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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA –
PROPEC
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS – CEJURPS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ
PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ
ASPECTOS E ESPECTROS DO ACESSO À JUSTIÇA:
UM PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL EM BUSCA DE EFETIVAÇÃO
FERNANDO PAGANI MATTOS
Itajaí, maio de 2007
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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA –
PROPEC
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS – CEJURPS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ
PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ
ASPECTOS E OS ESPECTROS DO ACESSO À JUSTIÇA:
UM PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL EM BUSCA DE EFETIVAÇÃO
FERNANDO PAGANI MATTOS
Dissertação submetida à Universidade do
Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito à
obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Paulo de Tarso Brandão
Itajaí, maio de 2007
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12
TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte
ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do
Itajaí, a Coordenação do Mestrado em Ciência Jurídica, a Banca Examinadora e o
Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.
Itajaí, maio de 2007.
_______________________________
Fernando Pagani Mattos
Mestrando
13
Esta dissertação foi julgada APTA para a obtenção do título de Mestre em Ciência
Jurídica e aprovada, em sua forma final, pela Coordenação do Curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI
_______________________________________
Professor Doutor Paulo de Tarso Brandão
Orientador
_______________________________________
Professor Doutor Paulo Marcio Cruz
Coordenador Geral/CPCJ
Apresentada perante a Banca Examinadora composta pelos Professores:
_______________________________________
Doutor Paulo de Tarso Brandão (UNIVALI) – Presidente
_______________________________________
Doutor - Membro
_______________________________________
Doutor - Membro
Itajaí, maio de 2007.
14
“Graves são, portanto, os equívocos que precisam ser
combatidos. Precisamos romper com concepções
ingênuas ou cínicas, segundo as quais bastaria mudar o
texto da lei ou mesmo o da Constituição para serem
solucionados de uma vez por todas todos os problemas
de descumprimento do Direito. [...] Cabe, pois, considerar
como podem ser combatidos a descrença e o sentimento
de anomia com mais descrença e descompromisso. Essa
é uma indagação a ser feita por todos nós. Porque uma
nova Constituição ou mais uma nova emenda não vai
resolver os nossos problemas de saúde, de educação, de
habitação etc. Devemos promover a transformação das
práticas políticas e sociais no sentido do projeto de
construção permanente e aberta do Estado Democrático
de Direito entre nós. [...] É preciso, portanto, uma prática
política correspondente e de compromisso com esses
princípios, com essas diretrizes e direitos constitucionais,
a fim de se romper reflexivamente com toda uma tradição
anticonstitucional e antidemocrática de exclusão social e
política. A Constituição nem dispensa nem substitui a
política.
(Marcelo Cattoni)
15
RESUMO
A presente dissertação tem como objeto a efetivação do princípio constitucional do
acesso à justiça. O objetivo institucional do estudo se traduz pela obtenção do título
de Mestre em Ciência Jurídica pelo Programa de Mestrado em Ciência Jurídica
CPCJ/UNIVALI. O objetivo geral é caracterizado pela demonstração dos entraves
sociais que afetam o princípio constitucional do acesso à justiça, como elementos
que dificultam a concretização dos direitos e garantias fundamentais, previstos na
Constituição Federal, enquanto meio de construção do Estado Democrático de
Direito. Por sua vez, os objetivos específicos são: identificar historicamente o
instituto do acesso à justiça como princípio constitucional; apontar eventuais
entraves à efetivação do acesso à justiça na consolidação do Estado Democrático
de Direito; e destacar possíveis soluções para sua efetivação. Enquadra-se na linha
de pesquisa de principiologia e hermenêutica constitucional e a investigação faz
parte do grupo de pesquisa de hermenêutica e neo-constitucionalismo. A
metodologia aplicada na fase de investigação foi indutiva e na fase de elaboração do
relatório dedutiva. O trabalho foi organizado em três capítulos. O primeiro se
preocupou em desenvolver um ideário principiológico do acesso à justiça: um breve
histórico da visão constitucional. O segundo cuidou do acesso à justiça propriamente
dito, preocupando-se em destacar os entraves que se erguem diante da sua
efetivação. Por fim, o terceiro buscou a possibilidade de superação das barreiras
impostas por meio da análise das alternativas e dos entraves que se apresentam
atualmente. Como resultado da pesquisa constatou-se que o acesso à justiça é um
princípio previsto constitucionalmente e que se enquadra no ordenamento jurídico
pátrio como direito fundamental. Contudo, este princípio previsto constitucionalmente
não vem sendo devidamente respeitado em virtude de barreiras de ordem política,
social e jurídica que se erguem diante das vias de acesso à justiça. Restou
demonstrado que estes óbices podem ser superados diante de um
comprometimento político para tanto, desde que engajados com a realização dos
instrumentos jurídicos vigentes no atual ordenamento jurídico nacional. Nesse
contexto, a superação dos mencionados entraves ao acesso à justiça torna-se
possível com a adequada utilização dos instrumentos legais disponíveis e com
adoção de políticas públicas direcionadas ao tema.
PALAVRAS-CHAVE: Acesso à justiça. Poder Político. Princípio Constitucional
16
RIASSUNTO
La presente dissertazione ha come oggetto la messa in pratica del principio
costituzionale dell'accesso alla giustizia. L'obiettivo istituzionale di questo studio è
dovuto all'ottenimento del titolo Mestre in Scienze Giuridiche secondo il Programma
di Mestrado em Ciência Jurídica - CPCJ/UNIVALI (Centro di Scienze Giuridiche,
Università UNIVALI). L'obiettivo generale é caratterizzato dalla dimostrazione degli
ostacoli sociali che influiscono negativamente sul principio costituzionale dell'accesso
alla giustizia come elementi che rendono più difficile il concretizzarsi dei diritti e delle
garanzie fondamentali previsti nella Costituzione Federale, essendo mezzo di
costruzione dello Stato Democratico di Diritto. Quindi, gli obiettivi specifici sono: a)
identificare storicamente l’istituto d’accesso come principio costituzionale; b) additare
eventuali ostacoli alla facilità dell'accesso alla giustizia nella consolidazione dello
Stato Democratico di Diritto; c) evidenziare possibili soluzioni per la sua messa in
pratica. Rientra nella linea di ricerca della principiologia ed ermeneutica
costituzionale e l'indagine fa parte del gruppo di ricerca di ermeneutica e neo-
constituzionalismo. Il metodo applicato durante l'indagine è stato il metodo induttivo.
Il lavoro è stato organizzato in tre capitoli. Nel primo si è puntato sullo sviluppo di un
filone di idee di impostazione principiologica dell'accesso alla giustizia: un breve
escursus della visione costituzionale. Nel secondo capitolo sull'accesso alla giustizia
specificamente, preoccupandosi di far risaltare gli ostacoli che la separano dalla sua
effettiva messa in pratica; e, concludendo, nel terzo capitolo, si mira alla ricerca sulle
possibilità di superare gli ostacoli imposti tramite l'analisi delle alternative e delle
barriere dell'epoca attuale. Dal risultato della ricerca, si é constatato che l'accesso
alla giustizia è un principio previsto costituzionalmente e che si inquadra
nell'ordinamento giuridico patrio come diritto fondamentale. Tuttavia questo principio
previsto costituzionalmente non é debitamente rispettato in virtù degli ostacoli di
ordine politico, sociale e giuridico che bloccano le vie di accesso alla giustizia. Si è
potuto dimostrare che questi intralci possono essere superati tenendo presente un
impegno politico che vada di pari passo con gli strumenti giuridici vigenti in congiunto
con l'ordinamento giuridico nazionale. Così essendo, la superabilità di questi ostacoli,
per ciò che riguarda l'accesso alla giustizia diventa possibile tramite una adeguata
utilizzazione degli strumenti disponibili e le opportune adozioni di politiche pubbliche.
Parole-chiavi: Accesso alla giustizia. Potere Politico. Principio Costituzionale.
17
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................10
CAPÍTULO 1 - IDEÁRIO PRINCIPIOLÓGICO DO ACESSO À JUSTIÇA:
UM BREVE HISTÓRICO DAS ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS E
ESTATAIS.............................................................................................13
1.1 Poder Político dos Antigos...............................................................15
1.2 Poder Político Medieval...................................................................23
1.3 Poder Político dos Modernos...........................................................29
1.3.1 A Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem
como marcos do Estado Democrático de Direito...................................37
1.4 Uma mudança de paradigma: a Constituição do México (1917) e
a Constituição de Weimar (1919) ..........................................................44
1.5 A experiência nacional.....................................................................50
CAPÍTULO 2 - DO ACESSO À JUSTIÇA ..............................................59
2.1 Panorama geral do conteúdo...........................................................61
2.2 O princípio constitucional do acesso à justiça..................................67
2.3 O acesso à justiça como direito fundamental...................................70
2.4 Os entraves à efetivação do acesso à justiça..................................76
CAPÍTULO 3 - PROPOSTAS DE SUPERAÇÃO DAS BARREIRAS
IDENTIFICADAS ...................................................................................92
3.1 Carência de recursos econômicos...................................................93
3.1.1 Da Assistência Jurídica ................................................................93
3.1.2 Da Defensoria Pública..................................................................97
3.2 As “chicanas” processuais.............................................................103
18
3.3 A descrença da sociedade no judiciário.........................................111
3.4 Capacidade jurídica pessoal..........................................................114
3.5 As condições da ação....................................................................118
3.6 O julgamento antecipado da lide ...................................................125
3.7 A conscientização em relação aos direitos difusos e coletivos ......128
3.8 Aspectos simbólicos, psicológicos e ideológicos atrelados à noção
de justiça e poder judiciário .................................................................131
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................134
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS...........................................139
19
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como tema de pesquisa a questão da
efetivação do Princípio Constitucional do Acesso à Justiça.
O Acesso à Justiça é um Princípio Constitucional por meio do
qual os direitos se tornam efetivos, no entanto, não tem sido respeitado na forma
exigida conforme disposto no ordenamento jurídico brasileiro, em que pese a
vigência, no país, do Estado Democrático de Direito.
Diante dessa realidade, o estudo objetiva demonstrar os
entraves que afetam o Princípio Constitucional do Acesso à Justiça, como elementos
que dificultam a concretização dos direitos e garantias fundamentais, previstos na
Constituição Federal, enquanto meio de construção de uma democracia plena. Da
mesma forma, pretende vislumbrar possíveis soluções para o problema.
Consciente de que o termo Acesso à Justiça pode ser
reconhecido hoje como condição fundamental de eficiência e validade de um
sistema jurídico que apresente a pretensão de garantir direitos, e que a exclusão
jurídica é um mal que afasta o desenvolvimento e o cumprimento das promessas do
Estado Democrático de Direito formulou-se o seguinte problema de pesquisa:
Questões de cunho político-social podem constituir entraves ao efetivo Acesso à
Justiça? Em caso positivo, possibilidade de superação desses eventuais
obstáculos com base no instrumental jurídico existente?
Com base nessa problemática foram então levantadas as
seguintes hipóteses:
O Acesso à Justiça é um Princípio Constitucional ainda
não totalmente observado no ordenamento jurídico brasileiro.
A sua inobservância se dá em virtude de alguns fatores
obstaculizadores de natureza político-social, bem como fático-jurídicos. Entre esses
obstáculos destacam-se a carência de recursos econômicos por grande parte da
população; a conseqüente justiça gratuita de qualidade; o desconhecimento por
parte do cidadão dos seus direitos mais básicos; problemas estruturais e históricos
do poder judiciário. Além desses, outros elementos, de maneira idêntica,
20
representam entraves ao Acesso à Justiça, tais como fatores simbólicos,
psicológicos e ideológicos atrelados à idéia de justiça e de Poder Judiciário.
Todos esses óbices podem ser superados diante de um
comprometimento político para tanto, desde que engajados com a realização dos
instrumentos jurídicos vigentes no atual ordenamento jurídico nacional.
A superação dos entraves ao Acesso à Justiça analisados
torna-se possível com a adequada utilização dos instrumentos legais disponíveis e
com a adoção de políticas públicas específicas.
A presente dissertação se enquadra na linha de pesquisa de
principiologia e hermenêutica constitucional, empregando metodologicamente na
fase de investigação o método indutivo e durante o relatório no método dedutivo.
Por fim, as fases da pesquisa foram permeadas pelas técnicas
do referente, da categoria
1
, do conceito operacional, bem como da pesquisa
bibliográfica.
A importância do presente estudo se traduz na pretensão de
firmar a Constituição como elemento regulador das relações entre direito e poder, de
forma a demonstrar a função constitucional de construir e consolidar uma unidade
jurídica capaz de formar e construir um Estado fundado sobre as bases
democráticas de direito. Nesse sentido, o sistema jurídico brasileiro, que apresenta
clara conotação judicial patrimonial e demandista, vê-se diante de inúmeros fatores
que maculam a eficácia dos direitos expressos na Constituição, em decorrência de
obstáculos limitantes ao Acesso à Justiça.
Dessa forma, a relevância do tema reside na tentativa de
contornar as barreiras que dificultam o Acesso à Justiça com o fim de proporcionar o
acesso do cidadão ao pleno gozo de seu patrimônio jurídico.
Para apresentar os resultados da investigação então
empreendida entendeu-se necessário estruturar o presente relatório de pesquisa em
três capítulos.
1
As categorias serão apresentadas ao longo do texto e os respectivos conceitos operacionais
destacados à medida que o tema é desenvolvido. Por tal motivo o rol não foi apresentado
separadamente.
21
O primeiro capítulo traz um ideário principiológico do Acesso à
Justiça, traduzido por um breve histórico das organizações políticas e estatais ao
longo da história da humanidade, tendo como marco inicial as civilizações greco-
romanas. Em uma análise secular do instituto Constituição de início considerado
simplesmente como Poder Político - são abordados os diversos significados ao
longo dos tempos, em correlação com a história dos fatos políticos, do poder e de
questões sociais. Assim, chega-se ao surgimento do Estado e à consolidação da
Constituição, a partir da Idade Moderna, como norma limitadora dos poderes e
garantia de direitos. Em conseqüência, aponta-se para o surgimento do Estado
Democrático de Direito como um processo de construção permanente e aberto,
surgido em decorrência da Declaração Universal dos Direitos do Homem, contributo
para a mudança do paradigma constitucional promovido pelas Constituições do
México e de Weimar na primeira década do século passado. Ao final aborda-se a
experiência constitucional nacional com o objetivo de aproximar a problemática
levantada da realidade brasileira.
O segundo capítulo aproxima-se com mais afinco do tema
proposto, quando então se desenvolve o tema do Acesso à Justiça, por meio de um
panorama geral do conteúdo que parte das conceituações pertinentes e aponta o
seu papel no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, evidencia-se o Acesso à
Justiça como Princípio Constitucionalmente previsto e como um importante direito
fundamental capaz de assegurar a eficácia de todos os demais direitos e garantias.
Da mesma forma, apresentam-se alguns dos entraves que se erguem diante das
vias que dão Acesso à Justiça para, no capítulo seqüente, analisá-los de maneira
mais técnica e cuidadosa.
O terceiro e último capítulo se dedica a analisar os entraves
identificados anteriormente, ora apontando alternativas, ora evidenciando tão-
somente o problema de maneira crítica e consciente, como forma de possibilitar aos
protagonistas do cenário jurídico e político a discussão sobre a evidente exclusão
jurídica que aflige o país. Entre outros fatores obstaculizadores serão analisados: a
carência de recursos econômicos, fazendo-se um paralelo entre a Defensoria
Pública e a Defensoria Dativa; os meios jurídicos destinados exclusivamente à
procrastinação processual; as condições da ação; e a conscientização em relação
aos direitos difusos.
22
CAPÍTULO 1
IDEÁRIO PRINCIPIOLÓGICO DO ACESSO À JUSTIÇA: UM
BREVE HISTÓRICO DAS ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS E ESTATAIS
O contexto histórico apresentado neste capítulo tem por
escopo ilustrar, de maneira forçosamente sumária, as diversas épocas da evolução
constitucional enquanto modalidade de organização do Poder Político
percorrendo os seus diversos significados ao longo dos séculos. Para tanto, se faz
necessário considerar, mesmo que tangencialmente, a história do poder e dos fatos
políticos e sociais.
Cabe destacar, contudo, que a adoção, no trabalho, do termo
Poder Político em substituição ao termo Constituição não é gratuita, mas decorre da
evolução da dimensão de validade do Direito no passar dos tempos, imerso no
consciente jurídico do ser humano, e também do conflito com os demais imperativos
funcionais da vida em conjunto.
Assim, o termo Constituição como manifestação de poder de
um povo soberano e como norma limitadora dos poderes e garantias dos direitos
será empregado a partir da Idade Moderna, em cujo período a reflexão
constitucional se consolida por meio de uma doutrina que se transforma em
disciplina dedicada a estudar a Constituição como norma jurídica escrita, dotada de
características específicas.
2
Dessa forma, a intenção de apresentar as transformações das
organizações políticas estatais ao longo dos séculos é, pois, apontar a maneira com
a qual suas repercussões no mundo jurídico afetam o Acesso à Justiça e, por
conseqüência, a ligação da estrutura do Estado com a sociedade política no que
concerne à efetivação dos direitos e garantias dos seres humanos. Da mesma
maneira, pretende-se grifar o surgimento da noção e da evolução dessa idéia.
Assim, partindo-se do ideário do Princípio Constitucional do Acesso à Justiça, bem
como de uma demonstração histórica que pretende firmar a Constituição como
elemento regulador das relações entre o Direito e o poder, procura-se demonstrar a
2
FIORAVANTI, Maurizio. Constituizione. Bologna: II Molino, 2005. p. 7.
23
função constitucional de construir e consolidar uma unidade jurídica capaz de formar
e arquitetar um Estado fundado sobre as bases democráticas de Direito. Ademais, o
interesse em estudar as modalidades de organização política desde os tempos
antigos visa, resumidamente, proporcionar a capacidade de estabelecer uma
correlação adequada e consciente entre a identificação da atual problemática que
envolve as questões atreladas ao Acesso à Justiça e a possibilidade de apontar para
soluções possíveis e concretizáveis.
Brandão
3
, ao afirmar que “[...] é preciso contextualizar os
institutos para uma perfeita compreensão sobre as causas que determinam a sua
existência [...]” justifica a necessidade de apresentar tal resumo histórico introdutório,
eis que configura uma forma de analisar as transformações sofridas pelas
organizações sociais em virtude da contínua mudança de paradigmas que envolve o
processo de evolução social e a conseqüente urgência de adequação das
operações cotidianas do operador do Direito às pretensões sociais. Isso se faz, com
o fito de otimizar a compreensão das instituições estabelecidas nos tempos atuais,
em especial, no que concerne à problemática levantada para a elaboração do
presente estudo.
Diante do que foi abordado até então nota-se a importância de
analisar as mudanças das Constituições diante da idéia de uma união construtiva
entre o processo histórico e o direito constitucional. Cria-se, assim, uma
oportunidade de compreender os problemas de ordem social que afetam
direitamente as inter-relações dos membros da comunidade civil objeto do
presente estudo. O fato é que a Constituição, não somente por seus conteúdos, mas
também por suas concepções, deve estar plenamente inserida na mutabilidade da
história. O mesmo vale para o direito constitucional, sempre que se esteja de acordo
em incluí-lo entre as práticas de todas as ciências jurídicas.
4
3
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações Constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 19.
4
ZAGREBELSKI, Gustavo. Historia e Constituición. Tradución de Miguel Carbonell. Madrid: Trotta,
2005. p. 28.
24
1.1 Poder Político dos Antigos
Uma primeira lição que se pode extrair da análise da tradição
jurídica ocidental é que desde a Idade Antiga houve a necessidade de uma ordem
política caracterizada por uma doutrina própria, fundamentada sobre condições
mínimas indispensáveis para configurar uma ordem capaz de sustentar-se e
desenvolver-se no tempo.
5
Neste momento, importante remeter-se à segunda metade do
século IV a.C., um período de decadência na política grega que provém da
transformação da polis. Referida transformação é marcada fortemente pelo conflito
entre pobres e ricos, decorrente da substituição do exercício dos direitos políticos da
cidadania caracterizados por um ideal de coletividade e por valores da economia
provenientes do desenvolvimento comercial. Com esse novo paradigma tornou-se
necessária a busca por uma forma de governo capaz de manter unida a comunidade
política e permitir o seu desenvolvimento.
Nesse norte, ao estudar o atual pensamento político herdeiro
da tradição européia é importante considerar a contribuição da civilização grega
clássica, uma vez que o agregado de invenções institucionais deste período em
muito influencia a atual forma de organização político-social. Durante o
mencionado contexto de desagregação social instaurado, por volta de 600 a.C.,
foram enunciados princípios norteadores das relações dos membros da coletividade,
como uma espécie de legislação fundamental por todos reconhecida, capaz de
determinar o grau de comprometimento e participação de cada um nas decisões que
envolvessem a coletividade.
6
É o surgimento da “lei” como instituto vinculador, único
elemento suficiente para comandar o homem grego.
Na interpretação de Châtelet:
A Lei, como princípio de organização política e social concebida
como texto elaborado por um ou mais homens guiados pela reflexão,
aceita pelos que serão objeto de sua aplicação, alvo de um respeito
que não exclui modificações minuciosamente controladas; essa é
5
FIORAVANTI, Maurizio. Constituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 11.
6
CHÀTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias
políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 13.
25
provavelmente a invenção política mais notória da Grécia Clássica; é
ela que empresta sua alma à Cidade [...].
7
Entretanto, para que seja possível a compreensão do que
significa a busca dos povos antigos por um Poder Político capaz de otimizar a forma
de governo, é necessário fazer uma abstenção dos ideais e conceitos do
constitucionalismo moderno, uma vez que a constituição da forma de governo da
Grécia Antiga em muito diverge do que é conhecido nos dias atuais. Isso porque, na
forma de governo característica daquela época não estavam presentes elementos
capazes de pressupor soberania
8
ou Estado. É o que leciona Fioravanti:
O mundo antigo, como em qualquer outra época histórica, teve seu
próprio modo, historicamente determinado, de expressar a
necessidade de uma certa ordem política [...]. Para compreender o
significado da busca pelos antigos por uma forma de governo
possível para manter unida e capaz de desenvolver a comunidade
política, é necessário [...] libertar-se de todos os condicionamentos
provenientes do constitucionalismo moderno. [...] Para nos
aproximarmos da compreensão do mundo antigo, é necessário nos
liberarmos destas formações, destas características e peculiaridades
da Idade Moderna [Tradução nossa].
9
E traços claramente democráticos de governo surgem em
Atenas nos anos de 500 a.C. e de 460 a 430 a.C. Nesse sentido:
Concretamente, a forma democrática de governo significava: primado
absoluto da assembléia de todos os cidadãos atenienses na tomada
de decisões de relevância coletiva; direito de palavra e de elaborar
propostas na assembléia para cada cidadão sem nenhuma espécie
de discriminação; sorteio dos cargos públicos e das magistraturas,
nelas compreendidos os tribunais, sob o pressuposto de igualdade
absoluta entre os cidadãos, de modo a possibilitar a todos a chance
7
CHÀTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias
políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 14.
8
Cf. GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A.M. Hespanha e L.M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 16, soberania começa a surgir
enquanto princípio somente nos séculos XVII e XVIII na França e Inglaterra e eleva a lei à condição
de fonte de direito, como expressão da vontade da nação soberana.
9
FIORAVENTI, Maurizio. Constituición. De la Antigûedad a nuestros dias. Traducción de Manuel
Martinez Neria. Madrid: Trotta, 2001. p 15-17. El mundo antíguo, como cualquier outra época
historica, ha tenido su propio modo, historicamente determinado, de expressar la necessidad de un
cierto ordem politica. [...] para comprender el signficado de esta búsqueda por parte de los antiguos
de una forma de gobierno ideal, o de la mejor forma de gobierno possible, para mantener unida y
desarrollar la comunidad politica, es necesario [...] liberarse de todo condicionamento proveniente del
constitucionalismo moderno. […] Para acercarnos a la comprensión del mundo antiguo, necesitamos
liberarmos de estas formaciones, de estas dicisiones características y peculiares de la Edad
Moderna.”
26
de ascender aos mais altos cargos; alternância anual dos
governantes, de modo a envolver nas responsabilidades do governo
os elementos mais conscientes da cidadania; obrigatoriedade de
prestação de contas públicas dos governantes. Tudo isto era
desenvolvido segundo o binômio democracia-isonomia, submetendo
assim a organização da política a uma ordem fundada sob o princípio
máximo da igualdade [Tradução nossa].
10
Os cidadãos atenienses participavam diretamente da tomada
de decisões de relevância coletiva, pois tinham o direito de falar e propor dentro da
assembléia, sem nenhuma espécie de discriminação. A propósito, como cidadão
ateniense entende-se todo homem livre, detentor de propriedade. Os estrangeiros
livres, as mulheres e os escravos, entre outros, eram excluídos do processo político.
Os cargos públicos, incluindo os da magistratura, eram sorteados entre os cidadãos
para mandatos periódicos e anualmente os seus ocupantes submetiam-se à
prestação de contas, que eram analisadas em praça pública. Essa forma de
organização política era estribada no princípio da igualdade dos cidadãos, sem
discriminações sociais ou ideológicas. Assim, a democracia grega consubstanciou-
se com o procedimento adotado na organização da política pública, de forma que,
mesmo sem a separação dos poderes das democracias hodiernas, as funções se
distinguiam de acordo com o grau de participação popular. Essa foi, pois, a época
clássica da democracia ateniense, de 580 a 338 a.C.
11
Nesse contexto de governo democrático surge a Politéia
12
, que
vem sendo traduzida atualmente como Constituição. Contudo, deve-se analisar tal
analogia com cautela, uma vez que não é possível traçar paralelos entre a cultura e
tradição dos tempos antigos com a da atualidade. Por isso, neste trabalho aborda-se
10
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 13. “In concreto, forma
democratica di governo significava: primato assoluto della assemblea di tutti i cittadini ateniesi nella
assunzione delle decisioni de rilevanza colletiva; diritto di parola e di proposta entro l’assemblea
attribuito a ogni cittadino senza discriminazione alcuna; estrazione a sorte delle cariche pubbliche e
delle magistriture, compresi i tribunali, sul pressupposto, ancora una volta, di un’uguaglianza assoluta
tra i cittadini, tale da farli ritenere tutti parimenti digni di accedere anche alle più alte cariche;
alternanza annuale dei governanti, tale da coninvolgere nelle responsabilitá di governo la parte p
consistente possibilie della cittadiananza; obbligo di rendiconto pubblico da parte degli stessi
governanti. Tutto questo si era svolto secondo il binomio demokratía-isonomía, sospingendo consì
l’organizzazione della politica verso um ordine fondato sul principio primo della uguaglianza.”
11
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 13.
12
FIORAVENTI, Maurizio. Constituición. De la Antigûedad a nuestros dias. Traducción de Manuel
Martinez Neria. Madrid: Trotta, 2001. p. 19: “[...] politeia no es más que lo instrumento conceptual del
que se sirve el pensamiento politico del siglo IV para enuclear su problema fundamental: la búsqueda
de una forma de gobierno adecuada al presente, tal que refurce la unidad de la polis, amenazada y
en crisis desde distintos.”
27
a Politéia como um elemento do pensamento político, construída de maneira
pacífica, harmônica e plural, compondo uma espécie de poder legitimante capaz de
manter unida a Polis. A Politéia resulta de uma progressiva composição de
pluralidades, forças e tendências.
13
De acordo com a definição de Fioravanti
14
:
Em uma palavra, Politéia nada mais é do que um instrumento
conceitual do qual se serve o pensamento político do século IV, com
o intuito de criar um núcleo para o seu problema fundamental, que é
aquele da busca por uma forma de governo adequada ao presente,
capaz de reforçar a unidade da polis, que se apresentava submersa
em crises. No âmbito daquele pensamento, esta busca se satisfaz
em torno de uma palavra que é capaz de exprimir toda sua
necessidade, que é exatamente politéia. Com isso se faz necessário
destacar a necessidade de penetrar na forma da união política, de
modo a compreender isso que caracteriza profundamente a polis, o
que exatamente a mantém unida [Tradução nossa].
Com esse mesmo senso de organização destinado a configurar
um critério de ordem dos acontecimentos sociais e políticos de um período mais à
frente, apresenta-se a res publica da Roma Ciceroniana. A res publica dessa época
também não pode ser classificada como Constituição nos termos que atualmente é
concebida, eis que fora um elemento de organização constantemente invocado pelo
seu povo, uma exigência de satisfação enquanto ideal ético e político a ser seguido,
mas nunca como norma suficiente para separar poderes e garantir direitos.
15
Ou
seja, um “grande projeto de conciliação social e política” [Tradução nossa].
16
Ambas as civilizações grega e romana costumam ser
estudadas simultaneamente em virtude da coincidência problemática enfrentada por
seus povos e pela similitude de soluções e reflexões, o que permite entender com
certa clareza o seu espírito constitucional. Na lição de Fioravanti:
13
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 17
14
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 14. In una parola, politèia è
nient` altro che lo strumento concettuale di cui si serve il pensiero político del IV secolo, al fine di
enucleare il suo problema fondamentale, che è quello della ricerca di uma forma di governo adeguata
al presente, tale da rafforzare l`unità della polis, da più parti minacciata e messa in crisi. Nell` âmbito
di quel pensiero, questa ricerca ora uma parola che la anima, che le consente di esprimersi, che è
appunto politèia. Con essa s`intende sottolineare la necessita di penetrare nella forma della unione
política, in modo da cogliere ciò che caratterizza nel profondo da polis, che appunto la tiene unita.”
15
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 24.
16
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 24. […] grande progetto di
conciliazione sociale e politica”.
28
A extraordinária coincidência de problemáticas, e também de
soluções, entre a reflexão política grega do século IV e romana
ciceroniana, nos permite agora individualizar com uma certa precisão
as características da constituição dos antigos. Não, por óbvio, da
constituição que efetivamente existiu, mas daquela constituição que
é continuamente invocada pelos antigos como politéia ou como res
publica, ou seja, como critério de ordem e medida das árduas
relações políticas e sociais de seu tempo [Tradução nossa].
17
A Roma conquistadora, mesmo no ápice de seu despotismo
imperial, jamais deixou de se considerar republicana e se caracterizava por um
sistema que mesclava as melhores vantagens da monarquia, da aristocracia e da
democracia como meio de preservar sua própria existência. Da mesma maneira, a
cada novo povo conquistado era concedido o direito de usufruir das garantias
oferecidas pelo direito romano, um ordenamento cujo objeto inicial era a família,
representado pelo pater familias. No período posterior, porém, as grandes
conquistas tornaram-se o arcabouço dos regulamentos da vida social ao definir os
deveres e liberdades de cada um.
Com efeito, o povo romano antigo é uma importante referência
para a cultura jurídica contemporânea, eis que data daquele período a experiência
da organização de um sistema jurídico exemplar. Com o esforço de seus
jurisconsultos essencial para o desenvolvimento da ciência jurídica os romanos
foram os pioneiros na elaboração de uma técnica jurídica determinada a analisar e
formular regras e instituições jurídicas nos idos séculos II e III.
18
A propósito, a expressão “direito romano” mencionada neste
breve aresto faz referência aos direitos da República e do Império, entendidos como
períodos diversos e consecutivos da evolução daquele povo.
Sobre a importância da contribuição romana ao
constitucionalismo atual, McIlwain leciona:
17
FIORAVENTI, Maurizio. Constituición. De la Antigûedad a nuestros dias. Traducción de Manuel
Martinez Neria. Madrid: Trotta, 2001. p. 29 “La extraordinaria conincidencia de problematicas, y
también de soluciones, entre la reflexión politica griega del siglo IV y la romana ciceroneana nos
permite ahora individuar con cierta precisión los caracteres de la constitución de los antiguos. No ya,
como es obvio, de la constitución que existió efectivamente, sino de aquella constitución que
constinuamente es invocada por los antiguos como politeia o como res publica, es decir, como criterio
de orden y de medida de las arduas relaciones politicas y sociales de su tiempo.”
18
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 4. ed. 2003. p.18.
29
Se quisermos compreender a medula do espírito do
constitucionalismo romano, é necessário, acima de tudo, analisar a
natureza da lex. Segundo um dos historiadores modernos mais
competentes no direito romano, ‘se pode dizer que os romanos
estabeleceram para sempre as categorias do pensamento jurídico’, e
sem dúvida uma de suas maiores e definitivas contribuições ao
constitucionalismo foi a distinção que estabeleceram, de maneira
mais clara do que se havia até então, [...] entre o direito público e o
direito privado, uma distinção que, até os dias de hoje, está por trás
de toda a história de nossas garantias jurídicas dos direitos do
indivíduo frente a invasão do Estado. Porém podemos perder a
verdadeira natureza desta distinção se não cuidarmos da estreita
relação que existia entre o direito romano privado e o público. Ambos
eram jus, e estavam animados pelo mesmo espírito. [...] Suas
essências são as mesmas; suas diferenças residem no âmbito de
sua incidência mais que em sua natureza [Tradução nossa].
19
No entanto, vale destacar que nenhum estudo sobre o
constitucionalismo romano será adequado se não levar em consideração a
tendência autocrática de suas instituições, inclusive durante o período republicano.
Para uma melhor visualização da presente abordagem é
importante mencionar que a longa história de Roma pode ser dividida em três
períodos. No entender de Gilissen
20
, tais períodos correspondem a três regimes
políticos distintos: o primeiro conhecido por Realeza até 509 a.C. –; o segundo
como Republica de 509 a.C. até 27 a.C. –; e o terceiro o do Império, dividido em
Alto Império Romano, até 284 d.C., e Baixo Império Romano em 566 da Era Cristã.
Essa divisão política, contudo, não coincide com a evolução do respectivo direito,
que pode ser organizado da seguinte maneira: período antigo, com um direito
arcaico, baseado em uma sociedade rural de solidariedade clânica, que durou até o
19
McILWAIN, Charles Howard. Constitucionalismo antiguo y moderno. Traducción de Juan José
Solozálbal Echavarría. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1992. p. 68. “Si se quiere
entender Ia médula del espirito del constituciunalismo romano, es necesario, por encima de todo,
analizar Ia naturaleza de Ia lex. Según uno de los historiadores modernos más competentes del
derecho romano, puede decirse que los romanos estableceron para siempre Ias categorias del
pensamiento juridico, y sin duda una de sus contribudones definitivas más grandes al
constitucionalismo ha sido Ia distinción que estableceron, de modo más claro que se habia hecho
hasta entones, o que se iba a hacer hasta tiempo despues, entre el ius publicum y el ius privatum,
una distinción que, hasta el dia de hoy, está detrás de toda Ia historia de nuestras garantias jurídicas
de los derechos del individuo frente a Ia invasión del estado. Pero podemos perder Ia verdadera
naturaleza de esta distinción si prescindimos de Ia estrecha relación que existia entonces entre el
derecho romano privadu y el público. Ambos era jus, y estaban animados por el mismo espiritu. […]
Su esencia es Ia misma; su diferencia reside en el ámbito de su incidencia más que en su
naturaleza.”
20
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2003. p. 81.
30
século II a.C.; período clássico, com um direito evoluído, individualista e possuidor
de uma ciência jurídica coerente e racional, que pode ser estabelecido entre 150
a.C. a 284 d.C.; e o período do Baixo Império, com um direito proveniente das
crises políticas, econômicas e religiosas do século III, marcado fortemente pelo
absolutismo imperial e pelo cristianismo.
Em sua origem, a exemplo da Grécia, Roma foi dominada por
organizações clânicas de grandes famílias, as chamadas gentes, ambiente no qual o
poder e a autoridade do chefe familiar eram quase ilimitados. O período foi marcado
por uma solidariedade ativa e passiva que ligava todos os membros da comunidade.
Às margens da organização das gentes viviam os plebeus, que eram estrangeiros
comerciantes e agricultores que ansiavam por igualdade política, religiosa e social.
Como todo direito arcaico, o direito romano desse período é essencialmente
consuetudinário, fundado no costume de cada clã, sobretudo, no que concerne ao
casamento e ao nome. Importante destacar aqui que o direito e a religião ainda não
eram diferenciados. Como a escrita era pouco conhecida, a atividade legislativa era
nula até o início da república, período em que a lei passou a concorrer com o
costume como fonte do direito. A atividade legislativa era iniciada pelos magistrados
superiores, que propunham o texto e este era submetido a uma espécie de processo
legislativo. Ainda, no período arcaico, merece assento a Lei das XII Tábuas, que foi
um dos fundamentos do ius civile. Referida lei teria sido redigida por solicitação dos
plebeus que, por ignorarem os costumes vigentes na cidade, questionavam as
interpretações dadas pelos magistrados dos patrícios. O texto, em rigor,
caracterizava um conjunto de leis revelador de um certo grau de evolução do direito
público e privado. O seu conteúdo derroga a solidariedade familiar, mas mantém o
poder quase ilimitado do chefe da família. Ainda, institui a igualdade jurídica, proíbe
as guerras privadas, cria uma espécie de processo penal e torna a terra alienável.
