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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
ADOECER E CURAR: PROCESSOS DA SOCIABILIDADE KAINGANG
Cinthia Creatini da Rocha
FLORIANÓPOLIS
2005
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Cinthia Creatini da Rocha
ADOECER E CURAR: PROCESSOS DA SOCIABILIDADE KAINGANG
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Departamento de Antropologia Social da
Universidade Federal de Santa Catarina, sob a
orientação do Dr. Marnio Teixeira-Pinto.
FLORIANÓPOLIS
2005
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Para
Luã, que venha ao mundo com paz e saúde.
Meu pai (in memorian), por todos seus ensinamentos.
RESUMO
Este estudo, a partir da etnografia realizada na Reserva Indígena Aldeia Kondá
(Santa Catarina), parte do princípio que ‘saúde’ e ‘doença’ são processos da própria vida
social Kaingang. O eixo do argumento centra-se na compreensão do adoecimento e da cura
como dinâmicas instaladas nas relações sociais cotidianas, nas quais a reconciliação e/ou a
ruptura dos vínculos afetivos e sociais são fundamentais para a compreensão das
concepções kaingang sobre ‘saúde’ e ‘doença’. Diante disso, a organização social e a
sociabilidade princípios preponderantes da vida Kaingang são os principais pilares que
sustentam a reflexão teórica em torno das questões que permeiam os processos de adoecer e
de curar.
Palavras-chave
Adoecer, curar, organização social, sociabilidade.
ABSTRACT
This study, from the ethnographic research carried out in ‘Aldeia Kondá’
community (Santa Catarina), starts from the principle that ‘health’ and ‘sickness’ are
processes of Kaingang social life. This line of argument supports that to become sick and
to heal are integral dynamics of the daily social relations, in which the reconciliation and/or
the broken relationship and social bonds are fundamental to understanding the kaingang
conceptions about ‘health’ and ‘sickness’. Therefore, social organization and sociability
preponderant principles of the Kaingang life are the main supports for this theoretical
reflection on the questions about sickness and healing process.
Key words
To become sick, healing, social organization, sociability.
Agradecimentos
A realização desta dissertação, fruto de dois anos de mestrado, contou com o apoio
de diversas pessoas e instituições. A cada um agradeço de uma forma particular, pois, sem
estas ajudas e presenças, o trabalho teria sido bem mais árduo.
Devo um agradecimento especial aos Kaingang da Aldeia Kondá que me acolheram
e partilharam comigo seu modo de viver e compreender a vida. Seria impossível fazer um
agradecimento nominal a todos os moradores da aldeia, mas faço questão de mencionar
Devercindo, Augusto, Valdemar, Maximino e suas famílias que me receberam com um
carinho especial e minimizaram minhas saudades de casa.
Ao meu orientador, Dr. Márnio Teixeira-Pinto, agradeço o empenho na minha
formação em Antropologia Social, bem como seus comentários e provocações, para
tornarem o trabalho de campo e as reflexões teóricas interessantes e frutíferas.
Não poderia deixar de agradecer também os professores e colegas do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC, com os quais tive a oportunidade de
conviver, trocar idéias e sugestões.
Ao Núcleo de Estudos de Saberes e Saúde Indígena (NESSI), coordenado pela Dra.
Esther Jean Langdon, agradeço a intensa troca de conhecimentos e experiências.
Ao Núcleo de Transformações Indígenas (NUTI/PRONEX), agradeço a acolhida no
projeto “Transformações indígenas os regimes de subjetivação ameríndios à prova da
história”, os ricos debates realizados na XXIV Reunião Brasileira de Antropologia e o
auxílio financeiro proporcionado à pesquisa de campo.
Agradeço ainda à CAPES e ao CNPQ, por terem concedido a bolsa de pesquisa.
Faço um agradecimento especial ao antropólogo Ricardo Cid Fernandes, que
sempre atencioso, iluminou várias de minhas reflexões.
Ao pessoal da equipe de saúde da FUNASA/ Chapecó, principalmente, a Olivete e a
Juceli, devo minha gratidão pelo auxílio nesta pesquisa.
À Vilson e Liliane de Chapecó, agradeço a hospedagem e as conversas inspiradoras.
Agradeço igualmente todos meus amigos, que transmitiram força e sinceridade nos
momentos em que mais precisei.
Finalmente, agradeço a toda minha família, por seu apoio sempre constante. À
minha mãe e ao Ronaldo, meus sinceros agradecimentos pelo intenso estímulo, carinho e
paciência que sempre me dedicaram.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................01
O povo Kaingang.......................................................................................................02
A Aldeia Kondá e a pesquisa....................................................................................05
Referencial Teórico...................................................................................................07
Metodologia...............................................................................................................09
A disposição dos capítulos........................................................................................12
PARTE I
I. 1) Contextualizando: um pouco da história dos Kaingang..........................................13
I. 2) A formação da Aldeia Kondá..................................................................................22
I. 3) Caracterização da Aldeia Kondá Atual...................................................................33
PARTE II
II. 1) Partindo de princípios............................................................................................48
II. 2) Sociabilidades – dados etnográficos......................................................................58
II. 2a) Contravenções, ajustes e a busca de soluções nos casamentos kaingang.......58
II. 2b) Alianças ideais................................................................................................63
II. 2c) Os nomes........................................................................................................70
II. 2d) Vínculos corporais..........................................................................................72
II. 2e) Relação corpo/ espírito...................................................................................78
PARTE III
III. 1) Interações nas dinâmicas da saúde e da doença...................................................81
III. 2) Compreendendo a dor e a doença........................................................................87
III. 3) Sobre os venh-kagta (remédios)...........................................................................96
III. 4) Curas Espirituais..................................................................................................99
III. 5) O modo como os kaingang lidam com o adoecimento e com a cura.................104
III. 6) Alinhavando alguns pontos................................................................................115
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................122
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Mapa localizando os principais Campos ocupados pelos Kaingang no século
XIX........................................................................................................................................16
Figura 2: Mapa da Presença e dos Deslocamentos Kaingang no Século XIX....................19
Figura 3: Área escolhida para abrigar a Aldeia Kondá........................................................29
Figura 4: Desenho Parcial da Localidade da Praia Bonita...................................................39
Figura 5: Desenho Parcial da Localidade do Gramadinho..................................................40
Foto 1: Área da Reserva Indígena Aldeia Kondá e Rio Uruguai.........................................33
Foto 2: Gramadinho (SC 484)..............................................................................................35
Foto 3: Praia Bonita..............................................................................................................36
Foto 4: Mãe da noiva anunciando a filha.............................................................................65
Foto 5: A metade da noiva....................................................................................................66
Foto 6: O noivo e os padrinhos.............................................................................................67
Diagrama 1: Genealogia da Família Fortes e Salvador.......................................................27
Diagrama 2: Representação ideal das relações de parentesco constitutivas de dois grupos
domésticos.............................................................................................................................54
Tabela 1................................................................................................................................41
1
INTRODUÇÃO
Esta dissertação é resultado de diferentes etnografias que realizei junto aos Kaingang,
povo Meridional. Nos últimos sete anos, fui apresentada à etnologia e passei a pesquisar
estes índios que ocupam os estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do
Sul. Mesmo sendo fruto de distintas experiências de pesquisa, este ainda é um trabalho
provisório que tenta dar conta dos processos de saúde e doença percebidos no curto
trabalho de campo realizado na Reserva Indígena Aldeia Kondá
1
.
A escolha por esta área indígena foi sugerida pelo antropólogo Ricardo Cid Fernandes,
pois era uma área recentemente constituída (1999) e que abrigava uma população Kaingang
que anteriormente residia na periferia da cidade de Chapecó. Como até o momento, não
havia sido feita nenhuma etnografia desta comunidade (com exceção dos laudos
coordenados pela Dra. Kimiye Tommasino quando ainda habitavam na região da cidade),
esta pesquisa vem contribuir com a trajetória dos estudos relativos aos Kaingang no estado
de Santa Catarina (Santos, 1979; Nacke, 1983; Veiga, 1994 e 2000; D’Angelis, 1989;
Oliveira, 1996; Almeida, 1998 e 2004; Diehl, 2001).
Este estudo se apresenta vinculado a dois núcleos de pesquisa que, além de financiarem
parte dos custos da pesquisa, fomentaram frutíferas reflexões: o Núcleo de Estudos de
Saberes e Saúde Indígena/ UFSC, coordenado pela Dra. Esther Jean Langdon e o grupo de
pesquisadores do Projeto Pronex Cnpq – FAPERJ (Convênio Interinstitucional Museu
Nacional – UFRJ/ UFSC), coordenado pelo Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro.
1
Ao longo do trabalho farei referência a área indígena pesquisada simplesmente como Aldeia Kondá, pois é
como os kaingang a chamam.
2
O povo Kaingang
Com aproximadamente vinte cinco mil pessoas, os Kaingang atualmente se distribuem
ao longo de vinte nove terras indígenas localizadas nos estados de São Paulo, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul. As recentes pesquisas lingüísticas sobre os grupos no sul
do Brasil (incluso os Xokleng) apontam para sua chegada nesta região em torno de três mil
anos atrás (Mota, 2000b). O contato sistemático com a sociedade envolvente remonta o
século XVIII, o que desde então provocou o aldeamento e a drástica redução dos territórios
Kaingang.
Mesmo diante o aldeamento, é comum depararmo-nos com os kaingang circulando ao
longo de todo o Planalto Meridional, pois para eles, estas terras (inclusive cidades como
Chapecó) continuam sendo parte de seu território tradicional. O conhecimento dos ‘antigos’
sobre os limites deste território tem sido passado de geração para geração, de modo que a
prática da mobilidade espacial se mantém enquanto princípio que opera a própria
sociedade. Se no tempo passado os kaingang ‘circulavam’ ao longo do território tradicional
para realizar as atividades de caça, coleta, pesca e cerimônias coletivas como o Ritual do
Kiki, hoje em dia, é comum que circulem para visitar os parentes que vivem em outras
aldeias ou cidades e para vender seu artesanato
2
. Assim, a mobilidade espacial permanece
como uma das características que desencadeia a própria sociabilidade do grupo, seja entre
os seus, seja com os membros da sociedade envolvente.
2
Antigamente o artesanato era feito apenas para o uso doméstico, mas passou a ter grande importância
econômica para a subsistência familiar a partir da expropriação das terras kaingang. Além disso, a produção
do artesanato kaingang apresenta-se como uma das principais atividades cotidianas de sociabilidade, pois em
torno dela os membros de uma mesma família nuclear e grupo doméstico se organizam coletivamente para
coletar o material no mato, prepará-lo e trançá-lo. As crianças, de acordo com sua idade e capacidade,
também participam da roda de produção artesanal.
3
Etimologicamente, Kaingang significa povo do mato’. “A auto-identificação como
parte do meio ambiente, isto é, como gente do mato, remete à noção de um meio ambiente
determinado enquanto constitutivo de sua identidade” (Tommasino, 2000, grifos da autora).
Talvez seja esta uma das razões pelas quais os Kaingang lutam insistentemente para
retomar ou ampliar os domínios de suas áreas indígenas. De acordo com a cosmologia do
grupo, foi a terra quem abrigou as almas dos gêmeos ancestrais Kamé e Kairu logo após o
dilúvio. E, de seu interior, na serra Krinjinjimbé (Serra do Mar), eles abriram caminhos
após a recuada das águas do dilúvio e povoaram a terra juntamente com os Kaingang.
3
Além do aspecto cosmológico, a questão territorial assume também um importante
papel na organização social dos Kaingang, visto que é ao longo do território tradicional que
os grupos locais se distribuem historicamente.
“Nesse espaço físico, grupos familiares (extensos ou não) e pessoas se movem
constantemente, formando uma ampla rede de sociabilidade cujos indivíduos
compartilham uma experiência histórica e se consideram partícipes da mesma
cultura. Unifica-os, portanto, uma consciência mítica, histórica e étnica. Essa rede
configura a espacialidade do todo social que expressa uma unidade sócio-política
mais ampla, a sociedade Kaingang” (Tommasino, 2000: 208).
A forma tradicional de organização social Kaingang é característica de todas as áreas
indígenas kaingang, mesmo que com relação a outros aspectos elas apresentem diferenças
entre si (por exemplo, com relação ao idioma, algumas comunidades falam somente o
português, enquanto outras são bilíngües; quanto ao tamanho da área territorial, terras
3
O mito de origem kaingang contado pelo Cacique Arakxô a Telêmaco Morocine Borba, em 1908, está
presente em várias etnografias deste grupo. Para a versão completa ver Teschauer apud BECKER, Ítala Irene
Basile. O Índio Kaingang no Rio Grande do Sul. São Leopoldo: Instituto Anchietano/Unisinos, 1976, p.279-
280.
4
indígenas kaingang com extensão superior a trinta mil hectares, enquanto outras têm menos
de trezentos hectares).
Muitas pessoas ainda têm extrema dificuldade em reconhecer a especificidade da
cultura Kaingang e insistem em chamar estes índios de ‘caboclos’. No entanto, ao estudar
este grupo, percebe-se que não é preciso ir longe e buscar as vozes do passado, da tradição,
para dar-se conta de sua importância aos estudos antropológicos. Sua dinâmica cultural está
presente em seu dia-a-dia, no modo como vivem e nos princípios classificatórios e
organizacionais de sua sociedade. Diante disso, cabe a nós alargarmos nossa compreensão
de humanidade, através das interessantes questões que os kaingang nos instigam a pensar.
5
A Aldeia Kondá e a pesquisa
A trajetória de formação da Aldeia Kondá é especial. Durante alguns anos um grupo de
kaingang tentou se (re)territorializar na cidade de Chapecó, mas as precárias condições de
vida (que levaram à diversas mortes de membros do grupo, principalmente crianças) e a
constante discriminação que sofriam dos ‘brancos’ acabou gerando uma série de conflitos e
pressões que ocasionou na remoção desta população para a zona rural do município. A
partir de então, se iniciou o processo de configuração da Aldeia Kondá, lócus desta
pesquisa.
Enquanto residiam no espaço urbano, estes kaingang praticamente não contavam com o
amparo dos órgãos responsáveis pelas populações indígenas (o CIMI Conselho
Indigenista Missionário é a única organização que parece ter deixado boas impressões à
comunidade). Porém, depois que passaram a residir em uma área considerada ‘indígena’
(de acordo com os critérios jurídicos do Estado), conquistaram direitos básicos como
escola, assistência à saúde através da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) e assessoria
da Funai (Fundação Nacional do Índio)
4
.
Diante destas circunstâncias, o interesse inicial da pesquisa era tentar entender de que
modo os kaingang estavam resignificando suas práticas de auto-atenção à saúde
5
, a partir da
4
A maioria dos índios que se encontram nas cidades brasileiras o ignorados pelos órgãos responsáveis ao
atendimento de suas demandas: Funai e FUNASA. Estes alegam que não podem prestar assistência àqueles
que se encontram fora das áreas indígenas. Por sua vez, os antropólogos têm argumentado que, não se perde
ou modifica o ethos de uma pessoa, isto é, o modo como ela se e é vista pelos seus, diante a simples
mudança do espaço físico em que reside, ou seja, ‘do mato’ para ‘a cidade’.
5
Conceito elaborado por Menéndez (2003) que aponta que os modelos de atenção à saúde englobam não
apenas as atividades de tipo biomédico, como também todas aquelas que têm a ver com a atenção das
doenças, ou seja, as práticas que buscam prevenir, dar tratamento, controlar, aliviar e/ou curar uma
determinada enfermidade. Portanto, essa diversidade das formas de atenção está relacionada tanto com as
condições técnicas e científicas, como também com as religiosas, étnicas, econômicas e políticas de cada
sociedade.
6
reocupação de um espaço já conhecido (também território tradicional), mas há muito tempo
não habitado e, tendo em vista o sistema de cuidados à saúde que passava a ser implantado
pela FUNASA. O objetivo era enfocar a interação estabelecida entre os agentes de saúde da
sociedade envolvente e a comunidade kaingang propriamente dita. No entanto, ao chegar
em campo, dei-me conta que, geralmente, a intenção da pesquisa é uma e o interesse do
grupo estudado é outro. Mesmo que os kaingang expressassem suas opiniões sobre as
relações que mantêm com aqueles que lhes prestam os serviços e assistência à saúde,
nossas conversas eram muito mais produtivas quando eles falavam de suas experiências
pessoais durante os processos de adoecimento e cura.
Frente a tal constatação e seguindo os princípios éticos do método antropológico,
durante os três meses de pesquisa de campo, deixei que os kaingang me inserissem e
conduzissem nos assuntos que lhes pareciam mais interessantes. Comecei a entender então,
que as narrativas kaingang sobre saúde e doença, antes de qualquer coisa, falavam sobre a
própria dinâmica das relações sociais, isto é, sobre aspectos da sociabilidade que marcam o
mundo da aldeia um assunto especialmente envolvente para o grupo, e que conforme
íamos nos aproximando, se tornava cada vez mais freqüente nas rodas de chimarrão.
Assim, partindo do princípio que a saúde e a doença são processos da própria vida
social Kaingang, o eixo do trabalho centrou-se na compreensão do adoecimento e da cura
como dinâmicas instaladas nas relações sociais cotidianas, onde a reconciliação e/ou a
ruptura dos vínculos afetivos e sociais são centrais para a compreensão destas noções.
Desse modo, organização social e sociabilidade, princípios preponderantes da vida
kaingang, manifestam-se como ferramentas teóricas para se pensar uma série de questões,
dentre elas, àquelas que aqui nos interessam, relacionadas à saúde e à doença.
7
Referencial Teórico
As questões referentes à saúde e à doença de uma sociedade são extremamente
interessantes para a abordagem antropológica porque permitem a reflexão sobre aspectos
tanto do plano individual quanto do social. Como coloca Marc Augé em L’Anthropologie
de la Maladie, “não há sociedade onde a doença não tenha uma dimensão social, sendo ao
mesmo tempo a mais íntima e individual das realidades, dando um exemplo concreto da
ligação intelectual entre a percepção individual e o simbolismo social” (Augé apud
Laplantine, 1991: 02).
Apesar de achar que termos como ‘saúde’ e ‘doença’ são problemáticos enquanto
categorias de análise porque sustentam uma dicotomia que lhes é intrínseca, eles serão
utilizados ao longo do trabalho, visto a ausência de palavras mais adequadas que
contemplem estes estados subjetivos aos quais todas as sociedades estão sujeitas. De
qualquer modo, cabe esclarecer que meu entendimento sobre as noções de ‘saúde’ e
‘doença’ não se apóia nas nomenclaturas sugeridas pela medicina, mas sim em estados
subjetivos que levam em conta o que as pessoas desejam fazer, estão em condições de fazer
e a sua relação com as idéias de ‘aflição’e ‘inquietação’ (Hegenberg, 1998: 58). Além
disso, seguindo algumas abordagens da Antropologia da Saúde, concebo a ‘doença’ como
um processo construído sócio-culturalmente, um conjunto de experiências associadas por
redes de significado e interação social, cuja construção se através da negociação dos
múltiplos significados dos sinais observados (Langdon, 1994).
Neste sentido, a observação e análise dos episódios de adoecimento e cura entre os
Kaingang possibilitam visualizar um modo específico de vivenciar estes processos como
8
enfraquecimento e recuperação do indivíduo, obviamente , mas também como
experiências que ultrapassam os limites físicos da pessoa doente e abarcam a própria
sociedade. O adoecimento e a cura perpassam a dimensão física sim, mas também a
cognitiva, espiritual e social. Para os kaingang, muitas vezes, estes eventos resultam de
questões que se originam em suas relações sociais, assim, são processos que acabam sendo
representados e vivenciados pelo coletivo.
De modo geral, os episódios de mal-estar podem contribuir para o ordenamento da vida
social porque são um veículo útil para comunicar e legitimar mudanças na maneira pela
qual as relações sociais estão dispostas dentro de uma comunidade. Assim, para
apreendermos o significado social do mal-estar é preciso entender que ‘sinais’,
independentemente de sua origem, se transformam em sintomas, que são expressos e
percebidos de maneira socialmente apreendida (Young, 1976).
A ênfase dada pelos kaingang aos processos de adoecimento e cura como fenômenos
sociais e, principalmente, a observação dos cultos evangélicos como rituais de cura levou-
me também em busca de perspectivas que abrangessem uma teoria das emoções. Afinal, as
emoções vinculam tanto sentimentos e orientações cognitivas, públicas, morais quanto
ideologias culturais. Neste sentido, os kaingang me apresentaram um “mundo de emoções”,
dentre as quais o choro, o riso e a exteriorização de sentimentos íntimos e profundos
parecem dizer algo próprio desta sociedade. Como afirmaram outros autores, prestar
atenção nestas emoções é importante, visto que elas podem ser a ponte entre mente, corpo,
indivíduo, sociedade e corpo político (Lock & Scheper-hughes, 1990).
9
Metodologia
Grande parte da pesquisa bibliográfica foi realizada antes da ida à campo, mas a
releitura de algumas etnografias Kaingang, durante e após a conclusão do trabalho de
campo, foi fundamental para iluminar os próprios dados por mim coletados. Ao longo dos
três meses de convívio com os kaingang da Aldeia Kondá procurei privilegiar a observação
participante e as entrevistas livres, visando elaborar uma descrição etnográfica deste
contexto.
O restrito tempo de trabalho de campo impossibilitou-me de aprender a língua
kaingang, o que prejudicou bastante a coleta dos dados. Mesmo sendo bilíngües, os
kaingang da Aldeia Konsomente utilizam o português quando precisam dialogar com
alguém que não domine seu idioma. No meu caso, diante minha ignorância em sua ngua,
eles procuravam conversar em português, mas durante as conversas entre si, ainda que eu
estivesse presente, falavam em kaingang. Dependendo do assunto, as mulheres tentavam
fazer uma rápida tradução, no entanto, percebia que havendo uma seleção de trechos das
falas, eu sempre estava sujeita a perda de importantes informações para a pesquisa.
Durante o primeiro mês de trabalho de campo fiquei hospedada na cidade de
Chapecó e diariamente me deslocava para realizar a pesquisa na Aldeia Kondá. Este
momento foi significativo para me aproximar do grupo e estabelecer vínculos mais fortes
com algumas famílias. Inicialmente, a maioria das pessoas se mostrou desconfiada e
reticente porque não conseguiam visualizar quais benefícios a pesquisa traria para a
comunidade. Ao longo deste primeiro mês visitei grande parte das residências da aldeia e
me apresentei às famílias explicando as intenções do trabalho. Nestas visitas aproveitava
para perguntar o nome dos moradores da casa, a idade de cada um, o lugar de origem, a
10
escolaridade, as atividades da família (artesanais, agrícolas, etc), o tempo que aquelas
pessoas residiam na Aldeia Kondá e tentava traçar um primeiro esboço das relações de
parentesco entre os membros daquela e de outras unidades residenciais.
No segundo mês do trabalho de campo, fui convidada por duas famílias a me alojar em
suas residências. Assim, o restante do tempo de pesquisa hospedei-me ora em uma casa, ora
em outra. Percebi que esta atitude foi bastante valorizada pelos kaingang, eles começaram a
levar meu trabalho mais a sério, tendo em vista que eu parecia realmente disposta a
experienciar seu modo de vida o que para eles é um bom sinal.
A partir de então, comecei a fazer as entrevistas direcionadas às questões de saúde e
doença. Basicamente, as entrevistas procuravam elucidar: a doença que afligia a pessoa ou
o grupo – no caso de ser um parente do doente; como ela havia começado; quais os
sintomas que a caracterizavam; como ela deveria ser tratada e o que explicava sua
existência. Além das entrevistas, passei a acompanhar o trabalho da auxiliar de enfermagem
(nas residências e no postinho de saúde) e acompanhei algumas famílias em seu itinerário
terapêutico (até o posto de saúde do SUS na cidade de Chapecó; em busca de remédios
do mato ou da biomedicina; na participação dos cultos evangélicos). Cada vez mais
próxima do grupo, os kaingang começaram a inserir-me em suas atividades as festas, os
cultos nas igrejas evangélicas, as rodas de chimarrão, as idas ao mato, as conversas em
torno do fogo de chão ou do fogão a lenha e, a partir destas observações, o trabalho
etnográfico foi sendo lapidado. Durante o trabalho de campo, com exceção de alguns
homens mais velhos, as mulheres foram minhas principais anfitriãs e informantes, portanto,
graças a elas, tive a cesso a este olhar feminino sobre a sociabilidade kaingang.
11
Além de utilizar o caderno de campo diariamente, também utilizei como material de
apoio um gravador de áudio e a câmera fotográfica. Posteriormente, as imagens foram
dadas ao kaingang, visto seu apreço pelas fotografias.
Devo admitir que uma série de fatores limitou este trabalho, dentre eles, o
desconhecimento da língua, o reduzido tempo de pesquisa de campo a que estamos sujeitos
no mestrado e o próprio recorte da realidade que uma pesquisa implica. Tentando
minimizar estes danos, o trabalho que segue procura apresentar as ‘entradas’ e os caminhos
pelos quais os kaingang me conduziram. Antes de ir a campo, meu orientador havia
alertado que não deveria conduzir a pesquisa ao “pé da letra” dos temas da ‘saúde’ e da
‘doença’, pois enquadrar o campo nestas categorias limitaria outras observações que fariam
sentido posteriormente. Tal dica foi seguida à risca, lembrando sempre que o trabalho de
campo se torna muito mais interessante quando realmente deixamos os “nativos” falarem.
Tendo em vista que as dinâmicas da saúde e da doença não são fragmentos da vida
kaingang, mas como eles mesmo dizem, “partes de sua história”, narrar tal história é
sempre o esforço de fazê-la transparecer-se por inteiro. Assim, procuro mostrar ao longo do
texto que, para os kaingang, saúde e doença são processos sociais envoltos naquilo que lhes
faz sentido: pertencer a terra, se deslocar pelo território tradicional, romper e reatar laços
afetivos e sociais, se organizar politicamente, trançar balaios, acessar bens materiais e
simbólicos e expressar seu próprio modo de compreender a vida.
