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A SÁTIRA MENIPÉIA
NO CONTEXTO DA REVOLUÇÃODE ABRIL:
Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires
POR
Wandercy de Carvalho
Departamento de Letras Vernáculas
Dissertação de Mestrado apresentada ao programa
de Pós-graduação em Letras Vernáculas, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa).
Orientadora: Professora Doutora Ângela Beatriz
de Carvalho Faria.
Rio de Janeiro, maio de 2008
UFRJ/ Faculdade de Letras
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CARVALHO, Wandercy de. A Sátira menipéia no contexto da Revolução de Abril:
Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires. Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas
__ Literatura Portuguesa. Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Maio, 2008, 150 p.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________________________
Prof. Dra. Ângela Beatriz de Carvalho Faria _ UFRJ _ Letras Vernáculas _ (Orientadora)
________________________________________________________________________
Prof. Dra. Dalva Calvão _ UFF _ Letras Vernáculas
________________________________________________________________________
Prof. Dra. Lúcia Maria Moutinho Ribeiro _ UFRJ/ UNIRIO _ Letras Vernáculas
________________________________________________________________________
Prof. Dra. Carmem Lúcia Tindó Ribeiro Secco _ UFRJ _ Letras Vernáculas (Suplente)
________________________________________________________________________
Prof. Dr. Silvio Renato Jorge _ UFF _ Letras Vernáculas (Suplente)
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Carvalho, Wandercy de.
A Sátira Menipéia no Contexto da Revolução de Abril: Alexandra
Alpha, de José Cardoso Pires/ Wandercy de Carvalho. - Rio de
Janeiro: UFRJ/ FL, 2008.
vii, 150.: f; 31 cm.
Orientadora: Ângela Beatriz de Carvalho Faria
Dissertação (Mestrado) - UFRJ/ FL / Programa de Pós-graduação
em Letras Vernáculas, 2008.
Referência Bibliográfica: f. 144 - 150.
1. Sátira menipéia. 2. Ficção Portuguesa Contemporânea.
3. José Cardoso Pires I. Faria, Ângela Beatriz de Carvalho. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Letras. III.
Título.
À ÂNGELA BEATRIZ DE CARVALHO FARIA,
ofereço em agradecimento pelos caminhos apontados e a dedicação
firme e atenciosa, durante todo o processo de construção.
A TONYVAN CARVALHO OLIVEIRA,
eterno mantenedor da minha própria vida. Só eu sei a extensão de
sua importância.
À VANDIR,
irmã querida a quem sou grato pelo apoio contínuo.
A JOSÉ CARDOSO PIRES (in memoriam),
com quem espero ter compartilhado a carnavalização literária.
À VERA LÚCIA SOARES (UFF),
mestra querida e dedicada, que jamais será esquecida. Onde se vê
um pequeno corpo de mulher, leia-se grandes maravilhas na natu-
reza humana.
À SUELY ALVES DOS SANTOS,
amiga e confidente das horas mais difíceis.
AO WANDERLEY,
irmão querido, ainda que sempre muito distante.
RESUMO
Título: A Sátira Menipéia no Contexto da Revolução de Abril: Alexandra Alpha,
de José Cardoso Pires.
Por
Wandercy de Carvalho
Orientadora: Prof. Dra. Ângela Beatriz de Carvalho Faria
Resumo da Dissertação de Mestrado submentida ao Programa de Pós-graduação
em Letras Vernáculas, Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura
Portuguesa.
Em diferentes épocas da História, os escritores sempre encontraram um meio de
escapar da opressão, e a mais poderosa e eficiente arma de combate, usada, para isso, tem
sido o riso. Aristófanes, Juvenal, Petrônio, Sêneca e tantos outros descobriram, no dia-a-
dia, material para focalizar determinadas questões, somente possíveis de serem
apresentadas através da sátira, uma vez que ela estabelece o ponto de interseção entre a
tensão política e a banalidade social. E ao fazer convergir dois procedimentos sociais
tão opostos, a representação satírica possibilita o encontro entre essas diferentes linhas de
forças, o que resulta em distintas formas de fazer transbordar o riso: O cômico, o
burlesco, o dito chistoso, a linguagem de baixo calão, o transformismo e outras
manifestações surgem no espaço ficcional saírico. O nosso objetivo é resgatar, no
romance português contemporâneo, Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires, a
revivescência da sátira menipéia, gênero cômico-sério da Antigüidade Clássica,
privilegiando as características inerentes às personagens que testemunharam a História
recente de Portugal. Como embasamento teórico de apoio, utilizamos, principalmente, os
conceitos bakhtinianos presentes em Problemas da Poética de Dostoievski, A Cultura
Popular da Idade Média e o Renascimento: o contexto de Francois Rabelais e Questões
de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). A análise proposta visa detectar o
riso, a ironia e a carnavalização, a fim de se destacar o propósito autoral e a
desmitificação dos arquétipos político-revolucionários, presentes no contexto da
Revolução de Abril de 1974.
Palavras-chave: Sátira menipéia, José Cardoso Pires, ficção portuguesa contemporânea.
Rio de Janeiro
Maio - 2008
RÉSUMÉ
Título: A Satira Menipéia no Contexto da Revolução de Abril: Alexandra Alpha,
de José Cardoso Pires
Por
Wandercy de Carvalho
Orientadora: Prof. Dra. Ângela Beatriz de Carvalho Faria
Résumé da Dissertação de Mestrado submetido ao Programa de Pós-graduação em
Letras Vernáculas, Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura
Portuguesa.
En différents époques de l'Histoire, les écrivains ont toujours trouvé une alternative
pour échapper à l'oppression, le rire ayant été la plus puissante et efficace arme de
combat utilisée à cette fin. Aristophanes, Juvénal, Pétrone, Sénèque et autant d'autres ont
découvert, à maintes reprises, du metériau pour mettre en evidence certaines questions
qui ne pourraient être présentées qu'à travers de la satire, étant donné qu'elle établit un
point d'intersection entre la tension politique et la banalité social. En faisant converger
deux procédés sociaux si opposés, la répresentacion satirique permet la rencontre de ces
différentes lignes de force, ce qui résulte dans des manière distinctes de faire déborder le
rire: le comique, le burlesque, le dit saillant, le langage argotque, le transformisme et
d'autres manifestations dans l'espace ficcional satirique. Notre but est de repérer, dans le
roman portugais contemporain, Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires, la revivescence
de la satire menipéie, genre comique-sérieux de l'Antiquité Classique, en privilègiant les
caractéristiques propres aux personnages qui ont témoigné l'Histoire récente du Portugal.
Comme appui théorique, nous faisons appel aux présupposés théoriques de M. Bakhtine
et ses études développées sur la satire menipée, particulièrment, dans les oeuvres:
Prolèmes de la poètique de Dostoïévsky, La Culture Populaire au Mayen Age et dans la
Renaissence le contexte de François Rabelais, et Questions de la littérature et esthétique.
L'analyse proposée prétend detecter le rire, l'ironie et la carnavalisation des archétypes
politico-revolucionnaires, que sont présents dans la Revolution d'Avril de 1974.
MOTS-CLÉ: Satire menipéie, José Caroso Pires, fiction portugaise contemporaine.
Rio de Janeiro
Maio - 2008
SUMÁRIO
pág
1 - INTRODUÇÃO.................................................................................... 08
1.1 - Textos de Cardoso Pires: Contatos e encantamentos .................. 08
1.1.1 - Sob a ótica de crocodilos .................................................. 13
1.1.2 - Cenários de histórias sem fim ........................................... 24
1.1.3 - Alexandra Alpha e outras personagens ............................ 34
2 - O gênero sátira menipéia e seus temas ................................................. 44
3 - Destronamentos e Renovações: para além dos contratos sociais ........ 62
3.1 - Sátira e costumes sociais .............................................................. 62
3.1.1 - Religião, sexo e riso ........................................................... 64
3.1.2 - O corpo humano, anatômico e fisiológico ..........................78
3.1.3 - Séries da nutrição e da bebida-embriaguez ....................... 85
3.2 - Figurações da morte em Alexandra Alpha ................................... 95
3.2.1 - Ruínas e infinitudes ......................................................... 97
3.2.2 - Festa popular e renovação ................................................ 112
3.2.3 - Humor e sátira na hora da morte ...................................... 123
4 - CONCLUSÃO ...................................................................................... 141
5 - BIBLIOGRAFIA .................................................................................. 144
1 - INTRODUÇÃO
1.1 - Textos de Cardoso Pires: contatos e encantamentos
O primeiro contato com o romance Alexandra Alpha ocorreu na disciplina:
"Tópicos de Teoria, Crítica e História Literária", ministrada pela professora Doutora
Dalva Calvão, no segundo semestre de 2005, no curso, "José Cardoso Pires: ficção e
crítica", na Universidade Federal Fluminense. Na ocasião, tivemos o prazer de conhecer
também várias obras deste autor: O Anjo Ancorado (1958), Hóspede de Jób (1964), O
Delfim (1968), Balada da Praia dos Cães (1982) e Alexandra Alpha (1988), entre outros.
Os cinco romances apresentados, no que se refere à publicação, ainda que eles tenham
surgido em um período relativamente grande entre si, formam um conjunto temático
quase homogêneo. Ali existem muitas questões relativas à identidade e à memória
relacionadas à política salazarista, assim como outros fatos Históricos.
Durante o decorrer do curso ainda nos foram apresentados os seguintes textos: O
Render dos Heróis (1960), Os caminheiros e Outros Contos, Cartilha do Marialva
(1960), E Agora, José? (1978), De Profundis, Valsa Lenta (1998), e Lisboa, livro de
bordo: vozes, olhares e memorações (1997). Muitas outras informações ainda foram
apresentadas, principalmente aquelas referentes às atividades do autor, as conquistas, os
prêmios, e, principalmente, sobre o ético e o estético; procedimentos marcantes na obra
desse instigante escritor.
Após os primeiros contatos com o romance Alexandra Alpha, percebemos que o
mesmo superava as valiosas questões apresentadas ao longo do curso, e, tal fato nos
despertou o desejo de uma apreciação mais profunda. E no envolvimento com o mundo
ficcional cardoseano, cresceu a percepção de um complexo conteúdo submerso na
9
superfície do romance Alexandra Alpha, ainda intocado, e que "suplicava" surdamente,
como um precioso minério, para ser explorado. E, tão grande foi o impacto causado pela
leitura deste romance, que, desde então, juntando o nosso prévio conhecimento sobre a
menipéia, obtido ao longo da graduação em Latim, e mais a identificação do romance
Alexandra Alpha com outros textos assemelhados, logo decidimos "minerar" a sátira
menipéia no referido romance.
A obra ficcional, (em vida), de Cardoso Pires, ao compreender o período entre 1949
a 1997, insere e recria numerosos acontecimentos contemporâneos ao escritor. Detalhes
marcantes e comentários inesquecíveis revelam questões sociais, culturais e históricas
que remetem a determinados momento sombrios da História recente de Portugal. Tal
postura ou intencionalidade autoral, certamente, desperta, no leitor, maior interesse pela
narrativa, uma vez que ficção e História confundem-se no espaço ficcional.
Em função dessa e de outras questões, muito já foi dito sobre a escrita de Cardoso
Pires, principalmente quando se focaliza o Neo-Realismo. Aqui, entretanto, destacamos
um fragmento crítico extraído da obra de Eunice Cabral sobre um dos romances acima
referidos:
O Hospede de Job é uma narrativa romanesca vinculada a
características da ficção neo-realista, que se afiguram centrais ao cânone
neo-realista, a saber, a configuração de um espaço contínuo como
cenário social constituído pela representação narrativa dotada de
articulação directa com uma realidade empírica de referência, que diz
respeito às condições de vida de camponeses do sul de Portugal, sem
terra e sem trabalho fixo, durante o regime totalitário vigente na década
de 50
1
.
A competente autora, exímia especialista em Cardoso Pires, continua a enumerar
mais algumas das características que determinaram a literatura deste período e, entre
outras, observa-se: "a constituição da personagem em articulação com a realidade
1
CABRAL, E. (1999) p. 119.
10
exterior representada em que se insere, sendo caracterizada sobretudo nos seus contornos
sociais". Com o Neo-Realismo, o texto ganha um novo "material" literário: a questão
social implicada pelos jogos de interesses econômicos e sociais. Na época, o contexto
sócio-político na Europa passava por momentos de transformações, e, dentre elas,
evidenciavam-se as novas idéias políticas e científicas, assim como as lutas sociais,
incorporadas às temáticas dos romances, da autoria de escritores engajados politicamente.
Esse tema, praticamente esquecido pelos presencistas, veio a motivar algumas críticas por
parte da nova "safra" de autores de esquerda; eles começam a questionar a postura
alienante dos membros da revista Presença, que pareciam ignorar a ascensão do nazismo
e do fascismo na Europa. Este cenário de opressão acentuou a consciência de que a
literatura precisava empenhar-se melhor com os fatos relativos às questões sociais, em
uma época marcada pela supressão dos direitos individuais. Estes fatores certamente
contribuíram para despontar nova ideologia envolvendo História e sociedade; tais
ocorrências vão ocasionar o desenvolvimento de uma atitude estética denominada, como
sabemos, de Neo-Realismo.
O tema predominante neste novo ciclo narrativo será o de mostrar que as relações
sociais estão diretamente relacionadas com os fatores econômicos. O Neo-Realismo,
portanto, será uma corrente estética definitivamente marcada por um viés social; nela
existem o claro propósito e objetivos de transformar o que está previamente estabelecido.
Em função da necessária teorização sobre a menipéia, fomos acrescentando outras
leituras àquelas de nosso prévio conhecimento, para ampliarmos ainda mais o saber sobre
os diferentes aspectos satíricos identificados em Alexandra Alpha. Com isso, as várias
modalidades desse gênero foram se destacando no referido texto.
Em Sob a ótica de crocodilos, destacamos alguns aspectos do romance: lá
revelamos José Cardoso Pires fazendo um "balanço" dos últimos anos que antecederam o
11
dia da Revolução de Abril, este exato dia, e alguns anos após esta data. Apontamos ainda
a forma como o romance é apresentado ao leitor; destacamos, principalmente, alguns
aspectos das personagens. Para isso tomamos como base a leitura de A Personagem, de
Beth Brait, obra capaz de orientar o leitor no que diz respeito à reflexão sobre a
concepção das personagens, cuja mudança na diacronia literária varia desde Aristóteles,
passando por Horácio até a mais moderna perspectiva teórica da atualidade. De igual
modo nos apoiamos nas teorias de Vitor Manuel de Aguiar e Silva, particularmente o VI
capítulo de Teoria da Literatura, em que apresenta reflexões críticas sobre o romance.
Em Cenários de história sem fim, falamos sobre o "cenário português"; ali estão
relacionados o espaço social, o psicológico, e o geográfico; locais por onde as
personagens se deslocam, estabelecendo diferentes finalidades; e onde, ainda, é
focalizada a banalização de determinados espaços revestidos de outras significações ou
escapes para outros "mundos".
Em O gênero sátira menipéia e seus temas, apresentamos a parte teórica sobre os
diferentes aspectos do gênero sátira menipéia. Fazemos uma pequena diacronia,
reconhecidamente incompleta sobre a sátira; destacamos, ainda, os principais autores à
época do Império romano. Neste capítulo, apontamos a importância dos estudos de
Bakhtin, particularmente o livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais.
Em Destronamentos e renovações: para além dos contratos sociais, pomos a teoria
em prática; isto é, identificamos, em Alexandra Alpha, algumas séries próprias da sátira,
assemelhadas àquelas encontradas por Bakhtin, na obra de Rabelais. Em razão das
numerosas variações da sátira, este capítulo foi subdividido em dois: 1) Sátira e
costumes sociais: Religião, sexo e riso; O corpo humano, anatômico e fisiológico;
Séries da nutrição e da bebida-embriaguez; 2) Figurações da morte em Alexandra
12
Alpha. Aqui são destacados os mais variados aspectos envolvendo as diferentes relações
entre humor e morte, a saber: Humor e sátira na hora da morte; Ruínas e infinitudes;
Festa popular e renovação.
Durante o percurso da pesquisa, fomos encontrando muitos trabalhos úteis e
significativos. Cada um deles contribuiu com uma fagulha de luz para iluminar este
árduo, e, ao mesmo tempo, prazeroso caminho a ser percorrido, ao longo da estrada que
resultou nesta Dissertação. Dentre estes trabalhos, é possível citar as importantes
contribuições de Maria Lúcia Lepecki: "Ideologia e Imaginário: ensaio sobre José
Cardoso Pires" e de Eunice Cabral: "José Cardoso Pires - representação do mundo social
na ficção (1958 - 82)", a quem fazemos menção, retirando trechos que clarificam o autor
e a obra selecionada para análise.
Além desses, outros significativos trabalhos despontaram como importantes fontes
de informações: "Alexandra Alpha, metáfora de Portugal", de Izabel Margato (PUC/RJ);
"A intertextualidade em Alexandra Alpha, de Cardoso Pires", João Décio (UNESP); "A
questão da identidade em Alexandra Alpha", Maria Helena Saldanha Barbosa
(CPGL/PUCRS); "Alexandra Alpha, uma leitura", Lúcia Maria Moutinho Ribeiro
(UFRJ); "Memória, linguagem e história na ficção portuguesa contemporânea", Ângela
Beatriz de Carvalho Faria (UFRJ); "A Revolução de abril: a invenção da liberdade",
Ângela Beatriz de Carvalho Faria (UFRJ); "Bandeira e a Menipéia", Maria de Santa Cruz
(Universidade de Lisboa); "Entrevista com José Cardoso Pires", Maria Fernanda de
Abreu (Universidade de Lisboa); "José Cardoso Pires, a construção de uma escrita em
liberdade", Izabel Margato (PUC - Rio); "Espaço em questão: Portugal no romance de
Cardoso Pires", Maria Lúcia Scher Pereira (UFJF), Utopias de viagem: amor e revolução
em Alexandra Alpha, de Pedro Brum dos Santos, (UFSM), A Escritura do provável em
Augusto Abelaira __ Dissertação de Mestrado, da autoria de Ângela Beatriz de Carvalho
13
Faria, minha orientadora, que aponta a presença da sátira menipéia na ficção abelairiana,
especificamente nos romances O triunfo da morte e O bosque harmonioso.
Sou muito grato à Professora Dra. Dalva Calvão (UFF). Foi ela quem primeiro me
apresentou o autor José Cardoso Pires, quando, então, após ler o romance Alexandra
Alpha, surgiram as primeiras idéias para esta Dissertação. Porém, minha maior gratidão
pela cumplicidade da paixão por esta obra é dada à Professora Dra. Ângela Beatriz de
Carvalho Faria (UFRJ), a quem admiro e agradeço a orientação valiosa, inteligente e
precisa. Ninguém melhor do que ela saberia apontar, com tanta delicadeza, sensibilidade
e carinho, os caminhos tão preciosos a serem percorridos.
1.1.1 - Sob a ótica de crocodilos
O romance Alexandra Alpha foi publicado em 1987, treze anos após a Revolução
dos Cravos, ocorrida em Portugal. É difícil afirmar, entretanto é possível supor que José
Cardoso Pires tentou recriar todo o clima de incerteza que antecedeu o dia 25 de abril de
1974, o dia principal da Revolução dos Cravos, e os inesperados e frustrantes primeiros
anos subseqüentes. Embora não seja definida a data do início da narração dos fatos
transcorridos no romance, é possível imaginar que eles começam em 1961, visto que a
protagonista rememora fatos transcorridos com ela, neste ano, quando esteve no Rio de
Janeiro, "14 de novembro" (AA, 22). O término do romance assinala o mesmo dia: "14
de novembro de 1976" (AA, 358), percorrendo, assim, exatos quinze anos.
Nesse romance, Cardoso Pires faz um balanço de alguns anos da recente história de
Portugal. Através de um jogo mimético, a narrativa é como um afiado bisturi que corta
na própria carne as agudas questões do velho e do novo regimes instalados no país.
Alexandra Alpha, antes de tudo, é um livro imprevisível. Nele há mudanças bruscas e
14
aparentemente inexplicáveis no que se refere aos temas e às formas de representação
capazes de submeter o leitor a uma repentina prova de tolerância, uma vez que, em
determinadas páginas, são abordadas questões "sérias" e, logo a seguir, pode ocorrer a
surpreendente aparição do humor com atos risíveis e palavras de baixo calão.
Alexandra Alpha é um texto multitemático e multiformal. Nada nele se estabelece
como fixo, definido. Ainda que caminhe, particularmente, por um terreno documental,
instaura-se como ficção. Parece reportagem, mas, também, assemelha-se muito a
"conversa de bar". Apresenta, portanto, uma mistura de ficção e realidade factual,
quando insere poesia, fatos da História de Portugal, reproduções fotográficas, "flashes" da
guerra colonial africana, narrativas autônomas de viés alegórico, cenas retiradas de
roteiros de cinema, atos políticos, mensagens nos muros da cidade. Há, inclusive,
vestígios de campanhas publicitárias, parábolas, provérbios, "Papéis de Alexandra Alpha"
transformados em epígrafes e presentes no "enquadramento narrativo" (AA, 7). Há,
também, vozes simultâneas que ressoam no mesmo enunciado, capazes de configurar o
processo polifônico, teorizado por M. Bakhtin.
Nossa proposta tem como objetivo analisar o romance Alexandra Alpha e detectar
a possível revivescência do gênero denominado sátira menipéia, como veremos no
decorrer da exposição. Este gênero cômico-sério, marcado por determinadas
características, pode surpreender o leitor desavisado, não só no que se refere à linguagem
empregada, como, também, à sua finalidade; visto que a sátira mantém a conhecida
disposição para apontar e criticar os maus costumes, tornando-se, assim, um poderoso
instrumento, usado pelos escritores, para zombar e criticar os que estão no topo do poder.
Fenômeno este, recorrente em Alexandra Alpha.
Desse modo, tais características, presentes no romance citado, nos motivaram a
destacar os elementos próprios da sátira. Como se sabe, este gênero percorre uma
15
historicidade abrangente desde o período clássico da Grécia; destaca-se, particularmente,
durante o Império romano, atravessa toda a Idade Média e, nos dias de hoje, ainda
parece-nos muito apreciado pelos escritores e humoristas de plantão.
Em todo caso, de certa forma, convém avisar que esta Dissertação é, no mínimo,
desaconselhada para aqueles que gostam de temas e de estratégias discursivas totalmente
certinhas e bem comportadas, uma vez que optar pela focalização e aceitação da sátira
menipéia requer uma visão laica, sem preconceito ou censura, para que determinadas
situações ou o próprio vocabulário, considerado chulo, possam ter lugar, como quaisquer
outros, dentro do universo acadêmico.
O romance organiza-se da seguinte forma: Nota sobre a personagem Alexandra
Alpha, apontamentos pessoais gravados em fita magnética ("Papéis de Alexandra
Alpha"); uma espécie de prólogo, contendo a narrativa da morte de Roberto Waldir
Lozano, o "anjo suicida" ou o "anjo vermelho (como lhe chamavam as folhas
populares)", (AA, 12), e, a partida de Alexandra para Portugal com o menino Beto. Em
seguida o romance é dividido em duas partes principais: "A Cor da Pérola" e "Ascensão
e Morte": A primeira é formada por sete capítulos e a segunda, por três, numerados com
algarismos romanos. Cada uma, por sua vez, apresenta uma epígrafe que remete às
temáticas a serem desenvolvidas, a saber: "cidades cor de pérolas onde as mulheres
existem velozmente" (intertexto com Herberto Helder), e "a repetição em círculos
fechados de pessoas e de situações". Ambas as partes são circunscritas pelas mortes
trágicas, inesperadas e involuntárias, que configuram enigmas narrativos. Serão elas
resultantes de atos de barbárie, impetrados por sujeitos anônimos e inimputáveis; ou
decorrem de atos que buscam impedir ou incitar transgressões? Implícitas a elas, há
solidariedades comunitárias, consciência política e desejos de libertação ou atos de
traição e de punição?
16
Estas mortes ocorrem durante vôos: Waldir foi assassinado ao planar de asa-delta;
Alexandra, Maria e Miguel, vítimas de uma bomba-relógio, quando voavam na "avioneta
Piper Club", no momento em que se preparavam para espalhar cartazes alertando sobre
uma epidemia suína em Portugal, no período socialista da Pós-Revolução de Abril.
Se comparado às outras divisões do romance, o prólogo é minúsculo, pois contém
apenas sete páginas (09 a 15)
2
. Nele, os fatos transcorrem no Brasil e conta-se a história
de Waldir, um dos amantes da protagonista Alexandra Alpha, durante o tempo em que
ela morou no Rio de Janeiro. Waldir passeia de asa delta, na orla marítima do Arpoador,
em Ipanema, quando é atingido por dois tiros, ao ser confundido com uma imensa ave de
rapina. O "belo anjo" cai e morre. Em função da ambigüidade das atitudes e dos atos de
interpretações diferenciados, a história de Waldir adquire várias versões nos jornais.
Após a morte dele, Alexandra retorna a Portugal, levando consigo o Beto, garoto de três
anos, filho de Waldir Lozano e Neusa Paloma que estava presa por tráfico de drogas,
latrocínio e falsificação.
A parte que vai da página 17 até a 284 é nomeada de "A Cor da Pérola". Sendo
que da página 19 até a 273 são narrados os fatos que antecedem a Revolução de 25 de
Abril de 1974; tais fatos são entremeados por narrativas autônomas e alegóricas: "O
caso das monjas desnudas e dos monstros de Deus", "A deusa à janela", Parábola da
mulher dragão", etc.
Naquelas páginas, é apresentado o quotidiano alienado da classe média lisboeta.
As personagens, privilegiadas economicamente, ainda que constituam a elite intelectual,
quase nunca levantam questionamentos; elas se encontram nos bares, restaurantes e
boîtes, onde bebem, fumam e se divertem. As conversas, prolixas, giram sobre temas do
dia-a-dia: projetos, viagens, cinema, literatura, relações humanas, artes e noitadas
2
PIRES, J. C. Alexandra Alpha. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
17
intermináveis. Ou seja, os debates giram em torno daquelas questões aparentemente
"menores".
Em função da bebida, do desregramento provocado pelo álcool, é nesta parte do
romance que mais aparecem as manifestações satíricas. Dentre elas, os jogos de palavras
e trocadilhos, os comportamentos excêntricos, as obscenidades, a linguagem de baixo
calão, as manifestações de virilidade, ou seja, muito "material" é utilizado pelo autor
como instrumento de ataque aos vícios e aos maus costumes.
Parece-nos que há um interesse em recriar uma "atmosfera" alienada dos tempos do
governo de Salazar; estando, tal atenção, centrada na classe mais privilegiada; pois a
narrativa se caracteriza, principalmente, pela ausência de iniciativa da intelectualidade,
no que diz respeito a uma praxis social que levaria à tão desejada Revolução.
Cardoso Pires tem um modo especial de contar, e quando o faz, parece que pinta
ou expõe uma "radiografia" à contraluz. Ao leitor é revelado um Portugal marcado por
suas verdades e contradições. Em "A cor da pérola" (página 19 até 273), o recente
passado português é matéria resgatada como um filme que passa aos olhos do leitor-
espectador. Ali há o registro da história de um Portugal que parece fazer parte da vida
daquele crítico, que não se limita em apontar os fatos indicados como se não fizesse
parte deles. É como se dissesse: "a coisa se passou assim, eu fiz parte disto". Então, sem
poder conter o impulso de contar, ele se lança nessa aventura de registrar, através de um
relato documental, os fatos recentes da vida dos portugueses e de Portugal. Mas, ao fazê-
lo, se entusiasma tanto que, em certos momentos, "exagera nas tintas". Contudo, no final,
produz um livro que transborda transgressão, lucidez, atitude e coragem.
Da página 273 a 284, o narrador assinala fatos ocorridos durante o dia vinte e cinco
de abril __ o momento exato da Revolução dos Cravos, em Portugal. Neste fragmento
textual é manifestada a euforia que atinge as pessoas quando elas sabem que findou o
18
salazarismo. É uma narrativa curta (menos de doze páginas), mas suficiente para expor a
plena e radiosa alegria provocada pela queda do antigo regime. Nesse instigante trabalho
de rememoração, há um inteiro envolvimento entre aquele que assume o discurso e os
fatos narrados. Os acontecimentos ocorridos, no dia da Revolução, assemelham-se a um
grandioso espetáculo, transcorrido em praça pública, do qual, o sujeito autoral também
fez parte. Como um menino ribeirinho que pula dentro de um rio junto com os outros
após uma partida de futebol, o narrador-autor fala do dia vinte e cinco de abril como se a
data e os acontecimentos daquele dia representassem um fato extremamente desejado. Os
eventos descritos e narrados são inteiramente cinematográficos. Entusiasmado no meio
da multidão, Cardoso Pires se deixa, inclusive, fotografar em cima de uma chaimite
(espécie de tanque de guerra), localizada nas proximidades do Largo do Carmo e, ao
mesmo tempo, sitiada pela multidão. O que nos permite, por vezes, falar em narrador-
autor, no decorrer da Dissertação. Em determinados momentos torna-se bastante difícil
diferenciar o fato da ficção.
Isabel Margato
3
, em um estudo de sua autoria, reproduz uma foto tirada na ocasião.
Nela, o escritor, que aparece em primeiro plano, observa os soldados a apontarem suas
armas para o alto. O riso estampado no rosto de Cardoso Pires demonstra ser aquele um
momento muito especial. O grupo de civis que o acompanha confraterniza e compartilha
do mesmo entusiasmo prazeroso; o mágico instante, capturado pela fotografia, aproxima
e assemelha a comemoração do ato de bravura e euforia a uma grande festa dionisíaca. E
a foto, documento vivo do que acaba de acontecer, "tematiza a questão da identidade do
país e do próprio sujeito revolucionário
4
". Esta grande festa em praça pública, feita para
comemorar a queda do salazarismo, tem marcas de carnaval, sinais de desregramento, de
embriaguez coletiva e, mais uma vez, marcas dionisíacas, típicas da menipéia.
3
MARGATO, I. (2001) p. 217.
4
FARIA, A. B. (2001) p. 54.
19
Mas ao documentar essa alegria que tomou conta das pessoas, o narrador parece
preparar e convidar o leitor, para, juntos, decepcionarem-se com as questões que serão
abordadas mais à frente. Pois na seqüência da leitura, são apontados fatos que,
condenados por ocasião da vigência do salazarismo, são postos em prática pelos
revoltosos ao assumirem o poder. Após o clima festivo da comemoração do dia vinte e
cinco de abril, uma parcela da sociedade percebe que aquela alegria festejada foi um
engodo, e a liberdade, prometida ou desejada, utopicamente, durante anos, ainda vai ter
que esperar mais um pouco.
A partir da página 287, começa a segunda parte denominada "Ascensão e Morte".
Aqui os equívocos cometidos pelos revoltosos começam a surgir, e eles são muito
parecidos aos do regime anterior; assim como as ações que visavam desestabilizar a nova
ordem político-social. De forma clara e evidente, a violência e o uso da força revelam-se
de forma a não deixar nenhuma dúvida. Quando aqueles fatos são inseridos na ficção,
parece-nos que existe uma investigação sobre o que realmente pretendia a Revolução.
Alexandra Alpha é um romance de perguntas sem respostas, de muitas situações
sérias e problemáticas. Entretanto, tais fatos são "suavizados" através da ironia, da
paródia e da carnavalização; ainda que o narrador-autor esteja, visivelmente,
desencantado. Ao ser entrevistado por Maria Fernanda de Abreu
5
, Cardoso Pires
desabafa algo extremamente revelador, saído, ab imo pectore, isto é, do fundo do peito:
"La angustia es mía y no de los personajes".
Contudo, parece que esse mal-estar era mais que justificável, uma vez, que no final
do romance, o leitor é surpreendido com esta espécie de desabafo: "Miguel, à medida
que os dias passavam, sentia cada vez com maior clareza que a desmemória era a
esclerose das revoluções" (AA, 357). Para quem tanto desejou a implantação de um novo
5
ABREU, M. F. (2005) p. 216.
20
regime, a "desmemória", o esquecimento de um fato tão significativo, dá indícios,
realmente, de uma grande frustração. Isto fica explícito com a morte de Alexandra. A
falta de respostas para explicar o "acidente" aéreo parece proporcionar uma grande
sensação de perda. A queda da avioneta de propaganda, capaz de alertar a população
rural sobre a epidemia suína, representaria a morte definitiva dos ideais revolucionários?
O texto aponta, sutilmente, para a hipótese de alguém ter colocado uma bomba na
aeronave da empresa recém estatizada.
Nesta parte do romance são expostas questões político-sociais do tipo: "a prova era
que só via gente a desfazer-se das suas coisas por qualquer preço" (AA, 314). O episódio
fala do desespero das pessoas que não mais suportam a opressão dos revoltosos: "Era
realmente verdade e até vinha nos jornais que o Spínola andava lá fora a preparar uma
contra-revolução. Falava-se de mercenários e dum exército de libertação, armas
desembarcadas de contrabando" (AA, 314). Ou seja, portugueses vendiam os seus
pertences por valores depreciados, com claros objetivos de transpor as fronteiras de
Portugal para escaparem de um perigo iminente.
Os empresários também viviam continuamente com medo de terem suas atividades
"engolidas" pela arbitrariedade e o possível equívoco da estatização. A própria Alpha
Linn, multinacional de propaganda e marketing, onde a protagonista Alexandra
trabalhava, passa a ser administrada pelo Estado. De igual modo, jornais, revistas tudo
parece ter sido encampado pelos comunistas: "A Alpha Linn se transformou num arraial
de déspotas" (AA, 294). E ainda: "Maria logo à entrada (da empresa Alpha Linn) tinha
visto: um exemplar da Aurora do Povo em cima da mesa da recepcionista. E no
corredor: um poster com a cabeça do Mao projetada na silhueta do Lênin." (AA, 326).
Ocorrem ainda descrições de outros fatos com as seguintes proporções:
21
Barricadas de vigilância às saídas de Lisboa, toma que é pra aprenderes;
bancos e grandes empresas nacionalizadas, e quem não gostar que se
trame; a reforma agrária a avançar, desencabrestada; ocupações de
prédios; comissão de moradores a zumbirem aos enxames na cidade de
Lisboa, e as coisas não iam por ali, pois não, brincas, a vingança estava
à vista e ainda a procissão ia no adro. (AA, 314)
Alexandra Alpha é um romance de inegável ruptura com a narrativa tradicional,
principalmente, no que se refere ao vocabulário e à representação das convenções sociais.
Há uma clara evidência relativa a diferentes tipos de crises. O próprio autor, em
entrevista à Inês Pedrosa, declara:
Em Alexandra Alpha o Portugal em causa é outro, é de crise
abertamente citadina. Ou seja, a crise que ali se debate é a de uma
intelligentsia urbana complexada por um passado de burguesia rural.