Vale destacar que a própria existência da Lei das XII Tábuas foi posta em dúvida por
alguns historiadores do direito, uma vez que o texto original desapareceu por
ocasião da invasão de Roma pelos Gauleses em 390 d.C.
21
Por sua vez, o período clássico do direito romano, que se
estende do século II a.C. ao fim do culo III d.C., foi marcado pela progressiva
submissão dos territórios mediterrâneos à Roma, bem como pela sua abertura às
21
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2003. p. 80-86.
31
influências grega e egípcia. Trata-se de um período de gigantesca produção de
textos e regras jurídicos, cujas fontes continuam sendo o costume e a lei, e esta,
vale dizer, vem ganhando cada vez mais destaque, tendendo a suplantar o costume.
Durante o Alto Império, o direito privado apresenta-se como um sistema altamente
individualista em contraposição à constante diminuição das liberdades individuais
dos cidadãos em virtude da submissão absoluta ao imperador.
22
No que toca ao direito do Baixo Império, percebe-se uma
grande decadência política, intelectual e de regressão econômica, além de uma
transição do centro vital do Império de Roma para Constantinopla após a queda
daquele centro em 476 d.C. A partir dessa data permanece apenas o Império do
Oriente.
23
Fato importante a considerar é que, como bem salienta Fustel
de Coulanges
24
, o homem desses tempos antigos, tanto o grego como o romano,
não conheceu as liberdades individuais. Isso porque a cidade era fundada na
religião e constituída como igreja. Em todos os âmbitos, inclusive o jurídico, havia a
influência de entidades religiosas. O homem pertencia à cidade e a ela estava
submetido em todos os aspectos, a tal ponto que seu corpo também pertencia ao
“Estado” e era voltado à defesa deste.
Como se pôde perceber, as formas jurídicas de organização do
Poder Político antigo paulatinamente se modificavam em virtude de crises e
revoluções, mas a essência da sua natureza religiosa, ao mesmo tempo dominante,
permanecia intacta.
O pensamento de Fustel de Coulanges
25
bem conclui e resume
esse tal conteúdo histórico:
Vimos nas páginas precedentes como o regime municipal foi
constituído entre os antigos. Uma religião antiqüíssima fundara
primeiramente a família, e depois a cidade; estabelecera a princípio o
direito doméstico e o governo da gens, em seguida as leis civis e o
22
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2003.
23
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2003.
24
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A Cidade Antiga: estudos sobre o oculto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bibi. 3. ed. Bauru: Edipro. 2001. p. 191
.
25
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A Cidade Antiga: estudos sobre o oculto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bibi.
3. ed.
Bauru: Edipro. 2001. p. 287
.
32
governo municipal. O Estado estreitamente ligado à religião; ele se
originava dela e se confundia com ela. É por isso que na cidade
primitiva todas as instituições políticas foram instituições religiosas;
as festas, cerimônias do culto; as leis, fórmulas sagradas; os reis e
os magistrados, sacerdotes. É por isso ainda que a liberdade
individual fora desconhecida, não tendo podido o homem subtrair sua
própria consciência da onipotência da cidade. É por isso, enfim, que
o Estado ficou circunscrito aos limites de uma urbe e não pôde
jamais ultrapassar o recinto que seus deuses nacionais lhe haviam
traçado originariamente. Cada cidade possuía não apenas sua
independência política, como também seu culto e seu código. A
religião, o direito, o governo, tudo era municipal. A cidade era a única
força viva nada acima dela, nada abaixo dela; nem unidade
nacional nem liberdade individual.
Nesta breve análise acerca do Poder Político grego e romano
constata-se que, muito embora diversas nomenclaturas tenham sido ofertadas às
formas de organização política daqueles povos, o Acesso à Justiça era restrito a
poucos cidadãos que efetivamente participavam do processo de organização social.
Em conseqüência, aos olhos da democracia dos tempos atuais, um grande número
de pessoas era lançado às margens da arena cidadã, caracterizando um movimento
de exclusão geradora de tensões e conflitos. Nesse cenário de o-participação
surgem movimentos de mudança e revoluções em defesa de uma constante
adequação da ordem jurídica às aspirações e ao que fora socialmente estabelecido.
Contudo, como é cediço, as crises e os conflitos são as
contribuições que, resultado de um período de descontentamento e espoliações,
permitem a abertura de um processo de ruptura com o estabelecido e autorizam a
passagem para uma nova forma de organização política. Foi o que ocorreu com os
dois povos aqui analisados, que legaram, com suas bases de instituições comuns e
revoluções idênticas
26
, a “gênese do pensamento político”
27
.
1.2 Poder Político Medieval
Não é demais reafirmar que a adoção do termo Poder Político
em substituição ao termo Constituição deve-se a uma tentativa de ajuste semântico,
26
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A Cidade Antiga: estudos sobre o oculto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bibi. 3. ed. Bauru: Edipro. 2001. p. 07.
27
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A Cidade Antiga: estudos sobre o oculto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Edson Bibi. 3. ed. Bauru: Edipro. 2001. p. 07.
33
no sentido de adequar a nomenclatura das instituições jurídico-políticas em relação
ao tempo e espaço. Eis o motivo, reitera-se, da preferência em utilizar o nome Poder
Político nesse período da evolução humana, já que a Constituição é, como se
concebe hoje, fenômeno característico de outro momento histórico e que será
oportunamente abordado. Por ora, deve-se conceber Poder Político como a “eficácia
de uma ordem coativa que se reconhece como Direito”
28
.
Tradicionalmente, ao se falar em medievo, exsurge
automaticamente a idéia de uma organização social teocrática tatuada pelo império
da Igreja, na qual o poder descende de Deus, direta ou indiretamente, de acordo
com um escalonamento hierarquicamente organizado. Essa idéia torna fácil a
comparação com a organização social dos antigos muito embora tenham também
experimentado vivências tirânicas e/ou oligárquicas – em vista das experiências
políticas participativas fundadas na concessão ascendente do poder, como nos
casos da polis grega e da res publica romana.
Em perfeita síntese, Fioravanti
29
descreve:
Existe uma idéia tradicional do medievo, que atualmente não se pode
mais aceitar como correta, mas que, todavia ainda está presente. É a
idéia do medievo teocrático, dominado por presenças universalísticas
do império da Igreja, na qual a autoridade política legítima é aquela
direta ou indiretamente enviada por Deus: uma época na qual todo o
poder desce do alto, segundo uma escala hierarquicamente
organizada. Sob este enfoque, a contraposição com a constituição
dos antigos torna-se facílima. Os antigos efetivamente passaram por
experiências tirânicas ou oligárquicas, mas ao menos os casos da
polis grega e da res publica romana caracterizam propostas de
experiências políticas e constitucionais participativas, [...] sob uma
concessão ascendente, e não descendente do poder [Tradução
nossa].
28
WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito: fundamentos de uma nova cultura do
direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 67.
29
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005.p. 29
. ”
C`è un`idea tradizionale del
medioevo, che oggi non può più dirsi corrente, ma che tuttavia è ancora ben viva. È l`idea del
medioevo teocratico, dominato dalle presenze orientate in senso universalistico dell`impero della
Chiesa, entro cui le sole autoritá politiche legittime sono quelle direttamente o indirettamente vicarie di
Dio: un`età in cui, dunque, tutto il potere discende dall`alto, secondo una catena gerarchicamente
ordinata. Su questa base, la contrapposizione con la costituzione degli antichi è fin troppo facile. Gli
antichi avevano infatti sofferto tirannidi e spietati regimi oligarchici, mas per lo meno nel caso della
polis greca e della res publica romana avevano propugnato la necessità di esperienze politiche e
costituzionali in qualche modo partecipate [...] su una concezione ascendente, e non discentente, del
potere.
34
Neste ponto do trabalho torna-se necessário apresentar as
características próprias do Poder Político medieval em confronto com o Poder
Político dos antigos, conforme estudado, e mais adiante as dos modernos. Trata-
se de uma forma de estabelecimento jurídico-social dotada de características e
elementos próprios, que não deve ser visualizada como mero prosseguimento do
estabelecido nos tempos antigos e, tampouco, como exclusiva preparação para a
passagem aos tempos modernos. Cuida-se, pois, de um extenso período
compreendido entre a queda do edifício político romano no século V e o surgimento
da “soberania estatal dos modernos, a partir do século XV”[Tradução nossa]
.
30
Tal
observação é feita por Fioravanti ao advertir sobre a possibilidade de eventuais
confusões acerca das instituições que se desenvolveram neste período, pois, repita-
se, não se está diante de um medievo que antecipa a Idade Moderna, mas sim
diante de um período complexo sob o enfoque constitucional, impossível de ser
confundido, uma vez que foi capaz de produzir construções constitucionais
próprias.
31
Assim, ao longo dos dez séculos que compreendem referido
período, desenvolve-se uma verdadeira política medieval complexa que envolve
poderes diversos como o da própria Igreja, ou o do senhor feudal. Esses poderes,
muito embora contenham grandes peculiaridades relativas à forma de legitimação ou
áreas de competência, apresentam em comum o fato de não serem soberanos em
relação às pretensões totalizadoras dentro das suas respectivas “jurisdições”. Em
especial, na parte Ocidental da Europa, no período compreendido entre os séculos X
e XIII, o costume continua a ser elevado à condição de principal fonte do direito. A
partir do culo XIII começa a ser parcialmente escrito e em um processo crescente
que o manterá em vigor até o final daquele período. Trata-se de uma fonte
conservadora e de morosa evolução, pois são trazidos dos direitos romano e
germânico caracteres que tocam aos regimes senhoriais e dominiais.
32
30
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 30. “[...] sovranità statale dei
moderni, a partire dal XV secolo.”
31
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 51
.
32
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2003. p. 17.
35
Desse fracionamento do poder e ausência de soberania
decorre o que Fioravanti
33
entende como primeira característica do Poder Político
medieval, que é a sua intrínseca limitação, que não provém de uma norma
determinada, mas que deriva naturalmente da inexistência de um centro unificador
das realizações civis, econômicas e políticas. Como segundo atributo surge o
particularismo, uma característica proveniente da limitação do poder público e em
especial da fragmentação do poder em inúmeros e pequenos nichos sociais.
Heller
34
ratifica o mencionado individualismo e também
confirma, nesse contexto histórico, a inexistência do Estado. Nas suas palavras:
É patente o fato de que durante meio milênio, na Idade Média, não
existiu Estado no sentido de uma unidade de dominação,
independentemente do exterior e interior que atuara de modo
contínuo com meios de poder próprios e claramente delimitada
pessoal e territorialmente. [...] Quase todas as funções que o Estado
moderno reclama para si achavam-se então repartidas entre os mais
diversos depositários: a Igreja, o nobre proprietário de terras, os
cavalheiros, as cidades e outros privilegiados. Por meio da
enfeudação, da hipoteca ou da concessão de imunidades, o poder
central viu-se privado, a pouco a pouco, de quase todos os direitos
de superioridade, sendo transferidos a outros depositários que,
segundo o nosso ponto de vista, tinham caráter privado. Ao soberano
monárquico do Estado feudal restam finalmente apenas poucos
direitos imediatos de domínio.
Além da inexistência de um centro unificador das realizações
civis, econômicas e políticas, a Igreja exigia obediência de todos os homens,
inclusive dos que detinham o Poder Político. Virtuosos métodos coativos espirituais
e mesmo físicos foram empregados como forma de manifestação de uma
organização detentora de um poder capaz de interferir direta e indiretamente no
aparelho político, em especial por meio do clero. Esse foi certamente um dos fatores
que mais contribuíram para a caracterização da limitação do poder público.
No que diz respeito à organização feudal, nota-se a evidente
hierarquia de privilégios escalonada em diversos graus, pois o “senhor feudal
podia mandar sobre os vassalos e subordinados de classe inferior através do
33
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 31.
34
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre
Jou. 1968. p. 158
.
36
feudatário imediato”
35
, o que certamente determinou um vínculo de lealdade
bastante grande entre os membros da organização. Com efeito, a insuficiência
técnica, “a fraqueza do executivo, a frouxidão dos controles, a ausência ou
imperfeição da contabilidade”
36
foram alguns dos maiores defeitos do período,
levando ao fracasso o modo de organização do Poder Político medieval.
Em contraponto à decadência medieval, a experiência inglesa
no século XIII merece destaque. Em 1215 foi assinada pelo Rei Giovanni a Magna
Carta, uma espécie de contrato assinado pelo rei, senhores feudais e membros do
clero, que assentava os direitos dos vassalos do soberano, dos homens livres, dos
mercadores e demais membros da cidade de Londres. Apresenta-se, assim, como
uma grandiosa evolução, bem como uma fonte escrita de direitos e deveres, ainda
não de forma igualitária. O que se tornou o mais notório elemento de inovação no
conteúdo da aludida Carta foram as limitações impostas às prerrogativas do rei, em
especial no que tange a questões financeiras e tributárias. Entretanto, o que é
efetivamente mais relevante é a criação de uma espécie de consciência sobre a
existência de uma ordem comum a ser seguida, destinada a ser a representação
das castas sociais que compunham a Inglaterra do século XIII. Ou seja, o acordo
sobre a existência de uma verdadeira lei do país. Dessa feita, a efetiva novidade
característica do período reside no início de consciência de que a força coativa da
qual dispõe o governante não provém de modo natural ou divino, mas surge da
comunidade política de maneira integral, mediante a expressa manifestação de
vontade em assembléia geral dos cidadãos.
37
É nesse período que surge a noção de Constituição como lei
fundamental que exprime unidade e manifesta a existência de um universo com
inúmeras diversidades e que garante a permanência harmônica de cada uma destas
partes dentro do mesmo contexto. Em rigor, continua sendo necessária a abstenção
de alguma analogia com o que se entende por Constituição nos dias atuais, mas
pode-se, com as devidas cautelas, iniciar o discurso acerca de uma Constituição
medieval como forma de organização do Poder Político. Isso porque se faz
35
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre
Jou. 1968. p. 163.
36
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre
Jou. 1968. p. 164.
37
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005.p. 41-49.
37
referência a uma realidade política e social de composição plural capaz de ser
reconhecida como lei fundamental pela consciência que o nasceu do além, mas
sim do acordo entre a pluralidade de partes distintas, cada qual com suas
características territoriais e de diversas outras ordens; uma forma de confirmação
das aspirações e necessidades específicas de cada grupamento social. Desse
período em diante tal tendência será confirmada e estabilizada a tornar-se um
caráter de identificação nacional, principalmente a partir do século XIV na Inglaterra.
Com efeito, a fórmula que ali se exprime permite identificar caracteres que indicam a
presença de um regime político que obtém sucesso ao associar o princípio
monárquico da unidade de governo com o princípio da supremacia da comunidade
política que se manifesta no parlamento como lugar de representação dos diversos
componentes, instituições e territórios do reino. Assim, em se tratando da
“Constituição” inglesa no aludido período, observa-se que o ponto preliminar de sua
construção reside na possibilidade de individuar com clareza os limites nos quais o
rei podia e devia atuar sozinho e o momento no qual devia fazê-lo em conjunto com
o parlamento, de modo que as esferas de atuações fossem equilibradas sem
privilegiar uma em detrimento da outra.
38
Em relação à Magna Carta inglesa de 1215, Fioravanti
39
sinteticamente ensina que:
[…] a constituição medieval é em sua essência histórica uma
constituição mista [...], ou seja, uma imagem e uma prática do poder
monárquico limitado pelos outros componentes da constituição e,
antes de mais nada, pelas distintas partes da comunidade política.
[...] A constituição mista medieval sobrevive todavia, mas reduzida a
ser [...] um conveniente e reconhecido modo de organizar o governo
[Tradução nossa].
Uma das características que repisando sobre a maneira
resumida que se aborda determinaram a organização do Poder Político medieval,
mormente pela inicial pulverização dos poderes e fortalecimentos dos regionalismos
38
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 58-60.
39
FIORAVANTI, Maurizio. Constituición. De la Antigûedad a nuestros dias. Traducción de Manuel
Martinez Neria. Madrid: Trotta, 2001. p. 71
,
77
.
[...] la constitución medieval es en su esencia
histórica una constitución mixta. [...] es decir, una imagen y una pratica del poder monárquico limitado
por los otros componentes de la constitución y, antes de nada, por instituciones dentro de las cuales
pueden decirse representadas das distintas partes de la comunidad política. […] La constitución mixta
medieval sobrevive todavia, pero reducida a ser [...] un conveniente y reconocido modo de organizar
el gobierno.
38
em virtude do arranjo feudal que se estabeleceu na Europa da Idade Média, seguida
pelo paulatino processo de estabelecimento de uma estrutura capaz de otimizar a
forma de governo que concedesse a devida atenção a todos os particularismos que
caracterizavam o período. Surge então um Acesso à Justiça diverso - mas não
totalmente - do período precedente. É o que melhor escreve Fioravanti
40
:
Aqui, a necessidade de descrever cuidadosamente a função dos
governantes, que, longe de poder ser a outra parte de um hipotético
contrato com o povo, são vistos como os que poderiam aproveitar-se
de sua posição de autoridade constituída para destacar-se do povo
soberano e pôr a lei a serviço de sua própria vontade e de seus
interesses particulares. Por isso o governo [...] deve estar fortemente
limitado; e para isto o povo soberano deve conservar sempre a
possibilidade de retomar o que delegou parcial e temporariamente
aos governantes [Tradução nossa].
A limitação do Poder Público e os particularismos, como se
mencionou, apontam para uma ordem social incapaz de abranger a integralidade de
seus membros. Isso ocorre em virtude do estabelecimento da hierarquia da
organização feudal e do conseqüente escalonamento de privilégios característicos
deste período. Contudo, vislumbram-se os primeiros indícios da necessidade de se
determinar de maneira clara e eficiente as funções e os momentos de atuação
individual ou coletiva do governante, justo para evitar que este se beneficie de sua
posição e autoridade em proveito próprio. Essas foram, pois, as primeiras tentativas
de se buscar uma ordem jurídica justa. Ou seja, abrolha a percepção coletiva pela
necessidade de criação de formas limitadoras e fiscalizadoras dos poderes e
autoridades do governante que tende, por vezes, de maneira transversa, aos
abusos.
1.3 Poder Político dos Modernos
40
FIORAVANTI, Maurizio. Constituición. De la Antigûedad a nuestros dias. Traducción de Manuel
Martinez Neria. Madrid: Trotta, 2001. p. 84
. “
De aquí la necesidad de circunscribir cuidadosamente la
función de los gobernantes, que, lejos de poder ser la otra parte de un hipotético contrato con el
pueblo, son vistos como los que podrían aprovecharse de su posición de autoridad constituida para
destacarse del pueblo soberano y poner la ley al servicio de si propia voluntad y de sus intereses
particulares. Por eso el gobierno [...] debe estar fuertemente limitado; y para esto el pueblo soberano
debe conservar siempre la posibilidad de retomar lo que habia delegado parcial y temporalmente a
los gobernantes [...]
.”
39
Bobbio
41
caracteriza a Idade Moderna como a era das grandes
revoluções responsáveis por desfazer velhas ordens e fundar novas, com o objetivo
de fazer o direito e, no entender de Habermas
42
, “infiltrar-se nas lacunas funcionais
das ordens sociais que carregam o fardo da integração social”.
De acordo com Gilisen
43
, o processo de reforço dos poderes
dos senhores territoriais corresponde ao enfraquecimento do feudalismo e aponta
para o surgimento da soberania. Da mesma forma, a noção de Estado como se
concebe hodiernamente, ou seja, “no sentido de corpo político juridicamente
estruturado”
44
surge ainda no século XIII como uma espécie de organização estatal
que se sobrepõe à hierarquia feudal.
Nesse período de marcantes transformações político-sociais os
costumes não deixam de ser a principal fonte do direito, contudo uma nascente
necessidade de segurança jurídica faz com que sejam escritos e por vezes
reconhecidos oficialmente. Paralelamente, as compilações de direito redigidas por
ordem de Justiniano vão tornando-se cada vez mais objeto de estudo nas
universidades, o que faz renascer o direito romano e o torna fonte subsidiária do
direito na maior parte dos países da Europa Ocidental nos séculos XV e XVI.
45
No contexto de nascimento do Estado Moderno um grande
número de responsabilidades é retirado da esfera de competência privada e
paulatinamente transferido para o domínio estatal.
No começo da Idade Moderna, o Estado teve de se encarregar
de uma série de tarefas que até então corriam por conta da família, da Igreja ou das
instituições locais, o que equivalia a novas necessidades. As novas incumbências do
Estado eram especialmente relacionadas com as comunicações, tanto na sua
generalidade como no seu aspecto econômico-técnico, com a administração de
41
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução de
Marco Aurélio Nogueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2004. p. 161.
42
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. Tradução de Flavio
Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro. 2003. v.I. p. 65.
43
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2003. p.130.
44
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2003. p. 239.
45
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta
Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2003. p. 239
-
241
.
40
justiça e culturais, sobretudo de caráter pedagógico. Assim, um Estado que o
utilizasse as revolucionárias inovações técnicas daquele tempo e não amoldasse a
elas a sua administração ver-se-ia condenado a uma decadência inevitável, ou seja,
tornou-se necessária a eliminação do caráter feudal mediante a racionalização
técnica da concentração do Poder Político.
46
Ao iniciar o estudo da estruturação do Estado, tal como
concebida nos tempos modernos, é importante mencionar os ensinamentos de
Brandão
47
quando afirma que “o termo ‘Estado’ não é um conceito universal” e
“depende sempre de atribuição de sentido por parte daquele que se serve da
expressão indicando qual fato do mundo fenomênico ela está denotando”. Na linha
de raciocínio do autor, para ajustar a atribuição de sentido que se pretende neste
momento, a forma de Estado ora analisada apresenta-se como a organização
política nascida na Europa por ocasião do Renascimento no século XIV
48
.
Com efeito, nesse mesmo senso Châtelet
49
adverte que:
A partir do início do século XIV produzem-se transformações que
abalam as sociedades da Europa Ocidental. Estas múltiplas e
interferentes transformações – o Renascimento – envolvem:
a. as realidades históricas e econômicas (extensão e aplicação -
prática das descobertas feitas durante a Idade Média;
desenvolvimento da civilização urbana, comercial e manufatureira);
b. a imagem do mundo (descoberta do Novo Mundo; revoluções
astronômicas de Copérnico e Kepler e física de Galileu);
c. a representação da natureza (o universal medieval dos signos é
substituído por uma realidade especial a conquistar e explorar);
d. a cultura (a redescoberta da Antiguidade greco-romana pelos
humanistas suscita um maior interesse pelo homem enquanto dado
natural e pelas especulações ético-politicas);
e. o pensamento religioso (a radicalização da contestação do poder e
da hierarquia de Roma, esboçada no século XIV por J. Hus, na
Boêmia, e Wycliff, na Inglaterra, pelos movimentos que reivindicam o
cristianismo primitivo e se apóiam em especificidades ‘nacionais’).
46
HELLER, Hermann.Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre
Jou. 1968. p. 164.
47
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 25-26.
48
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 26.
49
CHÀTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias
políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 37.
41
O fato é que, fulcrado em uma visão empirista, a nova
instituição que emerge como marco de um período de grandes transformações
sócio-políticas se apresenta como resultado de um acordo entre os indivíduos para
evitar a autodestruição. E, com a transferência de poder a um ente capaz de sujeitar
a si todas as vontades e forças individuais cria-se uma nova forma de organização
política. Assim, o “pacto social é a união dos indivíduos, a ordem política o Estado
– é a forma de conter a conduta desagregadora desses mesmos indivíduos [...]”
50
.
A partir do estabelecimento inicial da figura do Estado com esta
função primeira de proteger o homem de si mesmo, surge a necessidade de criação
de um elemento capaz de protegê-lo dos desmandos do próprio Estado. Eis aqui um
dos papéis da “Constituição da Idade Modernaque, além de impedir a formação de
um governo arbitrário, serve também como elemento garante dos direitos dos
cidadãos contra violações do próprio Estado.
51
Assim, fica patente o surgimento de uma nova concepção para
uma formação consciente por parte do povo na formulação de sua lei fundamental
52
.
Também, é momento oportuno para o estudo do constitucionalismo como entidade
que legitima o desenvolvimento social fundado em uma ordem genuína e legal, que
adota critérios determinados, em um ponto da história, calcado na reflexão das
experiências políticas concernentes à organização do poder. Para Matteucci:
Com o termo ‘constitucionalismo’ se faz referência geralmente a
certos momentos de uma reflexão sobre a experiência político-
jurídica relativa à organização do poder, momentos próprios da
história européia desde o mundo antigo. [...] ‘constitucionalismo’
indica, no entanto um período histórico, que teria explicação, não em
uma corrente de idéias políticas e sociais, na qual se encontra sua
própria unidade, mas em um ‘tipo ideal’, para refletir sobre a
realidade histórica, ou uma categoria analítica para trazer à luz e
mostrar aspectos particulares da experiência política [Tradução
nossa].
53
50
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 37.
51
MATEUCCI, Nicola. Organización del poder y liberdad. História del constitucionalismo moderno.
Prestación de Bartolemé Clavero. Tradición de F. J. Ansuatégui Roig y M. Martinez Neria. Madrid:
Trotta; Universidad Calos III, 1998. p. 25.
52
McILWAIN, Charles Howard. Constitucionalismo antiguo y moderno. Tradicción de Juan José
Solozálbal Echavarría. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1992. p. 16.
53
MATEUCCI, Nicola. Organización del poder y liberdad. História del constitucionalismo moderno.
Prestación de Bartolemé Clavero. Tradición de F. J. Ansuatégui Roig y M. Martinez Neria. Madrid:
42
Nesse contexto de despertar para um paradigma que não se
limita a uma mera descrição constitucional, mas uma busca consciente pela
instauração da melhor ordem política e de um governo íntegro, McIlwain invoca a
relevância de um exame atento deste fenômeno e seus possíveis desdobramentos.
É o que se depreende:
A época parece propícia para um exame do princípio geral do
constitucionalismo [...] e ademais um exame que presta atenção nos
sucessivos estados do seu desenvolvimento [...] O mundo se
encontra indeciso ante o procedimento respeitoso à lei e às opções
violentas que parecem muito mais rápidas e eficazes. Devemos
eleger entre as alternativas e fazê-lo logo [Tradução nossa].
54
Outro elemento considerado como novidade é a noção de
soberania, com uma preocupação peculiar que reside na especificação das
qualidades do poder soberano, traduzido como perpétuo e absoluto.
55
Nesse
sentido, Fioravanti elenca os poderes e as prerrogativas que constituem o núcleo da
soberania e que não podem ser compartilhados: “O poder de criar e anular a lei, o
poder de declarar a guerra e de selar a paz, o poder de decidir em ultima instância
as controvérsias entre os súditos, o poder de nomear os magistrados e enfim,
também o poder de impor os tributos” [Tradução nossa].
56
Trotta; Universidad Calos III, 1998. p. 23. “Con el témino ‘constitucionalismo’ se hace referencia
generalmente a ciertos momentos de una reflexión sobre la experiencia político-juridica relativa a la
organización del poder, momentos propios de la historia europea desde el mundo antiguo [...]
‘constitucionalismo’ se indica no tanto un período histórico, en el que tendría su explicación, ni una
corriente de ideas políticas y sociales, en la que encontrase su propia unidad, sino un ‘tipo ideal’, para
reflexionar sobre la realidad histórica, o una categoría analítica para sacar a la luz y mostrar aspectos
particulares de la experiencia política.”
54
McILWAIN, Charles Howard. Constitucionalismo antiguo y moderno. Tradicción de Juan José
Solozálbal Echavarría. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1992. p. 15. “La época parece
propicia para un examen del principio general del constitucionalismo [...] y además un examen que
preste alguna atención a los estadios sucesivos de su desarrollo. [...] El mundo se encuentra indeciso
ante el procedimiento respetuoso con la ley y las opciones violentas que perecen mucho más rápidas
y eficaces. Debemos elegir entre las dos alternativas y hacerlo muy pronto.”
55
No que diz respeito à caracterização da perpetuidade, observa-se o fato de não ser passível de
revogação, haja vista que não é fruto de delegação. Eis uma grande distinção em relação ao rei da
Idade Média, cujo poder e legitimação provinha da comunidade e, portanto, não perpétuo face à
possibilidade de revogação. Dessa maneira, entende-se por poder soberano perpétuo aquele que é
originário, qualitativamente diverso de todos os demais, numa verdadeira ruptura com o ordenamento
medieval do poder. Além de perpétuo este poder deve ser absoluto, o que não significa dizer que seja
desprovido de limites, mas, como não deriva de nenhum outro poder anterior não está obrigado a
submeter-se ou associar-se a nenhum outro poder, ou seja, coincide com sua indivisibilidade. Cf.
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 72-75.
56
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 75
. “
Il potere di dare e
annullare la legge, il potere di dichiarare la guerra e di concludere la pace, il potere di decidere in
43
Com efeito, quando a individualização desses poderes não
está claramente definida e caracterizada, a associação política corre sério risco,
inclusive de dissolução do próprio Estado. Por tal razão os poderes próprios do
Estado devem estar incisivamente estabelecidos na Constituição, como significado
da pacífica convivência civil e política.
Outro elemento inovador característico do Poder Político dos
Modernos, em contraposição ao dos povos antigos e medievais, é apresentado por
Fioravanti
57
e reside na alteração da localização dos indivíduos na organização da
sociedade política. Até então, os indivíduos comuns apareciam como súditos
destinatários dos comandos do rei, agora passam a configurar a base daquela
mesma associação política. Igualmente, surgem as primeiras tendências capazes de
considerar o homem individualmente enquanto ser humano dotado de
características que lhe são singulares. Ou seja, começam a ser concebidos os
direitos de cada um dos homens, não mais de todo um conjunto massificado, muitas
vezes desprovido de personalidade própria, como ocorria no passado. Em razão
disso e com o objetivo de resguardar as próprias vidas e bens, assim como
abandonar aquela precária condição, decide-se instituir um poder soberano comum,
responsável pela administração do direito individual de se auto governar, do qual
emerge a autorização ao soberano e a representação pelo soberano.
58
O surgimento de novas instituições guarida ao
constitucionalismo que representa o estudo do conjunto de doutrinas emergentes na
metade do século XVII, justo para estabelecer limites e garantias, de forma que o
poder soberano instituído o possa se tornar arbitrário. Isso seria possível diante
um processo legislativo certo e determinado, como primeiro passo para o início de
criação dos direitos individuais.
Ante o exposto, infere-se que a efetivação do amplo acesso a
uma ordem jurídica justa depende da possibilidade de limitação do governo por meio
da própria Constituição enquanto pacto social. Essa restrição é responsável por
ultima istanza sulle controversie tra i sudditi, il potere do nominare i magistrati, e infine anche il tanto
discusso potere d`imporre i tributi
.”
57
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 79.
58
O que não se confunde, repita-se, com derivação do poder, haja vista que a então não havia
caracterização de nenhuma espécie de povo ou de sociedade civil de onde ele pudesse provir.
44
impor fronteiras e proporcionar garantias, sendo fundamental somente a lei que
determina a integridade da soberania, de onde tudo o mais seria proveniente.
O constitucionalismo, nesse contexto, foi concebido como um
agregado de elementos suficientes para determinar a Constituição dos modernos
sob o aspecto dos limites e garantias, ou seja, a preocupação com a tutela dos
direitos. Essa Constituição moderna tem, pois, duas características: a
impossibilidade de divisão do poder soberano e a individualização de limites a sua
atuação.
59
Fioravanti, a propósito, ratifica essa assertiva quando leciona que: “Sem
dúvida, na Constituição moderna [...] eram absolutamente impossíveis duas
operações. A primeira consistia na divisão do poder soberano [...] A segunda
operação consistia na possibilidade de individualizar um limite legal para a extensão
dos poderes do soberano [...]”[Tradução nossa].
60
A falta de limitação ao exercício do poder soberano condiz com
a sua compatibilidade com todas as formas de governo que tenham uma nítida
divisão entre o executivo (que pode apresentar vetos às leis numa forma de
participação do processo legislativo) e o legislativo (que deve controlar a execução
da lei). Essa divisão visa evitar a formação de um poder absoluto que ponha em
risco os direitos dos indivíduos. É o que aponta Heller:
O instrumento mais eficaz para conseguir a independência da
unidade de poder do Estado foi a hierarquia de autoridades,
ordenada de modo regular, segundo competências claramente
delimitadas e a que, funcionários especializados, nomeados pelo
superior e economicamente dependentes, consagram a sua atividade
de modo contínuo e exclusivo à função pública que lhes incumbe,
cooperando assim para a formação consciente da unidade do poder
estatal [...]. Por meio da burocracia elimina-se a mediação feudal do
poder do Estado e torna-se possível estabelecer vínculo de súdito
com caráter geral e unitário. Os apoios burocráticos dão à moderna
construção do Estado os seus plenos contornos e condicionam o
caráter relativamente estático de sua estrutura. Graças à hierarquia
dos funcionários a organização pode estender-se agora também ao
território, isto é, abranger todos os habitantes do mesmo e assegurar
59
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 85-86.
60
FIORAVANTI, Maurizio. Constituición. De la Antigûedad a nuestros dias. Traducción de Manuel
Martinez Neria. Madrid: Trotta, 2001. p. 86. “Sin embargo, en la constitución moderna […] resultaban
absolutamente imposibles, sin lugar a dudas, dos operaciones. La primera consistía en la división del
poder soberano [...] La segunda operación consistía en la posibilidad de individualizar un limite legal a
la extensión de los poderes del soberano […].”
45
desse modo uma unificação universal, central e regida por um plano,
do trabalho relevante para o Estado.
61
Como mencionado, os períodos antecedentes à Idade
Moderna podem ser caracterizados como momentos nos quais o homem ainda não
é considerado indivíduo, mas tão-somente um integrante da organização sócio-
política. Dessa feita, àqueles que integravam o contexto estabelecido restava
assegurada plena participação nas questões coletivas. Contudo, a parcela dos que
efetivamente usufruíam dessa participação era insignificante frente o grande número
de indivíduos afastados do processo.
Por seu turno, na Idade Moderna surgem as primeiras formas
de organização política capazes do organizar um aparato burocrático para a
concretização das funções do Estado, que trouxe como conseqüência sua
emancipação econômica
62
, bem como as primeiras concepções do homem como
indivíduo detentor de direitos e obrigações tuteláveis per si. Esses direitos e
obrigações passam a ser paulatinamente retirados da esfera da discricionariedade
do soberano e se transformam em patrimônio jurídico tutelável por meio de uma
prática forense unificada em tribunais que aplica de maneira uníssona o renascido
direito romano. Heller, sobre o tema, expõe:
A codificação disposta pelo príncipe e a burocratização da função de
aplicar a executar o Direito eliminaram, finalmente, o direito do mais
forte e o desafio, e tornaram possível a concentração do exercício
legitimo do poder físico no Estado, fenômeno que, com razão, se
assinala como uma característica típica do Estado Moderno.
63
Como conseqüência, um sentimento de segurança jurídica se
torna característica da Idade Moderna.
64
A Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do
Homem foram importantes marcos da Idade Moderna e, por conseqüência, de um
61
HELLER, Hermann.Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre
Jou. 1968. p. 164.
62
Mediante a criação de impostos gerais e aplicáveis a todos os súditos.
63
HELLER, Hermann.Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre
Jou. 1968. p. 168.
64
HELLER, Hermann.Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre
Jou. 1968. p. 168.
46
novo período do constitucionalismo, capaz de estabelecer uma nova forma de
Estado em que os homens são governados por leis. É o que será analisado a seguir.
1.3.1 A Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem
como marcos do Estado Democrático de Direito
Muito embora os acontecimentos não estampem seus
desdobramentos de maneira estanque na história, como se esta pudesse ser
talhada em fatias, pode-se, neste ponto do trabalho, destacar o surgimento do
Estado como atualmente se concebe, assim como da soberania na Idade Moderna.
Essa técnica de dividir a história em blocos, que comumente se lança mão, apesar
de não ser compatível com a realidade dos fatos, permite uma melhor avaliação e
apreensão do seu desenrolar.
Nesse contexto de marcos históricos, “uma idéia se impõe;
uma idéia certamente presente nos pensadores do século XVIII e em Hegel, mas
que irá doravante desempenhar um papel decisivo, a ponto de caracterizar toda a
política moderna e contemporânea: a de nação”.
65
Brandão
66
, contudo, adverte que o mesmo termo “nação” foi
utilizado na Idade Antiga, porém “ele somente passou a ser usado para expressar a
noção aplicada nos dias atuais durante a Revolução Francesa [...]”. O fato é que por
“nação” se concebe um universo de pessoas vinculadas entre si em virtude de
ligações de diversas espécies, como culturais, políticas, econômicas, sociais. Esse
vínculos são capazes de constituir uma modalidade de inteiração inter-pessoal
específica, com a idéia de coletividade que permite o desenvolvimento de relações
65
CHÀTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias
políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 85.