12
A disposição dos capítulos
Basicamente, o trabalho se divide em três partes: a primeira procura contextualizar o
leitor na história dos Kaingang do oeste de Santa Catarina. Tal retomada histórica se faz
relevante porque traça a própria trajetória dos antepassados das pessoas que hoje vivem na
Aldeia Kondá. Posteriormente a isto, procura-se caracterizar a Aldeia Kondá, a fim de
possibilitar um panorama geral da infra-estrutura local e das famílias que lá habitam.
A segunda parte faz um apanhado das questões teóricas que permeiam a
organização social Kaingang. A partir destas considerações é possível construir um modelo
de organização social kaingang, onde a qualidade de suas relações se mostra central. Para
complementar este modelo expõe-se alguns dados etnográficos relatados pela literatura
kaingang e observados no trabalho de campo, que explicitam a sociabilidade posta em
prática pelo grupo.
Finalmente, a última parte do trabalho se refere especificamente às temáticas da
saúde e da doença. A partir das dinâmicas observadas no trabalho de campo, procura-se dar
densidade a importância que as relações sociais assumem no cotidiano da Aldeia Kondá
levando ao adoecimento ou a cura de determinadas enfermidades.
13
PARTE I
I. 1) Contextualizando: um pouco da história dos Kaingang
Foi escolhido esse nome [Aldeia Kondá] porque é um nome muito antigo. E
além desse nome, Condá é uma vivência, ? Ele viveu, coordenava,
mandava... Dentro dele, também cabem os nomes dos lugares de Chapecó:
Porto Goyo-En, Pilão de Pedra, tem um lugar também chamado Campina
dos Gregório, enfim, tudo isso foi criado por meio desse Condá”.
(Augusto, 54 anos)
A etnologia dos povos indígenas no sul do Brasil tem uma produção significativa,
especialmente em Santa Catarina, com Jules Henry (1964), Gioconda Mussolini (1980),
Sílvio Coelho dos Santos (1969, 1981, 1987), Anelise Nacke (1983), Juracilda Veiga
(1994; 2000), Vilmar D’Angelis (1989), entre outros. A partir da década de 1990, os
Kaingang se tornaram foco sistemático de estudos etnográficos sobre questões de
organização social, cosmologia e práticas rituais (Veiga, 1994; 2000), relações com o meio
urbano (Tommasino, 1995 e 1998), cosmologia e territorialidade (Rosa, 1998), religião
(Oliveira, 1996; Almeida, 1998 e 2004), etnobotânica (Haverrot, 1997), política
(Fernandes, 1998; 2003) e saúde (Fassheber, 1998; Diehl, 2001).
Meu intuito aqui não é fazer uma grande revisão bibliográfica sobre a literatura a
respeito dos Kaingang, mesmo porque ótimos trabalhos o fizeram (ver p.ex. D’Angelis
1989; Oliveira, 1996; Veiga, 2000, entre outros). Contudo, pretendo de forma sucinta,
14
situar o leitor na trajetória histórica deste grupo chegando, enfim, à criação da Reserva
Indígena Aldeia Kondá, lócus da pesquisa.
A ocupação dos Kaingang no planalto meridional brasileiro é de longa data
6
(ver
mapas 1 e 2 abaixo). A mobilidade ao longo deste espaço sempre foi algo intrínseco à
própria vida social Kaingang, seja porque buscavam os meios de subsistência
preferencialmente o pinhão e a caça nas florestas , seja porque ocorriam dissidências no
interior dos próprios grupos que levavam à fissão e ao deslocamento dos subgrupos
7
.
As primeiras tentativas coloniais de conquista e ocupação efetiva dos campos e
florestas sob o domínio dos Kaingang se iniciam na então Província do Paraná, nos
primeiros anos do século XVIII, com a organização de expedições. Foram ao todo onze
expedições que, apesar de tudo, não obtiveram grande sucesso e acabaram abandonando os
Campos Gerais. Foi necessário mais um século para “a ocupação dos Campos de
Guarapuava tornar-se imperiosa, (...) em razão da economia portuguesa e em função da
‘geopolítica’ colonial” (D’Angelis, 1989: 18, grifos do autor).
O próprio Príncipe Regente Dom João VI, solicitou uma expedição que contou com
mais de duzentos homens incumbidos de conquistar e colonizar a região sob qualquer
condição. Entretanto, segundo o comandante encarregado, o Tenente Coronel Diogo Pinto
de Azevedo Portugal, “a maior parte da tropa se declarou viciosa e abominável, vindo
igualmente, contaminada de moléstias” (Macedo, 1951:111 apud D’Angelis, 1989: 20). A
esperança da Real Expedição estava na conversão e catequese dos Kaingang, contudo, ela
6
A expansão geográfica dos Kaingang pós-contato iniciou-se no culo XVI, deslocando-se do litoral entre
Angra dos Reis e Cananéia para o interior do continente (ver Teschauer, 1927).
7
Para os Kaingang as florestas de todo o território tribal constituíam espaço de caça e coleta por qualquer
indivíduo, com exceção das matas de araucárias, que eram divididas entre os subgrupos. Cada subgrupo
(grupo local) tinha uma parcela do pinheiral sobre a qual exercia o direito à coleta do pinhão. As cascas destas
árvores eram assinaladas e dividiam os territórios políticos controlados pelos grupos locais que estabeleciam
alianças ou conflitos entre si (Tommasino, 2000).
15
também estava pronta e armada para “considerar como principiada a guerra contra os índios
bugres habitantes dos campos de Curitiba e Guarapuava” (Moreira Neto, 1972: 408 apud
D’Angelis, 1989: 19).
Em julho de 1810, um grupo de kaingang liderados pelo cacique Pahy buscou
contato com estes portugueses, para estabelecer relações amistosas com os mesmos. Porém,
quase quinze dias depois, os mesmos índios sitiaram a fortificação da expedição de Atalaya
desencadeando um grande confronto com os soldados. Muitos kaingang foram mortos e
resta dúvida se os índios estavam dissimulando suas intenções iniciais para expulsar os
invasores, ou se estavam respondendo a uma ofensa ou agressão sofrida, como por
exemplo, a recusa de suas mulheres (Macedo, 1951: 146 apud D’Angelis, 1989: 20). Após
este fato, os kaingang se afastaram novamente, mas em 1812, uma escolta portuguesa foi
mandada aos seus acampamentos para capturar o cacique Pahy, que acabou sendo preso por
cinco meses. Depois de libertado, mas ainda considerando-se rendido, Pahy retornou às
fortificações da expedição para estabelecer boas relações com os ‘brancos’, levando
consigo, além de seu grupo, também o do cacique Condá. A partir deste momento,
“estava lançada a base da ocupação dos Campos de Guarapuava e de Palmas,
com a submissão de um grupo Kaingang e com o emprego da clássica
técnica colonial de alimentar e explorar as lutas internas dos povos
colonizados” (D’Angelis, 1984:09 apud D’Angelis, 1989: 21).
Estabelecido este contato ‘oficial', enquanto alguns grupos kaingang formavam
alianças com os portugueses, outros a negavam, o que ocasionava intensos conflitos entre
os próprios índios, favoráveis e contrários à aceitação dos fòg.
8
8
Termo kaingang de referência ao não-índio.
16
Em 1837, o Governo Provincial de São Paulo intensificou as frentes de expansão
solicitando a “descoberta” dos Campos de Palmas
9
, o que foi oficializado na lei de 16 de
março daquele ano (Bandeira, 1851: 430 apud D’Angelis, 1989: 24).
Figura 1: Mapa localizando os principais Campos ocupados pelos Kaingang no século
XIX.
Fonte: Laroque, 2000.
9
Os chamados Campos de Palmas da época estão em sua maior parte em território do atual oeste catarinense.
17
Neste processo de ocupação do oeste catarinense, o cacique Condá (que dá nome à
aldeia onde foi realizada a pesquisa) foi a peça chave para a permanência dos não-índios:
“sua ascendência sobre os diversos grupos Kaingang, habitantes dos sertões entre o Iguaçu
e o Uruguai, e mesmo da margem esquerda deste último território riograndense é
atestada por inúmeros autores (...)” (D’Angelis, 1989: 28).
Com a intensificação das frentes de expansão na região sul durante o século XIX, a
população indígena (incluindo os Guarani) passou a distribuir-se pelo território em função
de sua postura diante dos não-índios. Aqueles que aceitavam essa ocupação ou queriam
estabelecer vínculos com o invasor, se aproximavam da principal via de deslocamento das
tropas de gado e dos extratores de erva-mate, a estrada que ligava Palmas ao Goio-En
10
.
Por sua vez, os que eram hostis a tal penetração, refugiavam-se mais longe, embrenhando-
se no mato. Como neste período também o rio Uruguai começou a ser utilizado como via
econômica para escoar a erva-mate, e em seguida a madeira, os grupos indígenas contrários
ao contato que residiam perderam totalmente sua tranqüilidade. Tais grupos de índios
acabaram, por fim, concentrando-se nas intermediações do rio Irani e sua região leste, no
médio rio Xapecó e região oeste dele.
A segunda metade do século XIX foi especialmente decisiva em relação à questão
fundiária no sul do país. De um lado, as terras de campos eram requisitadas para a expansão
da economia pastoril, incrementada também em função da expansão da economia cafeeira
no Sudeste. De outro, as terras agricultáveis iam sendo requisitadas pelo empreendimento
colonizador, ou sendo incorporadas ao estoque de terras em especulação imobiliária a partir
da Lei de Terras (1850). Em função disso, o Governo propõe a união de distintos
10
Termo kaingang que segundo os índios da Aldeia Kondá significa ‘água com mato alto’. Goio-En é o ponto
catarinense mais próximo do rio Uruguai, exatamente na divisa dos estados de Santa Catarina e Rio Grande
do Sul. Este também foi um dos locais onde o cacique Condá viveu com seu grupo.
18
aldeamentos Kaingang, promovendo a transferência forçada de grupos que estavam
espalhados pelo território tradicional (D’Angelis, 1989: 42-43).
Neste momento, a invasão brasileira nos Campos Kaingang de Erexim marca
definitivamente a mudança de posição do cacique Condá. Ele e seu genro Nicafí
conhecido pelos ataques que promovia com seu grupo nos campos de Vacaria e de Cima da
Serra colocam-se contra o empreendimento oficial naquela região. Assim, Condá retira-se
de Nonoai instalando-se na costa do Xapecó e Nicafí foge para os matos da banda norte do
rio Uruguai. D’Angelis nos informa que Condá, particularmente neste período violento do
processo de incorporação dos territórios indígenas à economia do Império, parecia estar
percebendo que a paz com os brancos não apresentava realmente vantagens.
“Condá conhecia as dificuldades por que passavam seus irmãos aldeados em
Guarapuava e Palmas, e via agora como rapidamente se deterioravam as
condições no aldeamento de Nonoai – criado há somente uma década
assim como de que forma eles mesmos eram usados para garantir aos
brancos a limpeza dos territórios da sua própria gente (como acabava de
ocorrer com os Campos de Erexim)” (D’Angelis, 1989: 45-6).
Em 1889, é finalmente derrubado o Império e estabelecida a República. Em virtude
da Constituição Republicana, as terras devolutas do Império são entregues ao domínio dos
Estados. Na prática, foram tomadas as terras legitimamente possuídas pelos índios como se
fossem devolutas e entregues aos fazendeiros interessados. Por este mesmo período, a
região oeste de Santa Catarina vai receber considerável contingente de brasileiros vindos do
Rio Grande do Sul em conseqüência da Revolução Federalista (idem: 53-4).
19
Figura 2: Mapa da Presença e dos Deslocamentos Kaingang no Século XIX.
Fonte: Tommasino, 1998a.
20
A extração madeireira, embora pouco expressiva, se registrava no século XIX,
mas a partir da segunda década do culo XX recebe significativo impulso. Em 1916,
quando se definem os limites entre os estados do Paraná e Santa Catarina, este último se
lança ainda mais à política de colonização por estrangeiros. O recém incorporado oeste
catarinense (que anteriormente pertencia à Província do Paraná) pretendia absorver os
descendentes de imigrantes instalados no Rio Grande do Sul, para com eles envolver a
região na economia agrícola em expansão.
Na segunda metade do século XX ocorre um novo surto da expansão agrícola, tanto
que no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, ocorrem grandes reduções das
terras indígenas. Além disso, o espírito do “desenvolvimentismo” (Governo Jucelino
Kubistchek) toma conta também do SPI (Sistema de Proteção aos Índios), que passa a
administrar as terras indígenas como grande latifundiário (D’Angelis, 1989: 71). Com a
valorização da madeira e sua riqueza no sul, o SPI começa a vender os grandes pinheirais
das áreas indígenas Kaingang. Os contratos são feitos entre o órgão de proteção aos índios e
as grandes madeireiras durante os últimos vinte anos de sua existência e perduram também
na administração da Funai que vem a substituí-lo (Idem, ibidem).
Aqueles kaingang que nesta época se opunham ou questionavam o corte das
florestas eram considerados “rebeldes”, e muitas vezes transferidos para outras áreas,
quando não espancados e presos por ordem do Chefe de Posto. Foram os próprios chefes do
SPI que criaram entre os Kaingang a hierarquia militar vigente ainda hoje: os soldados,
cabos, sargentos e capitães iriam compor o sistema repressivo que garantia a obediência dos
demais kaingang (Idem, ibidem). A situação das áreas indígenas, principalmente de
Nonoai, provocou um grande êxodo dos kaingang. Alguns foram pedir abrigo em áreas
como o Chimbangue - mesmo com o espaço territorial bastante reduzido - e, outras famílias
21
recomeçaram a circular ao longo de seu território, inclusive naqueles espaços que já haviam
se transformado em cidades, como é o caso de Chapecó.
Tommasino (1998a) ressalta que, nesse processo histórico e geográfico, o constante
deslocamento dos grupos kaingang de uma região para outra não significou o abandono do
“território”, uma vez que alguns grupos sempre permaneceram nas terras já ocupadas. O
fato é que quando ocorriam muitas mortes em um curto espaço de tempo, os kaingang,
dados seus sistemas de representação e explicação de certos fenômenos naturais, mudavam
o alojamento fixo (emã), abandonando aquele lugar de moradia, mas não o “território”, que
para eles, continuava abrangendo o local abandonado (Tommasino, 1998
a: 65).
“A região oeste de Santa Catarina é o resultado da história de intrincados e
assimétricos (des)encontros entre diferentes agentes sociais. Nestes
(des)encontros emergem identidades, diferenças e processos de des/re-
territorialização que implicaram e implicam na (re)produção de relações
sociais interculturais que se expressam nos litígios e seus desdobramentos”
(idem: 01-02).
A seguir veremos como, em decorrência deste processo histórico de contato, os
kaingang da Aldeia Kondá formaram sua própria aldeia, inicialmente na cidade de
Chapecó, reocupando um pedaço do “território” que consideram tradicional.
22
I. 2) A formação da Aldeia Kondá
Como foi dito, a mobilidade sempre fez parte da organização social Kaingang. Os
missionários do século XIX reclamavam das viagens feitas pelos kaingang aldeados, que
duravam semanas e até meses
11
no interior da mata. No passado, e ainda hoje, os Kaingang
fazem uma aldeia fixa (emã) e em seus deslocamentos constróem ranchos/acampamentos
provisórios (wãre), onde permanecem o tempo necessário para realizar as atividades
planejadas.
Os kaingang adultos da Aldeia Kondá são provenientes de diferentes áreas
indígenas (Nonoai, Votouro, Iraí, entre outras). Nenhum deles informou o motivo concreto
pelo qual abandonam seu lugar de origem, mas em função da história de ocupação
territorial relatada anteriormente, acredito que as agressões e pressões que sofreram dos
funcionários do SPI, e posteriormente da FUNAI e das lideranças kaingang cooptadas por
estes órgãos , a ampla redução e exploração de suas terras, o entrecruzamento de
diferentes facções indígenas que estão hoje no centro dos conflitos que dividem as áreas
Kaingang, além da escassez de alimentos e outros recursos necessários para a
sobrevivência, seriam algumas das razões que os conduziram a esse deslocamento mais
recente. É impossível precisar exatamente o ano em que os kaingang começaram a formar
sua aldeia (emã) na cidade de Chapecó, mas conforme as famílias iam chegando,
agrupavam-se seguindo os princípios da organização social tradicionalmente conhecidos
(uxorilocalidade, divisão em grupos domésticos, casamentos entre metades).
11
O mesmo tipo de reclamação é feito ainda hoje, tanto pelos órgãos que trabalham com os kaingang, quanto
pelos moradores das cidades por onde os índios fazem suas incursões (geralmente buscando vender
artesanato).
23
Primeiramente, os grupos eram mais dispersos, estavam espalhados em diferentes
bairros da cidade de Chapecó. Com o passar dos anos, especialmente no bairro Palmital
12
,
formou-se um conglomerado de famílias maior (24 barracas de lona para 154 pessoas)
13
que, a partir do momento que se tornaram ‘visíveis’ (aos olhos dos não-índios), passaram a
gerar uma série de polêmicas na cidade. A Funai, por diversas vezes, transportou esses
kaingang para áreas indígenas (TI Nonoai e TI Toldo Chimbangue) que nem sempre eram
as de sua origem, ou nas quais algumas famílias tinham problemas junto às lideranças
locais (devido a rupturas internas dos próprios subgrupos).
Juarez
14
, um dos primeiros caciques da Aldeia Kondá na cidade de Chapecó, contou
que se deslocava com seu pai, ao longo do território que considera tradicional dos
Kaingang, desde pequeno. Quando completou dezoito anos (em meados dos anos 80), fixou
residência em Chapecó e, aos poucos, junto com outras famílias kaingang, constituiu a
Aldeia Kondá.
“A gente armava o barraco e ficava por aí... Aí a pouco, a Prefeitura
começou a pressionar a Funai e dizer: ‘o que esses índios estão fazendo
aí?’. Chamaram o cacique
o cacique de Nonoai que se chamava Lopes
e disseram: ‘por quê os índios estão me incomodando aqui na cidade?’.
Essa era a história que eles inventavam. Aí o cacique dizia: ‘ah, leva para a
minha terra que minha terra é muito grande’. Só que nós não se acostumava
lá, eles levavam nós e nós voltava de novo aqui para Chapecó... Por que nós
sabemos que em Chapecó vivia meus avôs, por causa disso nós não podia
sair dali. A terra fazia parte da minha família que são meus avôs, os
irmãos do meus avôs, meus tios, minhas tias que conviviam ali. Então, isso
aqui puxava mais para não ficar lá, pra aquele lugar [Nonoai]. Tinha
outras famílias que viviam ali também. Não era um grupo que ficava ali.
Cada grupo arrumava um barraco, uns pra do Passo dos Fortes, outros
no Palmital, bairro Tiago... Quando eu completei os trinta anos
12
Este bairro é em sua maioria ocupado pelas famílias chapecoenses de classe média-alta e localiza-se a
aproximadamente oito quilômetros do centro da cidade. Os kaingang ocupavam um terreno baldio arborizado,
mas sem água encanada.
13
Dados obtidos no Relatório de Identificação das Famílias Kaingang Residentes na Cidade de Chapecó.
14
Para proteger os informantes seus nomes foram trocados.
24
começaram a se movimentar dizendo que nós tinha que colocar um cacique,
aí começaram a apontar que o cacique que tem que cuidar da comunidade...
Aí que as pessoas começaram a trabalhar, aí o pessoal da cidade começou a
respeitar a comunidade indígena, quando entrou o cacique. O cacique
começou a colocar o que o povo precisava, mas ainda foi um processo muito
grande. Tinha um tal de João Romão que morava ali no Chapecó e ele
dizia que a gente tinha direito porque a terra ali era dos índios. Ele cedeu
um terreno vazio para a comunidade, então a comunidade foi se colocando
lá, armava os barraco. Eram umas vinte famílias, mas foi aumentando,
trinta, depois quarenta, foi aumentando as famílias... Ali mesmo na
comunidade se casavam, aí iam aumentando, os filhos começaram a se criar
e aí foi indo...”
(Juarez, 34 anos)
O relato de Juarez, além de rememorar a formação da Aldeia Kondá na cidade de
Chapecó, explicita que uma das principais razões que motivou a permanência das famílias
no local foi a constatação e lembrança de que ali também viveram seus antepassados (avôs,
tios-avôs, tios e tias). Esta é uma questão interessante, pois veremos ao longo deste estudo,
como para os Kaingang as concepções e relações de parentesco são centrais e, neste
sentido, a própria noção de território tradicional também seria um lugar onde tal premissa
se expressa. No entendimento Kaingang, o município de Chapecó continua sendo território
tradicional, lugar onde se passam relações sociais, políticas e cosmológicas fundamentais
ao grupo.
Diante a insistência dos kaingang em permanecerem no bairro Palmital, ‘ameaçando
o bem-estar’ dos moradores de classe média-alta ali residentes, estes últimos passaram a
pressionar a Prefeitura de Chapecó para que providenciasse junto à Funai, a rápida remoção
dos índios. Assim, em 1998, a partir da constituição de um Grupo Técnico da Funai
15
para a
elaboração do Relatório de Identificação das Famílias Kaingang Residentes na Cidade de
Chapecó (coordenado pela antropóloga Kimiye Tommasino) se inicia o processo de criação
15
Portaria nº 110, 09/02/1998, Presidência da Funai/ Ministério da Justiça.
25
da Reserva Indígena Aldeia Kondá. O relatório apontou que não se tratava somente da
identificação de um território a ser restituído e declarado uma “terra indígena”, mas da
definição de uma área para acolher um grupo Kaingang que não apenas vivia na periferia
de uma cidade, como também afirmava ser esta região a sua própria terra tradicional.
16
Partindo desta afirmação dos kaingang, o Grupo Técnico da Funai tratou de resgatar a
genealogia de alguns moradores da Aldeia Kondá, apontando que realmente havia uma
longa história de casamentos e ocupações do espaço que hoje compreende a cidade de
Chapecó.
“Em 1838/39, José Raymundo Fortes, mineiro, residente em Curitiba, juntou-
se em Guarapuava com outros homens e se dirigiu à região sul à procura de
moças raptadas pelos índios (...). Permanecendo na região, José Raymundo
casou-se com a índia Ana Maria de Jesus, filha do Cacique Gregório. O
casamento trouxe a amizade e a paz com os índios. Dando origem à atual
cidade de Chapecó, José Raymundo abriu, nas cabeceiras do hoje riacho Passo
dos Fortes (...) a primeira clareira no sertão. Esta clareira recebeu o nome
Campina do Gregório” (Fortes 1990: 37-39 apud Tommasino, 1998: 75,
grifos da autora).
O casamento entre José Raymundo e Ana Maria deu origem a uma larga
descendência. Os Fortes se espalharam pelas áreas indígenas e municípios dos estados do
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul: alguns se identificando como ‘brancos’, outros
16
A categoria em que se enquadra a Aldeia Kondá é a de Reserva Indígena”. Juridicamente, uma
diferença importante entre os conceitos “Terra Indígena Tradicional”, que se refere às terras consideradas de
ocupação imemorial, e “Reserva Indígena”, que se refere às terras escolhidas para abrigar determinadas
populações indígenas. No caso da Aldeia Kondá, a opção por esta última categoria foi definida pelo Grupo
Técnico da Funai que elaborou o II Relatório “Eleição de área para os Kaingang da Aldeia Kondá” (
Portaria
n
o
761, de 20/06/1998, Presidência da Funai, Ministério da Justiça). Este estudo apresentou entre suas
conclusões que a área eleita (na zona rural do município de Chapecó) não se tratava de uma terra tradicional,
embora pudesse ter sido território tribal da sociedade kaingang (conjunto de grupos locais em que se inseria o
grupo local que habitava a área urbana de Chapecó). Assim, a área eleita para atender à reivindicação dos
Kaingang era compatível com o Artigo 27 da Lei n.
o
6.001/73 (Estatuto do Índio), que diz: "Reserva Indígena
é uma área destinada a servir de 'habitat' a grupo indígena, com os meios suficientes à sua subsistência."
(Tommasino, 1998b: 35).
26
assumindo e reforçando a origem Kaingang (continuaram casando-se com pessoas que
também assumem esta identidade).
Conforme demonstra a genealogia da família Fortes, Alfredo Fortes antiga
liderança dos Kaingang das duas margens do rio Irani (D’Angelis, 1984:59) filho de José
ou Juca Venâncio Fortes, filho de José Raymundo Fortes e Ana Maria, foi casado com a
kaingang Júlia Rodrigues Iãgdy, e são pais de Ana Fendó, João Maria Kuxé (ambos do
Toldo Chimbangue) e Clemente Fortes do Nascimento Xeyuiá (Cacique do Toldo
Chimbangue nos anos 80); e no Toldo Nonoai/ RS, com a kaingang Bernardina Cindangue,
resultando deste último casamento os filhos Nair, Henriqueta Maria, Lourdes (moradora da
Aldeia Kondá), Maria, Jorge, João Doré (morador do Toldo Chimbangue), Ernesto e Ivo
Fortes. A filha de Bernardina, Nair (já falecida), casou-se com Djaime Salvador (um dos
kaingang mais velhos da Aldeia Kondá), vindo a ser mãe de Pedro, Valdemar, Carlos,
Adair, Marino, Fátima e Terezinha Salvador (todos moradores da Aldeia Kondá). Pedro e
Valdemar já foram caciques da Aldeia Kondá, onde a família Salvador continua sendo uma
das mais importantes. O destaque dos Salvador na Aldeia Kondá é evidente, tanto porque
esta família foi central para a pesquisa genealógica em que se pautou o Relatório de
Identificação das Famílias Kaingang Residentes na Cidade de Chapecó, quanto porque este
grupo é um dos mais numerosos da aldeia, o que lhes permite um grande poder na tomada
de decisões políticas. Nos últimos tempos, no mínimo um dos membros da família Salvador
tem ocupado um dos cargos de destaque político na aldeia
17
.
17
Durante esta pesquisa, Pedro era o conselheiro da saúde e Zico (também seu irmão, mas por parte de pai)
passou a ser o vice-cacique após a desistência espontânea do anterior.