Crise de identidade cultural, aberta e declaradamente, face à paisagem
social. O mundo, lá fora, o mundo é a civilização industrial, o 25 de
abril vem aí, eles não sabem, mas vem, e, porque não sabem, inventam-
se a si próprios. Se não inventamos o país, não cabemos nele, diz uma
personagem do livro, suponho que a própria Alexandra Alpha
6
.
Essa intelligentisia __ a elite cultural, à qual Cardoso Pires se refere em seu
depoimento, são as próprias personagens centrais do romance em questão. E essa "crise
de identidade", visível e inegável, expõe uma grande falta de consciência político-social
na maioria daquelas pessoas que, por terem mais informações, mais conhecimentos,
pertencerem à camada social de maior prestígio econômico, deveriam ser mais atuantes e
conscientes em relação ao seu país, mas, no entanto, não é isso o que corre. Quando as
referidas personagens se reúnem no Bar Crocodilo, parecem esquecidas dos problemas de
Portugal. Suas conversas exploram, sobretudo, temas relacionados à produção cultural da
França. Falam de Barthes, Buñuel, Godard, Truffaut etc. Nestes muitos encontros
noturnos, entre os temas abordados, também aparecem os ditos populares, mas,
6
PEDROSA, P. (1999) p. 103.
22
principalmente, como elementos chistosos e exóticos, próprios para fazer rir: "O cão
conhece o próprio pênis à força de muito o lamber" (AA, 36); "O cavalo e a mulher não
se empresta a quem quer" (AA, 134); "De mulheres e de bebida cada qual a sua medida"
(AA, 201). Sem dúvida há, nessa proposital mistura de registros e de saberes, uma ironia
articulada pelo narrador, capaz de levar a intelligentisia a repensar suas atitudes, uma vez
que, no âmbito social, todos "são omissos e alienados, substituindo a participação pelo
Kitsch político, pela tergiversação e pelo egocentrismo”.
7
Do freqüentado Bar Crocodilo, é possível destacar esta cena: "Ao correr do balcão
alinhava-se um coro de vultos diante dum crocodilo tutelar" (AA, 25). Isabel Margato
8
,
ao analisar a cena, comenta: "Nesse enevoado bar o autor reúne segmentos do que se
pode chamar 'elite intelectual'. No entanto, o autor os vê como 'vultos' __ portanto, sem
imagens próprias que os defina __ controlados pela figura do crocodilo (alegoria de
Salazar?)." A interrogação fica em suspenso. No entanto, a analogia se dá, talvez por
que, tanto o crocodilo metálico fixo na parede (morto), como o Dr. Salazar (enfermo,
vivendo no interior do país, fora do poder), ainda assim, induzem a um medo
subconsciente.
Seguindo o mesmo depoimento a Pedrosa, Cardoso Pires acrescenta:
(Alexandra Alpha) é, ou pretende ser, uma dissertação conflituosa sobre a
identificação a vários níveis, inclusivamente ao nível da linguagem __
certo vozear cosmopolita que por lá se ouve faz prova disso... E, claro,
todos esses relacionamentos estão demasiadamente próximos da
experiência que vivemos nos dias de hoje para que um certo número de
leitores não se sinta incomodado.
9
Convém destacar do fragmento citado as palavras "linguagem" e "incomodado".
7
BARBOSA, M. H. S. (1994) p. 523.
8
MARGATO, Isabel (1995) p. 295.
9
PIRES, J. C. apud PEDROSA, I. (1999) p. 103.
23
Ambas fazem referência a um certo vocabulário e atitude que, aqui e ali, aparecem no
romance como a apimentá-lo com uma pitada de humor ou ironia. Entretanto, os
aparentes termos chulos e a reação que provocam são "diluídos" de tal forma, ao longo do
texto, que talvez não sejam capazes de causar grandes "estragos" na delicada
sensibilidade dos leitores mais moralistas, tendo em vista ser, nesse momento, que a
narrativa adquire mais "leveza" no seu inquietante labirinto de temas e interrogações.
Então, "para que um certo número de leitores não se sinta incomodado", convém destacar
que a linguagem, desmedida e desbocada e os atos transgressores têm a sua razão e,
principalmente, função de ser. Ao mesmo tempo que assinalam um desabafo, também
resultam numa válvula por onde escapam as tensões, não só do leitor, como do próprio
texto, que, tal como um mapa aberto na mesa de um cartógrafo, aponta para múltiplos
caminhos. Diferentes veredas e múltiplas possibilidades instalam-se no espaço textual.
No humor mordaz pode existir a explicação para algumas perguntas, uma vez que,
através do riso e da ironia, é possível extrair as larvas dos vícios e dos maus costumes
sociais. Não configurando, com isto, que José Cardoso Pires seja um moralista; mas um
lúcido crítico da realidade circundante, que evita emitir juízos de valor contundentes, de
forma explícita.
24
1.1.2 - Cenários de Histórias sem fim
Aqui serão entendidos, particularmente, como cenários de História sem fim, as
praças e os seus monumentos; observando-se que o emprego do sintagma, "sem fim",
visa destacar, não só a perenidade assinalada pelos anos de existência dos mesmos, como
também, apontar o fato de que os "cenários" que aparecem em Alexandra Alpha, com o
passar dos anos, ainda podem reaparecer em outros romances de novos escritores. Tendo
em vista que o uso dos espaços públicos é uma das características dos textos de Cardoso
Pires, não podemos ignorá-los, principalmente, em função da forma como eles são
apontados em Alexandra Alpha; ali, existe, particularmente, a inquestionável marca da
carnavalização de alguns desses monumentos; e isto muito diz respeito ao nosso estudo, e
ela será revista em Ruínas e infinitudes (3.2.1).
Assim, falar em cenário de História sem fim implica, também, atribuir aos
monumentos arquitetônicos, símbolos de solidez e força da cidade, categoria e
importâncias históricas semelhantes ou maiores aos dos seres animados que do romance
participam. Pois, o autor, ao dar destaque a um ponto turístico, um parque ou praça, de
certa forma, direta ou indiretamente, presta homenagem não só à cidade, mas,
principalmente, ao mos maiorum, ou seja, aos desejos, aos costumes dos antepassados,
onde se apoia o próprio alicerce da nação portuguesa. Ao descrever a cidade, por vezes,
ele demonstra querer formar um catálogo dos acontecimentos que ocorreram no passado,
para que os mesmos contem a História de Lisboa.
Entretanto, no texto, há uma voz a denunciar: "Lisboa é uma rameira de cais e
taberna", (AA, 53). Essa cidade com ares de mulher de vida fácil, classificação
25
aparentemente inapropriada, remete a Bakhtin
10
: "as declarações inoportunas, ou seja, as
violações das normas comportamentais estabelecidas pela etiqueta", __ são características
da manipéia. E o romance Alexandra Alpha está repleto destas "violações", quando
algum fragmento da cidade é destacado ou mesmo alguma personagem.
"Aí pelas 04:00 da manhã", entre as "raparigas de má vida", estava a "machona
Bravo Grelo, como tal conhecida em razão das dimensões do clítores (do tamanho de um
pênis de lobo, ao que contava)" (AA, 231). Diante de tal marca ou "deformidade" íntima,
é verdadeiramente impossível conter o riso. E a "machona Bravo Grelo", mesmo a
alimentar, calada, o insaciável "clítores devorador", "acompanhada do amante travesti"
(AA, 231), às quatro horas da manhã, não passa despercebida no Bolero bar. Visto que,
no interior do mesmo estabelecimento, estava, provavelmente, na imaginação do leitor, o
ironista Cardoso Pires, a tudo observar, repleto de sensibilidade, perspicácia e atenção.
Assim, quando ele deseja, não perde a oportunidade para questionar ou desmitificar "la
realidad contemporánea"
11
, e ao mesmo tempo, fazer rir.
O romance analisado é desconstrução e descontração. Muitas cenas de Lisboa
aparecem como mosaicos micênicos a contar fragmentos de histórias ou pedaços de
vidas, que fornecem "pistas" e contextos situacionais para o leitor reconhecer a cidade:
"Contornaram a estátua do Terreiro do Paço, saudados pelo cavalo do dom José, e
marginaram o cais do Tejo" (AA, 66). Ainda que evidente o desejo de falar sobre esse
lugar que tanto preza, Cardoso Pires recorre, também, a um cineasta francês __ Francois
Désanti. E aí se manifesta a maior das ironias, uma vez que é através do olhar de um
estrangeiro que Lisboa é documentada de forma arbitrária, anárquica e metafórica.
Quando o cineasta entra em cena, o romance, no que diz respeito à formalidade
estética, passa por mais uma de suas metamorfoses, visto que a narração é transformada
10
BAKHTIN, M (1981) p. 101.
11
PIRES, J. C. apud ABREU, M. F. (2005) p. 214.
26
em um surpreendente roteiro cinematográfico:
Doca de Belém. Estátua do infante d. Henrique sobre o Tejo. Um
velho em uniforme de remador desportivo. A olhar o rio.
...................
Batizado elegante: à saída da igreja (Igreja de Santo Estêvão, estas
últimas seqüências foram de fato rodadas em Alfama) alguns
cavalheiros de casaca e chapéu alto. Nenhuma mulher, a não ser a ama
que transporta ao colo a criança. Ela e os restantes convidados seguem
a pé até à calçada íngreme. (AA, 125)
A narrativa fílmica é assim mesmo: registra uma cena a partir do olhar, utilizando-
se de uma linguagem seca, limpa, própria de roteiro. No entanto, alguns espaços de
significação permanecem vazios e enigmáticos. Muitas outras cenas são apontadas como
filmadas; e a maioria delas transcorre nas "externas", isto é, acontece ao ar livre; e há
também outras tantas "internas", "filmadas" no interior de casas ou espaços ocupados
pela elite intelectual.
Deslocando a visão para o Alentejo, vamos encontrar Alexandra e seu companheiro
em viagem pelo interior do país: "Adeus Algarves, que em campos me quero ver.
Campos largos, solidões":
Já no coração de Alentejo, passaram por uma torre de relógio encimada
por uma cegonha de sentinela no ninho. Um relógio coxo, sem um
ponteiro, e um ninho enorme mas vazio: o tempo ali tinha parado de
repente e a cegonha era uma retardatária enganada. Enfrentava a
planície, muito só e muito solene, e o dia declinava à volta dela. (AA,
188)
O cenário descrito contém imagens perturbadoras, ao mesmo tempo enigmáticas e
belas, nunca arbitrárias. E é provável que as mesmas pudessem facilmente passar
despercebidas, se fossem usadas, literalmente, em uma simples narrativa de contos de
fadas. Entretanto, visto que nenhum texto é inocente ou neutro, o autor deve tê-las usado
também como figuras de linguagem, tais como: metáfora, ironia, ou alegoria,
27
principalmente porque as entrelinhas estão carregadas de sentidos. O não dito ou os
"subentendidos" fornecem pistas muito significativas e o dialogismo insinua-se no texto.
Portanto, neste romance, os enunciados devem ter sido produzidos com o objetivo
de comunicar algo que está além de sua própria superficialidade. Por conseqüência, a
palavra "cegonha" já é um signo carregado de muitos significados: entre eles, ave de
bom presságio, e, em muitos mitos é vista como símbolo da fertilidade e migração. Entre
outras características, está associada à agricultura. Segundo Chevalier e Gheerbrant
12
, a
cegonha "é símbolo da piedade filial e da imortalidade. Imóvel e solitária, evoca
contemplação". Porém, a cegonha, em causa, está de "sentinela" em um "ninho vazio" e,
"retardatária", revela-se "enganada". E não é à toa que habita o Alentejo.
Do pequeno fragmento acima, extraído do romance em análise, conforme o nosso
conhecimento de mundo, muitas outras coisas ainda podem ser ditas, principalmente,
quando destacados alguns sintagmas do tipo: relógio coxo, ninho vazio, tempo parado,
cegonha enganada etc. Assim, ainda que sem nenhuma pretensão de ser intérpretes
definitivos do pressuposto textual, tentaremos fazer uma leitura, dentre outras possíveis,
dos termos assinalados:
Relógio coxo, por exemplo, remete-nos à Jean-Pierre Vernant, que, ao discorrer
sobre o ato de coxear, destaca:
A categoria "coxo" não está estritamente limitada a um defeito do pé,
da perna e do andar, que seja suscetível de uma extensão simbólica a
outros domínios que não o simples deslocamento no espaço, que ela
possa exprimir metaforicamente todas as formas de conduta que
pareçam desequilibradas, desviadas, moderadas ou bloqueadas
13
.
12
CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. (1988) p. 218.
13
VERNANT, J. P. e PIERRE, V. N. (1986) p. 50.
28
Desse modo, "relógio coxo" induz à falta de simetria entre vários aspectos; assinala
um enigma a traduzir defeitos ou alguma impossibilidade advinda de múltiplas direções;
induz a uma determinada precariedade na região ou no próprio país. O "relógio coxo" é a
nação e/ ou a região que gira em torno de si mesma sem desempenhar a sua verdadeira
vocação. E esse giro circular demonstra, também, entre outras coisas, ação repetitiva e
circunscrita a si mesma. A ausência de ponteiro indica infração e violação da
normatividade, carência de bússola.
A máquina, a nação que anos gira sob o signo de Salazar, demonstra cansaço e
falência. Esse "relógio coxo", por perder sua integridade física, é, talvez, diabólico,
inesperado. "O coxear é sinal de fraqueza, de irrealização, de desequilíbrio"
14
, mas
também é ambivalente: "nos mitos e lendas, o herói coxo sugere um ciclo que se pode
exprimir pelo final de uma viagem e o anúncio de uma nova viagem"
15
. Ainda que a
citação refira-se ao herói das narrativas helênicas, o ato de coxear nos leva à Alexandra
Alpha e, ali, vamos encontrar o engenheiro Miguel "que manquejava duma perna" (AA,
360) e dirige-se para o avião que irá explodir em pleno ar, dando fim a três ciclos de
vidas: o dele, o de Maria e o de Alexandra. Convém observar o fato de ser "coxo", ele
poderá contribuir para desfazer o enigma que cerca a morte das personagens. Será ele o
responsável pela colocação da bomba-relógio e pela inauguração de uma nova "viagem"
ou proposta ideológica?
Por outro lado, o sintagma, "ninho vazio", induz a pensar na ausência de nascimento
ou no abandono do lugar de origem por diferentes motivos: pressão política, decadência
financeira, doenças etc. Entretanto, o que há de similar, entre o ninho da cegonha e o lar
humano, é a garantia de que, após o tempo necessário para a migração, o retorno é certo
e garantido, em função, principalmente, de uma memória infinda naqueles que se vão.
14
CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A . (1988) p. 297.
15
Idem. P. 297.
29
A expressão "tempo parado" está, por sua vez, diretamente associada à falta de
oportunidade ou à expectativa paralisante e que não induz a ações imediatas. Se o tempo
parou em Alentejo, o que dizer das expectativas de seus cidadãos? O grupo de
habitantes, metaforizado em "cegonha enganada", se pensarmos em termos de falência da
utopia revolucionária, momentaneamente detectada, fica a olhar a planície ao pôr do sol.
E, quando a noite chega, todos se recolhem a esperar a nova luz do dia seguinte, que,
provavelmente, reaparecerá em uma determinada hora.
Chamamos a atenção para o privilégio dado ao tema rural __ "material" ou espaço
privilegiado pelo Neo-Realismo, período literário em que os textos escritos, sob esta
"bandeira", muito vão contribuir para assinalar uma literatura capaz de abordar,
sobretudo, as questões relacionadas aos jogos de interesses econômicos e sociais.
Ao comentar sobre o uso do espaço, na obra de José Cardoso Pires, Maria Lúcia
Sher Pereira
16
destaca: "É misturando dados ficcionais e referências historicamente
verificáveis que Alexandra Alpha, na linha de Balada da praia dos cães, tem no espaço
uma categoria para a construção de sentido da obra", o que ratifica o dito anteriormente.
Assim, quando os protagonistas de Balada da praia dos cães ou de Alexandra Alpha se
deslocam por diferentes lugares do território português, também estão construindo
memórias sociais e interligando, com isso, História e ficção.
Em um determinado momento da narrativa, Alexandra vai visitar a mãe e o tio João
de Berlengas, em Beja. No pára-brisa de seu mini-austin (símbolo capitalista), há,
incoerentemente, um adesivo das Brigadas Revolucionárias Populares (BRP). E tal
sigla é interpretada pelo cônego Domingos como: "Banditismo, Renegação,
Perversidade" (AA, 332). Isso significa que, de acordo com o observador e sua ideologia
política __ revolucionária ou reacionária __, a sigla adquire diversos e relativos
16
PEREIRA, M. L. S. (2001) p. 213.
30
significados; socialistas e fascistas preenchiam-na com diferentes valores interpretativos.
E, sendo o cônego um "porta voz" local e símbolo da tradição, a referida analogia entre
revolucionários e banditismo indica um alto grau de rejeição àqueles que instituíram o
novo regime em Portugal. No interior do país, de um modo geral, prevalecia a
preferência pelo antigo regime, mantenedor do statu quo agrário.
Com relação à opinião do nego Domingos sobre os revolucionários, ainda é
possível acrescentar: "Estava em pleno Verão Quente. Levantavam-se labaredas a toda
a volta, pinhais em fogo, faúlhas ao vento, e quem eram os autores? Os bolchevistas, (...)
Também fugiam pides das cadeias, oitenta e nove desta vez" (AA, 337). O cônego
continua a denunciar os desmandos, a conivência entre a cúpula do poder com membros
do regime precedente. "O povo cantava, coitado, mas a mãozinha comunista é que tinha
preparado a festa" (da fuga dos 89 membros da PIDE) (AA, 337); "Com as bombas nas
casas dos partidos de esquerda passava-se coisa semelhante" (AA, 338). E o cônego a
denunciar essa visível dissidência interna do regime revolucionário: "Rivalidades lá
entre eles, a razão era essa. Os partidos bolchevistas estoiravam-se uns aos outros para
ficarem sozinhos no poder" (AA, 338).
Ainda a voz do cônego: "As revoluções cegam, as revoluções matam os filhos,
nunca esquecer, nunca esquecer. A hidra peçonhenta já começa a devorar as suas
próprias cabeças" (AA, 338). Ao denunciar a "hidra peçonhenta", o cônego refere-se à
própria Revolução dos Cravos, que, na opinião dele, ao possibilitar a destruição de uns
pelos outros, acabará por "devorar a si própria" (AA, 339). Estas questões apontadas pelo
cônego, se comparadas àquelas tiradas do caso do lavrador dos Tojais" (AA, 296),
parecem expor um câncer, e não apenas uma das numerosas úlceras abertas pela
Revolução. Trata-se de uma estátua, que fora "arrastada por duas mulas, uma das quais
meio cega; parece que por essa razão os animais não se entendiam, puxavam torto, e cada
31
um para seu lado, e a estátua, encontrão para a esquerda, encontrão para a direita..." (AA,
296). A analogia estabelecida entre a cegueira animal e a cúpula do poder revolucionário
parece oportuna. E as "mulas", que arrastam a estátua para o rio, assemelham-se aos
"mulos revoltosos" que empurram o país para o "brejo"; coincidência ou não, o fato é que
não se pode negar tamanha verossimilhança.
A seguir, outro episódio pós-revolucinário. O fato se passa entre os não
contemplados com a Revolução e o acontecimento, que transcorre no interior do país,
envolve certas personagens que representam a tradição cultural portuguesa. "O cônego e
a prima" acompanham os acontecimentos diários transmitidos pela televisão. Sem
animus, ambos estão sempre a maldizer os novos tempos:
O cônego e a prima (...) não ligavam. O que os preocupava era o
insulto do televisor, os comícios, ocupações de terras, reforma agrária, e
por outro lado o tormento dos honrados que àquela hora sofriam no
exílio as perseguições e a ingratidão da pátria como o dito lavrador dos
Tojais. Esses, os verdadeiros ofendidos, constituíam, no dizer do
cônego Domingos, a Nova Diáspora Lusitana. (AA, 296)
Conforme a opinião do cônego, "o tormento dos honrados que àquela hora sofriam
no exílio as perseguições" fortalece uma hipótese: em linhas gerais, a Revolução dos
Cravos foi, em certos momentos, pouco diferente do regime anterior. É provável que, ao
constatar esse fato, Cardoso Pires tenha percebido que, ao unir-se com os comunistas,
fazia uma leonina societas; ou seja, uma sociedade de fortes contra os fracos. Esse fato,
talvez, tenha sido a causa de sua saída do partido comunista. Em função disso, o ideal
para ele, seria, portanto, esclarecer, através da literatura, para os posteri, o que foi,
realmente, a "democracia" da Revolução dos Cravos. Aos olhos do cônego, os
"honrados", os verdadeiros portugueses são os latifundiários que foram obrigados a fugir
do país. O que antes fora uma arbitrariedade aplicada pelo salazarismo, agora é prática
32
semelhante. Ao agir assim, os gritos de "O TRATOR SOBRE O CAPITAL" (AA, 323)"
indicam existir um sutil paradoxo a ecoar nos porões do novo regime, uma vez que a
potência do "trator", embora auxilie os pobres a arar a terra, esmaga um grande produtor,
um latifundiário. Em termos de macroeconomia de um país, a Revolução preocupa-se
em transformar agricultura de exportação em agricultura de subsistência. O fragmento de
texto parece expor mais um dentre os muitos "equívocos" da Revolução: uma vez
expulsos os grandes "lavradores" de Portugal, como suprir o povo com suas necessidades
alimentares básicas? O reverendo Domingos parece que é o único a ter uma resposta:
"A hidra da Revolução acabaria devorada pelas sete cabeças do seu próprio corpo
insaciável. Nosso Senhor o ouvisse, pensava a dona da casa", a mãe de Alexandra (AA,
296).
Outro exemplo semelhante ao anterior: Afonsinho vai visitar a tia. Nesse
momento, ela se queixa ao sobrinho dos "disparates a que assistia" na televisão:
Afonsinho: "Credo, senhora. Então alguém pode andar contente nos
seus affaires com o despautério que vai por aí?".
Para comprovar, descrevia casos. Fulano e Sicrano a emalarem à pressa
as pratas da família e a serem agarrados na fronteira pelos comunistas;
recheios de casas entregues por tuta e meia ao primeiro judeu que
aparecia; relíquias, preciosidades que só vistas, tudo confiscado pelo
Estado; sargentos tarimbeiros a beberem aguardente por cálice de prata,
uma dor de alma: sargentos, senhora, sargentos, hoje em dia uma
pessoa tinha de andar às ordens da sargentada e dos soldados barbudos.
(AA, 297/8)
Com base no que o narrador expõe no romance, ocorreram muitos desagrados com
o novo regime. Aquela alegria, aquela euforia, ocorrida no dia vinte e cinco de abril
restringiu-se a um determinado grupo. Agora talvez já não exista mais crença,
generalizada, nos mitos, nem naqueles que governam a nação. Por este motivo é preciso
trabalhar o país no real (AA, 328), ou seja, naquilo que há de verdadeiro, sem artifícios
ou falcatruas. Entretanto essa proposta talvez não seja mais viável aos que estão no
33
poder. Faz-se necessário instalar, no alicerce social, o contrário de tudo o que já fora
idealizado no plano do sonho. É preciso introduzir, no cerne da nação portuguesa, algo
oposto àquilo que foi apenas imaginado. É a própria Alexandra quem confirma isso, ao
conversar com a Mana Maria: "Mas Mana, é o país que nos calhou e antes de mais nada
há que desinventá-lo. Tratá-lo no real." (AA, 328). As duas personagens falam de um
"pessimismo confiante" e de um pudor musical a "embalar a má consciência" (AA, 328)
daqueles que teimam em manter o otimismo através de um discurso demagogo:
Passamos tempo de mais a viver do histórico e do abstrato, séculos de
mais a fingir que éramos históricos-campesinos e todos os políticos nos
enchiam os ouvidos com isso. Enchiam e enchem. Dantes porque a
Igreja de campanário é que tudo mandava, agora porque no campo é
que está a grande densidade de votos. (AA, 328)
Parece que em muitos casos a verdade é relativa. Tudo se desenvolve no plano da
artificialidade e dos interesses particulares. Só porque no interior de Portugal existe maior
número de eleitores, a classe política induz aí algum tipo de ilusão. Os políticos
"vendem" a imagem de que os habitantes do interior são mais importantes, porque neles
está o desempenho da nação, forjada, principalmente, na agricultura. Dela provinha o
progresso português. Segundo a personagem, todos viviam uma abstração: esse suposto
produto, vindo lá do interior, não passa de um simulacro, já que o mesmo não
corresponde à verdade. Esse fato é esclarecido quando Maria e Alexandra continuam a
conversa: "Muito me contas, Mana, muito me contas. 'País abstrato', continua Maria.
'Um país que se diz agrícola e que importa metade da agricultura que consome é cá uma
abstração. Agrícola, olha o desplante" (AA, 327).
Por essas e outras "deturpações" do sistema político, era preciso "desinventar"
Portugal. Uma nova e eficaz proposta ideológica deveria ser adotada após o vinte e
cinco de abril. Era preciso inventar uma outra realidade onde fosse possível resolver
numerosos impasses entre o Portugal rural e o Portugal urbano, ou, melhor dizendo, entre
34
a tradição e a modernidade. Era necessário estabelecer o fim da mitologia do poder rural,
através de uma reforma agrária produtiva e justa. Mas o tempo da fraternidade e da
igualdade não se cumpriu. No romance, esse "nó" emblemático está muito bem
representado: pela tradição, os proprietários rurais, através dos moradores de Beja (mãe e
tio de Alexandra), e seu receio de serem desalojados da propriedade; pela modernidade, a
nova geração, através da protagonista do romance e seus amigos, moradores de Lisboa,
que passaram a compartilhar os ideais socialistas. Contudo o destaque se dá,
principalmente, em Alexandra. Nela está centrado o caráter transgressor, inerente a todos
os sintomas da modernidade. Entre eles: alteridade e excentricidade que serão agora
destacados.
1.1.3 - Alexandra Alpha e outras personagens
Além de recriar/ recordar fatos ocorridos/ vividos em Portugal, o narrador centra o
seu foco de atenção na personagem Alexandra Alpha, mulher de múltiplos objetivos e
identidades: liberal, independente, executiva de marketing da empresa Alpha Linn,
marcada pela alteridade, vive dividida entre vários nomes: "O primeiro era Alexandra e
o último Maninha, este só para uso dela e de Beto (filho adotivo), e derivado de Mana,
Mana Alexandra, ou Mana Xana". (AA, 15), Maria Alexandra (AA, 12), Maria Mana
(AA, 327), solteira, natural de Lisboa. Freqüenta os bares noturnos, tem vários amores.
Dividida entre as atividades "oficiais" e aquelas menos recomendadas às mulheres
conservadoras, Alexandra absorve todas as funções sem muitas dificuldades. E essa
multitarefa, anteriormente atribuída mais às personagens masculinas, como tributo a um
35
certo "machismo-heróico", vai integrá-la por definitivo ao mundo contemporâneo e
globalizado.
Esses vários nomes, mutantes e intercambiáveis, apontam para uma crise de
identidade? Parece que sim. Alexandra está sempre se reinventando a partir do nome
primitivo. Daí ter outras memórias, outras identidades, vários rostos e, em cada um
deles, são encontrados ecos de muitas personagens que compõem o cenário português.
Com isso, já que existe o metapoema, a metalinguagem, o metacinema e tantos outros
"metas", Alexandra é uma metapersona. Não no sentido restrito da personagem que fala
de si, mas daquele ser ambivalente e desdobrado em outras identidades. Pois não está
nisso a noção de contemporaneidade e, também, do próprio cristianismo, tão vivo em
Portugal? Não é ele que diz que o homem é composto de mais de um ser? Um que
morre, o outro que é perene? Um que é carne, o outro, espírito? Um que é pecador, e um
outro que é santo? Sendo assim, essa dualidade já faz parte da própria natureza humana,
Alexandra Alpha é a metapersona a falar de si, através das suas multiplicidades nominais
e seus enigmas.
Em cada posição que ocupa na vida, Alexandra desempenha um papel social
diferente. Em certos momentos ela é a executiva de uma multinacional; em outros é a
revolucionária que, junto "ao mar de gente" (AA, 276), no dia da Revolução, canta
Grândola vila Morena; ora ela é mãe de Beto, ora é irmã dele; em outras situações é
amante, é confidente etc. "Mulher dividida, de dia guerra e à noite vida" (AA, 23).
Segundo Stuart Hall
17
, "as identidades modernas estão entrando em colapso"
porque "um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do século XX." E é isto o que se vê em Alexandra Alpha, tudo está
partido e precisa ser juntado como um quebra-cabeças. Ainda segundo Hall, "isso está
17
HALL, S. (2005) p. 9
36
fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, e mudando nossas identidades pessoais". Assim, o acúmulo dessas
múltiplas faces identitárias acaba transformando Alexandra Alpha, mulher "de boca
fresca e luminosa" (AA, 357), em uma femina virago. "Virago" usado aqui não no
sentido masculino do termo, mas como a mulher forte, corajosa, "guerreira", a típica
representante da mulher contemporânea, da mulher "que vai à luta".
Alexandra é uma personagem híbrida, ex legibus naturis, isto é, fora dos padrões,
ou, aquela que se afasta das leis naturais, como queiram. Influenciada pela multiplicidade
e fragmentação do mundo contemporâneo e globalizado, ela carrega consigo a síndrome
dos múltiplos nomes. E essas várias identidades compõem diversos sentidos com os quais
ela teve de aprender a "transferir-se" ou transportar-se de um para outro conforme a
necessidade, e os mesmos vão compor um elo de ligação com os mais diferentes níveis
sociais, isto é, com os múltiplos papéis sociais que desempenha:
Sophia Bonifrates via-se obrigada a reconhecer que não era caso para
espantar, isso dos rigores, pois Alexandra estava sempre certa com o
momento. Integradíssima como Alexandra Alpha no seu gabinete de
vidro da empresa, integradíssima como Alexandra Mana no mini-austin
de ir às noites, integradíssima como Maninha mais que privada na sua
vida com o Beto. Assim mesmo. Três Alexandras iguais e distintas,
qual delas a mais eficaz? (AA, 106).
Assim é a protagonista, "descentrada" ou "deslocada", marcada pela vida pública e
pela vida privada, e, consequentemente, sem identidade fixa. E isso vai coadunar-se com
o que Hall denomina de "sujeito pós-moderno":
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente.
Dentro de nós há identidades contraditórias empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas
18
.
18
HALL, S. (2005) p. 13.
37
Embora a memória não seja a razão principal deste estudo, convém não abandonar
os fatos relativos a ela, quando se trata da personagem Alexandra. Nela existem
mediações capazes de fornecer numerosas questões desencadeadas ao longo do tempo
que transcorre o romance. Dentre outras, convém destacar:
Dizem que quando hibernou para o Rio esqueceu a pele da Mana Xana
em Lisboa, esqueceu gente, esqueceu casos, desperdícios. Nenhuma
carta para ninguém, sequer para Maria, a mais mana das suas amigas:
Alexandra sempre se orientou separando as vidas que continha e
afastando as memórias. (...) Por isso podia dizer, como sempre disse:
Previno-te, o meu corpo não tem memória. (AA, 23)
Desejar viver a desmemória é como negar-se a olhar ou rever o passado. E, ao
privilegiar o esquecimento, parece "negociar" com a superficialidade da vida e com a
fugacidade do tempo. Sem memória, Alexandra também está "descentrada", fora do
equilíbrio racional da maioria da população. Ela não dispõe de uma identidade fixa para
poder atribuir-se o cogito ergo sum. Seu instinto de Mulher Selvagem e livre não permite
prender-se a nada.
Qual lição tirar daquele advertir de Alexandra? Que sendo a memória um fato
social, os antigos acontecimentos de uma nação também podem ser esquecidos ou
rasgados como uma antiga coleção de fotografias? Eis aí um bom tema a ser discutido
por quem se interessar possa.
O nome alpha, primeira letra do alfabeto grego, significa princípio e fim de todas as
coisas; estrela brilhante, e segundo Cirlot
19
, "alpha relaciona-se com o
passado, atributo do deus criador". Daí ser possível observar que, por mais "moderna"
que seja a personagem Alexandra Alpha, existe também nela um apego ao seu passado.
Caso seja considerada uma metonímia de Portugal, podemos afirmar que a História da
19
CIRLOT, J. E. (1984) p. 71.
38
nação portuguesa está fixada, no romance, por meio das numerosas verossimilhanças de
representações dialógicas estabelecidas entre o passado e o presente.
Levando-se em consideração a série da indumentária, convém acrescentar que "a
lady" (AA, 22), Alexandra Alpha, executiva da multinacional Alpha Linn, após a
Revolução, passa por uma visível metamorfose, não só no que se refere ao modo de
vestir, como, também, no pensar. Ela substitui a elegante roupa de executiva por um
"visual" bem alternativo, próximo ao dos revolucionários, o qual muito chocava o tio
Berlengas, por ocasião das suas visitas a Beja:
(Alexandra) acabou de vestir a canadiana no elevador e verificou as
algibeiras que eram uns alforges onde cabia tudo e mais alguma coisa,
chaves, documentos, livros de cheques, e até uma carta do Beto acabada
de chegar. Alforges foi como o tio Berlengas chamou àquele casacão
da última vez que ela esteve no Monte Grado. Ao ver aquele desmazelo,
calças esfiapadas, cinto de corda e casacão de lona a modos que de
globe-trotter, a modos que de militar, o velho ficou a coçar na cabeça:
Para que semelhantes alforges, para quê semelhante preparo? (AA, 331).
Se aquele modo de vestir não agradava ao conservador Berlengas, muito menos era
aceito pelas criadas da casa materna, tanto que uma delas ficou a censurá-la por achar
que, em função da boa condição financeira da patroa, aquele modo de vestir era uma
provocação: "parece impossível, a fazer pouco dos pobres" (AA, 331).
Estaria aqui mais uma das ambigüidades da protagonista? Pois o seu "inapropriado"
modo de vestir não é aceito, nem pela elite cultural de Beja, nem pela classe trabalhadora;
tanto que propicia à alta e à baixa sociedade bejeana diferentes interpretações.
Transformada, Alexandra já não cabe naquele universo tão pequeno e nem pode ser
idêntica a si mesma. A classe operária que ela julga favorecer usando aquelas roupas,
não a compreende; assim como a família dela. Como viver nesse mundo tão dividida?
