitivamente
abertos ao sistema político. Politização da magistratura, nesses precisos termos, é algo inevitável.”
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, sistema jurídica e decisão judicial. 2002. p. 61
364
Campilongo, em sua obra faz uma análise preponderantemente sociológica do direito a partir
dos textos de Luhmann. “Da perspectiva do direito, elevadas taxas de independência e criatividade
não podem representar a substituição das opções oferecidas pela Constituição por uma orientação
qualquer política, econômica, religiosa, etc. advinda do ambiente externo ao sistema jurídico.
Isso caracterizaria uma corrupção dos códigos do direito, ou seja, a utilização de meios de
comunicação próprios de outros subsistemas [...]. Essa corrupção de códigos resulta num
judiciário que decide com base em critérios exclusivamente políticos (politização da magistratura
como a somatória dos três erros aqui referidos: parcialidade, ilegalidade e protagonismo de
substituição de papeis) e de uma política Judicializada ou que incorpora o ritmo, a lógica e a
prática da decisão judiciária em detrimento da decisão política. A tecnocracia pode reduzir a
atividade política a um exercício de formalismo judicial.” CAMPILONGO, Celso Fernandes.
Política, sistema jurídica e decisão judicial. 2002. p. 63
365
“A existência de crise no Judiciário é totalmente admitida por 22,5% e parcialmente por 54,4%
dos entrevistados, enquanto 20,5% não reconhecem essa situação.” SADEK, Maria Teresa e
139
atribuída em parte ao grande número de recursos, falta de material adequado e
funcionários capacitados. As críticas aos princípios processuais modernos como a
imparcialidade nas decisões judiciais ou o afastamento das partes, são
defendidas pela classe como garantias institucionais que devem ser mantidas.
Notadamente, as transformações operadas pelo welfare
state, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, mudando o próprio paradigma da
administração da justiça, buscando garantir maior acesso à justiça e a politização
da magistratura, trouxe um inflacionamento de demandas na Poder Judiciário,
que requer novas técnicas de gestão judiciária.
4.3 A POTENCIALIZAÇÃO DO CONFLITO E AS NOVAS FACES DO PODER
JUDICIÁRIO.
O recurso ao Poder Judiciário, como escoamento de todos
os conflitos sociais para um poder apaziguador e normalizador de
comportamentos, traz à evidência duas conseqüências: o desenvolvimento do
acesso à justiça através de novos instrumentos estatais e a potencialização dos
conflitos privados (família, vizinhança, etc.), com o controle punitivo do Estado.
Para redimensionar o acesso à justiça, com vistas a superar
os muros que separam as classes pobres do Poder Judiciário, buscaram-se
medidas no período pós-autoritário do país que despertem o civismo e a
esperança no sentimento de justiça.
No final da década de 80, e com a redemocratização do
país, viu-se uma sociedade apática, que olhava com estranheza e indiferença
para as preocupações públicas. O esfacelamento da cultura cívica cidadã, chegou
ao máximo da alienação social, de modo que o havia crença numa justiça
capaz de garantir direitos frente ao poder. Não bastasse o esgarçamento do
sentimento individual de preocupação com o comum, o período de ditadura
ARANTES, Rogério Bastos. A Crise do Judiciário e a visão dos Juizes. n. 21. São Paulo: Revista
da USP,1994, p. 42
140
desestruturou todas as instituições políticas capazes de litigar publicamente por
garantias à sociedade. “Chegava-se à democracia política sem cultura cívica, sem
vida associativa enraizada, sem partidos de massa e, mais grave ainda, sem
normas e instituições confiáveis para a garantia da reprodução de um sistema
democrático.”
366
Nesse quadro de estagnação democrática, o Poder
Judiciário é chamado como poder de coalizão, capaz de resgatar a solidariedade
social e o consenso mínimo, perdido com o abatimento político. Como diz
Vianna
367
(et. al.):
De um lado, nasce, como em outros contextos nacionais
contemporâneos, da ocupação de um vazio deixado pela crise das
ideologias, da família, do Estado e do sistema da representação; de
outro, reitera uma prática com raízes profundas na história brasileira, em
que o direito, como instrumento de ação de uma intelligentzia jurídica, se
põe a serviço da construção da cidadania e da animação da vida
republicana.
A busca de consolidação do processo institucional da
democracia não se esgota no funcionamento do regime, mas requer condições
adicionais a partir da conexão entre a sociedade e os valores ético-culturais, sem
o que, não se acredita que as instituições conseguirão se estabilizar e a
democracia viverá em incertezas.
368
As pesquisas recentes do capital social no
Brasil, capazes de atestar a solidariedade de redes sociais tem atestado a
tendência progressiva porém ainda inexpressiva da participação cívica, estando
evidente “[...] o verdadeiro abismo que separa a sociedade civil do sistema político
brasileiro, com graves implicações para a institucionalização da democracia no
país.”
369
366
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 153
367
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.. p.
153
368
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Cultura política, capital social e a questão do déficit
democrático no Brasil. in VIANNA, Luiz Werneck (org.). A democracia e os três poderes no Brasil.
2003. p. 307 “Daí que, referindo-se explicitamente ou não ao tema da cultura política, o argumento
sociológico sobre a democratização em países não-originários tem-se detido em indagações
relativas aos movimentos (re)construtivos das identidades coletivas, que visam adequá-las, bem
como o tecido social, a um ideal de vida compartilhado intersubjetivamente.”
369
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Cultura política, capital social e a questão do déficit
democrático no Brasil. In VIANNA, Luiz Werneck (org.). A democracia e os três poderes no Brasil.
141
Nesse contexto de crise da cultura cívica, e nela imersa o
Poder Judiciário, o modelo de juizado de pequenas causas representa um retorno
do Estado à sociedade com a esperança de democratização do acesso à justiça,
o que fica claro em sua filosofia que exaltava o efeito pedagógico da
popularização da prestação jurisdicional que despertaria a consciência pública da
sociedade para defender seus direitos e a reabertura da relação com o próprio
Estado.
No início dos anos 80, o congestionamento do Poder
Judiciário e a necessidade de racionalizar a quina administrativa do Estado
perdida no excesso de burocracia, e ainda, o descrédito crescente advindo da
sociedade em relação aos meios institucionais de resolução do conflito,
encontraram alento em duas vertentes alternativas: a Associação de Juízes do
Rio Grande do Sul, que ensaiava o primeiro modelo de juizado de pequenas
causas, “[...] interessada no desenvolvimento de alternativas capazes de ampliar
o acesso ao judiciário, canalizando para ele a litigiosidade contida na vida social
[...]”
370
, e ao seu lado, o Poder Executivo, institui o Ministério da
Desburocratização, que “[...] pretendia racionalizar a máquina administrativa,
tornando-a mais ágil e eficiente.”
371
Essa medida de contorno da crise, reafirmou
o Poder Judiciário como instância democrática legítima para afirmação de direitos
ao mesmo tempo que infiltrou no Estado um projeto para sua racionalização
administrativa.
O projeto piloto do Conselho de Conciliação e Arbitragem, foi
instalado na Comarca de Rio Grande, RS, “[...] como reação às iniciativas que
pretendiam introduzir formas alternativas de resolução de litígios, por força da
estrutura organizacional do Judiciário.”
372
Não havia restrições quanto às partes,
2003. p. 323 “A noção, porém, de capital social é tão controversa, tem merecido tantos reparos e
qualificações que nem mesmo é possível saber se os autores falam da ‘mesma coisa’quando
comparam dados e resultados de pesquisas. Redes sociais, associativismo, sociedade civil,
movimentos sociais, cooperativas são fórmulas que garantem uma intuitiva aproximação com o
tema mais geral da confiança, que, por sua vez, também se mistura nesse caldo conceitual.”
370
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 167
371
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 167
372
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 167
142
sendo aberto tanto as pessoas físicas como jurídicas. A limitação do valor das
causas ficava em 40 ORTNs, e a conciliação era realizada por árbitros voluntários
não remunerados escolhidos entre bacharéis de Direito.
373
Por se tratar de um projeto realizado à margem da
legalidade, priorizando conciliações extrajudiciais, verificou-se imediatamente a
necessidade de iniciativas dentro da magistratura gaúcha para conciliar técnicas
consensuais e de mediação com a força coercitiva que advinha do Poder
Judiciário. As primeiras conclusões sobre os resultados do juizado de pequenas
causas, relatadas pelo juiz Antonio Guilherme Tanger Jardim, coordenador do
projeto, demonstraram que a demanda admitida no âmbito conciliatório e arbitral
da justiça de pequenas causas, constituiam-se de conflitos que ficavam à margem
da jurisdição – ou seja, não haveria uma diminuição da demanda de ações
comuns na Justiça, mas apenas um maior acesso da população à jurisdição, “[...]
o que significa que o povo passa a confiar no sistema implantado, acarretando,
via de conseqüência, maior respeito do cidadão pelo judiciário.”
374
As
constatações que ressaltam desse projeto, demonstram, como ressalta Vianna
(et.al.)
375
:
[...] de um lado, a constatação de que o juizado lidava com um novo tipo
de litígio, que não ocorria com os processos da Justiça Comum; e, de
outro, a explicitação da motivação original daquele empreendimento,
correspondente ao interesse da magistratura em reformar as bases de
legitimação do Judiciário.
