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Adriana Vidal de Oliveira
A EXPRESSÃO CONSTITUINTE DO
FEMINISMO: Por uma retomada do
processo liberatório da mulher
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Direito do Departamento de Direito da
PUC-Rio.
Orientador: Prof. Adriano Pilatti
Rio de Janeiro
julho de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510776/CA
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Adriana Vidal de Oliveira
A EXPRESSÃO CONSTITUINTE DO
FEMINISMO: Por uma retomada do
processo liberatório da mulher
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Direito do Departamento de
Direito da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para a obtenção do título de Mestre em
Direito.
Prof. Adriano Pilatti
Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Francisco de Guimaraens
Departamento de Direito – PUC-Rio
Profª. Leonora Figueiredo Corsini
UFRJ - LABTEC
Prof.º João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro
de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 de julho de 2007.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510776/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem a autorização do autor, do orientador e da
universidade.
Adriana Vidal de Oliveira
Graduada em Direito pela PUC-RIO em 2003 e pós-graduada em
Direito pela mesma universidade em 2007. Áreas de interesse são
Feminismo, Filosofia do Direito, Teoria do Direito e Teoria do
Estado.
Ficha Catalográfica
CDD: 340
Oliveira, Adriana Vidal de
A Expressão Constituinte do Feminismo: por uma
retomada do processo liberatório da mulher / Adriana Vidal
de Oliveira; orientador: Adriano Pilatti – Rio de Janeiro: PUC,
Departamento de Direito, 2007.
179f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.
Inclui referências bibliográficas.
1. Direito Teses. 2.Judith Butler. 3.Feminismo. 4.Atos
Performativos. I. Pilatti, Adriano. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. IV.
Título.
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Agradecimentos
É muito comum a reclamação entre os mestrandos de que o trabalho de elaboração
da dissertação é bastante solitário. Sem dúvida, o momento da escrita ficou restrito,
na maior parte do tempo, a essa reclusão. Porém, seria uma extrema injustiça
atribuir a realização do trabalho somente a esse momento, quando na verdade, essa
foi a menor parte. Além disso, após esse ingresso nos estudos da multidão,
descobri, nas palvras de Deleuze e Guattari, que “cada um de nós já é vários” e que
há um movimento contínuo entre as singularidades e a multidão. Definitivamente,
esse não é um trabalho solitário. Fica aqui registrado o agradecimento à multidão
que o produziu.
Ao meu orientador Adriano Pilatti e ao professor Francisco de Guimaraens, que me
apresentaram ao autor Antonio Negri, me orientaram no ingresso em sua teoria e
foram os grandes responsáveis pelo meu interesse nesse caminho trilhado pela
tradição de pensamento da qual o autor faz parte. O professor Florian Hoffman
também teve um papel importante nessa trajetória, com as críticas e observações
feitas em relação ao projeto de dissertação. Aos secretários Anderson e Carmen,
pelo carinho e pela atenção com que sempre atendem aos alunos da pós-graduação
da PUC
Aos meus pais, sempre muito especiais, que foram importantes nesse momento,
pois me apoiaram e deram a melhor estrutura que podiam desde que decidi
participar da seleção do mestrado até o momento da impressão da dissertação. Meu
irmão também foi fundamental, pois sempre foi um exemplo de tranqüilidade no
meio da turbulência.
Já que o tema é multidão e heterogeneidade, os queridos amigos que me
acompanharam ao longo desse caminho merecem ser lembrados nesse momento,
especialmente a minha turma de mestrado, que apesar das divergências de
experiências e de convicções teóricas, soube constituir um comum sem desprezar
as singularidades. Um especial agradecimento à grande amiga Tatiana Figueiredo,
que me deu apoio nos estudos para a prova do mestrado e às amigas Karen, Ligia,
Livia, Paula e Samantha, não só interlocutoras da melhor qualidade quando a
questão é acadêmica, mas também doutoras quando o tema é diversão.
Por fim, um agradecimento especial ao meu grande amor Rodrigo de Souza Costa,
que entrou na minha vida há tão pouco tempo, porém, produziu transformações
radicais e abraçou como uma causa própria a dissertação. Além disso, seu apoio e
carinho incondicionais foram fundamentais para a produção desse trabalho.
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Resumo
Oliveira, Adriana Vidal de; Pilatti, Adriano (Orientador). A expressão
constituinte do feminismo: por uma retomada do processo liberatório
da mulher. 2007. 179p. Dissertação de Mestrado – Departamento de
Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Existe uma grande variedade de teorias feministas. Cada uma fundamenta
a conquista de direitos das mulheres de forma bem distinta. O surgimento das
vertentes do feminismo ocorre segundo as necessidades e os interesses em disputa
da época em que elas são cunhadas. Por esse motivo, muitas podem, a princípio, ter
uma aparência inovadora, de ruptura com uma determinada estrutura de poder
imposta sobre o corpo da mulher. Porém, quando analisadas com o auxílio da
perspectiva de poder constituinte trabalhado pelo autor Antonio Negri, a aparência
de liberação não se sustenta, demonstrando que, na verdade, pode ser resultado de
um esforço em sentido contrário ao processo revolucionário, um esforço próprio do
poder constituído para frear a liberação da mulher. Nesse sentido, a autora Judith
Butler tece importantes críticas a categorias utilizadas de forma bastante freqüente
não somente pelo feminismo, como também por outros movimentos de minorias;
estratégias de luta que, em vez de auxiliar na expansão do feminismo, acabam
fazendo com que o movimento feminista e suas teóricas ou teóricos usem o mesmo
aparato do poder para criar condições desiguais para as mulheres. Um desses
recursos é o apelo à identidade, que exclui diversas categorias do movimento e é
fundamental para a elaboração do conceito de Outro. As críticas a essa estratégia
tradicional, bem como a teoria fundada pela autora ajudam a pensar em uma nova
forma de se retomar o processo liberatório das mulheres.
Palavras-chave
Judith Butler, Feminismo, Processo Revolucionário, Atos Performativos,
Mulher, Liberação, Multidão, Poder Constituinte, Antonio Negri
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Abstract
Oliveira, Adriana Vidal de; Pilatti, Adriano (Advisor). The Constituent
Expression of Feminism: for the retaking of the woman liberation. Rio
de Janeiro, 2007. 179p. Dissertação de Mestrado – Departamento de
Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
There is a great variety of feminist theories. Each one of them explains the
achievement of women rights in a different way. Feminism theories emerged
according to the necessities and conflict of interests of the period in which they
were created. For this reason, much of them may appear in the first moment to be
innovative, to be going against certain power structure imposed upon woman’s
body. Nevertheless, when those theories are analyzed through the lens of the
constituent power perspective used by Antonio Negri, the liberation perspective
does not hold itself. In fact, they seem to be the result of an opposite effort
towards the revolutionary process, an effort of the constituted power to break the
liberation of women. In this sense, Judith Butler makes important criticisms to the
frequently-used categories by the feminism movement and other minority
movements. According to her, the struggle strategies used by minority
movements lead the feminist movement to utilize the same apparatus of power that
create unequal conditions for women, instead of supporting feminism expansion.
One of the resources used is the appeal to identity, which excludes several
categories of the movement and is essential to the elaboration of the Other
concept. The criticisms to this traditional strategy as well as the theory founded
by Butler help to enlighten a new way to retake the liberation process of women.
Keywords
Judith Butler, Feminism, Revolutionary Process, Performative Acts,
Woman, Liberation, Multitude, Constituent Power, Antonio Negri
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Sumário
Introdução
9
1. Pressupostos teóricos para a reflexão sobre o tema
13
1.1 Multidão e Imanência: a multiplicidade de singularidades e a
viabilização desse processo pela ausência de modelo
14
1.2 O poder constituinte na concepção da tradição herdada por
Antonio Negri e Michael Hardt
28
2. Os processos revolucionários das mulheres: experiências
preparatórias da primeira e da segunda onda do feminismo no
ocidente
52
2.1Os primeiros conventos como uma possibilidade de fuga do
casamento: a mobilidade da mulher no início do Cristianismo
56
2.2Da Renascença às revoluções americana e francesa: os esforços
da modernidade para impedir os processos liberatórios das
mulheres
69
2.3As incoerências do contratualismo como suporte para a teoria
feminista
89
2.4 O surgimento da primeira onda de feminismo 101
2.5 O impacto da segunda onda do feminismo na década de 1960
123
3. Pelo retorno ao processo liberatório da mulher: a crítica de
Judih Butler às estratégias de luta feminista e sua proposta
para retomada do poder constituinte
134
3.1 Os fundamentos da Teoria Queer: uma perspectiva inovadora
sobre o feminismo
135
3.2 A apropriação dos atos performativos pela multidão: uma
possibilidade subversiva
154
Conclusão
171
Bibliografia
176
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Nada é impossível de mudar
Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito
como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural
nada deve parecer imutável
(Bertold Brecht)
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1
Introdução
O tema do presente trabalho começou a surgir no segundo semestre de 2005,
com a leitura de uma das obras de Antonio Negri, O poder constituinte: ensaio
sobre as alternativas da modernidade, ao longo da disciplina de estudo de
autores. Precisamente, o capítulo sobre a revolução americana foi o que
possibilitou uma primeira cogitação acerca do tratamento que poderia ser dado à
análise do movimento feminista. Negri entende que o poder constituinte
americano foi encerrado pelo poder constituído com a constituição dos Estados
Unidos e com a instituição da Federação, tendo sido retomado a partir dos anos
1950 e 1960, com o movimento negro. Um dos principais argumentos para que o
autor identificasse um freio imposto ao poder constituinte no processo
revolucionário foi a manutenção da escravidão após a independência. A questão
dos negros havia, portanto, ficado pendente.
Por esse motivo, Negri ressalta que o processo revolucionário somente foi
reiniciado na história americana com a articulação dos afro-americanos. Essa
afirmação permitiu que diversas questões surgissem sobre a avaliação feita pelo
autor em relação a esse procedimento revolucionário. A época em que o
movimento negro impulsiona o poder constituinte americano coincide com a
ebulição da segunda onda do feminismo.
Nesse sentido, por que o autor deixa de considerar essa atuação do
feminismo como também uma nova articulação do poder constituinte norte-
americano? Será que a partir dos parâmetros por ele considerados sobre poder
constituinte, processos revolucionários e poder constituído o feminismo poderia
ser interpretado como uma forma de manifestação do poder constituinte, como
uma revolução? Caberia uma investigação da formação e do desenvolvimento das
teorias feministas e do ativismo para tentar demonstrar em que momentos eles
trabalharam pela liberação da mulher e em que momentos eles se desviaram e
sucumbiram perante o poder constituído? Essas dúvidas pautaram o início do
desenvolvimento da dissertação e aparecem como um norte especialmente para o
segundo capítulo.
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O interesse pelo feminismo, por sua vez, é anterior à descoberta do
pensamento de Antonio Negri. Porém, somente ao longo do programa de
mestrado foi possível ingressar nas discussões acerca da teoria feminista e do
ativismo. Há uma diversidade muito grande de teorias e de fundamentos dentro do
movimento feminista e Judith Butler foi indicada como uma perspectiva diferente
da maior parte da produção sobre o tema. Na verdade, Negri e Hardt a mencionam
em dois livros: O trabalho de Dioniso e Multidão: guerra e democracia na era do
Império. No primeiro para criticá-la e no segundo para incorporar os atos
performativos à multidão. A dissertação foi a oportunidade de conjugar dois
grandes interesses, ou ainda, esses grandes autores.
A dissertação pretende fazer uma leitura do feminismo como um processo
revolucionário, a partir da preocupação do movimento com a liberação da mulher.
Ao longo dessa trajetória são constatadas as opções eleitas pelo próprio
movimento que o fizeram perder de vista seu projeto liberatório e os momentos
nos quais o poder constituído conseguiu se sobrepor ao poder constituinte, além
de apresentar uma possibilidade de inovação ou de retomada da liberação. Porém,
o percurso aqui apresentado não teria sido possível se não fosse utilizada a
perspectiva de Antonio Negri sobre o poder constituinte. Já a identificação da
fragilidade das estratégias dos movimentos de minorias e a possibilidade de se
retomar o projeto de liberação a partir de outras formas de lutas, diferentes do
apelo à identidade, não seriam viáveis de serem aqui apresentadas se a proposta de
Judith Butler não fosse indicada.
É necessário, ainda, esclarecer que se trata de um estudo teórico, não
havendo pesquisa de campo. Os motivos são dois. Em primeiro lugar, a
necessidade de formar um conhecimento um pouco mais aprofundado em relação
à obra desses autores. De fato, seria bastante interessante verificar as estratégias
utilizadas atualmente pelos grupos minoritários no Brasil para conquistar direitos,
se há ou não um apelo à identidade, como ela é concebida e quais são os dicursos
que motivam as leis derivadas dessas lutas. Ingressa-se, então, no segundo
problema, a falta de tempo ao longo de um mestrado para fazer toda a pesquisa
teórica e ainda um estudo desse porte. Essa abordagem a partir da análise
realizada por uma pesquisa de campo é mais adequada em um momento posterior,
como o doutorado, quando as bases teóricas já estão mais sólidas.
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A dissertação tem sua estrutura dividida em três grandes partes. A primeira
será dedicada basicamente aos autores Antonio Negri e Michael Hardt. Se o tema
começou a ser pensado a partir da perspectiva de Negri sobre o poder constituinte,
é necessário, portanto, apresentá-la ao leitor. Essa concepção tão própria de Negri
e da tradição da qual ele faz parte pode ter maior notoriedade em outras áreas,
porém no Direito ela ainda sofre resistências. Não é qualquer estudioso do Direito
que reconhecerá ou aceitará o poder constituinte na forma como é trabalhado por
ele. Outros conceitos também serão abordados ao longo do primeiro capítulo. O
termo multidão é um deles e sua aparição também é relevante, pois quando Negri
e Hardt tratam dos atos performativos, eles terão uma abordagem a partir das
ações justamente da multidão, ações essas que são uma repetição, mas não de
forma a ser mera reprodução daquilo que é considerado real. Esses atos
performativos esclarecem que a realidade é produzida também através deles e não
é um dado prévio, por isso ela pode ser modificada por eles. O plano de imanência
também mereceu destaque, pois Negri, Hardt e Butler produzem a partir dessa
consideração. Outros conceitos conexos a esses também foram abordados, na
medida em que eles facilitam a compreensão da estrutura do texto.
O capítulo seguinte foi um esforço para abordar a trajetória do feminismo. É
importante deixar claro que não se trata de um histórico. A pretensão é apresentar
as formas pelas quais as mulheres conseguiam se apropriar de deteminados
momentos, nem sempre favoráveis, para brigar pela liberação. Portanto, não
houve uma preocupação em descrever a realidade da Idade Média ou do
Renascimento, muito menos abordar detalhes dos processos revolucionários
americano e francês e, sim, em demonstrar como até mesmo em condições
adversas há a possibilidade de fuga e de estruturação de novas lutas. As
revoluções são momentos abertos para inovações, porém, em razão do elevado
grau de naturalização da condição das mulheres, nem elas podem ser simpáticas às
suas causas por muito tempo. Esse capítulo tem início com as considerações sobre
a arborescência e sobre o rizoma, estruturas que também são utilizadas quando são
discutidos os projetos da transcendência e da imanência. O esquema estabelecido
por Deleuze e Guattari auxilia na compreensão dos motivos pelos quais há tantas
formas de feminismo, facilitando a própria leitura do capítulo.
O último capítulo retoma e aprofunda a teoria de Judith Butler. Primeiro, há
uma ênfase nos problemas e nas falhas dos conceitos de sujeito e de mulher.
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Posteriormente, a análise dirige com maiores esforços para o dualismo instaurado
pela heterossexualidade. Em virtude da própria história de vida da autora, a
abordagem que aparece em maior grau em sua obra é a realizada a partir da
homossexualidade. Porém, os problemas constatados por ela incidem com muita
força na mulher heterossexual. Por isso, os atos performativos trazem inovações
também para elas, já que eles irão deixar claro que tudo o que envolve as questões
de gênero é fruto de construção cultural e pode ser questionado.
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Pressupostos teóricos para a reflexão sobre o tema
Este capítulo tem como objetivo principal apresentar alguns conceitos
importantes que servirão de base para o enfoque que o tema proposto terá na
dissertação. Tais conceitos guardam determinadas peculiaridades em relação à
perspectiva a partir da qual eles serão abordados, uma vez que esta rejeita a
tradição de pensamento dominante, justificando a necessidade desses
esclarecimentos. Dessa forma, na medida em que eles aparecerem no corpo do
trabalho, o sentido adotado já terá sido exposto previamente, evitando problemas
na compreensão do tópico.
O primeiro tópico consistirá na abordagem de dois temas. A primeira etapa
será a apresentação do plano de imanência, por ser esse o fundamento dos
principais autores utilizados no decorrer do trabalho. Ter a imanência como ponto
de partida implica em reconhecer algumas especificidades no feminismo proposto
por Butler. Uma das conseqüências decorrentes disso é a possibilidade de crítica ao
modelo identitário que a maior parte dos movimentos das minorias traz consigo,
gerando uma série de problemas e freios ao próprio projeto de liberação. A
identidade é duvidosa no que diz respeito à sua eficácia na luta por direitos, pois
parte de um dado previamente estabelecido, estanque, algo além do qual não se
pode ir e inviabiliza a criatividade inerente a qualquer revolução. As possibilidades
ficam restritas aos modelos instituídos pelo poder e naturalizados por eles, como a
mulher, branca, heterossexual, paradigma identificado por Butler como dominante
para fundar o conceito de mulher. Essas questões serão retomadas quando o
trabalho analisar a identidade como estratégia de luta. Posteriormente, o conceito
de multidão aparecerá em conjunto com o ato performativo, trabalhado pela
feminista Judith Butler. A aproximação desses dois conceitos foi feita por Negri e
Hardt no intuito de ilustrar uma das formas pelas quais a multidão se constitui e
atua. A multidão é o sujeito dos processos revolucionários e os atos performativos
são importantes mecanismos de intervenção no real ao longo desses processos.
A segunda parte do capítulo será dedicada a tratar de forma breve o que
Antonio Negri e Michael Hardt entendem por poder constituinte. Esse conceito
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será muito importante ao longo do próximo capítulo para o estudo dos processos
revolucionários desencadeados pelas mais diversas correntes do feminismo durante
determinados momentos da história. O objetivo é que a teoria desenvolvida por
Negri e Hardt sobre os movimentos do poder constituinte e do poder constituído
em sentidos opostos sirva de base, no próximo capítulo, para o exame das origens
da primeira e da segunda ondas do feminismo, assim como para auxiliar na
constatação dos momentos de expressão do poder constituinte no feminismo e dos
momentos em que o poder constituído se fez presente na tentativa de impedir o
processo de liberação.
Por último, é importante esclarecer que esse não é um espaço destinado ao
exame das origens das concepções de poder constituinte e de multidão retomados
por Negri e Hardt, pois esse esforço implicaria em uma investigação própria, não
havendo possibilidade de ser feito em um trabalho cujo principal objeto de análise
é o desenvolvimento do(s) feminismo(s), o que por si só já é um objeto bastante
amplo. O objetivo desse ponto é meramente fornecer o instrumental necessário
desses autores para o entendimento da abordagem que será dada ao feminismo ao
longo da dissertação.
2.1
Multidão e imanência: a multiplicidade de singularidades e a
viabilização desse processo pela ausência de modelo
O plano de imanência foi o tema escolhido para iniciar a discussão por ser
aquilo que permeia de forma comum as obras dos autores aqui escolhidos para
figurar como referenciais teóricos. Além disso, ele é crucial para a compreensão
das críticas à estratégia da identidade como mecanismo eficaz de luta de minorias,
afinal, é fundamento da linha de pensamento da qual Negri, Hardt e Judith Butler
são herdeiros. A idéia de imanência será tratada aqui de forma pontual, sendo a
abordagem restrita às suas implicações no problema da identidade, uma questão
muito cara ao feminismo, e a outros movimentos de minorias como negros e
homoafetivos, por exemplo. A estratégia da identidade ainda é amplamente
utilizada por eles. Por isso, o que se pretende nesse momento é demonstrar como o
conceito de identidade foi um recurso criado em um determinado momento
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histórico e utilizado para justificar segregações das mais diversas espécies. O
tratamento a ser dado aqui ao plano de imanência parte dessa consideração.
Judith Butler abre a edição comemorativa de sua obra que ficou conhecida
como um grande marco teórico para a teoria Queer, afirmando que, na época em
que redigiu o texto original, ela escrevia com a fundamentação do plano de
imanência, que permitia um suporte teórico bastante interessante para tecer críticas
ao feminismo, em especial, a determinadas correntes dentro do feminismo. Apesar
disso, a autora afirma que não imaginava na época a dimensão que seu texto
poderia tomar, causando uma grande interferência dentro da teoria feminista
1
. O
teor dessas críticas não será trabalhado nesse momento. Porém, é interessante
constatar que talvez a grande repercussão obtida pela sua obra se deva ao fato de
uma maior notoriedade dada às peculiaridades daqueles que trabalham com a
concepção de imanência, especialmente pelo simples fato de ser apresentada uma
outra concepção de luta, não tão divulgada quanto a velha identidade. O importante
agora é deixar claro esse motivo pelo qual a imanência terá um espaço nesse
capítulo, aproveitando a própria colocação da autora para introduzir a discussão.
Inicialmente, devem-se destacar algumas peculiaridades do plano de
imanência a partir das considerações de Deleuze e Guattari. Ele é um horizonte que
está sempre em movimento, pois na medida em que o sujeito avança sobre ele, ele
se afasta. Não há como estar fora dele, sempre se está nele. Tudo o que ocorre nele
faz suas dimensões se expandirem
2
. Ao mesmo tempo, a sua constituição não tem
fim, sendo um “gigantesco tear”
3
. Por isso, ele é pura experimentação. Na
consideração desses dois autores, só são filósofos aqueles que instauram um plano
de imanência. Esse plano é pré-filosófico, é um pressuposto para a filosofia no
sentido de ser sua condição interna, e não algo existente a priori. Ele apresenta
variações de acordo com o traçado momentâneo do plano.
Se, nas palavras de Deleuze e Guattari, a filosofia é a elaboração de
conceitos, estes irão povoar o plano de imanência, por isso, os conceitos e o plano
são coisas diferentes, não cabendo confusão entre eles. O plano é uno, mas é
variável, na medida em que é constituído, ou melhor, está em permanente
construção por movimentos infinitos e que podem ser compostos uns com os
1
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. vii.
2
Cf. DELEUZE, G.; GUATTARI, F., Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 4, p. 55.
3
Id.., O que é a filosofia? p. 55.
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outros. Por esse motivo, o plano de imanência é único, mas é variação, conforme
os movimentos ocorrem e se superpõem, tanto que se pode observar ao longo da
história diversos planos de imanência que se sucedem ou até entram em conflito
4
.
Para Deleuze e Guattari, a filosofia necessariamente ou pressupõe o plano de
imanência ou o inicia. Portanto, se há ordem transcendente, instaurada por um
déspota ou um Deus, ou seja imposta de fora, verticalmente, por algo considerado
superior, não há filosofia e sim religião. A imanência inviabiliza qualquer ação
vinda de fora. Dessa forma, ela irá possibilitar o entendimento de Butler acerca da
ininterrupta constituição dos corpos, pois nem eles nem o sexo e o gênero são um
dado prévio, um fato natural imposto.
Apresentado o plano de imanência de forma geral a partir da teoria de dois
autores que são importantes referências dessa concepção, cabe agora expor a
disputa entre transcendência e imanência, que ganhou muita força na modernidade,
especificamente no instante em que se iniciou o conflito entre a modernidade
decorrente da revolução humanista e a reação a essa revolução
5
, para localizar o
momento de fundação do que se entende por identidade.
A modernidade nasce com a constatação da potência da humanidade no
mundo. Enquanto geralmente se atribui como principal caracterísitca da
modernidade a secularização do mundo, com a expulsão de Deus, Negri e Hardt
não desconsideram a relevância desse dado, mas observam que na verdade a
grande peculiaridade desse período entre 1200 e 1600 vivido na Europa é a
descoberta do plano de imanência. Qual seria a importância dessa descoberta?
Negri e Hardt afirmam que a potência de criação que tinha sido tirada dos homens
pela transcendência do pensamento medieval, agora saía do céu e retornava para a
terra, influenciando a filosofia, as ciências e a política. No plano de imanência, o
poder das leis não vem de princípios estabelecidos em uma ordem superior, ele
deriva das assembléias de cidadãos, não há qualquer referência externa a ele que
imponha uma organização a priori
6
.
Tantas mudanças trazidas pela concepção de imanência e tanta potência nas
mãos da multidão de singularidades obviamente resultariam também em forte
4
Cf. DELEUZE, G.; GUATTARI, F., O que é a filosofia? p. 55.
5
Cf. GUIMARAENS, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito
além da modernidade hegemônica, p. 33.
6
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Império, pp. 88 et. seq.
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investimento em sentido contrário à liberação. Segundo Negri e Hardt, esse
investimento contrário seria iniciado a partir da Renascença, momento em que teve
início uma forte oposição à reapropriação do mundo pela multidão e uma nova
forma de transferência da humanidade para um plano transcendental, que coincidiu
com a descoberta da América e com a hegemonia Européia. A concepção
transcendental saiu vitoriosa e sua atuação passou a ser pelo medo das incertezas
da vida que as massas tinham, como o medo hobbesiano da morte, e de uma
suposta garantia de segurança e de paz a qualquer custo, ao contrário do desgaste
das lutas. A superstição retornou com toda a força, junto com a instauração do
absolutismo monárquico. Negri e Hardt entendem que a partir daí, a modernidade
passa a ser conceituada como crise, uma crise constante nascida da disputa entre as
forças da transcendência, que pretendiam impor uma ordem, e as forças da
imanência, com o projeto da liberação. Por essa razão, os processos
revolucionários, as manifestações do poder constituinte sofreram grandes
repressões. É importante ressaltar desde já que o poder constituinte se levanta
sempre em sentido contrário à modernidade da transcendência
7
. Quando em um
lugar os espaços revolucionários eram fechados pelo poder constituído, Negri e
Hardt constatam que o sentido nômade do poder constituinte e da revolução
garantia uma nova experiência em outro lugar. Por esse motivo, a Europa
considerou urgente submeter outros povos a ela, em um movimento de contra-
revolução global, reagindo à descoberta da igualdade no plano de imanência.
Assim, as colonizações tiveram início.
O Iluminismo sofreu os reflexos dos projetos que fizeram oposição à
revolução humanista e pretendeu controlar a imanência intaurando meios de
elaboração de dualismos formais. Negri e Hardt constatam que as mediações foram
construídas com a função de resolver a crise da modernidade
8
. Era importante
configurar a necessidade delas para as ações humanas, como se fossem filtros dos
fenômenos sociais que tornam relativas as experiências da multidão. As potências
passam a ser restringidas pelo estabelecimento, pela imposição da ordem
transcendental, instituída de forma prévia e impossível de ser atingida pelas ações
7
Cf. GUIMARAENS, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito
além da modernidade hegemônica, p. 34.
8
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 96.
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humanas. Portanto, impossível também de ser criticada, modificada e
transformada.
Um dos resultados da vitória da transcendência foi a construção da estratégia
da soberania, que possui uma estrutura eminentemente de regulação, caracterizada,
entre outras coisas, pela unidade e pela indivisibilidade
9
, características essas aqui
mencionadas por interessar ao tema abordado. Isso porque, na constatação de
Francisco de Guimaraens, ambas possibilitam o Estado moderno a criar dualismos,
a exercitar o poder e fundar um direito baseado na divisão binária de mundo, como
por exemplo posse/propriedade, homem/mulher, masculino/feminino, sendo um
reflexo da soberania do Estado moderno, uma vez que ela cria parâmetros que
integram e/ou excluem em sua esfera, contribuindo com a criação da concepção de
Outro. É justificada, assim, a elaboração da identidade. Identidade forjada, como
um processo de criação e ao mesmo tempo exclusão do Outro.
A transcendência, portanto, gera pelo menos duas espécies de problemas que
contaminam o conceito de identidade. O primeiro deles tratado no parágrafo acima,
que diz respeito à fundação dos processos de exclusão, com base naquele que está
fora do alcance da soberania do Estado moderno, na concepção de Outro. Nesse
sentido, abre-se possibilidade para que esse mesmo mecanismo binário seja
refletido no direito. O segundo problema decorre do primeiro e diz respeito ao
estabelecimento de modelos a serem seguidos. A transcendência impõe um
paradigma e, como dito anteriormente, inviável de ser modificado pelas ações
humanas. A identidade é um modelo previamente estabelecido, que limita o
comportamento a determinadas formas. Nesse sentido, dualismos como
homem/mulher, masculino/feminino excluem qualquer outra possibilidade na
vivência da sexualidade, pois há uma receita insituída para as singularidades se
adequarem, as hibridizações não são permitidas. Por esses motivos, Judith Butler
pressupõe a imanência para seu trabalho e entende que o processo de liberação de
grupos minoritários somente pode ser retomado com o abandono da perspectiva
identitária em prol das singularidades.
Multiplicidade de singulariades é o que compõe a multidão. A multidão é um
termo incorporado por Hardt e por Negri especialmente para realizar uma
contraposição entre os que poderiam ser, a princípio, prováveis sujeitos que
9
Cf. GUIMARAENS, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito
além da modernidade hegemônica, p. 40 et seq.
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19
conduziriam o processo constituinte. Nesse sentido, há um grande confronto entre
concepções de povo e nação e a de multidão, especialmente pelos dois primeiros
termos serem dotados de um significado que implica em uma união forçada. A
multidão não é um conceito que envolve uma homogeneidade, exigindo uma
identidade interna entre os membros de uma comunidade. A identidade serve a um
propósito: a exclusão. A multidão, ao contrário, é sempre inclusiva em relação aos
que dela ainda não fazem parte. Butler propõe algo bem próximo para que o
conceito de mulher, a ser trabalhado no último capítulo, deixe de ser excludente.
Por esse motivo, se multidão está sempre aberta e receptiva aos demais, ela é
inconclusiva, é também constituinte, diferente do povo, algo constituído em prol da
defesa da soberania
10
.
Explorando de forma mais intensa as diferenças entre povo e multidão, uma
vez que os autores afirmam ser a multidão o ator político capaz de conduzir um
processo direcionado para as transformações sociais e a liberação, a função que o
conceito de povo exerce é justamente reduzir as diferenças existentes no interior da
população, forçando a construção de uma identidade comum a todos os membros.
Essa redução é o que possibilita o entendimento dos autores acerca do povo e sua
forma típica de governo, sempre a partir da concepção de poder soberano. A
multidão não é restrita a uma determinada identidade, ela é, ao contrário, sempre
plural e múltipla, não sendo viável para ela governar com a noção de soberania, de
acordo com a tradição identificada pelos autores como hegemônica na teoria
política.
A multidão é formada por um conjunto de singularidades. Em outras
palavras, o que os autores pretendem expor com tal afirmação é simplesmente o
fato de não ser possível torná-las restritas a uma mera unidade, subjugando-as à
uniformização. Um exemplo disso é que a multidão diz respeito à classe, raça,
gênero e sexualidade, todos esses aspectos são abrangidos por ela, fazem parte de
sua composição. Porém, uma ressalva deve ser feita para não gerar incongruência
no pensamento dos autores. As diferenças desse sujeito social são mantidas em seu
interior, ao contrário da identidade gerada pelo conceito de povo, ou de qualquer
identidade concebida como um modelo prévio, ela representa uma unidade que não
pode ser diferenciada de modo algum.
10
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 120.
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20
Nesse sentido, Negri e Hardt reforçam a necessidade de confrontar a
multidão com outros conceitos que dizem respeito às diversas formas de entidades
que designam outras coletividades também plurais, como por exemplo, as
massas
11
. Aqueles que fazem parte das massas não são considerados pelos autores
como singularidades, pois as diferenças entre eles na verdade se dissipam na
indiferença do todo, o rol de diferenças fica inerte nessas coletividades e é perdido
em um conglomerado indiferente. Esse é um problema comum aos conceitos que
geralmente denotam coletividades plurais. A tradição que lida com o conceito de
multidão é híbrida. Uma outra característica comum às massas e outras
coletividades diz respeito aos sujeitos que as compõem, pois são sujeitos sociais
passivos, necessitando serem sempre conduzidos. Tal fato não significa que
eventualmente eles possam produzir efeitos, mas não há possibilidade de atuarem
de forma espontânea. Essa é a razão pela qual essas entidades coletivas são muito
facilmente manipuladas por forças externas, ou seja, são as famosas “massas de
manobra”.
O peculiar do conceito de multidão diz respeito ao sujeito social, ao contrário
dos demais, ser essencialmente ativo. As ações da multidão são fundadas no que as
singularidades possuem em comum e não em uma identidade imposta ou em uma
unidade, menos ainda na indiferença, no fato dos membros se ignorarem
mutuamente. Esse é um pressuposto lógico para, em um momento posterior, se
passar à etapa de compreensão do motivo pelo qual apesar da multidão ser múltipla
e ter diferenças internas, ela possui capacidade para atuar conjuntamente e
governar a si própria. O seu grande desafio é a democracia, ao mesmo tempo em
que ela é o sujeito mais apto para a realização plena do regime democrático, afinal,
trata-se do “governo de todos por todos”
12
, sem que isso implique em uma ditadura
da maioria em detrimento das singularidades.
Os autores destinam uma boa parte dos seus esforços para a perspectiva que
trabalha a multidão a partir da ênfase no conceito socioeconômico, pois entendem
que essa foi uma vertente há muito abandonada, pelo fato de não se falar mais
sobre classe em relação às demais diferenças sociais. O ponto da argumentação
deles, brevemente abordado aqui, é no sentido de identificar no capital um
mecanismo disposto a transformar a multidão em uma unidade orgânica, enquanto
11
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A.. Multidão: guerra e democracia na era do Império, pp. 139 e 140.
12
Ibid., p. 141.
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21
que o papel do Estado é transformá-la em povo
13
. Contudo, eles reconhecem a
existência de outras singularidades produzidas além das que se referem aos
fenômenos econômicos, podendo ser citada aqui a construção da sexualidade. A
produção dessas singularidades de fato toma praticamente a vida social como um
todo, incluindo a produção de afetos. Nas demais construções da biopolítica eles
reconhecem a existência de abordagens muito próximas ao que entendem por
multidão
14
.
13
Os autores Antonio Negri e Michael Hardt adotam um entendimento próprio no que se refere ao
termo pós-modernidade. Para eles a pós-modernidade não significa uma ruptura no paradigma
moderno, não significa que as teorias que fundamentaram a modernidade tiveram fim, estão
esgotadas e sim uma mudança, “conquista” do capital, no modelo de trabalho, que antes era
material e agora é imaterial. Tal fato ocorreu porque o trabalho foi subsumido ao capital, todos os
processos de produção estão dentro do próprio capital, não há mais exterior. O trabalho imaterial
toma conta da vida e dos corpos, na medida em que ele se refere à produção de afetos, construção
de redes de comunicação e de relações sociais e produção de conhecimento e formas de vida. Nesse
sentido, ele toma conta de toda a vida, pois não há como aplicar a antiga lógica das fábricas, do
trabalho material a essa nova estrutura. Na estrutura da fábrica havia uma hora predeterminada de
início e término de trabalho, agora não há horário definido para se ter idéias ou constituir relações.
A questão principal é identificar que as formas do trabalho imaterial não são fragmentadas, na
verdade acaba-se induzindo à constituição de um ser social comum, devido aos mecanismos de
comunicação e colaboração peculiares do trabalho imaterial. Esse ser social novo é um sujeito
central na produção e reprodução atual da sociedade e que possui a capacidade de criar uma outra
sociedade. Os autores chamam esse novo ser de uma nova carne. A nova carne formada pelo
paradigma do trabalho imaterial pode produzir um corpo que venha a ser utilizado a serviço do
cspital, mas pode também se organizar de forma autônoma, como uma forma de poder da carne,
cuja capacidade é a de transformação ao longo da história para a concepção de um outro mundo. O
trabalho invade a vida como um todo nesse sentido produzindo subjetividades. Por último, é
importante ressaltar que apesar do paradigma do trabalho imaterial dizer respeito à construção de
relações e afetos, sendo nesse sentido muito atrelado à concepção tradicional do papel da mulher na
família e na sociedade, os autores deixam claro que elas não têm qualquer vantagem sequer no
mercado de trabalho atualmente. Ocorre justamente o contrário. Elas continuam em posições
subalternas e com salários inferiores aos dos homens, além de terem mais dificuldades de atingir
cargos dotados de maior autoridade. Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Multidão: guerra e democracia
na era do Imperio, p. 152 et. seq.; Cf Id., O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-
moderno, p. 32 et. seq.
14
A biopolítica foi enfrentada pelos autores na obra Império a partir de um debate com Foucault,
sobre o conceito de biopoder. De forma breve, o poder disciplinar, de acordo com Foucalt, deu
conta do corpo do indivíduo. O corpo como uma analogia à máquina, no que se refere à necessidade
do poder de adestramento e de se usurpar sua força, na sua integração a sistemas que controlam a
economia e a eficácia de sua produção, bem como no desenvolvimento de sua docilidade e de sua
utilidade. Esse procedimento ocorreu pela via das instituições. O poder disciplinar, desenvolvido no
século XVII, diz respeito aos procedimentos que moldam anatomica e politicamente o corpo
humano. Interligado a essa estrutura de poder, no século XVIII surge o que Foucault chama de
biopolítica da população. O seu foco era o corpo da espécie humana, ou seja, já não dizia respeito
meramente ao controle do indivíduo. O corpo sobre o qual recairia o controle agora seria agora o da
mecânica do ser vivo, observando e incidindo nos processos biológicos de nascimento, mortalidade,
proliferação, grau de saúde da população, duração da vida, habitação, saúde pública, migração e
todas as condições que ocasionam a variação desses dados. A biopolítica incide sobre a população e
dessa forma, as duas estruturas de poder, disciplinar e biopolítica, instauram o que Foucault entende
ser a era do biopoder. O século XIX conhecerá, ainda um forte aparato tecnológico de poder sobre a
sexualidade. É importante ressaltar que essas duas formas de poder não são excludentes, sendo a
primeira, na realidade, uma facilitadora da segunda. A segunda é o investimento que o poder faz no
controle da vida na via de cima para baixo. O biopoder foi imprescindível para dar suporte ao
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22
Nesse sentido, há novamente referências a correntes feministas e a políticas
contra o racismo aproximando as teorias por parte de Negri e Hardt. Quando os
movimentos feminista e de raça expõem que não lutam por um mundo sem
diferenças raciais ou de sexo e sim por um mundo no qual essas diferenças possam
ser plenamente expressadas e não sejam relevantes para determinar de forma
prévia e fixa os papéis sociais, hierarquias e dominação social interna, na realidade
esses movimentos já induzem a uma concepção de multidão muito parecida à
concepção dos autores, porém com um ponto de vista diferente, por não tratar
necessariamente do problema econômico operado pelos autores, com forte
dedicação às classes.
Obviamente, apesar das diferenças de foco no que se refere à abordagem de
uma singularidade ou outra, de acordo com o movimento a ser analisado, tal fato
não exclui as demais singularidades, no sentido de que essas divisões entre
problemas de raça, gênero/sexo, sexualidade e classe são todas interligadas, em
que pese as preferências dos autores em trabalhar com um ou outro tema. O
próprio feminismo retrata bem essa constatação. Há diversas correntes dentro do
feminismo, cada uma delas relacionada com outras questões que o perpassam e
contribuem para a composição do problema enfrentado pelo feminismo. Por esse
motivo são identificadas correntes teóricas feministas relacionadas também às
discussões sobre raça, sexualidade, classe, etc. A transformação radical do mundo
sensível deve ocorrer para que as limitações e os aspectos provocadores de
destruição inscritos nas diferenças se transformem na força motora da multidão.
Seguindo a linha da transformação radical do mundo e da multidão como seu
ator principal, Negri e Hardt constatam que, até agora, a multidão constituída pelas
singularidades foi muito absorvida pelo corpo político global do capital, com a
imposição de hierarquias no trabalho estabelecidas geograficamente, e foi
controlada por uma estrutura composta de poder econômico, político e jurídico, no
desenvolvimento do capitalismo, na medida em que ele garantiu que os corpos fossem devidamente
controlados e ajustados aos aparelhos de produção. As forças, as aptidões foram majoradas para
isso, sempre com o cuidado de não tornar a sujeição mais difícil. Além disso, as técnicas da
biopolítica no controle em todos os níveis sociais garantiram o desenvolvimento dos processos
econômicos, funcionando, inclusive, como instrumento de segregação e imposição de hierarquia.
Negri e Hardt reconhecem os avanços da interpretação de Foucault, mas fazem uma ressalva no
sentido de Foucault não prestar atenção à dimensão criativa que o biopoder pode dar origem. O
corpo biopolítico não precisa negar a força produtiva original que o anima, pois ele também é
multidão de singularidades que se relacionam, que além de produzir, tem um caráter conflitivo. Cf:
FOUCAULT, M., História da sexualidade: a vontade de saber,p. 131 et. seq.; Cf HARDT, M.;
NEGRI, A., Império, p. 47 et. seq.
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23
intuito de garantir a exploração com maior eficácia desse corpo. Sendo assim, eles
identificam atualmente uma necessidade de se refletir sobre os mecanismos
alternativos a esse corpo político global do capital que podem estruturar a multidão
de outra forma, uma dessas possibilidades é a trabalhada por Butler. O primeiro
fato a observar é verificar que a produção do comum e a produção das
subjetividades se alimentam mutuamente, estimulam uma a outra.
Em outras palavras, a subjetividade é produzida através da cooperação e da
comunicação, e por sua vez esta subjetividade produzida vem a produzir novas
formas de cooperação e comunicação, que por sua vez produzem nova
subjetividade, e assim por diante. Nessa espiral, cada movimento sucessivo da
produção de subjetividade para a produção do comum é uma inovação que resulta
numa realidade mais rica. Talvez devamos identificar nesse processo de
metamorfose e constituição a formação do corpo da multidão, um tipo
fundamentalmente novo de corpo, um corpo comum, um corpo democrático
15
.
Esse mecanismo permite aos autores afirmar que, apesar da formação de um
corpo e das ações dele serem conduzidas em uma direção, a multidão nunca
deixará de ser heterogênea, plural. Não há risco dela se tornar uma unidade
totalitária dividida em hierarquias distintas. Nesse sentido, a condição do corpo
humano formulada por Spinoza é utilizada pelos autores como exemplo de
multidão, de heterogeneidade que o compõe e ao mesmo tempo, que atua de forma
comum
16
. As subjetivações ocorrem pela afetação das singularidades no espaço
comum, não podendo se pensar um indivíduo exterior a esse espaço
17
. Ao mesmo
tempo, as singularidades produzem o comum pela via da cooperação. Portanto, um
movimento alimenta necessariamente o outro.
Deleuze e Guattari também contribuem para compreender o mecanismo de
atuação da multiplicidade de singularidades como um corpo comum, criticando a
concepção sobre o inconsciente que deixa de perceber seu povoamento. Freud é o
alvo dessa crítica, pois deixou de perceber que o inconsciente já era composto por
uma multidão. Eles constatam o reducionismo freudiano em relação ao
inconsciente, pois tudo se resume ao pai, demonstrando um desprezo pelas
multiplicidades que o compõem. O corpo humano já é uma multidão de
15
HARDT, M.; NEGRI, A., Multidão: guerra e democracia na era do Império, p. 248.
16
Cf. Ibid., p. 248.
17
Cf. GUIMARAENS, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito
muito além da modernidade hegemônica, p. 136 et. seq.
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24
multiplicidades, o inconsciente também
18
. O corpo humano e o inconsciente são
constatações de como as multiplicidades agem para o comum como um corpo
único, apesar da heterogeneidade em suas constituições. Não se deve ter receio,
portanto, da multidão de singularidades, ela é plural e heterogênea, mas atua em
função do que há de comum em seu interior
19
.
Atualmente, a teoria da performatividade como fonte de produção criativa
do comum é uma das que mais interessa a Hardt e Negri. Judith Butler, feminista
que ganhou notoriedade no início da década de 90 do século XX, quando fundou o
que depois ficou conhecido como teoria Queer, é especialmente reconhecida pelos
autores no que diz respeito à atuação das multiplicidades. Nesse momento as
inovações trazidas por Butler serão examinadas pelas lentes de Negri e Hardt, e
posteriormente haverá um capítulo próprio, dedicado à apresentação mais profunda
da estrutura do feminismo inaugurado por Butler
20
.
18
Cf. DELEUZE, G.; GUATTARI, F., MilPlatôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1, p. 43.
19
O termo comum vem sendo repetido ao longo do texto sobre multidão algumas vezes, portanto, é
necessário comentar qual sentido a palavra comum adquire quando adotada pelos autores Negri e
Hardt. Comum não significa que seja idêntico, pois a identidade é uma concepção rejeitada por essa
tradição de pensamento. O comum para esses autores decorre do conceito desenvolvido por
Spinoza. Importante frisar novamente que essa dissertação não mencionará a obra do autor do
século XVII, pois além de não ser objeto direto da análise do trabalho, Spinoza é um autor de muita
densidade e requer dedicação. O que se pretende é fornecer um instrumental importante. Por esse
motivo, a compreensão do que significa o termo comum para Negri e Hardt se dará através do
comentador André Scala. Comum não remete ao idêntico. Comum é a relação existente entre a
parte e o todo. No caso, cada corpo é singular e o que eles têm em comum é o fato de expressarem
o todo. O comum é o mesmo nas partes e no todo, mas não é idêntico nas partes. A noção comum é
a idéia que os corpos têm daquilo que eles possuem em comum e é pela noção comum que se dá o
conhecimento da união entre os corpos e as mentes com o todo da natureza. Os corpos têm em
comum o fato de serem extensos, o que significa dentro dessa tradição ocupar um lugar que
nenhum outro corpo ocupa e ser uma coisa singular (chamada também de modo) certa da extensão.
As noções comuns entre os corpos singulares são produzidas na medida em que esses corpos se
afetam pelo que há de comum neles. Cf. SCALA, A., Espinosa, p. et. seq. O exemplo dado por
Negri e Hardt de uma produção comum é a comunicação, utilização de linguagem, símbolos, idéias
e relações compartilhadas. Os atos performativos ingressam também nessa produção do comum. A
conseqüência da comunicação é justamente a construção de outras idéias, imagens, símbolos e
relações. Atualmente, deve-se reconhecer que a produção do comum perpassa por todos os
âmbitos, do político ao econômico, não havendo mais a possibilidade de considerar o terreno
econômico como instrumental, enquanto o político seria responsável pela democracia a partir da
comunicação e dos processos de colaboração social. Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Multidão:
guerra e democracia na era do Império, pp. 256 et. seq.
20
Antes de investigar as propostas de Butler a partir da lente de Negri e Hardt, é importante
esclarecer uma modificação ocorrida na obra desses dois autores ao longo do tempo referente ao
feminismo de Butler. Na obra O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno, os
autores fizeram questão de diferenciar as suas óticas da teoria de Butler, ressaltando que a
concepção que adotariam seria a do trabalho, não tendo relação com o conceito de performatividade
nas práticas sociais. Porém, o que permite a associação dessas duas teorias é o próprio
reconhecimento e a exaltação posterior da teoria queer por parte de Negri e Hardt, na obra nesse
momento bastante referida na dissertação Multidão: guerra e democracia na era do Império. Para
um melhor detalhamento das antigas críticas já superadas desses autores em relação aos atos
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25
Tradicionalmente, a teoria política e a filosofia não se importavam com as
questões do corpo e das diferenças sexuais, consideradas de menor relevância
dentro desse universo. Essa indiferença toda se devia a um motivo: o pressuposto
de que a regra era o corpo masculino, o que estimulava a subordinação da mulher
em âmbito social e, ao mesmo tempo, mascarava os corpos pela via do argumento
da natureza, que exerceu influência e até mesmo fundou corrente dentro do
feminismo em determinados momentos na história. A teoria cunhada por Butler em
meados de 1990 supera a estratégia feminista de lembrar do corpo em vez de não
reconhecer uma diferença existente entre os sexos dentro da política e da filosofia
para combater essa espécie de subordinação. A contradição nessa estratégia
anterior de determiandas correntes do feminismo dizia respeito ao fato dela fazer
questão em ressaltar a diferença. Esse procedimento de colocar força na diferença
pode ser perigoso, pois gera interpretações que fundamentam e justificam a
desigualdade existente.
A grande peculiaridade observada por Negri e Hardt na teoria Queer está na
sua preferência pela performance social, da carne da multidão e de suas
singularidades, em vez de focar nas diferenças naturais do corpo. Na verdade, essa
é uma teoria feminista contrária ao corpo. Essa estratégia elaborada por Butler, de
acordo com Antonio Negri e Michael Hardt, resolve uma contradição dentro do
feminismo, pois se por um lado o corpo da mulher era a fonte de praticamente toda
opressão social sobre ela, por outro lado, foi essa peculiaridade do corpo feminino
que iniciou e sustentou as lutas feministas no decorrer da história do feminismo.
Sendo assim, teorias como a de Butler, que são contrárias ao corpo como um dado
natural e apostam na performatividade, contribuem para desfazer essa contradição
e ampliar o âmbito de atuação e de impacto do feminismo.
A constituição do comum é amplamente visível nos atos performativos
trabalhados por Butler. A autora desconsidera a classificação realizada até então
pelo feminismo no que diz respeito à tradicional diferença existente entre as
concepções de sexo e de gênero. A tradição feminista chegou a vislumbrar na
classificação do sexo como algo natural e do gênero como produto de construção
social uma grande inovação nos mecanismos de luta feminista. A saída era o
performativos deve-se recorrer ao livro O trabalho de Dioniso: para uma crítica ao Estado pós-
moderno, especialmente nota 3. Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., O trabalho de Dioniso: para uma
crítica ao Estado pós-moderno, p. 18 et. seq.
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recurso ao gênero, uma vez que ele não seria natural, inexorável como o sexo e sim
originado no interior da sociedade e, por isso, poderia ser combatido, alterado
21
.