39
Conforme o exposto, no que se refere à personagem Alexandra Alpha, retratada no
romance cardoseano, só nos resta perguntar: ela, "realmente", existiu? Ou se trata de
um álibi de veracidade (um recurso meramente ficcional?) Pois o autor atribui a ela uma
data específica ("14 de novembro de 1976") e certos textos, identificados como: "papéis
de Alexandra Alpha"; os quais utiliza, no espaço textual, transcrevendo-os ou adaptando-
os. Para persuadir o leitor, afirma que esses "papéis" se encontram nos "arquivos do 10º
cartório notarial de Beja." (AA, 07). Não importa: especular se Alexandra realmente
existiu é o mesmo que ficar discutindo o sexo dos anjos.
outras personagens que se destacam, não só pelas características próprias, como
também por dar um sentido muito particular à narrativa. Entre elas está Opus Night - é
assim conhecido por ter um irmão membro da Opus Dei, e ainda: ser "juiz, salazarista,
solteiro, vegetariano, beato" (AA, 75). "Sebastião Manuel, o Opus Night. Ou Copus
Night, também podia ser; Octopus Night, Antropus Night. Basta. Trocadilhos comia ele
às colheres e vomitava-os a dobrar. Tinha alturas em que disparava trocadilhos em
rajadas" (AA, 75).
Embora apresente essa multiplicidade de nomes, Opus Night é uma personagem
definitivamente oposta à descrita acima. Em relação a Alexandra, como foi constatado,
para cada nome há uma função social diferente. Entretanto, os vários nomes de Opus
Night são meros princípios de camadas, ou seja, diferentes formas de escrita para a
mesma função; os vários nomes são meras paráfrases que designam a mesma
personagem. Ela não está dividida entre várias outras identidades. De Opus Night só se
conhece o público, o externo. Talvez por não ter problemas financeiros, ou consciência
social, ele nada questiona. Do seu mundo interior, psicológico, nada é revelado. O leitor
sabe apenas do seu exterior, da alegria de viver. Ele é um indivíduo inteiramente
40
epicurista, Epicuri de grege porcus. Opus Night é homem da elite, improdutivo. Passa
as noites nos bares e dorme durante o dia.
Opus, em latim, é trabalho, mas do modo como o termo está empregado, no
romance, parece um grande equívoco atribuir-lhe o mesmo significado. Entretanto a
referida palavra, quando acompanhada com o verbo esse (opus esse = coisa necessária),
(o verbo pode vir apenas subentendido), também pode significar apenas "coisa". Termo
mais apropriado para Opus Night. Ou seja, parece que estamos diante de mais uma das
ironias de Cardoso Pires, que trata a elite portuguesa apenas como "coisa necessária", ou,
o "mal necessário." "Coisa" essa, que se acomoda, que não questiona, que vive de renda,
que nada produz.
Assim é ele. Divorciado, é caricatura, e, entre outras coisas, acredita que sua
ex-mulher passa por diversas metaformoses na esperança de reconquistá-lo. Ao longo da
narrativa, ao envolver-se com ele, de forma "mascarada", ela é confundida com travesti,
prostituta, camponesa, com a mulher fatal etc.
Por outro lado, ao que se refere a Opus Night, serão nas muitas perambulações
noturnas em diferentes bares, assim como nos mais variados encontros com as inusitadas
"figuras" femininas, que ele fará transparecer ex nihil, isto é, do nada, os indícios, as
pistas, os fatos que provocarão o riso e, consequentemente, sinais da sátira. Exemplo:
Opus Night e o amigo Nuno Leal vão jantar em um restaurante perto do aeroporto,
local onde se encontram muitas prostitutas. Ao lado, na beira da estrada, existe um posto
de gasolina e um bar-restaurante. Sentam-se a uma mesa dos fundos e logo chegam duas
prostitutas: Mizete e Sabrina:
A ruiva sentou-se: "Sabrina, muito prazer".
Opus Night: "Sabrina? Eh, pá, vocês têm cada nome que até parece
marcas de lambretas".
Mizete: "Parecemos o quê?".
Opus Night: "Nada. O que vale é que são giras. São ou não são giras,
Nuno?".
41
Mizete, deitanto-lhe a mão à braguilha por debaixo da mesa: "Ainda você
não viu nada. Ui, coisa boa".
Opus Night agastou-a cautelosamente para evitar que o aparelho entrasse
em labareda. (AA, 80).
Aqui está exposto um fragmento do cômico distribuído ao longo do romance. E se
é necessário apontar o motivo para elaborar esta Dissertação, fica dito que as diferentes
manifestações do riso, encontradas em Alexandra Alpha, contribuíram para despertar o
interesse em investigar, no referido romance, a possível presença da sátira menipéia.
Gênero este que nos desperta muito interesse, em razão, não apenas da revelação da sua
origem e de seu percurso no tempo, questionamentos e importância social, como também,
pelo desejo de trabalhar "academicamente" o grotesco, o "baixo" material do riso.
Portanto, eis a nossa significativa contribuição por abordar um tema ainda não
explorado na obra cardoseana.
Nuno Leal é o amigo de Opus Night, que o acompanha nas mais variadas aventuras
e bebedeiras; entretanto, quando ocorre a Revolução, adere à ela e chega a ocupar dois
importantes cargos burocráticos, "Fomento de Construção Escolar" e o outro no "setor
rural" (AA, 327). Nesta época, perde a amizade de Opus Night; este passa a considerá-
lo "traidor das famílias", um "parvo" (AA, 320).
Afonso Pompadour é a caricatura em pessoa: "era calvo e pestanudo e quando
falava estava mais atento a quem passava do que à pessoa que ele ouvia" (AA, 95). Primo
de Alexandra, antiquário, homossexual, importa da França dois bonecos infláveis, e, com
eles vive completas aventuras amorosas e sadomasoquistas. Para o velho tio João de
Berlengas, Afonsinho era só "desmandos, luxúrias, vergonhas sobre vergonhas (...), a
mariquice chegara a tal ponto que o Afonsinho tinha posto casa a um soldado de
Artilharia 1. E nas costas do soldado deitava a escada ao que lhe aparecia" (AA, 98).
42
João de Berlengas - tio de Alexandra e de Afonsinho - é o senhor representante do
salazarismo. Insiste em manter a vida e as atividades dos seus familiares sob rigoroso
controle. Para preencher o vazio de uma vida solitária, ele embriaga-se acompanhado de
sua "cadelinha Traviata", a qual, mesmo ameaçada de morrer com uma cirrose, passou "a
gostar de vinho como qualquer cristão". (AA, 56).
Sophia Beatriz ou Sophia Bonifrates tem esse segundo nome em função de sua
dedicação aos bonecos de fantoche. Grandalhona e desajeitada, é árdua defensora da
cultura popular. Produtora cultural, "ela procurava novas propostas para o teatro infantil
nos bonecos e nas marionetas populares, atualmente em vias de extinção" (AA, 32).
Cultua uma constante gravidez artificial e morre de ciúmes do marido bonitão.
Bernardo Bernardes surge como a caricatura do intelectual que acredita tudo saber.
Segundo Alexandra, ele é "redundante até no nome". Seduzido pela cultura francesa,
gosta de citar, em francês, os próprios autores portugueses. Tal personagem, entretanto,
contribui para que o romance fique repleto de intertextualidades, ocorrendo, com isso,
uma completa "antropofagia cultural", a partir de referências relacionadas a cinema,
fotografia, literatura, monumentos etc. Ao misturar Barthes, Sartre, Buñuel e Jean-Luc
Godard, acaba por confundir-se entre "Luís de Camões ou Luís de Camus?" (AA, 90).
Após a Revolução foi nomeado "chefe de gabinete do Ministério da Informação" (AA,
304).
Em função da presença de tantas caricaturas, Cardoso Pires expõe um país, entre
outras coisas, marcado pela excentricidade. Em Alexandra Alpha, a grande maioria dos
acontecimentos está situada à margem daquilo que se poderia denominar de
"normatividade". Com isso o romance em questão induz à leitura de que nos anos 70 e
80 do século XX, Portugal foi ou é uma grande ficção.
43
Enfim, eis o desafio: o romance multiestrutural Alexandra Alpha parece um
terreno minado. Caberá ao leitor atento contornar e desativar as suas possíveis
armadilhas.
2 - O gênero sátira menipéia e seus temas
Ao refletir, na Poética, sobre os diversos gêneros literários, Aristóteles, em alguns
momentos, aproxima a comédia da tragédia. Para este autor, "com os mesmos meios
pode um poeta imitar os mesmos objetos."
20
. Entretanto, estes objetos de imitação
revelam a diferença entre a tragédia e a comédia. Nesta, "os poetas imitam os homens
piores do que são, e naquela, melhores do que eles ordinariamente são."
21
.
Continuando suas explanações, após esclarecer que tanto a tragédia quanto a
comédia são "nascidas de um princípio improvisado" __ a tragédia veio "dos solistas do
ditirambo" (composição lírica que exprime entusiasmo ou delírio) e a comédia, "dos
solistas dos cantos fálicos"
22
, Aristóteles continua à referir-se ainda a evolução da
tragédia até chegar ao mais conhecido autor deste gênero, Ésquilo.
Entretanto convém deixar de lado este gênero, já que o objetivo inicial desse
capítulo é tecer um fio condutor do cômico. Assim, apesar de serem poucas e
incompletas as informações sobre a fase embrionária do riso, convém resgatar aquelas
fontes mais confiáveis. Para alguns (até mesmo para Aristóteles), tudo teve início nas
festividades comemorativas das colheitas e nas festas religiosas, nas quais se dançava e
cantava, ou também, nas ocasiões especiais: banquetes de núpcias, festas populares e
demais comemorações, onde ocorriam cânticos dramatizados, com características
licenciosas e grosseiras.
Muitos pretendem encontrar nestas festividades e cânticos __ que chegaram a ser
proibidos em algumas oportunidades, em função de suas características injuriosas e
20
ARISTÓTELES. (1984), (III, 10).
21
Idem, ( II, 9).
22
Ibidem, (IV, 20).
45
agressivas, __ a semente do riso. Entretanto, é reconhecido que, com o passar dos tempos
e com os constantes contatos entre os povos do mediterrâneo, aos poucos essas
festividades foram evoluindo e aquilo que, a princípio, eram apenas brincadeiras
grotescas dos helenos, aos poucos vai se desenvolvendo, até adquirir a denominação de
farsa, __ paródias ainda obscenas representadas por atores mascarados.
No século V a. C., estas farsas já adquiriram por definitivo a denominação de
comédia, tendo, como representante principal, Aristófanes. A característica primordial
deste gênero é a preferência pela poesia satírica. De espírito mordaz e sarcástico, ela se
destaca pelos freqüentes ataques a figuras conhecidas da sociedade; e pelo tom político.
Manifesta-se, também, como a imprensa de oposição, sendo este o sinal marcante,
estando presente com tal característica, até nos dias de hoje. Esta comédia ficou
conhecida como Comédia Antiga.
No século IV a. C., surge a Comédia Média, que se notabilizou pelo culto a temas
mitológicos. No início do século III a. C., com o cansaço das guerras e o desejo de paz,
desaparecem os temas grotescos e surge então a Comédia Nova, que tem, como assuntos
principais, os fatos corriqueiros e engraçados, ocorridos com as pessoas das mais variadas
classes sociais. É a comédia de costumes que explora, principalmente, o amor
contrariado, o dia-a-dia do homem comum. São estas comédias que vão contaminar os
latinos Plauto e Terêncio. Os seus autores principais são: Menandro, Filémon, Dífilo.
Em sua fase inicial, a sátira era apenas uma espécie de poema de pouca extensão,
que abordava assuntos sérios, gracejos ou zombarias. Quanto à origem referente à
nocionalidade, há uma certa polêmica se ela provém dos gregos ou de latinos; e isto se
dá, principalmente, em função de um testemunho de Quintiliano: satura tota nostra est,
defende. Mas, na realidade, por mais paixão que se tenha pela literatura latina, não se
pode negar que esta, em seus primórdios, tem toda a sua origem na literatura grega e,
46
consequentemente, a sátira também tem origem com os helenos. Entretanto, em função
do espírito zombeteiro latino, a sátira, tendo em vista às suas características particulares,
adquire grande prestígio entre os romanos.
Para comprovar a influência da literatura grega, até os dias de hoje, vamos destacar
um fragmento do texto As rãs, de Aristófanes, V séc. a C. A cena é a seguinte: Dionisos e
seu escravo Xantias estão a caminho do inferno na tentativa de livrar Atenas da opressão.
O escravo carrega uma pesada trouxa nas costas. Os dois entram em cena assim:
Xantias _ Devo ou não, meu amo, dizer uma daquelas minhas habituais
graçolas, que sempre provocam o riso nos espectadores?
Dioniso _ Por Zeus, dizes o que quiseres, exceto, "estou apertado !"
Xantias _ Não poderei dizer outro chiste qualquer?
Dioniso _ Exceto, "como estou apertado!"
Xantias _ Como? Direi então o grande gracejo?
Dioniso _ Por Zeus, dize logo _ basta que não me digas uma coisa...
Xantias _ Qual?
Dioniso _ Que estás com vontade de cagar!
Xantias _ Nem mesmo devo dizer que, sobrecarregado com tanto peso
se não aparecer alguém que me alivie dele, eu vou soltar um
peido?
23
Esta aparente "brincadeira" tem a função de prender a atenção dos espectadores
(capitatio benevolentiae), já que o tema a ser tratado é o das guerras, traições e,
sobretudo, da libertação e sobrevivência de Atenas. Com isso, é lícito imaginar o efeito
crítico que as comédias provocavam na platéia em espaços projetados para receber mais
de cinco mil pessoas.
É, entretanto, com o romano Lucílio (148 a 102 a. C.), que se fixa, ainda que com
certas restrições, a sátira como é conhecida até os dias de hoje, ou seja: aquela
manifestação literária que focaliza a corrupção dos costumes e o luxo excessivo, além de
expor o íntimo do homem para depois atingir as mazelas da sociedade. Para Lucílio, a
23
BRANDÃO, J. S. (s. d. ) p. 90.
47
sátira tem um sentido amplo de provocação, sarcasmo e ironia.
Porém, é Terêncio (116 a 27 a. C.) quem primeiro nomeia a expressão Saturae
Menippeae. (Há quem atribua o mesmo feito a Varrão, contemporâneo de Terêncio). E o
adjetivo menippeae, provavelmente, está associado a Menippus, filósofo grego da escola
dos cínicos (ou Cinosarges), século III a. C. Esta escola, em função da completa
independência, despreza a riqueza, as convenções sociais, e obedece, exclusivamente, às
leis da natureza. É em função dessa liberdade incondicional, que os autores de sátira
encontram autonomia para falar com isenção, não só dos vícios, das distorções sociais,
como também dos poderosos. Quando se diz que a sátira não se presta ao servilismo e à
adulação, é este sentido que se instala no espirito satírico, verve da imaginação ainda
presente até os dias de hoje.
É com Juvenal que este gênero se estabelece, tendo em vista ter ele usado a sua
indignação a serviço da sátira. Por ser um homem permanentemente encolerizado em
função das injustiças, lança-se contra os vícios de Roma, cidade depravada e sem lei. De
forma livre e independente, denuncia a cobiça do dinheiro, tal como fazem os antigos
cínicos-estoicos.
Horácio, na época de Augusto, abandona os temas lendários e mostra o homem
vulgar, o inoportuno, a avareza, a ambição, os amores das mulheres casadas, cujas
aventuras com facilidade são logo identificadas. Sêneca faz uma sátira mordaz contra o
imperador Claudius, usando o riso profanador. Do mesmo modo, Petrônio, e sua obra
Satiricon, transforma uma série de aventuras, em fonte da crítica e de prazer. Da mesma
forma, Apuleio, em seu romance o Asno de ouro, dissemina, em sua obra, o tema satírico;
nela está a fusão do elemento religioso e o profano, e, em cada capítulo, revela a
carnavalização dos costumes daquela época. Diante de tais fatos, é difícil conter o riso.
48
Convém ressaltar que, apesar da repressão sofrida pelos autores de sátira, esse
gênero se destaca, principalmente, nos períodos mais obscuros de Roma. É no reinado de
Tibério que surge Fedro, é durante o tempestuoso Trajano que se destacam as sátiras de
Juvenal, e, da mesma forma, é no período de Nero que surge o talentoso Petrônio. Assim
é possível supor que o salazarismo também deve ter fornecido muito "material" para
Cardoso Pires zombar dos costumes da época. Como ilustração, citamos só o título da
obra: Dinossauro Excelentíssimo __ suficiente para indicar o grau de ironia e zombaria,
ao configurar, alegoricamente, a caricatura de Salazar. Fato este que muito lembra
Sêneca (4 a C. 65 d. C), em sua obra Apokolokyntosis, ou Aboborização, onde o autor
romano zomba do gordo imperador Cláudius Germânicus, ao transformá-lo em uma
imensa abóbora.
Plauto e Terêncio são os maiores representantes da comédia latina, mas os mesmos
só aparecem aqui por uma questão cultural, visto que seus textos estão mais centrados no
riso tradicional, na crítica aos costumes familiares. Isto é, suas sátiras não são sátiras no
sentido pleno da palavra atual, não fazem crítica ou ataques pessoais. Eles abordam
temas relativos à avareza, ao casamento por interesses, aos fatos pitorescos, às peripécias
dos deuses etc. Mas os vícios e os equívocos da República e dos poderosos não são
apresentados.
A origem do nome sátira perde-se no tempo, mas na tentativa de reconstruir o
percurso que o determinou, é possível atribuir dois caminhos que talvez possam levar até
a origem deste nome e, consequentemente, do gênero. 1) Satyros, são atores que dizem e
fazem coisas ridículas e vergonhosas. É também um semideus companheiro de Baco; 2)
Lanx = prato, satira = iguaria formada pela mistura de várias frutas e legumes. Ou seja, a
sátira pode ser compreendida como um prato cheio de muitas variedades de frutas que os
antigos ofereciam aos deuses à época das festas da colheita. Sendo, pois, assim, tais
49
festas relacionadas ao folclore, semelhante a muitas outras festividades, dentre elas, o
carnaval, o qual, também se faz presente em muitas situações satíricas.
Sendo possível aceitar a origem da palavra "sátira" de satura lanx, torna-se viável
conceber a sua relação com a literatura, pois a noção de "mistura" e de "abundância",
confunde-se, primordialmente, com a idéia de alimento para o corpo (físico), assim como
a sátira literária, (mistura de vários gêneros), por sua vez, "alimenta" o corpo espiritual.
Isto vai se confirmar com a própria etimologia de determinadas palavras. Exemplos:
Satiate (fartura), satiatus (saciado, farto), saties (fartura), satietas (abundância), satio
(plantação), satiare (fartar, saciar, saturar), satis (suficiente), satur (abundante, farto),
satura / satyra / satira (mistura, sátira literária), satus (ação de semear)
24
etc.
Como é possível constatar, esta etimologia própria do vocabulário da satura lanx
confunde-se com a mesma origem daquelas relacionadas a diversas referências com os
alimentos. E a idéia de mistura, própria da nutrição, também se faz presente no gênero
da sátira literária. Tal fato, provavelmente, deva-se a um deslocamento semântico
ocorrido nos últimos milênios, ou mesmo ainda pode estar relacionado com as primitivas
comemorações à época das colheitas, quando então ocorriam a mistura dos fatos
relacionados ao sagrado e ao profano, ao sublime e ao grotesco.
Portanto, ao misturar todos esses ingredientes iniciais, a partir de um certo tempo da
história literária, apareceu este gênero denominado de sátira menipéia. Nele é possível
encontrar um texto sem uma característica definida, sem um tema único, sem
personagens comportadinhas, sem uso apenas de vocabulário padrão, mas, sobretudo,
um texto que se caracteriza pela denúncia ou por apresentar coisas "ridículas",
"grosseiras" e "vergonhosas". Esse gênero, então, se distingue por ser um verdadeiro
prato cheio para ser apreciado por uns e detestado por outros.
24
FARIA, E. (1962) pp. 893 - 895.
50
A sátira latina está presente nos seus mais variados aspectos; mas, em função das
características do romance que estamos analisando, destacamos do livro Satyricon, de
Petrônio, um fragmento do conhecido episódio A Ceia de Trimalquião. Nesse texto, o
autor faz uma acentuada crítica aos novos ricos da época. Todo o baixo corporal
assinalando as imagens grotescas e os vícios são expostos, como a opor-se à riqueza
extravagante da época de Nero. Assim, o que está relacionado ao corpo __ flatos, arrotos,
vômitos etc __ faz parte da narrativa como um fato natural. Destacamos, pois, o
fragmento:
Entretanto, Trimalquião teve de ausentar-se para satisfazer uma
necessidade corporal. (...) (Depois, ao voltar, disse)
__ Amigos, perdoai-me. Já faz vários dias que tenho o corpo
desarranjado e nem mesmo os médicos sabem o que seja. Contudo, fez-
me bem uma infusão de casca de romã e de pinheiro no vinagre. Espero
que o meu ventre tome juízo; e se assim não for, tereis que ouvir alguns
rumores, semelhantes ao mugido de um touro. Aliás, se qualquer de
vós tiver necessidade de fazer o mesmo, não deve de nenhum modo
envergonhar-se. Somos todos de carne e osso, e creio que nada causa
tanto sofrimento neste mundo, do que ter a gente de conter-se. Estás
rindo Fortunata?
25
Tu que durante a noite me interrompes
continuamente o sono?
26
É impossível falar de sátira sem incluir esse tão "escandaloso e espetacular" livro
de Petrônio. Nele o leitor vai encontrar uma série de aventuras satíricas narradas por
Encólpio, jovem inquieto em busca de distrações e sensações extraordinárias. Estes
relatos acabam constituindo-se um verdadeiro retrato do Império romano. No banquete
identificado acima, são discutidos temas literários, filosóficos, mas também, como não
poderia deixar de ser, é possível notar a aguda crítica ao imperador Nero. E este acaba
por obrigar o escritor a matar-se, cortando os seus próprios pulsos, e, enquanto morria
lentamente, recitava os versos de suas sátiras. Felizmente este tempo passou; e o imenso
Império latino se transformou em várias nações independentes. Dentre elas vamos
25
Fortunata é o nome da mulher de Trimalquião.
26
PETRÔNIO. (s. d. ) p. 74.
51
encontrar, no século XVI, a nação francesa, com sua cultura e particularidades, entre as
muitas possíveis de serem destacadas, apontamos a literatura; em especial a obra de
Rabelais, a quem Bakhtin dedicou longo estudo.
O autor francês, dentre suas peculiaridades, tal como Petrônio, recorre ao baixo
material corporal para, também, falar da sociedade de sua época. Por sua vez, Bakhtin
analisa aquelas imagens que retratam a sociedade renascentista; onde o homem,
antropocêntrico, era capaz de todas as coisas.
Para melhor compreender Rabelais e o gênero da sátira menipéia, mais abaixo está
destacado um fragmento do livro: Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento:
o contexto de François Rabelais. Esse livro, organizado por Bakhtin, refere-se à obra do
escritor renascentista e este, por sua vez, descreve o célebre capítulo dos limpa-cus de
Gargantua (Livro I, cap. XIII) e, nele aparecem as imagens de uma sociedade circense e
surreal, capaz de provocar o riso, acentuando o nonsense e a transgressão.
Eis a descrição do episódio analisado por Bakhtin:
O jovem Gargantou explica ao pai que ele encontrou, depois de longas
experiências, o melhor limpa-cu que existe, que ele qualifica de "o mais
senhorial, o mais excelente, o mais expediente que já se viu".
Vem em seguida a longa lista dos limpa-cus experimentados: damos
aqui o começo.
"Eu me limpei uma vez com um cachenê de veludo de uma senhorita, e
achei bom, pois a maciez da seda me causou nos fundilhos uma
voluptuosidade bem grande;
"Outra vez limpei com um chapéu dela, e fez o mesmo efeito;
"Outra vez com uma echarpe;
"Outra vez com orelheiras de cetim carmesim, mas o enfeite de um
monte de bolinhas de merda que aí estavam me arranharam todo o
traseiro, que o fogo de Santo Antônio queime o buraco do cu do artífice
que as fez e da senhorita que as usava!
"Esse mal passou, limpando-me com um boné de pajem emplumado à
suíça.
"Depois, cagando detrás de uma moita, encontrei um gato e limpei-me
com ele, mas as suas garras me rasgaram todo o períneo.
"Disso me curei no dia seguinte, limpando-me com as luvas de minha
mãe, bem perfumadas.
52
"Depois limpei-me com sálvia, erva-doce, funcho, manjerona, rosas,
folha de couve, beterraba, de parra, de alface, (...)
27
Para Bakhtin
28
, entre as diversas manifestações do riso da Idade Média, o "limpa-
cu" é um tema "cômico tradicional e familiar". Isto induz a imaginar que, nas leituras
familiares, não havia censura ao tratar sobre o referido tema. Desse modo, esperamos
não causar estranhamento ao colocar esse exemplo aqui, uma vez que o romance
Alexandra Alpha contém muitas passagens grotescas, bizarras, próximas ou mais
"pesadas" do que o episódio descrito acima.
Como veremos mais à frente, o teórico russo separa em diferentes séries os
diversos métodos literários de Rabelais: "a série dos excrementos serve, em suma, para a
criação das mais surpreendentes vizinhanças entre as coisas, os fenômenos e as idéias;
serve para destruir a hierarquia e o quadro materializado do mundo e da vida"
29
. Em
outras palavras, isto quer dizer que um mesmo objeto pode ter outra utilidade
completamente diferente daquela função a que se destina. Um cachecol de veludo de
uma princesa, por exemplo, pode transformar-se em toalha, em um pano de chão, ou
limpa-cu; desta forma, a sua função primordial é rebaixada e carnavalizada.
Mas o que está em jogo é o aspecto da renovação, da invenção de uma nova
realidade, "tese" esta, própria do grotesco; por outro lado, a mudança ou aproximação
entre uma atividade "nobre" com outra "popular" e, aparentemente "baixa", está
associada com a sátira. Nestes procedimentos estão presentes não só a noção da série dos
excrementos, como a de todas as outras relacionadas à sátira. Em função da
aproximação entre o "alto" e o "baixo", entre o "sublime" e o "grotesco", um autor sátiro
27
BAKHTIN, M. (1987) p. 326.
28
Idem. P. 333.
29
BAKHTIN, M. (1998) p. 300.
53
pode substituir um grito de liberdade por um estrondoso peido, como veremos na série do
corpo humano, anatômico e fisiológico.
Assim, a vizinhança ou aproximação de elementos opostos, em Rabelais, é feita,
como vista, no episódio descrito acima, quando Gargântua explica ao pai o resultado da
pesquisa que fez para encontrar o melhor limpa-cu do mundo. Para Bakhtin
30
, no
episódio citado acima, todos os "objetos que serviram de limpa-cus são destronados antes
de serem renovados. Suas imagens apagadas ressurgem sob uma luz nova".
Centenas de anos depois, em situações ocorridas no final do século XX, ainda é
possível encontrar, em um texto, traços típicos que revelam, ao leitor, sinais possíveis de
serem relacionados àqueles do passado. Em função de suas excentricidades, parecem
aquelas exóticas manifestações ocorridas em um tempo precedente ao cristianismo.
Destacamos, pois, do romance Alexandra Alpha, "o caso das monjas desnudas e dos
monstros de Deus", que parecem bem representar aquilo que Bakhtin
31
, assim, descreve:
"Uma particularidade muito importante da menipéia é a combinação orgânica do
fantástico livre e do simbolismo e, às vezes, do elemento místico-religioso com o
naturalismo de submundo extremado e grosseiro". Segundo o tradutor, professor Paulo
Bezerra, o "naturalismo de submundo" refere-se "ao mundo das camadas mais baixas da
sociedade, ao submundo humano"
32
.
Esta "combinação do elemento místico-religioso e o naturalismo de submundo
extremado e grosseiro" será destacada no capítulo religião, sexo e riso, onde também se
aponta a exploração do aparecimento do mito de Fátima.
Desse modo, apesar dos avanços dos séculos, quando se trata do riso ou de
comemorações festivas, parece que o homem sempre volta a seus atos primitivos. Pois
30
BAKHTIN, M. (1987) p. 327.
31
BAKHTIN, M. (1981) p. 99.
32
Idem. P. 99.
54
pouco importa se ele celebra um culto a Dionísio na Grécia Antiga, se está no interior de
um palácio do século XVI, ou se no Sambódromo do ano 2008. O que mais importa é
subverter os valores onde todos possam encontrar as mesmas possibilidades de alegria e
de prazer.
Continuando a desenvolver esse percurso sobre a sátira menipéia, é possível
encontrar características que estão na origem desse gênero cômico-sério, em Portugal,
através de alguns autores. Segundo Faria,
Na literatura portuguesa temos a sátira social e de costumes
referenciada, por exemplo, nas cantigas da Idade Média, no
Cancioneiro Geral (nas trovas de D. Duarte da Gama censurando "as
desordens que agora se costumam em Portugal"), na época de transição
entre a Idade Média e o Renascimento (a sátira de tipos e situações
sociais em Gil Vicente), nos séculos XVII e XVIII (período de
ocupação filipina, em que as manifestações satíricas fundiam-se com o
panfleto político e com o manifesto da resistência). No século XIX,
com o advento do Liberalismo, A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo
Branco satiriza o parlamentarismo, a vida rural e urbana, configurando a
caricatura da corrupção individual; com Eça de Queiroz e a geração de
70 modernizam-se os moldes da sátira, apontando-se a crise social da
vida portuguesa e acordando a geração da época de seu torpor e
indiferentismo. Com o advento do regime republicano e o início da
primeira guerra (1914 - 18), a sátira passa a exercer-se no plano de uma
incompleta desmistificação ideológica: irreverência crítica e ataque à
literatura convencional e institucionalizada torna-se um procedimento
de Almada Negreiros no Manifesto Anti-Dantas (1915). Após a
implantação do estado totalitário em Portugal (1933), a sátira perde o
seu caráter claramente panfletário, retira-se da vida social e política
portuguesa, sutilizando-se metaforicamente durante os anos de
repressão (cf. Dinossauro Excelentíssimo de José Cardoso Pires,
publicado em 1972) e ressurgindo no literatura pós-revolução de 1974.
Em O Triunfo da Morte de Augusto Abelaira observamos referência às
alternâncias e instabilidades políticas e sátira às manifestações literárias
antiga e atual
33
.
Este mosaico histórico-literário nos revela um panorama da sátira estendido sobre o
solo português. Através deste "mapa", é possível despertar, em qualquer pesquisador, o
desejo de reler determinados autores. Certamente que, em cada um deles, será possível
33
FARIA, A . B. (1999) pp. 81 - 2.
55
encontrar um testemunho, um desenho daquilo que fora a sociedade portuguesa da época
retratada, especialmente em Gil Vicente. De igual modo, se para Augusto Abelaira a
sátira torna-se um forte instrumento para criticar, entre outras coisas, a propaganda
enganosa ou ilusória e o desencanto com as utopias políticas, em José Cardoso Pires, ela
é dirigida para a cúpula do poder e à sociedade como um todo, através da falta de sentido
existencial ou em função da contradição e do nonsense, vivenciados pelas personagens.
A poesia satírica (de escárnio e maldizer), explorada na Idade Média, era o avesso
das cantigas de amor que seguiam as normas do amor-cortês. Naquela existia o espaço
da liberdade de criação, uma vez que não seguia os modelos preestabelecidos pelos
trovadores de Provença, (sul da França); não havia censura nos temas nem nas palavras.
Segundo Ester de Lemos, é possível perceber os variadíssimos recursos dos temas
satíricos:
(A poesia satírica), habitualmente, tende para a caricatura dos vícios e
ridículos individuais, desde a beberronia, a soltura de costumes ou a
avareza de uns, a disformidade física, ao mau gosto no traje ou à
fastidiosa tagarelice de outros. Crítica anedótica, circunstancial, das
fraquezas, misérias e vergonhas individuais, tem, freqüentemente, um
caráter grosseiro e obsceno, outras vezes, simplesmente caricato e
grotesco
34
.
E ainda, a poesia, o teatro, a prosa, quando abordam o quotidiano, manifestam, de
forma chistosa, os aspectos de personagens humildes com os seus mais variados modos
de vida: o vestir, as ocupações, os aspectos físicos e, não só, mas também, o contraste de
idéias, o nonsense. Por outro lado, o mesmo instrumento que ataca o clero, ataca o
moral, o político, onde o cômico se manifesta em razão das numerosas contradições e
fatos paródicos.
Como foi apontado acima, a sátira se destaca, particularmente, no período de
opressão ou da desordem. E um texto que marca muito bem um período da opressão
34
LEMOS, E. (s. d. ) p. 49.
56
portuguesa, é o Auto dos Anfitriões, peça de teatro do já aclamado Camões, cuja
elaboração se dá tendo como fonte polifônica o reconhecido autor latino, Plauto. O texto
camoniano se projeta, talvez, pelo fato de, no final da década quinhentista, Portugal viver
sob grande opressão religiosa, chegando mesmo a ser proibido o teatro vicentino. Pois
esse autor, com grande propriedade, não media esforços para criticar os maus costumes
da corte e da igreja. Em suas sátiras ele ataca os grandes e os poderosos que favoreciam
o desequilíbrio da ordem e da harmonia. Critica o aristocrata orgulhoso, o frade
libertino, o juiz corrupto.
Teyssier aponta alguns motivos da "ruptura" dessa ordem, fonte inesgotável da
sátira vicentina:
A bela harmonia, assegurada pelo Monarca e pela Fé, porém, é
incessantemente quebrada. O que reina na sociedade, na Igreja e no
mundo é muitas vezes a desordem e a confusão. Este "desconcerto do
mundo", como dirá mais tarde Camões, não pode ser ignorado. Na
época de Gil Vicente, mais do que em qualquer outra, era por todo
evidente. Os descobrimentos tinham alargado prodigiosamente as
dimensões da terra. Guerras devastavam a Europa. A Igreja, por fim,
estava em crise. Como exaltar a "ordem" num tal caos?
35
No final do século XX, Cardoso Pires mantém o propósito de criticar não só a
cúpula do poder, como também outros níveis sociais, inclusive, a alienação da sociedade
burguesa, no período salazarista. Do primeiro grupo ele aponta as contradições e os
equívocos de procedimentos; do segundo, ou seja, dos que estão à margem do poder, ele
expõe os vícios, as manias, as "loucuras", das quais, passados os limites, desponta o riso
de zombaria. Das diferentes formas de externá-lo, destacam-se as intervenções das
personagens que se manifestam por artifícios de situações, ou mesmo através da
linguagem de baixo calão. Entretanto, quando uma delas desabafa e diz: "é só para te
mandar para a puta que te pariu" (AA, 321), ou ainda, "(Afonsinho) sentou-se com um ar
35
TEYSSIER, P. (1985) p. 153.
57
composto e enjoado e sempre a fazer boquinha de cu" (AA, 297), o leitor não precisa
ofender-se com o vocabulário empregado, uma vez que ele é inerente à personagem que
o utiliza, em decorrência de uma determinada situação vivida e da "livre familiaridade
entre os homens", sendo esta uma das características da sátira menipéia. Conforme
Bakhtin
36
, "o discurso dialogado dos festins possui o direito de liberdade especial,
excentricidade e ambivalência, ou seja, podem-se combinar, no discurso, o elogio e o
palavrão, o sério e o cômico."