O sucesso da proposta gaúcha ganhou visibilidade e voz
nacional, despertando o interesse do governo do Estado e do Ministro da
373
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 168
374
JARDIM, Antonio Guilherme Tanger. O primeiro Juizado de Pequenas Causas do País já
possui sua Historia. citado por, VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das
relações sociais no Brasil. 1999. p. 169 “Assim, da análise de 245 reclamações entradas,
constatou-se que 163 haviam sido feitas por pessoas físicas, contra um total de 82 reclamações
de pessoas jurídicas. Os problemas referentes a locação, cheques e direitos infringidos dos
consumidores foram os mais freqüentes. Dentre a totalidade dos casos, 65% forma solucionados
por conciliação (161 casos) e 2% por arbitramento (5 casos). Os cerca de 30% restantes foram
prejudicados em sua maioria, pelo não comparecimento de uma das parte à audiência, e, mais
raramente pela recusa em aceitar uma das alternativas oferecidas à solução dos litígios: a da
conciliação ou do juízo arbitral.”
375
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 169
143
Desburocratização, João Geral Piquet Carneiro
376
, que elogiou a rápida prestação
jurisdicional, com baixo custo e sem a complexidade da ciência do processo.
Assim, pela junção de forças entre o associativismo da
magistratura que buscava abrir um espaço institucionalizado de rápido tramite e
fácil acesso para o escoamento dos conflitos sociais e o Executivo, que naquele
momento buscava projetos para desburocratizar o Estado e racionalizar suas
ações de forma eficiente, através religação entre suas instituições e a sociedade
civil, tornara possível a reabilitação do Poder Judiciário como instância
democrática legítima para solução de litígios sociais e afirmação de direitos.
O foco de intervenção do governo neste momento através
do Ministério da Desburocratização, está ligado a necessidade de tornar eficiente
o Estado na prestação de serviços aos cidadãos-clientes. Como afirma Vianna
(et.al.)
377
:
A partir daí, as propostas de descarte das estruturas consideradas
ineptas e a tentativa de mudança na cultura organizacional das
instituições estatais teriam por objetivo dotar o governo da capacidade
de implementar políticas públicas, privilegiando-se o modus operandi de
tais políticas em detrimento de considerações sobre o modelo global de
Estado, sobre os seus objetivos alocativos ou redistributivos.
A tônica reformadora com supedâneo no princípio da
eficiência recoloca os lugares dentro do espaço democrático, figurando o cidadão
como cliente de serviços do Estado, que por isso, deveria ser eficiente, produtivo
e rápido. “Na medida em que as demandas sociais por Justiça foram traduzidas
na chave da desburocratização, firmava-se o princípio do atendimento ao
indivíduo, desconhecendo-se quaisquer outras dimensões que não a do seu
estrito interesse.”
378
Sob esse espírito reformista, a institucionalização dos
juizados especiais tornou-se medida que angariou grande simpatia frente à
376
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 170
377
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 171
378
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 171
144
magistratura nacional e ao Executivo, encontrando somente grande resistência na
Ordem dos Advogados do Brasil, que a julgava a medida de reforma do sistema
processual paliativa e demagógica como garantia do acesso à justiça. A frente
dirigida pelo magistrados lutava por flexibilização e agilização dos ritos
processuais responsáveis, na maioria das vezes, pela morosidade processual.
Segundo Vianna (et. al.)
379
:
A subseqüente participação dessa intelligentzia jurídica no debate e na
elaboração do anteprojeto de lei que resultou na criação dos Juizados
Especiais representaria, afinal, um momento de aproximação dos
magistrados com a vida pública facilitada, [...] por sua aliança com um
dos segmentos do Poder Executivo, representado pelo Ministério da
Desburocratização.
A proposta brasileira de instituição dos Juizados de
Pequenas causas, foi inspirada no Small Claims Court de Nova Iorque, onde,
retiradas as diferenças sociais entre aquele país e o Brasil, foram adquiridas as
principais características da instituição como a dispensabilidade de advogado, a
informalidade e a oralidade como princípios processuais e a proibição de
participação das pessoas jurídicas.
380
Sob a égide da desestruturação política que atravessava o
país com o declínio do regime autoritário em 1984, é que foi possível a aprovação
da lei 7.244, que instituiu os Juizados de Pequenas causas e autorizou os
Estados a estruturá-los e regulamentá-los. O novo modelo de justiça implantado,
379
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 172 É exemplificativa da reprovação da OAB ao projeto do Juizado de Pequenas
Causas” a Carta encaminhada pela Seccional da OAB de São Paulo em 1982. “[...] Não é
desencorajando as partes pelo encarecimento das despesas com as demandas, nem onerando os
vencidos com correção montaria, nem suprimindo recursos, nem aviltando o direito de defesa,
nem delegando a conciliadores, a escrivães, a árbitros, as funções especificas do juiz, que sevai
resolver a crise do Judiciário. Não é mudando os ritos que se dar melhor solução aos conflitos.
Não é afastando os advogados e o Ministério Público que melhorará a prestação jurisdicional. Não
é cumprindo diligências com a Policia, tornando insegura a citação, obrigando o comparecimento
pessoal das partes, forçando a conciliação, produzindo revelia em série, punindo devedores e
penhorando salários dos menos aquinhoados pela sorte, o é assim que se melhora e se presta
Justiça. O Anteprojeto dos Juizados Especiais é sinal vivo do direito e da abolição da Justiça [...]
Ao invés de um Judiciário para atender às partes, suprime-se a segurança da Justiça para
desafogar o Judiciário. Justiça para os pobres e Justiça para os ricos. Para os grandes e para os
pequenos. Contraditório assegurado a uns e negado a outros. Se aprovado esse anteprojeto, o
Poder Judiciário, já em concordata, confessa a sua falência. Em nome de uma aparente rapidez,
suprime-se a segurança e institui-se o arbítrio e a injustiça.” (p.176)
380
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 173
145
nasceu como um misto de procedimentos judiciais e extrajudiciais, priorizando a
conciliação mais do que a arbitragem. No entanto, a efetividade da lei não foi a
esperada, sendo que poucos Estados deram-lhe aplicabilidade com a instalação
dos juizados em seus territórios. Notadamente, foram muitas e relevantes as
criticas desferidas contra o novo paradigma, principalmente advindo da OAB, que
o via com desconfiança, já que emergia de um governo autoritário e que centrava-
se unicamente na racionalização, eficiência e diminuição de custos do Estado.
381
Outro fator relevante que explica a popularização de seu substituto o juizado
especial cível e criminal -, instituído pela lei n. 9.099/95, é a ampliação de sua
abrangência interferindo também na esfera criminal além dos altos investimentos
realizados pelos Estados.
Na esfera penal, a intervenção estatal tornou-se
demasiadamente complexa e incapaz de expressar sua principal meta que era a
garantia da ordem blica e a mediação do conflito. Com a criação dos juizados
especiais criminais, outro momento reformista tornou-se efetivo, e agora,
expandindo sua atuação traz a consolidação de décadas de pensamento jurídico
criminal, que postulavam uma revisão dos princípios regentes da disciplina no
país.
O debate cercou-se em torno da instrumentalidade e
efetividade do processo penal frente ao direito material vigente, ao lado da
necessidade de rediscutir a tutela dos valores protegidos pela legislação penal.
Os principais ataques se dirigiram a indisponibilidade da ação penal, a pena de
prisão como resposta à conduta desviada, e a necessidade de revisitar a
construção teórica dos princípios da oralidade, mediação e da identidade física do
juiz, como medidas que tornassem a justiça criminal mais célere e eficaz.
382
381
“Porém não é de todo desprezível a suposição de que a oposição da OAB à Lei 7.244 tinha, em
parte, uma inspiração política. Aquela entidade, afinal, alinhava-se entre as demais instituições da
sociedade civil que se opunham, desde sempre, à ditadura militar e, ao que parece, via na Lei dos
Juizados, não sem razão, uma iniciativa que, embora liderada pelo Judiciário, tinha também a
marca de um Estado autoritário, empenhado na racionalização de seu aparato burocrático.”
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. 1999.
p. 176
382
HERMANN, Leda Maria. Violência Doméstica: a dor que a lei esqueceu. Comentários à lei
9.099/95. Campinas: Cel-rex, 2000. p. 99. As críticas da Autora, sob a perspectiva da criminologia
crítica, dirigem-se a apropriação do conflito pelo Estado, que redunda na exclusão da vítima do
146
A instituição dos juizados especiais no Brasil, é previsão do
art. 98 da Constituição Federal de 1988. No entanto, a demora em sua
regulamentação por lei federal, culminou em leis pioneiras nos Estados do Mato
Grosso (lei n. 6.176) e Mato Grosso do Sul (Lei n. 1.071). Por se tratar, no
entanto, de matéria criminal cuja competência regulamentadora é exclusiva da
União, logo chegaram questionamentos quanto a sua constitucionalidade.
Presente no Supremo Tribunal Federal
383
, a lide foi resolvida em favor da
inconstitucionalidade da legislação local que outorgasse competência penal aos
juizados especiais. Porém, a iniciativa corajosa dos Estados federados foi pressão
suficiente para forçar a edição da lei federal regulamentando os juizados
especiais. Após a apresentação de diversas propostas, o relator Ibrahim Abi-Ackel
optou na seara penal, pelo projeto de Michel Temer, e na área cível, pela
proposta de Nelsom Jobim, unificando os dois projetos que resultaram na lei n.
9.099 de 26 de setembro de 1995.
Nesse ponto histórico, a justiça criminal no Brasil se dividia
sob dois extremos: entre aqueles que buscavam a regulamentação do art. 98 da
Constituição Federal de 1988, e um nova roupagem para o modelo repressivo, e
aqueles que lutavam por maior endurecimento da punição estatal, também
conseguindo importantes vitórias com a edição da lei dos crimes hediondos e do
combate ao crime organizado.