66
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 55.
47
dentro de cada uma daquelas searas, de maneira diversa das de natureza
individual.
67
Do mesmo modo Habermas ensina
68
:
Uma autodeterminação democrática só pode vir a se concretizar
quando o povo do Estado se transforma em uma nação de cidadãos
do Estado [Staatsbürger] que toma o seu destino político nas
próprias mãos. A mobilização política dos ‘súditos’ exige, no entanto,
uma interação cultural da população inicialmente heterogênea. Esse
desiderato é preenchido pela idéia de nação [...]. Somente a
construção simbólica de um ‘povo’ faz do Estado moderno o Estado
nacional.
O Estado-nação, por sua vez, “[...] constitui o quadro
obrigatório da existência social: ele é a realidade política por excelência, em torno do
qual se organizam os atos históricos”.
69
Ainda, pode ser entendido como
representação política no sentido de que as populações que constituem uma
sociedade no mesmo território reconhecem-se como pertencentes essencialmente a
um poder soberano que emana delas e que as expressa.
70
E os fatos históricos registram que:
Na França da segunda metade do século XVIII a imagem da Nação
está bem desenhada, em parte graças à força centralizadora da
monarquia. Num contexto de carências políticas e pobreza endêmica
diante de uma população numerosa, um movimento contra a tirania e
contra a opressão, contra os arbítrios e contra os privilégios, surge
como forma de pensamento revolucionário a favor das liberdades e
das igualdades. Isto somente é possível em virtude da identidade
nacional da qual brotam todos os poderes, cujo exercício soberano
depende da implantação de uma Constituição
71
que defina os órgãos
da legislação e do governo, as autoridades judiciárias que realizarão
e garantirão a liberdade e igualdade dos cidadãos e, mais
geralmente, a plenitude dos direitos naturais.
72
67
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 55.
68
HABERMAS, Jugen. A constelação pós-nacional. Ensaios políticos. 2. ed. Tradução de Márcio
Seligmann-silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 82.
69
CHÀTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias
políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 85.
70
CHÀTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias
políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 85.
71
CHÀTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias
políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 88-90.
72
CHÀTELET, François; DUHAMEL, Oliver; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias
políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 90.
48
Alguns dos frutos concretos da Revolução Francesa estão
impressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada de 26 de
agosto de 1789, que segundo Bobbio
73
se revela como “ato da constituição de um
povo”, e pode ser entendido como um daqueles atos que “assinalam o fim de uma
época e o início de outra, e, portanto, indicam uma virada na história do gênero
humano”.
Na avaliação de Tocqueville
74
a Revolução Francesa foi uma
insurreição política que não ficou adstrita ao território francês. Mais que isso, foi um
acontecimento capaz de influenciar a percepção e o modo de vida das pessoas.
Com tal característica de “supranacionalidade” pôde influenciar o estilo de vida
estabelecido e alterar as atitudes de vários povos. Como se sabe, a Revolução
Francesa, motivada essencialmente por fatores sociais e políticos, foi capaz de pôr
fim às instituições feudais para substituí-las por um desiderato de uma ordem
política e social baseada na igualdade de condições, na tentativa de derrubar as
instituições aristocráticas e feudais fomentadoras de exclusões sociais. O
funcionamento político-administrativo do antigo regime, caracterizado pela
centralização administrativa, foi o único instituto que sobreviveu à Revolução por ser
capaz de acomodar-se ao Estado social fruto da insurreição. Por seu turno, em
relação ao que Tocqueville chama de morte do antigo regime, tem-se que o seu fato
gerador foi justamente o fim da liberdade política e a separação de classes. Com
efeito, na França, a integral perda das liberdades, os privilégios locais, bem como a
separação interna da classe aristocrática e desta do resto da população foram
elementos que incentivaram a eclosão da Revolução, que objetivou justamente a
alteração do status quo estabelecido naquele país. Diante de uma quina
administrativa gigantesca, confusa, pouco funcional e sem conserto, mostrava-se
necessária a construção de um sistema totalmente remodelado que ficaria a cargo
do que viria como fruto da Revolução.
73
BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. Rio de
Janeiro: Campus, 2004. p. 99.
74
TOCQUEVILLE, Aléxis de. O Antigo Regime e a Revolução. Tradução de F. Weffort. São Paulo:
Abril Cultural, 1985. p. 321-349.
49
De acordo com Bobbio
75
, “[...] foi a Revolução Francesa que
constituiu, por cerca de dois séculos, o modelo ideal para todos os que combateram
pela própria emancipação e pela libertação do próprio povo”. Mais adiante, o mesmo
autor afirma que “[...] foram os princípios de 1789 que constituíram, no bem como no
mal, um ponto de referência obrigatório para os amigos e para os inimigos da
liberdade, princípios invocados pelos primeiros e execrados pelos segundos”.
Contudo, a advertência de Giddens é no sentido de que:
A noção de revolução nunca foi traço definidor do radicalismo
político; esse traço consistiu em seu progressivismo. [...] O
radicalismo, na sua essência, significava não só a realização da
mudança, mas o controle dessa mudança de forma a conduzir a
história para frente.
76
Os desideratos revolucionários fomentadores da queda do
absolutismo foram também os princípios revolucionários do Estado de Direito e,
como costumam ser os modelos teóricos, este é elaborado com base em elementos
precisos e coerentes entre si. É o que bem relata Bin
77
:
[...] também o Estado de direito não foi resultado de um processo
histórico linear, realizado passo a passo: foi antes de tudo um
modelo teórico elaborado pelo pensamento iluminista com base em
reflexões baseadas na experiência inglesa e de outros países
europeus, e que vêm destacados na Declaração dos direitos do
homem de 1789 e nas constituições que se espelham em seus
princípios. Justamente porque é um modelo teórico, é construído por
elementos precisos e perfeitamente coerentes entre si [Tradução
nossa].
O primeiro dos elementos que se destaca é a divisão dos
poderes, cujo objetivo é impedir a concentração do Poder Político, quer nas mãos de
uma pessoa ou de uma classe. A clássica divisão de poderes concebida por
75
BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. Rio de
Janeiro: Campus, 2004. p.105.
76
GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. Tradução de Álvaro Hattnher. São
Paulo: UNESP, 1996, p. 09.
77
BIN, Roberto. Lo Stato di diritto. Come imporre regole al potere. Bologna: Il Molino, 2004. p. 16
.
Ma anche lo Stato di diritto non fu l risultado di un processoo storico lineare, realizzatosi passo per
passo: fu piuttosto un modello teorico che il pensiero illuministic elaborò in base alla rifessione
sull`esperienza inglese e degli altri paesi europei, e che poi venne tradotto nella Dichiarazione dei
diritti dell`uomo del 1789 e nelle constituzioni isoeirate ai suoi princìpi. Proprio perchè è un modello
teorico, è costruito con elementi precisi e perfettamente coerenti tra loro
.”
50
Montesquieu em executivo, legislativo e judiciário abarca esse mesmo sentido,
funciona como trava de cada um dos órgãos do poder. um controle mútuo, uma
interdependência, de modo que todas as funções do Estado sejam enumeradas e
delimitadas. Assim, cada um dos poderes age com atos típicos, elaborados com
procedimentos determinados para tutelar as liberdades dos cidadãos com base na
supremacia da lei, elemento no qual se encontram o fundamento e o limite dos
direitos e liberdades. Esse preceito é fruto da Declaração de 1789, onde se encontra
expressamente estampado, em seu artigo quinto, que nenhum homem pode ser
constrito a fazer o que a lei não determina e que pode fazer tudo o que ela não
proíbe.
O segundo elemento característico do Estado de Direito, que
se insere no primeiro, é o princípio da legalidade. Por esse princípio é legítimo o
exercício do poder público, desde que estritamente de acordo com o previsto e
regulado em uma norma jurídica prévia. Em rigor, o preceito elimina quaisquer
pretensões absolutistas, independentes de vínculos jurídicos, caracterizando um
clima de certeza e previsibilidade. Isso porque a lei pode ser entendida como fruto
da vontade política, mas não da exclusiva vontade política, haja vista que entre a
vontade política e a lei existe um procedimento garantidor do debate público em
torno do que propõe a lei. Dessa feita, em um Estado de Direito os deveres de todos
os seus órgãos estão enumerados e detalhados na lei, ou seja, a lei define-lhes as
competências. Ainda, os direitos naturais e imprescindíveis do homem são
conservados. As liberdades e os direitos individuais somente podem ser limitados
por leis – gerais e abstratas – derivadas do órgão competente após o devido
processo legislativo representativo da sociedade civil.
Por seu turno, o terceiro elemento a constituir o Estado de
Direito diz respeito à liberdade e à igualdade. Das três célebres palavras que
marcaram a Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade -, somente as
duas primeiras foram abarcadas pelo Estado de Direito. Assim, liberdade e
igualdade se fundem em uma visão que move o Estado de Direito, pressupondo que
este e a sociedade civil são personalidades distintas e separadas, ou seja, a
sociedade é uma entidade abstrata e perfeitamente igual, submetida aos olhos
analíticos do Estado. Nesse sentido, a lei deve ser igual para todos, tanto a que
protege quanto a que pune. Contudo, para serem perfeitamente iguais perante a lei,
51
os cidadãos devem portar uma máscara capaz de esconder as grandes diferenças
sociais, econômicas, políticas, culturais para não citar todas que se traduz na
personalidade. Por trás da máscara da personalidade jurídica selam-se as
diferenças concretas das pessoas físicas, reduzidas a uma única dimensão
institucional: o cidadão. Muito embora pareça um fenômeno artificial e massificador –
e o é foi a forma encontrada para, suficientemente, acabar com os inúmeros
particularismos jurídicos característicos de períodos históricos anteriores, que
serviam de base para privilégios, e criar a premissa da igualdade formal. Eis o
pressuposto do Estado de Direito, a mencionada separação entre Estado e
sociedade civil, derivada justamente da igualdade formal, que impede
particularismos e diletantismos. Essa mesma delimitação dos deveres do Estado e a
sua separação da sociedade civil são os primeiros sinais que apontam para o
surgimento da divisão entre direito público e direito privado, um organiza o poder e
coordena as relações entre o Estado e os cidadãos e outro dita as regras que dizem
respeito exclusivamente às relações privadas.
Com base nesses três elementos pode-se inferir que no Estado
de Direito derivado da Revolução Francesa os indivíduos podem alcançar o bem-
estar sem a interferência de políticas públicas e que a sociedade desenvolve-se
livremente e de acordo com as diretrizes que ela mesma cria. Ao Estado cabe
assegurar que nenhum obstáculo se sobreponha às livres escolhas individuais, sem,
contudo, permitir que alguém prejudique a ordem que a sociedade espontaneamente
determina.
78
Eis a concepção do liberalismo.
Nesse mesmo senso Habermas
79
aponta:
A associação de pessoas jurídicas individuais [Rechtspersonen] -
livres e iguais - consuma-se apenas com o modus democrático da
legitimação da soberania. Com a mudança da soberania dos nobres
para a popular transformou-se, observando-se do ponto de vista do
tipo ideal, o direito dos súditos em direito dos homens e dos
cidadãos; ou seja, em direito liberal e político dos cidadãos. Este
garante, ao lado da autonomia privada, também a autonomia política
igual. O Estado. constitucional; democrático é, segundo a sua idéia,
uma ordem desejada pelo povo e legitimada pela sua livre formação
78
BIN, Roberto. Lo Stato di diritto. Come imporre regole al potere. Bologna: Il Molino, 2004. p. 07-
24.
79
HABERMAS, Jugen. A constelação pós-nacional. Ensaios políticos. 2. ed. Tradução de Márcio
Seligmann-silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001, p. 83.
52
de opinião e de vontade, que permite aos que são endereçados pela
justiça sentirem-se como os seus autores.
Por ora, considerando o momento histórico que se analisa,
cabe sublinhar que o constitucionalismo moderno e o Estado de Direito são
fenômenos contemporâneos que se desenvolveram conjuntamente e como
resultado do desenvolvimento da mesma matriz cultural iluminista caracterizada
entre outros fatores pela codificação do direito
80
e pelas afirmações de igualdade
dos sujeitos de direito.
81
Contudo, o voto continua sendo restrito e censitário, o que
mantém novamente as grandes e crescentes massas proletárias à margem do
Estado de Direito, de forma que as questões sociais de grande parte dos indivíduos
não poderiam ser defendidas senão com uma legislação que tendesse a pôr fim ao
dogma liberal de separação do Estado da sociedade civil. Dessa forma, nota-se que
as sucessivas formações de direitos não estagnaram no tempo, ao contrário,
prosseguem desenvolvendo-se em um processo contínuo; é o caso, destaca-se, dos
direitos civis no século XVIII, políticos no XIX e sociais que irão minorar, ao menos
formalmente, a mencionada exclusão no século XX.
82
Outro sinal que marca os grandes movimentos burgueses, em
especial a Revolução Francesa, reside no fato de tornar o ideal democrático um
“lugar-comum” do pensamento político. De fato, democracia é palavra de ordem que
exsurge, com grande veemência, nos séculos XIX e XX, assim entendida como o
“regime político no qual a soberania é exercida pelo povo [...]”
83
. Todavia, no
momento em que as liberdades enquanto autodeterminação política na
democracia não se referirem mais ao indivíduo, mas à coletividade, tornando-se
desta forma soberania popular, a liberdade individual ficará restrita à representação
80
Principalmente no sentido de que as Constituições escritas representam a codificação das regras e
princípios que constituem o conteúdo do Estado de Direito.
81
BIN, Roberto. Lo Stato di diritto. Come imporre regole al potere. Bologna: Il Molino, 2004. p. 35-
36
.
82
MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Tradução Meton Porto Gadelha. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar. 1967. p. 66.
83
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3.ed. rev. e ampliada.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 65.
53
dos direitos inatos e inalienáveis do homem e do cidadão, nos termos da clássica
fórmula da Revolução Francesa.
84
1.4 Uma mudança de paradigma: a Constituição do México (1917) e a
Constituição de Weimar (1919)
Neste período entre guerras tem início a preocupação com a
dignidade da pessoa humana enquanto forma de respeito e consideração aos
nascentes direitos fundamentais, configurando o alicerce das formas de organização
social. A garantia e o respeito a tais direitos podem ser considerados elemento de
aferição do grau de desenvolvimento democrático de uma sociedade. É de se
mencionar que nos séculos XVII e XVIII, com o objetivo de legitimar a criação do
Estado, o fato de se submeter ao menos formalmente os poderes do soberano
ao direito individual de cada homem simbolizava os primeiros indícios de
supremacia do indivíduo sobre a figura estatal. É a reafirmação da individualidade
surgida na Idade Moderna e reforçada pela Revolução Francesa.
O contexto de grandes transformações sociais decorrentes da
modificação dos mercados
85
, dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade
86
, do
sucesso da produção socialista
87
, o clima existente no fim da Primeira Guerra
Mundial e a insuficiência dos modelos constitucionais baseados nas liberdades
absolutas favoreceram sobremaneira o surgimento de movimentos direcionados a
atender aos novos anseios sociais.
Com efeito, as Constituições do México, em 1917, e de
Weimar, em 1919, por seus conteúdos direcionados a atender às necessidades
sociais, são os ícones do constitucionalismo social, uma nova forma de organização
84
KELSEN, Hans. Essenza e valore della democracia. Torino: G. Giappichelli, 2004. p. 17.
85
Antes agrários e agora industriais e urbanos, fruto da Revolução Industrial
86
Ícones da Revolução Francesa.
87
Com o sucesso da Revolução Russa, em 1918.
54
estatal – o Estado Providência - que intervém na coletividade para projetar de
maneira positiva o exercício dos direitos previstos em sede constitucional. Em
poucas palavras: nas Constituições do século XIX eram encontradas com grande
facilidade disposições direcionadas à organização política, que silenciavam, em sua
maioria, sobre osproblemas sociais”, o que as caracteriza como Constituições
liberais.
As Constituições do século XX, com as Cartas Magnas do
México e de Weimar, tiveram um caráter social tendente à inserção do homem no
contexto social, o que as caracteriza como Constituições sociais. É o que ensina
Bonavides
88
:
Em suma, no Estado liberal do século XIX a Constituição disciplinava
somente o poder estatal e os direitos individuais (direitos civis e
direitos políticos) ao passo que hoje o Estado Social do século XX
regula uma esfera muito mais ampla: os poder estatal, a Sociedade e
o indivíduo.
A respeito, em outra obra, o mencionado autor bem salienta
que:
[...] o primeiro Estado jurídico, guardião das liberdades individuais,
alcançou sua experimentação histórica na Revolução Francesa. E
tanto ele como a sociedade, qual a idearam os teóricos desse
mesmo embate, entendendo-a como uma soma de átomos,
correspondem, segundo alguns pensadores [...] tão-somente à
concepção burguesa da ordem política.
89
As disposições contidas no texto, todavia, não são suficientes
para caracterizar uma Constituição como liberal ou social, eis que são necessários o
reconhecimento e a intenção do Estado em garantir as liberdades aos cidadãos. E
mais: é preciso que haja uma intervenção estatal efetiva no sentido de proporcionar
aos membros da sociedade pleno gozo de seus direitos e de garantias
fundamentais. Em outras palavras, em um Estado Democrático de Direito precisa
estar positivado em sua Lei Fundamental, de maneira expressa, a intenção de
assegurar as igualdades formais, as liberdades individuais e materiais, bem como
88
BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 188.
89
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio
Vargas, 1972. p. 05.
55
todos os demais direitos daí decorrentes. É a regra da programaticidade, ou seja, a
existência de uma ordem a ser seguida.
Nesse aspecto, irretocável é o aresto extraído da obra de
Bonavides
90
:
As primeiras Constituições, marcando conseqüentemente o advento
do liberalismo, não foram em rigor no plano teórico (ou antes
ideológico) um compromisso instável, senão ao contrário [sic] a exata
e solene expressão de teses consagradas. De modo que,
visceralmente liberais, estas Constituições se apresentavam tão
estáveis do ponto de vista político quanto estáveis são hoje, pelo
aspecto igualmente político e de coerência ideológica, nas
constituições socialistas. A instabilidade e o compromisso marcam,
ao contrário, o constitucionalismo social, no seu advento, fazendo
frágeis os alicerces das Constituições que, desde o primeiro pós-
guerra deste século
91
, buscam formas de equilíbrio e transação na
ideologia do Estado social. A trégua constitucional no conflito
ideológico se fez unicamente em razão das fórmulas programáticas,
introduzidas nos textos das Constituições, sendo paradigma maior
dessa criação teórica a Constituição de Weimar.
O contexto de agitação social e política nas primeiras cadas
do século passado, que eclodiu na Revolução Mexicana, em 1910, conduzida
basicamente por camponeses e índios que se insurgiam essencialmente contra a
longa ditadura do Presidente Porfírio Diaz, de 1876 até 1911, deu origem à
Constituição do México. A Revolução Mexicana, vale destacar, não tinha como
escopo maior a elaboração de um novo texto constitucional, mas o seu ideário levou
à promulgação de uma nova Constituição, em 31 de janeiro de 1917, na qual
restaram positivados os anseios e princípios revolucionários. Em linhas gerais, o
porfiriato – como ficou conhecida a ditadura do então Presidente Porfírio Diaz – pode
ser caracterizado pelo maciço apoio do exército, da igreja e dos empresários ao seu
governo. Não foi por outra razão que as principais reivindicações revolucionárias
consistiam na proibição da reeleição do presidente da república, na nacionalização
das grandes empresas e bancos privados, bem como na devolução das terras
indígenas às suas comunidades, na consolidação dos direitos trabalhistas e na
separação entre Estado e Igreja. A Constituição de 1917
92
, no entanto, não pôs fim à
90
BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 191.
91
O autor se refere ao século XX como “este século” por escrever em 1988.
92
Entre os inúmeros elementos positivados nesta Carta Política, destaca-se a previsão do acesso
gratuito ao Poder Judiciário (artigo 17, parágrafo 1˚).
56
instabilidade social e política que marcava o país desde 1910, que vem a perdurar
por mais quase trinta anos após a sua promulgação.
A Europa no mesmo período experimentava um contexto de
grandes inquietações sociais. Não obstante todas as circunstâncias mundiais de
conflito mencionadas, a Alemanha comemora a vitória na guerra Franco-
Prussiana em 1870 a qual, sob a liderança de Bismarck, estimulou o processo de
unificação dos principados de língua alemã. Ainda, imersa em um clima de vitória e
diante de uma considerável prosperidade econômica, a Alemanha entra na Primeira
Grande Guerra Mundial, mesmo sem estar preparada para um conflito de grande
duração. As conseqüências foram as catástrofes internas oriundas da crise
econômica que se instaurou, o grande número de mortos e feridos e o bloqueio
naval inglês.
Richard
93
descreve bem a situação alemã no período:
O esforço de guerra havia absorvido a tal ponto as menores
atividades que acabara por esmagar tudo. O número de soldados
havia mais que triplicado desde 1914, atingindo quase 10 milhões.
Nas indústrias, o número de operários diminuíra um quarto e o das
operárias crescera 50%. No essencial, a mão-de-obra era utilizada
para a manutenção ou construção de material bélico. Nas indústrias
têxteis ou alimentares, pelo contrário, caíra para 60%. Todo o país
havia se transformado, mergulhando rapidamente num desequilíbrio
econômico e social.
Com o caos econômico, político e social que precedeu a
derrota na Primeira Guerra Mundial, seguidos levantes contra a miséria e crise social
começam a eclodir em toda a Alemanha. As manifestações exigiam também o fim
das instituições parlamentares alemãs, o que culminou
94
com a convocação de uma
Assembléia Constituinte em janeiro de 1919 e, em agosto do mesmo ano, com a
promulgação da Constituição de Weimar. A nova Carta transforma a Alemanha em
uma República Federativa. Contudo, em 1933, Weimar entra em colapso em
virtude da fragmentação política, da ausência de maioria no Parlamento, da
ratificação do Tratado de Versalhes, bem como das “leis de Hitler de 24 de março de
1933 e 31 de janeiro de 1934que “praticamente despedaçaram a Constituição de
93
RICHARD, Lionel. A República de Weimar (1919-1933). São Paulo. Cia. das Letras, 1988, p. 14.
94
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2001. p. 198.
57
Weimar, criando um novo direito constitucional fora da legitimidade democrática em
consonância com o nacional-socialismo e sua ideológica”.
95
Porém, sua breve
vigência foi suficiente para marcar a história, tornando-se um ícone no estudo do
constitucionalismo de seu século, uma vez que é fruto da aflição decorrente da
morte do Estado liberal e do não nascimento do Estado social
96
, cujas:
[...] dores da crise se fizeram mais agudas na Alemanha, entre os
seus juristas, cuja obra de compreensão das realidades emergentes
se condensou num texto rude e imperfeito, embora
assombrosamente precursor, de que resultariam diretrizes básicas e
indeclináveis para o moderno constitucionalismo social.
97
Importante mencionar que ambas as Cartas Constitucionais em
estudo apresentam características que permitem observar que havia a
preocupação em anotar, em sede constitucional, direitos de natureza social, sem
desprezar as liberdades públicas a então alcançadas e sem apontar para a
instituição de regimes autoritários. Com efeito, o marco característico do liberalismo
que foi a separação dos poderes resta mantido nas organizações sociais
98
, aos
quais foram acrescidos fins e responsabilidades, representando “efetivamente uma
transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal”.
99
A Constituição de Weimar, mesmo sendo cronologicamente
posterior à Constituição do México, apresenta maior destaque, em termos mundiais,
não exclusivamente por estar uma inserida no contexto europeu e outra nas
longínquas terras americanas. O fato é que a Constituição Mexicana abrigava
elementos e características essencialmente regionalistas ligados às necessidades
de um povo em especial, como mencionado, índios e camponeses. De outra
forma, as inovações apresentadas pela Carta alemã representavam as aspirações
mundiais de as sociedades contarem com uma organização estatal preocupada com
o desvirtuamento do poder e com outros elementos caracterizadores de uma feição
jurídico-constitucional capaz de proporcionar uma vida digna aos cidadãos.
95
BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 177.
96
BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 193.
97
BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 193.
98
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1972. p. 35.
99
BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado social. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1972. p. 205.
58
Nesse senso de argumentação Fioravanti
100
ensina que as
modificações ocorridas na Europa do início do século XX se caracterizam pela
grande movimentação política capaz de conduzir a formação de Repúblicas como a
de Weimar, instaurada pela Constituição de 1919, e acena o fim dos regimes
totalitários típicos do século precedente. A partir de então, enunciam-se na
Constituição matérias relativas aos direitos fundamentais e igualdades com bases
fundadas em conteúdos democráticos. Nas palavras de Fioravanti, “a Constituição
Alemã de Weimar de 1919 representa num certo sentido um alívio pelo surgimento
das constituições democráticas dos anos novecentos” [Tradução nossa].
101
Uma das características que demonstram esse novo caráter
democrático reside no fato de ser possível a identificação de um explícito poder
constituinte que se põe como origem da Constituição e é exercitado pelo próprio
povo, como no caso da Alemanha. Nesse sentido, grandes normas e princípios nos
planos políticos, civis e sociais vêm a ser estampados na Constituição Tedesca, que
tem seu cleo fundamental diretamente derivado do poder constituinte exercido
pelo povo. Com efeito, desse ponto em diante se inicia a busca por instrumentos
institucionais fomentadores de garantias e de realizações daqueles princípios
fundamentais, entre os quais se destacam o princípio da inviolabilidade dos direitos
fundamentais e o princípio da igualdade, sem, contudo, ser possível identificar um
efetivo controle de constitucionalidade. Mantêm-se, vale destacar, elementos
característicos das Constituições liberais, como a separação e equilíbrio dos
poderes e a tutela jurisdicional dos direitos que marca o encontro do
constitucionalismo com a democracia.
102
Com base nesse estudo infere-se que a forma de organização
do Estado constitucional, fundado sobre as bases democráticas de direito e
preocupado pela primeira vez com questões sociais por isso chamado Estado
Providência –, produz inúmeras repercussões jurídicas que afetam diretamente as
condições de vida das pessoas, tanto individual quanto conjuntamente
consideradas. Percebe-se também que, não obstante a tendência individualista
100
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 146-151.
101
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 146. [...] proprio la
Costutizione tedesca di Weimar del 1919 rappresenta in un certo senso l`alivio della vicenda
novecentesca delle costituzione democratiche.”
102
FIORAVANTI, Maurizio. Costituizione. Bologna: Il Mulino, 2005. p. 146-151.
59
nascida com a Revolução Francesa ainda seja a regra, começam a surgir os
primeiros indícios da necessidade de o Estado atender aos anseios da coletividade.
Ainda, com o constante processo de substituição de detentores da força de mando e
conseqüente legitimidade para a solução de conflitos, que passa da figura
centralizadora do monarca para o poder judiciário, surgem os primeiros aportes
direcionados à compreensão de que o Acesso à Justiça está intimamente ligado à
estrutura do Estado e ao exercício do poder. Eis, repita-se, a preocupação em
apontar resumidamente a evolução das organizações sócio-políticas ao longo dos
séculos para evidenciar a correlação entre o exercício do poder e a manutenção de
uma ordem jurídica justa.
1.5 A experiência nacional
Nesta seção, com a compreensão de como as modificações
nas modalidades de organização do Estado e, antes disso, as formas de
organização política latu sensu ao longo dos tempos repercutiram na órbita jurídica e
na conseqüente maneira com a qual as pessoas executam suas atividades
cotidianas, passa-se a descrever esses mesmos fenômenos em sede nacional, ou
seja, a “experiência constitucional brasileira”
103
. A importância de explorar esse
panorama histórico está relacionada à necessidade de visualização de alguns dos
entraves que atualmente se erguem ao efetivo Acesso à Justiça.
Dessa feita, o estudo dos oito episódios, datados de 1824,
1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, será realizado com base em Barroso
104
,
destacando-se alguns pontos que, no entender deste autor, caracterizaram cada
uma destas Cartas Políticas, fazendo, contudo, ao longo do texto, apontamentos e
indicações bibliográficas de igual teor na doutrina pertinente. Vale ainda mencionar,
com as palavras de Barroso, que um “melancólico estigma de instabilidade e falta de
103
Expressão utilizada por BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de
suas Normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006.
104
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 7-46.
60
continuidade de nossas instituições políticas”
105
gera uma “inflação jurídica” que
pode ser facilmente extraída dos pouco mais de 180 anos de história.
A Carta Imperial de 1824 pode ser considerada a estréia da
história constitucional brasileira e tem suas primeiras páginas grifadas pela outorga
de uma Carta de índole liberal incapaz de ser visualizada como “fonte de
legitimidade do poder”
106
exercido pelo Imperador. No aspecto formal, um evoluído
rol de direitos e garantias civis e políticas dos cidadãos brasileiros restavam
materialmente insuficientes em face do voto censitário e do regime escravocrata.
Sob o sistema de governo parlamentar, o Segundo Império sustenta um modelo
oligárquico de forte influência oficialista, cujas bases foram logo reformadas pelo Ato
Adicional de 1834, atendendo às primeiras manifestações federalistas nascentes.
Diante de um contexto social em que 83% da população eram de analfabetos, da
decadência econômica e das relações debilitadas da monarquia com o clero e de
ambos com o exército, o Governo Provisório da República revoga a Constituição de
1824 em novembro de 1889, por meio do Decreto n. 1, de 15 de novembro daquele
ano.
107108
A nova ordem estabelecida institui a República no Brasil que,
com inspiração no modelo vigente nos EUA de grande autonomia estadual e
pequena competência central –, transforma a forma de governo monárquico em
republicano e o sistema de governo, até então parlamentar para presidencial. Ainda,
a forma de Estado unitária resta federativa. Assim, a República Velha, sob a insígnia
da Constituição de 1891, pode ser caracterizada pelo seu forte viés autoritário e
faltoso em questões sociais, cujo período de instabilidade
109
restou marcado por
diversas revoluções como a Guerra de Canudos, a Revolução Federalista, passando
105
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 07.
106
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 09.
107
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 09-12.
108
No mesmo sentido, ver: WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de
Janeiro:Forense, 1998, p. 84-86, 91-96,107-108 e 110-112. Ver também: NOGUEIRA, Ronaldo.
Constituições brasileiras: 1824. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnoligia, 2001, 122p. HORTA,
Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.53-54. BONAVIDES,
Paulo. História constitucinal do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 23-136
109
Com o golpe do Marechal Deodoro dissolvem-se as Câmaras Legislativas ainda em 1891.
61
pelo surgimento da Coluna Prestes até a Revolução de 1930
110
. Esses eventos,
entre outros, pode-se dizer, o fruto do controle das oligarquias de cafeicultores e
fraudes eleitorais institucionalizadas. A mencionada autonomia das unidades
federadas permitia a concentração de poderes nas mãos dos governadores, o que
nada mais era do que a representação das vontades das oligarquias estaduais.
Esses elementos, acrescidos de inúmeros outros fatores de instabilidade política e
social, acarretam a debilidade da União. O período assiste ao surgimento da política
do “Café-com-Leite” que perdurou até 1930.
Assim, em um contexto no qual “guardavam-se as aparências
democráticas” e “não era possível fazer política fora do oficialismo”
111
propôs-se a
reforma constitucional de 1926, que tinha a firme intenção de limitar a autonomia
estatal, conferindo um caráter centralizador ao ampliar as possibilidades de
intervenção federal, além da criação do Supremo Tribunal Federal. Contudo, as
transformações apresentadas não foram suficientes para devolver a estabilidade do
regime, muito menos para pôr fim aos defeitos estruturais que estavam conduzindo
ao fim da Primeira República. A Revolução de 30, cujo estopim foram a campanha
presidencial, a crise econômica de 1929 e o Tenentismo, põe fim à vigência da Carta
e do regime em estudo.
112113
Dessa feita, uma Junta Governativa Militar, por meio do
Decreto n. 19.398, de 11 de novembro de 1930, nomeia Getúlio Vargas para
governante provisório.
114
Sob forte influência da Constituição de Weimar foi então
promulgada em 1934 a nova Constituição brasileira. A propósito, referida Carta
apresentava claros vincos capazes de delinear uma democracia social que não saiu
do papel. No entanto, a promulgação dessa Carta deu existência à justiça do
trabalho, ao salário mínimo, ao mandado de segurança e à ação popular, bem como
110
A respeito da revolução de 1930, ver: SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil.
10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p.323-329.
111
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 17.
112
Cf. BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites
e possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 13-19.
113
Neste sentido, ver: BALEEIRO, Aliomar. Constituições brasileiras: 1891. Brasília: Ministério da
Ciência e Tecnoligia, 2001, 121p. Ver também: BONAVIDES, Paulo. História constitucinal do
Brasil. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 255-280. HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4.
ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.54-55. WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no
Brasil. Rio de Janeiro:Forense, 1998, p. 109-113
114
A respeito da chamada Primeira Era Vargas, ver: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio
Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 6.ed. Rio de Janeito: Paz e Terra, 1979, p. 21-71
62
garantiu a manutenção da justiça eleitoral, criada em 1932. É também nesse
contexto que a preocupação relativa às ações coletivas como forma de assegurar
alguns direitos específicos.
Não obstante a influência recebida da Constituição alemã de
1919, a Carta brasileira de 1934 novamente apresenta traços liberais. No final do
ano seguinte sofre três emendas que reforçam os poderes e atribuições do poder
executivo, responsáveis pela declaração do Estado de Guerra capaz de suspender
as garantias constitucionais. Em 1937, em intensa campanha pré-eleitoral, Getúlio
Vargas dissolve o Congresso Nacional com o apoio militar e outorga a Constituição
de 1937.
115116
Iniciado o “Estado Novo” sob a égide da “Constituição Polaca”
foi mantido o regime federativo, o poder legislativo bicameral. Contudo, no período
destaca-se o unitarismo do poder central e o legislativo não se instalou, eis que o
chefe do executivo legislava por meio de decreto-lei. A independência e harmonia
dos poderes restam prejudicadas pela preeminência do executivo e sob a afirmação
de alguns que negam a existência jurídica desta Constituição, eis que não se havia
sujeitado ao plebiscito previsto em seu próprio texto.
Nesse cenário observa-se que a Constituição o
desempenhou papel algum, pois foi substituída pelo mando personalista, intuitivo,
autoritário do governante. De fato, era um governo de suporte policial e militar, sem
submissão sequer formal ao mandamus constitucional, que não teve vigência
efetiva, salvo quanto aos dispositivos que outorgavam poderes excepcionais ao
chefe do executivo.
117
Diante de um regime de viés ditatorial, o Estado Novo passa a
apresentar sinais de desgaste, acrescido pelo ingresso do Brasil na Segunda Guerra
Mundial em 1942. Atendo às mudanças conjunturais que vinham ocorrendo no
mundo contra as ditaduras, Vargas inicia, paulatinamente, um processo de
115
Cf. BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites
e possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 20-22.
116
Neste sentido, ver: BONAVIDES, Paulo. História constitucinal do Brasil. Brasília: OAB Editora,
2004, p. 281-334. HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p.55-56. WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro:Forense,
1998, p. 112-113
117
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 24.
63
democratização, cujo início ficou marcado pela Lei Constitucional 9, de 28 de
fevereiro de 1945, e pela convocação de eleições gerais. Em outubro daquele ano
as Forças Armadas depõem o presidente e com o receio de permanência de Vargas
no governo convocam no mês seguinte nova Assembléia Constituinte. Assim, com a
eleição de Gaspar Dutra encerra-se mais um regime político brasileiro.
118119
No cenário s-Segunda Guerra é então promulgada a quinta
Constituição brasileira, no dia 18 de setembro de 1946, considerada por importante
corrente doutrinária como a melhor das Constituições nos aspectos econômico e
social. No que tange ao modelo federalista, à ordem econômica e social e ao
sistema presidencialista, a nova Constituição foi influenciada respectivamente pelas
Constituições norte-americana, alemã de 1919 e francesa de 1848. Mais uma vez,
com um caráter eminentemente liberal, contemplava um rol de direitos e garantias
individuais, passando com esmero por questões atinentes à educação e cultura, e
também principiológicas com os pressupostos da inafastabilidade do poder
judiciário, repressão ao abuso do poder econômico e função social da propriedade.
Contudo, as bem formuladas inserções relativas às questões sociais, novamente,
não passaram de apontamentos formais teóricos, uma vez que grande parte da
legislação complementar prevista não chegou a ser editada para garantir o
cumprimento e efetivação das normas constitucionais programáticas. Politicamente,
a Carta de 1946 assegurou considerável legitimidade ao processo eleitoral, em
virtude da existência de partidos políticos nacionais. Também foi restabelecido o
equilíbrio entre os poderes estatais, bem como não se descurou de preservar o texto
constitucional. O período foi ainda marcado pelo cancelamento do registro do
Partido Comunista em 1947, a reeleição de Vargas em 1950
120
, a criação da
Petrobras, com a instituição do monopólio estatal da exploração do petróleo em
1953, e o assassinato do Major Rubens Vaz em 1954. Esse último episódio fez
surgir uma espécie de poder paralelo sob o comando dos oficiais da Aeronáutica,
118
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 22-25.