Quando este autor refere-se ao "discurso dialógico dos festins", faz alusão ao
symposion, diálogo com temas diversos comuns nos banquetes ou festas familiares, já
existentes antes à época socrática. Porém, no início da era cristã, traços de tais
festividades são encontrados ainda em pleno vigor em o Satiricon, de Petrônio;
particularmente, no conhecido banquete oferecido por Trimalquião, como foi mostrado.
Evidentemente que com certas limitações, em Alexandra Alpha, podemos
identificar algumas analogias com os clássicos episódios do symposion ou banquete,
tendo em vista que a comida e a bebida são os principais elementos que motivam a
reunião entre amigos. O diálogo é apenas uma conseqüência motivada pela embriaguez.
Portanto, em Alexandra Alpha, nos freqüentes encontros ocorridos nos bares, boîtes, e
restaurantes, existe a presença, ocorrem os indícios ou sinais daquilo que um dia foi
denominado de symposion. Fatos que serão abordados nas séries da nutrição, bebida-
embriaguez.
Ainda conforme Bakhtin:
A menipéia se caracteriza por um amplo emprego dos gêneros
intercalados: as novelas, as cartas, discursos oratórios, simpósios, etc.,
e pela fusão dos discursos da prosa e do verso. Os gêneros acessórios
são apresentados em diferentes distâncias em relação à última posição
36
BAKHTIN, M. (1981) p. 103.
58
do autor, ou seja, com grau variado de paródia e objetificação. As
partes em verso sempre se apresentam com certo grau de paródia
37
.
Como foi dito, Alexandra Alpha é um romance multiestrutural. Ele se caracteriza
por apresentar variados elementos narrativos e, por isto, em certos momentos, ocorre a
dúvida se estamos lendo um romance, um roteiro de cinema, um poema lírico ou épico,
uma longa crônica jornalística com alusões a grandes e pequenos acontecimentos, em que
estão presentes os tipos sociais e as denúncias relacionadas ao contexto da Revolução de
Abril, e aos períodos que a antecedem e sucedem. Enfim, o romance também parece um
relato testemunhal ou um "diário do escritor". Desse modo, aí está mais um pouco do
seu aspecto que se faz relacionar à menipéia. Este "cruzamento" de gêneros reflete-se no
que ainda é possível acrescentar de Bakhtin (1981, p. 102):
A existência dos gêneros intercalados reforça a multiplicidade de estilos
e a pluritonalidade da menipéia: aqui se forma um novo enfoque da
palavra enquanto matéria literária, característico de toda a linha
dialógica de evolução da prosa literária.
Para acrescentar, com relação aos "gêneros intercalados", Cardoso Pires recorre até
à publicidade (ocupação da protagonista), a fotos e "slogans" de propagandas; tais
recursos, de forma indireta, "circulam" no romance quase como personagens. E ainda,
talvez em função da mistura entre os diferentes gêneros, é possível encontrar variados
procedimentos do riso. Dentre eles, destacam-se: os jogos de palavras, os provérbios, os
ditos populares, infração às regras de bom-tom, comportamento excêntrico, uso de
palavras inapropriadas, cínicas, profanadoras etc. Estes elementos chistosos, espalhados
ao longo do texto, farão com que o mesmo se transforme (dependendo, aqui, do ponto de
vista do leitor), em um romance muito agradável de ler. Pois a profanação, a paródia e a
37
BAKHTIN, M. (1981) P. 101.
59
excentricidade, freqüentemente, pontuam de humor a narrativa.
Ainda segundo Bakhtin, ao falar das particularidades da sátira menipéia:
Na menipéia aparece pela primeira vez também o que podemos
chamar experimentação moral e psicológica, ou seja, a representação de
inusitados estados psicológico-morais anormais do homem __ toda
espécie de loucura ("temática maníaca"), da dupla personalidade, do
devaneio incontido, de sonhos extraordinários, de paixões limítrofes
com a loucura, etc.
38
Esta reflexão, coincidentemente, induz-nos à relacioná-la ao que vai ser dito,
inclusive, sobre a personagem Afonso Pompadour. No romance Alexandra Alpha, tal
indivíduo é capaz de preencher todos os requisitos apontados acima. Sua grotesca
"experimentação moral" introduz, freqüentemente, muitas situações divertidas e
transgressoras, reveladas por sua própria natureza.
Precisamos ainda destacar o aspecto do grotesco, freqüentemente encontrado no
romance em estudo. Ali ele se manifesta em suas várias particularidades; principalmente,
nas cenas das monjas desnudas e dos monstros de Deus, nas freiras a caminho de Fátima,
no travesti semiótico, em Afonso Pompaduor e seus manequins torturados, e alguns
outros exemplos.
Embora pareça surpreendente, nojento ou grotesco, as freiras "irem para a cama
com os seres mais repelentes deste mundo", ou seja, com "os quasímodos, os lepras-
mansas, os desbraçados e tremebundos", isto não é novidade na literatura. Visto que o
grotesco é passível de ser encontrado em Homero, em Virgílio, nas Sagradas Escrituras
etc; no Renascimento (séc. XVI) e no Romantismo (séc. XIX), ao ser retomado, torna-se
fonte de algumas proveitosas querelas.
Grotesco vem de grota. Do latim vulgar, crupta, (do clássico, crypta), do grego,
38
BAKHTIN, M. (1981) p. 102.
60
crýpte, = cova, gruta, caverna. O sufixo -esco significa origem, semelhança
39
. Grotesco,
portanto, no sentido pleno da palavra, é aquilo que vem da grota, da gruta, das cavernas,
da cova, dos escombros etc. A princípio, esta denominação surgiu para designar os
ornamentos encontrados nas escavações realizadas em Roma, no final do século XV.
Trata-se de uma pintura diferente, vinda do estrangeiro, desconhecida até então. Ela
apresenta violação e transgressão praticamente em tudo; particularmente na forma, pois
a técnica consistia de experimentos que misturavam árvores com seres humanos, flores
com animais. Isto dá um resultado, no mínimo, estranho, e, consequentemente,
provocava o riso, o inesperado; a noção de "humor negro" vem daí. Os afrescos
encontrados nos antigos palácios e termas romanas, mais tarde, influenciaram muitos
artistas, e os séculos XVI, XVII e XVIII tornaram-se férteis nas artes plásticas; pois
muitos pintores foram "contaminados", por aquele estilo encontrado nas escavações
romanas. Goya e Salvador Dali são exemplos, dentre muitos outros, que fizeram uso do
"grotesco".
Este gênero, com o tempo, se estende para a literatura e o fantástico, o macabro, o
excêntrico e o obsceno assumem a nossa realidade cotidiana, desestruturando as leis
previamente estabelecidas. Daí resultam o riso, o nojo, o horror, o espanto, mesmo
naquele grotesco mais atenuado, encontrado no lúdico ou na sátira
40
.
O grotesco lúdico atenuado se faz presente, particularmente, nos contos de fadas;
dentre tantos podemos destacar: O barba azul, A donzela sem mãos, A menina dos
fósforos, João e Maria, A bela adormecida, A bela e a fera; este último texto, baseado
nas teorias do Romantismo, revela o perfeito cruzamento entre o grotesco e o sublime,
conforme as idéias contidas em Cromwell, de Victor Hugo.
39
CUNHA, A . G. e al. (1994) p. 397.
40
ROSENFELD, A . (1969) p. 59.
61
A multiestruturação do romance Alexandra Alpha permite identificar cruzamentos
de temas bem diversos. Ora eles se aproximam, ora são extremados, o que nos ajuda a
seguir algumas indicações apresentadas por Bakhtin
41
, ao estudar a obra de Rabelais.
Aqui admitimos a marcante influência deste livro, particularmente o capítulo que fala
sobre o Cronotopo de Rabelais, fonte de conhecimento que muito contribuiu para a
realização de nosso trabalho. A referida obra do teórico russo nos ajuda a identificar, em
Alexandra Alpha, algumas, dentre as séries que ele nomeou como: "1) Séries do corpo
humano do ponto de vista anatômico e fisiológico; 2) Séries da indumentária; 3) Séries
da nutrição; 4) Séries da bebida e da embriaguez; 5) Séries sexuais (copulação); 6)
Séries da morte; 7) Séries dos excrementos". Sendo que, segundo o teórico, "todas as
séries se cruzam".
O que foi apresentado, sobre o percurso da sátira, não significa a intenção de
reconstruir uma diacronia completa sobre a mesma, mas apenas constatar que alguns
aspectos do riso, encontrados no romance Alexandra Alpha, fazem parte de uma atitude
inerente a uma parcela de escritores. Todo o comentário acima, portanto, sobre os
vários outros autores, serve apenas como demonstração de que algumas estratégias de
escrita, usadas por José Cardoso Pires, são recursos ou temas que incomodam o homem
desde os primórdios da existência humana. Também é possível verificar que, quando o
assunto é a crítica, a sátira é o gênero literário mais constante na ficção contemporânea.
A seguir, procuraremos correlacionar a teoria estudada à analise literária de alguns
fragmentos narrativos presentes no romance cardoseano que tanto nos fascina.
41
BAKHTIN, M. (1998) p. 285.
3 - Destronamentos e renovações: para além dos contratos sociais
3.1 - Sátira e costumes sociais
No romance Alexandra Alpha, Cardoso Pires, ao modo de Sócrates, reúne os seus
"convidados" em alguns pontos da cidade e, através da maiêutica, os faz "parir" a verdade
sobre Portugal. E a descrição dos fatos transcorre da mesma forma em que eles são vistos
pelo narrador. O comportamento excêntrico e o vocabulário de suas personagens são
descritos de modo a suscitarem ser o mais natural possível. Daí a ausência de "seleção"
no que elas dizem, daí a presença dos palavrões, dos trocadilhos, das declarações
inoportunas, do jogo de palavras, da violação da etiqueta e tantos outros aspectos que,
juntos, representam ou caracterizam a época sob o domínio de Salazar. Parece que, se
por um lado, a opressão tenta estabelecer regras de procedimentos sociais, por outro, em
função da alienação, os portugueses procuram escapar delas por meio de certos artifícios,
de modo a não se deixar mostrar que estão sob a tutela de um sufocante sistema de
governo.
Ainda que em época distante, Rabelais também fala de uma sociedade onde as
regras de bem viver devem ser bastante alteradas. "A tarefa de Rabelais é limpar o
mundo dos elementos que o corrompem", identifica Bakhtin
42
. "(É) preciso destruir e
reconstruir todo este falso quadro do mundo, romper todas as falsas ligações hierárquicas
entre as coisas e as idéias, eliminar todas as camadas intermediárias que as separavam"
43
.
Assim, ao estudar o autor renascentista, o teórico russo classifica alguns procedimentos
que permitem a articulação do riso e baseia-se na ideologia e no método
42
BAKHTIN, M. (1998) p. 283.
43
Idem, p. 284.
63
literário de Rabelais, e para alcançar esses objetivos, separou, em séries "muito
diversificadas", aquilo que está tradicionalmente vinculado, e articulou a aproximação
daquilo que está freqüentemente separado. Conforme esta "classificação", as referidas
séries "podem ser enquadradas nos seguintes grupos principais":
1. Séries do corpo humano do ponto de vista anatômico e fisiológico; 2.
Séries da indumentária; 3. Séries da nutrição; 4. Séries da bebida e da
embriaguez; 5. Séries sexuais (copulação); 6. Séries da morte; 7. Séries
dos excrementos.
Cada uma destas séries possui sua lógica específica, suas dominantes.
Todas estas séries se cruzam
44
.
A seguir, abordaremos algumas destas séries, quando possíveis de serem
identificadas no texto em análise, pois como veremos, ora umas são mais visíveis, ora
outras são mais subentendidas. O que não se pode esquecer ou perder de vista é que
"todas estas séries se cruzam". Ou seja, todas aparecem intercaladas e uma ou outra
pode ser tratada, nesta ou naquela série, e isto se dá em função da dinâmica de seus
procedimentos; ou seja, nenhuma delas ocorre em um momento estático. Em um
banquete, por exemplo, temos a comida, a bebida, a embriaguez, o vômito, os flatos, a
vestimenta (ou nudez), a sexualidade (a beleza física ou deformidade corporal), tudo se
desenvolvendo e se destacando em suas particularidades; por este motivo, cada uma delas
tem o seu momento especial.
Os procedimentos descritos a seguir revelam, de modo geral, a articulação do riso
nos seus mais variados aspectos, em especial, aqueles relacionados a atividades sexuais,
"contrárias aos bons costumes"; os quais "contaminam" todo o romance Alexandra Alpha.
Tais procedimentos situam-se, principalmente, naquela parte do romance que trata dos
44
BAKHTIN, M. (1998) p. 285.
64
fatos ocorridos antes da Revolução.
As alusões ao regime salazarista, em Alexandra Alpha, por vezes, remetem a
determinadas atitudes burlescas ou satíricas dos membros do governo, como, por
exemplo, a referência a Salazar, representado, alegoricamente, como um "dinossauro":
"Mas o velho dinossauro, só queria ver-se livre dos devotos e mal a porta se fechava
estendia o braço descarnado para apalpar o cu das enfermeiras" (AA, 139).
Agora, com base nos estudos bakhtinianos, destacaremos as principais séries
possíveis de serem encontradas no romance Alexandra Alpha.
3.1.1 - Religião, sexo e riso
O subtítulo acima relaciona-se, principalmente, à série dos excrementos e a mesma,
conforme Bakhtin, tem elevado grau de importância e freqüência no gênero sátira;
principalmente em função de sua costumeira proximidade com a religião. E isso ocorre
porque, desde os tempos primitivos, as celebrações festivas, relacionadas à fé, sempre
estiveram muito próximas ao riso. Nas saturnais (festas em homenagem a Saturno) e nas
cerimônias dionisíacas, era impossível dizer onde acabava o rito religioso e começava o
profano, já que na mesma celebração tudo se misturava. E essa prática, ainda que com
algumas alterações aqui e ali, atravessou os primórdios e o ápice de muitas civilizações,
passou a Idade Média e chegou ao folclore dos nossos dias. Assim, hoje, no carnaval,
nos festejos juninos, e em outras comemorações populares, a religião e o riso estão
presentes, muitas vezes, como elementos inseparáveis. Desse modo, não só em função
65
desta mistura tradicional, mas, dependendo da intenção do escritor, é possível ocorrer, na
literatura, aquilo que Bakhtin denomina de profanação:
O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado
com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o pequeno, o
sábio com o tolo, etc.
A isto está relacionada a profanação. Esta é formada pelos
sacrilégios carnavalescos, por todo um sistema de descidas e
aterrissagens carnavalescas, pelas indecências carnavalescas,
relacionadas com a força produtora da terra e do corpo, e pelas paródias
carnavalescas dos textos sagrados e sentenças bíblicas, etc.
45
No texto em análise, é possível destacar o tema da profanação. Ali estão presentes
a mistura do sagrado e do profano, do grotesco e do sublime. O episódio a seguir é
descrito quando Opus Night e o amigo Nuno Leal chegam a um bar-restaurante,
"gloriosamente iluminado". No bar, sentaram-se a uma mesa dos fundos. Logo em
seguida, aparecem duas prostitutas que "margeavam as faixas de rodagem". Elas bebem
e conversam com os dois amigos, um deles atribui a elas uma sugestiva denominação:
"anjos trepadores". Do lugar onde estão sentados, os dois amigos vêem os carros que
passam na auto-estrada a caminho de Fátima. Dentre estes carros, que circulam na
estrada, existem alguns com faixas que anunciam: "SERVA DE STA ZITA!
PARÓQUIA DE SÃO BOSCO ! RAINHA DA PAZ !" (AA, 79). Enquanto Opus Night
e o amigo bebem e conversam com as prostitutas, estaciona um dos carros cheio de
romeiros:
Do outro lado da vitrine chegou um autocarro de peregrinos a entoarem hinos
sagrados. Parou, e ato contínuo saltou lá de dentro numa aflição de velhas
corcundas, solteironas, cristãos estropiados e senhoras de mantilhas, e todos à
uma, invadiram o bar a caminho das latrinas, com o motorista e duas freiras no
comando. Uma delas não se sabia se corria para aliviar a bexiga, se para se
livrar dum cão vadio que lhe tinha filado com os dentes o rosário que ela trazia
à cinta. Um estardalhaço, uma desorientação. A irmãzinha esperneava, o
cachorro mordia e o Opus Night iluminava-se em gargalhadas.
(AA, 81)
45
BAKHTIN, M. (1981) p. 106.
66
Aqui podemos retomar Bakhtin
46
que destaca: "Uma particularidade muito
importante da menipéia é a combinação (...) do elemento místico religioso com o
naturalismo de submundo extremado e grosseiro." Esta concepção teórica materializa-se
na cena descrita acima. Contudo, ao falar dos "peregrinos a entoarem hinos sagrados" "a
caminho de Fátima" (AA, 79), o narrador prepara uma surpresa. Antes de chegar à
Fátima, é necessário que todos interrompam o canto e a viagem. É preciso descer do
"autocarro" e correr "a caminho das latrinas".
Diante de tal fato, parece que o narrador brinca e se diverte com a situação, uma
vez que, ironicamente, a palavra "caminho" assume duas conotações semânticas bem
distintas. Enquanto os peregrinos cantam hinos sagrados em direção ao santuário de
Fátima, o termo caminho induz fé, retidão, limpeza, purificação, algo que os poderá levar
até ao paraíso. Por outro lado, quando eles descem do autocarro, a "caminho das
latrinas", caminho aqui tem conotação contrária da anterior. Todos, em função das
necessidades fisiológicas, são forçados a entrar nas latrinas, nos purgatórios, no tártaro
infernal, no aqueronte; local de imundices e do submundo humano, de onde, depois,
todos sairão aliviados, e, consequentemente, "purificados", prontos para prosseguir a
"viagem" à Fátima.
O narrador, ironicamente, "empurra" as religiosas para aquele mundo das privadas,
o mundo das trevas, do qual ninguém está livre. A "aflição" das "freiras", das
"solteironas", das "senhoras de mantilhas" é a mesma: todas estão "apertadas" e querem
aliviar-se daquele "peso" sujo, daquela "força do corpo", contra a qual, ninguém é capaz
de manter totalmente o controle. Estas situações assemelham-se muito bem àquelas
encontradas em sátiras de grandes autores, dentre eles, Petrônio, Rabelais, Boccaccio,
Gil Vicente etc. Sem esquecer de Aristófanes que, em As rãs, Xantias, o escravo de
46
BAKHTINS, M. (1981) p. 106.
67
Dionísio, de forma divertidíssima, ameaça defecar no palco. Ambos aproximam o
sublime do grotesco: e este enaltecer religioso convive com a necessidade fisiológica da
evacuação; a abstração da fé dilui-se em um ato concreto e inusitado, na intriga da
narrativa.
Conforme a classificação das séries corporais articuladas por Bakhtin, ao estudar a
obra de Rabelais, neste momento estamos, portanto, diante da série dos excrementos. E
como já destacou o teórico russo, "todas as séries se cruzam", isto quer dizer que,
algumas vezes, um tema pode se aproximar ou pertencer a mais de uma série. Fato que
poderemos constatar no capítulo seguinte ou ao longo da análise de outras séries que aqui
aparecerão.
O episódio dos romeiros ainda não terminou. O picaresco Opus Night, o amigo
Nuno Leal e as duas prostitutas contribuem, no que se refere à manutenção da ironia e do
humor. Na cena a seguir, alguns "valores" estão visivelmente invertidos, carnavalizados,
pois apresentam um mundo contrário do habitual, ou seja, não estando de acordo com as
gargalhadas de Opus Night, é Sabrina, a prostituta ruiva, que intervém a favor da freira:
"Eu por acaso não achei graça nenhuma" (AA, 82), diz: E ainda referindo-se ao susto da
freira perseguida pelo cachorro: "Cada um tem direito à sua fé, coitadinha da irmãzinha",
(AA, 82). E prossegue:
A ruiva: Eu, por sinal, até sou batizada pela Igreja.
Opus Night: Você fecha mais é a cloaca.
A ruiva: Eu? Fechar o quê?
Opus Night: A cloaca. A meia-ostra. A cuspideira.
Misete: Amonta-te coisinha. És peluda, nunca pensei.
A ruiva rosnou: A peluda está aqui entre as pernas.
Misete: ih, ih
A ruiva: Isto, ri-te. (AA, 82)
O riso aqui será motivado por algumas fontes distintas. 1) A própria descrição da
cena; 2) O fato de o narrador conferir à prostituta sentimentos verdadeiros, sérios,
68
nobres, que revelam a sua condescendência e preocupação humanitária, e, logo depois,
vir a "rebaixá-la" __ momento em que se instalam, no texto, forte conotação erótica e
vocabulário chulo. Ao cômico de situação alia-se o cômico de linguagem, a partir dos
conceitos ou premissas de ignorância/ conhecimento, captados pelo leitor e pelo
espectador da cena; 3) O desconhecimento do termo empregado pela personagem, o que
provoca uma interpretação equivocada e ambivalente.
Opus Night diz a Nuno Leal que aquela noite prometia "um serão dos antigos",
visto que eles haviam encontrado "dois vaga-lumes" (as prostitutas) que lhes "tinham
vindo à mão na rota dos peregrinos de Fátima" (AA, 83). Entretanto, "Misete e Sabrina,
com seus cuzinhos fosforescentes, não passavam dum somenos no destino da nação" (AA,
83). Observamos que o grotesco, em Cardoso Pires, deforma para revelar a verdadeira
condição da realidade pessoal e social do país e da época em que o autor se insere.
Nos episódios acima, resguardadas as devidas diferenças, Cardoso Pires nos faz
lembrar Saramago. Nesses autores, a religiosidade aparece com um apelo muito forte,
envolvendo fé e sexualidade. No romance Memorial do convento, as festas religiosas
desenvolvem-se entre procissão, penitência, gozo, e mulheres no cio. A quaresma é
quase uma orgia coletiva. Mas, no entanto, no Memorial, essa dessacralização apresenta
um riso mais sutil. Já em Alexandra Alpha, a mistura do sagrado e do profano dá este
"tom" de comédia, de carnavalização, por isto o riso inevitável.
De acordo com Bakhtin, o cômico se caracteriza pela satisfação que vem do
"rebaixamento das coisas elevadas." É o que aqui acontece. As religiosas são levadas a
agir do mesmo modo como o fazem as mulheres do povo, ou seja, todas, sagradas ou
profanas, "cometem" os seus "atos de impurezas". Quando as freiras descem do
autocarro e "invadem" "o bar a caminho das latrinas", o "descer" aqui é literal e
denotativo, no entanto, semânticamente, o descer adquire um sentido conotativo de "ir
69
às profundezas", "voltar ao inferno", e é este o sentido pleno do verbo grego,
"katabaino".
Enquanto a maioria dos peregrinos concentra-se nas "retretes do bar-restaurante",
Opus Night e o amigo falam de sexo e de "cuzinhos fosforescentes". Simultaneamente a
isto, o cão vadio e a freira lutam: ela esforça-se para proteger o rosário que traz à cintura,
e ele tenta puxá-la, mas ninguém sabe para onde. Parece que, repentinamente, o pátio e o
posto de gasolina transformaram-se em um cenário de filmagens. Como se estivesse
assistindo a uma comédia de costumes, Opus Night diverte-se com os inesperados e
surpreendentes acontecimentos. A peregrinação e aquele local são parodiados, os
religiosos assemelham-se a membros de uma trupe de artistas mambembe, ou de um
bloco carnavalesco.
Por outro lado, ao invés de a freira compadecer-se da prostituta, é esta quem
defende a religiosa daqueles que zombam de sua fé. A "luta" entre a freira e o "satanás
em forma de cão de estrada" (AA, 82) revela, possivelmente, o desejo de "sacudir" esta
viciosa exploração do lucrativo mito de Fátima. Invertem-se, portanto, os papéis sociais.
Nas cenas descritas, além das situações criadas, a linguagem utilizada pelas personagens
estabelece a contaminatio, isto é, a profanação do sagrado com o grotesco, do sublime
com o sujo, marcas essenciais capazes de provocar o riso. Portanto, as características
apresentadas como indícios da menipéia não poderiam ser mais submundanas e naturais,
como nos ensina Bakhtin.
Em uma tragédia jamais seria descrita uma cena em que fosse possível aparecer um
grupo de "velhas corcundas em aflição, solteironas, cristãos estropiados e senhoras de
matilhas, e todas à uma, a invadirem um bar à procura das latrinas". O riso é inevitável,
porque já sabe o leitor que se trata de um grupo de religiosos que vão a caminho de
Fátima. Numa narrativa tradicional, em um texto "bem comportado", o leitor poderia
70
esperar que um grupo de peregrinos pudesse parar à sombra de um agradabilíssimo
bosque, ou à beira de um maravilhoso riacho, onde aquelas senhoras pudessem meditar,
lavar as pontas dos dedos ou as faces rosadas.
Mas não, ao invés disso, Cardoso Pires "imita __ retornando a Aristóteles __, os
homens piores do que ordinariamente são". E por isto, ele envia suas peregrinas para as
"latrinas". Daí, como resultado, a paródia, a comédia, o riso.
A lição que se pode tirar desse grupo de senhoras e freiras é que nos seus elevados
graus de espiritualidade, nos seus santificados passeios a caminho de Fátima, existe a
sátira e ela está aí para anunciar (e denunciar) que, no fundo, no fundo, todos são iguais e
as secreções tornam-se o fio da balança a unir o alto e o baixo, o sagrado e o profano. Há
também, no texto de Cardoso Pires, uma crítica ferina não só à religiosidade "fabricada"
pelo poder salazarista, como também à cegueira do povo que se deixa, em função de sua
ignorância, manipular com o mito da aparição de Fátima.
muitos séculos atrás, na Poética, Aristóteles já assinalava a diferença entre o
trágico e o cômico. Se o trágico é a representação de homens melhores do que a média,
o cômico revela os homens piores. Essa inferioridade deve compreender, porém, como
resultado, as falhas ou vícios provocadores de risos. Nas cenas passadas no bar-
restaurante, ainda que as irmãs não sejam "heróis", são citadas para assinalar as
"falhas", o "lado baixo" delas. O gesto de descerem do ônibus correndo, à procura de
latrinas, transforma a bela e sublime imagem que se tem das religiosas, em algo
inesperado, estranho e grotesco. Portanto, digno de risos.
Convém lembrar que em As rãs, Aristófanes (405 a. C.) já recorria a esses "baixos"
recursos provocadores de riso. Entretanto, no livro Cultura popular da Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais, escrito por Bakhtin (1987), ocorrem
marcantes passagens onde a religião e o riso estão presentes em muitos episódios.
71
Em O Prazer do texto, de Roland Barthes, é possível destacar:
Texto de fruição; aquele que coloca (o leitor) em situação de perda,
aquele que desconforta (talvez até chega a um certo aborrecimento), faz
vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a
consistência dos seus gostos, dos seus valores
47
.
E é este um dos aspectos de Alexandra Alpha. Em muitos momentos, o leitor é
surpreendido com certas passagens que legitimam o imprevisto, e, diante da qual, não há
espaço para a passividade; é tempo de agir. O leitor é induzido a rebelar-se, a manifestar-
se, e, se for muito conservador, ele será levado a desistir da leitura. (Pode aborrecer-se.)
Muitas vezes o romance Alexandra Alpha "desconforta", mexe com a "cabeça" do leitor.
Convida-o a rever seus valores históricos, culturais e psicológicos, mesmo ! Porque este
romance, tal qual a protagonista, é, por natureza, uma narrativa descomportada.
Destacamos a seguir outra cena onde estão presentes sexo e religião.
Ainda tendo como referência a mistura do sagrado e do profano, encontra-se "o
caso das monjas desnudas e dos monstros de Deus". Segundo o narrador, o fato ocorrera
recentemente entre um grupo de religiosas, e o referido episódio havia provocado
polêmica entre os teólogos racionalistas. O fato é o seguinte:
As irmãs pertenciam a uma Ordem ou coisa para aí, e, como tal,
tinham escolhido como supremo sacrifício irem para a cama com os
seres mais repelentes deste mundo. Desse modo, as sorelas-coitadinhas
viam-se obrigadas a freqüentar os piolheiros mais nauseabundos para
espalhar a caridade sexual (que é pão do corpo como qualquer outro
desde que não se faça gula ou luxúria), amparando os mal-amanhados
de toda a espécie, quasímodos, lepras-mansas, desbraçados e
tremebundos.
(Elas) seguiam à letra um versículo qualquer das Escrituras, o qual
mandava apagar o fogo das entranhas com o sacrifício do corpo. E era
o que elas faziam, e somente. Praticavam a abjuração da carne
oferecendo-a em holocausto de si mesmas. Na sua cruzada de cortesãs
penitentes, conservam-se castas renegando o corpo próprio pela entrega
mais humilhante e desprovida de prazer, não podendo ter orgasmo e
nem interromper a oração durante o sacrifício e nem sequer ver corpo
desnudo ou parte impura do mesmo, fosse delas, fosse do socorrido, sob
47
BARTHES, R. (1974) P. 49.
72
pena de excomunhão. E sendo assim não havia luxúria ou outra ofensa
a imputar aos olhos de Deus e menos ainda aos olhos dos mortais. (AA,
30)
Esta é uma cena acentuadamente carnavalesca, e o riso ocorre pela transgressão,
não só de ordem moral, pelo fato de as religiosas entregarem-se sexualmente aos homens,
mas, inclusive, pela visualização da deformidade biológica dos supostos parceiros. Tais
fatos provocam o desequilíbrio da "normatividade" social e, portanto, daí também
contribuírem para provocar o riso. Assim, o "rebaixamento" evidencia-se através das
expressões "a uma Ordem ou coisa para aí", "supremo sacrifício", sorelas-coitadinhas",
"versículo qualquer das Escrituras", "cortesãs penitentes" etc. Através da ironia, rebaixa-
se o princípio dogmático cristão e o mito da castidade religiosa que aparece, aqui, virado
pelo avesso, ao contrário, invertido. Ou seja, estamos diante de imagens típicas do
cômico popular nas suas mais variadas manifestações. Porém quando as freiras se
relacionam com os tipos citados, ocorre um nivelamento das classes sociais e,
consequentemente, é estabelecido um novo conceito de convivência humana, totalmente
inesperado e subvertido.
A subversão vivenciada pelas freiras provoca um estranhamento diante das já
conhecidas convenções sociais e morais ou religiosas. Ao cederem o seu corpo como
"caridade sexual", ou seja, ao ofertarem-se como esmola aos leprosos, desbraçados e
tremebundos, padecem de uma crueldade que é atenuada pelo riso dissimulado da sátira;
fina lâmina de cortar sentidos, que trata, de forma cômica, algo extremamente sério. O
contato com o aspecto grotesco dos quasímodos, "retira", "suja" o ato sublime das freiras
e as transforma, por suas ações, em algo "demoníaco" e sedutor, capaz de revelar o
contato familiar livre entre os homens, fato típico da menipéia.
73
Quando as irmãs se propõem a ir para a cama "com os seres mais repelentes deste
mundo", o riso manifesta-se de forma sutil e cínica, uma vez que a "caridade" das freiras
é paradoxal, tendo em vista que ela choca-se com os princípios cristãos. E "apagar o
fogo das entranhas" parece uma estratégia de provocação, pura ironia, pois, na realidade,
o subentendido textual induz que serão elas, as beneficiadas; uma vez que, apagado,
consumido o "fogo", elas deixarão de arder, de se queimar por dentro, em função do
desejo carnal.
De um modo geral, as freiras são reconhecidamente pessoas recatadas, contidas, e,
por que não, assexuadas?. Todavia, aqui elas aparecem como verdadeiras profissionais
do sexo, estão dispostas a tudo. Há nisso uma carnavalização não só da castidade, como
da benevolência, visto que a boa vontade das irmãs passou dos limites da caridade. Há
uma ambigüidade entre o proibido e o permitido em relação ao próprio poder religioso.
As freiras "deturpam" a caridade através da conjunção carnal, e deixam transparecer as
"orgias eróticas dos cultos secretos"
48
.
Por um lado, esse riso mefistofélico (diabólico), provocado em função da presença
dos monstrengos a atraírem as freiras com seus "defeitos" corporais (e a ação
"demoníaca", aqui, parece-nos recíproca), dá ao narrador alguma espécie de prazer; visto
que ele, por meio da uma seleção vocabular, "pulveriza" o texto (como quem tempera
uma saborosa comida), com pitadas de ironia. Por outro lado, ele induz as freiras a
encontrarem, nesse ato, o motivo para oferecer seus corpos, demonstrando assim as suas
"qualidades". Consequentemente, surge aí a fina ironia, tendo em vista que a castidade
religiosa é virada ao avesso, ou seja, há uma inversão dos valores, o que é negativo se
torna essencialmente positivo. Consequentemente, aos olhos dos teólogos, isto era um
48
BAKHTIN, M. (1981) p. 99.
74
fato muito perigoso, uma vez que é esta "bondade", levada ao extremo, que provoca o
riso.
Com isto, as "monjas desnudas", carnavalizadas, tornam-se mais cômicas do que
as personagens de Boccaccio. Pois aquelas, de um modo geral, "praticam o sacrifício"
visando tirar dele algum prazer. Enquanto essas "irmãs penitentes", segundo os dogmas
do catolicismo, estavam proibidas de "ter orgasmos" e não podiam "interromper a oração
durante o sacrifício, e nem ver a parte impura dos corpos".
Como foi dito, o que provoca o riso neste episódio é o excesso de "bondade" das
freiras, é o exagero da "caridade" cometida pelas religiosas, é a aproximação da aparente
e sublime benevolência das "monjas desnudas" com o grotesco. As freiras promíscuas de
Boccaccio não sugerem risos em seus atos obscenos, mas somente surpresas, pois as
mesmas apenas aparentam ser prostitutas morando em conventos. Apesar do cio e da
procura pelo prazer, elas não chegam a ser burlescas. Já em "o caso das monjas
desnudas", ocorre o riso, porque a "caridade" delas chega a ser aparente, disfarce ao
optarem por seres defeituosos (uma patologia maníaca?). As freiras se tornam, na
realidade, uma caricatura de si mesmas. São mulheres de dupla face: sagradas e profanas.
O que falta, nos "desbraçados" e "tremebundos", sobra nelas, e, aos olhos do narrador,
tudo "aquilo devia ser um espetáculo de arrepiar" (AA, 30).
Este espetáculo de arrepiar é mais uma das ironias. O narrador parece brincar,
incluindo, dentro do mesmo episódio, a sátira e a ironia. Mas se alguém perguntasse:
onde está a diferença entre ambas? Segundo Dorine Cerqueira
49
, "'sátira é uma espécie
de ironia militante; suas normas morais são relativamente claras, e lhe permitem tomar a
medida do grotesco e do absurdo." Enquanto que a "ironia supõe um
49
CERQUEIRA, D. (1997) p. 50.
