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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes
comunicantes
Izabela Guimarães Guerra Leal
Rio de Janeiro
2008
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2
Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes
comunicantes
Izabela Guimarães Guerra Leal
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como
quesito para a obtenção do Título de
Doutor em Letras Vernáculas
(Literatura Portuguesa).
Orientador: Prof. Doutor Jorge
Fernandes da Silveira
Rio de Janeiro
Março de 2008
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3
Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes
Izabela Guimarães Guerra Leal
Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como
parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em
Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira
_______________________________
Profa. Doutora Celia de Moraes Rego Pedrosa - UFF
_______________________________
Profa. Doutora Ida Maria Santos Ferreira Alves - UFF
_______________________________
Profa. Doutora Gilda da Conceição Santos - UFRJ
_______________________________
Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes - UFRJ
Profa. Doutora Dalva Calvão – UFF, Suplente
Profa. Doutora Gumercinda Gonda – UFRJ, Suplente
Rio de Janeiro
Março de 2008
4
Agradecimentos:
Aos mais do que queridos Lucia, Heitor, Marcelo, Susana e Jean pelo apoio,
carinho e compreensão.
Ao Prof. Jorge Fernandes da Silveira, pela mais do que valiosa "prática de
interlocução".
À Profa. Gilda Santos, a quem este agradecimento é muito pouco pelo
generosíssimo incentivo em todas as minhas atividades de pesquisa.
À Profa. Ida Ferreira Alves, pelas excelentes discussões e pela bem-vinda
sugestão de leitura que se transformou nesta tese.
Ao Prof. Marcelo Jacques de Moraes, pela abertura de novos e instigantes
horizontes.
À Profa. Celia Pedrosa, pela gentileza em participar da banca.
À Cátedra Jorge de Sena e à Fundação Calouste Gulbenkian pela bolsa concedida
durante os quatro anos do doutorado, sem a qual este trabalho não seria possível.
Aos amigos, por estarem sempre por perto.
5
Para Chloe
6
Leal, Izabela Guimarães Guerra
Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes
comunicantes/ Izabela Guimarães Guerra Leal. Rio de
Janeiro: UFRJ/ Letras, 2008.
xi, 152f.; 31 cm.
Orientador: Jorge Fernandes da Silveira
Tese (doutorado) – UFRJ/ Letras/ Programa de Pós-
graduação em Letras Vernáculas, 2008
Referências bibliográficas: f. 139-147
1. Literatura Portuguesa. 2. Poesia. 3. Tradução. 4.
Escrita. 5.Tradição. 6. Memória. I. Silveira, Jorge
Fernandes da. II Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras. III Doze nós num poema: Herberto
Helder e as vozes comunicantes.
7
RESUMO
Doze nós num poema: Herberto Helder e as vozes comunicantes
Izabela Guimarães Guerra Leal
Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ,
como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras
Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Os pontos de contato entre a poética de Herberto Helder e a dos autores com os
quais dialoga, tanto em seus livros de tradução como também em outras práticas, tais
como a citação e a "eleição" para uma antologia, demonstram que através dessas
conexões com outros autores o poeta constrói a sua própria tradição. A relação do poeta
com a língua materna é paradoxal e violenta. Por um lado, ele precisa desprender-se dela
para que encontre o seu próprio idioma, por outro, deixará sempre em evidência uma
dívida insuperável para com ela. Assim como ocorre com o tradutor quando tenta verter
uma língua estrangeira para a sua própria, o poeta se depara com a alteridade na
realização de uma atividade complexa: a escrita. O reconhecimento da alteridade é,
portanto, fundamental para que se a criação, que é preciso passar pela voz do outro,
pelo reino do passado e da tradição, para que ambos, tradutor e poeta, afirmem o seu
lugar. A tarefa tradutória pode lançar luz sobre a prática poética porque ambas necessitam
de uma espécie de maturação das palavras, um processo de gênese e nascimento do autor
no seio de uma língua que, apesar de ser sua, se torna também estrangeira pelas
alterações que sofre em sua estrutura.
Palavras-chave: Poesia, Tradução, Escrita, Tradição, Memória
Rio de Janeiro
Março de 2008
8
ABSTRACT
Twelve knots in a poem: Herberto Helder and the communicating voices
Izabela Guimarães Guerra Leal
Orientador: Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras
Vernáculas (Literatura Portuguesa).
The points of contact between Herberto Helder’s poetics and the poetics of the authors
with whom he converses, both in his translation books and in other practices, such as
quotation and the “election” for an anthology, show that, through theses connections with
other authors, the poet constructs his own tradition. The poet’s relationship with his
mother tongue is paradoxical and violent. On the one hand, he must free himself from it
in order to find his own idiom. On the other hand, he will always make evident an
unsurmountable debt with it. Just as what happens with the translator when he tries to
translate a foreign language into his own, the poet faces alterity in the practice of a
complex activity: writing. The recognition of alterity is, therefore, fundamental for the
existence of creation, since it is necessary to go through the voice of the other, through
the kingdom of the past and of tradition, so that both translator and poet may affirm their
places. The task of translating may shed light over the poetic practice because both tasks
need some sort of maturing of the words, a process of genesis and birth of the author in
the heart of a language which, even though is his own, also becomes foreign due to the
modifications it suffers in its structure.
Key-words: Poetry, Translation, Writing, Tradition, Memory
9
Rio de Janeiro
Março de 2008
SUMÁRIO DA TESE
1 INTRODUÇÃO
12
2 AS VOZES COMUNICANTES
16
2.1 No reino das mães: a violência amorosa
17
2.2 Máquinas 27
2.3 A falência do canto 32
2.4 Como criar a tradição 41
2.5 Iconoclastas e franco-atiradores 46
2.5.1 A poesia feita por todos 48
2.5.2 A poesia feita por um 51
2.5.3 A poesia feita contra todos 58
3 DO POLIGLOTA ACROBÁTICO AO TRADUTOR ANTROPÓFAGO 63
3.1 O autor como leitor 63
3.2 As afinidades eletivas 73
3.3 A contaminação 81
3.4 Os solitários 90
3.4.1 Henri Michaux: a língua dos decapitados 91
3.4.1.1 O desaparecimento 92
3.4.1.2 O encontro falhado 95
3.4.1.3 Os decapitados 98
3.4.2 Os supliciados da linguagem 104
10
3.4.2.1 Artaud traduz Lewis Carroll 105
3.4.2.2 Artaud traduz Poe 112
3.4.2.3 Herberto traduz Poe (ou Artaud?) 116
3.5 O lobo e o celacanto: a ciência rebelde 123
4 Conclusão, ou um último nó: a cicatriz 131
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 139
6 APÊNDICES 148
6.1 APÊNDICE I 148
6.2 APÊNDICE II 149
6.3 APÊNDICE III 150
6.4 APÊNDICE IV 151
6.5 APÊNDICE V 152
11
Aprender a falar é aprender a traduzir;
quando a criança pergunta à mãe o
significado desta ou daquela palavra, o que
realmente lhe pede é que traduza em sua
linguagem o termo desconhecido. A tradução
dentro de uma língua não é, nesse sentido,
essencialmente diferente da tradução entre
duas línguas, e a história de todos os povos
repete a experiência infantil: até mesmo a
tribo mais isolada tem de enfrentar, de um
momento para outro, a linguagem de um
povo estranho. O assombro, a cólera, o
horror ou a divertida perplexidade que
sentimos ao ouvir os sons de uma língua que
ignoramos não tarda a se transformar em
dúvida sobre a que falamos. (Octavio Paz)
12
1
Introdução
Os escritores em geral falam muito. Que fique claro desde que este muito não
tem um sentido pejorativo. Digamos apenas que, em geral, os escritores falam: falam de
suas obras, seus gostos, sua vida, seu estilo. Investigam poéticas, questionam valores,
escrevem ensaios, enfim, tornam-se críticos. De fato, tal atitude, herdada de Baudelaire,
aponta para a literatura como uma discussão sobre a literatura, e para o poema como
crítica do próprio poema. Gesto que parece cada vez mais atual, a ponto de nos
espantarmos quando um autor permanece menos ativo nesse sentido. É o caso, para
darmos um exemplo geograficamente próximo, de Raduan Nassar, que sempre manteve
um lugar de silêncio em relação ao seu trabalho de escrita, avesso às entrevistas.
Um outro exemplo, dessa vez de além-mar, seria Herberto Helder. O poeta
português escreveu muito, mas escreveu poemas, alguma prosa sempre poética, é
claro e textos que não cabem em um gênero específico, visto serem uma mistura de
poesia, prosa e ensaio
1
. Pouquíssimas entrevistas, um ou outro prefácio, uma carta
2
, e
eis tudo. O que significa esse silêncio? Significa, talvez, que a obra fale por si e que é
em seu interior que a dimensão crítica deva ser buscada. Significa, também, que a falta
de diretrizes exteriores à obra faz com que se abra o campo das possibilidades de
leitura; efeito que não decorre apenas da falta de comentários críticos e teóricos tecidos
pelo autor, mas também da estrutura de sua poética, que nos reenvia sem cessar a
corredores sem saída, a paradoxos, labirintos de escrita.
Tal gesto evidencia ainda que o autor, ao contrário do que vai dito no texto de
Mario Cesariny
3
, não detém a propriedade daquilo que escreve, de modo que, ao
falarmos em autoridade, teremos sempre que considerar um espaço instável, localizado
1
Refiro-me ao livro Photomaton & Vox, que começa e acaba com longos poemas, fazendo com que todo o
restante do livro se "contamine" pela dicção poética.
2
Trata-se da célebre carta a Eduardo Prado Coelho, de 1978, transcrita no livro de Américo António
Lindeza Diogo (1990).
3
Cesariny tem um texto intitulado "Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa", que começa com a
seguinte frase: "Autoridade é do que é autor." (CUADRADO, 1998: 379)
13
numa zona de conflitos, precisamente, a região do entre, isto é, a região delimitada entre
autor e leitor, entre o trabalho de escrita e o de leitura. E é nesse sentido também que a
folha em branco sobre a qual o poeta se debruça não é jamais uma folha em branco,
silenciosa, mas um burburinho que atesta a presença de infinitas vozes ali presentes,
manifestando-se conjuntamente. Pois não é também o branco a cor produzida por todos
os tipos de luz emitidos em conjunto?
Assim, diante da ameaça dessas infinitas vozes, diante, portanto, da ameaça da
mudez, o poeta é aquele que vive na tensão e da tensão entre a fala e o silêncio. E,
por mais que a obra de um poeta como Herberto Helder pareça mergulhada numa
solidão incontornável, ela não está nunca fechada em si, nunca é somente a obra do
autor. Ora, é justamente na sua impropriedade, naquilo que estando nela é mais do que
ela, que a obra deixa falar as outras vozes que a assombram, tornado-as, agora, suas.
Não devemos então nos enganar com o silêncio de escritores como Raduan Nassar e
Herberto Helder, pois é justamente esse silêncio que nos permite ouvir com maior
clareza as "vozes comunicantes" que ressoam em toda e qualquer escrita. E, por isso,
deixaremos falar o Herberto Helder leitor para que possamos ouvir o Herberto Helder
poeta.
Daí que a procura dessas "vozes comunicantes" não seja guiada por uma
necessidade de explicação ou por qualquer pesquisa de influências, mas sim pela
tentativa de fazer com que a poética de Herberto Helder e as outras com que dialoga
iluminem-se reciprocamente. A iluminação de que se trata aqui não é, entretanto, um
sinônimo de esclarecimento, pois pretendemos mostrar em que medida a experiência
que o poema constitui aponta para uma instabilidade, para uma relação com o outro que
não é da ordem do reconhecimento, mas sim, e essencialmente, do estranhamento. E é
justamente a partir do contato com a alteridade que o poeta se desnorteia, deixando-se
conduzir a um lugar conflituoso, o poema, no qual vacilar até mesmo aquilo que
representa sua maior segurança: a língua materna.
De modo que, a nosso ver, a poesia não realiza um projeto utópico de redenção do
mundo, restituindo a segurança e a pureza de uma língua primordial e única, o que não
quer dizer que o poema não possa dar a ver a beleza perturbadora e terrível das palavras,
a cintilância de seu caráter provisório e impermanente. Tal característica, violenta, diga-
14
se de passagem, faz com que a poesia seja portadora de uma potência transformadora e
inquietante uma "beleza estranha e única", para retomarmos aqui algumas palavras de
Didi-Huberman –, capaz de provocar a renovação da língua e da própria poesia. Nesse
sentido, pensaremos o horizonte mítico e sagrado na poética de Herberto Helder não
como a busca de uma origem primitiva que se oporia à civilização e ao presente, mas
sim como a apropriação de formas míticas e arcaicas do passado visando a modificá-las
no seio do próprio presente, produzindo algo original. Assim, recusamos qualquer
leitura que tome o ato poético como uma tentativa de restaurar a unidade perdida entre o
homem e a natureza, pois o que é algo da ordem de uma contaminação entre passado
e presente, entre natureza e civilização.
De forma análoga, o poeta não é o herói que se subtrai à descontinuidade de si e
do mundo para, num gesto de triunfo extraordinário, efetivar uma impossível exigência
de totalidade. Muito ao contrário, é aquele que, em seu percurso, se depara com um
evento inesperado, marcado pela falha, pela insuficiência, pela morte. O poeta, nesse
sentido, também não é capaz de superar a temporalidade e a finitude, pois a experiência
que é o poema revela uma tensão entre a sucessão das palavras e o ponto final que o
limita, a continuidade e a descontinuidade, o corte e a sutura, a construção e a
destruição, a memória e o esquecimento.
Humano e efêmero, o poeta pode até sonhar com a imortalidade, com a restituição
da plenitude entre as palavras e as coisas, e vislumbrar na realização do poema a
promessa eternamente diferida de uma redenção. Mas o ato de escrita fará com que ele
seja conduzido a uma região em que não há estabilidade possível, em que tudo resvala e
o sentido se desmancha no não-sentido, de modo que o próprio poema se mostra
inacabado. O mito de Babel, presente de uma forma ou de outra em quase todas as
sociedades, poderia ser lido, portanto, como a punição decorrente de um erro humano,
que explicaria a perda da unidade original e a conseqüente pluralidade das línguas. E é
interessante notarmos, como apontara Octavio Paz, que a pluralidade aparece então
sob um aspecto negativo, de maldição. É contra essa idéia de que a pluralidade das
línguas é um sinal de pobreza e diminuição que estabeleceremos aqui um paralelo entre
a atividade de escrita e a de tradução, com o objetivo de mostrar que, se ambas apontam
para uma dimensão de falha, de rateio e interrupção, tal dimensão não lhes diminui a
15
magnitude, mas, ao contrário, revela a potência e a beleza das coisas fragmentárias e
impermanentes.
16
2
As vozes comunicantes
Implantado no meio das leituras, o poema
funciona em estado de máquina vital.
(HELDER, 1995: 140)
O título deste capítulo foi retirado de uma antologia de poesia portuguesa
organizada por Herberto Helder, a saber: Edoi Lelia Doura: antologia das vozes
comunicantes da poesia moderna portuguesa. A presença das "vozes comunicantes"
reveladas nesse livro atesta que um poeta nunca está sozinho, por mais que a sua obra
pareça destacar-se do cenário em que se insere, ou seja, por mais que ela nos a
impressão de ser totalmente inovadora quando comparada à tradição. Entretanto, esse
"solipsismo extremado" – para evocar um termo de Harold Bloom que alguns poetas
parecem apresentar, e até mesmo desejar, é ilusório, uma vez que todo poeta está
sempre submetido a uma relação dialética com outros poetas, seja ela de afirmação ou
negação, de repetição ou adulteração.
Entre os principais temas da poética de Herberto Helder destacaremos o da mãe.
Desempenhando o papel de um corpo a partir do qual se a emergência do filho, a
mãe é a própria matéria-prima poética, o que não significa que tenha um caráter
passivo: ela é aquela que alimenta e devora, que a vida e traz a morte. Associada à
"fonte", o lugar da mãe será identificado aqui à própria linguagem que nos precede e
nos constitui, bem como à tradição literária que existe na forma de uma disseminação
de textos, na qual todo e qualquer autor está inserido. Tal pensamento rasura a idéia de
que o autor exerce uma autoridade sobre aquilo que escreve, assim como apaga
também a noção de originalidade absoluta. O trabalho de escrita será apresentado
então como um impasse que revela a aproximação e a distância do filho em relação ao
corpo da mãe, ou seja, a dívida e a dádiva do poeta em relação à língua materna.
17
2.1
No reino das mães: a violência amorosa
Às vezes penso: o lugar é tremendo.
É sobre os mortos, além da linguagem.
(HELDER, 2004: 152)
A procura do idioma poético não se sem uma certa dose de violência em
relação à língua materna. É preciso que o poeta, ao buscar a sua dicção, desate os laços
que modulam a sua fala, permitindo que uma nova voz irrompa da massa compacta da
língua. Nesse sentido, o poeta é aquele que precisa se insurgir contra a língua mãe,
ainda que a voz que fala através dele continue a ser proveniente desta. A fala do poeta
é portadora de uma condição paradoxal na medida em que encena a separação da
língua materna ao mesmo tempo em que explicita a sua dívida para com ela. A relação
entre a língua materna e a construção do idioma poético é inseparável do processo de
formação do poeta a partir do registro da memória e da ancestralidade que toda poesia
carrega em si. Ancestralidade que nada mais é do que o domínio da própria língua, de
um passado indefinido que, como sublinha Paolo Virno, é uma pura anterioridade,
uma potencialidade que nunca se esgota nas suas realizações. (VIRNO, 2003: 31)
Na poética de Herberto Helder, essa língua encontra um eco na figura da mãe,
que por um lado dá a vida e é portadora da memória, e por outro é também modificada
pelo nascimento do filho. Assim é que no poema “Fonte”, dividido em seis partes, a
mãe ocupa um lugar central e assume o caráter incendiário e arqueológico do petróleo:
“E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, / e atiram-se, através deles,
como jactos / para fora da terra.” (HELDER, 2004: 48). Arqueológico porque o
petróleo traz em si camadas e camadas de memória, o “húmus” da matéria orgânica
em decomposição que irrompe “para fora da terra” e se transforma em “fonte” de
energia. De fato, Húmus é também o título de um livro de Raul Brandão “deslido” por
Herberto Helder, livro que a ver, como observa Silvina Rodrigues Lopes, "o peso
dos mortos na linguagem o domínio que eles exercem sobre os vivos, ditando-lhes a
vida na linguagem que lhes legam, e assim a transformando em morte – num texto que
18
lhe contrapõe o sonho, a loucura, a reinvenção de palavras em 'carne viva'." (LOPES,
2003: 31) Entretanto, a autora esclarece ainda que em Herberto Helder a morte não é
apenas aquilo que nega o indivíduo na linguagem que o precede, mas é também o que
origina outra vida no instante da criação. Talvez a nota que Herberto Helder faz
constar na abertura de seu poema-livro Húmus tenha como objetivo apontar para essa
dimensão de dívida em relação ao passado, bem como de renovação, ou de diva,
como preferimos. A nota em questão diz o seguinte: "Material: palavras, frases,
fragmentos, imagens, metáforas do Húmus de Raul Brandão. Regra: liberdades,
liberdade." (HELDER, 2004: 224)
De fato, no Húmus de Herberto Helder uma relação dialética entre vivos e
mortos pois, por um lado, os mortos respondem por uma instância que antecede o
sujeito e o constitui, mas, por outro, o o resultado do processo de criação desse
mesmo sujeito a partir do qual existirão. Cumpre observar que o domínio dos mortos é
aquele da linguagem legada a todo e qualquer indivíduo por ocasião de seu
nascimento, sendo a emergência da subjetividade um acontecimento desta, ainda que o
sujeito, ao escrever, isto é, ao criar a sua dicção própria, procure negá-la, como se
fosse possível estar fora dela. Essas duas dimensões da relação entre sujeito e
linguagem o legado dos mortos aos vivos e a necessidade de criar os mortos a partir
dos vivos através de um ato de negação – estão presentes em Húmus:
Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta
no interior da terra. Somos
um reflexo dos mortos, o mundo
não é real. Para poder com isto e não morrer de espanto
– as palavras, palavras. (HELDER, 2004: 226)
Os versos citados atestam o caráter paradoxal da relação entre sujeito e
linguagem, pois somos apenas "um reflexo dos mortos", ou seja, uma mera ocorrência
no plano já dado da linguagem, mas, surpreendentemente, é dela também das
"palavras" que lançaremos mão para "poder com isto e não morrer de espanto".
Como o phármakon descrito por Derrida (1997), as palavras são o veneno e o remédio,
o que causa a morte e também o que dá a vida. Nesse sentido, a subjetividade pode ser
entendida como um processo de escrita de si, escrita que é também uma reordenação
19
no campo da linguagem. Daí a outra dimensão apontada anteriormente: preciso
criar palavras, sons, palavras / vivas, obscuras, terríveis. / É preciso criar os mortos
pela força / magnética das palavras." (HELDER, 2004: 228)
Assinala-se, portanto, a necessidade de criar os mortos para que os vivos não
sucumbam na subordinação a eles, ou seja, é preciso criar os mortos para que os vivos
se tornem realmente vivos. O enunciado "criar os mortos" abre uma perspectiva de
duplo sentido, que pode ser lido como a possibilidade de restituir a vida aos mortos
através do ato de criação, ou de torná-los efetivamente mortos. Na primeira acepção os
mortos retornariam à vida pelo surgimento dos vivos, pois estes determinam um novo
rearranjo do passado, fazendo com que aquilo que está sepultado e esquecido retorne à
superfície. A segunda acepção, entretanto, revela um projeto mais radical. Cumpre
notar que o poema não expressa a necessidade de criar mortos o que seria fácil,
bastando para isso matar os vivos –, mas de criar os mortos, ou seja, de tornar mortos
aqueles que já o estão. Em outras palavras, o que está dito é que o sujeito, em seu afã
de "não morrer de espanto" com a linguagem que lhe é legada, em sua tentativa de não
sucumbir a ela e nela, deseja matar os mortos, separar-se radicalmente deles. E é
justamente pela enunciação dessa exigência que termina o poema: preciso matar os
mortos, / outra vez, / os mortos." (Ibid.: 239) Mas será possível matar os mortos?
De acordo com a primeira perspectiva, o fato de a mãe ocupar o lugar dos
mortos não faz com que eles determinem complemente a fala do filho, já que a própria
mãe também será criada a partir da existência deste. O que há, portanto, é uma espécie
de impregnação, de contaminação entre vivos e mortos. Os mortos formam os vivos,
transformam-se em seu alimento, mas são também transformados por estes. Do
mesmo modo, se a fala poética fosse apenas a marca da presença materna, nenhuma
voz inaudita surgiria para escrever o lugar que agora pertence ao filho. Pois o filho tira
o seu alimento da voz materna, não para copiá-la, mas sim na tentativa de negá-la e
reinventá-la. O filho é aquele que renova a língua materna, que revolve o solo do
passado para extrair o substrato a partir do qual se constrói o presente. Entretanto, tal
construção não se faz sem atrito, como indica ainda o mesmo poema:
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
20
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães. (Ibid.: 48)
Lembremos que as mães são "poços de petróleo", matéria que será queimada
na "combustão dos filhos". A mãe, como num ato de sacrifício, oferece o seu corpo
para ser consumido, utilizado pelo filho. Mas esse ato não significa o aniquilamento
ou desaparecimento da mãe, muito ao contrário. As mães, como fênix renascida,
surgem das cinzas e são "as mais altas coisas que os filhos criam". De modo que se
estamos associando o filho à criação de um idioma poético novo, a mãe será não
apenas a "fonte" desse idioma, como também, e necessariamente, aquilo que se produz
a partir dele. Pois não podemos dizer que, em última análise, o que a fala poética faz é
consagrar a língua mãe, ainda que isso ocorra através da sua parcial destruição?
Num instigante ensaio intitulado “O amor cru: Herberto Helder e Camões ou as
duas mães”, Jorge Fernandes da Silveira aborda o tema do matricídio na cultura
portuguesa. Tomando como base algumas considerações de Eduardo Lourenço e
António José Saraiva, o autor empreenderá a leitura de versos de Camões e Herberto
Helder a partir do surgimento traumático da nação, representado por D. Tareja e
Afonso Henriques, isto é, pelo mito do filho que se volta contra a figura materna. Se a
imagem de Afonso Henriques é aqui convocada como o arauto do matricídio, é em
grande parte por ser ele quem melhor representa, na história de Portugal e segundo a
epopéia camoniana, a memória dessa insurreição, revelada através da presença do
“filho fero contra a mãe adúltera”. (SILVEIRA, 2003: 85)
No referido episódio histórico, o matricídio ocorre para que se a fundação
do reino, e o mesmo pode ser dito a respeito do nascimento do poeta, isto é, de seu
processo de formação. Nascer é separar-se da mãe. O matricídio será, portanto, uma
metáfora emblemática do trabalho do poeta, ainda que o crime poético apresente
particularidades que determinem uma relação dialética entre amor e morte, ou, em
outras palavras, que a realização do trabalho de escrita constitua "uma espécie de
21
crime" que envolve, ao mesmo tempo, o matricídio e o incesto, ou seja, uma
"cumplicidade tenebrosa"
4
.
Rosemary Arrojos, num texto intitulado "A tradução e o flagrante da
transferência", compara a tradução e a escrita ao processo de transferência em análise,
mostrando que o traduzir e o escrever envolvem uma relação afetiva com a ngua
materna, relação essa que se expressa através de amor e ódio, de violência e sedução.
É também através do matricídio que Jorge Fernandes da Silveira retorna aos versos
anteriormente citados – "os filhos estão como invasores dentes-de-leão / no terreno das
mães" para lê-los em consonância com outro, ainda do mesmo poema: "[...] e as
calmas mães intrínsecas sentam-se / nas cabeças filiais." (HELDER, 2004: 47) Da
combinação desses dois versos, o autor observa que a violência filial a invasão do
terreno das mães, o terreno da língua materna, ou do literário, como prefere tem
como objetivo a coroação dos filhos:
neste reino, as mães sentam-se sobre as cabeças dos filhos, coroam-nos delas e,
em assentos comburentes, levantam-se ‘cabeças filiais’, como se reais fossem,
neste território que, em suma, está para aquém de Leão e Castela, numa zona
profunda, lá para os lados do inconsciente, digo, do literário.
(SILVEIRA, 2003: 81)
O que acontece de notável nesse reino do literário – diferentemente do reino da
historiografia – é que a mãe não é rechaçada para fora do lugar do filho, ela é a própria
coroa que assenta sobre a cabeça deste. Mesmo que o matricídio ocorra, o reino do
literário continua a ser o lugar em que mãe e filho coexistem, enfrentam-se e
reinventam-se. E é justamente nesta imbricação entre mãe e filho que se abre a
perspectiva do incesto, evidenciado também por Jorge Henrique Bastos quando afirma
que, na poética de Herberto Helder, "mãe, criança e linguagem formam uma tríade
incestuosa que o poeta representa e traduz numa poesia que fala sobretudo no
feminino" (BASTOS, 2000: 10)
Como salienta ainda Rosemary Arrojos, agora retomando Harold Bloom em
seu famoso livro A angústia da influência, o escritor escreve a partir dos outros textos
4
Refiro-me aqui ao título de um ensaio de Manuel de Freitas e à expressão por ele utilizada, extraída do
renegado livro Apresentação do rosto, de Herberto Helder. (FREITAS, 2001: 47)
22
que o antecedem, isto é, de tudo aquilo que foi dito em sua própria língua, e essa
relação está impregnada de violência e desejo, uma vez que o passado "jamais será
repetido ou resgatado num processo impessoal ou desinteressado, e sim tomado,
possuído e transformado pelo desejo e pelas circunstâncias do leitor que com ele se
misturar". (ARROJOS, 1993: 162)
O que poderia ser apenas um assassinato transforma-se em celebração: ao filho
resta a necessidade de efetuar a separação, de saber que é preciso descolar-se da mãe,
o que num certo sentido é também matá-la. Mas, nesse assassinato, o corpo da mãe
não se torna jamais um cadáver, ele é a própria coroa, um emblema que o filho exibe
orgulhosamente:
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida. (HELDER, 2004: 48)
Da invasão dessas águas, similares aos campos de guerra – aqui também
camadas de memória que compõem o corpo da mãe –, os filhos trazem polvos,
animais das profundezas, que exibem na forma de troféus. Como se praticasse uma
arte da escavação, o filho desce em direção à história de sua própria língua, e
invadindo este aquoso terreno literário, faz emergir a voz materna do fundo do abismo
marinho. Entretanto, ao entrar em contato com os mergulhadores/filhos os
polvos/mães são modificados, de modo que o polvo retirado das águas não é o
mesmo polvo do fundo do oceano, ele emerge do fundo transformado, e torna-se,
agora, o emblema "embrulhado nas mãos" do filho, que, por sua vez, é também uma
marca indelével que o acompanhará "na agudeza de toda a sua vida".
A expressão utilizada por Herberto Helder para falar desse mergulho no solo,
digo, nas águas maternas não poderia ser mais elucidativa. Pois os polvos não vêm
apenas expostos nas mãos filiais, mas "embrulhados" nelas. O acoplamento mão/polvo
é, de fato, a metáfora para a cópula entre mãe e filho, a partir da qual se torna evidente
o caráter paradoxal da escrita como ato de união e separação da mãe. Como aponta
Arrojos citando Michel Schneider:
23
Escrever é sempre um projeto arriscado, investido de carga emocional, porque
implica uma relação transgressora, até mesmo incestuosa, com a língua materna
de quem escreve [...] Quem escreve escreve sobre e contra sua língua materna
para escapar à angústia da influência.
(ARROJOS, 1993: 160)
A "angústia da influência" é um tema bastante caro também a Pedro Eiras, que
estabelecerá a correspondência entre o movimento de negação da tradição descrito por
Bloom e a idéia de crime em Herberto Helder. Se toda escrita esinserida na teia de
textos e autores que a precedem, para Eiras, "o crime herbertiano é a afirmação
metaliterária dessa rede: Photomaton & Vox ao mesmo tempo recusa a relação com
determinadas poéticas e refere, cita, parafraseia, desconstrói autores e obras." (EIRAS,
2005: 478)
5
Entretanto, como o autor observa ainda, um outro crime na poética
herbertiana, crime esse que se constitui como a negação mesma da textualidade. Tal
crime encontra o seu modelo no silêncio rimbaudiano, na recusa completa ao discurso
literário. Formula-se, portanto, a exigência paradoxal de se escrever para negar a
escrita, ou de dizer para atingir o silêncio. Esta seria a exigência que assinalamos atrás
como a necessidade, impossível, diga-se de passagem, de "matar os mortos", isto é, de
saltar para fora de qualquer memória e de qualquer história, enfim, de negar a própria
linguagem. É como se o poeta, ao escrever, procurasse fazer uma espécie de tabula
rasa, eliminando tudo aquilo que o precede. Como afirma Rosemary Arrojos, "quer
seja contra a mãe, contra a língua materna, ou contra o pai/precursor, podemos ver
naquilo que início à escritura uma tentativa impossível do escritor de se tornar sua
própria origem, uma origem, entretanto, que inevitavelmente se localiza na leitura de
um texto alheio." (ARROJOS, 1993: 161)
Assim, retornando ao reino das mães, devemos lembrar que a voz do filho,
apesar de constituir-se num grande esforço para buscar uma originalidade
incondicional, carregará sempre o peso dos mortos, a esfera da repetição. Não é
possível falar de um começo absoluto, uma vez que, na escrita, trata-se sempre de
5
Também é interessante notarmos o movimento contrário ao que estamos apontando, isto é, o do lugar de
Herberto Helder em relação aos poetas mais jovens. A carta de Joaquim Manuel Magalhães a Herberto
Helder é exemplar nesse sentido: "Fui saindo do 'pesadelo' da sua escrita a muito custo. Voltei atrás muito
devagar, graças a grandes montes de papel rasgado. Primeiro riscava o que lhe fosse semelhante, voltava ao
princípio, descobria que não ficava nada. quando me despedi de si, consegui perceber que podia tentar
com as palavras sons e sentidos que fossem meus." (MAGALHÃES, 1981: 131)
24
trabalhar com o resíduo inelutável que o as próprias palavras, aquilo que aparece
quando se procura fazer com que tudo o mais desapareça, e é justamente esse aparecer
o que determina a repetição do que se pretendia inscrever como pura diferença. A
própria tentativa de escrever para apagar o passado já carregará em si traços desse
mesmo passado que se repete, que não pode ser eliminado e, por isso mesmo, retorna
na forma de algo que interpela o sujeito. Talvez por isso Herberto Helder encerre o
conjunto intitulado "Fonte" com um poema dedicado à mãe morta, poema em que se
evidencia a ausência da mãe como uma presença sintomática do sujeito:
Mãe, pouco resta de ti na exaltação do mundo. Às vezes
misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,
vertiginosa e triste, através
das palavras. (HELDER, 2004: 55)
É importante notar que a mãe olha o sujeito "através das palavras", como se
essa dimensão lingüística fosse justamente o lugar em que o sujeito se constitui no ato
de separação da mãe, sendo ainda uma forma de estar ligado a ela. A relação entre
olhar e ser olhado como dinâmica de constituição do sujeito foi apontada por Didi-
Huberman no livro O que vemos, o que nos olha (1998). O capítulo de abertura do
livro remete, coincidentemente, a uma passagem do Ulisses, de James Joyce, em que o
narrador contempla o corpo morto da mãe que lhe aparece num ambiente marinho de
sargaços e destroços. Do vazio que se abre através da dimensão visível da perda,
inscreve-se o lugar a partir do qual a mãe morta olha o narrador, como ocorre também
no poema de Herberto Helder. E é a visão desse lugar vazio que o constitui como
sujeito da escrita.
A escrita é, portanto, o efeito, ou, como prefere Didi-Huberman, o sintoma,
desse jogo de aparecimento e desaparecimento posto em evidência por uma
determinada imagem. Nesse sentido, a imagem da mãe morta acarreta uma ruptura na
ordenação do mundo, exigindo a construção de um novo idioma capaz de dar sentido a
ele, isto é, de suportar a perda. No poema de Herberto Helder, o desaparecimento da
mãe faz com que o mundo todo seja assinalado com a marca dessa perda: "Conheço
grandes casas / onde o habitas, flores que cheiro, tarefas / silenciosas que cumpro
25
humildemente, e luzes, / instrumentos de música, / laranjas que devoro sentindo o
gosto da vida desde a garganta / às mais finas raízes das sceras. Tu / desapareceste."
(HELDER, 2004: 56) E devemos notar também que o vazio revelado pela falta da mãe
não é uma pura ausência, ao contrário, é a presença dessa ausência.
É isso que Marcelo Jacques de Moraes, retomando Didi-Huberman num ensaio
sobre Bataille, chamou de "forma informe", ou seja, um tipo de imagem que nos
invade e nos interpela: "essa forma informe, essa formação abjeta, promoveria,
portanto, ao ofertar-se, uma espécie de perda de sentido daquilo que ela a ver o
mundo mediado pelo sintoma –, exigindo em contrapartida, daquele que com ela se
depara, um suplemento de sentido, uma escrita [...]." (MORAES, 2005: 115)
Tal é, portanto, o caráter paradoxal da escrita: de certa forma, o escritor
pretende como no Húmus de Herberto Helder "matar os mortos", sepultá-los de
vez para que seja possível instaurar uma fala absolutamente nova, uma fala sem
história, descolada do passado. Mas essa tentativa de assassinar o passado produz
sempre um resíduo que retorna, fazendo com que o escritor exiba em seu discurso as
marcas daquilo que não pôde ser apagado e que caracterizará a construção da sua
escrita, ou seja, a criação do seu idioma. Ora, se é impossível projetar-se para fora da
linguagem, a construção do idioma poético é a evidência da dívida e da dádiva do
sujeito em relação à língua materna. Essa idéia aproxima-se da noção de estilo em
Barthes. Para Barthes, o estilo
"[...] é a 'coisa' do escritor, seu esplendor e sua prisão, é a sua solidão. [...] É a
parte privada do ritual, ergue-se a partir das profundezas míticas do escritor, e se
expande para fora de sua responsabilidade. [...] A fala tem uma estrutura
horizontal [...]. O estilo, ao contrário, só tem uma dimensão vertical; mergulha na
lembrança enclaustrada da pessoa, compõe a sua opacidade a partir de certa
experiência da matéria [...]. (BARTHES, 2000: 11)
Assim é que o idioma poético se constrói numa dimensão vertical, num
"mergulho", e aqui lembramos novamente do poema herbertiano em que os filhos são
comparados a mergulhadores que descem "no interior / de muitas águas, / e trazem as
mães como polvos embrulhados nas mãos". O paradoxo com o qual o poeta tem que
conviver é então o de estar sempre em dívida com a linguagem que o precede e lhe
26
a vida, ao mesmo tempo em que a nega na tentativa de encontrar a sua própria voz. E é
essa dimensão solitária assinalada por Barthes, dimensão de perda e criação, de vida e
de morte que mais uma vez é posta em evidência por um poema de "Fonte":
Ó mãe violada pela noite, deposta, disposta
agora entre águas e silêncios.