119
Neste sentido, ver: PORTO, Walter Costa. Constituições brasileiras: 1937. Brasília: Ministério da
Ciência e Tecnologia, 2001, 144 p. BONAVIDES, Paulo. História constitucinal do Brasil. Brasília:
OAB Editora, 2004, p. 335-352. HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003, p.56-57. WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de
Janeiro:Forense, 1998, p. 112-113
120
Em relação a chamada Segunda era Vargas, ver: SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getulio
Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 110-180
64
conhecido como República do Galeão. A pressão militar e o clamor de expressiva
parcela da população requerendo a renúncia do presidente levam Vargas ao suicídio
em 1954. A partir de então se torna complexo e turbulento o quadro político
nacional, grifado pela interferência militar na sucessão presidencial, pelo
impedimento de re-assunção de Café Filho ainda em 1954, pela renúncia de Jânio
Quadros, em 1961, e pelo veto, novamente militar, à posse do vice João Goulart.
Todavia, em setembro de 1961 Jânio assume a presidência da república, porém
despido de considerável parcela de poderes, uma vez que o sistema de governo
havia sido alterado por meio de Emenda Constitucional. O restabelecimento do
presidencialismo pelo plebiscito de 1963 não foi suficiente para restaurar a harmonia
política. O Ato Institucional n. 9, de abril de 1964, decretado pelas Forças Armadas,
mantém a vigência da Constituição de 1946, porém cria um aparato normativo
supraconstitucional que modifica a forma de eleição do presidente da república
(agora indireta), altera as garantias dos funcionários públicos, bem como institui a
possibilidade de cassação dos direitos políticos e de mandatos legislativos. Diante
de uma conjuntura ditatorial e de instabilidade das instituições rui mais uma
Constituição brasileira.
121122
O Decreto n. 58.198, de 15 de abril de 1966, autoriza a criação
de uma Comissão Especial para a elaboração de um projeto de Constituição, cujos
trabalhos não foram acolhidos, restando assim tão-somente a elaboração do projeto
pelo ministro da justiça, Carlos Medeiros Silva. O documento foi publicado em 7 de
dezembro de 1966. Assim, o então Presidente da República, Castelo Branco, baixa
o Ato Institucional n. 4 naquela mesma data, convocando o Congresso Nacional
para apreciar a proposta até 24 de janeiro do ano seguinte. Em face do restrito
prazo, o Congresso homologa o texto marcado pela concentração de poderes na
União e conseqüente esvaziamento das atribuições estaduais e municipais. Assim,
quando da posse de Costa e Silva eleito indiretamente por imposição militar a
Constituição de 1967 vigorava. O período foi marcado pela edição do Ato
Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. Decretado o recesso do Congresso, a
121
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 25-34.
122
Neste sentido, ver: BALEEIRO, Aliomar; SOBRINHO, Barbosa Lima. Constituições brasileiras:
1946. Brasília: Ministério da Ciência e Tenologia, 2001, 134 p. Ver também: BONAVIDES, Paulo.
História constitucinal do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 353-430. HORTA, Raul Machado.
Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.57-59. WOLKMER, Antonio Carlos.
História do direito no Brasil. Rio de Janeiro:Forense, 1998, p. 112-114
65
competência legislativa recaiu sobre o executivo que ainda poderia suspender os
direitos políticos, cassar mandatos eletivos, suspender as garantias da magistratura,
suspender o princípio da apreciação do poder judiciário e do habeas corpus, bem
como proceder à livre intervenção federal nos Estados e Municípios. No auge da
ditadura a censura à imprensa se tornou prática comum, assim como a tortura e a
repressão à atividade partidária. Em oposição à ditadura, movimentos armados
constituem a guerrilha urbana, composta principalmente por universitários,
culminando com o seqüestro do Embaixador norte-americano no Brasil em 1969,
seguidos por três outros episódios da mesma natureza até o final de 1970. Os
seqüestros objetivavam a libertação de presos políticos. Por motivos de saúde, o
então Presidente Costa e Silva se afasta do cargo, ocasião em que, novamente, as
forças militares impedem a posse do vice-presidente e editam o Ato Institucional n.
12, de 31 de agosto de 1969, instituindo uma Junta Militar Governativa. Essa mesma
Junta Militar, por meio do Ato Institucional n. 16, de 14 de outubro do mesmo ano,
declara a vacância da presidência da república. No mesmo ato foram marcadas
eleições indiretas e convoca-se o Congresso para homologar o novo chefe do
executivo. Em 17 de outubro de 1969 é editada pelos ministros militares, por meio
de outorga, a Emenda Constitucional n. 1, modificando consideravelmente a Carta
de 1967. Assim, considera-se materialmente outorgada a Constituição de 1969.
123124
A história se repete. A Carta Política de 1969 contém um
grande rol de direitos e garantias individuais que jamais foram postos em prática em
virtude do ainda vigente Ato Institucional n. 5, de 1968. Sob o governo do General
Médice, a vigência da Constituição foi, muitas vezes, de ordem formal, em
submissão a um “estamento tecnocrático-militar”
125
marcado por forte censura à
imprensa e a todos os meios de comunicação. Durante o governo Médice a
Constituição sofreu duas Emendas, a primeira em 1972 e a segunda em 1974, as
quais ajustavam a eleição para governadores e vice-governadores de maneira
123
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 34-38.
124
Neste sentido, ver: BONAVIDES, Paulo. História constitucinal do Brasil. Brasília: OAB Editora,
2004, p. 431-452. HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2003, p. 60-62. WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro:Forense,
1998, p. 112-114
125
Expressão utilizada por BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de
suas Normas. Limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2006. p. 39.
66
indireta e sobre a possibilidade de parlamentares exercerem cargos de ministros,
prefeitos de capitais e secretários, cumulando os cargos, respectivamente. Nesse
período, o General Geisel faz-se o sucessor da presidência e seu governo restou
marcado pela restrição ao emprego da tortura pelos militares. O governo Geisel
ainda aprova emenda constitucional, em 1978, revogando os Atos Institucionais e os
Atos Complementares que afrontam a Constituição. O sucessor de Ernesto Geisel é
o General João Batista Figueiredo que assume a Presidência em 1979. Em seu
mandato Figueiredo enfrenta um dos maiores movimentos populares da história
nacional, a campanha popular pelas eleições diretas que ficou conhecida como
“diretas já”. Todavia, o Congresso Nacional não aprova a Emenda Constitucional
que restaurava o processo eletivo direto e elege, em 1985, Tancredo Neves para
presidente da república que, por motivos de saúde, não assume o cargo. No seu
lugar foi empossado o Vice-presidente José Sarney. Em 27 de novembro de 1985,
por meio da Emenda Constitucional n. 28, é convocada nova Assembléia Nacional
Constituinte para elaborar outra Constituição para o país.
126
Decorridos vinte e cinco anos de submissão ao regime militar,
a Assembléia Nacional Constituinte promove o ingresso do Brasil no elenco das
nações democráticas. O poder constituinte conferido ao Congresso Nacional elegeu
como presidente dos trabalhos o Deputado Ulisses Guimarães, um dos principais
opositores ao regime militar.
127
É inegável que a Constituição de 1988 tem a virtude de espelhar a
reconquista dos direitos fundamentais, notadamente os de cidadania
e os individuais, simbolizando a superação de um projeto autoritário,
pretensioso e intolerante que se impusera ao País. Os anseios de
participação, represados à força nas duas décadas anteriores,
fizeram da constituinte uma apoteose cívica, marcada, todavia, por
interesses e paixões.
128
O período de vigência da atual Constituição, muito embora
tenha marcado o fim de uma obscura era de intolerâncias e (ab)uso indiscriminado
de poderes, apresenta inúmeras crises políticas e econômicas, tais como os
126
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 38-40.
127
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 40-41.
128
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 41.
67
fracassos dos Plano Cruzado e Brasil Novo, seguidos pelo impecheament do
Presidente Fernando Collor de Melo. Em 1994, com a eleição de Fernando Henrique
Cardoso, alcança o governo nacional a geração perseguida pelo regime de 1964.
129
E, na seqüência, Luis Inácio Lula da Silva ascende à presidência como
representante direto da classe trabalhadora, por meio do Partido dos
Trabalhadores.
130
Com o presente estudo finaliza-se, assim, este primeiro
capítulo. Do exposto pode-se afirmar que a Constituição pode ser considerada um
dos principais elementos reguladores das relações entre direito e poder. Com isso,
as relações das pessoas que integram a comunidade dependem diretamente da
eficiente função constitucional de construir e consolidar uma unidade jurídica capaz
de fomentar inter-relações harmônicas e pautadas por uma determinada segurança
jurídica. Assim, desde os tempos antigos o homem busca alguma modalidade de
organização política – sempre considerando o momento histórico analisado –, a
garantia de Acesso à Justiça capaz de satisfazer suas necessidades mais imediatas,
bem como sua função de efetivar os direitos da pessoa humana de maneira
individual ou coletiva, enquanto patrimônio geral de referência social e política.
Dessa maneira, o acesso ao direito também se caracteriza pela garantia e respeito
ao cidadão e ao seu patrimônio jurídico, por meio de instituições eficientes e
eficazes.
Em um contexto como o brasileiro, em que a instabilidade e a
ineficiência das instituições político-sociais são evidentes, uma das conseqüências
que se impõe é o problema do falta de acesso de maior parte da população à justiça,
ao direito. Assim, delineia-se o nexo de casualidade entre a realidade social, suas
aspirações e as instituições jurídicas com suas relações de dependência entre
história e política.
131
129
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 41-45
130
A respeito da Constituição de 1988, ver: TACITO, Caio. Constituições brasileiras: 1988. Brasília:
Ministério da Ciência e Tenologia, 2001, 420 p. Ver ainda: BONAVIDES, Paulo. História
constitucinal do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2004, p. 453-524. WOLKMER, Antonio Carlos.
História do direito no Brasil. Rio de Janeiro:Forense, 1998, p. 114-115
131
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de
s
uas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006
.
p.
09
.
68
CAPÍTULO 2
DO ACESSO À JUSTIÇA
No capítulo precedente, ao analisar a civilização greco-romana,
observou-se que os códigos das cidades mesclavam ritos e orações com
disposições legislativas. Esse jusnaturalismo clássico perdura por toda a Idade
Média. No culo IV, a Igreja Católica se firma como religião e sua influência se
espraia por todo o Império Romano, criando um sistema jurídico próprio chamado de
direito canônico, que se manteaté o século XX. O direito canônico desenvolveu
institutos que acabaram positivados e alguns destes estão presentes no direito
brasileiro dos dias atuais. Por sua vez, o direito feudal, que se limitava às relações
feudo-vassálicas (entre os senhores feudais e os servos) tornava totalmente
desnecessária a evolução de outros institutos jurídicos, pois tinha como fonte
primordial o contrato. O contrato feudal, vale salientar, era um instrumento diverso
do contrato em sua acepção contemporânea e também distinto do contrato social
sobre o qual se funda o Estado Moderno. Essa característica da Idade Média, ou
seja, o direito feudal baseado no contrato, rompe com o direito religioso. Outro
momento de rompimento com o direito religioso foi o renascimento do direito romano
que provoca uma revolução nas concepções jurídica, política, econômica e social.
Como resultado têm-se a transformação de um sistema irracional em um sistema
racional do direito e o gradual declínio do costume em benefício da lei como fonte do
direito nos séculos XIII ao XVIII. Em outro ponto do estudo histórico destacou-se o
renascimento como um marco de início da racionalização do direito, sobretudo
quanto transpôs o jusnaturalismo clássico para o jusnaturalismo racionalista. O
renascimento do direito romano foi também importante na passagem do Estado
Moderno para o Estado Contemporâneo.
No que toca à Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, datada de 1789, percebeu-se que esta consagra liberdades, assegura a
propriedade, passando-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos
direitos do cidadão, ou seja, preponderam os direitos individuais. Por sua vez, esses
direitos individuais passam a ser exercidos coletivamente nos culo XIX, um
ingrediente fundamental para a democracia. Assim os chamados direitos sociais vão
69
se sedimentando ainda no século XIX como uma tentativa de minorar os efeitos
trazidos pelas revoluções burguesas. Na seqüência desse processo, as
Constituições do xico, em 1917, e de Weimar, em 1919, por seus conteúdos
direcionados a atender às necessidades sociais se tornam ícones do
constitucionalismo social simbolizando uma nova forma de organização estatal que
intervém na coletividade para projetar de maneira positiva o exercício dos direitos
previstos nas Constituições. Em poucas palavras, as Constituições do século XX
apresentam matizes, com o advento das Cartas Políticas mexicana e alemã, de
caráter social tendentes à inserção do homem no contexto social.
Nessa mesma marcha avança-se até a Constituição brasileira
de 1988, que apresenta direitos e garantias tidos como fundamentais, tal como a
proteção à criança e ao adolescente, estes que são, ao mesmo tempo, direitos da
sociedade.
Assim, considerando que o processo nos tempos atuais é uma
das formas de manifestação da pessoa humana, observa-se como adequada a
função das Constituições em discipliná-lo, a fim de que normas mal elaboradas não
venham provocar a sua desnaturação, prejudicando, desta maneira, os direitos
subjetivos que devem amparar.
Por sua vez, no que concerne ao Acesso à Justiça, tem-se que
o Estado é o detentor da jurisdição e da titularidade legítima de organização das
relações sociais. Por essa razão pode ser considerado um dos responsáveis pela
promoção do bem comum. Contudo, mesmo sendo considerado como uma ordem
jurídica soberana, cujos atos se dirigem ao bem comum, nota-se que seu caráter
instrumentalista, não raro, interfere na concretização de seu próprio objetivo.
A expressão “Acesso à Justiça” é objeto da várias
conceituações, podendo significar desde acesso aos aparelhos do poder judiciário,
simplesmente, até o acesso aos valores e direitos fundamentais do ser humano. A
segunda, por ser mais completa e abranger a primeira, sugere ser a mais adequada.
Trata-se, não obstante a importância dos aspectos formais do processo, de um
Acesso à Justiça que não se esgota no judiciário, mas representa também e
70
primordialmente o acesso a uma ordem jurídica justa
132
. Dessa feita, a questão do
Acesso à Justiça será abordada como princípio consagrado na Constituição
brasileira de 1988 e como direito fundamental, sem esquecer da correlação com o
direito de ação para, ao final, apresentar quais os entraves que se impõem à sua
concretização na órbita nacional.
2.1 Panorama geral do conteúdo
O Estado, organização política da sociedade, é instituição
situada temporal e espacialmente e caracteriza-se – entre outros elementos
analisados no capítulo precedente como uma ordem jurídica soberana, cujos atos
se dirigem ao bem comum de um povo dentro de um determinado território. O
Estado Contemporâneo, analisado por outro prisma, se materializa por seu caráter
de instrumentalidade (meio útil de concretizar objetivos da sociedade como um
todo), de promoção do bem comum e de intervencionismo.
133
É importante observar que os elementos caracterizadores do
Estado Contemporâneo podem variar. autores que estabelecem critérios que,
embora conexos, apresentam algumas diferenças e os que acreditam ser esse tipo
de Estado democrático orientado pelos princípios de justiça social, da
instrumentalidade e de uma ordem jurídica legítima. Outros, ainda, entendem que as
garantias relativas ao valor da liberdade e à participação popular nas decisões do
poder público devem ser asseguradas no Estado democrático. Contudo, é
necessário atentar para os ensinamentos de Brandão
134
quando afirmar que “o
termo `Estado` não é um conceito universal”, pois “depende sempre de atribuição de
132
Nomenclatura utilizada por WATANABE, Kazuo. Participação e processo. São Paulo: Cliper,
1998. Para o autor, o Acesso à Justiça não se limita em possibilitar o acesso aos tribunais, mas em
viabilizar o acesso a uma ordem jurídica justa, que abrangeria: (1) o direito à informação; (2) o direito
à adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do país; (3) o direito ao acesso a
uma justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e
comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; (4) o direito à preordenação dos
instrumentos processuais capazes de promover a objetiva tutela dos direitos; (5) o direito à remoção
dos obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo a uma justiça.
133
Neste sentido ver NERY Jr., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 5.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
134
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 25-26.
71
sentido por parte daquele que se serve da expressão indicando qual o fato do
mundo fenomênico ela está denotando”.
De qualquer forma, as concepções atuais dizem respeito a um
modelo ideal de importância teórica que tenta superar o individualismo do Estado
liberal, por um lado, e o intervencionismo do Estado de bem-estar social, por outro.
Na prática, esses conceitos abrangem apenas de maneira genérica e incompleta as
peculiaridades dos diversos Estados.
Desde os primórdios, as organizações humanas tiveram como
característica comum, independente de cultura, a existência de regras sociais de
convivência. Não é demais lembrar, porém, que a institucionalização do exercício do
poder, necessária para uma maior organização das sociedades, deu origem ao
Estado, que também passou a exercer o controle das normas sociais e do órgão
estatal sobre os indivíduos, destes entre si e sobre o primeiro, isto é, o próprio
Estado. Do mesmo modo que o Estado, o direito processual e a jurisdição surgem
em resposta à necessidade de se definirem formas de resolução dos conflitos e
quem seriam as autoridades responsáveis para oferecer soluções aos conflitos
apresentados.
A jurisdição é função do poder judiciário, órgão estatal, e visa
especificamente assegurar a aplicação hegemônica do direito na sociedade,
promover a pacificação social e a educação, garantir o livre exercício dos direitos e
afirmar o poder do Estado e dos institutos democráticos que o caracterizam. É
merecedora de determinadas ressalvas, portanto, a idéia de jurisdição responsável
pela aplicação neutra do direito, dentro das funções rigorosamente conferidas ao
poder judiciário pela separação dos três poderes. O ato jurisdicional há que exercer,
com o intervencionismo que lhe é peculiar, uma função social que leve em conta os
anseios da sociedade.
O conceito de direito estatal está inserido na noção de direito
em sentido amplo, assim entendida como o conjunto de normas gerais (direito
positivo), normas individuais (sentenças) e normas emergentes (direito insurgente),
que encontra legitimidade no fato de estar em conformidade com os valores sociais
hegemônicos. As normas são emanadas e aplicadas pelo próprio Estado (por meio
do poder judiciário), mesmo que de forma coercitiva. A aplicação desse direito
material é regulamentada também pelo poder estatal, por meio do direito processual
72
que, em associação com o conjunto de normas (de caráter material), formam o
chamado ordenamento ou sistema jurídico estatal. Direito jurisdicional é, assim,
composto de normas de organização judiciária (estruturação de órgãos judiciários e
auxiliares), de normas processuais (atribuição de poderes e deveres processuais) e
de normas procedimentais (coordenação dos atos processuais e do modus
procedendi). Ademais, é elemento componente do ordenamento jurídico estatal
criado para garantir a efetivação dos direitos individuais, coletivos e difusos (sócio-
políticos) de toda a sociedade. Nesse sentido, consagra-se como instrumento não
apenas técnico, mas também ético.
135
Assim, estabelecida a ligação entre a estrutura do Estado e a
sociedade política, bem como analisadas as repercussões dela provenientes com
referência ao Acesso à Justiça, faz-se necessária a criação ou correta utilização
de mecanismos eficazes de acesso ao poder judiciário (direitos de ões
especificamente voltadas à concretização de fins) para que este, por meio do
processo, proceda à resolução dos conflitos que não puderam ser solvidos na esfera
privada. Com efeito, eis a crescente importância desses mecanismos no âmbito
do direito processual, que se consubstanciam quando, por meio de uma visão
instrumentalista do processo, visam criar, interpretar e aplicar normas para tornar
efetivo o Acesso à Justiça e, última forma, promover a justiça social.
136
A propósito, não é demais afirmar que o poder judiciário, forma
tradicional de Acesso à Justiça, enfrenta severas crises, o que torna custoso ao
Estado proporcionar a efetivação do almejado direito. Além disso, salienta-se que
esse mesmo judiciário, por si só, não consegue promover com exclusividade o
mencionado acesso. Para aplacar o crescente descrédito da sociedade, sem falar no
sentimento de insegurança jurídica, também o judiciário tem sido forçado a adotar
práticas alternativas para a solução de conflitos. As alternativas aos obstáculos
erguidos, por sua vez, vão desenhando o novo enfoque que deve ser dado à
questão do Acesso à Justiça.
135
Neste sentido ver RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à Justiça no Estado contemporâneo:
Concepção e problemas fundamentais. In: _____ (Org.). Elementos de Teoria Geral do Processo.
Florianópolis, 1996.
136
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à Justiça no Estado contemporâneo: Concepção e
problemas fundamentais. In: _____ (Org.). Elementos de Teoria Geral do Processo. Florianópolis,
1996.
73
Neste ponto do trabalho é importante analisar a origem da
justiça no Brasil para bem compreender porque uma significativa parcela da
população não tem acesso a uma ordem jurídica justa. Com efeito, o poder
judiciário, tal como hoje se apresenta, é resultado dos movimentos liberais
burgueses europeus do século XVIII, e marcado pelo liberalismo. Esse liberalismo,
em que a predominância do individualismo, é ainda caracterizado pela presença
do Estado soberano, detentor de todo o Poder Político. Não obstante, outros
fatores que se configuram como entraves ao Acesso à Justiça, tais como a carência
de recursos financeiros da maior parte da população; o desconhecimento do cidadão
dos seus direitos mais básicos; a não utilização dos instrumentos processuais aptos
a assegurar os direitos e garantias fundamentais; a legitimidade processual para
agir; além da conhecida morosidade na prestação da tutela jurisdicional.
Cappelletti, ao estudar as modificações sofridas no conceito de
Acesso à Justiça destaca que as relevantes transformações são acompanhadas das
mudanças no estudo do processo civil. O autor demonstra que nos Estados liberais
dos séculos XVIII e XIX os procedimentos existentes para a solução dos conflitos
civis eram reflexos da filosofia individualista dos direitos. Assim, aponta para o fato
de ser o direito à proteção judicial dos direitos resumido à possibilidade de propor ou
contestar uma ação.
137
Nesses termos, prossegue afirmando que:
A teoria era a de que, embora o Acesso à Justiça pudesse ser um
‘direito natural’, os direitos naturais não necessitavam de uma ação
do Estado para sua proteção. Esses direitos eram considerados
anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado
não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado,
portanto, permanecia passivo, com relação a problemas tais como a
aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los
adequadamente na prática.
138
Quanto ao acesso efetivo ou inaptidão para utilizar a justiça o
mencionado doutrinador analisa:
Afastar a ‘pobreza no sentido legal’ a incapacidade que muitas
pessoas têm de utilizar plenamente a justiça e suas instituições – não
era preocupação do Estado. A justiça, como outros bens, no sistema
137
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 09.
138
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 09.
74
do laissez-faire, podia ser obtida por aqueles que pudessem
enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram
considerados os únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal,
mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal,
mas não efetiva.
139
E mais adiante assevera que:
À medida que as sociedades do laissez-faire cresceram em tamanho
e complexidade, o conceito de direitos humanos começou a sofrer
uma transformação radical. A partir do momento em que as ações e
relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter mais coletivo
que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram
para trás a visão individualista dos direitos, refletida nas ‘declarações
de direitos’, picas dos séculos dezoito e dezenove. O movimento
fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos
governos, comunidades associações e indivíduos. Esses novos
direitos humanos, exemplificados pelo preâmbulo da Constituição
Francesa de 1946, são, antes de tudo, os necessários para tornar
efetivos, quer dizer, realmente acessíveis a todos, os direitos antes
proclamados. Entre esses direitos garantidos nas modernas
constituições estão os direitos ao trabalho, à saúde, à segurança
material e à educação. Tornou-se lugar-comum observar que a
atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de
todos esses direitos sociais básicos.
140
Dessa maneira é resgatada a função social do Estado, em
especial no que tange à ordem jurídica, que passa a ser responsável por uma
atuação ativa e protetiva, um modo de efetivar a igualdade não meramente formal.
Nesse contexto insere-se o papel do poder judiciário, qual seja o da persecução da
liberdade e igualdade também em âmbito material.
Nesse senso e sobre a questão do Acesso à Justiça Souza
Santos leciona:
A democratização da administração da justiça é uma dimensão
fundamental da democratização da vida social, econômica e política.
Esta democratização tem duas vertentes. A primeira diz respeito à
constituição interna do processo e inclui uma série de orientações
tais como: o maior envolvimento e participação dos cidadãos,
individualmente ou em grupos organizados, na administração da
justiça; a simplificação dos actos processuais e o incentivo à
conciliação das partes; o aumento dos poderes do juiz; a ampliação
dos conceitos de legitimidade das partes e do interesse em agir. A
139
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 09.
140
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 10.
75
segunda vertente diz respeito à democratização do Acesso à Justiça.
É necessário criar um Serviço Nacional de Justiça, um sistema de
serviços jurídico-sociais, geridos pelo Estado e pelas autarquias
locais com a colaboração das organizações profissionais e sociais,
que garanta a igualdade do Acesso à Justiça das partes das
diferentes classes ou estratos sociais. Este serviço não deve ser
limitar a eliminar os obstáculos econômicos ao consumo da justiça
por parte dos grupos sociais e culturais, esclarecendo os cidadãos
sobre os seus direitos, sobretudo os de recente aquisição, através de
consultas individuais e coletivas e através de acções educativas nos
meios de comunicação, nos locais de trabalho, nas escolas etc.
141
Dessarte, é mister destacar que a fundamental importância que
se confere à legítima percepção do Acesso à Justiça deve refletir a noção de que
absolutamente todos dele se sirvam. Se assim não for, se estará diante de mais uma
promessa formal do Estado, não cumprida.
142
E para que se concretize essa legítima
concepção será necessária a atuação de todos os operadores jurídicos. É o que
Cappelletti menciona:
Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais
servem a funções sociais; que as cortes não são a única forma de
solução de conflitos a ser considerada e que qualquer
regulamentação processual, inclusive a criação ou o encorajamento
de alternativas ao sistema judiciário formal têm um efeito importante
sobre a forma como opera a lei substantiva – com que freqüência ela
é executada em beneficio de quem e com que impacto social. Uma
tarefa básica dos processualistas modernos é expor o impacto
substantivo dos vários mecanismos de processamento de litígios.
Eles precisam, conseqüentemente, ampliar sua pesquisa para mais
além dos tribunais e utilizar métodos de análise da sociologia, da
política, da psicologia e da economia, e ademais, aprender através
de outras culturas. O ‘acesso’ não é apenas um direito social
fundamental, crescentemente reconhecido; ele é também,
necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu
estado pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e
métodos da moderna ciência jurídica.
143
Acrescente-se ao exposto o fato de que a prestação
jurisdicional, enquanto método de controle social por parte do Estado, não é mais
suficiente para a resolução dos conflitos. Isso se reflete de maneira direta e negativa
141
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9.
ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 177.
142
LIMA FILHO, Francisco das C. Os movimentos de Acesso à Justiça nos diferentes períodos
históricos. Juris Síntese. Bimestral, n. 26. Porto Alegre: Síntese, nov./dez. 2000. (1 CD ROM). p. 04.
143
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 12-13.
76
sobre as possíveis modalidades de melhoria das condições sociais, em especial a
efetivação da democracia e o desenvolvimento econômico. Dessa maneira, “[...]
através da relação do atual modo de funcionamento de nossos sistemas jurídicos, os
críticos oriundos das outras ciências sociais podem ser nossos aliados na atual fase
de uma longa batalha histórica – a luta pelo Acesso à Justiça”.
144
2.2 O Princípio Constitucional do Acesso à Justiça
Partindo-se da premissa que as normas constitucionais podem
ser divididas em regras e princípios, cabe inicialmente distinguir, em linhas gerais, as
duas espécies. Importante destacar que nessa empreitada não haverá preocupação
com a discordância doutrinária acerca das ambigüidades terminológicas que
envolvem a questão, ou seja, adotar-se-á a idéia de que princípios e regras são tipos
de normas, por conseguinte, demonstram imperatividade. Nesse sentido, ensina
Alexy:
145
Tanto as regras como os princípios são normas, porque ambos
dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados com a ajuda de
expressões deônticas básicas do mandato, a permissão e a
proibição. Os princípios, da mesma forma que as regras, são razões
para juízos concretos de dever-ser, ainda que sejam razões de um
tipo bem diferente. A distinção entre regras e princípios é, pois, uma
distinção entre dois tipos de normas [Tradução nossa].
Como é cediço, inúmeras são as teorias que se propõem
estabelecer uma distinção entre princípios e regras. Para o propósito deste estudo
interessam, pois, as abordagens conferidas por Dworkin
146
e Alexy
147
.
144
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 08.
145
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estudos
Constitucionales, 1993, p. 83. “Tanto las reglas como los princípios son normas porque ambos dicen
lo que debe ser. Ambos pueden ser formulados con la ajuda de las expressiones deónticas basicas
del mandato, la permissión y la prohibición. Los principios, al igual que las reglas, son razones para
juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy diferente. La distinción entre
reglas y principios es pues una distinción entre dos tipos de normas.”
146
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambrige: Massachussets: Harvard University
Press, 1978.
147
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estudos
Constitucionales, 1993.
77
Na concepção de Dworkin, princípios e regras se diferenciam
em virtude de elementos estruturais. Os princípios simbolizam uma zona de
aproximação entre o direito e a moral; um standard que deve ser atendido como
exigência de justiça ou equidade ou alguma outra grandeza da moralidade, não
simplesmente porque possa vir a favorecer situações políticas ou sociais
desejáveis.
148
Como crítico da teoria positivista de Hart, o citado autor sustenta que
a existência dos princípios freiam a identificação do fenômeno jurídico a partir de
elementos exclusivamente formais distantes de dados morais, de forma suficiente
para anular segundo sua teoria, repita-se a distinção absoluta entre direito e
moral. Assim, a natureza lógico-estrutural é o quadro que Dworkin estabelece para
distinguir regras e princípios, mencionando que ambos constituem standards
capazes de orientar decisões concretas concernentes a obrigações jurídicas
específicas, porém que se diferem em relação ao caráter que estabelecem na
tomada de decisão. As regras são válidas, ou não. Portanto, são aplicáveis, ou não,
na forma do tudo ou nada.
149
Por sua vez, os princípios não estabelecem
conseqüências jurídicas automáticas ou vinculantes, não sendo possível prever a
integralidade das formas de aplicação possíveis no caso concreto. Daí decorre uma
conseqüência na situação fática: quando se está diante de um conflito de princípios
que podem ser aplicados na mesma situação deve-se estabelecer o peso relativo de
cada um deles, o que não acontece com as regras. Assim, na hipótese de conflito de
regras deve-se optar pelo afastamento de uma delas levando em consideração
somente os elementos relativos à hierarquia, à cronologia ou à especialidade, ou
ainda, segundo Dworkin
150
, por estar patrocinada por um princípio mais importante.
Dessa maneira, considerando o modelo de Dworkin, as regras
atendem a critérios de aplicabilidade de natureza formal atinentes à validade,
enquanto os princípios dependem de valoração de elementos de natureza moral.
148
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambrige: Massachussets: Harvard University
Press, 1978. p. 22.
149
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambrige: Massachussets: Harvard University
Press, 1978. p. 24.
150
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambrige: Massachussets: Harvard University
Press, 1978. p. 27.
78
Na interpretação de Alexy
151
uma distinção entre regras e
princípios reside no fato de que estes são normas que motivam a prática de
determinados atos da melhor maneira possível, considerando as reais possibilidades
jurídicas. Ou seja, funcionam como uma espécie de “mandado de otimização” que
apresentam a possibilidade de serem atendidos em graus diversos e cuja dimensão
de cumprimento não está vinculada a mandamentos definitivos. Por sua vez, as
regras são normas que devem ser cumpridas, ou não, de acordo estritamente com
sua validade e determinação.
Analisando ambas as teorias percebe-se que a distinção entre
regra e princípio reside principalmente na forma de solução em casos de conflitos.
Assim, diante da colisão de princípios utiliza-se a extensão de valor para a solução,
enquanto que em um conflito de regras a solução reside no juízo de validade.
Igualmente, a forma de aplicação dos princípios pode atender a diversos graus de
concretização vinculados aos “mandados de otimização”, enquanto as regras
determinam exigências atreladas à validade formal ou invalidade.
Essa é a chamada concepção forte da diferenciação entre
regras e princípios, que leva em conta elementos graduais e qualitativos, sendo
suficiente aos propósitos do presente estudo.
152
Com tal diferenciação em mente, cabe destacar que as
Constituições brasileiras de 1934, 1946, 1967 e 1969 consagravam o Acesso à
Justiça como Princípio Constitucional, o que evidencia a sua importância como
garante dos demais direitos fundamentais dos cidadãos. E mais: revela que a
tradição constitucional brasileira, de modo geral, sempre prestigiou o princípio da
inafastabilidade da prestação jurisdicional, inclusive por meio de assistência
judiciária
153
aos que dela necessitem. A Constituição Federal de 1988 não fez
151
ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estudos
Constitucionales, 1993 p. 86.
152
Vale destacar, porém, a existência da chamada concepção fraca ou débil, na qual o fundamento
de distinção reside no grau de generalidade. De acordo com essa idéia, em linhas superficiais, os
princípios são as normas que apresentam alto grau de generalidade e regras as que apresentam
baixo grau de generalidade.
153
Em relação à assistência judiciária pode-se destacar sua atuação na esfera extrajudicial, em
especial na prestação de consultorias capazes de informar e aconselhar o cidadão dos tempos
atuais. Essa modalidade de trabalho que apresenta como resultado final o esclarecimento dos direitos
mais básicos do cidadão, além de proclamar a existência do judiciário e apresentar suas funções
constitui relevante aspecto de aproximação de uma camada marginalizada do contexto social com o
Acesso à Justiça.
79
diferente quando estabeleceu, entre seus principais objetivos, “[...] a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna [...]”
154
, como forma de se
“construir uma sociedade livre, justa e solidária [...]”
155
. Além disso, dispôs sobre a
concessão da assistência jurídica integral aos pobres
156
.
Por fim, nas palavras de Brandão e Martins
157
:
O Princípio Constitucional do Acesso à Justiça está positivado na
ordem constitucional brasileira em alguns dispositivos constitucionais
e infraconstitucionais. O mais importante deles está previsto no artigo
5º, XXXV, da Constituição da República, que estabelece: a ‘lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito’. Embora apareça aqui somente parcela do Acesso à Justiça,
por se tratar de disposição que aparentemente cuida do acesso ao
Poder Judiciário, não se pode descurar que este compõe parte
significativa daquela [...].
Esses princípios, acrescidos aos da inafastabilidade do poder
judiciário, da celeridade processual e do devido processo legal, caracterizam o
Acesso à Justiça como um preceito ou ordem maior que, na acepção de
Bonavides
158
é “[...] a pedra de toque ou o critério com que se aferem os conteúdos
constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada”.
2.3 O Acesso à Justiça como direito fundamental
A expressão “Acesso à Justiça” pode ser reconhecida hoje
como condição fundamental de eficiência e validade de um sistema jurídico que vise
a garantir direitos. Assim, calcado em modalidades igualitárias de direito e justiça, tal
instituto deve ser considerado o mais básico dos direitos fundamentais do ser
154
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5
de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal. Gabinete do 4 Secretário, 2000. p. 19.
155
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5
de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal. Gabinete do 4 Secretário, 2000. p. 20.
156
Artigo 5˚, inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988.
157
BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Julgamento antecipado da lide, direito à
prova e Acesso à Justiça. In: ROSA, Alexandre Moraes da (Org.). Para um direito democrático:
diálogos sobre paradoxos. São Jose: Conceito, 2006. p. 09.
158
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p.
254.
80
humano. Não é por outra razão que a incapacidade do Estado em promover a
integração efetiva de parcelas marginalizadas da população tem-se mostrado como
um dos grandes obstáculos à efetivação das promessas da democracia. Outro
aspecto relevante é a exclusão econômica da qual decorre a exclusão jurídica
resultante da incapacidade do Estado de garantir ao cidadão o acesso e a efetivação
dos direitos humanos constitucionalmente garantidos.
159
Cappelletti, coadunando-se com esse entendimento, leciona:
A Expressão ‘Acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil
definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do
sistema jurídico o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar
seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado.
Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; segundo,
ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente
justos. [...] De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido
progressivamente reconhecido como sendo de importância capital
entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a
titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de
mecanismos para sua reivindicação. O Acesso à Justiça, pode,
portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais
básico dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno
e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os
direitos de todos [sem grifos no original].
