Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
JAMESON RAMOS CAMPOS
“ERA UM SONHO DESDE CRIANÇA”: A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA
DOCÊNCIA PARA OS PROFESSORES DO MUNICÍPIO DE QUEIMADAS-PB
NATAL-RN
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
JAMESON RAMOS CAMPOS
“ERA UM SONHO DESDE CRIANÇA”: A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA
DOCÊNCIA PARA OS PROFESSORES DO MUNICÍPIO DE QUEIMADAS-PB
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte como requisito
final para a obtenção do grau de Mestre em
Educação.
Orientadora: Dra. Erika dos Reis Gusmão
Andrade
NATAL
2008
ads:
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Divisão de Serviços Técnicos
Campos, Jameson Ramos.
“Era um sonho desde criança”: a representação social da docência para
os professores do município de Queimadas-PB / Jameson Ramos Campos. –
Natal, 2008.
173 f.
Orientadora: Profª. Dr.ª Erika dos Reis Gusmão Andrade.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-
Graduação em Educação.
1. Educação - Tese. 2. Formação de professores – Tese. 3.
Representações sociais - Tese. 4. Identidade docente – Tese. 5.
Queimadas/PB – Tese. I. Andrade, Erika dos Reis Gusmão. II. Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BS/CCSA CDU 371.13 (81) (043.3)
JAMESON RAMOS CAMPOS
“ERA UM SONHO DESDE CRIANÇA”: A REPRESENTAÇÃO SOCIAL DA
DOCÊNCIA PARA OS PROFESSORES DO MUNICÍPIO DE QUEIMADAS-PB
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte como requisito
final para a obtenção do grau de Mestre em
Educação.
Orientadora: Dra. Erika dos Reis Gusmão
Andrade
Aprovado em: _______________________________________________
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________
Profa. Dra. Erika dos Reis Gusmão Andrade
Orientadora – UFRN
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Moisés Domingos Sobrinho
Membro interno - UFRN
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Eliete Santiago
Membro externo – UFPE
______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria do Rosário de Fátima Carvalho
Suplente – UFRN.
Ao meu Pai e à minha Mãe, educadores
que me inspiraram e serviram de exemplo.
À Dafne e Anna Maria, orgulho e alegria
de minha vida.
A todos aqueles que tornaram possível esse
trabalho.
AGRADECIMENTOS
Até a conclusão dessa dissertação, dois anos de intenso trabalho se passaram.
Hoje, olhando para o que passou, já é possível fazer um balanço desses dias de alegria e
de cansaço, de esforço e de conhecimento. Essa experiência pode ser contada mais
tarde. Por ora, precisamos reconhecer que essa jornada não seria possível sem apoio,
sem companheirismo e sem ajuda providencial. Neste percurso recebi apoio e
experimentei companheirismo. Muitos foram aqueles que me ajudaram, que me
ampararam e que me deram a mão. A todos eles, o meu sincero agradecimento.
Agradeço primeiramente ao meu Pai. Seu Sebastião foi um homem simples e
trabalhador, um pai dedicado à família, paciente e amoroso. Não poupou esforços para
educar e instruir todos os filhos. Tendo partido prematuramente e contra a sua vontade,
não ficou para me ver concluir esse trabalho.
Um agradecimento especial à minha primeira professora, minha Mãe. Por suas
mãos aprendi a ler e a escrever. Pelas suas mãos me tornei professor. Dona Edorice me
ensinou a crescer e a viver. Se hoje estou concluindo mais uma etapa de minha vida,
devo isso aos esforços e aos carinhos dela.
Agradeço a Silvânia pelo carinho, pelo amor dedicado e pelo companheirismo
durante esses dois anos. Por seu intermédio e esforço cheguei a Natal. Foi ela quem me
apoiou, quem me ouviu, quem leu os meus escritos, discutiu comigo e me acompanhou
nas alegrias e tristezas dessa caminhada.
Aos meus irmão, Jâmise, Jânsen, Jamilsom e Jailsom, agradeço pela ajuda e pela
compreensão de minhas ausências demoradas.
Agradeço a Bete que, além de me dar duas filhas maravilhosas, foi minha
companheira paciente, suportou minhas ausências, cuidou e educou as meninas quando
estive distante. Sem a sua ajuda este trabalho não sairia.
Agradeço também às minhas filhas, a Dafne e a Anna Maria, que souberam
pacientemente suportar a distância do pai. Agradeço pela compreensão, pela força que
me deram e pelo carinho amoroso que me dedicaram.
À Profa. Dra. Erika dos Reis Gusmão Andrade, minha orientadora, que apostou
em mim e me acolheu carinhosamente. Sua paciência e sua sapiência muito me
ensinaram. Com ela me tornei um professor melhor e amadureci como pesquisador.
Ao Prof. Dr. André Ferrer, ao Prof. Dr. Moisés Domingos e à Profa. Dra. Maria
da Conceição Passeggi pela leitura paciente do meu trabalho e pelas críticas e sugestões
que ajudaram a torná-lo melhor.
Aos componentes da banca examinadora pela leitura atenta e criteriosa desse
trabalho e pelas críticas e sugestões.
Aos amigos e amigas que fiz durante a minha estadia no mestrado,
especialmente às companheiras e aos companheiros do nosso grupo de estudos:
Andréia, Lely, Cícera, Mariana, Aldecy, Ademárcia, Márcia, Elda, Danielle, Evaldo,
Magnus, Kiev, agradeço a todos pela amizade, e pela disposição ao diálogo e ao debate.
Aos professores do município de queimadas que estiveram comigo nessa
caminhada, colaborando, ajudando, construindo conhecimento. A sua paciência,
amizade e compreensão tornaram essa pesquisa possível.
À Temístocles pela ajuda providencial. A sua presença na Secretaria de
educação e o seu conhecimento e a amizade com os professores me abriram as portas.
Sem sua colaboração esta pesquisa não seria possível.
À José Carlos, moto-taxista que me acompanhou e me guiou pela zona rural do
município de Queimadas em busca dos professores. Um conhecedor profundo de todas
as veredas e caminhos.
Aos amigos professores Ranieri Ferreira e Eduardo Jorge pelo apoio
incondicional ao meu afastamento para o mestrado.
À Lívia Sampaio que fez a gentileza de traduzir o resumo para o inglês e à D.
Letinha que com grande competência fez a revisão de linguagem desta dissertação.
À Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e à Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) por viabilizarem a realização desse estudo.
Ao seu Dedé e aos amigos fraternos que encontrei em seu estabelecimento em
Ponta Negra. Neles encontrei apoio e incentivo. Com eles dividi momentos agradáveis e
encontrei a paz serena dos bons amigos.
Às diretoras das escolas e creches municipais de Queimadas que pacientemente
me acolheram e se colocaram à disposição para me ajudar.
A todos que de maneira direta ou indireta contribuíram com esse trabalho, me
abrindo portas, fazendo sugestões ou simplesmente me incentivando a seguir em frente.
Por fim, gostaria de fazer um agradecimento e render uma homenagem especial
à minha Avó, Maria Lizete Ramos, um dos maiores exemplos de vida que alguém pode
ter. Ela se foi e nos deixou muita saudade.
RESUMO
O objetivo desse trabalho foi acessar e compreender a representação social
(MOSCOVICI, 2005) da docência para os professores da educação infantil e do ensino
fundamental do município de Queimadas na Paraíba. Partimos do princípio de que essa
representação que permite ao professor nomear a sua profissão e agir em relação a ela, é
produto de regularidades que se expressam na forma de um habitus (BOURDIEU,
1983a), matriz geradora de percepção e de ação. Que esse habitus professoral tem suas
raízes nas experiências e trajetórias de vida social e profissional do grupo. Assim, a
partir de algumas variáveis procuramos acessar o perfil do professorado pesquisado e
nos aproximar do seu estilo de vida para compreender suas escolhas pela profissão e a
representação social do ser professor para esse grupo. Nesta pesquisa foram usadas
quatro fontes de dados: a) Os Questionários de Caracterização; b) os Questionários de
Práticas e Significados; c) os Relatos de Experiência e; d) as Entrevistas em
Profundidade. A análise do material coletado foi feita através da estatística simples
(freqüência), do cruzamento de variáveis através de tabelas cruzadas e da análise
temática de conteúdo. Os resultados apontam para a existência de um grupo
relativamente homogêneo no que diz respeito à sua origem social e ao estilo de vida e
para uma imbricação entre essa origem e esse estilo e a escolha da profissão. A
representação do ser professor, por seu lado, se apresenta de maneira multidimensional.
Quatro dimensões se entrecruzam e se articulam para fornecer ao professor uma
representação coerente desse ser: as dimensões do amor e do cuidado, da ajuda e da
doação, do ensinar/aprender e do sacrifício e da esperança. Os elementos dessa
representação estão ancorados nos esquemas de percepção e apreciação do grupo, nas
regularidades e nas experiências de vida religiosa, familiar, de gênero e profissional.
Nestas regularidades encontramos os elementos que compõem o habitus professoral que
orienta percepção e ação, representação e prática cotidiana desses professores. A
representação social do ser professor aparece ainda como elemento balizador da
identidade profissional do grupo de professores. Encontramos também, indícios de
mudanças nas práticas desses profissionais desde que concluíram o Curso de Pedagogia.
Não sabemos, entretanto, se tais mudanças são apenas pontuais ou apontam para
indícios de uma transformação do habitus professoral ou da representação social do ser
professor.
Palavras-chave: Formação de Professores, Representações Sociais, Habitus, Identidade
Docente.
ABSTRACT
The objective of this work was to access and understand the teaching social
representation (MOSCOVICI, 2005) for the teachers of the children education and
fundamental education at Queimadas city, Paraíba. We assume that one representation
that allows the teacher to name its profession and to act on it, is a derivative of
regularities that are expressed by means of a habitus (BOURDIEU, 1983a), generative
matrix of perception and action. This teaching habitus is originated from the
experiences and the trajectories of social and professional life of the group. Therefore,
from some variables, we tried to access the profile of the group of teachers studied and
to get closer of their life style to understand their profession choice and the teaching
social representation for this group. In this research, it was used four data sources: a) the
questionnaires of characterization; b) the questionnaires of practices and meanings; c)
the experience reports and; d) the interviews in depth. The analysis of the data collected
was done by means of the simple statistics (frequency), the intersection of variables
through cross tables and, the thematic analysis of the contents. The results show that
there is a lightly homogeneous group in terms of its social origin and its life style,
moreover, they conduct to an overlap between this origin/style and the professional
choice. On the other hand, the teacher representation is multi-dimensional such that, all
dimensions intercept and articulate with each other to provide a concise teacher
representation. They are four dimensions: love and care, help and donation, teaching
and learning and, sacrifice and hope. The elements of the teacher representation are
substantiated in the schemes of perception and appreciation of the group, in the
regularities and life experiences in the context of religion, family, gender and
profession. In these regularities we find the elements that comprise the teaching habitus
which drives perception and action, representation and daily practice of these teachers.
The teaching social representation is still perceived as a threshold for the professional
identity of the group of teachers considered. We also observed that there are signs of
changes in the practices used by these professionals since they graduate from the course
of pedagogy. However, it is not possible to say that these changes are isolated or they
lead to a transformation in the teaching habitus or the teaching social representation.
Keywords: Teachers training, Social representations, Habitus, Teacher identity
LISTA DE TABELAS
TABELA 01: Rendimento nominal mensal da população do município de
Queimadas (PB)
68
TABELA 02: Profissão do pai e da mãe dos professores
71
TABELA 03: Nível de escolarização dos pais dos professores
73
TABELA 04: Cruzamento das variáveis distância do local de trabalho e meios
de transporte utilizados
75
TABELA 05: Formação pedagógica anterior ao Curso de Pedagogia
78
TABELA 06: Cruzamento das variáveis tempo de serviço e idade
81
TABELA 07: Atividades de lazer desenvolvidas nos fins de semana e feriados
83
TABELA 08: Tipos de leitura mais freqüente
84
TABELA 09: Motivação para a escolha da profissão
89
TABELA 10: Variáveis da escolha por vocação e por acaso e necessidade
90
TABELA 11: Problemas enfrentados na profissão
118
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 01: Disposição dos professores por idade
70
GRÁFICO 02: Familiares que exercem ou exerceram a profissão por grau de
parentesco
80
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 01: As dimensões da representação social da docência 102
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE TABELAS
LISTA DE GRÁFICOS
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO
14
Definindo o objeto e os objetivos da pesquisa
15
Definindo os aportes teóricos 19
A investigação social como prática e como atitude: os caminhos da pesquisa
empírica
30
A estrutura do trabalho 37
CAPÍTULO I
Para uma história da profissão docente no Brasil 39
1.1. Introdução
40
1.2. Os antecedentes: um longo e tortuoso caminho se descortina 42
1.3. As exigências de formação e de certificação: a profissão docente ganha
corpo
46
1.4. Grupos escolares e feminilização do magistério: os novos rumos da docência 49
1.5. Os professores se organizam 54
1.6. Em busca das regularidades estruturantes do ser professor 57
CAPÍTULO 2
Os olhos e as faces da docência: investindo na construção de um perfil e na
compreensão do estilo de vida do professorado pesquisado
63
2.1. Introdução
64
2.2. Uma cidade feita de homens e pedras 65
2.3. Construindo o perfil dos professores e o seu estilo de vida 69
CAPÍTULO 3
A docência como representação e como condição social 87
3.1. Introdução
88
3.2. A difícil arte de escolher a profissão: ser professor no universo do possível
89
3.2.1. A docência como vocação 91
3.2.2. A docência como obra do acaso e da necessidade 96
3.3. Ser professor: a representação e suas dimensões
100
3.3.1. A dimensão do amor e do cuidado 103
3.3.2. A dimensão da ajuda e da doação 108
3.3.3. A dimensão do ensinar e do aprender 113
3.3.4. A dimensão do sofrimento e da esperança 117
CAPÍTULO 4
Construindo um lugar no mundo e na profissão: representação social e
identidade docente
125
4.1. Introdução
126
4.2. Identidades docentes em construção 127
4.3. Representação social, identidade docente e resistência 133
CONSIDERAÇÕES FINAIS
144
REFERÊNCIAS 150
APÊNDICES 159
Apêndice A – Questionário de Caracterização 160
Apêndice B – Questionários de Práticas e Significados 164
Apêndice C – Roteiro de Entrevista 168
Apêndice D – Relatos de Experiência 170
INTRODUÇÃO
15
Definindo o objeto e os objetivos da pesquisa
Em viagens pelo interior da Paraíba, ministrando disciplinas no Curso de
Pedagogia em Serviço oferecido pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, em
parceria com as prefeituras locais, pudemos desenvolver, com a ajuda de um
instrumento interrogativo, um diagnóstico preliminar da situação dos professores
cursistas destes municípios. Inicialmente centrado na aplicação e análise de três
questionários, o diagnóstico procurou buscar informações sobre três aspectos da vida
destes profissionais: a) suas expectativas quanto à profissão e os motivos que os
levaram à escolha e permanência nesta atividade, b) suas condições de trabalho e c) suas
relações com os alunos, com os outros profissionais da escola e com a comunidade.
Embora as informações que levantamos tenham servido de embasamento ao meu
trabalho como professor nestes municípios, a leitura e a posterior organização dos dados
colhidos revelaram-se extremamente ricos não só pelas questões propostas, como pela
similaridade das situações, mesmo em cidades geograficamente distantes. Constatamos
ser comum o fato de que grande parte dos professores, todos eles docentes das séries
iniciais do ensino fundamental, tenha entrado no magistério porque “era um sonho que
acalentava desde criança”, ou ainda porque “gosto de trabalhar com crianças”. Aparece,
também, em suas falas a afirmação de que o trabalho com as séries iniciais do ensino
fundamental é próprio das mulheres, pois estas “têm mais jeito para lidar com crianças”,
ou “são mais carinhosas”, e mesmo dos homens, desde que estes estejam preparados e
tenham jeito com as crianças. Estas afirmações parecem colocar o trabalho do professor,
destas séries iniciais, no mesmo patamar da atividade materna e paterna, muito ligada à
questão do cuidado. A esta visão que chamarei inicialmente de romântica, segue-se uma
outra diametralmente oposta, relacionada diretamente com as condições objetivas de
vida desses professores. Muitos dos docentes pesquisados ingressaram no magistério
porque “no meu município não havia uma outra opção de trabalho” ou “entrei no
magistério por um acaso, substituindo uma professora que viajou”. Nas duas
perspectivas, ao que parece, a profissão docente ou depende da vocação e, para isto,
basta ter amor, gostar e saber lidar com as crianças, ou do improviso e da adaptação às
novas situações colocadas pelo acaso
1
.
1
Ver: VIEIRA, Sofia Lercher. Ser Professor: pistas de investigação. Brasília: Plano Editora, 2002.
16
Mesmo que esteja presente em suas falas a necessidade de uma formação mais
adequada para dar sustentação às atividades docentes, a prática de sala de aula é, para
estes profissionais, o melhor espaço de formação. Afastados a muito de qualquer
processo formativo, esses professores afirmam ser a prática, o cotidiano diário do
trabalho, o lugar do aprendizado da profissão. É nesse lugar de experiências que se
forma o professor, é nele que se adquire, no longo devir do tempo do trabalho, os
elementos necessários ao bom desempenho da atividade docente. Se minha formação foi
curta e insuficiente, parecem dizer, foi na prática que me fiz professor.
Outros aspectos também foram evidenciados e se referem ao difícil
relacionamento entre os profissionais que fazem a escola, a falta de compromisso e de
integração entre estes profissionais e mesmo as dificuldades de relacionamento pessoal.
Por outro lado, são apontadas, ainda, as dificuldades de lidar com os alunos, geralmente
vistos como rebeldes, cujos pais são descompromissados com a educação dos filhos.
Acrescente-se a isso a falta de material didático e a estrutura precária da escola,
considerados problemas que comprometem sobremaneira o desempenho de seu
trabalho.
Dentre estas e outras questões, uma me chamou mais a atenção: a motivação
que, de uma maneira ou de outra, conduziu estes profissionais a ingressar na carreira do
magistério e nela permanecerem até hoje. O interesse por essas motivações se deve ao
fato de que, ao ditá-las e descrevê-las, estes professores deixavam transparecer de
diferentes maneiras em seus discursos, uma série de imagens da docência, de
significados atribuídos ao ser professor e à profissão docente. Pode-se ver que a
docência já se faz presente no seu universo simbólico antes mesmo de as escolhas serem
feitas. Elas parecem compor a base motivacional que os orienta em direção à profissão.
Em trabalho recente (CAMPOS; ANDRADE, 2006a), procurou-se organizar esses
dados para descrever essas imagens e desvelar os significados aí implícitos. Vocação,
missão e amor parecem ser atributos inseparáveis do ser professor, qualidades
reconhecidas como necessárias ao exercício de uma profissão que é vista como dura,
áspera e de pouco reconhecimento social.
Ao dizer das motivações para ingresso e permanência na profissão esses
professores, na verdade, dizem também do ser e do estar professor em cada um deles.
Ao nomearem a docência como objeto relevante em suas vidas, esse grupo de
professores expressa uma maneira singular de compreender a profissão e de nela agir.
Queremos dizer que os professores, ao significarem a sua profissão, ao nomeá-la em
17
seus atributos, qualidades e princípios de ação, tomam esses significados como
norteadores de suas práticas, como referências para o seu fazer profissional.
Acreditamos que os professores, como agentes sociais que são, constroem-se em
contextos específicos, articulando saberes diversos adquiridos ao longo de suas vidas.
Desde cedo, o nosso grupo aprendeu a conhecer e a reconhecer a docência como uma
possibilidade, tornaram-na reconhecível e, de diferentes maneiras, palpável, muito
próximas de si. Desde tenra idade, por processos distintos, mas sujeitos a regularidades,
foram construindo socialmente um conjunto de imagens e significados acerca da
profissão e do ser professor. O ingresso na profissão deve muito a essas construções.
Elas não só orientam as escolhas como se encontram imbricadas nas práticas cotidianas
desses professores.
Estamos admitindo aqui que a docência, enquanto construção social, coletiva e
intersubjetiva, exige do professor um esforço no sentido de compreendê-la e nomeá-la.
Essa compreensão aproxima o professor de sua profissão tornando-a familiar,
permitindo que ele possa lidar com ela nos diferentes contextos de sua vida e nos
diferentes ambientes do seu trabalho. Estamos, pois, lidando com formas de
conhecimento social, com maneiras de representar os objetos relevantes do mundo, de
internalizá-los e reinterpretá-los para torná-los compreensíveis e, assim, poder agir.
Segundo Andrade, “O ato de representar é motivado pela necessidade humana de
domesticar a realidade” (ANDRADE, 2007. p. 27), de familiarizar-se com os objetos do
mundo.
Um dado importante na vida destes educadores foi a oportunidade que eles
tiveram recentemente de ingressar na universidade e concluir o Curso de Pedagogia.
Graças a um convênio firmado com o município de Queimadas, a UEPB ofereceu o
Curso de Pedagogia em Regime Especial e possibilitou a estes professores uma
formação pedagógica de ensino superior, oferecida paralelamente ao ofício destes
profissionais. É o que hoje se costuma chamar de formação em serviço
2
. Afastados a
muito de qualquer processo formativo, estes profissionais tiveram diante de si, como
eles mesmos afirmam, uma oportunidade única de adquirir uma melhor qualificação.
2
Práticas formativas que ocorrem justapostas ou paralelas à experiência do ofício ou no próprio local de
trabalho. Para uma maior clareza do conceito de formação docente em serviço consultar AQUINO, Julio;
MUSSI, Mônica C. As Vicissitudes da Formação Docente em Serviço: a proposta reflexiva em debate.
Educação e Pesquisa, São Paulo. v. 27, n. 2, p. 211-227. Jul-Dez 2001.
18
Embora esta modalidade de formação paralela tenha sido feita nos fins de
semana, mais precisamente nos dias de sábado, oferecendo dificuldades tanto para o
professor quanto para o aluno cursista (longa jornada de aulas, cansaço, distância),
queremos crer que ela tenha produzido algum impacto na concepção e na prática
cotidiana destes professores. A formação adquirida entra, aqui, como um saber novo,
mais elaborado, que se insere no amálgama de saberes já adquiridos e articulados sobre
a profissão. É possível dizer que essa formação vem produzindo algum impacto na
representação da docência desses professores? Que elementos desse processo formativo
foram incorporados, se eles foram, a essas imagens e significados?
O objeto de nossa pesquisa, portanto, diz respeito à representação social da
docência para os professores da educação infantil e das séries iniciais do ensino
fundamental da cidade de Queimadas-PB, cursistas do Programa de Pedagogia em
Serviço oferecido pela Universidade Estadual da Paraíba nesse município. Interessa-nos
saber que representação social alimenta o ser professor para esses profissionais. Quais
são as imagens e significados da docência que permeiam o universo simbólico desses
professores, e como essa representação vem moldando as suas identidades profissionais.
Para responder a estas questões norteadoras estamos nos propondo, como objetivo geral,
a compreender que representação social da docência alimenta o universo simbólico
desses professores.
Para que possamos chegar a essa representação, dizer dos processos de sua
construção e dos elementos que a compõem, propomos ainda os seguintes objetivos
específicos:
a) Identificar a composição de seu conteúdo representacional;
b) Compreender como essa representação social se articula com a identidade
profissional desses professores;
c) Inferir sobre a influência dos novos saberes de formação, adquiridos através
Curso de Pedagogia, sobre o conteúdo dessa representação e dessa identidade.
Como dissemos, a nossa pesquisa buscou apreender a maneira como os
professores compreendem, nomeiam e agem na profissão. Trata-se de se ver como eles
se enxergam enquanto professores, como constroem para si e para os outros imagens e
significados do ser docente e do estar na profissão. Enquanto construção social, iniciada
já em tempos remotos de suas existências, o ser professor indica a posse de um
19
conhecimento, de um saber da e sobre a profissão. Dirigindo-se a um objeto, a docência,
e tomando por referência o pensamento social, ou seja, o já dito, o já falado, o
comunicado a respeito da profissão, os professores incorporam, reelaboram e
transformam esse conhecimento num saber útil e aplicável em contextos de vida e de
trabalho. É preciso, portanto, elaborar simbolicamente o objeto para lidar com ele;
construir imagens e significados da docência para lhe dar concretude e, assim, lidar com
ela. Estamos dizendo que essas imagens e significados, estas representações, “[...] são
uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo
prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social” (JODELET, 2001. p. 22).
A representação é construída para dar ao grupo um referencial de percepção,
compreensão e ação diante das exigências postas pela profissão. Ao construir uma
representação da docência o grupo de professores se protege enquanto grupo, cria uma
identidade social para si mesmo e para cada um de seus membros, permitindo que se
reconheçam como profissionais e ajam enquanto tal. O nosso interesse está em conhecer
os significados, as imagens e os símbolos da docência, do ser professor para esses
profissionais. O que é, para eles, ser professor? Que representação da docência eles
constroem?
Definindo os aportes teóricos
Em nosso trabalho estaremos preocupados em compreender a representação
social da docência que orienta a compreensão e a ação desses profissionais em seus
contextos de vida e de atuação laboral. Admitimos que na tentativa de empreender essa
busca do ser professor para esses agentes, estaremos lidando com fenômenos de
conhecimento, com formas de saber produzidos socialmente, com atividades
contextuais de apropriação da realidade exterior ao pensamento e com a elaboração
psicossocial dessa realidade (JODELET, 2001). Para compreender as diferentes formas
de significação social da docência, elaboradas por esses professores e utilizadas por eles
como um saber prático da e sobre a profissão, adotaremos a Teoria das Representações
Sociais (MOSCOVICI, 2005) como um guia que deverá nos acompanhar à medida que
20
dialogamos com o nosso objeto, “[...] como um modus operandi que orienta e organiza
praticamente a prática científica” (Bourdieu, 2005a. p. 60).
A nossa escolha se deve, em primeiro lugar, ao fato de este construto nos
permitir uma aproximação da realidade social enquanto processo de construção
permanente, fruto das constantes interações inter, intra e transubjetivas dos agentes
sociais em seus contextos de vida. Estas diferentes formas de interação social não só
constroem uma realidade objetiva, palpável, de possível manipulação, mas também uma
realidade significativa, imagética e, portanto, simbólica. O ser professor, a docência
enquanto objeto dessa realidade, devem ser entendidos como produtos dessa construção
coletiva e social, como um construto subjetivo que permite nomear e dar significado à
profissão e, ao mesmo tempo, como objetividade que diz respeito mesmo à atividade
cotidiana do professor. Porque, como afirmou Moscovici, “[...] pessoas e grupos, longe
de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, produzem e comunicam
incessantemente suas próprias e específicas representações e soluções às questões que
eles mesmos colocam” (MOSCOVICI, 2005. p. 45).
Em segundo lugar, com o aporte dessa abordagem podemos pensar a
representação social da docência como uma teoria coerente que permite aos professores
nomear o objeto representado e lidar com ele. Ela se constitui de um conjunto de “[...]
conceitos articulados que têm origem nas práticas sociais e diversidades grupais cujas
funções é dar sentido à realidade social, produzir identidades, organizar as
comunicações e orientar as condutas” (SANTOS, 2005. p. 22). A Teoria das
Representações Sociais nos permite recuperar tais construções, enxergar a articulação
dos seus elementos constitutivos e compreender como elas alimentam a prática
cotidiana desses profissionais.
Em terceiro lugar, a partir dessa abordagem podemos compreender a docência
como produto da atividade individual e grupal de agentes sociais em atividade, lidando
com a profissão e atribuindo a ela uma significação. O ser professor aparece então como
produto de indivíduos em atividade social dentro de contextos específicos, em
comunicação permanente entre si e com a ecologia do seu ambiente, numa intensa
atividade mental de construção e reconstrução da atividade docente. Com seu aporte
teórico é possível pensar no professor como “[...] um sujeito que, através de sua
atividade e relação com o objeto-mundo, constrói tanto o mundo como a si próprio”
(GUARESCHI; JOVCHELOVITCH, 2003. p. 19).
21
Considerando as questões norteadoras elaboradas por Jodelet (2001) para
orientar o estudo das representações sociais, inferimos que as representações são sempre
de alguém, de alguém que sabe e que o sabe de algum lugar. Assim sendo, é preciso
definir e considerar, por um lado, os agentes da representação e, por outro, o lugar de
onde esses agentes sabem, dizer do lugar social, do contexto de vida e de trabalho
dentro dos quais se movem. Para tanto, recorreremos ao sociólogo francês Pierre
Bourdieu (1983a) e à sua praxiologia para pensar o substrato social e relacional a partir
do qual os sujeitos constroem significados e práticas coletivas. Entendemos que a obra
desse pensador pode nos fornecer aportes teóricos que nos permitem falar com uma
maior propriedade dos lugares sociais a partir de e no interior dos quais as
representações sociais são produzidas e das condições objetivas dos agentes produtores
dessas representações. Com Bourdieu podemos pensar as condições objetivas a partir
das quais o nosso grupo de professores cria as suas estratégias de reprodução enquanto
grupo, orienta as suas práticas e constrói simbolicamente as suas relações com o mundo.
Além do mais, o aporte teórico apresentado por Bourdieu nos permite, assim como
propõe a Teoria das Representações Sociais com relação à Psicologia Social, romper
com as dicotomias ainda existentes nas Ciências Sociais.
Não pretendemos aqui fazer uma discussão aprofundada destes dois referentes
teóricos. Nossa intenção é apresentar os conceitos que diretamente nos ajudarão a cercar
o nosso objeto, servindo de guia para que possamos compreender a representação da
docência construída por nossos professores.
A preocupação de romper com as dicotomias presentes nas ciências sociais
acompanhou de perto a produção teórica de Bourdieu. Para ele, esta dicotomia se
estrutura em torno de dois tipos de conhecimento distintos e antagônicos, mas de forte
influência na filosofia e nas ciências sociais: o objetivismo e o subjetivismo. Para a
perspectiva objetivista, as práticas individuais (e as diferentes maneiras de compreensão
do mundo) derivam da força das relações objetivas que as estruturam. Os indivíduos
estão subsumidos no interior das estruturas e suas ações estão sujeitas a regras
determinadas. No pólo oposto, o indivíduo aparece com toda a força. O subjetivismo faz
derivar a vida social dos indivíduos de suas experiências primeiras. A sociedade aparece
como produto da intersubjetividade dos sujeitos e suas ações significativas. Estas duas
perspectivas, cada uma a seu modo, criaram uma cisão entre o individuo e a sociedade,
entre o homem e o seu mundo, ao separar essas duas dimensões. A teoria desenvolvida
por Bourdieu, por sua vez, procura romper com essa dicotomia. Segundo ele, “[...] a
22
intenção mais constante e, a meu ver, mais importante do meu trabalho, foi superá-la”
(BOURDIEU, 2004b. p. 152).
Contra esse gênero de conhecimento cindido por oposições, Bourdieu propõe o
conhecimento praxiológico. Ele nos permite compreender que as ações e as produções
humanas de sentido, as estruturas mentais, se produzem em articulação com as
estruturas sociais no interior das quais circulam os agentes cognitivos. As
representações sociais, enquanto estruturas cognitivas mobilizadoras de ação, “[...] são
em parte produto da incorporação das estruturas sociais [...]” (BOURDIEU, 2004b. p.
26). Sendo assim, os conceitos de campo social e de habitus são particularmente
importantes para que possamos compreender a dinâmica dessas estruturas simbólicas.
Como agentes sociais, os professores produzem a sua existência social e
profissional a partir de sua inserção em diferentes campos sociais, embora o campo
educacional represente, por excelência, o lugar próprio de atuação da docência. Por
campo social entendemos o “[...] espaço de relações objectivas em referência aos quais
se acha objectivamente definida a relação entre cada agente [...]” (BOURDIEU, 2005a.
p. 71). Cada campo social se constitui, segundo o autor (2004a), como um espaço social
relativamente autônomo, como um microcosmo dotado de suas próprias leis. Uma
espécie de mundo social que, como outros, obedece a leis mais ou menos específicas.
Para ele, o campo não está totalmente alheio às pressões e imposições do macrocosmo
social, embora possua em relação a este uma autonomia parcial. É, portanto, no interior
desses microcosmos que os agentes produzem as suas existências sociais. A estrutura de
um campo determinado se define, segundo Bourdieu,
[...] pelo estado das relações de força entre os protagonistas em luta,
agentes ou instituições, isto é, pela estrutura da distribuição do capital
específico, resultado das lutas anteriores que se encontra objetivado
nas instituições e nas disposições e que comanda as estratégias e as
chances objetivas dos diferentes agentes ou instituições.
(BOURDIEU, 1983b. p. 133)
Transitando por diferentes campos e jogando conforme as leis e as regras
específicas de cada um deles, os agentes sociais estabelecem um conjunto de relações a
partir das quais é possível se movimentar nesses espaços sociais. Ao estabelecerem
estas relações e considerando o volume de capitais de que dispõem, definem as posições
23
a serem ocupadas nesses espaços determinados e elaboram as produções simbólicas de
sentido e entendimento que nomeiam e prescrevem as suas ações. “É a estrutura das
relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e não podem fazer.
[...] que determina, pelo menos negativamente, suas tomadas de posição” (BOURDIEU,
2004a. p. 23). É nesse trânsito ininterrupto no interior de diferentes campos, jogando
conforme o determinado e o aceito e do lugar de suas posições, que os professores se
constroem enquanto pessoas e enquanto profissionais, atribuem os significados e
organizam as práticas regulares de sua vida e de sua profissão.
Quando falamos em representações da docência, admitimos que estas
construções simbólicas têm por substrato a pertença social dos sujeitos produtores e
suas relações socialmente localizadas. Jodelet já havia nos alertado para essa
necessidade de considerar o lugar social de onde se produzem as representações. Para
ela, “[...] a particularidade do estudo das representações sociais é o fato de integrar na
análise desses processos a pertença e a participação, sociais ou culturais, do sujeito”
(JODELET, 2001. p. 27). Bourdieu também insiste na necessidade de se considerar
esses lugares se quisermos saber o que dizem, fazem ou pensam os agentes sociais.
Isso significa que só compreendemos, verdadeiramente, o que diz ou
faz um agente engajado num campo (um economista, um escritor, um
artista, etc.) se estamos em condição de nos referirmos à posição que
ele ocupa nesse campo, se sabemos de onde ele fala [...]
(BOURDIEU, 2004a, p. 23-24).
A posição que os agentes ocupam nos diferentes campos sociais é sempre
variável e depende, por um lado, do capital necessário e requerido por um campo
determinado e do volume desse capital em posse dos indivíduos e, por outro, das
disposições interiorizadas de ação que lhes são próprias, ou seja, do habitus. A posse de
um ou mais tipos de capital, isto é, de um conjunto de recursos atuais ou potenciais
(econômico, social, político, cultural, religioso, etc.) passíveis de serem manipulados
pelos agentes nos contextos do jogo definem, à sua maneira, as possibilidades
diferenciadas de se jogar e a posição assumida dentro do jogo. A posse, em maior ou
menor grau, de certos tipos de capitais permite a diferenciação entre os agentes e
habilita aqueles que os possui em maior quantidade a assumir, hierarquicamente,
posições de destaque e a manter ou mesmo ampliar o seu poder no interior do campo. O
24
habitus, por sua vez, permite conhecer o campo e nele jogar. Enquanto disposições
interiorizadas, enquanto modelos de pensamento e ação que estão “[...] inscritos nos
corpos pelas experiências passadas [...]” (BOURDIEU, 2001. p. 169), incorporadas
pelos agentes sociais ao longo de suas vidas, o habitus funciona como esquemas de
leitura do mundo e como princípio gerador de estratégias. São, por assim dizer, um
sistema de classificação do mundo (Eidos), um sistema de orientação do
comportamento (Ethos) e um sistema de disposições corporais (Hexis), inscrito nos
indivíduos como predisposições de ação num mundo conhecido e familiar. Os campos,
diz Bourdieu, exigem “[...] daqueles que neles estão envolvidos um saber prático das
leis de funcionamento desses universos [...]” (BOURDIEU, 1996a. p. 159).
Como produção coletiva, construída ao longo da vida das pessoas e, portanto,
duráveis e transponíveis, “[...] o habitus não cessa de produzir percepções,
representações, opiniões, desejos, crenças, gestos e toda uma gama interminável de
produções simbólicas” (DOMINGOS SOBRINHO, 2000. p. 118). As representações
sociais, portanto, como produções simbólicas, dizem sempre dos habitus interiorizados
pelos agentes representacionais e das condições objetivas no interior das quais os
mesmos são produzidos. Segundo Ortiz (1983. p. 16), o habitus se sustenta “[...] através
de ´esquemas generativos` que, por um lado, antecedem e orientam a ação e, por outro,
estão na origem de outros ´esquemas generativos` que presidem a apreensão do mundo
enquanto conhecimento”. O habitus, na mesma medida em que orienta e conforma a
ação, é a matriz geradora da compreensão significativa do mundo, seja na forma de
crença, de desejo, de opinião ou de representação.
Neste trabalho, a articulação entre os conceitos de habitus e representações
sociais pode ser assim pensada: o habitus é produto de uma incorporação da estrutura
social no que ela tem de valores, normas, preceitos, regras, etc. Ele se estrutura, se
configura mesmo a partir dos condicionamentos sociais, das socializações contínuas a
que os agentes, grupos ou classes estão sujeitos. Na verdade, o habitus é produto das
estruturas e aparece, se configura, como um elemento mediador entre o agente e o seu
mundo. Ele fornece aos agentes os “esquemas generativos” que deverão orientar as suas
escolhas, as suas ações e os elementos necessários à apreensão do mundo como
conhecimento e representação. As representações, enquanto conhecimento social, são
herdeiras dessa relação do homem com o seu mundo mediatizadas pelo habitus. Para
Bourdieu (2004b), as representações dizem respeito não só aos habitus, mas também ao
lugar social ocupado pelos agentes. Segundo ele,
25
[...] as representações dos agentes variam segundo sua posição (e os
interesses que estão associados a ela,) e segundo seu habitus como
sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas
cognitivas e avaliatórias que eles adquirem através da experiência
durável de uma posição do mundo social.
(BOURDIEU, 2004b. p
158).
Assim, as diferentes maneiras de agir e de representar significativamente o
mundo dependem da posição social ocupada pelos agentes e dos habitus interiorizados.
As representações sociais, portanto, devem ser pensadas considerando essas condições.
Segundo Bourdieu, o habitus pode ser observado enquanto um conjunto de
regularidades que expressam “[...] o produto agregado de ações individuais orientadas
pelas mesmas coações objetivas [...]” (BOURDIEU, 2004b. p. 82), seja na forma de
regras ou incorporadas como sentido do jogo. Enquanto grupo, os nossos professores
estão sujeitos a estas regularidades. Elas se expressam na forma de um estilo de vida
mais ou menos homogêneo (o gosto, a renda familiar e pessoal, a educação, etc.) e num
estilo de vida profissional que obedece a certas regularidades, uma atividade
profissional regrada sem ser necessariamente o produto da obediência a uma regra. A
maneira como os professores compreendem, representam a sua profissão e agem em seu
interior reflete essas regularidades. As representações sociais, portanto, enquanto
estruturas subjetivas mobilizadoras da ação, são produzidas num processo de mediação
com as estruturas objetivas no interior das quais se movimentam os agentes sociais.