Nada te acorda – nem as folhas dos ulmos,
nem os rios, nem os girassóis,
nem a paisagem arrebatada.
– Espero do tempo novo todos os milagres,
menos tu. (HELDER, 2004: 49)
Nesse poema a mãe também é assinalada através de uma experiência da perda.
A mãe foi "deposta", "disposta agora entre águas e silêncios". Aqui, algo de essencial
também é dito: que, a partir do momento em que se escreve, a mãe, associada agora à
origem, não pode ser recuperada – "nada te acorda" –, que não é possível ressuscitar os
mortos, assim como não é possível matá-los, apesar de o "tempo novo" ser um tempo
de "todos os milagres". Contudo, entre todos esses milagres não se pode contar o da
ressurreição da mãe morta. O que significa que a criação poética não é um retorno à
"fonte", como se poderia pensar, mas sim um nascimento, um acontecimento
imprevisível no seio da linguagem que antecede o sujeito. O "tempo novo", o tempo
da criação é o do advento do poeta, de sua emergência como linguagem a fundação
do reino. A perda da mãe é, portanto, a condição necessária para que uma nova voz
irrompa, ainda que a memória dessa perda continue como uma marca no corpo do
filho. E essa marca é justamente a coroa que assenta sobre a cabeça deste, como
havia observado Jorge Fernandes da Silveira, fazendo com que a morte da mãe não
seja apenas um momento de privação. É isso o que se lê, mais uma vez, no poema
"Fonte":
Corres somente no meu sangue memoriado
e sobes, carne das palavras outra vez
imperecíveis e virgens.
– Do tempo jovem espero o vinho e o pólen,
outras mãos mais puras
e mais sagazes,
e outro sexo, outra voz, outro gosto, outra virtude
inteligente. (Ibid.: 49)
27
2.2
Máquinas
Eis como que uma coisa como que nos
interessa: destruir os textos. (HELDER,
2004: 337)
A epígrafe acima, retirada do verso que inicia o poema 2 de Exemplos, faz par
com o verso que também início ao poema 1 do mesmo livro: "A teoria era esta:
arrasar tudo [...]" (HELDER, 2004: 335) A poética herbertiana explicita o projeto
destruidor enunciado na abertura de Exemplos como uma espécie de "teoria", uma
atitude programática, um projeto. Tal atitude encontra um equivalente na intenção
anteriormente aludida de "matar os mortos", produzindo um crime textual que teria
como objetivo a rasura e o apagamento do passado, ou, como diz o poeta na epígrafe
acima, a destruição dos textos. É importante remarcar que a radicalidade desse projeto
revela também a sua impossilidade, a sua falha.
Devemos lembrar que, inicialmente, o texto citado na epígrafe fazia parte de "E
outros exemplos", e "A teoria era esta [...]" fazia parte de "Exemplo", ambos reunidos
no livro Cobra (1977), composto por: "Memória, Montagem", "Exemplo", "Cobra",
"Cólofon", "E outros exemplos", livro que se apresenta inteiramente modificado nas
edições posteriores da Poesia toda, como tão comumente ocorre na obra de Herberto
Helder.
Como bem observa Maria Estela Guedes em seu livro Herberto Helder: poeta
obscuro, um texto que começa como a parte final de uma frase "E outros
exemplos" –, isto é, referindo-se ao que vem antes dele, tem por objetivo explicitar o
dialogismo, a relação com os outros textos que o precedem, sejam eles de um mesmo
autor ou de autores diferentes. (GUEDES, 1979: 95). Observação que casa muito bem
com o projeto programático presente nos dois poemas citados, em que a destruição de
tudo, e inclusive dos textos, é desejada, pelo menos em "teoria". Aqui, mais uma vez,
observamos uma tensão entre o ato de criar e o de destruir, que nunca é possível
destruir tudo; todo texto, mais do que destruir, assimila e transforma os textos
anteriores, deixando-se também transformar por eles. Uma imagem adequada para
ilustrar o processo de produção literária não seria, pois, a da bomba atômica, que bem
28
poderia exemplificar a aspiração a "arrasar tudo", eliminando o passado, mas sim a de
uma máquina, um processador, que tritura e embaralha os conteúdos nela inseridos,
proporcionando-lhes novas configurações.
As permutações e as operações de montagem e desmontagem do texto são uma
das estratégias utilizadas por Helder para permitir que as palavras encontrem um
desvio de sentido. A parte IV de "As musas cegas", do livro A colher na boca, mostra
de forma clara o mecanismo de permutação das palavras no poema, mecanismo esse
que será plenamente desenvolvido em Comunicação académica e n'A máquina lírica:
Mulher, casa e gato.
Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça
da casa, uma luz violenta.
Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.
A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia
pensa-a, enquanto
o gato imagina a elevada casa.
Eternamente a mulher da mão passa a mão
pelo gato abstracto,
e a casa e o homem que eu vou ser
são minuto a minuto mais concretos.
[...]
Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.
Se toco (e é apaixonante)
a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.
Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.
Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher
com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.
A mulher da palavra. A Palavra.
[...] (HELDER, 2004: 84)
O poema inicia-se com três substantivos concretos. A partir daí, suas posições
vão girando dentro das frases, combinando-se de forma inesperada e gerando imagens
inusitadas, até que todos os objetos enumerados no poema entrem em
correspondência, todos se tornem "Palavra", potência de dizer. Há aqui uma morte das
coisas, uma desestabilização radical dos sentidos, estabelecendo um paralelo com um
verso do Poema II de Poemacto: "Tudo morre o seu nome noutro nome." (Ibid.: 112)
A palavra poética é justamente a linguagem elevada a essa potência de morte, de
contaminação de uma coisa por outra. É por descobrir que o nada por detrás das
palavras que pode surgir dessa experiência uma liberdade criadora. Para Clement
29
Rosset, no livro A antinatureza, é somente quando desnaturalizamos as coisas, quando
retiramos delas uma exigência de necessidade e deixamos que apareçam em sua
vertente de puro acaso que podemos atingir a "inocência do mundo", tema caro, como
veremos, a Herberto Helder. Segundo Rosset: "como todo indivíduo inocente, a
existência desnaturalizada está expurgada de toda suspeita e de toda culpabilidade, na
medida em que não participa de nenhuma trama de nenhuma natureza." (ROSSET,
1989: 74)
Por outro lado, temos de lembrar aqui que a palavra, ao sair de seu contexto
habitual, torna-se uma coisa estranha, capaz de nos interpelar, de demandar a nossa
atenção. Benjamin referiu-se a essa característica da obra de arte como um poder de
"revidar o olhar" daquele que olha (BENJAMIN, 1989: 140), estabelecendo uma
distância entre os dois. E cita, explicitamente, numa nota de rodapé, uma afirmação de
Karl Kraus que cabe muito bem na leitura que empreendemos aqui: "Quanto mais de
perto se olha uma palavra, tanto maior a distância donde ela lança de volta o seu olhar"
(Ibid.: 140), ou seja, mais ela nos interpela.
O tema da máquina que não se opõe, portanto, à natureza faz-se presente em
dois títulos da obra de Herberto Helder: A máquina lírica, anteriormente chamado
Electronicolírica (1963) e A máquina de emaranhar paisagens (1963). Em ambos os
livros, o autor trabalha com um mecanismo combinatório, com jogos de palavras que
montam o poema através de repetições e diferentes arranjos de suas partes. Como
disse Pedro Eiras a respeito do poema "A menstruação quando na cidade passava"
6
, de
A máquina lírica, a criação de "memórias do texto" que formam um conjunto de
poemas "virtualmente infinito" (EIRAS, 2002: 405). Retomando alguns conceitos de
Derrida, Pedro Eiras constrói o seu texto baseado na idéia de que a chamada máquina
lírica opera por meio de repetições, mas que essas repetições, em vez de determinarem
algo previsível, fazem eclodir um evento inesperado, um acontecimento imprevisível.
Nesse sentido, repetição não se opõe a novidade: porque tudo se pode repetir sem
sacrificar a emergência da sua novidade que existe a máquina infinita. [...] O
acontecimento inédito é a repetição do que se reconhece, de uma memória." (Ibid.:
408)
6
Ver apêndice 1
30
Diríamos, porém, que o mecanismo que o livro de Herberto nos faz ver não se
limita apenas a uma mera combinatória de palavras dentro de poemas, mas revela o
próprio mecanismo através do qual toda e qualquer escrita se constitui como uma
reescrita de outros textos, apontando para uma espécie de memória da linguagem,
segundo a qual se formam as mais diversas obras literárias. Assim, se todo texto é
formado por infinitos diálogos e conexões entre outros textos, não podemos pensar
que exista uma origem localizável dos textos, que um texto sempre remete a outro,
repetindo o passado no mesmo gesto em que o modifica. Deve à não existência de uma
origem o fato de tudo poder ser repetido.
Além disso, como bem observou Eiras, o poema faz falar "uma voz que introduz
temas" (Ibid.: 409): "Alguém falava: neve." [...] "Alguém falava: sangue" (HELDER,
2004: 196). Essa voz indefinida e anônima tão bem expressa por Blanchot (1987)
como o on impessoal presente na língua francesa essa voz de "alguém" que na
verdade não representa uma individualidade, mas é o lugar em que a linguagem,
disseminando-se, produz acontecimentos, assinala, de fato, uma anterioridade; ela é a
voz de um outro que existia nesse terreno da dispersão a partir do qual a "máquina
lírica" engendra o poema. E o poema, por sua vez, carrega em si as marcas da
alteridade que o constitui, através de uma operação incessante, como um poema
infinito. A obra que emerge dessa dimensão maquínica vem, portanto, impregnada
pelo passado, que ela subverte e atualiza numa forma nova e surpreendente. Nesse
sentido, não deixaremos de lembrar que, recentemente, Herberto Helder passou a dar o
título de Ou o poema contínuo ao livro que reúne sua obra completa.
Se o livro A máquina lírica pode ser lido como um desvelar das engrenagens que
fazem emergir o poema, o pequeno livro A máquina de emaranhar paisagens
7
funciona, talvez mais explicitamente, como o tal processador que embaralha trechos de
outras obras e aponta para uma "operação sobre fragmentos", como já havia observado
Maria Lucia Dal Farra (DAL FARRA, 1986: 202). Operação que, no caso, mistura e
confunde textos bíblicos do Génesis e do Apocalipse com outros de François
Villon, Dante, Camões e do próprio poeta. Surgem, portanto, novos textos a partir do
recorte que esses fragmentos sofrem em relação ao seu contexto original, como se o
7
Ver Apêndice 2
31
poeta quisesse expor os mecanismos dessa máquina que, afinal de contas, é a própria
escrita, no mesmo gesto em que dissolve nitidamente a idéia de autoria em prol de
uma prática de leitura.
No que diz respeito aos textos bíblicos, é importante notarmos que os dois
fragmentos evocam, respectivamente, um momento de criação e outro de destruição:
"E chamou Deus à luz Dia; e às trevas Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia
primeiro.[...]" (HELDER, 2004: 217). Esse primeiro momento de criação, retirado do
Gênesis, vem, entretanto, seguido pelo fragmento do Apocalipse, que traz não apenas a
imagem da destruição, mas que a inscreve na história do mundo como algo que se
registrasse na superfície de um livro, isto é, algo da ordem da escrita: "[...] E o céu
retirou-se como um livro que se enrola: e todos os montes e ilhas se moveram dos seus
lugares. E vi os mortos, pequenos e grandes, ... e foram abertos os livros." (Ibid.: 217)
O movimento de fechamento e abertura do "livro" remete justamente ao trabalho
de inscrição e apagamento, de destruição e formação que é o da escrita, sempre
subordinada à leitura. Entretanto, se na Bíblia uma seqüência cronológica de
acontecimentos, isto é, se o Gênesis vem antes do Apocalipse, tal sucessão será
rompida no livro de Herberto Helder, assim como é rompida em qualquer trabalho
literário, já que a destruição não ocorre somente após a criação, mas também a
prepara, demonstrando que um movimento contínuo de fazer e desfazer em todo e
qualquer processo de escrita. Assinalável, nesse sentido, é o fato de a citação do
Génesis ser a escolhida para fechar o conjunto de textos.
A máquina de emaranhar paisagens revela, portanto, essa combinatória de
elementos, dando origem a cinco composições distintas, tendo como característica
principal, como observou também Dal Farra, a crescente ilegibilidade que as
composições vão assumindo: "a quinta variação se apresenta ligada pela suspensão
semântica representada pelas reticências. São retalhos e estilhaços do texto base, agora
inteiramente desarticulado, que apontam o resultado da operação: 'espaço ...
separação'." (DAL FARRA, 1986: 203) Ao recortar fragmentos de outros textos para
com eles realizar uma operação de montagem e desmontagem, Herberto Helder nos
expõe uma operação propriamente literária, de modo que os textos antigos aparecem
disseminados no texto novo, e se tornam desfigurados e amesmo irreconhecíveis no
32
texto posterior, embora continuem como uma espécie de marca indelével. Portanto,
se aqui uma metáfora da criação, da origem, evocada inclusive pela presença do
livro do Gênesis, devemos sublinhar desde que essa origem não é localizável num
momento específico do passado, mas que cada escritor produz a sua própria origem a
partir das obras que estão disseminadas numa região espectral ocupada pelos "mortos"
que já existiam antes dele.
2.3
A falência do canto
Que hei-de fazer de toda a minha
experiência? (HELDER: 2005: 149)
Passemos, portanto, aos "mortos" sobre os quais se erige a voz de Herberto
Helder. É importante lembrarmos que o gesto de escrever evidenciará um trabalho de
leitura, isto é, que a experiência à qual o escritor se lança não é uma tarefa que parte
do nada, mas que o coloca numa relação de confronto com os autores que o
antecedem. Assim, é através do embate com a tradição que o poeta constrói o seu
idioma, o seu estilo, articulando passado e presente em busca de uma escrita que não
repete um tempo anterior, mas o atualiza. Se há pouco identificamos a imagem da mãe
à própria linguagem no seio da qual surge o poeta, assinalaremos agora uma presença
paterna, marcada, em termos bloomianos, pela imagem do poeta forte da cultura.
Retomando, portanto, o diálogo com Harold Bloom, o gesto de renovação que o poeta
atual efetua propicia o surgimento de uma fala imprevista, de modo que na última
etapa da relação de apropriação/desapropriação entre textos, chamada por ele de
apophrades, uma espécie de retorno dos mortos, isto é, do poeta-pai, mas com a
peculiaridade de que o poeta novo aparece como criador do mais velho, como se o
próprio pai estivesse em débito com o filho:
Os grandes mortos retornam, mas retornam com nossas cores e nossas vozes, ao
menos em parte, ao menos em alguns momentos momentos que são um
testemunho da nossa persistência e não da dos precursores. Se retornarem
33
integralmente, e com sua própria força, então o triunfo será seu. (BLOOM, 1991:
183/184)
De fato, a literatura é sempre um entrelaçamento de vozes. Toda escrita se
edifica através de uma relação de continuidade ou rompimento, aceitação ou negação
de outros textos que a precedem. E é através dessas relações que cada escritor escolhe
os seus precursores e cria a sua própria tradição, como apontou Borges no famoso
ensaio "Kafka e seus precursores": "O fato é que cada escritor cria seus precursores.
Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, assim como de modificar o
futuro."
8
(BORGES, 2007: 130)
Para trilhar um pouco esse caminho amoroso e combativo que é o da escrita,
convocaremos, portanto, alguns desses diálogos estabelecidos por Herberto Helder,
procurando, primeiramente, como sugere Bloom, "ler um poeta em outro poeta, ou
mesmo como outro poeta" (BLOOM, 1991: 132), o que nos levará, necessariamente,
se tomarmos Camões como o poeta-pai, a ler Herberto em Camões e Camões em
Herberto.
* * *
A máquina de emaranhar paisagens demarca, em relação ao terreno da
literatura portuguesa, o lugar central que caberá a Camões
9
, esse poeta-pai, na poética
de Herberto Helder. Com efeito, a importância do autor d'Os Lusíadas é assinalada
numa auto-entrevista publicada pela revista Inimigo Rumor, na qual dá a entender que,
dentro do quadro da poesia portuguesa, apenas a obra camoniana despertaria o seu
interesse: "Preciso ir atrás, vou às Canções camoneanas [sic], a Babel e Sião, a esse
poema lírico, espiritual, secreto chamado Os Lusíadas [...]. Basta-me para o tempo
inteiro em palavra portuguesa." (HELDER, 2001b: 195) Ainda que essa afirmação
deva ser considerada com suspeita, como mostraremos mais adiante, é inegável o fato
de Herberto explicitar ao menos essa ponte entre a sua poética e a de Camões. Mas,
8
O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como
modificará o futuro.
9
A máquina de emaranhar paisagens traz o verso "Maravilha fatal da nossa idade", sexto verso do Canto I
d'Os Lusíadas, como se pode ver no Apêndice II deste trabalho.
34
além disso, anteciparemos que há, na dialética de apropriação/desapropriação entre
ambos, a busca do lugar da linguagem que, passando pelo campo da experiência
tema central de toda a obra de Camões –, resultará numa falência da voz. Neste ponto,
cabe uma observação: no Renascimento a questão da experiência está ligada a uma
busca de conhecimento empírico embalada pela exploração dos novos horizontes
descortinados com o expansionismo, fazendo com que a visão e a observação tornem-
se fatores essenciais para um novo modelo de homem. Em Camões, entretanto,
especialmente na lírica, a experiência aparece, muitas vezes, demarcada pela
ocorrência de algo que não remete ao conhecimento, mas sim ao desconhecido, ou
seja, a um domínio em que o conhecimento, seja ele teórico ou empírico, se revela
insuficiente, falho. E é dessa experiência que põe em risco o conhecimento, fazendo
vacilar as certezas, que trataremos agora.
Primeiramente, é preciso atentar para a relação amorosa que funda a palavra,
relação que se percebe, por exemplo, na declaração de amor de Herberto a Camões.
De fato, podemos dizer que a palavra nasce de um desejo amoroso. Fórmula o
muito distante da enunciada por Rosemary Arrojos: "ler é sempre uma forma de se
estar apaixonado" (ARROJOS, 1993: 158). Mas a referência aqui é outra, e suas
implicações conduzirão a um ponto mais complexo. Giorgio Agamben, no livro A
linguagem e a morte, explica que a partir dos poetas provençais ocorreu uma mudança
importante na compreensão do lugar da linguagem. Esse lugar, que na retórica antiga
se apresentava sob o signo da clareza, tinha como pressuposto que a linguagem estava
pronta desde sempre, e, para utilizá-la de forma correta e produtiva, bastaria remontar
a uma lógica preexistente, o que era feito pela repetição de determinados argumentos.
Tal concepção exclui, portanto, a idéia de uma renovação da língua, ou seja, sacrifica a
produção da diferença em prol da repetição do mesmo.
Com os poetas provençais essa noção retórica é substituída por uma razo de
trobar, isto é, por um ponto de vista que pressupõe o lugar da linguagem como algo
que deve ser buscado, como o próprio verbo trobar (encontrar) anuncia. Tal busca
aponta para o lugar originário da palavra, e já que se fala em busca, em desejo,
Agamben postula que o seu motor é necessariamente o desejo amoroso. "A
experiência do evento da palavra é, pois, antes de mais nada, uma experiência
35
amorosa, e a própria palavra é [...] união de conhecimento e amor [...]." (AGAMBEN,
2006: 93)
O sentido desse preâmbulo descortina-se na delimitação de um dos temas desta
tese, que passa por dois poetas extraordinários: Camões e Herberto Helder. Temas que
podem ser recortados através de algumas palavras citadas acima, sendo elas:
experiência, linguagem e amor. Acrescentaremos também a palavra morte, que mais
adiante encontrará o seu sentido ao lado das outras, o que nos possibilita perguntar, em
concordância com a afirmação de abertura, se o desejo amoroso pode também explicar
por que a palavra, em seu limite, se transforma num canto de morte. Pergunta que
adquire sentido, como se verá, ao lermos Camões com ou em Herberto Helder.
Assim, começando pelo início, isto é, por Camões, partimos justamente da
experiência e da importância que esta adquire tanto na lírica quanto na épica. Para
darmos apenas um breve exemplo, lembremos que Camões, no Canto X, ao dirigir-se
a D. Sebastião, assegura a respeito de si próprio: "Nem me falta na vida honesto
estudo, / Com longa experiência misturado, [...]" (Lus., X, 154, 5-6) Ao tratar da lírica,
recordaremos primeiramente o ensaio de Helder Macedo, "Camões e a viagem
iniciática", no qual se assinala a importância, para o poeta, da experiência do amor e
da razão: "o amor [é] assumido como uma experiência pessoal a ser vivida
activamente [...] e a razão como a faculdade humana capaz de transformar a
experiência em conhecimento" (MACEDO, 1980: 9). Mas cumpre observar que a
experiência amorosa na poesia de Camões não põe em cena o visto e o vivido;
muito ao contrário, é à ordem do desconhecido que ela se dirige, como se no
soneto:
Pois meus olhos não cansam de chorar
tristezas, que não cansam de cansar-me;
pois não abranda o fogo, em que abrasar-me
pôde quem eu jamais pude abrandar;
não canse o cego Amor de me guiar
a parte donde não saiba tornar-me;
nem deixe o mundo todo de escutar-me,
enquanto me a voz fraca não deixar.
36
E se em montes, rios, ou em vales,
piedade mora, ou dentro mora Amor
em feras, aves, prantas, pedras, águas,
ouçam a longa história de meus males
e curem sua dor com minha dor;
que grandes mágoas podem curar mágoas.
(CAMÕES, 1980: 11)
O amor é, portanto, o que provoca o movimento – e os males – do poeta, fazendo
com que ele se torne um peregrino, um errante, disposto a aventurar-se no terreno do
desconhecido, ao mesmo tempo em que deseja que o seu canto seja ouvido. Tal
aventura se torna simultaneamente atraente e ameaçadora, por implicar, segundo
parece, um enfraquecimento da voz. O que levanta a suspeita de que uma nítida
relação entre a experiência do desconhecido, movida pelo amor, e o que chamarei, no
momento, de falência da voz. Mas que relação seria essa? Guiado pelo cego amor, o
poeta não se cansa nem teme a perda da voz, como se estivesse movido por uma força
que o faz persistir nos "males". Ora, se em Camões o amor é cego, em Herberto Helder
cegas são também as musas que provocam o canto – assim como o amor –, tornando-o
incessante. Desencadeia-se, portanto, um "cantar sem fim" que consome a garganta do
poeta, tal como se lê no poema "As musas cegas" do livro A colher na boca, de 1961:
Era tão violenta
a ideia de cantar sem fim,
até que a voz consumisse esta garganta sombreada
de estreitos vasos puros. (HELDER, 2004: 76)
Há, então, uma violência própria ao cantar, violência também própria ao amor,
como fica evidente no poema que não poderia deixar de citar, por ser a mais explícita
referência que Herberto Helder faz a Camões, e que começa por "Transforma-se o
amador na coisa amada
10
". Em Camões esse soneto pode ser lido como a ruína de uma
visão platônica do amor, tantas vezes a ele atribuída, mas que não se sustenta, que o
poeta, nos tercetos, irá contestar a idéia, exposta nos quartetos, de que bastaria a
"virtude do muito imaginar" para fazer com que o desejo do amador fosse aplacado
10
Ver apêndices 3 e 4
37
pela concretização imaginária da amada. O soneto é encerrado com a conclusão de que
"o vivo e puro amor de que sou feito / como a matéria simples busca a forma" (Ibid.:
265), o que implica a não separação entre forma e matéria, corpo e espírito; em outras
palavras, o poema aponta para a permanência e insistência do desejo, que não se
esgota numa concretização mental. em Herberto Helder, o verso de abertura do
poema
11
desencadeia o campo semântico da ferocidade, que também não exclui, de
forma alguma, o erotismo:
Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio [...].
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas. (HELDER, 2004: 13)
A releitura do soneto camoniano aponta para uma dupla violência: a violência do
erotismo amoroso tão assinalada por Bataille (2004) como o instante de gozo em
que o amor roça o plano da morte –, mas também a violência antropofágica, que faz
com que Herberto Helder se dirija à tradição como se realizasse um ato de
canibalismo, isto é, de devoração e assimilação. A devoração, como se vê, modifica o
devorante e o devorado, o "amador" e a "coisa amada", apontando para um jogo de
presença e ausência, de "ruído e silêncio". Também é interessante notarmos que o
resultado desse canibalismo é a criação, que advém "acima de todas as coisas mortas".
Ora, se o canibalismo tem por finalidade a incorporação do outro, da alteridade,
retornamos à relação entre o poeta-filho e o poeta-pai para pensar que a assimilação de
Camões por Helder toca em temas fundamentais para os dois autores amor, morte e
canto que agora anunciamos nos seguintes termos: a experiência do amor e da
morte a partir de seu vínculo intrínseco com o canto.
Por isso, ao tentar unir os dois poetas, acreditamos que, para além dessas
referências mais ou menos explícitas, a afinidade entre ambos desemboca na tentativa
herdada, segundo Agamben, dos poetas provençais, de buscar o lugar da palavra, lugar
11
Propositalmente destacado em algumas edições pela utilização de aspas e em outras pelo uso do itálico.
38
inacessível por excelência. A incompreensão que caracteriza tal busca pode fazer com
que a atitude dos que a ela se dedicam adquira, por vezes, uma aparência pessimista e
derrotista, que merece ser considerada de forma mais ampla.
A reflexão acima evoca a estrofe do Canto X d'Os Lusíadas, onde o poeta se
lamenta da situação em que sua pátria se encontra, "metida / No gosto da cobiça e na
rudeza / De hua austera, apagada e vil tristeza." (Lus., X, 145, 6-8) A imagem
desalentadora da pátria é o que faz com que o poeta, no início da estrofe, peça à Musa
que interrompa o seu canto: "No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho /
Destemperada e a voz enrouquecida," (Lus., X, 145, 1-2) Mas será apenas a decepção
com a "gente surda e endurecida" o que faz com que o poeta anuncie, ainda que no ato
de cantar, o cessar de seu canto? Não é à toa que esses versos m despertado tanto
interesse, tornando-se fundamentais dentro da arquitetura d'Os Lusíadas. E não é de se
estranhar, também, que eles sejam submetidos à operação antropofágica de Herberto
Helder, como já observara Luis Maffei no ensaio "Por que não falte nunca onde
sobeja, ou melhor, excesso e falta na lírica de Herberto Helder" (MAFFEI, 2006: 201).
Operação antropofágica que a ver uma provável devoração, transformando-os na
abertura do poema "Teoria sentada", de Lugar:
Um lento prazer esgota a minha voz. Quem
canta empobrece nas frementes cidades
revividas. Empobrece com a alegria
por onde se conduz, e então é doce
e mortal. (HELDER, 2004: 167)
Pois, aqui, também uma voz que se esgota, ocasionando o empobrecimento
daquele que canta. Luis Maffei observa também que Camões morreu pobre e, além
disso, que o poema aponta para a dimensão da mortalidade. Desse modo, e mais uma
vez lendo Herberto Helder em Camões, ou seja, lendo Camões através de um olhar
herbertiano, pergunto se é possível, a partir do primeiro, trazermos um dado novo à
compreensão das chamadas "lamentações" camonianas, que lemos como uma espécie
de suicídio relacionado à recepção de sua obra. É o que afirma Jorge Fernandes da
Silveira, quando diagnostica que o silêncio invocado pelo poeta se deve à "consciência
dilacerada" de quem não foi capaz de criar o leitor que apreciasse o seu canto,
39
demonstrando que é através da leitura que a escrita se mantém viva: "O que ele diz é
que a todos mata a falta de recepção ao texto literário ou à obra de arte e
comunicação em geral. O que ele diz, de fato, no tempo e no espaço contemporâneos
da sua tragédia, é que o “peito ilustre lusitano” padece de não-leitura." (SILVEIRA,
2008: 96)
Na devoração herbertiana, entretanto, uma linha tênue costura as dimensões do
canto e da morte. E se, num primeiro momento, o poeta se refere ao prazer – "um lento
prazer esgota a minha voz" –, logo a seguir, ainda em "Teoria sentada", lemos os
versos: "Uma dor esgota / a idade, com cravos, da minha voz." (HELDER, 2004: 167)
e mais adiante:
Um lento desprazer, uma
solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,
como um silêncio, o antigo
de minha voz. (Ibid.: 167)
Prazer e desprazer, alegria e dor, voz e silêncio. Serão esses opostos realmente
excludentes, ou estamos tratando de uma região, precisamente, a região do canto, em
que os opostos coexistem sem se anular, e que por isso mesmo foge ao nosso
entendimento? E então é preciso retornar a Camões, pois é com ele que lemos um
verso que tão bem assinala a dimensão inapreensível que envolve o cantar. Trata-se de
da célebre Canção VII, em que o poeta nos revela o princípio ininteligível que move o
canto: "e se é mais o que canto que o qu'entendo" (ibid.: 52). Ora, se o tema dessa
canção é justamente o amor, e se pouco foi dito que a palavra nasce de um desejo
amoroso, não fica difícil concluirmos que o desejo amoroso é aquilo que conduz o
poeta, ser insaciável, sempre um pouco mais longe, sempre um pouco mais adiante,
em direção a um encontro com algo que desconhece, que é inapreensível, fonte de
alegria e também de sofrimento. E essa região, à qual ele se atraído como por um
feitiço, é justamente a região do canto, a dimensão do silêncio e da morte, do
en(canta)mento.
Encontro semelhante ocorre no Canto V d'Os Lusíadas, quando Vasco da Gama
depara-se com Adamastor, monstro que simboliza a passagem do Ocidente para o
Oriente, o fim do mundo conhecido e a entrada no mundo desconhecido. Lugar,
40
portanto, em que se inscreve o desejo. É preciso lembrar que o Adamastor se apresenta
sob a forma de um enigma: "Que ameaço divino ou que segredo / Este clima e este
mar nos apresenta, / Que mor cousa parece que tormenta?" (Lus., V, 38, 6-8) Se no
épico de Camões, porém, o "monstro horrendo" (Lus., V, 49, 1) que ameaçava a vida
dos navegantes portugueses cede ao diálogo, isto é, à "estratégia discursiva do
'facundo' Vasco da Gama", (SILVEIRA, 2003: 63-64), em Herberto Helder a travessia
do mar onde se produz a voz e a escrita permanece uma zona de sombras, onde a vida
continua a correr perigo, tal como lemos no "Texto 12" do livro sugestivamente
intitulado Antropofagias:
Sei de um poeta que passou os anos mais próximos do seu
"suicídio"
a bater com os nós dos dedos pelas paredes [...]
e foi-se vendo pelo seu "rosto" que não era fácil tomar a cargo
a coruscante "caligrafia do mundo"
mas ele tomou-a até onde pôde e o "corpo" era já
o outro lado da "agonia" um "texto monstruoso" que se "decifrava"
apenas "a si próprio" (HELDER, 2004: 295)
O poema tem início com a referência ao "suicídio" de um poeta, daí não
deixarmos de pensar no "suicídio camoniano" expresso no Canto X. E o "texto
monstruoso", tal qual o "monstro horrendo" que é Adamastor, indica o limite ao qual
se chega quando a visão do desconhecido é descortinada, mas aqui, entretanto, esse
monstro não cede ao diálogo, não responde a nenhuma estratégia discursiva, já que "se
'decifrava' / apenas 'a si próprio'". Se em Camões mais o que canto que o
qu'entendo", em Herberto Helder o canto também é da ordem do ininteligível, e o
poeta, ao entregar-se à dimensão do "texto monstruoso", deparar-se-á necessariamente
com a sua morte. Não saída possível, e não também resposta para esse
confronto. O que não quer dizer que a busca adquira um caráter pessimista, que,
como lemos ainda em "As musas cegas": preciso cantar como se alguém / soubesse
como cantar." (ibid.: 79)
Ninguém sabe como cantar, tampouco se sabe o que esperar do canto. Não
resposta possível. Na auto-entrevista referida anteriormente, Herberto Helder declara a
sua preferência pela poesia em relação à prosa, fazendo uma ressalva: "Leio romances
41
desde que perceba que não estão a responder. Alguns são extraordinárias máquinas
interrogativas [...]." (HELDER, 2001b: 195) É ainda na mesma entrevista que o poeta
afirma considerar Os Lusíadas como "um poema lírico, espiritual, secreto [...], tão
soberano que se confunde com a mais nobre pergunta." (Ibid.: 195)
Não poderíamos afirmar qual é a "mais nobre pergunta" formulada n'Os
Lusíadas, mas, para estar de acordo com o pensamento de Herberto Helder, podemos
alegar que o poema "secreto" de Camões nos faz enunciar perguntas, e a nossa
pergunta é, justamente, de que forma o épico camoniano exibe o tênue fio que
promove a união entre o canto e a morte, conduzindo à experiência do
enrouquecimento da voz, tal como esta se deixa ler no Canto X. A hipótese de que
uma relação intrínseca entre ambos pode ser levantada porque acreditamos que a
palavra nasce de um desejo amoroso e incessante – cujo único limite seria o
esgotamento da voz do poeta, o que a faz desembocar num canto de morte, mas que
ainda assim é canto. Se lemos Camões com Herberto Helder, é justamente para
assinalar esse lugar inacessível da morte e do desconhecido que o poeta almeja
alcançar, independente daqueles que o ouvem serem ou não "gente surda e
endurecida". Pois lá onde o poeta diz tratar-se do seu suicídio, lá está também o clímax
do seu canto. Talvez, por fim, o poeta se cale como quem se entrega à experiência
erótica do gozo.
2.4
Como criar a tradição
Não há poema em si, mas em mim ou em ti.
[...] Entre o texto e suas leituras uma
relação necessária e contraditória. Cada
leitura é histórica e cada uma delas nega a
história. As leituras passam, são histórias e
ao mesmo tempo ultrapassam-na, vão mais
adiante dela. (PAZ, 1984: 202)
42
No célebre ensaio "Tradição e talento individual", T. S. Eliot analisa a relação
entre presente e passado, entre os vivos e os mortos. De acordo com Eliot, nenhum
poeta ou artista de qualquer outra espécie – tem significado se for considerado
apenas em si mesmo. Seu significado provém da relação que mantém com os poetas
mortos, do contraste e comparação com eles. O surgimento de um novo escritor altera
a paisagem do seu passado literário, de modo que cada nova obra modifica o sentido e
o valor das que a antecedem. Assim é que o surgimento de uma nova obra determina
uma relação de mão dupla com as precedentes:
The existing monuments form an ideal order among themselves, which is
modified by the introduction of the new (the really new) work of art among them.
The existing order is complete before the new work arrives; for order to persist
after the supervention of novelty, the whole existing order must be, if ever so
slightly, altered; and so the relations, proportions, values of each work of art
toward the whole are readjusted; and this is conformity between the old and the
new.
12
(ELIOT, 2008)
O interesse do comentário de Eliot, segundo cremos, não es apenas em
perceber que a tradição não deve ser pensada como continuidade, que as obras se
constroem numa espécie de diálogo entre vivos e mortos, alterando a ordem do
conjunto, mas também porque aponta o quanto o valor atribuído a uma obra de arte é
instável de forma a explicar por que um autor considerado menor pode adquirir,
subitamente, uma importância não imaginada –, o que assinala uma diferença
fundamental em relação a Harold Bloom, que se interessa apenas pela relação entre os
chamados poetas "fortes". Nesse ponto, o ensaio de Eliot é, a nosso ver, mais
perspicaz que o de Bloom, já que relativiza a questão do valor do autor, mostrando que
este nada mais é do que uma condição da sua própria história.
Tal idéia não se afasta da concepção de Herberto Helder, observada por Pedro
Eiras em sua tese de doutorado Esquecer Fausto, de que o poeta, apesar de estar
sempre inscrito numa rede formada por outros textos e outros poetas, é aquele que cria
a sua própria tradição. Prova disso é a antologia Edoi Lelia Doura organizada por
12
Os monumentos existentes estabelecem entre si uma ordem ideal que é modificada pela introdução da
nova (da verdadeiramente nova) obra de arte. A ordem existente é completa antes da chegada da nova obra;
para que a ordem subsista depois da chegada inesperada da novidade, a ordem existente deve ser alterada
como um todo, ainda que ligeiramente; e assim as relações, as proporções, os valores de cada obra de arte
em relação ao todo são reajustados; essa é a conformidade entre o novo e o velho.