160
Quanto ao tema da exclusão jurídica, ao delimitar o conteúdo
dos direitos sociais Peces-Barbas alça como justificação dos direitos econômicos,
sociais e culturais a resolução de uma carência em relação a uma necessidade
básica que impede o desenvolvimento do indivíduo como pessoa. Com efeito, a
assistência judiciária certamente tem conteúdo econômico, mas é um direito de
159
MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema
democrático? Tradução de Peter Neumann. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal
da Cultura, 2000. p. 30.
160
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p.11-12.
81
segurança jurídica fomentador do Acesso à Justiça, incluído na primeira geração
161
dos direitos individuais e civis.
162
Quanto aos direitos fundamentais, importante expor os
ensinamentos de Peces-Barbas
163
, quando demonstra que os direitos fundamentais
são uma espécie de pretensão moral justificada - atrelada à noção de dignidade
humana –, e devem apresentar formatos genéricos, ou seja, conteúdos igualitários
capazes de abranger todos os destinatários. Assim, é necessária a consideração de
três elementos: que sejam exigências éticas justificadas; de especial relevância; e
que mereçam especial proteção do sistema jurídico.
Importante lembrar que a Declaração dos Direitos do Homem,
fruto da Revolução Francesa em 1789, modificou o conceito de cidadania até então
vigente. Com efeito, até aquele momento os cidadãos eram apenas “os homens que
participavam do funcionamento da cidade-Estado, os titulares de direitos políticos,
portanto.”
164
Ou seja, permanecia viva, de alguma maneira, a concepção de
cidadania grego-romana. A partir de 1789 desenvolve-se uma concepção mais
individualista, contudo, foi somente após as Cartas de México e de Weimar que a
cidadania pôde ser concebida de forma mais ampla, “aquela condição inerente à
condição de sujeito de um direito decorrente da inserção na sociedade civil
contemporânea”.
165
A idéia é, pois, que todo o homem possui direitos intimamente
ligados a sua própria natureza, os quais precisam ser protegidos; uma modalidade
de cidadania universal.
166
E é justamente sob as bases dessa cidadania universal
161
Na classificação de Peces-Barba, os direitos de primeira geração são os direitos individuais e civis;
os de segunda são os direitos políticos; os de terceira são os direitos econômicos, sociais e culturais;
e os de quarta geração são os direitos da pessoa concreta e situada, distinguidas por razões
culturais, sociais, físicas ou psíquicas (direitos da mulher, da criança, dos idosos, do consumidor, por
exemplo). PECES-BARBA, Gregorio. Los derechos económicos, sociales y culturales: su génesis y su
concepto. Derechos y libertad. Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Madri, n. 6,
febrero, 1998. p. 28.
162
PECES-BARBA, Gregorio. Los derechos económicos, sociales y culturales: su génesis y su
concepto. Derechos y libertad. Revista del Instituto Bartolomé de las Casas, Madri, n. 6,
febrero, 1998p. 28,33.
163
PECES-BARBA, Gregorio. Curso de Derecho Fundamentales: teoria general. Madrid:
Universidad Carlos III de Madrid, 1995. p. 100-204.
164
COMPARATO, Fabio Konder. A nova cidadania. Lua nova: revista de cultura política. Marco zero,
n 28/29. 1993. p. 85.
165
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 180.
166
COMPARATO, Fabio Konder. A nova cidadania. Lua nova: revista de cultura política. Marco zero,
n 28/29. 1993. p. 89.
82
que se cria o Acesso à Justiça como direito fundamental, afastado da matriz
epistemológica individual-liberalista. Assim, “[...] uma visão axiológica da expressão
justiça compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de
valores e direitos fundamentais para o ser humano.”
167
Ou seja, o Acesso à Justiça
poderia ser pensado como um meio de os direitos se tornarem efetivos, não sendo
apenas um direito social, mas sim o ponto central do qual se deve ocupar o
processo
168
e o ordenamento jurídico como um todo.
Em rigor, a própria Constituição Federal de 1988 elege o
Acesso à Justiça como um direito fundamental. Com efeito, a partir do momento que
o Estado passou a garantir justiça à população, independentemente das condições
econômicas, sociais, culturais etc., deve fazê-lo de maneira imparcial, ou seja,
assegurála incondicionalmente a todos os que dela necessitarem. E, como afirma
Brandão
169
:
[...] não se pode esquecer, de outro lado, que o tema do Acesso à
Justiça, por meio do Poder Judiciário, está ligado, umbilicalmente, à
idéia de jurisdição. Assim, toda vez que o cidadão tem negada a
jurisdição, terá negado, necessariamente, o direito fundamental do
Acesso à Justiça [...].
Esse entendimento suscita que o Acesso à Justiça abrange
todas as áreas do poder, de maneira que os cidadãos possam exercer seus direitos
inclusive frente a atividades estatais. Desse modo, garantem-se os fundamentos da
democracia e da estrutura de um Estado fundado sobre suas bases. Eis o novo
argumento que determina a compreensão do Acesso à Justiça como direito
fundamental, uma vez que ao proporcionar o mínimo existencial ao cidadão
efetiva-se também a dignidade da pessoa humana.
167
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro. São
Paulo: Acadêmica, 1994. p. 28,
168
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 185.
169
BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Julgamento antecipado da lide, direito à
prova e Acesso à Justiça. In: ROSA, Alexandre Moraes da. (Org.). Para um direito democrático:
diálogos sobre paradoxos. São José: Conceito, 2006. p. 10.
83
Menelick de Carvalho Netto, em prefácio à obra de Cattoni
170
,
assim discorre:
Sabemos hoje que uma Constituição não é constitucional se não for
democrática; que a democracia só é democrática se observar os
limites constitucionais e que o Estado pode ser centro da esfera
pública se não for privatizado pela administração, ou seja, se e
quando efetivamente atua em defesa dos interesses do todos, na
observância da Constituição [...], e não na defesa dos interesses de
um determinado grupo. [...] Não governo ou governabilidade sem
respeito às diferenças. Aí há ditadura.
Bem por isso, o Acesso à Justiça é um direito fundamental
constitucionalmente previsto, pois se assim não fosse, quer dizer, ao não possibilitar
que toda a população atinja uma prestação jurisdicional adequada de maneira
igualitária, se estaria colocando em xeque a própria constitucionalidade da
Constituição. Por essa razão:
[...] a todos devem ser asseguradas oportunidades mínimas para
alcançarem as condições materiais necessárias ao pleno exercício
dos seus direitos constitucionais fundamentais de liberdade e de
igualdade; é precisamente porque os reconhecemos como
cidadãos iguais e livres, como membros da comunidade de
princípios. Devem ser tratado, portanto, como cidadãos, desde o
início, livres e iguais, titulares dos direitos fundamentais, tendo
oportunidade de responder por suas opções e de com elas
aprender.
171
A assistência judiciária gratuita é um instrumento que
possibilita a concretização do Acesso à Justiça em um de seus aspectos, qual seja o
de permitir que o cidadão hipossuficiente economicamente possa comparecer em
juízo da mesma forma que os demais. Dessa maneira, a Constituição, consoante o
que estabelece o seu artigo 5º, consagra o Acesso à Justiça como direito
fundamental e como ícone democrático.
Contudo, cabe uma importante advertência introduzida por
Cappelletti
172
:
170
CATTONI, Marcelo. Poder constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2006, p. 22.
171
CATTONI, Marcelo. Poder constituinte e patriotismo constitucional [Prefácio de Menelick de
Carvalho Netto]. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 28.
172
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 12-13.
84
O ‘acesso’ não é apenas um direito social fundamental,
crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o
ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe
um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da
moderna ciência jurídica.
No aspecto formal, vê-se que o Acesso à Justiça está abrigado
no ordenamento jurídico nacional, tanto em sede constitucional como
infraconstitucional. A preocupação em abrigar o instituto do Acesso à Justiça decorre
do reconhecimento da existência de um instrumental jurídico eficiente, bem como de
mecanismos para a garantia dos mais diversos direitos, tanto individuais como
coletivos. Não obstante o caráter de principio constitucional e o status de direito
fundamental do Acesso à Justiça, por razões alheias à teoria jurídica, o referido
instituto não se concretiza de maneira integral, eis que uma série de barreiras,
que serão abordadas mais adiante, a impedir a concretização desse mandamus
constitucional. Nesse sentido, Rodrigues
173
discorre:
Em síntese, o que parece ficar efetivamente demonstrado é que o
legislador brasileiro, através de sucessivas legislações elaboradas
nos últimos anos, entre as quais se destaca a Constituição Federal
de 1988, buscou instrumentalizar de forma extremamente atualizada
o direito processual. Se muitos desses avanços não conseguem se
materializar em termos de efetividade, é porque há outros problemas,
de índole extraprocessual, a servir-lhes de barreira. [...] E essa é uma
questão fundamentalmente política, não jurídica.
Em outra obra o mesmo autor faz o seguinte comentário:
Analisando-se os problemas historicamente levantados pela doutrina
como entraves a um efetivo Acesso à Justiça, à luz da legislação
brasileira [...] percebe-se que em termos de instrumentos jurídico-
processuais grande parte do que poderia ser realizado, dentro dos
limites atuais da ciência processual, o foi. Do que resta por
solucionar, uma parcela considerável já é objeto de projetos de lei
que tramitam no Congresso Nacional. Contemporaneamente o
problema do Acesso à Justiça no Brasil não pode ser apresentado
como uma questão propriamente de ausência de instrumentos
jurídico-processuais adequados, a não ser efetivamente naqueles
casos em que o legislativo brasileiro ainda não apreciou e aprovou os
projetos que lhe foram encaminhados.
174
173
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro. São
Paulo: Acadêmica, 1994. p. 94.
174
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 137.
85
Por fim, ao defender a necessidade de uma adequação dos
instrumentos processuais no sentido de conceder efetividade às ações
constitucionais, Brandão
175
se depara com a questão do Acesso à Justiça e enfoca
exatamente o que se vem afirmando. Nas palavras do autor: “há um equivoco nas
seguintes afirmações [...] necessidade de instrumentos outros para a
democratização do Poder Judiciário e para o Acesso à Justiça; [...]”. Ou seja,
existem instrumentos e institutos fomentadores do Acesso à Justiça que são
formalmente eficientes, mas deixam a desejar no momento em que saem da esfera
teórica e ingressam no mundo da efetivação prática.
Com efeito, a seção seguinte procura demonstrar alguns dos
entraves que se impõem a essa efetivação e o terceiro capítulo, por seu turno,
apontará algumas possíveis soluções.
2.4 Os entraves à efetivação do Acesso à Justiça
Na presente abordagem sobre os entraves à efetivação do
Acesso à Justiça destacam-se, de maneira pontual, os elementos que aparecem
com maior destaque na doutrina. Contudo, de início adverte-se que a pretensão não
é esgotar exaustivamente a integralidade das barreiras, mas sim, destacar alguns
dos principais obstáculos que impedem referido acesso e, por conseqüência, a
concretização deste direito, que vem sendo cada vez mais reconhecido como direito
social básico das sociedades contemporâneas. E, como lembra Santos, “foi, no
entanto, no pós-guerra que esta questão explodiu”.
176
De acordo com Cappelletti
177
, a primeira tarefa a ser cumprida
no trabalho de melhoria do Acesso à Justiça é a identificação dos obstáculos
encontrados. Eis um dos motivos do presente estudo.
175
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 192.
176
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9.
ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 167.
177
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 15.
86
Santos
178
afirma que os obstáculos são de três ordens:
econômica, social e cultural.
No que concerne aos obstáculos de natureza econômica, o
primeiro grande entrave para um efetivo Acesso à Justiça, em especial no Brasil, é a
carência de recursos financeiros por grande parcela da população. Associa-se a
isso, ainda, o fato de que grande parte da população não possui qualquer amparo no
que diz respeito a saneamento básico, sem esquecer o quadro de miserabilidade, o
custo de vida que se avulta, os rendimentos e as propriedades cada vez mais
concentrados nas mãos de uma elite. A respeito da pobreza
179
endêmica, que não
aflige somente o Brasil, Silva relata que:
O panorama da pobreza na América Latina é de extrema gravidade.
A Comissão Latino-americana do Caribe sobre o Desenvolvimento
Social informa que entre 1980 e 1990 o total de pobres aumentou em
60 milhões, chegando a 196 milhões o número de latino-americanos
com rendas inferiores aos 60 dólares mensais. Isto significa que 46
% da população total não conseguem suprir suas necessidades
fundamentais. Vale ressaltar que a extrema pobreza (com rendas
menores de $ 30 dólares mensais) também aumentou no mesmo
lapso de tempo e afeta 94 milhões de pessoas.
180
De fato, com o elevado custo do processo judicial, parcela
significativa da população não pode arcar com as despesas advindas das custas
processuais, honorários advocatícios, perícias etc., principalmente quando no outro
pólo do litígio a parte tem poder econômico, seja pessoa, empresa ou órgão estatal.
A igualdade formal, para ser eficaz precisa, portanto, se perfazer em associação
com uma igualdade material
181
ainda que utópica. O fato é que:
178
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9.
ed. São Paulo: Cortez, 2003. p.168.
179
BENJAMIN, Cesar; ALBERTI, Ari José; SADER, Emir. Opção Brasileira. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1998. p. 90-91. Em relação à pobreza os autores avaliam que: "Isso contribui fortemente
para o agravamento de um novo problema estrutural no Brasil: a formação de bolsões de pobreza
absoluta dentro das cidades ou em sua periferia imediata. Quase 40% da população urbana brasileira
vive abaixo da linha de pobreza. Não há mais bolsões isolados, e nem a pobreza decorre
necessariamente da inserção profissional das pessoas em atividades de baixa produtividade. Hoje, os
pobres se espalham por todos os setores da economia, inclusive entre os servidores públicos e os
empregados de empresas privadas modernas.[…] Por exemplo, a renda dos 10% mais ricos era 34
vezes maior que a dos 10% mais pobres em 1960; essa relação passa para 40 vezes em 1970, 47
vezes em 1980 e atinge 78 vezes no censo de 1991".
180
SILVA, Karine Souza. Globalização e Exclusão Social. Curitiba: Juruá, 2000, p. 130.
181
Se faz referência aqui a igualdade de recursos de natureza sócioeconômico-culturais
87
O requisito de igualdade encerra unicamente a exigência de que
ninguém, de forma arbitrária e sem razão suficiente para isso, seja
submetido a um tratamento que difere daquele que se a qualquer
outra pessoa. A exigência de igualdade deve ser compreendida,
portanto, num sentido relativo, isto é, como uma exigência de que os
iguais sejam tratados da mesma maneira. Isto significa que, como
pré-requisito para a aplicação de uma norma de igualdade e com
independência dela, é preciso que haja algum critério para
determinar o que será considerado igual; em outras palavras, a
exigência de igualdade contida na idéia de justiça não é dirigida de
forma absoluta a todos e a cada um, mas a todos os membros de
uma classe determinados por certos critérios relevantes.
182
Trata-se de acabar com a “litigiosidade contida” (conflitos sem
solução) pela institucionalização dos direitos materiais reivindicados e pela criação
paralela de mecanismos de efetivação dos direitos instituídos e ainda
“sonegados”. Isso porque, “se o litígio tiver de ser decidido por processos judiciais
formais, os custos podem exceder o montante da controvérsia, ou, se isso não
acontecer, podem consumir o conteúdo do pedido a ponto de tornar a demanda uma
futilidade”.
183
Com efeito, como mencionado, custas processuais, honorários
advocatícios, perícias e ônus da sucumbência são custos que, não raro, desmotivam
a propositura de ações judiciais e, por vezes, até mesmo a apresentação de
defesas.
Nesse sentido é o comentário de Cappelletti
184
:
Pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros
consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou
defender demandas. Em primeiro lugar, elas podem pagar para
litigar. Podem, além disso, suportar as delongas do litígio. Cada uma
dessas capacidades, em mãos de uma única das partes, pode ser
uma arma poderosa; a ameaça de litígio torna-se tanto plausível
quanto efetiva. De modo similar, uma das partes pode ser capaz de
fazer gastos maiores que a outra e, como resultado, apresentar seus
argumentos de maneira mais eficiente.
Ainda, em relação aos custos de uma demanda judicial, Souza
Santos afirma que “verificou-se que [...] os custos da litigação eram muito elevados e
182
ROSS, Alf. Direito e Justiça. São Paulo: Edipro, 2000, p. 315.
183
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 19.
184
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 21.
88
que a relação entre o valor da causa e o custo da sua litigação aumentava à medida
que baixava o valor da causa”.
185
O autor continua a sua análise mencionando que:
[...] a justiça civil é cara para os cidadãos em geral, mas revela,
sobretudo, que a justiça civil é proporcionalmente mais cara para os
cidadãos economicamente mais débeis. É que são eles
fundamentalmente os protagonistas e os interessados nas acções de
menor valor e é nessas acções que a justiça é proporcionalmente
mais cara, o que configura um fenômeno da dupla vitimização das
classes populares face à administração da justiça.
186
Também Santos
187
afirma que a resolução dos conflitos pelas
vias formais é cara e dispendiosa. Essa onerosidade, que abrange não somente as
custas judiciais, mas todas as despesas que envolvem um litígio, além do
envolvimento emocional das partes do processo na espera pela decisão, segundo o
autor, afastam o cidadão do judiciário. É o que se depreende:
Além dos intricados labirintos que os processos judiciais devem
percorrer lentamente, as chamadas custas desses processos
desanimam até mesmo os que dispõem de alguns recursos
financeiros. Para os pobres, a justiça é mais barreira intransponível
que uma porta aberta. As manifestações de desalento e descrença
quando uma ofensa ao direito é constatada são muitas vezes mais
numerosas que as palavras ou gestos de confiança, ou, ao menos,
respeito pelo aparelho judicial-policial. Além desses entraves
propriamente processuais, contêm-se, no lado ideológico ou
sociológico, com a inadequação ou desatualização em que se
encontram muito dos que são, oficialmente, guardiões da justiça e da
paz social.
188
Na mesma linha de raciocínio pode-se dizer que a morosidade
da prestação jurisdicional constitui outra barreira ao Acesso à Justiça. Em rigor, a
lentidão do processo não é um problema exclusivamente brasileiro. Nos dias atuais
esse problema fica mais evidente porque a sociedade, quanto mais politizada e
exigente, passa a exigir uma maior celeridade na solução das lides.
Outro aspecto a considerar é que a legislação processual
vigente, de conotação liberal individualista e pouco atenta à tutela dos novos
185
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9.
ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 168.
186
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9.
ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 168.
187
SANTOS, Milton. O espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 2000. p. 68.
188
SANTOS, Milton. O espaço do Cidadão. São Paulo: Nobel, 2000
.
p. 68
.
89
direitos
189
, bem como o despreparo de alguns operadores jurídicos, acabam
reproduzindo uma sistemática processual lenta e burocratizada. Dessa realidade
extrai-se que a busca pela solução dos litígios torna-se cara e pouco vantajosa.
Na avaliação de Cappelletti
190
, a demora na prestação
jurisdicional é altamente prejudicial, uma vez que:
Os efeitos dessa delonga, especialmente se considerados os índices
de inflação, podem ser devastadores. Ela aumenta os custos para as
partes e pressiona os economicamente fracos a abandonar suas
causas, ou aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que
teriam direito.
Muito embora a situação da economia nacional não desfrute
mais da inflação galopante de períodos anteriores, observa-se que a tramitação dos
processos a passos rasos influencia econômica e psicologicamente a lide e seus
envolvidos. A eficácia da prestação jurisdicional está também atrelada à sua rapidez,
de forma que beneficia a parte prejudicada na pronta composição das perdas
havidas.
Ainda, não obstante os prejuízos econômico-financeiros e
psicológicos, como mencionado, uma demanda que se prolongue por vários anos
afeta direta e negativamente a credibilidade do poder judiciário e, por extensão, da
própria idéia de justiça. Essa morosidade, o raro, é causada por “chicanas”
processuais das quais lançam mão os operadores jurídicos que atuam em
descompasso com as necessidades sociais.
Silva
191
, a respeito das chicanas e dos problemas que tais
práticas acarretam para a atividade de prestação jurisdicional, comenta:
Chicana: É expressão vulgarizada na linguagem forense, para indicar
os meios cavilosos de que se utiliza o advogado para protelar ou
criar embaraços ao andamento do processo ajuizado. Caracteriza-se
a chicana, que se revela em abuso de direito, nos ardis postos em
189
Expressão “novos direitos” foi empregada na acepção conferida por Brandão, ao ventilar que são
os direitos da cidadania surgidos no século XX, sendo que por cidadania o autor entende que são os
direitos que “decorrem da relação de participação que se estabelece entre o Estado e todos os
integrantes da sociedade civil”. Nesse sentido ver BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações
constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça. Florianópolis: Habitus, 2001. p. 09.
190
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 20.
191
SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v. I. p. 334.
90
prática pelo advogado de uma das partes litigantes, seja pela
apresentação ou provocação de incidentes inúteis, seja pelo
engenho com que arquiteta outros meios protelatórios ou
embaraçosos ao andamento da ação, criando figuras jurídicas que
não encontram amparo em lei ou na jurisprudência, ou tramando
toda espécie de obstáculos para o pronunciamento célere da justiça.
Qualquer embaraço ao andamento do processo, seja por que meio
for, mostra-se chicana, que ela se integra, segundo a técnica de
nossa lei processual, em qualquer manejo protelatório da ação, ou da
resistência injustificada a seu regular andamento.
Em outras palavras, a consciência social no Brasil de hoje
exige que os tribunais nacionais assegurem o Acesso à Justiça como forma de
atender aos anseios da coletividade por uma justiça célere, equânime e justa para
todos. Esse objetivo, com efeito, poderá ser atingido com a adoção de políticas de
modernização dos procedimentos operacionais e processuais.
A descrença da sociedade no poder judiciário abre espaço para
o surgimento de grupos organizados para praticar uma justiça paralela e ilegal, como
exemplos as justiças das favelas e dos justiceiros conhecidos como esquadrões da
morte. É como concebe Rodrigues
192
. Acrescem ainda outros problemas: carência
de recursos materiais e humanos por parte do judiciário; ausência de autonomia com
relação aos demais poderes no âmbito do Estado, sua localização apenas nos
grandes centros urbanos, o corporativismo de seus membros e a inexistência de
mecanismos de controle externo por parte da sociedade; falta de preparo dos
profissionais do direito; respostas insuficientes como fatores complicadores à
concretização do Acesso à Justiça. Em outras palavras, os problemas educacionais,
tanto do cidadão quanto do operador do direito, também constituem entraves ao
Acesso à Justiça.
Um outro importante entrave ao efetivo Acesso à Justiça está
intimamente ligado à carência de recursos econômicos, mencionado alhures, e diz
respeito ao desconhecimento por parte do cidadão dos seus direitos mais básicos e
principalmente dos instrumentos processuais que os possam garantir. Como causa
desse problema apontam-se as deficiências do sistema educacional pátrio, dos
meios de comunicação e das instituições de assistência judicial. Explica-se: a falta
de incentivos governamentais têm contribuído para o analfabetismo e para a baixa
192
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro. São
Paulo: Acadêmica, 1994. p. 46.
91
qualidade de ensino; os meios de comunicação têm reproduzido a supervalorização
da violência e do “jeitinho” brasileiro como meio de resolução de conflitos; e as
instituições de assistência judicial são insuficientes e pouco atuantes.
A propósito, o que se entende por “capacidade jurídica
pessoal”:
[...] se relaciona com as vantagens de recursos financeiros e
diferenças de educação, meio e status social, é um conceito muito
mais rico e de crucial importância na determinação da acessibilidade
à justiça. Ele enfoca as inúmeras barreiras que precisam ser
pessoalmente superadas, antes que um direito possa ser
efetivamente reivindicado através de nosso aparelho judiciário [grifo
no original].
193
A respeito, Souza Santos
194
acrescenta:
[...] os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer pior os
seus direitos e, portanto, a ter mais dificuldades em reconhecer um
problema que os afecta como sendo problema jurídico. Podem
ignorar os direitos em jogo ou ignorar as possibilidades de reparação
jurídica. [...] mesmo reconhecendo o problema como jurídico, como a
violação de um direito, é necessário que a pessoa se disponha a
interpor a acção. Os dados mostram que os indivíduos das classes
baixas hesitam muito mais que os outros em recorrer aos tribunais,
mesmo quando reconhecem estar perante um problema legal.
Ao discorrer sobre as barreiras que devem sem enfrentadas
pelas pessoas intelectualmente menos favorecidas o mencionado autor inclui a
dificuldade de encontrarem um profissional devidamente habilitado e capaz de
contribuir para a resolução de seu problema jurídico. Nessa linha:
[...] verifica-se que o reconhecimento do problema como problema
jurídico e o desejo de recorrer aos tribunais para o resolver não são
suficientes para que a iniciativa seja de facto tomada. Quanto mais
baixo é o extrato sócio-econômico do cidadão menos provável é que
conheça advogado ou que tenha amigos que conheçam advogados,
menos provável é que saiba onde, como e quando pode contactar o
advogado e maior é a distância geográfica entre o lugar onde vive ou
193
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 22.
194
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9.
ed. São Paulo: Cortez, 2003. p.170
92
trabalha e a zona da cidade onde se encontram os escritórios de
advocacia e os tribunais.
195
Em outras palavras, a consciência da população, analisada em
sua integralidade, é pequena no que concerne à noção dos direitos que tem, bem
como dos canais disponíveis para a solução de suas pendências. Cabe destacar
que o nível educacional dos cidadãos brasileiros vem crescendo com o passar dos
anos, contudo ainda se mostra insuficiente para acabar com a impunidade, com a
banalização da violência e principalmente com o falta de conhecimento e iniciativa
de grande parcela da população em ingressar nos meios formais oficiais de
resolução de conflitos.
196
Ao mencionar que o baixo desempenho educacional
representa também um entrave ao efetivo Acesso à Justiça, não se pode deixar de
registrar o problema da formação educacional dos próprios operadores jurídicos.
Com efeito, o baixo nível intelectual dos aplicadores do direito constitui importante
barreira a ser transposta. A comum simplificação que identifica o fenômeno jurídico
desconhece as extensões axiológicas e sociais dos seus acontecimentos. A
primazia do formalismo normativo que reduz o direito à norma – comumente utilizada
por parte significativa dos operadores jurídicos –, estimula a crença que o direito
vem a ser uma entidade autônoma, independente de fatores sociais, históricos e/ou
teleológicos. Dentro desse formalismo, não raro, observa-se a aplicação da lei
dissociada de aspectos éticos e, às vezes, sem a necessária adequação com a real
identidade do direito. Assim, a identificação do direito positivo como justiça e a
recusa em avaliar este mesmo direito com base em critérios de justiça, éticos,
político-econômico e sociais afetam significativamente a produção de uma ordem
jurídica justa.
197
Na avaliação de Rodrigues:
195
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9.
ed. São Paulo: Cortez, 2003. p.170
196
SADEK, Maria Tereza. Apresentação da obra. In: SADEK, Maria Tereza. (Org). Acesso à Justiça.
São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, p. 07.
197
O que se pretende afirmar o é dito de maneira irretocável por NALINI, José Renato. O juiz e o
Acesso à Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 15: “O aspecto normativo do direito
não é renegado, mas enfatizado como elemento de extrema importância. É condição necessária ao
conhecimento do fenômeno jurídico, mas não suficiente à sua compreensão total. O direito é norma,
todavia não se contem todo na positividade.”
93
[...] é necessário destacar-se a própria mentalidade formalística e
burocrática dos operadores jurídicos brasileiros, oriunda de um
ensino basicamente positivista e que não propicia o desenvolvimento
do raciocínio jurídico e do senso crítico necessário neste limiar do
século XXI.
198
O direito do Jus se decompôs no direito da Lex
199
de maneira
que - para suprir as lacunas que surgem o “processo legislativo [...] vem sendo
utilizado para aparente encaminhamento de todos os problemas”.
200
Nesse contexto,
vale demonstrar o entendimento de Alf Ross
201
acerca da justiça:
A idéia de justiça parece ser uma idéia clara e simples, dotada de
uma poderosa força motivadora. Em todas as partes parece haver
uma compreensão instintiva das exigências de justiça. As crianças
de tenra idade já apelam para justiça se uma delas recebe um
pedaço de maçã maior que os pedaços das outras. Tem-se afirmado
que mesmo os animais possuem o gérmen de um sentimento de
justiça. O poder da justiça é grande. Lutar por uma causa ‘justa’
fortalece e excita uma pessoa. Todas as guerras têm sido travadas
em nome da justiça e o mesmo se pode dizer dos conflitos políticos
entre as classes sociais.
Ainda, no que diz respeito à questão cultural tem-se que “o
sistema educacional, os meios de comunicação e a existência de instituições
encarregadas de prestar assistência jurídica extra-judicial”
202
não vêm apresentando
uma atuação satisfatória no sentido de informar a população sobre os seus direitos,
bem como o necessário nivelamento cultural que leve à democratização da justiça e
ao pleno exercício da cidadania.
203
Por sua vez, a crescente ampliação, no mundo
contemporâneo, dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, sem que
198
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 94.
199
NALINI, José Renato. O juiz e o Acesso à Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 11-
16.
200
NALINI, José Renato. O juiz e o Acesso à Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 13.
201
ROSS, Alf. Direito e Justiça. São Paulo: Edipro, 2000, p. 314.
202
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 32
203
Neste sentido, MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1993, p. 48: A democratização da justiça, na verdade, deve passar pela
democratização do ensino e da cultura, e mesmo pela democratização da própria linguagem, como
instrumento de intercambio de idéias e informações.”
94
se tenha deslocado o eixo dos valores do liberalismo individualista do século XVIII,
traz outro entrave para um efetivo Acesso à Justiça e toca, em especial, às
condições da ação. Com analisado alhures, com as revoluções burguesas o homem
passou a ser visto como livre para exercer racionalmente, em sociedade e com o
amparo do Estado não intervencionista, sua liberdade. O desenvolvimento das
ciências humanas, no entanto, veio demonstrar que o ser humano, sujeito de direito,
não é dotado de vontade totalmente livre, nem vive isoladamente de todo o contexto
social. A partir daí, a própria noção de ação como direito subjetivo e de legitimidade
ativa em função de interesses individuais entrou em crise, sendo insuficiente para a
resolução de conflitos e interesses supra-individuais. Nesse sentido, Rodrigues
204
é
contundente:
Outro aspecto fundamental a ser considerado quando se analisa a
questão do Acesso à Justiça é o referente à legitimidade processual.
O mundo contemporâneo se caracteriza, entre outros aspectos, pela
crescente ampliação dos direitos coletivos, difusos e individuais
homogêneos. Frente a esse fenômeno surge a problemática que diz
respeito ao fato de que o ordenamento jurídico pátrio ainda, segundo
alguns autores, es em muitos pontos estruturado
fundamentalmente sobre a idéia do indivíduo como titular de direitos,
numa reprodução dos valores clássicos do liberalismo do século
XVIII.
Assim, a noção de indivíduo agindo isoladamente na defesa de
seus direitos não mais atende às necessidades contemporâneas e está em
descompasso com a evolução histórica do direito. A conseqüência é a
impossibilidade de alcance da efetivação dos novos direitos que circunscrevem
interesses supra-individuais, na busca do bem-estar de cada indivíduo por meio do
bem comum da sociedade.
Tendo em mente que a função jurisdicional é um poder-dever
do Estado e que a legitimidade para agir é uma das condições da ação pode-se
inferir que em cada ocasião que o Estado-juiz extingue um processo sem julgamento
de rito, por descumprimento de alguma das condições da ação, o faz mediante
infração ao dispositivo constitucional que proíbe a imposição de barreiras à
prestação jurisdicional em caso de conflito submetido ao poder judiciário. Dessa
204
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 38.
95
forma compromete severamente o Acesso à Justiça mediante a não satisfação da
pretensão do jurisdicionado.
205
Ou seja, o Estado, a partir do momento que proíbe o
exercício da autotutela e assume a responsabilidade pela resolução dos interesses
jurídicos da população, colocando à disposição do cidadão a jurisdição, o direito de
ação bem como as disposições constitucionais no sentido de vedar a afastabilidade
do judiciário em casos de violação ou ameaça de violação a direito, não pode criar
normas infraconstitucionais que impeçam o ingresso ao judiciário. Assim, “o
conhecimento do conflito pelo órgão encarregado da prestação jurisdicional consiste
em uma garantia fundamental”.
206
Contudo, essa garantia é observada no que diz
respeito às condições da ação, uma vez que, ao dispor que o cidadão deve
preencher requisitos de natureza processual que demonstrem sua legitimidade em
agir e a possibilidade jurídica de seu pedido, o próprio poder judiciário se evade de
sua função-dever, bloqueando o Acesso à Justiça. Isso se porque
necessariamente a efetiva “prestação jurisdicional requer decisão sobre o mérito do
conflito”
207
, “[...] ainda que aquele que busque essa decisão não tenha qualquer
direito material ou esteja totalmente equivocado”.
208
De acordo com Brandão
209
:
Assim, quando a ordem constitucional estabelece essa garantia e
assegura o direito de acesso ao Poder Judiciário, vedando que a lei
possa criar óbice a ele, também determina, por via de conseqüência,
que nem mesmo o próprio Poder Judiciário pode impedir esse
acesso. Por isso, nem mesmo o fato de o Código de Processo Civil
estabelecer condições para o exercício da ação e nem mesmo a
vontade de qualquer órgão judicante pode afastar o direito de
exercício da ação. Ao dizer que uma ação não pode ser julgada em
seu mérito porque não estão presentes condições para seu exercício,
é o Poder Judiciário que está causando um óbice inconstitucional de
acesso ao próprio Poder.
205
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Condições da ação e o Princípio Constitucional do Acesso à Justiça.
In: ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007, p. 764.
206
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Condições da ação e o principio constitucional do Acesso à Justiça.
In: ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007, p. 775.
207
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Condições da ação e o principio constitucional do Acesso à Justiça. In
ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007, p. 775.
208
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Condições da ação e o principio constitucional do Acesso à Justiça. In
ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007, p. 775.
209
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Condições da ação e o principio constitucional do Acesso à Justiça. In
ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007, p. 775.
96
Os direitos difusos, por seu turno, foram criados pelo Estado
social e compreendem os direitos relativos à proteção do consumidor, da natureza
ou direitos sindicais e visam a atender as necessidades presentes e futuras das
gerações. No entanto, referidos direitos não são objeto de efetivas e consideráveis
cobranças por parte dos cidadãos, uma vez que estes estão desmotivados na
procura pelo judiciário. Além disso, não atingem, tampouco sensibilizam as pessoas
mais simples, passando desapercebidos ou mesmo inexistentes. E, na hipótese de
haver algum interessado, pertencente a esse extrato social, não encontrará um
aparato estatal capaz de orientá-lo. Além disso, o problema básico “[...] é que, ou
ninguém tem direito de corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para
qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar
uma ação”
210
. O fato é que, em se tratando de direitos metaindividuais, “é difícil
mobilizar energia privada para superar a fraqueza da máquina governamental”
211
no
sentido de efetivar as promessas criadas pelo próprio Estado. Assim, torna-se pouco
vantajoso para o cidadão comum enfrentar toda a burocracia de uma ação judicial
para buscar a tutela dos interesses difusos ou coletivos, estes entendidos direitos
em que não há um número divisível de titulares. Essa falta de estímulo para se exigir
a concretização desses direitos é uma barreira ao Acesso à Justiça.
O Acesso à Justiça, como já foi mencionado, é um Princípio
Constitucional que engloba vários outros, entre os quais o contraditório e a ampla
defesa. Isso posto, pode-se considerar que o julgamento antecipado da lide -
situação em que a demanda apresentada ao judiciário é de direito e de fato e não
necessidade de produção provas em audiência
212
- pode ser um outro obstáculo ao
efetivo Acesso à Justiça.
No que tange ao contraditório e à ampla defesa, reza no artigo
5º, LV, da Constituição Federal de 1988 que “aos litigantes, em processo judicial, ou
administrativo, ou aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla
defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”. Esses princípios são destinados
210
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 26.
211
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 28.
212
Cf. Artigo 330, inciso I, segunda parte, do Código de Processo Civil: “O juiz conhecerá diretamente
do pedido, proferindo sentença: I quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo
de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência.”
97
expressamente aos processos civil, administrativo e penal, ao passo que a Lei Maior
anterior o canalizava tão-somente para este último. Assim, todos aqueles que
tiverem pretensão de direito material a ser atendida por meio de processo têm a
faculdade de invocar o princípio do contraditório. Referido princípio determina a
necessidade de que todos os atos da ação sejam conhecidos dos interessados e
que estes possam formular uma reação àqueles.
213
Nos casos de julgamento antecipado da lide, o que se verifica é
uma limitação imanente à bilateralidade da audiência. Os princípios do contraditório
e da ampla defesa dão a idéia de paridade de armas, não no sentido absoluto, mas
no de as partes integrarem, na mesma realidade, a igualdade de situações
processuais, para que possam fazer valer seus direitos de maneira justa.