384
A justiça criminal simplificada pelo juizado especial promove
a presença do Estado em novos conflitos antes mantidos fora do alcance do
Poder Judiciário, normalmente, pelo entendimento de seu baixo nível de
lesividade.
contexto do processo. Segundo Vianna (et. al.) “No plano internacional, desde os anos 50, pelo
menos, o sistema penal vinha sendo foco de um intenso debate, animado pela crítica à ‘inflação
penal’. Portanto, cinco décadas, aproximadamente, três técnicas distintas vieram sendo
testadas e difundidas: a desjudicialização, a despenalização e a descriminação [...]”.VIANNA, Luiz
Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. 1999. p. 178
383
HC 71713-PB e HC 72582-1-PR, conforme HERMANN, Leda Maria. Violência Doméstica: a dor
que a lei esqueceu. Comentários à lei 9.099/95. 2000. p. 101
384
O modelo de justiça criminal adotado no Brasil, marcado mais recentemente pela edição da lei
dos crimes hediondos, em 1990, insere-se no contexto de um sistema penal de tendência
eminentemente ‘paleorepressiva’, assinalado por posturas como a de endurecimento das penas,
corte de direitos e garantias individuais, tipificações novas e agravamento da execução penal.”
HERMANN, Leda Maria. Violência Doméstica: a dor que a lei esqueceu. Comentários à lei
9.099/95. 2000. p. 103
147
O tripé desjudicialização, despenalização e
descriminalização, - que ganhou força na doutrina penal a partir dos anos 50,
parte da premissa de que o controle social não reprime o desvio, mas é
responsável por sua reprodução. O que a desjudicialização busca são vias
alternativas para resolução do conflito como meios de mediação ou reparação do
dano em substituição aos instrumentos de repressão penal. A despenalização, em
outro norte, retira da esfera do direito penal a existência de certos institutos,
remetendo-os para a regulamentação social. Por fim, a descriminação, toma um
caminho mais radical e legaliza certas condutas tipificadas como ilícitos.
385
Nesse
debate, que a preocupação com a inflação penal, com bons olhos um método
de resolução consensual dos conflitos que poderia ser alcançado com os juizados
especiais, sendo esse o espírito que orientou a redação do art. 98, I da
Constituição Federal de 1988 notadamente, sob duas óticas, as alterações já
experimentadas pelo processo civil e a tendência à despenalização.
As críticas ao sistema, referem-se que a retomada do
conflito pelo Estado, sob o argumento de se tratar de uma justiça consensual,
trivializou as relações sociais tomadas por comuns no quotidiano social. “É a isso
a esse tratamento indiferente e indiferenciado- que [...] costuma-se chamar de
trivialização do conflito, expressão que se revela adequada para delinear o
sentido desejado, já a partir do significado etimológico da palavra trivial, a ser
compreendida no sentido de vulgar, comum.
386
Isso, é conseqüência, em parte
do próprio critério utilizado pela legislação para definir os conflitos que seriam
dirimidos pela justiça especial – pelo quantum da pena fixada.
De acordo com essa orientação legal, escoaram ao Poder
Judiciário, conflitos familiares, aos quais foi dispensado o mesmo tratamento que
385
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 178 A difusão do instituto da despenalização, segundo Pradel, implicaria três
conseqüências doutrinárias: a ‘civilização’de determinados delitos, [...] a disciplinarização de
determinadas condutas, tendo como exemplarmente destacável a despenalização da emissão de
‘cheques sem fundo’ [...] e a ‘resposta médica’correspondente à modernização do campo penal,
que, nos Países Baixos, se traduziria na complacência para com o uso da droga, embora sob a
vigilância estatal.
386
HERMANN, Leda Maria. Violência Doméstica: a dor que a lei esqueceu. Comentários à lei
9.099/95. 2000. p. 135
148
para qualquer outro conflito, sem considerar, como afirma Hermann
387
, os reais
interesses da vítima, reduzindo-se a uma resposta formal sem compromisso com
a pacificação do conflito.
Nova resposta do sistema repressivo, que também parece
que irá trazer uma explosividade do conflito, é a recente edição da lei Maria da
Penha
388
(lei n. 11.340/2006). De acordo com os estudos de gênero ligados
essencialmente aos direitos da mulher e à proteção da integridade física e moral
no âmbito familiar, a lei tem como principal característica tornar expresso o
reconhecimento da violência doméstica e abrir os olhos da comunidade pública e
jurídica para o atendimento das vítimas nos próprios lares.
A afirmação de direitos de gênero recusou o espaço público
do debate, ambiente capaz de transformar a própria cultura em torno das relações
intra-familiares, e viu, no sistema penal, o poder simbólico de afirmação de seus
direitos. Os movimentos feministas, segundo Andrade
389
, se debatem em duas
vias. Por um lado, a dúvida se devem buscar a igualdade ou confirmar a diferença
em relação ao masculino, e por outro, segue a trilha dos movimentos
emancipatórios surgidos nos anos 70, com a descriminalização de condutas
ofensivas à moral sexual como o adultério, sedução, prostituição, etc. É nessa
análise que se percebe que a busca do Poder Judiciário como única instância de
resolução de conflitos e garantia de direitos, é também fenômeno responsável
pela judicialização das relações sociais. “A Lei Maria da Penha é o protótipo
dessa dicotomia e a confirmação de que na contramão do momento histórico
presente a sociedade, o Estado e as próprias mulheres persistem na
387
HERMANN, Leda Maria. Violência Doméstica: a dor que a lei esqueceu. Comentários à lei
9.099/95. 2000. p. 135
388
A crítica colocada a Lei Maria da Penha, refere-se tão somente a judicialização das relações
familiares também no âmbito criminal, e não tem qualquer repreensão quanto à intenção e a
necessidade de garantir proteção às mulheres e vítimas de violência doméstica. “Nem perfeita,
nem milagrosa, a lei tem como principal mérito reconhecer e definir a violência doméstica em suas
diversas manifestações, além de prever a criação de um sistema integrado de proteção e
atendimento às vítimas.” HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher:
considerações à Lei n. 11.340/2006: contra a violência doméstica e familiar, incluindo comentários
artigo por artigo. Campinas: Servanda, 2007. p. 19
389
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x Cidadania Mínima: Códigos de
violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 82/83
149
sobrevalorização da intervenção penal como instância de enfrentamento da
violência doméstica.”
390
O que ressoa dos novos mecanismos penais, é que em
todos eles existe um reforço da punição com o endurecimento das penas, como
ocorreu com a lei Maria da Penha. Esse fenômeno é sinalizador do insucesso das
regulações sociais intermediárias como a família, as instituições, o trabalho e a
educação e também do próprio direito penal ainda centralizado no sistema
prisional. “Os mecanismos desta preferência pela solução penal identificação
com a vítima, diabolização do outro reforçam-se mutuamente e alteram o lugar
da relação política entre cidadãos, para além da relação afectiva entre
próximos.”
391
As críticas ao sistema judicial, por sua ineficiência e
morosidade para apresentar soluções razoáveis ao crescente fluxo de demandas
pelo acesso à justiça, tem possibilitado o surgimento de teorias que buscam a
desinstitucionalização do processo decisório das crises inter-pessoais. Esses
novos processos, centrados, fortemente na mediação e conciliação, tratariam o
sistema judicial como subsidiário, recurso reservado para os casos em que não se
obtivesse o consenso em práticas amigáveis de composição entre as partes. o
se trata, como afirmam seus teóricos, de substituir os paradigmas tradicionais de
resolução dos conflitos nos Tribunais, mas de adequá-los e complementá-los com
vistas a garantir maior eficiência e agilidade.
392
O processo de desjudicialização das relações sociais
buscado pela mediação, tem a intenção de alcançar uma “[...] norma ecológica de
390
HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com nome de mulher: considerações à Lei n.
11.340/2006: contra a violência doméstica e familiar, incluindo comentários artigo por artigo. 2007.
p. 77
391
GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996. p. 102
392
“Neste raciocínio, procuramos deixar para trás, aquela visão de que um sistema é eficiente
quando para cada conflito uma intervenção jurisdicional e passa-se à construção da idéia de
que um sistema de resolução de conflitos é eficiente quando conta com instituições e
procedimentos que procuram prevenir e resolver controvérsias a partir das necessidades e
interesses das partes.” MORAIS, José Luis Bolzan de; SILVEIRA, Anarita Araújo da. Outras
formas de dizer o direito. In WARAT, Luis Alberto (org.). Em nome do acordo: a mediação no
direito. 2 ed. Argentina: ALMED. 1999. p. 69
150
resolução de conflitos sociais e jurídicos [...]”
393
, concretizando efetivamente a
autonomia, a cidadania, a democracia e os direitos humanos, na medida em que,
devolve as partes a possibilidade de, sozinhas, resolverem seus conflitos, quando
seus diálogos são mediados, sem a força terceirizada da sanção penal, constitui-
se de “[...] uma forma ecológica de negociação ou acordo transformador das
diferenças.”
394
O processo de mediação ocorre na fase pré-judicial e é
conduzido por equipe multidisciplinar que tem a função de buscar a intermediação
dos interesses das partes, sem imposição, como ocorre no Poder Judiciário, mas
através da persuasão e do convencimento. Como afirma Warat
395
:
A mediação seria um salto qualitativo para superar a condição jurídica da
modernidade, baseada no litígio e apoiada em um objetivo idealizado e
fictício como é o de descobrir a verdade, que não é outra coisa que a
implementação da cientificidade como argumento persuasivo; uma
verdade que deve ser descoberta por um juiz que pode chegar a pensar
a si mesmo como potestade de um semideus, na descoberta de uma
verdade que é imaginária. Um juiz que decide a partir do sentido
comum teórico dos juristas, a partir do imaginário da magistratura, um
lugar de decisão que não leva em contra o fato de que o querer das
partes pode ser diferente do querer decidido.