43
Helder da qual trataremos mais adiante –, que traz de forma sugestiva o subtítulo:
Antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, e é descrita,
assumidamente, como "uma antologia de teor e amor, unívoca na multiplicidade vocal,
e ferozmente parcialíssima." (HELDER, 1985: 8) Posição que pode ser confirmada
pelo próprio Herberto Helder através do prefácio que escreveu ao livro de poemas de
António José Forte: "Como toda a poesia, a verdadeira, possui apenas a sua tradição
romântica no menos estrito e mais expansivo e qualificado registo, uma tradição
próxima de nós esclarecida pelo surrealismo, imemorial, dinâmica, abrindo para trás e
para diante, única maneira de entender-se uma tradição." (FORTE, 2003: 11-12)
O que significa que a manifestação do amor que o poeta afirma experimentar
por sua tradição não se opõe ao ato de violência que exerce sobre ela, mas é como o
seu avesso. Na leitura dos outros textos e dos outros poetas, na escolha que é feita a
partir deles para a formação de uma antologia, o poeta demonstra, por um lado, que é
devedor daqueles que o precedem e, por outro, que aqueles que o precedem
encontram o seu lugar através da leitura posterior que os recorta e ressignifica. A
leitura constitui um investimento "parcialíssimo" no passado, o que vai ao encontro da
citada declaração de Rosemary Arrojos de que "ler é sempre uma forma de se estar
apaixonado." (ARROJOS, 1993: 158) Um bom exemplo para esclarecer a relação
dinâmica entre os vivos e os mortos na poética de Herberto Helder é a narrativa
presente no prólogo da antologia:
Eu poderia contar gemeamente duas histórias: uma afro-carnívora, simbólica, a
outra silenciosa, subtil, japonesa. De cada uma delas acabariam por decorrer um
tom e um tema. A história carnívora foi colhida algures, de leitura, e respeita uma
tribo que sepultava os seus mortos no côncavo de grandes árvores. As árvores, a
que tinham dado o nome do povo: baobab, devoravam os cadáveres, deles iam
urdindo a sua própria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto na alquimia, a
tribo investia-se nas transmutações gerais: a morte levava o nome, e o nome,
activo e tangível, crescia na terra. Emocionam-me a fome botânica e o triunfo das
copas, o empenho tribalmente mágico, regrado pelo insondável entendimento das
metamorfoses da carne no esquema orgânico da matéria. (HELDER, 1985: 7)
O título da antologia, Edoi Lelia Doura, foi retirado de uma cantiga de amigo
de Pedro Eanes Solaz, um jogral do século XIII, o que por si assinala a marca do
passado literário português, que esse nero de cantiga, típico da península ibérica,
44
lançará as suas sementes por todo o lirismo que se desenvolverá a partir dele. A
antologia reúne poetas do fim do século XIX, tais como Gomes Leal e Camilo
Pessanha, e uma grande seleção de poetas do século XX. Assinale-se a exclusão ou a
pouca importância concedida a alguns dos grandes nomes da poesia portuguesa, tal
como Fernando Pessoa, que está representado apenas por uns poucos poemas, sendo
que de seus heterônimos somente Álvaro de Campos está presente. Além disso,
percebemos uma grande importância concedida a nomes considerados "menores" no
quadro da poesia portuguesa, sendo visível a atenção concedida por Herberto Helder a
poetas ligados ao Simbolismo ou que participaram do movimento surrealista, tanto na
primeira como na segunda geração, sendo eles: Mário Cesariny, António Maria
Lisboa, António José Forte, Manuel de Castro, Ernesto Sampaio e António Gancho,
considerado a grande revelação da antologia.
O ato de construir essa antologia põe em xeque a posição contestada
anteriormente de que Herberto Helder seria um "solipsista extremado", que não
possuiria nenhuma filiação; posição enganosa perpetuada pelo próprio poeta que,
como outro famoso fingidor, procura nos enganar, dissolvendo as marcas de sua
filiação numa crítica mordaz aos seus contemporâneos: "[...] é imperdoável a maioria
dos poemas portugueses deste século. A bem dizer não nada." (HELDER, 2001b:
195) Se a bem dizer não nada, por que o organizador desperdiçaria o seu tempo e
gastaria papel e tinta para produzir uma antologia que tem como subtítulo "antologia
das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa"? O simples ato de produzi-la
refuta a afirmação anterior. E será que o "salto" de quatro séculos empreendido pelo
poeta que, como dissemos, destaca as Canções camonianas e Os Lusíadas como
aquilo que lhe basta em "palavra portuguesa", será que esse salto não evidencia,
portanto, que o fictício apagamento dos inúmeros poetas e poemas portugueses
situados entre Camões e Herberto Helder seria uma tentativa de destruir a falsa
continuidade da tradição, aquilo que normalmente entendemos por História da
literatura para fazer irromper, no seio do passado, uma força inaugural, capaz de
produzir uma nova tradição? Nesse sentido, tomaremos a distinção estabelecida por
Silvina Rodrigues Lopes entre o novo e a novidade. Em "A literatura como
experiência", a ensaísta portuguesa define o advento do novo como sendo algo da
45
ordem da diferenciação, e não da pura repetição, como ocorre com a novidade: "[...] o
novo é da ordem do acontecimento, que rompe a lógica da factualidade, a do 'foi', que
é o tempo petrificado, causa de niilismo e ressentimento." (LOPES, 2003: 37)
Assim, diante da escolha dos nomes que compõem a antologia, verificamos
que Herberto Helder procura romper com o "tempo petrificado" que institui uma
determinada "história da literatura portuguesa" para dar a sua visão do que constituiria,
de fato, a poesia moderna, minimizando a importância dos processos heteronímicos
pessoanos como traços de identificação do projeto modernista em Portugal. A
antologia reúne 18 + 1 poetas
13
e traz uma mini biobibliografia, escrita por Helder, de
cada um deles, cuja finalidade, por vezes, parece ser menos a de apresentar o poeta do
que de ressaltar alguma característica que confirme a sua inclusão nesse horizonte de
"vozes comunicantes", como bem se percebe, por exemplo, na nota relativa a Manuel
de Castro:
Nasceu em Lisboa em 1934, e morreu. Uma autodestruição sistemática,
premeditada, conduziu-o à morte prematura, em 1971. "A ultrapassagem de um
certo limite é (...) uma mudança de situação, nunca uma conseqüência"
escreveu ele algures, quatro anos antes de "mudar". Publicou Paralelo W (1958) e
A Estrela Rutilante (s/d, 1960). Existem alguns textos seus, a maior parte de
circunstância, espalhados por revistas e jornais. (HELDER, 1985: 255)
É também o que afirma João Amadeu Oliveira Carvalho da Silva em sua tese de
doutorado, ao sugerir que Edoi Lelia Doura é uma "representação assumida da árvore
genealógica da poesia de Herberto Helder, como também sugere sub-repticiamente
relações intertextuais que se podem perspectivar à luz destes laços de familiaridade
facilmente contextualizados na literatura portuguesa." (SILVA, 2004: 139). Ora, se
toda e qualquer antologia funciona como um instrumento através do qual nos é dado
um certo recorte da tradição, no caso de Edoi Lelia Doura uma antologia de poetas
organizada por um poeta – essa tradição é pessoal, ou, retomando as palavras do autor,
"ferozmente parcialíssima". O que significa que a tradição se forma a partir do próprio
antologiador, que ao mesmo tempo expõe o seu desejo de criar a própria tradição. Não
13
O + 1 refere-se ao jogral Pedro Eanes Solaz, que não está antologiado como os demais, mas também não
deixa de estar presente.
46
seria muito radical, portanto, pensarmos que essa antologia, mais do que apresentar os
poetas que nela estão contidos, apresenta o seu organizador: Herberto Helder. Como o
autor afirma ainda no prefácio da antologia:
Quando os lemos lado a lado, a todos esses poetas e poemas, sabemos
estarem eles entregues ao serviço de uma inspiração comum, a uma comum arte
do fogo e da noite, ao mesmo patrocínio constelar. O que varia é a política das
formas, maneira de guerra e hipnotismo das pessoas e dos tempos. Nunca o estilo
de alimento, de morte, de mudança. (HELDER, 1985: 8)
2.5
Iconoclastas e franco-atiradores
Ninguém acrescentará ou diminuirá a minha
força ou a minha fraqueza. Um autor está
entregue a si mesmo, corre os seus (e apenas
os seus) riscos. O fim da aventura criadora é
sempre a derrota irrevogável, secreta. Mas é
forçoso criar. Para morrer nisso e disso. Os
outros podem acompanhar com atenção a
nossa morte. Obrigado por acompanharem a
minha morte. (HELDER, 1995: 70)
Dentre os poetas reunidos em Edoi Lelia Doura, talvez os que mais revelem a
poética de Herbeto Helder sejam justamente os autores que participaram do
Surrealismo, a cuja segunda geração o próprio Herberto Helder está ligado, o que
justificaria a inclusão de poetas pouco lidos nesse conjunto de "vozes comunicantes".
Voltemos então à atribulada história do Surrealismo em Portugal para resgatarmos
alguns traços dessa "inspiração comum" a que esses poetas estão entregues.
Antes, porém, talvez fosse interessante lembrar que a atitude de Herberto Helder
em relação ao Surrealismo é bastante ambígua. Basta citarmos um trecho de
"galinholas", de Photomaton & Vox: "Os senhores não percebem nada de destruições.
Temos de aturar todo o aborrecimento de uma velha modernidade: Fernandos Pessoas,
surrealismos, a política com metonímias, a filosofia rítmica, as religiosidades
heréticas, as pequenas tradições de certas liberdades. Acabou-se" (HELDER, 1995:
47
123) Tal comentário, entretanto, refere-se ao Surrealismo como escola, como
instituição que deve ser abolida por estar restrita a uma forma petrificada de fazer e
pensar a poesia. Do mesmo modo, apesar de condenar a atitude de Breton em
inúmeras ocasiões, tal ataque feroz deve-se mais à posição autoritária que o escritor
francês assumiu ao longo de seu percurso como "mentor" do Surrealismo do que aos
pressupostos do movimento em si. Como declara Américo António Lindeza Diogo,
"uma hermenêutica da obra de Herberto Helder é, com efeito, necessariamente
devedora da filiação conflituosa de Helder no surrealismo: muita da sua 'gramática'
está aí" (DIOGO, 1990: 53). Filiação que se nota, mais uma vez, na auto-entrevista
publicada pela revista Inimigo Rumor:
Sente-se um tremor secreto na palavra, desde a origem, desde as invocações e as
imprecações dos feiticeiros, dos xamãs, dos hierofantes; esse tremor desaparece
de súbito e um dia reaparece; sempre assim ao longo da história da palavra; deve-
se ao surrealismo, numa época sem tremor, ter dito que ele existia: alguns
surrealistas, não muitos, nunca são muitos, tinham os pés colocados sobre a linha
sísmica que atravessa a terra, e vê-se que tremiam dos pés à cabeça, a sua palavra
tremia na boca furiosamente enfática. (HELDER, 2001b: 194)
Procuraremos, portanto, apresentar alguns pontos de contato entre a poética de
Herberto Helder e a de outros autores que participaram do movimento surrealista em
Portugal. Nossa preocupação não é, de forma alguma, tentar situar o autor dentro deste
movimento, mas apenas apontar em que medida se torna notável a existência de
"vozes comunicantes na moderna poesia portuguesa".
O Surrealismo português conheceu duas gerações. A primeira delas, formada na
segunda metade dos anos 40, deu origem a dois grupos distintos: o Grupo Surrealista
de Lisboa e Os Surrealistas. A segunda, pouquíssimo estudada, formou-se em meados
dos anos 50 e deu origem ao grupo do Café Gelo. Esta geração apresenta muitos
pontos de contato com alguns poetas do grupo Os Surrealistas, nomeadamente
António Maria Lisboa e Pedro Oom, e contou com Herberto Helder entre os seus
participantes.
48
2.5.1
A poesia feita por todos
Quando num país o poeta não é mais poeta se não pertencer a um partido
e o homem não pode ser homem se não for um carneiro, o grande mito do
século LIBERDADE deixa de ser mito para se tornar realidade visível que
se procura com ânsia e desejo. Quando num país a igreja católica transforma os
homens em seres sem sexo e a ditadura do Papa obriga os poetas a serem padres
ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico da
subversão de valores e à afirmação total do nosso direito de foder
14
livremente,
de sermos os verdadeiros poetas do amor, da destruição, da surrealidade.
(TCHEN, 2001: XVIII)
Através da citação deste trecho do "Comunicado Surrealista" assinado por
Mário Henrique Leiria, João Artur Silva e Artur do Cruzeiro Seixas, ficam bem claras
as aspirações do movimento português, que podem ser enumeradas na procura da
liberdade, do amor, da revolta e da surrealidade. Apesar de tomar como modelo o
movimento surrealista francês
15
, em Portugal o Surrealismo deparou-se com situações
muito mais complicadas do que as enfrentadas pelo movimento na França, já que foi
tardio e coincidiu com a época em que o país se encontrava em plena ditadura
salazarista, além de ter se desenvolvido logo após a Segunda Guerra Mundial.
Notemos que a busca da liberdade é a grande meta surrealista e este
comunicado foi escrito em 25/04/1950, "precisamente 24 anos antes do 'dia da
liberdade'", como observa Adelaide Tchen em A aventura surrealista (TCHEN, 2001:
125). O comunicado deveria ter sido publicado por Simon Watson Taylor, na França,
mas acabou permanecendo inédito por divergências políticas dentro do grupo
surrealista francês.
O salazarismo em Portugal representou um enorme obstáculo em relação
ao desenvolvimento das atividades culturais e artísticas, uma vez que os artistas dos
mais variados setores tiveram que se submeter às práticas da censura, vendo seus
trabalhos impossibilitados de serem exibidos e de circular livremente. Assim é que o
14
É interessante notar que uma citação do mesmo texto no livro de Perfecto Cuadrado, A única real
tradição viva antologia da poesia surrealista portuguesa, onde no lugar de foder se a palavra actuar.
Conseqüências da censura?
15
Muitos dos artistas que participaram do movimento português chegaram a encontrar-se pessoalmente
com André Breton e a entreter um diálogo constante com este.
49
projeto surrealista, num primeiro momento, partilha os ideais Neo-realistas, na medida
em que ambos se configuravam como projetos coletivos que pretendiam mudar a vida,
o mundo e, logicamente, a sociedade portuguesa. Entretanto, após um curto período,
alguns poetas decidem desligar-se do Neo-realismo, por julgarem que o projeto
coletivo, tal como era idealizado por eles, impedia a plena manifestação da
individualidade e também por não acreditarem que seria possível, de fato, transfigurar
o real cotidiano através da literatura da forma como era praticada por este grupo.
16
Para os surrealistas, o que importa não é a representação da realidade, mas sim a
criação de uma realidade nova uma surrealidade que se produz através da
transfiguração dos objetos, isto é, da perda de seu sentido usual. É com base nesses
ideais que António Maria Lisboa profere uma palestra no Jardim Universitário das
Belas Artes (JUBA) intitulada "A afixação proibida", em 1949, da qual citaremos o
trecho abaixo:
A actividade Surrealista não é [...] uma simples acção libertadora das coisas
que chateiam, mas um golpe fundo de cada vez que é dado na realidade presente.
Não é de facto uma simples purga seguida de um dia de descanso a caldos de
galinha mas revolta permanente contra a estabilidade e cristalização das coisas.
Não é um mero exercício para se dormir melhor na noite seguinte, mas esforço
demoníaco para se dormir de maneira diferente." (TCHEN, 2001: 114)
E para chegar a essa transformação da realidade, o projeto de criação
coletiva surrealista abraçará como lema principal a famosa afirmação de Lautréamont
de que "a poesia deve ser feita por todos, não por um". Como exemplo de realização
deste projeto, citemos as diversas técnicas de criação coletiva, como o cadavre-exquis,
cuja produção foi a tal ponto numerosa em Portugal, que Mario Cesariny chegou a
realizar uma Antologia surrealista do cadáver esquisito (1961), da qual participou
Herberto Helder
17
, entre outros.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, o mundo assistiu à queda dos
fascismos, o que renovou a esperança dos intelectuais portugueses de ver terminada a
ditadura implantada no país desde 1926. Esperança aumentada também pelo fato de
16
Para maiores esclarecimentos, cf. (TCHEN, 2001: 126) ou (CUADRADO, 1998: 30)
17
Herberto Helder, João Rodrigues e José Sebag escrevem um texto que figura na antologia sob a rubrica
"O cadáder esquisito e os estudantes" (1957)
50
Salazar, em 1945, ter relaxado um pouco a corda com que vinha controlando os
cidadãos portugueses, dando origem a um período de muita discussão política, no qual
foi levantado o debate a respeito do futuro processo eleitoral. Tal abertura, entretanto,
logo se revelou totalmente enganadora, e em vez de um relaxamento da censura, o que
se viu foi um endurecimento progressivo das atitudes repressivas e coercitivas.
A organização de um grupo surrealista só ocorre de fato em 1947, sob a
denominação de Grupo Surrealista de Lisboa, associado aos ideais revolucionários.
Assim, os artistas se voltam contra todos os mecanismos de repressão, representados
pelas instituições coercitivas da sociedade que não permitem que os indivíduos
atinjam o que de mais sublime na vida: o maravilhoso. Esta idéia do maravilhoso
exprime de forma única o sentimento por eles ambicionado de mergulhar no absoluto,
naquilo que há de realmente intenso na psique humana.
Mas o que ocorre é que o maravilhoso pode ser atingido se forem abolidas
as fronteiras entre consciente e inconsciente, entre sonho e realidade, ou seja,
abolindo-se os contrários. Breton, no Segundo Manifesto do Surrealismo, afirma:
"Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real
e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o
baixo, deixam de ser percebidos como coisas contraditórias" (BRETON, 2001: 154).
Afirmação que remete a um tempo primeiro, a um caos originário, onde as oposições
deixariam de existir, dando lugar a uma totalidade e uma síntese absolutas.
Podemos observar, no início da primeira geração surrealista, a presença desse
ideal que mencionamos. Em "Concreção de Saturno", Cesariny retoma explicitamente
a afirmação de Breton: "O único fim que eu persigo / é a fusão rebelde dos contrários
as mãos livres os grandes transparentes." (CESARINY, 1997: 125). Do mesmo modo,
no texto "A afixação proibida", assinado por António Maria Lisboa, Henrique Risques
Pereira, Mário Cesariny e Pedro Oom, encontramos uma outra forma de expressão da
tão desejada síntese surreal: "E para a idéia da Totalidade duma Vida Única nós
acreditamos na conjugação futura desses dois estados, na aparência tão contraditórios,
que são o Sonho e a Realidade. Acreditamos numa Realidade Absoluta, numa
SURREALIDADE, se é lícito dizer-se assim." (Ibid.: 111)
51
2.5.2
A poesia feita por um
António José Forte, poeta participante da segunda geração surrealista e
integrante do grupo Gelo, em finais dos anos 50, num artigo publicado no Jornal de
Letras em 1986, refere-se a este como um
grupo iconoclasta e libertário onde se falava de tudo, até de literatura e arte, e de
rosas também. Um grupo de franco-atiradores, é verdade: um grupo de poetas,
sem dúvida. Que disparava ao acaso sobre a multidão, que inventava os seus
infernos e paraísos, que usava a liberdade de expressão ora voando ora morrendo,
desaparecendo, escrevendo às vezes. (FORTE, 1986: 20)
Essa geração, que contava com os nomes de António José Forte, Manuel de
Lima, Ernesto Sampaio, Raul Leal, João Rodrigues, Herberto Helder, Helder Macedo
e Manuel de Castro, entre outros, embora considerada um segundo momento do
Surrealismo português, diferencia-se bastante da primeira, e, apesar de apresentar
pontos de contato com alguns poetas da geração anterior, sobretudo António Maria
Lisboa e Pedro Oom, tem com Mário Cesariny, expoente maior do Surrealismo
português, uma relação bastante ambígua: por um lado, Cesariny freqüentava as
reuniões do grupo no Rossio, por outro, fazia questão de marcar a sua diferença em
relação a ele, como observa José Forte, transcrevendo as palavras do autor:
Em 1956-59 outra geração surgirá constituindo os chamados grupos do Café
Royal e do Café Gelo. Estes grupos [...] votar-se-ão mais a um abjeccionismo
conjuntural do que à proposta surrealista, e, por exaltantes que tivessem sido para
mim a adesão e a companhia, recuso continuar a experiência, algo fútil, do
primeiro grupo e a, algo trágica, do segundo. (Ibid.: 20)
Ao demarcar a sua posição, Cesariny emprega duas expressões bastante curiosas
para classificar a atividade do grupo. Por um lado, um "abjeccionismo conjuntural",
por outro, uma "experiência trágica". Fernando Martinho explica-nos que talvez
Cesariny estivesse aludindo ao suicídio de João Rodrigues e à morte ou
"autodestruição sistemática", nas palavras de Herberto Helder — de Manuel de Castro,
como também a uma atitude niilista e negativista, relacionada ao contexto político e
52
social nos finais dos anos 50 em Portugal. Sabemos que durante os dez anos que
separam as duas gerações a situação política em Portugal agravou-se
consideravelmente. Houve um endurecimento do regime ditatorial, um aumento da
repressão e várias tentativas frustradas de eleições livres.
Entretanto, António José Forte não compartilha das opiniões de Cesariny e
afirma que "a vários títulos surpreendente, no entanto, é o ponto de vista do poeta
Mário Cesariny" (Ibid.: 20). Segundo ele, os ideais dos freqüentadores do Café Gelo
repetiriam as preocupações de António Maria Lisboa e Pedro Oom, de que a poesia
não estivesse relacionada a uma finalidade puramente estética, mas sim a uma postura
ética perante a vida, ou seja, a um entendimento da atividade poética como uma forma
de conhecimento e ação, afirmando que "a verdade é que era de poesia como estilo de
vida que se tratava sobretudo" (Ibid.: 20).
A presença desses dois autores na segunda geração é tão marcante que a
pergunta de Pedro Oom "o que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um
vômito e nós seres abjectos?" foi impressa na capa do segundo mero da revista
Pirâmide, órgão difusor do grupo, que durou três números, saídos entre 1959 e 1960.
Do mesmo modo, como sublinha Fernando Martinho, uma frase de António Maria
Lisboa que servirá de epígrafe a um texto de Máximo Lisboa, também no segundo
número da Pirâmide: às palavras-actos, não às palavras que supõem actos, que me
dirijo" (MARTINHO, 1996: 84). Afirmação que se aproxima bastante da fórmula
herbertiana que pressupõe a existência de um "tremor secreto na palavra". É esse
"tremor secreto" que transforma a palavra numa "palavra-acto", fazendo com que ela
trema "na boca furiosamente enfática".
Entretanto, a postura ética diante do mundo não se restringe apenas a esses dois
autores, e o próprio Cesariny também expressou em muitos momentos as suas
preocupações em relação à situação política de Portugal, tal como constatamos no
famoso poema "You are welcome to Elsinore", presente em Edoi Lelia Doura:
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
53
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar (HELDER, 1985: 215-216)
O título do poema evoca uma passagem de Hamlet, o momento em que o
príncipe recebe e saúda uma companhia de atores peregrinos por ele contratada para
encenar a peça A Morte de Gonzago que, na verdade, sofreria algumas adaptações
destinadas a revelar o assassinato de seu pai por Claudio, seu tio. O governo tirânico
da Dinamarca seria, portanto, um equivalente da ditadura em Portugal, um outro
Elsinore, no qual as palavras "podem dar-nos morte". Esse Portugal repressivo,
castrador, a "muralha que habitamos", precisa ser combatido, e é notável que se, por
um lado, "há palavras de morte", por outro, também "há palavras de vida", donde se
conclui que o importante em relação às palavras é o uso que delas se possa fazer. Ora,
se na peça de Shakespeare são justamente as palavras o texto interpretado pelos
atores que proporcionam o surgimento da verdade, que Claudio sente-se mal
54
durante o espetáculo e ordena que as luzes sejam acesas, também o poema de Cesariny
fecha-se com uma exigência à fala: "Entre nós e as palavras, os emparedados / e entre
nós e as palavras, o nosso dever falar". E esse "dever falar" não seria um equivalente
das "palavras-actos" de António Maria Lisboa?
Assim, é preciso averiguar se o fato de a segunda geração evidenciar o desespero
e a abjeção deve ser realmente compreendido como uma atitude pessimista e niilista.
Na opinião de Fernando Martinho, o vão que separa a primeira geração da segunda
estaria relacionado à ausência de um traço de exaltação característico da atividade
poética surrealista:
Cesariny parece condenar a nova geração por, essencialmente, se definir pela
negativa, por não ser capaz de superar a conjuntura e por não saber resistir à
tentação niilista, "trágica", pondo, assim, aparentemente, de lado o que na
"proposta surrealista" haveria de exaltante com a incursão na surrealidade.
(MARTINHO, 1996: 80)
Ora, se Martinho pretende "resgatar" essa geração de uma visão niilista
procurando apontar Herberto Helder como um digno representante da atitude
"exaltante" cara ao Surrealismo, perguntamos se a ausência dessa atitude exaltante
implicaria necessariamente numa atitude niilista ou pessimista. Em outras palavras, o
"abjeccionismo conjuntural" dessa geração deve, necessariamente, ser entendido como
um sinônimo de pessimismo? Ou que outro sentido pode ter a "tragicidade" tão visível
neste grupo e que encontraria um eco até mesmo na poética "exaltante" de Herberto
Helder?
Retornemos às concepções de Pedro Oom e António Maria Lisboa, ambos
importantíssimos para os poetas do grupo Gelo. De uma certa forma, os problemas
políticos e sociais enfrentados pela primeira geração surrealista não são assim tão
diferentes daqueles enfrentados pela segunda, e, em finais dos anos 40, a crença nas
possibilidades de transformação da vida e do mundo que são os verdadeiros
objetivos do Surrealismo já estava bastante abalada pelo confronto com a realidade
política portuguesa. No ano de 1949, Mário Henrique Leiria e Pedro Oom começam a
demonstrar um ceticismo em relação ao futuro do movimento por conta das
dificuldades decorrentes da censura e da repressão. E um ano mais tarde, Mário
55
Henrique Leiria, João Artur Silva e Cruzeiro Seixas chegarão a afirmar que "em
Portugal, não é possível a existência de qualquer agrupamento ou movimento dito
surrealista, mas de que apenas poderão existir indivíduos surrealistas agindo, por
vezes, em conjunto" (TCHEN, 2001: XVIII).
Tal afirmação não põe em questão a validade da experiência poética da forma
como é pensada pelo Surrealismo, mas lança uma sombra de dúvida em relação à
possibilidade de formação de um projeto coletivo através do qual seria possível atuar
sobre a realidade e provocar a sua transformação. Tudo se passa como se, a partir de
um determinado momento, as aspirações revolucionárias fossem dando lugar a uma
realização que diz mais respeito a um ato individual do que à salvação do coletivo.
Assim é que Pedro Oom escreve, também em 1949, um texto intitulado "Carta ao
Egito", no qual formulará a sua concepção de poesia como "um meio de conhecimento
e acção de cujos frutos, bons ou maus, o poeta aproveita [...]". (CUADRADO,
1998: 369) Essa concepção de poesia será compartilhada por vários outros autores de
sua geração, dentre eles António Maria Lisboa, e antecipará também a visão poética
que associa poesia e solidão enunciada por Herbeto Helder em Photomaton & Vox:
"Ponho-me a falar da beleza mortal dos espetáculos, de certos momentos extremos que
regeneram a própria existência desde a origem. É uma coisa minha. Fala-se para estar
só, ser contra os outros, limitar a invasão do mundo [...]." (HELDER, 1995: 27)
Posição que pode também ser observada num poema de António José Forte intitulado
"O poeta em Lisboa", também escolhido para figurar na antologia Edoi Lelia Doura, e
que narra as deambulações de um poeta solitário em sua recusa às regras do mundo:
Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
[...]
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.
Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.
[...]
Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
56
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.
[...]. (HELDER, 1985: 247-248)
A poesia, assim encarada, é também uma forma de "estar só", e é nessa solidão
que o fazer poético ultrapassa o próprio texto, transformando o ato de escrita num ato
não puramente estético, mas também ético e político. Tal ato inscreverá novamente,
como em Camões, a questão da experiência dentro do âmbito literário.
É comum afirmarmos que o Surrealismo português tenha sido influenciado
pelo movimento francês. Entretanto, até que ponto esta influência se exerce de fato é
um problema que ainda pode ser analisado com bastante cuidado. Sabemos que no
decorrer do desenvolvimento do Surrealismo na França surgiram divergências que
deram origem a novas especulações no campo artístico. Uma delas foi a polêmica
travada entre André Breton e Georges Bataille. É possivel que o cerne da divergência
entre os dois nos permita compreender alguns dos desdobramentos do movimento
surrealista em Portugal.
Um dos eixos de tal polêmica está relacionado à tão desejada síntese
surrealista, referida anteriormente, que repousa no encontro de um ponto onde a
fusão dos contrários. Breton julgava que seria possível, através da experiência
artística, chegar a esse ponto, como expôs no Segundo Manifesto do Surrealismo, ao
contrário de Bataille, para quem a visão de Breton redundava num aniquilamento das
contradições que, a seu ver, são fecundas. Desse modo, como assinala Eliane Robert
Moraes:
Não seria equivocado afirmar que a conciliação dos contrários é justamente o que
Bataille recusa quando refuta toda e qualquer redução das diferenças a uma
medida comum. Para ele, como observa Christine Lala, 'a fusão é ja dissolução,
porque nela o sujeito se perde e se mantém ao mesmo tempo', num movimento
incessante que preserva 'a contradição entre as forças da vida e as forças da morte'.
Contradição essa que opera sem perspectivas de resolução: a dialética de Bataille
exclui qualquer possibilidade de um terceiro termo conciliador como a síntese
hegeliana, enfatizando tão-somente o constante fluxo entre los opostos, como
insistem diversos intérpretes. (MORAES, 2001: 197)
57
Seria, portanto, uma pura coincidência o fato de Pedro Oom, ao encarar os
maus prognósticos sobre o futuro do movimento, ter procurado uma saída para a
surrealidade que ficaria muito próxima da formulação de Bataille? Tal concepção,
chamada pelo poeta de Abjeccionismo
18
, representaria uma postura ética e estética de
não submissão em relação aos paradigmas artísticos, condenando, por exemplo, a
possibilidade de o Surrealismo vir a tornar-se uma escola. Além disso, os pontos em
comum com a polêmica entre Breton e Bataille são assinaláveis. O primeiro deles diz
respeito à conciliação dos contrários. Oom explica que Surrealismo e Abjeccionismo
têm objetivos comuns, mas que se diferenciam no entendimento sobre essa
conciliação:
[...] também se acredita numa Realidade Absoluta e o seu fim é o mesmo do
surrealismo: a transformação dos valores básicos da sociedade 'moderna', dita
civilizada, através da transformação moral e espiritual do indivíduo isolado, isto é,
considerado isoladamente como um todo e não como mera peça da colectividade.
[...] A diferença fundamental entre surrealismo e abjeccionismo, está no seguinte:
[...] cremos igualmente na existência de um outro ponto do espírito onde,
simultaneamente à resolução das antinomias se toma consciência das forças em
germe que irão criar novos antagonismos'. (TCHEN, 2001: 142)
Além disso, o Abjeccionismo basear-se-ia, como afirma o autor, na "resposta
que cada um dará à pergunta: 'que pode fazer um homem desesperado quando o ar é
um vómito e nós seres abjectos?'" (VASCONCELOS, 1966: 291). Mas não devemos
nos enganar com tal afirmação, supondo-a representativa de uma visão pessimista,
pois o autor logo se apressa em explicar que o alvo de sua proposta é a busca de uma
saída para impedir a anulação da singularidade. A compreensão que o poeta nos do
Abjeccionismo é, portanto, afirmativa, pois assegura que esta pergunta "tem também
como ponto de que, seja qual for a resposta, a 'esperança' o será aniquilada, pois
se acredita que 'c'est au fond de l'abjection que la pureté attend son heure'”
19
(Ibid.:
291). Assim, devemos entender o Abjeccionismo como uma tensão entre as forças de
destruição e de criação, tensão essa que não se encaminha para uma anulação dos
18
Pedro Oom escreve em 1949 um "Manifesto abjeccionista", que se perdeu.
19
A parte da frase escrita em francês parece ser a citação de outro autor, já que foi colocada entre aspas
pelo próprio poeta. No entanto, não foi possível verificarmos a fonte da citação. no fundo da abjeção
que a pureza aguarda a sua vez".
58
contrários, o que não significa que represente uma visão negativista ou pessimista
sobre a vida.
2.5.3
A poesia feita contra todos
Alguns anos mais tarde, no já citado artigo de António José Forte, o autor
definirá a sua geração como um grupo de "franco-atiradores [...] que disparava ao
acaso sobre a multidão", afirmação que, além de retomar uma passagem de Breton no
Segundo Manifesto do Surrealismo
20
sobre o que seria o ato surrealista mais simples,
une uma dimensão iconoclasta, violenta e criminal a uma dimensão prática, isto é,
ativa, do ato poético. Assim é que os poetas da segunda geração surrealista abraçaram
completamente a concepção de poesia como ‘destino’, como um ‘estilo de vida’,
rejeitando a finalidade puramente estética da literatura. Do mesmo modo, também
Herberto Helder, em outro texto de Photomaton & Vox explicitamente intitulado
"Action-writing", cita o poeta e ativista político LeRoi Jones: "Quero uma poesia que
mate." (HELDER, 1995: 85)
Ainda em outro texto de Photomaton & Vox, publicado primeiramente na
revista anarquista & Etc, em 1973, Herberto Helder retoma o lema de Lautréamont de
que "a poesia deve ser feita por todos, não por um" e subverte-o de uma forma
bastante curiosa. O texto intitula-se "A poesia é feita contra todos" e logo de início
dispara:
Nós respeitamos os atributos e instrumentos da criminalidade: agressão,
provocação, subversão, corrupção. Queremos conhecer, exercendo-nos dentro de
poemas, até onde estamos radicalmente contra o mundo. [...] Temos tudo o mais
contra os trabalhadores. O trabalho de uns e o capital de outros não bastam para
alugar-nos, embora estejamos usualmente disponíveis. [...]
A poesia é feita contra todos, e por um só; de cada vez, um e só. A glória seria
ajudar a morte nos outros, e não por piedade. A grandeza afere-se pelas
conveniências do mal. Aquilo que se diz da beleza é uma armadilha. Pena que não
pratiquem o pavor, todos. Seria o lucro do nosso emprego e um pequeno
contentamento para quem está com alguma pressa em agravar. (Ibid.: 160-162)
20
"O ato surrealista mais simples consiste em sair à rua empunhando revólveres e atirar a esmo, tanto
quanto for possível, contra a multidão." (BRETON, 2001, p. 155)
59
A repulsa ao trabalho é aqui afirmada, e é interessante notarmos de que forma
essa condenação aparece, no mesmo texto, associada ao mal e aos "instrumentos da
criminalidade". Se o mal se opõe ao trabalho, como aponta Bataille em A Literatura e
o Mal, é justamente na medida em que o bem, identificado a este, se configura como
uma força subordinada ao futuro, uma força de construção do amanhã que tem como
finalidade a conservação da estrutura produtiva da sociedade, na qual o indivíduo tem
de submeter-se à manutenção dos meios de produção. De acordo com Bataille, o Mal
manifesta-se na literatura como oposição a um determinado Bem, com o qual dialoga,
identificado com a lei, a moral e as forças produtivas. É diante desse Bem que o Mal
adquire um valor negativo, ou seja, ele é aquilo que vem perturbar o campo
homogêneo da funcionalidade, apesar de não o abolir, e, muito ao contrário, de
confirmá-lo. Entretanto, pelo fato de estar em oposição aos valores utilitários que
regulam as relações mundanas, a criação poética pode ser encarada como um ato
destrutivo. A visão do fazer poético associada à destruição é apontada por Ernesto
Sampaio, poeta da segunda geração surrealista, num texto entitulado "Luz central",
também presente em Edoi Lelia Doura:
Destruição que sobretudo diz respeito e sobretudo põe em perigo as normas,
os valores, as trocas sociais que criam ao homem um número, um espaço, uma
experiência própria, a meio das nossas brilhantes sociedades de produtividade.