214
Dessa maneira, a prova descartada pelo julgamento
antecipado da lide
215
nos termos do dispositivo em análise, constitui, segundo
Brandão, “[...] um direito das partes de provarem o que afirmam, como forma de se
garantir um efetivo Acesso à Justiça”
216
. Isso porque, “sem que se às partes o
mais amplo direito à prova das afirmações que defendem perante o Estado, se
estaria negando o próprio direito ao processo”.
217
213
É preciso dizer que sua manifestação processual é diferenciada na área civil e penal. Em sede de
processo penal, o contraditório é dito efetivo, real, substancial, havendo necessidade de defesa
adequada até mesmo para o réu revel, sob pena de nulidade dos atos. No processo civil, por outro
lado, o contraditório é mais restrito (tanto nos processos de conhecimento, quanto de execução e
cautelar), posto que se às partes a liberdade de se manifestarem sobre os atos processuais,
podendo estas declinar, com base em sua autonomia de vontade, sem que isso enseje qualquer tipo
de nulidade. É o que se chama de bilateralidade da audiência. Ainda em âmbito cível, o contraditório
igualmente se faz presente nos casos de jurisdição voluntária, mesmo que não se manifestando em
seu aspecto técnico-processual. A citação, sendo o ato pelo qual o réu toma conhecimento de que
em face dele foi ajuizada pretensão, é instituto que implementa o contraditório na medida em que
representa a primeira oportunidade de resposta daquele, seja ela do teor que for.
214
A existência do contraditório real, no processo civil, se verifica como exceção, nos casos em que a
nomeação de curador especial é imperativa (art. 9º, do CPC), para a defesa unicamente de réu citado
de maneira fictícia, por edital e com hora certa. Presume-se, nesses casos, que ele não teve
conhecimento da ação.
215
Cuja decisão cabe exclusivamente ao juiz da causa.
216
BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Julgamento antecipado da lide, direito à
prova e Acesso à Justiça. In: ROSA, Alexandre Moraes da. (Org.). Para um direito democrático:
diálogos sobre paradoxos. São José: Conceito editorial, 2006. p. 17.
217
BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Julgamento antecipado da lide, direito à
prova e Acesso à Justiça. In: ROSA, Alexandre Moraes da, (Org.). Para um direito democrático:
diálogos sobre paradoxos. São José: Conceito editorial, 2006. p. 17.
98
Bem a propósito, as provas se destinam exclusivamente à
elucidação dos fatos ventilados em juízo e as partes podem utilizar-se
adequadamente deste direito
218
para convencer o poder judiciário da veracidade de
determinado fato. A atividade probatória constitui elemento garantidor do Acesso à
Justiça, devendo o órgão judicante restringir suas atuações no sentido de afastar
sua produção.
Ainda, aspectos simbólicos, psicológicos e ideológicos podem
caracterizar entraves ao Acesso à Justiça, como exemplo: dando origem a
sentimentos de inferioridade e medo dos profissionais do direito, geralmente
inacessíveis e distantes da realidade da maioria da população. A esse respeito,
Rodrigues
219
discorre:
A tradição cultural brasileira, que coloca o magistrado como um ser
superior, distancia o povo simples da busca da justiça. Ele, regra
geral, vê o poder judiciário como um objeto distante, inacessível, que
não pertence à sua realidade. Embora em menor grau, o mesmo
ocorre com relação à própria figura do advogado.
Na esteira do entendimento do mencionado autor, a imagem de
justiça e de seus articuladores que reside no inconsciente coletivo faz diminuir o
interesse do cidadão em lutar pela tutela de seus direitos.
Em segundo plano, observa-se uma falta de normas
processuais condizentes com o direito material consagrado, assim como com a
realidade social. Essa insuficiência normativa resulta na incapacidade de os conflitos
serem resolvidos de modo eficaz. Ademais, o Estado brasileiro tem criado
legislações de constitucionalidade duvidosa, fonte de reclamações que poderiam ser
evitadas e permanecem sem solução.
Por fim, a falta de instrumentos processuais correspondentes
aos novos direitos materiais introduzidos na legislação vigente e a escassez de
218
Importante mencionar que a abordagem feita concerne exclusivamente à segunda parte do inciso I
do artigo 330 do CPC e desconsidera todas as circunstâncias nas quais são absolutamente
desnecessárias, ilegais ou ilícitas por natureza ou por forma de obtenção.
219
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 44.
99
instituições aptas a prestar assistência jurídica preventiva e extrajudicial aos
jurisdicionados
220221
representam também obstáculos ao eficiente Acesso à Justiça.
Autores, como Cappelletti, consideram a exigência da presença
de advogado em quaisquer atos processuais um outro tipo de entrave ao efetivo
Acesso à Justiça. Segundo o autor, grande parte da população está
economicamente impossibilitada de pagar pelos serviços destes profissionais, além
do que a grande quantidade e baixa qualidade das escolas de advocacia deu origem
a um tipo de profissional em descompasso com as reais necessidades sociais.
Alega, ainda, a função oculta de ampliar o mercado de trabalho do profissional
liberal, o qual vem sendo formado em velocidades e quantidades extraordinárias.
Entretanto, não se concorda integralmente com essa posição, pois a presença do
advogado é essencial, inclusive nos atos judiciais mais simples, principalmente
quando se está diante de situações que envolvem pessoas econômica e
culturalmente hipossuficientes. Com efeito, em uma demanda, a parte que não
possuir um discernimento mínimo dificilmente te condições de se defender de
forma adequada, mormente quando a outra tiver alguma experiência jurídica, o que
certamente agravará a sua situação, comprometendo inclusive o próprio
contraditório. .
Na interpretação de Ramos:
222
Nenhum aspecto de nossos sistemas jurídicos modernos é imune à
crítica. Cada vez mais pergunta-se como, a que preço e em benefício
de quem esses sistemas de fato funcionam. Essa indagação
fundamental que produz inquietação em muitos advogados, juízes
e juristas torna-se mais perturbadora em razão de uma invasão sem
precedentes dos tradicionais domínios do Direito por sociólogos,
antropólogos, economistas, cientistas políticos e psicólogos, entre
outros. Não devemos, no entanto, resistir a nosso invasores; ao
contrário, devemos respeitar seus enfoques e reagir a eles de forma
criativa. Através da revolução do atual modo de funcionamento de
nossos sistemas jurídicos, os críticos oriundos das outras ciências
podem, na realidade, ser nossos aliados na atual fase de uma longa
batalha histórica - a luta pelo ‘Acesso à Justiça’.
220
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro. São
Paulo: Acadêmica, 1994.
221
Nesse sentido, buscando a necessidade de adequação processual entre os novos direitos de
natureza constitucional para a melhor efetivação da justiça, ver: BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações
constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça. Florianópolis: Habitus, 2001.
222
RAMOS, Glauco Gumerato. Revista dos Tribunais. São Paulo. n. 765, p. 50-51.
100
Em breve síntese, os entraves ao efetivo Acesso à Justiça
analisados neste capítulo foram os seguintes: a) carência de recursos econômicos;
b) “chicanas” processuais; c) descrença da sociedade no judiciário; d) capacidade
jurídica pessoal; e) condições da ação; f) julgamento antecipado da lide; g)
conscientização em relação aos direitos difusos e coletivos e; h) aspectos
simbólicos, psicológicos e ideológicos atrelados à noção de justiça e de poder
judiciário.
Importante mencionar ainda que a abordagem deste capítulo
procurou, sem a pretensão de enumerar “todos” os possíveis entraves ao efetivo
Acesso à Justiça - este que é um Princípio Constitucional -, discutir acerca das
barreiras comumente apresentadas pela melhor doutrina para a temática. Não
obstante, “muitos problemas trazidos pela doutrina, e aqui enumerados, podem ser
resolvidos ou minimizados através da adoção de instrumentos processuais
adequados, ou da interpretação finalística e sistemática dos já existentes”
223
e,
ainda, considerando que alguns foram efetivamente minorados, todos serão
objeto de nova análise sob um enfoque diverso do que foi apresentado até este
ponto do trabalho.
223
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 49.
101
CAPÍTULO 3
PROPOSTAS DE SUPERAÇÃO DAS BARREIRAS IDENTIFICADAS
A distinção entre sociedade e Estado, bem como a formação
deste e seu dever de prestar a tutela jurisdicional, objeto do presente estudo, se
revelam itens de fundamental importância para a consecução do objetivo proposto,
qual seja a identificação das barreiras de Acesso à Justiça e as possíveis soluções
passíveis de minorar suas conseqüências.
Nesse sentido, abordando a evolução e a transformação das
instituições ao longo dos séculos, Hegel
224
, com propriedade, sintetiza tal
desenvolvimento histórico e afirma que a sociedade civil se caracteriza como certa
etapa de passagem da “idéia”, cujo resultado final é o Estado. Mais adiante
prossegue o autor:
A sociedade civil é o ‘sistema de necessidades’, a destruição da
unidade da família e a atomização dos seus membros, em suma, o
domínio dos interesses particularísticos e do egoísmo, um estádio
que será superado pelo Estado, o supremo unificador dos interesses,
a idéia universal, a concretização plena da consciência moral.
225
Ou seja, o Estado trouxe para si a exclusividade do poder-
dever de assegurar aos cidadãos, entre outros elementos, uma ordem jurídica justa
permeada pelo amplo e irrestrito Acesso à Justiça, este positivado no ordenamento
jurídico brasileiro como Princípio Constitucional e como direito fundamental.
Entretanto, em virtude de interferências existentes no sistema de organização cio-
estatal, essa promessa o é cumprida de maneira satisfatória. O problema que se
identifica pode ter como fato gerador a própria crise do Estado, que se torna patente
na deficiência das políticas públicas, tais como habitação, saúde e educação. O
Estado vem progressivamente deixando de ser o produtor de bens e serviços para
se tornar consumidor dos produtos que ele mesmo era capaz de criar, agora
elaborados pela iniciativa privada.
224
HEGEL apud SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-
modernidade. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 120.
225
HEGEL apud SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-
modernidade. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 120.
102
De acordo com Sanches Filho, “a discussão do Acesso à
Justiça está diretamente relacionada com a construção da cidadania, sobretudo em
sociedades cujo processo de democratização política é relativamente recente”.
226
Com relação aos entraves à sua efetivação, “no Brasil, por força de suas
monumentais desigualdades, a discussão ganha peso quando analisada do ponto
de vista da garantia e da consolidação dos direitos do cidadão”.
227
Por tais razões
serão objeto de nova análise: a) a carência de recursos econômicos; b) as
“chicanas” processuais; c) a descrença da sociedade no judiciário; d) a capacidade
jurídica pessoal; e) as condições da ação; f) o julgamento antecipado da lide; g) a
conscientização em relação aos direitos difusos e coletivos e; h) os aspectos
simbólicos, psicológicos e ideológicos atrelados à noção de justiça e poder judiciário.
3.1 Carência de recursos econômicos
3.1.1 Da Assistência Jurídica
Grandes passos já foram dados no sentido de se reduzir o
problema do Acesso à Justiça. Com efeito, um dos mais significativos diz respeito à
carência de recursos econômicos. Trata-se da assistência jurídica, presente no
ordenamento jurídico nacional desde 1950 por meio da Lei n. 1.060 que instituiu a
assistência judiciária gratuita. Nesse mesmo sentido, mas com enfoque mais
abrangente, a Constituição Federal de 1988 consagrou, nos termos do artigo 5º,
LXXIV, a assistência jurídica integral e gratuita aos cidadãos que dela necessitarem.
Dessa maneira, pode-se dividir a história da assistência jurídica
no Brasil em três períodos distintos: a) antes da promulgação da Lei n. 1.060/50,
quando ainda não havia regulamentação a respeito; b) período compreendido entre
226
SANCHES FILHO, Alvino Oliveira. Experiências institucionais de Acesso à Justiça no estado da
Bahia. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer,
2001. p. 241.
227
SANCHES FILHO, Alvino Oliveira. Experiências institucionais de Acesso à Justiça no estado da
Bahia. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer,
2001. p. 241.
103
a década de 1950 e a Promulgação da Constituição Federal de 1988 e; c) pós-1988,
com todas as modificações apresentadas pela chamada Constituição Cidadã.
228
A assistência judiciária surge na legislação brasileira por meio
das Ordenações Filipinas de 1823, que determinava que as causas cíveis e
criminais dos miseráveis e dos indefesos devessem ser defendidas gratuitamente
por advogados particulares. Essas disposições vigoraram até 1916. Por sua vez, em
1930 o primeiro Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil determinava que os
advogados prestassem assistência judiciária sem custos aos que não tivessem
condições de pagar pelos serviços advocatícios. Constitucionalmente, foi a Carta de
1934 que inseriu a assistência no rol dos direitos e garantias fundamentais, o que se
repetiu em 1967, 1969 e em 1988. Em sede de legislação infraconstitucional, a
mencionada Lei 1.060/50 merece destaque, vez que é considerada um ícone do
beneficio em estudo, tendo instituído conceitos até hoje utilizados.
229
Contudo,
merece relevo o fato de que na Lei 1.060
230
, a assistência judiciária não é
caracterizada como dever do Estado e, tampouco, o Acesso à Justiça como direito
fundamental de garantia da cidadania. A assistência judiciária era então prestada a
título caritativo
231
, um favor público, sem a preocupação de proporcionar aos menos
favorecidos as mesmas condições de igualdade.
O fato é que, em face da omissão legislativa a respeito da
obrigatoriedade do Estado em prestar referido benefício, o compromisso foi
absorvido pela Ordem dos Advogados do Brasil que indicava profissionais
habilitados, ou ainda cabia ao juiz da causa nomear procurador aos hipossuficientes
economicamente. Com efeito, a Lei n. 4.215/63 que regulamentou o Estatuto da
Ordem dos Advogados do Brasil, à época, cuidou de atribuir como dever profissional
228
CUNHA, Luciana Gross Siqueira. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo:
Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 156.
229
Refere-se aos conceitos de necessitado, beneficiário e limites do benefício.
230
Menciona-se, até então, o termo assistência judiciária uma vez que o beneficio engloba a
gratuidade do processo, ou seja, a gratuidade dos atos do processo. Assim, o art. 3º da Lei em
comento determina a isenção: “I) das taxas judiciárias e dos selos; II) dos emolumentos e custas
devidos aos juizes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça; III) das despesas com as
publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais; IV) das
indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do empregador salário
integral, como se em serviço estivessem, ressalvados o direito regressivo contra o poder público
federal ou estadual; V) dos honorários de advogado e peritos”.
231
CUNHA, Luciana Gross Siqueira. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo:
Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 156-157.
104
do advogado a prestação de assistência judiciária aos que dela necessitarem. Da
mesma forma, o Estatuto da Classe – Lei 8.906/94 –, em vigor, regulamenta a
prestação da assistência judiciária pelo advogado, na ausência do serviço de
Defensoria Pública, cujos honorários devem ser pagos pelo Estado. Nessas
disposições estatutárias percebe-se a opção pela indicação do advogado particular
como forma de disfarçar a falta de disposição política do Estado em instalar a
competente Defensoria blica e, assim, possibilitar o exercício da cidadania da
pessoa carente relativamente ao efetivo Acesso à Justiça.
Com a promulgação de sucessivas Constituições observa-se
que o benefício da assistência judiciária aos poucos vai-se configurando como
obrigação do Estado. Assim é que, em 1988, a atual Carta Magna agrega ao
ordenamento jurídico trio uma série de direitos aos cidadãos, bem como dispõe
sobre os instrumentos para garantir e tornar efetivos tais direitos. É o caso do direito
de Acesso à Justiça, principio constitucional previsto no artigo 5º, XXXV.
A partir de então, a assistência passa de judiciária por não
mais abranger exclusivamente os atos processuais para assistência jurídica
assegurada por um Estado Democrático de Direito fundado, entre outros, no
princípio da igualdade, do amplo Acesso à Justiça e do devido processo legal.
Em uma análise das disposições Constitucionais sobre a
matéria
232
, percebe-se que ao mencionar os termos “assistência jurídica integral e
gratuita” o constituinte ampliou significativamente a abrangência do amparo aos
hipossuficientes, no sentido de agregar ao benefício outras condições além de
simplesmente o ingresso no judiciário. Ou seja, apresenta também a possibilidade
de o cidadão carente ter ao seu dispor a assessoria extrajudicial. Essa percepção é
reforçada pelo termo “integral”, que propicia ao cidadão que faça jus à assistência, a
utilização de todos os meios jurídicos possíveis, antes, durante e depois do
processo, inclusive administrativa ou extrajudicialmente, quando for o caso.
233
232
Cf. o art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal de 1988: “o Estado prestará assistência jurídica
integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
233
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina[. Florianópolis, 1993. p. 59.
105
A este respeito, Ramos
234
leciona:
muito tempo, já se sabe que a sistemática da assistência
judiciária por si só, é uma garantia insuficiente. Conquanto, a
cinqüentenária Lei n. 1.060/50 tenha representado no Brasil um
marco expressivo da preocupação do Estado com a problemática do
‘Acesso à Justiça’, a verdade é que a possibilidade do patrocínio
judicial gratuito e da isenção das despesas processuais não
asseguram a ‘libertação’ e o necessário respeito jurídico à dignidade
do hipossuficiente. Daí o porquê da Constituição da República de
1988 inicialmente estruturada com traços do Welfare State
elencou no rol das cláusulas pétreas o inarredável dever do Estado
de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos (CR, art. 5º, LXXIV), erigindo
tal dispositivo ao verdadeiro princípio fundamental da pessoa
humana em receber os influxos da proteção jurídica imanente ao
Estado de Direito, garantiu ao necessitado a possibilidade irrestrita
da obtenção de assistência jurídica, que, sendo conceito maior que a
mera assistência judiciária deve ser entendida como todo e qualquer
auxilio jurídico voltado para o sujeito necessitado, mormente no que
diz respeito a um aconselhamento preventivo que vise a exterminar o
germe do conflito de interesse que, senão dissipado, poderá ter que
ser discutido no Tribunal.
Nesse sentido, cabe salientar que:
[...] assistência judiciária e benefício da justiça gratuita não são a
mesma coisa. O beneficio da justiça gratuita é direito à dispensa
provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual,
perante o juiz que promete a prestação jurisdicional. É instituto de
direito pré-processual. A assistência judiciária é organização estatal,
ou paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória das
despesas, a indicação de advogado.
235236
Ainda, objetivando facilitar o Acesso à Justiça pelo cidadão de
poucas posses, o legislador constitucional incorporou no dispositivo em estudo o
termo “gratuita”. Em outras palavras, significa dizer que resta assegurada a qualquer
cidadão a possibilidade de defesa de seus direitos, entre estes, o direito de petição
contra ilegalidades ou abuso de poder, independente do pagamento de taxas, custas
e/ou emolumentos, inclusive no que diz respeito à obtenção de certidões das
234
RAMOS, Glaugo Gumerato. Realidade e perspectivas da assistência jurídica ao necessitado no
Brasil. Revista do Advogado. São Paulo. n. 59, 2000. p. 73.
235
PONTES DE MIRANDA apud MORAES, Humberto Pena de; SILVA, José Fontenelle Teixeira da.
Assistência judiciária: sua nese sua histÓria e a função protetiva do Estado. 2. ed. Rio de
Janeiro: Líber Juris, 1984. p. 94.
236
Importante levar em consideração o rigor terminológico atual da expressão, que adequadamente é
empregada como assistência jurídica e não mais judiciária, como cita o doutrinador. Cabe também
mencionar que a obra em referência é anterior a atual Constituição Federal
106
repartições públicas.
237
Dessa maneira, ao menos formalmente, está garantido em
termos legais o Acesso à Justiça pela população carente.
3.1.2 Da Defensoria Pública
No intuito de aperfeiçoar ainda mais a possibilidade de Acesso
à Justiça, o constituinte de 1988 instituiu, no artigo 134, a Defensoria Pública, órgão
incumbido de prestar orientação jurídica e defesa aos necessitados, ficando ao
encargo da Lei Complementar organizá-la no âmbito da União, do Distrito Federal e
dos Territórios, fixar normas gerais para sua estruturação nos Estados da federação,
bem como institui-la como função essencial para a justiça brasileira.
238
Ante a determinação constitucional, em 12 de janeiro de 1994,
restou publicada de Lei Complementar n. 80, que organiza a Defensoria Pública nos
termos do que determina a Carta Política. Moraes
239
assim descreve a lei em
referência:
A Lei Orgânica Nacional cuida da organização da instituição,
funcionamento, atribuições e competência de seus órgãos, bem
como do regime jurídico de seus membros. Importância fundamental
tem esse diploma legal para as Defensorias Públicas de todo o País.
Traduz o reconhecimento, a nível nacional [sic], da instituição que
tem por finalidade precípua assegurar o Princípio Constitucional da
igualdade, mas, não apenas uma igualdade formal, como bem
frisou o eminente professor e desembargador fluminense José Carlos
Barbosa Moreira, mas uma igualdade substancial no acesso à
informação jurídica e no Acesso à Justiça. [...] Por isto, a importância
da Defensoria Pública extrapola os limites traçados pelo art. 134 da
Constituição Federal e da LC 80, para alcançar a própria garantia
237
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina[. Florianópolis, 1993. p. 60.
238
Cf. art. 134 da Constituição Federal de 1988: “A Defensoria Pública é instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos
necessitados, na forma do Art. 5º, LXXIV. Parágrafo único: Lei Complementar organizará a
Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para
sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso
público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o
exercício da advocacia fora das atribuições institucionais”.
239
MORAES, Silvio Roberto Mello. Princípios institucionais da defensoria pública: Lei
Complementar 80 de 12.1.94 anotada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 16.
107
e efetividade do Estado Democrático de Direito, que ela é o
instrumento pelo qual vai se viabilizar o exercício, por parte de cada
cidadão brasileiro, dos direitos e garantias individuais que o
Constituinte tanto se preocupou em assegurar ao povo brasileiro,
consagrando assim a igualdade substancial [...].
Em razão da insuficiência da nomeação de defensores dativos
por meio da assistência judiciária de modo a satisfazer dos anseios sociais relativos
ao pleno Acesso à Justiça, a criação e manutenção da Defensoria Pública como
órgão estatal é absolutamente necessária para a concretização deste direito
fundamental e fomentador da satisfação de todos os outros direitos,
240
em especial
no que se refere à prestação de serviços jurídicos extra-processuais.
Moraes
241
conceitua a Defensoria Pública como sendo:
[...] uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime
democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica integral e
gratuita, a postulação e a defesa, em todos os graus e instâncias,
judicial e extrajudicialmente, dos direitos e interesses, individuais e
coletivos dos necessitados, na forma da lei.
Em outras palavras, é um órgão criado e subsidiado pelo
Estado, com a finalidade precípua de oferecer assistência jurídica completa, justo
para proporcionar à população a correta noção de quais são seus direitos, como
agir, seja individual ou coletivamente.
Da análise do disposto no artigo da mencionada Lei
Complementar n. 80/1994
242
as Defensorias Públicas devem agir, por intermédio de
seus defensores, no sentido de prestar aconselhamento jurídico; informação jurídica
240
CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e cidadania. Chapecó: Argos. 2003. p.
119.
241
MORAES, Guilherme Braga Pena. Assistência jurídica, defensoria pública e o acesso à
jurisdição no estado democrático de direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris. 1997. p. 41.
242
Funções da Defensoria Pública conforme a Lei Complementar n. 80/1994, art. 4º, verbis: “I
promover, extrajudicialmente, a conciliação entre as partes em conflito de interesses; II patrocinar
ação penal privada e subsidiária da pública; III patrocinar ação civil; IV patrocinar defesa emão
penal; V patrocinar defesa em ão civil e reconvir; VI atuar como curador especial, nos casos
previstos em lei; VII exercer a defesa da criança e do adolescente; VIII atuar junto aos
estabelecimentos policiais e penitenciárias, visando assegurar à pessoa, sob quaisquer
circunstâncias, o exercício dos direitos e garantias individuais; IX assegurar a seus assistidos, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com
recursos e meios a ela inerentes; X atuar junto aos Juizados Especiais de Pequenas Causas; XI
patrocinar os direitos e interesses do consumidor lesado”.
108
e atuação extrajudicial. E essa assistência, vale dizer, deve ser preventiva e
curativa.
243
Assim, o plus oferecido pela Defensoria Pública em relação à
assistência dativa prestada por profissionais particulares subsidiados pelo Estado
reside na maior amplitude de sua atuação, haja vista que permite desenvolver junto
à população a noção de cidadania por meio da educação. Assim, evita-se a criação
de litígios em virtude da informação do indivíduo e se proporciona o estabelecimento
de uma ordem jurídica justa mais palpável, mediante o atendimento das
necessidades sociais enquanto política pública de Acesso à Justiça.
Importante destacar que o cargo de Defensor Público é
preenchido mediante concurso público de provas e títulos. A carreira de defensor
público goza das prerrogativas de inamovibilidade, estabilidade, irredutibilidade e
isonomia de vencimentos com as carreiras da Magistratura, do Ministério Público e
da Advocacia Geral da União
244
, ficando proibido o exercício de atividade
advocatícia extra-institucional. O concurso público para o cargo em referência é
organizado pelo Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado ou da União,
de acordo com o caso, e os candidatos devem estar devidamente inscritos na
Ordem dos Advogados do Brasil, além de comprovar experiência profissional de no
mínimo dois anos.
245
O órgão é instituição funcionalmente independente, ligado ao
poder executivo, porém com autonomia hierárquica em relação este. É dotado dos
princípios da indivisibilidade e da unidade.
246
O órgão da Defensoria Pública pode ser considerado uma
alternativa ao problema do Acesso à Justiça, em especial para atendimento da
população carente, uma vez que possibilita aos pobres orientações jurídicas em
sede judicial e extrajudicial, e em igualdade de condições com os que possuem
melhores condições financeiras.
Cunha assinala com ênfase que:
243
CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e cidadania. Chapecó: Argos. 2003. p.123-
124.
244
Destaca-se que os artigos 39, § e 135 a Constituição Federal de 1988 não fazem referência à
vitaliciedade.
245
CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e cidadania. Chapecó: Argos. 2003. p.126.
246
CUNHA, Luciana Gross Siqueira. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo:
Fundação Konrad Adenauer, 2001. p. 161.
109
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro vem se destacando na
prestação de serviços jurídicos gratuitos. Hoje, ela possui o maior
quadro de defensores públicos, com 579 integrantes, atuando em
diversas áreas e atendendo não somente a demandas que têm como
objeto direitos individuais, mas também direitos coletivos e difusos.
Além disso, a Defensoria Pública carioca vem respondendo às
exigências apontadas pelo ‘movimento de Acesso à Justiça’, ao
reconhecer as demandas da população carente onde elas,
efetivamente ocorrem na periferia e transformando-as em
disputas por políticas públicas.
247
Em conseqüência de sua atuação: “A Defensoria blica
carioca também tem sido responsável pela criação de jurisprudência junto aos
tribunais, alargando e efetivando o Acesso à Justiça, bem como as atividades
próprias da Defensoria Pública, enquanto instituição essencial à Justiça”.
248
Em contraposição, Santa Catarina é uma das unidades da
federação que não atende à disposição constitucional, eis que não implementou o
órgão da Defensoria Pública, impossibilitando à parcela carente da população
catarinense os serviços essenciais para a garantia do Acesso à Justiça.
Diante do desamparo governamental no que concerne à
efetivação de referida garantia fundamental, a população de baixa renda vem sendo
atendida pela Defensoria Dativa, composta por advogados previamente habilitados e
nomeados pela Ordem dos Advogados do Brasil, mediante acordo com o Tesouro
do Estado, que arca com o custeamento dos serviços prestados, mediante o
pagamento de URHs
249
.
Contudo, esse sistema deixa a desejar por vários aspectos,
entre eles, como mencionado, por abranger exclusivamente a assistência
judiciária, bem como em virtude dos reiterados e notórios atrasos por parte do
executivo estadual em efetuar o pagamento dos procuradores dativos pelos serviços
prestados.
Dessarte, percebe-se a falta de interesse de governantes e
legisladores no movimento do Acesso à Justiça, em condições de igualdade, haja
247
CUNHA, Luciana Gross Siqueira. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo:
Fundação Konrad Adenauer, 2001. p 164.
248
CUNHA, Luciana Gross Siqueira. In: SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo:
Fundação Konrad Adenauer, 2001. p 165.
249
Unidade Referencial de Honorários.
110
vista sua inércia na obediência ao dispositivo da Lei Maior, promulgada há
praticamente dezenove anos. Nesse sentido é a citação de Caovilla
250
:
Este modelo tem mostrado sua inviabilidade por vários fatores.
Primeiro, porque não é oportunizado ao cidadão o efetivo acesso à
assistência jurídica (informativa, preventiva e curativa, entre outros).
Não existe um projeto ou uma seqüência de procedimentos eficazes
e capazes de assegurar ao cidadão catarinense o efetivo Acesso à
Justiça. Segundo, porque, faltando estrutura funcional a que se
destina a assistência jurídica, o cidadão é tratado com desatenção,
descaso e sem compromisso. Terceiro, porque o pagamento dos
honorários aos profissionais é falho, desde a sua criação. Os débitos
por parte do Tribunal de Contas do Estado se arrastam anos e anos
sem pagamento e, como conseqüência, não motivação para o
trabalho do profissional, que a defensoria dativa como uma
penalidade, um peso que se carrega como ‘ossos do ofício’, ou seja,
‘defender pobre é pagar pecados’. Primeiro, porque ‘pobre incomoda
muito’, ‘cheira mal’, é ‘desinformado’; segundo, porque o Estado não
paga o serviço, ou se paga, demora muito para fazê-lo. Então, ‘não
vale a pena trabalhar dessa forma’.
Ainda, é importante mencionar também o art. 104 da
Constituição do Estado de Santa Catarina que, em conflito com a Constituição
Federal de 1988, estatui que a Defensoria Pública será exercida pela Defensoria
Dativa e pela Assistência Judiciária Gratuita. Em regulamentação ao referido
dispositivo o legislativo estadual promulgou a Lei Complementar n. 155/97
regulamentando a Defensoria Pública mediante atuação dos defensores dativos
cadastrados na Ordem dos Advogados do Brasil.
251
No que diz respeito à permissão da população carente ao
efetivo Acesso à Justiça, o estudo a aqui desenvolvido demonstra ter havido
uma melhora. Contudo, o problema o se encontra resolvido, vez que considerável
parcela da população permanece às margens do sistema jurídico existente no Brasil,
em especial no Estado de Santa Catarina, onde o órgão governamental responsável
pela garantia do acesso sequer foi criado.
250
CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e cidadania. Chapecó: Argos. 2003, p.
142.
251
CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e cidadania. Chapecó: Argos. 2003, p.
140. A autora menciona que: “Assim, cabe à Ordem dos Advogados do Brasil, seccional de Santa
Catarina, organizar e oferecer em todas as comarcas do estado, a relação de profissionais habilitados
à prestação de serviços pela Defensoria Pública e Assistência Judiciária. Em contrapartida, cabe ao
Poder Executivo Estadual, aparado pelo artigo da referia Lei Complementar n. 155/97, prever
dotação orçamentária específica para pagamento dos encargos decorrentes da defensoria gratuita”.
111
Todavia, comparando-se as duas formas propostas para
facilitar o acesso da população carente à justiça assistência judiciária e defensoria
pública – nota-se que elas apresentam aspectos favoráveis e desfavoráveis na
consecução do objetivo proposto. É o que a seguir se analisa.
A assistência judiciária instituída em Santa Catarina conta com
um grande número de advogados inscritos no rol de defensores dativos
252
, em todas
as comarcas do Estado e muitos deles o especialistas na maioria dos ramos do
direito, o que permite ao cidadão beneficiado pelo programa ser acompanhado por
um profissional capacitado. Seria impossível até mesmo ao mais rico dos Estados da
Federação instituir um órgão de Defensoria Pública com tamanho quadro funcional,
bem como propiciar a existência de ao menos dois defensores na maioria das
comarcas. Com efeito, são ao menos dois defensores por comarca, uma vez que
não pode o mesmo profissional assistir autor e réu, na hipótese de ambas as partes
serem consideradas hipossuficientes. Essa situação permite que a Defensoria
Dativa atenda a um número maior de pessoas carentes.
Como é cediço, o órgão de Defensoria Pública conta com
profissionais selecionados por meio de rigoroso concurso público, detentores de
privilégios dignos do cargo, como mencionado alhures. Não é demais pensar que
tais profissionais estão bem preparados e estimulados para o desempenho das
atividades. Todavia, vale lembrar, o órgão de Defensoria Pública não teria a
capilaridade suficiente para atender aos habitantes de pequenas comarcas do
interior do Estado, o que dificultaria o efetivo Acesso à Justiça dessas populações, a
maioria, não raro, hipossuficiente economicamente.
Além disso, o problema dos parcos recursos do erário
público. Tal situação favorece a manutenção do sistema de Defensoria Dativa em
face dos altos custos de manutenção de um novo órgão público, cujos cargos serão
preenchidos por profissionais com elevados salários – considerando-se a renda
média nacional –, sem falar nas despesas previdenciárias daí decorrentes.
252
Estima-se que sejam mais de quatro mil os advogados inscritos e atuando como Defensores
Dativos em Santa Catarina. BRINCAS. Paulo Marcondes. [Informação verbal]. Curso de Preparação
Prática para a Advocacia promovido pela Comissão do Jovem Advogado. Ordem dos Advogados do
Brasil. Seção de Santa Catarina. Florianópolis, 2006.
112
Em uma análise da atuação de cada um dos sistemas -
Defensoria Pública e Defensoria Dativa - a percepção se inverte. Ou seja, com o
atual sistema de Defensoria Dativa do Estado catarinense, o benefício abrange
apenas as questões submetidas ao judiciário, uma vez que está estruturado para
fornecer tão-somente a assistência judiciária, o que limita a possibilidade do efetivo
Acesso à Justiça, que, como sabido, vai além dos tribunais. O sistema de Defensoria
Pública, por sua vez, torna-se mais eficaz, pois permite o desenvolvimento de um
trabalho de educação e conscientização jurídica da população atendida mediante a
formulação de consultas, de atendimento extrajudicial e conseqüentemente
preventivo quanto à geração de conflitos.
Em rigor, percebe-se que ambos os modelos limitam, de uma
forma ou de outra, a efetivação do principio constitucional do Acesso à Justiça. Uma
provável solução seria a ampliação da capacidade de atuação da Defensoria Pública
para abranger também questões extrajudiciais mediante o cumprimento do
compromisso do Estado em repassar a contraprestação devida aos profissionais
habilitados, remuneração digna e dentro dos prazos previstos.
Por fim, cabe registrar o papel dos Núcleos de Assistência
Jurídica das faculdades de direito que contribuem para a minimização do problema
do Acesso à Justiça mediante o atendimento da população hipossuficiente da região
não qual estão estabelecidas as mencionadas universidades.
3.2 As “chicanas” processuais
De acordo com Dinamarco, o processo não atende sua função
sócio-político-jurídica, especialmente em virtude das decepções que as partes
envolvidas no litígio sofrem em decorrência de fatores como os custos que
apresenta, bem como pelo lapso temporal transcorrido entre a deflagração do
processo e seu trânsito em julgado
253
. Esse desapontamento, além de separar o
processo da justiça, afasta o cidadão de seu direito e, como conseqüência, bloqueia
o Acesso à Justiça.
253
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1999.
p. 270.
113
A questão relativa ao preço da litigação e as alternativas para
solucionar este entrave foram analisadas anteriormente. Neste momento resta
abordar o longo tempo transcorrido entre a protocolização da petição inicial e a
satisfação do litígio, em razão das “chicanas” processuais que retardam ou até
mesmo impedem que o processo atinja sua finalidade maior. Nesse sentido,
Dinamarco afirma que:
A força das tendências metodológicas do direito processual civil na
atualidade dirige-se com grande intensidade para a efetividade do
processo a qual constitui expressão resumida da idéia de que o
processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função
sócio-político-jurídica, atingindo em toda plenitude todos os seus
escopos institucionais. Essa constitui a dimensão moderna de uma
preocupação que não é nova e que veio expressa nas palavras
muito autorizadas de antigo doutrinador: na medida do que for
praticamente possível, o processo deve proporcionar a quem tem um
direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de
obter.
254
Para atingir tal objetivo o processo há de ser célere e eficaz, de
maneira que os envolvidos na causa recebam do Estado a prestação jurisdicional
em tempo bil para a concretização da justiça. Dinamarco sustenta ainda que a
agilização do método processual vigente torna-o “mais acessível, bem administrável,
justo e dotado de maior produtividade possível”.
255
E Pacheco menciona também
que: “[...] trata-se de direito público subjetivo a obter do Estado-juiz o
pronunciamento jurisdicional adequado e efetivo, mediante processo imediato,
simples e célere, para garantir a efetividade dos direitos ameaçados ou lesados”.
256
Muito embora a Constituição de 1824 do Império dispusesse
expressamente sobre a garantia do duplo grau de jurisdição, as Constituições que a
sucederam apenas estabeleceram a existência de tribunais com competência
recursal, não elevando o princípio do duplo grau de jurisdição ao status de garantia
constitucional.