Esse foi durante muito tempo um recurso das lutas do feminismo para a alteração
da condição da mulher, mas Butler mostrou ser uma estratégia que poderia trazer
complicações ao movimento. Isso porque, em sua interpretação, a criação do
gênero somente tem uma função: dar um aspecto natural à concepção de sexo. Na
realidade, para a autora, ambos decorrem de criação social, não há um natural e
outro não. Há, portanto, um processo de naturalização do corpo ditado pela cultura.
Dizer que o sexo é natural significa restringir possibilidades, inviabilizar
transformações, não somente no corpo da mulher como também, como observam
Negri e Hardt, no corpo social, uma vez que elas são singularidades que compõem
a multidão, afetando e sendo afetadas por ela. Além disso, para Butler, as mulheres
ainda se encontram mais subordinadas no que diz respeito à raça e sexualidade,
pois o corpo como um todo passa a ser encarado como natural, imutável. Há uma
imposição, por exemplo, do comportamento heterossexual sobre o homossexual,
estabelecendo-se, assim, uma hierarquia, uma heterossexualidade compulsória
fundamentado na reprodução. Se o corpo masculino exercia o papel normativo, a
heterossexualidade acaba assumindo uma função semelhante na propositura de um
modelo normativo a ser seguido. O homossexual passa a ser alvo dos mesmos
problemas enfrentados pelas mulheres no que se refere à adequação aos modelos
identitários.
Sendo assim, para Butler, nem o sexo nem o corpo sexuado da mulher são
naturais. Assim como o gênero, eles são também representações que ocorrem no
cotidiano. Em sua grande maioria, os homens reproduzem o masculino e as
mulheres reproduzem o feminino. Aqueles que transgridem esses comportamentos
começam a fazer outras espécies de representações, o que tem como conseqüência
o estímulo à ruptura da norma. Esse procedimento de ruptura pela repetição será
detalhado adiante
22
. A criação do binômio sexo/gênero, na verdade, teve o papel de
tornar o sexo imutável, torná-lo natural, fazendo a cultura incidir no gênero. Uma
das propostas da autora é justamente esclarecer em que medida o sexo, portanto,
21
Cf. PATEMAN, C., The Sexual Contract, p .225. Essa divisão entre sexo e gênero teve grande
notoriedade durante muito tempo no feminismo por ter sido apresentada por Simone de Beauvoir. O
tema será retomado nos capítulos seguintes.
22
Cf. O terceiro capítulo tratará desse tema de forma mais profunda, quando o principal objeto de
análise for a produção teórica de Butler.
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também é uma questão culturalmente elaborada, especialmente retomando e
aproveitando a discussão de Foucault sobre sexo e sexualidade
23
.
Negri e Hardt observam que esse tipo de construção teórica foi alvo de
grandes críticas no sentido de considerá-la muito individualista, por acreditar que o
indivíduo possui essa imensa margem de liberdade e de vontade nas escolhas de
sua performance, como se ele fosse capaz de decidir de forma rotineira qual papel
irá representar em que dia. A autora, obviamente, esclarece que os atos
performativos não são fruto de uma simples escolha individual dentre um grande
leque de opções. Eles estão restritos às performances ocorridas no passado e às
interações no seio da sociedade, assim como ocorre no mecanismo do hábito. Isso
significa, por outro lado, que se não cabe uma completa liberdade individual, a
performatividade não é imutável, ela depende de uma ação de colaboração comum
dessas duas esferas fundada na comunicação.
Porém, os autores fazem uma ressalva: os atos performativos não estão
restritos a incidir nos corpos sociais modernos. A constatação de que o sexo
também é reproduzido ao longo das representações do cotidiano é libertadora no
sentido de que há possibilidade dos corpos subverterem essas representações e
inovar nelas. Butler afirma que as possibilidades de rompimento e inovação das
performances estão relacionadas a repetições falhas, deformidades e paródias
24
.
Por esse motivo, Negri e Hardt reconhecem na teoria Queer um importante
mecanismo coletivo de rebelião e de produção criativa. Não é uma questão de
sobrepor a identidade homossexual sobre a heterossexual, na verdade trata-se de
deslegitimar qualquer afirmação de identidade
25
.
2.2
O poder constituinte na concepção da tradição herdada por Antonio
Negri e Michael Hardt
O conceito de poder constituinte a ser explicitado aqui é cunhado a partir da
perspectiva das lutas por liberação e não diz respeito à concepção mais conhecida
23
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subvertion of identity, p. 117. As referências
constantes serão o primeiro volume da História da Sexualidade e o caso Herculine.
24
Cf. Ibid., p. 179.
25
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Multidão: guerra e democracia na era do Império, p. 260 et. seq.
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no Direito sobre o poder constituinte, que culmina e tem seu fim na elaboração de
uma constituição. O poder constituinte é abordado como aquilo que traz a inovação
nas revoluções, garantindo a positividade delas. A elaboração de uma carta
constitucional, ao contrário, é justamente o momento em que o poder constituinte é
aprisionado pelo poder constituído, em que a criatividade inaugurada pelos
processos revolucionários para que se constituam formas inovadoras de produção
da vida é interrompido, ainda que essa interrupção seja sempre provisória, pois os
limites ao poder constituinte não são barreiras impossíveis de se ultrapassar, já que
é próprio do trabalho dele a internalização e superação desses limites.
É nesse sentido que o conceito de poder constituinte incidirá sobre a análise
do feminismo, como um movimento revolucionário de transposição de limites e
propositura de novas formas de vida, não mais restritas, por exemplo, ao modelo
identitário que se funda no masculino/feminino e evidentemente impõe barreiras à
elaboração criativa que pode ir além e romper com esse dualismo. A análise de
momentos cruciais para as fundações das diversas correntes de teorias feministas
bem como do movimento feminista no próximo capítulo será feita a partir dessa
lente, com essa compreensão acerca do conceito de poder constituinte.
Realizadas tais considerações, cabe ressaltar, nas palavras de Francisco de
Guimaraens, que:
O poder constituinte não pode ser concebido adequadamente segundo uma
determinada forma de expressão constituinte, de maneira que tal conceito sempre se
manifesta na prática humana concreta de modo singular.(...)
(...) O horizonte da crise e do conflito é constitutivo do modo de produção do real e
dele não se podem afastar as coletividades. O real é produzido através dos conflitos,
que, por serem dispositivos de produção do real, não são, em qualquer momento,
definitivamente superados ou superáveis
26
.
A dimensão conflitiva diz respeito às disputas próprias da política acerca da
partilha de um determinado espaço, seja ele público ou privado, que têm como
principal pressuposto a igualdade. A política é a perturbação da ordem instituída,
no que se refere à estrutura, à gestão e à distribuição do poder, bem como da gestão
da coletividade, para a inclusão de algo que ainda é heterogêneo a ela.
Obviamente essa igualdade não surge de forma espontânea no seio da sociedade,
26
GUIMARAENS, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito
além da modernidade hegemônica, p. 147.
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29
ao contrário, é fruto do conflito, do dissenso, ou seja, de uma turbulência no lugar,
naquilo que Rancière descreve como “configuração do sensível”
27
. Mais do que
uma disputa entre algumas categorias sociais, divergências de perspectivas ou
simples luta por reconhecimento, o dissenso é o conflito acerca da estrutura do
sensível, ou entre diferentes compreensões do mundo.
O feminismo será tratado nessa dimensão do conflito, sem modelo
previamente estabelecido, compreendido como adequado, mas considerando as
experiências singulares de algumas das fases percorridas pelo movimento na luta
por liberação e, para isso, será necessário primeiro realizar uma abordagem geral
da concepção de poder constituinte de Antonio Negri e Michael Hardt. Dessa
forma, o conceito de processo revolucionário assumido pelos autores poderá incidir
ao longo do próximo capítulo sem causar problemas em relação à abordagem dada
por eles ao tema. Esse projeto de liberação, de luta contra os poderes opressores e
pela tomada das rédeas do destino da humanidade é a própria definição do que é a
Modernidade na concepção de Negri e Hardt
28
, sendo esse momento o marco
teórico para o capítulo posterior, que irá abordar como ocorreu o processo
constituinte no feminismo, ou como as mulheres
29
se apropriaram de determinados
períodos e espaços na história e constituiram reivindicações e lutas próprias de
suas realidades.
A discussão agora se volta para o próprio entendimento do poder
constituinte, a partir da crise inerente a ele, pois para fazer incidir essa forma de
análise em uma de suas expressões, o feminismo, é necessário esclarecer o sentido
aqui tomado quando há referência ao próprio poder constituinte. Conforme foi
esclarecido anteriormente, quando essa tradição se refere a tal poder, ela não
pretende adotar uma abordagem segundo a qual o poder constituinte tem sua
finalidade restrita à produção de uma constituição que, após concebida, torna-se
27
RANCIÈRE, J., O Dissenso, In NOVAES, A., A crise da razão, p. 373.
28
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno, p.
154.
29
Cf. A palavra “mulher” aqui é utilizada da forma como o senso comum a compreende, pois esse
ainda não é o momento de problematizar tal conceito como principal sujeito da luta no feminismo
atualmente. Esse tema será abordado de forma mais profunda na análise das considerações feitas
pela feminista Judith Butler, que aparecerão no terceiro capítulo.
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30
independente dele. Essa tradição compreende o poder constituinte como ele
próprio sendo a constituição
30
.
Uma das primeiras críticas que Negri faz em sua análise sobre o tema diz
respeito à concepção jurídica, como um poder que surge de forma repentina, se
presta a elaborar uma constituição e estruturar os poderes e a hierarquia no Estado,
impõe um ordenamento jurídico inteiramente novo e desaparece após cumprir tais
funções. Essa concepção gera dificuldades para se justificar e ser sustentada, na
medida em que explicar como um poder é instaurado, “surge do nada e organiza
todo o direito”
31
traz bastante problema para a ciência jurídica, por gerar
incoerência. Como algo que surge a partir do nada, conseguiria legitimação para
estruturar o ordenamento jurídico? O autor afirma que, nesse aspecto, o direito
sempre se esforçou bastante para caracterizar o poder constituinte em sua
perspectiva absoluta, mas para em um momento posterior, torná-lo limitado.
Nesse sentido, para a perspectiva do direito, o poder constituinte pode
produzir um ordenamento inteiro, ele é onipotente, porém ele deve ser, em
contraposição, limitado em sua dimensão temporal e espacial, restrito a um único
evento, deve ser um poder extraordinário. É justamente em sentido contrário a essa
concepção tradicional de poder constituinte que o autor vai construir a sua noção
própria de tal poder ao longo de diversas obras suas e em conjunto com Michael
Hardt. A principal preocupação é demonstrar, a partir do trabalho dos autores, que
não se pode determinar que o poder constituinte tem fim, que está encerrado, para
no capítulo final analisar de forma mais profunda uma perspectiva dentro do
feminismo que inviabilize o término, a colocação de um ponto final no processo de
liberação da mulher. Na verdade, se a constituição do corpo não tem fim, se o
sujeito, no entendimento de Butler, não está nunca pronto, sempre há espaço para o
poder constituinte, para a inovação. O poder constituinte, na realidade, é ilimitado
em seu aspecto temporal e espacial. O que o poder constituído faz é tentar
restringi-lo à elaboração de normas constitucionais, torná-lo restrito ao simples
âmbito de produção do direito que irá regulamentar os corpos. Esse é o seu
esforço.
30
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno, p.
194 et. seq.
31
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 9.
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31
Os mecanismos que tratam de frear o poder constituinte servem, entre outras
coisas, para que a originalidade, a singularidade e a inalienabilidade de cada
experiência sejam perdidas. A discussão sobre a titularidade de tal poder é um
exemplo desses mecanismos para Negri, bem como o artifício da representação,
que o deixa a cargo dos limites próprios do sufrágio e sofrendo as restrições
impostas pelas regras de funcionamento de um parlamento, que manifestam as
restrições instituídas culturalmente. Portanto, a principal questão do poder
constituído é a forma pela qual o poder constituinte será domado, controlado. As
propostas dos juristas para essa empreitada são as mais variadas.
Em linhas gerais, as três propostas examinadas por Negri possuem algumas
especificidades: a primeira proposta ressalta a transcendência do poder constituinte
em relação ao poder constituído; a segunda proposta apresenta o poder constituinte
como imanente; a terceira compreende o poder constituinte como algo em
harmonia com o direito positivo, perfeitamente sincronizado, não passando pela
questão da imanência ou da transcendência dele
32
. Como o objetivo aqui é somente
fornecer os instrumentos necessários para a futura análise do feminismo como um
processo revolucionário, essas três posições serão tratadas de forma breve somente
para permitir um melhor entendimento do que o autor quer dizer com as estratégias
de aprisionamento do poder constituinte pelo poder constituído, para que depois tal
raciocínio possa ser efetuado no problema proposto no presente trabalho.
A perspectiva transcendental entende ser o poder constituinte algo anterior ao
ordenamento jurídico e ao mesmo tempo historicamente exterior a ele. O poder
constituinte é o que dá fundação ao ordenamento, mas sua relação com ele se
rompe no momento imediatamente posterior e a ordem jurídica acaba ganhando
completa autonomia em relação ao poder constituinte. Nesses termos, o objeto das
ciências jurídicas é esse ordenamento jurídico autônomo. O poder constituinte
passa a ser um problema da história ou da sociologia, excluído do direito. Por força
dessa autonomia do ordenamento, as normas jurídicas já não têm nenhuma relação
com o poder constituinte no que se refere à produção, elas somente observam as
demais normas de produção de outras normas.
A imanência do poder constituinte em relação ao ordenamento constitucional
não implica na uniformidade dos autores sobre a forma de abordagem do tema. Na
32
Cf. NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 12.
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32
verdade, as bases teóricas são as mais diversas. O importante é que, se por um lado
agora a densidade do momento histórico não é afastada de vez do campo da ciência
do direito por ser o poder constituinte reconhecido como o responsável pela
dinâmica da constituição, por outro lado há todo um esforço no sentido de torná-lo
nulo. Pode-se recorrer nesse momento tanto à transcendência, no intuito de
transformar a imanência do fato histórico no direito em mero “horizonte
providencial”
33
, quanto na limitação do tempo, chamada por Negri de concentração
temporal
34
. Essa hipótese implica em destacar do poder constituinte somente uma
ação, e assim como ele inova, ele também passa a ficar restrito puramente a essa
ação única em um determinado momento. O poder constituinte acaba sendo
engolido pela constituição, toda a sua originaldade é absorvida pela máquina
estatal. Dessa forma, ele tem seu fim decretado, encerrado no poder constituído.
Por fim, será apresentada a proposta que integra o poder constituinte de
forma completa no poder constituído. Nesse campo da teoria, a perspectiva
histórica é de grande relevância. O poder constituinte não é só fato, ele é
apreendido também em seu caráter de originalidade pelo direito constituído, pela
legalidade. A constituição social decorre da composição de grupos e de forças
políticas. O Estado surgido no interior de uma determinada sociedade já possui
uma normatividade própria que decorre dessa composição das forças e da política e
o ponto de partida para se realizar a interpretação ou possíveis mudanças da
constituição jurídica, constituição formal, será precisamente essa constituição
social, ou material. “A elasticidade da constituição formal é delimitada pelas forças
que constituem politicamente a sociedade e formam sua constituição material
através de compromissos institucionais contínuos”.
35
O principal problema
apresentado por Negri para esse entendimento acerca do poder constituinte é a
perda do processo de liberação e da originalidade, uma vez que tal concepção pode
dar ensejo e fundamentar um poder totalitário, como efetivamente ocorreu ao
longo da história. O norte do poder constituinte é a democracia e a política,
realizadas pela multidão. Portanto, o autor identifica nessa teoria a intenção, mais
uma vez, de frear o poder constituinte.
33
NEGRI, A., O poder constiuinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 14.
34
Cf. Ibid., loc. cit.
35
Ibid., p. 19.
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33
Independentemente da adoção de qualquer uma dessas três estratégias por
parte da ciência jurídica, o que ela pretende é elaborar uma forma ou encontrar um
mecanismo que consiga dar conta de suprimir o poder constituinte, de privá-lo de
sua potência revolucionária e da busca por liberação. Essa é a sua pretensão pela
via do direito público. Nesse aspecto, a perspectiva do constitucionalismo é ainda
mais adequada para esse feito, pois de acordo com o constitucionalismo liberal, as
instituições absorvem completamente o poder constituinte. Sendo assim, ele
representa a limitação do governo tanto em âmbito teórico, como em âmbito
prático, pois até o poder constituinte passa a estar submetido a determinado
processo legal que o organiza, a uma regulamentação efetiva e dura realizada pelo
direito para neutralizar o poder constituinte. Nas palavras de Negri:
O paradigma do poder constituinte, ao contrário, é aquele de uma força que irrompe,
desfaz todo o equilíbrio preexistente e toda continuidade possível. O poder
constituinte está ligado à idéia de democracia, concebida como poder absoluto.
Portanto, o conceito de poder constituinte, compreendido como força que irrompe e
se faz expansiva, é um conceito ligado à pré-constituição da totalidade democrática.
Pré-formadora e imaginária, esta dimensão entra em choque com o
constitucionalismo de maneira direta, forte e duradoura. Neste caso, nem a história
alivia as contradições do presente: ao contrário, esta luta mortal entre democracia e
constitucionalismo, entre o poder constituinte e as práticas dos limites da
democracia, torna-se cada vez mais presente à medida em que a história amadurece
seu curso
36
.
A ruptura efetuada pelo poder constituinte com o passado inviabiliza sua
explicação a partir desse passado. Por esse motivo, apesar de seus esforços, o
constitucionalismo não consegue regulamentar o poder constituinte, uma vez que
ele está em constante formação em qualquer lugar. Não se pode impedir sua
temporalidade constitutiva. Enquanto somente o futuro pode explicar o poder
constituinte por ele possuir uma dimensão criativa e inovadora, o
constitucionalismo está restrito ao passado, diz respeito somente ao que já foi
consolidado e está inerte, engessado. Por esse motivo, o poder constituinte tem
profunda conexão com os processos revolucionários.
A representação também é identificada por Negri como uma estratégia para
controlar e limitar o poder constituinte. Nesse sentido, a democracia representativa
constitui uma continuação do constitucionlismo. O poder constituinte está em crise
36
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 21.
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34
não só no que diz respeito à sua relação com o poder constituído, o
constitucionalismo e a soberania, mas também com a concepção de
representatividade, como uma forma de restringir sua potência. A crise decorre do
fato de não haver qualquer síntese possível na tensão gerada entre o poder
constituinte e poder constituído. Portanto, é tomando como ponto de partida a crise
e a ausência de síntese que se entende o poder constituinte.
Os juristas tentam superar a crise do poder constituinte de forma ineficaz,
mas a proposta de Negri pretende justamente o contrário, a aceitação dessa crise,
pois ela faz parte do conceito de poder constituinte. A crise, na verdade, é bem-
vinda, pois ela significa que o poder constituinte não está subordinado a nada, nem
à representação, nem à soberania e muito menos à finalidades ou limitações
instituídas pelo constitucionalismo. Quando essa subordinação é imposta, o caráter
fundador do poder constituinte é afastado, deixado de lado. O problema é que não
se pode negar a sua natureza de fundamento e não de algo que foi fundado. A crise
do processo constituinte é resultado das barreiras impostas a ele, das interrupções
causadas no curso das revoluções, ou dos reflexos da disputa entre transcendência
e imanência. É importante ressaltar que as crises são incessantes. Não dizem
respeito somente a alguns acontecimentos dentro dos processos revolucionários,
fazendo parte da própria estrutura do poder constituinte e da disputa entre ele e as
instituições do poder constituído. A crise não se restringe às interrupções no devir
revolucionário, ao seu aspecto puramente negativo, ela tem a perspectiva da ação,
uma vez que ela não é mero limite, é também um obstáculo colocado contra a
multidão, que contribui para liberá-la.
A ação não deve ser tomada pelo seu sucesso, ela deve ser compreendida por
ela própria na medida em que tenta sempre obter um outro sucesso. Por esse
motivo, a crise não é rejeitada pelo poder constituinte, ao contrário, ela é
incorporada ao seu conceito, especialmente, em sua perspectiva positiva, de
atividade incessante. A crise leva o poder constituinte a essa atividade constante,
ininterrupta. Conclui-se, portanto, que não há somente uma via, a da crise do poder
constituinte, há também uma outra via de interpretação para Negri: a do poder
constituinte como crise. Essa noção de produção de subjetividades a partir da crise
rompe com a racionalidade da modernidade, com uma linha evolutiva e com um
projeto utópico.
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35
A tradição constitucionalista entende que o poder constituinte opera de forma
extraordinária e em um determinado tempo e espaço, com o intuito de conceber
uma constituição nova. Tais aspectos inviabilizam seu caráter inovador. Se a
tentativa de restringi-lo temporal e espacialmente já é absurda, tentar estabelecer
uma finalidade para a sua existência para Negri é ainda mais complicado, em
virtude da inovação inerente a ele. É uma tentativa esquizofrênica, por ser inviável
determinar previamente como será essa capacidade inovadora, seu processo de
criação. Se é previamente determinada, não possui qualquer inovação. O direito
apela para a representação e para a soberania para encerrar o poder constituinte. A
estratégia da representação implica na construção de esquemas de hierarquia
37
. A
soberania passa a ser o fundamento do ordenamento jurídico, nas palavras de
Negri, o vértice. Ela é uma oposição ao poder constituinte, pois ele é a base. Se ela
possui uma finalidade, tempo e espaço restritos, constituição formal e rígida e seu
caráter aboluto significa totalitarismo, por outro lado, ele é pluralidade de tempo e
espaço, seu caráter absoluto não implica em totalitarismo, ao contrário, ele induz à
democracia radical
38
.
A defesa da inexistência de limites e finalidades específicas para o poder
constituinte permite que se proponha uma abertura completa como alternativa à
restrição dele. Essa tradição aberta é a raiz da democracia. Não havendo nem fim
específico, nem constituições prévias, existe uma maior liberdade para a atuação da
multidão. Se as possibilidades são inúmeras, se não há modelo previamente
estabelecido, a multidão é movida por essa ausência, que implica no desejo que a
conduzirá a esse movimento. É uma ausência e um grande vazio de limites e o
poder constituinte surge neles e supera a inexistência de um fim previamente
determinado. O poder constituinte surge no vazio e a partir dele constitui
absolutamente tudo. É justamente por esse fato que a multidão não se trata de uma
massa uniforme, total. Ela é caracterizada pelas singularidades. As considerações
acerca da ausência de modelo e de finalidade, bem como a constituição da
multidão por multiplicidades abertas foram abordadas anteriormente, mas é
importante lembrar que serão retomadas especificamente no interior do feminismo,
37
Essa estrutura hierárquica e de representação produz reflexos também nas relações de gênero, a
serem examinadas posteriormente. De qualquer forma, as lutas feministas foram muito duras até
conseguirem conquistar uma abertura no espaço público. Os padrões estabelecidos pelo gênero e
pela a heterossexualidade impõem a hierarquia, estabelecem uma ordem e tentam naturalizá-la.
38 Cf. NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 25.
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36
ao longo do segundo capítulo, e na parte dedicada à autora Judith Butler, no
aprofundamento das crítica às lutas fundadas na identidade.
A relação do poder constituinte com a democracia implica na configuração
dela como onipotente e expansiva, características comuns ao processo constituinte.
A democracia é a única forma de governo absoluto
39
, em que a liberdade é também
um procedimento entendido como absoluto. A prática da democracia necessita que
o poder constituinte seja um conceito plenamente aberto, em vez de sofrer as
restrições que a ciência jurídica tenta lhe impor com suas estratégias já
mencionadas e trabalhadas anteriormente. A ausência e o desejo também
impulsionam o movimento democrático. O poder constituinte não é formado para
no momento posterior ser incorporado em instituições. Ele pretende “construir
mais ser – ser ético, ser social, comunidade”
40
. Esse aspecto amarra ainda mais as
relações entre democracia e poder constituinte.
A forma pela qual se deve compreender o poder constituinte, uma vez que
ele não se restringe ao estabelecido no poder constituído, deve considerar seu
aspecto de originariedade. Por esse motivo, também há uma íntima conexão entre o
poder constituinte e os processos revolucionários. A revolução e o poder
constituinte estão de mãos dadas e quando a presença do segundo é identificada, a
primeira está em plena ebulição. Ambos fazem parte dos aspectos transformadores
da ação humana e da capacidade de formação e construção da história. Tal aspecto
ficará mais claro ao longo do próximo capítulo. Quando se fala em construção da
história pelo poder constituinte e pela revolução, podem ser incluídos nessa análise
movimentos tais como de resistência, rebelião, insurreição, enfim, processos em
geral de liberação dos corpos do domínio e da escravidão por parte de outros. Cada
um desses processos com suas peculiaridades. A resistência está mais inserida no
39
Em linhas gerais e a aproveitando as considerações de Marilena Chauí sobre o tema ao analisar
Spinoza, a democracia é compreendida como governo absoluto por ter fundamento na inclusão
social, enquanto a monarquia e a aristocracia são baseadas na desigualdade e na eliminação de
importante parcela social do governo. Nesse sentido, a democracia irá satisfazer o desejo que todos
têm de governar e não ser governados e a estabilidade política depende justamente de saciar essa
necessidade, pois muitas guerras e rebeliões têm início pela exclusão de determinadas categorias
sociais, que se sentem ameaçadas pelos governantes. Essas categorias não se cansarão de
reivindicar poder e, uma vez conquistado, também não deixarão de lutar para conservá-lo. Nesse
sentido, para garantir que a política tenha alguma estabilidade, é necessário que sejam criados cada
vez mais mecanismos de distribuição de poder, como conselhos e assembléias, evitando ou pelo
menos dificultando a corrupção por parte de um determinado particular e sua identificação pessoal
com o poder. Cf. CHAUÍ, M., Política em Espinosa, p. 285 et. seq.
40
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 38.
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37
cotidiano, fazendo parte da rotina dos sujeitos, seja no trabalho contra um patrão,
seja na família contra um pai ou um marido, por exemplo. A insurreição já enseja
algo em comum no discurso político, é a reunião de diferentes formas de
resistência, uma estruturação das resistências anteriormente isoladas em
determinados setores sociais. O poder constituinte é a inovação trazida pela
resistência e pela insurreição, trazida pelos processos revolucionários
41
. Em relação
à proximidade entre o poder constituinte e os processos revolucionários:
O direito e a constituição seguem o poder constituinte – é ele que dá racionalidade e
forma ao direito. O poder constituinte manifesta-se como expansão revolucionária
da capacidade humana de construir a história, como ato fundamental de inovação e,
portanto, como procedimento absoluto. O processo desencadeado pelo poder
constituinte não se detém. Não se trata de limitar o poder constituinte, mas de torná-
lo ilimitado. O único conceito possível de constituição é o de revolução: poder
constituinte concebido como procedimento absoluto e ilimitado
42
.
Portanto, o poder constituinte origina de forma permanente direitos e sempre
afirma a sua existência, não admite ser restringido. Realizada tal constatação, resta
investigar qual seria o sujeito que melhor daria conta do processo constituinte
como procedimento absoluto e ilimitado, pois o alvo deve ser uma estrutura
constitucional que mantenha sempre uma abertura para as inovações do poder
constituinte. A ciência jurídica já construiu algumas teorias a respeito do sujeito do
poder constituinte e Negri examina o problema de três delas: a que considera como
sujeito a nação, a que atribui a titularidade ao povo e a que atribui a ele
determinados mecanismos jurídicos, assim, o próprio poder constituinte seria
composto por uma série desses mecanismos de poderes jurídicos.
A primeira concepção a ser criticada é a de nação. A princípio, ela até
poderia ser apropriada para caracterizar o sujeito do poder constituinte. O
problema apontado por Negri é que nação é um conceito muito genérico, sendo,
por isso, de fácil manipulação. Nesse sentido, ele aparece em certos momentos
históricos fazendo o esforço oposto. Em geral, quando o conceito de nação começa
a ser utilizado no cenário histórico, o poder constituinte foi interrompido ou sofreu
algum tipo de limitação. Além disso, esse conceito está intimamente relacionado
com um “determinismo ético, valorações históricas, necessidades políticas,
41
Cf. NEGRI, A., Cinco lições sobre o Império, p. 197 et. seq.
42
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 40.
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38
urgências jurídicas, mas sobretudo uma forte sobredeterminação naturalista”
43
. Por
haver essa conexão com o determinismo histórico, o conceito de nação não
possibilita a abertura necessária para o poder constituinte. Na realidade, é nesse
momento que ele serve como bloqueio, como ruptura ao processo constituinte.
Porém, para que as peculiaridades locais sejam respeitadas, Negri e Hardt
tecem uma consideração específica sobre o uso do conceito de nação. Em países
considerados subalternos, a nação pode ter um significado diferente. Enquanto na
Europa ela foi utilizada como mecanismo de dominação mundial, sendo uma das
principais responsáveis pela imposição de uma hegemonia, em países periféricos
esse conceito pode exercer um papel completamente diferente, ou melhor, um
papel contrário se ele for utilizado como estratégia por grupos subordinados, que
sofrem com algum tipo de dominação.
Quando está nas mãos de grupos dominantes ele tende a ser utilizado para
inibir o processo constituinte, porém nas mãos de dominados esse conceito pode
ser um forte instrumento de modificação das circunstâncias sociais e de união. Isso
é impossível de negar, pois o conceito de nação pode fazer uma oposição
significativa aos Estados hegemônicos e forças políticas externas que tentam se
impor sobre as forças internas. Nesse sentido, o conceito de nação, a princípio
pode até exercer uma função progressista nos termos dos países dominados.
Porém, essa é uma estratégia muito perigosa, na medida em que internamente o
conceito de nação dentro desses países pode ser fundado em opressão interna de
um grupo por outro, instaurando uma unidade forçada, forjando uma identidade
que gera desigualdades e perseguições. O lado que faz frente e organiza as
resistências às dominações que vêm de fora pode configurar um poder dominante,
opressor das singularidades em seu interior para forçar uma identidade em nome de
uma segurança nacional. Por esse motivo, esse recurso não é recomendável, o
sucesso do empreendimento pode estar comprometido com grupos internos tão
opressores quanto os que vêm de fora
44
.
O segundo conceito a ser alvo das críticas negrianas é o de povo como
sujeito constituinte, pois ele também é muito genérico e se permite ser aprisionado
de forma rápida pelos mecanismos impostos pelo direito na qualificação de quem
43
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 43.
44
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 123 et. seq.
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39
seria apto para encarnar o sujeito constituinte ou governar. Nesse sentido, o sujeito
do poder constituinte deveria ser aquele adequado a uma determinada ordem que
previamente ditaria qual seria a sua essência. Essa condição do povo como sujeito
certamente apresenta menos limites do que a de nação, uma vez que a primeira não
tem a mesma ligação com a concepção naturalista da segunda, porém, o esforço
ainda é no sentido de frear o movimento expansivo do poder constituinte.
O principal problema com o povo como sujeito do poder constituinte é que
ele sempre implica na valorização do direito já constituído, pois é ele quem irá
ditar as condições para ser sujeito constituinte, ou seja, não é aberto a inovações.
Além disso, Negri e Hardt observam que povo é um conceito que, para ser
cunhado, ainda depende da concepção de Estado-nação e somente consegue ganhar
espaço em sua ideologia. A criação do conceito de povo também contribuiu para o
surgimento do Outro, pois povo também é dotado de unidade, funda uma
identidade com uma vontade única, construído com base na soberania. A lógica da
identidade do povo depende da eliminação de diferenças. Ele começa a tomar o
lugar do conceito de nação ao longo dos séculos XVIII e XIX, na Europa, com o
uso da máquina do racismo nas colonizações. A identidade européia foi constituída
em uma oposição em relação aos nativos de cada colônia. Ainda há uma outra
lógica de eliminação de diferenças no conceito de povo. Se por um lado, a
princípio ele é criado a partir de um processo dialético com os outros, no sentido
de nativos, por outro lado, há ainda um processo interno de uniformização, com o
recurso da representação de toda população por parte de uma determinada raça,
classe econômica, camada social hegemônica, ou por um determinado sexo
45
.
A terceira concepção de sujeito é criticada pelo autor por inviabilizar de
início qualquer hipótese de compreender o poder constituinte como absoluto, pois
ele próprio é caracterizado como uma série de mecanismos e artifícios jurídicos.
Para essa concepção, sempre haverá necessidade da mediação do direito. A
historicidade do poder constituinte, a singularidade de cada momento não é
desconsiderada, mas serve como limite material imposto por ele mesmo. Dessa
forma, a ciência jurídica consegue provocar uma inversão, pois ela não afasta a
potência do processo constituinte, ela a transforma em uma restrição interna ao dar
origem à constituição material.
45
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 120.
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40
Considerações e críticas feitas sobre os problemas das construções de sujeito
do processo constituinte elaboradas pela ciência jurídica, resta agora examinar qual
seria a proposta do autor em relação a esse sujeito, retomando aqui as
considerações acerca da multidão. Para tal tarefa, ele recorre principalmente à
concepção de poder elaborada por Foucault. É importante observar que Butler
também se funda nessa criação de Foucault para viabilizar os atos performativos
subversivos. O poder constitui homens que funcionam como elementos
completamente inseridos em sua máquina, nesse sentido, totalitária. Por outro lado,
os homens são compostos por uma série de resistências que possuem a capacidade
de liberação de suas vidas e fazem a devida oposição a essas prisões
46
. Ainda que o
sujeito esteja completamente inserido nas estruturas de poder, ele é potência. Esse
sujeito
47
é o que apresenta maior compatibilidade com o sentido absoluto do poder
constituinte, pois nele não há nada determinado de maneira prévia apesar dos
esforços do poder em assim definir, ele constitui, produz e inova, ele é o grande
produtor de acontecimentos absolutos.
Cabe apontar uma ressalva a respeito do chamado procedimento absoluto
feita por Negri: o sentido absoluto do poder constituinte e de seu sujeito não induz
de forma alguma a um regime totalitário. A relação que se faz entre a negação dos
princípios liberais e o suposto totalitarismo decorrente daí tem origem na tradição
contratualista e sua concepção de fundação dos direitos do homem no contrato
social. Um dos principais problemas do contratualismo é retirar o fundamento
imantente e material desses direitos, as disputas ocorridas na história, a supressão
do conflito. Para abandonar a perspectiva da imanência, o recurso utilizado pelo
contratualismo é o apelo à transcendência, à concepção de direito já
predeterminada e conhecida pelos homens através da razão, seja essa
transcendência fundada em um Deus, hipótese hobbesiana, seja em um conceito
como o de vontade geral, hipótese de Rousseau. A feminista Carole Pateman
trabalha com o contratualismo no intuito de criticar algumas correntes do
feminismo que apelavam para tal teoria como fundamento, observa que o contrato
social não foi elaborado para libertar e trazer a igualdade, conforme os
46
Cf. NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 45.
47
Butler coloca em xeque o próprio sentido da idéia de sujeito em um de seus trabalhos. Tal
problema será abordado no último capítulo.
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41
contratualistas insistiam em pregar e sim para justificar a sujeição civil na
modernidade
48
.
A perspectiva da imanência trata de um processo constituinte absoluto que
nada tem de totalitário, pois a concepção de absoluto apreendida por Negri de uma
tradição da modernidade distinta do contratualismo é a mencionada anteriormente,
nas considerações realizadas não só no item anterior como acerca da democracia
como única hipótese de governo absoluto. É uma concepção que, na realidade, se
opõe ao totalitarismo, pois este somente aparece quando se tenta negar as origens
do poder constituinte, quando se tenta burlar seu sujeito. Nesse sentido, para Negri,
os processos revolucionários não são de forma alguma prisões ao poder
constituinte, ao contrário, eles possuem uma abertura permanente espacial e
temporal, resistindo aos poderes opressores, constituindo e inovando na
comunidade pela via da democracia. Portanto, a democracia não pode ser
compreendida como um braço do liberalismo político ou do constitucionalismo,
pois seu principal esforço é no sentido de liberar o poder constituinte das amarras
colocadas nele pelo poder constituído
49
.
É necessário, ainda, ressaltar que o sujeito do poder constituinte é inserido
na história, ou melhor, constitui a história, já que ele não encontra limites ou
prisões que sejam insuperáveis por ser um sujeito aberto. Uma conexão
interessante que pode ser feita entre essa afirmação de Negri com o pensamento de
Judith Butler é a compreensão da autora sobre o conceito de mulher. Em nota
anterior, foi afirmado que a palavra mulher seria utilizada em um sentido
convencional até o momento do aprofundamento na teoria de Butler. Porém, já se
pode esclarecer que a autora entende que a categoria mulher não pode ser
determinada, definida ou fixa. Deve ficar aberta para que seja inclusiva e
instrumento de contestação
50
. A característica histórica desse sujeito ainda implica
em outra conclusão: a de que ele é, sem dúvida, temporal, que consegue produzir
seres e não se retringe à mera revelação de outros, pois possui grande capacidade
constitutiva. Por isso, a sua temporalidade também é absoluta, está relacionada
com a inovação, com a possibilidade de produção de seres, sem modelos
instituídos como originais a serem devidamente seguidos. Apesar das inúmeras
48
Cf. PATEMAN, C., The sexual contract, p. 145.
49
Cf. NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p.48.
50
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 21.
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tentativas de imposição de freios e limites pelo poder constituído, o processo
constituinte tem um caráter contínuo e sempre ressurge pela multidão
51
. Todos os
esforços em sentido contrário não o impedem de ser inovador, criativo, não
podendo ser neutralizado definitivamente.
A investigação conduzida por Negri sobre o poder constituinte permite que o
autor o considere um sujeito, uma subjetividade coletiva. Nesse aspecto, o poder
constituinte e a democracia são as formas pelas quais a multidão se expressa, sem
realizar qualquer tipo de transferência de poder ou de titularidade
52
. Na condição
dessa subjetividade, ele é dinâmico e não tem qualquer semelhança com o
constitucionalismo. Na verdade, ele tem início e é muitas vezes interrompido em
razão das disputas com os processos constitucionais, uma vez que ele se recusa a
abrir mão de seu caráter dinâmico para ficar estagnado em uma constituição. Para
que seja possível definir com maior precisão esse sujeito constituinte que se opõe
ao poder constituído, Negri vai identificar a necessidade de diferenciar a
subjetividade e a racionalidade desse sujeito, da racionalidade e da subjetividade
modernas mais tradicionais, pois a primeira vai muito além da segunda.
A tradição da modernidade entendida por Negri como hegemônica se
apropria da criatividade individual e coletiva para a racionalidade da forma
capitalista de produção. Os contratualistas deram uma grande contribuição com
instituição de uma linha absolutista. Dessa forma, a política se torna transcendente,
passa a estar fora da alçada da multidão e o poder tenta se impor à potência dela. A
multidão passa a ser um alvo cada vez maior de debates ansiosos por controlá-la
ou reprimi-la, alvo de grandes indagações nervosas sobre sua potência. A
racionalidade da tradição hegemônica da modernidade é constituída pelo medo que
a multidão gera
53
. O poder constituinte deve ser devidamente adestrado ou
destruído, sua subjetividade deve ser arrancada fora e deve-se negar uma
racionalidade a ele.
Por essa razão, Negri chama atenção para o fato da teoria política moderna
ter origem no medo, como na disputa entre transcendência e imanência. Enquanto
a tradição hegemônica, fundada na transcendência, apela para o medo hobbesiano
51
Cf. NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 422 et seq.
52
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno, p.
198.
53
Cf. NEGRI, A., op. cit., p. 448.
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como fundamento da sociedade e instaura a soberania, a tradição seguida por Negri
inverte essa condição. A comunidade surge porque os homens desejam que seus
horizontes sejam expandidos, e para que isso ocorra, o indivíduo não é suficiente,
ao contrário, é excessivamente limitado
54
. Essa sem dúvida foi a modernidade
vencida, fundada na imanência. A racionalidade moderna pretende, portanto, não
somente impor uma determinada ordem, como também ser um forte aparelho de
repressão, pois se o medo é a sua origem, a repressão é a sua resposta a ele. A
modernidade interdita qualquer possibilidade de expressão da multidão como uma
subjetividade. Para inviabilizar essa expressão perigosa, em todos os momentos em
que o poder constituinte surge, com a contribuição da ciência jurídica, ele é
considerado um poder político excepcional, extraordinário. Porém, não se pode
negar que o poder constituinte constrói uma realidade social que não pode
simplesmente ser ignorada.
É muito comum a reprodução de afirmações no sentido dos processos
constituintes ao longo das revoluções chegarem ao fim após um determinado lapso
temporal, esgotando as suas atividades, como se a missão estivesse cumprida. Tal
fato teria ocorrido em diversas revoluções, como por exemplo, a americana, a
francesa e a russa. A esse tipo de crítica Negri responde que, na verdade, o fim é
imposto pelo constitucionalismo, na tentativa de impedir os novimentos do social e
do político, suas influências no real e na produção do ser. Negri entende ser
inviável a imposição de um ponto final absoluto. Cada um deles significa um mero
obstáculo e o poder constituinte consegue ir além e continuar suas inovações. Não
há limites para ele que não sejam provisórios, pois os limites são os existentes no
mundo da vida, e já que a perspectiva é a da imanência, o poder constituinte
interfere e provoca abalos estruturais de forma direta nele
55
.
Os momentos em que as constituições modernas são instauradas em um
movimento contra o poder constituinte são simplesmente a conseqüência direta do
procedimento da racionalidade moderna do controle das singularidades. Negri
constata que os recursos utilizados para frear o poder constituinte são, por
exemplo, a imposição de uma temporalidade que restringe a atuação do poder
constituinte a ela, a desterritorialização dos sujeitos e a anulação da criatividade
54
Cf. GUIMARAENS, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito
muito além da modernidade hegemônica, p. 136.
55
Cf. NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 451.
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deles. As características da proposta de racionalidade apresentada por Negri estão
estruturadas no interior das lutas e dos processos revolucionários alternativos que
ocorreram ao longo da modernidade, entre eles o feminismo e todas as disputas e
crises internas, lembrando que é essa perspectiva que será abordada no capítulo
seguinte, momento dedicado à sua investigação em uma abordagem a partir da
concepção de processos revolucionários.
A primeira característica observada por Negri em relação à nova
racionalidade diz respeito ao limite imposto ao poder constituinte. Na verdade, ele
é ilimitado, qualquer barreira é mero obstáculo que somente serve como condição
da própria existência do poder constituinte. O limite também é a condição para que
o poder constituinte se expanda. É por causa da existência da barreira que o poder
constituinte tem também uma perspectiva ativa, positiva, pois sua produção se dá
no sentido de expandir-se além dela. Uma vez incorporado esse limite ao poder
constituinte, ele o destrói, pois o poder constituinte não possui medida, em outras
palavras, sua única medida a ser considerada é a própria potência da multidão. As
medidas somente ressurgem porque elas são constituídas de forma conjunta à
realidade que será medida, não são instituídas previamente, muito menos são
parâmetros ou normas a serem adotadas. O que o poder constituinte faz em relação
a elas é refletir sobre a comunidade, refletir sobre si mesmo.
A segunda característica trabalhada pelo autor é a estrutura constitucional da
modernidade, em oposição ao processo constituinte. A nova racionalidade induz ao
movimento constante que surge nas bases do social e não em seu topo. Não há
incidência de normas abstratas regendo esse processo contínuo e sim composição
de interesses diversos, que sempre são submetidos a uma nova avaliação, segundo
as necessidades do momento. As próprias regras que podem vir a existir para o
procedimento constituinte também são submetidas a avaliações e o controle
existente é interno ao processo e não exterior a ele. Cabe ressaltar que o autor
define como procedimento “a forma concreta que cada expressão de subjetividade
assume ao relacionar-se com as demais”
56
.
O autor segue com o exame das características da nova racionalidade e no
terceiro momento opõe a igualdade ao privilégio. Este entra em choque com a
racionalidade proposta pelos processos revolucionários, uma vez que é
56
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 454.
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45
incompatível com a concepção de trabalho vivo. Além disso, a igualdade não é um
direito inalienável ou uma finalidade a ser buscada, ela é o ponto de partida, a
condição material sem a qual não há processo constitutivo. Ela não pode se
restringir a uma declaração formal, um documento, ela deve ser dotada de
concretude, pois a liberdade tem como pressuposto a igualdade de fato. A
liberdade somente tem lugar e condições de apresentar um desenvolvimento
significativo se houver igualdade. Em última instância, a multidão é um termo que
se refere à democracia fundada nas capacidades produtivas, inclusive de atos e
gestos, dos sujeitos que dela participam, uma democracia de igualdade absolutas
em direitos e deveres. Essa é a concepção da tradição seguida por Negri e Hardt
acerca da multidão
57
.
A igualdade é muito bem trabalhada nesse sentido por Rancière, ao analisar a
origem do nome “democracia”. Esse autor expõe que o nome democracia foi
primeiro dado não para uma nova forma de regime e sim em tom pejorativo, pois
ela se constitui a partir de um desvio na via considerada normal para resolução dos
assuntos humanos. Isso porque a democracia é o governo regido pelo povo, que em
Atenas era formado pelo pobres, não simplesmente no sentido econômico. Essa
categoria estava relacionada também com funções simbólicas, com as posições
ocupadas pelos sujeitos no mundo da vida. Era chamado pobre todo aquele que não
possuísse qualquer título exigido para estar apto a governar, nada de valor e que a
única coisa que possuísse fosse o fato de ter nascido ali em vez de nascer em
qualquer outro lugar. Rancière considera que a democracia é a ruptura com aquele
mundo, pois quem exerce o governo é quem não tem título. Há uma completa
ausência de dominação, em que se funda uma reciprocidade entre os que governam
e os que são governados, pois ninguém possui o título necessário para governar,
simplesmente porque ele não existe, o poder não é peculiar a uma determinada
categoria de título, a um nível econômico, à antigüidade ou a um nível determinado
de saber. Nenhum desses requisitos pode estabelecer quem possui condições para
governar. Essa é a função da política para Rancière.
Portanto, para Rancière o princípio que fundamenta a política é o da
igualdade. Porém, não é uma igualdade diretamente relacionada com a ausência
dos motivos que justificariam a dominação. A igualdade aqui é fundada no
57
Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno, p.
198.
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dissenso, na ruptura causada no real, ou nas palavras de Rancière, no sensível, ao
se pretender romper com uma determinada forma de dominação compreendida
como natural, já interiorizada na comunidade, vivida como se fosse inexorável,
inevitável. Sem dúvida, os ativismos das feministas, dos negros e homossexuais
podem ser citados como exemplos de ruptura com essas lógicas de dominação há
muito instituídas e que de alguma forma conseguiram se naturalizar, havendo
inclusive corrente feminista que se apropria da naturalização das diferenças
sexuais. A democracia está profundamente relacionada ao tema na medida em que
Rancère esclarece que o demos é a parcela da comunidade sem maior relevância,
ao mesmo tempo em que ele constitui praticamente toda a comunidade.
Ainda no intuito de esclarecer o sentido da igualdade aqui adotado, segue-se
no exame de Rancière e na referência que o autor faz a um pensador francês do
século XIX, Ballanche, e sua interpretação sobre a secessão dos plebeus romanos
no monte Aventino. O patrício Menênio Agripa foi o responsável por impor a
ordem no movimento dos plebeus revoltosos e, para isso, defendeu uma posição
segundo a qual a cidade poderia ser comparada a um grande corpo em que as
partes funcionavam de modo solidário, cada uma com um papel diferente. Os
plebeus seriam os braços, enquanto os patrícios seriam o centro vital. Os dois
grupos eram fundamentais, mas a dignidade não era igual. O que Rancière percebe
como uma estratégia de Ballanche é que este modifica o foco do exemplo e coloca
em dúvida se os plebeus falam ou não falam. É uma questão fundamental, uma vez
que se os plebeus exigem um acordo com os patrícios, tal acordo só poderá ser
efetuado se eles forem capazes de falar, o acordo somente se dá entre duas partes
capazes de comprometer suas palavras. Se não há capacidade de fala, não há como
comprometer a palavra. A conclusão é que os plebeus não falam.
Rancière percebe a contradição existente em tal tipo de argumento cunhado
para justificar a não participação dos plebeus na política. O que os plebeus devem
fazer é deixar claro que eles falam. Em primeiro lugar, eles devem se convencer
disso para depois realizar um trabalho no sentido de impor aos demais que também
não percebem a fala dos plebeus como uma nova condição, essa nova percepção do
sensível, que antes não tinham qualquer motivo para assim entender. O problema
diz respeito ao fato da própria fábula ser alvo de uma torção observada por
Rancière, pois se por um lado a fábula pretende expor a desigualdade natural dos
plebeus em relação aos patrícios, por outro lado, para que os plebeus entendam a
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explicação da desigualdade, eles devem ser considerados sujeitos que falam, assim
como os demais.
A suposta desigualdade existente entre plebeus e patrícios não pode,
portanto, ser comprovada sem que primeiro seja aceita pelos próprios patrícios
uma igualdade prévia entre eles e os plebeus. Pode-se concluir que a desigualdade
é forjada, não é natural. Para que a conclusão seja possível, apesar de
aparentemente óbvia, é fundamental para Rancière que fique caracterizada uma
situação conflituosa, que não se restringe à mera oposição de dois grupos distintos
ou a uma luta por reconhecimento, um embate entre distintos pontos de vista sobre
o real. Na realidade, é um encontro entre duas realidades diferentes, ou dois
mundos sensíveis: aquele em que os plebeus falam e aquele em que eles não falam.
Essa conclusão também serve para antecipar o pensamento de Butler, sobre como
são instauradas as diferenças de sexo e de gênero.
O dissenso tratado pelo autor é o conflito acerca da constituição do mundo,
dos títulos daqueles que possuem a capacidade de falar. As discussões e os
conflitos ocorridos no mundo sensível não ocorrem entre agentes previamente
constituídos sobre alguma regra geral que possa vir a incidir sobre um determinado
caso particular. O primeiro passo é comprovar que existe alguma coisa a ser
argumentada, uma concepção de mundo que inclui sujeitos que falam e isso é
realizado na prática, assumindo que esse mundo já existe, não é instituído
abstratamente de forma prévia. A posição e o entendimento dos patrícios
representa uma espécie de recorte do sensível, a insurreição dos plebeus enseja
uma representação distinta do sensível. O dissenso possibilita que dois mundos
diferentes sejam vistos em somente um. Segundo Rancière, a racionalidade política
é a responsável por conceber esse mundo de litígio, de conflito, aquilo que revela
ao mesmo tempo dois recortes completamente distintos do mundo sensível
58
. Essa
lógica também pode servir para analisar o papel desenvolvido pelo movimento
feminista.