A Teoria das Representações Sociais, assim como foi desenvolvida por
Moscovici (2005), representa também um esforço no sentido de romper com uma
psicologia social dominada, de um lado, pelo comportamentalismo e pelo
experimentalismo de base positivista e, do outro, pelo extremo subjetivismo a que foi
conduzida essa ciência. Apresentada por Moscovici no início dos anos 60 do século
anterior, a abordagem das representações sociais tinha por preocupação romper com os
modelos unidirecionais que dominavam a psicologia social de sua época, além de ser,
segundo o seu autor, uma teoria social do conhecimento capaz de unificar a psicologia
social. Recompor o indivíduo cindido pela psicologia social de sua época e dar um novo
estatuto a essa ciência foi a intenção do fundador da Teoria das Representações Sociais.
Segundo Rey,
26
O conceito de Representação Social (RS) significou, sem dúvida, a
criação de uma nova zona de sentido dentro da psicologia social,
orientada em um dos processos mais importantes da subjetividade
social, que foi totalmente ignorado pela psicologia social anterior: o
processo de gênese e desenvolvimento do conhecimento social (REY,
2003, p. 123). (Grifos do autor).
O construto das representações sociais, assim como foi formulado por
Moscovici (2005), pressupõe que o conhecimento social se dá numa relação entre
atividades mentais, cognitivas, de elaboração do pensamento, e atividades sociais, jogo,
movimento, processos de comunicação e linguagem. As idéias, as imagens socialmente
construídas, os significados atribuídos aos objetos do mundo enquanto formas de
pensamento, são elaborações mentais de agentes socialmente situados e historicamente
datados. São indivíduos que, no mundo e em relações com outros indivíduos, sujeitos a
processos inter e intra-subjetivos de comunicação e discurso, nomeiam os objetos desse
mundo para poder lidar com eles. Procuram tornar o mundo familiar para poder agir. Ao
se deparar com a docência como objeto significativo em suas vidas, os professores
procuram construir um conjunto lógico e ordenado de percepção, de entendimento e de
ação que permite ao grupo estar na e lidar com a profissão. Através de um processo de
comunicação e de discurso que permite a circulação de informações sobre o objeto da
representação, das suas qualidades e dos seus atributos – um processo longo, tão antigo
quanto inacabado – os professores vão construindo, firmando uma imagem, um
significado do ser professor que lhes permitam pensar, agir e lidar com a profissão.
Com essa formulação, Moscovici reafirma a atividade do indivíduo pensante,
ativo e inventivo. Nega que a atividade do pensamento humano se reduza a um mero
processamento de informações transformadas, posteriormente, em gestos e ações. Nega,
ainda, que tal pensamento esteja sob controle absoluto (de uma ideologia, por exemplo)
e se resuma a reproduzir idéias prontas e acabadas. Contra tais limitações nosso autor
propõe o conceito de sociedade pensante. Os indivíduos são seres pensantes. Os
objetos, os acontecimentos, as ciências e as ideologias “[...] apenas lhes fornecem o
alimento para o pensamento” (MOSCOVICI, 2005. p. 45).
Através dos processos de objetivação e ancoragem podemos inferir sobre a
construção desses significados, sobre a elaboração e funcionamento dessas
27
representações. As representações, enquanto construções sociais, são criadas pelos
indivíduos e grupos em processo de comunicação e cooperação. Não são os indivíduos
isolados que as criam. Elas são sempre produtos da atividade de um grupo, de um grupo
que sabe a partir de um lugar. Os conceitos de ancoragem e objetivação propostos por
Moscovici nos permitem compreender como o conhecimento social é produzido pela
incorporação, reelaboração e transformação de um objeto ou conhecimento social
relevante. Como ele se transforma em um conhecimento novo, uma nova representação
do objeto, e passa a compor o universo simbólico dos indivíduos ou grupos.
Segundo Nóbrega (2001. p. 72.), ”[...] tais processos compreendem a
imbricação e a articulação entre atividades cognitivas e as condições sociais em que são
forjadas as representações”. Trata-se dos processos de significação através dos quais o
objeto é compreendido, as informações são trabalhadas e incorporadas, à maneira do
grupo, ao conjunto de significações já existentes e dos processos de materialização dos
significados em objetos concretos, palpáveis e manipuláveis. Ancorar é se apropriar do
objeto e inseri-lo num sistema de pensamento já existente. É o momento de apropriação,
de significação e reelaboração significativa do objeto visando torná-lo conhecido. Já na
objetivação, o objeto ganha concretude, “[...] os elementos que foram construídos
socialmente passam a ser identificados como elementos da realidade do objeto”
(SANTOS, 2005. p. 32). Segundo Moscovici,
Esses mecanismos transformam o não-familiar em familiar,
primeiramente transferindo-o a nossa própria esfera particular, onde
nós somos capazes de compará-lo e interpretá-lo; e depois,
reproduzindo-o entre as coisas que nós podemos ver e tocar e,
conseqüentemente, controlar (MOSCOVICI, 2005. p. 61).
Enquanto objeto relevante, a docência vai se incorporando, de diferentes
maneiras e com maior ou menor intensidade ao longo do tempo, ao universo simbólico
dos professores. Vão sendo ancorados em esquemas de significação preexistentes.
Mesmo antes de estarem na docência esses elementos já permeiam esse universo
significativo e já estão sendo ajustados, desde há muito, aos seus esquemas de
percepção. Ao se depararem com a profissão, com os processos formativos que
habilitam para a carreira e o pleno exercício do ofício, muitos desses significados já
fazem parte do universo simbólico desses professores permitindo a esses profissionais
28
lidar concretamente com a docência. O ingresso na profissão, por sua vez, implica na
emergência constante de novos elementos que precisam, continuamente, ser ancorados,
fundidos, reelaborados e objetivados em formas de ação.
Quanto às funções das representações sociais, a pesquisa e a literatura
especializada têm apontado um bom número delas (NÓBREGA, 2001; JODELET,
2001, SANTOS, 2005; ABRIC, 1998). Entre outras funções, as representações sociais
orientam condutas, garantem a identidade do grupo, prescrevem e justificam
comportamentos e orientam as comunicações. Neste trabalho, estaremos atentos às
funções identitária e de resistência das representações sociais, uma vez que é nossa
intenção compreender como os professores constroem as suas identidades docentes e
como as representações protegem o grupo e sua identidade ante a irrupção do novo.
As representações sociais, ao serem compartilhadas pelos membros de um grupo
determinado, possibilitam a criação de uma unidade grupal ao defini-lo e diferenciá-lo,
garantindo para o mesmo uma identidade. Estas representações alimentam toda uma
rede de relações mais ou menos estáveis e úteis de conhecimento e interconhecimento
entre os membros do grupo, o que garante a esses agentes um sentimento de pertença,
de inclusão e de diferenciação.
Longe de ser um produto acabado, a identidade é um processo em construção
para o qual concorre uma diversidade de fatores. Ela se refere às questões de gênero que
perpassam a docência, à condição de raça e à posição social ocupada pelos professores,
às políticas educacionais, às condições de trabalho e às formas de controle social ai
exercidos... Fatores que aparecem expressos nos modos de ser e agir dos professores e
professoras no exercício de suas funções profissionais. A identidade docente, na
verdade, é produto de uma negociação. Os professores negociam “[...] suas identidades
em meio a um conjunto de variáveis como a história familiar e pessoal, as condições de
trabalho e ocupacionais, os discursos que de algum modo falam do que são e de suas
funções” (GARCIA; HYPOLITO; VIEIRA, 2005. p. 48). A identidade docente é um
processo de construção social que está intimamente ligado às representações sociais que
os professores fazem de si mesmo e de seu trabalho. Ela “[...] não é um dado adquirido,
não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de
conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão”
(NÓVOA, 2000. p. 16).
Articulada a essa função identitária, a função de resistência desempenhada pelas
representações sociais nos diz das habilidades do grupo para lidar com as novidades e
29
impedir que elas possam criar fraturas na identidade grupal. “Através da resistência o
grupo transforma o objeto [...] modificando seu conteúdo durante sua circulação no
domínio público, identificando-o com os valores e concepções que são verdadeiros para
esse grupo” (ANDRADE; CARVALHO; ROAZZI, 2003. P 97). Esta função das
representações se apresenta tanto como um elemento capaz de conduzir o grupo a se
proteger das ameaças externas, à medida que o grupo reorganiza simbolicamente os
novos elementos e os objetiva em esquemas de ação coerentes, como é capaz de mostrar
para o grupo a necessidade de mudança ante as fortes pressões exercidas pelos seus
contextos de vida e de trabalho. Um movimento conflituoso e complexo de defesa e
proteção num ambiente que sinaliza e exige mudanças.
A função de resistência nos parece particularmente importante quando
consideramos o recente processo de formação a que os nossos agentes estiveram
sujeitos. Imagens e significados da docência foram aí comunicados. Novos saberes e
novas práticas foram difundidas neste processo de formação, sinalizando aos
professores as mudanças em curso na profissão. Estes novos elementos precisaram ser
trabalhados pelo grupo, incorporados e reelaborados em seus esquemas de percepção
anteriores. A função de resistência nos permite compreender que as representações
sociais funcionam também como um “sistema cultural imunizante”, como afirma Bauer.
Através desse sistema, diz o autor, “[...] inovações simbólicas são ativamente
neutralizadas através de sua ancoragem em formações tradicionais” (BAUER, 2003. p.
252). Ao serem difundidos, comunicados entre os professores, os novos elementos
(imagens, significados, saberes, práticas) da docência mudam ao longo do processo, são
significativamente reelaborados e acomodados. “A resistência da audiência não é algo
que deva ser superado, mas um fator de criatividade e diversidade a ser considerado”
(BAUER, 2003. p. 252-253). Seja através do processo de formação a que estiveram
sujeitos, seja por intermédio de outros processos comunicativos de formação e
informação mais recentes, as inovações simbólicas a respeito da profissão passam por
esse mecanismo de resistência.
30
A investigação social como prática e como atitude: os caminhos da pesquisa
empírica.
Desde o ano de 2000 que a Universidade Estadual da Paraíba tem firmado
convênio com diversos municípios do interior do estado para levar a seus professores o
Curso de Pedagogia em regime especial. O Programa atende a uma demanda criada pela
obrigatoriedade de todos os professores das séries iniciais do ensino fundamental
possuírem formação pedagógica superior, condição necessária para que esses
profissionais continuem exercendo o seu ofício. Trata-se de uma determinação do
Governo Federal contida na Lei 9.394/96, Art. 87, § 4
o
que diz, entre outras coisas, que
“Até o fim da década da educação somente serão admitidos professores habilitados em
nível superior ou formados por treinamento em serviço”.
Desde o seu início, o Programa esteve presente em mais de oitenta municípios
da Paraíba e formou um número superior a três mil professores para o ensino
fundamental e a educação infantil. No município de Queimadas, distante 15 km de
Campina Grande, o Programa atendeu a duas turmas de professores, a primeira iniciada
em 2002 e a segunda em 2003, qualificando um total de 91 profissionais. Dos 91
concluintes, selecionamos uma amostra de 75 professores. A nossa escolha foi feita por
adesão. Tivemos o cuidado de manter contato com todos os professores e de convidá-
los a participar da pesquisa. Aqueles que aceitaram o nosso convite e decidiram aderir
ao nosso trabalho passaram a integrar a nossa amostra. Estes professores formados no
município constituem os participantes de nossa pesquisa. A nossa intenção é estudar a
representação da docência para este grupo particular de indivíduos que, em tempo
recente, concluiu o ensino superior.
Uma questão que aparece com muita freqüência na literatura (ARRUDA, 2005;
ALMEIDA, 2005; JODELET, 2001; ABRIC, 2001; SÁ, 1998) e que é comum para
quem está envolvido com a pesquisa, é o caráter plurimetodológico do estudo das
representações sociais. Dado ao seu caráter cognitivo-social, o estudo das
representações sociais requer a articulação de uma variedade de métodos que possam
nos aproximar dos seus conteúdos, da sua estrutura, de outras representações que lhes
são associadas e das práticas sociais orientadas por essas representações. Devido ao
grau de dificuldade que envolve a compreensão e a apreensão do fenômeno, a pesquisa
em representações sociais exige não só o uso de diferentes métodos como “[...] ainda
31
permite – e solicita mesmo – algo como um espírito de aventura na perseguição do
conhecimento científico” (SÁ, 1998. p. 85). Estamos lidando, portanto, com um campo
teórico-metodológico que é ao mesmo tempo multifacetado e aberto às novas
experiências.
Na intenção de situar o lugar dos agentes das representações sociais e os espaços
a partir dos quais produzem práticas sociais significativas, utilizamos um Questionário
de Caracterização (APÊNDICE A), constituído de questões objetivas. Nesta etapa da
pesquisa, os nossos objetivos estavam centrados na obtenção de informações sobre as
condições e o estilo de vida desses indivíduos e sobre o lugar social, no interior e a
partir do qual, eles constroem essas práticas e essas significações. Essas informações
foram importantes para delinear o perfil dos participantes da pesquisa e nos permitiram
conhecer as condições objetivas a partir das quais eles representam suas existências
sociais, enxergam o mundo e a sua profissão. Esse questionário nos permitiu acessar o
estilo de vida do grupo de professores enquanto habitus, conjunto de regularidades
“regradas”, o que nos permitiu inferir sobre suas escolhas (a da profissão, por exemplo)
e sobre o peso das determinações sociais na maneira de compreender e agir na
profissão.
O questionário continha 35 questões objetivas e algumas delas ofereciam aos
professores um leque de opções de respostas previamente sugeridas. As demais se
constituíam de questões relativamente abertas, muito embora exigissem respostas
diretas e objetivas dos participantes. As informações colhidas através desse instrumento
receberam um tratamento estatístico (analises de freqüência simples e tabelas cruzadas),
através do programa SPSS (Statistical Package for Social Science for Windows), versão
12.0.
Além desse questionário de caracterização, utilizamos uma série de três outros
questionários com questões abertas e previamente elaboradas, que estamos chamando
aqui de Questionários de Práticas e de Significados (APÊNDICE B). Esses
instrumentos nos permitiram colher informações sobre a motivação para ingresso e
permanência na profissão, sobre as condições de vida e de trabalho e sobre os
significados da profissão e as expectativas desses professores em relação a ela. Os
questionários foram aplicados junto a 45 professores, todos alunos da primeira turma do
Programa. A sua aplicação se deu em fins de 2002, quando da minha estadia na cidade
ministrando um dos componentes curriculares do curso. As informações contidas nesses
questionários foram muito úteis e relevantes para a pesquisa. Com elas foi possível
32
compreender as motivações dos professores para ingresso na profissão, a maneira como
esses agentes se compreendem enquanto professores e as diferentes formas de atuação
profissional desses docentes.
Reconhecemos, entretanto, as limitações do uso de questionários em pesquisa.
Segundo Almeida (2005), eles são sempre construídos a partir das escolhas e temas de
interesse do pesquisador e, por essa razão, podem limitar a fala dos sujeitos a questões
prévias e podem conduzir a uma simplificação do objeto em estudo. Somos conscientes
que “[...] o questionário não passa de um dos instrumentos de observação, cujas
vantagens metodológicas [...] não devem dissimular os limites epistemológicos”
(BOURDIEU, 2005b. p. 59.) O seu uso, no entanto, se justifica pelo fato de o
questionário permitir uma organização mais sistemática das informações, um tratamento
quantitativo dos dados e uma caracterização mais detalhada dos participantes da
pesquisa, de seus locais de inserção social e de suas opiniões sobre temas que são
relevantes para a nossa pesquisa.
Recorremos também ao uso da Entrevista Semi-Estruturada, tendo em vista
uma abordagem de profundidade do nosso objeto. Para operacionalizar o trabalho com
as entrevistas elaboramos um roteiro de questões que, embora não fosse rígido nem
demasiadamente fechado, guardava, na formulação das questões, a intenção de
atendermos aos objetivos propostos para o estudo. As entrevistas, portanto, estavam
circunscritas a determinados fins e deveriam atingir certos objetivos. Com elas foi
possível nos aproximar de maneira mais sistemática e profunda da subjetividade dos
professores e de seus sistemas conceituais. Com base nesse roteiro, procuramos dar
liberdade para que os entrevistados pudessem se expressar livremente cabendo “[...] ao
entrevistador intervir, quando necessário, no sentido de reconduzir o sujeito ao assunto
que mais interessa” (ROAZZI, 1995. p. 2).
As entrevistas foram gravadas e transcritas para análise. Optamos por fazer, nós
mesmos, todas as entrevistas e por transcrever todos os discursos enunciados. Isso nos
permitiu um maior controle das situações de entrevista, dado o conhecimento que
possuimos do objeto e a proximidade e o entendimento com os entrevistados. Além
disso, procuramos transcrever as entrevistas tão logo elas eram realizadas, o que nos
permitiu reter o maior número de informações sobre as situações em que as entrevistas
ocorreram, uma vez que pudemos ativar a memória ainda recente, e nos ajudaram a
enriquecer as anotações que fizemos sobre essas situações. Segundo Paredes, “[...] quem
estabeleceu o desenho da pesquisa e conhece todos os detalhes de seu planejamento e da
33
fundamentação teórica deveria ser o entrevistador (PAREDES, 2005, p. 141-142). Para
a autora, aquele que ouviu e gravou a fala dos depoentes deveria ser o mesmo a
converter tais discursos em texto. “A transposição das frases ditas para a palavra escrita
exige pressa, aproveitando as frescas lembranças” (PAREDES, 2005. p. 142).
Um outro procedimento que adotamos, foi o uso das Anotações em Situação de
Entrevista. Atentos às expressões, aos silêncios, aos gestos, ao diálogo que antecede a
entrevista e ao que se sucede a ela, e também ao entorno social no qual a entrevista
estava sendo realizada e às condições de sua realização, construimos um diário de
campo para registrar os pormenores dessas situações. Contudo, para garantir uma maior
atenção à relação que mantivemos com o nosso entrevistado e aos objetivos de nossa
conversa e garantir que o entrevistado se sentisse mais à vontade e menos constrangido
com a situação, optamos por fazer essas anotações ao término de cada entrevista. Essas
anotações, além de se constituírem numa importante fonte de conhecimento sobre os
agentes da pesquisa e sobre o nosso objeto de estudo, nos permitiram, como
pesquisadores, “[...] acompanhar nossa própria evolução e desenvolvimento, mostrando-
nos o que fizemos ou deixamos de fazer, como nos comportamos em determinada
situação ou com diferentes entrevistados em circunstâncias diversas” (BENJAMIN,
1991. p. 79).
Embora reconheçamos a importância da entrevista para o estudo da cognição
social, estamos cientes dos riscos e das dificuldades de se trabalhar com tal método.
Reconhecemos que as situações de entrevistas são situações de trocas sociais entre
agentes socialmente situados e diferenciados. Tal relação é sempre assimétrica e
perpassada por relações de poder. Segundo Bourdieu, é o pesquisador “[...] que inicia o
jogo e estabelece as regras do jogo, é ele quem, geralmente, atribui à entrevista, de uma
maneira unilateral e sem negociação prévia, os objetivos e hábitos [...]” (BOURDIEU,
1997. p. 695). Segundo ele, essa “dessimetria” é ainda maior devido a posição de
superioridade ocupada pelo pesquisador na hierarquia dos diferentes capitais, distorção
que está inscrita na própria estrutura da relação de pesquisa e, portanto, deve ser
dominada e controlada. Para reduzir e dominar estes efeitos o autor propõe, na relação
de entrevista, a instauração de uma escuta sensível e metódica.
[...] ela associa a disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a
submissão à singularidade de sua história particular, que pode conduzir,
34
por uma espécie de mimetismo mais ou menos controlado, a adotar sua
linguagem e a entrar em seus pontos de vistas, em seus sentimentos, em
seus pensamentos, com a construção metódica, forte, do conhecimento
das condições objetivas, comum a toda uma categoria. (BOURDIEU,
1997. p. 695.
Para uma relação de pesquisa o mais próximo possível do ideal, diz ainda o
autor, é necessário não só criar mecanismos (por exemplo, os verbais) para obter a
colaboração dos entrevistados, mas também intervir na própria estrutura da relação,
escolhendo as pessoas a serem entrevistadas.
Considerando o total de professores pesquisados, propusemos que oito
profissionais participassem desse momento da investigação. Isto porque acreditamos
que esse número é já suficiente para nos dizer dos significados e das imagens da
docência para o grupo de professores e evitar as repetições e os pontos de saturação nas
respostas. Para a escolha dos participantes dessa etapa estabelecemos alguns critérios.
Em primeiro lugar, optamos por trabalhar com três professores da zona urbana e cinco
professores da zona rural do município, de onde vem a maior parte dos nossos docentes.
Nossa intenção foi utilizar uma amostra representativa que considerasse a distribuição
dos professores por seu local de trabalho e moradia. Em segundo lugar, a escolha desses
agentes foi feita entre aqueles profissionais que, no momento de responder aos
questionários, se mostraram dispostos a participar das entrevistas. Por fim,
consideramos, também, as nossas escolhas pessoais como pesquisador. Nesse sentido,
fizemos questão de optar por aqueles professores mais conhecidos, com os quais temos
maior diálogo e proximidade. Como queria Bourdieu (1997), é preciso deixar aos
pesquisadores a liberdade de escolher os pesquisados entre pessoas conhecidas.
Segundo ele, isso permite uma maior proximidade social e uma maior familiaridade
entre o pesquisador e aquele a quem interroga e facilita a comunicação entre ambos.
O roteiro das entrevistas (APÊNDICE C) foi construído considerando três
momentos ou eixos estruturadores distintos, porém complementares, considerando os
seus objetivos e os conteúdos simbólicos que pretendiam apreender. O primeiro estava
atento ao tornar-se professor, ao “como me tornei o que sou hoje”. O segundo estava
atento ao “o que agora eu sou”, ao como me vejo hoje como professor. O último, por
sua vez, estava preocupado em recolher informações sobre a importância do Curso de
Pedagogia para o seu ser e estar na profissão e para a sua prática de trabalho cotidiano.
35
Uma outra técnica utilizada foram os Relatos de Experiência (APÊNDICE D).
Com essa estratégia metodológica foi possível estabelecer uma triangulação entre os
diferentes instrumentos utilizados na pesquisa visando um melhor acercamento do
nosso objeto. Com ela, procuramos complementar as informações expressas nas
entrevistas e nos questionários. Os professores foram convidados a se expressar
livremente e por escrito sobre temas previamente definidos, que dizem respeito a
experiências vivenciadas na profissão, expectativas e significados atribuídos ao ser
professor e à prática docente. Diferentemente desses dois outros instrumentos, os relatos
ficaram inteiramente a cargo dos professores que dispunham de certo tempo para pensar
e se expressar. Nestes momentos estavam consigo mesmos, sem a pressão que o contato
com o pesquisador é capaz de criar, e podiam refletir sobre as experiências acumuladas
ao longo da vida profissional. Selecionamos vinte professores para participar desse
momento da pesquisa, sendo que cinco deles eram da zona urbana e quinze da zona
rural do município. Assim como nas entrevistas, selecionamos um número maior de
professores da zona rural uma vez que eles constituem a maior parte dos agentes
envolvidos na pesquisa.
As entrevistas e os relatos de experiência tiveram a participação majoritária das
mulheres. Isso se deveu ao fato de elas terem se mostrado mais receptivas a
participarem desses momentos da pesquisa e ao fato de o contato com elas ter sido
facilitado pela proximidade e pelas condições de acesso aos seus locais de trabalho e de
moradia.
As informações contidas nos questionários de práticas e significados, nas
entrevistas e nos relatos foram analisadas segundo a técnica de análise de conteúdo
proposta por Bardin (1995). Sobre a análise de conteúdo Bardin afirma que esta se
constitui de um
[...] conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter,
por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a
inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens.
(BARDIN, 1995. p. 42)
36
A análise de conteúdo, segundo Minayo (1999), comporta técnicas distintas de
tratamento dos dados da pesquisa. A Análise de expressão, a Análise de relações e a
Análise temática são algumas delas. Neste trabalho optamos pela análise temática. Para
Minayo, fazer uma análise temática “[...] consiste em descobrir os núcleos de sentido
que compõem uma comunicação, cuja presença ou freqüência signifiquem alguma
coisa para o objeto analítico visado” (MINAYO, 1999. p. 209).
Segundo Bardin (1995), este tipo de análise se estrutura em torno de três fases
ou pólos cronológicos: a pré-análise, que consiste na organização do material a ser
analisado e na sistematização das idéias iniciais para torná-las operacionalizáveis
(leitura do material, seleção e exclusão do material que vai ser analisado). A exploração
do material ou fase propriamente dita de análise, que consiste de operações de
codificação, categorização, desconto ou enumeração. Nesta fase busca-se alcançar o
núcleo de compreensão dos conteúdos através do recorte do texto em unidades de
registro e de sua contagem para posterior classificação dos dados em categorias. A
categorização nos permite chegar às unidades de significação do material ou temas,
como prefere Bardin. Segundo ela, o “[...] tema é a unidade de significação que se
liberta naturalmente de um texto analisado segundo certos critérios relativos à teoria que
serve de guia à leitura”. (BARDIN, 1995. p.105). E, por fim, o tratamento dos
resultados obtidos e a interpretação propriamente dita. Os resultados, quando
necessário, foram submetidos a análises estatísticas simples (análise de freqüência) e
serviram para conduzir inferências e propor interpretações significativas sobre o objeto.
Ao longo do trabalho estaremos detalhando melhor os procedimentos de análise, sempre
que for necessário tornar explícitos os critérios a partir dos quais procedemos as nossas
inferências.
Por fim, precisamos, ainda, dizer da composição de gênero dos nossos
professores. Dos 75 participante, 71 são mulheres e apenas 4 são homens. Isso mostra
que a presença feminina é ainda muito forte na educação infantil e nas séries iniciais do
fundamental. Embora as mulheres representem a maioria de nossa amostra, optamos por
utilizar, ao longo do nosso trabalho, o termo “professor” sempre que estejamos falando
do grupo de professores ou do coletivo de profissionais. Por outro lado, como as
mulheres participaram mais ativamente dos diferentes momentos da pesquisa,
especialmente das entrevistas e dos relatos, optamos por usar o termo a/as professora/as
quando em contexto de uso de suas falas e de suas expressões.
37
Com essa articulação entre os diferentes instrumentos e procedimentos de
análise foi possível nos aproximar de maneira sistemática das condições objetivas de
vida e de trabalho dos nossos professores e dos seus lugares sociais no interior dos quais
produzem a vida e a profissão. A partir dessa aproximação, foi possível compreender os
processos de construção social da docência, do ser professor para esses agentes. Como,
a partir de seus lugares e de suas relações, conhecem o mundo e a profissão, procuram
torná-los compreensíveis para que possam lidar com eles.
A seguir, cuidaremos de apresentar a estrutura do nosso trabalho que se compõe
de quatro capítulos.
A estrutura do trabalho
No capítulo I buscamos as lições da história. Nossa intenção é seguir o percurso
histórico de formação e constituição da profissão docente no Brasil e sua configuração
identitária, sempre atentos aos processos e aos seus elementos constitutivos. Centramos
nossa atenção no período que vai da segunda metade do século XVIII a meados do
século XX, tempo esse em que a docência se afirma como profissão e ganha contornos
identitários. Antonio Nóvoa (1999) nos ajuda a definir esses contornos. Com ele,
procuramos nos aproximar das etapas desse processo de profissionalização e demonstrar
as suas especificidades em se tratando do caso brasileiro. Esse percurso nos parece
relevante. Os professores de hoje trazem incrustados sob a pele as marcas desse devir
histórico. Nossa maneira de ser e de estar na profissão, esse modus operandi que
caracteriza a profissão, está repleto dessa história e dos elementos que ao longo do
tempo ela imprimiu em nós. Por esse caminho, procuraremos apreender e destacar, a
partir dessa longa história, as regularidades estruturantes do ser professor, as estruturas
estruturantes que continuam presentes no ser e no estar professor e como essa
estruturação tem sido ressignificada pelos nossos agentes.
No capítulo II procuramos apresentar um perfil sócio-demográfico do nosso
grupo de professores. Serão apresentados dados sobre origem social, naturalidade,
escolarização e renda familiar e pessoal dos professores. Além do mais estaremos
atentos à composição de gênero do professorado e aos seus gostos e preferências. Este
perfil será precedido por uma caracterização do local onde vivem, a cidade de
38
Queimadas na Paraíba. Nossa intenção é demonstrar as regularidades, em termos de
origem social e estilo de vida, que orientam esses professores no trânsito entre a vida
urbana e rural do município e inferir sobre a relação entre essas regularidades, as suas
escolhas profissionais e a compreensão da profissão.
No capítulo III procuramos apresentar a composição do conteúdo
representacional da docência construída pelos professores. O capítulo esta dividido em
duas seções: na primeira, procuramos mostrar como as escolhas profissionais (a escola
da docência como profissão) dizem dos lugares ocupados pelo grupo de professores no
espaço social e do seu estilo de vida. A escolha da profissão não é um ato de imposição
da estrutura social nem uma escolha livre e racional dos agentes. A escolha aparece
como uma estratégia. Para Bourdieu ela “[...] é produto do senso prático como sentido
do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido, que se adquire desde a
infância, participando das atividades sociais [...]” BOURDIEU, 2004b. p. 81). Na
segunda, apresentamos a estrutura da representação social da docência construída pelos
nossos agentes, os seus elementos constitutivos e as suas dimensões. Enquanto produto
de uma negociação conflituosa, esta representação social aparece de maneira
multifacetada, comportando dimensões distintas que se complementam para definir uma
imagem, um significado coeso e operacional do ser professor. Discutiremos a
composição desse conteúdo representacional de maneira articulada com o conceito de
habitus. Procuraremos demonstrar que o ser professor é herdeiro das regularidades
sociais e profissionais que orientam esses agentes em seus locais de vida e de trabalho.
O capítulo IV está dividido em duas partes. Na primeira, procuramos
demonstrar como a representação social da docência se relaciona com a identidade
profissional desses professores. Buscamos evidenciar os contornos identitários desse
grupo de profissionais ou, de outra maneira, como a representação social da docência
desempenha funções identitárias. Na segunda parte enfatizamos a influência do Curso
de Pedagogia, como formação profissional, sobre a conformação do ser e do estar
professor para esses profissionais e sobre as suas identidades docentes.
Iniciemos, pois, pela história da profissão docente. Os professores que somos
hoje devem muito a essa história e às regularidades que ela imprimiu em nós.
CAPÍTULO I
PARA UMA HISTÓRIA DA PROFISSÃO DOCENTE NO BRASIL
40
1.1 Introdução
Se hoje podemos falar com propriedade do professor/a das séries iniciais do
ensino fundamental e podemos visualizar com maior clareza essa profissão, o mesmo
não seria possível dizer se voltássemos o nosso olhar para o tempo em que a profissão
apenas engatinhava e, num processo de idas e vindas, cheio de contradições, tentava se
afirmar. Grosso modo, só nos finais do século XIX e meados do século XX é que
podemos falar de uma profissão docente no Brasil, embora esta viesse ganhando corpo
de maneira gradativa desde a segunda metade do século XVIII. Se a nossa intenção é
falar da constituição da profissão docente no Brasil
1
, será preciso aceitar alguns critérios
demarcatórios dessa atividade para acompanhar o seu processo constitutivo, o seu
percurso de autonomização e de formação identitária. O que intentamos fazer aqui é
reconstituir essa história da profissão docente no Brasil através dos percursos trilhados
pelos professores para firmarem a sua profissão e a sua identidade profissional.
O ser professor/a que somos hoje está repleto das marcas que o passado
imprimiu em nós, nos nossos corpos, nas nossas mentes, nas nossas práticas. No esforço
de rever essa história e demarcar esses percursos constitutivos da docência, adotaremos
os critérios definidores do processo de profissionalização do professorado adotado por
Nóvoa (1999). Para esse autor, a docência como profissão segue pelo menos quatro
etapas, não necessariamente rígidas: 1) os professores passam a exercer a atividade
docente em tempo integral (ou como ocupação principal) e não a encaram como
atividade passageira. É um trabalho ao qual consagram uma parte importante da vida
profissional; 2) passam a ser portadores de uma licença profissional, o que confirma a
sua condição de professor e torna-se instrumento ora de controle da profissão, ora de
defesa do corpo docente; 3) devem possuir uma formação profissional (especializada e
relativamente longa) em instituições expressamente destinadas para esse fim e, 4)
participam de associações profissionais, o que é importante para o desenvolvimento de
1
Sobre a história da profissão docente em Portugal consultar o trabalho de NOVOA, Antonio. Formação
de professores e profissão Docente. In NOVOA, Antonio (coordenador) Os Professores e sua
Formação. Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1997. p. 13-33. Dados sobre a história da profissão
docente nos EUA ver POPKEWITZ, Thomas S. Profissionalização e Formação de Professores: algumas
notas sobre sua história, ideologia e potencial. In. NOVOA, Antonio (Coordenador). Os Professores e
sua Formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997. p. 35-50.
41
um espírito de corpo e de defesa do estatuto socioprofissional dos professores. Para o
autor, a existência da profissão docente deve conjugar, não necessariamente nessa
ordem nem ao mesmo tempo, estas quatro etapas definidoras ou constituidoras da
profissão. Ao longo da história, num processo margeado por conflitos e contradições, a
profissão docente foi se firmando e incorporando ao ofício essas disposições
estruturantes do ser e do fazer docente.
Além dessas etapas delineadoras, Nóvoa (1999) admite ainda que a profissão se
firma quando incorpora ao ser e ao fazer docente uma dupla dimensão. A primeira diz
respeito a um conjunto de conhecimentos e técnicas necessários ao exercício qualificado
da docência, saberes técnicos e teóricos em estreito contato com as disciplinas
científicas. A segunda diz da adesão a valores éticos e a normas deontológicas que
regem o cotidiano educativo, das relações no interior/exterior do corpo docente,
fundantes da sua identidade profissional. O eixo estruturante da profissão, segundo o
autor, se assenta sobre o prestígio social adquirido pela docência e sobre condições
econômicas dignas, necessárias para a manutenção da vida e essenciais para o exercício
da profissão a eles confiada.
Tomando como referência esses parâmetros definidos por Nóvoa, procuraremos
ver como se foi constituindo a profissão docente entre nós, os contextos e as condições
de sua produção, o papel dos diferentes agentes e suas relações nesse jogo constitutivo.
Nossa intenção é compreender como, historicamente, se foi moldando essa profissão.
Como se imprimiu e se interiorizou ao longo do tempo os elementos constituidores
desse modus operandi próprio da docência e quais as matrizes históricas e sociais desse
habitus. Aceitamos a hipótese de que muito desse longo e sinuoso percurso se encontra
incrustado sob a pele do professor de hoje, nas suas maneiras de ver e pensar a
profissão, nos seus gestos, nas suas ações e no seu comportamento. O recurso à história
parece útil para rever esses caminhos da docência e para nos ajudar a compreender, no
presente, o ser e o estar na profissão, os habitus aos quais os professores aderiram e as
representações sociais que nomeiam e permitem lidar com a profissão. Por esse
caminho, poderemos compreender as regularidades estruturantes do ser professor no
Brasil. Compreender o que, ao longo dessa história, se tornou estrutura estruturante do
ser professor, princípio gerador e estruturador das práticas e representações (Bourdieu,
1983d) desse grupo profissional.
O fato de, por exemplo, as mulheres dominarem o ensino das séries iniciais do
fundamental é certamente produto de um longo processo de feminização do magistério
42
que vem se gestando desde o século XIX. A idéia, ainda muito forte entre professores,
de que a docência é vocação, missão mesmo, tem suas raízes num passado já remoto.
Ao longo desse trabalho, recorreremos a estas lições da história para compreender como
tais regularidades se encontram ainda presentes no ser dos professores e como esses
docentes, a partir de seus espaços de vida e de trabalho, ressignificam essas
estruturações.
1.2. Os antecedentes: um longo e tortuoso caminho se descortina
A constituição da escola moderna, que vinha se gestando na Europa desde o
século XVI, trouxe com ela profundas implicações para o trabalho docente. O avanço
do capitalismo foi especialmente sensível à importância da instrução, uma vez que a
burguesia compreendia muito bem a força da educação no seu projeto hegemônico.
Contra a dispersão característica das formas de transmissão de conhecimento que
imperavam até então e a diversidade de instituições encarregadas desse fim, a burguesia
avança no sentido de incorporar essa diversidade através da constituição de um sistema
homogêneo de instrução, regulado e sob o seu controle. O projeto burguês de organizar
uma nova sociedade sob os seus auspícios não podia se eximir do controle do sistema de
ensino, corporificado agora numa nova escola. A unificação do sistema de ensino, que
seria, a partir de então, laico e estatal, está na raiz dessa nova escola e, portanto, do novo
professor e de seu processo de profissionalização
2
.
No Brasil, esse processo de estatização e laicização do sistema de ensino e a
criação de uma nova escola, embora sofrendo as influências da conjuntura externa,
seguiu seu próprio curso. A primeira tentativa de controle estatal sobre o sistema de
ensino no Brasil data da expulsão dos Jesuítas em 1759, com a reforma educacional
realizada por Pombal. A intenção da reforma era retomar, para o Estado metropolitano,
o controle do processo educacional e suprimir os efeitos danosos causados pela
educação jesuítica que, entre outras coisas, educava o cristão a serviço de sua ordem e
2
Segundo Gimeno Sacristán, o processo de transferência das funções de educar (que antes estava a cargo
das famílias, das igrejas e da sociedade) para as escolas e, conseqüentemente, para os professores,
representa também a emergência de um novo personagem: o aluno, considerado agora um ser distinto do
filho, assistido diretamente pela escola, sob o olhar de outros adultos e sujeito a um regime de
socialização e de vigilância novos. Ver: SACRISTÁN, Gimeno. O aluno como invenção. Porto Alegre:
Artmed, 2005.
43
não a serviço do Estado. Ao suprimir toda a estrutura da educação jesuítica, a Metrópole
tomou uma série de medidas visando o controle e a reorganização do ensino. O Alvará
de 28 de junho de 1759 dava uma idéia dessa tentativa. Com ele criava-se o cargo de
diretor geral dos estudos, a prestação de exame para os professores e proibia o ensino
público e particular sem licença do diretor, entre outras medidas.
3
O alvará afirmava
ainda a subordinação dos professores ao diretor geral, podendo este advertir, corrigir e
mesmo punir com pena de perda de emprego os professores que deixassem de cumprir
com as suas obrigações.
Em 1773, 13 anos depois do Alvará, uma ordem régia manda estabelecer aulas
de primeiras letras, gramática e grego no Rio de Janeiro e nas principais cidades
(Azevedo, 1976). Segundo Ribeiro, data desse período o surgimento, no Brasil, de “[...]
um ensino público propriamente dito. Não mais aquele financiado pelo Estado mas que
formava o indivíduo para a Igreja, e sim o financiado pelo e para o Estado” (RIBEIRO,
1979. p. 37). A reforma pombalina da instrução pública, na medida em que cria um
sistema de ensino estatal, cria também as condições necessárias para o início do
processo de profissionalização docente.