Um acto livre põe em perigo esse armazém de estruturas, porque o seu objetivo
será a provocação, a destruição desta sociedade de limitações conforme for ou não
densa a ambiência ética que lhe deu origem e o seu conseqüente sentido
revolucionário. Por isso a definição legal que lhe dão é a de crime, e por isso
nele a luz soberana de todos os grandes crimes da história. (HELDER, 1985: 269)
Não é de surpreender que, a respeito de Ernesto Sampaio, Herberto Helder
escreva, na pequena biografia do autor em Edoi Lelia Doura, que "as reflexões
sensíveis deste autor, os seus poemas-meditações — ou como se lhes queira chamar —
são dos textos mais agudos e corajosos que entre nós se escreveram, na
modernidade, dentro da e sobre a 'experiência poética' (Ibid.: 265)". Pois Herberto
Helder é um parceiro do mesmo crime, da mesma atividade incisiva apregoada por
Ernesto Sampaio. Como afirma em "Notícia breve e regresso", de Photomaton & Vox,
60
"há uma criminalidade que me interessa" e ainda "os poemas são apenas equivalências
do crime." (HELDER, 1995: 40).
Entretanto, na poética de Herberto Helder a associação entre poema e crime
desempenha uma dinâmica bastante peculiar. O livro Photomaton & Voz apresenta
inúmeras referências ao tema, e Pedro Eiras, em sua tese de doutorado, procurou
compreendê-lo como uma ão que visa a desarticular o campo da lei, numa tentativa
de inscrever-se fora dele, o que faz com que o crime não coincida exatamente com a
transgressão. Segundo Eiras:
Photomaton & Vox pensa um crime mais exotópico em relação ao mundo
do trabalho do que a transgressão (que implica a lei). [...] O crime herbertiano é
a-jurídico: resiste ao juízo porque está no limite da dizibilidade, na
movimentação para o exterior do sistema [...], procurando a libertação do seu
próprio pensamento; é movimentação, não permanência na exotopia (toda a
permanência significaria criação de interioridade; mas o exotopos nunca se
apresenta); é, enfim, desejo de exotopia, não alcance. (EIRAS, 2005: 473)
Desejo, e não alcance, de exotopia. Aqui, algo de fundamental é dito: que a
poesia põe em cena um campo de instabilidade, no qual aquilo que o poeta enuncia
como desejo não é, necessariamente, o que é encontrado. Se na poesia de Herberto
Helder a idéia de crime ganha um lugar de destaque, é justamente porque ela encena
esse desejo através do qual se manifesta uma tensão irresolúvel entre o que é dito e o
que efetivamente é feito. Daí que o tema do crime venha acompanhado pelo da
inocência, tal como ocorre também em Photomaton & Vox: "Empunho essa arma
inocente, com ela atravesso o meu ser dúbio, o vocabulário das contradições."
(HELDER, 1995: 36) A inocência apontaria para a tentativa de situar-se fora das
contradições. Não se trata de respeitar a lei, ou de transgredi-la e ser culpado de um
crime, mas sim de realizar um crime inocente, o que, logicamente, é impossível.
A linhagem de poetas da primeira e segunda geração surrealistas aos quais
procuramos dar destaque têm em comum o fato de estarem empenhados nessa espécie
de "guerra santa"
21
, isto é, na realização de uma atividade que não é somente oposição
21
Herberto Helder refere-se à atividade poética como uma espécie de guerra santa na auto-entrevista
publicada pela revista Inimigo Rumor (2001): "O objecto que eu agito mortiferamente é uma arma
ambígua. Como se eu estivesse metido numa espécie de guerra santa: a minha inocência é assassina."
(HELDER, 2001: 192)
61
aos valores vigentes, e sim o seu questionamento, como está explícito ainda em
Photomaton & Vox: "Morre-se para que o mundo morra, e crime e culpa se dissolvam,
como se a escrita morte alheia e própria fosse uma espécie de exasperada,
misteriosa e emblemática regeneração." (Ibid.: 156)
Se, nas palavras de José Forte, "a poesia feita contra todos era a principal
atividade do grupo" (FORTE, 1986: 20), se ela está então relacionada à criminalidade,
é na medida em que se oferece como questionamento da ordem e da moral. Mas, como
observa Bataille, "esta concepção não envolve a ausência da moral, exige uma
'supermoral'" (BATAILLE, 1998: 6), o que nos permite, mais uma vez, traçar um
paralelo com a temática do crime inocente. E é no âmbito desse crime inocente que a
poesia "feita contra todos" é feita inclusive contra o próprio poeta, uma vez que ele
não pode suportar essa aspiração sem que a experiência "criminosa" se reflita também
nele próprio, sem que ele seja também arrastado em direção a esse lugar exterior em
que a permanência é impossível. Mais uma vez, citando Oom, "o poeta é um
destruidor de tudo e de si próprio" (CUADRADO, 1998: 369).
Assim, José Forte encerra o poema "Dente por dente", da seguinte forma:
Pelo meu relógio são horas de matar, de chamar o amor para a mesa dos
sanguinários.
Dente por dente: a boca no coração do sangue: escolher a tempo a nossa morte e
amá-la. (FORTE, 2003: 54)
Nessa medida, a prática literária visada por Herberto Helder não está
desvinculada de uma vertente que se caracteriza por ser sempre um pouco
"abjeccionista", e aqui não devemos entender que isso signifique uma postura
pessimista ou niilista, mas sim que a literatura põe em evidência uma experiência que
se projeta em direção ao exterior, ou seja, à morte. Tal atitude distancia o ato poético
de qualquer ensejo pacificador, uma vez que não separa vida e morte, como também
não elimina da angústia os traços de exaltação e vice-versa. A recusa da vida em um
sentido mais simplista está enunciada num poema de Manuel de Castro, em que o
autor, ao invés de lamentar-se pela sua miséria e derrota, faz da negatividade uma
potência afirmativa, deixando prevalecer a tensão entre o fracasso e a exaltação:
62
A ERC JOSAMU JOVE
Nós os intocáveis, os imundos, recusamos
nossa vida à condição comum.
Porque é intemporal a rosa que nos leva
entre o dia e a noite.
Nós os derrotados, impuros, oferecemos
nossa miséria a um significado
oculto e diferente –
asa branca na varanda
nome escrito nos telhados
estrada atravessando a terra de ninguém
Nós os últimos dos últimos coroamos
impérios e jardins (HELDER, 1985: 259)
63
3
O poliglota acrobático e o tradutor antropófago
Levando ao limite, homenagem, o gesto da
escrita, posso atribuir os meus textos a Joan
Zorro. Existimos sobre o anterior. O
movimento da escrita e da leitura exerce-se
a partir da menor mutabilidade aparente da
pedra e da maior mutabilidade da grafia. O
progresso dos textos é epigráfico. Lápide e
versão, indistintamente.
(BRANDÃO, 2006: 173)
Ao comentar o trabalho de Fiama Hasse Pais Brandão em "O texto de Joao
Zorro", Jorge Fernandes da Silveira, num ensaio intitulado "Chamada para Fiama",
toma emprestado à poeta a noção de texto epigráfico para caracterizar "a apresentação
de um conjunto de imagens, em que a vasta experiência de leitura vai da investigação
e tradução de textos antigos, clássicos, modernos e contemporâneos à versão literal e
simbólica de um ato social pela escrita." (SILVEIRA, 2006) É também desse ato de
leitura no qual "existimos sobre o anterior" que procuraremos dar conta agora,
fazendo, para isso, uma longa passagem pelas experiências de tradução que pontuam,
muito freqüentemente, os livros de Herberto Helder.
3.1
O autor como leitor
Volto minha existência derredor para. O leitor. As mãos
espalmadas. As costas
das. Mãos. Leitor: eu sou lento.
[...]
Eterno, o tempo. De uma onda maior que o nosso
tempo. O tempo leitor de um. Autor.
Ou um livro e um Deus com ondas de um mar
mais pacientes. –
Ondas do que um leitor devagar.
(HELDER, 2004: 128-131)
64
Os versos acima foram retirados do poema "Para o leitor ler de/vagar", de Lugar.
De certa forma, não obedecemos à recomendação de Herberto Helder, que a nossa
pressa nos fez recortar os primeiros e os últimos versos do poema, causando um
acidente de trânsito, um atropelamento. Entretanto, se o leitor, com muita freqüência,
"de vagar", flanando pelas palavras, deixando-se encantar pela música, esse outro
que é o leitor-autor raramente "devagar", pois sua atividade não exclui o recorte,
aflitivo e necessário, que o ato de escrita determina em relação ao acervo das outras
vozes que compõem o passado; recorte que configura, justamente, a passagem da
posição de leitor para a de autor. E é essa passagem que, como veremos, ocorre
também no gesto de tradução, já que o tradutor é, ao mesmo tempo, leitor e autor.
O livro Doze nós numa corda, publicado em 1997, traz como epígrafe uma frase
de Henri Michaux: “Saisir: traduire. Et tout est traduction à tout niveau, en toute
direction”. Tal enunciado parece sugerir que toda e qualquer operação de apreensão de
um determinado objeto é uma espécie de tradução desse mesmo objeto,
independentemente da forma em que tal apreensão se dá. Assim, a mera percepção de
um objeto pode ser vista como uma tradução, que as cores e formas do mesmo são
traduzidas para a imagem mental que é produzida a partir dele. Como afirma Henri
Meschonnic, "puisqu'on reconnaît que tout est système de signes, passage d'un
système à un autre, [...] le passage constant d'un code à autre pouvait, avec ou sans
métaphore, se dire traduction.
22
" (MESCHONNIC, 1978: 192) Isso significa que a
tradução pode ser compreendida em diversos níveis, que chamaremos aqui, ainda
segundo Meschonnic, de tradução no sentido amplo e de tradução no sentido restrito.
A tradução no sentido amplo seria aquela que compreende toda e qualquer
passagem de um sistema de signos a outro. Dizemos passagem, mas já pensando numa
palavra mais apropriada que seria, talvez, leitura. Leitura por implicar uma espécie de
decodificação da mensagem, que pode ser, por exemplo, a transformação do mundo
das coisas num mundo de palavras. Nesse sentido, a própria linguagem é sempre
tradução. Daí que Octavio Paz no livro Convergências afirme também: "Nenhum texto
22
Uma vez que se reconheça que tudo é sistema de signos, passagem de um sistema a outro, [...] a
passagem constante de um código a outro poderia, com ou sem metáfora, ser chamada tradução. (tradução
nossa)
65
é inteiramente original, porque a própria linguagem, na sua essência, é uma
tradução: primeiro, do mundo não-verbal e, depois, porque cada signo e cada frase
traduzem outro signo e outra frase." (PAZ, 1991: 150) A afirmação de Paz explicita
não apenas a passagem das coisas às palavras, como também aponta para a relação
intertextual que os discursos mantém entre si. o sentido restrito do termo tradução é
aquele que se aplica à tradução entre línguas, isto é, à passagem de um "enunciado
emitido numa determinada ngua (língua-fonte) para o equivalente em outra língua
(língua-alvo)." (HOUAISS, 2001)
Entretanto, o termo tradução responde por uma infinidade de situações que não
podem ser facilmente enquadradas, de modo que somos obrigados a repensar o que é a
tradução quando diferentes casos são analisados mais de perto. Citemos, por exemplo,
a leitura e revisitação de uma obra literária realizada por outro escritor. A este respeito,
Silviano Santiago, no ensaio “Eça, autor de Madame Bovary”, cita o exemplo de
Manuel Bandeira, que traduziu um poema de Bocage e outro de Castro Alves para a
linguagem da vanguarda brasileira. Santiago não deixa de frisar que o termo traduzir é
do próprio Bandeira e ilustra o caso com o seguinte comentário do autor: "'O Adeus de
Teresa', o poema de Castro Alves, se afasta tanto do original que a espíritos menos
avisados parecerá criação". (SANTIAGO, 1978: 50) A tradução, no caso de Bandeira,
não se enquadra na idéia de verter o original para outra língua, que ambos os textos
estão escritos em português, além disso, antecipa algumas questões que serão
trabalhadas aqui, entre elas, a possibilidade de tornar a tradução algo semelhante à
criação. Como se dá, portanto, essa transformação que o autor chamou de tradução?
Vejamos o poema de Castro Alves e a "tradução" de Bandeira:
O ADEUS DE TERESA
A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus...
E amamos juntos... E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala...
E ela, corando, murmurou-me: "Adeus."
Uma noite... entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
66
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...
E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"
Passaram tempos... séc'los de delírio
Prazeres divinais... gozos do Empíreo...
Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse – "Voltarei!... descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me: "Adeus!"
Quando voltei... era o palácio em festa!...
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...
E ela arquejando murmurou-me: "Adeus!"
(ALVES, 1975: 56-56)
TERESA
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
(BANDEIRA, 1993: 136)
O que Bandeira chama de tradução não é, portanto, a passagem de um idioma a
outro, uma vez que, como foi dito, ambos os poemas foram escritos em português.
Tampouco diríamos que o que caracteriza a tradução é a manutenção de uma
determinada forma, pois a estrutura dos dois poemas não poderia ser mais
dessemelhante. Em última análise, a tradução aqui se afirma, de fato, como um
gesto de leitura, gesto esse que atualiza e subverte o poema original. O que significa
que ao mesmo tempo em que o poema de Bandeira mantém um vínculo com o de
67
Castro Alves, também se afasta dele de forma radical; essa ponte, que é ao mesmo
tempo proximidade e distância, nada mais é do que a leitura.
Outro exemplo conhecido e absolutamente oposto ao de Bandeira é o célebre
conto de Borges, “Pierre Menard, autor do Quixote”, que tem sido convocado
repetidas vezes para servir como paradigma do papel do leitor. Narra a história de um
autor francês, Pierre Menard, que resolve, no século XX, reescrever o livro de
Cervantes, linha por linha, palavra por palavra. O surpreendente, entretanto, é que
Menard não pretendia fazer uma simples cópia do livro, mas sim escrevê-lo como se
fosse o próprio Cervantes a fazê-lo. Obviamente malogrado, o projeto não deixa de
evidenciar, como observa Silviano Santiago, que o Quixote que lemos hoje é o de
Menard, aquele que nos é dado através das leituras que dele fazemos, leituras essas
que proporcionam a sobrevivência da obra e a tornam contemporânea. Assim, é a
partir da leitura de Menard – e de sua decisão de reescrevê-lo – que o livro de
Cervantes adquire um novo significado no presente. E a obra também não é mais a
mesma, que a sua inserção na atualidade produz um texto que, paradoxalmente, é o
mesmo, sendo outro. É o que Menard explica a respeito de seu projeto numa carta
citada pelo narrador do conto, passagem em que fica claro que reescrever o Quixote
não significa, de modo algum, escrever o mesmo Quixote:
Compor o Quixote no início do século dezessete era uma empresa razoável,
necessária, quem sabe fatal; nos princípios do vinte, é quase impossível. Não
transcorreram em vão trezentos anos, carregados de complexíssimos fatos. Entre
eles, para citar apenas um: o próprio Quixote.” (BORGES, 1989: 35)
Diferentemente de Bandeira embora tendo em comum com o poeta
modernista o fato de "traduzir" um texto cuja língua de partida é a mesma da língua de
chegada –, Menard produz um texto idêntico ao original, e a surpresa vem de esta
identidade apontar para uma diferença; diferença que se faz notar através do hiato
temporal que separa as duas obras. O que significa que lemos a partir de um olhar
que reflete a nossa própria época e a de nossos contemporâneos, e nunca com o olhar
do passado, ainda que a nossa leitura venha impregnada por tudo aquilo que havia
sido dito antes de nós.
68
Herberto Helder, em Ouolof, outro livro inteiramente dedicado à tradução e
também de 1997, publica um poema de Emilio Villa, poeta italiano que viveu no
Brasil, chamado "Carta para Ruggero Jacobi". Tal fato não causaria nenhum espanto
se o autor não confessasse que este estava escrito em português. Tamanho é, talvez,
o absurdo de tal empreitada, que Herberto sente a necessidade de escrever um pequeno
texto como introdução ao poema. E pergunta: “Porque introduzo eu, neste livro de
poemas originariamente escritos noutras línguas (ou que me foram acessíveis em
línguas que freqüento) e mudados para português, um poema a que não mudei nada?”
(HELDER, 1997b: 77). A explicação que se segue não é menos desconcertante. Diz o
autor que o poema foi encontrado por ele em 1964 e publicado numa revista. E
acrescenta:
Tendo sido a primeira parte do meu trabalho encontrar o poema e publicá-lo
com inocência, em 1964, achei-me capaz, mais de três décadas depois, de executar
a segunda parte, e essa parte era libertina. Era fazer como se tivesse traduzido o
poema, como se o tivesse mudado para português e para mim – e este “mim” é um
idioma, suponho, ou pretendo –, era enfim deixar-me atravessar pela fortíssima
gramática poética portuguesa de Villa, e dar o poema por “traduzido”. (Ibid.: 77)
O projeto de tradução para o português de um poema escrito em português
muito se assemelha ao projeto de Pierre Menard, que ambos apontam para uma
relação bastante inusitada entre o modelo e seu decalque: estes são absolutamente
idênticos. O Quixote de Menard é absolutamente idêntico ao original, assim como a
tradução de Herberto é também idêntica ao seu modelo. Não deixa de ser
surpreendente que a identidade absoluta entre modelo e cópia apresente características
semelhantes às da tradução em sentido restrito a tradução entre línguas em que a
identidade não ocorre. Se tomarmos, pois, a definição de Sebastião Uchoa Leite para a
tradução, veremos que ela aponta, em qualquer dos casos, para um paradoxo – também
identificado por Clément Rosset em O real e seu duplo que evidencia a presença do
duplo que emerge a partir do ato de tradução, seja ele idêntico ou não ao original, e
que o poeta compara ao que chama de paradoxo do ator: “Tal como o ator é outro
sendo ele mesmo, o tradutor cria um duplo do texto que é outro e tem de ser o mesmo.
É o paradoxo da tradução, dividida entre ser criação e ser interpretação.” (LEITE,
1995: 9)
69
Vemos, aqui, a aparição de um duplo especular que carrega em si uma
dimensão tanto de estranhamento como de reconhecimento. Idéia que muito se
aproxima do estranho em Freud, o unheimlich: "o estranho é aquela categoria do
assustador que remete ao que é conhecido [...] e muito familiar." (FREUD, 1976:
277) Não é de se admirar, portanto, que Freud atribua ao fênomeno do duplo uma das
causas do sentimento de estranheza, o que faz com que ele se aprofunde na
investigação acerca desse fenômeno. Retomando alguns estudos de Otto Rank, Freud
afirmará que a duplicação pode aparecer relacionada a uma tentativa de negar o poder
da morte, concluindo que o duplo que é uma espécie de "defesa contra a extinção"
(Ibid.: 293), ou seja, uma estratégia de permanência do eu.
Voltando agora à tradução, Walter Benjamin, no ensaio “A tarefa do tradutor”,
revela que toda tradução propicia ao original uma sobrevida que comporta também sua
mutação e renovação. Portanto, no caso do poema de Emilio Villa e do Quixote de
Menard, talvez o menos importante seja o fato de haver uma total coincidência entre o
original e o decalque. Na verdade, tanto a tradução de Herberto quanto a reescrita do
livro de Cervantes representam a produção de um duplo que é um outro do mesmo, ou,
para dizer de forma mais simples, uma leitura do original, que assegura a sua
permanência. É isso o que Santiago afirma a respeito do Quixote de Menard:
A acomodação da obra na História e o seu naufrágio no catálogo podem
ser anulados por um crítico que a torne presente, contemporânea, – ou seja,
transforme-a em prisioneira do próprio contexto histórico do crítico. Se a obra é a
mesma (em qualquer século que é lida), é apenas o nome de seu segundo autor
(isto é, do crítico) que lhe impinge um nome e original significado. (SANTIAGO,
1978: 50)
Entretanto, se nos dois casos o gesto de leitura preserva a obra do
esquecimento, tornando-a atual, não deixa de ser assinalável que o projeto de Menard
difira do de Herberto quanto ao seu objetivo inicial. Se Menard desejava escrever o
Quixote tal como se fosse o próprio Cervantes a fazê-lo, o que tal empreendimento
revela é a impossibilidade do projeto. Daí que, ao comparar ambas as obras, o narrador
do conto comente: “Vívido também é o contraste dos estilos. O estilo arcaizante de
Menard no fundo estrangeiro padece de alguma afetação. Não assim o do
70
precursor, que com desenfado maneja o espanhol corrente de sua época.” (BORGES,
1989: 37)
no caso do poema de Emilio Villa presente em Ouolof, o que Herberto deseja
é justamente aquilo que torna impossível o projeto de Menard: a modificação que a
leitura da obra produz tanto sobre ela própria quanto sobre aquele que a lê. Assim, do
mesmo modo que é possível observar uma diferença de estilos entre os dois Quixotes,
diferença essa indesejada por Menard, o visado por Herberto Helder é, sobretudo, a
possibilidade de fazer emergir essa diferença, isto é, um novo estilo. E é isso o que
caracteriza, a seu ver, uma atitude libertina. Fundamental, nesse ponto, é o modo como
o poeta se expressa para explicar o que vem a ser a tal atitude libertina, que repetirei
aqui: “Era fazer como se tivesse traduzido o poema, como se o tivesse mudado para
português e para mim – e este “mim” é um idioma, suponho, ou pretendo –, era enfim
deixar-me atravessar pela fortíssima gramática poética portuguesa de Villa, e dar o
poema por traduzido.” (HELDER, 1997b: 77) Devemos lembrar que a "fortíssima
gramática de Villa" provém do fato de ele não ser português, e sim italiano, o que faz
com que o seu poema traga as marcas de sua língua natal, resultando num
"portuliano", a exemplo do nosso famoso "portunhol". E são essas marcas
testemunhas da presença do italiano inscrito sobre o português que criam, na visão
de Herberto Helder, uma "gramática poética" inesperada, como se observa nos versos
seguintes:
aqui olha, amigo, olha e recea: que è o falar? alveja
o embrulho de sopros, de sopros queimados, meio ovo
de ar enxuto: os obeliscos de fedores fosseis da loucura
moderna evaporam assim, sobre os leões do orvalho: e voa
o rabo da pó: e então que è
o falar? as atitudes sociais,
a imortalidade syndacal,
que são? que è o falar?
(Ibid.: 79)
Voltando ao comentário de Herberto Helder, verificamos que a inclusão do
poema no livro de traduções ilustra a ligação entre a libertinagem e a construção de um
idioma poético. Devemos assinalar, de início, o fato de o mim, ao qual Herberto se
71
refere, ser um idioma. Ora, se o poeta cita lado a lado a língua portuguesa e um mim, é
porque esse mim é algo semelhante à língua portuguesa, um idioma, só que um idioma
particular, como se fosse um dialeto falado por um único indivíduo. Entretanto, o
idioma não é algo que o indivíduo escolhe e possui, ao contrário, é possuído por ele;
mas é também por ser um idioma que ele poderá modificar-se através dessa outra
gramática, tal como fica claro na segunda parte da frase. Quando o poeta se deixa
atravessar pela “fortíssima gramática poética portuguesa de Villa”, ele se transforma a
partir do contato com o outro, ou, para seguir os passos do autor, o idioma que ele é
adquire características do idioma com o qual entra em contato.
Portanto, o ato de libertinagem apontado por Herberto revela-se no fato de dar
por traduzido um poema que se encontrava em português, ao mesmo tempo em que
o idioma que é o poeta deixa-se transformar a partir do encontro com o "estrangeiro",
configurando um contato íntimo, "libertino", entre os dois idiomas. A libertinagem,
nesse caso, evidencia um ato de mão dupla, que aponta tanto para a possibilidade de
mudar quanto também para a de ser mudado através da tradução. Além disso, é
notável que nessa promiscuidade de idiomas de fato uma contaminação, que o
português poético de Villa o é o português oficial, assim como o idioma poético de
Herberto também não o é. E parece ser essa a idéia quando continua a justificar a
inclusão do poema de Villa no livro em questão:
O acto traduz, sim, alguns pontos do que considero ser tradução de poesia.
Traduz porventura o ponto extremo: pensemos no ponto de onde arranca o traçado
de uma circunferência: esse é também o ponto de conclusão da circunferência. E
dito assim, não consigo saber o que implica: se implica inocência ou
libertinagem. Sei que constitui, ou institui, um acto extremo. Quanto a inocência e
libertinagem, talvez neste caso signifiquem o mesmo. (Ibid.: 78)
O ponto de onde arranca o traçado de uma circunferência e que é também o seu
ponto de conclusão encontra uma equivalência com o ato de traduzir, já que faz
coincidir o início com o fim, o original com a cópia. Entretanto, se na tradução do
poema de Villa original e cópia se confundem, tal confusão não se deve apenas ao fato
de ambos serem realmente idênticos, e sim a uma peculiaridade inerente a toda
tradução de poesia, como ressalta Herberto. A tradução de poesia e,
72
acrescentaremos, não de poesia implicará necessariamente a produção de um
duplo, que assinala, por sua vez, tanto a alteração da língua de partida quanto a
interferência provocada por esta na língua de chegada. Como afirma João Barrento,
inspirado, provavelmente, pelo estudo de Freud sobre o unheimlich:
O duplo [...] é uma estratégia de sobrevivência do Eu [...], um alter ego que
desmente (embora contraditoriamente, porque a tradução é sempre renascimento e
morte apagamento do original do Eu pelo Outro, do Eu no Outro) a
impossibilidade da tradução, e traz para (= tra-duz) ou introduz na língua de
chegada (a língua portuguesa) algo da outra língua e literatura/cultura melhor
dizendo, transporta idiossincrasias literárias e culturais alheias in medio linguae,
através da própria língua; marcas que, de acordo com factores e vicissitudes
histórico-literários e sociológicos diversos, podem passar, em maior ou menor
grau, para o corpo vivo da língua e da literatura de chegada. (BARRENTO, 2002:
80)
De fato, uma das motivações que conduzem Herberto a dedicar-se às traduções
é a possibilidade de transportar algo de outra “língua e literatura/cultura” para a língua
e literatura/cultura portuguesa. Nesse sentido, não é de se estranhar que ele se dedique
largamente à tradução de poemas pertencentes às culturas primitivas e até extintas,
que estas podem, mais do que as européias, provocar modificações na língua de
chegada. Entretanto, seria errôneo pensar que a língua de chegada é totalmente
permeável à recepção da língua estrangeira; ela tem as suas próprias idiossincrasias,
oferece resistências. De certa forma, quando Herberto Helder se refere ao “idioma”
que ele é, o que está em jogo é justamente a presença de uma fala individual que é
tributária da história da língua à qual pertence, o que significa que nascemos em
débito para com ela, falamos sendo devedores de algo que nos antecede e nos
constitui. E por isso a tradução surge como um ato libertário para o poeta, pois a
presença da língua estrangeira permite que ele se descole um pouco da sua própria,
permitindo-lhe encontrar o seu idioma. É a essa herança lingüística que João Barrento
chamará, muito propriamente, de uma terceira voz:
Vista deste modo, a realidade do poema em tradução [...] não corresponde apenas,
nem a um texto-outro tornado próprio, nem a um texto próprio inscrito sobre o
outro, mas a uma terceira coisa: nessa nova realidade textual fala uma terceira
voz, que eu definiria, de momento, como a memória (múltipla, estratificada) da
73
minha língua e da sua tradição poética, ou o meu inconsciente delas [...] (Ibid.:
110)
A terceira voz é, portanto, uma espécie de atrito entre as línguas, aquilo que
não permite que haja uma pura passagem entre elas, evidenciando uma espessura. Essa
espessura é também a matéria que produz o corpo daquele que fala, ou seja, é a própria
linguagem que engendra o sujeito. Nesse sentido, o poeta é aquele que precisa libertar-
se da sua própria língua, que associamos anteriormente ao corpo da mãe, mesmo
sabendo que essa liberdade é apenas parcial e que o ato de libertação não fará outra
coisa além de assinalar a dívida para com ela. Escrever é ter a consciência de que se é
tributário desse corpo outro, de modo que a separação será ainda uma forma de
aliança. Assim, é na medida em que o poeta busca um idioma que ele se torna capaz de
realizar o seu próprio parto.
3.2
As afinidades eletivas
Para o enxugamento de minhas frases,
utilizarei obrigatoriamente o método natural,
retroagindo até os selvagens, para que eles
me dêem lições. (LAUTRÉAMONT, 2005:
250)
A escolha de Lautréamont como epígrafe não é de forma alguma gratuita. Não
se trata da busca de precursores para uma poesia que vê na crueldade e na violência os
meios de realização do fazer poético, pois, mais do que isso, procuraremos aqui
distinguir uma espécie de "família" de poetas que elevou a metamorfose a uma
potência de agir, potência essa que se manifesta no corpo e na relação com a
linguagem, como veremos mais adiante. Não são poucas as ressonâncias entre
Herberto Helder e Lautréamont e é assinalável o fato de o segundo ser conhecido por
ter produzido seus textos a partir de obras alheias, que transcrevia e adulterava. A tal
ponto chegou a prática de apropriação de textos alheios pelo poeta dos Cantos de
Maldoror que Claudio Willer, no ensaio que apresenta o poeta na edição brasileira de
suas obras, chega a afirmar que "a utilização de outros autores é de tamanha variedade
74
que fez muitos estudos e edições comentadas não chegarem a lugar nenhum,
perdendo-se nas zonas cinzentas onde não é possível identificar o que é apropriação
proposital, coincidência, ou repetição de chavões e convenções." (WILLER, 2005: 33)
Além disso, Lautréamont é também o grande cantor das metamorfoses,
encenadas nos Cantos de Maldoror como manifestações de uma potência da
agressividade que conduz ao devir, à abertura de conexões com o exterior; ou de um
aumento do desejo de viver, como observa Bachelard em seu estudo sobre o poeta. A
metamorfose, neste último, assim como em Herberto Helder, corresponde sempre a
uma elevação da potência de vida.
Enveredando ainda mais por essa busca de conexões, devemos assinalar que o
próprio Herberto Helder, ao contrário do que afirma quando diz que "a poesia é feita
contra todos", considera a existência de um trabalho em conjunto que é a escrita, como
se pode ver na referência explícita a Rimbaud presente em Photomaton & Vox: "[...]
ele é nosso irmão de sangue conotando-se sangue como raça espiritual; mestre e
discípulo de um certo destino comum." (HELDER, 1995: 62)
(grifo nosso). E esse
destino comum é justamente a poesia, a possibilidade de criação de uma nova língua.
Daí que o poeta das Iluminações apareça também no poema I de "Exercício corporal",
no qual Helder evoca os "terríveis trabalhadores rimbaldianos"
23
, em alusão a uma
passagem das "Lettres du voyant", na qual Rimbaud assinala que a tarefa poética é um
trabalho incessante, realizado por inúmeros trabalhadores, ou seja, os poetas, que se
sucedem uns aos outros movidos pelo tal "destino comum": "Que exploda [o poeta]
em seu salto por entre as coisas inauditas e inomináveis: outros horríveis trabalhadores
virão, e começarão pelos horizontes em que o outro se perdeu". (RIMBAUD, 2006:
159) O que significa que a poesia não é, nem nunca será, obra de um poeta só, mas um
23
No poema de Helder, a criação também desemboca num espaço ilimitado de trevas: "Há
aqui uma história de mãos. Trata-se dos terríveis trabalhadores rimbaldianos que trabalham o pesadelo.
Têm o primeiro dia de sua criação, e nele colocam uma negra rosa de ferro. Têm o segundo dia, e há a
explosão de um minério obscuro, ainda que ardente [...]. E então, porque o tempo de expor o exemplo
inquietante não se pode esgotar, os horríveis trabalhadores inventam o oitavo dia, que é como que a
eternidade. O espírito de Deus não se move sobre as águas. Este oitavo dia da criação é um espaço
ilimitado de trevas onde um pássaro voraz abre as asas inesgotáveis. E então a gente sabe que a alegria e
a beleza são coisas dolorosas." (HELDER, 1973: 153)
75
trabalho em conjunto, infinito, que desemboca, necessariamente, na produção de um
horizonte do desconhecido.
Assim, não nos interessa uma busca de influências que se encaminhe no
sentido de uma evolução ou de uma continuidade linear entre Herberto Helder e os
autores com os quais dialoga. Ao contrário, nossa procura ordena-se por um traçado de
afinidades, por relações em forma de rede, que nunca são unidirecionais, nunca são
totalmente objetivas. Pois devemos lembrar que um texto nunca parte "do nada", não é
uma ruptura radical e absoluta com a tradição, como foi dito anteriormente. Um
texto é um entrelaçamento de discursos, uma malha, um tecido múltiplo formado por
outras vozes e por outros textos, como tão bem mostraram Julia Kristeva e Roland
Barthes. O termo intertextualidade, cunhado por Julia Kristeva, teve como objetivo
esclarecer um aspecto do dialogismo bakhtiniano, elucidando a dívida existente entre
um enunciado e todos aqueles que o antecedem e sucedem.
Assim, como observa Fernando Afonso de Almeida (ALMEIDA, 2002: 96), se
todo texto é marcado por uma intertextualidade constitutiva e não necessariamente
explícita, certos textos apontam para uma intertextualidade particular, que caracteriza
a citação, a paródia, a resenha e a tradução. Por isso mesmo, se um determinado poeta
opta pela citação direta, pela referência explícita a outros escritores e até mesmo por
uma prática tradutória, estas escolhas tornam-se "pistas" bastante importantes para a
identificação de sua poética, pois o ato de evidenciar, para o leitor, esses pequenos nós
na trama do tecido textual é indicativo de um seu desejo de estabelecer afinidades com
outros autores. É claro que somente com o olhar do leitor – olhar, por sua vez,
comprometido com um desejo que lhe é próprio essas afinidades poderão ser
explicitadas.
Não se trata, portanto, de remontar às origens e influências sofridas pela obra,
mas sim de um ato de conexão com outras forças, de escolhas a serem realizadas, de
aliados a serem encontrados. Tal visão sobre essas práticas está explicitada num artigo
de João Barrento publicado na revista Relâmpago, em que o autor afirma que as
práticas intertextuais e transculturais de Herberto Helder põem "em prática um
conceito de poesia em que o produtor (autor) é essencialmente um leitor: agora [...]
escrever é ler (outros, 'outrando-os' em português)." (BARRENTO, 2005: 15) E ainda,
76
segundo Barrento, é justamente esse ato que permite o estabelecimento de um "sistema
universal de vozes comunicantes". (Ibid.: 16)
Acreditamos que decorre daí o interesse de Herberto Helder por trabalhos de
tradução.
24
As traduções estão presentes desde o início de sua obra. Seu primeiro
trabalho é a publicação de O bebedor noturno, em 1966, que reúne traduções de
poemas do antigo Egito, do Velho Testamento, poemas maias, astecas, esquimós e
indochineses, entre outros. Posteriormente, em 1988, aparece novo livro de traduções
intitulado As magias, que mistura traduções de poemas africanos e indígenas com
poemas de D. H. Lawrence, Robert Duncan e Henri Michaux. Em 1997 publica mais
três livros inteiramente compostos de traduções: Ouolof, Poemas ameríndios e Doze
nós numa corda. É interessante notarmos que os títulos de 1966 e 1988 são
inicialmente chamados "versões", ao passo que os três últimos recebem o adendo de
"poemas mudados para português", que posteriormente foi também adotado para os
livros de 1966 e 1988.
Este capítulo concentrar-se-á na temática da tradução, tomando como base
alguns dos autores escolhidos por Helder. Faremos uma reflexão acerca da atividade
do tradutor na medida em que ela não é vista como um mero exercício de transposição
ou de representação, visando, a partir do texto original, a produzir um outro texto que
seria em tudo semelhante e fiel ao primeiro. A tradução, tal como tentaremos
compreendê-la, não opera através de um mecanismo destinado a produzir semelhanças
no nível do significado, mas escava um abismo a partir do qual as línguas revelam o
seu parentesco e as suas diferenças. Acreditamos, também, que a prática tradutória
pode nos esclarecer a respeito da poética de Herberto Helder, que será pensada
como um alargamento e uma deformação da língua do tradutor, prática essa que é
24
Os livros de tradução de Herberto Helder em geral não apresentam os poemas em sua língua original. As
exceções são apenas o poema "Traduction", de Henri Michaux, apresentado também em francês, e o poema
"Israfel", de Poe, apresentado em sua versão original em inglês e nas traduções de Mallarmé e Artaud.