Retomando as considerações de Negri sobre a nova racionalidade, a quarta
característica diz respeito à diversidade, ao invés da uniformidade moderna. É
importante ressaltar que, segundo Negri, há uma grande diferença entre igualdade e
uma uniformização e essa diferença deve ser enfrentada, pois também é uma
58
Cf. RANCIÈRE, J., O Dissenso, In Novaes, Adauto (Org), A Crise da Razão, p. 370 et. seq.
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48
consideração importante para o pensamento de Judith Butler. Por se tratar a
multidão de uma multiplicidade de singularidades, não se pode recorrer à
uniformidade para defini-la. O poder constituinte é concebido como um
mecanismo que amplia, expande as possibilidades das singularidades e não as
submete a uma determinada unidade. A nova racionalidade valoriza a diversidade,
ou seja, “a riqueza de individualidades iguais e irredutíveis”
59
. A potência criativa
da multidão decorre justamente das inúmeras possibilidades de expressões
singulares.
O feminismo, em suas mais variadas correntes, é simplesmente um modo de
expressão do poder constituinte. A análise do movimento feminista demonstra
muito bem como as experiências são diversas e como a partir das singularidades
elas o compõem, como a experiência da mulher negra, da homossexual, das
questões de classe e das mulheres de países pobres. Enfim, apesar de um esforço
dentro do feminismo no sentido de dar uma unidade ao movimento, o que se
constata é a impossibilidade de se deixar de lado as diversas experiências. Nos
momentos em que houve a tentativa totalizadora, identitária, dentro do feminismo
que atribuía um conceito para mulher a partir da perspectiva da mulher branca, de
classe média alta, ocidental e heterossexual, o que ocorreu foi o descrédito no
próprio feminismo, por outras categorias terem sido desconsideradas, tratadas
como Outro, o que levou as demais expressões a constituir lutas próprias.
A última consideração que o autor faz sobre a racionalidade alternativa à
moderna opõe a cooperação ao comando. A cooperação é a forma pela qual a
multidão atua, na medida em que as diversas singularidades se estruturam e se
compõem para produzir o novo. A cooperação está profundamente relacionada
com a inovação e a criatividade da multidão, pois é a partir dela que as
singularidades que fazem parte da multidão reproduzem a vida e dão origem ao
novo. O trabalho efetuado em cooperação pelo conjunto de singularidades é
chamado de potência. Por esse motivo, a cooperação é fundamental para que se
tenha uma democracia de fato, verdadeira. O comando institui uma democracia
falsa, pois além de desprezar a cooperação da multidão, ainda afasta uma
característica essencial à democracia já tratada anteriomrente: o fato dela ser um
governo que dá conta de satisfazer a necessidade que todos têm de governar e não
59
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 455.
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49
ser governados, o que a faz ser, portanto, a única forma de governo absoluto
possível.
Após a reflexão sobre as características da nova racionalidade, Negri
reingressa na discussão acerca da definição do poder constituinte e a primeira
constatação é a de que não existe a possibilidade de se conceituar a política sem ter
como ponto de partida o poder constituinte. Como já visto, ele não é um evento
extraordinário e limitado no tempo e no espaço, seguindo as disposições do poder
constituído. Ele, na realidade, é o lugar em que a política é gerada, pois não existe
uma comunidade dada previamente, preconstituída, ela se constrói diariamente,
sendo a política o procedimento de criação constante dessa comunidade. Qualquer
forma que a comunidade venha a ter decorre da potência de criação e produção das
singularidades que compõem a multidão.
Negri constata a necessidade de se tirar o aspecto dramático com que
geralmente as revoluções são tratadas, uma vez que elas simplesmente significam
um forte desejo de transformação do tempo ininterrupta. O conceito de poder
constituinte traz justamente esse aspecto de normalidade, habitualidade para os
processos revolucionários, pois propõe uma definição do real e do ser como
atividade, movimento constante, que não se permite sofrer qualquer tipo de
controle. O que mobiliza o ser humano para a política é o fato de se pretender
transformar o real com o fundamento no “desejo de participação”
60
. A política,
portanto, não é uma simples mediação administrativa realizada por burocratas que
são dotados de representatividade. O autor afirma ser isso mera atividade de
polícia, a constante criação de um mundo novo é inerente à política e dizer o
contrário, significar impor o poder constituído ao poder constituinte, submetendo o
segundo ao primeiro.
Novamente, Rancière pode ser aqui invocado por ilustrar bem essa discussão
do que é polícia e do que diz respeito à política. Apesar do autor dizer que a
política surge como um desvio extraordinário, sua concepção é compatível com a
de Negri se o foco é a ruptura, a violência causada pela política no curso
aparentemente natural e ordinário das coisas, dos mecanismos de dominação.
Pode-se dizer que é extraordinário por romper com essas estruturas e não por ser
um poder exercido como uma exceção, que deve ter um término. Tal fato somente
60
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 459.
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50
demonstra mais uma vez que apesar do poder constituinte sofrer fortes oposições
do constituído, ele recupera sua criatividade e retoma o processo de inovação pelo
viés do conflito, das revoluções.
Seguindo a análise desse entendimento de Rancière, o que em regra se
entende como política, ele chama de polícia. Tudo o que diga respeito à estrutura e
organização dos poderes do Estado, a forma que se escolhe para gerir a população
e os assuntos considerados públicos, os critérios e as maneiras pelos quais as
funções e os lugares na sociedade são distribuídos e atribuídos a uns em vez de
outros, o que dá suporte e legitimidade a essas escolhas, às decisões do governo,
tudo isso, na realidade, diz respeito à polícia e não à política.
Cabe ressaltar que Rancière não atribui um sentido comum à palavra polícia,
não tendo nenhuma conotação pejorativa a utilização de tal termo, pois ele não está
restrito à vigilância e ao aparato repressivo do Estado. Por esse motivo, o autor
ainda chama atenção para o fato de ser compreensível que uma determinada
comunidade prefira uma polícia em relação à outra, pois polícia significa um
determinado recorte do sensível, uma ordem que estabelece os papéis, as
capacidades e uma pode ser mais adequada às pretensões de uma sociedade em um
determinado momento histórico do que outra.
A política, por outro lado, é um termo que Rancière destina às já analisadas
ações que causam distúrbios no mundo sensível, atividades responsáveis por
perturbar o que está constituído, ou no que ele entende por ordem policial. De
acordo com Rancière, a perturbação causada pela política ocorre em razão do
objetivo de inscrever no sensível uma pressuposição completamente heterogênea à
concepção que até então vinha predominando de sua configuração, pois conforme
dito anteriormente, pretende-se colocar como pressuposto, uma igualdade até então
não inscrita na realidade social, apesar do paradoxo que é forjar uma desigualdade,
como no exemplo dado por ele da condição dos plebeus, ou ainda, do feminsmo.
Nesse sentido, diz Negri:
Com efeito, todas aquelas atividades que se pretendia apresentar como natureza da
política, não participam disto, mas da routine de uma repetição inalterada, e são
efeitos do trabalho morto, inversões perversas do poder constituinte e não podem
ser consideradas na definição de política
61
.
61
NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 460.
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51
O poder constituinte não é posterior à política como um momento social que
interrompe a realidade e também não é mera exceção, pausa momentânea para a
vontade da coletividade fazer uma avaliação e se realizar, sendo restringido em
seus efeitos e reflexos na política. No entendimento de Negri, o poder constituinte
é anterior à política, é aquele que a define. Por esse motivo, sempre que o poder
constituinte sofre qualquer tipo de restrição, limitação, por parte do poder
constituído, a política perde espaço, ela fica restrita às funções administrativas,
burocráticas, ela passa a ser identificada com o que Rancière denomina polícia.
A análise de Antonio Negri sobre o poder constituinte é a análise das
disputas entre a imanência, fundada no humanismo italiano, e transcendência ao
longo dos processos revolucionários. O esforço da transcendência foi direcionado
para inviabilizar ou interromper os processos de liberação pela via da imposição do
poder constituído sobre o poder constituinte. O poder constituinte, nesse sentido,
reaparece sempre se levantando contra essa segunda concepção da modernidade:
sua face transcendente. Agora que os principais conceitos que serão utilizados
como lente já foram abordados, o próximo capítulo irá tratar dessa disputa em um
dos modos de expressão do poder constituinte: o feminismo. Assim, será feita uma
avaliação das influências da imanência e da transcendência no processo de
conquista de direitos e de mudanças no sensível no que diz respeito às diversas
lutas das mulheres que resultaram nos ápices da primeira onda e da segunda onda
do feminismo.
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3
Os processos revolucionários das mulheres: experiências
preparatórias da primeira e segunda onda do feminismo no
ocidente
Introduzidas as concepções de poder constituinte e multidão no capítulo
anterior, o momento agora é de dedicação a uma das formas de expressão desse
poder constituinte, o “movimento feminista”. A primeira dificuldade encontrada é
justamente saber se a denominação movimento feminista é cabível, na medida em
que ele não é unitário, ao contrário, nele se encontram as mais variadas formas de
manifestações que se atravessam e chegam a disputar entre si, como no caso das
mulheres negras americanas, que não se reconhecem no feminismo americano em
virtude da dupla dominação a que eram submetidas ser desconsiderada, impondo,
assim uma hierarquia entre as questões de sexo e raça. Como esse exemplo, a
história tem outros, como a disputa entre as feministas heterossexuais e
homossexuais e a dificuldade de se compatibilizar no mesmo movimento as
burguesas e as mulheres de classes baixas no século XIX.
A dificuldade decorre de uma compreensão equivocada acerca do tema.
Esse tipo de conflito é gerado justamente em virtude do apego às identidades
instituídas pelo poder. No primeiro capítulo foi mostrado o mecanismo de
fundação do modelo identitário e agora um dos principais problemas decorrentes
dele aparece de forma clara. Se a segregação é o objetivo do poder ao utilizar a
estratégia da identidade, é exatamente isso o que ele consegue quando são
observadas essas disputas internas nos movimentos de liberação. A identidade é a
origem da exclusão. Na medida em que esses movimentos trabalham com essa
perspectiva, fatalmente isso implicará em um processo de exclusão. Por esse
motivo, a identidade pode ser aquilo que enseja o surgimento desses movimentos,
pois sem privilégio, desigualdade ou exclusão, eles não teriam razão de ser,
porém, ela não deve ser um elemento a ser utilizado na luta, ao contrário, na
verdade, a luta por liberação se opõe a ela.
Talvez uma perspectiva interessante que pode ser adotada para analisar o
feminismo e superar problemas como esse seja concebê-lo em sua varidade como
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53
um rizoma, no sentido dado por Deleuze e Guattari, como uma imagem de rede,
fundado no plano de imanência. São diversas as formas de entrada nele, basta
observar em seu interior as mais diferentes manifestações do feminismo que se
perpassam o tempo inteiro e cruzam também com outros moviemtos. O exame dos
princípios ou caracterísitcas do rizoma estabelecidos por Deleuze e Guattari
contribuirão para um melhor entendimento do que significa pensar o feminismo
como tal. O primeiro e o segundo princípios dizem respeito ao fato do rizoma não
apresentar uma ordem, sendo necessariamente heterogêneo e todos os seus pontos
poderem ser interconectados. Nas palavras dos autores:
Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço
lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de
codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc.,
colocando em jogo não somente regime de signos diferentes, mas também
estatutos de estados de coisas. (...) Um rizoma não cessaria de conectar cadeias
semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências,
às lutas sociais
52
.
O terceiro princípio se refere à multiplicidade. As multiplicidades têm um
caráter tambem rizomático. Não existe uma relação do múltiplo com uma unidade,
com um sujeito ou um objeto qualquer. Sem haver uma definição de sujeito ou
objeto, as multiplicidades implicam em grandeza, dimensão e na medida em que
são alteradas, crescem ou diminuem, a própria natureza delas também se
modifica. As conexões que são feitas e se ampliam mudam a natureza e esse
aumento de conexão é chamado pelos autores de agenciamento. Por isso, eles não
utilizam uma unidade de medida e sim “variedades de medidas”. Essas
multiplicidades são definidas justamente pelo que está fora, por uma linha
estabelecida abstratamente, que identifica o momento em que elas mudam de
natureza. A única hipótese de unidade considerada por eles é a decorrente de um
processo de subjetivação
53
.
O quarto princípio que auxilia na compreensão dos rizomas é o que
estabelece a possibilidade de ruptura do rizoma em qualquer lugar, não havendo
um corte significante. O rizoma pode não somente ser rompido em qualquer lugar,
mas também ser retomado de qualquer linha que o compõe, pois ao mesmo tempo
52
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1 p. 15.
53
Ibid., p. 17.
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54
em que ele é desconstituído ele pode ser constituído a partir de outras linhas. São
elas que o territorializam, que o organizam, o estruturam e a ruptura no rizoma
ocorre quando elas se transformam em uma linha de fuga, que justamente vai
desterritorializar, lembrando que essas rupturas, bem como a linha de fuga, são
partes do rizoma, além de remeter e se conectar com outras linhas, compondo
outras organizações, outras concepções de bom e mau, por exemplo.
O último princípio a auxiliar no entendimento do rizoma é o da cartografia,
ou mapa. Os mapas são compostos no interior dos rizomas, entre as diversas
linhas e esse procedimento tem base nas experimentações vividas no real, ele não
é fechado em si mesmo, sua principal característica é a abertura, ser mutável a
qualquer momento a partir das novas conexões que podem ser realizadas em
qualquer direção. Ele pode ser reestruturado ou reinventado individualmente, por
um grupo ou uma comunidade, uma ação política. Por esse motivo, foi afirmado
anteriormente que o rizoma possui diversas entradas. Essa característica decorre
da incidência do princípio da cartografia.
Esclarecidos esses princípios sobre os mecanismos dos rizomas, é
necessário ressaltar a importância de se pensar o feminismo utilizando essa
perspectiva, pois somente assim é possível compreender o que se passa nas suas
supostas divergências internas. Nesse sentido, cada linha traçada pelas diversas
correntes feministas pode ser tomada como uma linha de fuga, que rompe com
aquele rizoma ao mesmo tempo em que o reconstrói, que transmuta sua natureza e
amplia suas margens, alterando ou constituindo novos mapas. Na medida em que
o feminismo ou qualquer outro movimento minoritário trabalha com fundamento
na identidade ele reproduz e afirma o esquema introduzido pelo poder em vez de
transformá-lo. Portanto, a preocupação desses movimentos, uma vez constatada
essa forma de dominação a partir da identidade, deve ser não afirmá-la, mas sim
abandoná-la, ou seja, abandonar modelos previamente instituídos, caso contrário,
o projeto de liberação é perdido. É a fundação da identidade que instaura a
desigualdade no mundo moderno.
O que o feminismo faz ao utilizar a identidade é se atrelar a uma perspectiva
chamada por Deleuze e Guattari de arborescente, em vez da rizomática. Os
autores observam que a associação com a árvore em vez do rizoma é típica do
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55
pensamento ocidental eurocêntrico, e impõe uma noção de hierarquia
54
. A árvore
induz a uma unidade, desconsiderando multiplicidades, por isso é perfeitamente
possível dentro dessa concepção se defender a existência de identidade, de um
modelo fixo a determinar o real. Se a identidade a predominar como ícone no
feminismo é a da mulher branca, classe média ou classe média alta, ocidental,
heterossexual, obviamente as que não estão incluídas nesse padrão são excluídas,
não tendo um reconhecimento efetivo na categoria “mulher”. Essa é a
conseqüência da arborescência.
Enquanto o rizoma é regido pela conexão, heterogeneidade, multiplicidade,
ruptura a-significante e cartografia, a arborescência estabelece uma descendência,
se encontra submetida à homogeneidade, a um ponto fixo, uma unidade, uma
impossibilidade de ruptura a-significante e, por fim à decalcomania. Esses
princípios se manifestam na arborescência fazendo com que ela fundamente um
ponto, uma ordem, em vez de possibilitar uma conexão entre seus diversos
pontos, além disso, ela trabalha com um método genealógico, promovendo a
centralização ou a homogeneidade. A multiplicidade é ignorada em prol da
unidade, instituindo um sujeito, com uma vontade una, e um objeto. No que diz
respeito às rupturas, se no rizoma elas não têm significante, na arborescência os
cortes são significantes, no rizoma o bom e o mau possuem sentido segundo um
processo seletivo no interior da comunidade, não existindo por si mesmas, ao
contrário da arborescência. A decalcomania implica na adoção de um modelo
genético que irá gerar os demais a partir de reproduções suas. A hierarquia institui
determinados pontos centrais de relevância e a partir daí as subjetivações.
É necessário ressaltar que não há pretensão nos autores de estabelecer
qualquer forma de dualismo entre o rizoma e a arborescência. Um mapa pode ser
decalcado, bem como as linhas que constituem um rizoma podem atravessar
raízes, contribuir para as suas formações
55
. O rizoma pode permitir a formação de
arborescência em seu interior. Nesse sentido, os autores apresentam como
exemplo a perspectiva do oriente, que tem uma forte ligação com a tradição da
imanência e, no entanto, pode refletir uma hierarquia ainda mais severa
justamente pelo fato de não haver dualismo. Na imanência também há a
possibilidade de se instituir despotismo, assim como na transcendência algumas
54
DELEUZE, G.; GUATTARI, F., Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1, p. 29.
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56
vezes acontece de existir uma raiz anárquica, aérea em vez de subterrânea
56
.
Sendo assim, não existe de fato uma perspectiva dualista por parte dos autores
porque eles não fazem uma contraposição como duas opções de modelos a serem
seguidos.
(...) um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre
suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e
esboça um mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele
suscite um canal despótico
57
.
O feminismo se apresenta como um rizoma cujas correntes são linhas que se
perpassam, formando a figura de uma rede. Em cada momento que uma delas se
afirma sobre a figura da identidade, forma-se uma arborescência, pois recorre-se a
um modelo previamente estabelecido. As demais surgem como linhas de fuga,
ampliando as margens do movimento feminista. Nesse capítulo o estudo será
dirigido ao trabalho dessas anomalias, linhas que modificam as bordas do
feminismo
58
, como elas se apropriaram de determinadas condições históricas e
sociais para fundar os próprios modos de expressão do processo constituinte.
3.1
Os primeiros conventos como uma possibilidade de fuga do
casamento: a mobilidade da mulher no início do Cristianismo
O termo feminismo foi cunhado no ocidente somente na segunda metade do
século XIX. Porém, o caminho percorrido para se chegar a fundar uma teoria
feminista foi longo e decorreu de uma série de experimentações durante a história.
De certa forma, se antes não havia a consciência do feminismo ou de atuações a
partir de um movimento amadurecido, essas experiências foram fundamentais
para a constituição da primeira e da segunda onda do feminismo. A importância
da análise desse momento histórico se deve ao fato dessas experiências das
mulheres configurarem uma novidade para o tradicional modo de vida. Por mais
55
Ibid., v. 1, p. 22.
56
Cf. DELEUZE, G.; GUATTARI, F., Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1 p. 31.
57
Ibid., v. 1, p. 31.
58
Ibid., v. 4, p. 27.
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57
paradoxal que possa parecer em uma primeira abordagem, Marlene LeGates
observa uma receptividade e uma abertura muito interessante para as mulheres na
primeira fase do Cristianismo, apesar da questão religiosa estar sempre em
primeiro plano
59
.
No século III as mulheres eram maioria no Cristianismo, o que começou a
afetar a imagem do movimento cristão. Os pagãos costumavam tratar os cristãos
como membros de uma religião inferior, sem honra e estúpida, por ser composta
eminentemente por miseráveis, crianças e mulheres. O atrativo que o Cristianismo
tinha para as mulheres da época pode parecer complicado de ser entendido aos
olhos da modernidade no que diz respeito à abstinência sexual, mas o fato é que se
antes, ao contrário das mulheres cuja função era somente a de reprodução
60
, os
homens tinham a possibilidade de exercer a sexualidade, o Cristianismo
introduziu a castidade para ambos os sexos e não somente para as mulheres.
Nessas condições aparentemente repressivas para homens e mulheres, estas
conseguiram se beneficiar do pensamento cristão e buscar outros horizontes,
outras perspectivas para suas vidas. Considerando-se que o momento aqui
analisado é de baixa densidade demográfica, a reprodução era uma necessidade
fundamental para a comunidade. Se as mulheres agora têm outras possibilidades
além dessa e se elas cedem a essa novidade em suas vidas, obviamente tal
preferência dará origem a muito descontentamento social, por isso nesse primeiro
momento elas são perseguidas pelos pagãos. No fim do mundo romano, para que
a população pudesse ser mantida, cada mulher deveria ter cerca de pelo menos
cinco filhos
61
. Nessas condições, a opção pela castidade se mostrava altamente
perigosa socialmente e com um sério caráter subversivo, na medida em que a
maternidade parecia ser o destino de qualquer mulher, com raras exceções.
59
Cf. LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 27.
60
Na Grécia o prazer feminino chegou a ser considerado fundamental para a reprodução, havendo
a crença de que sem orgasmo a mulher não poderia gerar filhos. Porém, Graciela Gomez observa
que Aristóteles foi um dos pensadores que mais fez esforço em tornar insignificante a participação
da mulher na reprodução humana, modificando essa relação entre prazer e reprodução. O prazer da
mulher perde importância no pensamento de Aristóteles, pois o responsável pela criação, quem
tem essa potência é o homem. Seu objetivo é demonstrar que a geração é obra puramente
masculina. O papel feminino passa a ser o de mero depósito do germe do homem, o corpo da
mulher é secundário, ela o oferece para alimentar o germe depositado pelo homem. Essa
concepção aristotélica de divisão hierárquica dos sexos a partir da biologia produz reflexo na
política, ou em uma impotência política natural da mulher. Tal estrutura de pensamento irá se
perpetuar no ocidente até os séculos XVIII e XIX, momento de origem da primeira onda do
feminismo. Cf. GOMEZ, G., Maternidade e Alteridade: Atenas, as Luzes e Freud, p. 32 et. seq.
61
LEGATES, M., op. cit., p. 28.
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58
Mulheres viúvas e solteiras começaram a se apropriar dessas condições do
início do Cristianismo e divulgar a castidade para se insurgirem contra o que, por
convenção, se esperava delas dentro da comunidade. Tal movimento chegou a
influenciar também teólogos cristãos para que essa possibilidade revolucionária
para a época fosse devidamente incorporada na doutrina. Um exemplo disso dado
por LeGates é a história de Thecla de Iconium, heroína cristã que não se sabe se
existiu realmente ou se é uma lenda. Apesar disso, ela foi adorada durante o
primeiro século do Cristianismo como santa e até mesmo chamada de apóstola.
Trata-se da história de uma jovem mulher em idade de casar que recusou o
casamento arranjado pelos pais por ter se encantado com a possibilidade de
castidade e, por isso, foge de casa cortando o cabelo e vestindo-se de homem. Ela
se batiza e em vez de se transformar em um mártir, ela ganha notoriedade,
conquista a independência e começa a pregar a palavra de Deus, ou seja, toma
partido na esfera pública. Independente de ser uma história real ou não, seu culto
era realizado por mulheres e seu exemplo fundamentava a capacidade da mulher
de aprender a doutrina de forma autodidata e se batizar.
Obviamente, dentro do próprio Cristianismo esse movimento das mulheres
começou a incomodar. A abertura inicial foi sendo tolhida e, já no quinto século, a
estrutura da igreja era basicamente patriarcal. Aquilo que inicialmente permitiu
que as mulheres deixassem de lado o caráter reprodutivo que as identificava em
um momento anterior, agora passava a ser controlado pelos homens da Igreja, que
exacerbavam a sexualidade delas, bem como a transformavam em símbolo
perigoso de sedução. Porém, esse esforço em sentido contrário às mulheres cristãs
não conseguiu encerrar seu movimento de forma definitiva e, ao longo da Idade
Média podem ser encontradas condições favoráveis a elas nos monastérios,
demonstrando a capacidade de apropriação do tempo, ainda que de forma precária
ou insuficiente para se consolidar e poder ser chamada de feminismo.
Na realidade, essa parte da trajetória histórica é mais identificada como um
momento de fundação de uma cultura feminina, como se fosse um refúgio para
aquelas mulheres cuja prioridade não era o casamento, mas que ao mesmo tempo
viviam em conflito com o chamado religioso dos quais elas tinham certeza receber
e os mecanismos e estratégias que a própria Igreja montava para impedi-las de
viver de forma plena a vocação que elas acreditavam possuir. Por outro lado, a
opção familiar não agradava. Muitas, portanto, se ressentiam da condição de
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59
mulher, como uma fatalidade, um exemplo é Christine de Pizan, que em sua obra
“Cidade das Mulheres” lamenta ter nascido em um corpo feminino, chegando a
demonstrar um profundo desprezo pelo que chama de imbecilidade feminina e
mostrando indignação com a facilidade com que geralmente as mulheres
ocupavam o espaço tradicionalmente atribuído a elas sem maiores problemas ou
questionamentos
62
.
A Idade Média foi um período sem dúvida em que os homens tiveram o
controle das escrituras e do saber e quanto maior sua instrução, mais influência
exerciam. Pensavam a sociedade e a Igreja e ainda eram encarregados de dizer às
mulheres quais eram seus papéis na distribuição divina de lugar na sociedade e na
economia
63
. Porém, o momento agora não é o de descrever as condições de
submissão da mulher ao longo da Idade Média, o controle ao qual seus corpos
foram sujeitados. O momento é de apresentar as formas pelas quais, apesar das
condições aparentemente completamente desfavoráveis, elas conseguiram
elaborar linhas de fuga, em um mundo ainda muito mergulhado na transcendência,
na arborescência.
A descentralização do poder era grande nesse período, o que implicava em
dificuldade da Igreja em deter um controle efetivo, bem como na ausência de uma
estrutura de Estado. Nessas circunstâncias, os mosteiros passaram a ser um espaço
interessante de autonomia para as mulheres que conseguissem percebê-lo e que se
interessassem em explorá-lo de forma plena. Por isso, é possível compreender o
espaço dos mosteiros como um local que poderia ser bastante benéfico para elas.
LeGates vê neles uma única opção de vida mais próxima, mais real para a época
além do tradicional casamento das mais novas e da possível miséria das mais
velhas, das viúvas, das violências instituídas na vida familiar
64
. A partir de uma
falta de opção, elas são levadas a desejar e a construir alternativas às suas
realidades.
Os mosteiros, além de representarem portas distintas das do casamento,
eram repletos de outras mulheres nas mesmas condições, que davam suporte umas
às outras. Além disso, era uma oportunidade que elas tinham de se dedicar não só
62
Cf. KLAPISCH-ZUBER, C., Introduction, In DUBY, G.; PERROT, M., Histoire des femmes en
Occident – Le Moyen Âge, p. 11.
63
Cf. DALARUN, J., Regards de Clercs, In DUBY, G.; PERROT, M., Histoire des femmes en
Occident – Le Moyen Âge, p. 33.
64
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 32.
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60
às questões religiosas como também às artes, às leituras e traduções, ao
conhecimento da época. Nesse momento as produções de livros ficavam sobre a
responsabilidade tanto de monges quanto de freiras, por exemplo, Hilda de
Whitby, do século VII, que tinha reconhecimento por sua cultura. Fora desse
ambiente, no seio de uma estrutura familiar, na condição de esposa e mãe a
margem de liberdade poderia ser bem inferior à da vida no monastério.
Essas mulheres que foram parar no mosteiro no princípio da Idade Média
foram fruto de um processo espontâneo no início do Cristianismo, lugar em que
encontraram a princípio as portas abertas para elas enquanto os demais espaços
estavam fechados. Assim se deu a invasão inicial desses espaços. É curioso
observar que no século VI as freiras tinham bastante mobilidade, pois LeGates
ressalta que as mulheres eram grandes seguidoras dos monges irlandeses que
costumavam viajar pela Europa pregando
65
. Não somente elas o acompanhavam,
como também podiam viajar de forma independente, pregar, ensinar, carregar
manuscritos importantes e fundar outros mosteiros.
Um problema que se vislumbra é o fato de se explorar na maioria dos casos
uma nobreza feminina, quase que um apelo à natureza, como fonte de estímulo
para que elas produzam casas com fundamentos na religião para elas e para suas
familiares, mas se por um lado isso é problemático do ponto de vista da
naturalização de uma superioridade moral feminina, que mais tarde fará recair
sobre elas o peso da guarda da moral e da honra de toda a família, o papel
importante desse chamado foi a fundação das primeiras sociedades
especificamente femininas e o princípio de uma cultura delas.
Outro atrativo surpreendente dos mosteiros é o poder político e econômico
que era viabilizado às mulheres a partir deles. Isso porque tradicionalmente os
monastérios possuíam importantes pedaços de terra, o que os faziam ser algumas
vezes grandes centros de economia, política e administração. LeGates identifica
nessa peculiaridade dos monastérios uma oportunidade de tomada de poder das
mulheres, pois muitas vezes elas o tinham em suas mãos na mesma medida que os
abades. Foi um momento na história em que elas tinham poder para administrar
cidades, recolher dinheiro, escutar confissões, indicar quem poderia suceder-lhes e
levantar exércitos. Em alguns casos, elas chegaram até a administrar comunidades
65
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 32.
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61
tanto de monges quanto de freiras ao mesmo tempo, o que foi chamado de
monastério duplo
66
.
Um dom que era geralmente atribuído à mulher era o da profecia. Muitas
mulheres se destacaram como místicas ou profetas nesse período, sendo
importante ressaltar que a linha limítrofe entre o misticismo e a heresia para a
igreja era bastante tênue. Hildegard de Bingen (1098-1179) foi um exemplo
disso
67
. Nascida em uma família grande, sendo a décima filha, foi enviada ainda
nova para o convívio de uma nobre chamada Jutta de Sponheim, que decidiu
abandonar sua vida para viver enclausurada em um mosteiro beneditino. A nobre
levou Hildegard com ela para a cela. Com a morte de Jutta, as freiras decidiram
transformá-la em abadessa, cargo máximo dentro do mosteiro.
Desde sua infância Hildegard tinha visões e aos quarenta e dois anos ela
recebeu a ordem para que escrevesse e pregasse tudo aquilo que ela via e
escutava. Finalmente, ela obteve autorização do Papa para poder revelar o que era
transmitido para ela. Quando, em uma de suas visões, ela recebeu a ordem de
fundar um convento, os monges beneditinos resistiram à idéia, pois não poderiam
administrá-lo, perdendo prestígio ao não estarem próximos de uma importante
profeta como ela. A princípio, seu pedido não foi atendido e eles a impediram de
fundar seu convento, fato que a fez cair doente e a impossibilitou de pregar.
Hildegard somente se recuperou quando conseguiu o que queria, ela foi
inteligente ao se resguardar com pessoas influentes.
Após a fundação de seu convento, Hildegard conseguiu produzir desde
poesia e música até trabalhos sobre medicina e teologia, que demonstram um
domínio do debate teológico da época. Muitas personalidades da época escreviam
cartas a ela para pedir conselhos dos mais variados assuntos, ela se correspondia
não só com poderosos políticos, como também com o Papa. Além disso, foi
considerada uma das maiores exorcistas ao libertar uma mulher de um suposto
espírito. Certamente, ela teve uma grande projeção para uma mulher de sua época,
por todos os feitos que conseguiu realizar e por entrar em campos
tradicionalmente masculinos. Tal fato se deu em razão dela não somente se
66
Cf. LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 33.
67
Ibid., p. 33.
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62
apresentar como alguém que diz a palavra de Deus, como conseguir convencer os
demais disso.
A história de Hildegard ocorreu ao longo do período da reforma Gregoriana,
iniciada no interior de alguns mosteiros e sofrida pela Igreja Católica ao longo dos
séculos X e XI. A reforma ganhou esse nome em razão da pressão decisiva de
Gregório VII. Seu objetivo era a exclusão de qualquer sombra secular da Igreja,
com uma visão do Evangelho mais pura e assumindo com maior fervor o exemplo
de vida dos apóstolos. A Igreja pretendia não somente retomar o poder das
potências seculares que conseguiram se instaurar nela, bem como influenciar com
seus exemplos do Evangelho as vidas tanto daqueles que faziam parte dela como
dos leigos
68
. Há nessa época um intenso medo da sexualidade da mulher, que
alimenta essa reforma religiosa.
Os monges começam a defender o enclausuramento das freiras nos
conventos devido à fraqueza e a raiva femininas, consideradas as mais graves do
mundo, evitando receber qualquer irmã para que não houvesse chance de se
perderem da religião por mulher. A convivência com elas passou a ser
considerada extremamente perigosa. A produção teológica para controlar o
comportamento da mulher nesse momento tem por base os modelos de Eva,
Virgem Maria e Madalena. Homens da religião se fecharam para o mundo e
reproduziram concepções de mulher do início do cristianismo sem muitas vezes
ter tido qualquer tipo de contato com alguma.
Eva havia condenado toda a humanidade a uma vida árdua na Terra. As
mulheres eram sua descendência direta, ou seja, carregavam consigo todo o peso
do pecado. Virgem Maria é aquela que abre as portas do paraíso novamente para a
humanidade, era grande a adoração à Virgem por parte dos religiosos. Porém,
apesar da esperança de reingresso no paraíso vir por uma mulher, Maria é um
modelo inatingível para as demais, em virtude da manutenção de sua virgindade
após a concepção e o nascimento de um filho. As mulheres que não eram mais
virgens tinham como proposta de vida o modelo da matrona, em oposição à
prostituta. A dedicação à maternidade era essencial, assim como o exemplo de
Maria, mãe de toda a humanidade. O resgate poderia ser feito ao optar-se
posteriormente por uma vida de reclusão. Um exemplo dessa redenção é a história
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63
de Ide, condessa de Boulogne. Dalarun analisa sua vida como a de uma mulher
considerada casta, apesar de ter sido casada duas vezes, mãe de filhos
considerados virtuosos e que quando ficou viúva se engajou na reforma
gregoriana
69
. Finalmente, Madalena, modelo de redenção feminina. Se pelas mãos
da mulher, Eva, a morte havia recaído na humanidade, pela mulher a ressurreição
foi anunciada. Além disso, é a representação de uma pecadora que serve de
exemplo para os pecadores arrependidos. A mulher é essencialmente o símbolo do
pecado da carne e a sua regeneração se dá pela penitência e pelo arrependimento
representados na figura de Madalena. Eva representa a mulher real, em que as
influências da Igreja deverão ser exercidas. Maria é a do plano ideal, a distante,
inatingível, projetada pelos homens para guiar as mulheres daqui, Madalena se
encontra entre essas duas figuras, significando a possibilidade de arrependimento
dos pecadores. Talvez aqui caiba refletir acerca da antecipação do conceito de
Outro, da imposição de identidade como modelo para o comportamento das
mulheres.
O princípio da primogenitura masculina, amplamente adotado pela nobreza
na Alta Idade Média, também contribuiu para o declínio dos mosteiros e
conventos para mulheres, especialmente no sentido financeiro, pois a partir de
agora elas não mais poderiam utilizar parte de sua fortuna para manter essas casas
ou fundar novos espaços. Entre os séculos VI e XI as condições eram muito
favoráveis para mulheres que tinham propriedade, por herança da própria família,
ou por uma viuvez precoce, em virtude da ausência dos Estados, pois o poder
político vinha da propriedade de terras. Sendo assim, esse foi um momento em
que mulheres souberam aproveitar as oportunidades que apareciam, como
Aethelflaed da Mércia, que após se tornar viúva, governou e defendeu Mércia,
liderando alianças entre reis do norte da Grã-Bretanha. O grande problema é que
elas aproveitavam, porém não tinham um controle efetivo dessas circunstâncias,
mesmo porque esses benefícios estavam relacionados à herança, ao poder
econômico e à propriedade, não tinham relação com a condição de mulher. Por
68
Cf. DALARUN, J., Regards de Clercs, In DUBY, G.; PERROT, M., Histoire des femmes en
Occident – Le Moien Âge, p. 36.
69
Cf. DALARUN, J., Regards de Clercs, In DUBY, G.; PERROT, M., Histoire des femmes en
Occident – Le Moien Âge, p. 49.
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64
esse motivo, a adoção da primogenitura masculina inviabilizou o poder efetivo
das rainhas, uma vez estabelecida uma sucessão fixa
70
.
A saída encontrada por aquelas que queriam seguir uma vida religiosa após
a instauração dessa estrutura foi o investimento em outras formas de expressões
religiosas diferentes das impostas formalmente, em o que seria talvez um resgate
do espírito do início do Cristianismo, na época dos mosteiros mistos e das
abadessas poderosas. As circunstâncias de repressão oficial iniciaram uma série de
processos de manifestações religiosas das mulheres, porém muitas vezes de forma
solitária, caso de Christina de Markyate (1097-1160), que pertencia a uma família
nobre da Inglaterra e se recusou a fazer um casamento arranjado por sua família
com o argumento de que pretendia manter sua virgindade, se apropriando do
modelo da Virgem Maria para atender a seu próprio desejo, em vez de cumprir o
que seus pais haviam planejado. Sua própria mãe chegou a sugerir que seu noivo a
estuprasse como uma forma de coagi-la ao casamento vantajoso e ela fugiu
vestida de homem para viver sozinha.
Algumas mulheres, apesar de fazerem parte de determinadas comunidades
religiosas, conseguiam se manter isoladas para se dedicar às suas atividades, como
foi o caso de Julian de Norwich, final do século XIV, que precisava de solidão
para conseguir escrever sobre suas visões. Ela teceu críticas em sua teologia à
concepção de Deus dominada por uma simbologia masculina, atrelada à figura do
Pai. Já nos séculos XIII e XIV as experiências místicas estavam muito
relacionadas às mulheres, elas não tinham acesso a uma educação teológica,
formal, por isso o contato delas com Deus tinha que ser direto, individual. Se por
um lado a Igreja tinha como objetivo enclausurar as mulheres religiosas, por outro
lado, essa foi uma época em que iniciava-se uma nova tradição de mulheres santas
que faziam suas revelações e pregações. Muitos, entre homens e mulheres,
assistiam as falas de viúvas que ficavam conhecidas como mulheres santas ou
outras mulheres que mudavam suas histórias, uma delas era Margaret de Cortona,
século XIII, antes prostituta, e depois dotada de grande respeito social em virtude
de suas pregações
71
.
70
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 43.
71
Ibid., p. 37.
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65
Catherine de Siena (1347-1380) e Birgitta da Suécia (estima-se que viveu
entre 1302-1373) foram outras místicas que tiveram grande importância na época.
A primeira fazia parte de uma família grande, que a prometeu em casamento com
o intuito de obter vantagens. Assim como outras, ela se via como escolhida por
Deus e enfrentou seus pais ao dizer que não poderia perder sua virgindade com
um casamento, motivo pelo qual ela foi obrigada a realizar atividades domésticas
pesadas para toda a sua família como forma de coação. Ela não cedeu em seus
planos e após sofrer com uma doença que a deixou com uma febre alta e com
marcas de bolhas pelo corpo, remetendo ao artifício de Hildegard ao explorar sua
doença, ela conseguiu convencer sua mãe a encaminhá-la a um comunidade
dominicana para mulheres.
O interessante é que, assim como o caso de outras místicas, o seu desafio e a
sua insubordinação social e à família eram fundamentados justamente em sua
capacidade de comunicação direta com Deus, sem qualquer necessidade de
intervenção. Com o tempo ela conseguiu notoriedade política, acesso ao Papa até
ser enviada especial tanto para ele quanto para a cidade de Florença. Existem
contradições nas vidas e nos comportamentos dessas mulheres e o caso de
Catherine também foi um exemplo de como a ideologia da época, de redenção
pelo sofrimento, fundada no exemplo de Madalena, incidia especialmente sobre as
mulheres. Junto com seu comportamento subversivo ela se flagelou, ficou sem
falar durante três anos, com a exceção para se confessar, e não comia, hábito
iniciado aos quinze anos, quando limitou sua alimentação a vegetais, água e pão
72
.
Esse comportamento era comum entre as místicas da época, especialmente o
jejum, para que a condição de santidade e purificação pudesse ser atingida.
A principal fonte de poder e de rebeldia de Thecla, Catherine de Siena e
Christina de Markyate era a defesa da virgindade, o modelo fornecido pela figura
de Maria. Porém, nos séculos XIII e XIV a mulher casada também tinha a
oportunidade de ser considerada santa. Esse é o exemplo de Birgitta e Margery
Kempe (1373-1440). Birgitta casou-se aos treze anos, mas conseguiu fazer com
que seu marido esperasse para consumar o casamento até que ela atingisse a idade
para ter filhos, oito filhos ao todo. As relações sexuais do casal sempre foram
estritamente reguladas e a morte do marido em 1343 foi também uma conquista de
72
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 47.
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66
sua liberdade, para que seguisse a carreira religiosa com a qual sempre sonhara.
Após a morte de seu marido ela conseguiu ser uma profeta e uma peregrina. Ela
ainda fundou na Inglaterra o monastério Syon, dedicado à Virgem Maria, cuja
abadessa teria as mesmas responsabilidades e autoridade daquelas que
administravam os antigos monastérios mistos. Obviamente esse monastério foi
alvo de críticas duras, mas ainda assim, era um forte exemplo de mulheres que
lideravam a si mesmas.
Margery Kempe teve algo peculiar em sua história. Ao contrário das demais
aqui tratadas, ela somente percebeu sua inclinação para a vida religiosa após o
casamento e o nascimento de treze filhos. Ela não era de família nobre nem
precisou ficar viúva para se dedicar ao que queria, simplesmente fez um acordo
com seu marido para que ele abrisse mão da vida sexual e em troca ela deveria
respeitar suas obrigações não só de ordem financeira com ele, como também
social, as demais obrigações decorrentes do casamento estavam superadas. Ela
conseguiu viajar, foi em suas peregrinações para Jerusalém, Roma, Espanha e
Alemanha, e além disso, discutia suas visões com padres. A sua religiosidade não
era exercida em mosteiros ou em conventos, que apesar das dificuldades ainda
eram locais escolhidos por muitas mulheres para uma vida religiosa em
coletividade, e sim em suas caminhadas, muitas delas solitárias ou em um meio
masculino. Marlene LeGates observa que tanto Margery quanto Birgitte foram
consideradas socialmente péssimos exemplos para as esposas, pois suas vidas
seriam estímulos para as demais mulheres abandonarem a casa, o marido e os
filhos
73
.
Elas não conseguiram evitar a dominação masculina sobre seus corpos e na
maioria das vezes a autoridade do clero era aceita, tanto que apesar da relação
entre essas visionárias e a Igreja ser na maior parte do tempo conflituosa, elas não
abriam mão de morrer abençoadas pelos padres, exceto as consideradas hereges.
Como dito anteriormente, a linha entre o misticismo e a heresia podia ser muito
tênue. As linhas que eram consideradas heréticas para a Igreja eram aquelas que
adotavam a igualdade entre homens e mulheres. Algumas delas chegavam a
possibilitar a existência de mulheres no cargo de padres, como foi o caso dos
Lollards e dos Cathars, no sul da França. Na Itália, ao longo do século XIII uma
73
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 40.
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seita chegou a acreditar que sua salvação somente seria possível através da mulher
e sua líder Guglielma de Milão pretendia que sua discípula chamada Maifreda se
tornasse Papisa e indicasse mulheres como cardeais. Nos Países Baixos, os
seguidores de Bloemardine pretendiam fundar um clero composto somente por
mulheres.
Essas linhas sem dúvida eram consideradas heréticas, mas algumas
mulheres visionárias tinham noção de que poderiam despertar a ira da Igreja sem
participar de nenhuma dessas seitas, por isso elas sempre tinham em mente que
deveriam ressaltar que era Deus quem falava através delas, aquilo que elas
produziam não era próprio, era uma ordem divina, essa era a estratégia para que
pudessem divulgar a produção. Assim, suas chances de defesa eram maiores.
Tanto que o exemplo dado por LeGates de uma visionária que falou em nome
próprio e não em nome de Deus foi Marguerite Porète, considerada herege,
morreu queimada na fogueira em 1310
74
apesar do conteúdo de sua produção não
ter nada de especial em relação às demais que sobreviviam e continuavam
pregando na medida em que as autoridades da Igreja estavam dispostas a tolerá-
las tanto no que diz respeito ao que falavam quanto às suas formas de vida e de
comportamento.
A camponesa Joana d’Arc (1412-1431) é um bom exemplo para retratar até
onde as autoridades estavam dispostas a tolerar comportamentos não
convencionais. Aos treze anos ela começou a ouvir vozes que diziam que sua
missão era guiar um exército e lutar pela França contra as invasões inglesas. Ao
contrário da maioria das mulheres que seguiam esse caminho, ela não tinha
origem nobre, e quando sua fase de vitórias sucessivas teve fim, certamente foi
muito mais fácil a camada nobre virar as costas para ela e a Igreja condená-la
como herege por negar a sua autoridade e reforçar que suas visões não decorriam
de forças consideradas malignas ou não eram ilusões e sim enviadas por Deus.
Joana d’Arc falava em nome de Deus, mas ela não tinha qualquer ligação com o
clero nem qualquer tipo de orientação, não tinha um responsável por suas
confissões, como muitas vezes as místicas tinham. Sem esse respaldo ela foi
acusada de insubordinação às autoridades religiosas, aos pais, às normas de
74
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 45.
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conduta do comportamento feminino, já que se vestia como homem e vivia entre
soldados.
Esses exemplos históricos aqui apresentados não podem ainda ser chamados
de feminismo, pelo menos não como os séculos XIX e XX, pois falta uma maior
organização e um reconhecimento da condição de opressão da mulher na época,
que surge de forma mais nítida posteriormente. É claro que algumas delas
apresentavam essa noção em seus discursos, porém, não era a regra. Certamente
um fator que também contribuiu para obscurecer tal condição foi sem dúvida o
controle exercido por muitos que faziam parte da Igreja. Se por um lado era uma
grande oportunidade de se levar uma vida diferente da que se tinha no casamento,
por outro lado, talvez as concessões fossem também grandes, não é por acaso que
a maioria delas se apóia na virgindade ou se impõem jejuns e castigos corporais.
Era uma estratégia para que conseguissem o que queriam, mas era também a
afirmação dos modelos de mulher estabelecidos ao longo da Idade Média.
O que não se pode deixar de lado é o fato de haver nesse meio confuso já o
que para Negri pode ser configurado como resistência a uma condição, no caso o
casamento, a qual elas tinham certeza não querer fazer parte. De certa forma, esse
tipo de percepção é bastante interessante, especialmente em uma época em que o
mundo como era conhecido era diretamente ordenado e desenhado por Deus.
Durante a Idade Média fazer oposição a algo tão arraigado socialmente quanto o
casamento, sem dúvida pode ser considerado um grande feito, principalmente
após observar que a brecha achada por essas mulheres foi na Igreja, com o suporte
teórico do Cristianismo. Por esse motivo, é compreensível que elas buscassem
apoio na pureza sexual para fugir do casamento, que Hildegard, por exemplo,
vislumbrasse uma relação de complemento necessária na natureza do homem e da
mulher, que se reflete na reprodução
75
. O importante é ressaltar que as ações
dessas mulheres não foram impossibilitadas, ao contrário, elas se apropriaram da
religião para ter alguma espécie de autonomia e por mais contraditório que possa
parecer, conseguiram se beneficiar dos modelos femininos instituídos na época.
Por mais adversas que fossem as condições, elas buscaram formas de
emancipação, de liberação.
75
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 42.
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69
3.2
Da Renascença às revoluções americana e francesa: os esforços da
modernidade para impedir os processos liberatórios das mulheres
A modernidade tem início com a descoberta do plano de imanência,
conforme exposto anteriormente, e a secularização do mundo decorre da
implementação dessa perspectiva. Se agora não há uma ordem divina previamente
estabelecida e fixa, se as leis não vêm mais do plano divino e sim de assembléias,
o momento é mais propício para a contestação, ao contrário das condições da
Idade Média, pois tudo passa a ser fundado nos conflitos políticos e tal fato
possibilita a propositura de outras formas de configuração do sensível, bem como
permite e absorve todo conflito existente para redesenhar o real, pois essa é a
atividade própria da política, essa é a esfera de ação das assembléias. Porém, já foi
verificado no capítulo anterior que a renascença foi um movimento cujo objetivo
era a retomada do projeto transcendental e a retirada da potência de criação da
multidão, em uma tentativa de inibir os processos liberatórios iniciados em tal
período. A transcendência instaurada pelo Renascimento exerceu pressão sobre
diversos processos constituintes, aqui será analisada a incidência desse esforço no
que diz respeito às mulheres.
As condições a princípio são favoráveis às transformações. Nesse período,
por exemplo, a educação que era valorizada se fundava não em um ensino formal
nas universidades e sim em uma educação humanista pela filosofia e pela
história
76
. Sendo assim, a forma mais apropriada de aprender era com tutores ou
em pequenos grupos de discussão, pequenas academias. Por isso, o acesso à
educação da mulher estava disponível, desde que a família tivesse condições de
promovê-lo. Quando as famílias tinham condições e desejavam, as mulheres de
classes sociais mais elevadas conseguiam vivenciar o valor dado pelos humanistas
à educação. Além disso, serviam como uma espécie de adorno em suas famílias,
mostrando que eles se preocupavam com educação, com cultura. Até esse ponto a
educação da mulher era muito bem vista e algumas chegaram a freqüentar
universidades e ter reconhecimento social pela cultura. As pioneiras nesse tipo de
educação e reconhecimento foram as aristocratas italianas dos séculos XV e XVI,
76
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 57.
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70
estimuladas a estudar junto com seus irmãos e tutores. É o caso de Cassandra
Fedele (1465-1558), nascida em Veneza, que aos doze anos era fluente em latim e
grego e foi mandada para a tutoria de Gasparino Borro, com quem aprendeu
filosofia, ciências e literatura. Ela trocava cartas com humanistas, foi convidada
por Isabella de Castela para fazer parte de sua corte, mas não foi em virtude da
guerra entre Itália e França. O auge do seu reconhecimento pela sua escrita e
oratória foi entre os vinte e dois anos e os trinta e três, já que casou aos trinta e
quatro e reduziu consideravelmente sua produção
77
.