Embora o Estado procurasse estabelecer um controle sobre o sistema de ensino,
este continuava fragmentado e disperso na pluralidade de aulas isoladas. É bem verdade
que uma nova escola não surgiu daí. É verdade também que daí não surgiu um novo
professor. Contudo, a reforma abriu o caminho para a sua constituição. Ela marca o
início de um período de profundas mudanças no trabalho docente. Os professores
passam a ter direito a salário pago pelo Estado, são selecionados por exames públicos,
estão sujeitos a um controle externo e precisam de licença para lecionar. Isso demonstra
uma vontade do Estado em exercer um controle sobre o trabalho do professor e a
licença para lecionar é a expressão dessa vontade. Além do mais “[...] a autorização para
lecionar emitida pelo Diretor de Estudos se constitui em um verdadeiro suporte legal
para o exercício da atividade docente [...]” (MENDONÇA, 2005. p. 31). A autorização
estabelece também uma distinção entre os novos professores e os antigos mestres-
escolas e serve como instrumento de delimitação de um campo profissional docente
relativamente autônomo.
Apesar dos esforços de Pombal, é de se notar a ausência de unidade no sistema
de ensino e a inexistência de uma escola regular sob o controle do Estado. “[...] em
3
O Alvará pode ser encontrado em ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da instrução publica no
Brasil (1500-1889): historia e legislação. São Paulo: EDUC; Brasília-DF: INEP/MEC, 1989.
44
lugar desse enorme bloco hegemônico que era a organização escolar dos padres da
companhia [...] instituiu o governo o regime de aulas régias, - aulas de disciplinas
isoladas [...]”. (AZEVEDO, 1976. p. 50-51), o que permitiu a fragmentação do ensino e
a emissão de poucas autorizações para professores.
A vinda da família Real para o Brasil acelerou esse processo de controle e de
normatização sobre a educação e o trabalho docente. Segundo Villela (2003) o governo
de D. João faz nomear cerca de 120 professores e aposentar outros 30 ou 40. A
documentação oficial desse período, diz a autora, aponta para o início de uma
normatização mais sistemática da atividade dos professores, expressa nas solicitações,
autorizações, exigência de juramento e num currículo mínimo. Data dessa época,
também, a origem da estrutura de ensino que iria vigorar durante o Império, composto
pela educação primária, cuja instrução se limitava a um nível de instrumentalização
técnica (escola de ler e escrever), o ensino secundário, organizado na forma de aulas
régias, e o ensino superior, inaugurado no Brasil por D. João VI. Contudo, centrando a
sua atenção sobre o ensino médio e superior, na intenção de formar os quadros
necessários aos negócios do Estado, o esforço unificador de D. João não surtiu o efeito
que se poderia esperar e as iniciativas em relação ao ensino primário e à organização do
trabalho docente continuavam dispersas e diversificadas. Na verdade, as iniciativas
levadas a efeito nesse período foram “[...] marcadas pela descontinuidade, acarretando a
inexistência de um sistema público de ensino que unificasse e uniformizasse as práticas
docentes nas esparsas salas de aula” (GOUVEIA, 2001. p. 40). Segundo Azevedo
(1976), o esforço unificador da política educacional de D. João VI, embora pequeno, cai
por terra com o crescimento das forças regionalistas e descentralizadoras, emergentes
após a proclamação da independência. Fernando de Azevedo critica a capacidade
unificadora do governo de D. João e, de resto, de todo o governo imperial. Contudo, não
podemos deixar de considerar que em termos de organização escolar e normatização do
trabalho docente, este período foi deveras importante. Representou um esforço do
Estado nesse sentido.
Com a independência e a instituição do Império a idéia de um sistema nacional
de educação começa a ganhar corpo, embora a constituição outorgada em 1824 tenha
garantido apenas, e formalmente, a educação gratuita a todos os cidadãos. A Lei Geral
do Ensino publicada em 15 de outubro de 1827, única lei relativa ao ensino elementar
até 1946 segundo Ribeiro (1979), expressa, contudo, a preocupação do Estado com o
ensino elementar. Nos seus 17 artigos a Lei se refere
45
[...] a salários de professores, remoção de escolas nas localidades
pouco populosas, ao método de ensino mútuo, às disciplinas
aplicadas nas escolas, à nomeação de professores, às escolas de
meninas e suas professoras, a forma de dirigir as escolas, aos castigos
passíveis de serem aplicados enquanto se utilizava o método
Lancaster e ainda sobre o que era da incumbência do Ministro do
Império e o que cabia aos presidentes das províncias (MIGUEL,
1999, p. 89).
De suas idéias originais que incluíam, além dos temas citados, a educação como
dever do estado, a distribuição por todo o território de escolas de diferentes graus e a
graduação do processo educativo, “[...] vigorou simplesmente a idéia de distribuição
racional por todo o território nacional, mas apenas das escolas de primeiras letras [...]”
(RIBEIRO, 1979. p. 48). Embora o Estado tenha demonstrado preocupação com as
questões referentes à educação elementar e à normatização do trabalho docente, muito
pouco foi feito a esse respeito. Esta displicência pode ser explicada. Faltavam recursos
para organizar um sistema nacional de ensino e a educação não era vista como setor
prioritário do governo imperial.
O Ato Adicional à Constituição de 1834 reflete esta posição. Ao dar maior
autonomia às províncias, o ato, atribui a elas também a responsabilidade de legislar
sobre a instrução pública e seus estabelecimentos, além de torná-las responsáveis pelo
seu provimento. Considerando o isolamento e as distâncias provinciais e a precariedade
de recursos disponíveis para que as províncias investissem em educação, a nossa
organização escolar pouco avançou na primeira metade do século XIX, tanto
quantitativa como qualitativamente. Segundo Azevedo, “A instrução primária, confiada
às províncias e reduzida quase exclusivamente ao ensino de leitura, escrita e cálculo,
sem nenhuma estrutura e sem caráter formativo, não colhia nas suas malhas senão a
décima parte da população em idade escolar [...]” (AZEVEDO, 1976. p. 82).
Contudo, desde a segunda metade do século XVIII se vinha montando, no
Brasil, as raízes de um sistema de ensino laico e sob controle do Estado. Embora lento e
sinuoso no seu início, esse processo vai tomando forma com o tempo, exigindo
mudanças no exercício da profissão docente. Embora incipiente, o controle que o Estado
passou a exercer sobre o sistema de ensino e, conseqüentemente, sobre o trabalho do
professor, aponta para os primeiros contornos da profissão docente no Brasil.
É bem verdade que a docência vinha engatinhando entre nós desde os princípios
da era colonial, profundamente imbricada com a obra missionária dos Jesuítas. No
46
entanto, “[...] o que constitui esses docentes em corpo profissional é o controle do
Estado e não uma corporação de ofício” (VILLELA, 2003. p. 100). O controle do
Estado estabelece uma marca de distinção entre os professores leigos ou religiosos e
aqueles ligados ao Estado, sobre os quais recai uma série de exigências e competências
próprias para ao exercício da profissão. É a Reforma de Pombal que vai desencadear
esse processo. Os professores, por sua vez, aderem a este projeto porque “[...] lhes
assegura um estatuto de autonomia e de independência em relação aos párocos, aos
notáveis locais e às populações: a funcionarização deve ser encarada como uma vontade
partilhada do Estado e do corpo docente” (NOVOA, 1997. p. 17). A segunda metade do
século XVIII representa, para os professores brasileiros, o princípio embrionário de sua
profissionalização. Estão lançadas as condições de produção da docência como
profissão.
1.3. As exigências de formação e de certificação: a profissão docente ganha corpo
Ainda durante a primeira metade do século XIX, começa a tomar forma um
outro elemento importante no processo de desenvolvimento da profissão docente. “Em
1835 (Niterói), 1936 (Bahia), 1845 (Ceará) e 1846 (São Paulo) são criadas as primeiras
escolas normais visando uma melhora no preparo do pessoal docente” (RIBEIRO, 1979.
p. 51). Ainda segundo Ribeiro, os relatórios de ministros dessa época denunciavam que
a dificuldade de se encontrar pessoal qualificado para o ensino e a falta de apoio a estes
profissionais tornavam a carreira desinteressante. Além do mais, a demanda crescente
por instrução e a expansão, mesmo que irregular, da escolarização elementar pelo país,
exigiam um profissional qualificado, preparado para o bom desempenho dessa tarefa.
As escolas normais, com cursos que duravam dois anos em nível secundário, deveriam
servir para qualificar e preparar os professores para o exercício da profissão. Contudo, a
organização das escolas normais não significou ou não produziu, de imediato, mudanças
substanciais na formação dos professores.
Espalhadas pelo Brasil, as escolas normais careciam de unidade porque estavam
sujeitas às nuances da política local. Desde o inicio, estas escolas enfrentaram a
incerteza quanto ao seu funcionamento, possuíam pouquíssimas aulas práticas e sofriam
com a instabilidade. Muitas dessas escolas abriam e fechavam as suas portas ao sabor
47
das oscilações políticas e a maioria delas sofria com os poucos recursos provinciais que
lhes eram destinados
4
. Some-se a isso a pouca valorização dessas instituições de
formação profissional, que atraiam poucos indivíduos interessados em se qualificar para
o magistério. As dificuldades enfrentadas acabaram por se refletir no mau preparo dos
professores. “O pessoal docente, quase todo constituído de mestres improvisados, sem
nenhuma preparação específica, não melhora sensivelmente com as primeiras escolas
normais que se criaram no país [...]” (AZEVEDO, 1976. p. 94). A escola normal criada
em Niterói, por exemplo, era bastante simples. Segundo Saviani (2005), ela era regida
por um diretor que era também o seu professor, o seu conteúdo se resumia ao da própria
escola elementar e não previa sequer os rudimentos relativos à formação didático
pedagógica. À época a discussão sobre o melhor método de ensino se constituía a partir
da referência do método mútuo ou lancasteriano
5
, considerando que se queria atingir
um número maior de indivíduos a serem escolarizados. Neste momento caia em desuso
o método individualizado, característico de uma fase em que a instrução girava em torno
da casa e da vida doméstica. O método lancasteriano representou a única diferença entre
o currículo da escola normal e o da escola elementar. No mais, as escolas normais se
resumiam a reproduzir os mesmos conteúdos curriculares existentes nestas escolas.
Embora reconhecendo as dificuldades e as limitações que as escolas normais
enfrentavam nessa época, não podemos negar que estas representaram o primeiro
esforço de formação institucionalizada de professores que se tem notícia no Brasil. Foi
nelas, também, que se começou a tomar forma, a partir dos currículos de formação, o
conjunto de saberes necessários ao exercício da profissão. Foi nelas que começou a se
desenvolver os programas das disciplinas pedagógicas e que tomou impulso a produção
de materiais didáticos. Começavam-se assim, de modo embrionário, a se desenvolver
um dos elementos balizadores da profissão: um conjunto de saberes técnicos e teóricos
próprios da docência, “[...] que regulassem a ação pedagógica desenvolvida nas salas de
aula, assim como o estabelecimento de um repertório de saberes que unificasse a prática
do professorado” (GOUVEIA, 2001. p. 46). A partir dessas escolas, o professor do
4
Essa situação perdulária das Escolas Normais parece ser um fenômeno comum em toda a América
Latina quando do início de sua implantação. Sobre esse fenômeno ver OSORIO, Miryam Báez. Lãs
escuelas normales colombianas y la formación de maestros en el siglo XIX. IN: Eccos – Revista
científica. V.7, n. 2. São Paulo: Centro Universitário Nove de Julho, 2005. p. 427-450.
5
Segundo Azevedo (1976), o método lancasteriano se caracterizava da seguinte maneira: cada grupo de
alunos (decúria) era dirigido por um deles (decurião), mestre da turma por ser menos ignorante ou mais
habilitado. O professor explicava aos meninos e esses, divididos em turma, mutuamente se ensinavam.
Bastaria um só mestre para uma escola de grande número de alunos.
48
ensino elementar começa a tomar forma. Principia-se aí o processo de distanciamento
entre eles e os antigos mestres-escola de instrução rudimentar. “As escolas normais
estão na origem de uma verdadeira mutação sociológica do corpo docente: o velho
mestre-escola é definitivamente substituído pelo novo professor de instrução primária”
(NOVOA, 1999. p. 18). Com o passar do tempo,
A velha forma de preparação de mestres-escola, calcada no modelo em
voga nas corporações de oficio e tão bem ilustrada pela tentativa legal
de adoção do ensino mútuo no Brasil a partir de 1827 [...] deu lugar a
uma formação que, além de não se restringir ao conteúdo tradicional
ministrado nas escolas de primeiras letras, começa a reservar um papel
de destaque ao conteúdo pedagógico na formação dos professores.
(KULESZA, 2003. p.138).
Se a primeira metade do século XIX foi marcada pela instabilidade e pela
vulnerabilidade das escolas normais, a segunda metade deste mesmo século traz a marca
de um novo otimismo em relação a elas. “Se as décadas de 50 e 60 foram marcadas pela
indefinição da necessidade, ou não, da formação de professores numa instituição
especifica, a década de 70 assistiu a uma revolução das escolas normais” (VILLELA,
2003, p. 115). Esta mutação se deveu às intensas mudanças políticas, econômicas e
sociais pelas quais passava o Brasil da época. O crescente processo de urbanização, a
entrada cada vez maior dos imigrantes que iriam se espalhar pelo Brasil, o aceleramento
do processo de abolição da escravatura e a influência crescente das idéias estrangeiras
que chegavam ao Brasil, especialmente advindas da Inglaterra e dos Estados Unidos - e
que apontavam novos rumos para a educação e a formação de professores - foram
fatores importantes para esse otimismo.
Toda essa efervescência em torno da educação encontra o seu modelo mais
acabado na reforma da escola normal de São Paulo, realizada por Caetano de Campos
em 1890 (Saviani, 2005; Villela, 2003). A reforma vem a enriquecer os conteúdos
curriculares de formação além de dar uma maior ênfase aos exercícios de prática de
ensino, até então não utilizados. Não é por menos que Caetano de Campos cria, anexa à
escola normal de São Paulo, a escola modelo, que deveria servir de espaço para os
exercícios práticos dos alunos do 3º ano. Além da reforma da escola normal, o governo
paulista implantou em 1893 a reforma do ensino primário no estado, cuja novidade foi a
49
criação dos grupos escolares, modelo de escolarização que viria a se espalhar por todo o
país e marcaria uma nova fase no processo de escolarização nacional. “A reforma ali
implantada se tornou referência para outros estados do país. Estes enviavam seus
educadores para observar e estagiar em São Paulo ou recebiam missões de professores
paulistas na condição de reformadores [...]” (SAVIANI, 2005. p. 15).
As novas escolas normais tornaram-se referência para o exercício da docência.
As certificações para o exercício da profissão exigiriam, daí por diante, a posse de um
conjunto de saberes específicos, só adquiridos no interior dessas escolas. A velha
licença dada pelo diretor de estudos da era pombalina, calcada na moralidade do
candidato a professor, na avaliação dos resultados obtidos em experiências anteriores e
nos parcos conhecimentos exigidos, não serve mais. As novas exigências de certificação
passam a ser adquiridas através de uma formação sistemática, oferecida na escola
normal e pela comprovação de uma série de saberes aí adquiridos. “A formação passou
a ser critério fundamental para o ingresso na carreira. Além dela, dois outros critérios
condicionavam o recrutamento no magistério primário: a competência legitimada por
meio de concursos e a interferência política” (SOUZA, 1998 p. 70).
O controle cada vez maior do Estado, as exigências de formação especializada e
uma maior exigência em termos de certificação para o exercício da profissão viriam
marcar uma nova fase no processo de profissionalização da docência no Brasil. Somem-
se a isso dois novos fenômenos que iriam marcar a profissão docente no morredouro do
século XIX: a emergência dos grupos escolares e o crescimento do processo de
feminização do magistério.
1.4. Grupos escolares e feminilização do magistério: os novos rumos da docência
O surgimento dos grupos escolares representou o esforço de se criar uma escola
graduada no Brasil e superar o isolamento a que estavam sujeitas até então. Embora as
escolas isoladas continuassem existindo nos locais mais distantes das cidades
brasileiras, a escola graduada avançou na primeira metade do século XX, o que permitiu
o desenvolvimento de um sistema unificado e estandardizado de escolarização estatal.
Os grupos escolares passaram a se configurar em um modelo mais racional de
organização do ensino. Com eles, se podia atender a um maior numero de crianças num
50
momento em que se pretendia ampliar a escolarização da população. Numa época de
expansão da escola pública e de conformação da educação como elemento civilizador,
emblema do projeto republicano de sociedade, os grupos escolares apareciam como os
templos de civilização (Souza, 1998) dessa nova época. Neste novo cenário,
descortinavam-se mudanças profundas na profissão docente. O investimento na
formação de professores tomou volume (basta ver a reforma da escola normal de São
Paulo), e os discursos oficiais passaram a enaltecer os professores, vistos agora como os
apóstolos da civilização, reformadores da sociedade e portadores de uma missão
patriótica. A profissão docente ganhou maior visibilidade ao mesmo tempo em que o
controle sobre a profissão ficou mais forte.
Os grupos se caracterizavam pela organização da escolarização em graus e pela
definição de critérios para alocar e dividir os diferentes grupos de alunos, pela adoção
de conteúdos específicos para cada grau e de um professor para cada classe de
estudantes, pela organização do tempo das atividades e pela progressão dos alunos ano a
ano. Surge a figura do diretor, geralmente um homem. É ele quem concentra a maior
parcela de poder no interior do grupo e é ele quem fiscaliza, coordena e dirige a escola.
Sua figura representa a marca de uma nova organização do trabalho no interior da
escola e a reconfiguração das relações de poder em seu interior. O trabalho docente
toma novos rumos a partir daí. As formas externas de controle sobre o trabalho do
professor, exercidas durante o longo período que antecedeu a Republica, não impediam
que o professor tivesse um controle sobre a sua profissão. A estes ainda restavam as
possibilidades de definir o ritmo do trabalho, os conteúdos a serem ministrados aos
alunos, as formas de avaliação e de disciplina que seria imposta. Com os grupos
escolares, o controle sobre o trabalho do professor passa a ser mais rígido. Além de um
controle mais forte dos inspetores de ensino, havia agora a figura do diretor. Por outro
lado, os grupos escolares conformaram uma nova prática coletiva docente, tramada no
interior das escolas por uma pluralidade de agentes: diretor, professores, corpo técnico,
etc. Segundo Souza,
Nas escolas graduadas, a convivência coletiva com outros
professores, com outros funcionários e sob o controle de uma
autoridade hierárquica fez que os professores, por um lado,
enriquecesse sua experiência pela troca com os seus pares, por outro,
tivesse subtraída sua autonomia pela centralização do poder vigente
51
nesse tipo de organização escolar mais racionalizada e complexa
(SOUZA, 1998 p. 82).
Os grupos escolares logo se espalharam pelo país mostrando a força dessa nova
modalidade de escolarização. No Rio Grande do Norte eles surgiram em 1908. No Piauí
em 1922. No Paraná em 1903 e em Sergipe ele aparece em 1910. O estado da Paraíba
criou o seu primeiro grupo em 1916, vinte e seis anos após a iniciativa paulista
(PINHEIRO, 2002). Nas décadas que se seguiram, os grupos escolares constituíram o
modelo de escola elementar que iria predominar no Brasil. Durante esse longo percurso
de afirmação nacional dos grupos escolares “[...] essas instituições educativas
consagraram uma cultura escolar, determinadas maneiras de praticar e conceber o
ensino e forjaram identidades profissionais vinculadas ao magistério primário”
(SOUZA, 2006, p. 80). Com os grupos escolares, continua a autora, o magistério se
tornava uma profissão digna e reconhecida socialmente. Com ele os professores
ganhavam status e reafirmavam suas identidades profissionais. A criação dos grupos
escolares coincide também com a entrada gradativa das mulheres no magistério. Na
verdade, eles favorecem essa entrada.
A Lei de 15 de outubro de 1827 é que vai criar as primeiras escolas do sexo
feminino no Brasil e, com elas, as primeiras vagas para o magistério feminino. Como
naquela época a educação de meninos e meninas se dava separadamente, era preciso
então que as mulheres assumissem a função de educar as meninas em idade escolar. Na
verdade, na primeira metade do século XIX já era significativo o número de mulheres
no magistério. Com a criação das escolas normais essa tendência de feminilização
ganha novo impulso. As escolas normais representaram, para essas mulheres, a
possibilidade de uma formação para além da instrução elementar, única reservada a elas
até então. E gradativamente as mulheres passaram a ocupar esses espaços, rompendo
inúmeras resistências e causando enormes transtornos para a organização das escolas.
Contudo, a entrada sistemática das mulheres no magistério se deve, também, a outros
fatores, que vão além de seu ingresso sistemático nas escolas normais. O processo de
urbanização e de industrialização crescente no Brasil, abrindo novos mercados para o
trabalho masculino, a necessidade de ampliação do processo de escolarização e a
desvalorização do magistério, cada vez mais atendendo a uma população de baixa
renda, contribuíram para que as mulheres ocupassem esse espaço. A feminilização do
magistério acontece
52
[...] num momento em que o campo educacional expandiu-se em
termos qualitativos. A mão de obra feminina na educação principiou
a revelar-se necessária, principalmente tendo em vista os
impedimentos morais dos professores educarem as meninas e a
recusa da sociedade à coeducação dos sexos, considerada perigosa do
ponto de vista moral. Assim, aberta a possibilidade das mulheres
poderem ensinar, produziu-se uma grande demanda pela profissão de
professora (ALMEIDA, 1998, p. 109).
Apple (1995), afirma que o magistério passou a significar, para muitas mulheres,
a possibilidade de ascensão social. Para esse autor, a expansão do ensino elementar
elevou o número de mulheres na profissão e o magistério tornou-se feminino em parte
porque os homens o abandonaram. A formalização do ensino e dos currículos e as novas
exigências impostas à profissão, como a certificação e o maior controle teriam, segundo
o autor, levado os homens a procurar emprego em outro lugar. Este movimento teve
profundas implicações para a profissão docente. Ele possibilitou que a profissão, agora
assumida pelas mulheres, passasse a ser exercida por elas como atividade de tempo
integral e como ocupação principal, ao contrário dos homens que a tinham como uma
atividade secundária, exercida nos interstícios de outros postos de trabalho mais
rentáveis. Frente a essas condições de mercado “[...] a administração escolar se voltou
cada vez mais para as mulheres. Em parte, isso foi resultado de luta das próprias
mulheres. [...] Mas, em parte, isso foi resultado do capitalismo também” (APPLE, 1995.
p. 60).
A feminilização do magistério foi acompanhada de perto por um conjunto de
discursos que procuravam justificar a docência como atividade feminina. Esses
discursos procuravam associar o desempenho profissional a condições femininas como
a domesticidade e a maternidade. Construiu-se, assim, uma representação da docência
como espaço do feminino, como um lugar próprio da mulher, uma vez que cuidar de
crianças e educar eram tarefas femininas. Assim, certas características atribuídas à
feminilidade foram incorporadas à docência, abrindo espaço para que as mulheres
ocupassem a profissão, ao mesmo tempo em que se justificava e se reforçava a sua
presença no magistério.
53
Mãe e professora eram identificadas [...] no contexto de uma
maternidade cívica, uma função pública exercida na privacidade dos
lares ou no âmbito do espaço escolar, situado a meio caminho entre
trabalho assalariado, que se considerava como parte da esfera
pública, e domesticidade (VIDAL E CARVALHO, 2001, p. 215).
Além da maternidade, incorporou-se a esse discurso justificador a idéia de que as
mulheres eram vocacionadas, por serem mulheres, ao trabalho docente. A carreira docente era
apropriada ao sexo feminino, pois a natureza das mulheres era compatível com aquelas
atividades que requeriam sentimento, dedicação e paciência. Tais atributos garantiram à mulher
o seu ingresso e a sua aceitação na profissão docente e, ainda hoje, se faz presente nos discursos
dos professores/as e na maneira de esses profissionais compreenderem a sua profissão.
A incorporação desses atributos à docência serviu ao Estado, mas serviu também
às mulheres. Numa sociedade que limitava a vida da mulher ao ambiente doméstico e ao
trabalho de cuidar e educar os filhos, discurso amplamente difundido pela Igreja
Católica, o magistério aparecia como uma possibilidade de se transpor as barreiras do
lar e ganhar o espaço público, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, desenvolvem
um trabalho que se assemelha ao já desenvolvido em casa, o cuidar da educação das
crianças e de sua proteção física num ambiente seguro e restrito aos muros da escola.
Com a docência as mulheres ganham a cidade. Além do mais o magistério representava,
para elas, uma alternativa ao casamento e a ocupações de menor prestígio (costureiras,
modistas, parteiras, etc.). Além disso, era uma ocupação mais agradável e possibilitava
certa liberdade pessoal - sair desacompanhada, adquirir conhecimento e ocupar o espaço
público (ALMEIDA, 1998).
O processo de profissionalização da docência primária no Brasil foi
acompanhado de perto por um igual processo de feminilização de seus quadros. A
presença crescente das mulheres nessa profissão contribuiu sobremaneira para
transformar o magistério numa ocupação de tempo integral, cujos profissionais dedicam
a ela parte importante de suas vidas, e para dar visibilidade e contornos mais nítidos à
profissão.
54
1.5. Os professores se organizam
Segundo Lugli (2005) uma das primeiras associações de professores que se tem
notícia no Brasil foi fundada em 1902, no estado de São Paulo. Tratava-se da
Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo. Embora essa associação
represente um marco no processo de desenvolvimento do ator corporativo docente que
se desenvolveria ao longo do século XX, congregando os professores em torno de
reivindicações internas e externas à profissão, podemos dizer que desde o século XIX os
professores ensaiam formas de organização e delimitam princípios daquilo que
poderíamos chamar de uma tomada de consciência acerca da profissão (VILLELA,
2003).
Baseando-se na leitura dos ofícios trocados entre os professores e as autoridades
públicas do estado de São Paulo entre 1820 e 1860, Hilsdorf (2001) evidencia a
preocupação dos professores com a manutenção e a abertura de escolas, o uso de livros
e materiais didáticos, além da construção de um discurso preocupado com a expansão e
a manutenção de escolas para garantir a profissão, sem prescindir da proteção do Estado
como funcionários. Para a autora, o professor das primeiras décadas do Império não é
uma mera sombra do mestre-régio pombalino, incapaz e desligado da realidade social.
Embora de maneira dispersa e isolada
[...] os professores executam ações no sentido de assegurar a
escolarização segundo o modelo do ensino mútuo proposto pelas
lideranças, mas são ativos e reivindicativos e possuidores de
metodologias definidas, atuando como mediadores entre as pressões
do público (o governo provincial) e o privado (os pais, os alunos)
(HILSDORF, 2001, p. 74).
Não havia aqui um espírito de corpo formado nem mesmo unidade entre os
docentes e suas reivindicações. Lutavam pela abertura e sustento da escola, pela
aquisição de material para seu funcionamento, pelo pagamento dos vencimentos entre
outras reivindicações de pequena monta. Se não podemos falar de uma consciência do
corpo docente, podemos falar ao menos de um processo que estava no seu nascedouro.
Heloisa Villela (VILLELA, 2003) toma a década de 70 do século XIX como
55
referência para o nascimento ou emergência do professorado como ator coorporativo na
cena política e educacional. É bem verdade, continua a autora, que a existência de
movimentos envolvendo a participação de professores, especialmente clubes literários
e/ou sociedades de instrução, fora uma realidade antes dessa data. Contudo, só a partir
da segunda metade do século XIX é que ela começa a tomar corpo. Para isso muito
contribui o desenvolvimento e o fortalecimento da esfera pública burguesa que,
guardadas as devidas especificidades históricas quanto à sua estrutura e
desenvolvimento, ganha força no final desse século com o crescimento da vida urbana,
o movimento abolicionista e republicano e os debates travados em torno desses temas
polêmicos, facilitados pelo desenvolvimento dos meios de comunicação. O surgimento
de clubes, grêmios e associações literárias e políticas marcavam o ritmo dessa época,
embalada, também, pelos debates públicos e pela maior circulação de jornais. Estamos
falando da afirmação de um processo a partir do qual “[...] o público constituído pelos
indivíduos conscientizados se apropria da esfera pública controlada pela autoridade e a
transforma numa esfera em que a crítica se exerce contra o poder do Estado [...]”
(HABERMAS, 1984, p. 68). Segundo Giroux, “[...] a esfera pública não somente serviu
para produzir os discursos de liberdade, mas também conservou viva a possibilidade de
que grupos subordinados desenvolvessem seus próprios intelectuais [...]” (GIROUX,
1988. p. 7). Habermas afirma que é na Inglaterra da virada do século XVII para o XVIII
que vamos ter realmente uma esfera pública funcionando politicamente. No Brasil, ela
começa a ganhar corpo na segunda metade do oitocentos e vai exercer uma forte
influência sobre o movimento de associação dos professores, especialmente no que diz
respeito aos periódicos pedagógicos surgidos no período.
A estatização da profissão docente e a afirmação dos professores como categoria
profissional são condições fundamentais para o desenvolvimento dessa imprensa
pedagógica e para o surgimento das associações de professores. Os periódicos
denunciavam as condições de vida e de trabalho dos professores, a sua situação de
pobreza e sacrifício, criavam um espírito de corpo entre os professores ao estimular a
discussão em torno da profissão (questões metodológicas, legislação e assuntos gerais),
bem como forjavam identidades, difundindo imagens e significados do ser e do estar
professor. A busca de reconhecimento público da importância da educação, afirma
Schueler, “[...] era um outro modo de mostrar a própria afirmação dos professores como
classe de funcionários indispensáveis [...]” (SCHUELER, 2005, p. 383).
Os periódicos muito contribuíram para uma tomada de consciência dos
56
professores como categoria profissional. Eles reafirmaram os interesses comuns da
categoria, mesmo em meio aos embates e aos conflitos, construíram imagens dos
professores como profissionais indispensáveis à sociedade e, por fim, estimularam a
associação docente possibilitando a agregação desses profissionais mesmo diante das
disputas entre os distintos projetos expressos pelos diferentes periódicos.
As associações docentes criadas ao longo do século XX foram acompanhadas de
perto por essa imprensa pedagógica. Muitas delas eram mesmo periódicos oficiais
dessas entidades e tinham um público fiel. A fundação do Centro do Professorado
Paulista (CPP), em 1931, foi acompanhada pela criação da Revista do Professor, em
1934, órgão difusor de suas idéias. O Centro do Professorado Primário Pernambucano
(CPPP), de 1955, criou o Jornal do Professor neste mesmo ano. Essa proximidade entre
as associações docentes e a imprensa pedagógica, afirma Luigi, nos permite “[...]
compreender de que forma as representações desses grupos profissionais sobre o
próprio trabalho se expressavam nesse cruzamento com o campo político”. (LUGLI,
2005, p. 233). Estes periódicos expressam, segundo a autora, as representações da
categoria frente ao poder público e frente ao seu próprio trabalho. Além do mais,
expressam também as diferentes formas de organização política e de reivindicação da
categoria.
Ao longo do século XX, as associações docentes tomaram forma e forjaram a
base do discurso profissional que se estenderia até o início dos anos de 1970. O eixo
central desse discurso girava em torno das questões salariais, mas ele comportava uma
ambigüidade: o discurso expressava uma insatisfação com as condições de trabalho e de
salário dos professores, tinha uma conotação reivindicatória, mas se apresentava como
desinteressado, especialmente em relação ao aspecto econômico. Para Lugli,
Os reclamos que são, em última instância, salariais, não se
apresentam como tais dado que a imagem de “sacerdotes do saber”
dos professores não permitia a admissão de interesses próprios,
especialmente materiais. O discurso articula-se então, sempre em
função de interesses maiores, como o futuro dos alunos, o progresso
do país e os destinos da humanidade (LUGLI, 2005. p. 237).
Para a autora, esse desinteresse expressa um habitus professoral e não uma
estratégia conscientemente orquestrada pelo grupo de professores. Segundo ela, as
57
representações sobre a função e o status do próprio trabalho, ou seja, a docência
naturalizada como profissão vocacional, de amor e dedicação incondicionais, conferem
significados às práticas cotidianas, garantindo coesão ao grupo profissional. Assim, os
discursos instituídos sobre a profissão não permitem que as reivindicações salariais
apareçam de forma direta.
Em dezembro de 1953 viria a ocorrer o primeiro congresso de professores que se
tem notícia no Brasil. A cidade escolhida para acolher as delegações dos 17 estados
representados foi Salvador, no estado da Bahia. Este congresso representou um marco
no processo de unificação da categoria docente e deu maior visibilidade à profissão. Nas
37 teses discutidas no encontro, afirma Fischer, “[...] é possível identificar discursos
reveladores do despertar em torno da tarefa docente e das necessidades da classe. Ao
mesmo tempo, evidencia-se o desejo de assegurar o status do professor na escala social”
(FISCHER, 2005, p. 184). O encontro de Salvador, no entanto, como de resto em todos
os outros que se seguiram, deixou evidente o embate entre forças com interesses
bastante distintos e até antagônicos. Conservadores, católicos, liberais e comunistas se
enfrentaram nestes congressos na tentativa de fazer valer as suas idéias nas teses
discutidas e na condução do movimento. As próprias associações de docentes são
instituições que exprimem estas divergências entre diferentes correntes de pensamento,
o que demonstra que a constituição dessas associações se dá num espaço de lutas e
conflitos mais do que de consensos (Fischer, 2005).
1.6. Em busca das regularidades estruturantes do ser professor
O caminho histórico que acabamos de percorre nos permite visualizar alguns
elementos que, ao longo de todo esse tempo de constituição da profissão docente no
Brasil, converteram-se em estruturas estruturantes do ser professor. Ao longo desse
percurso foram-se forjando regularidades, maneiras de ser e de fazer docentes que
continuam a orientar, ainda hoje, as práticas e os sentidos atribuídos à profissão.
Apoiados nessas lições da história e em pesquisas recentes que se debruçam sobre essa
complexa relação entre o professor e sua profissão, procuraremos inferir sobre a força
dessas regularidades estruturantes na configuração do ser professor. Não pretendemos,
neste primeiro momento, por em evidência a maneira como os professores de nossa
58
pesquisa incorporam e ressignificam essas estruturações. Isto será feito ao longo do
trabalho quando for pertinente. Nossa intenção, por hora, é sistematizar essas
regularidades.
Duas regularidades estruturantes do ser professor emergem dessa longa história.
E parecem continuar fazendo história. A primeira, associada ao processo de
feminilização da docência iniciado nos fins do século dezenove, diz respeito às questões
de gênero. Aqui, o ser professor é marcado por uma naturalização do feminino, pela
transposição de disposições consideradas socialmente como femininas para o trabalho
docente. O ser professor aparece, então, como um profissional de cuidado e o seu
trabalho muito próximo da maternagem e do trabalho doméstico.
Pesquisas realizadas com professoras no Brasil apontam para essa força
estruturante da docência. Transposição, ressignificação, divisão de papéis, práticas de
educação primária assentadas sobre pressupostos maternais, são alguns dos resultados
apontados pelas pesquisas, mostrando que essa imbricação do feminino com a docência
marca ainda fortemente a profissão.
O trabalho realizado por Cerisara (2002) com professoras da educação infantil
(creches e pré-escolas) corrobora com o que estamos afirmando. Nesta pesquisa, a
autora se debruçou sobre a dinâmica da relação casa-creche-escola como espaços onde
se desenvolvem ações de cuidado e educação, procurando entender como as práticas
femininas domésticas contaminam as práticas profissionais das mulheres que trabalham
em instituições de educação infantil. Entre outros achados, a pesquisa aponta para o fato
de que as instituições de educação infantil potencializam o choque entre o público e o
privado no que refere à educação de crianças e que a relação entre as atribuições da
família, da creche e da escola ainda são obscuras. Mostra ainda que as professoras
vivem conflitos quanto aos papéis que desempenham nestes espaços, contaminando o
seu trabalho com práticas femininas domésticas. O depoimento das professoras
pesquisadas corrobora com a existência deste vínculo estreito entre a casa (espaço
privado) e a escola (espaço público). Segundo a autora, os depoimentos “[...] confirmam
que o cuidado com a criança pequena é considerado uma função feminina dentro da
família, e trabalhar com crianças pequenas, mesmos que em instituições educativas
públicas, acaba sendo ainda hoje visto como uma extensão dessa função” (CERISARA,
2002, p. 44).
Entrevistando alunas de cursos de formação para o magistério na cidade de
Marília – SP, Brabo (2002) procurou saber dos motivos da escolha profissional dessas
59
alunas e entender como essas escolhas estavam associadas às questões de gênero. A
conclusão a que chegou é que as identificações e as representações ligadas à vida
cotidiana, por força da socialização, influem nessas escolhas, especialmente sobre a
vinculação do magistério com o trabalho doméstico. Na fala das professoras
pesquisadas por Brabo, a escolha se deveu ao fato de elas “gostarem de trabalhar com
criança” ou “gostarem de crianças”, habilidades que aprenderam ao longo da vida e
foram naturalizadas na condição feminina dessas mulheres. Para a autora, tais
habilidades podem funcionar como uma motivação para a escolha da profissão docente,
mas não garantem que essas futuras professoras tornem-se boas profissionais. Não lhes
ocorreu ainda, diz ela, “[...] que a educação tem a sua especificidade, que é muito mais
complexa e abrangente do que apenas por em prática habilidades que aprenderam desde
a infância” (BRABO, 2002, p. 63).
A maioria das professoras das escolas públicas de Viçosa (MG) entrevistadas
por Ribeiro (2003) utilizava, segundo a pesquisadora, argumentos afetivos para definir
suas relações com o magistério. Quando indagadas sobre os motivos do afastamento ou
da pouca presença dos homens no magistério, por exemplo, as professoras se baseavam
na existência de uma essência feminina, destacada pela maternidade e pela afetividade,
para explicar o impedimento de os homens exercerem o magistério nestas séries. “A
natureza feminina que as professoras fazem referência é uma construção histórica e
social que relaciona a imagem da professora das séries iniciais à família, sobretudo
quanto às atribuições de mãe” (RIBEIRO, 2003, p.155), o que reforça o peso dessas
construções sobre os significados do ser professor nessas séries e sobre a condução de
suas práticas.
Em pesquisa realizada com quatro professores de uma escola primária da rede
pública estadual de São Paulo, Carvalho (1999) procurou estudar as práticas do cuidado
desenvolvidas nessa escola e como elas eram definidas e legitimadas. Procurou
compreender também como essas práticas se encaixavam no interior do trabalho
docente, como elas se articulavam com os conceitos de feminilidade e masculinidade e
com a identidade desses professores. Carvalho conclui que as práticas do cuidado não
são uma mera transposição de comportamentos maternais, domésticos ou sentimentais
para o trabalho docente. “Não se tratava de uma contaminação, uma confusão de papéis,
nem tampouco uma combinação” (CARVALHO, 1999, p. 231-232), porque mesmo as
professoras que mais se mostravam envolvidas com essa prática sabiam separar bem
esses papéis. O que pôde constatar, diz ela,
60
[...] foi a existência de uma prática pedagógica própria do primário,
construída sobre pressupostos que subsidiam também as práticas da
maternidade, uma matriz cultural comum tanto aos ideais de boa
professora, quanto de boa mãe e que remete a uma concepção de
infância, um conceito de “cuidado” infantil e a normas sobre a
adequação das mulheres a essa tarefa, todas elas ideais sociais e
historicamente construídas (CARVALHO, 1999, p. 232).
Esse ideal de professor, continua a autora, era produzido e reproduzido no
interior da própria escola e fazia parte de sua cultura. Além do mais, essa matriz cultural
comum articula cuidado infantil e feminilidade e enfatiza as dimensões afetivas e
relacionais. No primeiro caso, causando embaraço para os homens desenvolverem essas
atividades, no segundo, associando as dimensões intelectuais à masculinidade.