27
Diagrama 1
Genealogia da Família Fortes e Salvador
José Raymundo Fortes Ana Maria
José/ Juca Venâncio Fortes
Bernardina Cidangue Alfredo Fortes Júlia Rodrigues Iãgdy
Ana João Maria Clemente
Fendo Kuxé Xeyuiá
Nair Djaime
Fortes Salvador
Teresinha Fátima Adair Marino Carlos Pedro Valdemar
28
Finalizado o estudo etno-histórico do Grupo Técnico da Funai, que se baseou tanto
em depoimentos kaingang, quanto em arquivos históricos e em pesquisa genealógica, o
centro da cidade de Chapecó foi realmente considerado parte do território tradicional das
famílias kaingang. A Aldeia Kondá, inclusive, foi apontada como o ressurgimento do
antigo Toldo Passo dos Índios, que tinha se diluído enquanto toldo, mas cujas famílias
continuaram presentes na região (Tommasino, 1998b: 18). A pesquisa mostrou ainda, que
as famílias da Aldeia Kondá estão vinculadas por laços de parentesco e de afinidade com
moradores de várias outras áreas indígenas Kaingang. Essa rede de sociabilidade entre as
áreas indígenas e entre famílias que vivem fora delas parece sustentar a concepção de
território kaingang como uma realidade social concreta produzida pelas relações ao longo
da história.
Pouco tempo depois da identificação das famílias kaingang residentes na cidade de
Chapecó, outro relatório foi solicitado
18
, novamente sob a coordenação da Dra. Kimiye
Tommasino. O intuito agora era eleger uma área para transferência das famílias da Aldeia
Kondá, preferencialmente próxima à cidade de Chapecó, mas na zona rural do município.
Junto à equipe técnica, os kaingang participaram do processo de eleição da terra e, em
junho de 1999, mudaram-se para a área atual que abrange 2.300,2318 hectares e cujos
limites têm ao sul o rio Uruguai, ao norte o Lageado Veríssimo, ao leste o rio Irani e ao
oeste o rio Monte Alegre.
18
Portaria n
o
761, 20/06/1998, Presidência da Funai, Ministério da Justiça.
29
Figura 3: Área escolhida para abrigar a Aldeia Kondá.
Fonte: Fernandes, 2003b.
30
A fim de proceder à demarcação e regularização desta área, a Funai iniciou os
procedimentos de cadastro socioeconômico e levantamento físico e fundiário das
propriedades rurais atingidas. Como este é um processo relativamente demorado, a Funai
estabeleceu convênio com a Prefeitura Municipal de Chapecó, que arrendou
provisoriamente uma extensão de 100 hectares no interior da terra eleita, na localidade
denominada Praia Bonita para alojar os kaingang. Através deste convênio, a Prefeitura
Municipal de Chapecó também se comprometeu a disponibilizar recursos para a construção
e melhoria das casas que seriam ocupadas pelas famílias indígenas, o que infelizmente, até
hoje não ocorreu
19
.
Na região escolhida para abrigar a Aldeia Kondá moravam aproximadamente 75
famílias de pequenos agricultores que, após tenso processo de negociação, em decorrência
da insatisfação com os valores monetários oferecidos por suas terras, começaram a receber
as indenizações de suas propriedades. A solução encontrada para solucionar o impasse
junto aos agricultores foi proposta pela Funai: condicionar o licenciamento da Usina
Hidrelétrica (UHE) Foz do Chapecó à aquisição das terras da Reserva Indígena Aldeia
Kondá
20
. “Para a Funai, essa seria uma condicionante legítima que o reservatório desta
UHE, efetivamente, atingirá parte da terra eleita para criação da Reserva Indígena,
inundando 46 hectares” (Fernandes, 200b: 167). Através do Termo de Conduta
Funai/Aneel, o vencedor do leilão do Aproveitamento Hidrelétrico Foz do Chapecó ficava
19
Algumas famílias kaingang já foram assentadas nas residências que pertenciam aos agricultores, no entanto,
em cada uma das localidades (Praia Bonita e Gramadinho) da área eleita, ainda se encontram núcleos de casas
simples, construídas com restos de madeira. As famílias kaingang que ali moram, aguardam a mudança para
as propriedades dos colonos, no entanto, isto depende do pagamento das indenizações destas propriedades,
que ainda estão em processo de negociação.
20
Ver as normas estabelecidas no Termo de Conduta Funai/Aneel intitulado “Componente Indígena nas
Áreas Influenciadas pela Construção da Usina Hidrelétrica Foz do Chapecó Condicionantes Ambientais e
Fundiários”, constante do edital de leilão deste aproveitamento hidrelétrico (Edital de leilão n° 002/2001
Aneel). O antropólogo Ricardo Cid Fernandes (2003b) apresenta uma boa síntese das negociações que
envolveram este processo.
31
obrigado a adquirir 1500 hectares das terras eleitas, para a criação da Reserva Indígena,
bem como, destinar dois milhões de reais (R$2.000.000,00) para o desenvolvimento de
programas voltados à auto-sustentabilidade da comunidade indígena obedecendo a um
prazo de 120 dias, a contar da outorga da concessão (idem, ibidem).
Passados cinco anos da ocupação kaingang na região da atual Reserva Indígena
Aldeia Kondá, o processo de indenizações das propriedades rurais, que deveria ter sido
concluído no início de 2002, ainda está em andamento. Isto se deve, principalmente, porque
as negociações entre os agricultores, o Movimento dos Atingidos por Barragem e o
Consórcio Energético Foz do Chapecó (CEFC) o bastante tensas e os envolvidos custam
a chegar em um acordo.
Enquanto estive em campo, presenciei mais de uma vez conflitos e constrangimentos
envolvendo os agricultores, que ainda aguardam as indenizações, e os kaingang, que ainda
não se sentem completamente à vontade na terra reconquistada. Em uma destas situações,
um kaingang chegou a ser ameaçado com um facão porque estava caminhando sobre as
terras de um agricultor ainda não-indenizado. Outras vezes os kaingang evitaram colher
frutas porque as árvores estavam em propriedades que, ainda, não eram suas. Houve
também o caso de um kaingang que teve sua plantação de milho comida pelo gado de um
colono. Quando foi solicitar ao dono do animal o pagamento de seu prejuízo, ouviu o
agricultor comentar com uma terceira pessoa que “o índio queria o dinheiro para comprar
pinga”. Este tipo de comentário deixa os kaingang extremamente irritados, pois reafirma os
inúmeros preconceitos que têm marcado o diálogo entre as populações indígenas e a
sociedade envolvente. Quando o agricultor foi oferecer o dinheiro para o kaingang, este se
negou a receber, como demonstração de sua indignação. Em vista destas, e de outras
situações constrangedoras, é fundamental que a situação territorial da Aldeia Kondá se
32
resolva o mais breve possível. Afinal, é desagradável tanto para os agricultores, quanto para
os kaingang, morarem em um local do qual não se sentem proprietários de fato.
A seguir, a partir dos dados e observações realizadas durante o trabalho de campo,
procurarei construir aquilo que se poderia chamar de “panorama” da Aldeia Kondá, dando
ênfase a aspectos que contemplam os planos sico/espacial, demográfico, da organização
social, econômica e religiosa do grupo.
33
I. 3) Caracterização da Aldeia Kondá Atual
Quem chega na Reserva Indígena Aldeia Kondá, cedo pela manhã, vislumbra um
planalto esfumaçado pela serração, em decorrência da evaporação das águas dos principais
afluentes do vale: o rio Uruguai, o Irani e o Monte Alegre. Até onde o olhar alcança, vê-se
as extensas áreas agrícolas que recortam a paisagem cercada por resquícios de mata nativa
(ainda restam aproximadamente 100 hectares dessa vegetação na área da Reserva
Indígena).
Foto 01 – Área da Reserva Indígena Aldeia Kondá e Rio Uruguai
A estrada que conduz à Reserva Indígena Aldeia Kondá é a SC 484. Esta Reserva é
conhecida simplesmente como Aldeia Kondá (denominação adquirida quando ainda se
34
encontrava na cidade de Chapecó) e se subdivide em duas localidades
21
denominadas
Gramadinho e Praia Bonita.
Como as demais aldeias kaingang (Xapecó, Nonoai, Cacique Doble, Iraí, Votouro,
etc), aqui as casas também estão dispostas, segundo os interesses dos seus donos, ao longo
das trilhas, e a uma certa distância das roças familiares. As aldeias Kaingang nunca se
apresentaram de forma circular ou semicircular como para os demais grupos e Bororo
(cf. Veiga, 2000). No entanto, Fernandes (2003a) aponta que como estes grupos, a
organização espacial das comunidades
22
kaingang é marcada pela divisão entre centro e
periferia. Em cada aldeia, efetivamente, uma zona central, onde geralmente estão
localizadas as instalações coletivas, que servem de locais de encontros e socialização. Ao
mesmo tempo, essa concepção concêntrica de espacialidade seria aplicada também entre as
aldeias, que, geralmente, as terras indígenas são formadas por, no nimo, duas aldeias,
das quais uma é considerada a aldeia principal. Embora as aldeias principais não se
localizem no centro geométrico das terras indígenas, todos os caminhos levam a elas, pois
são consideradas como o centro da vida política e social kaingang
23
(Fernandes, 2003a:
128).
A localidade mais próxima da cidade de Chapecó (distante aproximadamente 15
quilômetros) é a do Gramadinho, que pode ser dividida em três aglomerados principais de
casas. De pleno acordo com o que afirma Fernandes, aqui o núcleo residencial considerado
21
Os kaingang se referem à Praia Bonita e ao Gramadinho como aldeias, mas para evitar possíveis confusões,
chamarei estes cleos de ‘localidades’ ou ‘comunidades’ este último também é um termo nativo (ver nota
seguinte).
22
Comunidade é um termo empregado pelos kaingang tanto em referência às aldeias, quanto em referência ao
conjunto de aldeias que formam suas terras indígenas. (Fernandes, 2003a: 128)
23
Sobre a importância do espaço nas sociedades Jê, especificamente entre os Kaingang, ver os trabalhos de
Veiga (2000); Veiga & D’Angelis (2003); Crépeau, (1997) e Almeida (2004).
35
o central, é aquele que comporta o maior número de famílias, as igrejas evangélicas
24
, a
‘bodega’
25
, o salão de baile, o campo de futebol, a casa do cacique
26
, o telefone público, o
cemitério (construído pelos agricultores, mas atualmente utilizado pelos kaingang), o
módulo sanitário e a escola que atende as crianças até seis anos. O Gramadinho também é
considerado a aldeia principal dentre as duas (localidades) que compõem a Reserva
Indígena Aldeia Kondá.
Foto 02 – Gramadinho (SC 484)
24
No Gramadinho há três ministérios distintos: ‘Só o Senhor é Deus’, ‘Assembléia’ e ‘Deus é Amor’. Neste
núcleo central também uma igreja católica utilizada pelas famílias dos agricultores. Os kaingang nunca
manifestaram o desejo de participar das missas, mas sim de se apropriarem deste espaço para outras
utilidades.
25
Modo como os kaingang denominam os bares. Este pertence a uma família kaingang.
26
um cacique para toda a Reserva Indígena Aldeia Kondá. No início do trabalho de campo, o cacique
morava na comunidade do Gramadinho e o vice-cacique na comunidade da Praia Bonita. Com a troca de vice-
cacique, as duas lideranças ficaram concentradas no Gramadinho, já que, o novo vice-cacique também
morava nesta localidade. No entanto, o capitão da Aldeia Kondá (terceiro cargo mais importante na hierarquia
política do grupo) é morador da Praia Bonita.
36
Seguindo a estrada que liga as comunidades da Aldeia Kondá, em direção ao rio
Uruguai, à distância de aproximadamente 07 quilômetros da comunidade do Gramadinho,
chega-se à localidade da Praia Bonita. Nesta, encontra-se uma igreja evangélica (‘Só o
Senhor é Deus Universal’), uma ‘bodega’ administrada pela família de um agricultor, a
Escola Indígena de Ensino Fundamental Sape Ty Kó e o “postinho de saúde” oficialmente
improvisado em uma casa de alvenaria. Na Praia Bonita, as residências são mais dispersas e
o número de famílias é relativamente menor
27
do que na localidade do Gramadinho. Mesmo
assim, sendo este o local onde os kaingang foram primeiramente assentados (no momento
em que a Funai arrendou os 100 hectares de área) ainda um núcleo residencial
relativamente populoso (onze casas).
Foto 03 Praia Bonita
27
O que observei é que a tendência das famílias kaingang é ir morar no Gramadinho, principalmente porque
ali o acesso à cidade é mais fácil. Entretanto, as famílias que ainda permanecem na comunidade da Praia
Bonita parecem decididas a ficar, que, segundo elas, o que valorizam é a tranqüilidade do local e a mata
nativa propícia para coletar a matéria-prima, com a qual fazem o artesanato.
37
Almeida (2004) pesquisando junto aos Kaingang de distintas áreas indígenas,
aponta alguns aspectos comuns na estrutura interna das casas, que também são observáveis
nas moradias da Aldeia Kondá. Basicamente, há uma divisória entre o espaço de dormir e o
de comer, que também serve para a recepção das visitas. A maioria das casas não possui
banheiro em seu interior, e o ‘mato’ continua sendo o local preferido para depósito das
necessidades fisiológicas.
A fim de sanar o problema da ausência dos banheiros, a Fundação Nacional de
Saúde FUNASA construiu em cada uma das comunidades um módulo sanitário composto
de chuveiro, vaso sanitário e tanques para lavar roupa
28
. Nos últimos tempos, o Agente
Indígena de Saneamento (AISAN) passou a abrir os módulos sanitários apenas em alguns
horários do dia, pois segundo ele, estava havendo um grande desperdício de água,
principalmente por parte das crianças.
Na localidade do Gramadinho, a demanda pelo módulo sanitário é mais com relação
aos dois tanques de lavar roupas do que propriamente ao chuveiro ou ao vaso sanitário.
Pelas manhãs, o módulo sanitário desta comunidade é o ponto de encontro das mulheres,
que chegam a formar filas para lavar as roupas da família (quando o movimento é intenso,
algumas optam por usar o açude localizado atrás da casa do cacique). No restante do dia, os
tanques são utilizados para os banhos dos adultos e das crianças. O açude que é utilizado
para lavar a roupa também serve para os banhos diários. Os chuveiros do módulo sanitário
praticamente não são aproveitados
29
.
28
O dulo sanitário da Praia Bonita não possui tanque para lavar a roupa, desse modo, as mulheres que não
possuem tanque em casa (apenas quatro residências dentre onze do núcleo central possuem) acabam lavando a
roupa dentro de baldes ou solicitando para alguma vizinha e/ou parente o tanque emprestado.
29
Um aspecto apontado pelos evangélicos é que eles não podem tomar banho “sem roupa” na frente dos
outros. O “sem roupa” a que eles se referem é o mesmo que sem blusa, já que nos tanques ou no ude,
ninguém toma banho sem saia, bermuda ou calça. Por causa disso, os evangélicos estão entre os poucos que
utilizam os chuveiros do módulo sanitário.
38
Na Praia Bonita a água potável para consumo do “postinho” e das casas do núcleo
central é encanada do poço construído pela FUNASA e passa por um tratamento na ‘casa
de química’ do local
30
. A escola e as residências que pertenciam (ou ainda pertencem) aos
agricultores, que serão indenizados e retirados do local, recebem água direto do córrego,
encanada por sistema de mangueiras. Os kaingang preferem beber água direto na fonte (há
córregos com água pura espalhados na área), sem que ela passe pelo sistema de
mangueiras
31
.
Com relação à água potável do Gramadinho, pode-se dizer que há três fontes
principais: o poço próximo da casa do cacique (utilizado pela maioria das famílias), o poço
localizado na casa de uma família de agricultores, que ainda não foi desapropriada e o poço
que atende ao terceiro aglomerado de casas, distante aproximadamente 800 metros do
núcleo central
32
. Apenas uma família (o casal sendo o homem kaingang e a mulher
branca e seus três filhos) consumia a água dos agricultores, pois tinha uma boa relação de
amizade com eles
33
. Em cada um dos poços, a água é puxada com baldes pela própria
família.
No Gramadinho, nem todas as casas possuem energia elétrica. Geralmente nos
núcleos de casas uma família centraliza a caixa de luz e distribui para as demais
residências. Nestas situações, a conta de luz é dividida igualmente entre todas residências,
sendo que algumas famílias recusam-se a pagar quando a tarifa é muito alta. Elas alegam
que não consomem o mesmo que as outras casas, mas se não pagam sua parte da tarifa têm
30
A ‘casa de química’, onde se colocam produtos para manter a qualidade da água é de responsabilidade do
AISAN.
31
Os Kaingang em seus relatos manifestam que “a água encanada, assim como os alimentos, é contaminada
e cheia de remédios”.
32
Freqüentemente, esta fonte de água também é utilizada para os banhos dos moradores deste núcleo.
33
Esta mesma família kaingang deixou a Aldeia Kon em abril de 2004 para ir morar em outra área
indígena.
39
a energia elétrica suspensa. Na localidade da Praia Bonita todas as casas possuem energia
elétrica própria.
Figura 4: Desenho Parcial da Localidade da Praia Bonita
40
Figura 5: Desenho Parcial da Localidade do Gramadinho.
41
Demograficamente, a população da Aldeia Kondá é muito jovem
34
. Composta por
323 indivíduos (dado de fevereiro de 2004), mais da metade da população (165 pessoas)
encontra-se na faixa etária que vai até os 14 anos. Em função disso, também se verifica aqui
o aumento crescente da taxa de fecundidade da população indígena, que tem sido
demonstrada pelas estatísticas do IBGE desde os anos 90. A tabela abaixo agrupa os
indivíduos de acordo com a faixa etária e baseia-se nos dados levantados pela FUNASA em
fevereiro de 2004.
TABELA 1
0
20
40
60
80
100
0-6a 7-14a 15-21a 22-28a 29-35a 36-45a 46-60a 61-70a + 70a
Total
Mulheres
Homens
Durante o mês de fevereiro de 2004, apliquei um questionário residencial, através do
qual, pude levantar outros dados (como local de origem dos indivíduos, fontes de renda
familiar, etc) que caracterizam a Aldeia Kondá. No total foram contempladas 35 casas,
sendo 16 entrevistas referentes à localidade da Praia Bonita e as demais (19) ao
Gramadinho. Diante do total de famílias cadastradas pela FUNASA neste mesmo período,
estes questionários aplicados nas residências cobriram 50,72% das 69 casas que compõe
toda a Reserva Indígena.
34
Esta característica também foi verificada em 1998, na pesquisa que identificou as famílias kaingang
residentes na cidade de Chapecó (Tommasino, 1998a).
42
Chapecó foi o local de origem mais citado pelos entrevistados (45 pessoas,
especialmente as crianças, nasceram nesta cidade), seguido de Nonoai/RS (43 pessoas) e
Iraí/SC (18 pessoas). Os demais indivíduos são oriundos de diferentes áreas indígenas do
Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná
35
.
Com relação à questão demográfica, é importante fazer ainda outra consideração:
das 35 famílias entrevistadas em fevereiro, pelo menos 04 delas já haviam deixado a Aldeia
Kondá entre março e abril seguintes. Ao longo do ano, outras famílias também se foram, do
mesmo modo que novas chegaram e passaram a fazer parte das relações da aldeia,
estabelecendo residência própria ou morando na casa de algum parente. Diante desta
constatação, não nos interessa desvendar as razões pessoais que levam cada família a se
deslocar, mas sim, reafirmar o princípio da mobilidade espacial e do agenciamento das
relações de parentesco que os Kaingang têm manifestado durante sua existência. Reafirmo
que para este grupo, a concepção de “território tradicional” vai além da simples ocupação
histórica de uma área, ela depende principalmente das relações que se estabelecem
enquanto práticas sociais. É por isso que no deslocamento de uma área indígena para uma
grande cidade e, vice-versa, os kaingang reafirmam seu modo particular de apropriação do
espaço, impondo a sua própria lógica na administração da territorialidade, da espacialidade
e da convivialidade.
Assim como em outras áreas indígenas kaingang, o artesanato (cestos de taquara,
balaios de cipó, colares de sementes, arcos e flechas de madeira) é a principal fonte de
renda dos moradores da Aldeia Kondá. Geralmente, as peças produzidas são vendidas em
centros urbanos como a própria cidade de Chapecó ou nas cidades litorâneas durante os
35
Mesmo que a procedência das famílias seja de áreas indígenas distintas, o Relatório de Identificação das
Famílias Kaingang Residentes na Cidade de Chapecó, havia apontado para a complexa e extensa rede de
parentesco que este grupo estabelece com diversas terras indígenas.
43
meses de verão. Mesmo aqueles indivíduos que possuem alguma renda fixa como os
aposentados, funcionários da FUNASA, professores ou demais funcionários das escolas
(merendeiras e serventes), confeccionam o artesanato para complementar a renda
36
. Além
de ser uma atividade econômica, o artesanato proporciona momentos importantes de
convívio social, pois articula em suas tarefas, a unidade familiar. Geralmente, são os
homens que buscam a matéria-prima no mato (cipós e taquaras), enquanto as mulheres e
crianças preparam este material: estalando-ose raspando-os’ como chamam o ato de
cortar a taquara em tiras e tirar a casca do cipó, respectivamente. Posteriormente, sentadas à
sombra de uma árvore nos dias de calor, ou em volta do fogão a lenha durante o inverno,
elas ‘trançam’ os cestos sob os olhares atentos das crianças que desde cedo são
introduzidas neste tipo de atividade. Os momentos de confecção do artesanato podem
reunir apenas a unidade conjugal, isto é, um casal e seus filhos/as, como também o grupo
doméstico, composto pelos membros de uma família extensa uxorilocal construída em
torno de um casal de ‘tronco-velhos’, seus filhos adultos, os cônjuges destes e os netos
37
.
Além disso, a maioria dos grupos domésticos possui pequenas roças, onde
geralmente plantam feijão, abóbora, batata-doce, milho, mandioca e moranga
38
. Mesmo que
nem todos os membros do grupo doméstico ajudem nas roças, estes alimentos servem para
o consumo de todas as famílias que o compõem, afinal, faz parte das regras de
reciprocidade kaingang dividir com os parentes as roupas e alimentos que cada família
consegue.
36
Apenas uma família afirmou não fazer artesanato por desconhecer a técnica.
37
As principais unidades sociais da organização kaingang serão aprofundadas no capítulo II.
38
Sobre a antigüidade das práticas agrícolas kaingang ver o mito que relata a origem da agricultura (mito do
milho), coletado por Telêmaco Borba (1908).
44
Algumas famílias criam galinhas e porcos para complementar a dieta alimentar, mas
a carne predileta para consumo é a bovina, geralmente comprada nos açougues da cidade. O
par de bois existente na Aldeia Kondá é de toda a comunidade e serve somente para arar a
terra ou fazer as colheitas das lavouras coletivas de soja e milho
39
. A área onde se localiza
a atual Aldeia Kondá também possui muitos pés de erva-mate. Na última colheita, todos os
homens foram convocados a fazer o corte dos ervais, já que “o produto é da comunidade”.
As ramas de erva-mate foram trocadas com uma empresa da região, que beneficia este tipo
de produto. Assim, a colheita não reverteu em qualquer retorno financeiro para a
comunidade, mas cada família recebeu pelo menos um fardo de erva-mate beneficiada. O
chimarrão é um hábito diário extremamente apreciado por todos. As rodas de chimarrão são
rigorosamente feitas pelo amanhecer e ao final da tarde, quando os membros de uma
família nuclear conversam sobre assuntos diversos que dizem respeito tanto ao tempo
passado (wãxi), quanto ao tempo presente (uri). Os kaingang costumam fazer pequenos
fogos de chão para esquentar a chaleira de água. Quando é verão, as sombras das árvores
são os locais prediletos destas rodas, já no inverno, a família se aconchega em torno do
fogão a lenha (presente na maioria das casas) ou nos “barracos” (iñ-xin casa pequena) que
constroem ao lado da residência principal, nos quais sempre um fogo de chão aceso
40
.
O chimarrão acaba sendo um modo de aproximação das pessoas, já que é impossível visitar
uma casa e não aceitar uma cuia sua recusa é quase considerada uma ofensa à família.
39
Segundo o atual cacique da Aldeia Kondá (Alípio), as plantações de soja e milho são coletivas e resultado
de um projeto aprovado pelos vereadores de Chapecó que destinou R$100.000,00 (cem mil reais) para as
áreas indígenas do Chimbangue e da Aldeia Kondá. A verba foi dividida entre as duas áreas e com o dinheiro
recebido, a comunidade da Aldeia Kondá decidiu investir em máquinas agrícolas e sementes para plantar.
Depois da colheita, a produção será vendida para o mercado externo.
40
O espaço do iñ-xin (casa pequena) também é utilizado para armazenar produtos da colheita (principalmente
o milho), preparar refeições e confeccionar artesanatos.
45
Quanto à caça, coleta e pesca, embora fossem atividades muito apreciadas no
passado, atualmente representam uma pequena parcela da prática de subsistência. A pesca
na região foi mais intensa. Logo que se mudaram pescavam bastante no rio Uruguai e
Irani, mas segundo um informante: comeram tanto peixe que enjoaram”. O mel continua
sendo um produto extremamente apreciado, e alguns velhos
41
ainda colhem o mel dos
enxames encontrados no mato (junto às pedras ou em troncos ocos de árvores). Como estes
homens circulam bastante no interior da mata nativa (buscando material para o artesanato
ou apenas identificando plantas e córregos com água potável), quando identificam uma
colméia, convidam os jovens do grupo doméstico para lhes ensinar a técnica de extração do
mel. Estes homens têm grande orgulho porque ainda colhem o mel como os antigos: fazem
um pouco de fogo próximo à colméia e conduzem a fumaça até ela, em seguida, retiram os
favos de mel e os levam para os respectivos núcleos familiares.
A colheita de frutas, agora cítricas e não mais silvestres como no wãxi, é bastante
freqüente. Os agricultores deixaram diversas árvores frutíferas plantadas na região e o
período da colheita acaba sendo uma das atividades preferidas das crianças, jovens e
mulheres. Estes momentos propiciam mais uma dentre tantas atividades sociais, pois
normalmente são os indivíduos de um mesmo grupo doméstico que colhem as frutas e
depois partilham entre as unidades familiares que o compõem
42
. A região também
comporta algumas araucárias, mas a quantidade de pinhão é insuficiente para abastecer
todas as famílias kaingang. Se antigamente cada subgrupo explorava seu próprio pinheiral,
onde os troncos das árvores eram marcados para delimitar essa área, atualmente cada grupo
41
Sempre que utilizar a categoria velho’, não estarei me referindo à idade avançada de determinada pessoa,
mas ao modo nativo de fazer referência às pessoas consideradas mais experientes e sábias, que geralmente,
ocupam o lugar central dentro de um grupo doméstico.