Assim como ela, outras tiveram o privilégio de terem acesso a uma
educação e conseguiram não só notoriedade e respeito, como também admiração
por isso. Além de escreverem poesia, elas também patrocinavam escritores, como
as italianas marquesa Vittoria Colonna (1490-1547) e Veronica Gambara (1485-
1550). A escrita tinha uma vantagem prática para as mulheres, pois teoricamente
era compatível com as demais atividades delas, era uma atividade que poderia ser
realizada dentro de casa. É importante observar que a educação foi chamada aqui
de privilégio, isso porque para as nobres era mais defensável a educação até certo
ponto, elas precisariam disso caso tivessem que assumir algumas
responsabilidades decorrentes do cargo, mas para as demais mulheres não se
reconhecia uma necessidade. Aliás, a própria educação das nobres era vista como
perigosa, ora fantástica, ora como algo monstruoso. As nobres poderiam ter
acesso, pois precisavam muitas vezes se portar como homem em situações de
liderança, especialmente aquelas que assumiriam um governo, exemplo da Rainha
Elizabeth.
O período era de grande turbulência política em razão das disputas
religiosas e os Estados, as monarquias eram uma tentativa de se estabelecer uma
ordem. Junto com as monarquias vinham também autoridade, hierarquia e
patriarcado. Ao mesmo tempo, foi uma época que, por mais paradoxal que possa
parecer, surgiram rainhas com muito poder, como Maria I (1516-1558), conhecida
como sanguinária, Elizabeth I, Maria de Médici (1573-1642), Christina da Suécia
(1626-1689) e Catharina a Grande (1729-1796). Porém, as rainhas não indicavam
mulheres para cargos em seus governos e quase sempre associavam seu
comportamento ao de um homem, mantendo um desprezo em relação à condição
77
HARAGUCHI, J., Fedele, Cassandra (1465?-1558). Universidade de Chicago. Disponível em
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de mulher, como mostra a história. Elizabeth I (1533-1603) conseguiu utilizar um
artifício tradicional, a virgindade, para a diplomacia, pois estabelecia diversas
alianças com base em propostas de casamento. Elizabeth dizia ter um corpo fraco
de mulher, porém o estômago de um homem no que se referia ao governo, o que
contribuía para ressaltar uma suposta fragilidade natural da mulher, sendo o caso
dela uma axceção. Maria de Médici também era ambígua em relação ao
tratamento da mulher, ela estimulava modelos de mulheres retratadas como
heroínas, mas ao mesmo tempo se utilizava do modelo de Virgem Maria para ela
própria. Christina da Suécia foi criada pelo pai como um menino e, apesar de ter
se recusado ao casamento por achar que ficaria em uma posição de subordinação,
não escondia sua grande insatisfação com o fato de ser mulher.
Nesse sentido, já se percebe a necessária ligação entre o feminismo e as
questões também de classe, em alguns momentos pesando uma unificação dos
movimentos e em outros momentos a defesa de se pensar somente o problema do
sexo. A questão social também apareceu no tópico anterior, no exemplo de Joana
d’Arc, camponesa, muito mais facilmente perseguida por seu misticismo do que
outras vindas de famílas nobres. A educação para a nobreza tem um sentido de
coroação da aristocracia, mas para as mulheres em geral pode ser muito
subversiva. Apesar da modernidade, as normas para o comportamento da mulher
ainda eram aquelas da castidade e da manutenção do silêncio. Por isso, o discurso
em público da mulher era visto como uma forma de transgressão dos papéis, pois
a saída em público afastava as mulheres da casa, artistas eram confundidas com
prostitutas, já que a noção de mulher pública era completamente distinta da noção
de homem público, ou cidadão.
Cassandra Fidele chegou a ser considerada um ser exótico, pois havia
nascido com corpo de mulher e alma de homem. É claro que nas condições dela
isso pôde ser considerado uma excentricidade, um milagre por ser um homem em
um corpo de mulher. Há exemplos de mulheres populares que se dedicaram à
poesia e foram perseguidas. Veronica Franco (1546-1591) foi uma prostituta em
Veneza que freqüentava também os salões de leitura, espaços onde homens e
mulheres eram estimulados a debater. Por já ser considerada uma mulher pública,
ela também não tinha motivos para manter o silêncio que se esperava de uma
<http://www.lib.uchicago.edu/efts/IWW/BIOS/A0015.html. Acesso em 07 de feveireiro de 2007.
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mulher. Isso facilitava para perseguições sociais. Apesar de possuir importantes
protetores, ela chegou a ser interrogada pela Inquisição. Ela valorizava o prazer
sexual, porém também tinha a procupação de mostrar que prostitutas também
podiam ser inteligentes e possuir moral. Em alguns de seus escritos ela já
concebia as mulheres como um grupo e lutou para a construção de um lar para
mulheres pobres e mães solteiras, conquistado em 1570
78
.
Aphra Behn (1640-1689) foi outra escritora considerada como uma
aberração por seus contemporâneos. Assim como Veronica Franco, ela não vinha
de uma classe alta. Teve sucesso em suas peças de teatro e conseguiu viver bem
delas, mas tecia críticas árduas a pilares da sociedade, pois defendia que as
mulheres tinham o mesmo direito à liberdade sexual dos homens e ainda criticava
os estereótipos sociais, especialmente aqueles que diziam respeito ao sexo. Além
disso, os casamentos arranjados também faziam parte do grupo de alvos
preferidos da autora em suas obras.
Os salões, criados na França no século XVI para abarcar os intelectuais
isolados na época, foram os únicos lugares até o início do século XIX que se
mantiveram constantemente abertos para dar suporte às mulheres que
conseguiram ter acesso à educação, como espaços leigos, em que as críticas
sociais eram permitidas. Por esse motivo, uma cultura feminina conseguiu ser
criada nesses locais de escape das mulheres em que elas poderiam desrespeitar o
silêncio, falando e escrevendo. O estilo mais desenvolvido pelas mulheres ao
longo do século XVII, decorrente dos salões, foi o romance, com ênfase nas
relações humanas e nos diálogos, muitos dos temas eram associados às mulheres,
como o casamento, separação e relacionamentos com os filhos, mas sempre com
um olhar crítico em relação a eles. Uma peculiaridade decorrente desse formato de
trabalho é o fato delas terem conseguido questionar a própria concepção de
autoria desses romances, pois as produções aconteciam no interior dos salões em
meio aos debates, ou seja, eram conjuntas. Geralmente, quem assinava as obras ali
produzidas era aquela ou aquele que tinha mediado as reuniões.
Obviamente, o acesso à educação que algumas tiveram não criou
automaticamente um grupo de feministas e a tendência é imaginar que elas
poderiam ter feito mais do que fizeram, ter experimentado mais desafios e um
78
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 72.
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pensamento mais crítico. Muitas tinham um comportamento mais subversivo, mas
a produção nem sempre refletia isso. Porém, como bem observa LeGates, o
renascimento não foi um período próprio para o pensamento crítico
79
, como já
visto no capítulo anterior, a renascença é um esforço do projeto da transcendência
em sentido contrário aos processos de liberação. Por isso as dificuldades eram
inúmeras. Mesmo com essas dificuldades, algumas mulheres conseguiram viver
do que escreviam, como Christine de Pizan, Madeleine Neveu e Catherine des
Roches, mas a maioria não escrevia profissionalmente. De qualquer forma, as suas
ações merecem um olhar mais cuidadoso no intuito de respeitá-las devido às
circunstâncias de sua época, pois souberam enfrentar o monopólio masculino da
educação. Elas tinham que lutar por aceitação, portanto o estilo de vida, de estudo,
de produção poderia ser definido também como uma espécie de luta por
autonomia, mas era difícil haver também uma consciência formada para se
chamar feminismo. Sem dúvida questões apareciam sobre a condição da mulher.
Nesse período, mais precisamente, do final da Idade Média até o fim do
século XVII aconteceu a chamada Querelle des Femmes, que foi um intenso
debate na literatura sobre as condições das mulheres, suas virtudes e seus vícios, e
que permitiu a aparição de muitas contradições existentes sobre o tema. Cada
época também deixou a sua marca, pois na Idade Média os exemplos de vida eram
religiosos, com a Modernidade há uma ênfase em temas diferentes e a partir de
uma perspectiva que não era a cristã, como o casamento, e até mesmo discussões
sobre o Estado apareciam. A Querelle des Femmes atingiu diversos países, como
Inglaterra, França e Espanha. Pode-se dizer que este foi um ensaio para balizar o
início do feminismo, de suas correntes e de um esforço em sentido contrário à
possibilidade aberta para as lutas das mulheres.
Porém, um problema desse debate está relacionado à utilização de sua
estrutura para que os estudantes universitários exercitassem habilidades de
metodologia e retórica desde a Idade Média, mas especialmente no século XVIII.
Por esse motivo, muitas críticas às mulheres podem ter sido escritas pelos mesmos
autores que defenderam a igualdade entre os sexos, em textos com as mesmas
características e estilos de escrita, porém em sentidos contrários, podendo ser em
algumas circunstâncias mais um exercício do que efetivamente um debate entre
79
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 68.
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74
divergentes sobre o tema. O cuidado para analisar as discussões da Querelle deve
ser redobrado para diferenciar o que faz parte da Querelle e o que foi realizado
com o fim de praticar método e retórica.
Os historiadores atribuem à Christine de Pizan o início da Querelle, com sua
obra “A Cidade das Damas”, em 1404. No início de seu livro principal, ela declara
sua insatisfação por ter nascido mulher, por Deus ter dado esse castigo, de nascer
em um corpo feminino
80
. Logo depois ela cria três personagens, a Razão, a
Retidão e a Justiça. A Razão contribui para que Christine desconfie de tudo o que
os filósofos já sentenciaram até então sobre a inferioridade da mulher, e com a
contribuição cristã, ela conclui que se Deus é perfeito, ele não pode criar seres
imperfeitos, inferiores e assim ela atinge uma igualdade primeira entre homem e
mulher, a mulher não pode ser um homem imperfeito, incompleto, ela é igual,
caso contrário, Deus não seria perfeito.
A Virgem Maria para ela redimiu os pecados de Eva e é o ícone de sua
cidade, motivo pelo qual os homens deveriam venerar as mulheres, pois havia
uma ligação direta entre elas e o plano divino. Em sua obra a autora reconhecia a
violência física e moral sofrida pela maior parte das mulheres e o fato das
mulheres em sua maioria não terem acesso à educação da mesma forma que os
homens por serem obrigadas a ficar em casa. Incluía em sua cidade mulheres de
todas as camadas sociais. Apesar de todo esse reconhecimento de questões
relevantes para as mulheres, LeGates ressalta que as virtudes mais admiradas por
Christine de Pizan nas mulheres eram a humildade, passividade e capacidade de
obedecer, portanto, com maridos violentos, as mulheres deveriam ser pacientes e
submissas para que suas almas tenham mérito
81
.
Os argumentos de defesa das mulheres geralmente as colocavam em um
patamar superior em vez de se promover uma defesa da igualdade. Por mais que
no início da Modernidade a descoberta do plano de imanência tivesse alterado a
forma de justificação do poder, na medida em que as leis passavam a ser
produzidas nas assembléias, nota-se que o trabalho do poder constituído foi
intenso, pois a estrutura hierárquica conseguiu ser mantida nesses debates. Esse
tipo de defesa de uma superioridade feminina tem sentido em uma sociedade que
80
Cf. ZUBER-KLAPISCH, C., Introduction, In DUBY, G.; PERROT, M., Histoire des femmes en
occident – Le Moyen Age, p. 11.
81
Cf. LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 108.
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75
não se pensa em termos igualitários e sim em superior e inferior. A discussão é
para inverter a relação dentro dessas circunstâncias, portanto, é compreensível que
nesse momento a disputa seja para definir e comprovar quem é superior.
Na Querelle alguns autores reconhecem o peso da cultura para estabelecer a
inferioridade feminina. Nesse sentido, Henricus Cornelius Agrippa em sua
Declaração da Nobreza e da da Proeminência do Sexo Feminino, de 1529, apesar
de insistir na superioridade natural da mulher, identifica a subordinação feminina
como uma questão cultural
82
. Essa segunda parte de suas considerações irá
inspirar outras produções nesse mesmo sentido. Mais tarde, porém, Agrippa
renega sua obra dizendo que preferia se dedicar a coisas mais sérias e importantes
do que as discussões provocadas na Querelle.
Apesar das dificuldades no debate, da ambivalência das considerações
acerca das virtudes das mulheres em relação aos homens, pois sabe-se que esse
discurso justifica uma maior cobrança moral no comportamento da mulher do que
do comportamento do homem, foi um momento em que a maioria daqueles que
defendiam as mulheres tinham em mente que homens e mulheres eram diferentes
em virtude das convenções sociais. Quando alguém dizia que as mulheres
pretendiam virar na verdade homens em razão de serem imperfeitas, prontamente
já se respondia em sentido contrário que elas não queriam virar homens em busca
de uma perfeição, e sim o que elas desejavam a mesma liberdade da qual eles
dispunham, como foi a defesa de Baldesar Castiglione (1528). A educação
feminina acabou se transformando também em outro assunto constantemente
defendido nesses ciclos para que elas pudessem ser intelectualmente iguais.
Algumas autoras chegavam a entender que se submetidos aos mesmos processos
de educação as meninas se destacariam mais do que os meninos, como Lucrezia
Marinelli afirmava em 1601
83
. LeGates observa que François Poullain de la Barre
(1647-1723) vai ainda mais longe, dizendo que a inferioridade feminina nada
tinha de racional, decorrendo somente de um preconceito, pois a mente não
possuía um sexo e no império da razão em que viviam não havia mais espaço para
esse tipo de pensamento. O autor admitia, portanto, que as mulheres se
dedicassem a qualquer área do saber, como matemática, teologia, direito,
82
Cf. LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 111.
83
Ibid., p. 112 et. seq.
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76
medicina e política. Porém, a autora ressalta que o interesse de Poullain era mais
em exercitar o método cartesiano do que se envolver com a questão da mulher.
84
Havia também quem preferisse colocar mais força no argumento da
diferença entre homem e mulher, em vez de defender uma igualdade primária
entre os dois, se transformando em diferença no interior da sociedade. Esses
argumentos de certa forma já adiantam as correntes feministas do século XIX, que
trabalham com concepções como a do feminismo fundado na maternidade e do
feminismo cultural. Essas correntes se fundamentam em uma maior capacidade
inata da mulher para o pacifismo e para a solidariedade
85
. Por isso, elas se
mostram mais afinadas com a defesa de um modelo hierárquico e dualista, porém,
invertendo a ordem e colocando o feminino em um patamar especial em relação
ao masculino.
A Querelle des Femmes se tratava muitas vezes mais de um exercício de
retórica do que uma discussão sobre direitos. Muitos textos podem ter sido
produzidos pelas mesmas pessoas, mas em sentidos opostos com o fundamento de
treinar metologia e dialética. Porém, o esforço daqueles que participaram e
contribuíram para o debate com mais compromisso deve ser considerado, afinal
ali estavam presentes os temas que dariam origem a diversas correntes do
feminismo que se consolidaram no século XIX, quando o termo feminismo foi
cunhado e o movimento ganhou expressão e foi consolidado em suas diversas
vertentes. Por esse motivo, pode-se dizer que muito se deve aos debates da
Querelle des Femmes, que continuará até o fim do século XVII.
O contratualismo é comumente interpretado como um marco para que se
pudesse começar a pensar propriamente em feminismo, já que se atribui a esse
84
Cf. LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 122.
85
A influência dessa perspectiva no feminismo do século XX é duramente criticada por Elisabeth
Badinter. Primeiro por significar, em última instância que a mulher é de fato superior ao homem
moralmente, o que aumena as expectativas sociais em relação ao seu comportamento, fazendo com
que os erros das mulheres sejam mais graves do que o dos homens. Em segundo lugar, por que são
posições excludentes na medida em que aquelas que não querem passar pela experiência da
maternidade ou não podem por qualquer problema estarem fora do alvo do feminismo. Por último
a autora desmistifica esse pacifismo com exemplos não somente de mulheres que participaram de
processos revolucionários, como também, mulheres que colaboraram com regimes como o
nazismo, atuando fortemente em campos de concentração feminino e em perseguições como as de
Ruanda. Cf. BADINTER, E., Rumo Equivocado: o feminismo e alguns destinos, p. 76. Outros
exemplos bem claros de que a mulher não é naturalmente pacífica são os comportamentos das
rainhas aqui mencionadas, como Maria I da Inglaterra, responsável por grande perseguição aos
protestantes e Elisabeth I que sabia jogar politicamente com o fato de ser conhecida como a rainha
virgem.
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momento de produção política a noção de que a sociedade civil é construída
coletivamente, e para LeGates, Locke foi o autor que mais contribuiu para essa
visão
86
. Sendo assim, esse seria o período mais favorável às críticas sociais.
Porém, como já visto, a descoberta da potência criativa da humanidade ocorre no
início da Modernidade, que para Negri e Hardt ocorre entre os anos de 1200 a
1600, com o plano de imanência. Assim, o contratualismo seria na verdade um
mecanismo de controle social, já dentro da atuação do poder constituído.
As contradições dentro do contratualismo e os motivos pelos quais ele não
funcionou para o feminismo serão mostradas a partir das considerações de Carole
Pateman mais à frente. Porém, muitas feministas se animaram com as idéias
contratualistas e decidiram utilizá-las, especialmente inspiradas em Locke e, mais
tarde, traçando toda uma corrente a partir de Rousseau, tentando reverter uma
tradição que não lhes era favorável. Apesar das condições desfavoráveis, muito do
que foi pensado nessa época ajudou também a configurar o feminismo do século
XIX. O final do século XVII e início do século XVIII apresentam um outro rumo
para as mulheres, especialmente para as inglesas, que são diferenciadas como as
primeiras feministas por apresentarem uma noção de mulher como uma
coletividade, um grupo submetido a um aparato de dominação comum. Nesse
sentido, aparecem na Querelle mais conselhos nos romances escritos às mulheres
para evitar o casamento. Ao longo do século XVII, tanto na Inglaterra quanto na
França, com reflexos na Espanha
87
o casamento era muito criticado na poesia e no
romance produzidos por mulheres como um mecanismo de política sexual e
certeza de concentração econômica nas classes mais altas, ao mesmo tempo em
que a amizade entre as mulheres era fortemente celebrada. No campo da amizade
entre mulheres, é importante ressaltar que a princípio elas não tinham problemas
em exaltar toda a admiração e encanto que muitas diziam ter por outras mulheres,
86
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 121.
87
Maria de Zayas incorporou em sua produção as questões feministas suscitadas na Querelle e fez
do problema entre os sexos o seu grande tema, argumentando também em sentido contrário ao
casamento e estimulando as mulheres a assumir o controle de seus destinos., apesar de em sua obra
a visão ainda ser mais no sentido de tecer uma solução individual para o problema do que uma
solução para as mulheres enquanto grupo. Cf. LEGATES, M., In their time: a history of feminism
in western society, p. 128. Se ao longo da Idade Média a questão se dava mais pelo exemplo
individual de resistência a uma estrutura de poder e ao casamento que limitavam as perspectivas
das mulheres e os modelos serviam de inspiração para outras, agora há nitidamente um
posicionamento contrário a essas estruturas e um reconhecimento de determinadas condições
comuns às mulheres da época, ainda que as soluções sejam restritas principalmente à esfera
individual.
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como fizeram Katherine Philips (1631-1664) e Sarah Robinson Scott em 1762,
que propôs uma comunidade de mulheres em seu romance, também aberta aos
pobres. Geralmente o problema aparecia quando elas desafiavam os limites
estabelecidos entre os sexos, reproduzindo o comportamento masculino, como
coloca LeGates
88
. Bathsua Makin (1600-1675) foi uma das que se destacou
escrevendo para as mulheres especialmente e defendendo o acesso delas à
educação.
O século XVIII foi especialmente interessante para a produção francesa
sobre o tema. As desigualdades entre os sexos eram facilmente apontadas por
escritoras como Marie Jeanne Riccoboni (1713-1792). A princípio, a proposta
pode parecer com a da Idade Média, pois a tendência era sempre o apelo ao
celibato, porém a escolha por uma vida sem casamento tinha um fundamento mais
claro para essas mulheres, pois o abuso do poder que os homens tendiam a
apresentar na família era amplamente noticiado por elas. Os romances têm um
papel fundamental nessa estrutura, pois são uma espécie de termômetro do
crescimento de uma consciência feminista; em outras palavras, da percepção de
uma estrutura de poder que incidia nessas mulheres pelo fato de serem mulheres,
estipulando regras e padrões para seus corpos, comportamentos e vidas que as
colocavam em grau de inferioridade em relação aos homens. Ao mesmo tempo,
surgia também a idéia de que o casamento deveria ser realizado para a satisfação
do casal e não como um compromisso com os interesses estipulados pelas
famílias. Todo esse movimento chamado de tomada de consciência que ganhou
muita força no século XVIII foi fundamental para a estruturação dos diversos
processos constituintes que compõem a primeira e segunda ondas do feminismo.
É nesse momento que o Journal des Dames, criado em 1759 para ser uma
fonte de entretenimeto para as mulheres, já que elas eram consideradas ociosas e
sem inteligência, passa para as mãos de Madame de Beaumer em 1761 e vira um
instrumento e um ícone para o feminismo, apesar de sua curta duração, pois foi
censurado em 1762. Além da peculiar relação com o feminismo, o jornal se
posicionava pela tolerância religiosa e pela justiça social. Durante esse curto
espaço de tempo, o jornal estimulou o exercício da crítica pelas mulheres, bem
como o estudo e a discussão pública. Ele também apresentava constantemente
88
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 130.
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exemplos de histórias de vida, como a da rainha Christina da Suécia e as
experiências de mulheres vindas de classes de trabalhadores e que conseguiam se
destacar em profissões que não eram convencionais nem ao seu sexo nem à sua
posição social. Porém, em 1763, quando o jornal é retomado por outras mulheres,
elas percebem que o feminismo ainda não tinha nem um suporte teórico bem
fudado e que o alcance dele não era grande. Nesse momento, os salões, fundados
geralmente por mulheres, começavam a ter sua importância questionada e suas
mazelas eram comumente atribuídas à presença de mulheres, consideradas
levianas, fúteis e grandes responsáveis pela corrupção na sociedade pelos próprios
intelectuais aos quais elas abriam espaço e davam apoio financeiro. A última
diretora do jornal foi Madame de Montanclos, em 1774, muito favorável ao
pensamento de Rousseau.
Esse argumento inicia um processo em que alguns pensadores irão trabalhar
com a educação não no sentido que determinadas feministas já haviam defendido,
mas precisamente na reforma da mulher. O que ganhou maior notoriedade foi sem
dúvida Rousseau, com os modelos de Emílio e Sofia, de 1762. Sofia é um modelo
para a educação da mulher, criada para ser esposa, enquanto Emílio cresce para se
tornar o paradigma de cidadão. Apesar dessa disparidade na educação dos dois, é
surpreendente o fato de uma boa parte do feminismo, em especial no século XIX,
se fundar no pensamento de Rousseau. Obviamente tal fato ocorreu porque muitas
se apropriaram da mulher no papel natural de mãe e de esposa e da nobreza da
mulher enaltecidos por ele, especialmente as que deram origem no século XIX ao
chamado feminismo maternal, cujos problemas serão examinados adiante,
atribuindo às mulheres uma suposta função de polícia, pois elas deveriam ser
responsáveis pela observância da moral na sociedade, criando seus filhos de forma
virtuosa, para que fossem bons cidadãos. O principal problema é a defesa e a
valorização do papel mais doméstico da mulher, estando mais de acordo com a
tradição e com o poder constituído do que propriamente com o reconhecimento de
uma condição de subordinação da mulher e de uma luta por liberação.
Porém, na época Mary Wollstonecraft foi uma das poucas a se opor ao
pensamento de Rousseau, considerando-o um inimigo. Ela partia de um ponto
comum a ele: a superficialidade das mulheres das mais altas camadas da
sociedade. Apesar dessa concordância inicial, os rumos eram completamente
distintos, pois se as mulheres eram superficiais, isso se devia à criação delas. Por
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uma questão de manutenção do poder, os homens as estimulavam a cultivar
hábitos superficiais. Assim, as mulheres não poderiam ser responsabilizadas pelo
quadro degradante da sociedade. Na verdade, para Wollstonecraft o problema era
justamente a concentração de poder nas mãos dos homens. É importante ressaltar
que, apesar das dificuldades teóricas e do grande esforço no sentido de trazer a
mulher para o espaço interno, ao longo das revoluções americana e francesa, havia
mulheres que não só participaram e apoiaram os processos revolucionários como
também souberam se apropriar do tempo para apontar as peculiaridades dos
mecanismos de poder aos quais estavam submetidas, como uma forma de poder
constituinte.
A revolução americana não será profundamente analisada aqui, sendo
somente alvo da investigação as especificidades em relação à atuação das
mulheres ao longo do processo revolucionário. Tal atuação tem início em 1774
com a intensificação das condições que precederam a guerra. Nesse ano, uma
grupo de cinqüenta e uma mulheres assinaram uma petição na Carolina do Norte
em um ato pela responsabilidade pública. O ato em si foi de pequeno porte, mas
essa foi uma primeira manifestação das mulheres americanas, que até então nem
as das camadas mais elevadas tinham a tradição das francesas de opinar e se
envolver com política. Nessa época há uma transformação significativa, pois se
antes elas entendiam que esses assuntos deveriam ficar a cargo dos homens, agora
elas acompanhavam os jornais, boicotavam produtos importados, assediavam
vizinhos com ligações políticas com a Inglaterra e que detinham o monopólio de
alguns produtos. Iniciada a guerra, algumas atuaram como espiãs, mensageiras e
até mesmo como soldados, outras se organizavam e iam de porta em porta
arrecadando dinheiro e mantimentos para as tropas, como foi o caso do
movimento realizado pelas mulheres na Filadélfia, em 1780, que inspirou
mulheres em outros estados. As mulheres negras também se apropriaram desse
momento de tensão e muitas fugiram das fazendas nas quais eram mantidas como
escravas.
A participação das mulheres na revolução americana foi considerável,
porém os homens geralmente ridicularizavam as atividades as quais elas se
dedicavam. Um exemplo de personagens bastante conhecidos na história é dado
por LeGates, ao examinar a relação de John Adams e sua mulher Abigail Adams.
As manifestações que demonstravam o interesse que Abigail tinha por política
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ficaram restritas à esfera privada, na troca de cartas do casal. Em 1776 ela pede
em uma das cartas que seu marido não esqueça das mulheres no ordenamento
jurídico da nova República, afirmando que todos os homens seriam tiranos se
pudessem e que portanto os maridos não deveriam ter todo o poder em suas mãos,
caso contrário, as mulheres poderiam iniciar rebeliões, uma vez que elas não se
submeteriam a nenhuma lei que não as representasse. A resposta de John Adams a
essas reivindicações foi que diante delas ele nada poderia fazer, a não ser rir
89
.
O estado de Nova Jersey chegou a reconhecer o direito de voto às mulheres
e aos negros durante um tempo, já que a constituição do estado falava em todos os
habitantes livres. Em 1790 ainda houve uma inclusão do termo “ele ou ela” por
uma lei eleitoral. Porém, houve um retrocesso em 1807, que restringiu o voto aos
homens brancos. As mulheres chegaram a votar em outros lugares em função das
suas posses, propriedades, como na França, na Inglaterra e em Quebec, por
exemplo. No século XIX, porém, as legislações adotaram um outro vocabulário e
se antes havia uma indiferença em relação à questão sexual, pesando mais a
propriedade, nesse momento as leis explicitam a discriminação a partir do sexo.
Em relação ao problema da escravidão, a revolução americana não foi suficiente
para por fim, ou melhor, na concepção negriana, uma das conseqüências da
retomada do poder constituído e interrupção do poder constituinte foi a
manutenção da escravidão. Apesar das dificuldades, Elizabeth Freeman ficou
conhecida por ter lido a Declaração de Independência na casa de seu senhor e a
partir desse episódio decidiu pleitear sua liberdade no judiciário, em
Massachusetts, o que resultou no fim da escravidão no estado em 1781.
O processo revolucionário americano ainda trouxe esperança às mulheres no
que se refere à possibilidade de modificação das condições da vida privada. A
guerra fez com que os homens se afastassem de casa e de suas atividades
rotineiras, deixando todas essas responsabilidades nas mãos das esposas. Muitas
pretendiam que o retorno de seus maridos não implicasse na perda dessas
conquistas, o que as levaram a defender uma divisão igual do comando dessas
responsabilidades, já que elas tinham um grande receio que a volta dos maridos
após um período de guerra os levassem a agir na família como verdadeiros
comandantes. A revolução americana conseguiu ser uma grande oportunidade
89
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 137 et. seq.
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para as mulheres na medida em que elas começaram a se politizar. Porém, o
momento posterior ao processo revolucionário implicou em grande queda
econômica, já que uma nova estrutura, a partir da industrialização, começou a se
formar. Por trás disso, estava também uma retomada de legislações mais
conservadoras, que retiravam das mulheres a possibilidade de exercer algumas
atividades que anteriormente eram realizadas por elas. Em alguns lugares as
viúvas perderem o direito até mesmo à parte da herança de seus maridos que lhes
cabiam.
A estratégia no momento posterior à revolução americana era apelar ao
argumento de Rousseau acerca da valorização do papel da mulher dentro de casa.
Para isso, foi necessário apresentar às mulheres uma importância política na
dedicação exclusiva à vida privada e à maternidade, qual seja, a de criar os
cidadãos exemplares. Certamente esse discurso atendia aos interesses masculinos,
pois com o retorno aos seus lares, os homens se preocuparam em ter seus antigos
papéis de volta e não compartilhá-los com as mulheres. Ao mesmo tempo, era
necessário reeducá-las para esse papel doméstico. A América Republicana ainda
discutiu sobre que tipo de educação as mulheres deveriam ter, se seria
simplesmente uma educação para a vida privada ou se elas deveriam ser educadas
para a vida pública, sem confinamento, com o objetivo de estimular o lado
racional delas
90
. A discussão foi sobre a educação das mulheres, porém, restrita às
brancas. As mulheres negras do sul não teriam essa possibilidade de expandir sua
educação, especialmente por ser do interesse de seus donos a manutenção de sua
ignorância. A questão das mulheres ficou pendente na revolução americana, bem
como a racial. Nas palavras de Antonio Negri:
A fronteira da liberdade, a possibilidade coletiva da potência, o senso de
apropriação como expressão da singularidade e forma do trabalho vivo – estes são
os conteúdos irresistíveis do poder constituinte americano. As perversões, as
traições sofridas, o bloqueio constitucional, as interpretações desviantes não o
suprimem, só o renovam. Nos Estados Unidos, a ruptura radical – que depois se
torna inercial – entre o espírito constituinte e a constituição é assinalada por um fato
originário: a manutenção da escravidão e, de modo mais geral, a questão dos “afro-
americanos”. Esta ruptura cromática é também uma ruptura conceitual: ruptura da
universalidade do conceito de liberdade e de igualdade. Não por acaso, toda grande
crise constitucional americana é marcada pela retomada do espírito constituinte por
90
Essa defesa de uma educação para as mulheres que as preparasse para a vida pública foi fundado
em Judith Sargent Murray, que escreveu um artigo cujo título era “Sobre a igualdade dos sexos”,
em 1779. Cf. LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 139.
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parte do povo afro-americano – da Guerra de Secessão até os anos sessenta do
século XX. Atravessando e desafiando a Constituição e as máquinas políticas, o
princípio constituinte revive sempre, manifesta-se como escândalo da liberdade e,
ao mesmo tempo, como única solução para sua crise
91
.
Sem dúvida, o princípio constituinte da revolução americana foi retomado
pelo movimento negro. Porém, é necessário reconhecer a luta das mulheres nesse
processo, uma vez que assim como a condição dos afro-americanos, a condição
das mulheres também ficou comprometida após a revolução americana, apesar dos
ideais que serviram de fundamento para ela, escancarando a incoerência do final
do processo revolucionário. Por esse motivo, a segunda onda do feminismo, que
também tem como um dos principais marcos os Estados Unidos na década de
sessenta do século XX, é um resgate de um dos problemas adiados no final da
revolução americana, quando o poder constituinte foi aprisionado pelo poder
constituído, momento que teve como ápice a elaboração da Constituição
americana.
A revolução francesa também contou com a atuação das mulheres para seu
desenvolvimento, não só no que diz respeito à relação delas com os demais gupos
que atuaram nesse processo constituinte, como também em sua articulação como
propriamente um grupo de mulheres, que se apropriaram daquele momento
histórico e dos ideais de liberdade e igualdade que nortearam a revolução para
reivindicar os mesmos direitos pelos quais seus companheiros homens
revolucionários estavam lutando. Elas de fato perceberam que poderiam utilizar os
fundamentos revolucionários a seu favor.
A revolução francesa teve como objetivo colocar um ponto final no antigo
regime, cuja estrutura era fundada na monarquia absoluta, em uma Igreja oficial e
e na categoria da aristocracia com determinados privilégios. A Declaração de
Independência norte-americana de 1776 ressaltando a igualdade estabelecida entre
todos os homens serviu como inspiração para esse feito, refletindo-se
especialmente na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. No
primeiro momento, a convocação dos Estados-Gerais estimulou uma série de
petições tanto de homens quanto de mulheres para que seus interesses fossem
observados. Havia ainda alguma esperança de que os direitos considerados
naturais dos homens passassem também a incidir sobre as mulheres. Essa foi a
91 NEGRI, A., O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade, p. 276.
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proposta de Etta Palm d’Aelders, que afirmou ser o homem sempre dotado de
determinados privilégios, enquanto que praticamente metade da humanidade tinha
sido esquecida.
A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão deixou desamparadas ou
sem representatividade no chamado povo francês algumas categorias, sendo elas:
a classe trabalhadora de homens, os negros e as mulheres. As duas primeiras
categorias chegaram a ser debatidas, mas as mulheres foram desconsideradas
pelos delegados. A escravidão chegou a ser abolida em 1794, assim como foi
estabelecido o voto masculino universal, sendo ambas as conquistas cassadas por
Napoleão. Porém, a própria revolução reiterou a inferioridade das mulheres nos
campos jurídico e político, já que aquelas que falavam em nome da igualdade de
sexo geralmente eram ridicularizadas. Para Carole Pateman, cuja teoria será
examinada mais adiante, o patriarcado estava muito enraizado na sociedade, pois
apesar do grande potencial da revolução francesa, decorrente sem dúvida de seus
ideais, não houve de fato uma transformação na condição das mulheres.
Apesar das limitações sofridas pelo poder constituinte na revolução
francesa, alguns feministas conseguiram ter destaque e expor as suas
reivindicações. Foi o caso do marquês de Condorcet (1743-1794), aristocrata e
matemático, que havia freqüentado os salões e por isso tinha contato com
mulheres intelectuais. Ele e sua mulher chegaram a fundar um salão. Condorcet
não apreciava as idéias de Rousseau e entendia que as mulheres deveriam ter os
mesmos direitos dos homens, pois possuíam as mesmas capacidades. Ele foi quem
sugeriu durante a reunião dos Estados-Gerais que o direito ao voto fosse ampliado
às mulheres no mesmo molde dos homens, ou seja, levando em consideração a
propriedade. Posteriormente chegou a pedir pelo sufrágio universal, ressaltando a
tirania do ato de negar às mulheres o direito ao voto. Defendeu a igualdade à
educação em 1791, na Assembléia, e além de ser contrário à escravidão e prever a
possibilidade de divórcio, ele ainda lutou pela legalização da condição dos
homossexuais e pelo controle de natalidade. Por esses motivos, ele foi condenado,
mas conseguiu viver escondido durante um tempo vestido de mulher, até ser preso
e morrer em 1794.
As idéias de Condorcet chegaram a tomar uma dimensão relevante em
panfletos na época, tanto em relação aos homens quanto às mulheres, porém, as
feministas que conseguiram maior destaque foram as mulheres. Uma delas foi
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Marie Gouzes, conhecida como Olympe de Gouges (1748-1793), autora da
Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), em resposta à Declaração
de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que desconsiderava por completo a
questão da mulher. A Declaração da autora tinha por base um modelo de contrato
que deveria substituir o contrato de casamento. Obviamente, a Declaração tinha
problemas e um deles dizia respeito justamente à adoção da forma do contrato,
cujas principais questões serão colocadas adiante. Porém, já se pode observar que
o apelo à natureza é ambíguo, na medida em que ele serve aparentemente para
defender a igualdade, na verdade se presta à manutenção da estrutura do poder
constituído. A Declaração de Olympe de Gouges em seu primeiro artigo diz que
homens e mulheres nascem livres e iguais, sendo a possibilidade de diferença na
sociedade somente justificada a partir da utilidade geral. Apesar do esforço feito
pela autora, percebe-se que a redação gera possibilidade de interpretação contrária
aos avanços em relação aos direitos das mulheres
92
.
Outros grandes nomes do feminismo que começava a surgir na época eram
Etta Palm d’Aelders e Théroigne de Méricourt. A primeira fez um dicurso na
Assembléia em prol do fim da discriminação com base no sexo, tendo como alvo
uma lei sobre adultério que trazia tratamento desigual em relação aos sexos. Além
disso, foi a fundadora de um clube de mulheres em Paris que apoiava a revolução
e tinha como principal meta uma legislação sobre o divórcio que tratasse da
mesma forma mulheres e homens. A segunda defendeu a criação de um exército
armado de mulheres para dar suporte à República fundada em 1792, solicitando a
todas as mulheres que refletissem sobre seus papéis naquela sociedade e sobre
quais seriam seus papéis a partir daí. Essas mulheres citadas como exemplo de
atuação durante a revolução francesa possuem em comum histórias de vida nada
convencionais para a época.
Marie Gouzes era filha bastarda de um aristocrata. Foi obrigada a se casar
por uma mera conveniência durante pouco tempo. Logo depois, jurou não se casar
mais, se transformou em atriz e escreveu peças. Palm d’Aelders foi baronesa nos
Países Baixos e por um tempo espiã. Théroigne de Méricourt foi amante de um
92
Os demais artigos da Declaração consagram a igualdade de direitos no que diz respeito à
liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão (art. 2º), atrela a soberania à
representação de homens e mulheres (art. 3°) e prevê que as leis devem ser geradas a partir da
vontade tanto de homens quanto de mulheres, diretamente ou através de seus representantes (art.
4°).
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militar e fez carreira como cantora. Porém, ela se sentiu traída pelos homens que
fizeram parte de sua vida, considerando tal fato fruto da tirania que os homens
exerciam sobre as mulheres. Neste momento já havia um reconhecimento de
opressão às mulheres como grupo. O amor à revolução era grande em todas elas,
antes mesmo do feminismo. Porém, sofreram por serem mulheres o que
demonstrava a incompatibilidade dos ideais da revolução com as condições reais
das mulheres. Havia muitas dificuldades de romper com a segregação mesmo no
interior do processo revolucionário e entre os homens revolucionários. Se suas
vidas tiveram em comum o não convencional, o destino delas também foi
igualmente trágico. Olympe de Gouges foi para a guilhotina por ter simpatia com
a realeza, Palm d’Aelders foi mandada para a Holanda e Théroigne foi parar em
um asilo para loucos.
É necessário também dar uma maior ênfase à já mencionada Mary
Wollstonecraft, inglesa que foi para a França acompanhar de perto a revolução.
Sua principal obra, Em Defesa dos Direitos da Mulher, de 1792, foi considerado
um marco no feminismo no que diz respeito ao avanço das reivindicações desde
Christine de Pizan. Wollstonecraft desejava que as mulheres fossem vistas não
como heroínas capazes de grandes feitos morais ou como incapazes, mas
simplesmente como igualmente dotadas de razão, se afastando claramente das
idéias de Rousseau. Nesse sentido, as idéias defendidas em sua obra diziam
respeito à igualdade civil entre homens e mulheres, à educação igualitária, à
independência financeira e à representação política. Porém, mesmo ela fazia a
ressalva de que não pretendia estimulá-las a deixar suas famílias, afirmando que a
independência feminina faria com que as mulheres se tornassem melhores mães e
esposas. Talvez isso fosse uma estratégia de aceitação, talvez fosse um simples
recuo em sua teoria.
O feminismo da época não foi composto somente por esses grandes nomes
que conseguiram vencer as dificuldades e se perpetuar na história. A radicalização
do processo revolucionário francês permitiu que a classe de trabalhadoras se
envolvesse, lutando também por avanços no direito e na participação das
mulheres, reivindicando para elas as conquistas dos homens. A radicalização da
revolução para as mulheres significou uma radicalização na igualdade. Elas
começaram a participar de comícios políticos nos poucos lugares e clubes que
viabilizavam encontros mistos. Fundaram grupos separatistas como a Sociedade
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Parisiense de Mulheres Republicanas, que mais tarde ficou conhecido como o
primeiro grande grupo de mulheres com interesses políticos comuns no ocidente.
O principal objetivo dizia respeito à conquista da participação feminina na esfera
pública, desconsiderando as obrigações tão enraizadas na sociedade da esfera
privada. Para conseguir tais conquistas, elas consideravam essencial a presença
das mulheres em atividades militares. Por esse motivo, trezentas mulheres
assinaram uma petição para a Assembléia para fundar uma guarda nacional,
incluindo também o direito ao voto feminino como uma reivindicação. Essas
demandas desconstituíam completamente a teoria republicana de Rousseau,
importante fonte inspiradora da revolução, que pretendia moralizar a sociedade e
tinha como um dos pilares a diferença entre os sexos.
As mulheres que se dedicavam à revolução somente eram aceitas se
mantivessem um certo discurso, se elas afirmassem que sua participação tinha
como objetivo o bem-estar da família. A marcha das mulheres trabalhadoras até
Versailles foi em certa medida celebrada pelos homens. Porém, as armas que
carregavam com elas, como pistolas, espadas e lanças, causaram desconforto nos
homens da época, que passaram a acreditar que as mulheres se transformavam em
homens para a luta pela revolução. É interessante ressaltar que a própria Olympe
de Gouges criticava o comportamento dessas mulheres e as acusava de neglienciar
a própria casa e seus afazeres domésticos. Certamente, sua Declaração estava
contaminada por esse tipo de pensamento, não sendo fruto do acaso o sentido
ambíguo do primeiro artigo. Se o seu nome entrou para a história do feminismo,
sem dúvida as ações dessas mulheres das camadas populares produziram um
grande impacto social, uma vez que desconsiderava o papel tradicional da mulher.
Algumas ainda tentavam se justificar, como Pauline Léon, que encaminhou uma
petição à Assembléia requerendo o direito ao armamento das mulheres,
ressaltando sua devoção à casa, mas ainda assim, a Convenção Nacional não
aceitava com tranqüilidade tal pleito.
A partir desse momento, tem início um intenso esforço em sentido contrário
à luta dessas mulheres. O poder constituído começa a tentar controlar de todas as
formas os esboços de avanço do poder constituinte, causando reflexo no
feminismo que surgia. O ano de 1793 foi significativo, pois em abril foi decidido
que elas não poderiam mais fazer parte do exército. Em outubro do mesmo ano foi
retirado delas o direito à petição e à assembléia. A Convenção Nacional apelou
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para a concepção de natureza, entendendo que a natureza da mulher não tinha
compatibilidade com qualquer tipo de ativismo político. O argumento da natureza
mais uma vez ganhou força para justificar uma imposição social e política. Resta
saber como o poder constituído poderia explicar o avanço dessas mulheres até
esse momento, já que elas eram tão incompatíveis naturalmente à revolução. As
proibições ficaram cada vez mais intensas, até o momento em que elas não mais
podiam se reunir em público em um número maior do que cinco.
Os últimos golpes que fizeram com que a condição da mulher fosse pior
nesse momento do que no início da revolução se sustentaram com base no código
civil de Napoleão, de 1804. O divórcio foi excluído do ordenamento, assim como
as alterações na lei sobre adultério. As penas previstas para o adultério da mulher
iam da prisão até mesmo à pena de morte aplicada por seu marido. O homem era
punido de forma mais branda, como trazer a amante para a casa da família. A
parte do código que dizia respeito ao casamento somente foi alterada de forma
substancial em 1939 e as sombras da desigualdade ainda estiveram presentes até
1975. Além disso, se pelo menos antes as mulheres na França podiam votar, ainda
que esse direito político fosse restrito à propriedade e à classe social, agora todas
se encontravam em um patamar inferior ao dos homens, sendo diferenciadas a
partir do sexo. Essa foi a identidade utilizada pelo poder constituído para afastar
os direitos delas. LeGates afirma que elas tiveram que esperar cerca de cento e
cinqüenta anos para conseguir reconquistar o direito ao voto
93
. O importante é que
esse momento histórico contribuiu para que outras lutas feministas se
estruturassem ao longo do século XIX.
3.3
As incoerências do contratualismo como suporte para a teoria
feminista
Assim como Antonio Negri e Michael Hardt, Carole Pateman vê diversos
problemas nas teorias contratualistas, indicando que elas são mais preocupadas
com a manutenção do poder constituído do que com a ruptura. Por esse motivo,
muito do feminismo que se apoiou no contrato social não conseguiu efetivamente
93
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 145.
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89
transformar a condição da mulher. Nesse sentido, a principal preocupação da
autora é fazer um exame da adoção dos argumentos do contratualismo para as
lutas feministas e das incoerências que isso pode gerar, partindo do fato de que as
teorias contratualistas tornaram a despertar um grande interesse na década de 70
do século XX na política. O contratualismo é uma teoria política que pretende
demonstrar como as instituições devem ser compreendidas, além da preocupação
com o acordo original no surgimento do Estado. Porém, de acordo com Pateman,
uma outra perspectiva do contrato social é sempre mitigada nas análises, a do
contrato sexual. Assim surge o contrato sexual, como uma dimensão da teoria
contratualista que ficou mitigada
94
. O que se entende ser o contrato social é uma
mera parte do ato de criação da política na modernidade pelos contratualistas dos
séculos XVII e XVIII.
A tese da autora é que o contrato social pressupõe o contrato sexual, bem
como as liberdades civis pressupõem o direito patriarcal. Isso porque os teóricos
clássicos deixaram diversos problemas sobre a incorporação das mulheres no
contrato social e suas obrigações e além disso apesar de terem colocado um fim
no direito paterno, reforçaram um outro lado do patriarcado. Considerando que o
contratualismo é uma das teorias políticas que exerceu maior influência na
modernidade, na pretensão de enfrentar o poder constituinte, esse fato toma
grandes proporções quando o tema diz respeitos à luta pelas conquistas de direitos
das mulheres, bem como o silêncio da maioria dos estudiosos do contratualismo a
respeito do contrato sexual.
O contrato sexual também trata do surgimento e do exercício legítimo dos
direitos políticos para essa modernidade, porém, os direitos políticos necessitam
do suporte do direito patriarcal, do domínio do homem sobre a mulher. Essa
perspectiva geralmente ausente nas análises do contrato social mostra como uma
forma moderna de patriarcado foi implementada e fundamentada. O contrato
social é apresentado como uma história sobre a liberdade, a conquista da liberdade
pela sociedade civil, mas na verdade foi uma forma eficaz de manutenção das
estruturas do poder como eram conhecidas. Se o contrato social foi criado sob um
discurso de se defender a liberdade, o contrato sexual tratou de uma espécie de
sujeição. O contrato original constitui simultaneamente a liberdade e a dominação.
94
PATEMAN, C. The Sexual Contract, p. X.
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90
A liberdade civil não é universal, ela é um atributo masculino que depende
essencialmente do direito patriarcal.
A palavra “patriarcado” é comumente interpretada em sua literalidade,
como direito paterno. Pateman constata que esse é um motivo que facilita o
esquecimento do contrato sexual, pois o contrato social, na maioria dos autores,
encerra o direito do pai. Porém, o fato é que os direitos políticos se originam no
direito sexual, ou direito conjugal. O direito paterno é somente uma das diferentes
expressões do patriarcado. É importante observar que o poder de um homem na
condição de pai só é exercido após o poder de um homem sobre uma mulher.
Apesar disso, a principal tendência na interpretação do contratualismo na história
moderna era no sentido de declarar o patriarcado extinto.
A análise dos contratualistas permite entender melhor a problemática. O
silêncio de Locke sobre a participação das mulheres no contrato social foi
entendido como sendo uma forma dele se precaver em seu ciclo de leitores do que
uma afinidade dele com o patriarcado
95
. Seu individualismo seria genuinamente
universal, com a possibilidade do ingresso das mulheres no contrato. Também
entende-se que sua argumentação não diz respeito às mulheres e sim à separação
que ele faz entre a família e a política. O que Pateman observa é que esses
aspectos não podem ser desconsiderados na obra dele. A separação entre as duas
esferas somente se torna clara se considerarmos justamente o contrato sexual.
Algumas feministas leram as obras de Locke e sustentaram que a sociedade
moderna era pós-patriarcal
96
.
Zillah Eisenstein foi quem compreendeu Locke como um patriarcal anti-
patriarcado
97
. O modelo baseado em pai e filho foi substituído pela igualdade
liberal, mas esta não chegou às mulheres. O poder conjugal não é paternal e sim
um direito sexual. É um poder exercido pelo homem na condição de homem e não
de pai. O problema é que o patriarcado é normalmente entendido como o direito
do pai, concepção tradicional do séc. XVII. Nesse momento, a família fornecia o
modelo para todas as relações de poder e autoridade e a obediência dos súditos ao
95
Essa é uma conclusão de Pateman ao analisar as considerações feitas por Melissa Butler à obra
de Locke. Tal autora não foi crítica em relação a esse silêncio de Locke sobre a participação da
mulher no contrato social e na esfera pública, bem como sua subordinação na esfera privada.
PATEMAN, C., The Sexual Contract, p. 21.
96
Ibid., p. 22.
97
Ibid, p. 22.
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91
Estado partia dessa analogia. Muitos entenderam que esse tipo de poder teve seu
fim com Locke. Há ainda uma segunda concepção chamada de clássica e colocada
pela autora como marco, Sr. Robert Filmer, opositor de Locke
98
. Nela se entendia
que os poderes paternal e político não eram simplesmente análogos, e sim
idênticos. Filhos estão sujeitos aos seus pais, portanto, em sujeição política. Essa
foi a concepção combatida por Locke no fim do século XVII. A concepção
moderna diz respeito a um patriarcado fraternal, contratual e estruturante também
da sociedade civil capitalista.