Fontana (2000) prefere os termos redimensionamento e ressignificação de papéis
para explicar essa relação. Procurando compreender como nos tornamos professoras,
Fontana se debruçou sobre os discursos, as interlocuções e as construções realizadas por
seis professoras e mostrou, entre outras coisas, que a constituição da mulher professora
não se dá por uma mera continuidade, por uma transposição dos papéis da mulher dona
de casa para a profissão. Ao contrário, “[...] redimensionamentos foram sendo
produzidos nos seus modos de viver cotidianamente a própria condição feminina e
profissional” (FONTANA, 2000, p. 88). A mulher dona de casa e a professora, embora
saibam distinguir seus papéis, fundem-se numa só pessoa. “A mulher-esposa, a mulher-
filha, e a mulher-professora constituíram-se simultânea e reciprocamente” (FONTANA,
2000, p. 88).
Como podemos ver, as pesquisas recentes demonstram que a naturalização do
feminino, da associação entre trabalho decente e maternagem ainda são uma força
estruturante do ser professor. Continuam a alimentar escolhas e definir práticas e
significados.
Um outro elemento estruturante do ser professor, cuja construção se fez nos
interstícios do processo de feminilização do magistério primário, nos remete a uma
lógica da predestinação. O ser professor, por essa lógica, aparece como um
profissional vocacionado, como aquele que possui um dom ou qualidades inatas para o
exercício da profissão, como chamado a desempenhar uma missão humanitária e social.
61
A vocação, o dom e o caráter missionário atribuído ao professor serviram de apoio para
justificar a entrada das mulheres no magistério, naturalizando a relação mulher-mãe-
professora vocacionada e, ainda hoje, orientam as escolhas e a permanência dos
professores nessa profissão.
Valle (2006), em estudo realizado com professores de 1ª a 4ª série, procurou
analisar a dinâmica da escolha profissional desses professores. Baseando-se na
praxiologia de Bourdieu, a autora admite que as escolhas não dependem apenas das
características próprias da personalidade dos indivíduos mas, principalmente, do
momento histórico e do ambiente sociocultural onde se vivem. A vocação e o dom
aparecem como motivações da escolha profissional para aqueles indivíduos que foram
preparados por processos socializadores a reconhecer essas qualidades e a sua
valorização social. Essa espécie de predestinação, por sua vez, acaba transformando o
professor em um profissional de afeto, contaminando a sua prática pedagógica (a
relação professor/aluno), institucional (professor/direção/colegas) e profissional
(profissão de amor e cuidado).
Segundo Valle, “[...] as motivações para o ingresso no magistério, evocadas
pelos professores interrogados, permanecem no campo dos valores altruístas e da
realização pessoal, estando fortemente ancoradas na imagem de si e na experiência
cotidiana [...]” (VALLE, 2006, p. 183). Ter características inatas e indispensáveis para
profissão (o amor, o cuidado, o gosto pelas crianças...) é como ser chamado para o seu
exercício (foi sempre um sonho, sempre quis ser, admirava um professor...).
Ribeiro (2003), por sua vez, também encontrou a força da vocação nos discursos
das professoras de 1ª a 4ª séries de escolas públicas de Viçosa (MG). Para além de uma
leitura tradicional do uso da palavra, a autora preferiu interpretá-la numa perspectiva
polissêmica, a partir das diferentes acepções utilizadas e dos sentidos aí subjacentes. No
discurso das professoras a palavra vocação tanto apontava para uma idealização do
magistério, construída a partir de representações circulantes sobre a docência (uma
regularidade estruturante), para um jeito de ser professor (habilidades, dons), como para
ocultar a pressão cultural exercida sobre o professor e suas escolhas, já que sua opção se
deveu à interiorização de papéis sociais, especialmente os associados à mulher. Para ela,
a justificativa da escolha por vocação, por estar tão incorporada ao discurso das
professoras, sintetiza tudo e não diz nada. “De algum modo é melhor dizer que tinha, ou
tem, vocação do que refletir e buscar as relações que estão imbricadas na escolha do
magistério” (RIBEIRO, 2003, p. 158).
62
Apoiando-se na praxiologia de Pierre Bourdieu e na Teoria das Representações
Sociais, Albuquerque (2005) procurou explicitar o processo de construção da identidade
social do professor de ensino fundamental do município de Maracanaú, no estado do
Ceará. À medida que procura sintetizar os elementos identitários do professorado desse
município, a autora encontra entre esses elementos referências à vocação e à missão
como características intrínsecas do ser professor. Percebemos ainda, diz ela, “[...] a
reprodução de uma representação social que, anteriormente, era hegemônica no país: o
professor missionário e vocacionário” (ALBUQUERQUE, 2005. p. 126). Expressões
como carinho, atenção e solidariedade para com os alunos acabam por dar visibilidade
social ao professor e reforçam a sua identidade profissional. Segundo a autora, esse
caráter missionário e vocacionário tem por referência uma matriz religiosa muito
presente na região. Assim, “[...] o professorado tende a sacralizar as relações sociais no
espaço da escola e no contato com os alunos” (ALBUQUERQUE, 2005. p. 126), diz
ela.
Em pesquisa Recente, Lira (2007) procurou analisar a configuração identitária
do professorado do ensino fundamental da região metropolitana de Natal. Para o autor, a
representação social do ser professor para os sujeitos pesquisados estaria assentada
sobre três conjuntos singulares de elementos ou facetas, que concorrem para dar uma
imagem e um significado a essa profissão. A faceta do desvelo é a que se apresenta
como campo de maior negociação de sentidos. Os elementos dessa faceta “[...]
destacam-se por possuir uma relação mais estreita com a história da profissão, com as
disputas científicas e com a formação docente [...]”. (LIRA, 2007. p.192-193). Entre os
elementos dessa faceta Lira destaca, além do amor e da doação, o componente missão
como base de compreensão da docência. Para ele, essa missão aparece como tarefa
educativa, como missão pedagógica, como ato de educar e cuidar, de promover
gerações e mesmo negativamente como missão difícil.
A naturalização do feminino e a lógica da predestinação que, como vimos,
alimentam, ainda, as representações do ser professor e servem de referência para a
construção de suas identidades profissionais, aparecem como representações
hegemônicas do ser professor, construídas ao longo do processo de constituição e de
profissionalização da docência no Brasil. Aparecem mesmo como estruturas
estruturantes do ser professor.
CAPÍTULO II
OS OLHOS E AS FACES DA DOCÊNCIA: INVESTINDO NA CONSTRUÇÃO
DE UM PERFIL E NA COMPREENSÃO DO ESTILO DE VIDA DO
PROFESSORADO PESQUISADO
64
2.1. Introdução
Investiremos agora na construção do perfil social dos professores pesquisados e
no seu estilo de vida. Isto será feito considerando algumas variáveis como gênero,
profissão e escolarização dos pais e dos cônjuges, naturalidade, remuneração pessoal e
familiar e formação. Para acessar o estilo de vida nos apoiamos, também, em algumas
variáveis como as atividades desenvolvidas nos fins de semana e feriados, o gosto
musical, o tipo de leitura e música preferidas, a participação em atividades políticas e
religiosas, os meios utilizados para obter informação e as preferências em termos de
programação de TV. Nossa intenção é demonstrar que o nosso grupo de professores está
sujeito a regularidades estruturantes que caracterizam um estilo de vida, o que nos
permite inferir sobre a relação entre este estilo, as escolhas dos nossos agentes (as
escolhas profissionais, por exemplo) e a maneira como esses professores compreendem
a profissão. Com esse perfil poderemos acessar elementos do habitus provinciano
gerador desse estilo e inferir sobre a transposição de alguns de seus elementos para a
docência. O habitus professoral é também permeado pela trajetória social desses
professores.
Segundo Bourdieu (1983c), o estilo de vida, enquanto conjunto de preferências
distintivas, é produto de um habitus que, por sua vez, exprime as necessidades objetivas
das quais ele mesmo é o produto. Às diferentes posições no espaço social, diz Bourdieu,
“[...] correspondem estilos de vida, sistemas de desvios diferenciais que são a retradução
simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência”
(BOURDIEU, 1983c, p. 82). O estilo de vida se expressa, portanto, no conjunto de
propriedades dos agentes sociais (casa, móveis, roupas, etc.) e nas práticas que
manifestam a sua distinção (o gosto, os esportes, distrações culturais, etc.).
Para acessar esses estilo de vida e o seu “operador prático” recorremos às
informações coletadas com o Questionário de Caracterização. Aplicou-se, então, a
análise de freqüência para fazer uma contagem simples dos dados e desenvolvemos
tabelas cruzadas, para estabelecer, quando achamos necessário, um cruzamento entre
duas ou mais variáveis.
Antes de discorrer sobre o perfil social dos professores pesquisados e seu estilo
de vida, iremos apresentar uma rápida caracterização da Cidade de Queimadas, na
Paraíba, o palco onde se desenrolam as cenas de vida dos nossos agentes. É aí onde
65
vivem e trabalham, é aí onde constroem suas existências. A melhor maneira de conhecer
uma cidade, dizia Camus (1997), é saber como se trabalha, como se ama e como se
morre. Seguindo esse raciocínio, uma boa maneira de conhecer os homens que habitam
as cidades é saber onde eles vivem e trabalham, onde eles amam e como morrem. O
perfil será construído a partir das observações feitas no local durante a pesquisa, das
informações colhidas junto aos habitantes do lugar e a partir de dados estatísticos do
IBGE.
2.2 Uma cidade feita de homens e pedras
O Município de Queimadas se localiza no planalto da Borborema. Situado na
mesorregião do Agreste paraibano, está distante aproximadamente 15 km de Campina
Grande, da qual sofre grande influência cultural e econômica e com a qual mantém
estreita relação. Queimadas possui uma área de 409 km
2
e uma população estimada pelo
censo IBGE de 2007 de 38.883 habitantes. O nome atual da cidade se deve à derrubada
e à queimada da mata nativa pelos habitantes da região no século XIX, com intenção de
assentar aí agricultura e pecuária.
Localizada no alto e nas encostas da serra de bodopitá, no planalto da
Borborema, Queimadas possui um relevo singular. O seu perímetro urbano, e de resto
toda a extensão do município, alterna espaços planos com grandes e moderadas
elevações de rara beleza, dando à cidade um colorido especial. Uma das características
marcantes do município é a grande quantidade de formações rochosas que compõem a
paisagem. Nestas formações foram encontradas inúmeras inscrições rupestres, sinais
preservados da presença dos índios Cariri na região, os seus primeiros habitantes.
Espremida entre serras, subindo mesmo por elas, a cidade acolhe os moradores da sede
e da zona rural. A zona rural, aliás, por ser muito extensa, constitui a maior parte do
município, espalhada na forma de pequenas comunidades bucólicas dedicadas à vida
agrária e pastoril.
O município vive basicamente de seu ativo comércio, de algumas indústrias que
compõem o chamado distrito industrial de Queimadas e das atividades agropastoris. O
comércio se destaca pela comercialização de alimentos (industrializados e in natura) e
pela grande circulação de produtos que atentem à demanda da agricultura e da criação
66
de animais. A feira da cidade, que ocorre aos sábados, é bem movimentada e
diversificada. Nela se comercializam os produtos locais e aqueles oriundos de outras
regiões do estado e do país como carnes, ovos e derivados animais, bem como a
produção agrícola local cuja fartura e exuberância dependem dos períodos de chuva.
A feira se espalha pelas ruas centrais da cidade numa confusão ruidosa típica das
cidades do interior. Para ela se dirigem os moradores da sede, estes com maior conforto,
e os moradores das comunidades rurais. Ônibus, caminhonetes, motos e carros de
aluguel garantem o transporte dos moradores das comunidades mais distantes que vêm à
cidade comercializar os seus produtos ou mesmo cuidar do abastecimento familiar.
Quanto estive no município trabalhando no Programa de Pedagogia em Regime
Especial visitava a feira todos os sábados. Lá, eu tomava o café da manhã antes de
iniciar as aulas, e não foram raras as vezes que encontrei as minhas alunas-professoras
cuidando do abastecimento da casa antes de cuidarem de si mesmas e de sua formação.
Embora próxima de Campina Grande, Queimadas guarda um ar de cidade
provinciana do interior. A conversa animada nas calçadas das casas ainda ajuda a matar
o calor das noites quentes. Os acontecimentos da política local, os ‘causos’ do lugar e as
novidades da televisão servem de mote para a conversa. A caminhada pela rua central
da cidade, de onde se pode ver a igreja matriz, os encontros furtivos entre os jovens
curtindo a noite ociosa com os amigos, ajudam a matar o tempo numa cidade que
oferece pouquíssima diversão. Uma cena que se enriquece nos dias de missa com novos
personagens, homens e mulheres crentes em Deus ou simplesmente dispostos a circular
pelo lugar festivo e alegre. O funcionamento das escolas noturnas ajuda a fazer as noites
do lugar mais colorida. Na saída das aulas a cidade se enche de estudantes em busca do
caminho de casa, ou em direção a uma parada estratégia em alguma lanchonete. Ajudam
a compor essa paisagem os estudantes que chegam de Campina no ônibus do município,
especialmente aqueles que estão cursando a universidade. Depois o silêncio e o
recolhimento. A cidade dorme hipnotizada pela luzinha azul dos aparelhos de TV.
Nos fins de semana o movimento fica por conta da feira, dos shows que
acontecem na única casa especializada do lugar, das partidas de futebol jogadas nos
campos de várzea, dos banhos de açude ou de piscina e das serestas dançantes que um
ou outro barzinho oferece. Nas comunidades rurais, o isolamento da distância torna a
vida mais difícil. Mais tranqüila e mais pacata, mas não menos difícil. Algumas
comunidades possuem capelas e em algumas delas se realizam festas religiosas em
homenagens aos seus santos. É diversão certa. Nas proximidades das festas juninas,
67
estas comunidades organizam quadrilhas e prévias de São João e São Pedro. É festa na
certa. Em cada uma delas se espalham os campos de futebol que animam as manhãs e as
tardes de domingo. Açude cheio é sinal não só de fartura mas também de alegria e
diversão.
Estive em várias dessas comunidades em busca dos professores. Distâncias
longas, muita poeira nos dias de sol e veredas intransponíveis nos dias de chuva, nestes
dias guardados ao recato e esquecimento. Trabalhar nestes dias de água farta é uma
aventura, especialmente para aqueles que moram mais distantes da escola. Cenas de
heroísmo me foram narradas. Nos dias de sol inclemente, calor e poeira os esperam, o
suor escorrendo pelo rosto. Nos dias de chuva, um Deus nos acuda.
Queimadas combina muito bem o seu ar provinciano com um olhar voltado para
o mundo. É difícil encontrar residência na cidade que não esteja ligada ao mundo por
poderosas antenas parabólicas. As casas mais pobres, que parecem não poder com o seu
próprio peso, sustentam heroicamente esses titãs de metal. O fenômeno se estende,
também, pela zona rural. Lá, elas parecem pequenos arbustos incorporados de vez à
vegetação, alimentando com sua seiva as noites de memória e de esquecimento.
Os dados do IBGE
1
nos ajudam a compor um perfil de seus moradores. Do total
de habitantes, as mulheres com dez anos ou mais representam a maioria. Elas são
14.378 mulheres contra 13.530 homens com a mesma idade. Os níveis de escolarização
do município, por sua vez, são preocupantes. A população residente com mais de dez
anos de idade, sem instrução ou com menos de um ano de estudo somam 7.132 pessoas.
As que possuem entre um e três anos de estudo representam 9.072 pessoas e as que
possuem entre quatro e sete anos de educação formal somam 7.753 pessoas. Este
número cai vertiginosamente à medida que os anos de escolarização avançam. Este
dado é revelador. Ele corrobora com o que os nossos Questionários de Caracterização
apontam, ou seja, a baixa escolarização dos pais e dos cônjuges dos nossos professores,
cuja maioria possui apenas o ensino fundamental incompleto – 58,7% dos pais, 61,3%
das mães e 41,3% dos cônjuges.
O nível de renda dos habitantes do município é também um indicador para
pensar a situação econômica dos seus habitantes. Senão vejamos a tabela abaixo:
1
Fonte: IBGE, Resultados da Amostra do Censo Demográfico 2000 - Malha municipal digital do Brasil: situação em 2001. Rio de
Janeiro: IBGE, 2004.
68
TABELA 01: Rendimento nominal mensal da população do município de
Queimadas – PB
Nível de renda nominal População Referência
Pessoas residentes - 10 anos ou mais de idade - rendimento nominal
mensal - até 1 salário mínimo
7.662
Habitantes
Pessoas residentes - 10 anos ou mais de idade - rendimento nominal
mensal - mais de 1 a 2 salários mínimos
3.675
Habitantes
Pessoas residentes - 10 anos ou mais de idade - rendimento nominal
mensal - mais de 2 a 3 salários mínimos
856
Habitantes
Fonte: IBGE, Resultados da Amostra do Censo Demográfico 2000 - Malha municipal digital do Brasil:
situação em 2001. Rio de Janeiro: IBGE, 2004.
Os números mostram que a renda nominal da população é extremamente baixa.
Ela se concentra na faixa que vai de menos de um até dois salários e começa a cair
vertiginosamente a partir da faixa dos dois salários. A população residente com nível de
renda superior a vinte salários, por exemplo, soma apenas 30 pessoas conforme os
mesmos dados do IBGE, o que demonstra a enorme disparidade entre ganhos e a forte
concentração de renda no município. Estes dados corroboram, também, com as
informações que colhemos sobre a renda pessoal dos professores e de suas famílias. A
média de rendimento dos professores gira em torno de 1 a 2 salários (90,7%) e a renda
familiar em torno de 1 a 3 salários (78,7%).
Constatamos também, a partir da observação e da conversa com os professores
e com outros servidores da rede municipal de educação (supervisores e pessoas da
Secretaria de Educação), o alto índice de desemprego no município, principalmente
entre os jovens, o que contribui fortemente para o alto índice de migração de sua
população, especialmente a da zona rural. Um professor de uma escola estadual do
município, o Ernestão
2
, afirmou que é grande o número de jovens que abandonam os
estudos, desistência causada, segundo ele, por essa migração, especialmente entre os
homens, e pelo alto índice de gravidez precoce entre as meninas. Embora saibamos que
a evasão escolar é causada, também, por uma série de outros motivos, esta afirmação
não deixa de ser preocupante. Ainda mais quando observamos os índices de
escolarização do município, extremamente baixos, em associação com o baixo nível de
renda dessa população, associação essa que se reflete na busca por emprego. Os
reduzidos níveis de renda familiar e a baixa escolarização da população são apontados
2
Ernestão é o nome popular atribuído ao Colégio Estadual Francisco Ernesto do Rego.
69
pelo DIEESE (2001) como uma das dificuldades para a inserção dos mais jovens no
mercado de trabalho. O reduzido capital econômico das famílias inviabiliza o
investimento em capital escolar e cultural, cada vez mais exigido pelo mercado. Com
menos renda, “[...] as famílias têm menos condições de se preparar para um mercado de
trabalho cada vez mais competitivo em termos de níveis de instrução, cultura geral e
mesmo condições de saúde [...]” (DIEESE, 2001, p. 33).
Transitando entre o campo e a cidade, acostumados à vida provinciana do
interior, os habitantes de Queimadas levam a vida como podem. É ai que vivem e
trabalham, é ai que amam e morrem. Os professores de nossa pesquisa habitam esse
cenário e, entre tantos outros atores, emprestam o seu colorido especial ao drama da
vida humana que aí se desenrola.
2.3. Construindo o perfil dos professores e o seu estilo de vida
A docência da educação infantil e das séries iniciais do fundamental é
constituída majoritariamente de mulheres, embora este perfil venha lentamente se
modificando nos últimos anos. Batista e Codo (1999) apontam para essa tendência,
especialmente nas séries finais do ensino fundamental e no ensino médio. Para os
autores, está em curso um processo de desfeminização da docência, com o ingresso
gradativo de homens na profissão, o que se relaciona “[...] tanto com mudanças na
identidade de gênero, como com a crise do emprego, elementos que permitiriam
compreender a ruptura dos limites tradicionalmente estabelecidos para emprego
feminino e masculino” (BATISTA E CODO, 1999, p. 68). As conseqüências desse
processo podem ser sentidas e se refletem não só na identidade docente como também
sobre as condições de trabalho e sofrimento dos professores.
A pesquisa realizada por Vieira (2002) com professores da cidade de Fortaleza,
demonstra este perfil feminino da docência, especialmente nas séries iniciais do
fundamental, e o gradativo aumento no número de homens à medida em que se avança
na seriação escolar. Entre os professores do ensino médio entrevistados pela autora,
54% deles eram homens. Para ela, “[...] quanto mais distante do início da seriação
escolar [...] mais forte a tendência de haver hibridismo no gênero” (VIEIRA, 2002, p.
30).
70
Entre os professores participantes de nossa pesquisa, os dados apontam para uma
forte presença feminina na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental
do município. Elas representam 93,3% do total da amostra, contra 6,7% de homens.
Embora a nossa pesquisa não tenha procurado constatar processos de masculinização ou
de feminilização em curso, os dados reforçam a tendência nacional de predomínio
feminino nessas séries. Dados do DIEESE (2001) sobre emprego feminino, apontam
para uma tendência da presença de mulheres nas atividades de apoio. Atividades de
secretária, recepção, limpeza e copa, assim como trabalhos na área de educação e saúde,
são tradicionalmente desenvolvidas por mulheres. “Isso porque, guardadas as devidas
proporções, são extensão de atividades executadas no lar, ambiente por excelência de
atuação feminina” (DIEESE, 2001, p. 118).
O grupo de professores apresenta, também, certa homogeneidade no que diz
respeito à idade. No gráfico abaixo é possível visualizar essa disposição dos
professores.
GRÁFICO 01: Disposição dos professores por idade
mais de 50 anos
de 41 a 50 anos
de 31 a 40 anos
de 21 a 30 anos
Missing
302520151050
6
8,0%
30
40,0%
29
38,67%
9
12,0%
1
1,33%
71
Como podemos ver, os professores com até 30 anos somam apenas 12,0% da
amostra enquanto os com mais de 50 anos apenas 8,0%. Não é uma população nem
muito jovem nem com idade muito avançada. A maioria deles se concentra na faixa
etária que varia entre os 31 e os 50 anos. Não encontramos em nosso grupo nenhum
professor com idade inferior a 20 anos o que, segundo Vieira (2004), pode significar
falta de renovação de pessoal, baixos ingressos e desestímulo pela profissão.
Para acessar a origem social desses professores começamos por analisar os
dados referentes à profissão dos seus pais. A tabela que apresentaremos a seguir, nos dá
uma idéia da distribuição dos pais e mães dos professores por profissão.
TABELA 02: Profissão do Pai e da Mãe dos professores
Profissão do Pai Freqüência Porcentagem
Autônomo 2 2,7
Agricultor 35 46,7
Aposentado 13 17,3
Comerciante 5 6,7
Operador de máquinas 2 2,7
Pedreiro 5 6,7
Marceneiro 1 1,3
Faxineiro 1 1,3
Sapateiro 1 1,3
Motorista 5 6,7
Agropecuarista 2 2,7
Não respondeu 3 4,0
Profissão da Mãe Freqüência Porcentagem
Professora 12 16,0
Feirante 1 1,3
Doméstica 23 30,7
Aposentada 9 12,0
Agricultora 19 25,3
Zeladora 5 6,7
Merendeira 1 1,3
Costureira 1 1,3
Pecuarista 1 1,3
Não respondeu 3 4,0
Total 75 100
Como podemos observar, a profissão do pai e da mãe dos nossos professores
são, em geral, profissões de baixa remuneração. Os dados do IBGE sobre a renda
nominal dos habitantes do município, que apresentamos anteriormente, apontam para
72
uma população dedicada a profissões cuja remuneração é muito baixa, o que nos
permite inferir sobre a origem social desses professores. Entre os pais, a profissão de
agricultor é a mais freqüente com 46,7% do total. Em seguida vêm os aposentados, os
comerciantes, os pedreiros e os motoristas. Entre as mães, a maioria delas são
domésticas (30,7%), seguidas pelas mães agricultoras, professoras, as aposentadas e as
zeladoras. Pais e mães têm, em geral, uma profissão cujo rendimento gira em torno de 1
a 3 salários mínimos, o que demonstra que esses professores são provenientes de uma
classe social “[...] desprovida de privilégios e que precisou enfrentar todas as
dificuldades inerentes a esta condição para alcançar a condição de professor” (VIEIRA,
2002. p. 45-46).
O pertencimento desses professores às classes populares, assim como ocorre em
relação a sua condição de gênero, produz implicações sobre a maneira como
compreendem a sua profissão e sobre as imagens que eles produzem a seu respeito.
Além do mais, as escolhas profissionais refletem essas origens e as estratégias
familiares e mesmo pessoais para inserção no mercado de trabalho. Estratégias que
terão maior probabilidade de sucesso quanto maior a renda e o nível de escolarização
familiar.
No caso dos nossos professores, o nível de escolarização de seus pais é bastante
compatível com o tipo de profissão em que eles atuam, geralmente profissões que não
exigem um grande nível de escolarização. Esta associação entre baixa renda e
escolarização elementar reduz a capacidade de investimento familiar na profissão dos
filhos, especialmente naquelas profissões que exigem maior quantidade de investimento
em capital educacional e cultural. As estratégias, portanto, são traçadas dentro dos
limites dessas condições. No capítulo III investimos na compreensão dessas estratégias
e no como elas tornaram possível o ingresso desses professores na profissão. A tabela
abaixo nos permite uma visualização do nível de escolaridade dos pais desses
professores.
73
TABELA 03: Nível de escolarização dos pais dos professores
Pais Mães
Nível de escolarização
Freqüência Porcentagem Freqüência Porcentagem
Não escolarizado/a 25 33,3 12 16,0
Ensino fundamental incompleto 44 58,7 46 61,3
Ensino fundamental completo 6 8,0 5 6,7
Ensino médio incompleto - - 2 2,7
Ensino médio completo - - 10 13,3
Total
75
100
75
100
Enquanto, entre os pais, o nível de escolarização é mais baixo, oscilando
fortemente entre os não escolarizados e os que possuem apenas o fundamental
incompleto, entre as mães essa oscilação é bem maior. O número de não escolarizadas é
pequeno em relação aos pais, a tendência de formação se concentra no fundamental
incompleto, e o número de mães com o ensino médio completo atinge 13,3%, nível que
nenhum dos pais sequer chegou a cursar. As mães que possuem escolarização mais
elevadas (ensino médio incompleto e completo), 12 no total, todas são professoras.
Oriundos das classes populares, esses professores continuam a elas ligados após
o seu ingresso na profissão. A renda familiar do grupo varia entre 1 e 3 salários
mínimos (78,7% do total) e a renda pessoal entre 1 e 2 salários, o que corresponde a
90,7% da amostra. Embora a renda familiar seja reduzida, o número de professores que
desempenha outras atividades além da docência é muito baixo. Apenas 14 professores,
ou seja, 18,7% deles, dizem ter uma outra atividade remunerada. Deste grupo reduzido
apenas 01 homem faz parte (ele é também avicultor). O restante são mulheres. Estas
assumem, além da docência, a função de revendedora, cabeleireira, serviços gerais,
costureira e agente comunitário de saúde, entre outras atividades.
Vieira (2004), em pesquisa realizada com mais de 4.000 professores e
profissionais da educação de todos os níveis e redes de ensino em dez estados
brasileiros, constatou que o salário desses profissionais é muito baixo, em torno de 500
a 700 reais, e que muitos desses professores exercem atividades paralelas para
complementar a renda. Para ela,
74
Professores e funcionários de escola vendem pão, roupa, bijuterias,
perfumes [...]. A própria escola serve como local de venda e os
recreios, os intervalos permitem um tempinho para a
comercialização. Talvez alguns o façam por aptidão ou como lazer
mas, sem dúvida, a grande maioria é para garantir a sobrevivência
(VIEIRA, 2004, p. 17).
Como esses professores são em sua maioria do sexo feminino, os números
apontam para uma participação ativa dessas mulheres na renda total da família. Isso se
deve à crescente participação das mulheres no mercado de trabalho e ao conseqüente e
gradativo rompimento com a tradição que define o homem como provedor da família.
Deve-se, também, à pressão econômica que exige cada vez mais a participação das
mulheres na composição da renda familiar.
Desejo pessoal de realização, necessidade de compor a renda familiar
ou obrigação de assumir a responsabilidade total da família pelo
desemprego ou ausência do cônjuge são alguns dos fatores que
contribuíram para que, ao longo das últimas décadas do século XX, a
taxa de participação feminina seja crescente (DIEESE, 2001. p. 103-
104).
Contudo, o fato de as mulheres conquistarem o mercado de trabalho não as
exime de continuar realizando tarefas que tradicionalmente são atribuídas a elas (cuidar
da casa, dos filhos, do marido, dos doentes...). Esta dupla jornada de trabalho, como
podemos ver entre as nossas professoras, transforma-se em tripla jornada para algumas
delas, acarretando uma sobrecarga de trabalho. Além do mais, o trabalho feito em casa
não gera salário e, por isso, não recebe a mesma valorização que o trabalho público.
A profissão e o nível de escolarização dos cônjuges reforçam essa origem social
popular do grupo de professores. 33,3% dos parceiros/as dedicam-se à agricultura,
enquanto os demais desempenham outras atividades como operador de máquinas,
motorista, comerciante, professor/a, vigia, servos gerais entre outras menos citadas.
São, como no caso dos pais dos professores, profissões de baixa remuneração que não
exigem altos níveis de escolarização. Entre os cônjuges, 10,7% deles não possuem
nenhuma escolarização, 41,35% possuem apenas o fundamental incompleto e 12,0% o
fundamental completo. Esses números vão se reduzindo à medida que o nível de
escolarização avança.
75
A situação civil dos professores é bastante estável. 80,0% deles são casados.
Considerando o número de viúvos/as, solteiros/as e separados/as, 92,0% possuem
filhos, sendo que o número deles varia entre 1 e 3. A casa própria não representa mais
um grande problema para a maioria dos professores, pois 96,0% deles já a adquiriram.
O núcleo familiar, por sua vez, é relativamente pequeno, variando entre duas e cinco
pessoas, sendo que 76,0% destes núcleos estão localizados na zona rural do município.
Procuramos cruzar as variáveis local de moradia e local de trabalho para ter uma idéia
do deslocamento desses professores entre a sua casa e a escola. Este cruzamento
mostrou que 11,1% dos professores da zona urbana lecionam na zona rural e 17,5% dos
professores da zona rural se deslocam freqüentemente para realizar seu trabalho na sede
do município. Cruzamos também os dados referentes à distância do local de trabalho
com os meios utilizados para se locomoverem até eles. Na tabela abaixo podemos ver os
resultados desse cruzamento.
TABELA 04: Cruzamento das variáveis distância do local de trabalho e meios de
transporte utilizados.
Meios de transportes utilizados
Total
Distância para o
local de trabalho
A pé De moto
Ônibus
escolar
Ônibus
A pé ou
de
bicicleta
A pé ou
de carro
De carro
32
64,0
0
0,0
0
0,0
0
0,0
0
0,0
0
0,0
0
0,0
32
43,2%
18
36,0
5
62,5
1
25,0
0
0,0
1
100
1
100
0
0,0
26
35,1%
0
0,0
0
0,0
1
25,0
3
33,3
0
0,0
0
0,0
0
0,0
4
5,4%
0
0,0
2
25,0
1
25,0
3
33,3
0
0,0
0
0,0
1
100
7
9,5,%
Menos de 1 km
De 1 a 3
Mais de 3 até 5
Mais de 5 até 10
Mais de 10 km
0
0,0
1
12,5
1
25,0
3
33,3
0
0,0
0
0,0
0
0,0
5
6,8%
Total
50
67,6%
8
10,8%
4
5,4%
9
12,2%
1
1,4%
1
1,4%
1
1,4%
74
100,0%
Podemos notar que 50 professores (67,6%) vão ao trabalho a pé, principalmente
aqueles que moram mais próximos da escola. Destes, 64,0% moram a menos de 1 km
76
da escola e 36,0% moram a uma distância de 1 a 3 km. Os que moram mais distantes
fazem o percurso de ônibus (12,2%), de moto (10,8%) ou no ônibus escolar do
município (5,4%), o mesmo que transporta os estudantes. O uso de outros meios de
transportes, como a bicicleta e o carro, também foram citados, embora numa proporção
muito pequena. Morar perto do trabalho representa uma vantagem para os professores.
O deslocamento se torna mais fácil e econômico, especialmente para aqueles que
moram a menos de 1 km da escola. É também vantajoso por aproximar o professor do
seu aluno e da comunidade onde a escola se situa, especialmente entre os professores da
zona rural. Além do mais permite economia de tempo, que pode ser dedicado a outras
atividades. Contudo, o deslocamento a pé feito pela maioria dos professores representa
também uma dificuldade para muitos deles. Enfrentam o sol e a poeira dos dias quentes
e a chuva, a lama e a ventania do inverno.
Queimadas é a terra natal da maioria deles. Do grupo investigado, 60,0%
nasceram no município e os demais são oriundos das cidades circunvizinhas como
Campina Grande (13,3%), Boqueirão (5,3%), Fagundes e Aroeiras (2,7%), entre outras
menos citadas. Apenas quatro professores dizem ter nascido fora do estado. Dois em
Pernambuco, nas cidades de Bom Jardim e Surubim, e dois no Rio de Janeiro. O fato de
os professores serem majoritariamente naturais da cidade e da região é bastante
significativo. Foi nessa região em que cresceram, aprenderam a conviver com ela e a ela
estão profundamente adaptados. As suas histórias de vida se confundem com a vida do
lugar.
A origem e a condição social do nosso grupo de professores se refletem
diretamente na formação desses indivíduos. A maioria deles cursou o ensino
fundamental em escola pública (68%). Um número ainda maior cursou o ensino médio
nesse tipo de escola (77,3%). O número daqueles que tiveram a chance de dividir os
estudos entre a escola pública e a escola particular é bem menor. No fundamental
somam apenas 25,3% e no médio esse percentual cai para apenas 14,7%. Esse aumento
gradativo da procura pelas escolas públicas na medida em que se avança na graduação
escolar (do ensino fundamental para o médio) permite algumas inferências. Em primeiro
lugar, o número de escolas privadas no município é muito reduzido.
77
Dados de 2006
3
indicam que Queimadas possui apenas 84 escolas do ensino
fundamental, sendo 08 estaduais, 67 municipais e apenas 09 escolas privadas. Quanto
ao ensino médio, o município possui apenas 05 escolas, sendo uma estadual, duas
municipais e duas privadas. A zona rural, local de origem da maioria dos professores,
não dispõe desse tipo de escola o que obrigaria os pais desses indivíduos a deslocar os
filhos para a zona urbana com os custos daí advindos, ou sujeitá-los ao estudo em
escolas públicas. Para os que moravam na cidade e dispunham de uma melhor condição
de vida a escola privada podia ser uma opção. Por outro lado, se era grande a
dificuldade de colocar os filhos numa escola privada de ensino fundamental, maior
ainda era optar por escola desse tipo para o ensino médio. A procura pela escola pública
de ensino médio aumenta em relação ao fundamental em razão, também, do custo mais
elevado desse tipo de escola, geralmente mais cara e dispendiosa.
Todos os professores concluíram o ensino superior e são formados em
Pedagogia, embora o tenha feito tardiamente. Entre a conclusão do ensino médio e o
ingresso na universidade passaram-se muitos anos. Isso se deve, em parte, às condições
sociais desses indivíduos, à dificuldade de ingresso na universidade e às condições de
levar à diante um curso superior (distância, locomoção, compatibilizar os estudos com o
trabalho e com a vida familiar, etc.). O programa do Curso de Pedagogia em Regime
Especial, levado ao município pela UEPB, representou para os professores uma
oportunidade ímpar em suas vidas: ter acesso a uma universidade próxima de casa a um
custo reduzido. Mesmo assim, as dificuldades encontradas pelos professores foram
grandes. A experiência como professor do Programa no município me permitiu
conhecer de perto essas dificuldades. Os professores estavam há muito tempo afastados
de qualquer processo formativo, sentiam-se inseguros quanto às suas capacidades e a
universidade lhes causava certo temor, medo mesmo. Além do mais, pude observar as
estratégias utilizadas pelos professores para se manter no curso, especialmente as
mulheres. Estas, em especial, desdobravam-se para, além do trabalho durante a semana,
abdicar do sábado, um dia tradicionalmente dedicado à vida e ao trabalho doméstico
(feira, casa, crianças, marido, etc.) e se dedicar aos estudos. As estratégias utilizadas
3
Fontes: (1) Ministério da Educação, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP -,
Censo Educacional 2006; (2) Ministério da Educação, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais - INEP - Censo da Educação Superior 2005; Malha municipal digital do Brasil: situação em
2005. Rio de Janeiro: IBGE, 2007.
78
para aquisição desse tipo de capital escolar e cultural eram as mais diversas
4
e exigiam
certa dose de sacrifício.
Contudo, antes do ingresso na universidade, todos os professores tinham algum
tipo de formação pedagógica. Vejamos a tabela:
TABELA 05: Formação pedagógica anterior ao Curso de Pedagogia
Formação pedagógica Freqüência Porcentagem
Logos 31 41,3
Proformação 26 34,7
Magistério 9 12,0
Logos e proformação 8 10,7
Proformação e magistério 1 1,3
Total
75
100,0
Podemos notar que os professores com magistério é muito pequeno em relação
aos demais. Eles são apenas 10 professores. Isso se deve ao fato de que, para cursar o
magistério os professores teriam que se deslocar a Campina Grande, única cidade da
região a possuir essa modalidade de formação, o que demonstra, mais uma vez, as
dificuldades colocadas pela condição social dos professores. O Logos (41,3%) e o
Proformação (34,7%), representam o tipo de formação pedagógica de maior incidência
entre os professores, uma vez que eram cursos oferecidos no próprio município,
facilitando o ingresso e a participação dos docentes. Alguns professores (10,7%)
chegaram mesmo a fazer esses dois cursos.
É relevante também olhar os números referentes aos cursos de capacitação e de
atualização realizados pelos professores após a conclusão do Curso de Pedagogia. Eles
indicam a disposição dos professores para continuar investindo na carreia e a tendência
de investimentos em termos de capital educacional e cultural desses professores
atualmente. A maioria dos indivíduos investiu mais na participação nos Seminários de
4
Sobre a minha experiência com o Programa em diversos municípios do estado da Paraíba e as
estratégias dos professores desses municípios para permanecer no curso até o seu final consultar:
CAMPOS, Jameson Ramos; ANDRADE, Erika dos Reis G. Retratos na parede: histórias de uma vida,
percursos de formação. IN: II Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto) biográfica – Anais.
Salvador; BA, 2006b.