A mediação mostra-se desinteressada com a verdade
contida nos autos e está focada na reconstrução simbólica das relações
conflituosas das partes. A proposta mediadora afastada do poder coercitivo do
Estado, busca novo espaço para o fluxo dos conflitos sociais, longe dos tribunais
e da burocracia dos ritos processuais
396
. Parece este ser o novo caminho da
administração da justiça, longe do processo de judicialização das relações sociais
393
WARAT, Luis Alberto (org.). Ecologia, psicanálise e mediação. Tradução de Julieta Rodrigues.
in WARAT, Luis Alberto (org.). Em nome do acordo: a mediação no direito. 1999. p. 5
394
WARAT, Luis Alberto (org.). Ecologia, psicanálise e mediação. Tradução de Julieta Rodrigues.
in WARAT, Luis Alberto (org.). Em nome do acordo: a mediação no direito. 1999. p. 5
395
WARAT, Luis Alberto (org.). Ecologia, psicanálise e mediação. Tradução de Julieta Rodrigues.
in WARAT, Luis Alberto (org.). Em nome do acordo: a mediação no direito. 1999. p. 11
396
“A mediação seria uma proposta transformadora do conflito porque o busca a sua decisão
por um terceiro, mas, sim, a sua resolução pelas próprias partes, que recebem auxílio do mediador
para administrá-lo. A mediação não se preocupa com o litígio, ou seja, com a verdade formal
contida nos autos. Tampouco, tem como única finalidade a obtenção de um acordo. Mas, visa,
principalmente, ajudar as partes a redimensionar o conflito, aqui entendido como conjunto de
condições psicológicas, culturais e sociais que determinam um choque de atitudes e interesses no
relacionamento das pessoas envolvidas. O mediador exerce a função de ajudar as partes a
reconstruírem simbolicamente a relação conflituosa.” WARAT, Luis Alberto. O oficio do mediador.
vol. I. Florianópolis: Habitus, 2001. p. 80
151
que tem caracterizado as sociedades formadas pelo welfare state e o novo
constitucionalismo. A garantia do direito de acesso à justiça seria redimensionado
para assegurar o direito à resolução dos conflitos -, uma resposta ágil e
desburocratizada à sociedade, capaz, segundo sua doutrina, de devolver o
sentimento cívico de cuidado consigo mesmo.
4.4 DIREITOS FUNDAMENTAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A
IMPLEMENTAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO
O welfare state constituiu-se basicamente ancorado pelo
Estado nacional e a concentração da produção pública de medidas
compensatórias às classes excluídas e vítimas do sistema liberal de governo.
Porém, em seu reverso, afasta a participação e empobrece a democracia na
medida em que os clientes estatais ficam resignados com as ofertas do Estado e
não se sentem participantes do meio social que os circunda. Em outro sentido, o
Welfare State não mostrou capacidade de redistribuir a renda que concentrava, e
ainda, não promoveu a aproximação da classe trabalhadora com o capital,
favorecendo uma pequena classe intermediária. Como assevera Giddens
397
:
Uma das fraquezas estruturais mais importantes do Welfare state do
pós-guerra estava presente na tênue relação entre a promoção de
eficiência econômica e as tentativas de redistribuição. Os sistemas
previdenciais mostraram-se não incapazes de realizar muita
distribuição de riqueza e renda; o Welfare state, na verdade, tornou-se
em parte um instrumento para ajudar a promover os interesses de uma
classe média em expansão. O compromisso de classe não era
diretamente entre o capital e a classe trabalhadora; era um compromisso
que consolidou os setores intermediários da ordem social.
A dupla constatação, da impossibilidade de se manter um
Estado mínimo e a inconveniência do welfare state, pelo excesso de
concentração e manipulação das políticas públicas, faz surgir a proposta de uma
democracia dialógica, com ampla participação na formação do que se denomina
políticas gerativas.
397
GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. O futuro da política radical. Tradução
Álvaro Hattnher. São Paulo: UNESP, 1996. p. 169
152
A democracia dialógica fundamenta seus pressupostos
longe da filosofia transcendental e busca a reflexividade social tanto nas
atividades diárias como na pluralidade de formas de organização coletiva. Por
outro lado, a democracia dialógica não pressupõe a obtenção do consenso. “A
democracia dialógica pressupõe apenas que o diálogo em um espaço público
fornece um modo de viver com o outro em uma relação de tolerância mutua – seja
esse ‘outro’ um indivíduo ou uma comunidade global de fiéis religiosos.”
398
No que concerne as políticas gerativas, ao contrário da
ações prestacionais do welfare state, ocorreria um redimensionamento da relação
entre Estado, sociedade civil e mercado, visando reavivar a cidadania, tornando
os indivíduos ativos na definição de metas e objetivos a serem alcançados por
essas políticas. A formação dialógica dessa democracia tenderia atender uma
sociedade plural e multicultural.
399
No caso brasileiro, a implementação de políticas públicas
para concretização das normas constitucionais programáticas vem se
apresentando de forma tímida e ineficiente, mergulhada na burocracia e na
centralização de decisões, tornando precários os seus resultados.
400
A incapacidade do Estado de prover e manter um espaço
público onde estejam presentes, além de instituições estatais, a sociedade civil
organizada, anunciava o fracasso das políticas públicas relacionadas aos direitos
sociais que a Constituição Federal de 1988 fez previsão expressa. Nesse palco
para superar a burocracia estatal, o Poder Judiciário aparece como instituição
398
GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. O futuro da política radical. 1996. p.
133
399
Nesse sentido: GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. O futuro da política
radical. Tradução Álvaro Hattnher. São Paulo: UNESP, 1996. RAMOS, Flávio. É possível esquecer
o Welfare State e as políticas regulatórias? in BOEIRA, Sérgio Luís. Democracia & Políticas
Públicas: diversidade temática dos estudos contemporâneos. 2005, p. 51
400
“Como resultado, temos uma descontinuidade na implementação de políticas públicas e as
principais causas seriam um forte centralismo que envolve o processo decisório na coordenação
das políticas em implantação, além dos obstáculos muitas vezes criados pelos próprios níveis
hierárquicos inferiores, obstruindo a fluidez necessária para a efetiva implementação dos diversos
programas e projetos que envolvem a elaboração dessas mesmas políticas.” RAMOS, Flávio. É
possível esquecer o Welfare State e as políticas regulatórias? in BOEIRA, Sérgio Luís.
Democracia & Políticas Públicas: diversidade temática dos estudos contemporâneos. 2005, p.
57/58
153
capaz de garantir as expectativas sociais e a efetividade dos valores ético-
políticos do texto constitucional.
Inicialmente, com a finalidade de trazer subsídios ao debate
proposto, apresenta-se o recente debate onde provimentos judiciais interferem
diretamente em assuntos relacionados às Políticas Públicas. Trata-se das
decisões judiciais que polemizam a questão das cotas para negros e egressos de
escolas públicas em Universidades da mesma esfera.
A Universidade Federal do Paraná
401
, em seu vestibular no
ano de 2004, optou, valendo-se de sua autonomia administrativa, por reservar
20% das vagas aos afro-descendentes e outros 20% aos egressos de escolas
públicas. O Ministério Público Federal, com supedâneo no princípio constitucional
da isonomia, propôs Ação Civil Pública
402
, pedindo provimento judicial que
impedisse a Universidade de aplicar o referido percentual. Em sede de tutela
antecipada o juiz de primeiro grau deferiu ordem suspendendo o ato
administrativo da Universidade Federal. Posteriormente, em pedido de suspensão
de execução de liminar, o Tribunal suspendeu a antecipação de tutela deferida.
Em sua manifestação, o Tribunal reconhece que a decisão
entra no âmbito tradicionalmente político, e por isso, de competência do
Legislativo e do Executivo, porém, entende se tratar de um fenômeno
internacional.
403
E por fim, reflete a postura imperante ideologicamente no Poder
Judiciário e também no órgão do Ministério Público – a idéia e convicção de que o
Poder Judiciário, ainda que intervenha em ações políticas reflete sempre, as
aspirações da sociedade da época e da sociedade em que está inserido.
404
401
A Universidade lançou o Edital n. 01/04-NC, que previu a reserva de vagas para negros e
egressos de escolas públicas, baseada em critérios de raça e capacidade financeira.
402
Suspensão de execução de liminar n. 2004.04.01.054675-8/PR, que tramitou no Tribunal
Regional Federal da 4 Região, Rel. Des. Vladimir Freitas.
403
Por outro lado, não deixo sem registro que esta decisão acaba por definir política de educação
superior, tarefa que não se situa exatamente entre as do Poder Judiciário. Todavia, a provocação
do Judiciário em temas que tais constitui fenômeno internacional. Cada vez mais os juízes vêem-
se em situação de decidir assuntos de grande interesse público.” Autos n. 2004.04.01.054675-
8/PR, TRF 4.Des. Vladimir Freitas.
404
“Nesta linha, faço minhas as palavras de Benjamin Cardozo, um dos maiores Juízes da
Suprema Corte norte-americana e grande estudioso do chamado ativismo judicial, ao dizer que
meu dever como juiz deve ter como objetivo a lei, não as minhas aspirações se convicções
154
No mesmo sentido, outra decisão
405
do judiciário negou
provimento ao Agravo de Instrumento de uma candidata que, sentindo-se
prejudicada pelo sistema de cotas, pedia a anulação da ordem administrativa que
havia incluído o sistema no vestibular 2005. Alega o juiz relator, que a partir da
Constituição de 1988, o Judiciário deve intervir também para combater
desigualdade e não somente para garantir privilégios e que a democratização do
acesso permite maior igualdade social na medida em que garante o acesso das
camadas mais baixas à elite do conhecimento. E por fim, trata-se de fazer
prevalecer uma política pública sobre um interesse particular.
Vê-se claramente que no caso relatado, o conflito
apresentado impõe a decisão diante de dois princípios constitucionais. O princípio
da isonomia e o princípio da dignidade humana e garantia do interesse público.