75
conteúdo realista e uma ausência de atitude por parte do autor; a sátira exige, pelo menos,
uma suspeita de fantasia, um conteúdo grotesco e uma norma moral."
E por falar da importância do grotesco na sátira, Victor Hugo destaca:
O grotesco é a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte. (...) O
sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se
necessidade de descansar de tudo, até do belo. O grotesco é um tempo
de parada, um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos
elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada
50
.
E nos parece que é desse ponto de vista do Romantismo que se originam muitos dos
episódios do romance Alexandra Alpha, dentre eles, este que estamos a analisar; assim
como os outros já vistos, e mais alguns que surgirão ao longo da distribuição dos
capítulos. Para o fervoroso romântico francês, "o sublime e o grotesco se cruzam no
drama (entenda-se romance), como se cruzam na vida e na criação"
51
.
É provável que estas afirmações de Victor Hugo sejam capazes de dar uma boa tese,
uma vez que as mesmas se confirmam no episódio das "monjas desnudas", em que
podemos constatar a importância dessa "mistura", ou cruzamento, entre grotesco e
sublime. Segundo Wolfgang Kayser
52
, "o grotesco dinamiza, rompe simetrias, propicia
desequilíbrio, anula proporções, mescla contrários. Como arte atormentada, conjuga riso
e pranto, beleza e fealdade". Comparando pintura e literatura, Kayser percorre a
trajetória da semântica do grotesco: de adjetivo correspondente à arte ornamental,
transforma-se em conceito substantivo, que dá acessos e chaves para a compreensão da
arte contemporânea.
O episódio das "monjas desnudas" é uma narrativa por si, só, substantiva e atópica,
50
HUGO, V. (s. d. ) pp. 28 - 29.
51
Idem, p. 33.
52
KAYSER, W. (1986) pp. 30 - 45.
76
ou seja, um texto "deslocado", fora dos padrões convencionais e morais, externo ao lugar
que a grande maioria dos autores, talvez, deseja para os seus textos. Como diz Barthes
53
,
"o texto é atópico, senão no seu consumo, pelo menos na sua produção, quando comunica
a seu leitor um estado bizarro."
Alexandra e Opus Night passaram a noite juntos, comendo e bebendo no Bolero
Bar; ao acordarem no mesmo quarto, "manhã alta", ainda de ressaca, enquanto ela toma
banho, ele põe-se "a visionar" em Alexandra a imagem de sua ex-mulher. Então,
pensando nela, o gajo:
Começou a aparelhar, a aparelhar-se até que de repente, já de pau
armado e bem senhor de si, lançou-se a ela para os devidos efeitos.
"Vade retro, seu merda", bradou-lhe a sábia inocente. (...) Com as
chaves do carro (na mão): "Passe bem". E fechou a porta.
(E) Opus Night responde-lhe com um peido que abalou o prédio de alto
a baixo. (AA, 205)
A violação das normas comportamentais e vocabular são alguns dos aspectos
típicos da sátira. E o picaresco Opus Night, com tal gesto, age como um verdadeiro
bufão, um ventríloquo ou qualquer máquina de fazer rir. No plano social e material, no
qual está inserido, deixa de ter qualquer relevância; tudo o que foi previamente
estabelecido ou normatizado, como etiqueta ou prática social de bom costume, perde a
sua importância de ser, em função daquele inesperado "realismo grotesco", sujo, nojento.
Nesse instante, o traseiro fala mais alto, e ele tem força suficiente para abalar o "prédio de
alto a baixo". Sinal de que as coisas estão investidas e revestidas de poderes
"extraordinários" ou hiperbólicos, tanto que um vizinho de Opus Night opõe-se ao
"abalo" do prédio apenas com uma exclamação: "Parece impossível!" (AA,205). A
mesma "voz" que abala um prédio, abalaria um país, caso a personagem não estivesse
circunscrita à alienação política e social.
53
BARTHES, R. (1974) p. 69.
77
"O traseiro é o 'inverso do rosto', é o 'rosto às avessas'" __ anuncia Bakhtin
54
. Portanto,
naquele momento o "peido" é semelhante a um grito de descontentamento e desprezo,
que se impõe como verdadeira e inquestionável fonte de razão. Tal prestígio atribuído à
"voz" do traseiro, revela a importância negada à verdadeira fala. Mas, o que fica visível,
nisto tudo, é o fato de, independentemente do "peido" ou do grito dado por quem tem
maior poder de decisão, em função de sua fraca estrutura, o prédio "treme". Mas este
"grito sujo", grotesco, circunscreve-se à vida privada, não busca interferir no país que
continua em crise e não expressa desejo político de liberdade. E talvez ele tenha sido,
exposto neste romance, apenas para mostrar que nem todos os cidadãos portugueses
estavam interessados na Revolução de abril. Em função da indiferença de Opus Night
quanto aos problemas do país, aquele peido é o mesmo que diria o vulgo: "Estou
cagando para isso tudo".
Assim sendo, em função do próprio "material" utilizado para compor o romance, e
pelo modo de abordar os argumentos, parece que o compromisso e as energias do autor
estão centrados na obra e não no público. Pensamos assim, ainda que os provocantes
temas, os episódios mirabolantes, as atitudes e a dessacralização de personagens, de
linguagens e estilo usados sejam um excelente convite para seduzir o leitor.
Conforme as questões apresentadas, principalmente aquelas que se referem às
freiras, que implicações político-religiosas Cardoso Pires deseja denunciar? Sendo
Portugal um país marcado pela religiosidade, a intenção seria questionar também a fé,
em uma nação, mergulhada em crise?
54
BAKHTIN, M. (1987) p. 327.
78
3.1.2 - O corpo humano anatômico e fisiológico
Em Alexandra Alpha, Opus Night e Afonso Pompadour são personagens que,
desde o início, apresentam inconfundíveis características bufas, pícaras e satíricas. Para
eles, a vida só se apresenta de forma licenciosa, grosseira, pervertida. Outras
personagens, entretanto, apenas em alguns momentos, dão indícios das mesmas
características.
Chamamos a atenção para o fato de que as questões presentes aqui na série do
corpo humano anatômico e fisiológico também poderiam ter sido tratadas no capítulo
anterior; da mesma forma que nas séries sexuais (copulação). Assim, o episódio das
"monjas desnudas e dos monstros de Deus", por sua vez, também poderia ser abordado
aqui, visto que, em função da dinâmica dos acontecimentos dos fatos retratados, "todas as
séries se cruzam", como bem percebeu Bakhtin, ao tratar da obra de Rabelais.
A descrição de elementos grotescos, deformidade corporal, relatos de
espancamentos, maus tratos e feridas são marcas visíveis e risíveis de fatos que, da forma
como são narrados, ao invés de chocar ou comover, provocam o riso. Em Alexandra
Alpha, o corpo humano, em alguns momentos, é apresentado de forma licenciosa,
grosseira e suja; bem diferente daquele padrão estabelecido nos romances tradicionais.
Entretanto, o impacto mais significativo, encontrado nas personagens bufas ou cínicas, é
o aspecto da carnavalização e os traços folclóricos presentes nas mesmas e,
consequentemente, nisto estão os sinais da fonte de nossa investigação menipeica.
Dessa forma, vamos destacar do romance em estudo o seguinte episódio:
(Sebastião Opus Night) intrigado com a recordação da freira
mantulana. Que era boa como milho, a santa irmã. Boazona, perna
aberta e traseiro generoso, (...) pentelhuda, mostrava cá umas coxas de
79
estarrecer o Pai do Céu. Depois, toda ela era excitação, cara afogueada,
dentes alvíssimos. E por dentes alvíssimos, (...) acabara de se lembrar
que havia um brilho de perversidade na boca da monja. Caracas, aí
caíram-lhe os testículos aos pés. (AA, 118)
A cena descrita relembra o folclore medieval, marcado pela dessacralização
religiosa, e por este incrível apelo erótico. E esta explícita conotação libidinosa, onde o
próprio vocabulário se encarrega de atribuir à "santa irmã" um "traseiro generoso", é
manifestada em muitos pontos do romance. E o riso inevitável não tem apenas uma
função crítica, ele se propaga pelo fato de associar ou unir elementos que, aparentemente,
estão muito distantes __ o sagrado e o profano. Será que para o narrador, em Portugal, é
preciso destruir todo esse quadro estático, para reconstruí-lo, na Pós-Revolução?
Segundo Bakhtin
55
, "depois do ventre e do membro viril, é a boca que tem o papel
mais importante no corpo grotesco; em seguida o traseiro". E esta suposta freira, a
conquistar com esses "dentes alvíssimos", induz ser a boca atraente e sedutora, capaz de
oferecer-se em pleno prazer. Para completar, existe ainda aquele "traseiro generoso", ou
seja, farto, pomposo, e ambos formam um conjunto repleto de sensualidade. "A boca é a
porta aberta que conduz ao baixo, aos infernos corporais," ainda, segundo Bakhtin
56
,
carnavalizada, a "santa irmã", é, na realidade, fonte de luxúria e perdição. Convém
lembrar que, "na topografia grotesca, a boca corresponde às entranhas, ao 'útero'; ao lado
da imagem erótica do 'buraco', a entrada dos Infernos é representada como a boca aberta
de Satã ('a goela do inferno')", Bakhtin
57
. Assim, aquela falsa "irmã", caso fosse "santa”
seria uma ovelha negra, seu corpo estaria marcado pelos traços que induzem à perdição, à
descida ao baixo infernal.
55
BAKHTIN, M. (1987) P. 277.
56
Idem, p. 284.
57
Ibidem, p. 288.
80
A falsa freira, embora desmascarada pela percepção tardia de Opus Night, causa
aproximação entre o sagrado e o profano, e este "cruzamento" de séries tão opostas, terá,
como resultado, o riso. Para Bakhtin
58
, a essência do método de Rabelais consiste,
principalmente, na "destruição de todos os laços e vizinhanças habituais, das coisas e das
idéias, e na criação de vizinhanças inesperadas, de ligações inesperadas, inclusive das
ligações lingüísticas". Após juntarmos fatos e colhermos dados, descobrimos as
características possíveis de serem associadas à tradição literária da sátira menipéia; os
fatos acima não deixam dúvidas quanto ao gênero abordado.
O modo libertário de falar em "freira pentelhuda" é uma das formas carnavalescas
de se fazer vizinhanças imprevistas, surpreendentes, chocantes, até. E tais proximidades
provocam um resultado de grande efeito, uma vez que o impacto causado induz à duas
reações: uma de admiração pela ousadia, presente na criação literária, que torna o leitor
cúmplice e disposto à defendê-la; e a outra, de desagrado ou indignação, principalmente,
por parte daquele leitor conservador, que poderá rejeitar a proposta lúdica, tendo em vista
que essa narrativa está inteiramente fora dos padrões esperados por ele. A mulher
travestida de freira, era, na realidade, a ex-mulher de Opus Night; ao descobrir isso,
"caem-lhe os testículos aos pés" (AA, 118). A aparente santa irmã se caracterizava pelo
erotismo ou propriamente, pela "combinação do elemento místico-religioso, com o
naturalismo do submundo, extremado e grosseiro"
59
.
Chamamos a atenção para um dos mais significativos aspectos do romance
Alexandra Alpha. Nele contém freqüente articulação entre sexo e religião, como já foi
visto, anteriormente, em "o caso das monjas desnudas e dos monstros de Deus", episódio
em que a dessacralização religiosa é bastante significativa.
58
BAKHTIN, M. (1988) p. 284.
59
BAKHTIN,M. (1981) p. 99.
81
Com relação àquele fato, os quasímodos estão presentes no folclore popular, mas a
primeira lembrança que nos vem à mente é o monstrengo da obra Notre-Dame de Paris,
de Victor Hugo. Estas figuras grotescas da literatura moderna nos fazem lembrar os
sátiros
60
, os cíclopes
61
, as sereias
62
, as fúrias
63
, as parcas
64
, as harpias
65
e tantas outras
personagens da literatura do mundo antigo que, apesar das deformidades, têm seu grau de
importância, significados simbólico e social, e razão de existir. E, como já apontamos,
esta aproximação entre o grotesco e o sublime está nos princípios da complexa e simples
união da lógica romântica, através dos conceitos arduamente defendidos por Victor Hugo,
em seu conhecido prefácio de Cromwell.
Neste, como nos episódios anteriores, a série do corpo também está associada a
alimentos, uma vez que a caridade sexual (que é "pão do corpo como qualquer outro)"
serve para nutrir, assim como para aproximar o que está tradicionalmente separado. Da
mesma forma, a série dos excrementos, as séries da nutrição e da bebida-embriaguez
estão presentes em outros episódios que serão apresentados ao longo de outros capítulos.
Não nos esqueçamos de que "todas estas séries se cruzam", como nos ensina Bakhtin.
No episódio seguinte, Opus Night narra, para Nuno Leal, um encontro que teve com
um travesti. Foi na cidade de Sevilha, Espanha. "Era um travesti para turista", observa
ele. "Um travesti semiótico", acrescenta: "Um desses miosótis que fazem canteiro nos
tablados do flamenco e nos bares dos hotéis":
Contou então que o referido travesti lhe apareceu na esplanada-bar
do Hotel Cristina por las cinco de la tarde, (...) achou-se a uma mesa
com o citado travestido que, por acaso, se chamava Amparo e que
cambiava a voz conforme a luz. "Vale", resolveu Opus Night consigo
60
Os sátiros são deuses rústicos que têm rabo, chifres e pernas de bode.
61
Os cíclopes são gigantes com um único olho no meio da testa.
62
As sereias, filhas de Melpómene (deusa da música), atraíam, com os seus cantos, os navegantes para o
fundo do mar; simbolizam o perigo marítimo. Aparecem na Odisséia (XII, V. 39 - 64; v. 182 - 200).
63
As fúrias são divindades infernais romanas, semelhantes às eríneas gregas. Aparecem na Orestia.
64
As parcas são as três deusas infernais que se encarregam de tecer o destino dos homens.
65
As harpias são monstros alados, com rosto de mulher, corpo de abutre e garras afiadas. Personificam a
tempestade e a morte. Aparecem na Eneida de Virgílio, 3, 215.
82
mesmo; e como palavra puxa palavra, o mariposas desafiou-o a assistir
a umas variedades altamente trabalhadas que metiam duas burras
lésbicas, fornicações com cachorros e velhas desdentadas em deboches
infernais. (AA, 121)
O próprio narrador adverte: "Era um travesti para turista." Ou seja, uma coisa
falsa, expressão semelhante àquela também conhecida por todos: "É para inglês ver."
Neste sentido, o corpo humano do ponto de vista tradicional sofreu modificações, o
"travesti semiótico" é um ser que se anuncia através de signos, ou seja, imagem,
vestimentas, gestos, ritos, trejeitos, sinais (muitas vezes bizarros), que, de certa forma, o
distinguem da mulher e do homem. Assim como os quasímodos, o "travesti para turista"
é um ser incompleto ou híbrido, está em constante processo de mudança, de
metamorfose, por isto apresenta as suas aberrações. Entretanto, ao se deixar seduzir pela
beleza do travesti, na hora H, Opus Night descobre que fora enganado; pois, "o
mariposas", era, na realidade, a sua ex-mulher, o que revela, mais uma vez, a presença da
máscara carnavalesca e o simulacro do sujeito, dotado de identidades falsas.
Por outro lado, ainda que este episódio seja descrito de forma apressada, isto é, o
narrador não explora muito a comicidade própria da cena, os sintagmas: burras lésbicas,
fornicações com cachorros, velhas desdentadas remetem a muitos significados.
As "fornicações com cachorros", embora pouco freqüentes na literatura "oficial",
não referenciam um acontecimento apenas dos tempos modernos, pelo contrário; em
muitos textos literários do antigo Egito, da Grécia, e de Roma existem numerosas
referências a estas atividades. Em O Asno de ouro, de Apuleio, as descrições relativas a
estas práticas são muito divertidas. O que dizer da conhecidíssima paixão de Pasifaé por
um touro, e desse amor, que trouxe à luz o Minotauro?
As "velhas desdentadas", por sua vez, formam um grupo à parte das personagens
freqüentes na sátira; são geralmente dissimuladas, alcoviteiras, vivem num lugar oculto,
83
mas que todos conhecem. Sem dúvida, personagens fontes da concepção grotesca e que
revelam a decrepitude do ser humano.
Em uma "madrugada confusa" (AA, 262), Sophia e Opus Night, sentados a uma
mesa entre copos de vinho, observam os mais variados "tipos" que freqüentam aquele
bar: "o Cabral Vice-Versa" que, para Opus Night, "era menino para ler das duas
maneiras: tanto rimava com homens como com mulheres" (AA, 262), permanecia
estirado em uma cadeira "tão mole e tão comprido que as mãos, pendentes, quase
tocavam o chão" (AA, 262). E, enquanto Opus Night faz especulação a respeito de uma
loura que acompanhava o Vice-Versa, chega o "Paquito". Quando Sophia o vê, corre
muito festiva para abraçá-lo. Enquanto isto, o narrador descreve: "O tal Paquito tinha
um peito cabeludo que não era brincadeira. Vinha de camisa aberta, blusão de couro,
sandália de sola de pau, isto no inverno e em noite de chuva" (AA, 264). Ainda são
destacados os aspectos dos cabelos, das sobrancelhas e da barba, "boca úmida, faces
rosadas".
Para Opus Night estava tudo muito claro: "um marican proletário". Enquanto o
Paquito foi juntar-se ao Vice-Versa e lá ficaram dando gargalhadas, Sophia, ao juntar-se a
Opus Night, bebe, de um só trago, "meio copo de vinho". Para submeter à prova a amiga,
o companheiro pergunta:
Conheceram-se nas Dorotéias?
"Quem?", perguntou ela.
E o Opus Night: "Você e o Paquito de Las Matinas. Paquito é nome de
guerra, já se deixa ver.
Sophia arreganhou um sorriso: De cama, fique sabendo. E de boa
cama, já que está interessado.
"Aquele?", tornou Opus Night. "Só se abriu uma exceção para si, pode
ter a certeza." (AA, 264)
Não satisfeita com a resposta, Sophia corre para o banheiro. Quando Opus Night
fica sozinho, "à frente da garrafa", percebe um homem de chifre a olhar para ele. "Um
84
gajo de cornos? Perguntou ele ao vinho. Bebeu, ganhou fôlego e confirmou. Dúvida
nenhuma, o homem tinha realmente dois cornos de vaca a saírem-lhe do chapéu" (AA,
264). Mas, impressionado, Opus Night surpreende-se ao ver chegar "outro de cornos".
Antes que aquele ambiente se transformasse em uma "jaula de cornudos, mariposas e
outros animais domésticos" (AA, 265), decidiu partir, após Sophia retornar da "latrina das
senhoras". E ela, ao dar no amigo um afetuoso "beliscãozinho de castigo", comenta:
"Você é incrível, nunca pensei. Então achava-me capaz de ir para a cama com o
pobrezinho?" (AA, 265).
Porém, antes de sair do bar, "Sebastião Cravo Vermelho, o Opus Night" (AA, 261),
ainda olhou para a mesa dos dois homens de cornos e viu que, enquanto um deles "bebia
vinho tinto por um biberão" (mamadeira), o outro "mamava numa enorme cenoura em
movimentos mais que obscenos", enquanto duas mulheres, que estavam no balcão a
observá-los, se abraçavam "perdidas de risos" (AA, 265).
Conforme os fragmentos acima, quem não leu o livro todo terá a impressão de que
Alexandra Alpha é, indiscutivelmente, uma comédia de costumes. Por um instante o
narrador abandona os temas relativos ao Dr. Dinossauro e passa a destacar esses "tipos"
mais gerais, que, embora sobrevivam no anonimato, parecem estar mais próximos ao
cotidiano de todos.
O que se destaca naquele ambiente é um jogo, ou melhor, uma aposta entre o
proibido e o permitido. Porém, entre as numerosas fichas lançadas no tabuleiro do faz-
de-conta daquele bar, é a ambigüidade e as distorções de personalidades que prevalecem.
"O Cabral Vice-Versa", que tanto "rimava com homens ou com mulheres", o homem de
"chifres a mamar numa enorme cenoura", o Paquito bom de cama. E, principalmente,
Opus Night, típico representante da masculinidade/ virilidade lusitana, se deixa "seduzir"/
atrair por aqueles homens disformes.
85
Observa-se que os detalhes, os elementos e os gestos cênicos são de grande
importância no episódio; convém lembrar que o mesmo, também, poderia ser tratado na
série da indumentária ou na série da bebida-embriaguez; mas, o bar, local onde
transcorre o fato, o atrai para a série do corpo humano, anatômico e fisiológico, em
função do entrelaçamento da "forma cínica e bufa" "seguida de uma analogia fisiológica e
grotesca"
66
, presente naquela "madrugada confusa".
E o grotesco acentua-se com os gestos transgressores e provocativos. Aqui, a série
do ponto de vista anatômico e fisiológico está inteiramente relacionada com a série
sexual: "O homem de cornos mamava uma enorme cenoura em movimentos mais que
obscenos". Aqui está mais que evidência a intenção de fazer rir, uma vez que a tal
"cenoura" faz, certamente, alusão a um pênis. Na cena apresentada, as atitudes e os
gestos transgressores superam as palavras, talvez com o puro propósito de descontrair a
tensa narrativa da Pré-Revolução.
3.1.3 - Séries da nutrição e da bebida-embriaguez
Em O Banquete, de Platão e mais precisamente no epílogo do referido texto,
existem os indícios daquilo que chegou até nós, do que se acredita ser um banquete
naquela época. Em particular entre os gregos e, depois, entre os romanos:
(...)
Uma bulha enorme se fez; os presentes não mais obedeceram ordem,
e foram obrigados a tomar muito vinho. Erixímaco, Fedro e alguns
outros partiram então, segundo me disse Aristodemo. Este, porém, por
sua parte, foi vencido pelo sono. Era na época das noites longas, e
dormiu muito tempo. Acordou pela madrugada, com o canto dos galos.
66
BAKHTIN, M. (1998) p. 286.
86
Ao abrir os olhos, pôde ver que os outros ou dormiam ou haviam ido
embora, e que apenas Agáton, Aristófanes e Sócrates continuavam
acordados, e bebiam de uma grande tigela que corria da esquerda para a
direita.
Sácrates conversava com eles.
Aristodemo não conseguiu recordar-se da maior parte dessa
conversa, pois havia perdido o seu início e cabeceava ainda de sono. O
assunto dela, disse-me Aristodemo, era o seguinte: Sácrates obrigara os
seus interlocutores a reconhecerem que competia a um mesmo homem
escrever comédias e tragédias, pois quem, por sua arte, é poeta de
tragédias, também o é de comédias. Sócrates obrigou-os aceitar isso,
mas os outros não o puderam acompanhar, e caíram no sono
67
.
Desconhecemos se alguém abordou sobre o aparente desinteresse de Aristófanes
e de Agáton em debaterem, com Sócrates, o fato proposto, na cena descrita acima. Mas
destacamos a possível causa que motivou o silêncio dos dois; isto deve ter ocorrido em
razão do gritante conflito de contrários entre a comédia e a tragédia. Cada gênero é
protegido por divindades distintas: a tragédia recebe a proteção de Apolo __ deus da
origem, do sol, da razão, da perfeição etc.; a comédia tem, como patrono, Dionisos __ o
deus da noite, da imperfeição, do vinho, da embriaguez, da transgressão, do fim, etc.. E,
enquanto a tragédia aponta o homem agindo e revelando o seu lado bom, sublime e
virtuoso, onde ele é o sujeito de suas ações; a comédia revela a imperfeição humana; o
homem é objeto, é vítima da bebida, da loucura, do destino. E sendo Aristófanes
comediógrafo e Agáton um poeta trágico de grande prestígio e anfitrião daquele jantar,
provavelmente, o tema proposto por Sócrates tenha sido evitado para não ocorrer
discórdias entre o grupo. Uma vez que, possivelmente, tal embate acarretaria, também,
disputa entre Apolo e Dionisos.
Embora, ao longo do texto em estudo, os encontros entre as personagens
transcorram muitas vezes nos bares; não existe, em nenhum momento, a presença daquela
descrição clássica do que ficou conhecida como banquete. Mas as séries da nutrição e da
67
PLATÃO (s. d.) p. 127.
87
bebida-embriaguez em Alexandra Alpha ocupam um lugar importante; porque, sendo os
bares os locais em que a sociedade estabeleceu como lugar próprio para a
confraternização entre amigos e, especialmente, onde a embriaguez é permitida; à medida
que os encontros vão ocorrendo, os sinais da bebida ou da comida assinalam as suas
marcas capazes de serem associadas a banquetes. Assim, a série em análise é capaz de
revelar inegáveis sinais de um contexto dionisíaco.
Opus Night é a indicação mais expressiva da série que estamos tratando; notívago,
para ele a vida só existe à noite. A própria palavra "Night" já fornece a pista necessária,
já o anuncia como apreciador e pertencente à vida e aos prazeres noturnos. De sua
existência fazem parte os bares, a bebedeira e tudo o mais que vier a reboque. Descrente
e desconfiado da política, é uma das personagens mais excêntrica e "descomportada" do
romance em estudo. Basta observar o modo como descreve sua preferência por cravos
brancos, ao invés de vermelhos, porque, para ele, vermelho "é coisa de comunista"; tal
opinião já define o seu estilo e posição ideológica:
Muito, mas muito antes da abrilada dos capitães, praticamente desde
que
se conhecia a si mesmo como pessoa a tempo inteiro, Sebastião
Opus Night sempre usava cravo branco na lapela e estava ali o barman
que não o deixava mentir, (...) se houvesse dúvidas estava ali o porteiro,
estava ali a menina dos bidês (ou dos toilettes), (...) Sebastião Opus
Night ia no whisky, deixá-lo ir, e ficava dito que com ele, cravos só
brancos sempre brancos e fora disso era calúnia. Dos cravos vermelhos
nem palavras, assunto para ignorar. Cravos vermelhos cheiravam a
peido de caserna ou a manola de cabaré, as putas e os panilas do
flamenco é que bailavam o sapateado de cravo vermelho na orelha, nos
dentes, ou no olho do cu. (AA, 316 - 7)
um certo exagero no monólogo de Opus Night. Porque, antes da Revolução,
dentre os vários nomes que era chamado, também atendia por "Sebastião Cravo
Vermelho" (AA, 261); pois, na época, a indumentária de maior preferência, consistia,
88
justamente, no cravo vermelho sempre preso na lapela do paletó. Fato que muda
radicalmente, quando ocorre a Revolução, período em que ele passa a usar somente
cravos brancos.
Em outro momento textual, Opus Night, enquanto se dirigia embriagado para um
grande hotel de luxo, cochilava dentro do táxi que o levava; e, cansado de ver tantas
pichações nos muros da cidade, feitas pelos comunistas, "imaginava milhares de pessoas
obrigadas a lavar com a língua todas as paredes de Lisboa. Havia de ser bonito. A
maralhada a esfregar o focinho na cal, línguas escortiçadas a rasparem toda a merda
política" (AA, 324). Considerava "merda política", toda aquela forma de expressão
popular manifestada, por meio de frases e cartazes estampados pelos muros de Lisboa, e
que sujavam a cidade com os mais variados slogans, saudando o comunismo e a
Revolução. Mas, o que o perturbava, ainda mais, era a cor vermelha espalhada por todos
os cantos da cidade: "O vermelho saltava de toda parte, vermelho a berrar nos cartazes
dos muros, vermelho maçônico na bandeira nacional, emblema político na mama,
vermelho, até em cabeçalho de jornais, porra-porrinha já era vermelho a mais" (AA, 322).
Daí a dessacralização, o rebaixamento de tudo o que se referia à Revolução. E
Opus Night, dominado pela embriaguez, interpreta o novo sistema de governo como um
ser vivo, um animal irracional a expelir excrementos que sujam a cidade. Entretanto,
para os revoltosos, estas manifestações representam o que eles possuem de mais elevado
e representativo das conquistas e símbolos de luta; para Opus Night (para a elite, a bem
dizer), isto não significa absolutamente nada, a não ser lixo e excrementos. Enfim, é neste
paralelismo entre o alto e o baixo, entre o vulgar e o culto, entre a perda e o ganho, que
mais uma vez se instalam o sublime e o grotesco, inerentes à sátira.
O cravo vermelho é o signo mais expressivo da Revolução de Abril, entretanto, do
ponto de vista de Opus Night, já não possui o mesmo valor ou significado de antes; pois
89
invoca apenas imagens invertidas e desprezíveis, tais como, "peido de caserna,
"manola de cabaré", "putas" e panilas do flamenco" (AA, 367). A opulenta cavidade da
lapela do paletó, onde é introduzida a haste do cravo, é substituída pelo "olho do cu". E
esta provocação, este rebaixamento, esta substituição do alto pelo baixo, do sublime pelo
grotesco, a inversão do pólo positivo pelo negativo, do alto pelo baixo, provoca o choque,
o inesperado e, consequentemente, o riso destruidor.
Para Opus Night, o cravo vermelho é o próprio indício da destruição do sublime; o
símbolo histórico revolucionário é interpretado como um objeto degradante. No entanto,
para Sophia Bonifrates, o cravo ressurgia como um símbolo revolucionário que não
deveria ser esquecido: Sophia pediu a Bernardo Bernardes "um exemplar do cartaz do
menino a colocar o cravo na espingarda do soldado do MFA" (AA, 306).
O diálogo socrático, em Alexandra Alpha, surge, também, "impregnado pela
cosmovisão carnavalesco-popular oral". Segundo Bakhtin
68
, é através de um método
memorialístico, de base folclórica, que resultam os provérbios. Daí, torna-se oportuno
lembrar que os quatro amigos __ Sophia Bonifrates, Nuno Leal, Alexandra Alpha e
Sebastião Opus Night __ nos encontros em bares, utilizam, freqüentemente, em diálogos
pseudo-filosóficos, numerosos provérbios:
Pois é. Alexandra e Opus Night os dois agora sozinhos diante dos
copos. (...) Sebastião Opus Night sorria manso. (...)
Opus Night: "Se as mulheres tivessem alma, Deus aparecia sem
barbas."
Alexandra: "Olá? Confesso que não percebi. Pelo que estou a ver o
mono é de sabedoria".
Opus Night: "Muito. De mulheres e de bebida cada qual a sua
medida."
Alexandra: "O pior, sabe, é que elas não matam mas moem."
(maltratam)
Opus Night: "As mulheres? Moem e de que maneira?"
Alexandra: "As vezes até trazem blenorragia."
Opus Night: "O mal de Vênus, assim chamado".
Alexandra: "Esse".
Opus Night: "Também conhecido pela gota francesa".
68
BAKHTIN, M. (1981) p. 94.
90
Alexandra: "Exatamente, gota francesa. Bem, isto é só uma conversa.
A gente fala nestes a-propósitos porque quem avisa meu amigo é".
Opus Night: "E quem tem telhados de vidro não deve atirar pedradas".
(AA, 201-2)
"Quem avisa amigo é" __ esta pérola de sabedoria popular é muito conhecida até no
Brasil, e a mesma "cai na carapuça" (para não dizer no estômago) de Opus Night, porque,
a fama deste, com relação às mulheres, é bem conhecida. No entanto, ao que ele
responde, "devolve na mesma moeda" a crítica direcionada a ele, visto que Alexandra
também tem uma vida bem "descomportada". Isto comprova que a sabedoria presente
nos provérbios revela não só o quanto estes conhecimentos populares estão implícitos nas
experiências sociais, como os mesmos foram disseminados ao longo do tempo, em todos
os níveis da sociedade; aparentemente, com o propósito de uma destinação moral e
pedagógica.
Os provérbios, concisos, elegantes e risíveis, muitas vezes, sintetizam e exprimem
condutas desejáveis e indesejáveis; eles aprovam, legitimam ou condenam
comportamentos e atitudes, evidenciando modos de ser, pensar e agir, aceitos ou
reprovados pelos diferentes grupos sociais
69
. Os múltiplos aspectos, quanto à
significação, identificam a riqueza de temas e conteúdos a serem explorados nos mesmos;
ora os provérbios são cheios de siso/ moral, ora são desmesurados, ridentes, cheios de
caráter profano.
Vale lembrar que Gil Vicente, ao escrever Enês Pereira, recorre ao mote: "mais
quero um asno que me carregue, que cavalo que me derrube". Tal fato só comprova a
importância da ambigüidade dos provérbios populares dentro da literatura; e eles estão
presentes não só nestes dois autores, como também é possível encontrá-los em Homero,
Plauto, Virgílio, na Bíblia e em muitos outros livros de significativa importância para a
69
MACEDO, J. R. (2000) p. 122.
91
humanidade. O que pode sugerir serem, os mesmos, vestígio de um saber exercido
durante muito tempo, não só nos antigos diálogos socráticos, como também na literatura
oral e popular. Tal como em Petrônio ou demais escritores que descreveram banquetes,
onde os convivas se reuniam para falar, principalmente, sobre literatura, destacamos o
fragmento acima para assinalar a sobrevivência desse saber que sobrevive desde
milênios e ainda se faz presente na literatura contemporânea.
Ainda que a ingestão de whisky seja um ato freqüente, as séries da nutrição e da
bebida-embriaguez, em Cardoso Pires, não apresentam aquele exagero, encontrado, por
exemplo, em Petrônio. Ao contrário do autor latino que prima, principalmente, pelo
excesso de comida, o português centra mais o seu exagero na ingestão alcoólica.
A conversa entre Opus Night e Alexandra prossegue. Ambos extraem do baú da
memória o que ainda lhes resta do folclore oral. Enquanto isto, "mandaram servir mais
whisky". A conversa continua e, após um comentário elogioso de Alexandra, a respeito
de uma obra do "Eça", o outro responde:
Opus Night: "Estais culta, senhora".
Alexandra: "Estou mais é curta. De gostos, entenda-se. Mas isto
passa".
Opus Night: "Lubrifique-se, tem bom remédio".
Alexandra: "Vá à merda".
Opus Night, apontando para o copo dela: "Refiro-me a isto, ao whisky.
O whisky é um lubrificante para todas as emergências" (AA, 202 - 3).