257
Contudo, a prática demasiadamente utilizada, que aproveita dos
254
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1999.
p. 270.
255
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1999.
p. 320.
256
PACHECO, José da Silva. Evolução do processo civil brasileiro: desde as origens até o
advento do novo milênio. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 394.
257
Isso significa dizer que, uma vez não elevado à categoria de garantia constitucional, o duplo grau
de jurisdição pode ser limitado, em determinadas circunstâncias, para que prevaleçam, quando
114
recursos como instrumento procrastinatório, fez com que a Emenda Constitucional n.
45 acrescentasse no novo inciso LXXVIII, do art. 5º da Constituição Federal, a
determinação de que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, o assegurados
a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua
tramitação”.
No mesmo sentido, o Pacto de San José da Costa Rica, que
vigora no ordenamento jurídico brasileiro desde 1992, dispõe que um julgamento em
prazo razoável está incluído entre as garantias judiciais.
258
Assim, Santos
259
coloca:
Se o direito existe para garantir o gozo de um bem da vida, o tempo
poderá frustrar-lhe a própria existência, quando, em virtude dele, não
puder ser exercida a contento. Quando o direito é molestado,
ameaçado ou contestado, com a proibição da justiça privada, o
pretendente deve buscar do Estado a respectiva tutela jurisdicional.
A relação estabelecida entre quem a requer e quem presta a tutela
jurisdicional não se conclui de imediato. A jurisdição atua através de
uma seqüência de atos que se chama processo. Isso equivale a dizer
que, se, pelo tempo, a realização prática do processo, a qual seria a
tutela jurisdicional em concreto, se torna impossível ou dificultada,
diz-se que houve frustração, ou seja, o processo e a própria atividade
jurisdicional perderam mesmo a razão de ser.
Muito embora ainda se necessite evoluir muito no sentido de
ampliar o Acesso à Justiça do cidadão brasileiro, os passos que foram dados até o
momento se mostram uníssonos com a “tendência de adequação do processo como
um instrumento efetivo para o amplo Acesso à Justiça, mas sempre visando à
presteza e à efetividade da tutela jurisdicional”.
260
necessárias, outras disposições constitucionais. Nesse sentido ver TICIANELLI, Maria Fernanda
Rossi. Princípio do duplo grau de jurisdição. Curitiba: Juruá, 2005.
258
Eis o texto de seu artigo 8.1: “Toda pessoa tem o direito a ser ouvida com as devidas garantias e
dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou
para que se determinem os seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de
qualquer outra natureza”. BRASIL. Senado Federal. Legislação. Disponível em: <www.
senado.gov.br>. Acesso em: 20 maio 2007.
259
SANTOS, Ernani Fidelis. Novos perfis do processo civil brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey,
1996. p. 17-18.
260
KRUEGER, Paola Gomes Estrella. A razoável duração do processo. In: MARIOT, Giovani
Rodrigues (Org.). OAB em movimento. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p. 66.
115
Sobre a celeridade processual deve-se necessariamente
analisar o princípio do duplo grau de jurisdição, contrapondo-o com o princípio do
Acesso à Justiça.
Na interpretação de Gonçalves:
261
O principal fundamento para a manutenção do princípio é de
natureza política: nenhum ato estatal pode ficar sem controle. A
possibilidade de que as decisões judiciais venham a ser analisadas
por um outro órgão assegura que as equivocadas sejam revistas.
Além disso, imbui o juiz de maior responsabilidade, pois ele sabe que
sua decisão será submetida à nova apreciação.
Assim, para os fins deste estudo adotar-se-á, quanto ao
princípio do duplo grau de jurisdição, o conceito conferido por Marinoni
262
, que
entende ser “o direito à revisão da decisão proferida pelo juiz que teve, pela primeira
vez, contato com a causa.” Daí depreende-se a noção de que se faz necessário o
estabelecimento de competência específica para julgamento dos recursos. Assim,
em regra, os recursos o analisados por órgãos diversos daquele que proferiu a
decisão insatisfatória a uma das partes, normalmente de hierarquia superior.
263
Farias
264
, sobre o tema, aduz que:
Assim, para que esteja configurado o princípio do duplo grau de
jurisdição no processo civil brasileiro, é necessário que existam duas
decisões válidas, completas e proferidas no mesmo processo, não
havendo nenhum cio capaz de torná-las nulas ou anuláveis. Diante
dessas exigências, é necessário que o processo em que foram
proferidas as decisões esteja formalmente em ordem, não sendo a
presença de eventual vício capaz de invalidar a decisão.
Dessa forma evidencia-se que o duplo grau de jurisdição não
se confunde com a previsão recursal. Os recursos, muitas vezes, são utilizados
como instrumento de efetivação desse princípio, mas em outras, nas quais se
261
GONÇAVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. São Paulo: Saraiva,
2004. v. 1. p. 35.
262
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória e julgamento antecipado. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002. p. 209.
263
A Lei n. 9.099/95 que instituiu os Juizados Especial vel e Criminal é um exemplo no qual o
reexame do caso é realizado por outro órgão, porém de mesmo grau ou hierarquia.
264
FARIAS, Dóris Ghilardi de. Duplo grau de jurisdição no direito processual civil brasileiro: em
busca da harmonia com os princípios da efetividade e da celeridade processual. Itajaí, 2006. 170f.
(Dissertação) Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí, 2006. p. 59.
116
postula a anulação da decisão submetida à nova análise, não se está diante da
ocorrência do fenômeno, haja vista que se elimina um dos requisitos
caracterizadores, que é a existência de duas decisões válidas.
265
O fundamento que justifica a existência do duplo grau de
jurisdição consiste em: satisfazer o natural inconformismo da parte vencida,
possibilitar um exame mais aprofundado da questão; verificar a possibilidade de erro
do juiz de primeiro grau; utilizar-se da maior experiência do juiz de segundo grau;
abrandar a influência psicológica exercida sobre o juiz de primeiro grau, como
sabedor que sua decisão será reexaminada, e; mitigar a necessidade de controle
dos atos jurisdicionais e de prevaricação.
266
Por sua vez, existem argumentos contrários apontando
evidentes desvantagens proporcionadas pelo princípio do duplo grau de jurisdição, a
saber: ofensa à garantia do Acesso à Justiça e atraso na prestação jurisdicional;
desprestígio do juiz de primeiro grau, e; inutilização da oralidade.
267
No que tange à ofensa à garantia do Acesso à Justiça,
Farias
268
sustenta que dois são os fatores que promovem o entrave. O primeiro
reside na configuração da hipótese na qual a decisão do recurso mantém a sentença
de instância inferior. Nesse caso, o elevado custo do processo se avoluma ainda
mais, quando se lança mão de inúmeros atos processuais que acabam sem utilidade
prática, gerando desnecessário atraso processual. De outra banda, na ocorrência de
reforma da decisão recorrida, brota automaticamente a sensação de desconfiança e
descrença no poder judiciário, uma vez que para um mesmo processo, que envolve
265
FARIAS, Dóris Ghilardi de. Duplo grau de jurisdição no direito processual civil brasileiro: em
busca da harmonia com os princípios da efetividade e da celeridade processual. Itajaí, 2006. 170f.
(Dissertação) Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí, 2006. p. 60
266
Neste sentido ver FARIAS, Dóris Ghilardi de. Duplo grau de jurisdição no direito processual
civil brasileiro: em busca da harmonia com os princípios da efetividade e da celeridade processual.
Itajaí, 2006. 170f. (Dissertação) Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí.
Itajaí, 2006.
267
Neste sentido ver FARIAS, Dóris Ghilardi de. Duplo grau de jurisdição no direito processual
civil brasileiro: em busca da harmonia com os princípios da efetividade e da celeridade processual.
Itajaí, 2006. 170ff. (Dissertação) Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí.
Itajaí, 2006.
268
FARIAS, Dóris Ghilardi de. Duplo grau de jurisdição no direito processual civil brasileiro: em
busca da harmonia com os princípios da efetividade e da celeridade processual. Itajaí, 2006. 170f.
(Dissertação) Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí, 2006.
117
os mesmos fatos e as mesmas provas, são apresentadas respostas diversas, pelo
simples fato de terem sido analisados por juízes diferentes.
Cappelletti
269
é um dos autores que se manifesta contrário ao
duplo grau de jurisdição por alegar que os gastos do recurso acabam por distanciar
as partes do Acesso à Justiça.
Assim, pode-se inferir que o duplo grau de jurisdição, quando
utilizado com fins meramente protelatórios, a demora, não raro, favorece a injustiça
e, última forma, é uma maneira de obstar o efetivo Acesso à Justiça.
Como é sabido, muito se constata a lentidão do processo,
porém recentemente verifica-se o crescimento de uma movimentação legislativa no
sentido criar mecanismos para torná-lo mais ágil. Entretanto, poucos resultados
efetivos vêm sendo observados.
Leiria, nesse sentido, aponta atitudes que, se implementadas,
podem contribuir para que o problema se amenize:
uma urgente necessidade de se reorganizar as leis, devendo
ocorrer ainda uma limitação dos recursos, um desestímulo ao uso de
expedientes procrastinatórios e um incentivo a formas alternativas de
solução de conflitos. Deve ocorrer a modernização das ações, visto
que hoje na grande maioria das demandas judiciais que perduram
por anos e anos a fio, ironicamente é o próprio Estado, pela Fazenda
Pública, o maior responsável pela morosidade da justiça brasileira,
eis que, utilizando-se de artifícios legislativos, coloca-se em posição
de nítida superioridade em relação aos demandantes.
270
Com efeito, ante a assertiva de que todos são iguais perante a
lei, disposições que concedem prazos estendidos para a administração pública, o
duplo grau de jurisdição necessário, bem como a existência de ritos diferenciados
como a Lei de Execução Fiscal parecem injustas e fomentadoras de
prolongamentos desnecessários na obtenção de efetiva tutela judicial.
Paralelamente, urge uma atuação para fiscalizar com maior
firmeza os cursos jurídicos, exigindo-lhes uma reestruturação no sentido de formar
profissionais com habilidades técnicas mais adequadas às necessidades sociais. O
269
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.
270
LEIRIA, Nelson Hamilton. Breves notas sobre a morosidade do processo judicial. Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. n. 22. Florianópolis, 2005. p. 120.
118
eventual desconhecimento do advogado acerca das matérias jurídicas também é
causa, não do prolongamento do tempo do processo, mas também das
dificuldades em se promover justiça. Leiria
271
, nesse sentido, conclui:
Temos também como causa da morosidade a falta de preparo
técnico dos advogados. que se fazer um reestudo dos cursos de
Direito. As faculdades devem preparar melhor os futuros advogados.
É óbvia a qualidade do ensino jurídico no Brasil, contrário senso
o exame de admissão aos quadros da OAB não reprovariam mais de
80% dos candidatos inscritos.
E, como possível solução para o problema:
Necessário se faz uma mudança de mentalidade dos legisladores ao
elaborar as leis; dos julgadores e auxiliares da Justiça,
desburocratizando ao máximo seus trabalhos; dos advogados e
demais operadores do direito, que precisam ver o processo como
meio de solução rápida de conflitos e não de retardamento da
entrega da prestação jurisdicional.
272
A propósito, Santos adverte que “é importante investigar em
que medida largos extratos da advocacia organizam e rentabilizam a sua atividade
com base na demora dos processos e não apesar dela”.
273
Em face desse cenário, na sociedade brasileira o crescentes
as manifestações de repúdio à morosidade do poder judiciário, principalmente em
virtude do reflexo negativo que produz na vida do cidadão que precisa da tutela
jurisdicional, além do que fica cada vez mais longe o ideal de se obter um
mecanismo processual justo e um efetivo Acesso à Justiça.
Toda vez que se lança mão do duplo grau de jurisdição com
fins exclusivamente protelatórios afasta-se a justiça do cidadão. Nesse sentido, não
são poucos os discursos que advertem sobre a necessidade de redução de recursos
para diminuir o tempo da demanda. As ponderações fazem menção tanto à redução
das espécies de recursos quanto no que toca às suas hipóteses de cabimento.
Entretanto, mesmo sendo consideravelmente amplo o sistema recursal brasileiro,
271
LEIRIA, Nelson Hamilton. Breves notas sobre a morosidade do processo judicial. Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. n. 22. Florianópolis, 2005. p. 121.
272
LEIRIA, Nelson Hamilton. Breves notas sobre a morosidade do processo judicial. Revista do
Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. n. 22. Florianópolis, 2005. p. 122.
273
SANTOS, Boaventura Souza. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 9.
ed., São Paulo: Cortez, 2003. p 169.
119
cabe ressaltar que a quantidade de recursos existentes não é o maior problema a
ser enfrentado, mas o uso abusivo que deles vem-se lançando mão. Assim, o que se
necessita, além de adequações de natureza legal, é a mudança de atitude dos
operadores jurídicos, que precisam destinar suas forças para a obtenção da efetiva
justiça. Essa mudança de atitudes envolve a atuação dos juizes de primeiro grau e
dos tribunais incumbidos que são de aplicar, com maior freqüência e seriedade,
institutos que freiem as práticas ardilosas, como a condenação por litigância de má-
fé nas situações em que ficar patente o viés procrastinatório do recurso.
Ainda, cabe ressaltar que o duplo grau de jurisdição vem sendo
colocado em xeque em nome da celeridade processual e do Acesso à Justiça.
Contudo, o princípio não pode ser totalmente mitigado, uma vez que ao proporcionar
a revisão das decisões sustenta-se a sensação de segurança jurídica pela
possibilidade de se corrigirem erros ou injustiças. A proposta mais adequada reside
na relativização de sua aplicabilidade, devendo harmonizar-se “com os demais
direitos fundamentais consagrados na Constituição, não podendo ser concebido de
modo absoluto”.
274
Nas palavras de Farias
275
:
O grande desafio imposto a esta matéria, então, é a conciliação de
valores e princípios, de forma a encontrar um ponto de equilíbrio
entre a celeridade, que imprime a brevidade aos atos processuais, a
efetividade do processo, que exige seja dada à parte tudo aquilo a
que ela tem direito, e o duplo grau de jurisdição, que garante uma
decisão mais equânime, de forma que a segurança jurídica e a
justiça das decisões sejam respeitadas.
Por esse motivo, não é prudente falar-se em supressão ou abolição
do duplo grau de jurisdição do ordenamento pátrio; é preciso garanti-
lo em consonância com os demais valores indispensáveis à solução
dos conflitos, antes, porém, deve-se analisar quais são as vantagens
e desvantagens apontadas pelos estudiosos do Direito em relação a
esse princípio.
O fato é que, não obstante as reformas que visam diminuir a
lentidão da justiça, é mister atentar e fazer conviver a celeridade com o contraditório
274
CAMBI, Eduardo. Efeito devolutivo da apelação e duplo grau de jurisdição. Gênesis Revista de
Direito Processual. Curitiba. n. 1, jan./abr. 1996. p. 679.
275
FARIAS, Dóris Ghilardi de. Duplo grau de jurisdição no direito processual civil brasileiro: em
busca da harmonia com os princípios da efetividade e da celeridade processual. Itajaí, 2006. 170f.
(Dissertação) Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí, 2006. p. 107-
108.
120
e o devido processo legal, haja vista que em um processo, somente a rapidez não
basta para a consecução do Acesso à Justiça. Importante é encontrar soluções para
adequar o binômio celeridade-justiça.
276
3.3 A descrença da sociedade no judiciário
Para Rodrigues
277
, o excesso de burocracia do poder judiciário,
a morosidade na prestação da resposta pleiteada e resultados algumas vezes
inadequados aos valores sociais, são fatores que promovem a sensação de
insegurança e de descrença no poder judiciário. Como conseqüência, conflitos
passam a ser solucionados de formas diversas das estabelecidas pelo Estado, que
tendem algumas vezes a se assemelharem à autotutela, proibida no ordenamento
jurídico pátrio. Não é demais dizer que a população carente, dadas as dificuldades
de Acesso à Justiça estatal, acaba sendo “protegida” por uma espécie de justiça
paralela, não oficial. De acordo com Rodrigues, “a existência desses aparatos
paraestatais parece demonstrar a insuficiência dos instrumentos jurídicos formais
para concretizar o ideal de justiça prometido pelo Estado”.
278
O mencionado autor sustenta ainda que a forma de
composição dos tribunais, que comporta nomeações políticas, em parte ou no todo
como no caso do Supremo Tribunal Federal –, assim como alguns critérios de
ascensão profissional por merecimento, podem vir a comprometer a imparcialidade
das decisões e desenvolver no povo a sensação de desconfiança.
279
276
RODRIGUES, Nelson Fedrizzi. Antecipação de tutela recursal em sede de agravo e apelação.
Interpretação da Lei 10.352/2001. In: NERY JUNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.
Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação. São Paulo:
Revista dos Tribunais. 2005. v. 08. p. 89.
277
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina[. Florianópolis, 1993. p. 41-
42.
278
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 41.
279
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 42.
121
A propósito, não existe atualmente no Brasil nenhum outro
poder com tamanha soberania perante a sociedade como o que ocorre com o
judiciário. Do mesmo modo, não existe ninguém com autoridade para fiscalizar a
atuação desse mesmo poder estatal, permanecendo desobrigado de prestar contas
de suas atividades e decisões.
280
Cabe registrar a existência do Conselho Nacional
da Justiça que também não exerce a mencionada fiscalização.
Com todos esses elementos e com o acréscimo da noção de
que o poder judiciário é um meio de consolidação dos fins do Estado mediante a
prestação jurisdicional pode-se inferir que a crise pela qual passa a noção de justiça
no consciente coletivo do povo está intimamente atrelada à descrença na relação de
poder estabelecida entre este mesmo poder estatal e a sociedade. Tal conectividade
é bem delineada por Ruivo
281
quando afirma que:
[...] o aparelho judicial faz parte do próprio Estado enquanto
instituição específica para a prossecução de uma atividade inserida
na unidade de todo um tipo de ação que o Estado representa e na
qual se consubstancia. O chamado poder Judicial encontra-se assim
estreitamente ligado ao funcionamento do Estado como um todo,
constituindo mais ou menos ‘poder’ consoante as formas ou tipo de
Estado a que se encontra conectado, inserindo a sua atividade global
na atividade política mais vasta que o Estado desempenha,
acompanhando na sua especificidade a unidade interventora e
ordenadora deste último.
Tanto é assim que o desenvolvimento da jurisdição se dá por
um processo histórico umbilicalmente ligado ao grau e modalidade de concentração
das questões jurídicas nas os do Estado. Em especial, com o surgimento da
ideologia política burguesa revolucionária no culo XVIII é que esta visão ganha
relevo, haja vista que o “aparelho judicial se configura como ‘poder’ a partir do
século XVI ao concentrarem-se no Estado, pela mão do absolutismo, as funções
dispersas”.
282
280
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 88-
89.
281
RUIVO, Fernando. Aparelho judicial, Estado e legitimação. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direito
e Justiça: a função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1994. p. 71.
282
RUIVO, Fernando. Aparelho judicial, Estado e legitimação. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direito
e Justiça: a função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1994. p. 92.
122
Como conseqüência, segundo Cattoni
283
:
É preciso, portanto, uma prática política correspondente e de
compromisso com esses princípios, com essas diretrizes e direitos
constitucionais, a fim de se romper reflexivamente com toda uma
tradição anticonstitucional e antidemocrática de exclusão social e
política. A Constituição nem dispensa, nem substitui a política.
E, como analisa Faria
284
:
A necessidade de que essa cultura seja reformulada integralmente,
deixando-se sensibilizar pelos segmentos sociais que,
historicamente, nunca foram efetivamente beneficiados pelas
instituições do direito nem tiveram acesso aos tribunais. Sob pena de
[...] o Judiciário perder por completo sua função precípua de absorver
tensões, limites ou conflitos, impedir sua generalização e reduzir as
incertezas do sistema político.
Com base na noção de que judiciário e Estado estão
intimamente relacionados com as formas de poder, vê-se que os problemas
enfrentados pelo sistema jurídico é resultado da crise da relação de autoridade e
poder. Por isso, é necessário parar de afirmar que a simples mudança da lei ou do
texto constitucional seria suficiente para que os problemas sociais e de
descumprimento do direito fossem de uma vez por todas solucionados. A descrença
decorre da falta de compromisso político para com questões sociais. Novos textos
legais não solucionarão problemas de saúde, educação, habitação ou Acesso à
Justiça. Mais importante é a transmutação das rotinas políticas e sociais,
direcionando-as de modo a concretizar a concepção legítima do Estado Democrático
de Direito.
285
3.4 Capacidade jurídica pessoal
283
CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2006. p. 77
284
FARIA, José Eduardo. Ordem legal X Mudança social: a crise do judiciário e a formação do
magistrado. In. _____ (Org.). Direito e Justiça: a função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1994.
p. 108.
285
CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e patriotismo constitucional. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2006. p. 75-76.
123
Atingir a justiça social por meio da educação da população
também é uma das metas para se alcançar o efetivo Acesso à Justiça. Para que isso
seja possível é necessário criar pontos de intersecção entre a justiça social e o
acesso a uma ordem jurídica justa. Caovilla
286
destaca que uma realidade é a noção
de justiça da classe dirigente, diversa da idéia de justiça que têm as classes
oprimidas. Julgamentos sobre o significado de justiça, bem como o quê dela se
espera, variam de acordo com o grau de cultura e educação do povo.
Nesse aspecto, cabe ressaltar o entendimento de Cappelletti
287
ao aduzir que:
A
capacidade jurídica pessoal se relaciona com as vantagens de
recursos financeiros e diferenças de educação, meio e status social,
é um conceito muito mais rico, e de crucial importância na
determinação da acessibilidade à justiça. Ele enfoca as inúmeras
barreiras que precisam ser pessoalmente superadas, antes que um
direito possa ser efetivamente reivindicado através de nosso
aparelho judiciário [grifo no original].
Segundo Rodrigues
288
, questões atreladas ao problema
educacional dependem de decisões políticas e não jurídicas. O principal ponto a ser
combatido diz respeito aos investimentos, tanto no ensino de base quanto no
superior. Isso porque, antes de se reivindicar um direito é necessário ter a noção de
sua existência, e isso ocorre se houver educação. O mesmo autor conclui mais
adiante que três elementos devem ser levados em consideração na análise da
questão do Acesso à Justiça sob o enfoque cultural, a saber: “o sistema
educacional, os meios de comunicação e a quase inexistência de instituições
encarregadas de prestar assistência jurídica preventiva e extrajudicial”.
289
Armelin
290
, nesse mesmo norte, enfatiza que:
286
CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e cidadania. Chapecó: Argos. 2003, p. 37.
287
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 22.
288
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro. São
Paulo: Acadêmica, 1994. p. 130.
289
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro. São
Paulo: Acadêmica, 1994. p. 37.
290
ARMELIN, Donaldo apud CESAR, Alexandre. Acesso à Justiça e Cidadania. Cuiabá: EdUFMT,
2002. p. 97.
124
O subdesenvolvimento com as suas seqüelas, como analfabetismo,
ignorância e outras, campeia com maior ou menor intensidade nos
variados quadrantes do Brasil. Isso implica reconhecer que em certas
regiões o Acesso à Justiça não chega sequer a ser reclamado por
desconhecimento dos direitos individuais e coletivos.
O fato é que, no Brasil, a educação deixa a desejar,
especialmente no que diz respeito à educação para a cidadania.
291
Essa faceta do
problema é deveras importante pelo fato de a assistência jurídica, que compõe o
Acesso à Justiça, abranger o aperfeiçoamento da capacidade jurídica pessoal do
cidadão, mediante políticas e investimentos governamentais sérios e comprometidos
com a difusão do conhecimento sobre os direitos assegurados ao indivíduo e como
exercê-los.
Não obstante, é importante reconhecer que iniciativas vêm
sendo tomadas no sentido melhorar a situação. A Secretaria de Estado da
Educação, Ciência e Tecnologia, o Ministério do Trabalho, o Programa Nacional de
Estímulo ao Primeiro Emprego para Jovens e a Delegacia Regional do Trabalho vêm
desenvolvendo, em Santa Catarina, o Projeto “Descobrindo Talentos”. Referido
programa objetiva desenvolver a qualificação profissional do jovem de baixa renda e
que esteja matriculado na rede estadual de ensino. O fundamento da iniciativa é
promover a reflexão acerca da ética e da cidadania ao jovem engajado, incluídas
noções de direitos e deveres do cidadão, em especial no que toca à legislação
trabalhista.
Referido Projeto, assim delineado, é uma mostra de ação
alternativa à deficiência de investimentos em educação. Nesse sentido, Rodrigues
292
menciona que “o direito à informação, pressuposto básico para o efetivo Acesso à
Justiça, não é uma questão que possa ser enfrentada diretamente através de
normas de conteúdo processual”.
No que tange aos meios de comunicação, a partir da década
de 1990 em parte como conseqüência do processo de abertura política e
restabelecimento da democracia – começa-se a perceber na mídia escrita – jornais e
291
CAOVILLA, Maria Aparecida Lucca. Acesso à Justiça e cidadania. Chapecó: Argos. 2003, p. 39.
292
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 82.
125
revistas – espaços preenchidos por seções especializadas em direito. Essas colunas
incentivam os cidadãos a apresentarem denúncias de desrespeito aos seus direitos
e proporcionam respostas técnicas com apelo popular. Importante mencionar a
relevância da mídia na divulgação de questões atinentes principalmente às relações
de consumo ou às deficiências dos serviços públicos prestados à população.
Acrescente-se que em uma nação como a brasileira, na qual
considerável parcela da população é analfabeta, o índice de penetração da mídia
escrita se torna limitado, mas é um canal de informação que não merece ser
descartado.
Por tal razão menciona-se a necessidade de criação de
políticas públicas direcionadas ao incentivo e investimento em cultura e educação.
Não se pode deixar de considerar que um programa de distribuição de renda como o
“Bolsa Família”, do Governo Federal, que concede um salário mínimo para a família
que mantém os filhos na escola, é um estímulo ao desenvolvimento da educação de
base, mas ainda é pouco. Em rigor, que se considerar também qual o nível de
preparo e estímulo dados ao professor da rede pública de ensino. Assim, vê-se que
o problema, como delineado, é de cunho político e não jurídico.
O fato de o cidadão de baixa escolaridade identificar seu
problema como problema jurídico não é suficiente para a sua resolução. Isso
porque, segundo Santos
293
, quanto mais pobre e sem acesso à educação e cultura,
mais dificuldade terá o cidadão para trilhar a seara jurídica, eis que desconhece os
instrumentos e os canais postos à sua disposição para resolver o seu conflito.
Assim, de acordo com Abreu
294
:
A desinformação da massa da população acerca de seus direitos é
um dos obstáculos judiciais importantes para o Acesso à Justiça. E
esse é um problema de educação. Por isso mesmo a
democratização da justiça deve passar pela democratização do
ensino e da cultura, e também pela democratização da linguagem,
como instrumento de intercâmbio de idéias e informações.
293
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9.
ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 170.
294
ABREU, Pedro Manoel. Acesso à Justiça e Juizados Especiais. O desafio histórico da
consolidação de uma justiça cidadã no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 60.
126
Tal quadro reforça a idéia de que a advocacia não é profissão
de gabinete. O advogado deve estar onde seus clientes estejam, deve se fazer
visível, disponível e, acima de tudo, acessível para que as pessoas mais simples
não se atemorizem pelo simples fato de necessitar procurar um advogado. Essa é
uma das formas de o advogado cumprir seu papel de personagem indispensável à
administração da justiça, mediante o exercício de seu múnus público, bem como de
sua função social, nos termos do que determina a Lei n. 8.906/94 e, desta forma,
contribuir para o efetivo Acesso à Justiça.
O problema da capacidade jurídica pessoal não se restringe à
população pobre e ignorante. Os próprios operadores do direito, formados em ritmo
acelerado e em descompasso com as necessidades jurídicas do mundo atual, por
instituições de ensino precárias e pouco preparadas, também constituem obstáculo
para a concretização da tão almejada ordem jurídica justa.
A educação e a cultura de um povo são estímulos à mudança
social. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 205, dispõe que a educação da
sociedade é função do Estado, elevando-a ao patamar de direito fundamental de
toda a população. A tal encargo estatal está agregada a necessidade de
acompanhamento e pacificação dos conflitos, que se realizará com a informação
que dispõe a população para a resolução de suas pendências, especialmente
acerca dos direitos que lhes são assegurados e dos deveres que lhes são impostos.
Dessa forma, o processo educacional deve estar calcado em princípios jurídicos e
de organização social, de modo a tornar o direito um instrumento de educação.
As disciplinas de Organização Social e Política brasileira e
Educação Moral e Cívica, extintas do currículo escolar após o processo de
reabertura democrática, ministradas consoante a nica do Estado Democrático de
Direito, seriam um bom instrumento para a formação da noção de cidadania,
necessária, sobretudo, aos jovens.
Dessa feita, observa-se que o Brasil depende de políticas
públicas urgentes e incisivas, especificamente direcionadas à criação de um sistema
educacional menos individualista, de modo que a população carente possa integrar-
se à sociedade, pois, em um Estado Democrático de Direito, todos os seus membros
devem ter as mesmas oportunidades e possibilidades de crescimento intelectual,
social e econômico.
127
Atuações direcionadas à formação de programas nos meios de
comunicação de massa, ou ainda eventos prestadores de informações jurídicas são
contribuições que podem facilitar o efetivo Acesso à Justiça.
3.5 As condições da ação
As questões tratadas nesta seção estão diretamente
relacionadas à idéia de Acesso à Justiça como acesso ao poder judiciário. Assim,
toda vez que a jurisdição se nega a cumprir o seu papel, por questões de natureza
preliminar, impedindo o julgamento do mérito da causa, ergue-se nova barreira ao
Acesso à Justiça.
A propósito, o não cumprimento do poder-dever do Estado em
prestar a devida tutela jurisdicional em virtude da extinção do processo sem
julgamento do rito, por não estarem satisfeitas as condições da ação, constitui o
objeto de análise no estudo do tema proposto.
Nesse passo, considerando que a ação vem a ser “o direito de
alguém perseguir em juízo o que lhe é devido”
295
, apresentam-se três teorias
principais, preocupadas em explicar o que este fenômeno significa em sede de
direito processual civil.
A ação pode ser considerada como sinônimo do direito de
demandar
296
, porém, a tal significado agrega-se a necessidade de preenchimento de
algumas condições. Para os romanos, o direito de ação era considerado o direito em
movimento, “como o exercício do próprio direito material”
297
. Ou seja, o processo
ainda não se havia tornado autônomo em relação ao direito material, de forma que a
ação era confundida com o direito material postulado. Como conseqüência, Brandão
enfatiza que “a identificação do direito de ação com o próprio direito subjetivo
295
NEVES, Iêdo Batista. Vocabulário prático de tecnologia jurídica e de brocardos latinos. Rio de
Janeiro, APM, 1987.
296
Faz-se menção à possibilidade de ingressar em juízo para obter do Estado, por meio do Poder
Judiciário, alguma resposta a qualquer pretensão contra ele formulada, de forma incondicional.
297
Brandão, Paulo de Tarso. Condições da ação e o principio constitucional do Acesso à Justiça. In:
ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007. p. 765.
128
material em exercício leva às seguintes conclusões: não há ação sem direito; não
direito sem ação; a ação segue a natureza do direito”.
298
Na seqüência dos critérios evolutivos das concepções de ação,
desenvolve-se a teoria do direito concreto de ação, na qual se evidencia a distinção
entre o direito de ação e o direito material subjetivo, o primeiro decorrente do
segundo. De acordo com essa teoria, somente quem fosse o titular efetivo do direito
pleiteado era detentor do direito de ação, condicionando-a ao resultado positivo da
demanda. “Por conseguinte, o direito de ação era o direito à sentença favorável.
Assim, só existiria o direito de ação quando o pedido do autor fosse procedente”.
299
Por sua vez, a teoria do direito abstrato de agir substitui a
teoria concreta ao afirmar que a ação nasce com o direito de exigir que o Estado,
por meio do judiciário, apresente uma resposta às pretensões de direito material a
ele dirigidas, independentemente da efetiva existência deste último. Ou seja, o
direito de ação não está condicionado à existência do direito material, de forma que
mesmo diante de sentença de improcedência, haverá sido exercido o direito de
ação.
De acordo com o ensinamento de Brandão
300
:
Seria, então, um direito subjetivo público, exercitável contra o Estado
e que obriga o réu a comparecer em juízo. [...] basta, portanto, que o
autor faça referência a um interesse seu, abstratamente protegido
pelo direito, para que o Estado preste a jurisdição, ainda que seja a
decisão final contrária a esse mesmo interesse.
Entretanto, não é essa a concepção de ação por meio da
qual ela vem a ser o direito de obter uma resposta qualquer do judiciário que
vigora no Brasil. No ordenamento jurídico pátrio consiste no direito à resposta de
mérito, ou seja, uma resposta direta ao que foi requerido, e isto só ocorre se
preenchidas determinadas condições, do contrário fica impedida a análise do mérito
298
Brandão, Paulo de Tarso. Condições da ação e o principio constitucional do Acesso à Justiça. In:
ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007. p. 766.
299
Brandão, Paulo de Tarso. Condições da ação e o principio constitucional do Acesso à Justiça. In:
ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007. p. 768.
300
Brandão, Paulo de Tarso. Condições da ação e o principio constitucional do Acesso à Justiça. In:
ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007. p. 769.
129
e afastada a ocorrência da ação. Essa é a chamada teoria eclética que, consagrada
no artigo 267, VI, do digo de Processo Civil, descreve as condições da ação, a
saber: 1) possibilidade jurídica do pedido; 2) interesse de agir, e: 3) legitimidade.
Gonçalves
301
assim discorre sobre as condições da ação:
A ação, como direito a uma resposta de mérito, depende do
preenchimento de determinadas condições, necessárias para a sua
existência. Sem elas, não haverá resposta de mérito, e o autor será
considerado carecedor da ação. Haverá um processo, decorrente do
direito de demandar, mas não o exercício do direito de ação.
As condições da ação devem ser analisadas não somente pelo
que é demonstrado na petição inicial, mas por todos os elementos que forem
apresentados pelas partes. Por ser considerada matéria de ordem pública, deve ser
conhecida de ofício pelo juiz, de forma que devem ser observadas tanto na
deflagração como em todo o curso processual, ao julgamento. Isso significa dizer
que mesmo na hipótese de não contemplação superveniente à análise preliminar
acarretará carência da ação e extinção do feito sem julgamento do mérito.
Assim, a possibilidade jurídica do pedido, que apresenta
natureza objetiva, esligada à existência de previsão no ordenamento jurídico de
disposição que tutele a pretensão deduzida. Deve ser analisada não somente em
relação ao pedido, mas também quanto à causa de pedir, de forma que se algum
dos dois últimos elementos estiver maculado pela ilicitude, carente será o autor de
ação.
O interesse de agir, por seu turno, caracteriza-se pela
necessidade da efetivação da tutela jurisdicional e é a única maneira de o sujeito
obter o bem da vida requerido. Ou seja, se a satisfação puder ser atingida sem o
socorro do judiciário, inexistente é o interesse de agir. O interesse de agir tem
relação ainda com a adequação entre o meio processual adotado e o resultado útil
almejado, de maneira que a opção desacertada da via processual proporciona a
extinção do processo sem julgamento do mérito.
A condição de legitimidade é a relação que liga o direito
pretensamente violado ou ameaçado com o sujeito que traz o conflito ao judiciário.
301
GONÇAVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil. São Paulo: Saraiva,
2004. v. 1. p. 86.
130
Não havendo conexão entre tais elementos de natureza subjetiva caracterizada
estará a carência de ação.
Pois bem, consoante o ordenamento jurídico pátrio, o direito de
ação restará reconhecido se cumpridas as condições anteriormente descritas.
Essas são, em rigor, barreiras legais que impedem o Acesso à Justiça. Nota-se que
tais disposições estão em contradição com o preceito constitucional, segundo o qual
a lei não poderá deixar de submeter à apreciação do judiciário qualquer tipo de lesão
ou ameaça a direito (art. , inc. XXXIV). Nesse sentido, o texto constitucional não
cria nem permite a criação de qualquer condição que impeça a provocação do poder
judiciário, na perseguição de qualquer espécie de direito. Essa visão torna as
limitações impostas pelas condições da ação inconcebíveis mesmo no plano de
tutela dos interesses individuais.
Antes disso, considerando que o poder-dever do Estado em
prestar a jurisdição decorre da proibição da autotutela, e da materialização da
solução do mérito que, por sua vez, proporciona a existência da ação, tem-se
confirmado que a inexistência da ação, em virtude do descumprimento de condições
impostas por leis infraconstitucionais, impede a efetivação da prestação jurisdicional
e torna inacessível a consecução da justiça. Isso porque, conforme ensina
Brandão
302
, a análise da questão pelo prisma processual leva à conclusão de que
determinado pedido pode ser considerado injurídico após a apresentação da
resposta de mérito, ou seja, após a efetivação e conclusão da ação, e jamais a partir
de uma análise preliminar que não soluciona a pretensão, especialmente em virtude
da distinção entre direito material e processual.