A interpretação do patriarcado como direito paternal traz conseqüências
paradoxais e torna obscura a origem da família na relação entre homem e mulher.
Ambos ingressam num contrato de casamento e são marido e esposa antes de
serem pais, é isso que deixa de ser considerado quando se faz referência ao
patriarcado somente no que tange o momento do direito paterno. Os
contratualistas fazem grandes oposições ao paternalismo. Se a relação entre o pai
amoroso e filho é o paradigma de relação entre os cidadãos e o Estado, então,
assim como um pai preocupado com seu filho impede que ele atue de forma que
possa se prejudicar, o Estado pode proteger seus cidadãos pelo paternalismo legal.
No contratualismo, o pai foi morto pelos filhos e o direito patriarcal do pai se
transformou no governo civil. Os filhos alienaram esse poder político para o
Estado. Se a liberdade de contratar for restringida, o Estado está agindo como um
pai e a liberdade é comprometida. O anti-paternalismo dos contratualistas que
substitui o patriarcado pessoal pelas relações impessoais é, por isso, confundido
com um anti-patriarcado. A transição entre a concepção antiga e a moderna ainda
apresenta a história da potência criativa masculina de uma nova vida política. As
mulheres são consideradas supérfluas tanto na procriação quanto na política. Na
sociedade civil qualquer homem pode gerar vida política e direitos políticos. A
criatividade política pertence à masculinidade e não à paternidade.
A sociedade civil patriarcal é composta de duas esferas: uma pública outra
privada, mas a última não seria politicamente importante. Tem-se a impressão de
que o contrato sexual e o social são distintos e que o sexual constitui a esfera
privada, não tendo relevância na pública. Porém, Pateman afirma que o contrato
sexual alcança sim a esfera pública através da prostituição, por exemplo. Por esse
98
LOCKE, John. Os princípios e fundações falsas de Sir. Robert Filmer. In Dois Tratados sobre
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motivo, essas duas esferas do contratualismo não podem ser pensadas de forma
separada. A conexão existente entre patriarcado e contrato foi pouco explorada,
apesar de na sociedade civil moderna instituições importantes serem constituídas
pelo contrato. A preocupação é com o contrato como um princípio de associação
social e como um meio importante de constituir relações sociais, como entre
marido e mulher ou capitalista e trabalhador. O seu objeto é uma propriedade
especial, a que indivíduos têm sobre si mesmos. Essa é uma concepção forte na
teoria política de Locke. Nesse sentido expõe Philippe Raynaud:
A propriedade comum primitiva dos bens implica, portanto, que a única
propriedade privada original seja a que o indivíduo tem de sua própria pessoa; o
indivíduo só se torna proprietário dos bens materiais na medida em que
transforma a natureza, segundo o desígnio de Deus. Parece, portanto, que,
logicamente, a propriedade dos bens esteja subordinada à propriedade no sentido
mais amplo, isto é, à conservação da vida, e da liberdade. Mais ainda, é com a
única condição de admitir o caráter derivado da propriedade dos bens que se pode
compreender por que o conceito de propriedade inclui a vida, a liberdade e os
bens: a propriedade é o conjunto daquilo que se pode legitimamente retirar de um
indivíduo sem seu consentimento
99
.
O ingresso no contrato social é um ato racional. O problema é que há
diferenças sexuais na comunidade e para os escritores clássicos, com exceção de
Hobbes, essa diferença enseja a diferença na racionalidade. Os autores constroem
uma concepção de masculino e feminino patriarcal. Só aqueles associados ao
masculino têm atributos e capacidade necessários à realização do contrato e são
considerados indivíduos. A diferença sexual resulta na diferença política,
distingue quem será livre de quem se sujeitará. As mulheres não são parte do
contrato original em que os homens transformam suas liberdades naturais em
liberdades civis. Elas são objeto. Pelo contrato social os homens também
transformam seu direito natural sobre as mulheres no direito patriarcal civil.
Uma questão importante que se pode colocar diz respeito à capacidade da
mulher para realizar o contrato de casamento. Na sociedade civil, a mulher não só
pode como deve se casar. O problema é fundamentar tal entendimento, pois se a
mulher não tem capacidade para contratar, não pode ingressar no contrato civil. É
incoerência interna à teoria contratualista ela realizar o contrato de casamento. As
o Governo.
99
RAYNAUD, P. John Locke, In CHÂTELET, François. Dicionário de Obras Políticas, p. 683.
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posições que as partes ocupam no contrato são distintas. A teoria clássica
contratualista dirige seus esforços para criar relação de dominação e sujeição.
Capitalistas exploram trabalhadores e maridos exploram mulheres, pois ambos são
subordinados na relação contratual. Rousseau, único que não possibilita a
escravidão e qualquer contrato que dê origem a ela, também se apóia no contrato
sexual, com especial atenção para a educação recomendada a Sofia, que virá a ser
esposa de Emílio. As diferenças entre os autores ficam menos importantes diante
da concordância em relação ao patriarcado.
As mulheres não são parte no contrato original, mas o objetivo do contrato
sexual é não deixá-las no estado de natureza. Elas são incorporadas numa esfera
ambígua que faz e não faz parte da sociedade civil. A esfera privada é parte da
sociedade civil, mas é distinta da esfera civil. A privada (feminina) e a pública
(masculina) são opostos, mas ganham significado um a partir do outro assim
como a liberdade civil da vida pública, quando contraposta à sujeição natural da
esfera privada. Nos textos do contratualismo clássico, com a aparente exceção de
Hobbes, pode parecer que não há necessidade de se criar a esfera privada, pois ela
já existia no estado de natureza. As relações sexuais, o casamento e a família
faziam parte da sociedade pré-contratual. Porém, a importância do contrato sexual
é por ele não estar associado somente à esfera privada.
A princípio a idéia vinda de Locke de cada homem ter a propriedade de si
parece libertadora. Essa concepção foi adotada por muitas feministas na luta para
reformar as leis do casamento e na demanda pelo aborto, pois a mulher também
teria a propriedade sobre ela mesma. O problema dessa posição é que a doutrina
contratualista se fundamenta no indivíduo e se o feminismo se preocupa com o
indivíduo, ele se funde ao contratualismo, reafirmando uma construção patriarcal
da condição da mulher. Para tal teoria política, há contratos em toda a vida social
e não se pode impor limites a ele. Até mesmo o contrato de escravidão é válido,
afinal, o inivíduo livre pode decidir contratar virar escravo. Por isso, o feminismo
não deveria buscar apoio na teoria contratual.
Contar a história do contrato sexual é demonstar como a diferença sexual
concebe uma diferença política importante na sociedade civil. De acordo com
Pateman, o patriarcado não é um problema puramente da esfera privada, que pode
ser superado se as leis e a política tratarem a mulher da mesma forma que o
homem. O patriarcado moderno não é a mera sujeição da mulher na família, e por
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isso ele tem implicações na esfera pública, como é o caso da prostituição, aparato
que, segundo a autora, ainda é fundamental no mundo dos negócios e até mesmo
na diplomacia. Os contratualistas defendem a prostituição como um contrato de
prestação de serviços qualquer, ressaltando que ele está disponível tanto para
homens quanto para mulheres. Porém, o fato é que a autora constata que a maioria
dos clientes são homens, ainda que o serviço seja prestado por um homem e, na
época da divulgação de sua pesquisa, a maior parcela de clientes era casada
100
.
Entre todas as questões que podem ser suscitadas a partir dessa comparação entre
a quantidade de homens e mulheres que fazem uso desse tipo de serviço, uma
interessante apontada pela autora é a noção de disponibilidade do corpo da
mulher, fundada no contrato sexual, muito mais forte do que a disponibilidade do
corpo do homem. Sendo assim, este é um problema que esbarra também na
disponibilidade do corpo do trabalhador pelo capitalista, porém, há a
peculiaridade desse ramo concentrar um maior número de mulheres, deixando
claro que não é somente algo que decorre do capitalismo, mas sim de uma
estrutura de dominação diferente, que sabe se apropriar de um dos aparatos
capitalistas.
A história do contrato sexual trata de relações heterossexuais. Por isso, há
críticas que entendem que falar nas categorias homem e mulher reforça a idéia de
que mulher é uma categoria natural, inata e biológica. Pateman responde que falar
sobre a mulher não é igual a falar sobre mulheres. A mulher sim é uma categoria
da imaginação patriarcal e o contratualismo clássico tinha essa influência em seu
imaginário quando concebeu o contrato sexual. Assim foi construído o significado
de masculino e feminino na sociedade moderna, segundo o argumento
desenvolvido pela autora. É importante ressaltar novamente a aproximação da
teoria dela com o pensamento exposto no capítulo anterior de Negri e Hardt, pois
todos atribuem ao contratualismo a fundação das identidades na modernidade,
estas muito criticadas por Judith Butler, como um instrumento de exclusão, sendo
esse um dos grandes motivos pelos quais os movimentos de minorias deveriam se
afastar do discurso identitário como estratégia de luta.
Elizabeth Badinter analisa os reflexos do contrato no feminismo. No início
da década de 90 do séc. XX, houve um movimento nos EUA, precisamante em
100
PATEMAN, C., The sexual contract, p. 190. Essa pesquisa foi levantada pela autora nos
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95
Ohio, no sentido de publicar um regulamento do ato sexual, que deveria ser
resultado de um acordo detalhado entre as partes, preferencialmente por escrito.
Tal fato foi uma exigência em nível radical da teoria do consentimento e mostra a
que ponto o contratualismo no feminismo pode chegar. Uma grande defensora
dessa teoria é Loïs Pineau entendendo que as mulheres eram capazes para
consentir verbalmente e de forma explícita, sem gestos subentendidos. Há grandes
desvantagens nesta teoria, pois ela ignora completamente a espontaneidade das
relações e os desejos inconscientes
101
. Além disso, desconsidera que, em um
patriarcado, a mulher tem uma obrigação moral de realizar um jogo de palavras,
primeiro negando o consentimento à relação para depois ceder, o que não significa
que ela não queira se envolver.
A reivindicação do contrato social era a igualdade e a liberdade,
consideradas como inerentes a qualquer indivíduo. Essa teoria é uma estratégia
que preserva a sujeição ao apresentá-la como liberdade, no exemplo de Locke ao
permitir que o indivíduo se tornasse escravo. Por isso, era considerada a doutrina
emancipatória por excelência, prometendo a liberdade universal para a
modernidade. A partir daí só haveria uma forma de se justificar a sujeição: pela
concordância entre as partes. A subordinação poderia existir desde que voluntária.
Conservadores da época ficaram preocupados, não viam motivos para alguém
querer se submeter ao poder alheio. Eles esqueceram que os contratualistas não
pretendiam estimular a insubordinação e sim justificar a sujeição civil moderna.
Ressalta Pateman que há uma importante consideração que deve ser feita
sobre o indivíduo e nunca é mencionada: os indivíduos são todos do sexo
masculino. Com o intuito de que seus indivíduos tenham reconhecimento, os
contratualistas escondem características sociais no estado de natureza, ou seja, o
modelo de associação política e Estado que o teórico quer justificar influencia nas
escolhas das características naturais que ele fornecerá aos indivíduos. A maioria
dos contratualistas defendia que as capacidades e atributos eram diferenciados
sexualmente. Os contratualistas contemporâneos fazem o mesmo, porém, não se
percebe porque o feminino é subsumido na categoria aparentemente universal e
sexualmente neutra de indivíduo. Rawls, em Uma Teoria da Justiça, reproduz esse
Estados Unidos, na década de 1980 e identificou que três-quartos dos clientes são casados.
101
BADINTER, E., Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos, pp. 123 e 124.
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mecanismo. A autora argumenta que Rawls considera sua posição original um
aparelho representativo, mas a representação não é sequer exigida porque as
partes não podem ser diferenciadas umas das outras, uma pode representar todas
as demais, pois o véu da ignorância estaria presente. De fato, um único indivíduo
já basta, pois ele é assexuado. Porém, Rawls introduz seres masculinos e
femininos ao longo de seu argumento, antes dele postular a ignorância dos fatos,
as partes são vistas como chefes de famílias, possuem descendência. Chefes de
família ou maridos que representam suas esposas. Uma peculiaridade de Rawls
em relação aos contratualistas clássicos é que sua posição original é abstrata,
enquanto os demais apresentam um estado de natureza com vida
102
.
Em uma análise sobre Hobbes, a autora observa que ele entende que
qualquer relação contratual, incluindo a sexual, é uma relação política, ao
contrário de outras teorias políticas na modernidade. Além disso, no estado de
natureza não há um mestre natural, nem mesmo na relação homem-mulher. As
capacidades e atributos individuais são distribuídos independentemente do sexo.
Todos os indivíduos estão isolados em estado de guerra. As relações sexuais
ocorreriam em duas hipóteses: por um acordo entre as partes (contrato) ou pela
força que o homem pode vir a exercer sobre a mulher, sempre lembrando que ela
pode impedi-lo. Parece não haver dominação entre adultos no estado de natureza
hobbesiano, pois ambos são fortes para se defender. Ninguém precisaria contratar
com outro para obter proteção. Mas isso não é tão claro. Hobbes é um exemplo de
autor com um forte cunho patriarcal fundado no acordo entre as partes. Antes do
surgimento da sociedade civil poderia não existir o casamento como contrato, mas
existiam famílias, na medida em que elas se tornavam núcleos fortes para se
defender. Hobbes faz uma analogia entre as famílias e os reinos.
No estado de natureza indivíduos livres e iguais podem se tornar
subordinados pelo contrato ou pela conquista. Não há esposas, pois o casamento
só aparece na sociedade civil. Nela, a sujeição da mulher em relação ao homem é
assegurada pelo contrato de casamento e não pela força, como no estado de
natureza. Os homens não têm essa necessidade quando a própria lei civil assegura
o direito político patriarcal pelo casamento. Uma especificidade de Hobbes é que
esse contrato social deve ser feito no momento em que todas as mulheres no
102
PATEMAN, C., The SexualContract, p. 43.
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estado de natureza foram conquistadas por homens, em que não há mais mulher
livre e igual que possa se recusar a se subordinar a um homem.
No caso de Locke, ele assume que o casamento e a família existem antes do
contrato social, tanto que o Estado surge com uma função negativa somente com o
dever de garantir que não haja violações aos direitos individuais, por isso Locke é
considerado também um fundamento para o liberalismo. As mulheres são
excluídas do status de indivíduos no estado de natureza, pois os atributos são
sexualmente diferenciados. Somente homens são livres e iguais. Mulheres são
naturalmente subordinadas aos homens e a ordem natural é refletida na relação
conjugal. Apesar disso, à primeira vista, Locke parece ser anti-patriarcal, por
prever, por exemplo, a possibilidade do divórcio. A esposa tem liberdade em
muitos casos de deixar o marido, e isso demonstraria que o marido não tem poder
absoluto sobre ela. Pateman observa adequadamente que a questão não é se ele
tem poder absoluto e sim se ele tem qualquer poder sobre ela. Quando Locke
discute com Filmer no primeiro tratado sobre Adão e Eva, ele diz que Adão não
tem o poder de um monarca sobre ela, mas que a obediência que Eva deve em
relação a ele é a que toda mulher tem em relação ao marido
103
.
Rousseau entende que a ordem civil depende do poder do marido sobre a
mulher, que decorre da natureza, dos diferentes atributos dos sexos. Nesse sentido,
Rousseau tem muito a dizer sobre a natureza da mulher, daquilo que a exclui da
vida civil. Basta analisar a educação de Emílio e Sofia. A vida social decorre da
família patriarcal. O desenvolvimento da linguagem, razão e relacionamentos
sociais é ao mesmo tempo o desenvolvimento da diferença sexual. As mulheres
devem ser subordinadas aos homens justamente por causa dessa diferença. Elas
possuem um desejo ilimitado, impossível de ser controlado por si mesmas.
Portanto elas não desenvolvem a moralidade exigida para a sociedade civil.
Homens têm paixões, mas conseguem usar a razão. O corpo da mulher é tão
subversivo e tão contrário à vida política que Rousseau entende que Emílio deve
aprender sobre cidadania antes de casar com Sofia e conhecer os prazeres de ser
um marido. Só assim, ele poderá vencer a batalha dos sexos e se transformar no
senhor de Sofia. Se ela não está disposta a fazer o necessário para manter seu
marido no comando da relação conjugal, a sociedade civil corre perigo. Isso
103
LOCKE, J. Livro I In Dois Tratados sobre o Governo, p. 250.
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implica em duas questões: primeiro, ele reconhece que as esferas pública e
privada não são separadas, pois com uma ação de Sofia dentro de casa a sociedade
civil, esfera pública, corre perigo; segundo, um paradoxo, pois se a mulher é
apresentada como fraca moralmente, já não se deveria colocar a moral e a honra
da família em seus atos, muito capazes de violar os costumes. Na verdade, o que
se pode constatar é justamente o contrário, que a honra da família está associada à
honra da mulher.
No geral, os autores excluem as mulheres de participação no contrato social
a partir da condição do estado de natureza. Porém, é contraditório a mulher não ter
capacidade para o contrato social e ainda assim ser capaz para casar. Se as
mulheres são subjugadas por homens pela força física, se não têm capacidade de
indivíduos, também não possuem capacidade para o contrato original. Ainda
assim, os contratualistas insistem que as mulheres devem realizar o contrato de
casamento. Eles, ao mesmo tempo, negam e pressupõem que a mulher pode
contratar. Um aspecto interessante sobre o casamento é que ele continua com um
status natural mesmo depois da sociedade civil, em que o contrato deveria criar
relações civis e não naturais. O que é peculiar ao contrato de casamento é que
quem ingressa é um indivíduo e um subordinado entendido como natural e não
dois indivíduos.
Pateman identifica um ponto em comum entre feministas e socialistas na
concepção do contrato, pois ambos ressaltam que, se dois indivíduos fazem um
contrato, isso pressupõe que a troca deve ser igual. Este seria um argumento que,
de acordo com essas correntes do feminismo e do socialismo, seria forte na defesa
de uma igualdade entre as partes no contrato. Se uma das partes está em uma
posição inferior, então ela não tem escolha a não ser concordar com algo muito
desvantajoso oferecido pelo superior. Entretanto, essas críticas consideram a troca
em si. Porém, aqui a propriedade tem um sentido peculiar, pois diz respeito à
pessoa, troca de obediência por proteção. A teoria contratualista é, acima de tudo,
uma forma de constituir relações de subordinação e não de liberar corpos. A parte
que garante a proteção tem o direito de determinar como a outra parte irá atuar ou
cumprir sua prestação na troca.
A teoria contratualista se diz ser o meio de assegurar a liberdade individual.
A escravidão é a antítese da liberdade. Por qual motivo os contratualistas do
passado consideravam o contrato de escravidão, ou algo muito próximo disso,
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entre os contratos legítimos? A maior parte das pessoas não conseguiria
compreender uma situação em que alguém realizasse um contrato para se tornar
escravo e sim a escravidão forçada, como por exemplo, o transporte de africanos
involuntariamente para a América do Sul. Prova da completa ausência de qualquer
contrato de escravidão foi a resistência dos escravos à obedncia, que os levava,
inclusive a criar os quilombos. Um escravo é diferente de outro trabalhador
porque ele é propriedade do senhor, deixando de ser uma pessoa para ser uma
coisa, pois o dono não possui somente o labor e sim o escravo inteiro. Pateman
observa que historicamente, escravos são gerados em guerras e conquistas, não em
contratos. A presunção de que o indivíduo tem a propriedade sobre sua pessoa
permite dissolver a oposição existente entre liberdade e escravidão. A escravidão
civil passa a ser um contrato legítimo.
Dois dos pilares da modernidade que chamam maior atenção são a liberdade
e a igualdade. A fraternidade é esquecida. Porém, assim como o contrato social, o
patriarcado moderno é fraternal, cabendo lembrar que os pais tiveram seus
poderes políticos tolhidos. Os participantes no contrato original devem ser capazes
de criar e exercer os direitos políticos, o que não podem mais fazer como pais. Os
homens que farão o contrato estão agindo como irmãos, como parentes fraternos.
Fraternidade é comumente entendida como solidariedade, humanidade, denota um
aspecto universal, mas de fato, assegura o patriarcado como ligação entre irmãos.
A crítica feita por Pateman a esse apelo à fraternidade afeta Simone de Beauvoir,
por deixar de perceber o teor da palavra fraternidade.
Não há como dizer melhor. É dentro de um mundo dado que cabe ao homem
fazer triunfar o reino da liberdade; para alcançar essa suprema vitória é, entre
outras coisas, necessário que, para além de suas diferenciações naturais, homens
e mulheres afirmem sem equívoco sua fraternidade
104
.
Pateman discute a virada entre as concepções de patriarcado, a concepção
como um poder decorrente somente de um homem na condição de pai, mais
antiga, e a concepção como um poder que primeiro é exercido na condição do
homem como marido. Ela analisa a fundo o debate entre Filmer e Locke, tido
como aquele que pregou o fim do poder parental para o início da sociedade civil.
104
BEAUVOIR, S., O Segundo Sexo – a experiência vivida, p. 500.
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100
Mesmo em Filmer, ela identifica que o patriarcado vai além do direito do pai
sobre o filho. Quando ele usa o exemplo de Adão e Eva, ele deixa claro que o
poder que ele exerce sobre ela é o de marido; se ele é pai, ela é mãe e para que
isso aconteça é necessário que o direito conjugal esteja presente. A peculiaridade
de Filmer é que Adão também é pai dela, por isso os direitos políticos podem
todos se originar no pai. O patriarcado moderno é contado a partir da morte dele.
Em Locke, o pai até se transforma em um monarca, mas a partir do
consentimento de seus filhos e não por virtude da paternidade. Ele nada menciona
sobre a mãe nessa transformação do pai, mas há uma mãe, caso contrário não
haveria filhos. Porém, ele diz que a primeira sociedade é formada por um homem
e uma mulher e não entre pai e filho. Locke concorda com Filmer quanto à
sujeição da mulher ao homem, logo o homem de Locke exerceu seu direito
conjugal sobre a mulher antes de se tornar um pai. Ele argumenta que, em razão
do pai monarca não agradar os filhos, eles cometem um parricídio para ganhar a
liberdade natural. Após tal episódio, fazem o contrato original criando a sociedade
civil e separando as esferas pública e privada, excluindo o caráter político da
última.
Na análise da fraternidade, algumas questões devem ser suscitadas. Nas
considerações de Pateman, as principais discussões sobre a história do
contratualismo desconsideram o aspecto político da diferença sexual insituída e
que a estrutura da sociedade civil é um reflexo da divisão entre os sexos, dos
papéis pré-estabelecidos do masculino e do feminino. Rousseau e Freud foram
grandes responsáveis por revelar o que significa ser mulher, justificando o motivo
pelo qual o homem deve possuir direitos sexuais. O corpo da mulher e suas
paixões representam a natureza e para que a ordem social seja criada e mantida,
esse corpo deve ser controlado. A mulher fica restrita ao interior da família e sua
interação com a sociedade deve ser realizada pela razão masculina.
A teoria freudiana da fundação da sociedade civil contribui para iluminar as
dimensões do patriarcado: o direito paterno e o direito conjugal. Os fundamentos
da fraternidade são diferentes do paternalismo. Os filhos cometem o parricídio
para ter a liberdade política e o acesso às mulheres, pois descobrem que juntos são
mais fortes do que um indivíduo. Após o assassinato do pai percebem que para a
manutenção da fraternidade, ela precisa ser regulada. Freud e Filmer têm um
ponto em comum e criticável pela autora. Ambos iniciam suas histórias com um
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101
homem que já é um pai. Como dito, um pai não se torna pai sem que uma mulher
se torne mãe. Isso não é possível sem o exercício do direito sexual do homem.
Esse direito sexual precede o direito paterno. A origem dos direitos políticos é um
estupro anterior ao parricídio. Pateman diz que se o parricídio é seguido de um
processo revolucionário, o estupro implica em submissão.
No intuito de se manter a fraternidade após o parricídio, os irmãos se
comprometem a não tentar assumir o lugar do pai, nem no que tange às leis
patriarcais, nem quanto ao monopólio das mulheres do grupo. Isso não significa o
fim dos direitos patriarcais. Apenas denota que os irmãos fizeram o contrato
sexual para dar uma ordem necessária ao acesso às mulheres, e para assegurar o
direito sexual masculino por lei. O contrato de casamento é um excelente instituto
para demonstrar como os direitos patriarcais políticos são constantemente
renovados e reafirmados por contratos reais. O contrato sexual foi feito uma vez,
mas ganha fôlego e é reproduzido a cada contrato de casamento. É o momento em
que cada homem irá receber de forma individualizada os direitos patriarcais. A
mulher passa a ser esposa e seu marido passa a ter direito tanto ao acesso sexual
sobre ela, como a seu trabalho como dona de casa. As relações conjugais fazem
parte da divisão sexual do trabalho e de todo o aparato de sujeição da mulher, que
vai da esfera privada à esfera pública.
3.4
O surgimento da primeira onda de feminismo
O início do século XIX foi marcado pela formação de um feminismo mais
radical, tanto no movimento quanto na teoria. A partir de 1820, os temas
suscitados pelas teóricas e pelo movimento diziam respeito a assuntos mais
controversos e mais complexos, porém, deixando claro que o problema da
subordinação da mulher tangenciava outros mecanismos de dominação, que
também deveriam ser enfrentados pelo feminismo, como a prostituição, o
capitalismo, a guerra e a escravidão. A interdição da fala das mulheres em público
não as impedia de tomar a palavra e enfrentar a possibilidade de repressão
decorrente de seus atos. A luta pela possibilidade do divórcio, conquistado durante
um período da revolução francesa, porém depois cassado, continuou sendo objeto
do feminismo, bem como o desafio a algumas convenções. Muitas mulheres se
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102
recusavam a obedecer seus maridos e não adotavam o sobrenome deles após o
casamento. Outras preferiam ter seus filhos e criá-los de forma independente,
traçando o caminho das mães solteiras como uma opção. Até mesmo a defesa de
uma igualdade completa nas vestimentas de homens e mulheres foi proposta, bem
como a divisão dos trabalhos na casa e nos cuidados com os filhos
105
.
A questão da roupa é particularmente interessante. Michelle Perrot faz um
exame da mulher popular como a mulher rebelde, produtora da história, em outras
palavras, como poder constituinte. A história, em regra, é contada do ponto de
vista masculino, o que dá maior destaque ao discurso oficial, do papel restrito e
fixo da mulher em sua casa, desconsiderando as formas de resistência e os
conflitos na sociedade. O fato é que as mulheres da classe popular atuaram de
forma intensa. A roupa tem um grau de importância por simbolizar a maior
liberdade de circulação das mulheres populares se comparada com o grau de
formalidade e todas as amarras impostas às burguesas. É possível aproximar as
posições de Perrot e LeGates, a primeira ressaltando a importância da
movimentação mais livre das mulheres populares em função de suas roupas e a
segunda dando ênfase às reivindicações por vestimentas semelhantes entre
homens e mulheres para ressaltar a igualdade e para liberar o corpo da mulher. Há
nestes dois posicionamentos algo em comum: ambas fazem referência pela roupa
às performances, ao comportamento, questões que serão desenvolvidas no
capítulo seguinte. Neste sentido, diz Perrot:
O que impressiona de imediato é a espantosa fluidez das mulheres do povo nessas
cidades ainda pouco compartimentadas. “A mulher como deve ser”, descrita por
Balzac, espectador fascinado e nostálgico do quadriculado que a conveniência
burguesa converteu em cidade, possui uma postura afetada e um itinerário
preestabelecido. Ela cobre seu corpo segundo um código estrito que a cinge,
espartilha-a, vela-a, enluva-a, da cabeça aos pés. E é longa a lista dos lugares onde
uma “mulher honesta” não poderia se mostrar sem se degradar. A suspeita
persegue-a em seus movimentos; a vizinhança, espiã de sua reputação, até seus
escravos a espreitam; ela é escrava mesmo em sua casa, que lhe designa o salão.
Sua liberdade, ela tenta reconquistar na sombra e dentro de um código de sinais
sofisticados – cartas com a ponta dobrada, mensagens levadas, lenços caídos,
lâmpadas acesas – que se chama de astúcia feminina. É certamente a mais
prisioneira das mulheres. A mulher do povo tem uma maior independência nos
gestos. Seu corpo se mantém livre, sem espartilho; suas saias largas prestam-se à
fraude: antigamente as mulheres fingiam estar grávidas para passar com o sal na
frente dos coletores de gabela, como a seguir fazem com as alfândegas e as
105
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 153.
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103
fronteiras. (...) A dona-de-casa anda com a cabeça descoberta (as regateiras da
praça lançam às clientes rabugentas demais: “não é porque você tem um chapéu”,
distintivo da burguesia), indiferente à moda e seus mandamentos que tiranizam as
mulheres da “classe ociosa”, quase nem se preocupando com um asseio que fica
particularmente difícil com os problemas de se conseguir água. Ela tem gesto e
revide rápidos. É uma mulher explosiva, cujas reações são temidas pelas
autoridades
106
.
É significativo o fato de grande parte das manifestações populares da época
partirem justamente dessas mulheres. Um dos exemplos era a mobilização em
razão do elevado preço da comida. Quando havia a alta nos preços por motivos
diversos de um problema da natureza, elas estavam dispostas a sair às ruas e se
necessário até mesmo roubar dos fornecedores para revender os alimentos por
conta própria e a preços mais baixos. Fiscalizavam de forma assídua os preços.
Isso porque no início do século XIX elas conseguiam fazer com que os patrões de
seus maridos pagassem os salários diretamente a elas, para evitar que o dinheiro
fosse todo gasto em bebida. Elas tinham o acesso ao dinheiro e designavam uma
pequena parcela a seus maridos destinada à bebida. A mulher burguesa, ao
contrário, recebia do marido uma quantia para o pagamento das contas, o controle
direto do dinheiro era dele. A mulher popular ainda lutava também por moradia,
não só para a sua família, como também para seus vizinhos. O dia do pagamento
do aluguel era sempre conturbado e não era raro elas darem cobertura aos que não
podiam pagar e precisavam fugir no meio da noite.
Um outro espaço em que essas mulheres atuavam era o lavadouro, espaço
completamente destinado a elas e que ainda assim, elas conseguiram se apropriar
e dar um tom subversivo a ele. Neste local elas não estavam sujeitas às normas
reguladoras do corpo que incidiam sobre os homens nas fábricas a partir da
revolução industrial. Era um espaço em que elas se apoiavam mutuamente em que
não havia qualquer hierarquia e sim uma rede horizontal de solidariedade e
constituição de afetos
107
, pois lá uma mulher abandonada por seu marido ou que
106
PERROT, M., Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros, p. 200 et. seq.
107
É interessante observar aqui pontos de convergência com o pensamento de Negri e de Hardt,
tratado na capítulo anterior em relação ao trabalho imaterial que vai servir de paradigma de
trabalho na era do Império, no lugar da estrutura de fábrica. Como afirmaram os dois autores, o
trabalho imaterial era um trabalho tipicamente atribuído às mulheres e pode-se verificar neste
exemplo dos lavadouros quais eram as implicações desta relação horizontal. Não foi por outro
motivo que os lavadouros foram alvo de esforços concentrados de regulamentação com a
obsessiva campanha de higiene como discurso oficial, cujo objetivo era impor a lógica da
revolução indusrial, da fábrica às mulheres.
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sofresse qualquer violência encontrava o apoio efetivo das demais. Algumas
crianças órfãs que ali apareciam encontravam uma mãe disposta a criá-las. Tudo
isso estava distante do poder. Elas não tinham qualquer restrição em relação ao
vocabulário que utilizavam e tinham uma liberdade de locomoção muito grande
em função de não haver sobre elas a vigília que pesava sobre as burguesas, bem
como não haver um horário para exercer o seus trabalhos. Em determinados
momentos do dia as ruas eram completamente tomadas por elas.
A forma original em que elas se estruturavam nos lavadouros incomodava.
As que faziam da atividade uma profissão eram as que mais causavam tumulto,
sempre dispostas a iniciar uma greve de forma articulada. Elas conseguiram
fundar uma associação no ano de 1848, em Paris e receberam na profissão muitas
mulheres vindas de presídios, a maioria prostituta e também alguns militares
simpáticos às idéias da revolução francesa que estavam presos em Saint-Germain-
en-Laye. Foi assim que a subversão surgida nesses lavadouros começou a
incomodar o poder. Inicia-se nessa fase uma batalha pela higiene nos lavadouros,
que tinha como objetivo tentar regulamentar de qualquer forma aquelas mulheres
que causavam distúrbios à ordem social. Em 1880 o lavadouro era um local em
que a atividade era completamente dividida, hierarquizada e ordenada. Nas
palavras de Perrot, era preciso “lavar cientificamente”
108
para controlar as
mulheres da classe popular.
Examinadas de perto as peculiaridades das mulheres populares e das
mulheres burguesas, o momento é o da estruturação do feminismo. É na primeira
metade do século XIX que se tem uma noção mais ampla de uma opressão do
grupo denominado mulher. Como visto, existiam diferenças substanciais entre as
burguesas e as populares, sendo estas mais livres em seus movimentos, gestos e
palavras. Porém, se por um lado já colocavam em prática um comportamento mais
livre, por outro lado, isso surgiu por força de necessidade de uma ruptura com as
formas de violência que sofriam. Conquistaram o direito de controlar o dinheiro
da família, por seus maridos gastarem todo o salário em bebida e não deixar o
mínimo para a subsistência da família. Constituíram uma rede solidária nos
lavadouros, que servia de apoio às mulheres abandonadas por seus maridos ou
vítimas de violência. Havia uma questão de classe, sem dúvida, porém, o que terá
108
PERROT, M., Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros, p. 204.
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mais peso na análise a ser feita a partir de agora para apresentar o nascimento do
feminismo como chegou até os nossos dias é o sexo, a forma pela qual esta
identidade forjada pelo poder e chamada de mulher se converteu em um (ou
vários) grupo(s) de luta. As diferenças de classe, como será visto adiante, refletiu
no feminismo. Porém, os movimentos que tratavam desta questão não foram
receptivos ao problema da mulher, muitos defendiam que ele seria resolvido uma
vez eliminada a diferença econômica, como simples conseqüência dela, mas não
era tão simples.
O reconhecimento de uma dominação comum foi um grande passo para que
os primeiros grupos começassem a se formar e ganhar força. Este foi o momento
em que as ativistas nos Estados Unidos, Alemanha, França e Inglaterra
começaram a se apoiar, trocando correspondência e realizando visitas. O
movimento ganha uma estrutura internacional de rede, apesar das mais diversas
experiências locais. Aparece neste momento um intercâmbio entre mulheres
socialistas, republicanas, as religiosas que viam em seu feminismo um chamado
de Deus para o combate à intolerância religiosa, pensadoras, filantropas,
sindicalistas e donas-de-casa. A diversidade de classe, raça e ideologia ainda não
era um problema. Os Estados Unidos e a Inglaterra se destacaram como
movimento organizado, tendo como principais nomes Fanny Wright e Emma
Martin, respectivamente, e Flora Tristan na França.
O feminismo radical na época era atrelado às idéias de Robert Owen (1771-
1858), Claude Henri (1760-1825) e Charles Fourier (1772-1837)
109
. Um dos
principais alvos de ataque era o casamento, com fundamento no próprio Owen,
que identificava nesta instituição uma das fontes da desarmonia na sociedade.
William Thompson (1775-1833) foi um dos grandes defensores dos direitos das
mulheres em sua época, junto com Anna Wheeler (1785-1848). Eles atribuíram ao
casamento as desgraças na humanidade. Na verdade, esta foi uma conclusão tirada
a partir da experiência de Anna Wheeler, que casou com um alcóolatra aos quinze
anos e teve seis filhos, tendo sobrevivido somente dois deles. Foi atribuído a
Thompson a autoria de Appeal of one Half the Human Race, Women, Against the
Pretensions of the Other Half, Men, To Retain Them in Political, and Thence in
Civil and Domestic Slavery. Porém, foi Anna quem produziu o texto, mas não
109
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p .163.
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quis assinar. As principais questões suscitadas eram a igualdade política entre
homens e mulheres, bem como as mesmas oportunidades na educação e na
economia e, por fim, a incidência dos mesmos valores morais em ambos.
Aqueles socialistas que aderiram às idéias de Owen defendiam uma
igualdade plena na família e as atividades eram realizadas em seu interior, como
por exemplo, concertos, diversas danças e chás, que eram organizados para
substituir a ida dos homens aos chamados pubs e estimular a participação de
mulheres nesses eventos, em que o apelo comum aos homens para o consumo de
bebidas e para cortejo de alguma mulher era proibido. Apesar do conteúdo moral
encontrado nessas regras, tanto que os movimentos evangélicos eram muito
próximos
110
, este movimento foi importante para o feminismo, na medida em que
conseguiu estruturar um suporte até mesmo na esfera internacional para as
feministas, além de defender a possibilidade de fala da mulher na esfera pública.
Foi por essa estrutura que Anna Wheeler conseguiu contatos com franceses
socialistas traduzindo textos e estimulando mulheres intelectuais mais jovens
tanto no aspecto emocional quanto no material. Sua rede de conhecidos fez com
que as idéias produzidas pelo feminismo francês circulassem na Inglaterra e nos
Estados Unidos.
O francês Charles Fourier também exerceu sua influência no feminismo
com sua sociedade utópica, que previa não somente uma jornada de trabalho bem
organizada, como também os momentos de lazer, de acordo com LeGates. O
francês defendia a igualdade entre os sexos e a utilização dos mesmos tipos de
roupa para meninos e meninas, com o objetivo de evitar qualquer estigma.
Haveria alguma divisão do trabalho, cabendo aos meninos a limpeza mais difíceis,
como a das latrinas e às meninas os cuidados com os filhos e com as casas, porém,
afirmando que somente poucas delas estariam sujeitas a este sistema. Haveria uma
representação mínima de cada um dos sexos em todas as funções, sendo todas
viabilizadas para o exercício da mulher, mesmos os mais altos cargos. O autor
ainda reconhecia que ambos, homens e mulheres, tinham as mesmas necessidades
sexuais. Portanto, seu objetivo era promover não somente a satisfação material
como também a sexual.
110
LeGates cita Emma Martin (1812-1851) como exemplo de mulher vinda do movimento Batista
para em 1837 se tornar socialista, convencida dos argumentos de seus opositores. Cf. LEGATES,
M., In their time: a history of feminism in western society, p.165.
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Esta liberdade sexual não foi bem recebida mesmo pelas mulheres. Anna
Wheeler foi uma das poucas que recebeu as novas idéias. A estrutura de Owen
agradava mais, por prever o divórcio e a responsabilidade comum ao homem e à
mulher na criação dos filhos sem considerar o sexo fora do casamento.
Obviamente havia na época uma flexibilidade nas relações sexuais, especialmente
na classe de trabalhadores, em que o sexo antes do casamento, uniões e divórcios
feitos somente com base no consenso eram realizados de forma comum. Porém, a
revolução industrial trouxe uma maior insegurança para os trabalhadores,
especialmente para as mulheres solteiras, muitas vezes mães solteiras, que tinham
dificuldade em conseguir se manter. Por este motivo, um discurso sobre segurança
na família agradava mais do que a instabilidade nas relações. O casamento tinha
um atrativo, quando fundado no respeito de um pelo outro, na fidelidade e na
monogamia.
As teorias de Robert Owen e Charles Fourier foram experimentadas na
prática com algumas comunidades fundadas nestes ideais entre 1820 e 1840, nos
Estados Unidos, França e Inglaterra. As mulheres mais novas conseguiram
usufruir de um regime mais livre no que diz respeito ao sexo, muitas, inclusive,
usando também roupas como calças e túnicas, consideradas vestimentas
tipicamente masculinas. O problema estava na condição das mulheres casadas,
que poderiam perder um status garantido na sociedade com base no casamento e
na maternidade. A igualdade nestas comunidades estavam restritas ao seguinte
fato: as mulheres poderiam trabalhar nas indústrias em período integral, tanto
quanto trabalham em suas casas. O significado disso era que o papel da mulher
não estava restrito somente a servir sua família, agora ela poderia servir a todos os
membros. Elas também ficaram excluídas das decisões sociais, ou por serem de
fato restritas aos homens ou por não cumprirem requisitos necessários. Em razão
destes e de outros problemas, estas comunidades não resistiram. Algumas ainda
davam o direito ao voto às mulheres e pagavam por seus serviços prestados no lar,
porém, elas recebiam a metade do que os homens nas fábricas. Na prática todas
estas experiências mantiveram uma divisão sexual do trabalho.
A útlima vertente de socialismo utópico apresentado por LeGates com
repercussão no feminismo foi o de Saint-Simon na França. Uma peculiaridade
desta vertente era perceber as diferenças de sexo e a hierarquia religiosa como
fundamentais para a manutenção da harmonia na sociedade. As mulheres eram
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consideradas mais sentimentais do que os homens, noção já bastante familiar, por
isso, elas poderiam ter um papel essencial para instaurar um mundo mais pacífico,
em uma perspectiva romântica, derrubando o sistema da época, considerado por
eles como um momento de violência intensa e muito individualismo. Homens e
mulheres eram considerados duas metades complementares. A própria imagem de
Deus era dual, relacionado com Pai e Mãe. A morte de Saint-Simon em 1825
possibilitou que Barthélemy Prosper Enfantin discutisse o papel social da mulher
entre 1829 e 1831 e criticasse a diferença entre os sexos. Sua intensão era
valorizar a materialidade, especialmente a sexualidade, mitigada nesta corrente em
prol da espiritualidade. A mulher deveria ser vista não de uma forma meramente
sexual que deveria ser controlada por ser perigosa, mas sim como uma afirmação
de uma liberação sexual. Ele foi considerado por seus seguidores como um
promíscuo e como alguém capaz de corromper a moral. Diante destas
considerações, ele recuou em sua defesa, passando a defender a necessidade de se
encontrar uma mulher messia para concluir a doutrina.
Além dessas correntes apresentadas que direcionaram o feminismo na
época, algumas mulheres merecem ser citadas como exemplo de engajamento no
feminismo. A primeira é a francesa Flora Tristan (1803-1844)
111
, que foi obrigada
a se casar aos dezoito anos com um homem que queria obrigá-la a se prostituir
para pagar dívidas suas. Tristan deixou seu marido levando os dois filhos
pequenos e grávida de uma terceira criança. Porém, ela somente conseguiu a
guarda da menina, tomada dela por ele, quando comprovou que o pai abusava da
filha. Sua separação somente foi legalizada quando ele tentou matá-la com um
tiro. A bala ficou alojada em seu peito até a sua morte. Sua vida na França foi um
constante desafio ao código civil de Napoleão. Esteve ainda no Peru e na
Inglaterra. Na América Latina escreveu um livro sobre as dificuldades que uma
mulher sozinha poderia ter para viajar, a partir de sua própria experiência. Seu tio,
que vivia no Peru, mandou queimar o livro em praça pública e rompeu os laços
com ela. Em seu período na Inglaterra, Tristan conseguiu visitar o parlamento
travestida com uma roupa turca masculina. Neste país, ela constatou a pobreza
trazida pelo processo de industrialização e a alienação comum a trabalhadores e
mulheres e estimulou a união e a emancipação dos operários.
111
KONDER, L., Flora Tristan: uma vida de mulher, uma paixão socialista.
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A peculiaridade de Tristan estava no fato da emancipação dos trabalhadores
estar atrelada necessariamente à emancipação da mulher. Para a autora, somente
haveria alguma harmonia na sociedade com a possibilidade de divórcio e com a
independência econômica das mulheres. A proposta de união entre os
trabalhadores não ficou somente no discurso. Em 1843 ela inicia uma jornada pela
França com o objetivo de associar trabalhadores, jornalistas, donos de fábricas e
padres, não somente para promover a união entre eles, mas também para pleitear a
abertura às mulheres. Obviamente houve resistência ao seu pensamento, uma vez
que os operários preferiam pleitear maiores ganhos para eles próprios sustentarem
suas famílias do que lutar pelo direito à emancipação econômica de suas
mulheres. Seus discursos e sua personalidade foram muito marcantes na época, de
acordo com o que foi descrito por seus contemporâneos. Quando morreu ela foi
homenageada pelo movimento operário como autora da União dos Trabalhadores,
mas seu feminismo foi deixado de lado.
Frances Wright (1795-1852), ou Fanny Wright, também foi uma mulher
conhecida por sua oratória, por sua independência e suas viagens. Wright tem suas
origens na Escócia, em uma família privilegiada, porém, desde cedo se interessou
por lutar pela igualdade, percebendo as diferenças na sociedade. Sua inspiração
decorria diretamente da revolução francesa e, a partir dos ideais revolucionários,
ela decidiu ir para os Estados Unidos, aparentemente uma promessa de liberdade
em que se poderia inaugurar uma ordem nova. Porém, suas concepções entrariam
em choque com o lado conservador e religioso americano. O ambiente
estabelecido pelos evangélicos não era receptivo ao feminismo. Nesta viagem
Fanny Wright descobriu a desigualdade de sexos, os horrores da escravidão e a
segregação social, questões nitidamente opostas ao republicanismo.
Wright chegou a fundar uma comunidade inspirada nas estabelecidas a
partir das idéias de Owen. As mulheres não poderiam abrir mão de seus direitos e
sua independência e os homens não teriam sobre elas qualquer tipo de direito. A
comunidade foi fundada em 1825, com o nome de Nashoba, porém, não
conseguiu durar muito tempo, pois além da falta de recursos, seus membros foram
acusados de comportamento sexual inapropriado, quando foi descoberta a
existência de um casal de um branco com uma negra. O casamento entre membros
de raças diferentes não era possível na época. Fanny Wright era defensora dessa
possibilidade, o que a fez ser criticada por James Madison. Combatendo a moral
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sexual da época, ela começa a fazer discursos publicamente em sentido contrário
às amarras formais do casamento. Ela compartilhava o amor à educação de Mary
Wollstonecraft para a autonomia das mulheres, apostava na igualdade social de
Robert Owen, o que a fez se aproximar do movimento dos trabalhadores, e era
considerada tão arrogante quanto Flora Tristan.
Porém, Wright muda completamente quando descobre que está grávida. Ela
se isolou e casou com o pai de sua filha em 1831, apesar de não conseguir ter com
ele uma relação satisfatória. Não conseguiu sucesso ao tentar retornar à vida
pública. Mesmo quando foi viver na França não entrou em contato com o
feminsimo francês entre 1830 e 1840, apesar de compartilhar de idéias
semelhantes. Apesar disso, Fanny Wright era admirada pelas líderes do
movimento pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos, Elizabeth Cady Stanton e
Susan B. Anthony. Em contrapartida, sua filha abraçou o cristianismo e foi contra
todas as idéias da mãe. Pensava que o feminismo era terrível por tentar tirar as
mulheres de suas casas e de suas famílias, negligenciando suas responsabilidades
no que se refere à criação das gerações posteriores.
Existia nesssa época, portanto, uma possibilidade mais subversiva,
conforme visto nos exemplos anteriores, em que os fundamentos da sociedade
eram abalados, pois começava no feminismo, não só com a crítica do papel da
mulher, mas também invadia instituições como o casamento, a escravidão e a
desigualdade social. Todo um aparato de controle, de dominação era posto em
xeque com a crítica produzidas por essas feministas, apontando, mais uma vez,
que os movimentos, as linhas de fuga se cruzam em pontos comuns e se o poder
constituinte deixa de lado alguns de seus braços, ele deixa de ser constituinte,
passa a ser constituído, pois é justamente nesse momento que os esforços em
sentido contrário à revolução, a pressão para impedir o processo de liberação
começam a aparecer. Esses momentos ficaram claros tanto na revolução
americana quanto na francesa. De qualquer forma, o importante agora é ressaltar
que nessa época, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, o feminismo
conhecido como reformista é o que consegue maior adesão e não o revolucionário.
A religião novamente consegue afetar o feminismo, porém, se no início da
Idade Média ela servia de amparo por dar outras possibilidades além do
casamento às mulheres e seus fundamentos eram utilizados para reivindicar a
igualdade. Agora não se pode dizer o mesmo. O chamado de Deus para as
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mulheres, brancas ou negras, casadas ou solteiras, era reestruturar moralmente a
sociedade. O reformismo teve grande influência nos Estados Unidos, nas
associações que ajudavam os doentes, os pobres, os escravos que fugiam e
precisavam de apoio na transição para a liberdade e no feminismo não foi
diferente. Tudo isso com o apoio da Igreja. Grupos como Female Moral Reform
Society (FMRS) e o Female Benevolent Reform Society (FBRS) se dedicavam a
resgatar prostitutas e criticavam a dependência econômica feminina, bem como o
monopólio da maior parte das profissões pelos homens. Essas duas instituições
mantinham escritórios que ajudavam na busca de emprego, creches, hospitais e
reivindicavam faculdades com o apoio público para as mulheres, punição para os
homens que cometessem abuso sexual, adultério e sedução, bem como reforma na
lei para permitir que as mulheres casadas pudessem cuidar de sua propriedade.
É importante colocar que a maior parte das reformistas ignoravam as
questões raciais, enquanto que para as negras, o feminismo, a raça e os problemas
econômicos e sociais estavam intrinsecamente conectados. Maria W. Miller
Stewart (1803-1879) era uma americana negra e livre que conseguiu projeção ao
falar em público, defendendo que a república deveria se comprometer com a raça
dela. As mulheres negras também organizaram instituições de assistência mútua,
serviços comunitários e capacitação. Maria Stewart era sensível aos problemas da
escravidão, mas o que mais chamava sua atenção era a condição social dos negros
americanos libertos, não muito melhor do que a dos escravos. As negras estavam
condenadas aos trabalhos domésticos, sem possibilidade de desenvolverem a
capacidade intelectual. Em suas falas, Maria Stewart começa a defender uma
união entre os negros, para construir a sua própria independência e reivindicar
seus direitos. Aqui pode-se notar que a partir da arborescência instaurada no
feminismo reformador americano, surge as bases para que a luta feminista seja
dividida, ao contrário dos pontos em comum difundidos pelas revolucionárias.
Stewart inicia uma discussão que será levada adiante pelo feminismo negro
americano no final do século XIX.