Ambos estão no livro Doze nós numa corda. Além disso, Herberto Helder, na maioria das vezes, não nos
explica como foram realizadas as suas traduções, isto é, não sabemos se foram ou não adaptadas de outras
traduções existentes. Provavelmente sim, que estamos lidando, em muitos casos, com poemas maias,
astecas, indochineses, etc. Outra exceção encontra-se na tradução do poema "A criação da lua", dos índios
caxinauás, ao qual o poeta português acrescentou um prefácio explicativo, dizendo que de início adaptara
uma versão francesa de P.-L. Duchartre e, posteriormente, seguindo uma indicação de Duchartre,
consultara o texto original recolhido e transcrito por João Capistrano de Abreu. Tal prática explicativa não
aparece em outros momentos nos trabalhos de tradução de Herberto Helder.
77
visada em seus poemas. Nesse sentido, não podemos deixar de mencionar aqui o
pequeno poema de Fiama Hasse Paes Brandão, poema emblemático para pensarmos a
tradução que seu título justamente evoca
25
, ou a (con)fusão entre as línguas como
uma prática deformadora e violadora da língua natal:
Renunciar ao idioma que aprendi
há longos anos, o meu inglês natal.
Agora o uso que eu poderia dar à minha língua
é o mesmo que daria a uma harpa ou viola
sem as cordas.
Ou como se um hábil instrumento esventrado
estivesse em mãos de quem não soubesse dar-lhe
o toque subtil
que dá o tom à harmonia.
(BRANDÃO, 2006: 435)
A desarmonia apontada no poema, isto é, o mau uso do instrumento não deve, de
forma alguma, ser visto como um defeito do instrumentista, ainda que ele faça uma má
utilização da harpa ou da viola. Pois talvez a sua forma desarmônica de tocar seja o
que melhor caracterize o seu estilo. Daí que a equivalência entre tradução e criação
nos leve a pensar em que consiste o idioma poético, esse idioma sempre um pouco
desarmônico, que também sugere uma utilização das palavras. Tal inquietação vai
ao encontro de algumas idéias de Walter Benjamin enunciadas no ensaio "A tarefa do
tradutor", no qual o autor utiliza, curiosamente, a figura do tradutor, e não a do poeta,
para desenvolver uma reflexão acerca da linguagem da poesia, como se pode ver em
algumas perguntas formuladas logo no início do texto: "Mais que 'dit' une oeuvre
littéraire?" e "Mais ce que contient un poème hors de la communication [...] n'est-il pas
universellement tenu pour l'insaisissable, le mystérieux, le 'poétique'?"
26
(BENJAMIN,
1971: 261-262). O caminho escolhido por Benjamin é, portanto, o de analisar a "tarefa
do tradutor" e os impasses enfrentados por ele para pensar, de fato, a poesia, o que
leva João Camillo Penna a afirmar que o ensaio de Benjamin na verdade uma
25
O título do poema é "Tradução".
26
Mas o que diz uma obra literária? Mas o que um poema contém que não se reduz à comunicação não é
universalmente conhecido como o inapreensível, o misterioso, o poético?
78
poética" (PENNA, 2004: 362). E é também por essa trilha, que costura poesia e
tradução, que caminharemos daqui em diante.
* * *
A atividade de tradução corre o risco de ser encarada como uma tentativa
nostálgica e malsucedida de transposição fiel de uma fala original para um idioma
estrangeiro, o que, nesse caso, apontaria para um ato reprodutor. Assim, Susana Lages,
no livro Walter Benjamin: tradução e melancolia, demonstra que a tarefa do tradutor
pode aparecer associada ao sentimento da melancolia, uma vez que é impossível
recuperar, de modo pleno, o que está dito no texto original. O tradutor convive,
necessariamente, com uma incompletude. Entretanto, essa não é a visão de Herberto
Helder sobre a tradução. O autor denomina suas obras, produzidas a partir de poemas
escritos em outra língua, de "poemas mudados para o português" e explica a sua
atividade, num texto que serve de introdução a O bebedor noturno:
Quanto a mim, não sei línguas. Trata-se da minha vantagem. [...] O meu prazer é
assim: deambulatório, ao acaso, por súbito amor, projectivo. Não tenho o direito
de garantir que esses textos são traduções. Diria: são explosões velozmente
laboriosas. [...] A regra de ouro é: liberdade. E pede-se desenvoltamente ao leitor:
que leia aqueles poemas o mais livremente que puder. (HELDER, 1995: 71)
Estamos, portanto, dentro de uma visão bastante diferente da melancólica, uma
vez que não está preocupada com a reprodução fiel do texto original. O modo
herbertiano de encarar a tradução é uma espécie de resposta à antiga premissa, falsa,
diga-se de passagem, que Rosemary Arrojos denuncia, de que o texto original possa
ser controlado e decodificado, de forma a revelar o seu significado "correto" e
intocado. O que Arrojos procura então deslindar é que qualquer transferência de
materiais perecíveis de um meio a outro "certamente envolve riscos e a perda de
propriedades essenciais." (ARROJOS, 1993: 135). Ainda sobre a questão da
fidelidade, Henri Meschonnic observa que sob uma aparência respeitável
acompanhada pela modéstia que pressupõe o apagamento do tradutor com o objetivo
79
de dar transparência ao original –, a fidelidade é como uma máscara que esconde a
obscuridade. E pergunta:
Fidelité de qui? Fidelité à quoi? Prétendument au texte à traduire. [...]
L'effacement du traducteur n'a qu'une visée: donner l'impression que la traduction
n'est pas une traduction, donner l'illusion du naturel. Quitte à effacer toutes les
particularités qui appartiennent à un autre mode de signifier, effacer les distances,
de temps, de langue, de culture. (MESCHONNIC, 1999: 26)
27
Nada mais distante do que foi dito a respeito da apresentação e inclusão do
poema de Emilio Villa no livro de Herberto Helder. Pois, como apontamos, o visado e
desejado naquele ato era justamente a "promiscuidade" contra a qual a noção de
fidelidade ao original pretende lutar. Se mesmo a cópia exata de um texto, tal como o
projeto de Pierre Menard realiza, já aponta para uma distância entre os dois – distância
essa que não pode ser suprimida o que dizer da tradução, onde a diferença entre
textos torna-se ainda mais gritante. E Herberto tem plena consciência disso, uma vez
que utiliza a imagem irônica de um "poliglota acrobático" para falar do tipo de
tradutor que deseja apagar-se diante do texto: "Já me aconteceu imaginar a vida
acrobática e centrífuga de um poliglota. Suponho o seu dia a dia animado por um
ininterrupto movimento de deslocações, transmutações, permutas e exaltantes caçadas
de equivalências, sob o signo da afinidade. (HELDER, 1995: 71)
De modo que, ao se deixar contaminar e impregnar pelo outro, no mesmo gesto
em que o outro também se altera através do contato, Herberto Helder equipara a
tradução à operação que é realizada na própria criação poética. Como afirma Susana
Lages, essa outra forma de compreender a atividade tradutora é
uma tendência que defende uma maior consciência, por parte do tradutor e de
todos os que tomam a tradução como objeto de estudo, dessa violência inevitável,
necessária, enfim, simultaneamente vital e mortal, que é o móvel de todo trabalho
de tradução preocupado com seu próprio fundamento histórico e ontológico,
como manifestação de uma escrita que não esconde a duplicidade de sua autoria.
(sublinhados da autora) (LAGES, 2002: 82)
27
Fidelidade de quem? Fidelidade a quê? Supostamente ao texto a ser traduzido. [...] O
apagamento do tradutor tem apenas um objetivo: dar a impressão de que a tradução não é uma tradução,
causar uma ilusão de naturalidade. Com o risco de apagar todas as particularidades de um outro modo
de significar, apagar as distâncias de tempo, de língua, de cultura. (tradução nossa)
80
Para Helder, assim como para Haroldo de Campos, por exemplo, a atividade de
tradução é uma transcriação
28
, uma autonomização do novo texto produzido. O grupo
dos poetas concretos empreende uma junção do conceito de antropofagia à concepção
poética de tradução que pretendem propor. Assim, a violência apontada por Susana
Lages, constitutiva dessa atividade, deve ser entendida como uma força de apropriação
e de destruição exercida sobre o material a ser traduzido, ou seja, a relevância do
processo de tradução não está mais na transposição fiel do texto, mas sim numa
espécie de canibalismo que é, ao mesmo tempo, a destruição e a assimilação do texto
primeiro, assim como é também a destruição e a transformação daquele que o assimila.
Podemos, portanto, traçar uma linha que faz com que todos esses pontos que
vimos apontando se comuniquem para dar uma idéia concreta da poética de Herberto
Helder. A relação estabelecida pelo autor com os textos da tradição, assim como a sua
atividade de tradução são marcas de uma concepção de poesia que visa a atuação sobre
o corpo textual, podendo ou não se manifestar sobre a forma de outros textos
existentes, mas que incide, necessariamente, sobre a linguagem. Dal Farra afirmara
que a "vocação tradutora" herbertiana pertence a uma "linhagem canibalística e
antropofágica". (DAL FARRA, 2000: 152) O canibalismo apontado é um ato de
crueldade exercido sobre a linguagem, mas de uma crueldade que é, ao mesmo tempo,
afetuosa.
As práticas de intertextualidade e tradução apresentam afinidades que foram
apontadas por Leyla Perrone Moisés no ensaio "Literatura comparada, intertexto e
antropofagia":
A Antropofagia é antes de tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade
para o alheio, desembocando na devoração e na absorção da alteridade. A
devoração proposta por Oswald, [...] é uma devoração crítica, que está bem clara
na metáfora da Antropofagia. Os índios, ponto de partida dessa metáfora, não
devoravam qualquer um de qualquer modo. Os candidatos à devoração, antes de
serem ingeridos, tinham de dar provas de determinadas qualidades, que os
índios acreditavam adquirir as qualidades do devorado. (PERRONE-MOISÉS,
1990: 95)
28
Transcriação é o termo utilizado por Haroldo de Campos para enunciar sua teoria e prática da tradução.
A esse respeito confira-se "A poética da tradução" em A arte no horizonte do provável.
81
Cumpre-nos, portanto, averiguar quem são esses "candidatos" à devoração de
Herberto Helder, quais são as suas qualidades, tendo em vista que a eleição desses
autores é uma marca de afirmação e de fortalecimento da sua poética, levando-nos a
uma iluminação recíproca entre devorador e devorados.
3.3
A contaminação
A verdade é a reposição permanente dos
enigmas. Porque não unidade. Mas
enquanto se fez o esforço das inquirições
manteve-se um central: a energia das
hipóteses, a sua força propulsora, os mitos
da verdade. (HELDER, 1995: 137)
Como apontamos anteriormente, muitas das traduções de Herberto Helder
vêm das culturas ditas "primitivas", tais como os poemas indígenas provenientes dos
maias, astecas, quíchuas, navajos e caxinauás, entre outros. O interesse do autor por
esse tipo de tradução tem dado margem à afirmação de uma postura que chamaremos
aqui de nostálgica, na qual se buscaria uma língua originária, anterior a Babel, em que
as palavras não estariam divorciadas das coisas. Assim, o ato de traduzir tais poemas
seria uma forma de reencontrar um poder nomeador característico da linguagem
mágica dos povos primitivos – que teria sido perdido com o desenvolvimento da nossa
sociedade e cultura. De acordo com esse ponto de vista, a confusão de línguas que se
instalou após Babel aponta para um esvaziamento da capacidade criadora, como se
agora vivêssemos numa espécie de decadência, expostos a uma perda inelutável que a
poesia se esforçaria por redimir. Entretanto, tentaremos compreender o interesse de
Herberto Helder pelos poemas indígenas através de uma reflexão que vai um pouco
além da pura nostalgia de uma linguagem simbólica, capaz de restaurar a mítica
unidade primordial do mundo, leitura realizada por António Ramos Rosa, entre outros,
como já apontara Pedro Eiras. (EIRAS, 2005: 379)
82
Para isso, tomaremos como base algumas reflexões de Benjamin no referido
ensaio "A tarefa do tradutor". Lembremos que o texto foi escrito para servir de
prefácio à tradução por ele realizada dos "Quadros parisienses", de Baudelaire. Se
voltarmos às perguntas que citamos anteriormente, com as quais Benjamin introduz
o tema de seu ensaio, veremos que ele parte do pressuposto de que o essencial numa
obra literária não é a comunicação. Se a tradução de uma obra literária tiver por
objetivo a comunicação, acabará deixando de fora, necessariamente, o que nela de
mais importante, chamado por ele de poético. Ao rechaçar a comunicação, Benjamin
afirma que a relação entre original e tradução não está apoiada numa idéia de cópia, e
que a tradução seria impossível caso se fundamentasse num princípio de semelhança.
A atividade de tradução revela o caráter fragmentário da linguagem, que as
línguas se diferenciam entre si ao mesmo tempo em que são aparentadas. Pois "[...] les
langues ne sont pas étrangères l'une à l'autre, mais, [...] sont apparentées l'une à l'autre
en ce qu'elles veulent dire."
29
(BENJAMIN, 1971: 264) E esse parentesco não
repousa, segundo ele, numa relação de semelhança, mas numa intenção que seria
comum a todas elas. As línguas revelam sua afinidade justamente por terem um
objetivo comum, que não podem atingir isoladamente, mas apenas no todo que
formariam em sua relação de complementaridade. E essa totalidade que elas
formariam através de uma intenção comum é o que Benjamin chamou de língua pura,
identificada, aparentemente, com uma língua sagrada note-se a correlação com as
linguagens primitivas –, anterior a Babel. Entretanto, o ato de tradução, apesar de
apontar para ela, revela que essa língua pura não pode nunca ser atingida, daí
Benjamin ter escolhido a palavra Aufgabe para dar conta do trabalho do tradutor,
palavra que tem o duplo significado de tarefa e renúncia.
Nesse ponto, podemos nos aproximar novamente do texto de Herberto Helder
que serve como introdução a O bebedor nocturno, no qual expõe a atividade do
poliglota: "Vive das significações suspensas, da fascinação dos sons que convergem e
divergem e nele decerto um desespero surdo, pois que na desunião dos idiomas
busca a unidade improvável. Multiplicando as operações de propiciação da unidade,
ele caminha irradiantemente para a dispersão" (HELDER, 1995: 71). Descrição,
29
"[...] as línguas não são estranhas umas às outras, mas [...] aparentadas quanto ao que querem dizer. [...]".
83
segundo acreditamos, que caracteriza exemplarmente a "tarefa malograda" do tradutor,
já que na busca da unidade ele encontra a dispersão. Aqui, não deixaremos de assinalar
que o encontro falhado é um dos temas desta tese.
Katia Muricy, em sua leitura sobre o ensaio de Benjamin, conclui, portanto, que
"a tradução não é comunicação de sentido mas tarefa e renúncia de complementação
das línguas singulares na ngua superior." (MURICY, 1999: 116) O parentesco entre
as línguas define uma relação de complementaridade e suplementaridade entre elas.
Para exemplificar o caráter de tal relação, Benjamin utiliza a metáfora dos cacos de um
vaso, que são distintos entre si, mas que, em seu conjunto, apontam para uma
totalidade que é o próprio vaso, comparado à língua pura: "[...] ainsi, de même que les
débris deviennent reconnaissables comme fragments d'une même amphore, original e
traductions deviennent reconnaissables comme fragments d'un langage plus grand."
30
(BENJAMIN, 1971: 271) Se essa totalidade é visada através da tradução, ela
entretanto seria possível num futuro sempre diferido e nunca alcançado. Portanto, o
caráter de malogro, de fracasso de tal atividade não pode deixar de ser notado. Como
afirma ainda Katia Muricy, a tradução
conduz o original para a esfera superior dessa ngua pura, na qual ele não pode
permanecer, mas para a qual aponta como que para o 'reino prometido e interdito
de reconciliação e cumprimento das línguas'. Isto que, no original, assinala uma
língua superior é o que resiste a qualquer tradução, o núcleo intocável, não
traduzível do original, a que se chama habitualmente de o 'poético', que obriga o
tradutor a também poetizar, criar. (MURICY, 1999: 112)
Também para Herberto Helder o poético é algo de muito diferente daquilo que
pode ser comunicado através da linguagem. Daí que o principal na tradução não seja a
busca de equivalências entre a língua de partida e a língua de chegada, como se
constata no texto citado que é a introdução a O bebedor nocturno, em que o poeta
descreve de forma extraordinária a atividade do tradutor poliglota: "Faz [o poliglota]
disparates destes: verte de nauatle para esquimó, emocionando-se em banto e
pensando em chinês, um texto que o interessou por qualquer ressonância árabe.
30
"assim, do mesmo modo que os cacos são reconhecíveis como fragmentos de um mesmo vaso, o original
e a tradução são reconhecíveis como fragmentos de uma linguagem maior." (tradução nossa)
84
Também pega na palavra 'cravo' e tradu-la para quinze línguas. O cravo é cada vez
menos cravo. É uma colorida e abstracta proliferação sonora." (HELDER, 1995: 71)
Ora, se o poético é justamente aquilo que não pode ser traduzido, que escapa à
transposição de uma língua a outra por não ser da ordem do sentido, mais uma vez o
prefácio de Herberto Helder parece afinado às idéias de Benjamin, dessa vez opondo o
seu trabalho ao do poliglota acrobático: "O meu labor consiste em fazer com que eu
próprio ajuste cada vez mais ao meu gosto pessoal o clima geral do poema
português: a temperatura da imagem, a velocidade do ritmo, a saturação atmosférica
do vocábulo, a pressão do adjectivo sobre o substantivo." (Ibid.: 72) Observemos as
palavras do poeta: "temperatura", "velocidade", "saturação", "pressão". Nada mais
distante do campo do significado e da comunicação.
Além disso, para Benjamin, a tradução é um processo dinâmico, pois ao
mesmo tempo em que aponta para a permanência e a sobrevida do original,
compreende também a sua mutação, sua transformação. O gesto do tradutor, ao
atravessar a diferença entre as línguas, modifica tanto o original quanto a própria
língua na qual o texto é traduzido. O ato de tradução produz, portanto, a emergência de
algo novo no seio do presente, algo que remete a uma anterioridade, o texto original,
mas uma anterioridade que não está situada fora da história, e por isso também é
modificada pelo próprio gesto de traduzir. O que significa que não podemos ler um
poema asteca como se fôssemos astecas a fazê-lo; nosso olhar carrega consigo um
princípio deformador inerente a nossa época; impasse anteriormente apontado no
projeto fracassado de Pierre Menard. A temporalidade, tal como a entende Benjamin,
não é a de um tempo homogêneo que se desenvolve numa sucessão cronológica, mas
de um tempo formado por rupturas que destroem a linearidade da história; tempo
pontuado por instantes carregados de singularidade, tal como Benjamin anunciara na
tese XIV das "teses sobre o conceito de história", que traz, muito significativamente, a
epígrafe "A origem é o fim", de Karl Kraus (LÖWY, 2005: 119). Nessa tese, como
observa Löwy, Benjamin descortina uma relação com o passado que não se apóia na
idéia de um regresso, e sim de uma "citação revolucionária". (Ibid.: 120)
Didi-Huberman, no livro O que vemos, o que nos olha, ao pensar o caráter
diáletico de uma obra de arte, formulará essa irrupção do novo como uma atividade
85
semelhante à escavação. Um objeto, ao ser descoberto através de uma escavação,
altera tanto o presente em que surge como também o solo do passado. Assim, o objeto
não emerge do passado numa espécie de "pureza" que faria dele algo totalmente
desvinculado do momento atual, ele não pode ser apartado da história que provocou a
sua irrupção. Ao emergir na atualidade, ele é portador de um potencial de
contaminação, que em um único gesto modifica tanto o presente quanto o passado.
Se estamos aqui pensando a tradução como equivalente à própria poesia, isto é,
se estendermos essas reflexões ao gesto instaurador que é a prática poética no que ela
tem de semelhante à tradução, parece-nos bastante plausível que este ato não seja
compreendido como uma tentativa de recuo a um passado a-histórico, como a busca de
uma origem situada fora do tempo, num momento primeiro em que haveria uma
aliança entre a linguagem e as coisas. É certo que o ato poético deseja ser um ato
instaurador, mas devemos entender essa instauração como o modo de funcionamento
de uma potência desagregadora do presente, e não como o retorno nostálgico a uma
origem perdida no passado; o ato poético é algo da ordem de um acontecimento. É a
essa especificidade da obra de arte (e aqui a estamos pensando como palavra poética)
que Didi-Huberman se refere, designando-a como uma imagem dialética: "Então
compreendemos que a imagem dialética como concreção nova, interpenetração
crítica do passado e do presente, sintoma da memória – é exatamente aquilo que
produz a história. De uma só vez, portanto, ela se torna a origem [...]." (DIDI-
HUBERMAN, 1998: 177)
Seguindo o pensamento de Didi-Huberman, poderíamos dizer que o ato poético
não busca regressar a uma origem – ou, ainda que busque, tal projeto se revela
impossível, falhado –, ele é a própria origem, o que o inscreve numa história, na
medida em que é a partir dele que se constitui uma nova temporalidade. A origem
pode aparecer, portanto, como o horizonte ao qual os gestos de traduzir e escrever
estão voltados, mas indica a impossibilidade de atingi-lo. É nesse sentido que as
imagens poéticas funcionam como traços dotados de uma força originária, lugar em
que algo começa. Herberto Helder, no "Texto 2" de Antropofagias, assinala essa
potência originária da palavra poética:
86
[...] 'escrita e escritura' desenvolvidas pelo silêncio
que as não ameaça mas de si as libera como uma
borboleta ávida uma dona do espaço
visível proprietária da luz e sua extensão
'sinal' daquilo que se abriu por sua energia mesma
e nenhum arrepio de horror sequer um 'transe'
fere o flanco oferecido ao mundo
apenas um 'nascimento' o ritmo trabalhado noutro e trabalhando
outro ritmo como a malha das artérias
um mapa uma flor quentíssima em fundo de atmosfera
(HELDER, 2004: 276)
A escrita relaciona-se a um "sinal", algo como a marca de um "nascimento", que no
poema toma a forma de uma operação semelhante ao traçado de um "mapa"; operação
que também propicia a diferenciação entre a "flor quentíssima" e o "fundo de atmosfera".
Escrita que carrega em si uma força de distinção, uma "energia" a partir da qual o poema
se apresenta, separando-se do "silêncio". A construção do poema não tem como objetivo
o retorno a uma origem, ao contrário, é a origem das coisas, a apresentação de uma força:
"visível proprietária da luz e sua extensão", pois é através da escrita que um outro mundo
se dá a ver. Lembremos que a metáfora da escrita como "proprietária da luz" foi utilizada
também em outro texto de Herberto Helder, desta vez em Photomaton & Vox: "A respeito
da poesia pode ainda dizer-se: A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada. E
também à volta." (HELDER, 1995: 143)
Voltando à atividade de escavação, a diferença entre as línguas permite que a
pensemos em outro sentido ainda. Esse outro sentido está anunciado também em "A
tarefa do tradutor", quando, no final do texto, Benjamin cita Pannwitz, que censurava
o tipo de tradução realizada pelos alemães, acreditando que essa atividade deveria
provocar um alargamento da língua do tradutor o que faria com que esta se tornasse
uma língua estranha –, e não ser uma tentativa de tornar mais familiar a língua
estrangeira:
Nos versions, même les meilleurs, partent d'un faux principe, elles veulent
germaniser le sanscrit, le grec, l'anglais, au lieu de sanscritiser, d'helléniser,
d'angliciser l'allemand. Elles ont beaucoup plus de respect pour les usages de leur
propre langue que pour l'esprit de l'oeuvre étrangère. [...] L'erreur fondamentale
du traducteur est de conserver l'état contingent de sa propre langue au lieu de la
soumettre à la motion violente de la langue étrangère. Surtout lorsqu'il traduit
d'une langue très éloigné, il lui faut remonter aux éléments ultimes du langage
87
même, se rejoignent mot, image, son; il lui faut élargir et approfondir sa
propre langue grâce à la langue étrangère [...].
31
(BENJAMIN, 1971: 274)
Contra a procura aflitiva de um componente familiar, o tradutor deve se entregar
aos efeitos de um agente estrangeiro. Essa tarefa resultará, portanto, em alargar e
ampliar a sua própria língua, escavar em seu interior um oco de sentido, esvaziá-la de
sua lógica, libertá-la de sua ordenação sintática, ainda que tal deformação não
signifique uma eliminação completa das regras. Tal forma de entender a tarefa do
tradutor vai, mais uma vez, ao encontro das práticas de Herberto Helder.
No livro Ouolof, Helder escreve uma nota a respeito de sua tradução de um
poema dos índios Caxinauás chamado "A criação da lua", na qual assinala o
alargamento da língua portuguesa através do atrito com a língua estrangeira: "Do
descentramento de estrutura entre as duas línguas – captado como legitimidade poética
advém por si só uma força expressiva instantânea em português, um português
desarrumado, errado, libertado, regenerado, recriado. A fala anima-se com uma
energia material jubilante. É novíssima." (HELDER, 1997b: 44) Mais uma vez, o que
está em questão na atividade de tradução, tal como a entende Herberto Helder, não é a
busca de uma semelhança entre as línguas no campo do significado, e sim a
possibilidade de deformação que ela pode representar para a língua do tradutor. É
claro, contudo, que essa tarefa envolve uma tensão, pois por mais que o poeta vise a
deformação da sua própria língua, ela sempre permanece como uma base sobre a qual
a língua nova se inscreve, ou então corre o risco de desembocar no silêncio, como
Benjamin já expressara.
Lembremos, aqui, as famosas "traduções monstruosas" de Sóflocles realizadas
por Hölderlin e citadas por Benjamin também em "A tarefa do tradutor". A tradução
monstruosa é aquela que, em prol da literalidade, da materialidade da linguagem,
baniu uma relação que repousaria sobre o critério da semelhança entre as línguas, uma
31
Mesmo as nossas melhores versões partem de um falso princípio, elas querem germanizar o sânscrito, o
grego, o inglês, em vez de sanscritizar, helenizar, anglicizar o alemão. Elas demonstram muito mais
respeito por sua própria língua do que pelo espírito da obra estrangeira. O erro fundamental do tradutor é o
de conservar o estado contingente de sua própria língua em vez de submetê-la ao ritmo violento da língua
estrangeira. Sobretudo quando se traduz de uma língua muito afastada, é preciso remontar aos elementos
fundamentais da própria linguagem, lá onde se encontram palavra, imagem, som; é preciso alargar e
aprofundar sua própria língua em função da língua estrangeira. (tradução nossa)
88
relação de representação entre o modelo e a cópia. Ao contrário, a tradução
monstruosa evidencia que a partir da relação entre o original e o texto traduzido
produz-se um esburacamento na língua do tradutor, tornando-a deformada,
monstruosa. A deformação da língua é o ponto visado por Herberto Helder ao traduzir,
por exemplo, o poema "A criação da lua":
A lua quando se deitou: lua deitada está,
fazei não! de lobonauá a cabeça deitada, fazei!
Àqueles ensinou, acabou, seus fios pôs na boca, em cima
se pendurou, foi. Céu
dentro entrou, seus olhos arrancou, estrelas
fez, sua cabeça lua se tornou, de seu sangue
arco-íris
fez. [...] (HELDER, 1997b: 51)
O interesse de Herberto Helder pelas culturas primitivas, tal como se vê na
tradução do poema dos caxinauás, tem sido interpretado como um desejo de retorno a
um mundo ancestral, não contaminado pela civilização. A título de exemplo, citemos
uma passagem do livro de Maria Lucia Dal Farra, A alquimia da linguagem, no qual a
ensaísta relaciona o substrato mítico dos poemas de Herberto Helder a um mundo
primitivo, caracterizado por uma espécie de natureza pura, selvagem:
O substrato mítico de A colher na boca reaparece em O bebedor nocturno na
eleição dos textos a serem vertidos. Os poemas descortinam um mundo ancestral
e primitivo, livre de contaminações ideológicas, que se colocou ao resguardo da
acção devoradora do capitalismo. Do mesmo modo que o livro citado, eles
conservam as relações iniciais do homem com a natureza. (DAL FARRA, 1986:
157)
Entretanto, acreditamos que o desejo desse encontro nostálgico não é o que
motiva a poética do autor; o ato poético não deve ser entendido como uma oposição
entre a cultura moderna ocidental e a natureza primitiva, onde haveria uma valorização
da segunda em detrimento da primeira. De fato, contestar o capitalismo não significa
retornar à natureza, o que nos leva a entender a oposição entre natureza e cultura como
uma falsa oposição, pois é de dentro da nossa própria cultura que a "natureza" dos
povos primitivos pode surgir como algo exterior e contrário a ela. Seguiremos, aqui,
para o estudo da tradução e da poética de Herberto Helder, o pensamento de Silvina
89
Rodrigues Lopes no livro intitulado A inocência do devir: "Mostrar-se-á ao longo
deste texto que a importância em HH de elementos como o sangue e a terra, que em
certas circunstâncias foram palavras-chave de uma sacralização da natureza na sua
vertente mais despótica, não decorre de qualquer processo territorializante, mas pelo
contrário, de uma figuração do desejo como força de desenraizamento." E continua:
"O que se verá é que no poema o nome 'Natureza' é um nome impróprio [...] de onde
decorre que 'sangue' ou 'terra' façam sentido a partir de um pensamento do não-
limite entre natureza e cultura." (LOPES, 2003: 11)
Não se trata de um olhar melancólico sobre o passado que leria o mundo
ancestral como um lugar de pureza e plenitude passível de ser recuperado através da
poesia, ao passo que o mundo moderno seria totalmente empobrecido e esvaziado pela
técnica. De modo que se uma "contaminação", como afirmou Dal Farra, ela o
pode ser tomada como sinônimo da corrupção do mundo primitivo e mítico pelo
mundo moderno. Parece-nos que aquilo que Helder efetivamente procura é a
possibilidade de deformação deste mundo mesmo através do contato com a alteridade,
culminando num alargamento da linguagem e na destruição de sua lógica. Ainda na
nota sobre a tradução do poema dos caxinauás, Helder escreve: "Temos diante de nós
uma poderosa dicção mítica, mágica, lírica, transgredindo em todas as frentes a
norma da palavra portuguesa. Este transtorno faz-se ele mesmo e imediatamente
substância e acção poéticas." (HELDER, 1997b: 44) (sublinhados nossos)
Ao trazer para a poesia esse substrato mítico, Herberto Helder não procurará
reviver os mitos ou voltar-se para eles como se empreendesse uma busca arquetípica,
mas colocar-se numa posição em que se a contaminação do novo pelo antigo, e
vice-versa. Esse seria, para Didi-Huberman, o modo de lidar com o passado que
caracteriza a arte moderna: "Quando uma obra consegue reconhecer o elemento mítico
e memorativo do qual procede para ultrapassá-lo, quando consegue reconhecer o
elemento presente do qual participa para ultrapassá-lo, então ela se torna uma
'imagem autêntica' no sentido de Benjamin." (DIDI-HUBERMAN, 1998: 193)
A "imagem autêntica" a que Didi-Huberman se refere é, portanto, aquela que nos
faz reconvocar o passado, não para retornarmos a ele, e sim para que o reconfiguremos
no presente, alterando, num mesmo gesto, tanto um quanto o outro. Seria esse,
90
provavelmente, o sentido da transgressão que Herberto aponta em relação à "norma da
palavra portuguesa", transgressão essa que tem como objetivo modificar o substrato da
língua "o elemento presente do qual [o poeta] participa" –, identificando-se com a
"acção poética".
3.4
Os solitários
A verdade dissiparia o erro, se o
encontrasse. Mas existe um tipo de erro
que arruína de antemão todo o poder de
encontro. Errar é provavelmente isto: ir
ao desencontro. (BLANCHOT, 2001:
65)
enfatizamos a posição conflituosa de Herberto Helder em relação ao
Surrealismo, em geral, e a Breton, em particular. A postura crítica revelada pelo poeta
parece repousar, principalmente, nas normas e diretrizes que caracterizaram e
caracterizam toda e qualquer arte dita programática, como fica claro no trecho que se
segue, quando o poeta português expressa a sua opinião em relação a Breton:
Bem, prestou alguns serviços involuntários. Artaud apoiou-se na disciplina do
regimento para desertar num salto louco; algumas referências surrealistas foram
úteis, à distância, para Michaux. Tudo enriquece a originalidade dos espíritos
originais. Artaud e Michaux agarraram em duas ou três colheradas da mixórdia e
foram com elas, prepararam o seu festim mirífico: não nada nas iguarias deles
que saiba a rancho. (HELDER, 2001b: 194)
Ao utilizar-se de uma metáfora militar para falar dos preceitos surrealistas, "a
disciplina do regimento", Herberto demonstra o quanto considera nociva à arte a
existência de "doutrinas" a serem seguidas, sobretudo quando essas doutrinas são
provenientes de uma determinada figura que as dita, como foi o caso de Breton. O que
permanece digno de nota é o fato de alguns dos dissidentes do Surrealismo francês
os citados Artaud e Michaux serem justamente poetas escolhidos para a devoração
tradutória, sendo que o próprio Herberto Helder, como mostramos, iniciou o seu
91
percurso ligado ao Surrealismo português, do qual posteriormente se afastou
32
. Daí
podermos falar numa rede composta por poetas órfãos, isto é, poetas que parecem
trilhar um caminho solitário, separando-se dos outros. E não deixa de ser curioso, e
irônico até, que o traçado de afinidades seja uma característica tipicamente surrealista,
como se observa numa passagem do Segundo manifesto, de Breton: "Mas vede de que
admirável e perversa infiltração se mostrou capaz um pequeno número de obras
inteiramente modernas, das quais o mínimo que se pode dizer é que nelas reina uma
atmosfera particularmente insalubre: Baudelaire, Rimbaud [...], Huysmans,
Lautréamont, para restringir-me à poesia." (BRETON, 2001: 183). O que significa
que toda exclusão aponta também para uma filiação, de modo que a orfandade desses
poetas não deixa de constituir uma espécie de genealogia.
3.4.1
Henri Michaux: a língua dos decapitados
Leia-se agora tudo num idioma cada vez
mais estrangeiro e, de súbito, nas
palavras onde sempre se nasce sempre.
(HELDER, 1973: 140)
A citação de Michaux na obra de Herberto Helder se , pela primeira vez, em
As magias, com a tradução do poema "Iniji". Mas é nos três últimos livros que sua
presença se torna mais concreta. Em primeiro lugar, pelo fato de dois deles conterem
epígrafes de Michaux. Uma delas, retirada de versos do poema "Télégramme de
Dakar", intitulará um dos livros. A epígrafe em questão é: "On parle à des decapités /
les decapités répondent en 'ouolof'". Trata-se do livro chamado Ouolof, palavra que
designa uma língua falada no Senegal; mas seria apenas isso? Deixemos essa pergunta
em suspenso. A mesma epígrafe repete-se em Doze nós numa corda livro que
também tem o seu título retirado da tradução de um poema de Michaux
acompanhada ainda por duas outras, sendo a primeira delas a citada: "Saisir:
32
Lembremos que também Bataille, outro "excluído" do Surrealismo francês, encontra-se diretamente
referido por Helder em Photomaton & Vox (HELDER, 1995: 172)
92
traduire. Et tout est traduction à tout niveau, en toute direction." e a outra: "Le mal,
c'est le rythme des autres.".
Temos, portanto, um material bastante variado a partir do qual estabeleceremos
algumas relações entre os dois. Lembremos que Michaux é o poeta mais traduzido por
Helder e, no que diz respeito às afinidades entre ambos, apontaremos, sem maiores
dificuldades, a importância concedida às viagens e aos processos metamórficos, bem
como a investigação sobre a linguagem, que terminará por conduzi-los,
necessariamente, a um estranhamento da própria língua.
3.4.1.1
O desaparecimento
Em 1932, durante uma estadia em Cantão, Henri Michaux escreve ao seu amigo
e editor Jacques Fourcade: "Ne comprends plus français."
33
(BELLOUR e TRAN,
1998: 21) Essa frase, bastante estranha para um escritor belga, não poderia ser mais
elucidativa em relação à sua poética. Pois, como veremos, Michaux escreve para se
expatriar, para fazer estremecer os vínculos, para desestruturar a sua própria língua.