79
Educação do município
5
(46,7%) e nos encontros pedagógicos promovidos pela
secretaria de educação (36,0%). Se considerarmos que esta atividade faz parte do
calendário educacional do município e não se constitui em atividade de capacitação
propriamente dita, mas de planejamento, vamos notar que o número de participantes é
relativamente muito baixo. Alem dessas atividades, os professores cursaram o PROFA
(20,0%), os PCN (5,3%), cursos de educação de jovens e adultos (6,7%) e 05 desses
professores (6,7%) estão fazendo pós-graduação (especialização). Embora ainda
pequeno, o número de professores cursando especialização se deve também à influência
do Curso de Pedagogia, seja em termos de incentivo, seja em termos de titulação, uma
vez que a especialização requer, no mínimo, o titulo de graduação como requisito para
ingresso. Um detalhe é que todos os professores que fizeram ou estão fazendo
especialização são mulheres.
Um outro dado importante do perfil desses professores é o número expressivo de
familiares que exerceram ou exercem a profissão docente. Eles representam 74,7% da
amostra. Este número é indicativo de que a docência não apareceu assim, de repente, na
vida desses professores. A maioria deles conviveu com ela dentro da família, viu nestes
exemplos que a docência é uma alternativa viável, honesta e quase sempre segura de
ganhar a vida. Esta convivência pode significar também a possibilidade de um
aprendizado da profissão. Ajudar a mãe que foi professora ou outro parente qualquer
que exerceu a profissão, observar as minúcias de seu trabalho, reconhecer a importância
dessas pessoas e de suas posições, incorporar gestos, atitudes e saberes, são maneiras de
se aprender o ofício e significar a profissão. Poderemos notar, no gráfico apresentado
abaixo (GRÁFICO 2), que os familiares desses professores que tiveram ou ainda têm
contato com a docência estão muito próximos em termos de parentesco. Destaque para
as irmãs e os irmãos seguidos dos tios ou tias, da mãe e das primas. Note-se que esses
professores conviveram ou convivem com a profissão dentro de casa. Note-se também
que para 2,82% deles (um número pequeno, é verdade) a docência foi assumida pelas
filhas, como muitos desses professores também assumiram de suas mães a profissão.
Em alguns casos, os professores possuem mais de um parente na profissão. São 15,7%
do total, o que nos leva a pensar na importância e na força que a profissão docente
assume na vida desses professores e em seus núcleos familiares. Vejamos o gráfico.
5
Seminários patrocinados pela prefeitura e realizados uma vez por ano antes do início das atividades
letivas. Palestras, oficinas e atividades de planejamento constituem a programação do evento.
80
GRÁFICO 02: Familiares que exercem ou exerceram a profissão por grau de
parentesco
A
sobrinha foi ou é
Professora
A
avó foi ou é
Professora
A
prima foi ou é
Professora
A
filha foi ou é
Professora
A
irmã/ão foi ou é
Professora/or
O esposo/a foi ou
é professor/a
A
tia/tio foi ou é
Professora/or
A
mãe foi ou é
Professora
3025201510
50
3025201510
50
1,41%
2,82%
14,08%
2,82%
39,44%
2,82%
21,13%
15,49%
No que diz respeito ao tempo de serviço, os professores com menos tempo de
profissão, entre 05 e 10 anos, predominam. Eles compõem 35,1% da amostra. Os
demais se distribuem da seguinte forma: entre 11 e 15 anos eles são 18,9%. Entre 16 e
20 representam 10,8% e entre 21 e 25 anos o número sobe para 21,6%. Nesta faixa que
varia de 05 a 25 de tempo de serviço se concentram 82,4% de todos os professores.
Procuramos cruzar os dados das variáveis tempo de serviço e idade para visualizar essa
relação. A tabela que apresentamos a seguir nos permite inferir sobre os números dessa
relação.
81
TABELA 06: Cruzamento das variáveis tempo de serviço e idade
Tempo de exercício na profissão
Idade
De 5 a
10 anos
De 11 a
15 anos
De 16 a
20 anos
De 21 a
25 anos
de 26 a
30 anos
mais de
30 anos
Total
7
26,9
1
7,1
1
12,5
0
0,0
0
0,0
0
0,0
9
12,2
12
46,2
11
78,6
4
50,0
2
12,5
0
0,0
0
0,0
29
39,2
5
19,2
2
14,3
3
37,5
12
75,0
7
87,5
1
50,0
30
40,5
De 21 a 30 anos
De 31 a 40 anos
De 41 a 50 anos
Mais de 50 anos
2
7,7
0
0,0
0
0,0
2
12,5
1
12,5
1
50,0
6
8,1
26 14 8 16 8 2 74
Total
35,1% 18,9% 10,8% 21,6% 10,8% 2,7% 100,0%
Podemos notar que os professores mais jovens, como era de se esperar, estão
concentrados na faixa de menor tempo de serviço. Esse número tende a diminuir
numericamente na proporção em que se avança na escala tempo de exercício na
profissão. À medida que avança a idade do professor cresce, também, o tempo dedicado
ao magistério. Esta crescente é mais evidente entre os professores com idade entre 31 e
50 anos. Os professores com idade entre 41 e 50 anos, por exemplo, representam 75,0%
de todos os que têm entre 21 e 25 anos de trabalho, e 87,5% dos que possuem entre 26 e
30 anos de profissão. Podemos notar ainda que 7,7% de todos os professores que estão
entre 5 e 10 anos de magistério possuem mais de 50 anos. São professores que entraram
tardiamente na profissão, no mínimo aos 45 anos de idade. Os professores com mais de
30 anos de profissão representam o menor número. São apenas 2,7% do total.
Até agora procuramos traçar um perfil social desses professores tomando como
referência, principalmente, a sua origem e condição social associando-a com variáveis
como gênero, estado civil, renda e escolarização entre outras. Agora, nos deteremos a
pensar no estilo de vida desses professores, tomando este estilo como um conjunto de
propriedades e práticas distintivas desses agentes.
A simplicidade é a marca distintiva desses professores no que diz respeito à
propriedade de bens de consumo. Os professores que dizem possuir carro particular
representam um número muito pequeno. Eles são apenas 2,5% do total. Já os que
82
possuem moto somam 12,0% da amostra. A moto é um meio de transporte mais barato
no que diz respeito à sua aquisição e é mais econômico em termos de manutenção. No
município de Queimadas o número de motos é bem alto e a cidade possui um sistema de
moto-taxis, facilitando o deslocamento dos habitantes. O restante dos professores se
utiliza mesmo do sistema de transporte coletivo (o ônibus), principalmente quando se
trata do deslocamento a outras cidades, já que o município não dispõe de transporte
coletivo urbano. No mais, fazem uso dos transportes alternativos (para outras cidades e
para as comunidades rurais) ou se deslocam a pé, meio de transporte mais utilizado
pelos professores para se deslocar ao trabalho, por exemplo.
A TV e o rádio são bens de consumo que todos os professores possuem. A
maioria das TVs estão ligadas a antenas parabólicas, especialmente as da zona rural
onde o sinal é mais fraco. Nestes lares, tais antenas são um elemento essencial, um bem
de consumo de primeira necessidade. Já o rádio (o simples rádio de pilha ou os mais
sofisticados, acoplados a aparelhos de som) faz parte da vida cotidiana desses
professores. Neles escutam as suas músicas preferidas e se mantêm informados das
notícias locais.
O computador, por sua vez, ainda é um objeto de luxo para os professores.
Apenas três indivíduos (4,0%) dizem possuir computador em suas casas e, mesmo
assim, são os filhos que mais fazem uso desses aparelhos. O computador parece ser um
elemento ainda inacessível na vida desses professores. Não são ainda pensados ou
utilizados como instrumentos de trabalho e muito menos como meio de acesso à
informação, uma vez que apenas 2,7% deles se utilizam da internet para esse fim.
A origem e a condição social dos professores, bem como as restrições do
município em termos de diversão, condicionam as atividades de lazer desses indivíduos.
Viajar, por exemplo, é programa de luxo, realizado esporadicamente por apenas 5,3%
dos professores. Praticar esportes e jogar futebol (5,3%) e ir ao shoping (4,0%) também
foram atividades citadas. Não ter nada para fazer também foi a resposta de 4,0% dos
indivíduos. A leitura só foi lembrada por 2,7% dos professores, o teatro apenas por um
indivíduo (1,3%) e o cinema sequer foi lembrado. A pesquisa de Vieira (2004)
corrobora com alguns desses dados. Nos estados pesquisados por ela, apenas 5,9% dos
profissionais de educação freqüentam o cinema e o teatro uma ou mais vezes por mês, e
o número dos que nunca vão chega a 18,4%. Para ela, concorrem para esta baixa
procura a capacidade limitada de oferta de bens culturais, a distância, o poder aquisitivo
desses profissionais e o tempo para se dedicar a tais atividades. “Para quem ganha tão
83
pouco, não há prioridades, há contingências. Nesse particular, os gastos com
alimentação, saúde, moradia e transporte são imprescindíveis” (VIEIRA, 2004, p. 27-
28). A tabela abaixo mostra as práticas de lazer mais citadas dos professores.
TABELA 07: Atividades de lazer desenvolvidas nos fins de semana e feriados
Atividades desenvolvidas nos finais
de semana e feriados
Freqüência Percentagem
Ficar com a família
55
73,3
Fazer tarefas domésticas
10
13,3
Bater papo
10
13,3
Ir à festas ou shows
10
13,3
Assistir TV
25
33,3
Visitar amigos
13
17,3
Participar de atividades religiosas
27
36,0
Como se pode notar são atividades que não exigem muito investimento em
termos de capital econômico nem dependem da posse de capital educacional e cultural
mais elevado. Por outro lado, podem ser desenvolvidas sem que se precise se afastar
demasiadamente do local de moradia e/ou do espaço onde vivem. Devemos notar,
também, nesses dados, a força da religiosidade na vida desses professores. A
participação em atividades religiosas, além do significado tradicional da relação
espiritual com Deus, possibilita a ida ao espaço público, o passeio, o encontro com
amigos, a boa conversa e, porque não dizer, o sentir-se útil pelas obras e pela caridade.
Numa cidade de pouca diversão e opções de lazer, as atividades religiosas são uma boa
opção. Ocupam o tempo ocioso e também divertem.
Já dissemos que o rádio e a TV são amigos inseparáveis desses professores. Mas
a TV é, de longe, o meio mais utilizado por eles para se manter informado (100,0%) e
aparece como instrumento de lazer e entretenimento para 33,3% deles (como podemos
ver na tabela acima). Quando perguntados sobre o que costumavam ver mais
freqüentemente na TV, 90,7% dos professores afirmaram que dão preferência aos
84
telejornais. Os programas informativos e educativos (59,0%) e as novelas (50,7%) vêm
a seguir em suas preferências. Foram citados também os programas religiosos - missa,
culto, etc. – (24,0%) e os programas de auditório, com 20,0% do total. Devemos notar,
também, que assim como nas opções de lazer, a religiosidade dos professores aparece
na hora de estes indivíduos escolherem a programação de TV de sua preferência.
O rádio (82,7%) é o segundo meio de informação mais utilizado pelos
professores. No rádio escutam não só as notícias locais, as do Brasil e do mundo, como
também ouvem música. Ouvir rádio é uma prática comum dos habitantes da região. Nas
vezes em que estive na casa desses professores, para a entrevista ou com questionários,
era comum encontrar um rádio ligado, sintonizado numa música ou num programa
qualquer. Além do mais, andar por Queimadas em certas horas do dia é estar sujeito a
ouvir, saindo das portas e janelas entreabertas, a voz potente dos locutores de rádio
ditando o gosto musical. As revistas (60,0%) também são utilizadas pelos professores
como meios de informação, especialmente as revistas informativas (Veja, Isto É, etc.) e
as educativas, especialmente a Nova Escola.
Quanto à prática de leitura, 70,7% dos professores dizem ler com freqüência,
enquanto 25,3% dizem ler somente às vezes. Apenas 4,0% afirmam não gostar de ler.
Na tabela abaixo podemos ter uma idéia do tipo de leitura feita pelos professores.
TABELA 08: Tipos de leitura mais freqüente
Gênero de leitura
Freqüência
Percentagem
Livros
30
40,0
Bíblia
16
21,3
Revistas informativas
24
32,0
Jornais
12
16,0
Revistas educativas
21
28,0
Livros didáticos
18
24,0
85
A leitura de livros - romances e livros de auto-ajuda, especialmente - foi a mais
citada pelos professores (40,0%). As revistas informativas (32,0%) e as educativas
(28,0%) vêm logo a seguir. Veja, Isto É, Revistas de TV e a Revista Nova Escola são as
preferidas. A Nova Escola os professores lêem quando elas aparecem disponíveis nas
escolas. A leitura desse tipo de revista é um indicativo da preocupação dos professores
com a sua profissão e da necessidade de se manterem informados com as novidades da
área. A preocupação com a profissão aparece também na leitura de livros didáticos
(24,0%), literatura necessária e imprescindível ao seu trabalho. A forte religiosidade dos
professores se reflete, também, no tipo de leitura que eles fazem. Um número
expressivo deles (21,3%) afirma que costuma ler a Bíblia com freqüência. Já os leitores
de jornal são em menor número e somam apenas 16,0% do total.
O gosto musical desses professores reflete as tendências musicais do momento.
O estilo musical preferido pela maioria é o sertanejo (62,7%), o que reforça a força
desse estilo musical cujas raízes devem ser buscadas na música caipira, na
industrialização e na massificação desse gênero. O sertanejo supera mesmo, no gosto
dos professores, músicas e ritmos tradicionalmente fortes na região, como o forró, por
exemplo, que foi citado por apenas 36,0% dos indivíduos. A MPB também foi bastante
citada pelos professores. Um número expressivo deles (42,7%) diz apreciar este estilo
musical. No gosto desses professores pela música aparece expressa, também, a sua forte
religiosidade. Para 18,7% deles a música religiosa é a preferida. Padres e cantores
evangélicos disputam o mercado fonográfico e o espaço na TV e no rádio, o que mostra
a força crescente desse gênero musical e sua consolidação na grande mídia. A forte
religiosidade dos professores e o acesso fácil a esse tipo de gênero musical explicam o
crescimento dessa tendência. Procuramos cruzar as variáveis religião e músicas
preferidas para ter uma idéia da influência da religiosidade dos professores no seu gosto
musical. Os católicos constituem o grupo que menos escuta músicas religiosas (21,4%
do total). Entre os evangélicos, o consumo desse gênero musical é muito alto. Eles
somam 78,6% e são mais resistentes a outras influências musicais. Fora o gênero
religioso eles ouvem apenas MPB e sertanejo, estilos citados por um número muito
pequeno desses indivíduos (6,3% e 4,3% respectivamente). Já entre os adventistas do
sétimo dia, a música religiosa é unanimidade (100,0%), não aparecendo, dentro desse
grupo, referência a nenhum outro gênero musical.
A religiosidade do nosso grupo de professores é muito forte. Ela se expressa no
tipo de leitura que costumam fazer, nas atividades de fins de semana, no gosto musical
86
dos professores (como podemos ver anteriormente) e na participação em atividades
desenvolvidas pelas Igrejas. Os católicos são ainda a maioria (84,0%), mais o número
de evangélicos (13,3%) é bastante significativo. Isto demonstra o crescimento das
denominações evangélicas, apoiadas na forte militância de seus membros e na conquista
de espaços cada vez maiores na mídia (rádio, TV, jornal e indústria fonográfica). Os
adventistas do sétimo dia constituem apenas 2,7% do número total de professores.
Procuramos também cruzar as variáveis religião e participação nas atividades
religiosas. Os evangélicos e os adventistas, embora em número menor, são os que mais
participam dessas atividades (90,0% e 100,0% respectivamente). Entre os católicos,
apenas 58,7% deles participam ativamente de alguma atividade. A missa e o culto, as
celebrações e festas religiosas, a evangelização, a catequese e os encontros de casais são
algumas das atividades mais citadas.
A participação dos professores em atividades políticas é muito pequena. A
pesquisa de Vieira (2004) também aponta para essa tendência de baixa atuação social e
política dos profissionais de educação. “[...] falta de tempo e conseqüente necessidade
de dar prioridade à profissão, desejo de não se envolver com causas polêmicas”
(VIEIRA, 2004, p. 58-59) são alguns dos motivos dessa pouca participação. Entre os
professores pesquisados, 84,0% deles dizem não participar de qualquer tipo de atividade
política. Entre os que desenvolvem atividades desse tipo, a maioria (9,3%) participa de
associações comunitárias. Apenas 1 indivíduo (1,3%) participa das atividades sindicais
da categoria. Os demais se dividem entre outras atividades, como a organização de
trabalhos voluntários na comunidade, a participação em conselhos escolares, entre
outras menos citadas.
O percurso que acabamos de fazer nos abre a possibilidade de pensar os
professores a partir dos seus espaços sociais, considerando tanto o perfil do grupo como
o seu estilo de vida. Por esse caminho, foi possível nos aproximar das regularidades
sociais que orientam as ações desses indivíduos, produto de coações objetivas ou
incorporadas como sentido do jogo (BOURDIEU, 2004b). No capítulo seguinte, este
percurso nos será útil. Ele nos ajudará a pensar sobre a opção pelo magistério feita pelos
nossos professores e nos investimentos e estratégias desses agentes para ingressar na
profissão e nela se manter. Ajudar-nos-á, também, a compreender o ser professor para
esses professores socialmente situados.
CAPÍTULO III
A DOCÊNCIA COMO REPRESENTAÇÃO E COMO CONDIÇÃO SOCIAL
88
3.1. Introdução
Definidos o perfil e o estilo de vida do professorado, o que nos permitiu acessar
elementos de um habitus provinciano que orienta a percepção e a ação desses
professores, investiremos agora na apresentação do conteúdo da representação social da
docência construída por esse grupo de profissionais. Enquanto produto de regularidades
sociais e profissionais produzidas pelo habitus, a representação do ser professor é
herdeira desse mesmo princípio unificador e gerador que orienta esses agentes em seus
locais de vida e de trabalho. O capítulo está dividido em duas seções. Na primeira,
procuraremos mostrar como as escolhas profissionais (a escolha da docência como
profissão) dizem dos lugares ocupados pelo grupo de professores no espaço social e do
seu estilo de vida enquanto conjunto de regularidades estruturantes. A escolha da
profissão não é um ato de imposição da estrutura social nem uma escolha livre e
racional dos agentes. Ela aparece como uma estratégia, como um conjunto de práticas
pelas quais os indivíduos e as famílias tendem, inconsciente e conscientemente, “[...] a
conservar ou aumentar seu patrimônio e, correlativamente, a manter ou melhorar sua
posição na estrutura das relações de classe [...]” (BOURDIEU, 2007. p. 122). Na
segunda seção, apresentaremos a estrutura da representação social da docência
construída pelos nossos agentes, as suas dimensões e os elementos que a constituem.
Produto de uma negociação conflituosa, esta representação social comporta dimensões
distintas que se complementam para definir uma imagem, um significado coeso e
operacional do ser professor. Discutiremos a composição desse conteúdo
representacional de maneira articulada com o conceito de habitus. Procuraremos
demonstrar que o ser professor é produto de regularidades sociais e profissionais que
orientam esses agentes em seus locais de vida e de trabalho.
Ao longo desse capítulo estaremos trabalhando com os dados coletados através
de três instrumentos distintos: Os Questionários de Práticas e Significados (APÊNDICE
B), as Entrevistas em profundidade (APÊNDICE C) e os Relatos de Experiência
(APÊNDICE D). Na medida em que for necessário e as análises exigirem, discutiremos
os procedimentos metodológicos utilizados.
89
3.2. A difícil arte de escolher a profissão: ser professor no universo do possível
A escolha da profissão nem sempre é uma tarefa fácil. Muitas variáveis estão em
jogo no difícil momento dessa escolha, exigindo do pretendente uma boa dose de
investimentos e de disposições em relação ao futuro, o que depende das oportunidades
objetivas do grupo a que pertencem (Bourdieu, 2007). Para tentar entender essa difícil
arte de escolher a profissão, estamos nos apoiando nas informações contidas nos
Questionários de Práticas e Significados e nas Entrevistas.
Nos questionários, os professores foram convidados a explicitar os motivos que
os levaram a escolher a docência como profissão e, nas entrevistas, a explicar mais
detalhadamente os pormenores dessa escolha. As respostas foram categorizadas em
unidades temáticas de significação e os resultados submetidos a um tratamento
estatístico simples. Optamos por categorizar as respostas dos questionários e das
entrevistas conjuntamente, devido à freqüência e a recorrência dessas respostas em
ambos os instrumentos. Das entrevistas e dos questionários extrairemos ainda as falas
dos professores quando achamos necessário explicitar as motivações e os sentidos
dessas escolhas.
Foram dadas um total de 74 respostas para a pergunta motivos da escolha da
profissão. A codificação e a classificação dessas respostas em categorias apontaram para
um duplo movimento no ato dessas “escolhas”, uma vez que dois núcleos de
significados apareceram de forma mais evidente: a escolha por vocação e a escolha pelo
acaso e pela necessidade. Vejamos a tabela abaixo.
TABELA 09: Motivação para a escolha da profissão
Categorias Freqüência Porcentagem
Vocação 43 58,0
Acaso ou Necessidade 31 42,0
Total de respostas 74 100
Como podemos ver, 58,0% dos professores que responderam a esses
instrumentos se dizem vocacionados para o magistério. Os professores que dizem ter
90
entrado no magistério por um acaso ou por uma necessidade somam 42,0%.
Procuramos, também, agrupar as respostas mais freqüentes relativas a esses dois
núcleos significativos em subcategorias. Os resultados dessa contagem podem ser
observados na tabela abaixo.
TABELA 10: Variáveis da escolha por vocação e por acaso e necessidade
Variáveis Contagem
Freqüência Porcentagem
Vocação
Identificava-se e admirava a profissão 18 42,0
Adora crianças 11 25,0
Para ser útil - ajudar os outros 6 13,0
Por influência da família 5 11,0
Outros 3 9,0
Total 43 100
Acaso e necessidade
Por uma questão de sobrevivência 15 49,0
Apareceu um concurso 5 16,0
Surgiu uma vaga na escola
5
16,0
Influência da mãe e/ou professora
5
16,0
Por curiosidade 1 4,0
Total 31 100
Para a variável vocação, a resposta mais freqüente foi a de que eles
identificavam-se e admiravam a profissão. Inclui-se aí o “sempre tive vontade de ser”
e o “foi um sonho desde criança”. Adorar crianças, gostar de trabalhar com
crianças, ajudar os outros também são justificativas muito apresentadas. Devemos
notar, também, que a justificativa influência da família aparece tanto com relação ao
acaso e à necessidade (influência da mãe para fazer concurso, influência da família para
exercer o cargo) como com relação à vocação (tinha vocação e fui influenciada pela
minha mãe). Ao que parece, a influência encontra sempre o acaso e a necessidade e
91
alimenta a vocação ou se nutre dela. Quanto a segunda variável, as respostas ou dizem
respeito diretamente à questão da sobrevivência (falta de opção, primeira oportunidade
de trabalho, única opção para quem vive na zona rural, para ajudar a família) ou ao
acaso (apareceu um concurso, uma vaga na escola). Mas um professor disse que
escolheu a profissão foi mesmo por curiosidade.
Com base nesses dados e recorrendo, quando necessário, à fala dos professores
nos propomos agora a entrar nessa complexa trama social que envolve tais escolhas.
3.2.1. A docência como vocação
A escolha do magistério por vocação aparece na fala dos professores como uma
escolha livre e deliberada, fruto de uma decisão tramada ao longo da vida. As respostas
incluídas nessa categoria estão relacionadas a um desejo, a uma vontade de ser professor
(“era um sonho desde criança”, “sempre quis ser professora”...), a um dom (“eu gosto
de trabalhar com crianças”, “é um dom que eu tenho desde criança”), a uma relação
com a vida escolar (“eu brincava de escolinha quando era criança”, “me inspirei numa
professora que tive”), e a uma relação com a família (“minha mãe e minha tia eram
professoras”). Este tipo de escolha reflete uma representação social hegemônica que
naturaliza o feminino na educação e cria uma lógica de predestinação para o magistério.
Por outro lado, a matriz dessa escolha pode ser encontrada também na religião e nas
relações parentais primárias.
A trajetória escolar dos nossos agentes, as relações de suas famílias com o
mundo escolar e a crença no valor da educação se refletem nessa escolha vocacionada.
Embora, como pudemos ver no capítulo II, os professores sejam oriundos das classes
populares, cujas famílias são de baixa renda e pouca escolaridade, eles conseguiram
construir uma trajetória escolar, produto de estratégias e de investimentos familiares que
possibilitaram o acúmulo de capital educacional e cultural necessários ao ingresso no
magistério. A família tem um peso muito forte nessas estratégias que vão além do
investimento em educação. Através delas, diz Bourdieu (2004b), as famílias se
reproduzem biologicamente e, sobretudo, socialmente. Segundo ele, as estratégias
resultam das relações de força que se travam no interior desses grupos familiares,
92
relações que, no nosso caso, aparecem expressas nas lutas internas para definir o destino
dos filhos e a carreira profissional, por exemplo.
As estratégias individuais e familiares e os investimentos demonstram, por outro
lado, que esses agentes se apropriaram das regras do jogo da vida social e incorporaram
o sentido desse jogo na forma de habitus, de disposições duráveis e transponíveis.
Quem quer ganhar nesse jogo, diz Bourdieu (2004b), deve se apropriar do que está em
jogo e do sentido do jogo. Por exemplo, deve aproveitar as oportunidades de estudar, de
arranjar um bom emprego, as vantagens daí advindas, etc. A estratégias e os
investimentos feitos, por esses professores e por suas famílias, em escolarização, para
citar apenas um aspecto, indicam o domínio desse jogo e a disposição a dele participar.
O ingresso no magistério reflete, portanto, essa capacidade que o habitus tem de
orientar escolhas.
A história da professora Cristal
1
expressa bem as estratégias utilizadas por sua
mãe para que ela ingressasse na profissão e nela permanecesse. Mostra também os
conflitos e as lutas que permeiam essas estratégias. Desde muito jovem a professora já
lecionava para alunos da comunidade onde morava. Gostava do que fazia e de suas
crianças. Além de exercer a profissão nesse lugar, ela havia feito o curso de
enfermagem e sonhava em ser enfermeira um dia. Eram opções viáveis. Duas profissões
que se casavam com sua condição de mulher. Sua mãe, contudo, não via com bons
olhos essa escolha. “A minha mãe disse não, que pra um hospital eu não ia. Ela dizia
assim, no dia que eu me casar, que o marido deixasse, eu ia para um hospital, eu antes
eu não ia”. Como podemos ver, a liberdade de escolha da professora ficou reduzida
diante da determinação de sua mãe. A família, segundo Rabelo, (2007. p. 62). “[...] tem
um papel decisivo na definição da opção profissional de um filho, pois esta serve como
exemplo ou indica a carreira que ele deve ou não seguir, impondo, muitas vezes, uma
profissão ou proibindo outra”.
Para garantir a carreira profissional da filha, a família de Cristal investiu em
estratégias para lhe conseguir emprego e fez investimentos em sua educação. Quando o
pai dela morreu, diz a professora, “Minha mãe voltou pra o município de Boqueirão e
ela tinha umas amizades lá, então eu me apeguei a esses amigos de minha mãe [...]”. A
sua mãe havia mobilizado sua rede de amizades e de conhecimentos para abrir um
1
Para resguardar o anonimato de nossos professores e professoras e garantir o sigilo da informação que
nos foi prestada, optamos por identificar os nossos agentes com nomes de flores, pedras preciosas e
fenômenos da natureza.
93
espaço para a filha. Esta rede incluía uma prima da professora, sobrinha de sua mãe e
também professora, que cedeu para Cristal uma turma de artes nesse município. Essa
turma abriu as portas para o seu primeiro contrato como professora. “Então a secretária
de educação foi vendo o meu empenho, o meu desenvolvimento com a educação, e
então eles me entregaram a sala de aula sem nenhum medo”. Conseguir uma turma de
alguém, apelar para a amizade no serviço público, eram estratégias plausíveis naqueles
tempos de ausência de critérios sistematizados e oficiais para ingressar no magistério,
sejam eles de seleção ou de formação. Logo depois Cristal cursou o Logos II
2
em busca
de melhor qualificação. “Com dois anos conclui, fui a primeira da turma que terminei.
Porque também não trabalhava fora, só fazia ensinar e estudar, e tinha minha mãe e
minhas irmãs pra me ajudar né, então foi um avanço bem rápido mesmo”.
Com a professora Magnólia as coisas aconteceram de forma diferente. A sua
história ilustra bem a relação entre a vocação para o magistério que ela dizia ter e as
estratégias familiares que possibilitaram o seu encontro com essa vocação. “Eu tinha
muita vontade de ser professora desde criança, como eu já disse né, desde criança. Eu já
brincava com minhas amigas de ser, sendo professora. Ai fui estudar... E fiquei sendo
professora”. Esse sonho encontrou respaldo na família, especialmente em seu pai que,
embora agricultor de baixa escolarização, pensava num futuro melhor para os filhos.
Como a sua condição social não permitia investimentos educacionais em todos eles,
optou por investir na educação daquela que poderia realizar os seus sonhos. “O sonho
do meu pai era que um dos filhos fosse professor. Só que, os meus irmãos mais velhos
ele não teve condições de dar estudo. Só que eu, sendo a caçula, ele botou na escola né,
era um sonho dele”.
O investimento em capital educacional além de garantir a trajetória escolar
desses professores, colocando-os em condições mínimas de escolarização para o
exercício do magistério, permitiu o contato desses agentes com a cultura escolar e a
conseqüente descoberta da profissão e da vocação para a docência, muito embora alguns
professores afirmem que essa vocação seja inata, nascida com eles, uma espécie de
predestinação, de dom. Bourdieu (2001) já havia demonstrado que o dom só existe para
agentes que adquiriram disposições generosas, em universos em que elas são esperadas,
reconhecidas e recompensadas.
2
Programa para formação em serviço de professores leigos, iniciado em 1973, implantado através de
estudos por correspondência.
94
Desde pequenos, esses professores transitaram pelo campo educacional e
marcaram as suas presenças nos bancos escolares. Um privilégio que nem todos em
suas famílias tiveram. Aprenderam a conviver e a se relacionar nesses ambientes. A
reconhecer a determinação em seus antigos professores, a sua dedicação e o seu amor
incondicional. Trocaram experiências com eles, ajudaram-nos em seu trabalho,
seguiram os seus exemplos e sentiram-se vocacionados para seguir na profissão. Como
separar os aluno/as que foram e as experiências escolares que viveram do ser professor
que são hoje? O professor que eles são traz muito de suas trajetórias sociais. A
professora Jade, falando de uma professora que marcou a sua vida, dizia: “Como ela
dava aula muito claro e tinha muito carinho eu pensava sempre ser igual a ela. [...] E eu
queria ser daquela maneira, ser mais uma amiga do que uma professora”. O professor
que eles são foi sendo construído em cada um deles por essa socialização prévia, bem
anterior à profissão, que se processou também nos bancos escolares, nas horas alegres e
furtivas do recreio, na poeira da estrada de volta pra casa, nas brincadeiras festivas de
fim de tarde. Foi aí que quiseram ser, foi aí que resolveram ser. Para mim, diz a
professora Sol, a docência “não foi bem uma questão resolvida, porque quando estudava
comecei ajudando minha professora que trabalhava com várias séries e daí fui tomando
gosto”. Foi tomando gosto, foi aprendendo, se identificando com a profissão. A vocação
nasce também do aprendizado, do conhecimento e do contato com uma causa tão nobre.
A força da escola e a imagem dos professores chagavam mesmo a ocupar os
espaços de brincadeira infantil. Ali exercitavam a docência, punham à prova os modelos
de professor que queriam ser, forjavam significados e experienciavam práticas. No caso
das mulheres, em especial, “Muito mais do que um entretenimento infantil, havia uma
reprodução de um modelo de professora, de um modelo de mulher” (PINTO E
MIORANDO, 2004. p. 224). A professora Brisa, por exemplo, afirma que “quando
criança já gostava de brincar de escola”. Mais tarde, continua ela, “comecei a ajudar
minha tia (que era professora) espontaneamente [...]”. Mas foi quando concluiu o curso
de contabilidade “[...] que descobri que nasci para ser professora”. A descoberta de um
dom urdido já desde a infância, brincando, sonhando. Da sua infância e de sua vivência
escolar restaram, entre muitas outras coisas, o gosto pela docência.
As influências da família em termos de investimentos educacionais e de
estratégias para garantir esses investimentos e, conseqüentemente, garantir melhores
chances no mercado de trabalho, são determinantes nas escolhas desses professores. Por
causa desses investimentos, as possibilidades de exercerem o magistério se tornaram
95
reais. Por conta desses investimentos puderam construir uma trajetória escolar e a partir
dela conhecer o ofício, aprender a gostar da profissão e ver nascer a sua vocação. Em
alguns casos, o próprio exemplo materno servia de incentivo e de estímulo. “O poder da
influência (favorável ou desfavorável) da família é definitivo, podendo servir como
fonte de inspiração e de ajuda, inclusive na opção pelo magistério” (VIEIRA, 2002. p.
49). Tornar-se professor é muitas vezes obra da família, do incentivo e da influência de
familiares que foram ou são professores. Esta influência se dá tanto pelo exemplo, pelo
contato direto com esses familiares, pelo olhar atento e curioso, como pela simples
ajuda e envolvimento com a profissão do outro, como aconteceu com a professora
Orquídea. “Resolvi ser professora quando ainda era adolescente. Minha mãe já atuava
na profissão e eu acompanhava seus trabalhos em sala de aula e, ajudando-a, eu já me
identificava com a profissão”, diz ela. Desde cedo sua mãe investiu nesse aprendizado
direto da profissão, trouxe-a consigo, iniciou-a na profissão.
Nas experiências de vida, vividas na família, nas salas de aula como aluno e nas
horas de lazer infantil encontramos habitus orientando escolhas. Nestas mesmas
experiências “[...] encontram-se as raízes, ou vestígios da lógica de um habitus
professoral” (SILVA, 2003. p. 85) que implicam diretamente na maneira como esses
professores significam a profissão e orientam as suas práticas. Como diria Bourdieu, “o
habitus adquirido na família está no princípio da estruturação das experiências escolares
[...], o habitus transformado pela ação escolar, ela mesma diversificada, estando por sua
vez no princípio de estruturação de todas as experiências ulteriores [...]” (BOURDIEU,
1983d. p. 80).
É preciso notar ainda que, para alguns professores, a identificação com a
profissão, o tomar gosto por ela e a descoberta da vocação, só ganhou evidência depois
do ingresso no magistério. Quando do ingresso na profissão não haviam, ainda,
despertado para esse dom. Entraram mesmo por falta de opção, mas logo se
descobriram gostando do que estavam fazendo. Outros professores afirmaram que
tinham vocação para a docência mas reconheceram que a facilidade de encontrar
emprego nessa profissão foi um grande estímulo. Em ambos os casos a opção pelo
magistério reflete as regularidades sociais desse grupo de professores, as estratégias
pessoais e familiares para adquirir capital suficiente e necessário para ingresso nessa
profissão. A professora Acácia afirma que “[...] apesar de ter um pouco de vocação, essa
era uma das melhores profissões para quem morava na zona rural”. Ela conhece o
sentido do jogo e investiu nele. A professora Sol, por sua vez, afirma que no princípio
96
“[...] não foi bem uma questão resolvida, porque quando estudava comecei ajudando
minha professora que trabalhava com várias séries e daí fui tomando gosto”. É de se
imaginar que sua mãe não foi contrária a essa iniciação. Ela entrevia possibilidades
nesse aprendizado.
A vocação, como motivo da escolha pela docência, exprime também uma
regularidade estruturante do ser professor, como foi possível observar no capítulo I. A
idéia de vocação para a docência acompanhou de perto o processo de constituição da
profissão docente no Brasil, especialmente a partir do ingresso gradativo das mulheres
na docência primária e sua conseqüente feminilização. A associação entre o ser
professor e a vocação, o dom para exercer a profissão, se incorporou de tal maneira ao
imaginário cultural que hoje ainda alimenta o discurso dos professores e orienta as suas
práticas. Converteu-se em estrutura estruturante da condição docente, das maneiras de
percepção e apreciação desses professores.
3.2.2 A docência como obra do acaso e da necessidade
A escolha do magistério por acaso ou necessidade expressa de maneira mais
significativa a condição social desses professores e a necessidade de entrar no mercado
de trabalho para fazer frente às lacunas dessa condição. Expressa um não desejo
deliberado, uma não escolha. As respostas para essa categoria se referem à falta de
opção de trabalho, a uma oportunidade que apareceu por acaso e à necessidade de
ajudar a família.
Num município onde as opções de emprego são escassas e a vida no campo é
difícil e incerta, sujeita às intermitências do tempo e à escassez de recursos, a profissão
docente aparece como uma opção de sobrevivência e, ao mesmo tempo, de distinção
social. A entrada para o magistério, além de assegurar recursos materiais num ambiente
adverso, possibilita a aquisição e mesmo a ampliação de capital social enquanto
pertença a “[...] uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de
interconhecimento e inter-relacionamento [...]” (BOURDIEU, 1998. p. 67). Em outras
palavras, permite a integração desses agentes a um grupo, dotados de propriedades
comuns e unidos por relações permanentes e úteis. A profissão docente, afirma Valle,
“[...] figura entre as carreiras valorizadas socialmente, porque combina um certo status
97
profissional com estabilidade de emprego [...], colocando os professores ao abrigo das
flutuações do mercado” (VALLE, 2006. p. 181). E pode servir também, segundo a
autora, de lugar de passagem, de trampolim para algumas funções administrativas.
Ainda que por acaso ou por forças das circunstâncias, a escolha da docência
aparece como produto de um habitus que permite reconhecer o jogo da vida social e
nele jogar. Segundo Bueno,
As condutas similares e de certo modo coesas, que são explicitadas
quanto à escolha, permite assim supor a mediação de determinados
habitus relacionados aos processos de distribuição social dos
indivíduos, no âmbito do qual se encontra a questão do destino
profissional (BUENO citada por SILVA, 2003. p. 74).
Sem investimento em capital escolar (investimento familiar e dos próprios
professores), ser professor não passaria de um sonho, um sonho curto diante das
crescentes exigências de formação. A professora Magnólia tornou-se professora porque
o seu pai investiu em seus estudos, a despeito dos irmãos que não puderam estudar.
Seguiram eles a profissão do pai agricultor. Foi preciso também desenvolver estratégias
para participar desse jogo com chances de sucesso, ou seja, garantir condições de
empregabilidade e de acesso ao mercado de trabalho. Nesse sentido vale o apego às
amizades e às influências políticas. Magnólia se apoiou em um antigo professor que lhe
estimulou a continuar os estudos e lhe abriu as portas do magistério. Em casos mais
extremos, vale mesmo a autoridade materna ou paterna e a pressão familiar para fazer
concurso (caminho esse que exige novas estratégias – financeiras, de economia
doméstica e de tempo) ou assumir alguma turma deixada por uma professora conhecida.
O caso da professora Estrela mostra bem esse tipo de pressão. Ao dizer dos
motivos de sua escolha, a professora admite a força da sua mãe nesse momento. “Na
realidade foi por um acaso. Fiz o concurso obrigada pela minha e quando me dei conta
tinha passado e estava com uma grande tarefa a ser cumprida. Então era o jeito encarar
o que estava por vir”. Embora não quisesse ser, a professora estava apta, dispunha dos
capitais necessários para participar do concurso, coisa que os irmãos de Magnólia não
possuíam. Por outro lado, sua mãe tinha clareza da oportunidade que o concurso
representava e sabia que a filha não podia desperdiçar essa chance. Obrigou-a, como
98
Estrela afirmou. Usou de sua autoridade como recurso estratégico para garantir o acesso
da filha ao mercado de trabalho.