Em casos como esse, a decisão tomada não pode ser de forma a tornar efetivo
um princípio e invalidar o outro. Deve-se, otimizar e efetivar a aplicação dos
princípios em conflito, em cada caso concreto, o que deverá prevalecer por
critérios de justiça.
406
Ninguém dúvida da necessidade de tornar o Estado
brasileiro mais democrático e com menos desigualdades sócio-econômicas.
Contudo, a dúvida que surge a partir dessas decisões é quanto à capacidade e
legitimidade do Poder Judiciário para decidir e com que critérios decide pela
implementação de políticas públicas? Isso porquê, sabe-se que as estatísticas e
planejamentos administrativos são realizados pela administração pública fundada
em diversos critérios, que o, no mais das vezes, ignorados por grande parte
dos agentes políticos, quando tomam decisões que resultam em políticas
públicas.
A função de governar exige a necessidade de controle,
coesão e administração de todas as forças políticas. Seria um equívoco para o
filosóficas, mas sim as aspirações e convicções filosóficas do homem e da mulher do meu tempo.”
Autos n. 2004.04.01.054675-8/PR, TRF 4. Des. Vladimir Freitas.
405
Decisão prolatada no Agravo de Instrumento n. 2005.04.01.022897-2/PR, Des. Luiz Carlos de
Castro Lugon. Tribunal Regional Federal da 4
a
região.
406
Para aprofundamento do tema sobre a resolução de conflito de regras e princípios
recomendamos a leitura de ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. 1993.
155
Estado democrático desejar que os juizes governassem, seja porque não detêm
legitimidade popular, seja porque não dispõem do diálogo necessário com a
sociedade para definir as políticas públicas convenientes para cada época.
Porém, ainda assim, restaria uma importante função para o
Poder Judiciário. Trata-se da possibilidade de fiscalizar e exigir do Poder
Executivo a implementação de políticas públicas as quais se comprometeu e
também os direitos sociais assegurados na Constituição Federal de 1988.
Importante frizar, contudo, que o ativismo judicial não pode, de qualquer forma,
adentrar no espaço do planejamento e da conveniência de qual política pública
deverá ser implementada em cada tempo. Isso porque, não representa a
sociedade civil para esse fim, e estaria, deturpando suas funções institucionais e
pondo em risco o sistema democrático.
Não que se olvidar, que dos contornos dados à
Constituição Federal de 1988, os juízes o, em última análise, os únicos
intérpretes e responsáveis por definir os limites de suas atuações.
A fixação dos limites à própria jurisdição representa, nesse contexto,
uma das mais graves funções outorgadas ao Poder Judiciário. A busca
da plena normatividade constitucional não pode significar o rompimento
do delicado equilíbrio necessário à democracia. Um governo de juízes,
neste sentido, em nada difere de um governo aristocrático, pois o regime
democrático não se coaduna com a concentração extremada de poder
político junto a um único órgão.
407
Deve-se ter sempre em vista que a função primordial do
Poder Judiciário é o controle dos demais Poderes impondo a implementação das
políticas públicas previstas na constituição. Contra argumentos econômicos,
financeiros ou sociais, não cabe qualquer discurso racional e jurídico, por isso,
tornam-se sem critérios válidos as decisões judiciais, ainda que justifiquem-se por
argumentos políticos e sociais.
408
407
APPIO, Eduardo. Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. 2005. p. 71
408
[...] na realidade brasileira o que se observa é um desrespeito acentuado das regras do jogo
quando se trata de resolver o paradoxo economia x direito. Atualmente, em nome do atendimento
a determinados fins econômicos, cada vez mais instala-se, na realidade brasileira, uma ‘lógica de
emergência’que, para todos os efeitos, atenderia a uma suposta ‘verdade’: a de que todos os
males da sociedade brasileira residem no tamanho e no custo do Estado. E na busca da
demolição do Estado, instala-se essa lógica da racionalidade (direitos deduzidos de direitos).
156
Após a queda do modelo de Estado legalista, caracterizado
pela prevalência do Poder Legislativo e o surgimento dos Estados constitucionais,
o Poder Judiciário ganha maior espaço colocando-se como controlador da
atividade do executivo e do legislativo sempre adequando suas atuações ao
texto constitucional.
Dentro dessa nova perspectiva, para Cappelletti
409
, o Poder
Judiciário se vê, invariavelmente, diante de duas alternativas: permanecer fiel à
concepção tradicional nos limites da função jurisdicional ou eleva-se ao nível dos
demais poderes, tornando-se o terceiro gigante, em condições de controlar o
legislativo e o executivo.
A primeira opção lhe garante a confortável atuação formal na
repressão à violação dos direitos individuais e à criminalidade, negando sua
vertente política. A escolha pela segunda opção faz o Judiciário assumir uma
postura política, ultrapassando o nível tradicional de resolução de conflitos de
natureza privada.
Uma das conseqüências do Welfare State é a massificação.
As sociedades construídas após o modelo de Estado gerado pelo Welfare State
caracterizam-se especialmente por trazerem conflitos sociais que envolvem
grande número de pessoas, muito freqüentemente, ligados a problemas
econômicos, financeiros e de consumo. É preocupação freqüente a criação de
ações coletivas
410
ou modelos processuais de tutela desses direitos meta
individuais ou coletivos, em condições a garantir a isonomia na relação
processual e a igualdade de armas da sociedade frente a grandes grupos
econômicos.
Porém, tratam-se de situações recentes no sistema jurídico,
e portanto, os meios processuais e de direito material disponíveis ainda carecem
de consolidação. Ademais, via de regra, esses direitos estão previstos em normas
OLIVEIRA JR. José Alcebíades de. Politização do Direito e Juridicização da Política. Revista
Seqüência. Florianópolis, n. 32, ano XVII. P. 9-14, jul 1996. p. 12 citado por APPIO, Eduardo.
Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil. 2005.p. 72/73
409
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? 1993. p. 47
410
Class actions e public interest litigation nos Estados Unidos, actions coletives e
Verbandsklagen na França, Bélgica, Alemanha.
157
programáticas que não o auto-aplicáveis, forçando que a magistratura defina
seu real alcance: “pela razão de que tais leis e direitos frequentemente são muito
vagos, fluidos e programáticos, mostra-se inevitável alto grau de ativismo e
criatividade do juiz chamado a interpretá-los.”
411
Esse é o eixo substancialista,
que coloca a imagem do juiz como uma nova intelligentzia
412
, responsável por
declarar e efetivar dentro do direito princípios já admitidos no seio da sociedade.
No entanto, é importante considerar a crítica da doutrina
procedimentalista, capitaneada principalmente por Habermas
413
e Garapon
414
,
para os quais a invasão da política pelo Estado, conduz para constituição de um
cidadão-cliente, que mantém-se de forma passiva diante do Estado aguardando
suas concessões e reduzindo, neste caso, o espaço da liberdade. Esse é o preço
de conduzir a efetividade dos direitos sociais pela força impositiva do Estado e
não pela manifestação ativa da cidadania, o que se espera num regime
democrático e para uma cultura cívica saudável. “A igualdade somente daria bons
frutos quando acompanhada por uma cidadania ativa, cujas práticas levassem ao
contínuo aperfeiçoamento dos procedimentos democráticos, pelos quais o direito
deveria zelar, abrindo a todos a possibilidade de intervenção no processo de
formação da vontade majoritária.”
415
Para o eixo procedimentalista, o agigantamento do Poder
Judiciário não é resultado somente da facilidade de acesso ao sistema, mas
representa também a incompetência do sistema político para dar respostas aos
problemas atuais da sociedade. O Poder Judiciário é colocado como substituto do
Estado diante da necessidade de igualdade e a ineficiência das instituições
políticas em prover essa carência.
A realidade atual da jurisdição demonstra um crescimento
cada vez maior da intervenção do Poder Judiciário em áreas tradicionalmente
afetas à política. Os resultados dessa transformação de paradigma do direito
411
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores?. p. 60
412
Idéia presente na obra: DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 1999.
413
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre validade e facticidade. 1997.
414
As principais idéias da proposta analítica procedimentalista de Garapon, encontram-se em sua
obra GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: Justiça e democracia. 1996.
415
VIANNA, Luiz Werneck (et. al.). A judicialização da política e das relações sociais no Brasil.
1999. p. 23
158
ainda são desconhecidos. Cabe apenas apontar algumas vicissitudes desse novo
modelo de controle político e social que se instala atualmente.
4.5 A ESFERA SOCIAL E A JUDICIALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
A sociedade resultante do modelo de Estado surgido na era
moderna provocou a completa difusão dos limites entre o público e o privado, o
que Arendt denominou, de social. A Revolução Francesa, colocada como a
fundadora da liberdade, fracassou em seu propósito ao colocar como um dos
seus objetivos a implementação de políticas para atender as necessidades vitais
da população. Nesse escorço teórico, Marx tomou a dianteira, no momento em
que suas predições tornaram-se orientações para a Revolução Francesa e os
movimentos dos operários.
416
A bandeira de luta da Revolução Francesa centrada
na necessidade e na pobreza, fez com que a época perdesse o momento
histórico de fundação da liberdade.
A partir desse momento é que a necessidade e a
sobrevivência, assuntos eminentemente privados tomam a esfera pública e
desfazem os limites facilmente reconhecíveis entre esta e o privado, resultando
num hibridismo denominado social. O social, para Arendt, é a tentativa humana
de libertação do constrangimento da necessidade através dos instrumentos
políticos, e para isso, o Estado se tornou importante instrumento. “Com a
ascensão do social, as atividades executadas privadamente passaram a ter
importância pública e o que era típico do público passou a ser um luxo.”