A primeira organização feminista contrária à escravidão foi formada em
1825, na Inglaterra e em 1832, isso se repetiu nos Estados Unidos, tanto em Nova
York quanto em Massachusetts. O interessante é que na maioria dos casos das
organizações fundadas por mulheres brancas que combatiam a escravidão, as
mulheres negras não eram bem recebidas nos grupos, sendo muitas vezes
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112
preferível a participação de homens negros
112
. Nos Estados Unidos essas
organizações ganham dois apoios inesperados, vindo de duas irmãs de uma
família tradicional, proprietária de escravos. Sarah (1792-1873) e Angelina (1805-
1879) Grimké desde cedo questionavam a escravidão, causando turbulência na
família. Sarah conseguiu escondida ensinar sua empregada a ler e também se
incomodava com a estrutura patriarcal, que estimulava os estudos de seus irmãos,
porém, desqualificava e não apoiava os dela. Primeiro Sarah viu como única
saída, seguir uma vida religiosa. Foi para a Filadélfia se juntar a um grupo
Quaker. A mais nova tentou transformar seus parentes e amigos, ao falhar, decidiu
encontrar sua irmã no norte. Ambas conseguiram crescer no debate contrário à
escravidão e suas falas atraíam tanta gente que passaram a ser em Igrejas e centros
de convenção, apesar de eventualmente as irmãs serem associadas à perigosa
Fanny Wright.
É importante constatar que na primeira metade do século XIX o feminismo
era bastante diversificado, como visto, atrelado às mais diversas lutas. Na segunda
metade do século XIX as organizações ficaram mais forte e ganharam uma certa
estabilidade. É precisamente esse o marco da primeira onda de feminismo. O seu
ápice é a luta pelo voto feminino, conseguido em geral durante ou após a Primeira
Guerra Mundial. É um movimento que já surge composto de muitos, que tinham
em comum o objetivo de liberar as capacidades das mulheres. Porém, em sua
grande maioria, a participação era mais efetiva entre as mulheres brancas e de
classe média, o que irá influenciar nos destinos do movimento. O momento era de
industrialização e avanço do liberalismo, por esse motivo, alguns liberais como
John Stuart Mill entendiam ser essencial para a evolução do sistema e liberação da
sociedade a emancipação das mulheres
113
. Em conjunto com a industrialização e
com a diversificação de classes, a pobreza, a tensão entre classes e raça sofreram
um aumento. Essa era a conjuntura da época.
As principais questões da primeira onda de feminismo dizem respeito e dão
mais importância à propriedade do que aos problemas econômicos e raciais da
época. A atenção especial era voltada para a insatisfação com o controle das
112
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 182.
113
O autor escreveu uma obra intitulada Subjection of Women para discutir o problema. Quando se
casou fez questão de deixar claro que era um casamento entre iguais, que de nenhuma forma teria
qualquer direito a mais na relação do que sua mulher. Cf. PATEMAN, C., The sexual contract, p.
124.
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113
propriedades da mulher pelo marido, mostrando que um alvo importante estava
nas classes mais altas e não propriamente nos problemas das demais mulheres.
Porém, também havia quem se preocupasse com a independência econômica da
mulher casada e com a promoção de condições para que as mulheres solteiras
conseguissem se sustentar. O impedimento à educação, a interdição de algumas
profissões às mulheres e a representação delas na política feita através dos homens
também foram objeto de crítica, o movimento pelo sufrágio teve especial
importância.
No início da segunda metade do século XIX os Estados Unidos viram serem
realizadas diversas convenções para promover a igualdade das mulheres. O
Canadá e a Inglaterra experimentaram campanhas que faziam pressão por um ato
da propriedade da mulher. Em 1856 foi encaminhada uma petição na Inglaterra
pela reforma no ato da propriedade da mulher casada por Barbara Smith Bodichon
e Bessie Raynon Parkes. A Suécia passou por isso em 1873. O casamento era
atacado especialmente na classe média e alta, pois este era o tipo de mulher que
dependia mais do marido. As de classes mais baixas precisavam trabalhar e, por
mais que houvesse diferença entre seus salários e os de seus companheiros, elas
tinham uma autonomia por ajudar a trazer o dinheiro e por muitas vezes controlá-
lo, conforme colocado anteriormente. Além disso, o trabalho doméstico podia ser
uma fonte de resistência, de imposição de freio diante da compulsão econômica
do momento. As transformações no tratamento da propriedade ainda eram
relevantes também para as lutas do sufrágio, uma vez que ambos estavam
relacionados.
O tema casamento ainda rendeu outra discussão, pelo menos no feminismo
cunhado pelas mulheres brancas, de classe média e alta, o debate sobre a
maternidade voluntária e, a partir daí, o controle por parte delas também sobre o
sexo. É importante ressaltar que muitas mulheres dentro do feminismo não
recebiam muito bem as discussões sobre métodos artificiais contraceptivos, pois
acreditavam que dessa forma o sexo seria nos termos dos homens, elas não teriam
o controle do próprio corpo. Esse raciocínio, apesar de parecer contraditório
dentro do feminismo, é de fácil compreensão na medida em que se leva em
consideração a moral sexual da sociedade Vitoriana, que dava ao homem o papel
de tomada de iniciativa, aquele que teria o prazer, e à mulher o papel de ser
reservada e de se preocupar com a reprodução.Os homens, portanto, teriam acesso
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ao prazer quando quisessem com a utilização dos métodos contraceptivos,
desconsiderando a autonomia da mulher em relação ao seu corpo. Em momentos
anteriores na história houve casos de defesa de uma libertação sexual para a
mulher, conforme visto. Porém, não houve uma generalização dessa posição,
partindo de um grupo, uma comunidade ou atrelado à teoria de um autor. Por esse
motivo, na segunda metade do século XIX as feministas suspeitavam do controle
artificial da concepção, com receio de que as mulheres se tornassem meros objetos
sexuais desconsiderando a tomada do controle do corpo por parte das próprias
mulheres, questão essa relevante, pois a violência doméstica e o estupro também
já eram alvo de discussão e luta no feminismo.
No que se refere ao desemprego feminino, na Alemanha se inicia um
movimento em 1865 para promover a educação e o acesso ao emprego para as
mulheres e em 1870 é fundada na França por Léon Richer e Maria Deraismes a
Sociedade para a Melhora da Condição da Mulher, que pleiteava não somente a
educação, mas também o retorno do direito ao divórcio, excluído do ordenamento
por Napoleão, e também o direito ao controle da propriedade por parte da mulher
casada. Entre os anos de 1860 e 1870 a Russia é atingida por uma série de
movimentos em defesa do acesso à universidade por parte das mulheres, como um
mecanismo de aumentar as possibilidades de emprego
114
. O emprego e a educação
eram reivindicações tanto para as mulheres casadas, conquistando autonomia,
quanto para as solteiras, que precisavam de fato encontrar formas para se
sustentar. A saída das mulheres para o trabalho gerava uma série de conflitos. O
socialismo ao longo das décadas de 1860 e 1870 chegou a defender a restrição a
114
A Faculdade de Oberlin, nos EUA, já permitia a presença de mulheres (1837), mas até 1859
elas não podiam aparecer na frene de um auditório misto ou ler seus trabalhos em voz alta. A
Inglaterra viu surgir a Faculdade de Girton, em Cambridge, voltada para mulheres em 1874,
fundada a partir das lutas de Emily Davies. A Universidade de Zurique foi a primeira na Europa a
aceitar mulheres, em 1864. Nos EUA, ao longo da década de 1880, ainda surgiram Vassar, Smith e
Wellesley, para dar uma formação acadêmica às mulheres. As escolas secundárias na França
abriram para as mulheres em 1880, mas não as preparavam para ingressar na Universidade. Para
isso, elas estudavam sozinhas. A Alemanha e a Áustria somente permitiram o acesso das mulheres
às universidades após a virada do século XIX para o XX. Cf. LEGATES, M., In their time: a
history of feminism in western society, p. 203 et. seq.. Por último, é interessante ressaltar a
condição de Harvard. Fundada em 1646, Harvard somente aceitou mulheres em 1879 e para isso
criou uma outra instituição chamada Annex, para que as alunas tivessem aula com os professores
de Harvard distante dos homens. O diploma era diferente, considerado de segunda classe. Somente
em 1943 houve uma turma que saiu do anexo para freqüentar o campus da Universidade e os
diplomas somente recebera o nome de Harvard em 1963. Porém, somente em 1999 os diplomas
das mulheres que se formavam em Harvard pararam de vir com a diferenciação Harvard-Radcliffe,
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115
mulher no trabalho fora de casa, pois a união familiar deveria ser preservada, com
fundamento em um dos ramos do socialismo utópico
115
. A década de 1880 trouxe
uma nova perspectiva de socialismo, com Karl Marx, que segundo LeGates,
atribuiu o ingresso da mulher no mercado de trabalho ao desenvolvimento do
capitalismo. Para a corrente feminista surgida a partir dessa perspectiva, as lutas
das mulheres pela emancipação seriam esforços inúteis da burguesia, pois essa
conquista estaria necessariamente atrelada à emancipação da classe operária.
A educação para mulheres era muito criticada, pois acreditava-se que o
corpo feminino, com estrutura mais frágil, não havia sido feito para suportar
esforços mentais. Os defensores da educação das mulheres começaram a incluir
nos currículos a ginástica, com o objetivo de fortificar, evitar problemas nervosos
e facilitar o aprendizado. A saúde física das mulheres era essencial para o bom
desempenho na educação. Essa reforma curricular começa a produzir efeitos nas
vestimentas, na moda burguesa, uma vez que como já dito, as mais populares
tinhsm maior liberdade de movimento nesse aspecto. As feministas começam a
reivindicar uma revolução nas roupas. Porém, a maioria cede às pressões sociais e
da moda e não modifica definitivamente a forma de se vestir, mesmo porque, a
maior parte das mulheres que começam a trabalhar, como as primeiras médicas,
prefere seguir o conselho de seus superiores e familiares e se vestir de forma
feminina.
O voto feminino foi um tema bem controverso ao longo da primeira onda do
feminismo. Em um primeiro momento, esta foi uma reivindicação considerada
muito radical pela maior parte das feministas. Como exemplo, em 1848 houve um
encontro em Seneca Falls entre trezentas pessoas, incluindo Elizabeth Cady e
Lucretia Mott, para definir os principais pleitos e o voto feminino foi o único tema
que teve aprovação sem unanimidade no grupo em função de sua radicalidade.
Havia o receio de que a defesa do voto das mulheres desmoralizasse o movimento
por ser uma questão muito difícil de ser posta em discussão de forma séria na
época. Uma década após esse encontro, as feministas se recusaram a discutir o
instituto que substituiu o Annex. O GLOBO, Harvard, enorme desafio para uma feminista, p. 28,
18 de fevereiro de 2007.
115
Essa foi a concepção de um grupo de socialistas alemães que emigrou para os Estados Unidos,
defendendo a restauração da unidade familiar, pesquisada por Mari Jo Buhle em sua obra Women
and american socialism, um dos objetos de análise de LeGates. LEGATES, M., In their time: a
history of feminism in western society, p. 212.
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116
voto na Inglaterra pelo mesmo motivo: era uma reivindicação muito radical e
poderia fazer suas lutas caírem em descrédito. O mesmo problema aconteceu na
Alemanha e no Canadá, sendo que neste último país somente em 1883 houve
força para estruturar um movimento em Toronto a favor do voto da mulher. A
França viu essa questão ser rejeitada por dois congressos sobre direitos das
mulheres, em 1878 e 1888, por ser perigosa em demasia.
As mulheres que lutavam por independência econômica e direito à educação
eram consideradas moderadas na Europa, porém, as que defendiam o voto eram
conhecidas como radicais nesse momento. O voto era polêmico porque nessa
sociedade a conquista desse direito significava um acesso direto à condição de
cidadã, ultrapassando a estrutura patriarcal de representação da mulher. Um dos
argumentos dados por muitos envolvidos com política, não somente
conservadores, mas também de esquerda, para desconsiderar a hipótese do voto
das mulheres era o medo da Igreja ganhar força com o suporte delas. Léon Richer
(1824-1912), um dos fundadores da Associação pelos Direitos das Mulheres, em
1870, pensava dessa forma, acreditando que ainda havia uma grande lacuna na
educação das mulheres se comparadas à dos homens, o que viciaria o voto
feminino. Hubertine Auclert (1848-1914), francesa que tinha afinidade com as
idéias de Elizabeth Cady Stanton, foi quem não desistiu da bandeira do voto. Ela
foi à Paris reivindicar a demanda, pois acreditava que não haveria república se as
mulheres não tivessem direito ao voto. Atribuía o direito ao voto dos homens não
a uma educação melhor, mas sim à questão do sexo. Foi por esse motivo que
Hubertine Auclert ficou conhecida como a militante feminista mais importante na
França do final do século XIX.
O lapso temporal entre as primeiras reivindicações a favor do voto das
mulheres e a efetiva conquista foi significativo, exigindo muito das defensoras do
sufrágio das mulheres, que em sua maioria era de mulheres vindas da classe média
e classe alta. Porém, é importante esclarecer que as afro-americanas e afro-
canadenses também viam no voto um papel fundamental, qual seja, a chance de
melhorar suas condições de vida e de trabalho, garantir a educação e acabar com
os abusos sexuais. Podem ser citados alguns exemplos que retratam tal afirmação.
A primeira mobilização na defesa desse direito nos Estados Unidos foi em 1848,
porém, somente em 1920 as americanas viram tal reivindicação ser atendida. As
Inglesas esperaram de 1865 a 1918 para ter um sufrágio parcial, porém, o
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117
completo somente se deu em 1928, cabendo ressaltar que o confronto entre as
mulheres e as autoridades eram muitos, sendo o mais famoso o ocorrido em 1810,
que ficou conhecido como Sexta-Feira Negra. A Suíça somente foi ter sua
Federação pelo Voto Feminino em 1909 e as mulheres somente tiveram esse
direito garantido em 1971. A França é um caso ainda mais interessante, pois as
primeiras manifestações pelo voto feminino começaram em 1787 e a conquista
somente foi obtida em 1944.
Nesse momento de primeira onda do feminismo pode-se fazer uma divisão
entre duas grandes vertentes do movimento feminista: a corrente liberal, também
identificada como a corrente que pregava uma igualdade de direitos, e a corrente
maternal ou social, que partia mais da diferença entre os sexos para se
fundamentar do que da igualdade. A primeira corrente se apegava à igualdade
existente entre todos os seres humanos. Talvez generalizá-la e denominá-la como
uma corrente liberal por defender a igualdade de direitos não seja tão adequado.
Isso porque há realmente uma perspectiva que interpreta dessa forma os direitos
reivindicados por essa corrente. Porém, como visto no capítulo anterior, existe
outra concepção de igualdade trabalhada por Rancière que pode contribuir para o
entendimento dessas propostas. Pode-se fazer incidir de forma análoga o exemplo
levantado pelo autor na questão sobre os plebeus: se eles falam ou não. Da mesma
forma em que a estrutura de poder defendia que eles não eram iguais e por isso
não falavam, não eram dotados dessa capacidade, essa mesma estrutura deveria
forjar uma explicação para convencer os plebeus de que não possuíam tal
capacidade. Para isso, era necessária a utilização e o apelo justamente à
capacidade de fala e de compreensão dos plebeus, realidade, ou sensível, em
conflito com a polícia no sentido atribuído por Rancière. Sendo assim, o poder
produziria uma contradição interna, pois para justificar a desigualdade, ele
assumiria a igualdade, mostrando, dessa forma, a igualdade entre eles e os
plebeus. Nesse sentido, pode-se identificar na corrente chamada liberal, que não
seria absurdo partir da igualdade. Não se pretende negar as diferenças, mas sim
expor que há uma igualdade e que a polícia, ou o poder constituído, ao longo das
experiências aqui narradas, se esforçou para negá-la, justamente por assumir sua
existência, criando todo o aparato para demonstrar/forjar o motivo pelo qual as
mulheres não devem ser consideradas iguais, ou não devem possuir certos
direitos, como a administração de suas propriedades ou o voto.
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118
O feminismo maternal tinha como principal característica a defesa da
diferença entre os sexos, fundada na experiência da maternidade, no instinto
maternal supostamente inerente a todas, ressaltando o papel da mulher na família.
A mulher teria uma moral única e um papel pacificador na sociedade, um discurso
inspirado em Rousseau. Essa corrente ganhou muita força com o avanço da
industrialização e todas as conseqüências nefastas delas. A intervenção feminina
era considerada de grande importância para frear a competição. As liberais
pretendiam introduzir a liberdade e a igualdade na esfera pública e na esfera
privada, na família. As mulheres ligadas ao feminismo maternal tinham como
objetivo estender toda a virtude da família promovida pelas mulheres para a
sociedade como um todo.
Obviamente, a diferença é estática e pode ser muito significativa quando se
olha exclusivamente para a teoria. O que se percebe na prática é que muitas vezes
essas vertentes se esbarraram, tendo muitas sufragistas discursado sobre uma
essência feminina. Por esse motivo, há realmente no feminismo uma ausência de
clareza no plano teórico, o que gera também problemas de coerência na
argumentação, que ora apelava para a igualdade, ora ressaltava as diferenças. Para
evitar esse tipo de confusão, há a alternativa de chamar de feminismo apenas os
movimentos que pretendiam alterar as estruturas sociais e familiares da época e a
hierarquia entre os sexos, ressaltando que qualquer defesa de papéis sexuais
previamente estabelecidos e compreendidos como inviáveis de serem alterados
deveria ser analisada como algo que reafirma a hierarquia.
Apesar da necessidade de representação das mulheres por parte dos homens,
tanto no que diz respeito às questões familiares quanto na esfera pública, o que as
mulheres do feminismo maternal pretendiam era continuar mulheres, se
comportanto como tal, não queriam se transformar em homens e nem dar apoio à
ideologia masculina que predominava na época. Elas não tinham como objetivo a
expansão das categorias masculinas para que estas passassem a incluí-las. O que
pretendiam era justamente criticar essas categorias. O feminismo maternal partia
da experiência da maternidade, mas não se restringia à maternidade biológica. A
noção era mais ampla, pois se falava em maternidade de toda uma sociedade. A
pressão realizada por esse movimento nos Estados Unidos fez surgir algumas
políticas interessantes e relevantes para a sociedade como o estabelecimento de
jardins de infância, parques para as crianças, água potável, bibliotecas e hospitais,
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119
que passaram a ser questões de políticas públicas. Mesmo o feminismo maternal,
com todas as críticas a ele realizadas em razão especialmente de uma visão dual
da sociedade em masculino e feminino atribuindo um papel previamente
estabelecido a homens e mulheres, foi capaz de produzir as suas revoluções nos
problemas sociais.
Apresentadas as conquistas que se fundamentaram no feminismo maternal,
deve-se ainda ressaltar a sua importância como uma estratégia de aceitação
adotada por essas mulheres. Sem dúvida, aos olhos da sociedade, seria mais fácil a
sua aceitação se comparado ao feminismo liberal. O apoio era necessário para que
houvesse a conquista de direitos, somente assim, o movimento conseguiria ter
espaço para causar impacto, era essa a sua justificativa estratégica de existência.
Outros fatores importantes fizeram esse segmento ganhar força. Um exemplo
deles foi a queda na taxa de natalidade assustadora vivida na França no final do
século XIX
116
. O feminismo maternal pretendia deixar de lado a figura da mulher
que provoca rupturas no poder constituído, ou na polícia, imagem essa muito
afirmada no ano de 1871, em Paris, especialmente por mulheres como Louise
Michel e Paule Mink, participantes das barricadas dos trabalhadores ao lado de
homens. A estratégia ainda tinha a função não só de ganhar o apoio social, como
também de conseguir ampliar o número de mulheres atraídas para o feminismo,
como as mais conservadoras, as católicas. O discurso era a ampliação dos direitos
das crianças e das mulheres. No movimento negro ela forneceu argumentos para
que as afro-descendentes conseguissem combater a crença de que elas seriam
imorais e teriam uma sexualidade exacerbada.
O feminismo maternal tinha as suas propostas e, novamente, conseguiu
transformações na sociedade, porém, ele caía no risco de limitar o movimento, na
medida em que partia de um modelo de mulher, qual seja, o de uma mulher
necessariamente mais virtuosa e que teria a função de expandir a sua honra por
116
A queda na taxa de natalidade nos países ocidentais hegemônicos no período da primeira onda
de feminismo provocou susto na sociedade. Argumentos racistas começaram a ser utilizados,
responsabilizando o feminismo por fazer com que a população branca recuasse, enquanto que a de
negros não era reduzida. A “culpa” por tal fato era da emancipação feminina, ao menos da
emancipação que acontecia entre as das classes mais elevadas. É interessante observar que nesse
momento existiam mulheres nos Estados Unidos, Holanda, Inglaterra, França e Alemanha que se
posicionaram inteiramente a favor do controle de natalidade e do aborto. Em 1908 a Alemanha já
discutiu a descriminalização do aborto, proposta feita pela Federação das Associações das
Mulheres Alemãs. Elas somente perderam porque os conservadores conseguiram um apoio de
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120
toda a sociedade. As implicações desse discurso podem ser devastadoras, pois
gera uma elevada expectativa no comportamento da mulher, sendo qualquer
deslize cometido por ela muito mais grave do que o ato em si. A sociedade acaba
observando, fiscalizando e punindo mais o comportamento da mulher, com base
na chamada moral Vitoriana. Sendo assim, apesar do feminismo maternal ter
conquistado um público amplo, existiam outras formas de desafio aos valores
sociais da época a partir de outros feminismos, especialmente no que diz respeito
às feministas mais novas, que aderiram ao movimento a partir de 1890 e
conseguiram freqüentar uma universidade e conquistar a idependência econômica.
Estas tinham o objetivo de provocar abalos na estrutura da sociedade Vitoriana.
Tal feito reforça a concepção de uma primeira onda mais radical na crítica ao
casamento, à moral, à distribuição do trabalho fora e em casa, com a discussão
sobre a profissionalização do trabalho doméstico e sua coletivização, sexualidade
e religião. O número de mulheres que se mantinham solteiras para apostar na
carreira crescia dentro dos movimentos. A recusa ao casamento era considerada
uma greve silenciosa que enfrentava a hegemonia dos homens, bem como a
estrutura necessariamente heterossexual na família.
A base teórica da discussão e da crítica acerca do modelo de família
heterossexual surgiu no debate acadêmico nos Estados Unidos, a partir de
pesquisas elaboradas pela psicologia e pela antropologia, que colocavam em
xeque a noção de uma diferença sexual inerente à natureza humana, trabalhos
desenvolvidos especialmente por Helen Bradford Thompson e Elsie Chews
Parsons, que causavam distúrbios nas concepções morais da época sobre
sexualidade e raça. As pesquisas tiveram, obviamente, recursos muito escassos e
por isso o avanço nelas foi dificultado. Porém, certamente houve impactos sociais,
tanto que para atender a determinados interesses do poder, os recursos acabaram
sendo limitados.
Por fim, além do feminismo liberal e do feminismo maternal, também foi
consolidado nesse momento o feminismo socialista. As teorias socialistas
conseguiram conquistar a simpatia de muitas mulheres com a questão da luta de
última hora das mulheres religiosas. LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western
society, p. 260.
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121
classes e algumas chegaram a fundar ou se filiar a partidos socialistas
117
. Aqui não
se pretende tratar do socialismo detalhadamente ou realizar uma abordagem dos
autores e sim mostrar a participação delas e os motivos pelos quais a relação entre
esses dois movimentos foi complicada. O feminismo e o socialismo pareciam ser
dois movimentos intrinsecamente aliados. Os partidos de cunho socialista eram os
únicos a defender a igualdade política e econômica das mulheres, já que o
objetivo era a emancipação de todos os grupos oprimidos, a liberação das
mulheres seria uma conseqüência do processo de liberação como um todo. Por
esse motivo, muitos dentro do socialismo entendiam que não se deveria promover
uma guerra dos sexos no interior do movimento, para evitar a desagregação e um
desvio no processo revolucionário, dificultando as transformações. Além disso,
conforme dito anteriormente, muitos viam o feminismo como um movimento
tipicamente burguês, pois entendiam que as mulheres queriam ser incluídas na
estrutura capitalista e não reivindicavam transformações sociais.
É importante ressaltar que os valores patriarcais estavam também enraizados
na classe trabalhadora, apesar de ser em grau diferente, conforme analisado
anteriormente, e no próprio socialismo, quando se observa o que acontecia nas
famílias. A declaração da sufragista Hannah Mitchell após seu casamento é
significativa, pois descobriu que apesar de socialista, seu marido ainda esperava
dela jantares aos domingos e chás com tortas e bolos caseiros, assim como os seus
companheiros reacionários tinham em suas casas
118
. Um exemplo desse
comportamento é a casa dos Marx, que, nas palavras de Michelle Perrot, era
judia em sua estrutura muito patriarcal, vitoriana em seus costumes e atravessada
por um grande projeto que faz sua unidade e solda seu destino. (...) Marx, - “o
Mestre”, Mohr, Challey, Old Nick, etc., a abundância de apelidos sublinham sua
presença – domina com sua estatura esta tribo sobre a qual ele reina, déspota
afetuoso e tirânico. Suas filhas dedicam-lhe um verdadeiro culto. Vaidosas como
colegiais, elas procuram seus nomes em suas cartas, fingindo ciúmes se ele
menciona mais uma do que outra. Cúmplices, elas lhe fazem provocações sobre
suas amizades mundanas ou femininas, preocupadas também em mostrar-se à
altura dele, por suas leituras ou sua cultura política
119
.
117
São exemplos disso Sylvia Pankhurst na Inglaterra, Lily Brown na Alemanha e Madeleine
Pelletier na França. Cf. LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p.
270.
118
Ibid., p. 271.
119
PERROT, M., As mulheres ou os silêncios da história, p. 49. Nessa parte Perrot inicia uma
análise das trocas de cartas entre as filhas de Karl Marx. Mostrando a estrutura de sua família,
Perrot compara Marx a Freud quando o assunto é mulher, pois o autor impediu sua filha mais
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122
Por esse motivo, as questões de exploração e dominação de classe e de sexo
até poderiam ter semelhanças, mas o fim da primeira não necessariamente
implicaria também no fim da segunda, sendo esta uma luta sem sentido, conforme
muitos socialistas entendiam. Os homens até estimulavam a filiação das mulheres
aos partidos socialistas, porém, na maioria dos casos por uma questão de
solidariedade familiar, pois o grande inimigo a ser combatido era o capitalismo e
não os homens, como eles diziam que pretendiam as feministas burguesas. O
feminismo socialista acabava tendo que dar prioridade à questão da classe em
função dos próprios socialistas. Um exemplo bem interessante que demonstra que
a causa feminista ficava em segundo plano é o da autora e ativista Alexandra
Kollontai
120
. A autora propôs a fundação de um clube de mulheres em 1905 aos
bolcheviques e conseguiu no comitê de São Petersburgo, a princípio, a garantia de
da realização do encontro. Porém, ao chegar no local, ela recebeu um aviso de que
o encontro de mulheres estava cancelado, sendo permitido somente a presença de
homens naquele dia.
A cooperação entre os socialistas e as feministas somente conseguiu seguir
em frente em lugares em que havia essa tradição na esquerda. Essa cooperação
ocorria basicamente em defesa do voto feminino, em lugares como a Suíça e o
Canadá
121
. Porém, na França as feministas socialistas ainda se encarregavam de
arrecadar mulheres para o movimento, ressaltando no discurso a dupla dominação
a qual a mulher estava submetida, mas ao mesmo tempo defendendo que as
mulheres não deveriam deixar a luta de classes para se dedicar a uma mera
emancipação dentro do terreno típico da burguesia, como foi o exemplo de Louise
Saumoneau (1875-1950). Poucas eram as feministas socialistas que mantinham
um interesse principal no feminismo. Madeleine Pelletier (1874-1939) ficou
conhecida como uma das feministas mais radicais de sua época. Conseguiu ser a
primeira mulher empregada pelo serviço de psiquiatria da França e uma das
poucas em um cargo executivo no Partido Socialista francês. Ela comparou a sua
baixa aceitação entre os socialistas com a baixa aceitação no meio médico,
nova, Eleanor de se casar com o homem que queria por ser pobre e aventureiro. Sua filha, então,
cai em depressão, Marx a chama de histérica. Laura, a filha do meio, somente conseguiu
autorização do pai para o casamento após o pai do noivo apresentar condições financeiras muito
boas. Tal fato o próprio Marx narra a Engels em 23 de agosto de 1866. p. 53.
120 Autora de Marxisme et révolution sexuelle, um dos grandes nomes do feminismo socialista.
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123
entendendo não haver diferença entre os dois grupos no que se refere às mulheres.
Foi uma das poucas a declarar que as mulheres poderiam ser socialistas,
monarquistas ou republicanas, mas acima de todas as convicções, deveriam ser
feministas.
A primeira onda do feminismo se prendeu fortemente à luta pelo voto das
mulheres e, pelos motivos e questões apresentadas anteriormente, não conseguiu
conjugar forças nem com as lutas referentes à raça, nem com as referentes à
classe, apesar de inúmeras mulheres serem alvo comum de todos esses
mecanismos de dominação. Por esse motivo, a primeira onda de feminismo foi
muito criticada, não sendo no geral revolucionário e sim carregando os
preconceitos da época. Porém, na verdade, a primeira onda foi constituída de
inúmeros movimentos, sendo dotada de grande complexidade, pois esses
movimentos ora se aproximavam, ora se repeliam, de acordo com as condições
peculiares de cada local.
3.5
O impacto da segunda onda do feminismo na década de 1960
A segunda onda de feminismo tem como marco importante o ano de 1968.
Após a primeira onda, houve uma sensação de que o feminismo teria perdido o
seu sentido, de que as questões já estariam superadas. Sendo assim, olhar para
esse período de explosão do movimento feminista parece assustador, como se elas
tivessem ficado tanto tempo em silêncio e nesse momento resolvessem retomar
um processo revolucionário esquecido. De fato, na década de sessenta do século
XX o feminismo ganha destaque na Europa e nos Estados Unidos, assim como
também acontecia com o movimento negro desde da década de 50. Nessa época,
ganha bastante espaço na mídia a luta das mulheres contra mecanismos de tortura
aos quais as mulheres estavam submetidas como forma de controle de seus
corpos, desde peças do vestuário tipicamente feminino, salto alto, passando por
cílios postiços, penteados, até mesmo concurso de miss e revistas masculinas. Foi
a primeira vez no intervalo de aproximadamente duas gerações que muitas
mulheres começaram a se declarar como feministas.
121
LEGATES, Marlene, In their time: a history of feminism in western society, p. 273.
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124
Sem dúvida, a grande maioria na época não tinha noção da dimensão dos
esforços que suas antecessoras fizeram e todos os problemas enfrentados para
driblar pelo menos alguns dos mecanismos de freios que o poder constituído
colocava ao avanço dos direitos das mulheres. Por isso, o débito com o passado
era muito maior do que se imaginava, como expõe LeGates
122
. A segunda onda de
feminismo parece estar distante da primeira, mas na verdade as atividades
continuaram nos períodos entre as Grandes Guerras Mundiais e no período entre a
Segunda Guerra e a década de 1960.
Durante a Segunda Guerra, as mulheres estavam distantes de seus maridos,
que se encontravam nas batalhas. As mulheres, ao contrário, estavam em suas
casas. Muitas por necessidade financeira e até mesmo por um estímulo do Estado
assumiram trabalhos e funções em seus países tradicionalmente masculinos,
porém, foram postos que ficaram desocupados durante a guerra em função da ida
dos homens ao campo de batalha. A ida das mulheres para a ocupação desses
postos foi necessária, mas após a guerra muitas se recusaram a voltar para as suas
casas e devolver seus trabalhos aos homens.
A Segunda Guerra foi diferente para a experiência da mulher, pois todos
estavam mais submetidos às invasões e ocupações, homens e mulheres. Muitas,
portanto, assumiam funções iguais às de homens durante a guerra e formavam um
grande grupo na resistência ao avanço do Nazismo. Por esse motivo, pode-se dizer
que a experiência delas ao longo da Segunda Guerra foi bastante diferente da
Primeira. Porém, se havia algo semelhante era o tratamento dado às mulheres pela
propaganda e pela literatura ao longo das duas guerras, com imagens que as
colocavam como prostitutas portadoras de doenças ou espiãs que faziam uso da
sedução para conseguir o que queriam. Em ambas as guerras as mulheres
estiveram presentes no mercado de trabalho, mas ganhando menos do que os
homens para exercer as mesmas funções e com expectativas de que ao término da
disputa elas retornariam a seus lares, à maternidade e à família.
Na Inglaterra houve legislação prevendo que o trabalho das mulheres
duraria apenas enquanto perdurasse a guerra. Nos Estados Unidos houve protestos
no final da Segunda Guerra, pois as mulheres passaram a ser discriminadas em
seus locais de trabalho, não somente por seus superiores mas também por colegas
122
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 327.
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125
homens, mas a experiência ao longo das guerras fez com que elas tentassem
ultrapassar os obstáculos no pós-guerra. Um dos argumentos para manter os
salários das mulheres em um patamar inferior era o fato do trabalho delas ser
considerado mais leve do que o exercido por homens. Na Inglaterra a situação não
era diferente, as mulheres ganhavam em média 52% do salário dos homens, com o
objetivo de que elas preferissem ser mães ao trabalho fora de casa. Havia mais um
agravante para aqueles que lutavam por transformações após o término da
Segunda Guerra. O comunismo era um grande fantasma para o mundo ocidental.
O clima da Guerra Fria fez com que se criasse um reforço em torno da
importância da estabilidade familiar para o ocidente. Qualquer um que a partir daí
tentasse criticar a estrutura familiar, a distribuição de funções dentro de um
casamento, seria alvo fácil de perseguição. O Macartismo nos Estados Unidos
acabou conseguindo por fim ao Congresso da Mulher Americana, uma coalisão
entre mulheres de classes e raças diferentes fundada em 1946 e que em seu
primeiro ano reuniu duzentos e cinqüenta mil ativistas, entre eles a neta de
Elisabeth Cady Stanton e a sobrinha neta de Susan B. Anthony. Elas
reivindicavam a divisão do trabalho doméstico, creches públicas, legislação não-
sexista e reconheciam a dupla dominação exercida sobre as mulheres negras.
Apesar da grande quantidade de denúncias contra seus membros, muitas dessas
mulheres iriam participar da retomada do feminismo na década de 1960.
Nos anos de 1950 e 1960 foi popularizada uma imagem da família perfeita,
composta pelo pai, que era responsável por trazer a comida, a mãe, que cuidava da
casa e duas até quatro crianças por casal, que usufruiam de uma estabilidade
econômica e consumiam. Esse era o modelo de família
123
. Cabe ressaltar que a
imagem não faz jus aos grupos feministas ativos na época, como por exemplo o
Partido Nacional da Mulher (National Woman’s Party), fundado em 1913 e
sempre ativo, que se empenhava na Emenda por Direitos Iguais, adotada pelo
Congresso. O partido conseguiu levar ao Congresso ao longo da década de 1950
236 cartas de direitos das mulheres, apesar de ser formado basicamente por
mulheres brancas de classe média e refletir essa ausência de reconhecimento das
dificuldades sofridas pelas mulheres negras. A França ainda contava com a Liga
dos Direitos das Mulheres, fundada em 1869, porém, era a única organização do
123
LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 335.
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126
país que se intitulava feminista, ainda assim com um receio de que isso
aparentasse ser anti-feminino.
Um ativismo que já havia sido ensaiado em um momento anterior e que
ganhava força em 1950 era em torno da sexualidade, do controle de natalidade e
planejamento familiar por parte das mulheres. O esforço primário foi feito na
França, por um grupo de protestantes chamadas Jeunes Femmes, que conseguiu
levar a discussão para o espaço público. Também na França um outro grupo de
mulheres, chamado de Mouvement Democratique Féminin, conseguiu colocar a
necessidade de reforma no casamento em discussão a partir de 1961, ano de sua
fundação. A discussão aberta em relação ao aborto começa nesse período não
somente na França como também na Itália. Porém, essas eram questões que
tangenciavam mais as mulheres heterossexuais, que ainda tratavam com uma
maior naturalidade tanto o casamento como a maternidade. As homossexuais
começaram a se destacar nos Estados Unidos. Os únicos lugares que aceitavam a
presença de homossexuais homens e mulheres além de suas respectivas
residências eram os bares, desde a década de 1930. Em 1950 se consolida essa
cultura nos bares, com homens e mulheres reproduzindo o comportamento
feminino ou masculino conforme a identificação com a cultura dominante.
Obviamente transgredir os papéis convencionais é bastante significativo, o
problema é reproduzir o mesmo comportamento e a mesma hierarquia de um
relacionamento heterossexual. Na década de 50 do século XX em São Francisco
nasce a primeira organização política estabelecida por lésbicas e dedicada à sua
causa.
O grande marco teórico do feminismo em sua segunda onda foi Simone de
Beauvoir (1908-1986). O seu trabalho intitulado O Segundo Sexo, de 1949, foi
escrito de forma isolada, sem contato com outras feministas da época
124
. Quando
lançado, o livro sofreu duras críticas das feministas por gerar interpretações
124
Beauvoir não recorreu a outras mulheres feministas de sua época, sendo essa obra fruto de um
esforço solitário. LeGates afirma que isso foi resultado de um fato, qual seja, ela foi aconselhada,
ainda estudante a cultivar mais o seu lado homem. LEGATES, Marlene, In their time: a history of
feminism in western society, p. 342. De qualquer forma, Beauvoir começa sua obra afirmando que
o feminismo já tinha rendido muito e que o tema estaria acabado, mas ainda assim insistiam em
retomar o assunto. A pergunta “o que é mulher?” ainda retornava e um dos aspectos mais
relevantes era o fato dos homens não se preocuparem em definir o que é homem, em suas palavras
“Um homem não começa nunca por se apresentar como um indivíduo de determinado sexo: que
seja homem é natural”, ao contrário da mulher, que começa se apresentado como tal. A mulher é
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contrárias ao corpo da mulher e causou grande controvérsia. Além disso, seu livro
foi considerado indecente por outras camadas sociais, sendo incluído na lista de
obras proibidas da Igreja Católica. A tradução para o inglês fez com que o livro
ganhasse projeção nos Estados Unidos, em 1952, o que contribuiu para modificar
a reação ao texto, que passou ser bem-sucedido
125
. Desse momento em diante,
muitas feministas das mais variadas áreas do saber reconheceram Simone de
Beauvoir como um grande marco para todas as mulheres. A importância da obra
de Beauvoir e a sua receptividade nos Estados Unidos podem também ter ligação
com a resposta que ela dá ao livro de Ferdinand Lundberg e Marynia Farnham,
chamado Modern Woman: the lost sex, de 1947, que chamava as mulheres que
insistiam em seguir no feminismo de neuróticas, uma vez que a igualdade já havia
sido conquistada. Se a igualdade já foi atingida, as mulheres não tinham mais
motivos para seguir com o feminismo, insistir nisso era considerado uma doença
para os autores.
O fato é que na década de 50 do século XX havia uma grande tensão entre
um modelo muito bem retratado nos meios de comunicação da família feliz e um
aumento nos casos de divórcio nos Estados Unidos. No início da década de 1960,
a grande maioria das donas de casa americanas não gostariam que suas filhas
tivessem o mesmo tipo de vida que elas levavam, assim como as jovens da época
não queriam para elas o mesmo caminho trilhado por suas mães. Na França, em
1966, os resultados eram os mesmos dos obtidos nos Estados Unidos. O trabalho
de Betty Friedan a partir de entrevistas realizadas com donas de casa de classe
média nos subúrbios americanos foi considerado de grande importância na época
para a constatação dessa infelicidade com o estilo de vida das mulheres, e, assim
como O Segundo Sexo, de Beauvoir, ele teve uma grande projeção. Porém, sofreu
críticas posteriores, por ignorar os problemas das mulheres das classes operárias e
das negras americanas, que em sua maioria trabalhava fora. A sugestão de Friedan
uma concepção construída a partir do homem, ela é o outro. BEAUVOIR, S., O Segundo Sexo: 1
fatos e mitos, Introdução, p. 11.
125
A projeção do livro nos Estados Unidos aconteceu, segundo LeGates, pela distância geográfica
do país da Europa. A Europa Ocidental não recebeu bem a obra em virtude de um compromisso da
autora com o socialismo existencialista em função de estar mais próxima geograficamente do
Leste Europeu LEGATES, M., In their time: a history of feminism in western society, p. 342.
Porém, esse argumento é complicado na medida em que as perseguições a qualquer um que
pudesse ter afinidade com o pensamento socialistas nos Estados Unidos foram duras e muito
famosas por isso. Porém, é importante ressaltar que no feminismo americano ele foi melhor
recebido e ganhou notoriedade, como um símbolo importante da segunda onda.
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128
para as mulheres era o trabalho fora de casa em funções que iam além daquelas
tradicionalmente associadas às mulheres, ou seja, professora e enfermeira, na
defesa também da igualdade de salários.
Apresentado de forma rápida o panorama da época, resta agora examinar a
partir de tal ponto quais foram os feminismos surgidos com as questões que
apareceram nesse período. Duas grandes correntes podem ser identificadas: a do
feminismo liberal e a do feminismo radical. A primeira corrente era muito
semelhante à corrente liberal da primeira onda. O que ela pretendia era a
igualdade de sexos, ressaltando o peso da discriminação produzida pela lei e pela
economia. Além disso, também fiscalizava possíveis atitudes sexistas. O
feminismo radical tinha como principal questão o combate à estrutura patriarcal,
sendo essa a responsável pelo domínio masculino. A atuação dessa corrente estava
mais voltada para a observação do comportamento na família e nas relações
interpessoais do que para a fiscalização da esfera pública e das relações de
trabalho.
A corrente pela igualdade de direitos decorre do funcionamento permanente
de grupos organizados como o National Woman’s Party e o National Federation
of Business and Professional Women’s Clubs desde o início do século XX nos
Estados Unidos. As mulheres que faziam parte desses grupos pretendiam por fim
à discriminaçãoe aumentar as oportunidades de empregos para as mulheres. Para
isso, elas constataram a necessidade de se criar uma comissão presidencial sobre
as mulheres, conseguindo fazer com que o presidente da época John Kennedy
cedesse às pressões. A Comissão Presidencial sobre o Status das Mulheres foi
constituída em dezembro1961. O interessante é que essa comissão não negava o
papel primordial da mulher dentro de casa em na criação dos filhos, sendo este
último como um dado físico.
Apesar dessas posições complicadas adotadas pela comissão, seus relatórios
apontavam de forma bem completa os tipos de discriminação sofridos pelas
mulheres americanas tanto na esfera econômica quanto na política. Porém, a
maior parte dos membros da comissão era contrária à Emenda da Igualdade de
Direitos, pois havia um receio de que tal medida poderia provocar uma redução
das leis que protegiam as mulheres no mercado de trabalho. Essa comissão teve
seu valor comprovado com uma medida bastante relevante em 1963, a realização
de comissões nas esferas dos estados compostas por advogadas, acadêmicas e
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129
líderes de diversas organizações para recolher materiais sobre a discriminações.
Essa foi uma movimentação importante para que se conseguisse incluir no Civil
Right Act de 1964 a discriminação de ordem sexual, apesar das mais diversas
reações em sentido contrário, que não depositavam confiança na efetivação da
Emenda. Cabe ressaltar que Betty Friedan foi uma das mulheres que se encheram
de coragem com a Comissão e com os movimentos pelos direitos civis e a
experiência especialmente do movimento negro na área. Nessa época o
movimento negro serviu como um bom exemplo para o feminismo no auxílio à
fundação de estruturas e estratégias de lutas, com muitas feministas reconhecendo
que elas precisavam de uma NAACP para mulheres. Foi nessa condição que
surgiu em 1966 a National Organization for Women. O que a organização
pretendia era incluir completamente as mulheres na sociedade americana, com
todas as possíveis participações, direitos e responsabilidade daí decorrentes. O
Canadá também viu esse mesmo esforço sendo feito com a junção de um grupo de
mulheres anglofônicas com a Féderation des Femmes du Québec em 1966, para
pressionar o governo a criar uma comissão voltada para as mulheres. Em 1970
essa comissão conseguiu elaborar 167 recomendações e formou a National Action
Committee on Status of Women para que elas sempre fossem revistas e
atualizadas. França, Inglaterra, Dinamarca, Holanda, entre outros países, também
viram comissões e esforços no mesmo sentido crescendo. A diferença entre a
primeira e a segunda onda de feminismo diz mais respeito ao grau de mudança na
sociedade. Se ao longo da primeira onda a estrutura quase não foi alterada de fato,
a segunda onda presenciou grandes transformações sociais e na família.
Paralelo a esses esforços, há também o crescimento do feminismo radical. O
mundo observa um grande crescimento da violência contra as pessoas que
lutavam por direitos civis, o muro de Berlin foi erguido, os Estados Unidos
atacavam o Vietnã. Esses acontecimentos faziam com que os protestos ficassem
ainda mais intensos. A crítica aos valores do capitalismo cresceu no meio dos
estudantes, bem como à classe burguesa. O feminismo radical surge no meio
desse turbilhão de idéias, com proposta de liberação no lugar de igualdade de
direitos, ressaltando um aparato de opressão, mais do que uma mera
discriminação. As fundadoras dessa corrente eram basicamente mulheres entre
vinte e trinta anos, a maioria ou havia acabado de terminar a faculdade ou estava
no fim de seus estudos universitários e são filhas de mães e pais comunistas ou
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130
socialistas, já vivendo na estrutura dos movimentos por direitos civis. Muitas se
juntam ao Student Nonviolent Coordinating Committee e à organização Students
for a Democratic Society, a ausência de hierarquia dessas organizações era um
forte apelo às mulheres.
Após o deslumbramento inicial com essas organizações, as mulheres
começam a perceber que havia problemas de sexismo mesmo nesses locais. Elas
estavam de fora da tomada das decisões importantes, as funções que exerciam
eram de menor relevância e a expectativa em cima delas era que estivessem
sempre sexualmente disponíveis, na medida em que eram feministas. As mulheres
negras que faziam parte dessas organizações realizaram sit-in em protesto. Outras
mulheres redigiram um documento ressaltando que a mulher tinha as mesmas
condições nesses lugares do que os negros contratados por grandes empresas. As
mulheres negras novamente sofriam uma dupla discriminação, porém, acabavam
considerando o racismo mais importante do que o sexismo. A discriminação
sexual era vista como algo em segundo plano. As mulheres acabaram saindo
dessas organizações, agora praticamente voltadas para a luta do movimento negro.
As mulheres brancas não eram mais bem aceitas. .
Apesar das dificuldades, as mulheres conseguiram incluir na pauta da
reunião nacional da Nova Esquerda, em setembro de 1967, as questões que diziam
respeito a elas. Porém, no momento da reunião, o problema da liberação da
mulher foi deixado de lado por não ser tão relevante quanto os demais temas. Boa
parte das mulheres se desligaram da esquerda depois desse episódio, porém,
algumas ainda resistiram a abandonar os homens da esquerda. Porém, em janeiro,
com a reação ao discurso de Marilyn Webb convocando os homens para lutarem
com as mulheres pela liberação feminina o rompimento foi mais significativo. A
feminista Shulamith Firestone escreveu para o jornal de esquerda Guardian que os
homens da esquerda falharam no projeto revolucionário e na convocação de
homens e mulheres para tal feito. Agora, as mulheres teriam coisas mais
importantes a fazer do que se preocuparem em chamá-los para lutar juntos. Os
movimentos a partir desse momento seriam distintos.
As mulheres que deixavam a Nova Esquerda se reuniram para percorrer os
diversos estados norte-americanos, com o objetivo de agrupar e estabelecer uma
rede entre as mulheres que estavam insatisfeitas com o estilo de vida imposto a
elas. No final do ano de 1968 praticamente todos os estados dos Estados Unidos
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131
tinham grupos organizados de mulheres para lutar por autonomia e liberação.
Assim como a experiência americana, também na Europa houve essa
intensificação do feminismo por mulheres vindas da Nova Esquerda,
especialmente na França. Um grupo chamado Féminin-Masculin-Avenir foi
formado em 1967 por duas ex-integrantes do Mouvement Democratique Féminin,
Anne Zelensky e Jacqueline Feldman, que pretendiam algo mais radical do que a
organização da qual faziam parte. A partir de maio de 1968 houve uma
intensificação dos movimentos autônomos de lutas das mulheres. As francesas
que deram origem ao feminismo radical também tinham educação superior, eram
mais novas e tinham raízes na esquerda, assim como suas contemporâneas
americanas. Também concluíram que a Nova Esquerda ficava mais na esfera da
retórica ao defender uma maior participação democrática quando se tratava de
liberação da mulher. O feminismo radical tinha como objetivo não somente a
ruptura com os homens de esquerda, mas também com o marxismo, que tinha
como principal questão os problemas de classe. Para o feminismo radical, o que
deveria ser combatido era o patriarcado, considerado por elas o mais antigo
mecanismo de dominação. O patriarcado e não o capitalismo seria a principal
forma de opressão da mulher
126
.
Uma questão que também apareceu ao longo da segunda onda do feminismo
foi a da homossexualidade. Algumas feministas declararam na época que o
problema das homossexuais não tinha relação com as causas feministas, uma vez
que era uma opção que dizia respeito à sexualidade. Porém, outras entendiam que
a condição das lésbicas poderia servir muito ao movimento feminista, uma vez
que o tipo de relacionamento entre elas subvertia os papéis sexuais atribuídos
convencionalmente pela socidade a homens e mulheres, a ponto de em uma
determinada época haver um discurso em defesa da adoção dessa opção sexual
por parte das feministas para melhor combater o patriarcado, sendo o debate
acerca da opção sexual um dos principais temas da metade da década de 70 do
século XX, considerado o ápice da segunda onda do feminismo. Nesse mesmo
período outra grande questão suscitada pelo feminismo foi a defesa do direito ao
126
O patriarcado foi considerado por muitas feministas como o grande mecanismo de dominação,
o mais antigo. No próximo capítulo será visto a partir da teoria de Judith Butler o motivo pelo qual
não se pode dar grande importância para esse tipo de entendimento, uma vez que isso torna a luta
impotente, ineficaz, como se a estrutura cunhada há muito tempo não pudesse ser transformada.
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132
aborto em diversos países da Europa. A segunda onda ainda originou a luta pela
previsão do crime de assédio sexual, que teve uma especial força nos Estados
Unidos a partir de 1986
127
. A segunda onda, portanto, foi diversificada e farta em
suas reivindicações.