Por isso mesmo, para Michaux, a viagem ocupa um lugar central, seja ela uma viagem
real ou imaginária. O poeta viaja pela Ásia, pela África e América do Sul. Em 1927
está no Equador, quatro anos depois vai para a Índia, China e Japão e escreve
narrativas das viagens reais, Ecuador (1929), Un barbare en Asie (1933) ou descreve
sociedades imaginárias: Le voyage en grande Garabagne (1936), Au pays de la magie
(1941), Ici, Poddema (1946). Além disso, com o passar dos anos, as viagens
imaginárias adquirem uma tonalidade mais interior, como é o caso dos livros que
foram escritos sob o uso de drogas alucinógenas, como a mescalina, por exemplo, em
experiências controladas por um médico amigo. A partir dessas experiências o autor
escreveu os livros Connaissance par les gouffres (1961) e Misérable miracle (1972).
Devemos lembrar que também Herberto Helder viajou por vários países e que o livro
Os passos em volta (1963) traz alguns contos que se desenvolvem em cenários da
Holanda, Bélgica e França, entre outros, que serão brevemente referidos aqui.
33
Não compreendo mais francês.
93
apontamos os inúmeros países visitados por Michaux, mas o que cumpre
sublinhar é que o poeta não se identifica à figura tradicional do viajante, como bem
observa Jean Roudaut num ensaio publicado na revista Magazine Littéraire e
intitulado "En marge du voyage", em que ele compara o viajante convencional, que a
todo instante procura detalhar e classificar aquilo que vê, com o viajante que é
Michaux, que aceita o estranho na sua estranheza, não correndo o risco de reduzir o
desconhecido ao conhecido.
Do mesmo modo, se o poeta se interessa pelas culturas primitivas, seu olhar não
envereda jamais pelo viés do exotismo lembremos que no livro Un barbare en Asie
o bárbaro é o próprio escritor – nem é tampouco uma exaltação desses povos o que ele
pretende fazer. Seu interesse maior é conduzir o pensamento até um ponto limite em
que o sujeito caminha para a perda da identidade e em que a experiência de
conhecimento irá fundar-se na relação com o nada. Assim, um dos pontos principais
de Ecuador é o contato com o vazio, vazio do deserto de água que o autor atravessa, o
Atlântico, sobre o qual ele parece estar cem anos e que lhe propicia uma
experiência do nada: “On aura parcouru quatre mille milles et on n'aura rien vu. Un
peu de houle, une grosse houle, des embruns, quelques vagues qui déferlent, des
paquets d'eau à l'avant, une tempête même et quelques poissons volants; en un mot:
rien! rien!"
34
(MICHAUX, 1989: 17). Vazio que também o constitui desde o interior,
como se observa no poema “Je suis trué
35
”, de Ecuador, e traduzido por Herberto
Helder no livro Doze s numa corda. Observe-se que o poema apresenta o lugar de
produção do sujeito na forma de um impasse, impasse esse que decorre do papel
desempenhado pelo vazio, "uma coluna ausente", mas que ainda assim é alguma coisa.
Por isso, "se ele desaparece [...] é ainda pior":
Sopra um vento terrível.
Há apenas um pequeno buraco no meu peito,
Mas sopra um vento terrível.
[..]
E não passa de um vento, um vazio.
Por causa deste vazio, malditos sejam toda a terra, toda
34
"Percorremos quatro mil milhas e não vimos nada. Algumas ondulações, uma grande onda, gotículas de
água, algumas vagas que quebram, uma massa de água na proa, uma tempestade e alguns peixes voadores;
numa palavra: nada! nada!” (tradução nossa)
35
"Nasci esburacado" (tradução nossa)
94
a civilização, todos os seres à
superfície de todos os planetas!
[...]
E é isto a minha vida, a minha vida inspirada pelo vazio.
Se ele desaparece, este vazio, procuro-me, aflijo-me e é
ainda pior.
Erigi-me numa coluna ausente.
[...] (HELDER, 1997a: 79/80)
No conto “Holanda”, do livro de Herberto Helder intitulado Os passos em
volta, há também um poeta “sentado na Holanda”, que medita na sua solidão, em meio
às vacas, e imagina uma viagem pelas cidades e campos. Mas o campo de Herberto,
assim como o Atlântico de Michaux, constitui uma peregrinação pelo deserto, lugar
em que se perdem as referências e, com elas, a identidade, o nome. Entretanto, se em
Michaux o nada é inerente ao sujeito, em Herberto Helder parece, num primeiro
momento, que é algo que vem do exterior, dos lugares com os quais o poeta se depara.
Assim, ele erra na superfície labiríntica do mundo e experimenta os tormentos de não
decodificar aquilo que vê:
E sempre assim, sempre: cidades inexplicáveis no meio da terra ou prados
imensos onde se tem medo. Prados para vacas, não para um poeta di-la-ce-ra-do
por uma tormentosa inocência.
Já não escreve poemas nem pergunta às pessoas o seu nome. Ele próprio, visto
estar destinado à inteira perdição, vai perdendo seu nome pelo país adiante. Agora
vigia a paz devoradora dos animais, as coisas, a imobilidade. Vou partir
imagina. As cidades ardem, os campos enlouquecem. Um poeta tem de partir,
repartir, repartir-se. Um poeta deve ser uno. O inferno não o deixa. Às vezes
lamenta-se: Sinto-me como se tivesse percorrido o deserto; não sei nada.
(HELDER, 2005: 16)
Aqui, a escrita revela também uma dimensão de rateio, explicitada na distância
que se abre entre o que o poeta precisa ser e o que ele é de fato: "Um poeta deve ser
uno. O inferno não o deixa." Nessa região desértica que é a da própria escrita escrita
da viagem que retoma um lugar bastante português, o lugar de Camões, poeta que se
funda e sucumbe na viagem, como assinalamos –, a poesia assemelha-se a um
chamado do exterior, o canto das sereias, como pensa Blanchot, que conduz os
navegantes ao abismo de uma voz inumana, estranha aos ouvidos mortais, "canto do
abismo que, uma vez ouvido, abria em cada fala uma voragem e convidava fortemente
95
a nela desaparecer". (BLANCHOT, 2005: 4) E se o poeta sucumbe, de fato, ao "canto
das sereias" "não escreve poemas", o que significa que se ele continua a escrever é
porque, de alguma forma, renunciou, pelo menos em parte, a esse chamado do
exterior, um pouco como Ulisses, que se utiliza de um ardil para poder ouvir o canto e
sobreviver a ele. E, mais uma vez, Michaux nos testemunho dessa tendência ao
desaparecimento em Ecuador, no meio de seu percurso, quando afirma: "Peu me
sépare de l'extérieur. Je suis presque dehors."
36
(MICHAUX, 1968: 64)
3.4.1.2
O encontro falhado
O desaparecimento do poeta, ou a perda de seu nome, não pode ser lido,
entretanto, como a realização de um ato efetivo. E, por isso mesmo, Michaux se refere
à passagem para o exterior como um "quase": "estou quase fora". O poeta não perde
totalmente o nome, ele se condenado a uma meia vida, a uma existência espectral.
Esse quase é justamente o ponto nodal que assinala a tensão entre o eu e a alteridade, a
dimensão paradoxal na qual o sujeito se vê dividido entre o reconhecimento e o
estranhamento.
Por outro lado, se na viagem de Michaux nada acontece é porque o que ela põe
em jogo é a potência do nada, da espera de uma coisa que na verdade não ocorre, ou
seja, a passagem e o impasse que ela, a viagem, constitui e que tem na escrita sua
verdadeira realização. Por isso não devemos nos espantar se a viagem, para o poeta,
aparece sob o signo da decepção, de um encontro falhado ou faltoso, pois não nada
a encontrar, nenhuma promessa de felicidade ou de êxito que viria a realizar-se, mas
apenas um percurso a cumprir. O mesmo ocorre com Herberto Helder. No conto
"Como se vai a Singapura", o narrador nos descreve seu encontro com um alemão
numa cervejaria. Depois de amaldiçoar o Ocidente, o alemão declara "que é preciso ir
para Singapura" (HELDER, 2005: 88) o Oriente em seu lugar-comum exótico e
romântico –, e oferece ao amigo o contato de um tal Max Hughes, em Amsterdam,
capaz de embarcá-lo para essa cidade "inimaginável". O narrador sonha então com "as
36
"Pouco me separa do exterior. Estou quase fora." (tradução nossa)
96
virtudes restituídas, o espírito enfim reconciliado com o mundo" (Ibid.: 89) e parte
para Amsterdam com o desejo de tal encontro, obviamente falhado:
Mas em Amsterdam nem sequer existia a rua que o meu amigo tinha indicado e,
claro, nunca houve em qualquer parte da terra um homem chamado Max Hughes
que conseguisse embarcar gente para Singapura. Às vezes chego a pensar que não
existe nenhuma cidade com tal nome. Mas não é nem nunca foi essencial. (Ibid.:
91)
A meta que desencadeou a viagem não é o "essencial", não é o objetivo que
sentido ao percurso, ao contrário, o sentido vem depois, justamente quando a meta
falha. É a própria falha da meta, ou a derrota para usar uma expressão apropriada à
viagem que propicia o surgimento de um acontecimento, de um encontro com o
inesperado. A viagem é, portanto, a forma privilegiada de deparar-se com a alteridade,
pois o viajante vê-se arrebatado, a todo instante, por algo que o exclui, que repele a
significação como fechamento de um sentido.
Daí que Michaux tenha investigado com um interesse particular a operação de
dar nomes às coisas, operação que repousa numa dinâmica entre o estranhamento e o
reconhecimento, como havíamos apontado na relação entre o eu e a alteridade.
Assim, numa passagem de Ecuador esse estranho diário de bordo, cheio de
digressões e salpicado de poemas –, o poeta/pintor
37
, com seu humor sarcástico, reflete
sobre o comportamento do público numa exposição de pintura, e percebemos essa
manobra que é dar um nome, operação de fechamento do sentido que necessariamente
põe a perder aquilo que é visto:
Il faut écouter le public dans un salon de peinture. Soudain, après avoir
longuement cherché, quelqu'un, montrant du doigt sur le tableau: "C'est un
pommier", dit-il, et on le sent soulagé.
Il en a detaché un pommier! Voilá un homme heureux.
38
(MICHAUX, 1968: 29)
37
Michaux também se dedicou à pintura, tendo realizado inúmeras telas inspiradas na caligrafia e na
pintura chinesa.
38
É preciso escutar o público num salão de pintura. Freqüentemente, após ter longamente investigado,
alguém, apontando o dedo na direção do quadro, diz: “é uma macieira”, e percebe-se o seu alívio.
Ele distinguiu uma macieira! Eis um homem feliz. (tradução nossa)
97
Do mesmo modo, o poema "Iniji", traduzido por Helder, e que mereceu de Le
Clézio um belíssimo ensaio também presente no livro As magias, intitulado "Um
poema (Iniji) que não é como os outros" (HELDER, 1996: 465), apontará para esse
impasse desencadeado pelo ato de nomear, para essa tensão entre as palavras e as
coisas. Daí que o poema explore uma linguagem que se encaminha em direção a um
núcleo de silêncio e de rateio do sentido:
Ananiá Iniji
Anâã Animá Iniji
Orrenaniâã Iniji
e Iniji inanimada (Ibid.: 471)
Entretanto, não é apenas o rateio do sentido o que se explicita no ensaio de Le
Clézio. Retomando em outros termos a distinção mallarmaica entre a linguagem
comum e a linguagem poética, Le Clézio afirma: "longe deste poema, a vida era surda,
sussurrada, pois todas as palavras da linguagem normativa (a linguagem das teses e
antíteses, a linguagem das análises, dos juízos e proclamações solenes) eram
unicamente um lento nevoeiro roçando a face da matéria." (HELDER, 2001a: 466). De
modo que o autor descreve o seu encontro com Iniji como algo que lhe proporciona
um novo alento, isto é, um encontro a partir do qual ele se depara com uma linguagem
potente, mágica, fazendo com que Iniji seja considerado um poema que "nos ensina a
falar".
Mas não devemos acreditar que Le Clézio julge possível apossar-se dessa
linguagem, ao contrário, ela é algo da ordem da despossessão; não se pode retê-la. Ela
não é a linguagem nomeadora, não aponta para o sentido, mas para o vazio que funda
a própria linguagem. Situando-se nesse improvável lugar que estaria além do dizer,
Iniji na verdade nem é uma linguagem, apenas um clarão, um fulgor que não se traduz
em palavras: "Iniji não existe. Cada vez que dela nos apercebemos, a língua estala e a
palavra morre. Interrompida antes de entrar no mundo. Reflexos, talvez, porquanto as
suas palavras não são palavras. Se retemos um nome, felizes por saber aquilo que
surgirá, ele rebenta. Não nomes, bolhas. Balbuceios de bébé, Iniji, Ananiá Iniji,
Djã dã dã, Irritilili." (Ibid.: 467)
98
Le Clézio de forma brilhante o poema de Michaux, que nele se torna
evidente a tensão entre as coisas e os nomes, proporcionando às palavras o papel da
sepultura de Iniji: "Iniji fala com palavras / que não são as suas palavras / [...] / que
tornam Iniji inânime." (Ibid.: 477) Ou ainda: "Iniji hóspeda efémera das covas, / pais,
pinças, palavras / Eis a estrada longínqua que não vem de volta." (Ibid.: 477) Sim, Iniji
aponta para essa "estrada longínqua que não vem de volta". Não como estar no
mundo das palavras e querer tocar na cintilância das coisas. Mas podemos ainda
vislumbrá-la de soslaio, com um olhar fugidio, no momento mesmo em que as coisas
se apagam e o seu brilho se perde. Resta-nos a sua lembrança. E o ensaio de Le Clézio
é tocante também por isso, pois em vez de tentar resolver essa tensão, se encerra ao
nos deixar mergulhados nela: "Será forçoso então viver sem Iniji? Voltar a elas, em
baixo, às palavras que surdamente resmoneiam, rosnam? Não se pode saber: estamos
cercados pelo vento." (Ibid.: 468)
3.4.1.3
Os decapitados
É também pela via da dinâmica entre interior/exterior, eu/alteridade que
poderemos pensar na importância da tradução para os dois poetas. Tomemos como
ponto de partida o livro Doze nós numa corda, cuja abertura se com a tradução de
um poema de Michaux, curiosamente intitulado "Traduction", apresentado em versão
bilíngüe. Nele está o verso que dá nome ao livro de Herberto Helder:
[...] Adeus
Ouvi o pancadaquear dos paquetes, eu embarco
Ora pois, velho hábito; pouco valho; mas tenho nos dedos
o jeito dos marinheiros de dar doze nós
numa corda e bombordo estibordo
balançar-me nas pernas, gosto disso.
Nas tempestades agarro-me ao grande mastro nu,
ouvido colado, há todo o tipo de ruídos;
entre duas rajadas vejo virem os va-
galhões com as cristas espumadas
e às vezes esta água violenta torna-se tão calma e
como que agonizante, senti-
mo-nos profundamente felizes
se ela apenas se agita com algumas rugas e dobras, [...]
99
(HELDER, 1997a: 9).
Lembrando que o título do poema é "tradução", temos a imagem do poeta-
tradutor associada à do marinheiro. A viagem narrada no poema é puro perigo, mares
tempestuosos e rajadas de vento, mas o poeta não recusa a experiência – a travessia do
perigo – e lança mão de um saber antigo para entregar-se ao imprevisível e sobreviver.
Aqui, mais uma vez, é preciso evocar a Odisséia o "velho hábito" de viajar e os
"doze nós numa corda" que o poeta/marinheiro precisa dar para agarrar-se "ao grande
mastro nu" e resistir a "todo tipo de ruídos", inclusive ao canto das sereias.
Lembremos, também, que se essa foi a estratégia empregada por Ulisses, a que ele
utilizou para seus companheiros de viagem foi um pouco diferente: tapou-lhes os
ouvidos com cera. Assim, com os "ouvido[s] colado[s]"
39
, eles passariam incólumes
pelas tentações do canto.
Aqui, a tradução e a viagem aparecem ligadas de forma indissociável. Mas o
que estas duas atividades apresentam em comum? Certamente, a relação com a
alteridade, o seu reconhecimento como realidade exterior, como aquilo que devemos
enfrentar e que não apreendemos por inteiro. O tradutor, como aponta Jeanne Marie
Gagnebin no prefácio ao livro de Susana Lages, é justamente um mestre das passagens
e dos intervalos, aquele que proporciona uma travessia entre as línguas, mas uma
travessia que o exclui o caráter de impasse inerente a tal atividade. O tradutor é,
então, um novo Ulisses, pois não pode entregar-se totalmente ao texto estrangeiro com
o risco de tornar-se mudo, de sucumbir ao canto das sereias. Ele precisará manter-se
nesse lugar tenso, em que ouve o canto, o chamado do exterior, mas continua agarrado
ao mastro, à sua língua natal.
Assim, a tradução terá sempre que lidar com um caráter intervalar,
representado por uma pura diferença, pressupondo, portanto, uma duplicidade e o
enfrentamento de uma realidade que é absolutamente estranha, estrangeira, impossível
de ser recuperada. Ao realizar a sua obra, enquanto tenta ultrapassar esse intervalo, o
tradutor escava o abismo que separa, ao mesmo tempo em que aproxima, o original da
39
Note-se que no original o verso é: "l'oreille contre, ça fait toutes sortes de / bruits" (grifo nosso), o que
evoca também a idéia de se defender, de se proteger de algo, como quando dizemos "um alarme contra
roubos" ou "um xarope contra tosse".
100
tradução, e se, por um lado, algo da língua original se perde, por outro, a língua do
tradutor também sofrerá modificações, como assinalamos anteriormente no caso da
tradução do poema dos caxinauás.
Há, portanto, um uso deformador da língua e, se lembrarmos da epígrafe de
Michaux contida no livro de Helder na qual o poeta nos diz que "tudo é tradução",
teremos de aceitar que a violência deformadora é uma característica inerente à própria
forma de nos relacionarmos com a alteridade. Havíamos mencionado que em 1932
Michaux escreve a seu editor dizendo que não compreendia mais francês. Quase 20
anos depois, em 1950, o poeta escreve novamente: "Le français m'est devenu à moitié
étranger, culotté, outrecuidant presque. Je ne suis plus à sa hauteur."
40
(ROGER, 1998:
76)
Como sublinha Jérôme Roger, é contra o dogma da clareza da língua francesa,
de sua sintaxe incorruptível, de sua lógica perfeita que Michaux pretende fazer dela
um outro uso, instaurando um novo modo de estar na língua. O autor experimenta
então uma sintaxe esgarçada, dilatada, e chega a criar um léxico próprio, tornando-se
uma espécie de estrangeiro em sua própria língua. Pois não é exatamente isso que
propõe Gilles Deleuze e Claire Parnet numa passagem muito comentada do livro
Dialogues? "Nous devons être bilingues même en une seule langue, nous devons avoir
une langue mineure à l'intérieur de notre langue, nous devons faire de notre propre
langue un usage mineur."
41
(DELEUZE, 1977: 11)
O mesmo ocorreu com Helder no poema citado anteriormente, quando se dava
a passagem do idioma dos caxinauás para o português, criando uma outra espécie de
língua, um português "mudado". Ora, se voltarmos à epígrafe de Michaux – "On parle
à des decapités / les decapités répondent en 'ouolof'" não podemos pensar que essa
seria a língua falada pelos decapitados, o próprio ouolof? Pois os decapitados falam, e
falam num idioma misterioso. Lancemos, portanto, a hipótese de que esses
decapitados o os próprios poetas, os decapitados são aqueles que, juntamente com a
40
"O francês tornou-se meio estranho para mim, empolado, quase pretensioso. Não estou mais à sua
altura." (tradução nossa)
41
"Devemos ser bilíngues em uma única língua, devemos ter uma língua menor no interior de nossa língua,
devemos fazer de nossa língua um uso menor." (tradução nossa)
101
cabeça, perderam o sentido
42
da língua, livrando-se dos constrangimentos impostos
pelas convenções sintáticas. Sem a sintaxe ordenadora, a frase pode tomar diversas
direções.
Desse modo, a decapitação não deve ser entendida como uma falta, mas sim
como abertura de possibilidades. Pois, para Michaux, a cabeça, representativa da
racionalidade, é apenas uma das extremidades do corpo. Em seu projeto de
enfrentamento da racionalidade, o poeta chegou a elaborar uma máxima, citada
também por Roudaut: "Qui cache son fou meurt sans voix".
43
(ROUDAUT, 1998: 40)
O que nos faz pensar que, para ter voz e escrever poesia, é preciso perder a cabeça,
tornar-se um decapitado, de modo que se abra o acesso a essa língua estrangeira: o
ouolof.
No poema "Situação-torso", também de Michaux na tradução de Herberto
Helder, é justamente a cabeça, sinônimo aqui da racionalidade daquilo que
constrange e mantém o homem preso e amarrado a uma determinada forma de
sensibilidade –, que deve ser extirpada para que se produza o devir:
Torso sem cabeça, adeus cabeça, comparsa
que interfere sempre
O torso passa bem sem sorrisos que espiam,
sem palavras, atilhos que atam,
reatam
retêm
À semelhança de um faraó
completo sem explicação, o torso
Quem pode despojar um torso?
Agora aos grupos...
Passam torsos
(HELDER, 1997a: 64)
De acordo com Eliane Robert Moraes, o tema da ausência da cabeça aparece
nas artes a partir do final do século XVIII com a representação dos decapitados. Mas é
42
Aqui na dupla acepção da palavra: sentido como significado, mas também sentido como uma direção
específica.
43
"Quem esconde seu louco morre sem voz". (tradução nossa)
102
na literatura moderna, principalmente com o grupo ao qual pertence Bataille, que o
acéfalo
44
passa a ter uma importância assinalável. Numa reflexão sobre a figura do
acéfalo, perfeitamente ajustável ao poema, a autora nos lembra que a perda da cabeça
não significa a morte, mas a abertura a novas possibilidades de sentido. Assim, com a
deformação do corpo, com a ferida da decapitação, o homem encontra outras formas
de existência. Do mesmo modo, é através do contato radical com a alteridade, e com a
deformação inevitável que este contato implica, que a palavra pode provocar, como
querem Henri Michaux e Herberto Helder, uma renovação da língua.
Lembremos, também, o interesse de Michaux pela loucura, o que o levou a
estudar as psicoses com enorme dedicação, chegando até mesmo a visitar hospitais
psiquiátricos e a elaborar uma teoria que relacionava a linguagem afásica dos doentes
mentais à própria linguagem poética. A "loucura" poética, esse outro da linguagem,
nada mais é do que uma relação de não-familiaridade com a língua, sendo também a
procura do próprio poeta por outras formas de expressão. Assim, a experiência poética
está relacionada com uma espécie de mutilação e deformação do corpo, consistindo
numa abertura para o exterior encenada tanto na criação propriamente dita, quanto na
tarefa de tradução. A poesia torna-se uma forma de vertigem sendo, ao mesmo tempo,
um dilaceramento, uma morte.
Para retomarmos a genealogia que anunciamos no início deste capítulo,
devemos assinalar que em 1922 Michaux leu os Cantos de Maldoror, que o
impressionaram profundamente, e graças a essa leitura entregou-se à atividade de
escrita
45
. Este último, mais do que ninguém, soube cantar as metamorfoses da matéria
e a potência da agressividade e do mal, através de uma conquista das forças animais.
Se dermos prosseguimento à genealogia, observaremos que os processos metamórficos
que incidem sobre o corpo processos esses que se configuram como mecanismos
através dos quais todas as coisas são capazes de se libertarem de seus significados
usuais para ingressarem em um desvio de sentido exibem-se exaustivamente em
Herberto Helder. Encarada como um ponto de partida para que se realize o processo
44
Acéphale é também o nome da revista criada por Bataille e Masson em 1936.
45
Retirado da cronologia feita por Raymond Bellour e Ysé Tran: "1922: Dans la vacance ainsi ouverte
survient sans doute sa 'Lecture de Maldoror. Sursaut... qui bientôt déclenche en lui le besoin, longtemps
oublié, d'écrire" (1985: 18)
103
criativo, a metamorfose encenará um desejo de levar às últimas conseqüências a
compreensão da criação poética como uma operação de desestabilização do sentido.
Dar lugar ao não-sentido é uma forma de reagir contra as tendências pragmáticas e
utilitárias que submetem o mundo aos valores de troca, onde a própria linguagem é
também concebida como uma pura mercadoria. A ensaísta portuguesa Silvina
Rodrigues Lopes, no livro Literatura, defesa do atrito, chama a atenção para o lugar
do o-sentido que a poesia acarreta não-sentido que se manifesta como uma
estranheza e mostra que essa estranheza se apresenta como uma resistência à
comunicação e que por isso mesmo pode desencadear experiências que rompem com
os lugares-comuns e com os valores universais. "Sem resistência à comunicação não
se sairia do puro automatismo em que nada começa. Porque um começo é isso não a
origem, mas o devir enquanto força de disrupção dos contextos, das referências, das
destinações." (LOPES, 2003: 32)
Numa espécie de retomada das metamorfoses de Maldoror, Herberto Helder
traduz também de Michaux:
apreender
ou absolutamente nada apreender ou apreender com louca intensidade
Por falta do principal
apreender desordenadamente, exageradamente,
Atordoar-me
Tornar-me insecto para melhor apreender
patas em gancho para melhor apreender
insecto, aracnídeo, miriápode, ácaro
se for preciso, para melhor apreender. (HELDER, 1997a: 55)
O poema aponta para o desejo de romper com a organização do eu, em busca
de uma apreensão exagerada e desordenada do mundo. Para que essa ambição se
realize, o poeta deve sofrer uma metamorfose, ou um devir-animal, como pensa
Deleuze. Do mesmo modo, Rosa Maria Martelo assinala que, para Herberto Helder, "a
experiência do corpo é inseparável de uma espécie de efeito de dissolução da
identidade" (MARTELO, 2004: 185), o que faz com que sua poesia apareça
intimamente ligada a um pensamento sobre o corpo que conduz necessariamente à
104
emergência do autor como efeito dessa perda. Ainda que a dissolução da identidade
nunca seja completa, como veremos mais adiante, tanto em Michaux como em Helder
ela é uma conseqüência do trabalho de escrita, que, para ambos, a atividade poética
conduz a um estranhamento daquilo que é mais familiar: a própria língua materna.
3.4.2
Os supliciados da linguagem
Si je suis poète ou acteur ce n'est pas
pour écrire ou déclamer des poésies,
mais pour les vivre. (ARTAUD, 1979:
154)
Voltando ao livro Doze nós numa corda, devemos observar que, em seguida ao
poema de Michaux, Herberto Helder apresenta o poema "Israfel" de Poe,
acompanhado de três traduções: a de Mallarmé, a de Artaud e a sua própria.
Demonstraremos, mais adiante, que a tradução de Herberto Helder não parte do
original inglês de Poe nem da tradução de Mallarmé, ainda que estas tenham sido
utilizadas. Quando o poeta português decide apresentar o original ao lado das
diferentes versões pelas quais passou, optando visivelmente em fazer a sua própria a
partir da de Artaud, Herberto Helder parece não apenas querer demonstrar os possíveis
e diversos "jogos" de tradução, mas, sobretudo, vincular o seu nome ao de Artaud,
inscrevendo-se numa espécie de linhagem, o que nos leva a buscar alguns pontos de
contato entre a poética de ambos. Lembremos, ainda, que há uma série de nove
poemas de Artaud traduzidos na seqüência do livro Doze nós numa corda, retirados
das seguintes obras que estão reunidas no primeiro volume de suas Oeuvres complètes:
Correspondance avec Jacques Rivière, L'ombilic des limbes, Premiers poèmes (1913-
1923) e Poèmes (1924-1935).
Outra referência a Artaud comparece num texto de Photomaton & Vox intitulado
"os quartos incendiados", no qual Herberto Helder refere-se diretamente ao poeta
francês e à sua peregrinação pelos asilos psiquiátricos, formulando a pergunta seguida
105
de resposta: "Quem é que entretanto chega de Marselha passando pelo juvenil
manicómio dos outros, na escrutação do profeta? Artaud, aquele a quem fugia a
cabeça."
46
(HELDER, 1995: 66) Ainda no mesmo texto, Helder não deixa de
aproveitar a oportunidade para criticar o Surrealismo: "Pois o Surrealismo nunca
existiu. Houve apenas a captura e neutralização policiais, como no caso de Rimbaud, o
esclavagista, escamoteado pela terceira pessoa do plural dos professores Breton e
Étiemble." (Ibid.: 66) Como dissemos, dois dos poetas traduzidos e comumente
citados por Helder Artaud e Michaux são considerados dissidentes do movimento
surrealista de André Breton. Mas há outras afinidades entre ambos que fazem com que
tenham sido selecionados para essas "tarefas" tradutórias.
3.4.2.1
Artaud traduz Lewis Carroll
Artaud aparece, aos olhos de Helder, como um poeta solitário, e essa solidão
talvez seja uma das características que contribuem para o traçado de uma linhagem de
escritores, ou de "afinidades eletivas", que não estão identificados à participação em
grupos, escolas ou movimentos literários. Entretanto, a não filiação a escolas não
significa um completo isolamento, mas sim a decisão de criar para si uma irmandade
própria, que chamaremos aqui de irmandade dos "supliciados da linguagem". Tal gesto
é realizado também por Artaud, que construirá uma genealogia na qual inscreverá o
seu nome, determinando o seu lugar como poeta, o que ocorre, inicialmente, através de
trabalhos de tradução, reunidos no volume IX das Obras Completas sob o título "Cinq
adaptations de textes anglais".
Durante o período em que ficou internado no hospital psiquiátrico de Rodez,
Artaud, incentivado por seu médico, traduziu alguns poemas de Lewis Carroll, um
poema de Robert Southwell, passando em seguida a Edgar Allan Poe, de quem
traduziu o poema "Israfel". As traduções vêm precedidas de uma espécie de prefácio,
no qual Artaud justifica o seu trabalho ao mesmo tempo em que lança as bases ainda
46
Note-se, aqui também, o tema da perda da cabeça.
106
que indiretamente, isto é, através de um comentário acerca de Lewis Carroll da sua
poética: "Car Lewis Carroll est en realité un esprit de colère, de revendication et de
fureur. Une sorte d'émeutier-né de la perception et du langage."
47
(ARTAUD, 1979,
IX: 130) E continua logo adiante: "L'Épicurian que Lewis Carroll accuse de ce péché
de perversité avec lui-même c'est lui-même; et l'émeute que toute son oeuvre appelle
est une émeute contre le moi et les conditions ordinaires du moi."
48
(Ibid.: 130)
Quando Artaud qualifica Carroll como um provocador e, sobretudo, como quem
empreende uma batalha contra o "eu" e suas condições ordinárias, é como se estivesse
demarcando também o seu próprio lugar na política de enfrentamento e desmontagem
do eu como instância agregadora do corpo, que, segundo Artaud, submete-o a um
enfraquecimento de suas intensidades. Tal política de enfrentamento do eu em prol de
uma emancipação do corpo encontra um paralelo no projeto de um "teatro da
crueldade", como observamos no seu "Primeiro manifesto", quando o poeta francês
afirma que o teatro deve se libertar da submissão ao texto e encontrar a sua linguagem
própria. Libertar-se do texto significa visar a uma forma de expressão que não se torne
"uma estagnação psicológica e humana". (ARTAUD, 1964: 136) O que não significa
que se deseje eliminar o texto teatral, mas que seja possível rasurá-lo, escrevendo um
outro texto sobre o preexistente. Dinâmica que não se afasta, como veremos, do
efetuado por Artaud em suas traduções.
Ainda na apresentação às traduções inglesas, intitulada "Variations a propos d'un
thème d'après Lewis Carroll", o poeta inglês é valorizado, como foi dito, por seu
combate contra o "eu" e, numa relação evidentemente especular com a sua própria
obra, Artaud a entender que a escrita de Carroll repousa numa constante
reformulação do tema de um duplo do eu, duplo perverso que causa sofrimento e
insatisfação:
Fatigué et souffrant de quel péché lui-même, il a passé sa vie à executer
des variations sur ce thème; mais lire l'oeuvre d'un poète c'est avant tout lire au
travers. Car toute oeuvre écrite est un glace l'écrit fond devant le non-écrit. Et
47
Pois Lewis Carroll é na verdade um espírito colérico, reivindicador, furioso – uma espécie de provocador
da percepção e da linguagem.
48
O epicuriano que Lewis Carroll acusa desse pecado de perversidade consigo mesmo é ele mesmo; e a
provocação a que toda a sua obra conclama é uma provocação contra o eu e as condições ordinárias do eu.
(tradução nossa)
107
le non-écrit de Lewis Carroll est une profonde, savante e vertigineuse
insatisfaction.
49
(ARTAUD, 1979, IX: 130)
Assim como a submissão ao texto teatral conduz a uma paralisia das
possibilidades expressivas, também a submissão do escritor a um eu empírico será
vista como um fator de enfraquecimento do corpo e da potência poética. Pois o esforço
empreendido por Artaud é o de descolar-se de seu eu empírico para dar nascimento à
obra, já que é somente através dela que ele se descobre como autor. É o que se observa
na carta escrita a Henri Parisot em 7 de setembro de 1945, a propósito da viagem ao
México e do encontro com os tarahumaras:
[...] ce n'est pas Jesus-Christ que je suis allé chercher chez les tarahumaras
mais moi-même, moi, Mr. Antonin Artaud le 4 septembre 1896 à Marseille, 4
rue du Jardin des Plantes, d'un utérus je n'avais que faire et dont je n'ai jamais
rien eu à faire même avant, parce que ce n'est pas une façon de naître, que d'être
copulé e masturbé 9 mois par la membrane, la membrane brillante qui dévore
sans dents comme disent les UPANISHADS, et je sais que j'étais autrement,
des mes oeuvres e non d'une mère, mais la MÉRE a voulu me prendre et vous en
voyez le résultat dans ma vie.
50
(ARTAUD, 1979: 52)
A carta foi escrita no momento em que Artaud, depois de peregrinar por vários
hospitais psiquiátricos na França, é internado no asilo de Rodez, onde começa a
reconstruir uma relação com o seu próprio corpo estilhaçado e a buscar uma
linguagem que fosse capaz de agüentar esse estilhaçamento. O contato com a obra dos
poetas ingleses foi decisivo na medida em que, através de uma prática de leitura,
escrita e tradução Artaud dedicou-se novamente à produção de sua obra, sendo que os
cinco anos que decorreram entre 1943 e a sua morte ficaram marcados por uma farta
criação. Não é de surpreender, portanto, que, ao escrever um posfácio à "L'arve et
49
Fatigado e atormentado pelo pecado que ele próprio é, passou a vida a executar variações sobre esse
tema; mas ler a obra de um poeta é, antes de tudo, ler através dela. Pois toda obra escrita é um bloco de
gelo onde o escrito se dissolve diante do não-escrito. E o não-escrito de Lewis Carroll é uma profunda,
complexa e vertiginosa insatisfação. (tradução nossa)
50
[...] Não foi Jesus Cristo que fui buscar entre os tarahumaras, mas eu mesmo, eu, Sr. Antonin Artaud,
nascido a 4 de setembro em Marselha, na R. Jardin des Plantes n.4, de um útero do qual eu não tinha
nenhuma necessidade e com o qual nunca quis ter nenhuma relação, porque essa não é uma maneira de
nascer, essa de ser copulado e masturbado nove meses pela membrana, a membrana brilhante que devora
sem dentes como dizem os UPANISHADS, e eu sei que nasci de outra forma, de minhas obras, e não de
uma mãe, mas a MÃE quis me capturar e vejam o resultado em minha vida. (tradução nossa)
108
l'aume", tradução realizada em 1947 a partir de um trecho retirado de Through the
looking glass, de Lewis Carroll, Artaud afirme, referindo-se a um poema nele contido:
J'ai le sentiment, en lisant le petit poème de Lewis Carroll sur les poissons,
l'être, l'obéissance, le 'principe' de la mer, et dieu, révélation d'une vérité
aveuglante, ce sentiment, que ce petit poéme c'est moi qui l'avais et pensé et écrit,
en d'autres siècles, et que je retrouverais ma propre oeuvre entre les mains de
Lewis Carrol. [...]
D'ailleurs ce petit poème, on pourra le comparer avec celui de Lewis
Carroll dans le texte anglais, et on se rendra compte qu'il m'appartient en propre
et n'est pas du tout la version française d'un texte anglais.