417
O
paradoxo instransponível nessa transformação da esfera pública, é que os
416
“A transformação da questão social numa força política, efetuada por Marx, es contida no
termo exploração, isto é, na noção de que a pobreza é a conseqüência da exploração por uma
‘classe dominante’, que detém a posse dos meios de violência. [...] Se Marx ajudou a libertação
dos pobres, não foi por lhes dizer que eles eram a encarnação viva de alguma necessidade
histórica, mas por persuadi-los de que a própria pobreza é um fenômeno político, e não natural.”
ARENDT, Hannah. Da Revolução. 1988. p. 49/50
417
AGUIAR, Odílio Alves. A questão social em Hannah Arendt. n. 27. São Paulo: Transformação,
2004. p. 9
159
problemas econômicos, principal pauta da esfera social, não o solucionados
pelo método político de persuasão e decisão, tendo que ser resolvidos por
decisões técnicas rápidas, requerendo a presença de especialistas e da ciência
da administração.
418
O Poder Judiciário parece, numa interpretação da teoria
arendtiana, estar preenchendo essa lacuna da necessidade de um poder,
instituído de forma democrática que venha a garantir a gestão das relações
familiares e da distribuição da justiça social e econômica, através de decisões que
se pretendem políticas na esfera pública judicial.
Instigante nessa constatação, é que o principal norte da
atuação do Poder Judiciário na atualidade, está relacionado aos fundamentos do
Estado Constitucional, sobretudo no Brasil, à dignidade da pessoa humana e à
erradicação das desigualdades sociais, guiados pela intenção de concretizar o
princípio da igualdade, tão caro aos Estados que pretendem superar o positivismo
jurídico. Não se trata senão, de incutir um debate econômico e de justificiabilidade
dentro da esfera pública. Como analisava Arendt, na obra de Tocqueville, a
doutrina da necessidade é tão cativante para os que escrevem história em épocas
democráticas onde se busca um ideal de igualdade, que suprime os traços da
ação individual.
419
A colocação da necessidade como pauta de debates da
esfera pública, que ocasionou o surgimento do social, representou a emancipação
do labor, conforme se dará melhor tratamento adiante, e com isso também, fez
surgir o que Arendt denominou de “sociedade de consumidores”. Dizer que se
está diante de uma sociedade de consumo, representa não a emancipação das
classes operárias que tiveram maior acesso ao mercado, mas a submissão das
atividades humanas à satisfação da necessidade biológica nos processos
orgânicos.
420
Os malefícios da emancipação do labor na sociedade de
consumo foram percebidos por Marx, segundo Arendt, quando este inscreveu em
418
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt.
2000. p. 273/274
419
ARENDT, Hannah. Da Revolução. 1988. p. 89
420
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 138
160
suas teorias o que claramente é sua predição mais utópica: que o objetivo da
revolução deveria ser a emancipação do homem em relação ao trabalho, o que
significaria superar a própria necessidade, ou seja, o próprio metabolismo da
condição humana.
421
As novas conquistas do direito do trabalho e a própria justiça
trabalhista, tem caminhado para diminuir as horas trabalhadas e garantir maior
espaço de lazer. Mas as reduções nas jornadas de trabalho, segundo Arendt
422
,
não são, senão, a aproximação da normalidade. E este aspecto parece estar de
acordo com o que a própria economia política imaginava como ideal de sociedade
com o crescimento abundante da riqueza e a felicidade da maioria.
O triunfo do labor representa a tentativa do mundo moderno
em superar a necessidade, e com isso o animal laborans pôde ocupar a esfera
pública, “[...] e, no entanto, enquanto o animal laborans continuar de posse dela,
não poderá existir uma esfera verdadeiramente pública, mas apenas atividades
privadas exibidas em público.”
423
As conseqüências diretas desse fenômeno é o
surgimento das culturas de massa, que expõem dois conflitos: entre o labor e o
consumo e a perseguição pelo animal laborans da felicidade, que pode ser
alcançada quando os processos vitais de exaustão, regeneração e dor estiverem
em perfeito equilíbrio.
Os elementos da vitória do animal laborans na modernidade,
são debates importantes para compreensão da necessidade do crescimento da
justiça do trabalho, intermediando relações privadas e, principalmente, a
ascensão e fortalecimento do direito do consumidor, inclusive, colocado como
direito coletivo e difuso. O crescimento vertiginoso da preocupação estatal com o
consumidor demonstra a pauta política preocupada com a economia. O Poder
Judiciário reconheceu por inúmeras decisões sua competência para ingressar
na órbita das políticas públicas e determinar aos demais poderes que intervenham
com medidas protetivas ao direito de consumo.
424
421
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997.p. 143
422
Arendt não se refere à justiça do trabalho, que não foi objeto de suas análises. Essa análise
compreende nossas análises a partir da crítica arendtiana a obra de Marx.
423
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 146
424
AÇÃO CIVIL BLICA. DIREITO DO CONSUMIDOR. PROPAGANDA DE BEBIDAS
ALCOÓLICAS. CORRETA INFORMAÇÃO ACERCA DOS RISCOS E POTENCIAIS DANOS QUE
161
Para Arednt, o mundo feito pelo homem é construído com
material da natureza, para ser usado e o consumido. O animal laborans inverte
essa compreensão e dissolve no próprio labor a construção obtida da natureza.
Segundo Arendt
425
:
O perigo é que tal sociedade, deslumbrada ante a abundância de sua
crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo
interminável, não seria capaz de reconhecer sua própria futilidade a
futilidade de uma vida que não se fixa nem se realiza em coisa alguma
que seja permanente, que continue após terminado o labor.
Na incapacidade do Estado administrado pelo animal
laborans, de oferecer respostas técnicas e rápidas à sociedade de consumo, o
Poder Judiciário ascende na esfera social, pretendendo oferecer respostas à
necessidade de distribuição da economia e garantias frente ao mercado. A
tentativa do Poder Judiciário de dar respostas políticas aos problemas sociais,
refere-se ao problema já apontado por Arendt, de que nas ciências humanas
contemporâneas a esfera política foi considerada parte do social, como um
subsistema na sociedade, quando não tomando as categorias como sinônimos.
426
Isso se deve, ao fato de que a esfera social não se apresenta como categoria
autônoma, mas como um hibridismo, em que aparecem no público traços da vida
privada como a economia, e nisso, o Poder Judiciário enquanto garante dos
direitos sociais e econômicos de consumidores a grandes grupos empresariais
– parece estar imerso na confusão entre o que é público e o que é privado.
O Poder Judiciário parece ser, numa proposta de
interpretação da teoria arendtiana, o espaço dentro da esfera social, que melhor
traduz a era advinda após a falência da política e a transformação da esfera
privada em espaço da intimidade
427
. Na arena de debates do Poder Judiciário,
O CONSUMO DE BEBIDAS ALCOÓLICAS CAUSA À SAÚDE. 1. É possível e exigível do
Judiciário, impor determinada conduta ao fornecedor, sem que esta esteja expressamente prevista
em lei, desde que afinada com as políticas públicas diretamente decorrentes do texto
constitucional, pois traduz-se em dever do Estado, do qual o Judiciário é poder, de acordo com o
art. 196 da Constituição. (APELAÇÃO CÍVEL 2002.04.01.000611-1/PR, RELATORA : DES.
FEDERAL MARGA INGE BARTH TESSLER).
425
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997.p. 148
426
ADEODATO, João Mauricio Leitão. O problema da legitimidade: no rastro do pensamento de
Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. p. 127
427
“O que chamamos hoje de privado é um círculo de intimidade cujos primórdios podemos
encontrar nos últimos períodos da civilização romana, embora dificilmente em qualquer período da
antiguidade grega, mas cujas peculiaridades multiformidade e variedade eram certamente
162
ganham visibilidade pública aspectos da vida privada relacionados à constituição
familiar, à economia e à sobrevivência. Na contenda jurídica, predominam as
ações relacionadas ao modo de criação dos filhos, ao dever de alimentação e
afeto, e ainda, em decisões mais recentes, refletem sobre a própria constituição
do núcleo familiar.
As novas formações familiares e os conflitos advindos desse
novo fenômeno social não passaram despercebidos pelo Poder Judiciário. Os
vínculos afetivos, antes reservados à privacidade do lar, foram largados à
publicidade do Poder Judiciário. Suas dimensões passaram a ser valoradas
monetariamente, e avaliadas se coerentes com os valores presentes na
sociedade e na legislação. A legislação civilista liberal, construída para operar em
sociedades de famílias denominadas tradicionais, onde a constituição familiar é
heterossexual, apresentou dificuldades aos operadores do direito em lidar com as
novas famílias monoparentais e homoafetivas. O crescente fluxo de problemas
familiares no debate jurídico, fez com que a jurisprudência desse respostas
unilaterais à problemas privados e dos quais tem poucos subsídios para
apaziguar. O próprio sentido que o direito de família ganha na doutrina civilista,
“como construção social organizada através de regras culturalmente elaboradas
que conformam modelos de comportamento”
428
, demonstra ser um fenômeno
eminentemente social, ou seja, um tema, que na proposta de Arendt, era
resolvido na privacidade do lar, e que, após a era moderna ganhou a luz pública.
A intervenção estatal, rompeu seu âmbito de atuação
política, colocou a família na esfera pública, intitulando-se guardião da
estabilidade social com “[...] a preservação do lar no seu aspecto mais
significativo: lugar de afeto e respeito.”
429
Expressão das transformações
operadas no âmbito familiar é que o próprio direito de família, enquanto ramo da
seara jurídica, se denomina tanto como estrutura pública, como privada, ao tempo
que garante o desenvolvimento do indivíduo permite a intervenção estatal para
desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna.” ARENDT, Hannah. A condição
humana.1997.p. 48
428
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2006. p. 26
429
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2006. p. 26
163
sua integração social.
430
A regulação desmesurada da família tem provocado o
que se denominou de estatização do afeto, característica marcada pela excessiva
regulamentação dos comportamentos no âmbito familiar que provocaram, por
outro lado a própria desnaturação das relações afetivas entre seus membros.