42
Na parte II deste trabalho a categoria de grupo doméstico será detalhada.
46
familiar procura garantir as poucas pinhas que se espalham pela região da Aldeia Kondá.
Geralmente, como a araucária é uma árvore bastante alta, são os rapazes mais jovens de um
mesmo grupo doméstico que coletam os pinhões para depois, partilhá-los com os demais
membros das residências.
Apesar de todas estas atividades procurarem complementar a alimentação das
famílias kaingang, elas são, cada dia mais, reduzidas (pela própria escassez destes
produtos) e substituídas pelo uso intenso de alimentos industrializados como o macarrão, o
arroz, o próprio feijão, o açúcar, a farinha, o sal, o café, os ‘salgadinhos’, os biscoitos e os
refrigerantes. Como a renda de quase todas as famílias é muito baixa, a compra destes
alimentos (mesmo que nem todos sejam considerados saudáveis para os padrões
nutricionais de nossa sociedade) muitas vezes fica comprometida. Nestas situações, os
kaingang de um mesmo grupo doméstico dividem entre as unidades familiares os alimentos
que uns possuem mais que os outros. A Funai, em alguns momentos, distribuiu
sistematicamente cestas básicas, porém, ao longo do trabalho de campo, soube apenas de
uma vez em que houve esta entrega
43
. As taxas de desnutrição infantil da Aldeia Kondá
reduziram bastante desde que a comunidade deixou a cidade de Chapecó e se mudou para a
região atual (quando estavam acampados no perímetro urbano houve inclusive mortes de
crianças desnutridas)
44
, no entanto, ainda não são consideradas ideais.
43
Ao contrário de outras áreas indígenas, como Nonoai, por exemplo, as famílias da Reserva Indígena Aldeia
Kondá não estão cadastradas no Programa Fome Zero do Governo Federal.
44
De fevereiro a maio de 2004, a FUNASA registrou 03 casos de crianças desnutridas e 02 casos de crianças
com outras deficiências nutricionais (não especificam em seus registros que deficiências são essas). Acredito
que os adultos também apresentem distúrbios alimentares, problemas como anemia, obesidade, glicose alta,
etc, mas não havendo quadro clínico sério, a atenção da FUNASA centra-se nas crianças.
47
Quanto à religião, predomina a evangélica (de diferentes ministérios), embora
também existam famílias que se digam católicas
45
. Na comunidade da Praia Bonita, das 16
famílias entrevistadas, 05 afirmaram freqüentar as igrejas evangélicas. As demais
informaram que, no momento, não freqüentam nenhum centro religioso, mas dentre os
membros destas famílias, alguns afirmaram terem sido evangélicos. Na comunidade do
Gramadinho, 07 famílias responderam não freqüentar igrejas, mas duas famílias disseram
ser de religião católica. As 12 famílias restantes, no momento da entrevista, se definiram
como evangélicas, no entanto, após duas semanas, um casal dizia não ser mais ‘crente’
porque tinha desviado (consumido bebidas alcoólicas no final de semana)
46
. Almeida
(2004) aponta que a característica geral da religiosidade interna às áreas indígenas kaingang
é uma distinção expressa entre ‘crentes’ e católicos, porém, a preeminência de ‘crentes’ ou
católicos também depende muito do contexto. Na Reserva Indígena Aldeia Kondá, este
pesquisador também observou a predominância dos crentes.
As questões referentes à organização social, que interessam de modo especial para
este trabalho, serão tratadas a seguir. Até aqui, o objetivo foi situar o leitor na trajetória
histórica do povo Kaingang, na formação da Aldeia Kondá e na caracterização
“panorâmica” do local e das famílias que a compõe.
45
Seu Pedrinho, considerado o kuiã (xamã) da comunidade se diz católico porque “essa é a religião dos
antigos”.
46
A mobilidade com que os kaingang entram e saem das igrejas evangélicas é fato. Em alguns momentos
afirmam ser ‘crentes’, em outros se dizem “desviados”.
48
PARTE II
II. 1) Partindo de princípios
“Os índios são como os brancos, também são quietos, risonhos,
desconfiados... Mas, as pessoas precisam umas das outras, assim como
precisamos do quente e do frio, pois o trigo é possível de ser plantado no
inverno e a colheita só pode ocorrer no verão”.
(Devercindo, 53 anos)
Os Kaingang pertencem ao tronco lingüístico Macro-Jê e assim como os demais
povos apresentam uma organização dualista de princípios sociocosmológicos (cf. Veiga,
1994 e 2000; Rosa, 1998; Silva, 2001; Crépeau, 2002; Fernandes, no prelo; Almeida,
2004). Contudo, Nimuendajú (1993[1913]: 60) foi o primeiro a alertar que diferentemente
dos outros povos da mesma filiação lingüística, o dualismo Kaingang também implica em
trocas matrimoniais: “(...) a divisão em Kañeru e Kamé é o fio vermelho que passa por toda
a vida social e religiosa desta nação” (idem, ibidem).
O dualismo Kaingang está visivelmente presente na organização social,
caracterizada pela existência destas duas metades exogâmicas, patrilineares,
complementares e assimétricas, designadas Kamé e Kainru
47
. Preocupado em demonstrar a
assimetria deste dualismo, pela qual a metade Kairu seria sempre englobada pela metade
47
Veiga (1994) observou que os Kaingang possuem subdivisões binárias de suas metades exogâmicas. Assim,
ela aponta a existência de duas seções em cada metade: Kairu e Votor na metade Kairu e, Ka e Wonhétky
na metade Kamé, afirmando que a filiação a uma metade e seção é definida patrilateralmente. Além disso, a
autora salienta que: (...) “os Wonhétky são, para alguns, considerados como o par simétrico dos Votor. Isso
aparece nas pinturas e também em alguns depoimentos que consideram que os membros dessas duas seções
seriam também parceiros matrimoniais preferenciais entre si(Veiga, 1994: 72). Atualmente, está ocorrendo
uma simplificação na maioria das áreas indígenas, onde as subdivisões foram deixadas de lado, mas mantêm-
se a exogamia entre Kamé e Kairu.
49
Kamé, Crépeau analisou tanto a versão do mito de origem recolhida por Schaden (1956),
quanto o mito de origem da lua narrado ao pesquisador por Vicente Fokâe
48
. A partir deles,
constatou que:
“[os Kaingang] concebem seu dualismo como formado por uma unidade
original (...). A unidade primordial, ou de tipo zero é, portanto, constituída
por uma das metades, a metade Kamé, que é concebida como
hierarquicamente primeira e englobante” (Crépeau, 1997: 25-6).
Seguindo esta perspectiva e inspirando-se nos estudos de Viveiros de Castro (1993)
sobre os povos amazônicos, a tese de Ricardo Cid Fernandes (2003a), um dos trabalhos
mais recentes e instigantes sobre os Kaingang, propõe resolver a seguinte questão: como
articular a hierarquia característica do faccionalismo político com a complementaridade
expressa nos princípios dualistas, ou simplesmente, como unir política e parentesco? A
introdução do gradiente ‘próximo-distante’ no sistema de metades Kamé e Kairu, através
do emprego de termos como kaitkó (irmão) e iambré (cunhado)
49
, ou consangüíneo-afim,
parece ser a resposta encontrada pelo autor para entender o modelo da aliança nesta
sociedade.
Analisando a mitologia Kaingang, Fernandes aponta a descendência patrilinear e a
exogamia entre os Kamé e Kairu como as formas sociológicas dos princípios da identidade
e da diferença, respectivamente (Fernandes, 2003a: 55). O autor também se debruça sobre o
ritual do Kiki
50
e verifica que nele o caráter assimétrico-hierárquico da relação entre as
48
Um dos rezadores e organizadores do Ritual do Kiki retomado na Terra Indígena Xapecó.
49
De acordo com Fernandes, 2003, os termos kaitkó e iambré, são macro-classificações que definem aqueles
indivíduos pertencentes a mesma metade os não casáveis, e os indivíduos da outra metade casáveis.
50
‘Culto aos Mortos’ que, atualmente, acontece apenas na Terra Indígena Xapecó. Este ritual se mantêm
como centro de referência ritual dos Kaingang. Ver algumas descrições do Kiki em Veiga (1994); Almeida
(1998); Rosa (1998) e Fernandes (2003a).
50
metades Kamé e Kairu é englobado pela dicotomia kaitkó (irmão) e iambré (cunhado), isto
é, parentes e cunhados ou consangüíneos e afins. Em todas as etapas do ritual, Fernandes
observa que é encenada a negação da afinidade e, conseqüentemente, a afirmação da
consangüinidade. Esta inversão da ‘ordem é superada apenas na dança final, quando se
restitui a diferença como condição para a vida social (idem, ibidem). A fórmula geral da
descendência, como mecanismo de recrutamento aos grupos exogâmicos, acabou sendo
refinada pelo autor para contemplar a inclusão da dicotomia entre consangüíneos-afins no
dualismo kaingang e para salientar que as metades kaingang definem a direção da troca
matrimonial, porém não definem as unidades de troca (idem, p.56).
Do mesmo modo como observou Fernandes (2003a), Almeida também verificou
que durante o ritual do Kiki haveria uma supressão temporária da afinidade. Tal idéia
estaria pautada em uma concepção sobre o mundo dos mortos, onde todos se
transformariam em kaitkó, isto é, onde todos da mesma marca permaneceriam juntos,
vivendo em um mundo de consangüíneos (Almeida, 2004: 155).
Fernandes complementa sua análise da mitologia e do ritual examinando diferentes
registros da terminologia de parentesco kaingang. Através destes registros, observa que há
um emprego recorrente de termos que designam o pertencimento às metades e termos que
designam a qualidade de consangüíneos e afins. Esta informação permite ao autor concluir
que coexistem duas terminologias para as relações de parentesco kaingang, uma regida pelo
parâmetro ‘metades’ e a outra pelo parâmetro ‘proximidade/ distância genealógica e social’.
De acordo com esta interpretação, o parâmetro ‘metades’ seria o modo genérico da relação
social entre os distantes assim, se no domínio dos consangüíneos todo kaingang sabe como
deve se relacionar, no domínio dos afins cabe descobrir com quem é possível casar
(Fernandes, 2003a: 67-8).
51
que a descendência define não apenas a metade à qual um indivíduo pertence,
mas também um grupo de parentes formado por não-casáveis, seria possível pensar que
aqueles que pertencem à outra metade seriam, de modo geral, objeto de troca matrimonial.
Porém, uma distinção significativa, a saber, entre ‘primo-cruzado-parente’ e ‘primo-
cruzado-cunhado’. Os iambré (no caso as pessoas de uma outra metade em relação a ego)
não-casáveis seriam justamente os/as primos/as cruzados/as, filhos/as da tia irmã do pai e
filhos/as do tio irmão da mãe. A interdição destes casamentos não está dada nas
terminologias, tampouco na divisão de metades, mas está presente em diversos relatos dos
kaingang: “o próprio primo casar com a prima, ele vira boitatá, uma coisa feia. Primeiro
pergunta a marca. Se não é tua prima verdadeira, então pode casar, se for, tem que
respeitar como tua irmã” (idem, p.68).
Para Fernandes, esta regra tem um valor sociológico estruturante, visto que a
organização social kaingang está baseada na patrilinearidade, na uxorilocalidade, na
articulação de grupos locais dispersos territorialmente e visto também que o casamento
resulta na aliança entre distintos grupos domésticos (idem, p.61). Como resultado deste
processo, o autor conclui:
“(...) homens afins são transportados para o interior do grupo de parentes [da
mulher] sendo, de certa forma, consangüinizados, ao passo que homens
consangüíneos são transportados para o exterior e, inversamente, são
afinizados [já que passam a fazer parte do grupo doméstico da mulher].
Trata-se de um processo constante de incorporação e expulsão característico
da uxorilocalidade Jê, no qual a afirmação da afinidade é seu eixo dinâmico.
Quando a afinidade não se realiza em sua plenitude são impressas marcas de
inferiorização
51
e são acionadas estratégias de purificação
52
.(...) [Por fim,] o
51
Veiga (2000) registra que alguns kaingang afirmam que os subgrupos Votor e Wonhetky seriam filhos de
relações incestuosas, isto é, casamentos entre membros da mesma metade.
52
Como os filhos de casamentos entre membros da mesma metade (do incesto) são considerados fracos, lhes
é conferida a categoria especial de péin uma categoria com papel cerimonial destacado, dotada da força
necessária para tratar com os mortos das duas metades (durante o ritual do Kiki).
52
eixo da organização social kaingang é construído a partir das relações
subsumidas à afinidade potencial, que, representando o pertencimento à
metade alterna e o distanciamento genealógico e social, faz a ponte entre o
parentesco e seu exterior – o domínio do político” (idem, p.84).
O intuito de resgatar alguns aspectos do trabalho de Fernandes foi de contribuir para
a construção de um modelo de organização social kaingang, no qual a qualidade de suas
relações sociais destaca-se como fundamental. O próprio mito de origem do grupo, antes de
apontar para a criação do mundo e/ou das pessoas, orienta os iambré Kamé e Kairu a
desempenharem papéis ideais de amizade, ajuda tua, cooperação, complementaridade e
reciprocidade
53
.
De fato, a cosmologia kaingang está necessariamente pautada no princípio da
alteridade. Conta o mito de origem da lua que, no início do mundo, era sempre dia, pois
havia dois sóis que eram irmãos. Um dia eles brigaram, (sol) deu um soco no olho de
Kysã (lua) e este ficou mais fraco. A partir de então, separou-se a noite do dia, ficando a lua
encarregada da escuridão e do frescor e o sol do calor e da luz. No mito, a diferenciação dos
iguais (irmãos) surge para manter o equilíbrio na natureza e a proliferação da vida. Tal
princípio mitológico se estende também para o plano sociológico, no qual a criação da
alteridade é a porta de entrada para a vida social kaingang, isto é, onde se relacionar com o
‘diferente’ é condição de existência da vida social.
53
A regra da reciprocidade faz parte do quadro ético e moral dos kaingang. Tal princípio é visível entre os
membros de um mesmo grupo doméstico, entre as metades e também entre aqueles com os quais se
estabelece uma relação de troca de favores, por exemplo, o cacique pode distribuir os cargos entre as
lideranças ou outras ocupações importantes e remuneradas de acordo com o apoio que obtém de algumas
famílias da aldeia. Os ajutórios, estratégia kaingang de articulação entre as unidades sociais, permite que se
manifeste uma moralidade específica. “Moralidade esta que, à moda de Durkheim, é fonte da solidariedade
necessária à sobrevivência, à identidade e à inserção social de um grupo doméstico” (Fernandes, 2003a: 135).
53
Desde os registros dos observadores do século XIX, sabemos que os Kaingang estão
distribuídos em inúmeros grupos, aliás, bastante numerosos. O engenheiro Pierre Mabilde
(1983[1836-1866]) já havia apontado que tais grupos se constituem em configurações
políticas de famílias entrelaçadas. Segundo a análise desenvolvida por Fernandes sobre
estes registros históricos, tal entrelaçamento de famílias se expande e se contrai de modo a
formar as unidades que chamamos de grupos locais e unidades político-territoriais
(Fernandes, 2003a: 119). Para este autor, a articulação entre os grupos familiares, os grupos
domésticos e as parentagens
54
permite definir o modelo de sociabilidade que está na base
da configuração das comunidades kaingang no contexto atual (idem, p.87).
Definir os conceitos de família nuclear e grupo doméstico é fundamental para sustentar
o argumento central deste trabalho: a articulação entre os episódios de adoecimento e de
cura junto às relações sociais. A família nuclear formada por um casal e seus filhos está
inserida em unidades sociais maiores que se projetam concentricamente na direção de
domínios mais abrangentes de relações sociais. A primeira unidade que a envolve é o grupo
doméstico, formado pela família extensa uxorilocal que acolhe o novo casal. Na Aldeia
Kondá, observei que, apesar do funcionamento da uxorilocalidade em algumas residências,
há uma série de novos arranjos locais, principalmente entre casais jovens, em que o homem
prefere residir próximo à sua família e o junto ao sogro. Independente da família que
acolhe o novo casal, isto é, o grupo doméstico em si, a família nuclear é uma unidade social
dotada de direitos e deveres próprios (Fernandes, 2003a: 120-1).
54
Categoria nativa que faz parte da linguagem de parentesco kaingang, mas está descolada dos princípios de
descendência e residência. Definida pela relação que alguns indivíduos mantém com determinados grupos
domésticos. A parentagem amplia as relações contidas no domínio do grupo doméstico através do ajutório
(ver nota anterior). Fernandes aproxima a parentagem da categoria analítica ‘kindred’, porém salienta que ao
contrário desta, a parentagem não se configura como uma unidade corporada e exógama, já que os indivíduos
que dela fazem parte se reúnem para fins determinados, em ocasiões determinadas, nas quais a participação é
sempre optativa (Fernandes, 2003a: 134-5).
54
Por sua vez, o grupo doméstico é composto por membros de uma família extensa
construída em torno do chefe de uma família nuclear formada por um casal com filhos
adultos. É comum os Kaingang se referirem aos membros destes casais como os tronco-
velho
55
(idem, p.125).
“A circunscrição da família nuclear ao grupo doméstico faz com que as
habitações kaingang estejam dispostas em aglomerados residenciais
compostos, geralmente, por duas ou mais habitações (...), próximas de uma
área de cultivo e de um caminho que as liga às demais habitações. É também
comum que estes aglomerados residenciais estejam próximos a cursos de
água” (idem, p.126).
Uma das formas de analisar as relações dentro de um mesmo grupo doméstico é
utilizando o critério de gênero. De acordo com o padrão ideal de residência kaingang a
uxorilocalidade –, as mulheres (mãe e filhas) de um mesmo grupo doméstico identificam-se
apenas pela consangüinidade, já que segundo a patrilinearidade, pertencem a metades
opostas. O que as une é a solidariedade tanto nas atividades econômicas (produção de
artesanato, trabalho nas roças domésticas) quanto nas atividades que envolvem a gravidez,
o parto e a criação dos filhos. De outra parte, a relação entre os homens de um grupo
doméstico envolve tanto a consangüinidade quanto a afinidade, bem como, o pertencimento
a mesma metade e a metade oposta. Expliquemos: no grupo doméstico as relações
masculinas se dão entre sogro e genro (afins), entre pai e filho (consangüíneos que
pertencem a mesma metade) e entre avô materno e neto (consangüíneos que pertencem a
metades opostas). Observe o grupo doméstico B no diagrama abaixo.
55
Tronco-velho é uma categoria nativa que implica o pertencimento a determinado lugar, a vivência e a
memória da comunidade. Apesar de ser um conceito que não abarca apenas a idade avançada de determinada
pessoa, a senioridade é extremamente valorizada entre os kaingang e atribui status social ao indivíduo.
55
Diagrama 2 Representação ideal das relações de parentesco constitutivas de dois grupos
domésticos.
Fonte: Fernandes, 2003a.
Em função destas três relações, Fernandes (2003a) sugere que a assimetria da
relação entre sogro-genro e a identidade da relação pai-filho encontra um meio termo na
relação entre avô-neto. O que deve ser salientado é que mesmo que a e neto sejam
consangüíneos, pertencem a metades distintas. No entanto, junto com a mãe, o avô é
responsável pela educação e pela socialização do neto nos conhecimentos e contextos
tradicionais kaingang: ambos o ensinam a usar a marca”. Se o pai transmite para os filhos
a marca a qual pertencem, bens (como porções de terra) e conhecimentos específicos, a mãe
(e também o avô) ensina o filho como é que trata com os iambré”, ou seja, como o jovem
deve se portar nas relações com os afins. O padrão de herança reconhecido é, efetivamente,
patrilinear, porém tal herança se efetiva com os ensinamentos complementares
56
transmitidos via materna. Aqui, de acordo com Fernandes (2003a: 123), manifesta-se um
princípio de filiação complementar.
“O grupo doméstico ao unir as diferenças de metade e de geração estabelece
seu potencial produtivo e reprodutivo, se consagrando como a unidade
corporada provida de afinidade. Sua capacidade produtiva não depende de
terras exclusivas, mas da capacidade de articular a força de trabalho entre
aqueles que o constituem e que lhe são solidários. Seu potencial reprodutivo
não depende da transmissão de bens (sítios), mas da capacidade de formar
alianças. Os grupos domésticos são, enfim, a unidade de troca da
sociabilidade Kaingang. Pertencer a um grupo doméstico significa, para os
Kaingang, pertencer a uma unidade social dotada de identidade única. Os
grupos domésticos, com efeito, são diferentes entre si. Embora a afinidade
entre homens e a consangüinidade entre mulheres seja a fórmula geral de sua
constituição, os grupos domésticos diferem quanto a sua capacidade de
articular redes de relações sociais, bem como, diferem quanto a sua relação
com a história local” (Fernandes, 2003a: 132).
Além das relações estabelecidas através dos princípios de descendência e residência,
em torno dos grupos domésticos se constitui uma rede de relações sociais, que envolvem
outras famílias nucleares e grupos domésticos. Estas relações, marcadas pela articulação
entre distintas unidades sociais, ocorrem em determinadas ocasiões (como no momento de
preparo da terra, da colheita ou mesmo em eventos festivos, como os casamentos), quando
um grupo doméstico solicita à ajuda daqueles que considera como sua parentagem (ver
nota 49). Segundo Fernandes:
“O grupo doméstico é o grupo corporado, por excelência, da sociabilidade
kaingang. Trata-se de uma unidade territorializada que operacionaliza a
exogamia de metades, sendo dotada de um foco central (os tronco velho) e
sendo capaz de integrar a solidariedade de uma parentagem” (idem, p.141).
Até o momento, procurei evidenciar a importância dos princípios de exogamia e
descendência na organização social kaingang, salientando, a partir das contribuições
57
teóricas de Fernandes (2003a), que os conceitos de família nuclear, grupo doméstico e
parentagem são centrais para a compreensão das relações sociais kaingang. Adiante, serão
expostos dados etnográficos relatados pela literatura kaingang e observados no trabalho de
campo que complementam o modelo de organização social e de sociabilidade deste grupo.
58
II. 2) Sociabilidades – dados etnográficos
Na análise dos dados etnográficos observados no trabalho de campo e/ou relatados
pela literatura kaingang, nem sempre se constata apenas o cumprimento dos princípios que
são considerados ideais para o bom funcionamento da sociedade Kaingang. Muitas vezes, a
infração de regras também articula aspectos importantes para o desenrolar da vida social.
II. 2a) Contravenções, ajustes e a busca de soluções nos casamentos kaingang
Apesar de todas as mudanças históricas ocorridas com o povo Kaingang, o dualismo,
presente na sociologia e na cosmologia do grupo, continua prescrevendo o casamento
exogâmico, entre as metades kamé e kairu, como ideal
56
.
Na Aldeia Kondá, de modo geral, os discursos rejeitam o casamento endogâmico
(dentro da mesma metade), considerando-o incestuoso a antítese da sociedade, se
tomarmos a concepção de Lévi-Strauss como sugere Veiga (cf. 1982[1949]: 62 apud Veiga,
2000: 82). Entretanto, na observação empírica desta sociedade, verifiquei que sim uma
possibilidade de união entre pessoas da mesma metade, desde que, o casal e suas famílias,
cheguem a um acordo junto com as lideranças locais.
No caso observado durante o trabalho de campo, as negociações entre os envolvidos (o
casal e seus grupos domésticos) e a liderança local foram bastante intensas, mas ao final,
não se consolidou nenhum acordo. Mesmo que as lideranças tivessem sido coniventes com
esta união endogâmica, o casal e seus familiares estariam marcados como transgressores e,
56
Almeida (2004: 42) registra que em sua pesquisa o único local com depoimentos explícitos sobre a negação
do casamento entre as metades foi na Terra Indígena Cacique Doble/ RS.
59
de certa forma, teriam sido ‘punidos’ pelo restante dos indivíduos da aldeia. A punição
implicaria para estes grupos domésticos passarem a ser motivo de olhares e comentários
negativos das demais famílias da aldeia. Além disso, eles estariam sujeitos a exclusão de
grande parte das relações e atividades que marcam este mundo social.
Os kaingang me informaram que caso os envolvidos com o incesto não sejam mais
aceitos na aldeia, eles devem providenciar a mudança “espontânea” para outra área
indígena, pois, do contrário, serão literalmente expulsos (transferidos, como dizem os
kaingang), podendo ou não, retornar depois de um tempo mínimo que varia de seis meses a
dois anos.
As etnografias kaingang de modo geral (ver p.ex., Oliveira, 1996; Juracilda, 2000;
Almeida, 2004 e Fernandes, 2003a), registram uma série de depoimentos em que os
kaingang manifestam que o casamento dentro da mesma metade implica no
‘enfraquecimento’ da família. Conforme um interlocutor de Fernandes (2003a) da Terra
Indígena Rio da Várzea/ RS salienta, quando ocorrem casamentos entre indivíduos da
mesma metade, os pais do casal devem ser punidos porque não ensinaram direito os
costumes e, (...) a família vai enfraquecendo”. Outro kaingang (da Terra Indígena Monte
Caseros/ RS) também entrevistado por este pesquisador acrescenta que filho da mesma
marca é errado, é posto nome feio em cima deles, ele é ‘péin’, carrega o nome das
sepulturas nas costas, ele tem o nome dos bichinhos do mato que não se come, são
imundos” (Fernandes, 2003: 73).