A fala de Margarida é também muito sugestiva. Ela nos mostra o complexo jogo
social no interior do qual se deu a sua escolha.
Olhe. Essa profissão eu não escolhi assim... Foi por falta de
oportunidade. Porque você sabe, quem mora na zona rural não tem
muito o que escolher. Então eu terminei o primeiro grau. Ai, como
minha mãe não deixava eu sair pra Campina pra dar continuidade aos
estudos... Pra ir pra outra cidade, no Rio de Janeiro ou São Paulo
muito pior. Então, naquele tempo era muito fácil a pessoa ser
professora. Ai uma colega minha que era diretora da escola, muito
conhecida minha, arrumou uma turma aqui bem pertinho e eu
comecei a ensinar.
Sua mãe não lhe permitiu maior investimento educacional. Temia a distância e
houve uma época em que a mulher não precisava mesmo de muito estudo. Mas ela já
havia concluído o 1º grau, o suficiente na época para ser professora. Na verdade, não
tinha mesmo muita opção, diz ela. Por outro lado, a estratégia de conseguir uma
colocação, uma turma para lecionar, pela amizade e pelo conhecimento, poderia
resolver o problema, e ainda melhor, perto de casa. A estratégia surtiu efeito. Na época
era fácil, diz Margarida. Não precisava fazer concurso, nem ter pedagógico ou curso
superior. Além do mais, ela conhecia o secretário de educação que tinha sido diretor da
escola onde ela havia estudado. “Ai eu não tive dificuldade pra arrumar essa turma. Me
encaixei e fui logo contratada pela prefeitura”, conclui.
A escolha da profissão docente aparece, nesse caso, como uma oportunidade,
como uma oportunidade num mundo de poucas opções, como estratégia para conservar
ou mesmo adquirir uma nova posição social. O ingresso nesse grupo profissional e não
em outro qualquer é produto do lugar social que ocupam e do jogo que é aí jogado, da
incorporação das regras desse jogo na forma de habitus. Segundo Bourdieu, a avaliação
subjetiva das chances de sucesso de uma ação contextualizada (como a escolha da
profissão, por exemplo) faz intervir
99
[...] todo um corpo de sabedoria semiformal, ditados, lugares comuns,
preceitos éticos [...] e, mais profundamente, princípios inconscientes
de ethos, disposição geral e transponível que, sendo o produto de um
aprendizado dominado por um tipo determinado de regularidades
objetivas, determina as condutas “razoáveis” ou “absurdas” (as
loucuras) para qualquer agente submetido a essas regularidades
(BOURDIEU, 1983d, p. 62-63)
O caso da professora Amarílis é bem parecido. Ela havia estudado até a 8ª série
e havia feito um concurso para telefonista. Antes de assumir a nova função, surgiu uma
vaga de professora em sua comunidade e ela assumiu a turma. “Eu tinha feito o
concurso pra telefonista e lá não tinha. Quando surgiu uma vaga para telefonista, que
botaram um telefone lá, ai eu já tava como professora e não quis mais sair”. O jogo da
vida social está presente, por intermédio do habitus enquanto sentido do jogo, nessas
estratégias. “Os grandes negociadores são aqueles que sabem tirar o melhor partido de
tudo isso” (BOURDIEU, 2004b. p. 89). Amarílis afirma que nunca pensou em ser
professora, que esse era um sonho de sua mãe, não seu. Que o único incentivo para elas
ser professora vinha mesmo de sua mãe. “Acho que era o sonho dela ser e não teve
chance, e aí ela... Era a minha mãe quem me incentivava mais, não tinha outras pessoas
não”.
A escolha da profissão é produto das estratégias (individuais, familiares)
utilizadas no jogo da vida social. Uma atitude, uma conduta razoavelmente ajustada à
situação. Sem capital econômico e cultural suficiente que permita aos nossos agentes
alçar vôos mais altos (ser médico, advogado, ou dentista) uma boa estratégia de
reprodução biológica e social é ingressar na profissão docente. Esta garante capital
econômico compatível com a manutenção de sua posição social (e mesmo a
possibilidade de ascensão em alguns casos), permite a integração desses agentes em um
grupo e, portanto, garante a eles uma identidade profissional e reconhecimento,
ampliando o seu capital social, além de possibilitar a ampliação de seu capital cultural
através dos processos de formação continuada a que estão sujeitos.
A professora Lis reconhece que a sua escolha profissional possibilitou a ela
ampliar o seu capital cultural. A muito afastada de qualquer processo formativo
sistemático, ela admite que “[...] através da minha profissão tive mais oportunidade de
estudar”. Uma outra professora admite que o ingresso na profissão possibilitou a ela
cursar o ensino superior e concluir o Curso de Pedagogia. Isso ampliou seu capital
100
cultural – “Estudei aqueles livros de 0 a 6 anos de psicologia, Piaget, Paulo Freire, essas
coisas foram mudando a minha vida, como mulher, como profissional, como mãe, foi
tudo”. Uma recompensa certamente. É preciso mesmo saber tirar o melhor proveito
neste jogo difícil.
3.3. Ser professor: a representação e suas dimensões
Nesta seção, apresentaremos a estrutura da representação social da docência
construída pelos nossos professores, considerando as suas dimensões e os elementos
que a constituem. Discutiremos a composição desse conteúdo representacional de
maneira articulada com o conceito de habitus, procurando demonstrar que o ser
professor é produto de regularidades sociais e profissionais que orientam esses agentes
em seus locais de vida e de trabalho. Nas experiências de vida, nas regularidades da
vida social expressas na forma de habitus, encontram-se elementos que irão compor o
habitus professoral, regularidades que serão enriquecidas e aprimoradas com as
experiências vividas na própria profissão, ajudando a compor as representações e as
práticas desse grupo de professores.
No capítulo I, procuramos fazer um percurso pela história da profissão docente
no Brasil para mostrar, apoiados, também, em pesquisas recentes, que essa longa
história criou regularidades estruturantes do ser professor e construiu representações
hegemônicas sobre a docência. Estas regularidades e representações continuam
orientando os discursos dos professores sobre a sua profissão e alimentando as
representações sociais do ser professor. No capítulo II, construímos um perfil dos
professores de nossa pesquisa e investimos no conhecimento de sua origem social e do
seu estilo de vida. Por esse caminho, foi possível compreender a complexidade da trama
social que envolve a escolha da profissão e entender como a trajetória social desse
grupo de professores permeia o seu habitus professoral e os conteúdos representacionais
do ser professor. Agora é hora de investir nesses conteúdos que dão forma à
representação.
Procuramos acessar essa representação e os seus conteúdos representacionais a
partir das informações que recolhemos através dos questionários, das entrevistas e dos
relatos (APÊNDICES B, C e D). O tratamento do material foi feito a partir da análise
101
temática de conteúdo. Neste momento, estivemos novamente atentos à presença dos
núcleos de sentido ou temas que pudessem ser extraídos dos discursos dos professores
relacionados diretamente com o nosso objeto de estudo. Uma questão central nos
orientou na busca desses núcleos: queríamos saber o que é ser professor para os nossos
professores. Em busca dessa informação e dos significados a ela agregados, procuramos
nesses discursos as referências explicitas ou implícitas a respeito desta questão. Em
seguida classificamos e agregamos os resultados obtidos e construímos categorias de
análise a partir das quais especificamos ou nomeamos os nossos temas ou, como queria
Bardin (1995), as unidades de significação que se libertam do texto estudado. As falas
das professoras, por sua vez, nos ajudaram a anunciar e dar sentido a esses núcleos de
significado.
Para os professores do município de Queimadas, na Paraíba, o ser professor se
apresenta como uma entidade multifacetada, implica mesmo na existência de distintos
núcleos significativos que se articulam para compor esse profissional. Estas dimensões
longe de representarem uma dissensão ou uma fragmentação da imagem do professor,
estão profundamente articuladas entre si para compor um significado coeso da profissão
e garantir princípios de ação. Identificamos pelo menos quatro desses núcleos ou
dimensões (como iremos chamá-los daqui por diante) que entram na composição
representacional do ser professor para os professores participantes: a dimensão do
amor e do cuidado, a mais forte das quatro e base para as demais; a dimensão da
ajuda e da doação, a dimensão do ensinar e do aprender e a dimensão do
sofrimento e da esperança. Estas dimensões da representação social da docência estão
ancoradas nos esquemas de percepção e ação do grupo e em elementos do imaginário
social e cultural circulantes. No discurso dos professores sobre o ser professor
encontramos referências ao ambiente familiar e à reprodução de elementos parentais,
tão comum dos ambientes provincianos onde predominam as relações primárias de
parentesco e amizade, ao universo religioso, profissional e à condição de gênero dos
professores.
Ser professor é, antes de tudo, ter amor pelo que faz, ser zeloso e cuidadoso com
a profissão e, principalmente, com os alunos, objeto dos seus esforços. Além do amor, a
docência é, também, doação e ajuda. O professor não só ama e cuida, mas também deve
se doar ao que faz, por o seu trabalho a serviço daqueles que precisam. O professor
como orientador (para a vida), como psicólogo que escuta e como portador de uma
missão, expressa essa dimensão. Por outro lado, ser professor é estar aberto a uma
102
constante aprendizagem, seja do oficio, seja das lições de vida. O professor não é
apenas o que ensina mas aquele que também aprende. Por fim, ser professor implica em
sofrimento, em sacrifício, implica em reconhecer e admitir que a profissão é
“espinhosa” e difícil. Essa dimensão representacional coloca o professor na qualidade
de um herói dedicado. Na figura a seguir apresentaremos de forma esquemática essas
dimensões.
FIGURA 01: As dimensões da representação social da docência
Dimensões da
representação
social da
docência
A dimensão do
amor e do cuidado
A dimensão da
ajuda e da doação
A dimensão do
ensinar e do
aprender
É preciso gostar de
criança, ter paciência,
carinho, amor,
dedicação. Reprodução
de relações parentais.
Condição de gênero.
A docência como uma
missão, uma espécie de
altruísmo que implica
sacrifício. É preciso dar
um pouco de si.
O professor é um
transmissor de
conhecimentos. Mas
também é aquele que
aprende, que incorpora
novos conhecimentos.
Matriz profissional.
O professor aparece
como um orientador,
responsável por guiar os
alunos para um futuro
melhor. Uma espécie de
sacerdócio.
Matriz religiosa.
A dimensão do
sofrimento e da
esperança
A docência como
sacrifício e sofrimento.
O professor como herói.
Matriz religiosa.
103
3.3.1 A dimensão do amor e do cuidado
Ser professor pressupõe, antes de tudo, gostar de crianças, ter paciência, carinho
e amor por elas. O professor é antes de tudo um pai ou uma mãe zelosa, ou mesmo um
amigo/a paciente que ama e cuida. A dimensão do amor e do cuidado aparece, portanto,
como a dimensão de significado mais forte da profissão. Em torno dela a docência
ganha corpo e consistência. Ela é mesmo uma condição inerente ao professor,
especialmente àqueles que lidam com crianças. Esta dimensão oferece ao professor
elementos importantes para que ele possa pensar a profissão, agir em seu interior e lidar
com ela. Ela dá sentido à profissão, permite aos professores suportar as dificuldades
inerentes ao ofício e orienta as suas práticas cotidianas no trabalho. Fornece, também,
elementos para a construção de sua identidade profissional, pois, à medida que
reconhecem e elegem o amor e o cuidado como um princípio inerente ao ser professor e,
portanto, ao grupo profissional, se fortalecem enquanto grupo e reforçam os princípios
dessa identidade.
A dimensão do amor e do cuidado e os conteúdos representacionais a ela
associados (carinho, dedicação, amor, paciência, dom, vocação), aparece como produto
de uma negociação desses profissionais com outras instâncias de sua vida social. Os
conteúdos dessa dimensão representacional estão fortemente ancorados nas condições
de gênero, nas experiências formativas e profissionais, na condição religiosa e na
origem familiar desses professores. As experiências vividas nesses lugares e sob essas
condições fornecem elementos que se aderem ao habitus professoral e influem
diretamente sobre a natureza e o conteúdo dessa representação. Por outro lado, essa
dimensão expressa, também, uma regularidade estruturante do ser professor cujas raízes
são antigas, remontam à longa história de constituição da profissão docente no Brasil e
do seu processo de feminilização. Amor e cuidado passaram a ser condições inerentes
do ser professor, se aderiram ao habitus professoral como um dos seus elementos mais
fortes e continuam orientando as práticas e as representações dos professores.
Amor, cuidado, carinho, paciência. Sem tais condições ou atributos, ser
professor parece impossível. Sem tais atributos a profissão se tornaria insuportável, um
tormento na vida desses indivíduos. Diante das dificuldades enfrentadas na profissão e
do sofrimento físico e emocional que tais dificuldades produzem no professor, o amor, o
cuidado e o zelo pelas crianças parecem servir de apoio, de amparo para esses
104
profissionais. Esta dimensão fornece, primeiramente, uma base de sentido para a
profissão, permitindo que o professor possa lidar com a complexidade do ofício. A
professora Margarida expressa esse sentimento. Ela considera que ser professor não é
fácil e que sem amor seria ainda mais difícil suportar a dureza da profissão. “Eu digo
que é um trabalho árduo, é complicado, mais que com amor e paciência a gente supera”.
Amor e paciência são requisitos essenciais do ser professor. Sem tais atributos o
professor seria um profissional incompleto. “A pessoa trabalha por necessidade, como é
o meu caso, mais se a gente não botar o amor acima de tudo, não é fácil”, conclui
Margarida. A professora não é a única a reconhecer que a profissão é difícil e
“espinhosa”. Estes professores sabem bem das dificuldades que enfrentam. As pressões
e as cobranças, a condição das escolas e a falta de material didático, o descaso dos
alunos e de seus pais, os baixos salários, o isolamento e a solidão dos que trabalham
distantes e sem acompanhamento. Lidar com condições tão adversas requer realmente
uma boa dose de amor e de dedicação. Precisam mesmo dessa motivação para continuar
na profissão. A falta de interesse, o descaso dos governantes e a falta de participação
familiar na educação dos filhos entristecem a professora Rubelita. Contudo, ela “[...]
não tira nossa força de vontade de vermos a alegria estampada nos rostos de nossos
alunos”. O amor pelos alunos e o prazer de ver os seus esforços rendendo frutos
reforçam a sua importância e dão dignidade ao trabalho.
Além de permitir ao professor lidar com as dificuldades, esta dimensão aparece,
também, como elemento motivador dos professores. Na ausência de uma motivação
externa, de ordem material ou mesmo social (reconhecimento, apoio, incentivo,
condições de trabalho, etc.), os professores buscam na sua dedicação, no amor, no gosto
de trabalhar com as crianças a motivação necessária para seguir na profissão. Fazem
mesmo dessas qualidades atributos inerentes à profissão, aparecendo em suas falas
como um predicado inato ao ser docente. É o amor e a dedicação que oferece aos
professores a motivação necessária para lidar com o fracasso do seu aluno e, portanto,
com o seu próprio fracasso; que o torna feliz e realizado quando seu aluno progride e
atinge as metas desejadas, que mantêm as chamas da esperança acesas mesmo em meio
a tantas adversidades. A professora Jade reconhece que o fracasso e o sucesso fazem
parte do trabalho do professor. Para ela, o ruim de ser professor é “quando a gente
trabalha, tem um objetivo com uma criança e chega ao final e aquela criança não
corresponde àquele objetivo. A gente fica triste, tanto com a gente como com a
criança”. A mesma professora relata uma experiência sua com uma aluna que não
105
conseguia aprender a ler e diz como investiu amor e paciência por todo um ano nesse
trabalho. Ao final, ainda descrente, pediu que a aluna lesse uma carta que havia sido
endereçada a ela.
Agora leia pra mim essa carta. Era uma carta (que um) coleguinha
tinha feito pra mim. E ela leu. Isso agente ficou todo emocionado na
sala. E ela de repente disse assim: tia, eu sei ler num sei? Eu digo,
sabe! E como foi que eu aprendi? Eu digo eu não sei Diana, você
aprendeu! E ela começou a chorar. Eu me arrepio toda, tá vendo. E
agente acabou chorando, tanto eu como alguns colegas dela e ela. Foi
uma surpresa, a experiência mais linda que eu tive na minha vida. Até
hoje, sala de aula eu jamais vou esquecer esse momento. [...] Isso me
deixou super feliz (Professora Jade).
Essa alegria, fruto de um amor dedicado, de um prazer de trabalhar
pacientemente com as crianças e ver a sua evolução, motiva os professores, fazem-nos
acreditar ainda na profissão. Para Turmalina, ser professora ainda vale a pena “porque
gosto muito de criança e também da profissão a qual escolhi para exercer e que faço
com muito desempenho e amor”. Ao incorporar tais sentimentos, os professores
definem os contornos de sua profissão, estabelecem os seus limites e possibilidades.
Tais contornos servem de base motivacional para o exercício do ofício, permitem que os
professores mantenham abertas as perspectivas de futuro e continuem investindo na
profissão.
Para algumas professoras essa dimensão aparece na forma de uma vocação, ora
como um chamamento a desempenhar uma atividade para a qual foram destinadas,
obedecendo a uma lógica da predestinação, ora como tendência, aptidão inata ou mesmo
um dom para tal. Em ambos os casos o amor e o cuidado são a mola propulsora dessa
vocação. “O magistério aparece e se desenvolve aqui como um desejo, uma vontade, um
sonho acalentado desde a mais tenra idade. Seriam, portanto, portadores de certas
qualidades inatas que os habilitam e os chamam para a docência” (CAMPOS E
ANDRADE, 2006a. p. 4). Que qualidades seriam essas? No discurso dos professores,
para além da formação, dos saberes e das práticas aí apreendidos, ser professor requer
outras qualidades que precedem a formação e independem dela. Os discursos mostram
que os professores separam as qualidades e habilidades necessárias ao bom professor:
106
de um lado aquelas adquiridas na formação, do outro, aquelas que parecem inatas,
próprias deles, adquiridas na experiência, na vida. A professora Frésia é que nos diz:
Tendo ele que mostrar-se apto a sua função não basta ser erudito; é
preciso ensinar, realizar com amor e paciência sua missão,
transmitindo não apenas os conhecimentos formais advindos de sua
formação, mas também sua experiência de vida que é chamada
singelamente de sabedoria.
Amor, paciência e cuidado são atributos do professor, são saberes adquiridos nas
experiências de vida e de trabalho que se sobrepõem àqueles adquiridos nos processos
de formação. Não que esses saberes sejam negados. Na verdade eles são secundarizados
no momento em que o mais importante, até para por em prática tais saberes e práticas
sistematizadas, é a disposição, o desprendimento afetivo, o amor e o gosto pela
profissão. Aqui, os professores se colocam numa aparente contradição. Nos seus
discursos, a idéia do amor, do cuidado e da vocação como base da docência fica
evidente, é na verdade o elemento mais forte. Mas, por outro lado, não deixam, também,
de reclamar para si a necessidade de formação especializada. Uma contradição que se
resolve. É preciso formação técnica e eles estão dispostos a dedicar tempo a essa
formação, mas, antes de tudo, é preciso amor pela profissão. Sem tal requisito qualquer
formação carece de sentido. A um bom professor “[...] não basta apenas um diploma, é
necessário mais que isso, é preciso que ele converse e faça um acompanhamento escolar
para ajudar seus alunos” (Professora Íris).
A idéia de vocação e, portanto, da posse de uma aptidão para o magistério, de
habilidades inatas para o exercício da profissão, tem raízes profundas na condição de
gênero desses professores, especialmente nas mulheres, na sua condição feminina e no
seu trânsito permanente entre o lar e a escola. Na condição feminina e no lar
incorporaram disposições que, forjadas nas práticas cotidianas e alimentadas por
discursos instituintes dessas condições, foram incorporadas à profissão, à lógica do
habitus professoral, influindo diretamente sobre as práticas docentes e as
representações. Os espaços sociais por onde transitam “[...] parecem tentar imprimir,
moldar em seus corpos disposições, atitudes, hábitos, comportamentos que, em um dado
instante e local social, são vistos como compatíveis à docência” (MONTAGNER, 2004.
p. 209). Cerisara (2002), afirma que a relação casa – escola, por ser demasiado próxima
107
no trabalho docente, implica numa troca constante de significados, saberes e práticas
entre essas duas instâncias de vida e de trabalho social. A maternagem, enquanto
processos sociais de cuidado e educação de crianças, e as próprias características do
trabalho doméstico “[...] têm sido encontradas no trabalho escolar desenvolvido pelas
professoras, principalmente as de 1ª à 4ª série do ensino fundamental [...]”
(CERISARA, 2002. p. 38). Diferentemente da maternidade, enquanto condição
biológica, a maternagem implica na transposição do amor e do cuidado maternos para o
trabalho docente. Estas características, naturalizadas pela socialização, aparecem como
uma vocação para o trabalho docente, como um dom.
Assim, a vocação implica na existência de um dom, de tendências inatas para o
exercício de certas ocupações. A professora Cristal, diz que é bom ser professora, mas
na hora de dizer o porquê, ela fica em dúvida. “Porque eu acho que... num sei... acho
que foi o que eu quis mesmo, é um dom meu”. Ribeiro (2003), afirma que a vocação
está tão incorporada aos discursos dos professores que é capaz de sintetizar tudo e não
dizer nada. A vocação aparece como um álibi para não refletir, por exemplo, sobre as
difíceis condições da escolha profissional. Para Cristal, o dom pareceu um álibi perfeito.
Na docência, vocação e dom se expressam no sentimento, na dedicação ao
trabalho, no amor e no cuidado. O dom implica certo desprendimento de interesses
mesquinhos e aparece como doação de si mesmo e de suas potencialidades aos outros.
Adquire conotações religiosas, incorporadas pelos professores na experiência de vida no
interior desse campo, elementos estes que são oportuna e inconscientemente transpostos
para a profissão. O dom de ensinar, o dom de ajudar aos outros por intermédio desse
trabalho. Bourdieu (2001) procura desmistificar essa ideologia do dom ao afirmar a sua
ambigüidade. Ele é, por um lado, um ato desinteressado, uma generosidade gratuita que
não requer retorno e, por outro, não exclui a lógica da troca e da recompensa, embora
esta não possa tornar-se uma verdade pública. Essa dupla verdade do dom, afirma,
aparece como uma mentira para si, individual e coletiva. O dom como uma atitude de
doação incondicional esconde na verdade o desejo, a necessidade e a vontade de
recompensa. Para o autor, “[...] o dom como ato generoso só é possível para agentes
sociais que adquiriram disposições generosas, em universos em que elas são esperadas,
reconhecidas e recompensadas [...]” (BOURDIEU, 2001. p. 236). O amor e o cuidado
como princípios da vocação docente, de um dom inerente a esses profissionais,
implicam realmente recompensas. Acreditar que tem um dom e uma vocação permite
aos professores suportar as dificuldades da profissão e lidar com as situações difíceis do
108
seu trabalho. É mesmo “[...] elemento motivador, ativador do desejo e do prazer numa
profissão que aparece como difícil e espinhosa” (CAMPOS E ANDRADE, 2006a. p. 5).
Além do mais, implicam em reconhecimento social na profissão, valorização social
(ALBUQUERQUE, 2005) e princípios de identidade profissional. “[...] quem dá e
quem recebe estão preparados, por todo o trabalho de socialização, para entrar sem
intenção nem cálculo de lucro na troca generosa, para conhecer e reconhecer o dom no
que ele é [...]” (BOURDIEU, 1996b. s.p.). A generosidade, a bondade e a entrega, que
aparecem na forma de dom e de vocação, são elementos representacionais que se
encontram enraizados no habitus professoral, são uma regularidade estruturante da
profissão.
3.3.2 A dimensão da ajuda e da doação
A idéia de ajuda e doação está muito presente nos discursos dos professores.
Depois do amor e do cuidado, e como complemento dessa dimensão, ser professor
implica antes de tudo desprendimento, doação aos outros. Isso coloca o professor como
um profissional de ajuda, o que requer sacrifício. A docência aparece, nesse caso, como
uma missão que os professores devem cumprir, e toda missão requer amor e dedicação,
vocação antes de tudo, esforço e doação.
As raízes dessa dimensão se encontram imbricadas na condição social desses
professores e no seu estilo de vida. Ela passa a fazer sentido a partir do momento em
que os professores conhecem o seu lugar de vida e de trabalho e o lugar social dos
alunos, perspectiva essa que aproxima esses agentes física e emocionalmente. Há
mesmo entre eles certa cumplicidade quanto às suas condições objetivas de existência,
marcadas pelas dificuldades e pelas adversidades. Embora distintos pela posição que
ocupam nesses espaços, esses agentes estão sujeitos a condições muito próximas e se
reconhecem na trama relacional desses espaços. Incorporar a ajuda e a doação como
dimensão do ser professor é reconhecer essas condições, as suas e as dos outros, e se
dispor afetiva e emocionalmente a entrar nesse jogo, a intervir nele na forma de ajuda e
doação. A professora Amarílis, do seu lugar de mulher, de mãe e de professora, enxerga
com tristeza a condição de vida de seus alunos.
109
Eu tive aluno de na hora que ele chega dizer Tia, eu to com fome,
quero ir pra casa porque eu to com fome. De eu perguntar, você
tomou café hoje e ele não, eu não tomo café porque na minha casa
não tem café, meu pai não compra pão porque não tem dinheiro. E ai
dói. A gente não pode ajudar a todos porque a maioria está nessa
situação” (Professora Amarílis).
O conhecimento da condição social dos alunos coloca o professor numa situação
difícil, como a que nos relatou Amarílis Ele não pode ser apenas um profissional que
transmite conhecimento e saber sistemático. Para além dessa função, reconhecida como
necessária, os professores precisam investir nessa outra dimensão do ser professor. Do
seu lugar de vida e de profissão, as experiências vividas e acumuladas ao longo do
tempo, acabam contribuindo para a “[...] formação de uma cultura sobre os modos dos
professores efetivarem seu trabalho [...] que se manifestam por intermédio de um
habitus profissional” (SILVA, 2003. p. 93). As maneiras de ser e de fazer docente
devem muito a essas experiências e a essa cultura acumulada.
Os professores conhecem bem de perto os seus alunos. Sabem que tais alunos
precisam de ajuda se quiserem ter um futuro melhor (não entrar nas drogas, ser um bom
cidadão, etc.). Reconhecem de seu lugar e de sua experiência, as dificuldades que eles
enfrentam, dificuldades que seriam ainda piores sem a sua ajuda e sem a sua doação.
Daí o trabalho adquirir ares de uma missão. A professora Íris reconhece que o “bom
professor não é apenas o que ensina, é o que auxilia, o que ajuda os pais a educar, o que
influencia [...]”. Na sua fala é possível ver a sua enorme preocupação com a influência
que ela pode exercer sobre o aluno e sobre a sua vida, com a ajuda que ela pode
fornecer aos pais na preparação de seus filhos para o futuro.
Os professores têm clareza do descaso da maioria dos pais com a educação dos
filhos
3
e das más influências a que estes estão sujeitos. Como mães e professoras, é seu
papel ajudar essas crianças. O discurso dos professores é rico em reconhecimento de
que os pais estão pouco preocupados com a educação dos filhos. Afirmam mesmo que,
para os pais, educar é tarefa da escola e do professor e, portanto, são poucos os que
3
Sobre a imagem que estes professores constroem a respeito dos pais de seus alunos e dos próprios
alunos consultar: CAMPOS, Jameson Ramos; ANDRADE, Erika dos Reis G. Meus alunos e seus pais: o
professor e os dilemas da profissão. IN: XVIII Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste –
Anais. Maceió; AL, 2007.
110
acompanham os filhos. Cobrança e incompreensão acompanham esses professores. Este
descaso, como eles mesmos afirmam, aumenta a sua responsabilidade e reforça ainda
mais a idéia de ajuda e doação às crianças. Para eles, a ajuda e a doação aparecem
mesmo como um componente intrínseco do ser professor, faz parte do ser e do estar na
profissão. Essa ajuda com ares de missão tem tanto uma dimensão religiosa (aparece
como ajuda ao próximo) como uma dimensão social (preparar o aluno para a vida, para
uma profissão, para ser um cidadão crítico e responsável). Essa idéia de missão
pressupõe reconhecer as dificuldades e o estado de risco de seus alunos. Pressupõe
reconhecer o estado de desajustamento social e moral de que são vítimas essas crianças
e a dificuldade de lidar com elas em sala de aula. Novamente, é preciso ter amor pela
profissão, é preciso doar-se em forma de ajuda, desdobrar-se para cumprir essa nobre
missão.
Aqui, a profissão assume mesmo ares de sacerdócio. A sua missão é tanto social
(formar o ser social, o profissional) como humana, voltada para o homem, suas
fragilidades e idiossincrasias. A professora Brilhante diz que o que a estimula a
continuar na profissão “[...] é poder saber que posso ajudar crianças a tomarem outro
rumo que o mundo em si oferece, como drogas, prostituição...”. Margarida, por sua vez,
afirma que “[...] quando a gente consegue resgatar uma criança que tava totalmente
despreparada, com outras mentalidades bem diferentes e a gente consegue trazer essa
criatura para o caminho do bem [...] é muito gratificante, é como se a gente fizesse eles
enxergar. Uma nobre profissão a do professor. Ele tem um dever a cumprir. “Em um
mundo globalizado no qual vivemos, é necessário estar em constante vigilância, quase
num exame diário do cumprimento do dever, para conduzir bem cada aluno [...]”
(professora Dália). Uma enorme responsabilidade recai sobre os ombros do professor já
que o seu trabalho “[...] pode fazer viver ou morrer não apenas o futuro cidadão, mas
também o homem” (SILVA, 2004. p. 110). Louis Marmoz expressa bem essa dimensão
do ser professor a partir das imagens que esses atores projetam no espelho:
O professor é um lutador, voluntário ou não, fatigado ou não; é
encarregado – e crê muitas vezes desejá-lo – de lutar pelos outros, de
superar-se a si próprio para ajudar os outros a ultrapassarem-se, para
transformar a sua realidade e a da sociedade. Nessa luta, é levado a
servir, a responder a múltiplas exigências e também a esquecer a sua
própria existência; servidor transcendido, torna-se herói (MARMOZ,
1993. p. 22).
111
O caráter de missão que a profissão assume, ora social, ora religiosa, expressa
um movimento representacional que decorre da fragmentação de elementos originários
dos processos formativos pelos quais passaram. Ao incorporarem o discurso científico
que aponta para a dimensão transformadora da profissão e atribui ao professor um papel
ativo nesse processo, os nossos agentes fragmentam esses discursos à medida que os
incorporam em seus esquemas de percepção preexistentes. Nesse movimento,
minimizam e mesmo excluem do seu universo representacional uma dimensão
importante desses discursos, justamente aquela que se refere à função social de
sistematização dos conhecimentos e ao papel do professor nesse processo que é o de
ensinar um conhecimento sistematizado. Essa negociação conflituosa se dá
primeiramente com a dimensão humana e religiosa que fundamenta a missão do
professor. A transmissão de conhecimentos aparece como uma irmã menor da força
humanitária do trabalho docente. Essa parece mesmo impedir que essa dimensão
formativa se expresse. A negociação se realiza também com a dimensão social do
trabalho missionário do professor. Formar cidadãos críticos, preparar para o futuro,
requer orientação, exige um professor orientador, mais que um transmissor de
conhecimento. Essa negociação expressa, enfim, uma resistência ao novo da formação,
ao que é estranho à maneira tradicional de ser e estar professor. O processo de
ancoragem do novo está repleto de resistência, de proteção contra as ameaças de cisão
do grupo e de suas identidades.
O caráter missionário da docência aparece como um elemento estruturante do ser
professor, como pudemos ver no capítulo I desse trabalho. Construída historicamente, a
idéia de missão e de sacerdócio acompanhou de perto o processo de construção da
profissão docente e esteve muito ligada ao ingresso das mulheres na profissão. Serviu
mesmo de justificativa, de discurso para garantir o ingresso contínuo das mulheres no
ofício e se incorporou como elemento do habitus professoral, princípio gerador e
estruturador das práticas e das representações do ser professor.
A idéia de ajuda e de doação transforma o professor num orientador (para a
vida, para o futuro, para a profissão). É essa a nobre missão do professor. Aqui, a
dimensão técnica e profissional é secundarizada, enquanto os aspectos formativos
(preparar para a vida, orientar, etc.) ganham evidência. A referência do ser professor é
outra. Para esses professores, o professor profissional parece estar longe do aluno,
destituído de sua dimensão humana. Estamos diante de um dilema: o profissional
docente não pode também estar perto e ser amigo enquanto é professor e profissional?
112
Em resposta nos fala a professora Jade, “Olhe, [...] eu acho que não é repassar
conhecimento e sim orientá-los, as crianças, para o dia de amanhã, pra o futuro”. Se o
amor e o cuidado são condições fundamentais do ser professor, mais importante até que
os aspectos técnicos da profissão, a ajuda e a doação corporificada no caráter de
orientador que o professor assume, também estão para além dessa dimensão.
Lidar com tamanhos problemas exige, além disso, o cumprimento de outros
papéis, como ser psicólogo, por exemplo. Em pesquisa recente com os professores do
ensino fundamental de Natal-RN, Lira (2007) encontra no discurso e na prática desses
profissionais a variante psicólogo como tarefa suplementar do ser professor. Para ele,
este significado demonstra que o professor se reconhece como um profissional que
escuta, sente, e resolve problemas de seus alunos e mesmo de suas famílias. Para a
professora Íris, o bom professor não deve se preocupar apenas com os assuntos
didáticos, “[...] mas também do cotidiano, e até ajudá-los fazendo o papel de psicólogo,
auxiliando-os a estudar para que no futuro possam além de se tornar bons profissionais,
tornem-se, também, cidadãos de bem”. Aconselhar, orientar para a vida faz parte dessa
dimensão de ajuda e doação. Ser mais um amigo que um professor exprime, também,
essa dimensão e reforça a idéia de que, para além dos saberes profissionais, ser
professor requer outras qualidades. Tomando o exemplo de uma professora do passado
que muito marcou a sua vida, a professora Jade afirma que queria ser como ela, “[...] eu
queria ser daquela maneira, ser mais uma amiga do que uma professora”.
Ensinar o aluno, educar como exercício profissional, aparece como uma
dimensão do ajudar, como uma missão, e exige a doação como componente básico. A
dimensão da ajuda, assim como aquela do amor e do cuidado, embora apareça como
produto de uma negociação com outros universos sociais como a família e a religião,
por exemplo, aparece também como produto de um processo socializador que se dá no
próprio local de trabalho. Ao discutir a questão do cuidado como variante da docência
nas séries iniciais, o trabalho de Carvalho (1999) reforça essa idéia. Segundo ela, “Para
além de uma socialização familiar que eventualmente enfatize o ‘cuidado’ e as relações
pessoais, parece que a própria escola se encarrega de inserir os professores e professoras
no que poderíamos chamar de cultura do cuidado [...]” (CARVALHO, 1999. p. 223). É
importante considerar que os professores atribuem à experiência e à prática cotidiana de
trabalho um peso determinante na sua formação. É na e pela prática que o professor se
faz professor, que ele aprende a ser. No contexto dessas relações de trabalho e de
aprendizado do ofício o professor incorpora estas dimensões afetivas da profissão.
113
Aprende que o amor, o cuidado, a doação e a ajuda são elementos importantes para a
profissão. Estes elementos ordenadores do ofício não são apenas trazidos pelos
professores para seu local de trabalho, mas são, também, forjados em seu interior. Tais
condições “[...] são criadas, reafirmadas e transformadas pelos critérios de
funcionamento das organizações [...]” (CARVALHO, 1999. p. 223). A própria escola e
as relações travadas em seu interior reforçam essa dimensão afetiva, seja como amor e
cuidado, seja como ajuda e doação.
3.3.3 A dimensão do ensinar e do aprender
Esta dimensão expressa a idéia e o reconhecimento de que o professor não é só
aquele que transmite conhecimentos, que forma e que educa, mas também aquele que
aprende na sua relação com o aluno e com sua profissão. Ensinar e aprender são
dimensões distintas e complementares que fazem parte do ser e do estar na profissão.
Essa dimensão da representação aponta para o fato de que os professores
rejeitam a idéia de que o professor é o dono do saber, aquele que controla o
conhecimento e é responsável pela sua transmissão. Aponta, também, para o
reconhecimento do aluno como portador de conhecimento e de saber, capaz de influir
no seu aprendizado e no próprio aprendizado do professor. Ensinar pressupõe um
processo de troca constante entre professor e aluno. O professor sai do seu pedestal de
dono do saber e reconhece que o conhecimento exige uma troca constante entre os
atores do ato educativo. “Eu achava que o professor era o dono do saber. Mas depois
que eu vi que não, que a gente vai aprendendo junto com... As crianças também passam
muito pra nós, a gente aprende muito com eles” (Professora Amarílis).
Aqui aparece o reconhecimento de que o aluno é portador de conhecimento e,
portanto, precisa ser ouvido e considerado. O professor precisa estar aberto a esse
conhecimento e precisa considerá-lo. O saber do aluno vem de sua experiência, embora
ainda pouca, e do que aprendeu ao longo da vida. Ele traz para a escola esse saber e o
professor precisa estar disposto a ouvir o aluno, considerar o que ele tem a dizer. “A
gente vai de acordo com os conhecimentos deles também, com o que eles trazem, as
informações deles, e a gente vai renovando” (Professora Amarílis).
114
Ouvir o aluno e considerar as sua experiências de vida aparecem mesmo como
técnicas utilizadas pelos professores para trabalhar em sala de aula. A professora
Amarílis inicia sempre um novo conteúdo a partir da vivência de seus alunos. Para ela
fica mais fácil. Se não for dessa maneira, se chegar com tudo pronto, eles não prestam
atenção. Mas “[...] quando a gente vai de acordo com o que eles vivenciam aí é mais
fácil”. A professora Margarida aprendeu a considerar o que ela chama de ‘o
conhecimento prévio do aluno’ sobre determinado tipo de conteúdo. Esse
conhecimento, na sua maneira de compreender, tem origem naquilo que os alunos
aprendem através da televisão uma vez que seus pais são geralmente analfabetos e de
pouca informação. Sendo assim, “Eu começo a sondar o que eles já têm de
conhecimento daquele assunto. Ah, professora, eu vi isso no Fantástico, eu vi falar isso
em tal programa de televisão” (Professora Margarida). De uma maneira ou de outra, os
professores estão dispostos a ouvir seus alunos, a considerar os seus saberes e a
aprender com eles. “Se eu puder ajudar eu ajudo orientando, se eu não puder eu, deixo
ele me ajudar, porque muitas vezes o aluno ensina a professora” (Professora Jade). Ela
aprende através dele, de suas experiências e de suas condições de vida. No contato
diário com o aluno aprendem a conhecer a condição social e humana de seus alunos, as
suas idiossincrasias. Esse conhecimento lhes permite pensar sobre si mesmas e sobre as
suas condições de vida e existência e refletir sobre sua condição de mãe e de mulher. As
experiências de vida ajudam a compor as experiências profissionais. As experiências de
vida acumuladas na profissão ajudam a compor e a refletir sobre a vida que se desenrola
para além dos muros escolares. O trânsito entre o lar e a escola permanece aberto.