A primeira e a segunda onda foram os dois grandes picos do movimento
feminista, apogeus de uma longa trajetória ao longo da história, conforme
demonstrado, em que ora as mulheres criavam condições para promover um
processo constituinte próprio, ainda que tímido, como no início da Idade Média,
ora se apropriavam de condições favoráveis em revoluções em andamento, como
nos casos da revolução americana e francesa. O objetivo nesse capítulo não foi
fazer uma apresentação geral da história e sim mostrar como foi o mecanismo de
criação ou apropriação de determinados momentos por parte das mulheres até que
o feminismo fosse construído. Por esse motivo, não foram narrados detalhes da
sociedade na Idade Média, do Renascimento, ou das obras contratualistas, bem
como não foram analisadas profundamente as revoluções nos Estados Unidos e na
França. O que interessou foi justamente a atuação das mulheres nesses momentos
e as contradições produzidas muitas vezes pelos próprios ensaios de feminismo,
que possibilitaram o freio imposto pelo poder constituído a esse braço do poder
constituinte. O recurso a Deleuze e Guattari no início do capítulo foi para
compreender o surgimento das mais diversas linhas do feminismo, identificando,
inclusive, momentos de arborescência, ou seja, momentos em que são instaurados
modelos ou uma identidade feminina, um plano ideal a servir de base para toda a
existência de uma mulher. Esses momentos são geralmente propícios para o
surgimento de linhas de fuga, o feminismo atrelado ao movimento negro, o
feminismo na classe operária e o feminismo homossexual são linhas de fuga. O
feminismo se tornava arborescência quando adotava um modelo de mulher.
127
O reconhecimento do assédio sexual nos Estados Unidos teve influência direta da autora
Andrea Dworkin e da jurista Catharine MacKinnon, que conseguiu fazer o assédio sexual ser
colnsiderado uma forma de discriminação sexual pela Suprema Corte Americana no ano de 1986.
O movimento capitaneado por elas foi sem dúvida relevante, especialmente no que diz respeito às
relações de trabalho e de ensino. Porém, ambas são muito criticadas, especialmente por autoras
francesas, por terem se aproximado dos conservadores, com o apoio dos republicanos. Essa
empreitada deu origem uma lei contrária à pornografia, conhecida como “lei MacKinnon-
Dworkin”. O problema era que essa lei fundamentava a censura em livros, cinema e jornais,
colocando em risco até mesmo trechos da literatura clássica nos Estados Unidos. A emenda sobre
a liberdade de expressão conseguiu prevalecer. BADINTER, E., Rumo equivocado: o feminismo e
alguns destinos, pp. 24, 25 e 26. No Brasil o crime foi incluído no art. 216-A do Código Penal,
pela Lei 10.224/2001.
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133
O próximo capítulo será dedicado à análise da teoria elaborada por Judith
Butler e à aproximação dela com a de Antonio Negri e Michael Hardt. A partir
das críticas de Butler ao feminismo, será possível compreender aquilo que
possibilitou o poder constituído domar esse processo revolucionário, fazendo
assim a conexão entre o problema analisado nesse capítulo com a proposta da
autora. Além disso, esse estudo irá auxiliar no entendimento de um dos
mecanismos de atuação da multidão, cunhado pela autora e aproveitado por Negri
e Hardt, que assim como ela, são herdeiros do projeto da imanência.
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4
Pelo retorno ao processo liberatório da mulher: a crítica de
Judith Butler às estratégias de luta feminista e sua
proposta para a retomada do poder constituinte
O capítulo que ora se inaugura terá como principal objeto de reflexão a
construção teórica formulada por Judith Butler. Tal construção foi apresentada ao
longo do capítulo inicial, em uma breve aproximação entre sua teoria e os
recursos elaborados por Negri e Hardt que serviram de lente para a leitura do
feminismo realizada no capítulo anterior. Porém, aquele não era ainda o momento
de mergulhar nos atos performativos, tão densamente construídos pela autora a
partir do exame e das críticas de algumas obras de pensadores como Foucault,
Luce Irigaray, Julia Kristeva, Simone de Beauvoir, Freud, Lacan, entre outros
128
.
O objetivo do capítulo não será o de apresentar esses diálogos, somente se
fazendo referência à perspectiva da autora sobre seus interlocutores quando
necessário para melhor demonstrar a construção de sua teoria, mesmo porque,
esses pensadores não foram objeto direto de análise ao longo da dissertação.
Até o presente momento, o trabalho versou sobre a exposição de
construções teóricas no capítulo primeiro, como o poder constituinte, a multidão e
a construção do plano de imanência na forma como Negri e Hardt herdaram e
assumiram em suas obras, para que fosse elaborado um léxico a ser aplicado na
análise das origens e desenvolvimento do(s) feminismo(s), ao longo do segundo
capítulo. O capítulo anterior teve como abertura uma referência a Guilles Deleuze
e Félix Guattari para que ficasse ainda mais nítida a diferença entre um projeto
transcendental, na estrutura da arborescência, e um projeto da imanência, na
estrutura rizomática, havendo inclusive a possibilidade dessas estruturas se
abarcarem. As lutas do feminismo e entre os feminismos conseguem servir de
128
Apesar de não ser objeto de análise específica da dissetação, é importante deixar claro que
Judith Butler confronta as posições de Beauvoir e Irigaray sobre a condição da mulher. Beauvoir,
ao longo do livro O Segundo Sexo, vai trabalhar com a concepção de Outro para caracterizar a
condição da mulher. Já Irigaray entende que somente há um único sexo, o masculino, o sexo
feminino não seria um sexo somente. Nesse sentido conferir: IRIGARAY, Luce. Ce sexe qui n’en
est pas un. A produção do sexo na concepção de Foucault, tanto masculino quanto o feminino, a
partir da regulação elaborada pelo poder, é relevante para o entendimento da obra da autora, uma
vez que é a interpretação mais abordada por ela para fundar a sua teoria e a sua crítica acerca da
formação do sujeito e do conceito de mulher.
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135
exemplo, demonstrando como essas duas estruturas podem aparecer e serem
interligadas. Além disso, foi interessante também para desfazer a mera
contradição entre os diversos feminismos, na medida em que eles passam a ser
percebidos como possíveis linhas de fuga, que podem surgir quando se instaura
uma arborescência no movimento.
A partir de agora, o objetivo será o de analisar conceitos como mulher,
corpo e atos performativos no interior do pensamento produzido por Butler, para
que seja possível identificar na trajetória do movimento feminista já demonstrada
o que pode ser considerado uma certa estagnação nas lutas feministas, ou, até
mesmo, um “rumo equivocado”, nas palavras da francesa Elisabeth Badinter. O
importante não é o mero apontamento de supostas falhas nas estratégias de lutas
comumente adotadas não somente pelo feminismo, como também por outros
movimentos de minorias, pois o recurso à Judith Butler obviamente vai além de
suas críticas. Suas contribuições para o feminismo são propostas bastante
interessantes para que a liberação da mulher seja retomada, sendo necessário até
mesmo um reexame do próprio conceito de mulher para tal feito. A autora
conseguiu projetar a sua teoria com a obra Gender Trouble: feminism and
subversion of identity, em 1990, conforme já mencionado anteriormente. A
discussão aqui apresentada se dará a partir desse marco, sendo também
examinados outros escritos da autora que posteriormente visitaram novamente as
idéias trabalhadas no livro e responderam a críticas realizadas aos atos
performativos, para posteriormente realizar uma nova aproximação deles à
multidão.
4.1
Os fundamentos da Teoria Queer: uma perspectiva inovadora sobre
o feminismo
A estrutura da obra que funda a chamada Teoria Queer tem como pilares
para as críticas elaboradas por ela alguns grandes temas: o problema do termo
mulher e da utilização do sexo e do gênero como pontos centrais do feminismo e a
estrutura heterossexual como paradigma do feminismo. O primeiro esforço será
no sentido de expor cada um deles, para que no próximo momento sejam
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136
apresentadas as possibilidades decorrentes dessas análises, a partir de outros
trabalhos de Butler, que respondem a críticas tecidas a seu trabalho.
O primeiro alvo de Butler diz respeito à utilização da mulher como centro
dos esforços do feminismo. A princípio, tal entendimento parece não fazer
sentido, especialmente após realizar o trajeto do capítulo anterior e constatar que o
termo “mulher” foi o que deu uma coesão ao movimento. Há ainda um problema
profundo e conexo a esse colocado pela autora. A mulher foi considerada ao longo
do desenvolvimento da teoria feminista o sujeito em busca da representação
política, ressaltando que a autora entende ser contraditório o termo política com a
representação
129
. A pretensão ao defender a representação da mulher e sua
constituição como sujeito político é a conquista de uma maior notoriedade e
visibilidade. Porém, a possibilidade do sujeito protagonizar processos de liberação
é colocada em xeque pela autora, afetando a representação que dele decorre.
A categoria denominada “mulher”, sujeito do feminismo, é produzida pela
mesma estrutura da qual ela pretende se emancipar. A lei produz a noção de um
sujeito anterior a ela, que tem como característica ser excludente, para ser
representado no sistema jurídico e no sistema político e dar legitimidade a ela.
Seguindo esse raciocínio típico do liberalismo e muito explorado nas teorias do
contrato social, Butler
130
afirma que, se o feminismo trabalha com a concepção de
um sujeito específico, a mulher, ele também trabalha com uma categoria
excludente. A autora tece críticas ao conceito de sujeito, ressaltando que a crítica
não serve para negá-lo ou demonstrar repúdio e sim para questionar o seu status
como algo previamente estabelecido, como uma premissa
131
. A desconstrução do
termo sujeito sugerida por Butler serve para abrir possibilidades de novos usos
para o termo, usos subversivos. O sujeito é construído pelo poder a partir de
diferenciações e exclusões realizadas por um aparato de repressão, o que não
significa que ele seja determinado, uma vez que trata-se de um processo contínuo,
sem que haja um fim. Por isso ele não pode ser um ponto de partida ou um
129
O modelo da representação política é profundamente criticado por Antonio Negri, sendo
considerado pelo autor um mecanismo de imposição severa de limites ao poder constituinte. Por
esse motivo, a tradição de pensamento seguida por Negri considera como única forma de
democracia a democracia absoluta, explicada de forma rápida em nota no primeiro capítulo. A
crítica de Butler diz respeito à representação e também à própria concepção de sujeito, relacionado
a essa representação.
130
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 5.
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137
produto, ele é sempre passível de ser trabalhado novamente. Eles não são um dado
construído a priori. Nesse sentido, sempre há sujeitos politicamente insidiosos.
A utilização do termo “mulher” como sujeito do feminismo não gera menos
controvérsia para a autora, na medida em que implica na presunção de uma
identidade, cujo principal problema começou a ser apresentado no primeiro
capítulo, a partir das considerações de Negri e de Hardt sobre a disputa ocorrida
na modernidade. Categorizar alguém como mulher não é o suficiente, pois esse
alguém vai muito além do gênero que lhe é previamente imputado. Primeiro pelo
fato da abordagem acerca do próprio gênero e suas características variar no curso
da história e de uma sociedade para outra, segundo por ser uma questão que se
relaciona com outros temas, como raça, classe e opção sexual. Portanto, não faz
sentido para a autora estabelecer uma fundamentação universal para o feminismo,
ou para qualquer outro movimento de minorias. É inviável a defesa de uma
identidade universal que ultrapasse as diversas barreiras culturais e faça frente a
um único inimigo, configurado por uma forma de patriarcado igualmente
universal, que sempre esteve presente.
Houve no decorrer do feminismo um empenho em traçar esse grande
inimigo denominado patriarcado como ponto de partida para a luta das mulheres.
O feminismo que seguiu por esse caminho foi acusado de fazer uso de
mecanismos semelhantes aos do poder para colonizar regiões e culturas diferentes
da Ocidental, contribuindo para o reforço da construção do Outro. A insistência
em estabelecer um inimigo único implica na adoção da estratégia daquele que
oprime, em vez de apresentar uma nova proposta. O problema dessa perspectiva é
justamente abrir campo para esse tipo de crítica relativista. A universalização do
patriarcado acaba reduzindo as distintas formas em que são estabelecidas a
assimetria entre os gêneros nas culturas mais diversas, são configurações muito
peculiares de dominação, e talvez não seja adequado equipará-las, como se todas
fizessem parte da mesma estrutura de poder que recebe o nome de patriarcado.
Há também um outro problema instaurado, pois na medida em que se
estabelece uma inevitabilidade do patriarcado ao longo da história como uma
grande força que se opõe a essa identidade mulher, ele deixa de ser histórico e
passa a ser um mecanismo de dominação inexorável, já que está presente há muito
131
BUTLER, J., Contingent Foundations, In BUTLER, J.; SCOTT, J. W. (ed.) Feminists theorize
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138
tempo. Essa é uma forma de atribuir mais força e um maior grau de importância a
ele
132
. Além disso, é necessário ter um cuidado ao se analisar teorias que
defendem um matriarcado anterior ao patriarcado. Segundo Butler, o antes é
sempre uma forma de se justificar interesses atuais ou futuros, com a estratégia de
uma narrativa pré-histórica, seja ela feminista ou contrária ao feminismo. A partir
do momento em que o feminismo recorre a uma feminilidade inata, genuína, ele
deixa de dar um tratamento cultural às questões de gênero
133
.
Como ressalta Butler, a doutrina do patriarcado universal foi deixada de
lado, porém, o esforço de se forjar um conceito de mulher estável, que seja
compartilhado de forma generalizada persistiu, fazendo com que a categoria
mulher sofresse muitas resistências. Apesar de ter sido criada com o intuito de
liberá-las, ela não consegue atingir seu objetivo. A identidade feminina
compartilhada por todas as mulheres bem como a opressão masculina à qual todas
estão submetidas esquece a importância de outras formas de dominação. Não se
pode determinar um grau de importância ou uma fonte primária entre a opressão
de sexo, classe, raça, opção sexual ou qualquer outra, na medida em que há
interseção entre elas, tendo muitas aparecido ao longo do capítulo anterior. Por
esse motivo, torna-se necessário realizar críticas às identidades em geral, que
levam ao processo de naturalização e imobilizam os movimentos, para que o
feminismo possa ressurgir fundado em pilares diferentes e se liberte da obrigação
de construir uma única identidade, um modelo de mulher que exclua as demais.
Costuma-se entender que a unidade é necessária para haver ações políticas
e, por isso, ela deveria ser estabelecida como um requisito prévio para as
mobilizações. Deve-se pensar sobre que espécie de ação política exige tal unidade,
uma vez que as divergências e as fragmentações fazem parte do processo de
democratização. Sendo assim, as contradições deixam de ser um impedimento
para as ações políticas. A própria preocupação com o diálogo deve ser repensada,
pois ela também decorre de condições históricas. Esse reconhecimento implica em
realizar considerações acerca da eficácia do diálogo, uma vez que enquanto uma
the political, p. 9.
132
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 45.
133
Ibid., p. 46. Pode-se reforçar essa consideração da autora acerca de uma narrative pré-histórica
retomando as críticas feitas ao contratualismo no capítulo anterior a partir da teoria de Carole
Pateman, quando menciona que a estratégia contratualista, apesar de ter um discurso aparente de
uma teoria da liberdade, na verdade serve para justificar a dominação existente na sociedade.
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das partes pensa estar havendo uma conversa, a outra parte pode ter certeza dessa
impossibilidade.
O tema foi abordado anteriormente ao se analisar a disputa que ocorre entre
dois sensíveis, um em que os plebeus falam e outro em que não falam, trabalhada
a partir de Rancière. Porém, coube relembrar o tema por ser considerado
importante para a persepctiva de democracia da autora. O modelo cunhado a partir
do diálogo corre o risco de cair na armadilha liberal, que entende que todos que
falam têm exatamente o mesmo lugar no poder e partilham uma mesma
concepção de consenso e de unidade. A autora coloca que há relações de poder
por trás desse mecanismo impondo limites ao diálogo. O termo mulher não
precisa ganhar uma unidade, uma identidade para que seja considerado completo.
Ele não necessita ser preenchido, expressar uma raça, uma classe ou uma opção
sexual. Ao contrário, quanto mais incompleto ele for, maior será a possibilidade
dele ser aberto às mais variadas formas de contestação. A unidade e a identidade
passam a ser indesejadas como pressuposto e forma específica para as ações
políticas. As identidades passam a ser constituídas e dissolvidas segundo as
necessidades de cada ação ou prática política que leva à sua formação. Elas em si
mesmas são vazias de conteúdo.
A diferença realizada tradicionalmente entre sexo e gênero ainda reforça
uma solidariedade e uma aparente identidade entre as mulheres. O sexo, nesse
sentido, é compreendido como um fator biológico, enquanto que o gênero é
construído pela cultura, é a cultura que o corpo sexuado toma para si. Essa teoria
feminista sugere que há uma distância entre os corpos sexuados e a cultura que
funda os gêneros. O sexo seria anterior à lei, decorrente da natureza e
indeterminado tanto pela política quanto pela cultura, já o gênero seria a
subordinação social instaurada sobre ele. Uma fêmea passaria a ser uma mulher,
categoria subordinada pela cultura. Haveria, portanto, a possibilidade da
construção de um homem não ocorrer somente em um corpo masculino, assim
como a mulher não necessariamente ser interpretada por um corpo de uma fêmea?
Dificilmente essa hipótese seria cogitada pelo poder, mostrando que o próprio
sexo é fruto de uma construção cultural, que atribui características próprias e
habilidades específicas a cada um. Uma outra questão que aparece nessa discussão
diz respeito à forma como o sexo e o gênero são atribuídos, como a dualidade
entre os sexos foi instaurada. A naturalidade do sexo, envolvendo anatomia,
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hormônios e cromossomos tem uma história e Butler ressalta que ela foi
construída por um discurso científico e atende a interesses sociais e políticos
134
. A
caracterísitica de imutabilidade do sexo em oposição ao gênero, tipicamente
cultural, é colocada em xeque, passando a ser uma construção tão cultural como
ele. Na verdade, a criação do gênero foi a forma pela qual o poder conseguiu
naturalizar o sexo, o colocando em uma posição anterior à cultura.
A autora questiona, a partir da diferença entre sexo e gênero amplamente
aceita no feminismo, se o gênero como resultado de uma construção cultural
poderia ser constituído de outra forma, se seria viável uma ruptura, uma
transformação ou se ele está atrelado a um determinismo social. A noção de que o
gênero é construído pela cultura e imposto sobre um corpo passivo, que somente
se diferencia pela anatomia, também torna o gênero algo inexorável, com uma
diferença em relação ao sexo, pois no caso, o destino não é imposto pela biologia,
e sim pela cultura. O corpo fica restrito à mera passividade, sendo o local onde a
cultura atribui seus significados de acordo com aquilo considerado mais
apropriado. A autora ressalta, no entanto, que o corpo em si é uma construção, não
possuindo qualquer significado que seja anterior à atribuição do gênero
135
. A idéia
de que o sexo é anterior, inerente aos corpos, é fruto da construção do gênero,
produzido pela cultura.
A identidade não é uma descrição da realidade, de uma condição específica,
ela é uma imposição normativa, um mecanismo responsável por garantir a
perpetuação do sexo e do gênero de uma forma bastante estável. As práticas que
regulamentam o sexo ditam uma suposta verdade sobre ele e sobre o gênero para
formar identidades que sejam coerentes. Nesse sentido, a fundação do desejo
heterossexual exige uma relação de oposição, e discretamente assimétrica, entre o
feminino e o masculino, criações culturais para atribuir determinadas
características aos machos e às fêmeas como inatas. Esse modelo serve para medir
quais identidades existem e quais não devem existir, impondo regras e
significados para as formas de sexualidade. A heterossexualidade entendida como
algo natural e compulsório no ser humano induz a uma sexualidade dual, na qual
134
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 10.
135
“Sometimes they forget that the body comes in genders”. Id., Bodies that matter: on the
discursive limits of sex, p. ix
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masculino e feminino se diferenciam e se desejam, conectando os termos sexo,
gênero e desejo.
Porém, as anomalias insistem em deixar claro que há limites na
regulamentação, que a identidade estabelecida para a imposição do gênero não é
suficiente para fazer com que haja uma obediência ampla às normas sobre gênero
e sexualidade. As subversões produzidas por elas provocam uma desordem no
gênero. As tentativas de se regulamentar o sexo a partir de um sistema baseado no
dualismo se prestam a frear a subversão da multiplicidade na sexualidade, que
afetam não somente o paradigma heterossexual, como o médico e o reprodutivo,
uma combinação entre os ideais sociais hegemônicos e os impostos pela Igreja
Católica.
É importante ressaltar que a identidade não somente garante a perpetuação,
como também depende dessa estabilidade para continuar existindo, caso contrário
sua estrutura é abalada. Tal hipótese acontece nos momentos em que alguns
aparentam um determinado sexo, mas não se conformam às regras culturais
atribuídas a eles. Os exemplos, nesse caso, são obviamente os homoafetivos e são
também mulheres e homens heterossexuais que de qualquer forma questionem os
papéis atribuídos a cada um deles de forma determinista pela identidade, pelos
modelos masculino e feminino, como no caso das mulheres nos períodos das
Grandes Guerras, que ingressaram no mercado de trabalho em virtude de uma
necessidade social e que se recusaram a devolver seus postos aos homens no final
das batalhas. Outra questão é a luta para que as atribuições com a família e com a
casa sejam compartilhadas por ambos. Essas hipóteses, bem como outras
trabalhadas pelo movimento feminista, são alguns exemplos de combate ao
paradigma tradicional de família e, por conseqüência, à identidade, aos modelos
de homem e mulher
136
.
Sexo e gênero, assim como o sujeito, não existem em um formato prévio,
não são um dado ao contrário do que se tenta estrategicamente com a criação da
136
A autora recebeu muitas críticas após o lançamento da obra que deu origem à Teoria Queer em
virtude de confusões em sua interpretação. Butler afirma que Gender Trouble decorreu mais de sua
experiência como militante do que de sua experiência como acadêmica. A autora tinha como um
dos principais alvos o modelo heterossexual que vigorava como paradigma do feminismo. Porém,
sua construção teórica não abarca somente o comportamento homoafetivo como única fonte de
subversão, ao contrário, seu esforço foi justamente mostrar que os homossexuais são também fonte
de subversão. Em nenhum momento a autora afirma que a única saída para romper o modelo
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142
identidade, eles são constituídos ininterruptamente com a performatividade sob a
incidência dos processos regulatórios para impor a coerência estabelecida pela
cultura no que diz respeito a sexo e gênero. O gênero é performativo, pois constrói
a identidade que lhe é proposta. Essa construção permanente não é protagonizada
por um sujeito preexistente, já que o próprio sujeito também não é nunca
concluído. Como afirma Butler, “There is no gender identity behind the
expressions of gender; that identity is performatively constitued by the very
expressions that are said to be its results”
137
. Se o gênero é algo construído de
forma permanente pelo poder a partir de práticas regulatórias e de repetição que
impõem uniformidade no comportamento, resta saber como seriam as repetições
subversivas, que podem problematizar a identidade forjada para a regulamentação
da sexualidade. Sem dúvida, as relações de poder estabelecidas pelas ciências
biológicas, como ressalta a autora, são bastante fortes na definição e naturalização
das identidades e diferenças e a ruptura desse aparato não será fácil
138
.
Tornar-se parte de um gênero é um processo de naturalização, em que os
prazeres do corpo são diferenciados de acordo com os significados impostos a
partir dos paradigmas de gênero. Esses prazeres são atribuídos a corpos que já
foram construídos de acordo com as especificidades do gênero. Algumas partes do
corpo, para Butler, são válidas para o prazer, enquanto outras não, com
fundamento nas regras estabelecidas pelas identidades heterossexuais. Os prazes
que sobreviverão ou que serão tomados como impossíveis serão selecionados a
partir desse mecanismo de legitimação deles em relação ao corpo. O corpo é
sempre alvo de construções do imaginário. Por esse motivo, a autora afirma que
ele somente pode ser conhecido e compreendido levando em consideração a outra
fantasia instaurada pela cultura, ou seja, aquela que se funda no “real”, lembrando
que os limites do real se constituem a partir do paradigma da heterossexualidade.
Há uma crença de que o desejo ocorre a partir da realidade de partes do corpo, de
dominante é se transformar em lésbica ou gay, como faz a teoria de Monique Wittig, criticada por
Judith Butler. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 154.
137
“Não existe identidade de gênero por trás das expressões de gênero; aquela identidade é
constituída performativamente pelas expressões que são compreendidas como seus resultados.
BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 33.
138
Foi visto ao longo do capítulo anterior um esforço na trajetória histórica para traçar um perfil de
mulher voltado para a esfera doméstica, para os cuidados com a família, com os filhos e sua honra.
A preocupação com a naturalização dessa perspectiva foi bastante forte. Porém, tanto não é um
aspecto natural da mulher, que já no início da Idade Média havia resistência. Além disso, se fosse
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143
uma suposta literalidade dos órgãos sexuais feminino e masculino, da
inexorabilidade da anatomia, que dita a união e o desejo natural entre os sexos
139
.
A crítica elaborada por Butler a essa concepção anatômica do desejo constata um
grande limite imposto ao prazer. A homossexualidade é interpretada como
ilegítima.
Colocadas as principais questões em relação ao modelo de
heterossexualidade e suas implicações na homossexualidade, cabe ainda fazer
uma análise breve acerca da representação da maternidade, uma vez que no
capítulo anterior o feminismo de origem maternal foi abordado como uma das
principais correntes da primeira onda. Obviamente, é difícil e até mesmo
impreciso realizar uma associação direta entre essa primeira onda e a teoria de
Kristeva, especialmente após Butler esclarecer que essa autora parte de premissas
da psicanálise, precisamente lacaniana, para realizar o seu percurso de uma
possível subversão feminina da lei paterna. Porém, é o momento em que o corpo
materno retorna ao centro do trabalho.
Butler aborda e critica a concepção acerca da maternidade e sua relevância
para a mulher a partir da teoria de Kristeva, considerando que a última trabalha
com uma concepção de corpo materno anterior ao discurso. O corpo materno para
ela é um dado prévio no qual a cultura se fundamenta e elabora todos os
significados a partir dele. Ele seria a própria causa do discurso, seu ponto de
partida, em outras palavras, a origem implícita de toda a cultura. Porém, para
Judith Butler essa anterioridade não é possível. Retomando o argumento de
Foucault, Butler afirma que a defesa da anterioridade do corpo materno não passa
de uma estratégia para que as relações de poder que produzem esse corpo se
ampliem, forjando uma origem fora delas. Na verdade, na concepção de Butler, o
corpo materno é uma conseqüência do sistema responsável pela regulamentação
da sexualidade, que compreende o corpo da mulher como algo talhado para a
maternidade, como sendo esta a sua essência, o seu destino e o seu maior
desejo
140
.
natural, não haveria necessidade da construção de todo um aparato de controle para garantir o
desenvolvimento da mulher de acordo com o ideal identitário constituído pela cultura.
139
Cf. BUTLER, Judith, Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 90.
140
Ibid., p. 117 et. seq.
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144
Não é tão simples defender essa compreensão acerca da maternidade e,
nesse aspecto, as críticas de Butler são bastante pertinentes. Para chegar a essa
conclusão, basta retornar ao capítulo anterior e perceber que a maternidade estava
longe de ser a essência da mulher. Foi demonstrado que as mulheres que fugiam
de suas famílias na Idade Média para os conventos, por exemplo, o faziam
justamente por não estarem satisfeitas com a proposta da vida conjugal e familiar
daquela época. Os conventos eram mais atrativos, especialmente no primeiro
momento, em que os mosteiros eram mistos e muitos controlados por mulheres,
que administravam cidades próximas a eles e que podiam pregar da mesma forma
que os homens. Muitas deixavam até mesmo sua própria família, seus filhos para
a dedicação à vida religiosa. Assim, foram demonstradas no capítulo, nas origens
do(s) feminismo(s), grandes disputas sobre formas de vida alternativas às que
insistiam em apresentar como padrão às mulheres de acordo com as
especificidades de cada momento. Recuperando um argumento anterior, se fosse
efetivamente parte de uma suposta essência feminina, não haveria necessidade de
todo um aparato de poder, inclusive no que se refere às propostas posteriores de
educação das mulheres, especialmente fundadas na teoria de Rousseau, com o
objetivo de naturalizar determinados valores e reprimindo lutas contrárias a eles.
Foucault é sem dúvida uma das maiores influências no desenvolvimento do
pensamento de Butler. Porém, a autora também realiza críticas em relação a
Foucault, especialmente comparando a estrutura do primeiro volume da História
da Sexualidade com o caso Herculine Barbin, que, para a autora, apresentam-se
como textos contraditórios. A sexualidade em Foucault está tomada pelo poder.
Sendo assim, não se pode conceber uma sexualidade anterior ou posterior à lei.
Esse foi o raciocínio que estruturou as críticas elaboradas por Butler apresentadas
até o momento.
A hermafrodita francesa Herculine foi classificada como pertencente ao
sexo feminino ao nascer. Após consultar inúmeros médicos e conversar com
padres sobre seu caso, ela foi autorizada a trocar a classificação de seu sexo por
masculino, em um zelo para que o verdadeiro sexo acabasse prevalecendo na
situação. Foucault questiona a suposta necessidade de se ter um sexo verdadeiro
definido para Herculine. Butler aponta que, a princípio, Foucault parece
compatibilizar sua análise do caso Herculine com as estruturas de poder que
elaboram constantemente a sexualidade. Porém, ela pensa que a análise de
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145
Foucault sobre Herculine desconsidera completamente as relações de poder que
irão originar e condenar a sua sexualidade. Para Butler, ele dá um tom romântico
ao mundo de Herculine, como se ela ou ele vivesse uma experiência de
sexualidade livre da estratégia das identidades
141
.
Ao longo do livro História da Sexualidade: a vontade de saber, a
construção do sexo é retratada como algo produzido com o intuito de regular e
exercer um controle sobre a sexualidade. Além disso, ela atende a outro interesse,
qual seja, o de unificar de forma artificial uma diversidade de funções sexuais que
não possuem qualquer relação a priori. Por último, há um discurso em que o sexo
é colocado em uma posição inicial, uma essência da qual derivam os diferentes
desejos, as sensações e os prazeres, todos eles partindo de um sexo determinado.
Os prazeres sexuais são, dessa forma, compreendidos de acordo com cada sexo.
Objetivando combater a estratégia da utilização do sexo como essência, como
causa da sexualidade, o autor aborda o sexo utilizando uma outra perspectiva, na
qual ele é conseqüência e não origem. A sexualidade, na verdade, é para ele um
sistema histórico de grande complexidade no que se refere ao envolvimento das
estruturas de poder para sua elaboração e cuja função é estabelecer o sexo, ou
seja, uma identidade, para que as relações de poder consigam se perpetuar. Na
medida em que o sexo ganha um caráter de essência, ele passa a ser intangível,
ficando fora do alcance das relações de poder e, por isso, distante das disputas que
ocorrem entre essas forças. Por esse motivo, as análises que são feitas sobre a
sexualidade acabam incidindo no sexo como sua origem e o sexo encerra a
discussão, por ser a origem ou a causa da sexualidade.
To be sexed, for Foucault, is to be subjected to a set of social regulations, to have
the law that directs those regulations reside both as the formative principal of one’s
sex, gender, pleasures, and desires and as the hermeneutic principle of self-
interpretation. The category of sex is thus inevitably regulative, and any analysis
which makes that category presuppositional uncritically extends and further
legitimates that regulative strategy as a power/knowledge regime
142
.
141
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 120.
142
Ser sexuado, para Foucault, é estar sujeito a uma série de regulações sociais, ter a lei que
conduz aquelas regulações consiste em ambos como o princípio formativo do sexo, gênero,
prazeres, e desejos e como o princípio hermenêutico de auto-interpretação. A categoria do sexo é
deste modo inevitavelmente regulativa, e qualquer análise que faça dessa categoria uma
pressuposição sem crítica estende e promove a legitimação da estratégia regulativa do regime de
poder/saber. Ibid., p. 122.
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146
O caso de Herculine é percebido por Foucault de uma forma diferente, pois
o autor irá se esforçar para demonstrar como um corpo hermafrodita, com o sexo
indefinido, pode seguir em sentido contrário à regulação. A impossibilidade de se
determinar um sexo específico implica em uma possibilidade de fazer desaparecer
todos os significados que são atribuídos ao corpo a partir do modelo binário de
identidade dos sexos. Os prazeres para Herculine não estariam restritos ao sexo,
não decorreriam dele. Nesse sentido, pode ser vislumbrado em Foucault um
processo de emancipação que, para Butler, não fica claro na História da
Sexualidade. Sendo assim, ela reconhece nele um momento em que o sexo resulta
em uma multiplicidade sexual primária.
A contradição apontada por Butler em Foucault é exposta através de
Herculine, na medida em que a avaliação dele da história da hermafrodita traz um
viés emancipatório, de liberdade sexual, que não parece ser possível, ou pelo
menos facilmente detectado na História da Sexualidade. A narrativa da vida de
Herculine deixa claro que ela passou por um grande período de insatisfação, o que
é compreensível. Desde cedo ela se sentia diferente das demais meninas. Na
publicação que Foucault faz sobre o caso com base nos boletins médicos não há
qualquer dado que possibilite afirmar que Herculine fizesse referência expressa e
direta à sua anatomia, apesar de ter dito aos médicos que tinha algo entre um
pequeno pênis e um clitóris grande. Além disso, os médicos disseram não haver
vagina e qualquer sinal de seios. Herculine se considerava um grande erro da
natureza, se sentia sem um lugar na sociedade e, por isso, era muito solitária e
com um desejo que considerava insaciável.
Todas essas condições pelas quais Herculine passa a levam a uma fúria
muito grande em relação aos homens, apesar dela assumir essa identidade na sua
relação com sua amante Sara, e em sua relação com o mundo, que irá culminar
com seu suicídio. Por esse motivo, é muito difícil reconhecer em seu caso uma
sexualidade exercida de forma plena, sem a interferência do poder, da identidade.
Sua sexualidade não está fora da lei, ela simplesmente diz respeito a uma
sexualidade ambivalente, segundo os parâmetros das normas.
Herculine narra desde suas relações com as meninas de seu colégio até seu
envolvimento já na fase adulta com Sara. Em razão da culpa que sentiu e do seu
estranhamento genital, ela procurou um médico e um padre para contar seu
segredo e conversar sobre sua condição e sua forma de vida. Após essa confissão
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147
ser feita, ela foi obrigada a deixar Sara. As autoridades concedem a ela uma
transformação legal que a faz homem. Sendo assim, Herculine foi obrigada a
utilizar roupas de homem e começou a ter as obrigações e também os direitos que
aos homens eram concedidos pela sociedade. Pode-se alegar que antes de virar
homem, Herculine conseguia viver livremente seus prazeres sem a
regulamentação que decorre das categorias estabelecidas a partir do sexo.
Porém, essa perspectiva tão radicalmente subversiva da sexualidade de
Herculine não parece ser a mais adequada para Butler. A questão pertinente, nesse
sentido, é acerca das práticas sociais que levariam a esse tipo de sexualidade.
Sendo assim, cabe uma reflexão sobre a capacidade produtiva do poder, os
mecanismos pelos quais os sujeitos são produzidos e subjugados ao mesmo tempo
e como se realizou a produção da sexualidade no caso específico de Herculine,
como, por exemplo, as convenções sobre a homossexualidade feminina, que
incidiram em sua vida. Herculine teve uma educação considerada muito adequada
para uma jovem de sua época, leu romances clássicos e seus estudos religiosos
fundados no Cristianismo também foram fortemente estimulados. Por esse
motivo, Butler acredita ser bastante difícil considerar para ela uma sexualidade
livre de qualquer investimento realizado pelas normas instituídas a partir do sexo,
como se ela fosse dotada de uma sexualidade anterior à norma.
Há ainda um outro risco na análise do caso de Herculine, que diz respeito a
uma interpretação fundada na fatalidade da biologia. Nessa hipótese, o interesse
de Herculine em mulheres bem como a ausência de uma característica “típica” de
mulher e uma manifestação ainda que imperfeita de uma característica masculina
para esse contexto poderia indicar que, na verdade, os fatores genéticos, as
manifestações biológicas e hormonais possuem uma grande relevância, definindo
sim o sexo correspondente. Dessa forma, Herculine manifestaria o sexo masculino
de forma predominante sobre o feminino, explicando o seu interesse por mulheres.
Esse é um mecanismo de se justificar o modelo heterossexual de desejo e de
relações sexuais. O que dificulta fazer a relação entre o seu sexo e o seu desejo é
justamente o fato de ser hermafrodita. Por isso, ela associa seu corpo com as
transgressões que ela comete no que se refere à sexualidade, em uma relação de
causalidade entre o corpo e a sexualidade. A estrutura da essência não está,
portanto, afastada, apesar de ser uma essência diferente da “natural”. Foucault
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148
identifica no caso uma multiplicidade, ao invés da unidade instituída pelo sexo.
Porém, as interdições as quais Herculine está submetida a levam ao suicídio.
A anatomia do corpo de Herculine não é algo fora das categorias de sexo, ao
contrário, ela está inserida nessas categorias, mas causa confusão nelas pelas
distribuições feitas entre os atributos masculinos e femininos. Ela pode ser
interpretada de forma subversiva não por estar fora dos parâmetros masculino e
feminino, e sim por demonstrar que o sexo não decorre de fatores estritamente
biológicos aos quais os atributos correspondentes irão necessariamente aderir. A
condição de Herculine coloca em xeque a própria separação entre a
heterossexualidade e a homossexualidade, pois os parâmtros aos quais os dois são
atribuídos, nesse caso, se confundem. Nesse sentido,
(...) the law is not simply a cultural imposition on an otherwise natural
heterogeneity; the law requires conformity to its own notion of “nature” and gains
its legitimacy through the binary and asymmetrical naturalization of bodies in
which the Phallus, though clearly not identical with the penis, nevertheless deploys
the penis as its naturalized instrument and sign.
Herculine’s pleasures and desires are in no way the bucolic innocence that thrives
and proliferates prior to the imposition of a juridical law. Neither does s/he fully
fall outside the signifying economy of masculinity. S/he is “outside” the law, but
the law maintains this “outside” within itself. In effect, s/he embodies the law, not
as an entitled subject, but as an enacted testimony to the law’s uncanny capacity to
produce only those rebellions that it can guarantee will – out of fidelity – defeat
themselves and those subjects who, utterly subjected, have no choice but to
reiterate the law of their genesis
143
.
Superada a discussão realizada por Butler a partir do confronto entre as duas
obras de Foucault, ainda é necessário ingressar brevemente na discussão sobre
sexo e gênero que a autora estabelece a partir das leituras de Simone de Beauvoir
e Monique Wittig, pois muito do que ela pensa sobre o tema, ela herda desse
embate entre as duas escritoras. Simone de Beauvoir cunhou uma frase
143
A lei não é simplesmente uma imposição cultural sobre uma heterogeneidade natural diferente;
a lei requer conformidade com sua própria noção de “natureza” e conquista sua legitimidade
através da naturalização dos corpos binária e assimétrica no qual o Falo, ainda que claramente não
idêntico ao pênis, entretanto o organiza como seu instrumento e sinal naturalizado.
Os prazeres e desejos de Herculine não são de forma alguma a inocência bucólica que floresce e
prolifera de forma prévia à imposição de uma norma jurídica. Tampouco ela/e cai completamente
fora da organização significante da masculinidade. Ela/e está “fora” da lei, mas a lei mantém esse
“fora” em seu interior. Com efeito, ela/e incorpora a lei, não como um sujeito determinado, mas
como uma testemunha decretada da capacidade nefasta da lei de produzir somente aquelas
rebeliões que podem garantir o desejo – fora da fidelidade – derrotá-las a si próprias e aqueles
sujeitos que, completamente subjugados, não possuem escolha a não ser reiterar a lei de suas
gêneses. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 135.
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149
constantemente utilizada por feministas das mais diversas correntes: “não se nasce
mulher, torna-se mulher”. Butler afirma que Wittig se apropria dessa frase como
ponto de partida para retomar a discussão sobre sexo e gênero e enfrentar a tão
conhecida posição de Beauvoir.
A concepção de Beauvoir sobre a mulher foi amplamente divulgada e é
praticamente impossível desconhecer que ela entende essa categoria como
decorrente da cultura e variável conforme ela se transforma. Para ela, não se nasce
com um gênero específico, ele é adquirido ao longo do desenvolvimento humano.
Porém, o sexo seria de outra ordem, da ordem da natureza. Se o gênero é
adquirido, quando se faz referência ao sexo, faz-se referência a algo que já é
atribuído no momento do nascimento, deixando de passar propriamente pela
esfera da cultura. Nessa concepção, o sexo é um atributo típico do ser humano e é
imutável.
O peculiar de sua teoria diz respeito à ruptura entre sexo e gênero, uma vez
que este não necessariamente irá refletir aquele. O gênero é a esfera que depende e
decorre da cultura, sendo, portanto, passível de modificação. Conforme já
mencionado anteriormente nesse capítulo, seguindo essa argumentação, seria
perfeitamente possível defender que a separação entre sexo e gênero permitiria
que um gênero não fosse atribuído de forma vinculante a um determinado sexo,
ou seja, a mulher não deveria ser a construção cultural inevitável sobre o corpo da
fêmea. Gênero e sexo não corresponderiam, não estariam atrelados. Os gêneros
poderiam ser os mais diversos, não estando atrelados ao modelo instaurado pelo
dualismo, já que, ao contrário dos sexos, que são fixos, eles estão em constante
atividade, podendo superar os limites do sexo.
Quando Wittig retoma a famosa frase de Beauvoir, ela constrói um caminho
próprio, pois não é de ordem natural. Trata-se da utilização política de uma
categoria da natureza para que seja imposta uma sexualidade necessariamente
reprodutiva. O único motivo pelo qual o poder divide os seres humanos em
masculino e feminino é para instaurar a heterossexualidade como um padrão de
relacionamento. Portanto, o sexo aqui é necessariamente já categorizado pelo
gênero. Butler afirma que o sexo para Wittig é naturalizado, mas não é algo
natural. O interesse de Wittig a partir desse momento passa a ser diferenciar a
mulher da lésbica, pois somente se constata a existência da mulher levando em
consideração o dualismo que a opõe ao homem, com o paradigma da
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150
heterossexualidade. Já a lésbica não é definida por uma oposição, não depende do
dualismo para existir, na medida em que repudia a heterossexualidade. Ela estaria
além das categorias instauradas pelo sexo, uma vez que deixou claro a partir de
sua rejeição que essas são categorias construídas culturalmente. A lésbica
desestabilizaria as categorias de sexo e gênero.
É importante ressaltar que Wittig entende somente haver um único sexo, o
feminino. O masculino não é um sexo, uma vez que ser sexuado para ela é ser
particularizado e o masculino é uma pessoa universal
144
. A categoria sexo é
produzida de forma discursiva e imprime significados que irão oprimir mulheres,
gays e lésbicas. A proposta de Wittig é reorganizar, sem fazer uso do recurso
instaurado pelo sexo, as descrições dos corpos e das diversas sexualidades, o que
levaria, por exemplo, ao abandono dos pronomes que diferenciam, distribuem o
direito ao discurso e regulamentam as diferenças de sexo. O sexo é aquilo que dá
uma unidade artificial em determinados atributos que não possuem uma
continuidade entre eles, uma relação prévia. A unidade é artificial porque, na
realidade, a sua organização implica necessariamente em uma fragmentação do
corpo e uma redução dele a determinadas partes para que o controle seja mais
eficaz, realizado cada vez mais de perto e com maior fiscalização.
A estrutura heterossexual para Wittig foi criada historicamente como se
fosse compulsória e sua função é atribuir direitos, dar autoridade e capacidade
discursiva aos homens e inviabilizá-los para as mulheres. Ela é reproduzida
performaticamente por não só por uma série de atos, mas também pela linguagem
ao longo do tempo que produzem a realidade e aos poucos vão se transformando
em fatos, ganhando uma aparência de inexorabilidade. No campo lingüístico, para
Wittig, há duas possibilidades, sendo a primeira no sentido de para afirmar a
universalidade no sentido de incluir pessoas e a segunda para a instituição de um
sistema hierárquico, em que há pessoas eleitas para falar, capazes de discursar e
outras que são não possuem autoridade para tal feito. Essa repetição produzida
pela coletividade de caracterizar as diferenças sexuais acaba fazendo com que elas
144
É interessante observar aqui uma aproximação entre Beauvoir e Wittig, pelo menos no que diz
respeito ao ponto de partida. Beauvoir tem como questão central na introdução de O Segundo Sexo
a comparação entre a condição da mulher e do homem, na medida em que as mulheres sempre se
colocam como mulheres e se preocupam com a dicussão do que é ser mulher, assim como os
negros ou os judeus, cada grupo em sua condição. Os homens, ao contrário, não têm essa
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151
ganhem um aspecto naturalizado. Denominar o sexo é um mecanismo de
dominação, uma performance institucionalizada que se presta a criar e regular a
realidade. Somos, portanto, todos induzidos a nos mantermos coerentes com a
suposta natureza, quando, na verdade mulher e homem não passam de construções
políticas com o objetivo de escravizar. A partir do reconhecimento desse
problema, caberia às mulheres lutar para chegar à posição também de falantes,
deixando a condição de produzir somente ruídos, nas palavras de Rancière e
assumindo os direitos decorrentes dessa luta.
A língua tem um grande peso para Wittig, pois os conceitos e categorias
estabelecidos por ela podem produzir uma violência física sobre os corpos de
forma bastante intensa com a finalidade de impor os seus significados. Esse é um
mecanismo muito utilizado nas mais diversas formas de opressão. A assimetria
produzida pela língua identifica a capacidade de fala ao sujeito universal
masculino. O falante feminino está, no máximo, restrito a uma fala particular.
Esse mecanismo não pode ser compreendido como decorrente de forma direta da
natureza, pois o homem não nasce já destinado ao universal enquanto a mulher
nasce para o particular, esse mecanismo da língua garante que o universal seja
apropriado constantemente pelo homem. Nesse sentido, para que as mulheres
superem tal conjuntura pelo discurso, elas devem agir de forma coletiva e fora dos
moldes impostos pelo parâmetro instituído pelo sexo, que lhes transforma em
sujeitos relativos, particulares. Butler aponta que essa concepção implica em uma
abordagem da língua como algo também decorrente de uma unidade existente
entre os falantes como seres anteriores ao sexo e à língua.
Além desse problema, Butler ainda identifica em Wittig uma forte tendência
em universalizar a heterossexualidade como um mesmo mecanismo de dominação
comum em todas as sociedades, crítica semelhante à realizada ao feminismo que
universalizou o patriarcado no mesmo grau nas sociedades mais diversas. Wittig
critica a heterossexualidade por universalizar seus parâmetros, porém, ela incide
na mesma estrutura de dominação alvo de suas críticas. Essa estrutura de seu
pensamento a faz concluir, por exemplo, que há somente uma saída para a
feminista: transformar-se em lésbica. Da mesma forma que Beauvoir escreve que
ninguém nasce mulher, e sim torna-se mulher, Wittig irá entender que é
preocupação de se colocar como homens, não ficam discutindo o que significa ser homem, porque
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necessário romper com o paradigma heterossexual e, para isso, em vez de tornar-
se mulher, a transformação realizada por qualquer uma deve ser no sentido da
homossexualidade para que seja subversiva.
A única saída que a autora vislumbra para o movimento feminista tanto no
aspecto social quanto no político é a homoafetividade, em um processo de
“lesbianização” do mundo. Ela não está interessada em tratar dos direitos das
mulheres e das lésbicas e sim em frear a heterossexualidade já globalizada,
impondo suas novas categorias em todos os campos, inclusive no campo
lingüístico. O problema apontado por Butler diz respeito à separação que essa
teoria de Wittig cria dentro do feminismo, na medida em que exclui aquelas que
são heterossexuais. Sendo a única forma de subverter a ordem heterossexual a
transformação em lésbica, o que iria impedir que esta também se tornasse uma
categoria tão compulsória quanto a estabelecida pela heterossexualidade? É nesse
sentido que Butler afirma ser inviável essa conclusão de Wittig, pois seria também
um mecanismo que promoveria a exclusão de um segmento social
145
. Apesar da
heterossexualidade ser tratada como presumida no que se refere às questões de
relacionamento, isso não significa que todos aqueles que são heterossexuais são
necessariamente determinados.
Wittig funda um novo dualismo ao colocar uma grande ênfase na separação
entre heterossexuais e homossexuais. Além disso, podem existir questões nos
relacionamentos homossexuais que são semelhantes aos heterossexuais. Não há
diferença, por exemplo, se em um relacionamento homoafetivo uma lésbica
reproduz o comportamento padrão de um homem em relação à sua parceira no que
se refere à dominação de um gênero sobre o outro. Há, nesse caso, uma
reprodução de um mecanismo de poder nesse relacionamento dos estabelecidos
pela heterossexualidade.
É claro que nos relacionamentos homossexuais esses padrões não são
necessários, ao contrário, em geral uma lésbica não deseja nem um corpo
feminino fora de contexto nem uma identidade masculinizada, ainda que seja
discreta, ela irá querer a desestabilização de ambos, nas palavras de Butler
146
.
Nesse sentido, elas podem até mesmo retomar o esquema das relações
é a partir desse paradigma universal que as outras categorias serão elaboradas.
145
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 162.
146
Ibid., p .156.
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heterossexuais, porém, ao mesmo tempo, deslocá-las, dando-lhes um outro
sentido. Há também outros mecanismos de poder que constituem e destroem tanto
os relacionamentos heterossexuais como os homossexuais. Obviamente, Wittig
acerta ao perceber a violência imposta pelo modelo de relação heterossexual, bem
como ao deixar claro que o sexo também é fruto de construção cultural, porém,
ela não pode deixar de reconhecer outras estruturas de poder bastante fortes e,
muito menos, afastar as mulheres heterossexuais do feminismo em virtude delas
não seguirem a única saída prevista pela autora, ou seja, a transformação em
lésbicas. Butler percebe que Wittig desconstrói o sexo e, por conseqüência,
qualquer unidade que tenha sido estabelecida com base nele e identifica uma série
de centros de poder sobre os corpos. Sendo assim, ela não poderia prever uma
saída única para o feminismo, menos ainda algo que viesse a sugerir uma
substituição de um paradigma heterossexual por um homossexual, pois se são
modelos de relações, terão o mesmo papel de estabelecer e legitimá-las,
desconsiderando outras possibilidades.