51
(ARTAUD, 1979, IX:
147)
Nesse pequeno comentário, tudo o que é essencial sobre a atividade de leitura e
tradução está dito: em primeiro lugar, que o leitor/tradutor que é Artaud opõe-se
totalmente a Pierre Ménard, pois não pretende reescrever um texto anteriormente
escrito por outro, mas, ao contrário, se surpreende por ver um texto, que ele julga ter
sido anteriormente escrito por si, aparecer sob a assinatura de um outro. O ato de
leitura, nesse caso, confere ao leitor o poder de autoria sobre aquilo que lê, o que faz
com que ele seja, incontestavelmente, um escritor. Afirmação que é reforçada por
Artaud logo em seguida, na sugestão de comparação entre o original inglês e o texto
em francês, a partir da qual ficará evidente que o poema em francês não é "a versão
francesa de um texto inglês", mas uma obra que Artaud reconhece de fato como sua.
O que deve ser ressaltado nessa passagem é que a busca da autoria não se realiza
sem que a obra passe pela dimensão do outro, ou seja, pela dimensão da linguagem
que precede o sujeito e o determina. Ora, se Artaud padece de uma linguagem rígida e
lógica, formada por estruturas inflexíveis às quais ele não pode se adaptar, não é pela
eliminação ou supressão da linguagem que a sua "cura" se estabeleceria, que não é
possível tornar-se autor a partir de uma pura recusa da lei que a própria linguagem
encarna e materializa. Ao contrário, é preciso cavar a linguagem a partir de seu
interior, esvaziá-la de seus princípios, o que não significa eliminá-la. É o que declara
51
Tenho a sensação, ao ler o pequeno poema de Lewis Carroll sobre os peixes, o ser, a obediência, o
'princípio' do mar, e deus, revelação de uma verdade ofuscante, tenho a sensação de que fui eu que o
pensei e o escrevi em outros séculos, e que reencontraria minha própria obra entre as mãos de Lewis
Carroll. [...]
Aliás, se esse pequeno poema for comparado ao de Lewis Carroll no texto em inglês, ficará evidente que
ele pertence somente a mim, e não é de forma alguma a versão francesa de um texto em inglês. (tradução
nossa)
109
Ana Kiffer em seu livro Antonin Artaud. Uma poética do pensamento sobre o projeto
do "teatro da crueldade": "Assim, se pode observar que o que o poeta clama é a
possibilidade de criar uma linguagem que se, por um lado, dialoga com o texto
anterior, com a gramática que nos sujeita, também cria brechas e inaugura espaços."
(KIFFER, 2003: 34)
Se, em 1947, ao publicar a tradução de Through de looking glass, Artaud afirma,
surpreendentemente, numa carta a Marc Barbezat, que "j'ai toujours detesté Lewis
Carroll"
52
e que sua tradução revela, na verdade, uma "entreprise anti-grammaticale
non d'après Lewis Carroll mais contre lui"
53
(ARTAUD, 1979, IX: 133), ele não faz
mais do que retomar um pensamento que evidencia a negação ainda como uma forma
de afirmação, isto é, ao negar Lewis Carroll, ao ser contra ele, ainda o
estabelecimento de um diálogo com o outro, mesmo que seja para contestá-lo; e é
somente através do diálogo com o texto-outro, tome ele a forma da repetição, da
negação ou da adulteração que a escrita se torna possível.
O exercício de tradução presta-se perfeitamente a esta empresa antigramatical,
que evoca um problema de ordem prática: a relação entre o original e a versão. A
distância produzida entre o texto original e o texto traduzido, a diferença necessária e
insuperável entre ambos será o elemento propiciador de uma reflexão acerca da
linguagem poética. A prática de tradução põe necessariamente em cena uma relação
com a alteridade, na medida em que o tradutor se confrontado com um idioma
estrangeiro, que não pode ser totalmente assimilado por sua língua natal. A tarefa
tradutória pode lançar luz sobre a prática poética porque ambas necessitam de uma
espécie de maturação das palavras, um processo de gênese e nascimento do autor no
seio de uma língua que, apesar de ser sua, torna-se também estrangeira pelas alterações
que sofre em sua estrutura.
Há, entretanto, uma carta datada de 22 de setembro de 1945, escrita também em
Rodez e endereçada ao Dr. Ferdière, na qual Artaud critica o poema "Jabberwocky",
de Lewis Carroll, justificando o abandono de seu projeto de traduzi-lo. Segundo
Artaud, "Jabberwocky" é um poema que apenas exibe uma linguagem trabalhada, mas
52
sempre detestei Lewis Carrroll (tradução nossa)
53
"um projeto antigramatical não conforme Lewis Carroll mas contra ele." (tradução nossa)
110
ao qual faltaria alma e coração. Tal comentário prestar-se-á também ao
desenvolvimento de um dos principais temas de Artaud: o elogio da fome. Assim, ao
investir contra "Jabberwocky", Artaud escreverá ainda:
C'est l'oeuvre d'un homme qui mangeait bien, et cela se sent dans son
écrit. J'aime les poèmes des affamés, des malades, des parias, des
empoisonnés: François Villon, Charles Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de
Nerval, et les poèmes des suppliciés du langage qui sont en perte dans
leurs écrits [...]
54
(ARTAUD, 1979, IX: 170)
É fácil notarmos que, nesse ataque a Carroll, Artaud estabelece um paralelo entre
a fome e os "supliciados da linguagem, aqueles que estão em perda nos seus escritos".
Os corpos que não se inserem no mecanismo regulador que é a linguagem da lógica
linguagem da ciência e da medicina, da qual Artaud padeceu deparam-se
necessariamente com uma privação, tornam-se supliciados, daí que a fome e a abertura
de vazios remetam à possibilidade de deposição dessa lógica que submete o corpo a
um regime rígido de funcionamento. De fato, a fome pressupõe um esvaziamento dos
órgãos internos, esvaziamento esse que será levado a cabo justamente no famoso
projeto de constituição do "corpo sem órgãos"
55
.
Também no "Preâmbulo", texto que escreve em 1946 quando Gaston Gallimard
lhe propõe a publicação de suas obras completas, Artaud utiliza uma expressão
equivalente a que acabamos de citar, para definir, agora, a sua própria "perda" em
relação à linguagem: "[...] Je sais que quand j'ai voulu écrire j'ai raté mes mots et c'est
tout. / Et je n'ai jamais su de plus."
56
(ARTAUD, 1976, I: 9) E é justamente essa
"perda", essa "falha" o que a dimensão da poética de Artaud, que o uso que faz
das palavras não está de acordo com os parâmetros de uma linguagem lógica,
gramaticalmente bem construída. O contexto em que este preâmbulo foi redigido
remete à correspondência entre Artaud e Jacques Rivière, uma vez que este último,
54
É a obra de um homem que comia bem, e isso se sente em sua escrita. Gosto dos poemas dos famintos,
dos doentes, dos impuros, dos envenenados: François Villon, Charles Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de
Nerval, e os poemas dos supliciados da linguagem que estão em perda nos seus escritos. (tradução nossa)
55
O corpo sem orgãos é uma das principais propostas de Artaud, tomada como modelo de pensamento para
Gilles Deleuze e Felix Guattari no livro Mille Plateaux.
56
[...] Sei que quando quis escrever eu perdi minhas palavras e eis tudo. / E nunca mais soube nada.
(tradução nossa)
111
como editor da Nouvelle Revue Française, recusara a publicação dos poemas que
Artaud lhe enviara, cerca de 20 anos antes, apontando "falhas" em seus escritos. O que
está em questão, portanto, é o embate entre uma linguagem sem falhas e uma
linguagem falhada, que será afirmada por Artaud na constituição de sua poética,
fazendo com que a própria falha seja assumida como um traço a partir do qual ele se
torna autor. A falha constituirá a sua marca, sua assinatura.
Ora, se para construir um novo corpo era preciso ser um "esfomeado", de modo
a esvaziá-lo de sua organização interna, tal tarefa só será consumada a partir do
momento em que uma outra linguagem, também esvaziada de seus pressupostos e leis,
for construída. E é essa tentativa de produção de uma nova linguagem que Artaud
indicará ainda no "Preâmbulo", seguindo um passo que remete ao anterior elogio da
fome:
Que mes phrases sonnent le français ou le papou c'est exactement ce dont
je me fous.
Mais si j'enfonce un mot violent comme un clou je veux qu'il suppure dans
la phrase comme une ecchymose à cent trous. On ne reproche pas à un écrivain
un mot obscène parce qu'obscene, on le lui reproche s'il est gratuit [...]
57
.
(ARTAUD, 1976, I: 10)
Aqui, também, Artaud reprovará uma escrita que ele chama de gratuita, como
anteriormente reprovara o poema "Jabberwocky", que era, a seu ver, somente a
exibição de uma linguagem trabalhada. Além disso, a necessidade de esvaziamento
está novamente presente, que dessa vez o esvaziamento se dirige à própria
linguagem. Note-se que é pela via da linguagem, e não de um elemento estranho a ela,
que o poeta sugere uma forma de implodi-la. Uma palavra obscena, violenta, será uma
espécie de arma, um prego através do qual uma doença é inoculada na frase. Daí que
ele menospreze o uso gratuito das palavras, assim como a burilação estéril do estilo.
Segundo Artaud, as palavras devem ser usadas de forma a corresponderem a um
projeto político, possibilitando uma espécie de corrosão da linguagem, de
desorganização da sua estrutura. Relevante também é o fato de Artaud utilizar, nesse
57
Que minhas frases soem como francês ou papua é o que menos me importa.
Mas seu eu enfio uma palavra violenta como um prego quero que ela supure na frase em cem buracos,
como uma equimose. Não se reprova uma palavra a um escritor porque ela é obscena, mas sim porque é
gratuita. (tradução nossa)
112
momento, uma imagem corporal, o que aponta para a não separação empreendida por
ele entre linguagem e vida, entre corpo e obra. Como ele mesmo dirá em "L'ombilic
des limbes": "Je ne conçois pas d'oeuvre comme détachée de la vie.
58
" (Ibid.: 49)
3.4.2.2
Artaud traduz Poe
As afinidades que Artaud percebe entre a sua poética e a de Poe estão longe de
se restringirem à tradução do poema "Israfel", presente no referido "Cinq
adaptations de textes anglais". Na carta anteriormente citada em que Artaud critica o
poema "Jabberwocky", Poe é apontado como um dos poetas "famintos" que, como ele
próprio, "estão em perda nos seus escritos". Além disso, Artaud compara
"Jabberwocky" com os escritos de Poe e Baudelaire, dizendo que:
Jabberwocky est l'oeuvre d'un castré, d'une espèce de métis hybride qui a
trituré de la conscience pour en faire sortir de l'écrit, Baudelaire a fait sortir
des eschares d'aphasie ou de paraplégie et Edgar Poe des muqueuses acides
comme de l'acide prussique, de l'acide d'alcoolie, et cela jusqu'à
l'empoisonnement et la folie.
59
(ARTAUD, 1979, IX: 169)
Notemos aqui, mais uma vez, a censura ao poema que seria um puro trabalho do
pensamento, ou da consciência, como prefere Artaud e que por isso estaria distante
de uma outra dimensão mais vital das palavras –, e a utilização das metáforas
corporais para valorizar a obra de Baudelaire e Poe, nas quais não estaria presente a tal
separação entre linguagem e vida. Não deixa de ser interessante também o emprego
repetitivo da palavra acide no comentário relativo a Poe, o que endossa a hipótese de
Artaud perceber, nos escritos do poeta inglês, alguma propriedade corrosiva,
semelhante ao prego
60
que ele introduz nas frases para corroê-las. Fica claro, portanto,
58
não concebo a obra como apartada da vida. (tradução nossa)
59
Jabberwocky é a obra de um castrado, de uma espécie de mestiço híbrido que triturou a consciência para
expelir a escrita, lá onde Baudelaire expeliu escaras de afasia ou de paraplegia e Edgar Poe mucosas ácidas
como o ácido prússico, o ácido alcoólico, e isso até o envenenamento e a loucura. (tradução nossa)
60
Mais si j'enfonce un mot violent comme un clou je veux qu'il suppure dans la phrase comme une
ecchymose à cent trous. (1976, I: 10)
113
que através dessas escolhas de poetas a serem traduzidos Artaud procura traços
daquilo que constituirá a sua poética.
No caso de "Israfel", todo um percurso de poetas de língua francesa que
empreenderam, antes de Artaud, a sua tradução, tais como Baudelaire e Mallarmé.
Ambos são referências essenciais por terem se dedicado a uma reflexão meticulosa
acerca da poesia. Ao empreender a tradução de Poe, conforme afirma Jean Michel Rey
no livro La naissance de la poésie, Artaud procura uma dicção própria, e, ao repetir o
gesto de tradução realizado por outros poetas de sua língua, inscreve-se também
numa espécie de genealogia, através da qual traça uma linha de predecessores na
poesia; genealogia essa que lhe permite tornar-se um autor. De acordo com Rey:
En re-traduisant Israfel, en accompagnant cette traduction de ses gloses, Artaud
engage une version de sa propre poétique; il en prépare la redéfinition. A travers
Mallarmé, comme à travers Poe transposé en français, il énonce la 'juste
revendication' de son existence de poète interrompue.
61
(REY, 1991: 94)
Notável, nesse sentido, é o fato de Artaud ter feito três versões diferentes do
poema de Poe. A versão presente no livro de Herberto Helder é a primeira, ao passo
que em "Cinq adaptations de textes anglais" é a terceira que lemos. Ainda de acordo
com Rey, é o trabalho de reescrita, de construção de enunciados, que faz com que
Artaud, sempre atento às dissonâncias entre as duas línguas, construa a sua poética,
isto é, o seu modo de habitar a língua francesa. O contato com a língua estrangeira,
com o outro, concede ao poeta francês a possibilidade de encontrar a sua própria voz.
A escolha do poema "Israfel" é, a nosso ver, emblemática do gesto de
constituição do poeta através da relação com o outro. O poema tem início com a
apresentação do anjo Israfel, cujo canto é descrito por Poe através do advérbio wildly:
"None sing so wildly well / As the angel Israfel," (HELDER, 1997a: 13). Mallarmé,
por sua vez, traduzirá esses versos da seguinte forma: "Nul ne chante si étrangement
bien que l'ange Israfel," (Ibid.: 16), de modo que o anjo que no poema de Poe canta
wildly well, isto é, de forma extraordinária, extraordinariamente bem, terá, no poema
61
Ao retraduzir 'Israfel' e incorporar suas glosas à tradução, Artaud inicia uma versão de sua própria
poética, preparando sua redefinição. Através de Mallarmé, assim como de Poe traduzido para o francês, ele
enuncia a ' justa reivindicação' de sua existência interrompida como poeta. (tradução nossa)
114
de Mallarmé, a sua voz associada a um caráter de estranheza, já que o advérbio
étrangement, derivado do adjetivo étrange, reúne tanto o significado de algo
extraordinário, como também o de estranho, incompreensível, estrangeiro.
Essa modificação introduzida por Mallarmé foi, muito provavelmente, sentida
por Artaud, pois apesar de fazer uma modificação em que o advérbio wildly dará lugar
ao adjetivo sauvage "Pas de chant plus sauvage au fond de l'absolu" (Ibid.: 18)
recupera o adjetivo étrange alguns versos adiante: "et chaque pulsation de cet oracle
étrange / est comme un Sinaï [...]" (Ibid.: 18). O que reitera a sua preocupação em
assinalar o lugar do outro como um lugar de estranheza, característica que se observa
na própria atividade de tradução decorrente do contato com a língua estrangeira.
O autor é, então, aquele que emerge a partir dessa relação com o outro; não é um
sujeito que se utiliza das palavras como sua expressão própria, isto é, que detém um
discurso que pudesse representá-lo, mas, ao contrário, como havia anunciado
Rimbaud noo comentado "Je est un autre" das suas "Lettres du voyant", alguém que
surge a partir do contato com a alteridade. Do mesmo modo, o que Artaud punha em
questão era também o esquema representacional definido como a operação de um
sujeito do conhecimento em direção a um objeto a ser conhecido. Para Artaud e
Rimbaud, a palavra poética não é um instrumento mediador entre sujeito e objeto,
muito menos uma espécie de espelho através do qual o sujeito, que estaria dado
anteriormente ao ato poético, poderia representar-se. A palavra poética é habitada por
uma estranheza: é algo da ordem do acontecimento que permite a eclosão do poeta
sua emergência como outro – decorrente do ato de produção da obra.
Em Suppôts et suppliciations, Artaud rechaça, de um golpe, tanto a
sabedoria que se expressa através da filosofia, das ciências matemáticas e das ciências
ocultas, como também a anatomia e o saber médico sobre o corpo. Os alicerces que
suportam as ciências, a filosofia e a medicina colocam em cena a relação de
representação entre sujeito e objeto, apontando para a fixação de um ato de
conhecimento que é exatamente o que Artaud pretende dissolver:
J'ai la haine de la philosophie, de la magie, de l'occultisme,
de l'ésotérisme, de la yoga, comme j'ai celle de l'anatomie,
je dis de l'ANATOMIE, de la médicine, de l'arithmétique,
115
de l'algèbre, de la trigonométrie, du calcul différentiel,
et de la précession des équinoxes,
et j'ai aussi, et nul ne me croira sans doute, la haine intestine
de la poésie.
62
(ARTAUD, 1978: 28)
No poema citado, o autor rechaça também a poesia, e aqui devemos entender
esse gesto como a recusa de uma certa poesia que seria a representação de um sujeito-
autor, e não sua produção, como também de uma escrita que estaria comprometida
apenas com interesses estéticos e não veria no trabalho com a linguagem a
possibilidade de uma ação efetiva, capaz de desarticular os campos do conhecimento e
de engendrar novas formas
63
.
Trata-se de ver a poesia como possibilidade de transformação, de descoberta de
um outro modo de estar na linguagem, ou de refazer a língua francesa, como dizia o
poeta. Ora, se Artaud padecia os efeitos de uma linguagem rígida da psiquiatria, do
mundo empobrecido pela univocidade da comunicação, era preciso fazer com que as
palavras lhe possibilitassem uma autonomia, uma outra forma de posicionamento. E é
no trabalho de tradução, no abismo que se abre entre as línguas, unindo-as e
separando-as, no contato com o estranho, com o estrangeiro, que Artaud poderá
descobrir a sua própria dicção, inventar a sua linguagem. Daremos como exemplo da
criação de uma nova linguagem as glossolalias do poeta, que lembram em muito o
citado poema "Iniji", de Michaux: "ya menin / fra te sha / vazile / la vazile / a te sha
menin / tor menin / e menin menila / ar menila / i inema imen" (ARTAUD, 1978: 31)
Entretanto, a invenção de uma linguagem absolutamente nova não deixa de ser uma
utopia. Nesse sentido, é interessante evocarmos a carta de Artaud ao Dr. Ferdière na
qual ele diz ter escrito um livro numa língua universal, que todo mundo podia ler, mas
que se perdeu: "Et j'ai, em 1934, écrit tout un livre [...] dans une langue qui n'était pas
62
Eu tenho ódio da filosofia, da magia, do ocultismo, / do esoterismo, da yoga, como o tenho também da
anatomia, / digo da ANATOMIA, da medicina, da aritmética, / da álgebra, da trigonometria, do cálculo
diferencial, / e da precessão dos equinócios, / e tenho também, e talvez ninguém acredite, ódio intestino / da
poesia. (tradução nossa)
63
Lembremos do comentário a respeito de Lewis Carroll e "Jabberwocky".
116
le français, mais que tout le monde pouvait lire, à quelque nationalité qu'il appartînt.
Ce livre malheureusement a été perdu."
64
(ARTAUD, 1979, IX: 171)
3.4.2.3
Herberto traduz Poe (ou Artaud?)
Herberto Helder, ao acrescentar o seu nome à lista dos tradutores de Poe, ao
publicar a sua versão do poema "Israfel", fazendo constar, ao lado da sua, a de
Mallarmé e a de Artaud, repete o gesto de definição de uma poética, que julgamos
apresentar muitos pontos de contato com as ambições do segundo. A tradução de
Artaud é, evidentemente, o "original" seguido por Helder, tal como se conclui da
comparação entre os seguintes trechos:
64
Escrevi, em 1934, um livro numa língua que não o francês, que todo mundo poderia ler, independente da
nacionalidade que tivesse. Esse livro infelizmente se perdeu. (tradução nossa)
117
Israfel (Edgar Poe)
In Heaven a spirit doth dwell
"Whose heart-strings are a lute;"
None sing so wildly well
As the angel Israfel,
And the giddy stars (so legends tell)
Ceasing their hymns, attend the spell
Of his voice, all mute. [...]
Israfel (Mallarmé)
Dans le ciel habite un esprit "dont les
fibres du coeur font un luth". Nul ne chante
si étrangement bien que l'ange Israfel, et
les étoiles irrésolues (au dire des légendes)
cessant leurs hymnes, se prennent au
charme de sa voix, muettes toutes.
[...]
Israfel (Artaud)
Au ciel il est un coeur dont les cordes son l'âme d'un luth
comme un esprit de flamme, lá où l'âme ne monte plus.
Pas de chant plus sauvage au fond de l'absolu
que celui de ce luth en rafale d'élus
qui est la corde émue du coeur d'Israfel Ange
et chaque pulsation de cet oracle étrange
est comme un Sinaï où l'Amour Infini
a mis sa main de flamme au bord du Paradis.
Les astres enivrés comme le veut l'adage
rendant leurs chants muets sur l'ordre du Très-Sage
assistent ébahis
aux magiques scansion du dictame inouï
que le Barde d'en Haut épèle avec Sa Vie. [...]
Israfel (Herberto Helder)
No céu vive um coração de que as fibras são as cordas
de um alaúde
como a alma de uma labareda, no céu mais alto.
Não há tão selvagem canto no fundo do absoluto como
o canto deste alaúde em voragem
angélica, que é a corda vibrante do coração do Anjo
Israfel. E cada pulsação deste
obscuro oráculo
é um Sinai, onde o infindo amor pôs a mão em chamas, na
orla do Paraíso.
E diz a lenda que os astros bêbados emudecem,
e assistem atónitos
à inaudita ascensão daquela música
inaudita,
que o mágico bardo do alto soletra enquanto soletra a
sua vida,
cantando. [...]
118
Não é difícil notarmos que a versão de Mallarmé está muito próxima do original
de Poe, preservando todo o encadeamento dos versos e até mesmo o pequeno "aparte"
entre parênteses, com pequenas mudanças, obviamente. Entretanto, a principal delas
diz respeito à forma, que os versos não aparecem quebrados, e sim com a estrutura
de frases. A versão de Artaud, por sua vez, introduzirá uma série de imagens e temas
que não fazem parte do original, tais como o sexto, o sétimo e o oitavo versos, que não
encontram nenhuma correspondência com o poema de Poe, assim como os três
últimos. Essas imagens – "obscuro oráculo", "Sinaï", "amor infindo", "Paraíso",
comparecerão no poema de Helder, confirmando a hipótese de que a sua tradução é
realizada a partir do texto de Artaud. Entretanto, talvez essas alterações não sejam as
principais mudanças sofridas pelo poema, embora sejam as mais evidentes.
É no primeiro verso que constatamos uma alteração ainda mais significativa: no
poema de Poe há um espírito que vive no céu e cujas fibras do coração são um alaúde.
Artaud, ao fazer a sua versão, descreve um coração que vive no céu, cujas cordas são
a alma de um alaúde. Note-se aqui a bissemia da palavra alma, presente tanto na
língua francesa como na portuguesa, que por um lado tem o significado de espírito,
presente no original de Poe, e, por outro, o de um pequeno cilindro de madeira
colocado entre o tampo e o fundo dos instrumentos de corda. Nessa segunda acepção,
a palavra alma estaria afastada de seu aspecto transcendente para adquirir uma
tonalidade mais material. Herberto Helder, ao fazer a sua versão, recupera nitidamente
a inversão de Artaud, que continua sendo um coração que vive no céu, e não mais
um espírito, como no original, inversão que nos faz pensar na importância que os dois
poetas concederam ao corpo
65
e aos processos vitais; entretanto, a palavra alma,
introduzida por Artaud no primeiro verso, desaparece para ser recuperada apenas no
verso seguinte, mantendo a comparação do coração que vive no céu com a "alma de
uma labareda", que em Artaud é "un sprit de flamme".
Pois Herberto Helder, assim como Artaud, situa as possibilidades do fazer
poético num pensamento sobre o corpo. Entretanto, uma primeira diferença deve ser
assinalada: Artaud parte de um corpo completamente esfacelado, rechaçado do
discurso, submetido às torturas e aos constrangimentos dos asilos psiquiátricos. Um
65
Não podemos esquecer que o corpo, por oposição à alma, remete à materialidade do ser.
119
corpo que será preciso reconstruir sobre novas bases, esvaziando-o de suas funções
puramente orgânicas para que ele possa receber e suportar a linguagem que é
produtora do poeta, uma linguagem que se define para além da necessidade de sentido.
Herberto Helder parte de um corpo que deve ser deformado, que será preciso abrir
para que se a realização da tarefa poética. Mais uma vez, é notável o paralelo com
as "Lettres du voyant" de Rimbaud, nas quais o jovem poeta indicava a necessidade de
um método de deformação da alma e do corpo, de um trabalho a ser realizado: "Mas
trata-se de tornar a alma monstruosa: à maneira dos comprachicos, ora! Imaginem um
homem implantando e cultivando verrugas em seu próprio rosto."
(RIMBAUD, 2006:
159)
Entretanto, se os pontos de partida de Artaud e Helder parecem diversos, os
pontos de chegada são bastante convergentes. Para ambos, trata-se de uma operação de
potencialização do corpo, de uma abertura dos sentidos que não estaria mais
identificada a uma servidão anatômica, ou a um corpo submetido ao funcionamento de
seus órgãos. Em Herberto Helder, observamos a abertura do corpo através do exercício
da palavra, como no poema que inicia o livro intitulado Do mundo:
[...] Abre-me todo a força da palavra encharcada, abre-me através
de abdómen e diafragma, os pulmões, os brônquios, traqueia, a glote,
palato, e dentes, língua,
o côncavo da boca: um canto,
a ventania do corpo. [...]
(HELDER, 2004: 515)
A violência deformadora que não incide apenas sobre o corpo, mas também
sobre a própria linguagem é o que nos permite alargar o pensamento a respeito da
prática de tradução e da poética de Herberto Helder. Este gesto de abertura do corpo,
ato de violência extrema que pode ser observado em outros momentos de sua obra
66
,
sinaliza uma passagem do interior para o exterior, de um corpo dilacerado a partir do
qual se produz o espaço do mundo e a própria voz do poeta. O corpo aberto, no caso
66
Podemos citar uma passagem de O corpo o luxo a obra: "E o golpe que me abre desde a uretra / à
garganta / brilha / como o abismo venoso da terra. [...] Na límpida teia das mãos, / a colher que se arqueia
/ desde / a traça alimentar à costura cirúrgica / da garganta / onde a voz rebenta / num buraco de sangue.
Mas as cabeças, que olham / pelos lados / novos / de gárgulas jorrando toda a força / da luz interna, /
vivem da energia / da nossa graça, da ferida / da elegância. A violência envenena-me." (HELDER, 2004:
351)
120
de Herberto Helder, ou esvaziado de seus órgãos, no caso de Artaud, remetem a um
espaço que é, ao mesmo tempo, proximidade e distância entre o eu e o mundo. É uma
espécie de fenda, de corte ou passagem a partir da qual se efetiva uma comunicação
entre interior e exterior.
Em vários outros poemas, como "Vocação animal", o corpo aparece
relacionado a um regime de fluxos e de deslocamentos: "Deslocações de ar, de
palavras, partes do corpo, deslocações de sentido nas partes do corpo / [...] / Alguém
respira onde é vivo – uma boca, um ânus, uma vagina viva. / [...] / Alguém se
transforma numa coisa inominável." (HELDER, 1973: 143). A atividade de
deslocamento constante retratada no poema – que é ao mesmo tempo uma operação de
desarticulação das palavras e das partes do corpo – impede a fixação do sentido,
terminando por apontar para algo da ordem do inominável, que mais uma vez pode
evocar o desconhecido que, segundo Rimbaud, é o lugar de chegada ao qual o poeta
assoma.
O projeto de recrição da linguagem e de construção do corpo seria, para Artaud,
como também para Herberto Helder, uma ação, capaz de instaurar um regime de
forças, a partir do qual poesia e vida se identificam, o que permitiria a atuação direta
da primeira sobre a segunda. A proposta de um teatro da crueldade, formulada alguns
anos antes do período no asilo de Rodez, repousava no encontro de uma
materialidade da linguagem cênica, o que apontaria para uma não separação entre esta
e o corpo, mas que fosse uma linguagem do próprio corpo. Como aponta Ana Kiffer,
"[...] não se trata de uma aniquilação da linguagem, do texto, da palavra, mas como
disse ainda o poeta, trata-se de 'quebrar o sentido usual da linguagem, de romper com
a sua armadura, de explodir a carcaça.' " (KIFFER, 2003: 34)
Se uma das bases da poética de Artaud é a construção de um outro corpo,
esvaziado das funções orgânicas que o submetem a um regime ditatorial, castrador, e
que cerceiam o seu potencial, a outra seria a construção de uma nova linguagem, que
também pretende escapar a uma ditadura da representação e do sentido. Trata-se,
enfim, de chegar ao seu próprio estilo – que é também uma "forma de evitar a
121
loucura"
67
através de uma poética do grito e do golpe, de uma poesia da ação e não
da representação:
Je connais un état hors de l'esprit, de la conscience, de l'être,
et qu'il n'y a plus ni paroles ni lettres,
mais où l'on entre par les cris et par les coups.
Et ce ne sont plus des sons ou des sens qui sortent,
plus des paroles
mais des CORPS.
68
(ARTAUD, 1978, XIV: 30)
Também para Herberto Helder o poema será uma ferramenta através da qual se
almeja produzir um corpo, isto é, dotá-lo de potência. Por não estar atrelado a uma moral,
por não ter de servir como um instrumento para assegurar a ordem e os valores da
sociedade, o poema não precisa mais responder às necessidades que lhe são exteriores:
Agora o poema é um instrumento, mas não das disciplinas da cultura, é uma
ferramenta para acordar as vísceras um empurrão em todas as partes ao mesmo
tempo. Bem mais forte que uma boa dose de LSD. Age no córtex cerebral, caímos
em percepções novas, tudo se torna físico. Compreendemos em sentido revulsivo. As
tripas digerem o universo. (HELDER, 1995: 124)
Assim, é no esvaziamento do corpo, tal como escreve Artaud em Suppôts e
suppliciations
69
, na recusa a dar-lhe uma forma, e na liberação da escrita de um molde
fixado pela sintaxe, pela lógica e pelo sentido, que formularemos aqui a hipótese de uma
escrita transgressora, muito próxima do pensamento do informe de Bataille, já que,
como afirma Didi-Huberman no ensaio "Comment déchire-t-on la ressemblance?", a
transgressão em Bataille é sempre uma transgressão da forma, tendo por objetivo não
67
Remeto-me aqui a um comentário de Gastão Cruz acerca do conto intitulado "Estilo" presente n'Os
passos em volta, de Herberto Helder. (CRUZ, 1999: 131)
68
Conheço um estado fora do espírito, da consciência, do ser, / e em que não há mais palavras nem letras,
mas onde se entra através de gritos e golpes. / E não são mais sons ou sentidos que emergem, / não são
mais palavras / são CORPOS. (tradução nossa)
69
"[...] un corps, / pas d'esprit, / pas d'âme, / pas de coeur, [...] / pas de langue, / pas de luette, / pas de
glotte, / pas de glandes, / pas de corps thyroïde, / pas d'organes, / pas de nerfs, / pas de veines, / pas d'os, /
[...] / pas de cerveau, / pas de moelle, / [...]". (ARTAUD, 1978, XIV: 13) “[...] um corpo, / sem espírito, /
sem alma, / sem coração, [...] / sem língua, / sem amígdala, / sem glote, / sem glândulas, / sem tireóide, /
sem órgãos, / sem nervos, / sem veias, / sem ossos, / [...] / sem cérebro, / sem medula, / [...]”. (tradução
nossa)
122
uma anulação completa das formas, mas a dissolução de estruturas cristalizadas, de modo
a proporcionar a irrupção do novo:
Revendiquer l'informe ne veut pas dire revendiquer des non-formes, mais plutôt
s'engager dans un travail des formes équivalent à ce que serait un 'travail'
d'accouchement ou d'agonie, disons: une ouverture, une déchirure, un processus
déchirant mettant quelque chose à mort et, dans cette négativité même, inventant
quelquer chose d'absolument neuf, mettant quelque chose au jour [...].
70
(DIDI-
HUBERMAN, 1995: 115)
Didi-Huberman, no texto citado, procura investigar o sentido de uma semelhança
desclassificante
71
, uma semelhança que derrubaria a hierarquia entre o modelo e a
cópia. Para retomarmos o tema da tradução, afirmaremos que é nesse sentido que
entendemos a atividade tradutória. A tradução não seria, portanto, a produção de um
semelhante ao original numa língua estrangeira, mas sim de algo que é em tudo
dessemelhante ao original, algo que produz uma deformação, uma monstruosidade.
Assim, a empresa antigramatical assinalada por Artaud e a sua proposta de
criação de um corpo sem órgãos podem ser compreendidas dentro do projeto de recusa
à semelhança, isto é, de recusa a uma prática da representação, em prol de um
pensamento do informe, daquilo mesmo que tem por objetivo agir contra as formas
fixas, submetendo-as a um processo de renovação. Projeto no qual se insere também
Herberto Helder, em conformidade com o que Ida Ferreira Alves afirma a respeito da
relação entre poesia e paisagem, uma vez que a poesia não pretende dar a ver
paisagens apaziguadoras, imóveis, mas turbulências e inquietações: "o poema que vale
a pena não é paisagem apaziguadora, mas um confronto, um embate, um espaço de
provocação." (ALVES, 2007) E é o que está dito em mais um texto de Photomaton &
Vox:
Porque o que se vê no poema não é a apresenta-
ção da paisagem, a narrativa das coisas, a história do tra-
jecto,
mas
um nó de energia como o nó de um olho ávido,
70
"Reivindicar o informe não significa reivindicar não-formas, mas sim se engajar num trabalho
equivalente a um trabalho de parto ou de agonia, isto é, a uma abertura, uma ferida, um processo doloroso
que conduz algo à morte e, nessa negatividade, dá algo à luz [...]." (tradução nossa)
71
Lembramos que Didi-Huberman trabalha com essa idéia de semelhança desclassificante a partir do
verbete "Informe" do "Dictionnaire critique" presente na revista Documents dirigida por Bataille.
123
o fulcro de uma corrente electromagnética,
um modelo fundamental de poder,
de alimentação. (HELDER, 1995: 138)
3.5
O lobo e o celacanto: a ciência rebelde
O animal abre diante de mim uma
profundidade que me atrai e que me é
familiar. Essa profundidade, num certo
sentido, eu a conheço: é a minha. É também
o que para mim está mais longinquamente
oculto, o que merece este nome de
profundidade, que quer dizer precisamente o
que me escapa. Mas é também a poesia...
(BATAILLE, 1993: 23)
A epígrafe acima, retirada do livro Teoria da religião, aponta para a forma com
que Bataille procura pensar a relação entre o homem e o animal. O animal representa
uma imagem na qual o homem não se reconhece de todo mais uma vez, aquilo que
lhe é estranho e ao mesmo tempo familiar –, evocando algo que, necessariamente,
sempre lhe escapa. E o que tem com isso a poesia, que surge tão repentinamente no
fim da citação? É a essa pergunta que tentaremos responder primeiramente através da
formulação de uma outra pergunta: o que une os dois animais citados acima? A
resposta para esta segunda pergunta está, novamente, no livro de traduções de
Herberto Helder intitulado Doze nós numa corda, que se encerra com a tradução de
um poema presente no romance O lobo das estepes, de Hermann Hesse:
Eu, lobo das estepes, corro, corro,
a neve cobre o mundo,
da bétula levanta voo o corvo,
mas nunca aparece uma lebre, nunca aparece um cervo.
E como eu amo os cervos!
Se acaso encontrasse algum,
prendia-o com garras e dentes:
é a coisa mais bela em que penso.
Com os sensíveis seria também sensível,
devorava-os todos de extremo a extremo,
124
bebia-lhes até ao fundo o sangue púrpura e espesso,
e solitariamente uivava pela noite dentro.
Contentava-me com uma lebre.
É tão doce à noite o sabor da sua carne quente.
Porventura foi-me negado tudo quanto possa, um pouco,
alegrar a vida, um pouco apenas?
A minha companheira, há muito que a não tenho,
o pêlo da minha cauda começa a ficar cor de cinza,
e só quando há bastante luz é que vejo.
Agora corro e sonho com cervos,
ouço o vento soprar nas grandes noites de inverno,
e a minha alma dolorosa, entrego-a eu ao demónio.