A formação assemelha-se a um processo de socialização, no decurso
do qual os contextos familiares, escolares e profissionais constituem
lugares de regulação de processos específicos que se enredam uns nos
outros, dando uma forma original a cada história de vida
(DOMINICÉ, 1988. p. 60).
Considerar que o aluno é detentor de conhecimento e, assim, estar disposto a
ouvi-lo e mesmo aprender nessa relação, é um indicativo da influência de processos
formativos em sua maneira de compreender a profissão. Desde a primeira metade do
século XX, com o movimento renovador da Escola Nova, o discurso a respeito da
relação professor/aluno tem se modificado. Da pedagogia tradicional, centrada na figura
115
do professor como autoridade do ensino, o discurso se deslocou, na pedagogia renovada
progressista, para a formação da imagem do professor como auxiliar do
desenvolvimento da criança, um facilitador do processo. As pedagogias progressistas
(LIBÂNEO, 1984), por sua vez, acentuaram a relação de troca entre o professor e o
aluno, considerando o lugar social de ambos. Com suas variações, a idéia de que o
professor é um orientador, que deve considerar a experiência individual e de vida social
do seu aluno, que está numa relação de aprendizagem mútua com ele e com a atividade
de ensino, permaneceu como elemento importante nos programas de formação docente,
passando a compor o universo representacional dos professores. O discurso desses
professores, que em tempo recente concluíram o curso de Pedagogia, reflete essa
orientação. Após cursar Pedagogia, a professora Margarida reconhece que “[...] eu
mesmo, eu to vendo que eu não sou só um professor, mas sim um facilitador da
aprendizagem daquele aluno”.
Nesse processo de melhor compreensão do lugar do aluno enquanto aprendiz, e
maior respeito aos conhecimentos prévios dos mesmos, as professoras reafirmam a
dimensão do cuidar e do respeitar o outro, dando ênfase à relação entre a pessoa do
professor e a pessoa do aluno. No entanto, desaparece de suas falas a importância da
aquisição do conhecimento sistematizado como caminho para alternativas melhores de
vida e de compreensão do mundo. Mais ainda, elas parecem não saber bem como esse
processo pode ocorrer ou como elas próprias podem desencadeá-lo. Parece ocorrer uma
dicotomização do papel do professor: ou ele é um cuidador da criança, ou um
transmissor de conhecimento, demonstrando a dificuldade de imbricamento dos dois
papéis. Voltemos à experiência da professora Jade e sua aluna com dificuldade de
leitura. Quando a aluna, finalmente, consegue ler e, na sua inocência infantil, pergunta
se sabe realmente e como foi que aprendeu, a professora lhe diz “Eu não sei Diana, você
aprendeu”.
Já dissemos anteriormente que o ingresso na docência aparece, para esses
professores, como uma possibilidade de ampliar e mesmo adquirir capital cultural. Essa
aquisição aparece, também, na forma de aprendizado formal. O trabalho lhes abre a
possibilidade de aprender com o ofício e com os processos de formação continuada que
a profissão lhes oferece. A docência exige aprendizado constante e possibilita condições
para esse aprendizado.
Os encontros pedagógicos mensais, os cursos de aperfeiçoamento e os
seminários de educação municipal aparecem como espaços de aprendizado da profissão.
116
As exigências colocadas pela profissão e as possibilidades de aperfeiçoamento
oferecidas são elementos que indicam que o professor nunca está pronto e precisa
aprender constantemente. O professor que aprende reconhece as próprias fragilidades e
limitações no desempenho do seu trabalho e busca a sua superação. Reconhece a
importância dos saberes acumulados na experiência, mas julga necessário dispor de
novos saberes para lidar com a complexidade crescente da profissão. Para a professora
Diamante seria preciso “[...] investir mais nos professores, com relação a cursos de
aperfeiçoamento, passaria a atualizá-los cada vez mais, pois sei que ficam muitas coisas
a desejar”. Já a professora Dália acredita que para melhorar o desempenho e a qualidade
do trabalho é preciso “Que continuem investindo na qualificação do professor”. O fato
de o professor não se considerar pronto e estar sempre na necessidade de uma formação
contínua e incessante aparece como fruto de uma negociação com os discursos técnico-
científicos que propugnam essa necessidade e com os discursos oficiais que
transformam palavras em exigências profissionais. Ambos acabam por naturalizar tais
necessidades, transformando-as em virtudes.
O professor aprende, também, com o próprio trabalho e no local de trabalho.
Embora reconheçam a necessidade de formação especializada, é na sala de aula e na
experiência do dia a dia que aprendem o ofício. É preciso estar aberto e disposto a
aprender, uma vez que o professor nunca está pronto. “A gente tá sempre aprendendo”
(Professora Amarílis). As estratégias para lidar com os alunos, com os pais desses
alunos e com as dificuldades enfrentadas no dia a dia de trabalho, por exemplo, refletem
esse aprendizado. “É certo que nós não dispomos de recursos adequados ou condições
desejáveis. No entanto, a experiência em sala de aula vem ultrapassando obstáculos
[...]” (Professora Rubelita). Muitas dessas estratégias têm suas raízes nos saberes de
formação, é bem verdade, mas é no local de trabalho que aprendem a profissão. É aí que
os saberes da formação são negociados com os saberes da experiência, conformando
maneiras de ser e estar na profissão.
O local de trabalho é, também, o lugar de aprender com o outro ou com os
outros coletivamente. No discurso dos professores, a equipe de trabalho, quando existe e
é “unida” e tem “compromisso”, se constitui numa verdadeira rede de ajuda e
aprendizado da profissão. “Na medida do possível sempre que preciso estamos
debatendo os nossos problemas do dia a dia para desenvolver melhor as nossas
atividades”, diz a professora Pérola. Quando não é a solidão de se trabalhar sem apoio
ou quando as companheiras de trabalho não se integram num trabalho coletivo – no qual
117
não se aprende ou se aprende o que não se deve aprender – é no apoio dos outros que os
professores buscam ajuda. E nessa relação aprendem juntos a lidar com a profissão e a
enfrentar os seus dilemas.
3.3.4 A dimensão do sofrimento e da esperança
Diante das inúmeras dificuldades enfrentadas pelo professor no seu dia-a-dia de
trabalho, a professora Cristal não mede palavras: “E como é herói, né. Eu acho que ele é
um grande herói”. Os professores reconhecem que sua profissão é muito difícil.
Chegam a dizer que ela é mesmo espinhosa, que exige dedicação, um enorme esforço e
investimento emocional. Reconhecem-na como uma profissão importante e necessária
cuja função social é inegável. Mas reconhecem, por outro lado, os dilemas inerentes à
profissão e sofrem com isso. A sua imersão em condições objetivas de trabalho
extremamente precárias e a necessidade de lidar com tais condições, produzem imagens
como estas: um herói quixotesco a lutar contra moinhos de vento. E mesmo assim, não
perdem a esperança. Ser professor é lidar com adversidades, é sacrificar parte de sua
vida nesse trabalho árduo e isso implica sofrimento físico e emocional. Porém, ser
professor é alimentar esperanças em dias melhores, é querer crer que o sacrifício vale a
pena.
As dificuldades enfrentadas na profissão são muitas. Através dos Questionários
de Práticas e Significados procuramos conhecer quais as maiores dificuldades que os
professores enfrentam no dia-a-dia cotidiano de seu trabalho. A partir da leitura e da
organização das informações chegamos aos seguintes números.
118
TABELA 11: Problemas enfrentados na profissão
Categorias Freqüência Percentual
Falta de reconhecimento social 28 40,0
Falta de condições de trabalho 17 24,0
Descaso dos pais 11 15,0
Desinteresse dos alunos 8 11,0
Baixos salários 7 10,0
Total de respostas 66 100,0
A falta de reconhecimento social aparece como um dos principais elementos
negativos da profissão. Como negar reconhecimento a uma profissão tão importante
como a de professor? Afinal, “[...] sem um professor não se consegue chegar a lugar
nenhum, principalmente os professores da primeira fase. Porque, um médico mesmo,
pra puder ele ser médico, ele teve que ter a base, ele teve que ter, vamos dizer assim, o
professor primário (Professora Cristal). A incompreensão dos pais, “o descaso dos
governantes” e da própria sociedade parecem desqualificar o trabalho do professor,
retirando dele a sua importância. “[...] antigamente, como se diz assim, a pessoa tirava o
chapéu para o professor. Hoje não, o professor ai tá comum, como qualquer outro
profissional qualquer” (Professora Margarida). A falta de visibilidade e de
reconhecimento social incomoda os professores. Esse não reconhecimento tem origem
no descaso mesmo com a educação e o trabalho do professor, mas tem origem, também,
nos poucos resultados obtidos por seu trabalho diante das enormes expectativas que são
criadas. As cobranças são enormes, reconhecem os professores, mas as condições de
trabalho, o desinteresse dos pais e dos alunos e as próprias limitações dos docentes,
criam um enorme hiato entre o que se espera deles e o que eles podem oferecer. Os
professores investem esforço e dedicação, mas o sucesso e o fracasso os acompanham
de perto, são inerentes à sua profissão. A falta de reconhecimento social aparece como o
principal dilema para os nossos professores porque ele está na raiz de sentido do seu
trabalho. Ter o trabalho reconhecido e valorizado significa dizer que o seu esforço e o
seu sacrifício fazem sentido assim como faz sentido o seu trabalho. Se a docência requer
esforço, esse esforço precisa ser reconhecido para que a profissão e todo o sofrimento
que ela implica, possam ter sentido, possam valer a pena. Para Batista e Codo,
119
[...] quanto maior a defasagem entre o ‘trabalho como deve ser’ e a
‘realidade do trabalho’ nas escolas, maior será o investimento afetivo
e cognitivo exigido ao professor, maior será o esforço realizado, e por
isso, maior será seu sofrimento no cotidiano de trabalho (BATISTA
E CODO, 1999. p. 85).
Para os autores, esse sofrimento, e porque não dizer todo o esforço e sacrifício
investido, só tem sentido “[...] quando seu fazer e saber fazer, que foi constantemente
interpelado durante a atividade de trabalho, deu lugar a um reconhecimento e auto-
reconhecimento da competência profissional” (BATISTA E CODO, 1999. p. 85). Daí a
imagem do professor como um herói, que investe esforço e sacrifício numa atividade
que ele sabe, de antemão, será pouco reconhecida. Sísifo nos serve como metáfora para
pensar esse herói. Os Deuses haviam condenado Sísifo a empurrar eternamente
montanha acima uma enorme pedra que, a seu termo, no fim do dia, rola inexorável de
volta a base em conseqüência do seu peso. Resoluto, ele “[...] vê então a pedra resvalar
em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para
os cimos. E desce outra vez à planície” (CAMUS, s.d. p. 149). Assim como Sísifo, dia
após dia, os professores rolam a enorme pedra do seu ofício num sacrifício imenso e
sem reconhecimento. E no dia seguinte, tudo se repete.
Seria o professor o herói absurdo de Camus, mestre de um trabalho inútil e sem
sentido, não fosse a teia de sentidos que ele constrói, não fosse a esperança que ele
alimenta. Na verdade, o professor é mesmo a antítese desse herói absurdo. A professora
Primavera expressa bem esse dilema humano. Segundo ela, “[...] é quase impossível o
professor sozinho obter sucesso no ensino-aprendizado, chegando até ficar desmotivado
com vontade de largar tudo e jogar a peteca para outros profissionais. Volto atrás
atendendo meu ego e minha vontade de transformar um pouquinho”. Heroísmo...
Esperança... O trabalho não lhe parece estéril nem fútil. Tudo se parece com uma
canção, com uma poesia dramática: “Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral
dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os
píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”
(CAMUS, s.d. p. 152).
Ao discutir as diferentes maneiras como o professor lida com o sofrimento no
trabalho, Oliveira (2003) aponta para o fato de que as representações do ser professor
aparecem como estratégias defensivas contra esse sofrimento. Para os educadores, diz
ela, essa estratégia aparece na construção simbólica do professor como um herói
120
dedicado, uma imagem profundamente carregada de amor ao próximo, de doação e de
redenção dos outros (os alunos) e do “[...] desejo de conhecer e desenvolver uma ação
quase ‘clinica’ sobre eles (OLIVEIRA, 2003. p. 205). Isso nos faz lembrar novamente a
imagem do professor como um psicólogo, recorrente na fala dos nossos agentes.
Não bastasse esse descaso, as condições de trabalho docente são por demais
precárias. Falta material didático, as escolas encontram-se em condições precárias de
uso (salas pequenas e sujas, sem água e segurança, carteiras, portas e vidros quebrados
etc.). As condições de trabalho são realmente precárias e os professores precisam se
desdobrar para lidar com tais problemas. A professora Violeta é taxativa. Para ela, a sua
escola precisa melhorar muito. “Sempre que precisamos de alguma coisa para a nossa
escola, os órgãos encarregados nos negam por algum motivo”. As condições das salas
de aula são terríveis. A maioria delas, eu mesmo pude verificar, são pequenas,
apertadas, mal cuidadas, escuras e sem ventilação. “Já pensou você com 25, 30 alunos
numa sala menor do que essa? Não tem nem como você trabalhar em grupo [...]. E ele
faz todo o manejo para manter seu aluno ativo ali dentro da sala de aula”, diz a
professora Cristal, apontando em redor para as condições da sala que é sua. É, diz a
professora Rubelita com ar de indignação, “A sociedade espera que o educador seja um
milagreiro”.
É preciso mesmo criatividade para lidar com tais situações. O problema do
material didático é mesmo emblemático. Para lidar com ele, alguns professores usam
mesmo do recurso de pedir dinheiro aos seus alunos, fazer uma “cotinha”, para comprar
material. “[...] às vezes faço cotinha com eles de dez centavos. É... hoje quem trouxe
dinheiro pra lanche? [...] Quem é que ta disposto a dar dez centavos... pra gente comprar
às vezes cartolina, essas coisas todas sabe?” (Professora Cristal). Outros lançam mão do
seu próprio dinheiro. Mas o uso da criatividade é mesmo a arma mais usada pelos
professores. Usam materiais de sucata, recorrem a livros, revistas e jornais velhos,
contam estórias, confeccionam jogos. Só não pode ficar sem fazer. “Usamos livros,
revistas e jornais velhos. Para fazer trabalhos, as cartolinas são improvisadas com folhas
de ofício. Cola, lápis de pintar, tesoura, quem tem compartilha com quem não tem. Só
não deixamos de fazer”, diz a professora Esmeralda.
A infra-estrutura da escola e as condições de trabalho oferecidas ao professor
são elementos importantes para que ele possa desenvolver um bom trabalho. Incide
mesmo sobre a maneira como esse profissional compreende a sua profissão e sobre as
imagens que produz a seu respeito. É preciso mesmo ser um herói para trabalhar em
121
condições tão adversas e, portanto, a docência aparece mesmo como uma atividade de
sacrifício. As condições no interior das quais e com as quais trabalha o professor são
elementos que dizem respeito diretamente “[...] aos meios disponíveis para um trabalho
mais confortável, menos desgastante, mais prazeroso e por isso mesmo mais produtivo,
além de mais saudável para o trabalhador” (BATISTA E ODELIUS, 1999. p. 161). A
sua ausência produz impactos negativos sobre a maneira como o professor compreende
a sua profissão e lida com ela, além de incidir sobre a sua saúde física, psíquica e
emocional.
Maslach e Leiter (1999) procuraram mostrar que o prazer ou o
desgaste/sofrimento no trabalho estão intimamente ligados às suas condições de
exercício e à sua forma de organização. “Quando o local de trabalho não reconhece o
lado humano dessa atividade, o risco de desgaste cresce, trazendo com ele um preço
bastante alto” (MASLACH E LEITER, 1999. p. 36). Os autores não concordam com o
que chamam de lógica perversa que atribui ao trabalhador a responsabilidade pelo
desgaste físico e emocional no trabalho. Para eles, o problema vem aumentando
gradativamente e se deve a diversos fatores como o excesso e a perda de controle sobre
o trabalho, a falta de recompensa diante das contribuições laborais e a ausência de
reconhecimento do que se faz.
As precárias condições de trabalho a que estão sujeitos os professores são, por
sua vez, um sintoma dessa falta de reconhecimento social da profissão, o que implica na
baixa estima dos docentes e se reflete na sua identidade profissional. Assim como agem
diante da questão dos baixos salários (que trataremos mais adiante), os professores
esboçam certo conformismo diante de suas condições de trabalho. O discurso do
esforço, da doação e do sacrifício heróico, como vimos, acaba por anular a crítica e a
disposição para lutar por melhores condições de exercício da profissão.
Por outro lado, os professores sofrem com o descaso dos pais em relação à
educação de seus filhos. Para os professores, os pais acreditam que educar é tarefa do
professor e que é deles a responsabilidade. Sobre suas costas cai o peso da cobrança. “A
maioria deles acha que só o professor deve educá-los. Acham que toda a
responsabilidade é do professor, até nas tarefas de casa” (Professora Diamante). Na
verdade são descompromissados e ausentes e não acompanham os filhos em sua vida
escolar. O aluno, por sua vez, é também fonte de problemas para o professor. A
rebeldia, o desrespeito e o desinteresse são caracterizadores desses alunos. Para lidar
122
com esse problema os professores apostam no diálogo e na pregação de que o estudo e a
educação são como uma escada para subir na vida.
Os professores conhecem bem os seus alunos e os pais destes alunos. No
entanto, essa relação tem sido permeada por uma espécie de silêncio. Um silêncio
enorme sobre si mesmos como parte ativa dessa relação. O problema não está no
professor, ou pelo menos assim eles expressam, mas nos outros (os alunos, os pais) ou
nas suas condições de trabalho. Este silêncio que apura as distâncias expressa mesmo
uma relação de incompreensão, de distanciamento e de conflito. Os pais, por exemplo,
“[...] deixam tudo nas mãos do professor” (Professora Jasmim) e esquecem que têm
filhos na escola. Outros não cansam de criticar e de cobrar dos professores. Poucos são
os que compreendem esse árduo trabalho. Os pais cobram muito, “[...] é o que eles
sabem fazer muito, cobrar. É muito difícil chegar um pai e valorizar” (Professora
Amarílis).
Além do mais, os professores enfrentam uma dupla jornada de trabalho e
procuram conciliar o trabalho doméstico com o trabalho na escola. Esta dificuldade é
enfrentada, principalmente, pelas mulheres sobre quem recai o cuidado com a casa, o
marido e a educação dos filhos. Na verdade, “[...] as professoras estabelecem certa
divisão do trabalho familiar, uma repartição de tarefas que permitam a elas ser mulher,
ter uma vida familiar e afetiva, e exercer com responsabilidade o seu trabalho”
(CAMPOS E ANDRADE, 2006b. p. 11). A professora Violeta expressa bem essa
dificuldade e o malabarismo que precisa fazer para desempenhar estas duas funções.
Para ela, conciliar essas duas tarefas é “muito difícil porque para cumprirmos nossa
tarefa escolar com responsabilidade e os afazeres domésticos, muitas vezes temos que
deixar de descansar à noite para fazer o que o dia não deu”.
Alguns professores enfrentam longos percursos para chegar ao local de trabalho
e enfrentam o isolamento das grandes distâncias, outros se queixam da falta de
assistência e acompanhamento no trabalho, outros reclamam do cansaço da dupla
jornada. Por outro lado, e de maneira paradoxal, a questão do salário aparece, na escala
das suas preocupações, como um elemento menos preocupante diante dos inúmeros
problemas que enfrentam. Ser reconhecido socialmente em seu trabalho parece ser mais
importante do que receber um bom salário e recebê-lo em dia. O reconhecimento social
parece suprir o sofrimento causado pelo salário minguado e mal pago. Além do mais, a
missão que o professor tem a desempenhar deve estar acima da mesquinhez do dinheiro.
“Um bom professor não deve pensar apenas em sua remuneração, mas sim na
123
responsabilidade e no juramento feito na hora de sua formação profissional” (Professora
Frésia).
A pouca presença das questões salariais no discurso dos professores não quer
dizer que o salário não seja causa de mal estar entre os mesmos. Ele o é, e muito. Os
discursos dos professores secundarizam essa questão ao supervalorizar os aspectos
formativos da profissão e seu alcance social. Sendo assim, reconhecem que as condições
de trabalho e o salário são empecilhos, mas que serão superados por um trabalho
dedicado, amoroso e fortalecido pela formação. O discurso crítico acerca da profissão e
suas condições de trabalho é substituído por um discurso de abnegação, de entrega e de
superação. Podemos enxergar aí uma forma de controle sobre o trabalho do professor e
sobre a sua capacidade de organização política e reivindicatória. Arroyo (2003)
procurou mostrar como o discurso sobre o fracasso ou o sucesso escolar tem sido
atrelado unicamente à desqualificação ou qualificação do professor e à sua formação.
Esse movimento desvia o olhar das condições de trabalho docente e da própria
organização do trabalho na escola e atribui ao professor e à sua formação toda a
responsabilidade. Os professores, por sua vez, incorporam esses discursos no próprio
processo formativo, tornando-o instituinte de seu trabalho e de seus próprios discursos,
assumindo tal carga. “Os gestores do processo educativo e seus teóricos continuam a
nos dizer que se os profissionais da escola forem melhor preparados para o exercício
competente de sua função, tudo será superado” (ARROYO, 2003. p. 111). Discursos
como esses têm o poder de construção da realidade ao naturalizar certas relações sociais
e instituir uma ordem, um sentido imediato do mundo. “O que faz o poder das palavras
e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na
legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia [...]” (BOURDIEU, 2005a. p. 15).
Tais situações e condições de trabalho produzem desgaste e sofrimento.
Colocam os professores contra a parede exigindo deles esforço e determinação para
seguir no ofício. Ser professor nestas condições é ser mesmo um herói, que tudo
enfrenta sem perder as esperanças. O reconhecimento da dimensão negativa do ofício,
que é o reconhecimento das precárias condições objetivas de trabalho, se expressa numa
imagem negativa da profissão. Esta aparece como difícil e espinhosa. Expressa-se,
também, numa imagem do professor como um herói. Aqui, é preciso considerar
algumas questões. Esse herói, que suporta dignamente tamanhas dificuldades e encara
de cabeça erguida tamanhos sofrimentos, só o faz porque ainda acredita na sua
profissão, porque ama o que faz, porque se sente vocacionado, tem um dom natural para
124
esse trabalho, e porque se sente chamado a desempenhar uma missão importante que é
ajudar aos outros. É de se notar como a dimensão do amor/cuidado e a dimensão da
ajuda/doação se articulam simbolicamente com essa dimensão negativa da profissão,
garantindo ao professor um suporte significativo que lhe permita atribuir sentido ao
trabalho e um suporte físico e emocional que o ajude a lidar com os dilemas da
profissão. Além disso, ele precisa estar aberto para aprender, aprender com o ofício,
aprender com os outros. Ensinar sim, é preciso, é sua função. Mas, numa profissão
difícil como essa, o professor não pode se fechar para essa dimensão, sob pena de
fracassar em sua missão.
E apesar das dificuldades, os professores parecem não perder as esperanças. Para
a professora Orquídea, “[...] ser professor é sonhar com um futuro melhor”. A
professora Dália busca motivação em outro lugar. “Saber que estou formando futuros
cidadãos, isto me estimula a continuar na profissão”. Mecanismos de defesa para
suportar tamanhas dificuldades? A imagem do professor como um herói esperançoso
não deixa de ser uma construção representacional que serve de sistema defensivo contra
o sofrimento. Mas precisamos estar alertas. O alerta quem nos dá é Dejours (1992). “Se
a função primeira dos sintomas de defesa é aliviar o sofrimento, seu poder de ocultação
volta-se contra seus criadores. Pois, sem conhecer a forma e o conteúdo desse
sofrimento, é difícil lutar eficazmente contra ele” (DEJOURS, 1992. p. 136-137).
CAPÍTULO IV
CONSTRUINDO UM LUGAR NO MUNDO E NA PROFISSÃO:
REPRESENTAÇÃO SOCIAL E IDENTIDADE DOCENTE.
126
4.1. Introdução
Falar em identidade docente é falar da identidade de um grupo profissional
específico que existe “[...] ao mesmo tempo na realidade objetiva das regularidades e
das coações instituídas, e nas representações [...]” (BOURDIEU, 2004b. p. 94). Por se
constituir de um conjunto mais ou menos homogêneo no que diz respeito às suas
condições de existência e às suas maneiras de ser, de fazer e de pensar, ou seja, a um
estilo de vida mais ou menos homogêneo, os grupos se constituem por proximidades e
por diferenças ou distinções em relação a outros. Constrangidos a se posicionar no
interior de uma luta através da qual buscam ao mesmo tempo se afirmar e se distinguir,
luta que é mesmo condição para sua existência e manutenção (daí as diferentes
estratégias utilizadas pelos diferentes grupos), os grupos e os indivíduos a eles
pertencentes, investem “[...] todo o seu ser social, tudo o que define a idéia que fazem
de si próprios, o contrato primordial e tácito pelo qual eles se definem como ‘nós’ em
relação a ‘eles’, aos ‘outros’ e que se encontra na origem das exclusões (isso não é para
nós) e inclusões [...]” (BOURDIEU, 2007. p. 443). Falar em identidade é falar dessa
luta por distinção e reconhecimento social e, ao mesmo tempo, integração,
pertencimento a um grupo. A identidade é sempre uma identidade para os outros (a
afirmação do grupo e dos indivíduos do grupo perante os outros, um princípio de
diferenciação) e uma identidade para si mesmos (os elementos de integração que
garantem a unidade do grupo e que devem estar em todos e em cada um dos seus
membros).
Pertencer a um grupo é integrar-se a ele, compartilhar com os seus membros os
seus valores, as suas crenças e sentimentos e as suas maneiras de ser e de fazer.
Pertencer a um grupo é se reconhecer como membro dele, incorporar e assumir para si
mesmo e para os outros esses princípios, esse estilo de vida unívoco que orienta as
ações e as apreciações de seus membros. A identidade docente pressupõe esse
pertencimento social que é, ao mesmo tempo, o pertencimento a um grupo definido por
regularidade e coações instituídas, e por suas representações, pela maneira como o
grupo enxerga a si mesmo e aos outros e como outros grupos o enxergam. Ser professor,
dizer-se professor e ser reconhecido como tal, pressupõe pertencimento, ingresso em um
grupo instituído e integração em seu sistema representacional. “Estando ligada às
representações sociais, a identidade profissional de educadores associa-se ao sentimento
127
e à consciência de pertencimento a um grupo, do lugar em que cada um se coloca no
mundo e na profissão [...]” (GOMES, 2006. p. 257).
Neste capítulo, atentamos às questões identitárias dos professores do município
de Queimadas-PB. É aqui que pretendemos explorar esse complexo processo de
apropriação e de construção docente desses professores. Tomamos a identidade como
um construto complexo para o qual concorre uma multiplicidade de fatores que vão
desde a história pessoal à história de vida profissional do professor, sem negar a força
dos discursos sociais e institucionais que falam dos professores, do que eles são ou
deveriam ser e de suas funções. “A identidade não é um dado adquirido, não é uma
propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um
espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão” (NOVOA, 2000. p.
16). No primeiro momento procuraremos ver como essas identidades estão sendo
forjadas e construídas, tentando entender como essa construção se articula com as
representações sociais da docência construídas por esses professores. Ou, como as
representações sociais desempenham funções identitárias. Num segundo momento deste
capítulo, estaremos atentos aos impactos do Curso de Pedagogia, como formação
profissional, sobre a conformação do ser e do estar professor para esses profissionais e
sobre as suas identidades docentes.
Não pretendemos, nesse capítulo, apresentar e discutir as variações identitárias
desse grupo de professores. Nossa intenção é mostrar como essa identidade foi sendo
construída por esses professores e como a representação do ser professor e os conteúdos
dessa representação ajudaram a compor essa identidade.
4.2. Identidades docentes em construção
O ingresso na profissão e o seu pleno exercício aparecem como elementos
fundantes da identidade profissional docente. Como vimos no capítulo anterior, os
nossos professores entraram na profissão por motivos diferentes, embora haja um
princípio de unidade nessa “escolha”. As condições sociais de existência desses
professores, os condicionamentos sociais adquiridos ao longo de suas vidas e as
estratégias e investimentos individuais e familiares determinaram, à sua maneira, essas
tomadas de posição. Vocação e necessidade, desejo e acaso são elementos que se
128
misturam quando dessas escolhas e contribuem para forjar os professores que eles são
hoje. Em ambos os casos, trazem as marcas do lugar social em que estão. Aprenderam a
reconhecer na docência uma possibilidade de inserção no mercado de trabalho, de
garantir meio de vida num universo social restrito de opções e mesmo de realização
pessoal. Muito dessa construção identitária vem se construindo desde antes de seu
ingresso em sala de aula. Das experiências de vida acumularam elementos que iriam
compor essa identidade. Mas o processo identitário se torna mais intenso quando eles
assumem a sua primeira turma, quando entram em sala de aula pela primeira vez para
desempenhar o papel de professor. Em outras palavras, quando se sentem pertencentes a
esse grupo de profissionais. É aí que eles começam a firmar, de maneira mais concreta,
o seu lugar no mundo profissional. É aqui que começam a se definir, para si mesmos e
para os outros, como professores,
[...] pois é a partir do momento que se assume a condição de
educador, ou seja, que uma pessoa se coloca diante de outras, e estas,
reconhecendo-se como alunos, identificam a primeira como
professor, que se inicia efetivamente o processo de construção da
identidade docente (PEREIRA E FONSECA, 2001. p. 59).
A professora Jade expressa bem esse princípio da identidade. “Despertou mesmo
lá dentro a partir do momento que eu entrei na sala de aula, ai a partir daí eu fiquei
quase viciada em sala de aula”. Para a professora Amarílis parece ter sido mais difícil.
Ela não pensava em ser professora. Tudo aconteceu por “acaso”. O inicio de sua
construção identitária foi doloroso. “Foi a chance que surgiu, né, de trabalho e eu entrei,
aí fui me aperfeiçoando com o tempo. Mais no começo eu sofri, foi difícil que eu não
tinha noção de como começar”. O ingresso na profissão marca o início da identidade
docente. É a partir do ingresso e da experiência que as professoras vão incorporando os
elementos que as definem como professoras e o sentimento de pertença a um grupo de
iguais. O imaginar ser, cultivado ao longo da vida, ou o não querer ser, mas que se é por
falta de opção, devem ser negociados com o que se deve ser a partir de então. Neste
processo, entram em jogo elementos biográficos e relacionais, a capacidade de articular
a elaboração interna dos significados pessoais com a interiorização de modelos e valores
coletivos.
129
Ao se verem como professoras, ao se colocarem diante de uma experiência
inteiramente nova, diante dos seus alunos e dos olhares dos outros que as observam, as
professoras investem na construção de si mesmas como professoras, procuram construir
um jeito de ser para si num contexto de relações com os outros. É preciso ser igual para
fazer parte do grupo e se relacionar com ele e, ao mesmo tempo, diferente para não cair
no anonimato. “Eu fui tomando gosto [...] e de repente eu tava sendo uma verdadeira
professora. Não estava pegando mais conteúdo e já estava dando conteúdo e da minha
maneira”, diz a professora Jade, mostrando que começava a ganhar autonomia diante da
professora que lhe emprestou a turma e da sua maneira de ensinar. A professora
Amarílis, por sua vez, rapidamente se acostumou com a profissão. Segundo ela, “[...] eu
já tava como professora e não quis mais sair, me chamaram pra ir pro telefone e eu não
quis mais não. Continuei, eu já tava gostando da profissão, já tava acostumada com os
meninos, ai fiquei como professora mesmo”. Aqui podemos perceber um processo de
construção interna, subjetiva do ser docente. As professoras afirmam uma identidade
para elas mesmas, construída num contexto de relações sociais e, ao fazê-lo, se afirmam
também para os outros, forjam uma identidade social nesse jogo de negociação com
modelos coletivamente partilhados.
Segundo a professora Jade, no início ela agia segundo o que lhe havia sido
determinado, seguia os passos da professora que havia lhe “emprestado”
1
a turma, “[...]
e eu fazia do mesmo jeito. Botava tudo no quadro, num fazia nada. Só repassava o que
ela me passava”. Mas, com o tempo, as coisas foram mudando. O processo identitário
estava em curso e o ser e estar na profissão estavam se forjando. A professora começa a
libertar-se, criar sua própria maneira de ser e agir na profissão, a definir o seu lugar
diferenciando-se daquela que lhe abriu as portas do magistério.
E os alunos me adoraram. Quando eu fui sair eles reclamaram tanto pra
mim não sair porque aprendia mais do meu jeito do que a professora
antes. Porque ela era daquele jeito bem tradicional, eu era mais flexível.
Também tinha o problema da idade, que ela já tinha uma certa idade.
(Professora Jade)
1
A professora iniciou a sua carreira no magistério ao assumir a turma de uma professora amiga sua, mais
velha que ela, que havia se licenciado para fazer uma cirurgia.
130
É na relação com o outro que a identidade docente se constrói. Com outros
professores (mesmo aqueles que ficaram no passado), com os alunos, com os pais dos
alunos, com a instituição escolar. É nessa relação de alteridade e, portanto, no interior
de relações de poder, permeadas por conflitos, que os professores afirmam a sua
identidade. Ao iniciar a carreira profissional, as professoras iniciam um processo de
construção de maneiras de ser e de estar na profissão, de pertença, de relação e de
identificação com o grupo. Isso implica na assunção, “[...] pelo menos de forma parcial
do passado, do presente e do futuro do grupo, tal como eles se apresentam no código
simbólico comum, que fundamenta a relação entre seus membros” (SCHAFFEL, 2000.
p.104). Imagens, significados, representações, maneiras de se conduzir na profissão
constituem esse código. Procuram, enfim, firmar uma identidade profissional no
contexto de uma identidade coletiva, amparadas numa imagem de professor comum ao
seu grupo profissional. Nessa trama, procuram se definir como e procuram mostrar aos
outros que também o são.
A identidade docente vem se moldando mesmo antes de o professor ingressar no
magistério. Imagens do ser professor e da profissão já habitam o universo simbólico dos
docentes. As professoras já passaram pelos bancos da escola, já conviveram com
professoras, suas antigas mestras, repararam nas suas maneiras de ser e agir e essas
experiências deixam marcas ao longo do tempo. Quantas dessas maneiras de ser não
foram reelaboradas e incorporadas, seja por afirmação seja por negação, ao ser professor
desses docentes? Cada professor que inicia sua carreira, diz Silva (2004. p. 103), “[...]
traz consigo toda uma árvore genealógica composta por todos aqueles que, em algum
momento de sua vida, o educaram”. De suas experiências de vida social (na família, na
escola...), dos habitus incorporados nesses espaços e de outros referentes culturais, os
professores incorporaram elementos de uma cultura do ser e do estar professor que
alimenta as suas ações e as suas representações em relação à profissão. Assim,
transformados e transpostos, os elementos dessa cultura passam a integrar os esquemas
de percepção e ação que orientam os professores em seu cotidiano de trabalho, ajudando
a compor um habitus professoral. A identidade docente deve muito a esse habitus. A
sua construção pressupõe a incorporação e a adesão a esses valores coletivos, a essas
maneiras de ser e de fazer próprias do grupo docente. Ao estabelecer essa negociação
entre o passado e o presente, entre processos de socialização antigos e atuais, os
professores vão aderindo a esses princípios e valores que balizam a profissão e
sustentam o seu processo identitário. “A construção de identidades passa sempre por um
131
processo complexo graças ao qual cada um se apropria do sentido de sua história
pessoal e profissional (DIAMOND, citado por NÓVOA, 2000. p. 16).
Essa adesão de que nos fala Nóvoa, diz respeito tanto ao ser professor, à
representação social construída para dar sentido e significado à profissão, como ao estar
professor, à maneira de se conduzir e se comportar, condutas que são orientadas
significativamente por essa representação. Ser professor implica partilhar com o grupo
os sentidos instituintes da profissão, compreender-se igual na comunhão desses
significados. Assim, assumir uma tal identidade é reconhecer e assumir os significados
inerentes a essa profissão, assumir as dimensões que são inerentes a esse ser. Amor e
cuidado, ajuda e doação, sofrimento e esperança, são dimensões significativas que
nomeiam a profissão em seus atributos e qualidades e garantem aos membros do grupo
um sentimento de pertença, de identidade pela comunhão de tais sentimentos. Ao
assumir que o amor, que o cuidado e a doação são elementos inerentes ao ser professor
e, portanto, ao grupo profissional, os professores se fortalecem enquanto grupo para si
mesmo e para os outros (identidade e diferença) e reforçam os princípios dessa
identidade.
A representação social construída pelos nossos professores para nomear a sua
profissão tem um forte peso não só sobre a maneira como os professores a
compreendem, mas também sobre a maneira como eles agem em seu interior. Enquanto
construções simbólicas, as representações sociais, além de nomear significativamente a
profissão, aproximando os agentes que comungam desses significados, servem também
como referências para a ação; ajudam a conformar saberes e práticas docentes que,
resguardadas a autonomia das condutas individuais, são legitimadas pelo coletivo dos
professores, garantindo ao grupo uma identidade própria. As dimensões
representacionais da ajuda e da doação e do ensinar e do aprender, por exemplo, ao
fundarem uma imagem do professor como aquele que ajuda ao mesmo tempo em que
ensina e aprende, servem de matriz para determinadas condutas desse grupo
profissional. Fornecem elementos para que os professores possam negociar saberes e
instituir as suas práticas individuais e coletivas.
Assim, em se tratando do fazer docente, o nosso grupo de professores valoriza,
por um lado, os saberes da experiência, aqueles adquiridos ao longo da vida e da
profissão e, por outro, a sua dimensão missionária em detrimento da dimensão técnico-
profissional de seu ofício. Reconhecem, é verdade, a importância dos saberes de
formação. Contudo, estes parecem ser secundarizados ao passarem pelo crivo da
132
experiência. Aparece mesmo como um saber auxiliar, reelaborado e incorporado a uma
maneira de fazer já consolidada. Essa valorização da experiência aparece
consubstanciada na idéia de que o professor é mais um orientador, um amigo que cuida
e orienta para a vida, do que um profissional de ensino.
O ser e o fazer docente para os nossos professores está assentado, portanto, em
alguns pressupostos que são comuns à maioria dos membros do grupo: 1) o trabalho
feito por amor à profissão. Aqui, as idéias de dom e vocação (uma lógica da
predestinação) estão presentes. 2) a educação voltada para a vida, para educar o homem
e o cidadão mais do que para a formação técnica e científica do aluno. A idéia da
docência como missão e como sacerdócio aparece mais nitidamente. 3) o trabalho como
doação aos outros. 4) a prática de ouvir o aluno, ser seu amigo e companheiro e
considerar as suas histórias de vida e seus saberes, aparece como estratégia de ensino e
elemento intrínseco do ser professor 5) a superação das dificuldades da profissão pelo
esforço criativo e pela abnegação conformada. O ser e o estar professor aparece como
produto de uma articulação entre estes cinco elementos. Eles parecem dar ao grupo de
professores certa unidade, conformando maneiras de ser, de estar e de agir na profissão,
ao mesmo tempo em que orientam um fazer coletivo que foi legitimado pelo grupo de
professores. Fornece ao grupo princípios de unidade de ação através dos quais se
reconhecem coletivamente como profissionais e com os quais se apresentam aos
demais, aos alunos, aos pais e a toda comunidade escolar. Um saber e um saber fazer
próprio do grupo, legitimados coletivamente para si mesmos e para os outros. Nesse
movimento há tanto identidades individuais como identidades coletivas em jogo. São
maneiras de fazer que resguardam autonomia individual num contexto de maneiras
coletivas de fazer.