431
A forma como as pessoas se vinculam afetivamente, passou
a ser matéria de vastíssima regulamentação pelo Estado. A sociedade moderna
presenciou a formação de uniões homoafetivas, e a ausência de legislação capaz
de garantir dignidade nas relações que não se compatibilizam ao modelo
patriarcal de família. Esse argumento, é mais comumente utilizado para justificar
a intervenção do judiciário, que, por analogia e com base em princípios
constitucionais, busca oferecer uma resposta a realidade social. Porém, os
estudos pouco têm falado quanto aos limites e a conveniência do excesso de
regramento do direito de família, e mesmo, da exposição pública da sexualidade e
da forma como as famílias devem ser tratadas na sociedade. A produção
jurisprudencial tem se ocupado de avançar na definição dos principais direitos e
deveres dentro das relações homoafetivas
432
. O marco inicial se deu com a
definição dos juizados especializados de família para apreciar as uniões
homossexuais, e a partir daí, seguiram-se decisões reconhecendo o direito à
herança pelo parceiro, auxílio por morte ou reclusão, visto de permanência e até
mesmo a inelegibilidade decorrente das uniões homossexuais
433
. De acordo com
Dias
434
:
Com isso, a jurisprudência acaba estabelecendo pautas de conduta de
caráter geral. Mesmo apreciando o caso concreto, funciona o juiz como
430
“A família ë tanto estrutura pública como relação privada, pois identifica o individuo como
integrante do vinculo familiar e também como participe do contexto social”. DIAS, Maria Berenice.
Manual de Direito das Famílias. 2006. p. 27
431
Nesse sentido RUZYK, Carlos Eduardo. União estável: entre o formalismo e o reconhecimento
jurídico das relações familiares de fato. Revista brasileira de Direito de Família. Porto Alegre. n. 7.
2000.
432
Segundo Maria Berenice Dias, foi no âmbito do Poder Judiciário que as uniões de pessoas do
mesmo sexo começaram a encontrar reconhecimento com o nome de uniões homoafetivas.
Parece ter sido da obra da Autora a primeira utilização do termo em DIAS, Maria Berenice. Uniões
homossexuais: o preconceito e a justiça. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
433
Maria Berenice Dias cita os seguintes precedentes jurisprudenciais: TJRGS, 8a C. Civ., AI
599075496, rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17.06.99; TJRGS, 7 C. Civ., AC 70001388982, rel.
José Carlos Teixeira Giorgis, j. 14.03.2001; o direito previdenciário é regulamentado pela Instrução
normativa do INSS 25/2000; TRF 5 R., 3 T., AC 334141, rel. Des. Geraldo Apoliano, j. 27.07.2004;
TSE, REsp Eleitoral 24564/Viseu-PA, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 1.10.2004.
434 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2006. p. 182
164
agente transformador da própria sociedade. [...] Condenar à invisibilidade
é a forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação, o
Estado o pode se omitir e deixar de cumprir com sua obrigação de
conduzir o cidadão à felicidade.
Para além da regulação da constituição dos modelos
familiares, outra perspectiva que vem sendo tomada pelos Tribunais, é a
imposição de que os vínculos afetivos possam ser, de alguma forma, mensurados
como positivos ou negativos para a constituição do indivíduo. Esse debate fez
surgir recentes decisões acerca da possibilidade de indenizar a ruptura de
vínculos afetivos. “A tentativa é migrar a responsabilidade decorrente da
manifestação de vontade para o âmbito dos vínculos afetivos, olvidando-se que o
direito das famílias é o único campo do direito privado cujo objeto não é a
vontade, é o afeto.”
435
Equacionam-se os princípios regentes das relações
comerciais e econômicas para dimensionar os prejuízos decorrentes da ausência
do vínculo afetivo daquele que por lei tinha obrigação de oferecê-lo. Assim, o que
se pretende é “[...] transformar a desilusão pelo fim dos vínculos afetivos em
obrigação indenizatória.”
436
Necessário se fazer a ressalva quanto a importância de que
o Estado, enquanto responsável pela legislação, não as costas aos problemas
que ocorrem em seu interior. Porém, a ascensão dos problemas domésticos do
âmbito familiar à esfera pública, pode representar aquilo que Arendt denominou
como a confusão entre o social e o político na era moderna.
437
É próprio do social,
a criação de padrões de comportamentos desejáveis para uma sociedade. Assim,
a pluralidade, característica distintiva dos humanos torna-se um modo de agir
social e elimina a ação
438
. Num ambiente social, onde os limites entre a esfera
435 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2006. p. 100
436
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 2006. p.100/101 “A dor, comum no fim
de todos os relacionamentos, muitas vezes serve de justificativa à pretensão indenizatória, a título
de dano moral. Trata-se da monetarização das relações erótico-afetivas, no dizer de Sérgio
Gischkow Pereira, o que termina com a paixão, liquida com o amor, aprisiona a libido, abafa a
força do sexo, impondo um puranitanismo retrógrado.”
437
Segundo Arendt, a partir da glorificação do social e do nascimento da sociabilidade massificada
surgiu um grande mal-entendido tremendamente alimentado pela tradição: trata-se da confusão do
social com o político. Isso aparece na tradução que os medievais fizeram da expressão Zoon
Politikon como animal socialis. A partir daí adentrou o Ocidente a idéia de que qualquer
comunidade é uma formação política. Na verdade, essa tradução está fortemente influenciada
pelo cristianismo. AGUIAR, Odílio Alves. A questão social em Hannah Arendt. 2004. p. 11
438
“Ao invés da ação, a sociedade espera de cada um do seus membros um certo tipo de
comportamento, impondo inúmeras e variadas regras, todas elas tendentes a normalizar os seus
165
pública e a privada não são identificáveis, o Poder Judiciário passa a ditar
comportamentos e, com base nos supostos valores advindos do texto
constitucional (político e moral), responde em suas decisões àquilo que julga
necessário para a harmonização da sociedade.
Não afirmou Arendt, que a esfera privada era desprovida de
importância, ao contrário, a colocou como indispensável para a própria
sustentação da esfera pública, porém, demonstrou que algumas coisas quando
expostas ao público podem ser vistas de forma distorcida, e assim parece ser o
amor, quando utilizado, por exemplo, para fins políticos.
439
Assim ocorre com as
relações familiares, que quando expostas à público perdem sua característica
de unir pessoas com vínculos comuns, e transformam-se, numa possível leitura
da obra de Arendt, em propostas de monetarização da dor pela quebra do vínculo
emocional, como nas recentes decisões jurisprudenciais antes indicadas. É mais
uma vez, a predominância do animal laborans, tornando consumível todos os
relacionamentos intersubjetivos mantidos no mundo da esfera pública.
Outro fato importante destacado na obra de Arendt, e capaz,
pelo menos em parte, de explicar o fenômeno da inflação legislativa para regular
os comportamentos sociais, é o declínio da autoridade das leis ocorrida no século
XX. Arendt, coloca o ordenamento jurídico como instrumento estabilizador dos
frágeis acordos das relações políticas e da pluralidade de agentes, que a cada dia
surgem no mundo.
440
As leis delimitam o espaço criativo da ação, ao passo que
asseguram a liberdade de movimento dos indivíduos. A norma positiva é a
garantia de existência de um mundo capaz de durar para além da existência
individual de cada geração, fomentando e absorvendo a novidade da esfera
pública.
441
membros a fazê-los comportarem-se, a abolir a ação espontânea ou a reação inusitada.”
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997.p. 50
439
ARENDT, Hannah. A condição humana.1997. p. 61
440
“A ênfase arendtiana no papel estabilizador e conservador das leis e do próprio direito nada
tem que ver com o conservadorismo político que os considera imutáveis, recusando-se a aceitar
que a ‘mudança é inerente à condição humana’. DUARTE, André. O pensamento à sombra da
ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt. 2000.
441
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de
Hannah Arendt. 1988. p. 217 e seguintes.
166
Diferentemente da perspectiva atual, a lei deveria tomar uma
postura mais diretiva do que impositiva, concebidas por Arendt, não tanto como
instrumentos de coerção, mas, como as regras do jogo político às quais os
cidadãos dão assentimento afim de incluir-se nas relações inter-subjetivas que
constituem o mundo público.
442
Assim todas as normas devem ser mais diretivas,
na medida que descrevem os passos do jogo político, do que imperativas,
escudando-se unicamente na força coercitiva do Estado.
O Poder Legislativo, do welfare state, que pretendia dar
várias respostas as grandes e rápidas transformações da esfera social, emite
diversos comandos imperativos, com vistas à regular os comportamentos sociais,
excluindo a função diretiva da legislação. Numa sociedade de massas, onde tudo
se consome pelo animal laborans, a produção legislativa deve ser incessante para
atender ao fluxo das transformações daquilo que é consumido na esfera social. A
necessidade de que os homens se comportem ao invés de agir, tornou-se campo
germinante para grande fluxo legislativo, sufocando o espaço da ação e
criatividade, esquecidos pelo animal laborans.
O Poder Judiciário, enquanto poder supremo na esfera
social, torna-se mecanismo de resposta à legislação instável dos modelos
políticos surgidos após a era moderna. Recebendo na visibilidade do público,
problemas privados (como a economia e a família), perde-se num emaranhado de
normas e regulamentos que visam garantir o acesso de todos aos bens de
consumo da sociedade. Não parece ser esse o caminho para autonomia do
individuo, até porque a libertação da necessidade na esfera pública, como dito
por Arendt, não conduz à liberdade, trazendo somente indivíduos condicionados e
dependentes de um Estado provedor.
442
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: Política e Filosofia em Hannah Arendt.