"O whisky é um lubrificante para todas as emergências". A economia de palavras e
o duplo sentido de lubrificante provocam aproximações semânticas inesperadas; e os
diferentes diálogos marcados pela presença de indícios chistosos ou irônicos, comuns em
Alexandra Alpha, deixam o romance, muitas vezes, bastante agradável de ler. Chamamos
a atenção para o fato de ser a bebida o instrumento provocador desse (des)equilíbrio no
lúdico e instigante diálogo. A transgressão, a inconveniência e a embriaguez provocadas
92
pelo álcool vão contribuir para o surgimento dos já mencionados sinais dionisíacos, os
quais, consequentemente, levarão ao desregramento mundano e grotesco. Por outro lado,
este "discurso dialógico misturando elogios e palavrão, o sério e o cômico, é um dos
aspectos do simpósio, gênero cognato à menipéia". Segundo Bakhtin,
O simpósio era o diálogo dos festins, já existentes na época do "diálogo
socrático" (cujos protótipos encontramos em Platão e Xenofonte) mas
que teve um desenvolvimento amplo e bastante diversificado em épocas
posteriores. O discurso dialogado dos festins tinha privilégios
especiais, desenvoltura e familiaridade, franqueza especial,
excentricidade e ambivalência, ou seja, podia combinar no discurso o
elogio e o palavrão, o sério e o cômico. O simpósio é por natureza um
gênero puramente carnavalesco
70
.
Semelhante ao que ocorria nos antigos banquetes, nas festas em família, enquanto
Opus Night e Alexandra conversam, vão expondo marcas, características de um
procedimento entre as pessoas que o tempo, a classe social e o conhecimento cultural são
incapaz de apagar. Em função disso, o que já era dito, nos diálogos socráticos, nas
comédias de Aristófanes, nas sátiras de Horácio e em Rabelais, permanece atualíssimo,
porque a escatologia, o palavrão, o desregramento fazem parte da vida social e, por isto,
certamente permanecerão entre nós.
Em outro episódio da obra Alexandra Alpha, Opus Night e os amigos vão visitar
uma boîte recentemente inaugurada __"Campos Elísios" ( o nome é exatamente esse), e,
ao chegar, surpreendem-se com o estranho local:
Chegaram a um casarão guardado por dois enormes cães de porcelana.
Passaram por um pavilhão envidraçado, jardim-estufa, calor ambiente, e
relva, trepadeiras e arbustos, tudo de plástico. Sapos gigantes, pássaros
e vaga-lumes de pilha elétrica distribuídos pela vegetação; ao chegar ali
tinha-se a sensação de que toda a natureza fora transplantada para o
reino dos plásticos e da matéria morta. (...) Cruzaram com algumas
caras conhecidas que se passeavam de copo na mão entre canteiros,
70
BAKHTIN, M. (1981) pp. 103 - 4.
93
numa luz funerária, só flúor. Desfilavam com rostos de cal e lábios
negros, pareciam figurantes duma recepção do Conde Drácula. (AA,
199-200)
Convém lembrar que em Virgílio, na Eneida, Campos Elísios é a "morada dos bem-
aventurados"
71
. É para lá que, após atravessarem o horripilante rio Estige, na assustadora
barca de Caronte, as almas se dirigem. O "enorme cão de porcelana" faz lembrar
Cérbero, o também gigantesco cão protetor da entrada infernal da mesma narrativa de
Virgílio. Coincidência ou não, chamamos a atenção para os nomes: cão Cérbero e cão de
cerâmica (porcelana), pelo menos a relação fonética e a função dos cães, ao nosso ver,
não devem ser de todo desprezadas.
Não obstante a relação com alguns elementos que lembram outros textos literários,
assinalando com isto a sua dialogia com os mesmos, o "reino dos plásticos" é
apresentado de forma tão irreal, que chega a ser cômico e trágico ao mesmo tempo. E
construções sintagmáticas tais como: matéria morta, luz funerária, rosto de cal, Conde
Drácula nos levam a pensar em um lugar verdadeiramente infernal, relacionada à morte,
ou, então, um cenário típico do teatro de absurdo __ o simulacro de uma cidade
estagnada.
O cômico e o trágico aparecem, aqui, referenciados pela imitação e pelo ridículo.
Opus Night reconhece (e zomba disso): está em uma boîte onde tudo indica ser um
mundo de mentirinha, de faz de conta, de simulacro; e o cenário, por mais "real" que
possa parecer, resulta absurdo. E é provável ser este o recado de José Cardoso Pires.
Os "dois enormes cães de porcelana", existentes naquela falsa boîte, inanimados e
inoperantes, não estariam fazendo referência à vigilância constante e petrificada existente
em Portugal? Não estariam esses cães guardiães de prontidão, à entrada de uma cidade
71
VIRGILIO, (s. d. ) p.186.
94
infernal? Haveria uma classe média, alienada, a valorizar apenas as superficialidades, e
ainda "tutelada" por falsos e artificiais "protetores" que substituiriam o "dinossauro"? A
ridicularização desse espaço social denuncia um lugar privado, uma cidade, ou um país
em que é impossível haver mudanças? Na Pré-Revolução, que valores destacar diante
desta "atmosfera" perniciosa?
Como temos constatado neste capítulo __ Destronamentos e renovações: para além
dos contratos sociais __, as séries da comida e da bebida-embriaguez ocupam um lugar
muito importante no romance. Nelas, intercruzam-se quase todos os temas de Alexandra
Alhpa; e isto ocorre, porque a palavra, o corpo e as ações estão interligadas, através da
bebida, da comida e da embriaguez.
A seguir, transcrevemos a última cena do romance, contida na parte que fala da Pré-
Revolução. O episódio se passa na madrugada do dia 25 de abril de 1974, portanto, ele
acontece paralelamente à Revolução de Abril. Naquela madrugada, Alexandra e o
Menino das Bruxas passam a noite toda bebendo:
Cinco da manhã e a garrafa vazia, o que eles tinham bebido, santo Deus.
E fumado: o cinzeiro estava a transbordar. Alexandra foi à casa de
banho e à cozinha e voltou com gelo e uma nova garrafa de whisky.
Encontrou o companheiro como deixara, nu em cima
da cama, a barba
a luzir. Havia uma luz de febre a cobri-lo.
"Sabes quais são as três coisas melhores que há no mundo?",
perguntou-lhe para desanuviar. Abriu a garrafa, serviu um copo. "As
três coisas melhores que há no mundo", disse sorrindo, "são o whisky
antes e o cigarro depois".
Caiu em si: merda, estupidez de piada. O whisky antes e o
cigarro depois saudados assim, diante dum homem destruído que não
tinha glória para festejar. Acabava de dizer uma crueldade brutal,
abaixo de reles, e quando percebeu já era tarde, oh merda, oh grosseria,
e, cheia de remorsos deixou o copo e foi espreitar a noite pelo estore da
janela. Precisava de ganhar coragem para tornar a encarar o
companheiro depois daquela frase desastrosa. (AA, 272 - 3)
95
Não encontramos aqui o caráter festivo da embriaguez. Pelo contrário, até a
protagonista "cai em si", quando percebe a sua indelicadeza vocabular, provocada pela
bebida e precipitação. Como veremos, em Humor e sátira na hora da morte, o Menino
das Bruxas voltou da guerra colonial africana "morto como macho", isto é, impotente;
"um corpo que a guerra tinha deixado nulo" (AA, 271). Contudo, aquela impotência
revelada a Alexandra naquela madrugada, não seria metáfora, sutileza ou novo modo de
falar da perda do poder instituído? Ou, ainda, do fracasso dos regressados de África?
Pois se retomamos todo o episódio ocorrido naquela noite, sabemos que a terceira coisa
à qual Alexandra se refere, é, certamente, o sexo. Coisa que o Menino das Bruxas não
pôde dar a ela. Assim, como naquela mesma madrugada ocorreria a Revolução, entende-
se a impotência do doutor-soldado, como uma ausência ou uma falta, imputada a ele pelo
regime salazarista.
3.2 - Figurações da morte em Alexandra Alpha
Quando começamos a ler sobre a guerra colonial africana que culminou com a
libertação das colônias, temos a impressão de que vamos ser informados de mais um
holocausto na página seguinte. Pois a guerra e, por conseguinte, a morte, freqüentemente
são focalizadas por escritores portugueses e africanos contemporâneos, indicando o
interesse de que haja debates sobre o tema. Principalmente, para que a morte não seja
apenas uma questão tratada como mercadoria, a ser exposta e vendida nas telas de
cinemas, nos teatros ou livrarias; em As máscaras de Perséfone: figurações da morte nas
literaturas portuguesa e africanas, a equipe de pesquisadores demonstra reconhecer a
96
importância da questão. A coletânea de ensaios destaca alguns pontos relativos ao
conteúdo a ser investigado:
Quais são as figurações da morte tornadas possíveis pela literatura?
Como escrever a finitude, apresentando, sob forma de texto, a ruína?
Qual a relação entre morte e linguagem? Em que medida a escrita da
morte esvazia mitos e, ao mesmo tempo, usando a trapaça da língua,
constitui uma afirmação para o sujeito?
72
Como se constata, todas as questões oferecem bons motivos e objetivos de
interesses. Entretanto nos parece que ainda falta uma abordagem a ser levantada em
torno do tema da morte. E, se nos for permitido, gostaríamos de aqui sugeri-la. Trata-se
da morte e prazer. Por mais paradoxal que pareça, existem grandes proximidades entre
ambas as questões. O cinema, uma vez por outra, está a explorar o tema; nas colunas
policiais dos jornais, também não é difícil encontrar referências, na literatura também é
possível; em Alexandra Alpha, não há o propriamente dito prazer e morte; mas, apenas,
morte e riso, (que não deixa de ser uma dentre muitas espécies de prazer). Esses dois
elementos, isto é, morte e riso ou textualmente, "morte alegre" como dirá Bakhtin,
podem ser encontrados no episódio que trata da morte do pai de Alexandra; fato que
veremos em (3.2.3).
72
DUARTE, L. P. (2006) p. 153.
97
3.2.1 - Ruínas e infinitudes
foi dito e relembramos que a sátira está presente em variados tipos de textos.
Este indício nos encaminha para a Antigüidade Clássica, quando os mesmos, ainda que
diversificados externamente em numerosos gêneros, internamente foram considerados
cognatos. Em função disso, os antigos estudiosos incluíram, em um só grupo, os mimos,
o diálogo socrático, o simpósio, os panfletos, a poesia bucólica, a sátira menipéia etc., e
os denominaram de cômico-sério. Segundo Bakhtin,
A primeira peculiaridade de todos os gêneros do cômico-sério é o
novo tratamento que eles dão à realidade. A atualidade viva, inclusive
o dia a dia, é o objeto ou, o que é ainda mais importante, o ponto de
partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade. Pela
primeira vez, na literatura antiga, o objeto da representação séria (e
simultaneamente cômica) é dado sem qualquer distância épica ou
trágica, no nível da atualidade, na zona do contato imediato e até
profundamente familiar com os contemporâneos vivos e não no passado
absoluto dos mitos e lendas. Nesses gêneros, os heróis míticos e as
personagens históricas do passado são deliberada e acentuadamente
atualizados, falam e atuam na zona de um contato familiar com a
atualidade inacabada
73
.
Desse modo, se para a Antigüidade Clássica, já era possível, por exemplo, a relação
entre a poesia bucólica e o panfleto, na ficção contemporânea, a sátira se manifesta nas
suas numerosas facetas; aqui, em especial, ela se mistura com a própria História. "A
primeira peculiaridade de todos os gêneros do cômico-sério é o novo tratamento que eles
dão à realidade." Ou seja, o diálogo socrático, o simposion, os panfletos, a sátira
menipéia, etc., ao serem retomados como propostas literárias, permitem ao escritor
"reler" os fatos do dia-a-dia, com um novo olhar. Daí, "os heróis míticos e as
personalidades históricas do passado serem deliberada e acentuadamente atualizados",
73
BAKHTIN, M. (1981) p. 92.
98
visto que, aos olhos do intérprete da contemporaneidade, eles passam por um "crivo" de
valores diferente daquele do passado. Em razão disso, vamos encontrar, em Sêneca, a
aboborização do imperador Cláudio; em Rabelais, as imitações bizarras da ressurreição
de Cristo, e em José Cardoso Pires, a transformação de Salazar em dinossauro.
Desse modo, selecionamos três monumentos históricos "reavaliados" aos olhos da
atualidade. São eles; a estátua do monarca Dom Sebastião, a estátua do Barão Maneta, e
a estátua do lavrador dos Tojais. Em ambos os episódios, esses monumentos aparecem,
em Alexandra Alpha, visivelmente carnavalizados. E tal destronamento assinala como
sendo mais uma característica da menipéia. Em razão dessa "avaliação contemporânea",
ocorre a característica da infinitude, visto que outros escritores, com o passar dos tempos,
poderão reutilizar esses mesmos elementos históricos, em outras narrativas, e, ainda, com
um novo olhar.
Assim, destacamos a estátua de Dom Sebastião, na praça, a ser "avaliada" por um
"olhar" contemporâneo; ela recebe outra leitura diferente daquela conhecida pela
tradição histórica. Com isto, o referido monumento, ao ser observado pela rigorosa lente
da personagem Alexandra Alpha, sofre um processo dessacralizante, uma vez que o
narrador permite a ela expor uma visão que, talvez, represente a opinião da maioria. Ao
misturar-se com as pessoas reais, Alexandra prova dos mesmos sentimentos que as
demais. E, na praça, ao contemplar os monumentos históricos, a personagem manifesta
reações semelhantes àquelas que, alguém do povo, poderia expressar naquele momento.
Assim, quando ela vai até ao Terreiro do Paço, ao Largo do Carmo, ao Parque Eduardo
VII ou a qualquer outro espaço público, parece brincar com aquilo que antes fora motivo
de grande orgulho nacional. Destacando, pois, um episódio do romance, vamos encontrar
Alexandra "sentada com o companheiro na esplanada duma praceta à vista da estátua de
el-rei Sebastião, o Desejado":
99
Ela de óculos de sol (...) a poucos metros tinha o monarca-menino
talhado em bronze.
Alexandra: "Parece um bibelot, o estuporado do reizinho".
"Como?" perguntou o homem baixando o jornal que estava a ler.
Alexandra: "A estátua. Aquele dom Sebastião cheira a andrógino que
tresanda". (AA, 186)
Aqui a dessacralização é visível, não só da personagem épica como também do
mito sebastianista. O diminutivo reizinho já denuncia a irreverência, o sarcasmo, a
ironia. Pois, das numerosas inferências polissêmicas contidas no sufixo inho, aqui,
extraordinariamente, apresenta o sentido de diminuição, ao referir-se ao tamanho e à
importância do monarca, retratado no monumento. E o rei, anunciado com aparência tão
frágil, chega a ser visto como um bibelô. E o que é um bibelô a não ser um objeto de
enfeite e que denota apenas fragilidade? O monarca está diminuído não só na estética,
como na imagem, na opulência da autoridade do antigo rei. Se não bastasse isto, existe
ainda a forma de tratamento (Dom), designativo dado a reis, príncipes etc, e autoridades
eclesiásticas, oriundo do latim, Dominus (Senhor), que vem grafado com minúscula,
sinal este, da negação, portanto, de toda a histórica nobreza; assim como, indicativo da
ausência do estatuto de rei, e, principalmente, de herói.
Esse monumento, aos olhos da protagonista, caracteriza somente a praça, dando, à
mesma, um destaque carnavalizador. O que há em Alexandra é uma visível perda de afeto
com a tradição e o passado. A sua irônica visão destrói a integridade do épico e do mito.
"Se dizemos que o trágico faz explodir os contornos de um mundo, diremos do cômico
que ele extravasa as bordas desse mundo"
74
. O monarca-menino que antes aparecia
lindamente estampado nos livros de história, agora já não tem a importância de antes,
74
STAIGER, E. (1972) p. 152.
100
porque ele agora é apenas um "estuporado reizinho", imitação de um homem que, na
praça, serve "de espetáculo ao homem"
75
.
E o que dizer de um rei andrógino? Para uma sociedade tão machista e
conservadora, não há nada mais depreciativo e carnavalesco (para não dizer dramático).
Tal semelhança vamos buscar em As Bacantes, de Eurípides; lá temos um exemplo de
androginia e do desatino que ela é capaz de causar. Segundo o episódio satírico, inserido
na tragédia de Eurípides, o rei Penteu, ao se encontrar vertido igualmente a uma bacante,
teve, como conseqüência, a morte __ crime cometido pelas companheiras do deus do
vinho. De modo análogo, Alexandra Alpha, dentro de suas limitações históricas, trágicas
e situacionais, ainda que inteiramente inconsciente, acaba agindo de forma um tanto
quanto parecida. Ela não tira a vida de ninguém, mas destrói, fragmenta, rasura o
monumento / documento mais elevado daquele mito, construído ao longo de muitos e
muitos anos.
Esse "rebaixamento", dado ao monumento histórico, atribui-lhe um caráter
menipéico. Nele já não há nenhum símbolo de poder. O que resulta, portanto, em
negação de tudo o que antes o rei representava. O monarca-menino, que parece um
bibelot, tem sua nobreza bastante depreciada. Sinal visível de um modo irônico de
questionar os valores históricos. Na visão da protagonista, ocorre a junção do grotesco
com o sublime, do alto e o baixo, do sério e o cômico, da carnavalização, onde o grotesco
se destaca na expressão "estuporado reizinho", e, o sublime, em o "monarca-menino".
Por outro lado, se Cardoso Pires resgata o passado, trazendo-o para a atualidade,
propondo nova leitura para o mito sebastianista, recria, também, diferentes imagens e
agrega novos valores à personagem histórica. E esse "reler", embora dessacralizante, não
deixa de ter a sua graça e a sua relevância, ainda que o mito seja revisitado por meio da
paródia. O silencioso monumento, ao ser descrito de forma tão assimétrica, é
75
BERGSON, H. (2004) p. 15.
101
transformado em um divertido episódio urbano. Mesmo assim, Cardoso Pires, ao falar de
um grande tema como se fosse pequeno, ou como se fosse um brinquedo, não "mancha" o
mito, pelo contrário, revitaliza-o, tira-o do ostracismo, através da ironia. O discreto riso
aparece porque ao rei é atribuído um valor "marginal" em sua individualidade, fato que o
"rebaixa" e o tira de seu verdadeiro pedestal. Esse cômico, ainda que temporário, é, por
si, destronador e entronador.
O "andrógino que tresanda" assinala a ambigüidade sexual do rei (há quem diga que
ele partiu virgem para a guerra e era misógino). É como se, naquele momento, ele fosse
um judas com quem as pessoas se divertissem atirando-lhe numerosas injúrias, em um
agradável sábado de aleluia. O monarca está dessacralizado, não só pelo trágico riso,
como também pelo exagero da perda do poder hierárquico. A inversão de valores resulta
nesta cena burlesca. Na visão da protagonista do romance, o rei "tresanda", isto é, "anda
para trás", "desanda", "perturba", "exala mau cheiro". É o mundo às avessas ou
propriamente da profanação, da paródia. Entretanto, "a paródia não é a destruição do
passado; na verdade, parodiar é sacralizar o passado e questioná-lo ao mesmo tempo. E,
mais uma vez, esse é o paradoxo pós-moderno"
76
. Por outro lado, "a paródia é um
elemento inseparável da 'sátira menipéia' e de todos os gêneros carnavalizados."
77
.
No caso descrito acima, a personagem Alexandra Alpha parece divertir-se com o
"reizinho cheio de birra" (AA: 186), para o qual, na praça, ninguém dá a menor
importância. Em função do tempo, ele está banalizado na paisagem. E no espaço da
praça pública contemporânea é excêntrico, porque perdeu o estatuto de herói. E
"Alexandra a brincar com a estátua à luz duns óculos escuros: Dom Sebastião, o
Nevoento. Dom Sebastião leva-o vento. Dom Sebastião de Alquibir quem te mandou
para aí ir?" (AA, 186).
76
HUTCHEON, L. (1987) p. 153.
77
BAKHTIN, M. (1981) p. 109.
102
Sem dúvida, ocorre aqui uma direta referência à quixotesca e insensata aventura,
movida pela cobiça e desejo de glória, empreendida pelo monarca ao embarcar para o
norte da África, onde veio a perecer na batalha conhecida por Alcácer-Quibir. O irônico
sentimento se dá pelo fato histórico falido. Visto que Dom Sebastião ficou mais famoso,
em função de ele ter desaparecido na guerra sem deixar vestígio, do que, talvez, se ele
tivesse voltado cheio de glórias do campo de batalha. O mito de Dom Sebastião é a
história de um acontecimento onde menos é mais. Isto é, em razão de ninguém saber o
que realmente aconteceu com o rei, este fato, ironicamente, o tornou célebre. E o olhar
"avaliativo" de tal atitude transforma Alexandra (talvez, alter ego de Cardoso Pires), em
juiz de tão marcante fato histórico. O humor transbordante contribui para destruir o mito.
"Dom Sebastião, o Nevoento". Parece personagem de uma narrativa grotesca.
Dom Sebastião, aquele que está nas trevas, coberto de gelo (gelo do esquecimento e do
abandono?), e encoberto pelo nevoeiro, inerente ao mito. Lembra também personagem de
uma festividade folclórica da Idade Média. Quem era rei, hoje é o bobo incompreendido,
arrastado pelo vento nebuloso da História. Das valiosas instalações palacianas, restam-
lhe as ruínas da praça pública. É a coroação-destronamento. Entretanto, quem, na
atualidade, observa aquele monumento exposto em praça pública, talvez não compreenda
a importância dele no passado. É como um leigo que encontra algum fragmento de uma
língua morta em um papiro no deserto. Mas, aos olhos de um especialista, seria difícil
conter a emoção diante de tal monumento/ documento histórico.
Contudo, Alexandra, ao falar do "estuporado reizinho", demonstra apenas visão
crítica e ironia, ou faz uma provocação aleatória? Visa questionar o mito ou destruí-lo?
Se assim for, vai colocar o quê, em seu lugar? Visto que uma nação, sem mitos, carece
também de identidade. Se bem que o mito sebastianista é, por si, infirmus, isto é, pouco
sólido, uma vez que, excluídas as "paixões" pessoais, ele é apenas uma justificativa para
103
certa derrota militar. Segundo Saraiva
78
, o mito sebastianista "é também uma forma de
compensação em relação a uma realidade frustrante. É quando Portugal parece
condenado a um estrangulamento inglório". Para o próprio José Cardoso Pires, "o
sebastianismo é um dos mitos mais frágeis e mais desesperados da frustração histórica de
um país que, no século XVI, descobriu um novo rosto do mundo"
79
. Apesar disso,
Alexandra, como se acatasse o mito sebastianista, suspira e diz: "Desaparecido. Nunca
morreu o reizinho" (AA, 187).
De forma ainda bem dessacralizante (do ponto de vista da tradição oficial), o
narrador apresenta outro episódio, onde aparecem Francois Désanti e Maria. O casal está
preso em um engarrafamento, próximo a uma praça, no centro de Lisboa. De repente,
interrompendo a conversa, Maria aponta: "olhe", e indica um monumento exposto na
praça ao lado: ela refere-se à
ESTÁTUA DO BARÃO MANETA
O personagem estava numa pequena praça ao desabrigo. Podiam vê-
lo, podiam apreciar o barão e tribuno desbraçado porque o trânsito ia
tão devagar que dava tempo. Ali estava um que nunca pedira desculpa
das piratarias que engendrou. Negociatas de negreiro, intrigas de
palácio e igreja, revoluções a dois gumes, não houve nada em que o
safado do tribuno não metesse a mãozinha e ainda lhe sobrara um braço
para os desperdícios. Maria sempre achou que Lisboa era uma cidade
cheia de bibelots de má-fé e aquele era um deles. Um dos seus
preferidos, a estátua do barão maneta. De casaca e chapéu alto,
assemelhava-se a um amador de salão cheio de truques na manga
dobrada ao meio. Pelo troca-tintas que tinha sido toda a vida, se
deixasse cair a manga com certeza que apareceria logo a mãozinha que
ele trazia escondida. Não? Ah, pois não. O ronha do barão nunca fora
maneta, era tudo golpada. Em vez de uma aquele menino andava mas
era cheio de mãozinhas guardadas na manga da casaca: mãozinhas de
pretos para exemplo de castigo, mãozinhas de ouro ou figas confiscadas
aos ourives ambulantes, mãozinhas de cera benta, mãozinhas de ferro
arrancadas a portões da nobrezia, mãozinhas de bronze, espólio de
estátuas proibidas, um arsenal de mãozinhas era o que escondia aquele
maneta de salão. Se o tribuno baronês apresentava, como se via, um
braço cortado ao meio, era pura e simplesmente para comover a
assistência e dar tragédia aos discursos. (AA, 136).
78
SARAIVA, A. J. (1982) p. 120.
79
PIRES, J. C. apud ABREU, M. F. de (2005) p. 214.
104
O monumento é dessacralizado pela personagem Maria. Tal qual D. Sebastião, este
barão maneta aparece na forma de "bibelot" a enfeitar a cidade. Entretanto, além de
simples objeto decorativo, ele ainda tem exposta a sua péssima conduta. E ela serve para
comprovar o jargão popular que diz ser a História escrita pelos "vencedores". Pois, se
assim não fosse, o tal barão maneta jamais apareceria exposto como monumento
histórico; visto que, conforme os crimes cometidos, as informações sobre sua vida só
deviam constar nos arquivos policiais... No entanto, em função de ele fazer parte da elite
dos "vencedores" do passado, em um certo momento histórico, foi homenageado com
este monumento. Mas, na Pré-Revolução de Abril, não só o barão, como também o
monumento passam por outra avaliação histórica. E, pelo que se constata, aos olhos da
personagem, aquela condescendência do passado é agora questionada: "Ali estava um
(barão) que nunca pedira desculpas das piratarias que engendrou. Negociatas de
negreiros, intrigas de palácios, revoluções a dois gumes, não houve nada em que o safado
não metesse a mãozinha ..."
Se para Le Goff
80
, "o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado,
perpetuar a recordação", aquele passado, atualmente, é visto como vergonhoso; o "herói",
exposto na praça, não representa exemplo a ser seguido. E o autor de Alexandra Alpha,
através do ponto de vista da personagem, dessacraliza a "raça" dos barões, vendo-os
como simples e perfeitos marginais que enriqueceram a custas de pilhagens e muitos
crimes acobertados nas mais diferentes ocorrências.
A dimensão mítica do passado glorioso dos barões é revista e exposta; cabe a cada
leitor atribuir, no mínimo, um sentido a uma das duas interpretações. Na primeira,
aceitar aquele monumento adormecido como símbolo de um passado glorioso; na
segunda, reavaliar a História como está em Alexandra Alpha, para descobrir o quanto há
80
LE GOFF, J. (1996) p. 535.
105
de crimes nas costas desses "barões de má-fé" que enfeitam a cidade de Lisboa.
Os numerosos adjetivos __ maneta, safado, ronha (velhaco), troca-tintas (traidor),
(trapalhão) __, dão o "tom" da sátira e da profanação sobre os elementos da História.
Também fortalecem a problemática querela sobre a revisão histórica; eles trazem consigo
a noção da dessacralização carnavalesca a anunciar os traços de desconstrução. Em
função disso, a estratégica irônica desmonta toda aquela estrutura instituída pela História
oficial. E esse destronamento desfaz o passado glorioso dos barões e os transforma em
motivo de escárnio e desprezo.
Ao contrário do que ocorre com o bobo na cerimônia carnavalesca, que, ao receber
roupas nobres e símbolos do poder, se transforma em rei, este barão, exposto em
monumento, uma vez dessacralizado, perde todos os indícios de seu heroísmo. Agora, "o
ronha", o "troca-tintas", em função dos crimes cometidos, não passa de um judas a ser
apedrejado, visto que os seus "valores", neste momento histórico, não são recomendáveis.
E esse "desmascaramento profanador" é mais uma "característica da menipéia"
81
.
O barão maneta, no pedestal da praça, da forma como é descrita a sua
personalidade, assemelha-se a uma daquelas personagens de romance burlesco ou de
aventura de estrada, ou mais precisamente, de navios piratas, saqueadores ou traficantes
de escravos. Esse barão pode confundir-se, também, com uma figura de circo,
representante de uma antiga e gloriosa época, e, está de tal modo, às avessas em
Alexandra Alpha, que induz o leitor a pensar que ele não tem mais importância, e,
consequentemente, temos aí a morte deste fragmento histórico.
Tal como a morte do mito de Dom Sebastião ou a morte dos valores históricos do
barão maneta, o episódio seguinte aborda, de forma satírica e alegórica, o "enforcamento
81
BAKHTIN, M. (1981) p. 101.
106
dum lavrador". Segundo o romance, o fato sobre o "fidalgo camponês", aconteceu assim:
O infeliz do lavrador acabara arrastado de corda ao pescoço, pelas ruas
da vila.
Ele, não: o pai. Ou melhor: a estátua do pai, que tinha sido posta pela
Câmara à entrada do jardim público. A estátua é que fora arrastada mas
era como se o levasse a ele porque pai e filho eram iguais, tinham a
mesmíssima figura, só que um era de bronze e outro de carnes rijas.
Como avisava o cônego, tratava-se de uma execução simbólica, dado
que ambos já não pertenciam ao mundo dos Tojais: um por estar morto,
o outro por ter fugido para Espanha com a mulher e os cães, deixando
para trás todos os haveres e recordações. (...).
Com o lavrador dos Tojais tinha-se passado exatamente essa desgraça,
ira e devassidão. À falta da pessoa dele, o povo de Tojais foi-se à
estátua do pai, veja-se a que ponto era a cegueira do ódio, e enforcou-a.
Depois passeou-a pelas ruas como se passeasse o filho em maior e em
peso de bronze, arrastada por duas mulas, uma das quais meio cega;
parece que por essa razão os animais não se entendiam, puxavam torto e
cada um para seu lado, e a estátua encontrão para a esquerda, encontrão
para a direita, ia de parede a parede, perseguida por cães e por pedintes.
Até que, metendo pelos campos e depois de atravessar uma cerca de
porcos assustados, foi encalhar num ribeiro onde ainda hoje podia ser
vista. Nos dias de sol parecia um afogado preso no fundo das águas.
(AA, 295-6)
O episódio merece observações por dois pontos distintos.
Primeiro, o passado "triunfal" do lavrador dos Tojais. E esse tempo "glorioso",
"transcrito" através do monumento colocado pela Câmara Municipal, no jardim público
da cidade, é prova suficiente a falar da memória e da vocação agrícola do local. Tal
monumento na praça, a homenagear o lavrador, é indício de uma imitação positiva de
outras grandes obras comemorativas, resultantes de outros feitos heróicos transcorridos
em tempos ainda mais remotos à época narrada no romance. Dentre estes feitos heróicos
estão os arcos do triunfo romano, as colunas e esculturas gregas, e tantos outros
monumentos, os quais, provavelmente, forneceram "inspiração" aos vereadores da vila
dos Tojais, que resolveram homenagear aquele "ilustre" morador.
Entretanto, a herança do passado "glorioso" da vila dos Tojais, ao ser "celebrada"
com apenas um, dentre muitos outros habitantes, é agora renegada. Quando eles
107
derrubam a estátua, destróem, talvez, o mais importante documento/ monumento que fala
sobre o passado da vila.
Convém ressaltar que 'documento' aqui é visto, segundo "aquilo que serve para
instruir, informar, elucidar, como manuscrito, impresso, gravuras, fotografia, fita
cinematográfica, disco etc"
82
. E as informações sugeridas através da estátua do lavrador
dos Tojais vão testemunhar um ato social que, como documento, fala de um passado que
precisa ser lembrado. Tal instância documental é fortalecida e empenhada pelo que diz
Le Goff
83
, quando comenta sobre a transformação do documento em monumento: "O
documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da
sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder." Ou
ainda: "O monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação;
uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna, troféu,
pórtico etc"
84
. E aquelas "relações de forças" estavam sendo questionadas, através de
outras forças, na Pós-Revolução.
Ao derrubarem a estátua, ocorre a negação da memória de um tempo que os
habitantes da vila pretendem esquecer. E essa memória, como identidade cultural, na
opinião dos moradores, precisa ser apagada para que outra seja implantada. Mas esse ato
fecha-se em um paradoxo, visto que a Revolução dos Cravos se dizia mensageira da
liberdade e não da opressão. E aquele povo que se sentia oprimido pela presença da
estátua, ao derrubá-la, estaria pensando em libertar-se? Ou a coletividade, em nome da
Revolução, agia da mesma forma como fez a PIDE do antigo regime? Exposto o dilema,
o próprio Cardoso Pires parece desejar uma resposta, visto que o romance Alexandra
Alpha aponta muitas questões que, possivelmente, causam um certo mal-estar naqueles
82
CORREIA, A . M et al. (1960) p. 209.
83
LE GOFF, J. (1996) p. 545.
84
Idem, 535.
108
que, um dia, acreditaram ser possível mudar Portugal, sem destruir os sonhos e os mitos.
O episódio "do lavrador dos Tojais" retrata bem um dos equívocos instalados sob a
tutela da Revolução. Quem possuía terras antes do 25 de abril passa a ser perseguido,
expulso ou assassinado. Como se não pertencessem àquele país, os grandes proprietários
de terras são obrigados a exilar-se, caso pretendessem viver.
Convém ainda observar no fragmento, em destaque, o indicativo de que existiam
idéias opostas dentro da cúpula do poder. Tal fato sugere dificuldades e ausências de
acordos que pudessem somar forças, para que, juntos, todos procurassem resolver os
problemas comuns. A estátua foi "arrastada por duas mulas, uma das quais meio cega;
parece que por essa razão os animais não se entendiam, puxavam torto e cada um para
seu lado." Em função da cegueira pelo poder e da ausência de acordos e de
entendimentos, a estátua "sofria" por aparentar não existir uma direção correta para
conduzi-la: "Encontrão para a esquerda, encontrão para a direita...", parece que assim
viveu o povo português da época.
Alexandra Alpha assinala que os primeiros anos Pós-Revolução foram bastante
problemáticos, principalmente ao que se refere às questões relacionadas à cidade e ao
campo. Sobre o "enforcamento", o narrador ainda aponta dados bem esclarecedores
quanto à dimensão do conflito: "ambos já não pertenciam ao mundo dos Tojais: um por
estar morto, o outro por ter fugido para a Espanha com a mulher e os cães, deixando para
trás todos os haveres e recordações" (AA, 296).
Diante da "nova opressão" e da troca de peças no tabuleiro do jogo do poder, o
lavrador dos Tojais (subentendido latifundiário), teve de fugir deixando para trás tudo o
que tinha, tudo o que conseguira, obtivera ou recebera de seus antepassados. Inclusive,
as próprias recordações (as suas memórias), as raízes e as tradições __ tudo teve de ser
abandonado, às pressas, como quem foge de um incontrolável incêndio. Diante de tais
109
fatos, o narrador desmitifica a Revolução dos Cravos, visto que, o romance em estudo,
toca em muitas feridas ainda não cicatrizadas: "O caso do lavrador do Tojais arrastado
em estátua, (...) essa vergonha; de enumerar falências e escândalos de roubo; suicídio. Na
sua opinião, mais dia menos dia, vinha a guerra civil. Para evitar isso é que o Spínola
tinha tentado o golpe de setembro." (AA, 335).