Ao considerar a possibilidade da ação por meio da análise das
condições da ação, o juiz o exerce a jurisdição, de maneira que a decisão que
julga pela carência da ação e todos os atos processuais ocorridos até este ponto,
ficam descobertos de classificação jurídica, conduzindo as partes a uma sensação
de insegurança e desconfiança no poder judiciário, que se esquiva de apresentar a
solução ao problema a ele submetido.
302
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Condições da ação e o Princípio Constitucional do Acesso à Justiça.
In: ABREU, Pedro Manoel; OLIVEIRA, Pedro Miranda de (Orgs.). Direito e processo: Estudos em
homenagem ao Desembargador Norberto Ungaretti. Florianópolis: Conceito. 2007. p. 773.
131
Essa discussão, a propósito, visa divulgar o que Cappelletti
afirma ao defender que as técnicas do processo servem a fins sociais, de maneira
que os tribunais são apenas uma das formas de resolução de conflitos e que o
acesso deve ser considerado o foco principal dos estudos processuais
contemporâneos. Nas palavras do mencionado autor:
Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas processuais
servem a funções sociais; que as cortes não são a única forma de
solução de conflitos a ser considerada e que qualquer
regulamentação processual, inclusive a criação ou o encorajamento
de alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito importante
sobre a forma como opera a lei substantiva – com que freqüência ela
é executada, em beneficio de que e com que impacto social. Uma
tarefa básica dos processualistas modernos é expor o impacto
substantivo dos válidos mecanismos de processamento de litígios.
Eles precisam, conseqüentemente, ampliar sua pesquisa para mais
além dos tribunais e utilizar métodos de análise da sociologia, da
política, da psicologia e da economia, e ademais, aprender através
de outras culturas. O acesso não é apenas um direito social
fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também,
necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu
estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e
métodos da moderna ciência jurídica.
303
A proposta reside na conscientização da necessidade de
alteração do modo com o qual vêm sendo utilizados os instrumentos processuais
destinados à prestação jurisdicional, em especial no que toca às condições da ação,
de maneira a tornarem mais abrangentes as possibilidades de Acesso à Justiça.
Outro aspecto a considerar é que a tutela dos interesses
contemporâneos diverge cada vez mais das pretensões de cunho eminentemente
individualista que o vislumbradas pelas normas processuais civis em vigor. Dessa
forma, a leitura da ação de acordo com o disposto na Constituição Federal de 1988
é o suficiente para melhorar a relação entre a capacidade potencial de resolução de
conflitos teórica do ordenamento jurídico brasileiro e o que efetivamente vem sendo
proporcionado aos jurisdicionados.
Neste ponto do estudo é importante evidenciar que todo o
discurso até então desenvolvido envolve aspectos diretamente relacionados ao
Acesso à Justiça, tanto individual quanto coletivo. Por exemplo, na hipótese de uma
303
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 13.
132
ação de cobrança, a parte autora alega que o eventual réu lhe deve determinada
importância em decorrência de um contrato não cumprido. Ao final do processo resta
comprovado que a pendência é decorrente de prática de jogo de azar. In casu, o
processo findará com sentença de mérito que declinará pela improcedência dos
pedidos formulados na inicial. Entretanto, se na peça vestibular o juiz acolhe a
adução do réu que declina a verdadeira origem do débito, o processo será extinto de
plano, sem julgamento do mérito, pela impossibilidade jurídica do pedido. Diante
disso, pergunta-se: qual a diferença entre as elucubrações aventadas em relação ao
resultado prático obtido? Pois bem, o resultado prático obtido é o mesmo; no
primeiro caso, com a ação e o julgamento do mérito, houve efetivo Acesso à Justiça;
no segundo, ante a ausência de determinada condição da ação, bloqueia-se o
Acesso à Justiça em face da não apreciação do mérito da causa.
Quanto ao Acesso à Justiça por uma coletividade tem-se que
as ações constitucionais são os instrumentos adequados para a tutela dos direitos
da cidadania surgidos no século XX. As ações constitucionais são mecanismos de
defesa dos interesses da cidadania, e estes são distintos dos da esfera privada.
Desse modo, a adoção dos instrumentos processuais civis se torna inadequada às
referidas ações, uma vez que apresentam perfil para defesa de interesses inter-
individuais, limitando sua eficácia, por reduzir a capacidade da efetivação dos
direitos fundamentais por meio de ação.
304
A Ação Popular, exemplificando, é o meio constitucional
colocado à disposição dos cidadãos para a defesa do patrimônio público ou entidade
do qual o Estado faça parte, da moralidade da administração, meio ambiente e do
patrimônio histórico e cultural. Seu objetivo precípuo é proteger interesses difusos -
direito que pertence a toda a sociedade civil -, um patrimônio a resguardar.
A questão da legitimidade ativa na Ação Popular demonstra a
inadequação das condições da ação em relação aos fins a que se destina tal ação.
Isso ocorre especialmente no que tange ao conceito de cidadania.
304
A fim de demonstrar a validade desta proposta, Brandão parte de uma abordagem histórica que
firma o processo civil como instrumento de tutela de interesses individuais. O autor demonstra as
origens e o reconhecimento dos direitos que se o de acordo com a concepção de Estado e da
conformação da sociedade que vige na época em que a necessidade se manifesta. Ou seja, toda e
qualquer evolução da sociedade civil ou do Estado tem repercussão no estatuto jurídico que a regula.
Cf. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 77-78.
133
A teor do que dispõe a Lei n. 4.717/65, a prática tem limitado a
legitimidade para propor a Ação Popular aos portadores do título de eleitor,
considerando somente estes cidadãos. Contudo, o texto constitucional posterior à
referida lei não menciona qualquer espécie de vinculação entre a condição de eleitor
e a de cidadão. Sobre a cidadania, dispõe a ordem constitucional vigente (art. 12)
que esta deve estar condicionada à nacionalidade, caso contrário, todos aqueles
que têm a faculdade de não votar - maiores de setenta anos, menores de dezoito,
porém maiores de dezesseis -, ou ainda os analfabetos, deixariam de ser cidadãos
brasileiros. E vai mais além. A própria Carta Política em vigor garante, inclusive aos
estrangeiros residentes no Brasil salvo vedação expressa –, a fruição de todos os
direitos e garantias fundamentais, ou seja, estes também deveriam ser considerados
legítimos para a propositura da Ação Popular. Por fim, somente uma análise da
Ação Popular desapegada das disposições do Código de Processo Civil, mas atenta
ao mandamus constitucional poderia conceder a este instrumento a efetividade
necessária, proporcionando um efetivo Acesso à Justiça de caráter coletivo.
305306
As condições da ação, em essência, fazem parte da relação de
direito material submetida à apreciação jurisdicional, muito embora estejam previstas
no Código de Processo Civil.
307
Dessa feita, a recusa em não analisar o rito da
causa submetida ao judiciário em virtude do não preenchimento de alguma das
condições da ação pode ser considerada um entrave ao efetivo Acesso à Justiça,
uma garantia constitucional. Em rigor, somente com uma séria e profunda
transformação do inter-relacionamento do tripé Estado, direito e sociedade civil é
que sepossível obter um amplo e irrestrito Acesso à Justiça nos termos do que
propõe a Constituição Federal de 1988.
3.6 O julgamento antecipado da lide
305
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 249-255.
306
Sobre Acesso à Justiça coletivo ver BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos
direitos e Acesso à Justiça. Florianópolis: Habitus, 2001.
307
GOMES, Fabio Luiz. Da ação. In: SILVA, Ovídio Araújo Baptista da et al. Teoria Geral do
Processo Civil. Porto Alegre: Letras Jurídicas, 1983, p. 121.
134
As provas são os instrumentos por meio dos quais é formada a
convicção do Estado, por meio do juiz, no que diz respeito à ocorrência de fatos
controvertidos sob os quais se fundam a demanda. De acordo com Neves
308
: “Prova:
diz-se do conjunto de meios regulares e admissíveis que se empregam para
demonstrar a verdade de um fato conhecido ou controvertido, ou para convencer da
certeza de um ato jurídico”. Em outras palavras, trata-se de um direito das partes de
demonstrar suas pretensões, de forma a possibilitar a defesa e a satisfação dos
pedidos que levam ao judiciário. Por meio da prova garante-se o direito ao processo
e conseqüentemente o Acesso à Justiça.
309
O julgamento antecipado da lide está consignado no art. 330
do Código de Processo Civil
310
e permite, em nome da celeridade processual, que a
decisão de mérito seja proferida antes da fase de instrução, quando preenchidas
determinadas condições. Três são as hipóteses que permitem a ocorrência do
fenômeno, porém apenas uma delas figura como entrave ao Acesso à Justiça.
A previsão contida na segunda parte do inciso I do artigo 330
do Código de Processo Civil dispõe que sendo a matéria questão de direito e de fato
e não havendo necessidade de produção de provas em audiência, o juiz poderá
conhecer diretamente do pedido e proferir sentença por julgamento antecipado da
lide. Trata-se de ato discricionário do juiz, a quem incumbe exclusivamente decidir
se ao caso em análise cabe o julgamento antecipado por estar seu convencimento já
formado pelos elementos apresentados na inicial e respostas.
Os argumentos aptos a defender que o julgamento antecipado
da lide caracteriza entrave ao Acesso à Justiça provêm dos mesmos fundamentos
que consideram as condições da ação também uma barreira à obtenção da
prestação jurisdicional. Com efeito, o exercício da jurisdição por parte do Estado
nada mais é do que o cumprimento da promessa por ele próprio assumida ao proibir
308
NEVES, Iêdo Batista. Vocabulário prático de tecnologia jurídica e de brocardos latinos. Rio
de Janeiro, APM, 1987.
309
Nesse sentido ver BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Julgamento
antecipado da lide, direito à prova e Acesso à Justiça. In: ROSA, Alexandre Moraes da (Org.). Para
um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. São José: Conceito. 2006. p. 09-23.
310
Cf. art. 330 do Código de Processo Civil: “O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo
sentença: I quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato,
não houver necessidade de produzir prova em audiência; II – quando ocorrer revelia”.
135
a autotutela e chamar para si a responsabilidade pela resolução dos conflitos
sociais.
Isso posto, nota-se que uma das modalidades da qual dispõe o
poder judiciário para dar a adequada resposta ao conflito que lhe é submetido
refere-se ao direito de prova, uma vez que é por meio dela que se atinge a verdade
formal necessária ao correto deslinde da causa e promoção do Acesso à Justiça. As
provas devem ser obtidas por meios lícitos e adequados, obedecidos sempre os
princípios do devido processo legal e do contraditório, e respeitada a disposição do
art. 5º, LVI, da Constituição Federal de 1988, sobre o princípio da proibição da prova
ilícita no ordenamento jurídico pátrio.
Em relação à produção probatória e aos fins a que se
destinam, Brandão e Martins
311
afirmam que:
[...] não é o juiz que dirá sobre a necessidade da prova dos fatos,
mas as partes. É preciso ter claro que o destinatário da prova não é o
juiz, como comumente se ouve, mas sim o Poder Judiciário. É
preciso insistir, as provas não se destinam ao convencimento do
magistrado, mas, sim, à elucidação dos fatos alegados em juízo.
Assim, o direito de perseguir em juízo uma decisão justa a um
conflito é assegurado às partes mediante a possibilidade de provarem os
argumentos ventilados.
312
De outra banda, o Estado - por meio do juiz - não pode
restringir a produção lícita da prova sob a alegação de estar convencido acerca
dos fatos.
O efetivo Acesso à Justiça não se configura quando, em
contradição com suas próprias promessas, o Estado impede que a parte prove
adequada e livremente seus argumentos ao lançar mão do julgamento antecipado
da lide. Nenhuma proposta de celeridade processual deve restringir a possibilidade
de persecução da verdade formal, uma vez que, decisões equivocadas provenientes
de circunstâncias mal comprovadas se tornam mais injustas. O que a sociedade
311
BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Julgamento antecipado da lide, direito à
prova e Acesso à Justiça. In: ROSA, Alexandre Moraes da (Org.). Para um direito democrático:
diálogos sobre paradoxos. São José: Conceito. 2006. p. 20.
312
Dentro dos limites da legalidade e da adequação, atentando sempre que as provas ilícitas,
vedadas por lei ou puramente procrastinatórias podem e devem ser, a qualquer tempo, indeferidas
pelo juiz. Nesse sentido ver BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Julgamento
antecipado da lide, direito à prova e Acesso à Justiça. In: ROSA, Alexandre Moraes da (Org.). Para
um direito democrático: diálogos sobre paradoxos. São José: Conceito. 2006. p. 21.
136
espera do judiciário é a certeza de decisões fundamentadas em fatos
exaustivamente comprovados, dentro da razoável duração do processo e da estrita
legalidade.
O art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal de 1988 – que
estampa o princípio da celeridade processual – deve ser analisado em conjunto com
todas as outras disposições constitucionais, em especial os pressupostos do devido
processo legal, da ampla defesa e do contraditório, para que sejam respeitados os
institutos jurídicos destinados à consecução de uma ordem jurídica justa. O que se
afirma é que em nome da celeridade não se deve, e nem se pode, desconsiderar as
demais garantias processuais constitucionalmente previstas. Isso porque, como
leciona Brandão
313
: “É preciso que as partes possam demonstrar toda extensão dos
fatos que determinam o conflito para que ocorra efetivamente uma decisão sobre a
questão de mérito que envolva os fatos de direito”.
3.7 A conscientização em relação aos direitos difusos e coletivos
O Estado, por meio do exercício da função jurisdicional,
submete a imperatividade do direito às condutas concretas. Assim é que, mediante
formulação e atuação das regras jurídicas, os comportamentos que dele do direito
– divergem são disciplinados.
314
Nos dias atuais observa-se uma preocupação com o exercício
de questões vinculadas às exigências sociais e mesmo metaindividuais,
desprendendo-se paulatinamente de um contexto marcado pelos ideais liberais
individualistas, em um processo de transmutação de interesses, que sem
desatender as relações jurídicas privadas “projeta a necessidade de tutela jurídica
para além das situações jurídicas subjetivas que têm titulares certos e
determinados”.
315
Essa nova ordem de interesses chamados difusos ou coletivos
313
BRANDÃO, Paulo de Tarso; MARTINS, Douglas Roberto. Julgamento antecipado da lide, direito à
prova e Acesso à Justiça. In: ROSA, Alexandre Moraes da (Org.). Para um direito democrático:
diálogos sobre paradoxos. São José: Conceito. 2006. p. 21-22.
314
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.p. 135.
315
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.p. 135.
137
abrange relações voltadas ao aprimoramento da qualidade de vida geral de uma
coletividade, ou seja, um número indefinido de pessoas que fruem comumente de
seus benefícios, de maneira indivisível.
A efetivação desses novos direitos atrelados à cidadania tais
como a proteção do consumidor, do meio ambiente ou do patrimônio cultural,
depende de adaptações do modelo clássico de atuação jurídica para o atendimento
do bem individual do cidadão por meio da coletividade. Na avaliação de Barroso
316
:
[...] por refugiarem ao modelo clássico, torna-se indispensável a
adaptação das medidas processuais que se cristalizaram no envolver
de realidade diversa, bem como o aporte da contribuição criativa dos
novos tempos, para a elaboração de técnicas e institutos aptos a
apreenderem as relações supra-individuais.
As ações constitucionais são instrumentos disponibilizados
pela Constituição Federal de 1988 e servem para ampliar a legitimação do exercício
da nova geração de direitos. Além dessas ações, o reconhecimento de legitimidade
ativa às entidades associativas
317
, aos sindicatos
318
e aos partidos políticos
319
reflete
a tendência constitucional em promover a tutela desses direitos supra-individuais
como forma de aprimoramento do Acesso à Justiça.
A legislação ordinária, por seu turno, seguindo a inclinação
constitucional, desenvolveu uma ampliação dos interesses exigíveis por meio da
Ação Civil Pública, a saber: defesa das pessoas portadoras de deficiências (Lei n.
7.853/89), responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado
mobiliário (Lei. n. 7.913/89); e o Estatuto da criança e adolescente (Lei n. 8.069/90),
sem mencionar o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) que assegurou
o ajuizamento de ações coletivas
320
.
316
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.p. 136.
317
Cf. art. 5º, XXI, da Constituição Federal de 1988: as entidades associativas, quando
expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou
extrajudicialmente”.
318
Cf. art. 8º, III, da Constituição Federal de 1988: ao sindicato cabe a defesa dos direitos e
interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”.
319
Cf. art. 5º, LXX, da Constituição Federal de 1988: “o mandado de segurança coletivo pode ser
impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional”.
320
BARROSO, Luiz Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 137.
138
Nesse passo, percebe-se que os direitos da coletividade, não
individuais, encontram bons instrumentos de proteção judicial, dotados de meios
processuais eficientes aos fins a que se destinam e que, somados à consciência
ecológica, têm favorecido a abertura de caminhos para a proteção destes bens da
vida.
Contudo, a eficácia de tais elementos tem sido mitigada em
virtude de posicionamentos ultrapassados, necessitando de maior comprometimento
e boa vontade dos operadores jurídicos, que hoje estão confortavelmente apegados
a situações individualistas superadas, relutantes à utilização e adequação dos
instrumentos consoante a legislação constitucional vigente.
Essa temática está, pois, intimamente relacionada com a
questão da efetividade dos direitos e do Acesso à Justiça, que somente se
concretizarão quando as normas jurídicas forem aplicadas com o fito de atender às
necessidades sociais a que se destinam. Nesse sentido, sem a adequada
interpretação da norma jurídica corre-se o risco de produzir uma análise de validade
ou invalidade em desfavor de sua efetividade.
321
Assim, o Acesso à Justiça deve ser pensado pelo modo por
meio do qual os direitos se tornam efetivos
322
, não sendo apenas um direito social,
mas sim o ponto central do qual se deve ocupar a atuação jurídica tendente a
concretização dos direitos e garantias difusas e coletivas adequadamente
previstos no ordenamento jurídico pátrio.
Na questão da conscientização sobre os direitos difusos e
coletivos destaca-se a importância de três novos instrumentos, que foram trazidos
ao ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição Federal de 1988, a saber: o
Mandado de Segurança Coletivo, o Habeas Data e o Mandado de Injunção. Além
disso, foram ampliadas as aplicações do Mandado de Segurança e da Ação Popular.
Esses instrumentos, de um lado, possibilitaram um maior acesso dos cidadãos à
justiça e, de outro, o judiciário passou a exercer mais efetivamente sua função de
poder do Estado de um modo ainda não experimentado.
321
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 182-184.
322
BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à Justiça.
Florianópolis: Habitus, 2001. p. 185.
139
3.8 Aspectos simbólicos, psicológicos e ideológicos atrelados à noção
de justiça e poder judiciário
Uma análise, ainda que superficial, da tradição cultural
brasileira é bastante para se constatar que o cidadão hipossuficiente o
magistrado como um ser superior e distante, o mesmo ocorrendo, porém em menor
proporção, com a figura do advogado. Em conseqüência, o poder judiciário acaba
ficando distante da realidade daquela importante parcela da população, pois, não
raro, há o temor de sofrerem represálias por recorrer à justiça.
323
De outra banda, desde o período colonial até a república tem-
se notícia que o acesso ao poder judiciário foi assinalado por corrupções e
apadrinhamentos, de maneira tão significativa que mesmo nos dias atuais nos
quais tais práticas parecem menos rotineiras encontra-se presente no consciente
coletivo a noção de um poder parcial e tendente a favorecimentos, afastado dos
interesses das classes desprivilegiadas. A origem dessa situação pode estar
associada ao fato de o poder judiciário brasileiro ter-se formado durante o período
de colonização, em que o comprometimento das instituições com os interesses da
Coroa Portuguesa era marcante. E mais: mesmo com o povo brasileiro sendo
formado por brancos europeus, negros africanos e índios, predominava o interesse
dos primeiros, o que contribuiu para a formação de uma cultura jurídica excludente e
pouco preocupada com os interesses da maioria.
Tais referenciais presentes no ideário coletivo popular,
somados à morosidade das decisões, à localização em grandes centros e
instalações imponentes e luxuosas dos tribunais intimidam os pobres e os afastam
do interesse de perseguir efetivamente seus direitos.
323
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça: Dimensões jurídico-processuais no contexto
brasileiro da última década. [Trabalho elaborado para o concurso para professor titular da disciplina
de teoria geral do processo da Universidade Federal de Santa Catarina]. Florianópolis, 1993. p. 44.
140
Schwartz
324
menciona que os primeiros magistrados que
atuaram no Brasil foram europeus desembarcados na Bahia em 1609. Mais à frente
o mesmo autor prossegue:
Os juizes eram os mais respeitados e com maiores privilégios dentre
os funcionários da Coroa, ultrapassados apenas pelos vice-reis e
embaixadores. Eram eles funcionários reais, oriundos de uma
variedade de camadas sociais, principalmente da burguesia, das
boas famílias que não tinham títulos de nobreza. Tinham eles a
experiência de terem estudado em Coimbra. Representavam o que
havia de mais racional e profissional na burocracia imperial e não
deviam ser confundidos com funcionários civis.
325
O afastamento entre os magistrados e o povo era tamanho que
o casamento com brasileiras e também a aquisição de terras na sua área de
atuação eram proibidos nos idos de 1610.
A invasão holandesa em 1624 fez com que os interesses
governamentais fossem direcionados para a defesa, e não mais para a justiça.
Dessa feita, em 1626 o Tribunal baiano foi extinto, sendo a verba a ele reservada
destinada à guerra. Em virtude da inexistência do Tribunal, os processos foram
remetidos para Portugal, o que evidentemente agravou a situação da morosidade e
também os custos do processo. Schwartz
326
afirma que em 1652 foi restabelecido o
Tribunal e que a comarca da Ilha de Santa Catarina, criada entre 1609 e 1751, ficou
subordinada ao Tribunal baiano até 1751, ocasião em que passou para o Rio de
Janeiro e em 1874 para Rio Grande do Sul, onde permaneceu até 1891 com a
proclamação da independência do Brasil.
327
Com a proclamação da república, como visto, repartiu-se o
poder imperial nos moldes americanos, ou seja, em executivo, legislativo e judiciário.
Naquela ocasião, a sociedade estava fundada na escravatura e em uma vida
institucional pautada pela oligarquia opressora, cuja história se abordou no
324
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva,
1979. p. 137.
325
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva,
1979. p. 290.
326
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva,
1979. p. 137.
327
VIEIRA, João Alfredo Medeiros. História do Poder Judiciário em Santa Catarina. Florianópolis:
Fundação Catarinense de Cultura, 1981. p. 19.
141
primeiro capítulo deste trabalho. Em 1891, a Constituição republicana reordena o
esquema de funcionamento do judiciário brasileiro e a partir de então o processo de
reformas não se estanca mais. O resultado desse processo foram a Revolução de
1930, as Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e, por fim, a de 1988, em
vigor. Todas as Cartas Políticas mencionadas impuseram modificações ao poder
judiciário, em especial o período no qual o país experienciou o regime de exceção
marcado pelo autoritarismo, fruto do golpe de 64, e que perdurou até 1985. Foi
somente a partir da constituinte de 1985 que houve preocupação em reformar o
judiciário de forma a aproximá-lo do povo, tornando-o mais democrático e mais
sintonizado com o pressuposto do Acesso à Justiça. A partir daí, mudanças
significativas vêm sendo empreendidas no intuito de tornar mais justa e eficaz a
justiça e imprimir à sociedade uma melhor visão da idéia de justiça e poder
judiciário. Essa preocupação para suplantar uma cultura criada durante séculos e
arraigada no patrimônio cultural do povo, no entanto, é muito recente.
As origens dos aspectos simbólicos, psicológicos e ideológicos
estão atreladas à noção de justiça e de poder judiciário. A insatisfação dos
consumidores da justiça é grande e decorre da distância física e cultural existente
entre o povo e o judiciário. Essa lacuna foi criada por conta de uma longa história de
atuação insatisfatória. Grinover
328
, a propósito, menciona que:
A crise atinge os próprios operadores do direito e os magistrados
como que impotentes diante da complexidade dos problemas que
afligem o exercício da função jurisdicional, desdobra-se em greves e
protestos de seus servidores; ricocheteia pelas páginas da imprensa
e ressoa pelos anais da comunicação de massa assumindo
dimensões alarmantes. A justiça é inacessível, cara, complicada,
lenta, inadequada. A justiça é a denegação da justiça. A justiça é
injustiça.
Políticas direcionadas a ajustar essa situação, equilibrar a
oferta e a procura pela justiça, afastar o distanciamento entre o judiciário e seus
usuários, e desobstruir as vias de Acesso à Justiça são um imperativo que se impõe.
A alteração da forma de composição do órgão máximo da
justiça nacional, quiçá, possa ser uma alternativa para minimizar os problemas
enfrentados. Com efeito, uma observação associada às origens históricas do poder
328
GRINOVER, Ada Pelegrini. Crise no Poder Judiciário. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direito e
Justiça. São Paulo: Ática. 1997. p. 18.
142
judiciário conta que o critério político de preenchimento das onze vagas
existentes no Supremo Tribunal Federal se aproxima do modelo imperial, o que
tende a gerar uma dívida de gratidão. Daí decorrem decisões de cunho político que
afetam a estabilidade do ordenamento jurídico, como o esvaziamento conferido ao
Mandado de Injunção, instrumento potencial de abertura das vias que dão Acesso à
Justiça.
Por fim, considerável parte do judiciário e o próprio aparato
jurídico brasileiro não têm percebido que possuem os instrumentos de sua própria
reforma e têm, por isso mesmo, desconsiderado ser detentor do objeto de seu
próprio pleito. Assim, não necessidade de novos ritos para garantir a cidadania e
um efetivo Acesso à Justiça, eis que é necessário que os operadores do direito
percebam a nova realidade na qual devem operar, apliquem todo o instrumental que
está à sua disposição e dos próprios cidadãos, e possibilitem a estes a efetividade
do poder judiciário ante os conflitos que lhe sejam apresentados.
329
A grande revolução no direito ainda está para ser operada, mas
ela depende muito mais da postura de seus operadores do que de novos
instrumentos.
330
Isso porque novas Constituições, novas leis ou emendas,
desacompanhadas do compromisso político-social aí incluídos os operadores
jurídicos de construção permanente de um Estado Democrático de Direito são
incapazes de solucionar os problemas que envolvem a justiça e a forma eficaz de
acessá-la.
329
“Mas fica também manifesto que [...] é possível que Acesso à Justiça dos direitos inerentes à
cidadania se de forma célere e efetiva, bastando para tanto que os operadores jurídicos percebam
o problema antes afirmado e modifiquem sua postura, dando às Ações Constitucionais um tratamento
adequado à sua finalidade”. BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e
Acesso à Justiça. Florianópolis: Habitus, 2001. p . 265.
330
Nesse sentido ver BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ações constitucionais: novos direitos e Acesso à
Justiça. Florianópolis: Habitus, 2001.
143
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na parte inicial da presente dissertação restou evidenciado que
as diversas épocas da evolução constitucional revelam que a história do poder e dos
fatos políticos e sociais encontra-se umbilicalmente ligada, de modo a interferir
diretamente na dimensão de validade e eficácia do ordenamento jurídico e nos
imperativos funcionais da vida em conjunto. Assim, a história das relações de poder
e das organizações político-sociais, desde a Antiguidade até os tempos atuais,
repercute diretamente no mundo jurídico, em um movimento cíclico que firma a
ordem constitucional como elemento regulador de uma unidade jurídica destinada a
construir as conhecidas modalidades de Estado. Diante disso, faz-se mister a união
construtiva entre o processo histórico e o direito constitucional, uma vez que a
Constituição deve estar inserida na mutabilidade da história.
O termo “Constituição”, como pôde ser observado, passa a ser
utilizado somente a partir da Idade Moderna, contudo desde a Idade Antiga aqui
entendida como as civilizações gregas e romanas dos séculos IV a.C. e V d.C.
havia a necessidade de alguma forma de organização política destinada a
fundamentar condições mínimas para a convivência social.
A criação da lei como instituto vinculador destinado a dirigir as
relações sociais da época ocorreu na Grécia Antiga, sendo tal criação considerada
por alguns estudiosos como a mais notória invenção grega destinada a estabelecer
princípios de organização política e social. A Politéia nasce como elemento do
pensamento político que constitui um poder legitimante direcionado à estipulação de
um critério de ordem social e política, de um ideal ético a ser seguido.
Por sua vez, a organização política da Roma Antiga é de
grande referência para a cultura jurídica dos dias atuais. É dessa época que surgem
as primeiras distinções entre o direito público e o direito privado, e os primeiros
indícios da atual obrigação estatal de prestar a tutela jurisdicional, proibindo-se as
guerras privadas. Da mesma maneira, outra importante contribuição dos romanos
que está intimamente ligada à noção de Acesso à Justiça foi a instituição da
igualdade jurídica entre seus cidadãos.
144
Tanto os gregos quanto os romanos, com suas formas de
organização política, demonstravam preocupação com a inclusão e com a
satisfação dos interesses de seus cidadãos. Todavia, poucos eram alçados à
condição de cidadão, de maneira que o Acesso à Justiça era restrito a um número
reduzido de indivíduos, enquanto a maioria era deixada à margem, vale lembrar,
mulheres, escravos e estrangeiros.
o Poder Político da Idade Medieval, período compreendido
entre os séculos V e XV da era Cristã, foi marcado pela ausência de soberania e por
territórios multifracionados. Como conseqüência desse sistema de pulverização do
poder surgem o particularismo nas relações e a limitação do poder público, sem falar
na inexistência da figura do Estado como elemento de unificação das realizações
civis, econômicas e políticas.
Ainda, foi no período do medievo que surgiu na Inglaterra, em
1215, uma espécie de consciência sobre a existência de uma ordem comum a ser
seguida, traduzida pela assinatura de uma Carta Magna. Referida Carta estabelecia
direitos e deveres a todos os extratos sociais, assim como definia as funções
próprias do governante. Ou seja, se verificam os primeiros sinais de preocupação
com a criação de formas limitadoras e fiscalizadoras de poderes e autoridade dos
governantes, visando ao estabelecimento de uma ordem jurídica justa.
A Idade Moderna, por seu turno, trouxe modificações
significativas no que diz respeito ao Poder Político e sua relação com o grupamento
social. As grandes revoluções ocorridas no período fomentaram a infiltração do
direito na sociedade, tornando-o elemento de integração social. Nesse período
surgem o Estado, a noção de soberania e a Constituição como elemento garante
dos direitos dos cidadãos e como elemento constituinte de toda a organização
político-social da nação. Nesse cenário, o Acesso à Justiça se caracteriza pela
possibilidade de proteção contra os desmandos do Estado e tal controle é realizado
mediante limitações constitucionais ao poder.
A Revolução Francesa inaugura uma nova fase da relação do
homem com o poder e funda o Estado Democrático de Direito. Essa nova
concepção de Estado é pautada pelo princípio da legalidade, pela divisão
Montesquiana dos poderes e pela supremacia da liberdade e igualdade. No Estado
derivado dos ideais da Revolução Francesa os indivíduos podem buscar o seu bem-
estar sem a interferência direta das políticas públicas, dentro do ideal democrático.
145
Ou seja, a submissão ao menos formal dos poderes do soberano ao direito de
cada homem aponta o nascimento da soberania individual sobre o Estado.
Como características importantes do período entre guerras que
marcou a primeira década do século passado têm-se a crescente preocupação com
a dignidade da pessoa humana e o surgimento dos direitos fundamentais como mais
um elemento a assentar a organização social. Àquela época se constatava que os
modelos constitucionais modernos fundados nas liberdades absolutas não mais
atendiam aos anseios sociais.
Nesse contexto, as Constituições Mexicana (1917) e de
Weimar (1919) inauguram uma nova fase do constitucionalismo e uma nova
modalidade de organização estatal, cujo escopo era atender às necessidades
sociais por meio de intervenções por parte do poder público na coletividade. Projeta-
se, assim, o efetivo exercício dos direitos previstos constitucionalmente, sem,
contudo, desprezar as liberdades públicas até então atingidas: é o chamado Estado
Providência. A partir de então, a Constituição transforma-se em palco para a
enunciação de direitos fundamentais e igualdades de cunho democrático, um
sistema de produção constitucional derivado de um poder constituinte no caso
alemão, nitidamente exercido pelo povo. Assim, o poder judiciário firma-se como
órgão detentor de competência exclusiva para a solução dos conflitos, de onde brota
a compreensão de que o Acesso à Justiça está intimamente ligado à estrutura do
Estado e ao exercício do poder.
Entrementes, o Acesso à Justiça no Brasil é marcado pela falta
de continuidade das instituições políticas e pela instabilidade político-jurídica
resultante da edição de oito Constituições em menos de duzentos anos. Todas as
Cartas Políticas, vale dizer, foram detentoras de contornos organizacionais
freqüentemente desatendidos, tornando-se cada uma delas insuficiente ao
cumprimento integral dos fins a que se destinavam. Resulta dessa lacuna uma falta
de comprometimento com os princípios, diretrizes e direitos previstos como
fundamento da organização política e social, todos garantidos constitucionalmente.
Assim, engana-se quem acredita que a mudança da lei ou mesmo da Constituição
seria suficiente para solucionar definitivamente todos os problemas resultantes do
descumprimento dos direitos e garantias assegurados pelo Estado Democrático de
Direito. E essa incapacidade, vale dizer, a experiência constitucional brasileira
demonstrou. Com sinais de desenvolvimento democráticos diversos ao longo da
146
história, as Cartas Constitucionais brasileiras foram esculpidas com traços
característicos do liberalismo burguês surgido com a Revolução Francesa.
Demais, observou-se que a Constituição pode ser considerada
um dos elementos de regulação das relações entre direito e poder, de modo que as
relações dos membros da coletividade dependem da eficiência da função
constitucional, pautada por práticas políticas correspondentes aos fins instituídos,
sem o que a construção de uma unidade jurídica suficiente para fomentar um
Acesso à Justiça que satisfaça às necessidades dos cidadãos não será possível.
É certo que o Estado proíbe a autotutela e, pelas mãos do
poder judiciário, é detentor da titularidade da prestação jurisdicional e o responsável
pela solução dos conflitos que não puderam ser resolvidos na seara privada. Eis a
relevância do problema do Acesso à Justiça.
Com efeito, restou evidenciada também a caracterização do
Acesso à Justiça como Princípio Constitucionalmente previsto em diversos
dispositivos da Carta Magna em vigor quando assegura a todos, sem distinção, que
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art.
5º, XXXV), “[...] a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna [...]” (art. 5º, LXXIV), assim como se compromete a “construir uma
sociedade livre, justa e solidária [...]” (art. 3º, I).
No mesmo passo, o Acesso à Justiça pode ser reconhecido
como condição fundamental de eficiência e validade de um sistema jurídico que
tenha como objetivo maior a garantia dos direitos.
Dessa maneira, o Acesso à Justiça é o meio pelo qual os
direitos se tornam efetivos, eis que se encontra abrigado no ordenamento jurídico
brasileiro como direito fundamental. Contudo, esse Princípio Constitucional e direito
fundamental do cidadão não vem sendo plenamente observado em conseqüência de
entraves que bloqueiam as vias de Acesso à Justiça. Os entraves que impedem a
observância de tão importante princípio do Estado Democrático de Direito devem-se
a alguns fatores de natureza político-social, bem como fático-jurídicos, entre eles,
conforme se pôde identificar no desenvolvimento deste estudo, estão: a) a carência
de recursos econômicos; b) as “chicanas” processuais; c) a descrença da sociedade
no judiciário; d) a capacidade jurídica pessoal; e) as condições da ação; f) o
julgamento antecipado da lide; g) a conscientização em relação aos direitos difusos
147
e coletivos e; h) os aspectos simbólicos, psicológicos e ideológicos atrelados à
noção de justiça e de poder judiciário.
Em rigor, vale salientar que a crise no Acesso à Justiça não é
um fenômeno exclusivamente brasileiro, porém em sede nacional, restou
demonstrado que esses óbices podem ser superados diante de um
comprometimento político para tanto, desde que engajado com a realização dos
instrumentos jurídicos vigentes no atual ordenamento jurídico pátrio. Nesse contexto,
a superação dos mencionados entraves ao efetivo Acesso à Justiça se tornará
possível com a adequada utilização dos instrumentos legais disponíveis e adoção de
políticas públicas afins.
Por fim, o ideário do Princípio Constitucional do Acesso à
Justiça e a evolução histórica firmaram a Constituição como elemento regulador das
relações entre o direito e o poder, demonstrando a função constitucional de construir
e consolidar uma unidade jurídica capaz de formar e construir um Estado fundado
sobre bases efetivamente democráticas.
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