2000. p. 250
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na realização do presente trabalho, centrou-se na problemática
do recente fenômeno de escoamento dos conflitos sociais e políticos para o
centro do debate do Poder Judiciário. Para se alcançar uma análise das causas
que proporcionaram esse novo movimento, entendeu-se útil abordar, inicialmente,
teorias atuais da política constitucional e da filosofia política, suportes seguros
para compreensão das bases dessa nova realidade de crescimento do Poder
Judiciário. Assim, optou-se por desmembrar a pesquisa em quatro capítulos. No
primeiro, a análise centrou-se na formação do Estado nacional, seu
amadurecimento e declínio, com o crescimento do Estado constitucional, a
inserção dos direitos sociais e o surgimento de Constituições políticas, na base do
que, atualmente se denomina de neoconstitucionalismo.
No segundo capítulo, apresentou-se de forma descritiva os
principais conceitos da teoria de Hannah Arendt, acerca da formação dos espaços
público, privado e o surgimento do social. Nesse debate, inseriram-se importantes
distinções encontradas na filosofia política da autora, como as relativas ao poder,
a força, a violência, e como essas categorias foram tratadas pela tradição do
pensamento político ocidental. A opção pela teoria filosófica de Hannah Arendt, se
justifica pela nitidez com que apresenta os problemas trazidos pelas
transformações na compreensão da política ocasionadas pelo surgimento do
social na era moderna. Acredita-se que a proposta de Hannah Arendt, é
instigadora e fonte de inestimável conteúdo de debate para compreensão do
fenômeno da judicialização das relações sociais e políticas.
A partir do terceiro capítulo, fixa-se especificamente no tema
central do presente trabalho. Inicia-se o debate sobre a judicialização da política
nos Tribunais Constitucionais na atualidade. O eixo da discussão proposta,
principia uma abordagem das transformações provocadas pelas teorias
constitucionais surgidas após a década de 1940, que além dos direitos de
liberdade deu a sociedade direitos à prestações positivas do Estado, rompendo
com o modelo abstencionista e impondo a concretização do princípio da
168
igualdade. Na inércia dos Poderes Executivo e Legislativo, inicia-se um ativismo
judicial como guardião das promessas constitucionais não cumpridas.
Entendeu-se importante para o aprofundamento do tema, a
apresentação dos debates substancialista e procedimentalista, colocando em
confronto as idéias de Dworkin e Cappelletti, enquanto representantes da primeira
teoria e Habermas e Garapon, na construção do segundo posicionamento.
De um lado, foi possível perceber o crescimento das
esperanças de concretização das promessas democráticas a partir do
fortalecimento da figura do juiz e do próprio Poder Judiciário, que se afasta de
uma visão formal e mecânica de aplicação da lei, reaproximando-se de critérios
éticos e morais para fazer cumprir direitos prestacionais, sociais e econômicos,
buscando a materialização do princípio da igualdade. Noutro norte, Habermas e
Garapon, são capazes de mostrar o perigo da sobreposição do Judiciário sobre
os demais poderes, e a criação de uma legião de súditos, desinteressados pelo
bem comum e a própria política.
A judicialização das relações sociais, fenômeno que, por um
lado, expressa o agigantamento do Poder Judiciário no meio da sociedade e por
outro a incapacidade da sociedade em resolver seus próprios problemas, foi tema
reservado para análise no quarto capítulo. Iniciou-se, analisando o fenômeno da
judicialização das relações sociais como a pretensa resposta a necessidade de
melhora no acesso à justiça. Com esse objetivo, buscou-se ampliar o acesso da
população à prestação jurisdicional, com a criação dos juizados especiais. Porém,
pouco se preocupou com a formação dos operadores do direito. Em seguida,
analisou-se a conveniência de que o Poder Judiciário intervenha na
implementação de políticas públicas pelo Poder Executivo. Nesse aspecto, foram
discutidas recentes decisões dos Tribunais superiores que confirmam os novos
programas de políticas afirmativas, incluindo, por via legal, os negros em
universidades. Nesse mesmo capítulo, abordaram-se algumas conseqüências do
excesso de regulação normativa da sociedade, com a potencialização do conflito,
a criminalização de conflitos familiares e a intervenção do Estado em áreas da
esfera privada, como a educação dos filhos e os vínculos afetivos.
169
A transformação das esferas pública e privada, confluindo no
que Arendt denominou de esfera social, permitiu que as preocupações privadas
ganhassem feições públicas quando trazidas à visibilidade, ao passo que as
questões políticas perdessem seu espaço de debate. Da mesma forma, quando a
economia tornou-se preocupação do Estado, este alterou sua forma de ação para
aprisionar-se num modelo de gestão burocrática.
As dificuldades de definir os assuntos a serem tratados em
cada esfera, demonstram a realidade do fenômeno de massas, da constituição de
uma sociedade de consumidores e da completa alienação com as preocupações
públicas, como apontado por Arendt na sua construção teórica.
Diante da inexistência de um espaço público aberto, plural e
baseado no consenso, verifica-se o enfraquecimento do Republicanismo e do
próprio Parlamento. A economia no centro do debate da esfera pública, traz a
vitória do homem laborans, e o processo biológico torna-se paradigma da
organização social. Nesse modelo, a lei, que no sentido romano, tomado de
exemplo por Arendt, tinha o sentido fundacional de uma comunidade, numa
sociedade regida pelo animal laborans, perde sua necessidade de estabilidade e
deve adequar-se às necessidades humanas e suas constantes transformações no
ciclo de consumo.
Noutra perspectiva, o Executivo, num Estado com deveres
prestacionais, como é o caso do welfare state, traz o risco da criação de uma
sociedade clientelista e dependente das ações estatais sem qualquer
preocupação com o interesse comum. Neste caminho, diante da dificuldade do
Poder Executivo em satisfazer todas as necessidades dispostas na legislação e
nos próprios textos constitucionais, é que o Poder Judiciário surge como garante
das promessas não cumpridas da democracia.
Neste momento, inverte-se a relação ontológica entre a política
e o direito. No sentido apresentado por Arendt, a lei (direito) tinha a função de
garantir a estabilidade do debate político na medida em que estabelecia as regras
do jogo, e ao mesmo tempo, tornava-se objeto deste debate. Atualmente, a
política está subordinada ao direito, e sempre que não coerente com este, poderá
170
ser remetida à inaplicabilidade pelo Poder Judiciário. É expressão dessa inversão,
a possibilidade de que leis, erigidas de acordo com as regras legislativas, percam
sua validade e vigência quando contrastadas com os dispositivos legais
existentes, após análise judicial.
É inegável que essa contraposição da lei com o texto
constitucional para julgar sua validade no ordenamento jurídico, busca preservar
os valores que sustentam a ordem constitucional e, portanto, são muito caros à
sociedade. Porém, o poder em Arendt, somente pode advir do agir em concerto,
ou seja, do atuar em conjunto da sociedade que decide mudar as regras do jogo.
Assim, não perde sentido o questionamento quanto à validade das declarações
corriqueiras dos Tribunais Constitucionais em temas classicamente destinados ao
âmbito político.
Essa apropriação do Poder Judiciário de funções tipicamente
privadas e políticas, é reflexo do estabelecimento da esfera social, onde o que
deve ser trazido às luzes e o que deve ser mantido na privacidade não se torna
claramente distinto. Nesta perspectiva, não é possível definir com segurança o
que é afeto à política, e portanto, competência do Parlamento, e o que deveria ser
tratado pela própria sociedade.
Outra conclusão possível é que o esvaziamento do debate
parlamentar é conseqüência própria da ausência de preocupação com o interesse
comum da sociedade. O sistema partidário deformou-se e permitiu que o
Congresso expresse um sistema representativo de classes, e na maioria das
vezes, ligadas à economia, assunto antes pertencente a esfera privada.
O fracasso da Revolução Francesa, segundo Arendt, está
ligado ao fato de que a pauta de suas reivindicações esteve ligada à economia
como caminho de acesso à liberdade. O que pretendia o animal laborans era
superar sua submissão à necessidade com maior distribuição da economia.
Esses fatos demonstram a confusão na era moderna entre a política e o social. A
igualdade pretendida pelo homem da era moderna, não é mais aquela que o
colocava como pertencente à esfera pública. Não existe uma intenção cívica em
171
sua pretensão mas sim, o desejo de ter igualdade de acesso ao mercado de
consumo.
A conflituosidade advinda de uma sociedade de operários e
consumidores, e os problemas resultantes de um Estado vinculado à economia,
trouxeram a necessidade de uma esfera de decisão com respostas cnicas e
rápidas. A política, espaço onde prevalece a pluralidade e o consenso, não foi
capaz de responder à essa necessidade, e o Poder Judiciário, através de sua
força coercitiva passou a ser resposta firme e segura aos conflitos e as
necessidades da era moderna.
As próprias alterações nas constituições familiares, longe do
modelo patriarcal, exigiram uma construção jurisprudencial do direito de família
para os novos modelos monoparentais e homoafetivas, diante da inércia do Poder
Legislativo. Da mesma forma, restou indispensável uma resposta aos problemas
das relações de consumo.
A alta regulação dessas relações ocasionou o que se
denomina usualmente de inflação legislativa e traz uma nova característica da
norma jurídica relacionada a sua instabilidade e provisoriedade, ligadas ao próprio
processo de produção do animal laborans.
Esses o alguns dos questionamentos que rodeiam o
fenômeno recente da judicialização das relações sociais e políticas e que deverão
ser objeto de análise da produção teórica do direito. Não se visualizam ainda as
vantagens ou desvantagens do processo, capazes de justificar maior expansão
ou recrudescimento do Poder Judiciário da vida social e política. O certo é que
esse novo tratamento do poder, da política e das relações sociais representa
importantes alterações sofridas nas esferas pública e privada na era moderna,
que deverão trazer importantes debates na teoria do direito.
172
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