Por trás do irônico "enforcamento", um fato historicamente sério, uma quase
tragédia (embora não chegue a tanto), porque o lavrador enforcado é um homem de
bronze, "morto", simbolicamente, no lugar daquele que foi para a Espanha. Em função
dessa morte aparente, de faz-de-conta, a violenta atitude popular dos "revoltosos" é
amenizada, já que ela tem uma aproximação com o riso. Por este motivo, existe a
instigante sensação de que o episódio do lavrador dos Tojais transita entre o cômico e o
trágico. O lavrador de bronze __ alegoricamente destronado em face do mito agrário e
rural revolucionário __ esse homem-coisa como sugere Propp
85
faz lembrar também o
doutor dinossauro. Fatos semelhantes podem ser relacionados ao mundo da sátira.
Segundo ponto a ser observado: "trata-se de uma execução simbólica", e, por isso, a
narrativa está marcada por uma morte alegre, ou seja, uma simulação, um faz de conta
que aconteceu assim; tal como mentirinha de criança. A "execução simbólica" remete ao
fim do salazarismo, à indignação popular, à morte do antigo regime e ao nascimento de
outro. Sem dúvidas, esta é uma narrativa repleta de ambigüidades e ligações muito
estreitas entre os temas, visto que eles, ao mesmo tempo, misturam o sério e o cômico, o
alto e o baixo, a morte e a vida, a vitória e a derrota. Tudo isto em um episódio tão curto!
Quando o narrador revela o fato de a estátua ter sido arrastada "por duas burras
decrépitas" (AA, 335) também suscita o riso; já que a decrepitude, a velhice, a caduquice
85
PROPP, V. (1992) pp. 74 - 78.
110
estão presentes, com freqüência, na sátira.
E as "duas muares decrépitas", por sua vez, não poderiam ser interpretadas como
uma referência a alguns adeptos do antigo regime, que simulavam estar a favor da
Revolução? A narrativa induz a algo não explícito no texto: "A mula zarolha, que além
de zarolha era velha, estatelou-se pouco tempo depois numa vala pedregosa e acabou
devorada pelas vespas. Em sentido figurado". (AA, 296). A expressão "vala pedregosa",
assinala a direta relação entre a vida e a morte; da putrefação reaparece a vida (Séries da
morte). Entretanto, este "sentido figurado" sugere uma incógnita, à parte, para ser
decifrada por aquele que conhece as figuras históricas envolvidas no processo
revolucionário de Abril, em Portugal.
O romance também expõe indícios de que alguns manifestantes pró-Abril agem da
mesma forma que os chefes do governo do ex-Dr. Dinossauro. Tal fato poderá indicar a
paródia aos ideais revolucionários e a dificuldade ou impossibilidade de sua manutenção.
"Na literatura humorista e satírica (...), chamar uma pessoa com o nome de animal
qualquer é a forma mais difundida de injúria cômica tanto na vida como nas obras
literárias"
86
. Portanto, "burras decrépitas", e "Dinossauro Excelentíssimo" são irônicas,
sutis e satíricas formas de injúrias e xingamentos; exemplos de mecanismos do riso como
forma de denúncia, capaz de levar o leitor à reflexão.
"Tratava-se de uma execução simbólica, dado que ambos já não pertenciam ao
mundo dos Tojais" (AA, 296), isto é, já não pertenciam a esse nosso mundo. Um deles
havia partido para outra dimensão: o céu ou o inferno? O outro foi obrigado a exilar-se,
ao perder o poder agrário e as terras. A sátira abrange os três níveis apontados: terra,
céu, inferno. E este é mais um sinal, um indício de morte alegre ou paródia do corpo
humano. Esta morte simbólica é semelhante àquela descrita por Bakhtin
87
, ao comentar
86
PROPP, V. (1992) p. 66.
87
BAKHTIN, M. (1998) p. 308.
111
sobre o autor do Renascimento, capaz de renovar o ideal filosófico e moral de seu tempo.
Em Rabelais, "a imagem da morte adquire traços cômicos: a morte, ao encontrar-se em
vizinhança direta com o riso. (...) representa a diretriz para a conceituação de mortes
alegres".
Enforcar uma estátua é semelhante a enforcar um judas em sábado de aleluia.
Ambos são seres inanimados, entretanto, possuem uma representação simbólica muito
grande. Nos dois episódios, é possível detectar tanto ira quanto devassidão; como
descreve o narrador no episódio acima. Por um lado, ao "malhar o judas", a ira popular
dos moradores da vila dos Tojais provém de um grande desejo de vingança, em função de
um importante acontecimento ocorrido no contexto político presente. Por outro lado, a
devassidão é manifestada pelo caráter carnavalesco, pela embriaguez coletiva, pela
dessacralização da estátua/ monumento/ documento do episódio em análise. Na "festa"
de malhação de judas, o espancamento é também acompanhado de injúrias e difamações;
após a morte simbólica, ele é despido (sinais de libertinagem e de crueldade), e,
literalmente, é arrastado pelas ruas, (como aconteceu com o dito lavrador), é
acompanhado por gritos de crianças, e perseguido por cães; muitas vezes o judas tem os
membros dilacerados, e sempre é abandonado em um lugar ermo. Aqui a ação folclórica
se assemelha à destituição latifundiária.
E, qualquer semelhança entre "malhar o judas" e a estátua do lavrador dos Tojais
seria mera coincidência? Em ambos os casos, é possível constatar que a morte tem uma
representação cômica, divertida, é capaz de gerar prazer. Os fatos apresentados, ainda
que revelem traços da ira e da crueldade, não causam repulsas, porque são repletos de
sinais, indícios da carnavalização.
Os três episódios apresentados (Dom Sebastião, o nevoento; o barão maneta; e o
lavrador dos Tojais) são indícios de fatos forjados, conforme o interesse da época, para
112
construir a mitologia de uma nação; e cabe a seu povo, fazer, sempre que necessário, uma
revisitação dos mesmos. Assim, para completar, lembremo-nos do que já foi dito sobre a
batalha conhecida como o "milagre de Ourique". Segundo Saraiva
88
, este acontecimento
também não passa de uma "fraude histórica". Portanto, algum dia aparecerá alguém para
dizer o mesmo da Revolução de Abril?
3.2.2 - Festa popular e renovação
Ao contrário do que foi visto no capítulo anterior, onde se destaca a sátira com
características diminutivas, isto é, aquela sátira que reduz, com seu fervor, a grandeza do
objeto em questão (estátua de Dom Sebastião X bibelot), aqui nos deparamos com a
inflação, isto é, aquela sátira que exagera, aumenta, faz extravasar alguns aspectos da
coisa apontada. Destacaremos, portanto, de dentro da festa celebrada para comemorar a
queda do salazarismo, alguns elementos que são inegáveis sinais de que a sátira está
presente neste acontecimento, principalmente ao que se refere à morte do regime
salazarista.
Assim, do modo como a Revolução dos Cravos é apresentada, no romance em
estudo, faz-nos perceber o povo nas ruas a romper as antigas leis, gritando slogans de
liberdade, transgredindo as normas, vivenciando a embriaguez coletiva. Todos esses e
demais fatores são sinais, não só de uma significativa mudança, mas também, do sentido
simbólico de carnaval. Bakhtin, ao falar da carnavalização na literatura, destaca:
88
SARAIVA, A. J. (1982) p. 121.
113
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e
espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos
participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos
rigorosos, nem se representa o carnaval mas vive-se nele e vive-se
conforme as leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida
carvavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em
certo sentido, uma "vida às avessas", um "mundo invertido" ("monde à
l'envers")
89
.
Conforme os processos descritivos e narrativos, presentes no romance, ao
comemorar os acontecimentos transcorridos no dia 25 de abril, o povo transforma as ruas,
os becos e praças em uma grande festa popular e surgem, aí, os sinais da carnavalização e
da transgressão comportamental, uma vez que, "no carnaval, todos são participantes
ativos". Tal fato é caracterizado pela manifestação do povo no Largo do Carmo,
subindo nos tanques de guerra, para tirar a "máscara" do regime salazarista, o que condiz
com a afirmação de Bakhtin. Em Alexandra Alpha, a Revolução tem características de
uma grande festa popular: todos estão reunidos no Largo do Carmo, há cantos festivos e
as comemorações chegam quase ao delírio.
As leis do regime anterior foram revogadas, as proibições ignoradas, o sistema de
hierarquia desfeito: desapareceu a distância entre os homens e estabeleceu-se o contato
familiar livre. É tempo de alegria e de visão carnavalesca, e, uma vez mais, prevalece o
triunfo popular. Os violentos tanques de guerra, antes usados para ameaçar o povo, agora
parecem cavalos domados a se deixar montar pelos transeuntes da praça. Eles estão "às
avessas". Enquanto o povo comemora a queda do antigo regime, as antigas máquinas de
guerra ameaçam os generais aquartelados: "Todos ao largo do Carmo, porque no quartel
do Carmo estava o governo encurralado" (AA, 276). Ou: "o largo (do Carmo) ainda
ontem era pouco mais do que um terreiro de guardas a cavalo mas que agora comportava
um mar de povo, gente às varandas, gente nos telhados e em cima dos camiões militares."
89
BAKHTIN, M. (1981) p. 105.
114
Tal qual as saturnais ou as festas dionisíacas, quando era impossível identificar
onde findava a celebração religiosa e se iniciavam as comemorações festivas, no dia da
Revolução dos Cravos, é impossível saber onde termina o fato Histórico e em que ponto
começam as festividades carnavalescas. Os dois acontecimentos são intrínsecos e um não
existiria sem o outro. Provavelmente o autor nem tenha se dado conta de que, ao nos
contar sobre o dia da Revolução, também descrevia uma festa com muitas características
do carnaval. A própria substituição das mortíferas balas por rosas, por cravos na boca
dos fuzis, já é, por si, uma Revolução às avessas. E vemos Alexandra com a amiga
Maria, misturadas com o povo a gritar, "Liberdade, Liberdade, Fascismo nunca mais!"
(AA, 277). Tais palavras definem-se pela alegorização e isto novamente faz lembrar as
festas pagãs do antigo Império romano, onde a Vitória, o Amor, a Felicidade, a
Liberdade, a Alegria, o Riso e tantos outros deuses da época eram celebrados na mais
importante festa do ano __ a festa das colheitas, em que as homenagens a Dionísio ou a
Baco se transformavam em transes coletivos que, ainda hoje, embriagam o povo no
carnaval. Em Alexandra Alpha, assistimos à revivescência desse ritual, quando, na praça,
no dia da Revolução dos Cravos, o povo se manifesta como se celebrasse uma opulenta
festa, após uma grande e muito esperada colheita. Colheita esta que tanto pode estar
relacionada à agricultura, como à uma vitoriosa guerra: "Cobríamos de gritos, Vitória,
Democracia, empunhando cravos vivos, Vitória, Vitória, tanto cravo, que Abril aquele"
(AA, 281).
Chamamos a atenção tanto ao modo de grafar a palavra vitória, quanto à função
sintática desempenhada pela mesma, na oração em que se encontra. Ela é um vocativo e
sugere, inclusive, referir-se à deusa Vitória dos antigos gregos e romanos, fato que
fortalece ainda mais a hipótese anterior: esta "grande festa" é um agradecimento
celebrado pelo povo em honras à deusa Vitória, por acreditarem que a Revolução
115
concretizou a praxis revolucionária, preparada em surdina. No fragmento citado,
reconhecemos, através da forma verbal, na 1ª pessoa do plural ("cobríamos"), a presença
efetiva do narrador-autor, internalizado na narrativa; assim como a ação coletiva
responsável pela derrubada do regime vigente.
É necessário não esquecer que a prosa e a poesia portuguesas estão repletas da
presença do maravilhoso pagão greco-latino. Os Lusíadas é um exemplo inegável. Com
isso, a alegorização desse sentimento abstrato (V)vitória, dentro do contexto apontado, a
nosso ver, não pode ser descartado.
Assim, a seu modo, Cardoso Pires vivencia os eventos da Revolução, "filtrando-os"
através de uma lente muito particular. Ao incluir-se como participante dos fatos,
desejando ser fiel a eles, atua como verdadeiro documentarista: "Todos nós aplaudíamos
os quartéis que se juntavam ao Movimento das Forças Armadas, MFA, MFA, todos nós
nos abraçávamos pelas vitórias que se sucediam" (AA, 278). Ou então ele parte para a
dessacralização, ao denunciar a mudança repentina de atitudes dos defensores do antigo
regime salazarista: "Presenciamos com os nossos olhos a cena em que o famigerado
Maltez se despiu à pressa da pele de capitão de Polícia de Choque e se ofereceu em
posição de sentido ali mesmo aos militares da Revolução" (AA, 279).
"Se despiu da pele de capitão", e se vestiu ou revestiu-se da "pele de cordeiro"; a
semelhança com a conhecida parábola religiosa pode não ser apenas coincidência. O que
parece não haver precedentes é o fato de um capitão despir-se em plena rua para aderir
aos "inimigos". Este é um gesto de quem se aproveita da situação, pois "despir-se" é o
mesmo que tirar ou colocar a "máscara"; ação intencional de fingir entregar-se ao outro,
ao antigo oponente. É parodiar-se a si mesmo, sem se preocupar em cair no ridículo, uma
vez que, ao despir-se "da pele de capitão da Polícia de Choque" salazarista, o sujeito
revela um visível destronamento, um "rebaixamento", uma queda da patente militar.
116
Ao "despir-se", o capitão "rebaixa-se" socialmente e coloca-se no mesmo nível de
igualdade daqueles que estão no Largo do Carmo; isto é, o capitão de polícia tira a farda e
passa a exercer uma função que é imprópria à sua posição, ou seja, a de guarda de
trânsito: "Ofereceu-se em posição de sentido, aos militares da Revolução tendo sido
mandado ali mesmo para sinaleiro de bons modo, missão que efetivamente cumpriu com
disciplinado zelo e louvável convicção" (AA, 279). Desse modo, despir-se da farda de
capitão é colocar-se do outro lado da História, ainda que isto assinale ausência de
coragem em pleno momento de combate; ou ainda, o fato de tirar a farda evidencia o
gesto de um bufão ou qualquer ato circense próprio para fazer rir. Esse fato é também
uma das melhores formas de expressão da sátira; zombar dos homens do poder, para
apontar seus vícios. Há, neste rebaixamento, o sentido da renovação e da mudança, e
tudo isto é próprio da menipéia.
Transbordantes de alegria, todos ali, presentes no Largo do Carmo, parecem
mergulhados em uma embriaguez dionisíaca: "Alexandra, os soldados, o povo inteiro,
toda a gente, toda a gente esbravejava num vendaval de alegria" (AA, 283). De repente,
aquele povo, reunido no Largo do Carmo para comemorar um significativo ato político,
se vê envolvido em um delírio coletivo, onde os participantes vivem uma grande festa
popular. Nela, as leis e as proibições, que antes determinavam a ordem da vida, agora
foram revogadas, porque as comemorações assumem um aspecto carnavalesco, uma vez
que o carnaval elimina toda a distância entre as pessoas e favorece "o livre contato
familiar entre os homens". Este é um momento muito importante da cosmovisão
carnavalesca. Os homens, separados da vida por intransponíveis barreiras hierárquicas,
117
entram em livre contato na praça pública"
90
.
A distância entre os diferentes níveis sociais foi desfeita e o Largo do Carmo, a
praça pública, tornou possível a relação mútua entre as pessoas. Este lado festivo e
popular assemelha-se às antigas celebrações relativas às colheitas; onde a fartura e a
abundância propiciavam a crença em um futuro melhor, e, consequentemente, nascia, em
todos, o sentimento de renovação e as mudanças inerentes a ele.
Convém assinalar o valor, a importância da concepção desse riso festivo, quase sem
controle, que se propaga tal qual uma onda de energia sem limite ou fim. O momento
histórico, tão expressivo e original, assinalado pela festa comemorativa que anuncia a
morte do antigo regime e o nascimento de outro, converte-se neste festival de alegria.
Sabemos que "a menipéia incorpora freqüentemente elementos da utopia social"
91
,
e nada mais utópico do que a Revolução dos Cravos, uma vez que toda a sua ênfase está
relacionada com a esperança, o novo, o futuro, a mudança. Esse vínculo do fato histórico
com a menipéia se dá, em função de este gênero, também, abalar o poder, estimular a
renovação, instigar a substituição do velho, do passado, e de tudo aquilo que está
acomodado.
Das comemorações festivas do dia da Revolução, ainda é possível destacar:
E gritávamos pela primeira vez, Eme-Efe-A!. Liberdade, Liberdade! E
todo aquele vendaval festivo transbordava das colinas da capital,
engrossava cá embaixo, nas grandes praças e avenidas, para subir de
novo e alcançar as alturas do Chiado, conduzido pela vara do destino.
(...) Um mar de gente a entoar Grândola Vila Morena, um imenso coro
a declarar solenemente a terra da fraternidade. (AA, 276)
Atenção para o sintagma: "vendaval festivo"; ele confirma a estrutura carnavalesca
90
BAKHTIN, M. (1981) p. 106.
91
Idem, p. 101.
118
das comemorações daquele dia. Pelo entusiasmo descrito, as ruas, as praças e avenidas
transformaram-se em local de êxtase coletivo. Em tudo ocorre a inversão: a mudança do
baixo para o alto, o que era negro e obscuro (ausência de liberdade e de luz) transmuda-
se em claro: "A cidade apareceu radiosa" (AA, 275). As maravilhas transcorridas naquele
dia lavaram a alma daquele povo, que, há muito, vivia sob um manto negro a oprimir-
lhe os sentimentos ou a cercear-lhe os direitos: "Era o fim do terror" (AA, 275), ou seja,
era o fim das trevas, da ausência de luz, vivida pelos presos políticos, nos porões da
cúpula do poder. E por que não? O fim do grotesco e dos tempos infernais. A prova
disto está no momento em que todos correram e se concentraram no Largo do Carmo,
porque lá estava a luz, o sol, a deusa Liberdade. Com o mar de gente a cantar, o riso e a
alegria deixam de ser de um ou de poucos, e, espalham-se como uma onda a contagiar a
multidão inteira.
O narrador-autor não diz, explicitamente, mas no meio daquela "festança" existe a
sensação de que todos estão a banquetear a própria carne dos vencidos: "Sentíamos o
cheiro (o gosto) salgado que se exalava deles" (AA, 281). O grotesco e o sublime se
manifestam por meio da ação de supostos atos canibalescos e antropofágicos; e parece-
nos, incrível, a proximidade entre o ato político e as festividades pagãs do princípio da
história do homem, onde o sacrifício humano fazia parte do rito dos vencedores. Mais do
que nunca, "o vendaval festivo" dá o tom e acentua o aspecto sobre o drama da vida
humana e corporal (alimentação, bebida, nascimento e morte). "Enquanto o passado
agonizante se debatia num carnaval de quartel" (AA, 280), o povo cantava celebrando a
morte do regime opressor. Nada mais satírico do que a alusão e este "carnaval de
quartel", forma depreciativa a denunciar os diferentes "espetáculos" encenados pelos
militares contrários à mudança de governo.
119
Por outro lado, a Revolução dos Cravos, aos olhos daqueles que antes estavam no
poder, tem outra conotação: "Saída dos fumos da derrota, apareceu uma coluna
motorizada da Guarda Republicana e, cuidado, aquilo era uma expedição de suicidas a
avançar sobre o largo do Carmo. Vinham dispostos a pôr termo ao arraial revolucionário
e a salvar o quartel sitiado" (AA, 280). Aos olhos dos membros do antigo regime que
ainda se "movimentavam" pela cidade, a Revolução não passava de uma festa popular,
folclórica, um arraial revolucionário, coisa, portanto, para não ser levada a sério.
Entretanto, é no mar de gente a entoar Grândola Vila Morena, que o grande espetáculo
em praça pública acontece, e, mais uma vez, a visível mudança. O sublime canto,
externado por milhares de pessoas esperançosas, emerge da grotesca opressão e do
antigo medo.
Ao comentar sobre a menipéia de caráter "jornalístico", Bakhtin
92
destaca as sátiras
de Luciano e informa que elas eram "uma autêntica enciclopédia de sua atualidade: são
impregnadas de polêmica aberta e velada com diversas escolas ideológicas." Da mesma
forma, Cardoso Pires, no dia da Revolução, não deixa passar despercebido este grande
acontecimento de sua época, e, aponta, ao elaborar a sua "reportagem", o caráter lúdico
deste dia festivo e triunfal.
Havia gente de transistor ao ouvido seguindo ao mesmo tempo os
resultados das outras frentes (como no domingo de futebol) e
comunicando, dando vivas, e todos nós aplaudíamos, todos nós nos
abraçávamos. (...) Um país seguido em simultâneo como numa festa de
finalíssima (AA, 278).
"Um país seguido em simultâneo como numa festa de finalíssima." Tendo em vista
o aspecto do gênero "jornalístico", isto é, a sedutora comparação entre a festa que
comemora a polêmica Revolução e uma partida de futebol; destaca-se o modo como os
92
BAKHTIN, M. (1981) p. 102.
120
acontecimentos são apresentados: possivelmente um fla flu, no Maracanã, traduziria o
mesmo significado, e revestir-se ia da mesma empolgação. É curioso notar, inclusive, a
alusão ao radinho de pilhas, usado para acompanhar as notícias da Revolução: "havia
gente de transistor ao ouvido seguindo os resultados (como no domingo de futebol)"; tal
qual nos dias de jogos, o radinho de ouvido é, praticamente, o único instrumento que
muitos apreciadores de jogos não dispensam no dia de uma acirrada partida de futebol.
Ao que tudo indica, todos aqueles que se concentravam, no Largo do Carmo, estavam
"torcendo", mas torcendomesmo, pela Revolução e pelo final vitorioso; após o impasse
criado por Marcelo Caetano e os ocupantes de cargos do regime vigente. Naquele "mar
de gente", existia uma iminente vitória, em pleno processo de comemoração, digna de
registro pelos meios de comunicação.
O gênero "jornalístico", segundo Bakhtin
93
é pleno "de imagens de figuras atuais ou
recém-desaparecidas, dos 'senhores de idéias', em todos os campos da vida social e
ideológica, citados nominalmente ou codificados". E é com grande ironia, que, no dia da
Revolução, Cardoso Pires concede a Salazar, por meio de um código muito sugestivo, um
espaço em seu texto:
Mas Salazar, o Grande Dinossauro, há muito que estava sepultado
numa campa de aldeiazinha ao abrigo das virtudes camponesas, com a
sua caveira de dentes furibundos exposta aos vermes e às raízes:
ninguém se lembraria de perguntar por ele naquela altura, (AA, 279).
Aqui ocorre a ridicularização stuma da figura do senhor de todos os poderes, e o
riso aparece diretamente relacionado à morte; paródia que decompõe e destrói totalmente
o mito salazarista. Por meio da carnavalização literária, vemos a imagem de Salazar a se
decompor pela ação dos vermes, e tal destronamento parece representar o desejo daquele
povo, que, no Largo do Carmo, se embriaga de alegria.
93
BAKHTIN, M. (1981) p. 102.
121
Ainda sobre o dia da Revolução, o narrador-autor destaca, entre os "assassinos de
galões dourados a cavalgar pelos salões" (AA, 277), um "almirante das pescas grossas,
outro dono da nação que se tinha ido esconder no Quartel do Carmo. (...) E todos nós o
pensamos, e logo o esquecemos, como um almirante encalhado" (AA, 277). Entretanto,
enquanto a multidão, reunida no Largo do Carmo, gritava: "O povo! Unido! Jamais-
será-vencido", numa irmanada e forte comemoração, o "almirante Tenreiro", encalhado,
desovava sentado na retrete (privada) e "nós nem de longe poderíamos imaginá-lo em tão
dificultoso desempenho: um almirante a acagaçar à luz do autoclismo (da caixa de
descarga), com a casaca medalhada a dar-lhe pelos artelhos (tornozelos)" (AA, 277).
Diante da situação, esta cena é muito divertida. Não só em função da
carnavalização e da escatologia, como também pela dessacralização da patente militar,
uma vez que o dito almirante age como um verdadeiro trapalhão das privadas. E ele,
ainda que detentor da mais alta hierarquia militar da marinha, revela-se como um fraco
que "desova" sentado na retrete. O alto e o baixo estão no limite entre um provável
guerreiro, e um trapalhão; o almirante se comporta como um verdadeiro molengas,
dotado de artifícios próprios para fazer rir. Tal como o monumento de Dom Sebastião,
dessacralizado por Alexandra Alpha, a imagem do almirante sofre fortes degradações,
fato que o transforma em matéria de riso. E isto transcorre em função da troca de foco do
narrador. Ao invés de falar sobre um fato heróico, ele apresenta algo típico do cômico
de feira, e, ao devassar a privacidade do militar, poderia considerá-lo "um almirante
tenreiro", (transformando-lhe o nome próprio em um adjetivo), isto é, um almirante fraco,
medroso, "mole", que, com a casaca cheia de medalhas, deixou-se dominar pelo medo.
Em função disso, enquanto a multidão no Largo do Carmo gritava __ "O povo! Unido!
Jamais-será-vencido" __, o militar permanecia sentado na privada, e, quem sabe, até
desejou desaparecer pelo cano de descarga. A frase, "um almirante a acagaçar à luz do
122
autoclismo", sugere também um significativo sentido de "limpeza". No caso em questão,
a "limpeza" se dá por meio do afastamento dos excrementos inerentes a ele, o que, talvez,
venha a ser uma alusão, inclusive, a todos os membros do antigo regime de governo. É o
heróico ato revolucionário em oposição ao medo que rebaixa o almirante. É o grotesco e
o sublime em seu pleno vigor, como assinala Victor Hugo.
De modo ainda burlesco, outros membros do antigo regime assemelham-se ao
almirante citado: "com o pânico e o amor ao pêlo, como se já estivessem a arder no
patíbulo da forca", acusavam-se uns aos outros, ao mesmo tempo em que um "se
passeava de olhos fechados, a rezar em latim a Declaração Universal dos Direitos do
Homem" (AA, 276). A ausência de consciência humanitária, inerente ao rigor dos atos
cometidos pelas autoridades do regime salazarista, é bem conhecida, e, ao se imaginar a
cena, não há como conter o riso; visto que parece impróprio, para estas mesmas
autoridades, "sentir medo" e, principalmente, rezar, especialmente, em latim, e, em
benefício próprio, itens de uma Declaração a que jamais obedeceram. A ironia, a
ambigüidade e a contradição se fazem presentes, na hora da reviravolta política.
Por fim, na última cena do episódio, apresentado ao leitor, sobre os acontecimentos
do dia da Revolução, vamos encontrar Alexandra Alpha a procurar o carro dela que ficara
estacionado nas proximidades do Largo do Carmo. Ao encontrá-lo, ela percebe que o
veículo havia sido multado por se encontrar em local proibido. Este fato, mais que
irônico, induz a vaticinar que existiam atos punitivos e cristalizados na rotina dos
representantes do poder constituído, visto que, ao fugir às regras previamente
estabelecidas, em um dia inteiramente atípico, transgressor e festivo, o cidadão comum,
mesmo assim, continuava a ser punido. Ou seja, a Revolução não estava sendo levada a
sério ou, então, os burocratas do poder permaneciam alienados e petrificados em suas
punitivas ações recorrentes.
123
Por fim, Alexandra Alpha parece ter sido escrito não só para comemorar o fim do
salazarismo e provocar algumas reflexões sobre o regime que o sucedeu, como também
para divertir o leitor, dando a ele alguns ensinamentos, através do riso transgressor.
Talvez por isso, muitas vezes, o romance, além de ser extremamente sério, é profano,
zombeteiro, ridículo e bizarro. Ler aquelas páginas requer uma participação ativa. Tal
como quem dança, é preciso estar atento ao ritmo da leitura, e ao jogo de cada metáfora
ou alegoria; semelhante ao folião carnavalesco, o leitor "vive" o romance.
Assim, Cardoso Pires, empolgado pelo clima, não só de mudanças, mas também
festivo para os portugueses, retrata o 25 de abril de 1974 como sendo o dia mais
significativo dos últimos cinqüenta anos. Ao recordar o vivido, reconstrói o tempo, a
ética e a sua própria ideologia, inserindo determinadas inquietações em relação ao destino
de Portugal. Por isto, o Largo do Carmo, no dia vinte e cinco de abril, é um cenário
aberto onde jorram Esperança, Alegria e Fé que, com o tempo, e, aos poucos, são
sugadas, redimensionadas e transportadas para as páginas de muitos romances, entre
eles, Alexandra Alpha. Narrativa de uma época, da qual ninguém sabe dizer, ao certo,
onde foi parar o sonho que, no dia 25 de Abril de 1974, se concentrou no Largo do
Carmo e de lá se espalhou por todo o país e pelo mundo.
3.2.3 - Humor e sátira na hora da morte
Quanto mais alta a cavalgadura,
mais funda a sepultura. (AA, 77)
Em Comicidade e riso, Vladimir Propp apresenta numerosas reflexões sobre as
diversas manifestações do riso. Para isso, estabelece diferentes paradigmas capazes de
124
justificar as significativas distinções entre as formas de rir. E do que diz, fica a mais
nítida noção de que "o cômico não é absolutamente um elemento oposto ao trágico,
embora não possa ser inserido na mesma série de fenômenos aos quais pertence também
o trágico"
94
.
De modo assemelhado, Cardoso Pires, no prólogo, assim como em algumas outras
partes do romance em estudo, parece querer confirmar a teoria acima. No trágico
acontecimento da morte de Waldir, em certos momentos, o leitor, entre perplexo e
chocado, dificilmente controla o riso. Do modo como são apontadas as aventuras e
desventuras desta personagem, não há como concluir se existe ou não uma campanha
difamatória contra ela; porque o riso advém não dos fatos propriamente ditos, mas da
forma como os artifícios e as situações nos são apresentados. Com muita habilidade,
Cardoso Pires transforma aquilo que poderia ser apenas um episódio trágico em
acontecimento "salpicado" com traços de humor. E, por conseguinte, fonte da sátira;
acrescentando, ainda, pitadas de ironia, para, com isso, criticar a alienação do povo ou os
maus costumes dos políticos, dos religiosos e dos jornais oportunistas:
O anjo sobrevoou a cidade. Era louro e de asas vermelhas e tinha um
belo rosto triangular em nada semelhante ao dos querubins da igreja.
(...) De súbito imobilizou-se. E neste instante percebeu-se que as asas
rubras se tinham rasgado. (...) e logo, veloz, cada vez mais veloz, a
aparição alada despencou-se das alturas celestiais, e veio estatelar-se
nuns rochedos do litoral conhecido por ponta do Arpoador. (AA, 09).
(...). As informações da polícia punham de sobreaviso contra as
especulações dos costumados exploradores da crendice popular, tais
como a venda de amuletos e de falsas relíquias do cadáver, romagens ao
local do acidente, etecétera; à noite os rochedos do Arpoador apareciam
constelados de velas acesas e fumos simbólicos a despontarem frente ao
mar. Efetivamente, estava-se desde já em presença duma tentativa de
manipulação das consciências a que as autoridades e a Igreja não
podiam ser indiferentes (AA, 10).
94
PROPP, V. (1992) p. 18.
125
"Estava-se deste já em presença duma tentativa de manipulação das consciências a que as
autoridades e a Igreja não podiam ser indiferentes". No fragmento, destaca-se,
principalmente, a ambigüidade da informação. "Não podiam ser indiferentes" para coibir
a manipulação ou para aderir a ela? Está aí um recurso da trapaça da língua", como
sugere a reflexão crítica, presente em As máscaras de Perséfose, obra citada no início
deste capítulo.
Quanto à "venda de amuletos e de falsas relíquias", ocorre aqui uma explícita alusão
às festas religiosas, transcorridas em muitas partes do mundo. O mito do aparecimento
de Fátima, ou época "dos tempos malditos da ditadura cristã" (AA, 345), tão bem
manipulado pelo salazarismo, em Portugal; ou aquele relacionado ao Padre Cícero, no
Ceará; assim como o Círio de Nazaré, no Pará; e ainda o de Antônio Conselheiro, na
Bahia comprovam isso. Em razão desses fatos, surgem aquelas pessoas prontas para se
beneficiar da situação. Aparecem o vendedor de amuletos, o político, o representante da
igreja etc. Entretanto, para tornar mais visível e risível estes acontecimentos, na
contramão desses fatos, surge a sátira a denunciá-los, revelando o quanto eles têm de
perniciosos ou ridículos.
Lizir Arcanjo Alves, em Humor e sátira na guerra de Canudos, assinala que era
prática comum a venda de amuletos entre os seguidores de Antônio Conselheiro. De
forma carnavalizada, e com claras intenções de inverter, de rebaixar a imagem dos
fanáticos, os jornais, ao constatarem o fanatismo e a adesão mítica, diziam que um fio da
barba, um pedaço de unha ou qualquer tipo de excremento saído do corpo de Antônio
Conselheiro eram usados como diversos tipos de remédios; acrescentavam, inclusive, que
a água usada para lavar a roupa do líder de Canudos era engarrafada e utilizada para o
mesmo fim.
126
que se observar o aspecto da morte alegre, da qual nos fala Bakhtin. Ao longo
do percurso da escrita sobre o acidente sofrido por Waldir, existe aquela impressão ou o
desejo de anunciar que a vida é constituída de riscos, tropeços, mutilações e mortes.
Mesmo assim, o modo usado para dizer isto é aquele onde a sensação de alegria se dá,
não só pelo tom irônico da narrativa, quanto pelo vocabulário: "Boca Brava. O nome diz
tudo. (...) puxou do cospe-fogo. Disparou; e com tal certeza de felicidade o fez" (AA, 11).
Os primeiros dados sobre a morte da personagem seguem todo um caráter
zombeteiro. Pois são "as folhas populares" quem se encarregaram de falar sobre Waldir;
e quando descobrem a sua relação com "a vida fácil", de "anjo louro" passa-se à
constatação de que se tratava de um "mercenário do corpo". Segundo as novas
informações, ele teria "explorado um ou mais homens pervertidos que habitavam os
paraísos do mundanismo e do dinheiro. Tudo levava a concluir que a vítima tivesse sido
abatida por motivos passionais" (AA, 12). E, conforme as informações colhidas pelo
delegado, o "asa-delta onde morrera Waldir pertencia a Guta, delfim da indústria" (AA,
12). Ao longo do romance, nada mais é dito sobre a apuração do crime que vitimou
Waldir, ficando, assim, a morte sem explicação, ainda que sejam levantadas algumas
suspeitas.
Na maioria das vezes, a morte está muito próxima do prazer. Esta é uma das
opiniões de Bakhtin sobre o tema (1998, p. 310): "Nós encontramos uma vizinhança
direta da morte com riso, com a comida, com a bebida, com a licenciosidade sexual".