Juracilda Veiga registra que alguns kaingang afirmam que os subgrupos Votor e
Wonhetky (ver nota 42) seriam filhos dos casamentos entre membros da mesma metade, o
que significaria que o incesto não é, em verdade, uma prática recente (Veiga, 2000: 96). Ao
contrário do que aparenta, mesmo sendo uma transgressão as regras sociais, o incesto é
60
essencial para manutenção da própria sociedade Kaingang, visto que introduz papéis
cerimoniais únicos. Para que as crianças oriundas destas relações incestuosas
consideradas fracas desde o nascimento cresçam com saúde é preciso restabelecer sua
força. Assim, a exogamia e a complementaridade entre as metades é simbolicamente
devolvida no momento em que elas recebem as marcas (comprida e redonda) das duas
metades e ainda um nome especial classificado como jiji koreg (nome feio/ruim)
57
.
“Estas crianças são péin uma categoria, com papel cerimonial destacado, dotada
da força necessária para tratar com os indivíduos da metade oposta e para entrar em
contato com os objetos dos mortos
58
. (...) um ajuste na concepção de
descendência a fim de acomodar a excepcionalidade dos casamentos que não
reproduzem a exogamia de metades. (...) Uma vez que esta categoria tem papéis
cerimoniais fundamentais no tratamento com os mortos, com seus objetos e
parentes, conclui-se que a endogamia de metades é parte constitutiva do dualismo
kaingang” (Fernandes, 2003a: 73-4).
A situação de incesto que presenciei na Aldeia Kondá envolvia um casal de jovens,
pertencentes à mesma metade (Kamé), que havia fugido e morado durante mais ou menos
dois meses na área indígena de Nonoai (junto da avó materna da moça). O casal fugiu
justamente quando os pais dele estavam ausentes da aldeia (tinham ido vender artesanato
em Concórdia cidade da região). Assim que estes retornaram e souberam da notícia,
desaprovaram a união, da mesma maneira que já tinha feito a família da moça.
O casal kamé-kamé, estrategicamente retornou para a Aldeia Kondá um dia antes do
início das festas programadas para marcar o casamento entre um rapaz kamé e uma jovem
kairu. Sabendo da chegada dos jovens, as lideranças resolveram aguardar o término das
comemorações para tentar definir um encaminhamento à ‘indesejável união’. Neste meio
tempo, o pai da moça se reuniu com o pai do rapaz para conversar sobre a união dos filhos
57
Ver a parte referente aos nomes kaingang (p.70).
58
Sobre a descrição aprofundada da categoria péin ver Veiga (1994).
61
que ambos rejeitavam. Transcorrida uma semana, o casal começou a se desentender, mas ao
final de cada briga, sempre acabavam reatando. Os parentes do grupo doméstico da jovem,
preocupados com estes conflitos, resolveram pedir à liderança a separação do casal, pois
segundo eles, o rapaz estava agredindo fisicamente a moça. A família dela reuniu-se com as
lideranças, mas aparentemente nada foi feito para solucionar o problema. Tudo parecia ter
sido abafado, quando de um dia para o outro, todo o grupo doméstico do rapaz decidiu
mudar de área indígena. A justificativa explicitada pelos pais do jovem pautou-se em
questões de ordem econômica e política: [na Aldeia Kondá] a vida é difícil, não tem terra
para plantar e as lideranças não buscam de fato os direitos do grupo”. No entanto, era
evidente que a mudança de todo o grupo doméstico estava diretamente relacionada aos
conflitos e constrangimentos oriundos da união do filho kamé com a moça também kamé.
Estes acontecimentos envolveram intensamente todos os membros dos grupos
domésticos de ambos os lados, o que demonstra que em momentos de conflitos entre
grupos, cada um articula-se e procura fortalecer-se junto aos seus parentes para se impor
diante dos demais. Se o próprio grupo doméstico traz em seu interior a forma sociológica
de controle, onde o chefe de uma família nuclear (o sogro) exerce sobre outra (o genro) sua
autoridade, entre os distintos grupos domésticos do interior da aldeia também se observa
uma certa disputa política, através da qual cada grupo doméstico procura demonstrar sua
capacidade de articular redes de relações sociais e marcar a sua posição e influência dentro
da própria sociedade. Diante disso, se pode concluir que foi o grupo doméstico do rapaz
que se retirou da aldeia por dois motivos principais: primeiro, ele não contava com a
mesma rede de relações sociais, inclusive junto às lideranças, com que contava o grupo
doméstico da moça; segundo, o grupo doméstico dela está ‘amarrado’ a toda a história de
constituição da própria Aldeia Kondá, desde a época em que esta se localizava na cidade de
62
Chapecó, ao contrário do grupo doméstico dele, que vivia na Reserva Indígena a apenas
seis meses.
63
II. 2b) Alianças ideais
Desde fevereiro, quando cheguei na Aldeia Kondá para cumprir a primeira etapa do
trabalho de campo, me deparei com um enorme investimento dos kaingang no casamento
que aconteceria em meados de abril. As famílias dos noivos estavam completamente
envolvidas com a produção e venda de artesanatos, que cada uma teria suas próprias
despesas com os preparativos para o evento (aluguel de roupas, foguetes, alimentação para
os parentes vindos de outras áreas indígenas e para os demais convidados da festa). Por ser
um momento extremamente importante para eles, no qual se estabeleceria uma aliança ou
‘reconciliação’ (conforme comentaram comigo) entre famílias, havia uma explícita
preocupação com a fartura: de comidas (pagas pelas famílias dos noivos e arrecadadas
junto aos órgãos do Estado e ONG’s), de foguetes, de bebidas, de música, de parentes e
convidados. De modo geral, naquele momento da pesquisa, o casamento era o assunto
preferido dos meus interlocutores. Em função da mobilização que este acontecimento gerou
na Aldeia Kondá (e em outras áreas indígenas kaingang que locaram ônibus para se
deslocarem até a festa), da oportunidade que tive em acompanhar grande parte das etapas
deste ritual e da ausência de trabalhos que descrevam os casamentos kaingang, apresento
como contribuição etnográfica uma descrição dos momentos que marcaram tal festa.
O casamento entre o rapaz kamé e a moça kairu, ele com 19 anos, ela com 14 anos
aconteceu dia 24 de abril de 2004, um sábado de bastante sol. No final da tarde de
sexta-feira muitos ônibus de outras aldeias kaingang haviam chegado para as
comemorações. A casa dos pais do noivo e a da mãe (viúva) da noiva estavam
repletas de parentes, fazendo com que o movimento de pessoas, as conversas e risos
64
fossem intensos. Um forte sentimento de alegria tomava conta destas residências.
Durante a tarde de sexta-feira, as atividades na casa do noivo giravam
principalmente em torno dos alimentos: enquanto os homens preparavam os espetos
e a carne que seria assada no dia do evento, as mulheres mais velhas envolviam-se
no preparo de pães e comidas para alimentar os convidados que se encontravam
no local. As moças jovens também auxiliavam, fundamentalmente na limpeza da
casa, que o trânsito de pessoas era intenso. Nesta noite, no salão de baile da
aldeia, ocorreu a “festa da noiva”, na qual não pude participar porque estava
ajudando a tia paterna do noivo a fazer o bolo de casamento (cada um dos noivos
faz ou compra seu próprio bolo).
No sábado pela manhã a auxiliar de enfermagem chegou na aldeia para arrumar a
noiva. Fui acompanhar este ritual feminino de ‘embelezamento’ que aconteceu no
postinho de saúde da Praia Bonita. Enquanto a noiva era vestida e maquiada,
diversos olhares femininos e infantis acompanhavam cada passo. Tanto o traje da
noiva quanto o do noivo foram alugados em uma loja no centro de Chapecó. Depois
que a noiva estava pronta, sua mãe soltou o foguete que a anunciava, vários outros o
seguiram. A noiva, sua mãe, eu e a auxiliar de enfermagem fomos no meu carro até
o Gramadinho onde se realizou a cerimônia e a festa. Atrás de nós seguia o ônibus
com os parentes dela soltando foguetes pelas janelas.
65
Foto 4: Mãe da noiva anunciando a filha
Até o momento do encontro, noivo e noiva não poderiam se ver, assim, ela
acomodou-se na casa de uma tia materna que vive no Gramadinho, enquanto ele
aguardava na casa do cacique. Em torno de cada uma destas residências os parentes
de cada metade se aglomeravam, curiosos admiravam os noivos e marcavam a
proximidade com um dos membros do casal. De repente alguém avisou que era
chegada a hora: os noivos e suas famílias saíram das casas em direção à estrada da
aldeia (SC 484). Ele,
kamé, vinha do lado leste e ela, kairu, do lado oeste. Ao lado
de cada noivo vinha o casal de padrinhos escolhido e atrás seguiam os parentes e
amigos mais chegados dando gritos e urros que pareciam de guerra. Uma nuvem de
fumaça (dos foguetes) parecia complementar a performance. Se alguém que
desconhecesse os Kaingang chegasse na aldeia naquele instante, poderia imaginar
que um embate estava preste a acontecer. No entanto, a seriedade com que cada
metade se encarava foi conduzida apenas até o momento em que os noivos
66
realmente ficaram frente a frente, a partir de então, eles se deram as mãos e todos,
pacificamente, seguiram para o salão de baile. , o casal recebeu orientações do
cacique e de dois conselheiros (homens mais velhos pertencentes a cada uma das
metades) enfatizando as regras de comportamento que as pessoas casadas deveriam
cumprir na sociedade kaingang. Após o término desta cerimônia, todos se dirigiram
para o almoço. A distribuição da carne (assada no fogo de chão) seguiu os
princípios da organização social kaingang: cada chefe de uma família nuclear tinha
direito a um espeto, sendo que, cada família sentava junto ao seu grupo doméstico
onde partilhavam os espetos entre si. (Os grupos domésticos com mais prestígio na
aldeia receberam mais de um espeto).
Foto 5: A metade da noiva
67
Foto 6: O noivo e os padrinhos
Conforme os kaingang me explicaram,
“os foguetes lançados simulam um jogo”, no
qual a família que têm mais parentes solta mais foguetes, isto é, demonstra ter mais
vínculos sociais, e conseqüentemente, ganha o “jogo”. Os estouros dos foguetes reforçam a
importância que os kaingang atribuem a sólida e harmônica rede de parentesco. E, mesmo
que o casamento exogâmico marque a aliança, a reconciliação e a complementaridade entre
as metades, o “jogo” simulado pelos foguetes lançados evidencia a assimetria entre as
metades, já que uma delas necessariamente será a “vencedora” e a outra a “perdedora”.
Os noivos não recebem presentes (como é o caso dos nossos casamentos), mas os
parentes investem o que podem (e muitas vezes o que não podem) na compra dos foguetes
a serem estourados. Desta forma, cada membro da extensa rede de parentesco reforça os
sólidos vínculos que mantêm com os seus, expressando a importância que os kaingang dão
as suas relações sociais. Assim, pode-se dizer que o ato de estourar foguetes nada mais é
que uma representação simbólica da necessidade de se manter e reforçar os laços e as
alianças sociais, seja no dia-a-dia, seja em eventos especiais.
68
Na literatura etnográfica kaingang, apesar da insistência dos autores em reafirmar a
importância do princípio exogâmico, são encontradas poucas descrições sobre os
casamentos enquanto rituais e práticas simbólicas e sociais. Esta constatação gera uma
dúvida se, antigamente, tais comemorações eram realmente inexistentes. Mesmo nas
etnografias mais recentes não se encontra nenhuma descrição das etapas e simbolismos que
envolvem as festas de casamento entre os kaingang. É consenso entre os autores (cf.
Oliveira, 1996; Rosa, 1998; Veiga, 1994 e 2000; Almeida, 2004), que a festa mais
importante da sociedade Kaingang sempre foi o Kiki, na qual se marca o ritual do culto aos
mortos. A preparação para essa festa era assinalada por atividades rituais, todas elas
organizadas pelas metades exogâmicas do grupo
kamé e kairu , através das quais uma
metade complementava a outra.
“Eram atividades de reciprocidade (...) A festa em si era um encontro
marcado por grandes bebedeiras, em um ritual altamente simbólico, que
evidenciava e transparecia a rede social desta sociedade, permitindo aos seus
integrantes intensificar suas relações sociais e reafirmar a identidade grupal”
(Oliveira, 1996: 48).
Tal descrição também poderia ser utilizada para descrevermos as festas de casamentos
que ocorrem atualmente nas áreas indígenas kaingang. Assim, tanto o ritual do
Kiki quanto
os casamentos em si, destacam-se pelas atividades rituais, tanto preliminares à festa, quanto
durante o acontecimento. No casamento, as atividades são realizadas principalmente pelos
parentes mais próximos aos noivos, da mesma forma que no
Kiki, os principais
responsáveis pela realização do evento eram os parentes dos mortos. Ambas as cerimônias
evidenciam e transparecem a rede social kaingang, permitindo aos seus integrantes
intensificar seus laços. Talvez se possa inclusive afirmar que, hoje, as festas de casamento
69
(entre as metades exogâmicas) estejam suprindo a ausência, na maioria das áreas indígenas
kaingang, das festas relacionadas ao
Kiki
59
, quando a sociedade reforçava sua própria
estrutura social.
59
A Terra Indígena Xapecó é a única que ainda realiza o ritual do Kiki.
70
II. 2c) Os nomes
De modo geral, os nomes têm uma grande importância na vida política e cerimonial dos
povos Jê (Lopes da Silva, 1986). Entre os Kaingang, eles também são bastante valorizados.
Desde o nascimento, os kaingang são providos de nomes que ocupam um papel central na
constituição da Pessoa. Na Aldeia Kondá muitos indivíduos são dotados de nomes
indígenas, mas no dia-a-dia, geralmente utilizam somente os nomes em português, que não
perderam a função de elementos estratégicos para o acesso e conquista de bens, sejam
materiais e/ou sociais
60
.
Sendo a sociedade kaingang patrilinear, observei uma grande importância assentada no
sobrenome paterno, o qual geralmente é o único sobrenome que a criança recebe quando é
feito o registro da Funai. Entretanto, se o pai abandona a família, normalmente os filhos
passam a ser identificados pela mãe com o seu sobrenome, mesmo que no registro
permaneça o sobrenome do pai. Em contrapartida, se o pai morre, seu sobrenome não é
retirado da criança, pois o acontecimento foi involuntário. Outra situação verificada no
trabalho de campo é que quando acontece a separação de um casal e posteriormente a união
da mulher com outra pessoa, os filhos podem ou não ser aceitos pelo novo marido da mãe.
Nestes casos, quando os filhos são aceitos pelo padastro, eles passam a ser identificados
com o seu sobrenome, caso contrário, é mantida a referência paterna anterior, não sendo
60
Uma das reclamações mais freqüentes da equipe da Funasa é a constante troca de nomes que os kaingang
da Aldeia Kondá praticam para acessar tanto tratamentos médicos quanto benefícios do governo (bolsa
família, bolsa escola, auxílio maternidade, bolsa alimentação. O cadastramento destes benefícios é de
responsabilidade da Funai, com exceção da bolsa escola que é cadastrada pela enfermeira ligada ao convênio
Funasa/Prefeitura de Chapecó).
71
modificado o sobrenome
61
. Neste sentido, o nome é apenas mais um mecanismo
incorporado na sociologia kaingang.
A categoria dos
péin, também exemplifica este tipo de princípio: ela possibilita que a
criança oriunda de uma relação incestuosa seja integrada na sociedade kaingang, mesmo
que os pais tenham infringido a regra da exogamia. Através do recebimento das duas
marcas (comprida e redonda) e de um nome considerado forte (
jiji koreg), este indivíduo
pode restabelecer sua força (já que a endogamia enfraquece a criança e sua família) e
ocupar um papel cerimonial considerado central no ritual do
Kiki.
“Para a maioria dos Kaingang,
jiji koreg é nome péin; somente eles deveriam ir ao
enterro e mexer, lavar, trocar, arrumar o morto para o enterro. Todos os que
possuem nomes
koreg estão relacionados à função cerimonial e são os encarregados
das coisas relativas aos mortos” (Veiga, 2000:166-7).
Os nomes dados à criança kaingang, por serem provenientes de um estoque de nomes
de cada metade, são como papéis sociais ocupados por novos personagens. “Esses nomes
pertencem às metades e seções patrilineares, e o eles que determinam o lugar social, o
status e a função cerimonial a serem desempenhados” (Veiga, 1994: 111). Percebe-se
então, que de modo geral, os nomes que se referem aos animais, às plantas e às pessoas
falecidas fazem parte do complexo da Pessoa Kaingang, ajudando a materializá-la e
constituí-la. Soma-se a tal idéia as noções que envolvem o corpo e o espírito do grupo e que
serão detalhadas a seguir.
61
Ao contrário de Veiga (2000) que pesquisou na Terra Indígena Xapecó, não constatei que após a separação
de um casal os filhos são geralmente cuidados pela família do pai. A maioria dos casos de separação
observados na Aldeia Kondá a mãe foi quem ficou com a guarda da prole, residindo próximo a seus
familiares.
72
II. 2d) Vínculos corporais
A literatura sobre os Kaingang, com exceção de Veiga (1994 e 2000), praticamente
não aborda o tema da constituição do corpo e dos nculos corporais presentes entre eles.
Duas me parecem ser as razões desta lacuna etnográfica: a primeira é a pouca fluência dos
antropólogos, de modo geral, na língua kaingang; a segunda parece advir de uma certa
restrição interna dos kaingang, em função da qual eles não fazem muita questão de partilhar
seus conhecimentos e entendimentos relativos ao corpo e suas substâncias com estranhos. É
preciso muita paciência para se obter informações que façam referência à constituição
corporal e aos vínculos que se criam a partir da troca de substâncias. Além disso, poder-se-
ia afirmar que as questões referentes a corporalidade kaingang são privilégios femininos,
uma vez que são as mulheres que, na esfera doméstica, exercem o controle sobre os corpos
dos membros de sua família.
Na Aldeia Kondá as mulheres estão sempre atentas a qualquer anormalidade no
interior/exterior de seu corpo, dos filhos ou do marido. Qualquer alteração corporal é
observada e geralmente quem busca o auxílio para tratar o problema, seja nas terapias da
biomedicina ou no uso tradicional de plantas medicinais, são elas. Inclusive, o postinho de
saúde da aldeia é um cus privilegiadamente feminino, enquanto que o posto de saúde
localizado na cidade também atrai os homens. Estes parecem penetrar no universo da saúde
somente quando tais questões envolvem a articulação com o domínio público e político, ou
seja, quando a necessidade de reivindicar algum direito junto aos órgãos responsáveis.
Até o momento, todos os cargos ‘públicos’ ligados à dimensão da saúde
o conselheiro da
saúde, o agente indígena de saúde e o agente indígena de saneamento
foram apenas
73
ocupados por homens. Nas situações em que um membro da família necessita de algum
equipamento médico ou terapia especial da biomedicina (como por exemplo, tratamento
psicológico ou auditivo), também são exclusivamente os homens que buscam o diálogo
com a Funasa ou com a Secretaria Municipal de Saúde.
Enquanto as mulheres são responsáveis pelos cuidados cotidianos relacionados à saúde
da família, os kaingang afirmam que com relação à constituição corporal, é o pai quem
produz o corpo do filho. De acordo com a regra de patrilinearidade, também é o pai quem
produz os atributos sociais, influenciando não apenas a substância física da qual o filho é
feito, mas também, e principalmente, a dimensão social deste novo indivíduo: os nomes e
prerrogativas que são recebidos da metade a qual o pai pertence (Veiga, 2000: 111).
Juracilda Veiga apresenta o depoimento de um de seus informantes da Terra Indígena
Xapecó, indicando que no entendimento kaingang, o homem fabrica a criança para a
mulher:
“ele fez aquela criança para ela(idem, p.107). Embora a ideologia dominante
possa ser masculina e a descendência entre os Kaingang seja patrilinear, são as mulheres
quem possuem um poder especial quando se discute os padrões contraceptivos
62
e as
práticas relacionadas à gravidez e ao nascimento. Os homens podem ter o controle da
reprodução (‘o
homem é quem faz o filho’, dizem os Kaingang), mas seu controle é parcial,
posto que, são as mulheres que controlam a fecundação, dão a luz, nutrem e cuidam das
crianças
63
.
62
Na Aldeia Kondá o tema da contracepção é polêmico para a grande maioria dos casais. O uso das injeções
contraceptivas é bastante aceito pelas mulheres, mas os homens, geralmente não concordam com esta prática.
O que acontece é que elas, muitas vezes, acabam tomando as injeções sem que o marido saiba.
63
Os cuidados envolvendo a criança começam antes mesmo do seu nascimento e a futura mãe recebe o
aprendizado utilizado nesta etapa de outras mulheres da sua rede de parentesco e de compadrio. Este
aprendizado inclui o uso de “remédios do mato” e a realização de dietas específicas (Sacchi, 1999: 70).
74
Diante da ideologia masculina de reprodução, questionei algumas mulheres da Aldeia
Kondá sobre suas opiniões frente a este princípio e uma delas afirmou:
“a mulher também
faz o filho porque uma vez uma médica explicou que assim como sai uma substância do
homem no momento da concepção, também sai da mulher. Por causa disso, os sangues da
mulher e do homem se misturam
”. Tal depoimento sugere que com a intensificação do
diálogo entre as equipes biomédicas (médicos, enfermeiras, etc) e os kaingang, os conceitos
relativos à constituição corporal estejam sendo modificados. Porém, mais do que enfatizar a
reatualização de uma compreensão própria dos kaingang sobre o ‘fazer filho’
, me
parece importante destacar a idéia da “mistura do sangue”, porque esta condiz com o modo
nativo de pensar e agir, ou seja, com o modo kaingang de se relacionar a partir de um forte
sentimento de proximidade entre os parentes, incluindo aqui a relação mãe-filho; pai-filho e
marido-esposa (tratada a seguir). Em diversas narrativas, o sangue apareceu como elemento
central na constituição do corpo:
“(...) eu acho que toda a circulação, não é o coração, é o sangue. Porque se
o sangue estragar, o coração também não vai funcionar. Então a primeira
coisa que eu acho que é... que tem que estar normal seria o sangue. Como
muitas vezes eu vejo exame de sangue, né? Eu não sou contra porque as
pessoas vão conhecer o organismo do homem, da mulher, elas podem
conhecer toda a circulação do corpo. Muitos dizem que se o coração não
bater a gente morre, mas se não sai sangue também, aí não adianta”
(Paulo,
53 anos).
O sangue, assim como é responsável pela vida, quando associado à menstruação
pode ser considerado como agente de grande preocupação e perigo, causador de fraquezas e
doenças. Juarez explicou-me que quando as mulheres estão menstruadas devem seguir
algumas restrições:
75
“(...) quando vêm as menstruações elas m que se cuidar: não mexer na
água fria, não lavar roupa, não tomar banho com água fria. Antigamente os
índios tomavam banho no rio mesmo, tiravam toda a roupa e se lavavam na
água... e isso é perigoso, não podia tomar banho quem estava com estas
menstruações, que
[a menstruação] vira ‘branca’, vira uma coisa dentro
dela
[da mulher], vira uma inflamação, e às vezes ela nem sabe que tem
aquilo também, então ela anda normal, não quer contar para ninguém”.
Não consegui aprofundar com nenhum informante o que seria exatamente esta
menstruação que de
“vermelha viraria branca”, mas esta é apenas uma dentre tantas
perguntas sobre as representações kaingang relativas às substâncias corporais e à formação
do corpo que ainda não foram trabalhadas pelos antropólogos e que também não tive a
oportunidade de aprofundar.
Em sua tese de doutorado, Veiga aponta que um ‘elo místico’ que une o homem
à mãe de seu filho. Sobre tal aspecto, cita a fala de um de seus informantes:
“Quando a mulher está grávida, o marido dela tem que se esforçar nas
coisas pesadas, porque o músculo que ele tem, ele favorece o músculo dela.
Como o ‘kafy’
[relação de substância entre os cônjuges], tem a comunicação
um com o outro, no momento que ela vai ganhar, ela tem uma força que ela
não vai sofrer muito. Até mesmo na ora dela ganhar, se que vai demorar
muito, ele é obrigado a correr em volta da casa, ou pegar um machado e ir
cortar lenha ou pular, ele tem que ser ligeiro naquela hora, dái ele ajuda a
criança a nascer depressa”
(Veiga, 2000: 108, grifos da autora).
Ainda de acordo com esta autora, os cônjuges (e também os amantes) vão
desenvolvendo esta glândula (de transmissão de substância) chamada
kafy, ao longo do
desenvolvimento do relacionamento. “Seria por esse motivo que os viúvos têm que se
submeter ao
vokrê, dieta de luto, para que a substância desse kafy, que estava no parceiro,
agora morto, possa voltar para ele e assim ele possa esquecer aquele que morreu” (idem,
p.118). Nitidamente, uma explícita troca de substâncias entre marido e esposa, e talvez
76
por isso, um dos assuntos prediletos entre as mulheres seja as relações sexuais e os
relacionamentos entre os casais.
Para os kaingang, os casos de adultério são considerados um assunto tabu,
entretanto, não há como escondê-los no cotidiano da Aldeia Kondá. Soube inúmeras vezes
de boatos relacionados ao assunto e cheguei a presenciar a punição de um homem e sua
suposta amante’ que foram descobertos pela esposa (ela exigiu que as lideranças
prendessem o casal adúltero na cadeia da aldeia). Neste caso, a exteriorização da censura se
colocou como uma questão de honra para a esposa, afinal todos deveriam ficar sabendo
quais encaminhamentos tinham sido tomados pelas lideranças. Quando punido, o adultério
depois de um tempo é superado e esquecido.
Segundo as mulheres da aldeia, as separações entre casais não têm relação com o
adultério, mas sim com a violência doméstica, bastante freqüente por parte dos homens
com relação às suas esposas. As separações propiciam um grande envolvimento dos
familiares e das lideranças que, primeiramente, tentam a reconciliação entre as partes,
aconselham e, por fim, como último recurso, conduzem o casal à cadeia da aldeia. Após
passarem alguns dias presos, se o casal não fez as pazes e ambos estão decididos a se
separar, seguem seu rumo podendo contrair outra união. Nestas situações, freqüentemente
são as mulheres que ficam com a guarda das crianças e, caso o novo marido também tenha
filhos, elas os assumem, tratando-os como seus.