(HELDER, 1997a: 159)
Partindo, portanto, do poema de Hesse, procuraremos tecer algumas afinidades
entre o animal que comparece no livro o lobo das estepes e um outro animal que
está presente na obra de Herberto Helder o celacanto precisamente no conto de
mesmo nome publicado n'Os passos em volta. A relação entre homem e animal deve
ser observada cuidadosamente, já que desempenha funções similares, embora distintas,
no romance e no conto.
Ao tentar traçar o paralelo entre eles, constatamos que a problemática que
envolve o protagonista de ambos, romance e conto, apresenta pontos de contato,
facilmente observáveis na tensa relação entre indivíduo e sociedade. Por outro lado, é
importante notar o papel que a conexão com as forças animais – o lobo das estepes e o
celacanto – desempenha em ambos os livros, uma vez que esses seres assumem
funções diferentes nos dois casos.
* * *
O romance de Hesse, escrito em 1927, conta a história de um homem solitário
chamado Harry Haller, de cerca de cinqüenta anos, que se sente incapaz de fazer parte
da vida em sociedade, julgando-se meio homem e meio lobo. Ao alugar um quarto
numa casa tipicamente burguesa, Harry deixa transparecer a sua solidão e, com ela, a
tensa e ambígua relação de amor e ódio que mantém com o mundo: por um lado, é
incapaz de levar uma vida pautada pelas regras burguesas, que despreza; por outro,
admira-as como quem contempla uma realidade desejada e inacessível, tal como
125
quando observa o assoalho encerado e o odor de limpeza nos cômodos da pensão em
que mora; mundo que Harry de todo desconhece:
Fico imaginando que além daquele vestíbulo, sob a sagrada sombra, por assim
dizer, do pinheirinho, existe um lar cheio de móveis de mogno lustrosos e uma
vida saudável e plena de respeitabilidade, com obrigações de levantar cedo, de
respeito aos deveres, de comedidas, mas alegres festas familiares, de ir à igreja
aos domingos e de ir cedo para a cama. (HESSE, s/d: 32)
A dualidade de Harry é explicitada de uma forma simplista: "No 'homem'
encerra tudo o que de espiritual, de sublime ou culto que encontra em si, e no 'lobo'
tudo o que de instintivo, de selvagem e caótico." (Ibid.: 66) E ainda: "Tudo o que é
covarde, símio, estúpido, mesquinho, desde que não seja muito, diretamente lupino,
ele o atribui ao 'homem', assim como atribui ao 'lobo' tudo o que é forte e nobre,
porque não conseguiu ainda dominá-lo." (Ibid.: 71) A divisão entre homem e lobo não
se dá, portanto, na forma de um acréscimo caso em que a força animal representaria
uma elevação das potências humanas, como é o caso nos Cantos de Maldoror, por
exemplo
72
–, mas de uma diminuição. O fato de se sentir meio homem e meio lobo faz
com que Harry não seja nem homem nem lobo, e não um homem que, além de
homem, é também lobo.
Notemos, além disso, que nessa metamorfose uma nostalgia da força
primitiva e selvagem do animal, que o poema retrata um lobo de meia-idade, como
o prório Harry Haller, cuja "cauda começa a ficar cor de cinza", que está "A
minha companheira, muito que a não tenho" –, e perdendo a visão. Reflete também
o sofrimento de um lobo que não mais encontra cervos e lebres para servir-lhe de
alimento.
No conto de Herberto Helder, encontramos um sujeito, também qüinquagenário,
que é exatamente o oposto de Harry Haller. KZ é "um funcionário no ministério das
finanças, casado, 54 anos" (HELDER, 2005: 50) que "vive numa apaziguada zona de
penumbras, cumprindo leis" e tem uma "maneira desmanchadamente exemplar de
72
Lembremos de uma conhecida passagem dos cantos de Maldoror: "Ficai sabendo que o homem, por sua
natureza múltipla e complexa, não ignora os meios de ampliar mais ainda suas fronteiras; vive n'água,
como o hipocampo; nas camadas superiores do ar como a águia-marinha; e sob a terra, como a toupeira, o
bicho da conta e a sublimidade da minhoca." (LAUTRÉAMONT, 2005: 207)
126
cumprir horários, ceder a imposições e solicitações, perfazer dias, nada esperar."
(Ibid.: 52) Até o momento em que uma monografia sobre o celacanto: "O primeiro
contato mas fulminante com a matéria rebarbativa foi a leitura de uma monografia
sobre o celacanto, peixe quase fabuloso que havia poucos anos se julgava desaparecido
da terra e do qual se conheciam apenas fósseis dispersos." (Ibid.:51) (grifo nosso). A
leitura do estudo sobre o animal, considerado um ser fabuloso, fará com que KZ seja
tomado por uma "loucura ictiológica", que o leva a abandonar a família e o trabalho, e
a desaparecer. Arrebatado por uma linha de fuga, para citar uma expressão de Deleuze,
KZ liberta-se das regras, das conveniências do mundo burguês, e atinge uma espécie
de iluminação, movida pela paixão, tal como o narrador do conto não deixa de
sublinhar.
De acordo com Eliane Robert Moraes, os surrealistas, na esteira de Lautréamont,
também elegeram determinados animais para representar a potencialização das
qualidades humanas, e esses são sempre seres estranhos, como o louva-deus e o
ornitorrinco. É importante lembrar que o celacanto, de acordo com o conto, era um
animal considerado extinto e, como dissemos, fabuloso, até o dia em que um desses
monstros é descoberto, e suas fotos, portadoras de um potencial perturbador,
divulgadas nos jornais:
Eles transportavam de um lado para outro fotografias do monstro focado de
ângulos escolhidamente espetaculares e violentos. O que se fazia a favor de um
imaginário de inverossimilhança e truculência. A ilustração verbal era bárbara,
caótica, radical. E essa loucura ia e vinha pela cidade, realizando os seus círculos
apaixonados e estéreis entre as dignidades cotidianas. (HELDER, 2005: 51)
Denunciando a falta de sentido da existência humana, ou, como acabamos de
citar, as "dignidades cotidianas", tanto o romance de Hesse como o conto de Helder
apontam para a subjetividade escravizada pela máquina burguesa, o que faz com que
os indivíduos se arrastem pelo mundo, meio mortos, como se fossem zumbis. KZ tinha
uma família, o que o lobo das estepes jamais poderia ter. A família, símbolo maior da
condição burguesa, é justamente o que, no conto de Helder, se contrapõe à iluminação
de KZ:
127
Eis a ironia da mulher de KZ, admirável ironia, convenha-se, pelo poder
corruptor com que reduz rapidamente uma vida alargada pela paixão ao
enunciado direto de que o marido perdera uma cabeça prometida a melhores
razões. (Ibid.: 50)
O livro de Hesse, produzido no período entre-guerras, assinala também o
dilaceramento próprio à época em que o autor escreve, na qual o seu conhecido
antimilitarismo se tornou um fator de exclusão em relação a seu próprio país, levando-
o a mudar-se para a Suíça. A violência com que o lobo das estepes expõe os seus
desejos nada mais é do que a revolta de um indivíduo incapaz de compactuar com os
ideais belicistas orgulhosamente abraçados pelo povo alemão. Não é à toa que Harry
Haller se identifica com o marginal, com o outsider:
Arde então em mim um selvagem anseio de sensações fortes, um ardor pela vida
desregrada, baixa, normal e estéril, bem como um desejo louco de destruir algo,
seja um armazém ou uma catedral, ou a mim mesmo, de cometer loucuras
temerárias, [...] de violar uma jovem ou de torcer o pescoço a algum defensor da
ordem e da lei. (HESSE, s/d: 30)
KZ não era vítima de desejos destrutivos, mas a conexão com as forças
transgressoras desencadeadas pela leitura da monografia sobre o celacanto faz com
que ele se desprenda da vida burguesa pautada pelo mundo da ordem, da lei e do
trabalho. O animal não desempenha, portanto, papel semelhante nos dois casos. No
romance de Hesse, a oscilação entre o homem e o lobo é exatamente a causa do
sofrimento, uma dicotomia errônea que deverá ser ultrapassada para que Harry
também possa desconstruir a sua identidade. Ao transgredir a lei através da violência,
o lobo das estepes nada mais faz do que afirmá-la. Assim, continua preso nas
armadilhas das convenções sociais: o lobo representa apenas uma oposição à ordem
burguesa, não a sua ultrapassagem. no conto de Helder, o celacanto é a própria
fonte da despossessão: do contato com a sua imagem, pura alteridade, KZ torna-se
outro, enlouquece, desaparece.
Se a leitura desempenha no conto papel essencial – a leitura da monografia sobre
o celacanto é o que possibilita a transformação de KZ –, no romance de Hesse também
desempenhará papel semelhante. Pois Harry Haller recebe na rua um "livrinho
delgado" intitulado Tratado do Lobo da Estepe. Somente para os raros, que com
128
avidez, uma vez que o folheto lhe proporciona a estranha experiência de ver a sua vida
retratada ali, "por alguém que sabia mais, e, no entanto, também menos do que eu".
(HESSE, s/d: 72) O poema traduzido por Herberto Helder aparece no romance logo
em seguida ao término da leitura do livreto, pois foi escrito pelo próprio Harry,
funcionando como uma espécie de auto-retrato.
Entretanto, uma diferença entre o conto e o romance deve ser assinalada: se no
conto de Herberto a leitura é o lugar da iluminação, no romance de Hesse esse papel
caberá ao teatro. Pois é através do teatro mágico, local fantástico por excelência, que
Harry descobrirá, por meio do reflexo de um espelho, o modo de ultrapassar a
dicotomia entre o homem e o lobo, percebendo-se não como uma dualidade, mas sim
como um ser composto por uma infinidade de seres:
E vi, durante um brevíssimo instante, o Harry que eu conhecia, mas com uma
fisionomia inusitada, de bom humor, luminosa e sorridente. Mal o reconheci,
porém, desfez-se em pedaços, dele saltando uma segunda figura, uma terceira e
logo dez ou vinte, e todo o espelho gigantesco estava cheio de Harrys e de
fragmentos de Harrys, infinitos Harrys, cada um dos quais eu olhava e reconhecia
em um momento instantâneo como um relâmpago. (Ibid.: 181)
Tal como em Pessoa, que, alguns anos antes, se divide em seus heterônimos, a
"cura" de Harry (e aqui empregamos essa palavra propositalmente para assinalar a
dívida de Hesse em relação à psicanálise) só é possível através da dispersão do eu e da
descoberta do humor. Porque o que se revela, acima de qualquer outra coisa, é a
impossibilidade de o homem compreender-se segundo o princípio da identidade. O
lobo das estepes é o duplo de Harry, mas este duplo assinala exatamente a sua
pluralidade. Como afirma, mais uma vez, Eliane Robert Moraes,
se o duplo aparece sob o disfarce de réplica no sósia, na sombra ou no reflexo
do espelho –, sua verdadeira condição não se reduz jamais ao mero status de
cópia. Pelo contrário, a aparição do duplo vem quase sempre denunciar a ilusão
das aparências que conferiam ao homem uma identidade, revelando o absurdo da
suposta integridade que o constituía. (MORAES, 2003: 127)
Entretanto, no romance de Hesse, o desprendimento não se por completo, e
Harry, depois da experiência no teatro mágico, ainda tem muito o que aprender. De
129
KZ, ao contrário, não se pode dizer o mesmo. A leitura desempenha, portanto, papel
fundamental, embora distinto, nos dois casos. Com KZ, a transformação ocorre, de
fato, como conseqüência de sua posição de leitor da monografia sobre o celacanto. O
que corrobora a hipótese defendida nesta tese de que o leitor não pode se furtar aos
efeitos imprevisíveis que as leituras provocam sobre ele.
Como nota Blanchot (2005), HH são as iniciais de Harry Haller e também as
de Herman Hesse. Acrescentemos à lista as iniciais de Herberto Helder, formando uma
espécie de tríade em que vida, obra, leitura e escrita se confundem de forma
indissociável. Herman Hesse, que estava com 50 anos, escreve O lobo da estepe,
romance no qual Harry Haller, também com cinqüenta anos, um tratado Tratado
do Lobo da Estepe – escrito por um estranho, no qual se vê retratado de forma
espantosa, isto é, um folheto no qual o personagem a sua própria história contada
por um outro. Herberto Helder, por sua vez, lê e traduz o poema, não assinado por
Hesse, mas sim por Harry Haller.
A escrita é, portanto, um ato de leitura, no qual o autor se compromete numa
dupla direção: ele modifica os textos com os quais entra em contato e, ao mesmo
tempo, modifica a si próprio a partir da leitura que empreende, como no jogo de
espelhos presente no "Teatro Mágico" freqüentado por Harry Haller, em que cada
distorção de uma imagem gera, por sua vez, outras imagens distorcidas. Os autores
traduzidos por Herberto Helder não são meras escolhas casuais, mas sim verdadeiros
eleitos para um canibalismo amoroso, efetuado a partir de uma conexão que assimila
características do autor devorado e metamorfoseia o devorador. Essa experiência da
perda da identidade através da dispersão do eu no outro é, em última análise, uma
espécie de morte, morte essa que se faz presente no ato da criação poética. O caráter
destrutivo da poesia que tantas vezes apontamos é necessário para a compreensão
dessa morte, pois aponta para o limite da linguagem e a conseqüente dissolução da
identidade. Daí que a presença do animal seja aqui tão importante. Como assinala
Paula Glenadel, "a linguagem encontra na animalidade seu limite mas, justamente, a
poesia se escreve sempre no limite." (GLENADEL, 2004: 240)
Por isso, no conto "O celacanto", Herberto descreve da seguinte forma o papel
que os tratados de ictiologia desempenham no mundo:
130
Amor eis a palavra. O puro amor dos ictiologistas. Mas a cidade era
inatacável. A máquina funcionava: os jardins, e a polícia, e os nomes, as
imagens caçadas no ar, o trânsito das metáforas bancárias, ou os quartos
onde se acorda para morrer [...]: a vida inteira estancada como um dia entre
duas noites, os medos, os ministérios. E os ictiologistas praticavam o seu
terrorismo luminoso. Escreviam monografias onde a paixão interna
corrompia a objetividade: era uma ciência rebelde. (HELDER, 2005: 52)
Os tratados de ictiologia podem não mudar o mundo, mas revelam as paixões por
trás das frias paredes das casas. E provocam iluminações. A monstruosidade do animal
seu caráter de estranheza corresponde à potência desagregadora que carrega em si
a possibilidade de transformação. Desse modo, retornamos à relação entre poesia e
animalidade apontada na epígrafe de Bataille, lembrando que a animalidade, segundo
o autor, é aquilo que escapa ao homem. Assim, a ciência dos ictiologistas, essa ciência
rebelde, terrorista, que escapa e faz escapar, provocando paixões e iluminações, nada
mais é do que a própria poesia.
131
4
Conclusão, ou um último nó: a cicatriz
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor [...]
(JORGE, 2001: 141)
Chegamos agora ao momento de concluir, e perguntamo-nos se numa tese de
literatura uma conclusão é mesmo possível. Pois aqui não estamos em busca da
verdade ou da certeza, e uma conclusão, a nosso ver, poderia falsear o objeto de
estudo. Daí que nesta conclusão, ou nesta inconclusão, deixaremos evidentes os
problemas não resolvidos que emergem da poética de Herberto Helder.
Se em muitos momentos nosso poeta parece por demais seguro, como quando
afirma a liberdade buscada em seus trabalhos de tradução, em outros momentos sua
poética aponta para uma vacilação, para o erro, o tropeço. De fato, a palavra liberdade
está muito presente na tese, herança, talvez, do próprio Surrealismo; entretanto, é
preciso olhá-la com desconfiança. Não podemos embarcar numa concepção ingênua
de que, ao fazer uso de uma suposta liberdade criativa, o poeta escreve, ou traduz,
como se fosse um senhor se si, livre de todo e qualquer constragimento. Ao contrário,
a liberdade também é dialética, e quando o poeta afirma libertar-se do texto anterior
seja ele o original de uma tradução, um outro livro, como ocorre no caso do Húmus de
Raul Brandão, que Herberto Helder "deslê", ou até mesmo da própria literatura –, ele
está, ao mesmo tempo, reafirmando a sua dívida com o passado. Portanto, se iniciamos
esta última etapa do nosso percurso com os célebres versos de Luiza Neto Jorge foi
porque Luiza, mais do que ninguém, soube mostrar que o poema não é um lugar de
certezas, que não é o lugar da verdade, mas que há uma verdade que surge do erro. Em
outras palavras, é Luiza quem nos diz que "o poema ensina a cair". E, muitas vezes,
das quedas resultam cicatrizes.
Afirmamos também que, em Artaud, a experiência poética vinha assinalada pelo
viés da falha com as palavras e, conseqüentemente, pela necessidade de fazer com que
132
a falha e o rateio sejam vistos não como uma diminuição ou negação da capacidade
poética, e sim como a sua marca, seu traço. Convém sublinhar também que, encarada
dessa forma, a falha tem um sentido positivo, pois é a partir dela que Artaud procura
encenar um mecanismo de eclosão do novo. Na poética de Herberto Helder, apesar de
o aspecto de exaltação ser muito mais explícito que o da falha, tal traço também é
visível, deixando-nos notar que a sua poesia não está atrelada a um caráter heróico e
triunfal. Ainda que o poeta esteja à procura de uma palavra que faça irromper uma
potência fulgurante e transformadora, tentaremos mostrar, para concluir tudo o que foi
exposto até o momento, que essa procura se realiza sob o signo do humano, do finito,
do instável. Como ponto de partida dessa argumentação, citaremos, portanto, "O
poema", de A colher na boca:
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.
(HELDER, 2004: 32)
Como acabamos de enfatizar, a busca dessa palavra que, diga-se de passagem,
tem a fulgurância e a efemeridade de um raio por vezes é lida como a tentativa de
recuperação de uma língua pré-babélica, de uma palavra fundadora na medida em que
remeteria a um tempo anterior ao gesto adâmico que representou a perda do paraíso.
Dito de outra forma, a poética de Herberto Helder pode aparecer associada a um
movimento de retorno à origem pensada como um tempo primeiro, tempo mítico de
aliança entre o homem e o mundo, que remeteria à plenitude e à harmonia de uma
unidade primordial
e de uma totalidade a ser encontrada. Partindo desse pressuposto,
sua poesia assumiria, então, uma dimensão religiosa, em que o ato poético seria
também uma espécie de ato mágico de unificação.
Porém, chegado o momento de consumar este longo ensaio, concluiremos que o
ato de escrita só pode ser pensado a partir de uma instabilidade que o ameaça, fazendo
133
com que o poema esteja sempre além ou aquém daquilo que pretende ser, de modo
que o texto, muitas vezes, "não faz o que diz e não diz o que faz", como bem
observara Pedro Eiras. (EIRAS, 2005: 487) Além disso, a atividade poética determina
uma interrupção na continuidade do sujeito que impede a sua coincidência consigo
mesmo. Ainda de acordo com Eiras, essa interrupção dá a ver a "agonia" característica
do sujeito que se define como linguagem, apontando também para uma abertura, uma
impossibilidade de síntese total, embora o texto de Herberto Helder pareça, em muitos
momentos, sugerir essa busca de totalidade: "A abertura à pluralidade desfaz qualquer
unidade do sujeito, da escrita, do mundo, mesmo quando o texto define ícones de
totalidade." (Ibid.: 404) Tal instabilidade expõe o poeta a novas configurações,
assumindo uma correspondência com a imagem do ator, que ele permuta diversas
máscaras e não tem uma identidade fixa: “O actor põe e tira a cabeça / de búfalo. / De
veado. / De rinoceronte.” (HELDER, 2004: 114)
Além disso, sua poética situa-se no âmbito de uma busca nunca inteiramente
concluída, que, como vimos, aproxima-se da tarefa do tradutor naquilo que ela tem de
diferimento, de malogro. Exemplar nesse sentido seria o poema "Bicicleta"
73
, de
Cinco canções lacunares, que remete, segundo parâmetros que nos fazem pensar em
Artaud, à falha como lugar de constituição do sujeito e do próprio poema: "vai a
bicicleta do poeta em direcção / ao símbolo, por um dia de verão / exemplar." (Ibid.:
243) O poeta, confiante, pedala em direção ao símbolo, na busca de um aspecto pleno
e totalizante da existência. Entretanto, esse poeta/ciclista, ao pedalar, não pode evitar
os deslizes que o afastam de seu objetivo e, ao mesmo tempo, prenunciam algo novo.
Daí que a continuação de sua trajetória seja marcada por um momento de desvio, de
interrupção, de derrapagem. A característica de sujeito em suspensão vem sublinhada
pelos seguintes versos, presentes na segunda estrofe do poema: "e a bicicleta
ultrapassa / o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa / no instante da graça."
(ibid.: 243) Essa derrapagem, ponto nodal do poema, é justamente o momento em que
o pedalar é interrompido bruscamente, em que um corte na linearidade, no fluxo
homogêneo do deslocamento e de uma determinada história, de forma a produzir um
acontecimento inesperado. E é a partir da derrapagem e da interrupção do movimento
73
Ver apêndice V
134
que o poeta/ciclista se conta da direção real à qual seu pedalar conduz, que não é
mais ao símbolo, mas a uma via de mão dupla onde se apresentam duas forças
contrárias: o amor e a morte.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior. (ibid.: 244)
O que significa que é a partir do deslize, do fracasso, que a dimensão da finitude,
a dimensão humana propriamente dita, se deixa ver. Aqui, não mais lugar para
heróis, não há mais lugar para a imortalidade. Um problema recorrente que vem sendo
discutido neste trabalho é a tensão evidenciada entre forças opostas lidas em sua
coexistência, não conduzindo jamais a uma anulação. É, pois, no dialogismo entre elas
que o texto se constitui como um espaço de instabilidade, determinando a necessidade
de aceitarmos as duas forças contrárias amor e morte que, já desde Freud
74
, são
pensadas como aquilo que move o homem, ou seja, que tornam o poema possível. De
fato, na poesia de Herberto Helder, o lugar da finitude e da morte é também o da
experiência poética: "Morrer era agora a minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para
executá-la pormenorizadamente." (HELDER, 1973: 159)
Se no percurso decorrido até o momento perseguimos com freqüência o diálogo
com a tradução foi por acreditarmos que as questões com as quais o tradutor se depara
podem servir de parâmetro para pensarmos as que são enfrentadas pelo próprio poeta.
A experiência poética é, em última análise, a procura de algo que nunca se pode
alcançar, seja o silêncio, seja a origem ou a ngua única; objetivo que nunca se atinge
completamente, determinando a repetição do movimento, a necessidade de recomeçar.
Como ocorre com o narrador do conto "Como se vai a Singapura", fica evidente a
falha do projeto, seu fracasso inevitável. Assim, mais uma vez na auto-entrevista,
Herberto Helder afirma:
Escreve-se um poema devido à suspeita de que enquanto o escrevemos algo vai
acontecer, uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará
tudo. Como na infância, quando se fica à porta de um quarto obscuro e vazio. [...]
74
Referimo-nos à pulsão de vida e à pulsão de morte, Eros e Thanatos.
135
Às vezes pára-se no meio de um jardim ou de um parque ou de uma avenida
deserta. São variantes do quarto. Acontece o mesmo, quero dizer: não acontece
nada. [...] E recomeça-se. O mesmo, sempre. Nada. (HELDER, 2001b: 190)
É importante acrescentarmos que também Benjamin nos fala dessa visada ao
"reino prometido" como um objetivo que nunca se realiza, uma aspiração messiânica
que ocorreria num futuro sempre diferido. Nesse sentido, a tradução tem o mérito
de evidenciar a distância entre aquilo que se visa e o que se atinge de fato, pois revela
que a diferença e a incompletude não são exteriores às línguas, mas intrínsecas a elas,
ou seja, que não incompletude apenas na relação entre texto original e texto
traduzido, mas que o próprio original já é portador de um princípio de estranheza, pois
apresenta uma dessemelhança em relação a si mesmo que impediria a chegada ao
"reino prometido". É o que afirma Katia Muricy em sua leitura de "A tarefa do
tradutor":
A tradução revela que também o original comporta o estranhamento de diversas
significações. No trabalho do tradutor, tanto quanto no trabalho do artista, um
estranhamento que vem da experiência da distância inexorável entre o dito e o
que se quer dizer. Uma tradução literária tem o mérito de ser um processo que
evidencia de maneira exemplar este estranhamento. (MURICY, 1999: 119)
O último poema com que trabalharemos aqui será lido, portanto, como ilustração
desse árduo trabalho do tradutor que, de acordo com o que afirmamos até agora, é
análogo ao do poeta. Américo António Lindeza Diogo, num ensaio sobre Herberto
Helder, nos fala de Exemplos como o desvelamento da tensão entre "a descontinuidade
humana e um contínuo absoluto" (DIOGO, 2001: 186) manifestada num trabalho que
visa à superação, impossível e necessária, desse impasse: o trabalho poético. Como
nos lembra Marcos Siscar, em ensaio ainda inédito sobre "Crise de vers", de
Mallarmé, o próprio poema situa-se num beco sem saída, num lugar de crise, uma vez
que o verso, derivado do latim, versus, retorno, significa a repetição e o
deslocamento da linha. Aqui, cabe mais uma vez lembrarmos o novo título da Poesia
Toda de Herberto Helder: Ou o Poema contínuo. Continuidade que advém da sua
própria descontinuidade, ou seja, os versos se repetem porque se interrompem, porque
136
exigem a presença do ponto final, do fechamento do livro, que é também o lugar do
silêncio.
Assim, uma vez que a exigência de interrupção é inelutável, o poema a seguir,
retirado de Última ciência, apresentará a imagem que escolhemos para pôr fim a esta
tese: a imagem da cicatriz.
É amargo o coração do poema.
A mão esquerda em cima desencadeia uma estrela,
em baixo a outra mão
mexe num charco branco. Feridas que abrem,
reabrem, cose-as a noite, recose-as
com linha incandescente. Amargo. O sangue nunca pára
de mão a mão salgada, entre os olhos,
nos alvéolos da boca.
O sangue que se move nas vozes magnificando
o escuro atrás das coisas,
os halos nas imagens de limalha, os espaços ásperos
que escreves
entre os meteoros. Cose-te: brilhas
nas cicatrizes. Só essa mão que mexes
ao alto e a outra mão que brancamente
trabalha
nas superfícies centrífugas. Amargo, amargo. Em sangue e exercício
de elegância bárbara. Até que sentado ao meio
negro da obra morras
de luz compacta.
Numa radiação de hélio rebentes pela sombria
violência
dos núcleos loucos da alma. (HELDER, 2004: 462)
A construção do poema se através do trabalho de duas mãos, numa atividade de
certa forma especular, embora apenas a mão direita, que "mexe num charco branco",
escreva. Trata-se, mais uma vez, de um exercício intervalar que se efetua no espaço entre
as duas mãos, assinalando a proximidade e a distância de "mão a mão salgada". Como o
que ocorre na tradução entre o texto original e o texto traduzido, as duas mãos, apesar de
distintas e separadas, correspondem-se, suplementam-se, de modo que a mão direita, que
escreve, traduz o ofício da mão esquerda, o desencadeamento de uma estrela. Assinalável
é também o fato de a distância entre as mãos aparecer associada à imagem de uma ferida
e de sua posterior necessidade de sutura: "feridas que abrem, / reabrem, cose-as a noite,
recose-as / com linha incandescente." Aqui, a busca da continuidade e da totalidade é
137
visível, embora o diferimento fique explícito através da repetição que se manifesta na
necessidade de refazer a sutura, pois as feridas "reabrem" e a noite "recose-as", num
trabalho incessante. A impossibilidade de realização desse projeto de totalidade será
assinalada com uma marca indelével, revelada no poema através da imagem da cicatriz
que, segundo Pedro Eiras, pode ser tomada como paradigma da poesia herbertiana: "A
metáfora da cicatriz pode ler-se como permanência de um corte anterior (donde a
separação diferenciadora) e como reunião dos fragmentos pela nova costura (donde a
nova totalidade)." (EIRAS, 2004: 394)
Porém, não devemos pensar que em algum momento anterior, num tempo mítico da
origem, tenha existido uma totalidade que o poema pudesse reimplantar, pois tal desejo
de totalidade se pelo fato de a linguagem ser fragmentária, por carregar em si a
falha a partir da qual a sutura se anuncia como impermanente. E é também esse caráter
fragmentário e plural da linguagem que a tradução revela de forma exemplar, fazendo
com que o tradutor venha a estranhar aquilo que, para ele, era o mais familiar: não a
língua estrangeira, mas a sua própria língua. É o que sublinha Susana Kampff Lages em
sua leitura do ensaio de Benjamin:
A desarticulação inerente ao texto original, da qual nos apercebemos ao ter de
traduzi-lo, corresponde a uma espécie de alienação que mantemos,
inconscientemente, de nossa própria língua materna, essa língua que é nossa pátria,
em que nos sentimos, aparentemente, à vontade, protegidos. (LAGES, 2002:173)
A promessa messiânica da conquista de uma totalidade não pode, pois, ser
cumprida, e é isso o que ocorre com o tradutor, que também não pode retornar a uma
língua única, e a sua atividade marcada pelo signo do fracasso. Fracasso que aponta,
de certa forma, como assinala João Camillo Penna em seu ensaio sobre o texto de
Benjamin, para uma superioridade da tradução em relação à poesia. Assim, ao retomar a
leitura de Paul de Man, repete uma indagação do primeiro: "se 'A tarefa do tradutor' é na
verdade uma poética, uma tese sobre a linguagem da poesia, por que então Benjamin teria
escolhido a figura do tradutor e não a do poeta?" (PENNA, 2004: 362) Indagação que não
poderia ser mais relevante, uma vez que o principal tema do ensaio é, de fato, a
linguagem poética. Ora, como assinala ainda João Camillo Penna, Paul de Man conclui
138
que o tradutor foi escolhido porque a sua tarefa, mais do que a do poeta, é capaz de
revelar o fracasso que caracteriza a ambas, mas que se torna mais explícito na tradução.
Por isso, ao concluir seu ensaio, João Camillo Penna nos lembra que a discussão
de Benjamin a respeito da visada à "língua pura" que a tradução vem apontar não
significa um retorno a "uma linguagem originária, mítica, simbólica, à linguagem
nomeadora." (Ibid.: 370) Mais do que isso, o que está em jogo na "tarefa do tradutor" é a
revelação de que "há uma falta inscrita na diversidade das línguas, que impede a
cunhagem única da verdade. [...] É esta falta que a poesia deve indicar." (ibid.: 370) Ora,
se a tradução nos faz ver essa falta através da angustiante tarefa, que é também a
desistência, do tradutor, a poesia nos faz vê-la de outra forma. Notemos que no poema de
Herberto Helder a falta aparece metaforizada na imagem da cicatriz, que indica, ao
mesmo tempo, a ruptura e a sutura, realizada, esta última, com "linha incandescente":
"Cose-te: brilhas / nas cicatrizes." Nesse ponto, permitimo-nos uma contraposição ao
texto de Benjamin: não, não uma superioridade da tradução em relação à poesia, pois
se a tradução tem o mérito de revelar o fracasso de forma mais objetiva e explícita, a
poesia tem o dom de transformar esse fracasso, essa falta da língua única, numa cicatriz
resplandecente.
139
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Obras de Herberto Helder:
HELDER, Herberto. Ou o poema contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004
––––––. Ou o poema contínuo. Lisboa: Assírio &Alvim, 2001a
––––––. Poesia toda 2. Lisboa: Plátano, 1973
––––––. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995
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148
APÊNDICE I
A menstruação quando na cidade passava
o ar. As raparigas respirando,
comendo figos – e a menstruação quando na
cidade
corria o tempo pelo ar.
Eram cravos na neve. As raparigas
riam, gritavam – e as figueiras soprando de
dentro
os figos, com seus pulmões de esponja
branca. E as raparigas
comiam cravos pelo ar.
E elas riam na neve e gritavam: era
o tempo da menstruação.
As maçãs resvalavam na casa.
Alguém falava: neve. A noite vinha
partir a cabeça das estátuas, e as maçãs
resvalavam no telhado – alguém
falava: sangue.
Na casa, elas riam – e a menstruação
corria pelas cavernas brancas das esponjas,
e partiam-se as cabeças das estátuas.
Cravos – era alguém que falava assim.
E as raparigas respirando, comendo
figos na neve.
Alguém falava: maçãs. E era o tempo.
O sangue escorria dos pescoços de granito,
a criança abatia a boca negra
sobre a neve nos figos – e elas gritavam
na sombra da casa.
Alguém falava: sangue, tempo.
As figueiras sopravam no ar que
corria, as máquinas amavam. E um peixe
percorrendo, como uma antiga palavra
sensível, a página desse amor.
E alguém falava: é a neve.
As raparigas riam dentro da menstruação,
comendo neve. As cabeças das
estátuas estavam cheias de cravos,
e as crianças abatiam a boca negra sobre
os gritos. A noite vinha pelo ar,
na sombra resvalavam as maçãs.
E era o tempo.
E elas riam no ar, comendo
a noite,
alimentando-se de figos e de neve.
E alguém falava: crianças.
E a menstruação escorria em silêncio –
na noite, na neve –
espremida das esponjas brancas, lá na noite
das raparigas
que riam na sombra da casa, resvalando,
comendo cravos. E alguém falava:
é um peixe percorrendo a página de um amor
antigo. E as raparigas
gritavam.
As vacas então espreitando,
e nos focinhos consumia-se o lume em
silêncio.
Pelas janelas os violinos
passavam pelo ar. E a menstruação nas
raparigas
escorria pela sombra, e elas
gritavam e comiam areia. Alguém falava:
fogo. E as vacas passavam pelos violinos.
E as janelas em silêncio escorriam
o seu fogo. E as admiráveis
raparigas cantavam a sua canção, como
uma palavra antiga escorrendo
numa página pela neve,
coroada de figos. E no fogo as crianças
eram tocadas pelo tempo da menstruação.
Alimentavam-se apenas de figos e de areia.
E pelo tempo fora,
riam – e a neve cobria a sua página de tempo,
e as vacas resvalavam na sombra.
Em silêncio o seu lume escorria das esponjas.
Partiam-se as cabeças dos violinos.
As raparigas, cantando as suas crianças,
comiam figos.
A noite comia areia.
E eram cravos nas cavernas brancas.
Menstruação – falava alguém. O ar passava –
e pela noite, em silêncio,
a menstruação escorria pela neve.
(HELDER, 2004: 196-198)
149
APÊNDICE II
Estão aqui presentes apenas a primeira e a última parte do poema, devido à sua
extensão:
E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia
primeiro.
... e fez a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que
estavam por cima do firmamento. (Génesis).
... e eis que havia um grande terramoto: e o sol tornou-se negro como um saco de silício: e
a lua tornou-se sangue.
E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus figos verdes,
abalada de um grande vento:
E o céu retirou-se como um livro que se enrola: e todos os montes e ilhas se moveram dos
seus lugares.
E vi os mortos, pequenos e grandes,... e foram abertos os livros. (Apocalipse).
Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações.
(François Villon)
Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja simples
lembrança basta para despertar o terror.
Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso. (Dante).
Maravilha fatal da nossa idade. (Camões)
Rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, luz terrível que os homens e as mulheres
beijavam cegamente e a que ficavam presos pela boca, arrastados, violentamente brancos
mortos. E essa colina subia e girava, puxando pelos lábios os seres deslumbrados e aniquilados.
E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Em baixo, vermelhas, estalavam as
cúpulas. (Autor)
* * *
... luz selvagem... e terramoto que se enrola de estrelas... e água abalada... inextricável... o
sol num saco de vento... e a lua debaixo das ilhas que se moveram... e livros em silício dentro dos
mortos verdes... e coração dos figos abertos... maravilha nos grandes lugares por cima... e montes
como dentro das águas negras... espaço... separação... e mulheres vermelhas com cúpulas... a
antiga colina do firmamento... e homens violentamente... sons cegamente... e seres arrastados do
céu da boca para... luz selvagem...
... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã,
dia primeiro...
(HELDER, 2004: 217-221)
150
APÊNDICE III
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si sómente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.
(CAMÕES, 1980: 265)
151
APÊNDICE IV
TRÍPTICO
I
«Transforma-se o amador na coisa amada», com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.
Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.
Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.
E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor. (HELDER, 2004: 13-14)
152
APÊNDICE V
BICICLETA
Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais —
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.
O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e des
aparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.
De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.
Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.
Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.
(HELDER, 2004: 243-244)
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