Em função dessa combinação freqüentemente possível, talvez esteja aí a origem da tão
usual expressão: morrer de rir. E a deliberada conotação erótica em Alexandra Alpha,
mais que freqüente, torna-se um dos fatos distintivos da relação entre as personagens. Do
exposto sobre Waldir, até o envolvimento de Alexandra com ele parece estar relacionado
apenas com o prazer: "a declarante, se bem que pessoa de instrução e de nível social
127
elevado, coabitava (coabitava era o termo, não havia outro), coabitava, disse-se, com um
indivíduo sem crédito social nem ocupação conhecida". (AA, 13). Mas "com o Waldir é
que Alexandra se purificava da sua existência". Ou ainda; "acima de tudo isso, o gozo
de viver a duas vidas: de dia fidelíssima cidadã do império Alpha Linn, na cama, viagens
sem regras com um marginal de Copacabana" (AA, 183).
Este fato revela a aproximação da série da morte com a sexual. Pois talvez tenha
sido o desejo de viver os prazeres da alta sociedade ("Guta, delfim da indústria", e
Alexandra, cidadã do império Alpha Linn), que despertou nele esta ambição de "voar
alto", desejar uma liberdade inalcansável, ou ainda, realizar outros sonhos imprevisíveis.
Tais ambições, tais desejos fizeram de Waldir uma vítima de si mesmo. Daí a
confirmação do epíteto deste capítulo: "Quanto mais alta a cavalgadura, mais funda a
sepultura" (AA, 77). Este adágio popular, embora pessimista, revela uma das
características do mundo contemporâneo: os fracos não têm vez.
As "romagens" ou romarias também estão associadas ao mito de Fátima e todos os
demais artifícios apontados no fragmento do texto acima. E, tendo em vista ser a
crendice popular uma espécie de vírus a "contaminar" a consciência coletiva, elevado
número de pessoas se desloca dos mais variados lugares para se concentrar em um ponto
onde fica estabelecida a peregrinação. Do mesmo modo, o local onde Waldir Lozano,
o "voador de asa-delta", ou o anjo, o "mensageiro suicida", caíra, estava se tornando um
lugar de romaria, e, efetivamente, a autoridade da Igreja não podia ser indiferente,
conforme um religioso ao ser entrevistado por um repórter de telejornal:
Efetivamente disse o padre. O mistério Lozano configura-se num
acidente de características bem definidas e incontestáveis. Mas era
também um motivo de reflexão. Efetivamente, ele representava o
castigo da vaidade de Ícaro transposta dos mitos antigüíssimos para as
realidades do nosso tempo, sim, representava a expiação da vertigem de
luxos, prazeres e devassidões em que vivia uma certa sociedade (AA,
10).
128
A fala do padre é marcada por "segundas intenções" e, por isso, sentimos a presença
do riso maldoso do leitor, tendo em vista que o conhecido mito de Ícaro fala da relação
dele com Dédalo, isto é, da relação entre pai e filho. O fato relacionado à queda, em
função do derretimento da cera provocado pelo calor do sol, diz respeito à desobediência
filial, e à ultrapassagem dos limites, não se refere, particularmente, ao luxo, prazeres e
devassidões, como sugere o religioso. Neste caso, observa-se que o representante da
Igreja apropria-se do fato para fazer a sua pregação moral.
Acreditamos ser este um fragmento de texto muito significativo, tendo em vista que
ele revela como procedem aqueles que detêm o conhecimento e o manipulam conforme
os seus interesses. No caso acima, o padre recorre ao mito de Ícaro, não só para assustar,
mas para impor dogmas religiosos e fazer as pessoas refletirem sobre as "desvantagens"
relativas ao luxo e aos prazeres. Em razão de o mito apresentar essa função pedagógica,
na sua origem, o religioso utiliza-a em benefício próprio.
Entre tantos outros temas, o que se percebe com certa freqüência em Alexandra
Alpha são estas "alfinetadas" nas questões relativas à religião. Tal fato assinala a
destruição das barreiras hierárquicas entre vida e morte, trágico e cômico, sagrado e
profano, culto e popular. Em decorrência disso, ocorre o destronamento desses temas
"sagrados", provocando, assim, a aproximação de séries tão opostas, e,
consequentemente, o riso. Mais uma vez estamos diante de mais uma das instigantes
questões apontadas pela equipe de pesquisadores da revista As máscaras de Perséfone:
"Em que medida a escrita da morte esvazia os mitos? Eis aqui uma das respostas
possíveis: Através do riso.
Como se não bastasse a crítica a oportunistas, no fragmento seguinte existe uma
pitada de ironia capaz de fornecer algumas "suspeitas" sobre o subtexto, o implícito, o
129
não dito: "Sim, (a morte) representava a expiação da vertigem de luxos, prazeres e
devassidões em que vivia uma certa sociedade". Atenção para a expressão: "Em que vivia
uma certa sociedade" possível de sugerir o senso comum, uma vez que, em função dos
desregramentos vividos, a sociedade precisa passar por um processo de mudanças
urgente! Por isto, a imolação do anjo, do cordeiro, anunciada por uma voz desconhecida:
"Agnus Dei qui tollit peccata mundi" (AA, 95). Há, aí, ao nosso ver, uma clara alusão à
sociedade portuguesa... ou é uma nítida referência ao Brasil do verão de 1961? (AA, 22).
Segundo a narrativa, o povo continua fazendo oferendas na pedra onde o "anjo
louro" caiu. Para amenizar esses acontecimentos:
Veio um deputado federal que disse: a Opinião e a Justiça não
podem ser perturbadas pela ignorância e pela superstição; e um monge
de São Domingos foi-se às velas que todas as noites iluminavam os
rochedos onde o corpo se despenhara e excomungou-as. E veio também
um delegado que disse que a polícia podia assegurar que a vítima era
indivíduo de vida incerta com ligações marginais. E um jornalista da
noite que confirmou. E um playboy que repetiu, "Roberto Waldir
Lozano suspeito de prostituição" (AA, 11).
Neste momento ocorre uma "reviravolta" das opiniões a respeito de Waldir. No
primeiro momento ele era um anjo, cujos "sinais particulares assinalavam o cabelo louro
e os olhos verdes". Ao saberem de sua desregrada e promíscua vida, as vozes mais
representativas da sociedade mudam de opinião, pois sabem que nada ganham elogiando
a vítima, e logo se encarregam de fazer uma campanha difamatória contra ela. Aparecem
novas versões sobre Waldir, dessacralizando a noção de anjo antes atribuída a ele. Daí, a
presença do humor, pois em função da objetividade da sátira que está sempre atenta a
essas sutilezas do poder, rapidamente se encarrega de denunciá-las.
O modo recorrente como apresenta as atitudes dessas personagens denota ações
sucessivas e subseqüentes dos representantes do poder e a capacidade de "tirar partido"
das situações: "E veio um deputado, e (veio) um monge, e veio um delegado, e (veio) um
130
jornalista, e (veio) um playboy". Esta forma de progressão textual, com essa conjunção
aditiva (e), acaba direcionando o texto para o riso, tendo em vista a denúncia sobre o
desdobramento, o acúmulo e a repercussão do fato acorrido, propiciador do riso
irreverente do leitor.
Ao que se pode constatar, para Cardoso Pires, não é necessário que a morte seja
triste. Na cena seguinte, a ser transcrita, transcorre o velório do pai de Alexandra. A
família está reunida em Beja. Dentre os presentes, a mãe de Alexandra é quem mais
externa desespero e, ao fazê-lo, atua com certo exagero capaz de provocar o riso: "Por
quê, meu Deus? Dizei-me por quê, Senhor (...) Por quê? Por quê? Por quê?" (AA, 95).
Entretanto, enquanto tal fato se passa na sala de estar, na escrivaninha da mesma
casa, transcorre o contrário, uma vez que predomina a alusão ao profano e ao riso.
Berlengas, tio de Alexandra, que tudo ou quase tudo sabe sobre as aventuras sexuais do
Afonsinho, depois que toma uns "tragos" de aguardente, passa a falar sobre as aventuras
homossexuais do sobrinho:
Tornou a encher o copo de aguardente mas assim que o levou à boca
não resistiu a contar os acontecidos. Que eram de estarrecer, os
acontecidos: desmandos, luxúrias, vergonhas sobre vergonhas,
sobrinha, ultimamente a mariquice chegara a tal ponto que o Afonso
tinha posto casa a um soldado de artilharia 1. E nas costas do soldado
deitava a escada ao que lhe aparecia, fosse o que fosse, até ciganos.
Ciganos, ciganos, pois que dúvida, o nosso Afonsinho em tocando a
pouca-vergonha não olhava a quem. Vício. E o vício era incurável
(AA, 98).
O tema selecionado, a forma de contar, os artifícios da narrativa e o vocabulário
empregado são recursos da linguagem própria para o riso. Ao que parece, o tio Berlengas
não perdoa os maus costumes de um dos membros de seu núcleo familiar. No entanto, ao
falar do sobrinho, ele poderia estar abordando um assunto mais abrangente. Ao expor a
depravação de Afonsinho, não estaria tocando nas imagens de um espelho a refletir os
131
costumes daquela sociedade? Ao agir como um censor, ao revelar aqueles "maus"
costumes, não estaria tentando fazer com que Alexandra também se corrigisse e evitasse
cometer mais exageros? Pois, como sabemos, este é o objetivo da sátira, da comédia:
apontar os vícios e os maus costumes, para que o outro se identifique e se corrija. No
caso em questão, há um agravante; tendo em vista que o tio Berlengas, mais que
substituto paterno, fizera de Alexandra a sua única herdeira: "(Berlengas) dera-lhe para
pensar em Alexandra, sobrinha e herdeira sua" (AA, 56).
O velório prossegue. As pessoas chegam, tocam no ombro da matriarca e se
acomodam. Na sala, em câmara ardente, há um candelabro de cristal no meio de fitas de
seda; as condecorações e a espada foram colocadas sobre uma almofada aos pés da urna.
"Agnus Dei qui tollit peccata mundi, declamava uma voz macia, de cera. O bispo? O
cônego Domingos?" (AA, 95). Enquanto isto, na escrivaninha, o tio Berlengas continua
a sua conversa com Alexandra:
Vício. E o vício era incurável, o mais fanático e de mais tristes
servidões. E, para a prova, relatou o escândalo que se dera
recentemente na loja do debochado. Aparentemente um roubo de pratas
de arte, coisa de não estranhar num estabelecimento de antigüidade
carregado de pó e de reumático. Mas o Afonsinho meteu a polícia, o
mal dele foi esse. Meteu a polícia, começaram as investigações e, vai-
se saber, quem tinha sido o meliante? Pois nem mais nem menos que o
rapazote que ele pusera lá dias antes como empregado ou faz de conta.
Ai, Jesus, foi o escândalo. Ao saber disso o enganado encheu-se de
tremeliques, deu o dito por não dito, e correu a desistir da queixa para
que não lhe ficassem com o seu rico menino (AA, 98).
O fato acontecido é muito divertido. E quem poderia imaginar que o mesmo seria
transmitido em um velório? Isto torna a situação ainda mais cômica, mais surpreendente
e divertida. As sublimes coroas de flores para o morto contrastam com esta forma
grotesca e disforme usada por Berlengas para desnudar o moral do sobrinho; com isso,
aquela situação tornava-se cada vez mais ridícula e, consequentemente, mais divertida.
132
Por outro lado, as expressões: "ai Jesus, foi um escândalo" ou "encheu-se de
tremeliques", são artifícios de linguagem usados pela personagem, capazes de deixar a
situação relatada ainda mais carnavalizada e teatral; não só para o leitor, como para
Alexandra, que, logo quando pôde, telefonou para a amiga Sophia, e esta, de posse das
"novidades", ficou "morta de risos" (AA, 105). Vemos neste fato as vantagens ou a
riqueza, como diria Victor Hugo, tiradas por meio da combinação de séries tão opostas,
ou da combinação entre o grotesco e sublime, do alto com o baixo. Aqui, morte e riso
caminham lado a lado, sem nenhum prejuízo para a ficção ou para a verossimilhança.
Assim, diante de tal "espetáculo", é quase impossível imaginar que estamos a falar
de um velório, ou propriamente, da morte. E sem dúvida que isto só é possível, por meio
da carnavalização literária, fato este, que permite, através de muitos artifícios
mediadores, o cruzamento de diferentes fontes para constituir-se em texto, cheio de
muitas "combinações" surpreendentes.
A conversa entre Berlengas e Alexandra prossegue:
Misérias, suspirava João de Berlengas. Isto, para não lembrar a maldita
tara dos manequins, que era outro vício sem cura e sem explicação.
Agora constava que o desgraçado tinha encomendado mais um de Paris
e que este era de tais requintes mecânicos que até fazia gestos obscenos.
Ai, ai, só devassidões, o debochado do Afonso (AA, 98).
A
o falar sobre a "tara" de sobrinho, o tio acaba acrescentando mais um dado sobre a
diversidade do gênero investigado no romance Alexandra Alpha. Assim, esta relação de
Afonsinho com os manequins infláveis vai estabelecer-se como uma das características
da menipéia; nela é possível identificar muitas espécies de loucuras, ou seja, a "temática
maníaca", como denomina Bakhtin
95
. Para este autor, "na menipéia aparece pela primeira
vez também aquilo a que podemos chamar experimentação moral e psicológica do
95
BAKHTIN, M. (1981) p. 100.
133
homem __ toda espécie de loucura". Para o teórico russo, "a dupla personalidade, as
cenas de escândalos, de comportamento excêntrico, a violação do discurso"
96
, tudo
constitui parte de um grande campo a ser explorado pela menipéia.
E esta relação de Afonsinho com os manequins infláveis é um fato intrigante. Ao
que parece, "tio Berlengas" não sabe muita coisa a respeito dos mesmos, já que não dá
muitos detalhes para Alexandra. Entretanto, é a faxineira de Afonsinho quem se
encarrega de espalhar pela cidade os maus tratos sofridos pelos manequins; um deles tem
o nome de Dora, e o outro, Kathy. Segunda a informante, era a Dora quem mais sofria
com os maus tratos: "a vítima era a bela Teodora, a Dora, a mais antiga da casa. Fora
tanta porrada que a infeliz tinha o braço remendado numa desordem de meter nojo:
verniz estalado, pústula de cola, chagas abertas com tintas de remendão, adesivos"
(AA,127). Porém não satisfeito com os espancamentos, "o Afonsinho tão maldoso, tão
vingativo que quando a vestia ainda se punha a insultá-la" (AA, 127). Mas para a Kathy,
que lhe custou uma fortuna, o castigo era outro: "Todo no desprezo e humilhação.
Tirava-lhe a cabeleira e obrigava-a a ficar careca e só de calcinhas" (AA, 127).
No ambiente do velório temos claramente a divisão de dois mundos: o alto e o
baixo. O alto é o salão onde estão as pessoas de elevado escalão social e o morto; a
quem, inclusive, são dedicadas declamações em latim; língua não mais falada, mas ainda
muito apreciada no meio culto. O baixo é a escrivaninha, lugar onde Berlengas trata não
só de um tema chulo, como ainda recorre a uma linguagem, socialmente de pouco
prestígio. Este contato entre o cômico-sério assinala aquela quase impensável
aproximação entre as mais diferentes séries "descobertas" por Bakhtin, nos textos de
Rabelais. Do mesmo modo, em Alexandra Alpha, vamos identificando fragmentos de
igual valor, os quais revelam que a morte é um elemento não que destrói, mas que
completa a vida.
96
BAKHTIN, M. (1981) p. 101.
134
Para a escrivaninha é deslocada a concepção do grotesco, do chulo, do baixo; ali é
um espaço que representa o conjunto do mundo material e corporal. Afonsinho traduz a
encarnação do mal, visto e avaliado como a representação do inferior, do desprezível e
prejudicial. Por outro lado, a sala, iluminada, traduz o contrário de tudo o que é dito ou
tratado sobre Afonsinho, ou seja, o sagrado, o sublime, o elevado.
O contraste entre o espaço vocabular sujo da escrivaninha com o elevado e limpo da
sala estabelece outras inferências: a morte moral é mais renegada que a morte física; o
cadáver, na sala, desfruta de um prestígio que lhe é todo especial, uma vez que as honras
que lhe são conferidas demonstram a importância da vida do morto; a espada ganha pela
personagem, ao participar da guerra na Espanha, representa vitória e virilidade; e ainda
que seu proprietário não esteja mais vivo, em outra ocasião, poderá ser representado por
ela, caso seja exposta, em algum lugar, com este fim. Por outro lado, de Afonsinho não
se pode falar o mesmo, uma vez que sua atividade profissional não é tão louvável, e sua
prática sexual é vista como uma aberração; ele desfaz todo um padrão de masculinidade
construído pelo tio. Assim, enquanto o sobrinho, ainda que vivo, "é queimado" no
inferno da escrivaninha, o herói morto tem a alma recomendada para o céu. E, no
intervalo desses dois momentos, ou seja, entre a katábasis (descida) de Afonsinho e a
anábasis (subida) do tio, Alexandra parece estar incumbida de construir um novo modelo
de vida; isto é, um espaço que não seja nem muito céu, nem muito inferno, mas que seja,
enfim, um lugar possível para um nova vida. A morte aqui não é vista como destruição,
mas reconstrução de um lugar possível.
Não se pode esquecer que este velório e esta morte, por demais alegre, estão
diretamente associadas à série da bebida-embriaguez. Antes de falar com Alexandra
sobre Afonsinho, tio Berlengas primeiro "tornou a encher o copo de aguardente".
Atenção para a locução verbal; "tornou a encher", ela quer dizer que antes de começar a
135
falar, o ato de beber já se havia iniciado. Isto é um fato, pois antes, o narrador já havia
anunciado: "(Alexandra) fora encontrar o velho sentado à escrivaninha diante da garrafa
de aguardente" (AA, 96). Não nos esqueçamos que todas as séries se cruzam; com isso,
constatada a presença da série da bebida-embriaguez junto à série da morte, podemos
supor que o diálogo de Berlengas se dá, então, quando o álcool começa a fazer efeito, ou
seja, depois que o velho está tomado pelo delírio, pela presença de Baco, o deus do
vinho, da embriaguez e da desordem. Só assim, Berlengas "toma coragem" e passa a
"contar os acontecidos" na cidade de Beja, a Alexandra, recém-chegada de Lisboa.
"A morte e o riso, a morte e a comida, a morte e a bebida, são freqüentemente muito
vizinhas"
97
. No velório em questão, ainda que pouco significativa, também ocorre a
presença da série da comida: "(Afonsinho) despejou o recado de que ia ser servido um
chazinho na sala" (AA, 98). E a relação entre a morte, a bebida e o alimento proporciona
a indicação de um renascimento, onde é possível esquecer-se o horror do luto para dar
lugar ao triunfo da vida.
Mesmo que não apresentem conotações explícitas com relação à sátira, outras
mortes ainda podem ser destacadas; tendo em vista que as mesmas levam,
principalmente, a uma reflexão sobre a vida. A seguir, destacamos o aspecto transgressor
e surpreendente relativo a uma questão pouco presente não só na literatura, como, supõe-
se, na vida cotidiana __ estamos nos referindo, particularmente, ao aborto. Questão
exposta e tratada no romance com a mesma explicitude e crueza, que o fato ocorre.
A princípio convém observar o comportamento inerente à Alexandra; desde o
início do romance ela revela-se uma personagem com visões abertas para as coisas do
mundo, tanto que, quando a namorada de Beto (seu filho adotivo), lhe aparece grávida,
Alexandra não hesita em providenciar o aborto.
97
BAKHTIN, M. (1998) p. 309.
136
Ao saber da gravidez da garota, que, por sinal, tinha, talvez, "quinze-dezesseis
anos" (AA, 247), Alexandra, "no papel de fada exterminadora" (AA, 248), logo
providencia a extração do embrião. Após transcorrer o fato, enquanto a menina se
recupera escondida na casa de Alexandra, esta pensava no que fizera, no perigo que
corria e no "feto que se desfibrava por esses esgotos da cidade, arrastado para longe, para
o Tejo, para os podres e para os caranguejos da beira-mar" (AA, 249). Mesmo aqui
insinua-se aquela relação da morte transformada em vida, da morte que não representa o
fim: enquanto o feto alimenta os caranguejos, esses crescem, reproduzem e são pescados
para alimentar pessoas e, assim, prossegue o ciclo da vida. A morte tão prematura, neste
universo, é símbolo de um mundo irônico e irracional. Aparentemente, Alexandra não
teria nenhuma razão que explicasse a atitude tão extrema, a não ser a constatação da
imaturidade dos namorados e da imprudência do jovem casal, o que a levou a essa atitude
pragmática.
É necessário refletir sobre o epíteto de Alexandra: "Fada exterminadora". Em
nosso conhecimento de mundo, as fadas são marcadas pela bondade, pelos atos heróicos,
grandiosos, sagrados e sublimes, e não pelo extermínio, algo próprio das bruxas
malvadas. Talvez o epíteto atribuído esteja associado àquilo conhecido por "dupla
personalidade" ou "temática maníaca", "experimentação moral e psicológica ou toda
espécie de loucura"
98
. Se assim for, não nos afastamos da temática satírica. Com tais
características, neste momento, Alexandra assemelha-se ao primo Afonsinho; ela, com
sua dupla personalidade (aliás, múltiplas personalidades), atua como fada exterminadora;
enquanto ele se manifesta como "torturador de manequins" (AA, 126).
Convém não esquecer que o tio de ambos, o conservador e defensor dos bons
costumes, João de Berlengas, também não está isento de "loucuras". Em alguns
98
BAKHTIN, M. (1981) p. 100.
137
momentos, também apresenta as suas excentricidades, provocando, com isso, violações
da etiqueta. Berlengas é um convicto apreciador de vinho. Tanto é que, nos "tempos da
boêmia em Lisboa", ele ganhou o epíteto de "Dom João Tinto" (AA, 302). Agora, em
Beja, talvez para preencher a solidão, quando está bebendo, aos poucos, ele vai
transferindo o mesmo vício para a sua cachorrinha chamada Traviata. No momento em
que estão bebendo, Berlengas desabafa as mágoas com a cadela. Mas "dos desabafos
passava às ameaças, e das ameaças aos castigos, teimosias, ordens loucas, caprichos que
o animal ia suportando." (...) Entretanto, "com a idade, a cadela alcoólica embrutecera,
era a indiferença em pessoa." (...) O animal que antes bebia muito, "agora, mal passava a
língua pelo malga de vinho, punha-se logo a caturrar e a despedir bocejos ruidosos,
depois caia com um sorriso no focinho. Traviata faleceu no dia 13 de abril. (...). A partir
desta data, adeus Berlengas." (AA, 57).
O exemplo confirma aquele conhecido adágio popular: "Ninguém é perfeito".
Visto que o tio Berlengas, apesar de todo o seu cuidado e zelo para com a moral da
cidade de Beja, tal como o casal de sobrinhos, também comete as suas "falhas". Ele
também possui a sua cota de "temática maníaca"; e, se por acaso, a cena, apontada acima,
fosse representada no teatro, tal personagem poderia ser transformada em um divertido
fanfarrão. E, consequentemente, com aquele riso crítico, todos poderiam constatar a
existência da imperfeição humana.
Os verbo "descer" e "cair" são usados com certa freqüência em Alexandra Alpha.
Aqui, mais uma vez, "cair" aparece para referir-se ao seguinte episódio: Em frente à
moderna Alpha Linn, existia um prédio em construção; no topo dele, ficava um vigia
sempre atento aos movimentos. Contudo, "a malta da Alpha Linn, desenhadores
principalmente, vinha para a janela provocá-lo" (AA, 326). Certa tarde, dois funcionários
da multinacional de propaganda acenaram para o guarda "com um par de cornos de boi.
138
Aí foi o fim. O homem respondeu-lhes de lá com um manguito (uma banana) tão
veemente e tão sentido que se desequilibrou e saiu de cambalhota pelos ares" (AA, 326).
O insulto, aparentemente gratuito, acaba provocando a morte do operário. E o corpo
caindo para o precipício faz da morte um espetáculo visual e simbólico. Em cena, duas
classes em conflitos: a burguesa triunfante e a operária oprimida.
Tal morte, no espaço romanesco, nos transpõe para o continente africano, de onde
vem "um guerreiro cansado" que "recordava mortes vividas" (AA, 270), "negros
arrastados vivos por camiões de guerra, aldeias em labaredas" (AA, 271). O guerreiro
cansado, com as suas mortes revividas em flash-back, através da meria, ainda relata à
Alexandra: "batalhas de matadores inocentes e de heróis assassinos. Assassinos,
sobretudo" (AA, 271). O homem, possuidor dessas memórias, estava deitado com
Alexandra, e ela o ouvia e o identificava como o "Menino das Bruxas". Este, que viajou
para a África com algumas esperanças, volta de lá com o "corpo nulo, incapaz de amar,
vencido e apavorado. Neurose, ele próprio confessara há pouco. Depressão. O preço do
espetáculo de muitas mortes" (AA, 271).
Tal fato nos faz refletir sobre a crueldade humana e a mutilação física e psicológica
dos sobreviventes da guerra colonial, o que prenuncia as razões que desencadearam a
Revolução de 25 de Abril de 1974. Tal como o engenheiro Miguel, o doutor soldado ou o
"Menino das Bruxas" também volta coxo, não da perna, mas da genitália. "(Alexandra)
reconhecia-o, tinha o rosto do Menino das Bruxas, o rosto, o traçado e a voz, mas
chegara-lhe morto como macho e talvez para sempre" (AA, 271).
Na mesma noite em que se reencontra com o amante vindo de Maleja Namba,
África, estoura a conhecida Revolução dos Cravos; Alexandra toma uma significativa
resolução: começa a participar das atividades revolucionárias. Tal postura vai
desencadear sua própria morte, a de Maria e a de Miguel, no momento em que
139
sobrevoavam a paisagem do Alentejo para executarem a "Campanha de Peste Fria", que
visava acabar com a epidemia provocada pela "mão velhaca que continuava a ser a
mesma" (AA, 358). O próprio narrador, ao acentuar o clima de indeterminação em torno
dos fatos relativos ao acidente, acrescenta: "Em verdade, e em rigor de pormenores nunca
se soube até hoje como decorreram os acontecimentos da manhã de 14 de novembro de
1976" (AA, 358). Mas o leitor atento desperta para algumas especulações: Quem seria o
responsável pela bomba colocada na aeronave? O engenheiro Miguel seria vítima e/ou
autor do atentado, uma vez que teriam sido atribuídas a um homem coxo determinadas
ações suspeitas? Ou alguém se teria feito passar por ele, ao chegar ao hangar, pouco
antes da decolagem do avião? Tratou-se de uma sabotagem que premeditava a
desestabilização do novo regime revolucionário ou, pelo contrário, de uma ação
deliberada e utópica, capaz de atribuir a culpa ao antigo regime? "A redenção da pátria
pelo sangue" estaria relacionada ao nome do General Spínola, "que andava pelas brumas
a conspirar, na acepção de Berlengas? (AA, 339). Ou a algum representante do povo, ao
constatar que os "coletivismos" e as "autogestões", propostas pelo novo regime, eram
inoperantes? Uma hipótese eliminaria a outra? Fragmentos textuais, anteriores ao fato
em si, tais como, "o povo não dormia, o povo estava mais que revoltado contra a aventura
em que o tinham metido" (AA, 339); "de dia para dia aumentava o número daqueles que
se sentiam traídos pelos violinos da utopia em que generosamente tinham acreditado"
(AA, 339), instauram conjecturas interpretativas, ambigüidades e indefinições propositais.
No entanto, não se deve esquecer de que o poeta Ruy Belo disse à Maria por
ocasião do seu encontro com ela, em uma "manhã deserta e num balcão à flor da espuma"
de uma cervejaria: "Há aviões às vezes que levantam idéias, aviões que voam" (AA, 347)
ou, ainda, "Aviões aos quais as aves devem o vôo" (AA, 347). E, as palavras do poeta
remetem, sem sombra de dúvida, a uma utopia inevitável e à "busca da verdade na terra",
140
tão comum à menipéia e que pode surgir, por vezes, em conversas travadas em tabernas
__ espaços de embriaguez, exaltação, êxtase ou inebriamento. A morte, portanto, aqui,
não aparece como negação da vida, mas condição necessária para a sua renovação e
rejuvenescimento permanente, como nos aponta Bakhtin, ao estudar a cultura da Idade
Média e do Renascimento.
Alexandra foi abatida em pleno vôo, assim como o suposto anjo do início do
romance e "por um desses pressentimentos que só a morte sabe despertar, Maria procurou
a mão de Alexandra e apertou-a com força" (AA, 361). A última imagem que ficará
retida na memória do leitor será essa __ a da cumplicidade, comunhão, solidariedade __
idéias utópicas da desejada Revolução de Abril, "mensagem a singrar no azul",
bruscamente interrompida pelo "coração assassino que não parava de pulsar: tique taque,
tique taque, tique taque..." (AA, 361). E a bomba a explodir o avião interrompe a vida de
Alexandra e outras realizações. Este fato sintetiza a circularidade e o caráter trágico em
que está estruturado o romance.
Além das mortes trágicas que assinalam o início e fim do romance, há o mistério
que ronda a questão relativa à autoria dos "acidentes". Nesse momento, parece que
Cardoso Pires deixa para o leitor a versão final de Alexandra Alpha.
Para constatar, vejamos o que ele disse sobre isto, ao ser entrevistado pelo jornal de
Letras, Artes e Idéias de Lisboa:
De certa maneira cada livro também é escrito por cada leitor e, muitas
vezes, a cada leitura que se faz dele. A estória de Alexandra Alpha terá
muito do olhar com que for lido. Deixo-a na mão de quem pegar e fico
de ouvido atento para me ouvir nas leituras que ele provocar.
99
99
PIRES, J. C., Jornal de Letras, Artes e Idéias, ano VII, n. 280, p. 14, 16 a 22 de nov. 1987.
141
4 - CONCLUSÃO
Para concluir, resta dizer que os episódios satíricos, encontrados em Alexandra
Alpha, só parecem bizarros ou grosseiros, quando vistos por certa parcela de leitores que,
ainda "contaminada" por algumas posturas conservadoras, procura excluir determinados
temas de suas reflexões críticas, como se eles não fizessem parte da vida humana e nem
da literatura. Mesmo assim, tanto as comédias de Aristófanes, de Plauto, as sátiras de
Horácio ou os limpa-cus da Idade Média não podem ser renegados em prol de um
puritanismo artificial ou intelectual, uma vez que coisas muito piores acontecem nos
bastidores de certas sociedades que fingem zelar pela ética e por um comportamento
idealizado pala circunstâncias.
Desse modo, o tema do limpa-cu, peidos, e outros assuntos "baixos" aqui
abordados, como constatados, são todos próprios do riso e da vida humana. E o paralelo
aqui apresentado, entre as mais diversas épocas da literatura, denota que, em nenhum
momento, esse tema foi ignorado, uma vez que os traços humanos são parecidos em
todos os lugares e épocas no mundo. Além do mais, esse aparente "desafio" proposto
pela literatura contemporânea, como é possível perceber, nem é tão subversivo quanto
pretende. É possível constatar, através da literatura, que a sociedade ateniense do século
V antes de Cristo, em seus festivais dionisíacos, aceitava muito bem o uso do "baixo"
material do riso. E, se pararmos para observar, a visão sobre os temas do humor em
nossa sociedade atual demonstra-se muito mais conservadora do que a ateniense.
Além do mais, constatamos que o romance Alexandra Alpha apresenta fatos e
diálogos, referentes aos mitos culturais e aos processos históricos de Portugal,
redimensionados por uma visão lúcida, crítica e engajada politicamente. Em função da
freqüente ocorrência do grotesco e do sublime, esse romance contém traços que nos
142
levam a dizer que nele existem características da sátira menipéia. Não só no que se
refere à linguagem, mas, também, na finalidade; tendo em vista que o romance é
divertido e transgressor, critica a sociedade portuguesa, zomba do regime salazarista e
censura os revoltosos que deturparam a essência da proposta política inerente à
Revolução de 25 de Abril de 1974, ocorrida em Portugal. No entanto, não é possível
afirmar se Cardoso Pires teve a intenção de se apropriar de culturas passadas,
particularmente a latina, para elaborar este dialogismo com a cultura literária portuguesa
e, com isto, questionar o presente. Ou se o que foi estudado, em Alexandra Alpha,
revela apenas mais uma característica a ser destacada neste romance; tendo em vista que
o autor elabora uma narrativa que permite constatar, através da ironia e da sátira, a
desestabilização de fatos e personagens da História antiga e recente de Portugal. Sem
dúvidas, constata-se que, através do riso carnavalizado e zombeteiro, são recuperados
tópicos da História oficial, e é recriada a realidade. Assim, deparamo-nos com a cidade
de Lisboa, a classe burguesa intelectualizada (alienada ou engajada politicamente), a vida
noturna lisboata, a Revolução de Abril de 1974.
O romance Alexandra Alpha pode ser lido, a partir de três pontos distintos: 1) A
revisão da História de Portugal, nas últimas décadas do século XX, em que é possível
constatar, independentemente do sistema de governo, os ideais e propostas políticas, a
repressão, a construção da liberdade, a euforia, a decepção, a intolerância, as falhas e a
incompreensão inerentes às relações humanas; 2) A linguagem, muitas vezes, fora do
padrão, ora culto, ora chulo, e que se anuncia como profetisa de mudanças; 3) Os
gêneros literários e os processos de representação que se entrecruzam e permitem que a
sátira, o cinema, o teatro, a paródia, a História, a poesia e a narrativa se misturem,
formando um grande corpo literário, multitemático e multiformal; 4) A intenção do autor
pelos acasos e surpresas de uma escrita que, por vezes, se deseja enigmática; 5) a
143
importância dada a esse laboratório de gêneros, capaz de conferir, ao leitor, o estatuto de
intérprete da História e da ficção.
Com os artifícios da sátira, Cardoso Pires, "autor de referência do pós Neo-
Realismo português" e que o ultrapassa, torna possível ao leitor a noção de que existe a
História oficial e outras versões da História, passíveis de relativizar o conceito de
"verdade".
Esta Dissertação busca acrescentar mais um viés interpretativo ao romance
Alexandra Alpha, ao relacioná-lo com a sátira menipéia. Para isto, efetuou-se uma leitura
atenta sobre este gênero, a partir das reflexões críticas de Mikhail Bakhtin, acrescidas de
numerosos ensaios, citados na introdução. Parece-nos que a aplicação da teoria à prática
de análise textual deu resultados bem satisfatórios, pois confirmou-se a hipótese inicial e
constatou-se a revivescência da sátira menipéia e das séries inerentes a ela, (Séries do
corpo humano do ponto de vista anatômico e fisiológico; Séries da nutrição e da bebida-
embriaguez; Série dos excrementos; Série da morte etc), e tantos outros elementos
capazes de instigar o interesse por este intrigante romance.
144
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