O ato de nutrir uma criança que não seja sua possibilita a criação de laços
semelhantes aos da consangüinidade. “Se uma mulher amamenta o seu próprio filho e o
filho de outra, essas duas crianças se tornam irmãos de leite e isso é sempre frisado por
eles” (Veiga, 2000: 100). É importante notar que, se os homens são aqueles responsáveis
pela atribuição dos papéis sociais, que os filhos trazem consigo a marca do pai, as
77
mulheres, enquanto mães e ‘criadoras’, são responsáveis pela transmissão dos valores
morais e éticos, isto é, pela educação das crianças. Os homens velhos sempre se referem
aos ensinamentos e conselhos dados por suas mães nas mais distintas situações.
A proximidade entre os parentes consangüíneos foi apontada diversas vezes como
central na compreensão de muitas doenças. Os relatos assinalaram que as doenças podem
passar entre os parentes porque um cuida do outro ou porque são membros da mesma
família e esta está marcada. Aqui, a doença não é apenas um evento social porque
envolve todos os membros da família na busca pela cura de um indivíduo, mas também
porque alude à “contaminação” de todos os familiares. Além da importância dada aos laços
sociais, os laços provenientes do corpo, das substâncias, complementam a compreensão que
os kaingang manifestam sobre os vínculos e afetos que se criam entre os parentes. Por outro
lado, enquanto os consangüíneos podem “contaminar-se” mutuamente, através do contato
ou da proximidade física, os afins são acusados de provocar doenças, principalmente
através de feitiços. (A terceira parte do trabalho aprofundará estas questões).
78
II. 2e) Relação corpo/ espírito
Segundo a cosmovisão kaingang, o ser humano é formado de um
(corpo) e um
kumbã (espírito), sendo que é o kumbã que fornece ou retira a energia do hã. O nome
indígena que uma pessoa recebe deve se relacionar com estas duas dimensões. Ele
geralmente provém do nome de uma pessoa mais velha, falecida e relaciona-se com os
elementos da natureza
64
. O espírito do vivo é kumbâ, mas o espírito do morto é kuprîng
(que traduzem também por sombra ou alma). Veiga (2000) sugere que se é o espírito que
anima o corpo, a saúde seria um constante processo de fixação entre
kumbã e .
Quando uma criança nasce, ela vem com a alma que anima o corpo, mas seu espírito
ainda é muito frágil e, por isso, vulnerável. É preciso que alguns cuidados, como evitar a
luz do sol, batizá-la com o nome indígena, banhá-la com ervas especiais, sejam seguidos a
risca, para fortalecer e também fixar de vez o espírito no corpo do recém-nascido.
Quando perguntei a um dos velhos da Aldeia Kondá se a alma poderia abandonar o
corpo e a pessoa continuar viva, ele respondeu:
“Nestes casos, o destino é pra morrer na água ou no fogo, porque todos
nascem com destino
[todos vão morrer]. (...) Então, a alma, ela não quer
sair, ela não quer ir embora. Por isso que muitas vezes a pessoa fica doente,
morre um pouco e volta, isso aconteceu muito pra nós. Muitas vezes eles se
preparavam para fazer o velório e a pessoa voltava a gemer. Então, esses
são os casos em que a alma não quer ir embora”.
64
Alguns nomes indígenas e seus significados indicam a importância dos elementos da natureza na
constituição da Pessoa Kaingang: nomes masculinos Kamé - Kafer (Casca de Pau), Ningrei (Local no Mato),
Dorcocô (Coruja), Kaxen mbag (Rato do Mato Grande), Mufé (Folha de Cipó), Katui (Nome de Madeira),
Kóvi (Banana de Mico); nomes femininos Kamé - Kokui (Beija-flor), Wenxó (Folha do Mato), Katxô (Nome
de Madeira), Kóiód (Nome de Pássaro), Kamonky (Nome de Madeira); nomes masculinos Kairu - Kaxú
(Nome de Madeira), ioi (Piriquito), Kainhér (Macaco), Karein (Juá planta com espinho); nomes
femininos Kairu: Ven kadér (Taquara Lisa), Kuadmé (Nome de Passarinho) (Silva, 2001: 118).
79
A resposta do velho foi contrária à minha pergunta. Na verdade, ele respondeu que é
a alma que geralmente não quer abandonar o corpo, mesmo que este esteja fraco e muito
doente. Nestas situações, a pessoa acabaria morrendo queimada ou afogada, isto é, por
algum acidente fatal que levaria o espírito, mesmo que este não quisesse ir.
Para os kaingang, assim como a pessoa existe diante da presença do corpo e do
espírito, também as plantas e animais são constituídos por estas duas dimensões. Por
exemplo, o pinheiro (araucária) utilizado no ritual do
Kiki, com o qual fazem o Konkei
65
que comporta a bebida, só pode ser derrubado depois que seu espírito for ‘bem conversado’
pelos rezadores. Os kaingang cantam e rezam ao redor da árvore, explicando-lhe que o seu
corte é fundamental para a manutenção da própria sociedade kaingang que se reatualiza
neste ritual. É preciso deixar claro ao espírito do pinheiro que os kaingang necessitam da
árvore para fazer o
Kiki. Os cantos aumentam até que o espírito da árvore esteja
completamente fraco para ser abatido, assim ela poderá ser cortada. Esta prática
corresponde à idéia geral de que é o espírito que sustenta o corpo ou a vida e quando ele
enfraquece, aí sim o corpo morre (cf.Veiga, 2003: 07, no prelo).
∗∗∗∗∗∗
Apesar de ainda se ter muitas lacunas nos dados etnográficos sobre os Kaingang, as
considerações apresentadas até aqui, procuraram evidenciar como os membros deste grupo
articulam-se em torno de suas relações sociais. Neste sentido, a descrição de aspectos
ligados à organização social e à cosmologia fundamenta as concepções e práticas que
65
Espécie de cocho. O pinheiro é cortado ao meio, e em seu interior é depositada a bebida kiki desde o
período da fermentação até o consumo no momento ritual.
80
dizem respeito tanto ao estabelecimento quanto à ruptura dos vínculos sociais. Dando
continuidade a tal abordagem, passarei a etnografia dos processos de adoecimento e de cura
observados na Aldeia Kondá, relacionando-os com os princípios teóricos da sociabilidade
kaingang.
81
PARTE III
III. 1) Interações nas dinâmicas da saúde e da doença
A terceira parte deste trabalho refere-se especificamente às temáticas da saúde e da
doença na Aldeia Kondá. A partir das dinâmicas observadas no trabalho de campo, iniciarei
descrevendo alguns aspectos que cercam a interação entre os kaingang e os gestores das
políticas públicas de saúde indígena, para em um segundo momento, passar às relações
internas da vida da aldeia.
Na resolução ‘oficial’ das questões concernentes à saúde, os kaingang da Aldeia
Kondá contam com o atendimento da Funasa e da equipe de profissionais do Sistema Único
de Saúde (SUS). Até o momento, não posto de saúde no interior da aldeia, mas duas
vezes por semana os índios recebem a visita de uma enfermeira (contrato estabelecido entre
a Prefeitura de Chapecó e o Projeto Rondon) que examina
66
e medica o pessoal. Além dela,
diariamente desloca-se até o Kondá a auxiliar de enfermagem que juntamente com o agente
indígena de saúde (AIS)
67
é responsável pelas visitas às residências kaingang. A princípio,
as visitas destes dois profissionais serviriam para manter atualizado o cadastro das famílias
na Funasa, diagnosticar possíveis doenças, encaminhar exames e pacientes ao atendimento
de média/alta complexidade (posto de saúde e/ou hospital regional) e finalmente,
disponibilizar medicamentos. No entanto, geralmente estas tarefas são realizadas apenas
pela auxiliar de enfermagem que também examina os kaingang que visitam o postinho de
66
Os exames de rotina são realizados no posto de saúde improvisado na localidade da Praia Bonita. Os
kaingang do Gramadinho não utilizam esta estrutura.
67
O Agente Indígena de Saúde é filho do ex-vice-cacique da aldeia, que no início deste ano renunciou ao
cargo alegando que não estava conseguindo dialogar com o cacique.
82
saúde da aldeia Praia Bonita. As atividades do AIS se resumem na entrega de passagens de
ônibus, medicamentos, requisições e resultados de exames aos moradores que vivem nas
casas mais distantes dos núcleos centrais da Praia Bonita e do Gramadinho. Segundo a
Funasa, a distinção entre as funções destes dois profissionais ocorre porque o AIS ainda
não concluiu o curso de auxiliar de enfermagem.
É interessante notar que as diferenças se dão não apenas no plano das atividades ou
das funções, mas também no plano das relações que estes profissionais estabelecem entre si
e com a comunidade kaingang. Mais de uma vez, presenciei algumas situações
constrangedoras, tanto no escritório do Pólo Base em Chapecó, quanto na aldeia, em que o
AIS era inferiorizado pela equipe da Funasa ou mesmo pelos kaingang. Alguns membros da
comunidade relataram que a insatisfação com o desempenho deste AIS era porque ele
acatava as ordens dos funcionários da Funasa sem maiores questionamentos. De acordo
com a gica da alteridade Kaingang diante a sociedade envolvente, os índios não podem
ser submissos porque
os ‘brancos’ é quem devem ser considerados ‘empregados’, que
recebem salário para trabalhar para os índios”
(informante kaingang). Ademais, as
críticas da comunidade direcionadas ao trabalho do AIS ressaltavam que ele não estava
cumprindo corretamente sua função porque não esclarecia as questões referentes à saúde e
à doença com o grupo. De fato, poucas vezes observei o AIS dialogar sobre os problemas
de saúde presentes na Aldeia Kondá com a comunidade. No entanto, um detalhe deve ser
salientado: todas essas críticas sempre advinham dos membros de outros grupos domésticos
e não dos parentes (de seu grupo doméstico). Isto me leva a levantar a hipótese de que,
talvez, antes de tudo, estas críticas estivessem apoiadas na vontade de outros grupos
domésticos assumirem a função de agente indígena de saúde, afinal, os cargos remunerados
são sempre bastante cobiçados pelos kaingang. Esta parece ser uma expressão atual do
83
modo como os grupos domésticos afirmam seu caráter político dentro da aldeia: cada qual
procura assegurar ou almeja conquistar uma posição de destaque (entre as lideranças ou no
quadro de funcionários remunerados) para no mínimo um de seus membros.
Como disse, os cargos remunerados são muito visados pelos kaingang e, muitas
vezes, acabam sendo distribuídos conforme a regra interna de aliança e reciprocidade
(principalmente como forma das lideranças retribuírem o apoio político que recebem de
alguns grupos domésticos específicos
ver nota 53). Os casamentos também podem
resultar na indicação de algum indivíduo (geralmente homem) para ocupar uma posição de
destaque na organização política da aldeia. Diante disso, uma das reclamações mais
freqüentes dos ‘brancos’ que trabalham com os Kaingang é que nem sempre os
funcionários indígenas escolhidos para trabalhar são os mais capacitados.
Ocupar um cargo de destaque na comunidade (liderança, professor, Agente Indígena
de Saúde/ AIS e Agente Indígena de Saneamento/ AISAN), ao mesmo tempo em que
reflete o prestígio do indivíduo e de seu grupo doméstico, pode também colocá-los em uma
situação de fragilidade, ocasionando um ‘feitiço’ por parte de alguém que sinta inveja. Para
os kaingang, a inveja e o feitiço são algumas das causas que podem provocar doenças,
principalmente aquelas que a biomedicina não identifica e têm dificuldades para curar (essa
idéia será desenvolvida adiante).
Além dos atendimentos prestados no interior da Aldeia Kondá, os kaingang também
recebem, uma vez por semana, atendimento dentário na Terra Indígena Chimbangue e
consulta no posto de saúde do bairro Palmital
68
(três manhãs por semana). Neste local
um médico destinado para as consultas dos índios. De modo geral, as opiniões kaingang
sobre a estrutura dos serviços de saúde oferecidos neste posto são positivas, porém, muitas
68
Bairro de Chapecó onde vivia grande parte das famílias antes de serem deslocados para a área atual.
84
reclamações foram feitas quanto à forma como o médico conduz a consulta. Alguns
kaingang expressaram ter dificuldades em explicar o que sentem
o que se passa em seu
corpo
, por sua vez, outros disseram que muitas vezes não compreendem a linguagem
médica. A maioria dos homens manifestou uma certa revolta porque o médico aplica
‘socos’ nas costas dos pacientes. Por outro lado, as mulheres afirmaram que se constrangem
com os exames dicos:
“ele [o médico] quase péla [despe] a gente e ficamos com muita
vergonha”
. Por esta razão, elas acham que o médico deveria ser mulher, pois “doutor
homem dá muita vergonha”
.
Estes comentários demonstram que há um nítido conflito entre o modo como os
profissionais da biomedicina tratam o corpo humano, em contraposição as concepções e
práticas kaingang de lidar com esse mesmo corpo. Tal questão não é novidade nos debates
entre os antropólogos e aqueles que planejam ou atuam nas políticas públicas de saúde para
as comunidades indígenas e/ou populares (ver Good, 1977; Ferreira, 1994; Langdon, 1998;
Menéndez, 2003; Garnelo & Langdon, 2003). Contudo, até o momento, poucas mudanças
efetivas foram observadas na prática dos processos de trabalho em unidades de atenção
básica. Normalmente, as práticas dos profissionais da saúde estão organizadas na forma de
atos rápidos, tecnificados e impessoais que buscam essencialmente o diagnóstico e a
terapêutica, inviabilizando interações consistentes, respeitosas e personalizadas entre
profissionais e clientela (Menéndez, 2003).
Finalmente, gostaria de salientar um último aspecto que me chamou atenção no
quadro da saúde local, quando esta envolve a interação dos kaingang e da sociedade
envolvente. Este ponto diz respeito ao modo como os kaingang fazem uso daquilo que a
sociedade ‘branca’ lhes oferece, para atingir seus próprios interesses.
85
Ao longo da primeira parte do trabalho procurei ressaltar a importância que os
kaingang dão à cidade de Chapecó, sendo ela parte de seu território tradicional. Além disso,
eles resolvem questões de ordem política, econômica e de saúde, quando estas implicam
o diálogo com a sociedade envolvente. Os escritórios da Funasa e da Funai recebem visitas
diárias dos kaingang que necessitam resolver questões burocráticas. Da mesma forma,
diante a ausência de um bom posto de saúde no interior da aldeia, o posto do bairro
Palmital é bastante procurado.
O deslocamento até o posto de saúde do bairro Palmital é feito pelo ônibus (de uma
empresa privada) que faz a linha da Aldeia Kondá. A Funasa disponibiliza aos kaingang as
passagens de ida e volta, sendo que a volta é entregue somente quando a pessoa chega no
postinho e faz a ficha de identificação para consultar. Grande parte dos kaingang que vai
até o posto, aproveita também para ir ao centro da cidade. Na maioria das vezes, o trajeto
do posto a o centro (aproximadamente oito quilômetros) é feito a e no centro, eles
pegam o ônibus para retornar à aldeia.
A gratuidade deste transporte faz com que às vezes as pessoas se dirijam até a
auxiliar de enfermagem ou ao AIS para pedir passagens, sem ter realmente uma demanda
de saúde para resolver. Nestas situações, geralmente os kaingang nem aparecem no posto
de saúde, mas deslocam-se direto até o centro da cidade, pagando a passagem de volta. A
fala de uma mulher kaingang perguntando-me como estava a cidade, já que fazia tempo que
ela não ia porque dificilmente alguém de sua família adoecia, reflete bem esta idéia
69
.
69
Para os kaingang, as passagens, juntamente com os medicamentos são aquilo que os ‘brancos’ têm para
oferecer, e neste sentido, o motor que move as relações entre aqueles que as detém (auxiliar de enfermagem,
enfermeira, Funasa) e os índios. Na lógica nativa, quando solicitados, estes elementos jamais podem ser
negados e, dificilmente serão, porque em contrapartida, os detentores destas ‘moedas’ também sabem que elas
são essenciais em troca da cordialidade kaingang.
86
No centro, os kaingang vendem seus artesanatos, fazem compras e observam o
movimento da cidade. A concepção do centro da cidade de Chapecó como território
tradicional kaingang permite ao grupo atualizar uma prática antiga: a mobilidade espacial.
Ao mesmo tempo, diante os serviços e interações que o contexto urbano possibilita, suas
práticas sociais também são atualizadas, privilegiando o princípio da incorporação de
elementos externos no modo de vida kaingang.
87
III. 2) Compreendendo a dor e a doença
Saúde, doença e cuidados são estratégias situadas no plano
da reprodução da vida social
(Garnelo, 2003: 61).
Para alguns grupos indígenas as doenças são inerentes à natureza da existência
humana, sendo representadas por seres míticos, como por exemplo, entre os Baniwa
(Garnelo, 2003). Já para os Kaingang, mesmo havendo consenso de que algumas doenças já
existiam no
wãxi (tempo passado), as doenças que mais lhes causam estranhamento (câncer
e AIDS) são relativamente recentes e conseqüência do contato com a sociedade envolvente.
Apesar das categorias ‘dor’ e doença’ serem expressão do mesmo termo -
kaga
70
,
os kaingang sabem identificar se a pessoa está “realmente doente” ou simplesmente com
dor. Tal diferença semântica se expressa na sintaxe da frase, pois para explicitar a sensação
de dor, os kaingang indicam o lugar que dói, por exemplo,
krî kaga dor de cabeça e nug
kaga
dor de barriga.
Ferreira (1994) aponta que, geralmente, as representações que os indivíduos
possuem a respeito da doença estão diretamente relacionadas com os usos sociais do corpo
em seu estado normal. Assim, qualquer alteração na qualidade de vida, como quando o
indivíduo não consegue trabalhar, comer, dormir ou realizar alguma outra atividade que
habitualmente está acostumado, implica no ‘estar doente’. Entre os kaingang não é
diferente, o comprometimento da alimentação e a incapacidade de realizar outras atividades
também consideradas cotidianas
71
indicam o adoecimento do indivíduo.
70
No idioma kaingang a consoante g’ junto de vogal oral se pronuncia como ‘gn’, ‘ng’ (kangá) ou ‘gng’
(Wiesemann, 1981).
71
Dentre estas atividades estão os cuidados com a casa, com as roupas, com a família e o preparo da
alimentação (entre as mulheres); a coleta do material para a confecção do artesanato, o trabalho na roça e a
88
Para além destes sintomas que afetam a qualidade de vida do grupo, já dissemos que
algumas doenças têm como causa o longo contato com a sociedade envolvente. Nestes
casos, o vento é considerado como o principal veículo de disseminação, na medida em que,
com o passar dos anos, se tornou mais forte em função da devastação das florestas que
protegiam as aldeias
72
. Ademais, as uniões e/ou relações sexuais entre kaingang e ‘brancos’
e a rígida mudança da dieta alimentar do grupo (conseqüência da escassez das áreas de
caça, pesca e coleta e introdução de produtos industrializados) também estão entre algumas
das origens apontadas para as chamadas ‘doenças do contato’.
As falas kaingang apontam que o contato interétnico teve enorme impacto sobre as
condições de saúde do grupo. Alguns afirmam que os kaingang jovens estão fracos porque
“comem comida contaminada e os animais são criados à força, sob ração e vacinados”.
Antigamente, ao contrário, a comida também era remédio, a urtiga da folha grande, por
exemplo, ao mesmo tempo em que alimentava ainda servia para a ‘limpeza do corpo’
(Diehl, 2001: 97). As comidas são constantemente enfatizadas como elementos centrais do
adoecimento, pois de acordo com a gica kaingang, conduzem à fragilidade do corpo e,
conseqüentemente, também do espírito.
Conversando com uma das mulheres mais velhas da aldeia sobre as doenças que
afligem os kaingang, ela explicou que antes tinha gripe, sarampo, mas não essas
enfermidades de agora: câncer e tétano
73
. AIDS também não conhecia, muito menos
participação nas atividades coletivas e políticas (entre os homens); a interrupção espontânea das brincadeiras
(entre as crianças).
72
Os kaingang têm pavor de ventos fortes. Antigamente, os pais fechavam todas as frestas da casa para que o
recém-nascido não pegasse vento e, conseqüentemente, não ficasse doente. Os velhos dizem que o vento “é
como uma pessoa que olha para a gente e ri... Se a gente olha para ele também, pega a doença que é tipo um
espírito.Oliveira (1996) também registrou em sua pesquisa na Terra Indígena Xapecó que ao vento é
atribuído o papel de veículo de doenças e feitiços.
73
Acredito que o tétano tenha sido citado porque recentemente uma pessoa da aldeia havia sido contaminada
e a comunidade foi bastante alarmada pela Funasa.
89
‘camisinha’. Antes os índios tomavam bebidas, mas as de hoje são todas misturadas’ e
periga viciar. Tudo feito pelos brancos”
. No passado, não tomavam remédios específicos
para as doenças porque
“a natureza do índio era forte”. Agora, como as crianças
nascem no hospital, vêm fracas, precisando de remédios e vacinas que devem tomar a
vida toda”
. Este depoimento evidencia algumas das mudanças que, especialmente na área
da saúde, afetaram o modo de vida kaingang.
É importante salientar que as ‘doenças do contato’ não são interpretações oriundas
do olhar da sociedade não-indígena para os kaingang, mas concepções êmicas que estariam
pautadas no ‘mundo social indígena’
74
. Além das ‘doenças do contato’, haveria ainda
aquelas que estão diretamente relacionadas ao interior da vida social na aldeia. Tais
doenças são provenientes da ruptura de vínculos sociais (principalmente entre as pessoas de
um mesmo grupo doméstico), da transgressão de comportamentos socialmente apreciáveis
(observados principalmente entre os evangélicos
75
) e dos ‘feitiços’
76
provocados
principalmente entre os afins.
Diante disso, mesmo separando as doenças em duas categorias as que se referem
ao contato interétnico e aquelas que apontam para a ‘quebra’ das relações no interior da
aldeia –, pode-se dizer que uma única explicação as contempla: na sociedade kaingang a
doença é compreendida como algo relacional. Portanto, se no interior da vida da aldeia as
74
Utilizo a definição de ‘mundo social indígena’ que orienta as pesquisas do Projeto Pronex, isto é, “o campo
relacional total em que os povos indígenas estão imersos, o que inclui as relações entre índios e não-índios,
parentes e não-parentes, humanos e não-humanos” (Pronex, 2003: 51).
75
Entre os evangélicos vigora uma rie de regras de conduta social: não ingerir bebidas alcoólicas, o
assistir televisão nem partidas de futebol ou outro esporte, vestir roupas discretas e ser assíduo nos cultos. O
discurso destes kaingang indica que a infração de tais orientações (o ‘desviar’ como dizem) acarreta no
adoecimento do indivíduo ou de sua família.
76
Oliveira (1996: 90) discorre sobre as três categorias principais de praticantes kaingang de cura, entre elas
encontram-se os feiticeiros. De acordo com ela, todo kuiã também é capaz de enviar e tratar feitiços, mas na
Aldeia Kondá, mesmo existindo uma pessoa considerada kuiã, o domínio dos feitiços, assim como dos
remédios do mato é de conhecimento geral dos membros da sociedade. Mesmo que alguns saibam mais do
que os outros, as pessoas trocam mais informações entre si do que com o próprio kuiã - que pelo que me
contaram cobrava para receitar os remédios do mato.
90
doenças são pensadas a partir da ‘quebra’ das relações sociais, também as ‘doenças do
contato’ seriam decorrência de uma ruptura no modo como os kaingang concebem a
criação e manutenção de seus laços sociais. Ou seja, diante a ausência de trocas nas
relações que estabelecem com a sociedade envolvente, a perspectiva kaingang aponta que
grande parte do que é produzido pelos não-índios está
“contaminado”, principalmente os
alimentos, que se fossem seguir a gica de distribuição da aldeia, circulariam de acordo
com as regras de reciprocidade e boa convivência. Sendo assim, os episódios de mal-estar
assumem um caráter especial na sociedade kaingang, pois devem ser entendidos como
ferramentas extremamente úteis para o ordenamento da vida social que comunicam e
legitimam mudanças na maneira pela qual as relações sociais estão dispostas (Young,
1976).
∗∗∗∗∗
A ruptura dos vínculos sociais abala os kaingang de modo especial. Nesta
sociedade, geralmente são as mulheres quem expressam suas angústias, fazendo referência
a problemas de saúde como dores no coração e na cabeça. Dizem-se doentes porque se
incomodaram com os filhos e/ou marido ou porque houve algum desentendimento entre sua
família e alguma outra da aldeia.
Em Maragheh, no Irã, Good (1977) identificou uma situação bastante similar. As
constantes queixas femininas sobre “heart distress” utilizavam lingüisticamente o coração
para expressar desafeto e problemas emocionais que as pessoas acreditavam serem as
causas do adoecimento deste órgão. Ao longo de seu estudo, identificou que a tristeza, o
lamento, as preocupações gerais sobre as condições de vida e os conflitos interpessoais
91
eram significativamente associados à doença do coração. Através da análise de narrativas e
da própria sociedade iraniana, Good constatou que a larga estrutura social e cultural de
Maragheh fornece o arcabouço ideal para o stress que cerca a sexualidade feminina e que
acaba sendo verbalizada na forma de “heart distress”. A rede semântica, largamente
estudada por este autor, deixa claro que o significado não dito nas queixas femininas de
“heart distress” é o confinamento vinculado ao pertencimento social de Maragheh. A partir
de seu estudo, Good propõe que as doenças passem a ser vistas como uma ndrome de
experiências típicas, um conjunto de palavras e sentidos que são tipicamente associados
pelos membros de uma sociedade específica. Assim, de acordo com esta perspectiva, a
doença se torna um conjunto de experiências associadas por redes de significados (que não
se limitam aos sintomas físicos) e interação social. Tal análise me parece bastante
interessante para iluminar também o contexto kaingang pesquisado, onde as concepções
sobre adoecimento e cura estão intimamente relacionadas com questões de ordem social.
∗∗∗∗∗
Entre os kaingang evangélicos, a doença pode ser considerada como uma das
principais formas de controle social. Ela representa a punição ao desvio’ dos
comportamentos morais admirados pelo grupo vigora a idéia que quanto mais ‘desviem’
mais doenças os afligirão. De modo similar, Garnelo observou que na sociedade Baniwa
“os sentidos atribuídos aos episódios de doença remetem (...) aos valores e às regras de
conduta (ou à transgressão deles) daí decorrentes” (Garnelo, 2003: 34).