A sexualidade e o poder estão intrinsecamente relacionados, de acordo com
a tradição de pensamento seguida por Butler. Por isso, a sexualidade mesmo da
lésbica é tão construída por ele como as demais existentes. Dessa forma, não há
como defender a possibilidade de um prazer sem qualquer limite dentro das
relações homoafetivas. As normas também imperam nessas relações e não podem
ser simplesmente negadas. Porém, elas podem ser transformadas em um lugar
para as paródias que irão deslocar o aspecto natural e original do modelo de
heterossexualidade instaurado. Por fim, cabe novamente uma comparação entre
Beauvoir e Wittig acerca da concepção de cada uma sobre a natureza. Enquanto a
primeira a considera uma materialidade, um fato concreto, a segunda a considera
como uma criação cujo objetivo principal é manter o controle social
147
.
Realizada a discussão sobre o conceito de mulher e a hegemonia do modelo
heterossexual, o próximo passo será dedicado aos atos performativos, elaborados
por Judith Butler e aproveitados por Negri e Hardt quando tratam do movimento
da multidão. A primeira abordagem dos atos performativos será feita com o
147
Wittig também trabalha com a heterossexualidade na perspectiva do contrato social, recurso
utilizado por Carole Pateman para fundar a dominação do homem sobre a mulher na Modernidade.
Obviamente a noção de contrato social explica uma forma de dominação diferente para cada
autora, porém, é interessante ressaltar que ambas consideram essa estratégia como uma forma de
justificar um mecanismo de dominação.
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154
intuito de apresentar a construção da teoria, para, posteriormente, trazer as
respostas de Butler às críticas feitas após ter sido considerada fundadora da
chamada Teoria Queer com a obra que a deixou com grande visibilidade no
feminismo e também no movimento homossexual. As performances irão ganhar
um caráter subversivo a partir da análise de Butler, sendo possível retomar a
conexão com o pensamento de Antonio Negri e Michael Hardt.
4.2
A apropriação dos atos performativos pela multidão: uma
possibilidade subversiva
Uma das principais preocupações da autora diz respeito às diferenças
instituídas entre sexo e gênero, para provocar uma generalização e uma existência
prévia do corpo em relação à sexualidade, a partir do sexo. Em outras palavras, o
tratamento passivo do corpo, como algo anterior ao discurso que irá receber as
inscrições da cultura sobre ele. Essa é uma estrutura oriunda da doutrina Cristã e
posteriormente do pensamento Cartesiano, com os dualismos cultura/natureza e
mente/corpo, e uma perspectiva do corpo como algo insignificante, sem
relevância ou ainda como algo profano e campo de uma suposta essência
feminina, até o reforço ocorrido ao longo do século XIX com o surgimento da
influência direta da biologia.
O próprio Foucault acaba recorrendo a esse mesmo mecanismo de
interpretação do corpo como algo passivo, que será necessariamente subjugado,
como o local em que a história irá inscrever seus valores e significados na medida
em que são construídos e destruídos, em alguns momentos de sua obra, conforme
ressalta Butler
148
. Nesse sentido, ela também reconhece em Foucault uma
abordagem do corpo como uma página em branco, a ser preenchida pela história e
pela cultura. Apesar de Foucault estabelecer que esse corpo existente deve ser
completamente destruído para que as inscrições sobre ele tenham um significado,
para que os valores consigam prevalecer, há uma manutenção de um corpo
definido ou limitado anterior aos significados que serão a ele atribuídos a partir de
um movimento de fora para dentro.
148
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 165.
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155
A diferença entre o externo e o interno, bem como os limites e a escravidão
aos quais o corpo é submetido são impostos através da estratégia da identidade. A
identidade constiste nas repulsas que são provocadas a partir de criações
hegemônicas sobre o sexo, a sexualidade, a raça, enfim, sobre os mais diversos
agrupamentos forjados pelo poder, com o objetivo de excluir algumas categorias,
criando, dessa forma, o Outro, ou os Outros, aqueles que estão fora, que não
fazem parte da cultura hegemônica. A repulsa, portanto, consolida identidades,
cria, exclui e regula para dominar e controlar, em um esforço para que as
diferenças entre o externo e o interno sejam perpetuadas. Para que isso fosse
passível de realização, seria necessário que os corpos fossem completamente
impermeáveis, o que seria impossível de se conseguir. Nas palavras de Judith
Butler, “this enclosure would invariably be exploded by precisely that
excremental filth that it fears”
149
. A estabilidade que torna viável a manutenção do
interno e do externo é imposta pela cultura, que estabelece uma ordem e uma
sanção para que ela não seja violada e para que a diferenciação seja mantida. O
procedimento identitário reconhecido por autoras como Kristeva e Iris Young e
abraçado por Butler é fundamental para compreender o motivo pelo qual a última
tece críticas tão árduas aos movimentos minoritários que insistem em afirmar a
identidade.
É interessante observar nesse momento uma conexão direta entre o
pensamento de Negri e Hardt com a teoria de Butler e já mencionada ao longo do
primeiro capítulo, uma vez que as estruturas de criação de identidade são bastante
comuns. Negri e Hardt fazem a ressalva de que a identidade muitas vezes
funciona como mecanismo de união interna de um Estado para lutar por liberação
em relação a um opressor externo. Porém, internamente é muito comum haver um
mecanismo violento de dominação, com um apelo também identitário, para que
essa união seja conseguida. Essa observação é perfeitamente cabível em relação às
lutas feministas. É muito comum que determinados Estados que precisem se livrar
de dominação estrangeira promovam uma união interna a partir de uma oposição
entre uma cultura hegemônica que tenta prevalecer sobre ele e a cultura local, em
nome da diversidade. Luta bastante legítima nessa perspectiva. Porém, na medida
em que as atenções se voltam para o interior desses Estados, o que se constata é
149
Este fechamento seria invariavelmente demolido por precisamente aquela excrementosa sujeira
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156
uma situação também de grande violência em relação a minorias que ali habitam,
mulheres, homossexuais, políticas e religiosas e outros. Em nome da diversidade
cultural e da soberania, para fazer frente a grupos opressores de fora, o grupo
hegemônico interno se utiliza de um aparato de repressão bastante violento.
Retornando propriamente à identidade estabelecida pelo gênero, ela é
formulada a partir da heterossexualidade estabelecida de forma compulsória,
associando a sexualidade ao campo da reprodução, para que ganhe um caráter
estável. Dessa forma, as categorias do sexo, do desejo e da sexualidade deveriam
se manter em uma relação coerente, segundo os parâmetros estabelecidos pelo
modelo. Porém, essa estabilidade não consegue se sustentar. Os corpos promovem
a desordem nesse modelo criado para regulá-los, fazendo com que ele perca sua
força normativa no campo da sexualidade. Os processos de identificação são
forjados para que a coerência seja mantida, e para que ela consiga prosperar,
fazendo uso de uma série de significações corporais, de atos e gestos que dão uma
aparência de essência do corpo, de algo interno a ele, mas que estão de fato em
sua superfície.
Os gestos sugerem uma identidade prévia, inata, porém, eles não fazem isso
de forma clara e sim obscura. Esses são os atos performativos, isso significa que a
essência ou a identidade que tanto pretendem manifestar na verdade são fruto de
criação da cultura, que se utiliza do discurso e do sinais produzidos pelos corpos.
Nesse sentido, Butler conclui que os corpos são performativos, eles são oriundos
meramente dos atos que produzem suas realidades. A ordem e a organização
criadas a partir do gênero que ganham uma aparência de inerentes ao ser humano
são meras ilusões que servem para regular e controlar a sexualidade, em um
esforço de se deslocar uma criação política para a noção de essência, de
inexorabilidade do sexo. O gênero verdadeiro do qual alguém faz parte não passa
de uma fantasia registrada sobre o corpo de forma superficial. Não há uma
verdade sobre o gênero, ao mesmo tempo, ele também não pode ser considerado
falso. Ele é simplesmente produto de um discurso de identidade instaurada pelo
poder a partir de um determinado momento.
Butler ganhou notoriedade como fundadora da Teoria Queer ao defender
que drags, transformistas e outros que adotem um comportamento estilizado do
que teme. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 170.
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157
sexo mexem justamente com a idéia de uma identidade de gênero estabelecida de
forma prévia. Ela observa, entretanto, que esse tipo de comportamento não foi
bem recepcionado no meio feminista, especialmente por dois motivos. O primeiro
seria um entendimento acerca dos drags e dos transformistas como uma espécie
de degradação da mulher e o segundo porque tais comportamentos seriam apenas
uma apropriação dos estereótipos estabelecidos em relação aos papéis atribuídos a
cada gênero a partir do modelo heterossexual
150
. Tal crítica do feminismo
vislumbrava especialmente atingir os casais de lésbicas que adotavam os padrões
masculino e feminino, cada uma com um papel no relacionamento.
A autora responde a essas críticas reconhecendo uma maior complexidade
nas noções de imitação e de originalidade estabelecidas como parâmetros pelo
feminismo para desconsiderar a paródia das drags. O comportamento desses
grupos, a princípio, segregados do feminismo expõe de forma bastante clara a
possibilidade de se provocar uma ruptura entre a primeira identificação, ou seja,
aquela estabelecida como originária a partir da relação entre sexo e gênero, e a
experiência de gênero, pois esta pode ser reformulada, vivenciada de forma
diferente. A paródia está justamente na cisão entre a anatomia da drag ou de quem
realiza a performance e o gênero que está sendo exibido. A ruptura realizada passa
pelas questões que relacionam o sexo ou anatomia, a identidade estabelecida pelo
gênero que deveria ser apresentada e o gênero que é reproduzido de fato. A
divergência é instaurada entre o sexo e o gênero e entre o gênero e a performance.
Além disso, drags podem até mesmo criar uma figura unificada de mulher, porém,
é sempre uma figura que irá desmascarar os processos de naturalização e de
regulação desencadeados pelo gênero. Drags imitam o gênero e, ao fazerem essas
imitações, revelam que o gênero em si é reproduzido, ou seja, é imitado.
Nesse sentido, a coerência entre sexo e gênero estabelecida pelo parâmetro
da heterossexualidade e da reprodução é rompida e, em seu lugar, surge uma
concepção desnaturalizada dos dois através das performances. Sendo assim, não é
somente o modelo de relação heterossexual que está em xeque e sim todas as
divisões sociais e de trabalho que decorrem dessa suposta relação complementar
necessária imposta pelo modelo reprodutivo, que atribui papéis diferentes de
acordo com o sexo. Esses papéis instituídos foram questionados das mais diversas
150
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 174 et. seq.
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158
formas ao longo da história do feminismo, conforme visto anteriormente, em um
esforço do poder constituinte em persistir na liberação da mulher. Porém, não há
dúvida em relação à radicalização que a Teoria Queer constata nas experiências
drags, e também não é por outro motivo que ao longo do desenvolvimento do
feminismo muitas mulheres sentiram a necessidade de se vestirem como homens
para que a realização de seus projetos de vida fosse possível, utilizando a
performance como uma linha de fuga.
O deslocamento propiciado por essas performances cria identidades mais
fluidas, abertas e mais fáceis de abordar contextos diferentes. A paródia
promovida por elas tem a função de desconstruir a noção essencialista de gênero.
Obviamente, as performances partem dessas noções hegemônicas, mas permite a
desnaturalização delas. As paródias as inserem em contextos variados, por isso as
imitações promovem um processo de deslocamento do significado de origem. A
partir desse mecanismo, cabe o reconhecimento de que a origem é um mito, não
havendo tal conceito de uma identificação originária que irá determinar tudo, o
gênero deve ser percebido como construção histórica da cultura acerca dos
significados impostos a sujeitos a partir de uma série de imitações, de repetições
responsáveis por causar a sensação de um gênero previamente estabelecido
151
.
Porém, a subversão não decorre diretamente da paródia. Por isso, é
importante perceber o que faz de uma paródia uma repetição que contribui para
causar distúrbios na concepção de gênero e o que faz uma repetição ser
meramente a reprodução da cultura hegemônica. Esse aspecto irá variar de acordo
com o contexto no qual a subversão e as confusões causadas por ela serão
promovidas. Reconhecer quais performances irão transtornar o paradigma do
gênero e sua naturalização e quais irão afirmar o masculino e o feminino
contribuindo para sua estabilização pode ser complicado. Para Butler o corpo não
é um ser constituído e sim uma superfície cujos limites e o grau de permeabilidade
serão regulados pelo poder, segundo os significados impostos pelo gênero e a
hierarquia por ele estabelecida e pela heterossexualidade. Não seria possível
afirmar que um gênero constitui o interior dos corpos. Os gêneros dos corpos, de
151
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 176.
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159
acordo com a autora, são tão numerosos quanto os mais variados estilos de
carnes
152
.
O gênero é um ato, no sentido de ser necessário para que ele se estabeleça
uma performance repetida diversas vezes. Por sua vez, as repetições são as
mesmas vivências sociais com significados já estabelecidos. Elas promovem a
legimidade dele, fazendo com que ele ganhe um aspecto natural. Existem corpos
que atuam publicamente estilizando o gênero e os significados que dele decorrem.
Os atos que estilizam o gênero têm um caráter temporal e uma dimensão coletiva.
A performance, nesses casos, se desenvolve com o objetivo de manter o dualismo
no gênero, de forma estratégica, para que fique claro que ele não é um atributo dos
sujeitos e sim os forma e consolida. Butler coloca ênfase no fato do gênero não ser
uma identidade estável dos quais os atos irão decorrer de forma natural. Ao
contrário, ele é construído historicamente a partir de uma série de atos. Dessa
forma, ele irá produzir um determinado estilo no corpo.
A identidade de gênero é, portanto, estabelecida por uma série de atos
estilizados, de repetições e de gestos ao longo do tempo e não por uma identidade
originária. Esses mecanismos de atos e gestos fazem a aproximação com a suposta
essência daquela identidade. Porém, há sempre o risco de ser percebida a
contingência dessa identidade. É nesse momento que Butler vislumbra a saída
para tal situação. As transformações que podem ocorrer nas relações de gênero
devem se apropriar do momento em que é constatada a arbitrariedade e a
atribuição aleatória desses atos. Assim, a repetição pode ser falha ou deformada a
partir das paródias, mostrando a construção do gênero a partir do poder
153
. A
constatação de que o gênero é um ato performativo confirma a inexistência de
uma identidade anterior que estabelece os atributos do gênero e seus atos de forma
prévia. Perde-se, portanto, a possibilidade de se estabelcer como parâmetro um
gênero que seja verdadeiro, válido e outro que não seja viável. As próprias idéias
de que existem um sexo e uma masculinidade e feminilidade são também
estratégias para se fundamentar a identidade e contribuir para a perpetuação das
formas de dominação exercidas pelos modelos hegemônicos de masculinidade e
de heterossexualidade.
152
Ibid., p. 177.
153
Cf. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 179.
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160
Existem diversas teorias feministas que trabalham com a concepção de
identidade, conjugando problemas como os de classes sociais, raças, sexualidade e
diversas outras. Butler ressalta que todas elas concluem o rol de interessados e
afetados pela luta feminista sempre com um etc. Isso para a autora sugere algo de
extrema relevância, que é a impossibilidade de se concluir uma lista desse porte.
Os sujeitos dela estão sempre situados, porém, os adjetivos nunca são suficientes
para categorizá-los de forma integral. Para a autora, essa impossibilidade é muito
importante, pois expõe que o processo de significação não tem limites. Pelo etc
ainda um grande campo para que o feminismo amplie suas atuações políticas e
seja sempre aberto a novas categorias excluídas.
Retornando, especificamente, às repetições subversivas, Butler retoma a
divisão tradicional entre sexo e gênero, com o sexo na esfera do fato, realidade da
qual não se consegue fugir, e com o gênero na esfera da cultura, de sua inscrição
sobre o corpo. Não é importante para a autora levantar questões sobre o
significado dessas inscrições. O tema relevante diz respeito aos aparatos utilizados
pela cultura e quais são as perspectivas de intervenções na repetição que afirma o
gênero para subvertê-la na medida em que se percebe que a faticidade do sexo é
uma construção para que os corpos a tenha como um referencial instituído, apesar
de tal ponto nunca ser atingido.
As superfícies do corpo sofrem uma atuação no sentido de naturalizá-las.
Porém, essas mesmas superfícies podem ser o lugar adequado para que as
performances que irão desnaturalizá-las sejam exercidas. As paródias podem ser
um recurso subversivo, para que tudo aquilo considerado original e real passe a
ser um efeito. Assim, as normas de gênero têm sua estrutura abalada. A
conseqüência é a multiplicação de diversas categorias de gênero, bem como o
distúrbio causado na identidade e a derrocada do gênero como essência, como
algo localizado no interior do corpo. Há também uma subversão da abordagem
naturalizada das relações heterossexuais, que possuem como sujeitos atores um
homem e uma mulher.
O feminismo, assim como outros movimentos de minorias, parece ter quase
sempre feito uso do apelo da identidade para as suas lutas, com a necessidade de
se definir o seu sujeito, a mulher. Esse apelo ora reuniu ora causou diversas
rupturas no movimento, fazendo surgir as mais diversas correntes que abarcavam
outras identidades também forjadas pelo poder. O interessante na abordagem de
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161
Butler é justamente o reconhecimento da autora em relação a ao recurso da
identidade, pois ao mesmo tempo em que o feminismo entendeu ser fundamental
para a sua luta política, esse foi um recurso que colocou limites a ele no que se
refere aos avanços e possibilidades culturais aos quais ele deveria estar aberto e
receptivo, fazendo com que a luta feminista ganhasse mais espaço, conseguisse se
expandir.
Ele deixou de compreender, durante muito tempo, que o sexo deveria ser
tratado como uma estrutura constitutiva de poder e não como um fundamento
natural que serviria para a união de todas as mulheres. A autora observa que, na
medida em que a identidade passa a ser considerada um efeito, e não mais a
origem, uma possibilidade que estava fechada pelas teorias que consideram a
identidade como algo fixo é agora aberta. A identidade deixa de ser uma completa
fatalidade e pura arbitrariedade. A partir dessa desconstrução realizada pela
autora, há a possibilidade de novas construções que irão atender melhor às
necessidades do movimento feminista.
Por esse motivo, o feminismo não deve se preocupar em ficar fora das
identidades forjadas pelo poder, já construídas. Isso iria fazer com que ele se
perdesse, inclusive, de suas questões culturais locais que devem ser trabalhadas,
fazendo com que um sujeito universal fosse também forjado, retornando, dessa
forma, às estratégias de dominação que criticam muito bem. Sua principal
preocupação, ressalte-se, bastante complexa, é procurar estratégias de repetições
subversivas que são viabilizadas ou mesmo permitidas pelas incoerências internas
da própria tentativa de estabilização ds identidades. Isso é o que a autora
denomina como “immanent possibility of contesting them”
154
. A desestabilização
é um mecanismo característico da resistência, conforme interpretado por Antonio
Negri
155
.
Cabe ressaltar que a autora desconstrói termos, em especial mulher e
identidade, porém, ela faz uma ressalva que aparece ao longo de todo o seu
154
“Possibilidade imanente de contestá-las”. Por isso, houve a necessidade de abordar o plano de
imanência no capítulo inaugural. Os principais autores aqui trabalhados produzem a partir desse
pressuposto e a crítica específica de Butler aos modelos identitários seria inviável se ela não
trabalhasse com o plano de imanência, bem como a explicação da origem dada por Negri e Hardt
da identidade na Modernidade. BUTLER, J., Gender trouble: feminism and the subversion of
identity, p. 188.
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trabalho reiteradamente: desconstruir a identidade não é desconstruir a política e
sim é colocar como política a utilização e articulação da identidade em vez de dar
um aspecto natural a ela
156
. A preocupação da autora é justamente mostrar a
estratégia de naturalização por trás desse conceito. Há nessa discussão ainda um
outro problema para o feminismo, pois a crítica que desestabiliza esses dois
termos causa transtorno para ele, pois são conceitos que fundam o movimento. Ao
mesmo tempo em que ele parte de um pressuposto presumido, fixado, o qual ele
mesmo ajuda também a fixar, qual seja, a identidade “mulher”, ele pretende
liberá-la, o que pode parecer uma situação paradoxal e uma forma deve ser
encontrada para o retorno do processo liberatório.
A repetição dos atos performativos não é uma escolha, ela acontece em
função da reprodução das identidades. Portanto, a questão não está no plano da
possibilidade ou não de uma repetição e sim na forma pela qual essa repetição irá
ocorrer para que as normas de gênero sofram um deslocamento, possibilitando
que os gêneros sejam proliferados. Sendo assim, a principal questão do feminismo
é saber se apropriar novamente desses momentos para que as barreiras instituídas
pelo gênero, ou poder constituído, possam ser absorvidas pelos atos performativos
subversivos, ou poder constituinte, e transformadas em processo de liberação da
mulher, com toda a fluidez e amplitude que o termo “mulher” possa alcançar.
O feminismo, para Butler, é cunhado com o objetivo de provocar
transformação social nas relações de gênero, ainda que o termo gênero não seja o
mais adequado para ser utilizado após a exposição do desenvolvimento teórico da
autora. As variações entre as teorias feministas se referem às diversas formas de
transformação social que podem decorrer de cada uma delas, na medida em que
uma considera relevante um determinado tipo de transformação, enquanto outra se
155
Tema já abordado ao longo do primeiro capítulo, ao se realizar a análise da insurreição, da
resistência e do poder constituinte a partir da perspectiva trabalhada no livro Cinco lições sobre o
Império.
156
Ao longo do trabalho foi citada a concepção de política de Rancière e a diferença que ele
aponta entre política e polícia. O autor atribui a banalização do termo política a uma interpretação
equivocada do conceito de poder de Foucault, que atrela o poder à polítca. Seu conceito de política
foi apresentado no primeiro capítulo, bem como a diferença entre política e polícia. No caso de
Butler, ela parece fazer tal confusão entre poder e política quando se adota a diferença observada
por Rancière entre os termos. Por esse motivo, quando a autora fez uso da política em seu sentido
amplo, no sentido de poder, a dissertação apresenta o termo poder, para se adequar à perspectiva
de Rancière, adotada inicialmente. Porém, é importante fazer a ressalva da utilização desses
termos ao longo desse capítulo, para evitar uma compreensão equivocada acerca da coerência do
texto.
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dedica a um rumo diferente para o feminismo. Na perspectiva da autora, a própria
teoria feminista já pode ser considerada como uma transformação, apesar de não
ser suficiente para que essas transformações se reflitam nos campos da política e
do social. Nesse sentido, as intervenções, as ações dos movimentos são de grande
importância. No momento dessas transformações sociais, a autora considera que
todos nós somos filósofos
157
.
As perguntas que devem pautar o feminismo para que ele consiga promover
as transformações sociais são aquelas que refletem preocupações acerca da
própria sobrevivência da mulher. Sendo assim, são questões que pensam sobre as
formas de vida consideradas como vida pelo poder, e de quem é o privilégio de
viver, bem como tudo aquilo que leva à definição de seu início e fim e quais são
as estratégias para que uma vida seja jogada contra outra. Além disso, devem ser
consideradas também as discussões sobre as condições e os significados nos quais
elas devem surgir e quem deverá ser designado para cuidar delas assim que
surgem, bem como quem deverá cuidar da vida da mãe e quais são os valores que
irão tutelá-la. Essas últimas questões são ainda de maior relevância, uma vez que
o feminismo maternal sempre tende a retornar. Por fim, a última questão
trabalhada sobre o tema é no sentido de produzir uma reflexão sobre a morte
daqueles que não se ajustam ao gênero ao qual deveriam pertencer, segundo as
normas por ele estabelecidas. Estão incluídas nessa última questão as formas de
contestação do modelo instituído pelo gênero e os papéis atribuídos a cada um a
partir dele. Tudo isso significa que a proposta é pensar sobre como a vida é
organizada pela cultura, como são estabelecidos os valores e as normas que
regulam o corpo e como surgem novos valores e normas que podem mexer na
estrutura dos antigos.
A autora aborda a normatividade a partir de um duplo sentido, pois ora é
considerada uma aspiração social, um norte para as ações e relações soiais, ora diz
respeito ao procedimento que normaliza determinadas concepções, estabelecendo
de forma coercitiva o desenvolvimento dos homens e das mulheres a partir dos
critérios definidos como modelos. Essas normas são responsáveis por governar a
vida e definir os verdadeiros homens e mulheres. Por isso, ao afrontar essas
normas, as vidas já não sabem mais se existem ou não ou se têm algum valor, se
157
Cf. BUTLER, J., The question of social transformation, In BECK-GERNSHEIM, E., BUTLER,
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seus gêneros são reais ou não, em virtude de estarem em sentido contrário aos
modelos da norma.
A norma promove uma união, porém, essa união ocorre a partir da exclusão,
no caso, da exclusão realizada a partir do gênero. Dessa forma, é sempre
necessário perceber quais são os tipos de normas que o governam. Um dos
esforços da autora ao longo do Gender trouble foi realizar esse reconhecimento.
Além disso, ela demonstrou que, apesar de não haver uma possibilidade fora da
estrutura das normas, elas não são fixas, ou estabelecidas previamente. Elas
decorrem de práticas culturais. Sendo assim, podem ser rejeitadas, transformadas,
não necessitando de aceitação na forma como elas se encontram.
A obra fundadora da Teoria Queer foi escrita com o objetivo de analisar os
procedimentos instaurados pela heterossexualidade, pelos processos de identidade,
para a normalização das relações de gênero e para perceber as possibilidades de
ruptura trazidas por quem causa confusão nas normas de gênero. O seu
fundamento não foi a dignidade da pessoa humana, um mero reconhecimento de
outras formas de vivenciar o gênero. O objetivo ia muito além disso, pois a autora
afirma que queria causar um grande distúrbio na forma como a própria teoria
feminista e as demais teorias sociais costumavam abordar e trabalhar com as
questões de gênero.
A teoria apresentada realmente causou grandes distúrbios, pois tanto nas
teorias feministas como nas estruturas de um patriarcado, a cultura que servia de
modelo para ambos naturalizava as diferenças sexuais, estas estavam bastante
arraigadas como pressuposto de grande parcela do feminismo. O distúrbio foi
causado , portanto, pela contestação da diferença sexual em si realizada por tal
teoria. Nesse sentido, a partir dessas críticas, as possibilidades aumentaram,
havendo quem quisesse ser incluída na categoria “mulher”, quem questionasse o
seu pertencimento a tal grupo e quem defendesse a existência de categorias
diferentes, alternativas às já moldadas. Todas essas possibilidades teóricas
surgiram após o advento da Teoria Queer.
Um dos argumentos mais citados da Teoria Queer diz respeito às categorias
estabelecidas nas relações homoafetivas, pois segundo o argumento de Butler, elas
não correspondem aos modelos tradicionais de homem e mulher estabelecidos
J.; PUIGVERT, L., Women and social transformation, p. 1 et. seq.
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pela heterossexualidade, mas ao contrário, trabalham para que a originalidade
estabelecida pela heterossexualidade seja desconstruída, a partir do momento em
que expõem a performatividade da qual a originalidade é fruto. Apesar do
argumento enfático de Butler no sentido de negar a mera cópia nas repetições
desses relacionamentos em relação ao gênero, cabe ressaltar que o caráter
subversivo dessas repetições também não é automático e, dependendo do caso,
pode sim significar uma mera cópia da estrutura heterossexual de relacionamento,
se uma das partes faz uso do mesmo mecanismo de dominação masculina que
aparece nas relações heterossexuais propriamente ditas. A subversão está atrelada
à ruptura entre a sexualidade e o gênero que determinado corpo deveria
reproduzir, porém também está atrelada à possibilidade de criação, de reinvenção
dos gêneros a partir dessa ruptura. De qualquer forma, é pertinente a posição da
autora que considera relevante o fato dessa estrutura homoafetiva deixar bastante
claro que não há originalidade, que há em seu lugar sempre uma construção
performativa.
As teorias feministas tinham diversos argumentos para que a manutenção
das diferenças sexuais prevalecesse. Havia algumas que se apoiavam na biologia
para defender a necessidade das diferenças entre os sexos. Outras entendiam que
essas diferenças eram fundamentais para que a cultura e a linguagem
conseguissem nascer. Nesse segundo caso, existia ainda uma divisão entre aqueles
que consideravam essa ordem simbólica entre os sexos inevitável, sugerindo que o
patriarcado é algo inexorável em nossa sociedade, do qual não se pode escapar, e
aqueles que, apesar de considerarem as diferenças sexuais entre homens e
mulheres inevitáveis, o formato instituído pelo patriarcado poderia ser contestado.
Butler insiste acertadamente que as diferenças entre homens e mulheres não são
compreendidas quando se recorre somente às diferenças sexuais no sentido
tradicional, ou seja, entre macho e fêmea. Ao contrário, as distinções entre macho
e fêmea estão longe de auxiliar na complexa relação de gênero estabelecida pela
cultura. A diferença sexual está relacionada a uma ordem simbólica, que
estabelece os conceitos de homem e mulher. Esses conceitos não possuem uma
formulação tão óbvia quanto o que se costuma argumentar.
As diferenças sexuais foram tão combatidas pela a autora em virtude dela ter
como objetivo desconstruir o essencialismo que se apoiava sobre elas e afirmava
que o gênero era uma verdade, pertencendo ao interior do corpo, era um dado que
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não podia ser contestado, como um fato natural. O final do Gender trouble é
dedicado a uma análise sobre o movimento de drags, que, através da paródia, leva
a rupturas políticas das relações de gênero e entre sexo e gênero. A autora recebeu
algumas críticas em relação a esse tratamento dado a tal movimento. Em suma, foi
sugerido que ela reduziu a política à parodia e, além disso, que atrelou o
movimento drag a uma forma de resistência e de intervenção
158
.
A resposta a essas duas críticas é dada pela autora ao longo da releitura e
das considerações que ela faz sobre seu trabalho. O primeiro ponto a ser
considerado é a própria experiência de Butler. Ela afirma que o trabalho de
Gender trouble decorreu mais de sua experiência de militância do que de uma
pesquisa teórica. Nesse sentido, ela retoma a sua história para esclarecer que
durante a sua juventude ela freqüentava um bar gay, que depois passou a ser
voltado para o público drag. O ambiente do bar a colocava, portanto, em contato
com pessoas desse movimento, que a faziam pensar sobre as teorias de gênero.
Aqueles que tinham uma definição primária como homens conseguiam fazer
transparecer um feminino muito mais forte do que a representação da autora,
apesar dela ter sido submetida à definição primária de feminino. Eles eram
capazes de expressar melhor do que ela esse gênero e, além disso, desejavam mais
essa representação do que ela. Por outro lado, a autora nunca conseguiu sentir que
aquela feminilidade que eles expressavam fazia parte dela.
A experiência vivenciada por ela nesses locais a fez concluir que somos
compelidos a representar determinado gênero, segundo as normas que o
regulamentam e essa forma de atuação do poder nas superfícies dos corpos com o
intuito de constitui-los é caracterizada por ela como algo muito violento. O
aparato de controle passa pela cultura, pelas leis e pelos códigos psiquiátricos, por
exemplo, e tudo o que for necessário para tornar esse paradigma cada vez mais
institucionalizado. Atualmente, as violências ainda são impostas de acordo com a
performance de gênero realizada.
Essa observação não é pertinente somente para a reflexão sobre as
performances que rompem com o liame imposto entre sexualidade, sexo e gênero.
Ela serve também para interpretar os atos performativos dos movimentos
158
Cf. BUTLER, J., The question of social transformation, In BECK-GERNSHEIM, E.; BUTLER,
J.; & PUIGVERT, L., Women and social transformation, p. 9.
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feministas que tinham como objetivo fazer oposição à divisão de papéis
tradicionalmente realizada pelo poder também a partir das categorias homem e
mulher e que foram alvo constante dos esforços do poder constituído para limitá-
los, fazê-los retroceder. O movimento de drags contribui para demonstrar uma
possibilidade de rearticulação dos parâmetros impostos pelo gênero e pela
heterossexualidade. A forma pela qual o gênero é instituído, transformado em algo
estável e naturalizado tem grande relevância, mas tamm é importante aos olhos
da autora reconhecer os momentos em que são realizados os desafios ao dualismo
instaurado no gênero através de atos que extraem qualquer coerência inerente a
ele, pois é a partir desse momento que o gênero passa a ser compreendido como
construído culturalmente e, por isso, passível de reformulação.
A performance drag ingressa no campo da política
159
por demonstrar que as
noções de real, ou de sensível, podem ser alvo de disputa de outras noções de
realidade, que ela não é estática e sim construída. Sendo assim, há construções
alternativas elaboradas em um sentido distinto ao implementado pela hegemônica.
Um dos pontos mais interessantes do argumento de Butler é o fato dela chamar
atenção para os mecanismos de desconstruções e construções serem realizados
nos próprios corpos. Assim, há a possibilidade de se vivenciar a ultrapassagem da
norma pelos, bem como os trabalhos que ela fará para se atualizar, porém,
afirmando que é justamente esse movimento que permite a percepção do não
fechamento da realidade na qual se acredita estar preso.
O processo de criação do Outro é efetivado justamente com a
desconsideração desse Outro como real, pois a realidade, para o poder, está
atrelada às identidades por ele desenhadas. Não se considera o que está fora dos
parâmetros dessas identidades como humano, pois o próprio reconhecimento da
humanidade de alguém vai ser variável, de acordo com a história e a cultura. O
sujeito dos direitos humanos é também um bom exemplo dessa variação. A autora
critica o fato dele ser já conhecido, determinado e servir de ponto de partida para a
atribuição de direitos. Porém, ela entende que para que os direitos humanos não
159
Aqui a política é utilizada em um sentido próximo ao de Rancière, ou seja, a partir do conflito
entre dois sensíveis para estabelecer uma nova concepção de realidade, liberando um grupo que
antes não falava, que aos olhos do poder produzia somente ruídos. É interessante observar que a
Teoria Queer passa pelo momento da resistência, conforme vislumbrado nesse capítulo no retorno
ao comentário de Cinco lições sobre o Império ganha também um caráter revolucionário, ou seja,
de poder constituinte, na trajetória elaborada por Butler.
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168
sejam excludentes, uma reflexão acerca do alcance, da dimensão do humano deve
ser realizada constantemente
160
.
A partir do reconhecimento do gênero como algo produzido pela
performance, a realidade passa a ser compreendida da mesma forma, sendo, na
verdade, fruto das performances. Sem dúvida, há normas que ditam o que é real e
o que não é, mas elas são atingidas pelos atos performativos quando os corpos
percebem que nem elas são imutáveis, nem eles estão constituídos de forma
definitiva. Os atos performativos contribuem para o entendimento das
engrenagens das normas que ditam a realidade e também para esclarecer a forma
como a realidade é reproduzida e como pode ser alterada a partir dessa
percepção
161
.
Entretanto, é interessante observar que a autora faz uma ressalva acerca
dessas demais possibilidades de gêneros tão mencionadas ao longo do trabalho.
Ela não afirma que irá tratar de uma produção de realidade favorável a gêneros
que ainda não existem. A sua pretensão é trabalhar com os gêneros que considera
como existentes já há muito tempo, porém que nunca foram assumidos pelas
normas que gerem o real. De fato, conforme apresentado no capítulo anterior, o
amor entre mulheres apareceu algumas vezes no decorrer da história que culminou
com o surgimento do feminismo e, como também já mencionado, existiam
aquelas que atuavam em uma performance diferente da estabelecida pelo seu
gênero primário, seja por uma necessidade de fuga dos planos que suas famílias
160
Cf. BUTLER, J., The question of social transformation, In BECK-GERNSHEIM, E.;
BUTLER, J. & PUIGVERT, L., Women and social transformation, p. 22. A autora não defende
uma perspectiva relativista de direitos humanos, pois o relativismo inviabilizaria uma fala a partir
do humano e dos direitos humanos, já que sempre irão existir abordagens locais sobre esses dois
temas. Porém, para que os processos liberatórios ocorram, para que as transformações sociais,
especialmente no que diz respeito à situação das mulheres, sejam viabilizadas em nome do
humano, em nome das mulheres, é necessário ter em mente que o termo “humano” tem uma
trajetória bastante diversificada e que nem todos os humanos, em sentido amplo, foram
considerados humanos ao longo de toda a existência do termo. O mesmo acontece com o termo
“mulher”. Por isso, a autora ressalta tanto a importância de uma reflexão histórica sobre os termos
antes de empregá-los. Outros termos também devem ser pensados, como a apropriação queer do
próprio termo queer, ou ainda a apropriação realizada pelo movimento negro de termos de cunho
racista, e a autora destaca aqui o movimento hip-hop. As apropriações em si nada significam,
podendo gerar as conseqüências mais diversas. Algumas dessas conseqüências irão ser
recepcionadas pelos movimentos, enquanto outras serão descartadas, como coloca Butler.
161
Nesse sentido, Butler segue afirmando que os ativistas drags não ficam restritos à simples
apresentação de um mecanismo de subversão, eles conseguem realizar uma alegoria dos
mecanismos pelos quais a realidade é reproduzida e contestada. Cf. BUTLER, J., The question of
social transformation, In BECK-GERNSHEIM, E., BUTLER, J. & PUIGVERT, L., Women and
social transformation, p. 14.
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tinham para suas vidas, seja por uma questão de afinidade com outro gênero em
vez daquele que lhes foi atribuído.
A complexidade de gêneros já estava presente, apesar da estrutura que
forçava uma apreensão da realidade em sentido diferente e, já que as normas não
as consideravam reais, existentes, elas agora são denominadas como novas. A
autora afirma ter uma aspiração normativa, por considerar inviável não haver
nenhuma. Porém, sua normatividade seria pautada por uma “filosofia da
liberdade”
162
. As normas podem ser explicitadas ou não. O mais comum quando
se trata de uma norma que tem como procedimento a normalização de práticas
sociais, elas têm forte tendência a serem obscuras, difíceis de serem identificadas
como um procedimento com essa função.
O motivo para se preferir uma norma de caráter mais implícito é evidente:
ela incide dessa forma para que a condição estabelecida ganhe um aspecto natural.
Sendo assim, a norma está separada e é imparcial em relação às ações por ela
reguladas somente de forma aparente, pois o seu papel é impor e dar legitimidade
a deteminadas práticas, em detrimento de outras. Segundo Butler, o gênero, por
exemplo, é uma estrutura na qual se realiza a normalização do feminino e do
masculino, não é algo que as pessoas são ou possuem. Evidentemente esse é o
discurso contrário ao do poder. A produção desse dualismo é contingente e
conjuga argumentos de ordem hormonal, genética, psicológica e, além disso,
conta com as performances, os gestos realizados pelos corpos.
Porém, o dualismo instaurado pelo feminino e masculino não exaure os
gêneros. Uma teoria feminista que considere como única possibilidade para a sua
formulação o reconhecimento do dualismo homem/mulher não faz outra coisa
diferente da afirmação das estruturas regulatórias do poder. A teoria de Butler é
assumida por Negri e Hardt, não somente por perceber que a performance drag
deixa completamente exposta a arbitrariedade dos gêneros, como também por
abrir a possibilidade de repetições criativas, inovadoras, uma vez constatada essa
162
BUTLER, J., The question of social transformation, In BECK-GERNSHEIM, E.; BUTLER, J.
& PUIGVERT, Lídia, Women and social transformation, p. 15. A normatividade defendida pela
autora não tem um conteúdo prévio, pois caso contrário, sua teoria seria inconsistente. Quando ela
menciona uma normatividade necessária e a atrela ao que ela denomina como filosofia da
liberdade, a interpretação deve ser no sentido de considerar essa normatividade como fluida, como
algo que irá ser transformado de acordo com as necessidades históricas e culturais. Essa fluidez
perpassa outros conceitos da autora, como, por exemplo, o termo “mulher”, examinado logo no
início do capítulo.
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arbitrariedade. Ao propor uma confusão nos gêneros, a autora afirma que existe
uma forma de os gêneros transitarem entre o masculino e o feminino, além do
dualismo naturalizado. Nesse sentido, a concepção de democracia de Butler não
abraça a unidade, e sim a dissonância, a discordância, ou, em outras palavras, o
dissenso.
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5
Conclusão
O trabalho teve origem em duas grandes propostas: a primeira delas foi
fazer uma leitura das teorias feministas e do movimento feminista utilizando os
recursos elaborados por Antonio Negri, no intuito de avaliar essa expressão
peculiar do poder constituinte e seu desenvolvimento em relação ao objetivo de
liberação da mulher; a segunda foi promover um encontro entre as teorias de
Judith Butler, Antonio Negri e Michael Hardt, aproveitando a referência feita
pelos dois últimos à primeira, ao reconhecer os atos performativos como forma de
ação da multidão.
Essas propostas necessariamente iriam se cruzar, pois enquanto uma parte
era dedicada à percepção do processo revolucionário desencadeado pelo
feminismo, bem como às armadilhas impostas a ele para impedir esses avanços, a
outra pretendia também analisar os motivos que levavam o feminismo a ceder e a
sucumbir ao longo de sua história diante do poder constituído e apontar qual a
solução para o problema. Dessa forma, percebe-se que o apelo à identidade não
seria a forma de luta mais adequada. Tal constatação não é muito fácil de ser
absorvida, pois em regra o discurso identitário pode atender às necessidades, pelo
menos a princípio, dos movimentos de minorias. Ele é utilizado como um grande
fator que vincula um grupo de pessoas a uma determinada causa.
Por esse motivo, Negri e Hardt não deixam de considerar a especial
importância que a identidade teve, e continua tendo, para Estados que sofrem com
determinadas opressões estrangeiras, em um confronto entre uma cultura
hegemônica e uma cultura desconsiderada. Porém, como bem ressaltam os
autores, nessas hipóteses, geralmente quando são observadas as condições internas
daqueles Estados, a mesma estratégia de domínio estrangeira é adotada pelo poder
que ali se reproduz para conseguir forjar uma união e combater o poder que vem
de fora. Nesse sentido, o sistema interno daquele Estado é tão excludente quanto o
externo, provocando a criação do Outro, ou dos Outros, em seu âmbito de
incidência. A identidade é igualmente criada para moldar e regular os corpos,
além de segregar aqueles que não conseguem se adequar a seus padrões.
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172
A estrutura desenvolvida por Negri e por Hardt pode ser aplicada ao
feminismo. Nesse caso, a identidade é até mesmo mais ambígua em relação a uma
eficácia para a teoria e o ativismo feministas. Sem dúvida, ela é um poderoso
apelo para aqueles que estão na condição de excluídos, sempre lembrando que,
apesar da referência “excluídos”, eles estão completamente inseridos na estrutura
do poder, pois são ininterruptamente produzidos por ele. A identidade ajuda a
perceber que existem grupos que estão sobrepostos aos demais, no caso em
exame, os homens em relação às mulheres. Os subjugados se reconhecem como
tais e fazem da identificação entre eles estruturada pelo poder um mecanismo de
união para promover um engajamento na luta pela liberação daquela categoria.
Apesar dessa utilidade primária, após enfrentar o segundo capítulo da
dissertação, não há como negar que a promoção da identidade no feminismo, se
por um lado foi um fator de união, por outro lado, gerou uma série de
fragmentações no movimento, uma vez que ao se estabelecer uma arborescência,
um modelo de mulher a partir do qual as lutas seriam originadas, as demais, que
não se adequavam ao modelo, sentiam necessidade de criar uma luta própria a
partir daquilo que as identificava, ou então, simplesmente não aderiam ao
feminismo por uma completa ausência de identificação com a causa das
burguesas, brancas, heterossexuais, que em parte atendiam ao perfil da Mulher.
Em parte porque elas foram muito atreladas à luta pela conquista do espaço
público e pela autonomia financeira, bem como pelo direito à educação, não
corroborando com o papel tradicional da mulher, destinada à casa e à família.
O feminismo é permeado com as mais diversas correntes, entre elas: o
feminismo de classe, o homossexual, o maternal, o de raça, etc. Aqui o “etc”
caracteriza a insuficiência tratada por Butler dessas correntes em incluir todas as
formas de lutas possíveis que podem ser fundadas no feminismo, uma vez
constatada a heterogeneidade que atinge, no caso, a categoria Mulher, mostrando
que, apesar do trabalho desenvolvido pelo poder, ele não consegue dar um caráter
homogêneo a ela. Por esse motivo, a autora desestrutura o conceito de mulher, não
para simplesmente deslegitimá-lo, mas para defender a sua maleabilidade,
mostrando que é possível que ele seja aberto para recepcionar novas lutas, de
acordo com as necessidades instauradas em cada época, sem que o único recurso
seja a fragmentação do movimento, o que o levaria a um reforço cada vez maior
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173
da estrutura de dominação pela identidade, na medida em que o feminismo sempre
recorre a ela para tentar prosseguir com suas reivindicações.
Qual seria a outra proposta de luta? Como se daria a união de toda essa
heterogeneidade em prol da constituição de um comum que não existe
previamente? Judith Butler foi muito criticada no feminismo após o surgimento da
teoria Queer. A principal questão que se levantava contra ela na época era o fato
de haver uma dificuldade muito grande em se conceber uma espécie de luta nesse
nível, sem que houvesse uma identidade por trás dando um suporte ao ativismo,
criando um liame entre seus membros, já que essa categoria havia sido
inviabilizada como fonte de sustento para os movimentos minoritários. Nesse
sentido, é interessante retornar à concepção de comum da qual Negri e Hardt são
herdeiros, bem como à relação entre multidão e singularidades, que podem ajudar
a esclarecer a teoria de Butler, após tantas críticas no sentido de se constatar nela
uma impossibilidade completa de reunião para a luta por conquista de direitos.
A multidão é heterogênea, é composta por diversas singularidades, por isso,
tem diferenças internas. Tal fato não a impede de atuar em uma direção sem que
perca sua característica híbrida nem ganhe um aspecto totalitário. Um bom
exemplo dessa relação entre multidão e singularidades é o corpo humano, que foi
trazido de Spinoza pelos autores Negri e Hardt. Outro exemplo é a análise do
inconsciente, a partir da perspectiva de Deleuze e Guattari. A concepção de
comum trabalhada pelos autores também auxilia nesse momento.
Conforme esclarecido em nota brevemente, o comum não é compreendido
como aquilo que as singularidades possuem de forma idêntica e sim como a
relação entre a parte e o todo. Os corpos são singulares e o que há de comum entre
eles é a manifestação do todo. Por isso, ele está presente nas partes e no todo,
porém, ele não é idêntico entre as partes. Essa espécie de vínculo poderia ser
cogitada para a teoria de Butler, demonstrando que, além de não haver uma
necessidade de um apelo à identidade para a ação conjunta, também não é
necessário o receio em relação à ação da multidão.
Além disso, é importante lembrar que há uma troca entre a produção do
comum e a produção das subjetividades. Um interfere no outro, estabelecendo,
assim, novas formas de cooperação, que dão origem a uma nova subjetividade. É
nessa reprodução constante dos corpos que a inovação pode acontecer, que os atos
performativos podem ser exercidos não somente de forma a demonstrar que a
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realidade não é fixa e sim produzida e, por isso, passível de alteração. Porém, esse
tipo de concepção ainda não encontra muito espaço nas teorias feministas. A
“identidade fluida” extraída da teoria de Butler, que irá se transformar de acordo
com as necessidades das lutas, permite tal avanço. Inicialmente, porque não deve
ser entendida propriamente como uma identidade, mas sim como uma
manifestação da multidão. Com isso, alcança-se uma nova forma de mobilização,
que por si só já é revolucionária, a partir não mais de interesses individualistas ou
objetivos de ganhos diretos, mas sim da concepção de comum.
Em relação ao ativismo, caberia até mesmo uma pesquisa com o objetivo de
perceber quais são as principais estratégias de luta utilizadas por ele nesse
momento para ampliar o rol de direitos da mulher, apesar da expressão não muito
adequada nesse momento. Além disso, seria também interessante realizar uma
investigação sobre as exposições de motivos de legislações acerca do tema, com o
intuito de perceber quais são os discursos que geram essas legislações, e o
possível reflexo da incongruência e o descabimento do apelo à identidade para
que o processo liberatório da mulher prossiga.
O fato é que, se o objetivo é provocar uma grande mobilização em torno de
questões já muito saturadas no feminismo, mas que ainda são temas em nossa
sociedade, como a descriminalização do aborto, para citar um exemplo, a
identidade não teve força suficiente para realizar tal empreitada. Talvez a fluidez
do conceito de mulher defendido por Butler, bem como o reconhecimento da
heterogeneidade da multidão, força que impulsiona o poder constituinte e,
portanto, os processos revolucionários, sejam contribuições indispensáveis para os
movimentos de minorias, em especial o feminismo, começarem a permitir uma
real ampliação em seus acessos, ao mesmo tempo em que os problemas tratados
anteriormente como próprios de uma determinada categoria passem a ser
assumidos por aqueles que, a princípio, seriam externos a ela, mas que compõem
a multidão.
Dessa forma, as conexões entre os movimentos não seriam apenas mais
facilitadas, mas sim fundamentais. Na verdade, isso articularia uma união entre
eles, sem uma uniformidade. Mais do que isso, pode-se retomar a articulação feita
por Negri entre resistência, insurreição e poder constituinte. Enquanto esses
movimentos atuam na esfera da resistência, estágio no qual muitos se encontram,
eles se ocupam das questões do cotidiano, conseqüentemente, de forma dispersa.
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O momento da insurreição é posterior à resistência, podendo ser alcançado através
da presente proposta, pois a insurreição concentra as diversas formas de
resistência em um único feixe, que irá atravessar as barreiras sociais,
desembocando no poder constituinte e em toda a sua inovação.
Questões como aborto, a ligação entre a licença maternidade e a identidade
Mulher/Mãe biológica, a existência de uma licença atrelada ao parto e não à
maternidade/paternidade, a própria associação entre mulher e maternidade,
violência contra a mulher, violência contra homossexuais, a diferença salarial
existente entre os sexos, a discriminação de raça/cor, etc, novamente apropriando-
se do “etc” de Butler, tão arraigadas e naturalizadas em nossa sociedade,
deixariam de ser lutas de pequenos ou grandes grupos e seriam encaradas pelo(s)
seu(s) único(s) e verdadeiro(s) titular(es): a multidão.
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