Além da associação entre as doenças e a transgressão de comportamentos
socialmente desejáveis como uma forma de controle, os feitiços que provocam
92
enfermidades também manifestam um modo específico de controlar a sociedade. Entre os
baniwa, Garnelo ressalta que, freqüentemente, os feitiços são utilizados para controlar a
distribuição do poder:
“especificamente aquelas [feitiçarias] provocadas pela ação humana são
mecanismos normativos para a regulação de poder. As lideranças, portanto,
se colocam numa posição de extrema vulnerabilidade (...), pois são mais
sujeitos aos ataques dos inimigos que procuram nivelar, senão inverter, as
relações de poder” (Garnelo, 2003: 10).
Do mesmo modo, entre os kaingang, as doenças provocadas por feitiço podem ser
resultado da inveja de alguém pela conquista de cargos de poder ou bens materiais de uma
família ou indivíduo. O feitiço ainda pode ser provocado para atrair um amante (o que não
chega a causar doenças, mas simplesmente a atração do enfeitiçado pela outra pessoa), ou
como vingança em um caso de rejeição amorosa (estes feitiços geralmente são muito fortes,
provocam doenças, mudança de comportamento e podem inclusive levar o enfeitiçado à
morte). Geralmente, quando os indivíduos permanecem por muito tempo doentes e as
terapias (da biomedicina e os remédios do mato) utilizadas não surtem efeito, as causas são
associadas a feitiços. Nestes casos, o tratamento deve ser buscado junto ao
kuiã (xamã
kaingang), benzedores ou nas igrejas evangélicas, pois provavelmente, além do
comprometimento físico do indivíduo, há também seu comprometimento espiritual.
Em contrapartida, nos episódios de mal-estar onde somente a presença de
sintomas relacionados à dor física, mesmo havendo remédios do mato indicados para
amenizá-la, geralmente a terapia buscada é junto à equipe da Funasa. Os medicamentos
industrializados são bastante solicitados e servem principalmente nos casos sintomáticos,
isto é, para tratar os sintomas ainda vagos das primeiras manifestações de doença.
93
Com relação aos remédios do mato, as prescrições são feitas entre os próprios
kaingang. Observa-se que primeiramente eles recorrem à família nuclear, posteriormente ao
grupo doméstico e, caso ainda necessite, à
parentagem. Não se pode afirmar que na busca
pela cura os kaingang prefiram uma ou outra terapia, tampouco que a biomedicina e os
conhecimentos fitoterápicos sejam os únicos tipos de tratamento reconhecidos, afinal,
quando se trata de solucionar os problemas de saúde, uma intensa busca pelas terapias
oferecidas e um intenso envolvimento do grupo doméstico do doente. Como veremos
adiante, as curas espirituais realizadas nas igrejas evangélicas e os trabalhos realizados pelo
kuiã também são reconhecidos como técnicas de cura, especialmente nos casos
considerados mais graves, ou seja, naqueles padecimentos que perturbam o espírito e
afligem o corpo. Não posso afirmar que os kaingang concebam uma hierarquia entre corpo
e espírito, mas o fato é que, o
kumbã (espírito) é quem dá vida ao (corpo)
77
.
Na verdade, quando o objetivo é buscar a cura, as terapias competem e se
complementam entre si. É claro que algumas são mais utilizadas e preferidas, contudo, ao
final, os recursos disponíveis são acionados porque a busca pela cura implica não apenas no
restabelecimento dos indivíduos doentes, mas de toda sociedade que anseia pela restauração
do equilíbrio social.
∗∗∗∗∗
No trabalho de campo, a dor se mostrou como um dos temas preferidos dos
kaingang para estabelecer o diálogo com os profissionais da biomedicina. Diariamente,
pelo menos uma pessoa se dirigia à auxiliar de enfermagem para solicitar algum remédio
para dor de cabeça, de barriga, nas costas, pernas, ou outro lugar qualquer. Os partos
77
Ver parte II. 2.
94
também têm sido realizados nos hospitais, seja porque houve uma intensa medicalização da
saúde indígena nos últimos tempos, seja porque lá, de acordo com as mulheres kaingang, “
a
dor é menor”
. Inclusive, muitos índios manifestaram a idéia de que os remédios da
biomedicina são eficientes apenas para dor, mas não para a cura das doenças do espírito,
provocadas por feitiços advindos de alguém.
A dor, como sensação, serve para relacionar o indivíduo e a sociedade, ou no caso
dos kaingang, o indivíduo, sua sociedade e a sociedade não-indígena. Em cada sociedade,
as formas de sentir e expressar a dor são regidas por códigos culturais e a própria dor, como
fato humano, constitui-se a partir dos significados conferidos pela coletividade, que
sanciona as formas de manifestação dos sentimentos (Sarti, 2001). O interessante a
observar entre os kaingang é que mesmo que a dor seja algo singular para quem a sente e se
insira em um universo de referências simbólicas próprias do grupo, ela tem servido como
principal elemento para desencadear e mediar os diálogos junto à sociedade envolvente,
que disponibiliza as políticas blicas de saúde indígena. Neste sentido, a questão que se
deve tentar compreender é em que medida a demanda de medicamentos para dor (e também
outras facilidades da biomedicina, como os exames) traduz modos de relação entre os
kaingang da Aldeia Kondá, a enfermeira, sua auxiliar e a própria instituição da Funasa.
Sabemos que na sociedade ocidental, a supressão da dor é uma busca constante e,
não é à toa, que grande parte dos medicamentos e técnicas da biomedicina são
desenvolvidos para suprimir e acalmar a dor. A ênfase na dor também se mostra coerente
com um dos princípios centrais da biomedicina: a fragmentação do corpo doente, ou a
compreensão de que o corpo é uma máquina, isto é, uma engrenagem composta de partes.
De acordo com tal lógica, se é o pé que dói, é a este que deve ser dado o devido tratamento,
sem cogitar-se que a causa da dor possa ter sua origem em alguma outra região do corpo.
95
Diante disso, gostaria de salientar e colocar como questão para futuras pesquisas
uma observação peculiar feita no trabalho de campo: fora da interação entre os kaingang e a
equipe de saúde
nos diálogos domésticos sobre as questões de saúde e doença, ou nas
entrevistas que realizei
não constatei a mesma relevância sobre o tema da dor. Nas
conversas kaingang sobre saúde e doença, a dor nunca apareceu como tema de grande
destaque, no entanto, no diálogo entre os kaingang e os profissionais de saúde da sociedade
envolvente, a dor pareceu-me ser um assunto privilegiado e central para estimular as trocas
e o acesso aos medicamentos industrializados. No momento não tenho subsídios
etnográficos para aprofundar esta hipótese, contudo, considero importante fazer tal
consideração, visto que este pode vir a ser um problema de pesquisa futuro aos interessados
em contribuir com a antropologia da saúde das populações indígenas.
96
III. 3) Sobre os venh-kagta (remédios)
Os kaingang, principalmente os mais velhos da Aldeia Kondá, detêm um grande saber
sobre os ‘remédios do mato’ (
venh-kagta), mas alegam que atualmente é difícil encontrá-
los, pois devem estar no mato virgem e protegidos do sol. A palavra
venh-kagta se refere
tanto a remédio do mato’ quanto à ‘remédio da farmácia’, podendo também significar
veneno. A expressão
venh é um sufixo individualizante (Haverroth, 1997) que significa ‘de
alguém’ ou ‘de si mesmo’ e antecede um grande número de palavras, se referindo a
qualquer substância que tenha uma ação no organismo, independentemente do resultado da
ação (pode-se também falar
venh-kaga, doença que veio de alguém ou de si mesmo).
A analogia entre remédio e veneno - que também parece ser recorrente na sociedade
ocidental, que o mbolo da medicina inclui uma cobra - possibilita pensar que o mesmo
que cura pode envenenar e/ou matar. A própria dieta (
vãkre)
78
, sendo condição essencial da
eficácia dos ‘remédios do mato’, se não for cumprida corretamente, ao invés de propiciar a
cura, pode levar a um fim trágico
79
.
Segundo Haverroth (1997: 113) o uso de um
venh-kagta de planta está associado à
nosologia e à etiologia da doença. Como o autor mostrou em sua pesquisa sobre a botânica
kaingang na Terra Indígena Xapecó, os critérios para esta classificação podem ser de
acordo com (1) a doença a ser curada ou o efeito desejado e (2) o beneficiário. No primeiro
caso, há
venh-kagta para cada doença, sintoma ou parte do corpo e venh-kagta não ligado à
cura, mas sim a algum efeito desejado, como aborto, anticoncepção, fortificante, entre
78
Geralmente as dietas restringem alimentos e/ou bebidas que não devem ser ingeridos, atividades físicas e
sugerem banhos e defumações com a utilização de remédios do mato específicos. Além disso, antigamente era
comum o isolamento de indivíduos durante períodos de liminaridade como após o parto e viuvez.
79
Os kaingang afirmam que os medicamentos industrializados não necessitam de dietas para garantir sua
eficácia.
97
outros. Quanto ao segundo critério, existe venh-kagta para qualquer pessoa: mulheres,
homens, crianças e também para os animais. Os remédios do mato também estão ligados à
idéia de transmitirem qualidades especiais, como por exemplo, nos banhos dos recém
nascidos, quando o chá de determinadas plantas é passado no corpo da criança para
transmitir-lhe uma série de características próprias da planta.
A importância dos remédios do mato quando comparados com os remédios da
biomedicina demonstra-se pelo poder que os primeiros manifestam ao curar doenças que a
sociedade envolvente desconhece ou ignora. Em sua pesquisa na Terra Indígena Xapecó,
Dihel registrou a seguinte informação de um kaingang: os médicos não curam algumas
doenças porque não
compreendem o remédio, somente com benzedura e/ou remédio do
mato é que é possível curar”
(Diehl, 2001: 96). A míngua (gir kròj = gir
criança / kròj
fraco), por exemplo, pode ser curada por intermédio de uma benzedeira ou do kuiã, pois
é uma doença associada ao ‘sentir-se fraco’, idéia que se opõe à categoria de força, bastante
mencionada nas questões que envolvem a saúde kaingang.
A importância atribuída aos remédios do mato explica-se porque os kaingang
acreditam que as plantas têm
inspiração’ (vida), daí a possibilidade delas curarem as
doenças do espírito’. Uma das técnicas de cura utilizadas pelo kuiã é queimar a erva: “isto
impede que a ‘sombra’ da doença retorne, devido ao forte cheiro da planta”.
Os kaingang
salientam que os remédios da biomedicina freqüentemente minimizam a dor, mas não
curam os males que excedem a dicotomia mente-corpo.
As doenças da carne, estas sim
podem ser curadas pelos especialistas brancos, pois eles ‘cortam’ e operam, entretanto,
não conseguem ‘consertar’ o espírito
afirma um dos velhos da Aldeia Kondá.
98
No início da década de 90, Buchillet (1991: 25) salientou que as doenças deveriam
ser analisadas a partir do indivíduo (de sua singularidade pessoal e social) e de seu contexto
(as conjunturas específicas – pessoais e históricas – e as representações do mundo natural e
sobrenatural). Deste modo, toda interpretação da doença estaria imediatamente inscrita na
totalidade de seu quadro sócio-cultural de referência. Tal constatação tem sido cada vez
mais reafirmada nos estudos antropológicos voltados à saúde e à doença das populações
indígenas. Assim, as medicinas (por nós) chamadas tradicionais deixaram de ser vistas
como um setor autônomo, análogo ao setor biomédico e passaram a ser entendidas como
mais um elemento presente nos processos de adoecimento e cura. Como sublinharam
Dozon & Sindzingre “apesar de sua inegável especificidade como processo orgânico
interno (...) a doença, evento individual singular por excelência, é imediatamente inscrita
num contexto pragmático e simbólico, num corpo socializado” (Dozon & Sindzingre, 1986:
46 apud Buchillet, 1991: 25). Seguindo esta perspectiva, procuro demonstrar adiante como
em sua práxis os kaingang interpretam e atuam em busca da resolução de seus problemas
de saúde, elucidando a constante preocupação com a qualidade de suas relações sociais.
99
III. 4) Curas Espirituais
Mesmo que a doença esteja associada ao impedimento de se realizar tarefas básicas
e físicas do cotidiano, como dissemos, o corpo (
hã) existe diante da presença do
espírito (
kumbã) assim, é o acometimento deste último que impossibilita o pleno exercício
do corpo. Algumas das doenças que afligem os kaingang têm como causa o rompimento
temporário do corpo com o seu espírito. Coerente a tal ideologia, as curas realizadas nas
igrejas evangélicas têm sido consideradas como um dos principais recursos para tratar uma
grande variedade de enfermidades que afligem o corpo, o espírito e acrescento, a própria
sociedade.
Diehl (2001) e Almeida (2004) observaram em suas pesquisas que há uma evidente
dicotomia entre os kaingang católicos e os evangélicos. Eles inclusive apontaram que,
apesar destas diferenças não serem rígidas na utilização das terapias de cura, os católicos
geralmente dariam preferência ao uso dos remédios do mato e de especialistas nativos,
enquanto os evangélicos enfatizariam o uso do serviço biomédico e a intervenção do pastor
nos casos mais graves. Na Aldeia Kondá, não observei esta mesma distinção nas questões
que envolvem a religião e a saúde. Lá, as pessoas parecem circular entre as religiões e entre
os diferentes sistemas de cura e cuidados, da mesma forma que ainda circulam entre as
aldeias e as cidades que fazem parte do território tradicional kaingang.
Mesmo os pastores kaingang utilizam os remédios do mato, assim como, entre os
católicos verifica-se a utilização freqüente das técnicas da biomedicina. Portanto, não se
pode estabelecer uma ruptura radical entre as práticas de uns e de outros, pois o contexto de
100
pluralismo médico implica na aceitação da idéia de intermedicalidade
80
, onde o sistema
médico considerado “tradicional” não pode ser separado dos demais. Como explica Juarez:
“É bom eles [outros kaingang da comunidade] entenderem um pouco: não
prejudicar o remédio caseiro
[remédio do mato] com essa coisa da igreja,
porque o remédio caseiro ele é um remédio que foi criado na comunidade,
qualquer um pode dar o remédio. Eu sem ser pajé, sem ser nada, posso dar
remédio para o meu filho, pois foi minha mãe que me ensinou a dar remédio
para os filhos. Então, como é que eu vou deixar de dar remédio para meus
filhos? Por isso, deve se dar remédio e acompanhar o processo da igreja
também, os dois têm que andar juntos. O remédio seria para o corpo e a
igreja para algo mais espiritual”.
De modo geral, as narrativas kaingang informam que as curas realizadas nas igrejas
evangélicas o bastante eficazes. Ouvi relatos que se referiam principalmente à cura de
doenças advindas de feitiços e do uso abusivo de bebidas alcoólicas (ainda que algumas
pessoas também fizeram referência à cura de doenças como a poliomelite e a meningite).
Como já enfatizei, os padecimentos provocados por feitiços estão intimamente relacionados
à sociabilidade da aldeia, da mesma forma, a ênfase dada pelos evangélicos à cura daqueles
que abusam do consumo de bebidas alcoólicas, também parece estar relacionada à
dimensão das relações sociais. Afinal de contas, as bebidas falam, sobretudo, da ingestão de
substâncias que além de afetarem o corpo, afetam o espírito e as relações entre parentes
fragilizadas com as possíveis brigas e desentendimentos provocados pelo excesso de
bebidas. Segundo o pastor de uma igreja evangélica da Aldeia Kondá:
“para curar das
bebidas não tem cacique, nem polícia que resolva, só a igreja mesmo”.
Normalmente, os relatos sobre as curas nas igrejas evangélicas são construídos em
torno de longas e dramatizadas descrições a respeito do processo de adoecimento, do
80
Greene (1998) define intermedicalidade como a multiplicidade de atores e de negociações de poderes que
fazem parte das interações entre sistemas de cura e cuidados.
101
envolvimento dos parentes, do apelo ao plano espiritual como última alternativa e da
experiência de comunicação com Deus. Os relatos de Maria Fernanda e Cláudia expressam
este tipo de argumento:
“Minha filha primeiro tinha tuberculose, porque a avó que cuidou dela
também tinha. Depois ela começou a ter ataques epilépticos porque o pai
também tinha. Os médicos disseram que ela tinha que fazer uns exames, mas
não garantiam sua vida. Um dia eu disse: ‘Deus, se quiser tirar a vida da
menina tira, mas não deixa ela sofrer mais’. Aquela noite fui dormir e
quando era quase meia-noite acordei com um estrondo que ouvi no céu, era
em cima da casa. Me vi andando em um campo verde e uma mão apontava
para frente, para eu seguir. estava a menina,
[sua filha], sentada de
costas. Aí olhei para o céu e apareceu o número um e o número três.
Perguntei ao Senhor o que significava e Ele respondeu que a menina
estava com treze anos e que ela seria minha. Ele apenas estava testando
minha fé. A partir deste dia aceitei ao Senhor e a menina realmente ficou
boa, não é muito animada por que tomou bastante remédios foi o
médico mesmo que disse”.
(Maria Fernanda, 36 anos)
Maria Fernanda relata que as duas doenças (tuberculose e ataque epilético) que
afligiram sua filha foram transmitidas por membros da própria família devido à
proximidade dos vínculos entre os parentes. Através de um sonho o Senhor lhe revelou que
a menina ficaria curada, mas em contrapartida, ela teria que realmente se comprometer com
a religião evangélica.
O relato de Cláudia, que segue abaixo, também explicita a idéia de que Deus ‘testa’
as pessoas através do adoecimento de algum membro da família, geralmente as crianças
porque os kaingang as consideram mais frágeis que os adultos. Neste caso, a doença de sua
filha foi provocada por um feitiço que quase a levou à morte. Sua cura somente aconteceu
porque pastores evangélicos a socorreram e Cláudia realmente se comprometeu com a
conversão à religião evangélica.
102
“Minha filha mais velha tinha três anos quando foi parar no hospital. Os
médicos tinham dito que ela estava morta, a tinham enrolado em um
lençol branco. Pediram se eu queria esperar o pai para levá-la, disse que
sim. Tinha uma irmã crente ali que perguntou qual era o problema.
[Marli já
era crente, mas ainda não tinha aceitado por completo]
Falei que minha filha
tinha morrido. Perto havia uma igreja Assembléia e esta irmã foi buscar
dois pastores para rezar pela criança. Quando estes chegaram no hospital
disseram que eu deveria realmente me converter, dar o voto porque Deus
estava me testando, a menina estava dormindo. Os pastores rezaram,
escreveram o nome dela em um pedaço de papel, fizeram o voto e botaram
dentro da blusa da menina. Em seguida ela começou a abrir os olhos. O
pessoal do hospital não acreditava. Dali fui na igreja e revelaram que tinha
macumba para cima de mim. É por isso que hoje não levanto um dedo para
a minha filha. Ela faz tudo, limpa a casa, lava a roupa. Até os três anos
praticamente não tinha cabelo, depois que fiz o voto ela nunca mais ficou
doente e o cabelo cresceu”.
(Claúdia, 38 anos)
Percebe-se em ambas narrativas que após o sucesso da cura através da religião
evangélica, as pessoas assumem de fato essa prática religiosa. Deste modo, o acometimento
de uma grave doença e sua cura quase milagrosa marcariam um certo tipo de iniciação na
religião evanlica que implicaria necessariamente na mudança de comportamento do
indivíduo ‘convertido’. Porém, é importante relembrarmos que, diante a constante
circulação dos kaingang pelas religiões católicas e evangélicas, mesmo que o indivíduo
assuma o comprometimento com uma ou outra religião, esta ‘conversão’ pode ser
passageira. Nesta situação, a comunidade evangélica afirma que a pessoa considerada
‘desviada’ novamente está suscetível a possíveis problemas de saúde, pois quanto mais
‘desviam’, mais predispostos estão aos infortúnios.
Observando os rituais do
Kiki que ainda são realizados na Terra Indígena Xapecó,
Almeida verificou uma interessante relação entre este ritual
, a prática do kuiã e as religiões
atuais que fazem parte do universo das aldeias:
“(...) a ênfase na fala se no ritual do
Kiki e a ênfase na visão se na
prática do
kuiã. (...) Atualmente, tanto o catolicismo popular, agora
103
marcadamente introduzido nas ‘igrejas da saúde’ quanto o pentecostalismo,
estabelecem em seus ritos a conjunção entre fala e visão (...)” (Almeida,
2004: 79, grifos do autor).
A partir desta constatação, observei que, realmente, o pronunciamento do pastor e
os momentos de oração (coletivos) presentes nos cultos evangélicos são atividades
especialmente centradas na fala. todo um investimento na oratória, estimulada entre os
fiéis, quando estes são convidados a darem seus testemunhos diante a comunidade e
realizada na língua kaingang pelo pastor. Além disso, o pastor também exerce um poder
especial sobre os demais evangélicos, pois é o único capaz de ‘ver’ o que está afligindo
determinada pessoa. Assim, a ‘revelação’, comumente entendida como um ‘dom’ do pastor,
explicita o ‘poder do olhar’ que para os kaingang é uma característica fundamental de
superioridade e liderança.
104
III. 5) O modo como os kaingang lidam com o adoecimento e com a cura
Nas sociedades indígenas, geralmente, a explicação e interpretação de uma desordem
corporal fazem referência às regras sociais e culturais do grupo (Buchillet, 1991: 26).
Coerente a tal idéia, Menéndez (2003) afirma que nas dinâmicas de saúde e doença, as
diversas formas de atenção
81
que as pessoas buscam para prevenir, tratar, controlar, aliviar
e/ou curar, têm a ver com as condições religiosas, étnicas, econômicas, políticas, técnicas e
científicas de cada sociedade. As atividades econômicas, a existência de determinadas
enfermidades, curáveis ou não, assim como a busca de soluções para questões existenciais
conduz à freqüente criação ou resignificação das formas de atenção a saúde. Essa
diversidade de formas de atenção à enfermidade mostra-se importante não devido à sua
eficácia em si, mas especialmente, devido à sua existência. Desse modo, assumindo a
existência de um processo dinâmico entre as atividades relativas às diferentes formas de
atenção a saúde, pode-se dizer que elas nem sempre funcionam de modo excludente, mas
principalmente através de relações que são significativas para a sociedade que as pratica.
Menéndez também sugere que para compreendermos os processos de saúde e doença
em sua plenitude é interessante identificarmos e analisarmos os itinerários terapêuticos que
são praticados por cada sociedade. A partir desta sugestão e da variedade de formas de
atenção a saúde que me foram relatadas nos episódios de adoecimento e cura, escolhi
descrever um acontecimento particular observado no trabalho de campo
a doença de
Juarez e o itinerário terapêutico buscado por ele e sua família
porque tal fato me parece
81
Por uma questão metodológica, Menéndez divide as formas de auto atenção naquelas de sentido estrito
representações e práticas aplicadas intencionalmente pelo grupo no processo terapêutico e as de sentido lato
utilizadas a partir dos objetivos e das normas estabelecidas pela própria sociedade, incluindo o preparo e a
distribuição dos alimentos, os cuidados com a casa, com o corpo, com os mortos, as regras de casamento,
reciprocidade, etc. (Menéndez, 2003: 199)
105
especial para ilustrar aspectos centrais do modo como os kaingang procuram solucionar
seus problemas de doença. Através da etnografia deste caso, pode-se perceber porque a
dimensão que engloba a saúde e a doença ocupa um lugar de destaque no plano social dos
kaingang.
∗∗∗∗∗
Juarez já foi cacique dos kaingang da Aldeia Kondá e em função de sua atuação é uma
das pessoas mais respeitadas na comunidade. Sua família é numerosa e importante, foi nela
que se pautou o relatório antropológico para identificação das famílias kaingang residentes
na cidade de Chapecó constatando, principalmente através do método genealógico, a
“indianidade” destas pessoas.
Desde 2002 Juarez procura solucionar as dores do corpo advindas do reumatismo. Não
recorda exatamente quando começaram, mas sabe que seu pai, uma de suas irmãs
(Margarete) e um de seus irmãos (Pablo) também tiveram o mesmo problema. Tal
informação, segundo a lógica nativa, aponta para a possibilidade de esta ser uma doença
de família”. Conforme os familiares, a doença que atingiu pai e filhos é resultado de
kanê
màg
(‘olho grande’)
82
uma categoria constantemente acionada pelo grupo que indica a
82
Kanê màg entre os kaingang apresenta uma conotação parecida com o “olho grande/ mau olhado” em nossa
sociedade, mas entre eles traz conseqüências bem mais sérias. Esta categoria pode também fazer referência a
um olhar extremamente observador, atento, não com caráter invejoso, mas com intuito curioso e
principalmente, fofoqueiro. Chamar alguém de kanê màg é sempre um insulto. O kanê màg com caráter
invejoso pode ocasionar enfermidades ou outros infortúnios a uma pessoa ou família, principalmente porque
nestes casos, ele está associado à feitiçaria. O “poder do olhar” entre os Kaingang é dado etnográfico
conhecido de vários estudiosos do grupo, no entanto poucos deram significativa relevância à questão. Sobre a
concepção cosmológica deste aspecto (de acordo com o Mito do Sol e da Lua) ver Oliveira, 1996:14.
106
realização de um possível feitiço, que dificuldade em diagnosticar e tratar a doença
através das técnicas da biomedicina
83
.
A categoria
kanê mág, sendo uma expressão da idéia de feitiço
84
, demonstra que assim
como a harmonia é essencial para o desenrolar da vida social, também os conflitos e a
ruptura de vínculos fazem parte das dinâmicas da sociabilidade kaingang. Overing e Passes
(2000) ressaltam que a fonte das condições de paz e fertilidade da vida social também nasce
da violência, assim, a presença desta é potencialmente preciosa para a sociabilidade. A tese
destes autores sugere que para os povos indígenas, o sucesso de suas relações é medido pela
extensão daquilo que a ‘convivialidade’ tem realizado. No entanto, a ‘convivialidade’ e a
socialidade não se baseiam apenas no amor e no bem, mas também na contínua negociação
de características negativas da vida comunitária, como raiva, ciúmes, ódio e ganância que
levam em direção à promoção daquilo que é positivo. Em função disso, pode-se dizer que,
na sociedade kaingang, a doença que vem com o feitiço
provocado por alguma pessoa ou
família que tem inveja dos bens materiais ou cargos de poder adquiridos por outrem
representa uma forma interna de controle social, onde aqueles que se destacam
(politicamente e/ou materialmente) dos demais, ao mesmo tempo em que desfrutam de
prestígio, também passam a temer possíveis infortúnios. Ivonete (esposa de Pablo e
cunhada de Juarez) ao falar do período em que seu marido estava doente enfatizou que
“o
‘mal-feito’
[feitiço] feito para Pablo foi tirar as coisas dele. Tudo que tinham [bens
83
Quando a biomedicina não apresenta uma explicação coerente e concreta sobre determinada doença, os
kaingang geralmente a explicam como resultado de kamàg. Nestas situações, a cura realizada nas igrejas
evangélicas ou o trabalho realizado pelo kuiã são considerados como as alternativas mais eficazes.
84
Almeida (2004: 175) assinala que para os kaingang o feitiço pode ser realizado por inveja ou conflito
direto, deslocando-se através do ar, principalmente com o vento. Segundo as informações obtidas por este
autor, os recursos utilizados para evitar o contato direto com o ar contaminado quando o corpo está suscetível
ao mal são: fazer duas aberturas nas residências para o ar ‘passar direto’; benzer a pessoa ao amanhecer no
primeiro momento que sai de casa; e pintar o corpo em momentos de possíveis vulnerabilidades. Em minha
pesquisa não obtive informações sobre os recursos utilizados para proteger a pessoa vulnerável ao mal,
contudo, o registro de Almeida é de extrema relevância para a literatura Kaingang.
107
materiais] foi na medicina, pagando remédios”. Além de a doença acometer Pablo
fisicamente, todos os bens materiais conquistados pela família foram empregados na busca
por sua cura.
Sobre o modo como seus familiares se curaram da mesma doença que lhe afligia,
Juarez informou que seu pai e Pablo tomaram remédio do mato, enquanto que Margarete
curou-se por intermédio da igreja Assembléia de Deus. Esta observação do enfermo deve
ser salientada porque permite a reflexão sobre o seu próprio itinerário terapêutico.
Durante os anos de 2002 e 2003, Juarez freqüentou o posto de saúde da cidade diversas
vezes, sendo que em 2003 chegou a fazer seis consultas mensais seguidas. Por prescrição
médica, ele fez uma série de exames e foi medicado com comprimidos e injeções para dor.
Durante seu relato, afirmou que em nenhum momento deixou de sentir dores pelo corpo,
principalmente nas ‘juntas’
85
. Apesar das dores constantes durante estes anos, nos últimos
tempos elas haviam se agravado, comprometendo sua mobilidade e preocupando boa parte
da comunidade, especialmente os membros de seu grupo doméstico.
Nestes dias, seus irmãos Pablo e Margarete e o cunhado Rodrigo (marido de
Margarete) insistiram para que Juarez fosse participar das atividades da igreja o Senhor
é Deus Universal, cuja sede é na casa de Margarete e onde os cunhados Rodrigo e Pablo
são o primeiro e o segundo pastor, respectivamente. Acreditavam que a presença de Juarez
na igreja pudesse trazer a cura para seu problema, afinal de contas, ele já havia sido
‘crente’, mas tinha ‘desviado’ por alguma razão que ninguém recordava (ou não queriam
explicitar). Em função de Juarez ter abandonado a igreja evangélica, os parentes ‘crentes’
afirmavam que esta era a principal razão pela qual suas dores tinham voltado e estavam
cada vez mais intensas.
85
‘Juntas’ é o termo em português que os kaingang utilizam para fazerem referência às articulações.
108
Entre os kaingang evangélicos vigora a idéia de que suas igrejas são locais
privilegiados para a cura do corpo e do espírito. Esta compreensão é condizente com o
entendimento de que corpo e espírito constituem a pessoa kaingang, sendo o espírito
responsável pela vida dada ao corpo. Neste sentido, a cura nas igrejas ocorre porque o
pastor intervém pelo doente, orando e explicitando ao restante da comunidade evangélica
que o doente está arrependido por ter
‘desviado’ das condutas sociais consideradas ideais.
Após a exposição da pessoa
‘desviada’ à comunidade, ela compromete-se a seguir os
princípios do grupo e é alertada que se
‘desviar’ novamente, correrá o risco de voltar a
sofrer os mesmos infortúnios anteriores, ou outros ainda piores. Diversas narrativas
kaingang enfatizaram que o abandono das atividades nas igrejas evangélicas é uma das
principais causas de doenças ou mesmo de mortes de parentes e/ ou conhecidos. Além
daqueles que abdicam os cultos evangélicos, o consumo de bebidas alcoólicas também é
considerado como uma das principais falhas dos
‘desviados’’
86
. Aqui, a causalidade das
doenças é associada diretamente ao indivíduo, isto é, à infração de condutas morais
impostas pela religião.
Almeida (2004: 260) sugere que a imposição do sistema de ‘disciplina dos crentes’,
que suspende os
‘desviados’ da participação nas atividades da igreja, ou seja, no
pronunciamento nos momentos do culto, nos cantos e na pregação, seria uma forma
complementar de manter a ordem estabelecida na aldeia pela liderança local
87
. De forma
similar, Journet (1995) enfatiza que entre os Baniwa a conversão ao evangelismo representa
uma forma de retorno às exigências morais e às rigorosas condutas que outrora se
86
Dentre as proibições impostas aos evangélicos também se incluem assistir televisão, participar de bailes e
jogos de futebol.
87
O consumo abusivo de bebidas alcoólicas é um dos maiores problemas entre os kaingang, que
freqüentemente ocasiona brigas na comunidade e entre os próprios familiares.
109
concretizavam nos rituais de iniciação masculina e que, hoje, se atualizariam nos cultos e
conferências religiosas (Journet, 1995
apud Garnelo, 2003: 83). Por sua vez, entre os Enxet
população indígena do Paraguai as bebidas alcoólicas são vistas como um elemento que
provoca a violência e a raiva no indivíduo. Quando a pessoa se conta dos atos que
cometeu bêbada, ela fica com “vergonha” e uma de suas possíveis reações é abandonar a
aldeia. Para este grupo, a vergonha é freqüentemente descrita como se fosse um mecanismo
regulador da sociedade (Kidd, 2000: 127). Entre os Kaingang, a “vergonha” também é um
sentimento bastante comum, principalmente quando infração de alguma regra social
(casamentos dentro da mesma metade, brigas, consumo abusivo de álcool, violência
doméstica e adultério). Neste sentido, o controle exercido pelas igrejas evangélicas
kaingang sobre a conduta dos fiéis se apóia fundamentalmente na categoria “vergonha”,
como regulador dos comportamentos socialmente desejáveis.
Voltando ao caso de Juarez, além de seu retorno à igreja, o grupo doméstico também
lhe aconselhou a utilização de alguns remédios do mato específicos para o problema.
Margarete e sua mulher foram à casa de um kaingang conhecedor de ervas e solicitaram
que ele fornecesse os
venh-kagta necessários a cura do doente. Este índio foi ao mato e
trouxe duas ervas que considerava indicadas para o problema: a casca de uma árvore
específica para o preparo de chá e as folhas de outra planta que serviria para lavar o corpo,
isto é, banhar as ‘juntas’ de Juarez. Um aspecto interessante neste processo é que Juarez
também é um grande conhecedor dos remédios do mato, mas mesmo sabendo quais ervas
eram recomendadas para o seu mal-estar, não poderia procurá-las ou coletá-las para si
próprio, devendo esperar que algum parente as providenciasse. Este fato reforça a idéia de
110
que entre os kaingang a rede de solidariedade é uma condição para a manutenção dos
vínculos afetivos entre os parentes de um mesmo grupo doméstico.
Após receber as ervas providenciadas pelos parentes, Juarez passou a usá-las
regularmente, sendo que juntamente com o chá da casca da árvore, ele também
administrava comprimidos para dor, receitados pela auxiliar de enfermagem. Ainda naquele
final de semana, resolveu aceitar o convite para participar do culto na igreja “Só o Senhor é
Deus Universal” e junto com ele levou sua família nuclear: a mulher e os filhos.
Estive presente nesta ocasião e fiquei impressionada com a ênfase dada durante todo o
culto à dinâmica social. Ao longo do ritual, as pessoas eram estimuladas, tanto pelos
pastores como pelos demais presentes, a exporem-se diante das demais, isto é, a
desabafarem sobre seus problemas, contarem suas experiências, chorarem, gritarem e
cantarem. Tais gestos, falas, sussurros, lágrimas e gritos devem ser entendidos como
expressões de sentimentos que antes de serem fenômenos exclusivamente psicológicos ou
fisiológicos, são fenômenos sociais. Mauss (1981b) em seu artigo sobre “A Expressão
Obrigatória dos Sentimentos” havia alertado que os gritos, as lágrimas e os risos são
simultaneamente manifestações ornicas, extroversões de sentimentos, além de
exteriorizações de idéias e de símbolos coletivos.
“Tais expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força
obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo são mais do que simples
manifestações, são sinais, expressões compreendidas, em suma, uma
linguagem. (...) A pessoa, portanto, faz mais do que manifestar os seus
sentimentos ela os manifesta a outrem, visto que é mister manifestar-lhos”
(Mauss, 1981: 332).
Basicamente, o culto visando a ‘reconciliação’ de Juarez com a igreja pode ser
descrito da seguinte maneira: Juarez, por estar buscando a ‘reconciliação com Jesus’
111
(no meu ponto de vista mais com os parentes do que com Jesus) era a figura central
dentre os fiéis, assim, sentou-se à frente, isolado dos demais. Nos bancos seguintes
sentaram os homens à esquerda do altar e as mulheres, à direita (as crianças estavam
misturadas em ambos os lados). Margarete (como auxiliar dos pastores) tomou o
microfone e agradeceu a presença de todos, sobretudo dos visitantes (citou o nome de
cada um). Ela começou a cantar uma música enquanto a platéia se ajoelhava e orava.
Estes momentos de oração são centrais para que o culto atinja sua finalidade, a
ordenação espiritual e social. Aqui, a prece não segue uma estrutura coletiva, isto é,
uma oração comum pregada por todos, mas ela é livre e individual. Mesmo assim,
naquilo que o fiel diz, nada mais senão frases consagradas, que segundo Mauss,
falam explicitamente do social (Mauss, 1981a). De acordo com este autor, se poderia
dizer que, mais do que uma comunicação a ser estabelecida com o transcendente, com o
divino, a intenção dos kaingang parece ser comunicar-se com os parentes que também
estão ali presentes. É nestas horas que as pessoas, simultaneamente, discorrem sobre
seus problemas pessoais, sobre os desentendimentos internos gerados nas relações
afetivas, falam de seus sentimentos e emoções em alto e bom tom, para que uns saibam
o que se passa com os outros. Como disse Mauss,
“na prece o fiel age e pensa. E ação e pensamento estão estreitamente
unidos, jorram num mesmo momento religioso, num e mesmo tempo. (...)
A oração é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento que tem uma
meta e um efeito; no fundo, é sempre um instrumento de ão. Mas age
exprimindo idéias, sentimentos que as palavras traduzem externamente e
substantivam” (Mauss, 1981: 230).
As preces kaingang cumprem justamente tal função, ordenam através do
pensamento e da ação as emoções e relações sociais que permeiam o cotidiano. No dia-a-
112
dia kaingang a boa convivência é uma prática que deve ser buscada. As pessoas que geram
algum atrito normalmente recebem olhares reprovadores do restante da comunidade. Vale
entre os Kaingang aquilo que Santos-Granero (2000) mostrou para os Yanesha da
Amazônia peruana: qualquer fratura nas relações íntimas afetivas provocará emoções
intensas como raiva, ódio, vergonha e culpa, todos sentimentos que vão de encontro à
continuação da “convivialidade”.
Overing e Passes (2000) anunciaram que a antropologia deveria prestar mais
atenção no modo como a estética da virtude e a vida afetiva, propriamente dita, constituem
as éticas da sociabilidade indígena. Assim, também para os kaingang, as risadas e choros, o
amor e o ódio, o carregar e alimentar, as preces, conversas, cantos e brincadeiras fazem
parte da “estética dos acordos interpessoais” (Overing e Passes, 2000: 08). Neste sentido,
entendo que o culto evangélico entre os kaingang se manifeste como ordenação espiritual
sim, mas também e, principalmente, como reordenação social. A própria noção de cura,
freqüentemente presente nas narrativas dos fiéis e/ou do pastor, está associada não apenas à
cura corporal e espiritual, mas igualmente à “cura social”, resultante da reconciliação entre
parentes e, em alguns casos, vizinhos.
Pelo que pude observar, nas diferentes igrejas evangélicas que se encontram dentro
da Aldeia Kondá, são os grupos domésticos que centralizam estas atividades. Tal
constatação possibilita fazermos um paralelo entre a organização social nativa e aquela
presente nas igrejas em si. Para recordar:
“(...) as etnografias e os registros históricos indicam que o grupo
doméstico constitui a unidade social fundamental kaingang. Tal
grupo se apresenta como uma unidade social territorialmente
localizada, dotada de autoridade política que atua no contexto das
relações entre diversos grupos domésticos. É a partir da articulação
113
entre essas autoridades que se constituem as unidades sócio-políticas
maiores, os grupos locais e as unidades político-territoriais”
(Fernandes, 2003b: 23).
No caso da igreja “Só o Senhor é Deus Universal” são duas famílias nucleares a
de Rodrigo e a de Pablo (cunhados) – que dirigem as atividades. Estas famílias (incluindo o
pai de Margarete, Pablo e Juarez) somadas agora, à família de Juarez formam o grupo
doméstico central que compõe a estrutura social da igreja. Em vista disso, fica claro
entender porque o retorno de Juarez à igreja foi tão celebrado. Desde que ele se afastara,
havia rompido com o princípio básico da organização social kaingang centrada no grupo
doméstico. Assim, após o culto, os vínculos sociais entre Juarez e os parentes estavam
reatados. De acordo com o próprio Juarez, nos dias seguintes ao evento ele estava se
sentindo bem melhor, o que indicava que os remédios do mato e a reaproximação com a
igreja estavam lhe proporcionando resultados positivos em sua busca pela cura. Tal
colocação deve ser realmente levada a sério, visto que aponta justamente para aquilo que
emana como significativo para os kaingang: a manutenção de seus laços afetivos e sociais
como condição básica para a ‘convivialidade’.
A partir da etnografia do caso de Juarez podemos afirmar que o contínuo desafio da
busca pela cura, implica no uso de distintas terapias que competem e se complementam
visando, sobretudo, a resolução da enfermidade. O uso simultâneo destas práticas de cura
(remédio do mato, remédio industrializado, igreja) demonstra que a preocupação kaingang
não é somente com o corpo doente do indivíduo, mas também com a resolução de questões
sociais que muitas vezes estão no centro da causalidade de algumas enfermidades. Aqui, o
que nos interessa sublinhar é que a cura extrapola os limites do corpo e engloba a própria
114
organização social kaingang. Corpo individual e corpo social aparecem juntos, relacionados
um ao outro como condição para a vida kaingang.
Há ainda outros dois aspectos a salientar: primeiramente, cabe observar que o itinerário
terapêutico não é apontado somente pelo doente, mas por parte de seu grupo doméstico que
também se envolve com a situação, orientando e participando dos rumos, cuidados e
práticas que podem resultar na cura do familiar; em segundo lugar, cabe resgatar as
ponderações de Menéndez feitas no início deste capítulo, onde ele afirma que as diversas
formas de atenção à saúde correspondem à dinâmica do processo de adoecimento e levam
em conta, além dos fatores já citados pelo autor, compreensões próprias sobre a causalidade
dos padecimentos e experiências anteriores vivenciadas pelos sujeitos envolvidos com o
acontecimento. De fato, na lógica kaingang, não há incoerência entre as distintas formas de
buscar a cura de Juarez, pois cada uma delas ocupa um espaço específico nas concepções e
práticas do grupo que se atualizam cotidianamente.
115
III. 6) Alinhavando alguns pontos
A história Kaingang traçada desde a ocupação do Planalto Meridional até as
recentes investidas de reapropriação desses espaços, tradicionalmente reconhecidos,
explicita uma noção peculiar de território. Como alguns pesquisadores demonstraram, o
território tradicional kaingang transcende o espaço físico da terra e se define,
principalmente, pelas relações sociais, políticas e cosmológicas que ali são postas em
prática (Tommasino, 1995, 1998a, 2000; Fernandes, 2003b; Rosa, 1998, 1999). Seguindo
tal abordagem, procurei mostrar que também nas questões que envolvem a saúde e a
doença, as relações sociais são centrais no modo kaingang de compreender e lidar com
estas dinâmicas.
A partir do modelo de organização social kaingang enfoca-se alguns aspectos principais
que permitem articular os episódios de adoecimento e de cura com as relações sociais
kaingang. O dualismo kaingang fundamenta-se em princípios sociocosmológicos também
expressos nas trocas matrimoniais. A sociedade é dividida em duas metades exogâmicas,
patrilineares, complementares e assimétricas, designadas
Kamé e Kainru. Assim, a
descendência patrilinear e a exogamia entre as metades podem ser apontadas como as
formas sociológicas dos princípios da identidade e da diferença, respectivamente. Da
mesma maneira que outros povos Jê, o princípio ideal de residência kaingang é a
uxorilocalidade. Desse modo, os kaingang articulam os grupos locais dispersos
territorialmente, propondo a aliança entre distintos grupos domésticos através do casamento
(Fernandes, 2003a).
A qualidade das relações sociais é extremamente importante para o grupo. O próprio
mito de origem do grupo, antes de apontar para a criação do mundo e/ou das pessoas,
116
orienta os iambré Kamé e Kairu a desempenharem papéis ideais de amizade, cooperação,
complementaridade e reciprocidade. Entre os membros de um mesmo grupo doméstico
também um grande investimento para que vigore a harmonia e ajuda tua, que para
os kaingang, a troca de substâncias (entre elas o sangue) aproxima os membros de uma
mesma família.
Os kaingang informaram que as doenças podem passar entre os parentes porque
“um
cuida do outro”
e também porque às vezes, “a família está marcada”. Para eles, a
doença é um evento social, seja porque envolve todos os membros da família na busca pela
cura de um indivíduo, seja porque alude à ‘contaminação’ de todos os familiares. Além da
importância dada aos laços sociais, os laços provenientes do corpo, das substâncias,
complementam a compreensão kaingang sobre os vínculos e afetos que se criam entre os
parentes. No entanto, se por um lado, os consangüíneos podem ‘contaminar-se’
mutuamente, por outro, os afins são acusados de provocar doenças através de feitiços.
Diante disso, a fragilidade dos vínculos sociais entre os afins ou entre os próprios parentes
pode gerar sérios problemas que envolvem a saúde dos indivíduos.
Dentro da família nuclear, a mãe é a responsável por ensinar os filhos a ‘usar a marca’.
Caso ocorra a infração da regra de exogamia, os kaingang acreditam que as famílias
envolvidas tendem a ‘enfraquecer’, pois o casamento endogâmico demonstra justamente
que tal ensinamento foi violado. Os ensinamentos passados no interior da família nuclear
são os alicerces da boa convivência entre os kaingang da aldeia. Aqueles que não cumprem
as regras prescritas pelos ancestrais Ka e Kairu, pelas lideranças da aldeia e pelas
recentes condutas pregadas pela filosofia das igrejas evangélicas estão predispostos ao
‘enfraquecimento’ e conseqüentemente às doenças. Da mesma forma que o casamento
endogâmico enfraquece as famílias, as doenças provocadas pela ruptura dos vínculos
117
sociais e das normas que regem a boa convivência, deixam o indivíduo e seu grupo
suscetível a possíveis padecimentos.
Como em toda sociedade, a infração de regras entre os kaingang também é essencial
para o desenrolar da vida social. Assim, do mesmo modo que os kaingang conferem o
nome
péin para fortalecer os filhos oriundos dos casamentos endogâmicos possibilitando
a inclusão destes indivíduos na sociedade
, a ruptura dos vínculos sociais é contornada a
partir da possibilidade de se curar estas doenças por intermédio das igrejas evangélicas que
atualmente ocupam um papel central na estrutura social Kaingang. È no interior destas
igrejas que os kaingang têm atualizado a organização social tradicionalmente reconhecida
nos grupos domésticos, nos grupos locais e nas unidades político-territoriais. As igrejas
evangélicas centram-se em torno de grupos domésticos principais que ali organizam,
conduzem e articulam suas relações.
Portanto, diante da ruptura dos laços sociais entre os membros de um mesmo grupo
doméstico, a retomada destes vínculos restabelece a saúde dos indivíduos e do próprio
grupo, que anteriormente estava fragilizada. Pode-se dizer então, que para os kaingang
evangélicos, evocar a ‘reconciliação com Jesus’ seria apenas uma forma simbólica de
expressar o que de fato lhes interessa: o reatar dos laços afetivos entre os parentes em si.
De modo geral, os kaingang manifestam a idéia de que as doenças estão envoltas em
um caráter relacional, seja porque ocorrem a partir da quebra de laços sociais considerados
fundamentais para a ‘convivialidade’ do grupo, seja porque estão relacionadas a tudo aquilo
que diz respeito ao contato com a sociedade envolvente. Quanto a este último aspecto, o
que parece estar por trás é justamente a inexistência de relações de troca e a ausência de
criação de vínculos sociais entre brancos e kaingang. Os kaingang dão significativo valor
118
ao estabelecimento dos laços afetivos e sociais, pois para eles, corpo individual e corpo
social estão entrelaçados, marcando sua interdependência como condição para o equilíbrio
da vida.
A etnografia do caso de Juarez procurou demonstrar que o uso de distintas terapias de
cura visa (remédio do mato, remédio industrializado, igreja), obviamente, a resolução da
enfermidade, mas não envolve somente o corpo doente do indivíduo, como também da
própria sociedade. Problemas de ordem social muitas vezes estão no centro da causalidade
de algumas enfermidades, assim, a cura extrapola os limites do corpo e engloba a própria
organização social kaingang.
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ênfase deste trabalho procurou seguir algo que Schaden havia observado durante
sua vivência junto aos kaingang do Paraná: sem sombra de dúvidas, a vida religiosa deste
grupo apresenta como centros de elaboração cultural o culto aos mortos sim, mas também a
organização da comunidade em grupos de parentesco (Schaden, [1945]1988: 107). Esta
última constatação procura ser o eixo condutor do argumento do trabalho, que a
importância da organização da comunidade em grupos de parentesco não se restringe a
dimensão da religião, mas também perpassa a territorialidade, a política, a saúde e a
doença, sendo uma possível ponte de articulação entre estas distintas esferas.
Dito isso, a aceitação das igrejas evangélicas pelos kaingang e a apropriação
particular que fazem destas estruturas e filosofias parecem ser mais uma das formas pelas
quais eles reforçam a estima de sua organização social. Neste sentido, os cultos evangélicos
são momentos privilegiados para a expressão de sentimentos e valores essenciais à
sociabilidade kaingang. Assim, tais emoções expressam a própria vida social kaingang e
principalmente, as relações que os parentes estabelecem entre si. Para os kaingang, as
igrejas servem como um importante elemento de coesão, onde a dramatização exigida pelo
culto (o choro, as falas, os gritos, os pedidos, os desabafos, as preces, bênçãos e gestos)
reordena os próprios conflitos sociais que permeiam a ‘convivialidade’ das pessoas. Deste
modo, a cura que se realiza no interior das igrejas evangélicas é considerada como uma das
terapias mais eficazes, principalmente quando a doença que aflige está relacionada ao
enfraquecimento do espírito ou ao rompimento dos laços sociais (sobretudo entre os
parentes).
120
Langdon (1998) argumenta que as terapias simbólicas, antes de tudo, estão ligadas
ao “restaurar o sentido de bem-estar” da comunidade. Portanto, a doença deve ser vista
como uma experiência, não apenas física, mas também psicológica, social e cultural.
Algumas das principais doenças mencionadas pelos kaingang fazem referência a ruptura de
vínculos sociais, que além de afligirem o corpo, também afligem o espírito. È por isso que,
para o grupo, a cura do corpo e do espírito está intimamente relacionada com os vínculos
sociais. Aqui, a doença é entendida como algo relacional, isto é, como algo que acontece
diante de um contexto de alteridade, normalmente associado ao contato, à feitiçaria, à
infração de comportamentos socialmente desejáveis e à ruptura de vínculos sociais.
Seguindo tal lógica, o ato de curar implica em restabelecer as desordens que causaram o
mal-estar: retomar um comportamento social considerado ideal ou reatar vínculos sociais
que são importantes para o grupo.
Mesmo que, atualmente, as igrejas evangélicas assumam um importante papel na
busca pela cura, os kaingang não desprezam os remédios da biomedicina e os remédios do
mato, pois ambos representam a cura do corpo, que deve sempre estar associada à cura do
espírito. Assim, apesar das doenças mais preocupantes estarem associadas a problemas de
ordem social, é indissociável a constatação de que as desordens são fisiológicas ou
orgânicas. Vimos que, mesmo que a doença seja atribuída a um comportamento
socialmente desviante ou a uma infração das regras culturais, os kaingang não são passivos
com relação às doenças, isto é, eles manifestam um saber elaborado concernente ao
problema patológico em si. Desse modo, sendo a doença um processo dinâmico que
envolve reinterpretações e negociações no interior de um contexto de pluralismo médico, é
preciso ter presente que dificilmente se distingue o ‘sistema médico tradicional’ dos
demais, pois eles andam juntos no dinâmico processo de busca pela cura. Finalmente,
121
convém sublinhar que o processo terapêutico não retrata a busca individual do doente, mas
o envolvimento de diversas pessoas, principalmente de seu grupo doméstico, que procuram,
a partir de uma seqüência de decisões e negociações, interpretar e identificar a doença
apontando as distintas terapias adequadas ao caso. Conseqüentemente, sendo um processo
de constante negociação e articulação de interpretações, a doença entre os kaingang deve
ser entendida como um evento que é tanto social quanto político.
122
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