Os professores precisam construir e afirmar, para si mesmos e para os outros,
maneiras de estar, de se comportar e de agir na profissão. Como diria Bourdieu (2004b),
os grupos, sejam eles quais forem, são feitos por um trabalho constante de manutenção,
trabalho este que requer uma luta para unificar, dividir e impor essa ou aquela maneira
de recortar e definir o espaço social. Ao definir e afirmar uma maneira de ser e de agir,
uma “vontade” feita de ações (e de representações), os professores se afirmam como
agentes coletivos no espaço social e firmam sua identidade profissional.
Os processos formativos são, também, responsáveis pela configuração identitária
dos professores. O Curso de Pedagogia em Serviço, cursado em tempo recente por esses
professores, ajudou a conformar essas identidades ao propor maneiras diferentes de se
133
compreender e significar a profissão e a agir em seu interior. Como elemento novo,
precisou ser considerado pelos professores, foi mesmo incorporado aos seus esquemas
de percepção e ação anteriores e aí foi acomodado, não sem sofrer modificações. No
tópico seguinte pretendemos discutir os impactos desse curso de formação sobre as
representações sociais da docência para os nossos professores e sobre as suas
identidades docentes. Partimos do pressuposto de que os novos saberes de formação
foram ancorados pelo grupo de professores. Acomodaram-no não sem antes quebrá-lo,
fracioná-lo. Incorporaram os novos saberes de maneira seletiva, sem por em risco as
representações sociais do grupo e a sua identidade.
4.3. Representação social, identidade docente e resistência.
Os professores cursistas do Curso de Pedagogia em Serviço oferecido no
município de Queimadas-PB, saudaram a oportunidade que tiveram. As suas falas
engrandecem a oportunidade de poder se qualificar para o exercício da profissão. No
entanto, entre o que o Curso lhes ofereceu e as maneiras como eles assimilaram esses
novos saberes de formação e passaram a lidar com eles há uma enorme distância.
Podemos dizer que os novos saberes foram seletivamente ancorados em seus esquemas
de percepção anteriores. Que, assim ancorados, sofreram um processo de
fracionamento, de reelaboração e de reconstrução através dos quais se incorporaram aos
saberes já existentes. Através desse processo de acomodação ativa, os professores
puderam lidar com os novos elementos trazidos pelo Curso sem romper nem quebrar de
forma drástica a maneira como se compreendem como professores, as suas
representações, nem ameaçar as suas identidades profissionais ou mesmo as suas
maneiras de agir. A esse processo de ancoragem, que implica em todo um processo de
resistência ao novo, corresponde um processo de objetivação, aquele que foi possível
negociar no trânsito entre a formação e as suas experiências de vida e de trabalho. Isso
implica dizer que o programa produziu impactos nas maneiras de ser e de estar desses
professores. Maneiras de pensar e agir na profissão foram postas em xeque,
contribuíndo para sinalizar aos professores a necessidade de mudanças de suas práticas
e de suas concepções.
134
Contudo, tais modificações se produziram dentro das possibilidades reais de
incorporação dos conteúdos formativos pelos professores. Isso quer dizer que os novos
saberes foram incorporados e reelaborados à maneira do grupo, permitindo que o novo
seja acomodado (e que produza mesmo mudanças), sem quebrar ou romper de maneira
radical as suas maneiras de pensar e agir. Neste caso, a representação social da docência
desempenha uma função de resistência. Ela permite que novos saberes sejam
incorporados aos já existentes, modificando-os, sem correr o risco de romper com a
maneira como os professores se compreendem e compreendem a sua profissão.
As professoras que participaram de nossas entrevistas são unânimes em afirmar
que uma das maiores contribuições do Curso de Pedagogia para a sua vida profissional
foi permitir que elas passassem a ter uma maior compreensão dos seus alunos, isto é,
passassem a considerar melhor as suas condições de vida, as suas experiência e a sua
voz. Considerar o aluno e suas experiências parece ter sido mesmo a grande influência
do Curso. Essa consideração, porém, reflete de diferentes maneiras um processo de
acomodação e reelaboração dos saberes propostos pelo Curso, especialmente da relação
professor-aluno no processo de ensino e aprendizagem. Nos seus discursos, aparecem
nitidamente elementos de mudança nessa relação. As professoras passam, realmente, a
ver os seus alunos e a sua relação com eles sob uma nova ótica, mas essa nova maneira
de compreender o aluno reflete bem o que estamos chamando aqui de acomodação
ativa.
Compreender e ouvir o aluno significa que os professores aprenderam a ter uma
relação mais horizontal com eles. Por um lado, reconhecem que não são os donos do
saber. Por outro, que a relação com os alunos deve ser permeada pelo diálogo, pela
escuta, pelo respeito aos conhecimentos dos outros. Os alunos passam a ser
considerados como atores do processo de ensino-aprendizagem. Depois do curso, diz a
professora Jade, nós começamos “[...] a aceitar a discussão dos alunos, a gente começa a
aceitar o que o aluno diz, que não tem nada errado, a gente vai buscar a verdade e tá
certo”. A professora Amarílis, por sua vez, reconhece que se tornou mais flexível no
trato com os alunos. “Eu achava que se o menino estava agressivo a gente tinha que ser
mais forte, pra mostrar que a gente era mais poderosa e era quem mandava. E hoje não”.
Segundo ela, o Curso de Pedagogia foi fundamental “[...] porque facilitou muito a
maneira de trabalhar e a convivência mesmo com os alunos”. Cristal admite que o curso
ajudou muito “[...] principalmente... ser mais paciente com os alunos, ouvi-lo mais. É...
assim deixar o aluno mais... mais a vontade pra ele manifestar suas idéias”. O aluno
135
emerge como ator que sabe e que pensa e o professor aparece como mediador paciente
que escuta e orienta.
Essa “descoberta” do aluno proporcionada pelo Curso foi incorporada ao ser e
ao fazer docente por um processo de negociação com os esquemas de percepção
anteriores, a representação social da docência circulantes no grupo e com as diferentes
maneiras de ação desses docentes em seus locais de trabalho. Essa negociação aponta
para dois caminhos. Em primeiro lugar, ela aparece como um indicativo de mudança
nas maneiras de pensar a profissão (o ser professor) e nas práticas profissionais desses
professores. Em segundo lugar, ela sugere que essa mudança tem se dado de maneira
gradual, no limite do possível, sem rompimentos bruscos com maneiras já consolidadas
de se perceber e de agir. Assim, por esse movimento, o aluno aparece em cena como
ator que tem voz. Contudo, considerar esse aluno em sua voz e experiência aparece mais
como uma dimensão do amor, do cuidado e da doação do professor que ajuda do que do
professor que ensina. Os professores passaram a ver os seus alunos e suas relações com
eles sob uma nova ótica e modificaram as suas práticas. Mas não romperam com a
imagem do professor como profissional de amor, de ajuda e de doação, mais do que um
profissional do ensino sistematizado. A dimensão humana e pessoal ainda se sobressai à
dimensão profissional do trabalho do professor. Compreender e valorizar o aluno
aparece como elemento necessário ao trabalho humanitário do professor que ama o que
faz, que cuida, que ajuda e que aprende.
A passagem pelo Curso de Pedagogia produziu mudanças significativas nas
maneiras de pensar e de agir desses professores. No entanto, não romperam em
definitivo com o seu ser e o seu estar professor. Ao contrário, negociaram as inovações
e promoveram mudanças sem quebrar as suas maneiras de ser e de estar. Não romperam
com as representações sociais da docência que alimentam as suas práticas e concepções,
mas acomodaram a novidade, modificando-a sem, contudo, quebrá-la. Garantindo certa
estabilidade representacional, acabam por garantir, também, unidade identitária.
A professora Margarida afirma que se tornou uma facilitadora da aprendizagem
dos alunos. Mas não só em termos de conteúdos formais. Tornou-se uma orientadora
para a vida, principalmente depois que aprendeu a considerar a vida do aluno.
Então eu sou responsável em resgatar qualquer dúvida que aquele
aluno tiver, não só em relação aos conteúdos mais na vida dele como
136
um todo, na família. Então eu não tô ali para servir a ele só naquelas
quatro horas que eu estou com ele, mais num outro momento. Se eu
puder ajudar ele, seja com orientação, com uma palavra de carinho eu
estou à disposição dele.
Margarida acredita que depois do curso modificou a sua maneira de lidar com os
alunos. Ela diz que se sente mais preparada, que tem “[...] mais paciência, dá mais
atenção, procura noutros momentos fora da sala de aula ver como é que tá a vida
pessoal do aluno. Tudo isso a gente vai tentando ajudar eles”. Embora a professora
reconheça que mudou a sua maneira de transmitir os conteúdos (mais qualidade que
quantidade) e desenvolveu novas estratégias de ensino, a descoberta do aluno e de sua
vida permitiu que ela pudesse ensinar melhor e, principalmente, compreender e ajudar o
seu aluno. A professora Begônia, por sua vez, admite que o Curso de pedagogia mudou
muito a sua maneira de ver o aluno. Ela compreendeu que “[...] o professor deve ser
amigo, deve ser companheiro. Talvez assim, antes, eu achava que a gente tinha que ter
aquele, aquela assim separada, aluno e professor. Não, e hoje eu vejo que não. Que os
dois juntos, que aluno e professor juntos rende mais”.
Compreender e ouvir os alunos para ajudá-los. Essa cumplicidade aparece ora
como uma missão humanitária, que implica em preparação para a vida (dialogar com o
aluno, ajudar sua família, etc.), ora como missão social, expressa na preparação de
cidadãos críticos e conscientes. Dar voz aos alunos parece ser um caminho viável para
atingir essa meta. A professora Jade afirma que depois do Curso, que “[...] fiz o curso eu
sei que a gente tem que buscar um objetivo em cada criança”. Segundo ela, é preciso
“[...] trabalhar com os alunos, ter objetivos [...] trabalhar com o aluno pra tornar o aluno
crítico, um cidadão na sociedade”.
Podemos ver que práticas e significados estão em processo de mudança; que
velhas práticas e significados estão em processo de ressignificação. Esse processo é
lento, é negociado lentamente com os esquemas de percepção e ação a muito
interiorizados. No entanto, a gradativa ressignificação dessas práticas podem indicar que
elementos do habitus professoral vêm sofrendo mudanças à medida em que certos
procedimentos começam a ser substituídos por outros. Podemos notar que o Curso de
Pedagogia alertou os professores para essa necessidade de mudança, que ela está mesmo
em andamento sem que isso implique em ruptura definitiva com suas maneiras de ser e
de agir.
137
A seletividade desse processo de negociação fica evidente quando se trata da
relação dos professores com os pais dos alunos. A disposição para ouvir, considerar e
dar voz ao aluno, não foi incorporada pelos professores quando do trato desses
profissionais com os pais desses alunos. Entre estes dois atores da cena educacional
permanece, ainda, uma grande distância e um grande silêncio A disposição para ouvir o
aluno não é a mesma para com os seus pais. Em relação a estes, os professores parecem
estar numa posição de antagonismo, de conflito. Em relação aos pais não vale a escuta.
Eles sabem da importância dos pais para a educação de seus filhos, mais entre ambos
ainda impera o conflito e o distanciamento. Ao que parece, a relação entre eles é
bastante vertical. Os professores se julgam no dever de dialogar com eles, de cobrar dos
pais e de ajudá-los na educação dos filhos quando estes falham, se sentem impotentes
ou negligenciam. Diferentemente da maneira como passaram a considerar os alunos, os
pais não são vistos, ainda, como parceiros do projeto de educar as crianças, e poucas
ações foram desenvolvidas no sentido de estreitar esses laços
2
. Assim, os alunos são
compreendidos como sujeitos (embora sujeitos de ajuda) e os pais continuam a ser
coadjuvantes da cena educativa. Este fato mostra como os professores incorporaram
seletivamente os saberes de formação propostos pelo Curso de pedagogia. Incorporam o
aluno como ator, que ajuda o educador a ajudar, mas mantêm em relação aos seus pais
uma distância caritativa e silenciosa. Os alunos são ouvidos, mas os pais, “Os pais
coitados, são pessoas que a gente não pode contar [...]. São pessoas analfabetas,
agricultores, eles não têm nenhuma instrução. Eles não têm noção. Para eles o
importante é mandar o filho pra escola” (Margarida).
Uma outra mudança significativa proporcionada pela formação diz respeito à
maneira como os professores passam a lidar com os seus alunos em sala de aula. É bem
verdade que a paciência, o carinho e o cuidado aparecem como a base dessa relação. É a
matriz significativa que alimenta essa relação. Mas ela aponta, também, para um outro
caminho. Nessa nova situação, o aluno passa a ser considerado como um ser de
conhecimento. Não apenas o conhecimento experiencial de vida, mas um ser que é
2
As ações no sentido de trazer os pais para se integrar na educação dos filhos continuam restritas aos
convites para participar das reuniões da escola (das quais os pais pouco participam, segundo os
professores, porque não querem receber “reclamações”), e às tentativas de diálogo. Sobre a opinião e as
imagens construídas por esses professores a respeito dos pais de seus alunos consultar o trabalho de
CAMPOS, Jameson Ramos; ANDRADE, Erika dos Reis G. Meus alunos e seus pais: o professor e os
dilemas da profissão. IN: XVIII Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste – Anais.
Maceió;AL, 2007.
138
capaz de produzir conhecimento. Essa descoberta exige que o professor modifique a sua
maneira de agir. É preciso criar condições para que o aluno seja, também, sujeito de sua
aprendizagem. Cristal compreendeu bem essa lição. Ela aprendeu a “[...] não dá nada
pronto pra o aluno, deixar ele descobrir. Por que... eu tinha aquele hábito assim de
sempre, por exemplo, sempre elaborar as perguntas pra o aluno. Quer dizer, e com o
estudo, a gente vê que o aluno ele é capaz também de [...] descobrir as coisas”. A
professora Clívia afirma que o “Pedagogia em Serviço” ajudou muito a trabalhar em
sala de aula de acordo com a realidade do aluno, “[...] orientando os mesmos a refletir
criticamente, ou seja, a questionar, indagar sobre os problemas que os cercam” (grifos
meus). Já a professora Rubelita diz que o educador “[...] deve explorar a criatividade de
cada aluno, buscando interação de aprendizagem significativa para que os alunos
aprendam a ser um bom cidadão”. A referência ainda é o amor e o cuidado, a ajuda e a
doação, elementos inseparáveis do bom professor que alimentam as suas representações.
Mas um novo elemento já aparece nesses discursos: o aluno como sujeito que pensa e
que sabe.
Um outro indicativo dessa mudança diz respeito aos aspectos didáticos do
trabalho desses professores. A maneira de apresentar e de trabalhar os conteúdos de
formação com a turma mudou depois de concluído o curso. “Eu acompanhava o livro,
que às vezes [...] o livro não tem nada a ver com a nossa realidade, com a realidade dos
nossos alunos e a gente trabalhava só em cima do livro mesmo, a gente não buscava
novos horizontes, outras fontes pra nos ajudar em matéria de criação de textos, esse tipo
de coisa” (Amarílis). Para a professora, o Curso de Pedagogia lhe abriu os horizontes.
Mostrou que as possibilidades de se trabalhar o conteúdo em sala de aula são inúmeras.
“Antes eu não pensava dessa forma não. E hoje eu vejo que é se a gente for em cima só
desse livro a gente não tem muito a oferecer para os nossos alunos não”, afirma a
professora. Margarida aprendeu com o Curso que não adianta pensar exclusivamente na
quantidade de conteúdo a ser transmitida, mas na sua qualidade. Antes do Curso ela não
pensava assim, “[...] porque antigamente não, a gente pegava os conteúdos que vinha da
secretaria... O medo que tinha era chegar o final do ano e não ter cumprido aqueles
conteúdos”. Hoje ela percebe que precisa investir mais na qualidade do seu trabalho do
que na quantidade e na rapidez da transmissão do conteúdo. Segundo ela, “[...] de que
adianta eu pegar um conteúdo de um livro do pé a ponta, chegar ao final e o menino
num ter assimilado quase nada? Num adianta nada”. A atitude da professora demonstra,
139
ainda, que ela adquiriu autonomia na realização com o seu trabalho, que ela organiza o
seu tempo e o seu ritmo nos interstícios do tempo e do ritmo definido pela instituição
escolar.
Este novo olhar sobre a sua prática cotidiana aparece expresso nas diferentes
estratégias usadas pelas professoras no exercício da tarefa de ensinar. O uso de materiais
didáticos alternativos como jornais e revistas, a confecção de materiais de sucata, a
música, o uso de estórias e a tomada da realidade do aluno e do seu entorno social como
referências para introduzir novos conteúdos e fixá-los, a maneira de distribuir os alunos
e de ocupar os espaços da sala de aula (formando um círculo e abolindo as filas), o
trabalho em grupo e/ou em duplas, são algumas dessas estratégias utilizadas. A
professora Amarílis diz que “[...] é mais vantajoso a gente trabalhar com isso, um
textinho pequeno, com um rótulo com essas coisas do que com um texto lá do livro que
não tem nada a ver com a realidade deles”. Magnólia ressalta um outro aspecto dessa
mudança. “Hoje”, diz ela, “eu [...] trabalho em grupo com as crianças que raramente eu
trabalhava. A forma até de mudar as carteiras, que a gente ensinava de fileira né. Aí
depois do Curso de Pedagogia veio a forma nova também [...]”. De uma maneira ou de
outra, percebe-se que os professores passaram a reestruturar o seu modo de conduzir o
ato educativo. Isto se expressa não só nas suas práticas como também nas suas maneiras
de pensar. Margarida expressa bem esse saber ser e esse saber fazer. Ela nos diz: “[...]
eu ensinei uma coisa de um jeito, se o aluno não aprendeu então eu vou ter que buscar
nova estratégia, ver onde foi que eu falhei, ver se a falha é do aluno, pra poder melhorar
em aprendizagem”. Esta fala nos faz lembrar Nóvoa: “As situações que os professores
são obrigados a enfrentar (e a resolver) apresentam características únicas, exigindo
portanto respostas únicas: o profissional competente possui capacidades de
autodesenvolvimento reflexivo” (NÓVOA, 1997. p. 27).
O Curso de Pedagogia produziu, também, um impacto sobre a necessidade de
atualização e de aprendizagem constante da profissão por parte dos professores. O
Curso parece ter reforçado a compreensão de que o professor nunca está pronto (idéia já
circulante no interior do grupo) e ter mesmo aguçado essa necessidade de aprender.
Parece ter mesmo indicado aos professores que o trabalho docente requer aprendizado e
atualização constante, exigência de uma profissão sempre em mudança e de um mundo
que não para. Depois do Curso, a professora Margarida despertou para essa realidade:
140
A gente agora sabe que a gente tem que estudar mais, pesquisar mais,
se informar mais e ter certeza mesmo daquilo que agente tá falando
porque você sabe que a cada dia as coisas vão se modificando. Uma
coisa que é certa hoje, amanhã não quer dizer que ela continua do
mesmo jeito. Ela pode mudar. Então nós temos que estar buscando
novas informações, estudando se for possível, pra que num tá parada
no tempo.
Tomar consciência que não está pronto, que o conhecimento que se possui é
pouco para a difícil tarefa de ensinar. Os professores reconhecem e valorizam os saberes
de sua experiência, mas reconhecem que a estes saberes podem se somar outros, tão
importantes e necessários como aqueles, porque “[...] antigamente a gente não tinha o
conhecimento científico que a gente adquiriu depois desse curso” (Margarida). A
valorização do conhecimento formal, sistematizado e a compreensão de que este saber
pode facilitar o seu trabalho e ajudá-los a atingir os seus objetivos de ensino foi uma
importante aquisição desses professores. Poder se ver antes e depois do contato com
estes novos saberes e reconhecer-se aberto a novos conhecimentos e descobertas,
também. A professora Amarílis assim se descobriu. Para ela, só “[...] depois do curso é
que eu vi que a gente tá sempre aprendendo, que a gente tem que modificar sempre a
nossa maneira de ser e de agir pra gente conquistar o nosso objetivo, porque da forma
que eu pensava antigamente não dava para chegar não [...]”.
Precisamos considerar, ainda, dois novos elementos que passaram a permear o
universo simbólico dos professores quando da conclusão do Curso de Pedagogia. O
primeiro diz respeito à consideração de que o Curso não mudou apenas a maneira de
trabalhar dos professores, mas também a sua vida pessoal e familiar. O segundo nos
remete de volta à questão da identidade do grupo de professores. Para eles, a formação
em nível superior garantiu maior visibilidade profissional e maior prestígio social.
Para além das mudanças na maneira de trabalhar no cotidiano de sala de aula, o
Curso de Pedagogia contribuiu, segundo os professores, para modificar a sua vida
familiar e pessoal. Esta mudança se deve ao fato de o Curso ter possibilitado aos
professores se compreenderem melhor enquanto seres relacionais e ativado novos
patamares de relações em seus espaços de vida social. Os ingredientes dessa mudança
não estão tão distantes assim daqueles incorporados à sua vida profissional. Depois do
curso os professores admitem ter se tornado mais pacientes, passaram a considerar as
opiniões dos outros e desenvolveram a aptidão para ouvir. Estas disposições, que foram
141
incorporadas à vida profissional, especialmente em relação ao aluno, passaram a servir
de referente à própria vida. Ouvir e entender melhor os filhos, compreender as atitudes
dos familiares, ser mais paciente no ambiente familiar, foram ganhos “extras” que o
Curso pode proporcionar. Além do mais, a influência das teorias científicas apreendidas
durante o Curso serviram de lastro para essa mudança comportamental. A professora
Jade, por exemplo, afirma que mudou muito depois do Curso,
Mudei como professora e como ser mãe. Porque eu aprendi ser mãe
com mais entendimento, mais paciência. Estudei aqueles livros de 0 a
6 anos de psicologia, Piaget, Paulo Freire, essas coisas. Foram
mudando a minha vida, como mulher, como profissional, como mãe,
foi tudo.
O alcance do Curso parece ter extrapolado os objetivos de formação
profissional, passando a ter uma forte influência sobre suas vidas. “Foi muito
importante para mim”, diz a professora Margarida. “Eu num digo pra você que só foi
importante para a vida profissional, mais minha vida como um todo. Foi como se a
gente tivesse uma nova visão, tanto pra ensinar como pra vida”. Isso nos faz pensar,
como Nóvoa, na necessidade de (re)encontrar, na pessoa do professor, “[...] espaços de
interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores
apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro de suas
histórias de vida” (NÓVOA, 1997. p.25).
Não bastasse essa mudança, O Curso possibilitou aos professores serem mais
bem reconhecidos e respeitados no ambiente familiar. Uma espécie de orgulho envolveu
esses professores, um orgulho próprio, um sentimento de vitória e de dever cumprido.
Passaram a sentir o orgulho de suas famílias, daqueles que, junto com eles, investiram
esforços e sacrifícios. Este orgulho, este sentimento de dever cumprido, essa sensação
de ter galgado espaços na vida, de vitória e de conquista, aliado à sensação de ser
reconhecido como profissional qualificado, com curso superior, contribuiu para mudar a
sua vida pessoal. A professora Jade expressa essa felicidade pelas palavras ouvidas de
sua filha. O sonho dela era ter a mãe formada, com curso superior.
142
E realmente ela diz hoje em dia: a minha mãe é formada em
pedagogia. Ela diz mesmo, fala com a boca cheia: não minha mãe já
é formada, ela faz, já terminou pedagogia. E isso me deixa orgulhosa
também, ter uma filha que se orgulha da gente, a gente fica muito
mais feliz.
Jade deu muito orgulho ao seu pai desde que resolveu fazer o vestibular para
pedagogia. “Quando eu passei no vestibular foi uma festa pra ele (risos), uma senhora
da minha idade assim, mas que pra ele foi super feliz, ter a filha, passar no vestibular e
fazer um curso superior”. Novamente encontramos os processos de formação fazendo
sentido na vida dos professores, profundamente imbricados com ela.
O Curso de Pedagogia foi também importante por lhes ter permitido
reconhecimento profissional e maior visibilidade social. E isso em muito contribuiu
para reforçar as suas identidades profissionais. Reforçou a identidade do grupo ao
possibilitar maior visibilidade social e garantir o domínio de saberes e práticas
profissionais de valor legítimo, reforçando publicamente a sua função social. Por outro
lado, reforçou a identidade profissional de cada um dos professores fornecendo a eles
novos referenciais de compreensão do seu ser e do seu fazer profissional. “Existir
socialmente é, essencialmente, ser percebido, isto é, fazer com que sejam reconhecidas
tão positivamente quanto possível as suas propriedades distintivas” (BONNEWITZ,
2005. p.103). Segundo o autor, é daí que surge a necessidade de transformar uma
propriedade objetiva (um saber, maneiras de fazer, de agir e de se comportar) em capital
simbólico. É preciso crer nessas propriedades distintivas e fazer com que se creia em
seus méritos. Essa foi a lógica do pensamento de Jade. Para ela, o Curso foi muito
importante “[...] porque a gente se sente mais valorizado, entende, a gente se sente mais
aceito no mercado depois do curso. Porque você diz, você tem um curso superior?
Tenho. Você já é visto de outra maneira, não é como antigamente”. Magnólia também
compreende assim. Para ela, “[...] o professor era muito discriminado quando ele era
leigo. Ai veio o pedagógico e o Curso de Pedagogia, vem o curso superior... ele...Já, já
da um maior prestígio ao professor. O professor já se sente bem mais...”. Na lógica
simbólica da distinção, diz Bourdieu (2005a), existir é ser diferente e ser também
reconhecido legitimamente como diferente. A existência real da identidade, continua
ele, “[...] supõe a possibilidade real, juridicamente e politicamente garantida, de afirmar
oficialmente a diferença [...]” (BOURDIEU, 2005a. p. 129).
143
Estas mudanças envolvendo práticas docentes e significados, as possíveis de
serem negociadas pelos professores em seus contextos de vida e de trabalho, não
chegaram a romper ou modificar de maneira substancial as suas representações sociais
do ser professor. Antes, foram negociadas com elas, mantendo, porém, a sua essência. A
docência continua sendo profissão de amor e de cuidado, de ajuda e de doação. O
professor continua sendo aquele que ensina e aprende, profissional que se sacrifica na
sua árdua missão humanitária e social. A estes significados somaram-se outros, e novas
práticas foram ativadas, adquiridas no processo de formação recente. Estes novos
elementos incorporados, antes de mudar a configuração representacional desses
professores, se aderiram a ela. Mudaram-se práticas, novos significados entraram em
jogo, mas a configuração representacional e identitária do grupo foi preservada. Os
novos significados e as novas práticas, ao serem incorporados e reelaborados,
forneceram aos professores subsídios para, num novo patamar, com uma melhor
qualidade, continuar a exercer uma profissão cuja essência continua pautada no amor e
no cuidado, na ajuda e na doação incondicional. O novo foi incorporado, acomodado
ativamente nos esquemas de percepção e de ação do grupo, preservando, no entanto, a
essência de suas maneiras de compreender e de agir na profissão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ó minha alma, não aspires à vida imortal,
Mas esgota o campo do possível.
PÍNDARO
145
Este trabalho teve por objetivo acessar a representação social da docência
construída pelos professores da educação infantil e das séries iniciais do ensino
fundamental da cidade de Queimadas-PB. Nossa intenção foi a de compreender que
representação social alimenta o ser professor para esses profissionais, identificar as
dimensões e os elementos dessa representação e sua função identitária. Ao término
desse trabalho, pudemos constatar que a representação do ser professor construída por
esse grupo de professores aparece como uma entidade multidimensional, composta por
distintas dimensões que se articulam e se complementam para dar sentido à profissão e à
prática cotidiana desses profissionais. Procuramos sistematizar essas dimensões e
mostrar de que elementos elas se compõem, como se dá a articulação entre elas e inferir
sobre as matrizes (religiosa, familiar, profissional, cultural) que alimentam essa
representação. Agora, pretendemos tecer algumas considerações finais, porém não
conclusivas, sobre os resultados que apresentamos nesse trabalho. Nossa intenção é
pensar os limites e os avanços dessa pesquisa, pontuar aspectos do trabalho que
consideramos relevantes e deixar caminhos abertos para novas investigações.
O ingresso no magistério, tornar-se professor para esses professores, não aparece
como uma decisão livre e racional desses agentes nem como uma determinação absoluta
dos espaços sociais nos quais estão imersos. Ela é produto de um habitus (religioso,
familiar, provinciano) que permite compreender e incorporar as regras do jogo da vida
social e produzir as estratégias e os investimentos necessários para se integrar nesse
jogo com relativo sucesso. Vocação e acaso e necessidade são motivos plausíveis para
essa escolha ajustada e coerente com o jogo da vida social.
Ser professor, como dissemos, comporta dimensões distintas. Elas se articulam
para dar sentido e significado à docência, para compor uma representação do ser
professor. A dimensão do amor e do cuidado e a dimensão da ajuda e da doação se
acham profundamente interligadas, ao ponto de ser difícil pensá-las em separado. Lira
(2007), por exemplo, trabalha estas duas dimensões como partes integrantes de uma
mesma faceta do ser professor, a faceta do desvelo. Contudo, o amor e o cuidado
aparecem como a dimensão mais ontológica do ser professor. As imagens e os
significados dessa dimensão falam do professor enquanto ser professor, de um sentido
global desse ser, de uma natureza comum que é inerente a todos os professores e a cada
um deles e se expressa nas suas ações e comportamentos (dedicação, ajuda, doação).
Constituindo-se como uma ontologia do ser professor, essa dimensão aparece como
princípio demarcador e balizador da identidade docente, uma vez que garante para cada
146
um e para todos do grupo princípios de reconhecimento e interconhecimento. Já a
dimensão da ajuda e da doação expressa o sentido mais ético-operacional dessa
ontologia. Enquanto a primeira diz da essência do ser professor e de sua natureza, ou
seja, estabelece um significado ontológico, cria uma imagem e permite a comunicação
entre os indivíduos que partilham deste construto simbólico, garantindo certa unidade
significativa, a segunda está mais próxima ao estar professor enquanto expressão dessa
natureza e, portanto, mobiliza os indivíduos, configura formas de ação, de
comportamentos e de condutas. Queremos dizer que a ajuda e a doação são construtos
simbólicos operacionais, mobilizadores da ação e do comportamento, que estão
enraizados numa dimensão ontológica da profissão, bem mais profunda, que expressa a
essência mesma do ser professor para essas professoras.
A dimensão do ensinar e do aprender está articulada, também, com essa essência
do ser professor expressa na dimensão do amor e do cuidado. Considerar a necessidade
de estar aberto a um aprendizado constante para poder ensinar se articula, também, com
a dimensão ético-operacional dessa representação. Se o professor é um profissional que
ama o que faz, que cuida e que ajuda, ele precisa não só aprender para ensinar bem
como, ao ensinar, ao exercer o seu ofício, precisa estar aberto para aprender com ele ou
nele, para ouvir e aprender com os outros. Trata-se, aqui, de uma dimensão técnico-
operacional da representação. Enquanto a dimensão ético-operacional está relacionada
a valores, uma vez que seu conteúdo simbólico se ampara numa base valorativa para
mobilizar a ação (ajudar os outros, ser útil a alguém), a dimensão técnico-operacional se
relaciona com o saber e o saber fazer da profissão. Nesta última, o conteúdo simbólico,
a imagem do professor que ensina e aprende toma por referência, em maior ou em
menor grau, a sua capacidade técnica e profissional, embora, como pudemos ver, seja
excluída daí a dimensão de sistematizador e transmissor de conhecimentos em função
da valorização do professor como um orientador, como um amigo paciente. É essa
dimensão que permite ao professor lidar mais diretamente com os problemas de ensino
e aprendizagem (mais que conhecimento didático, ele precisa de compreensão e
amizade...), lidar com o sucesso e com o fracasso no trabalho (o professor nunca está
pronto; o professor está sempre aprendendo) e lidar com as exigências da profissão, seja
em termos de sua formação, seja em termos de competência técnica.
Já a dimensão do sofrimento e da esperança expressa o lado ruim da profissão.
Ela permite que o professor compreenda as dificuldades do trabalho e possa lidar com
elas, sem que estas dificuldades possam ameaçar a sua identidade profissional. Assim,
147
constroem a imagem de uma profissão de sacrifício e do profissional como um herói
que tudo enfrenta e suporta. E não perde a esperança. Essa dimensão, que chamarei aqui
de dimensão da pertinácia e da perseverança, aponta para o futuro, embora incerto.
Seu conteúdo simbólico expressa resistência, uma vez que está imbricada na dimensão
ontológica do amor e muito próxima da dimensão ético-operacional da ajuda. A
esperança é a criança mais velha desse parto, nascida do amor e da doação
incondicionais.
Quanto ao habitus professoral, o objetivo dessa pesquisa não foi acessá-lo.
Nossa intenção primeira foi conhecer a representação social do ser professor para os
nossos agentes, entendendo-a como dimensão simbólica (eidos) desse habitus. As
regularidades estruturantes do ser professor aparecem aqui como geradoras dessa
representação, se confundem mesmo com ela. No entanto, ao longo da pesquisa foi
preciso compreender essas regularidades estruturantes para, a partir delas, inferir sobre a
representação social do ser professor e os seus conteúdos. Daí que foi possível nos
aproximar de alguns dos elementos que compõem esse habitus professoral,
principalmente dos seus elementos simlicos (eidos) e alguns de seus elementos
comportamentais (ethos).
O ser professor, na sua dimensão simbólica e representacional, se expressa
através de determinadas regularidades significativas que são comuns ao nosso grupo de
professores. Essas regularidades estão expressas: 1) no amor e no cuidado como
elemento central do ser e do estar professor. O amor dá sentido à profissão e o cuidado
aparece como elemento estruturador do trabalho docente; 2) na ajuda e na doação.
Educar é estar disposto a ajudar e, para isso, é preciso doação, dedicação, altruísmo; 3)
no trabalho considerado como uma vocação e na posse de dons para o seu exercício. Os
professores se sentem predestinados para esse papel; 4) no professor como um
orientador (para a vida, a sociedade, a profissão) e um amigo paciente que ouve e
aconselha (um psicólogo); 5) na naturalização do feminino. Maternagem e trabalho
doméstico estão profundamente misturados com o trabalho docente ajudando a compor
a figura da mulher-mãe-professora; 6) no reconhecimento de que a profissão, o ser
professor implica sacrifícios. O professor aparece como herói devotado, sacerdote de
uma missão que requer dedicação e esperança.
Estes elementos simbólicos e representacionais do habitus professoral aparecem
consubstanciados no ethos do grupo, em regularidades que estruturam a forma de agir
148
dos professores. Na disposição para ouvir e aconselhar, para ajudar as mães dos alunos
na orientação dos filhos, na doação ao trabalho, na maneira de lidar com o aluno.
Não foi objetivo desse trabalho inferir sobre os indícios de mudanças na
representação social do ser professor para esse grupo, nem acompanhar de perto a sua
dinâmica. Contudo, pelo que podemos observar, achamos elementos que apontam para
uma mudança no habitus professoral desse grupo de professores, especialmente
relacionadas à sua maneira de fazer. Acreditamos que, após a conclusão do Curso de
Pedagogia, ouve um reordenamento de algumas práticas desses professores, o que nos
leva a acreditar, também, na possibilidade de uma mudança representacional em curso.
Como pudemos ver no capítulo quatro, os professores passaram a considerar
diferentemente o aluno, dando-lhe voz, reconhecendo os seus saberes, modificando as
suas práticas para atender a essa nova maneira de encarar o aluno: aprenderam a ouvi-lo
a dar-lhe voz, a trabalhar em equipe, a “não dar nada pronto para eles”, a estimular a
pesquisa... Passaram a rever a sua didática de sala de aula, valorizando mais a qualidade
que a quantidade, a reordenação e a disposição das carteiras na forma de círculo, usando
materiais alternativos para dar aula (rótulos de embalagens, revistas, material de
sucata...) e novas estratégias para introduzir conteúdos novos (música, estórias, o uso
das experiências de vida dos alunos). Podemos notar que o Curso produziu alterações
significativas na forma de se referir à prática desses professores, o que nos leva a pensar
que alguns elementos do habitus professoral estão em processo de alteração,
especialmente aqueles diretamente ligados ao ethos comportamental. Não sabemos,
ainda, se estas alterações são realmente significativas, se apontam para uma mudança
nesse habitus, ou se são apenas pontuais. Não podemos precisar, também, se tais
alterações foram acompanhadas de perto por uma igual alteração na maneira como os
professores representam o ser professor. Seria preciso uma nova investigação para
acompanhar essa dinâmica e ver os caminhos que ela aponta.
É precisop ressaltar um outro aspecto que o trabalho aponta. Educar aparece, nos
discursos dos professores, como um ato despido de significação profissional. Nos
discursos, educar é preparar para a vida, é orientar, é aconselhar, é guiar. Neste sentido,
o ser professor precisa mais de atitude do que de formação, mais de interesse e boa
vontade do que de preparação (diploma, domínio de conteúdo). Acreditamos que essa
maneira de encarar o trabalho aparece como um reflexo da representação do ser
professor construída por eles. Nela, o professor aparece mais como uma figura de amor,
149
de cuidado e ajuda do que como um profissional. Eles parecem separar bem as coisas: o
amigo cuidador parece ser incompatível com o profissional professor.
Acreditamos que a relevância desse trabalho reside na contribuição emprestada à
compreensão do saber e do fazer docente. Mais precisamente, às diferentes maneiras de
os professores se compreenderem enquanto profissionais e sobre como orientam as suas
práticas. Se consideramos os professores como profissionais reflexivos, que articulam
pensamento e ação no fazer do trabalho, a compreensão de como pensam e o que
pensam esses professores é importante se queremos investir numa mudança de suas
atitudes e na reorientação de suas práticas profissionais. Entender como pensam e agem
esses professores é condição fundamental para se instituir uma nova prática na docência
e para um repensar de suas identidades profissionais.
Compreender como pensam e agem os professores é condição fundamental para
se (re) pensar os processos de formação docente. Seja no exercício da profissão ou em
processos de formação mais sistemáticos, os professores são agentes ativos e reflexivos
de suas próprias práticas. Como agentes sociais, os professores lidam ativamente com
os elementos de sua formação. Incorporam e reelaboram esses elementos, modificando-
os a sua maneira e os transformam em instrumentos de ação. Compreender essa
dinâmica é de fundamental importância para as agências formadoras e para todos
aqueles envolvidos com a formação de professores. Só assim será possível pensar os
professores como co-responsáveis pela sua formação e reordenar as nossas práticas
formativas. Com esse trabalho esperamos ter contribuído para esse debate.
Por fim, esperamos que esse trabalho possa contribuir com a formação de todos
os professores que, de bom grado, participaram dessa pesquisa, uma vez que é nossa
intenção partilhar e discutir com eles os resultados a que chegamos.
REFERÊNCIAS
151
ABRIC, Jean-Claud. A abordagem estrutural das representações sociais. In: PAREDES
A. S. (Org.). Estudos interdisciplinares de representação social. Goiana: AB Editora,
1998. p. 27-38.
ABRIC, Jean-Claud. O estudo experimental das representações sociais. In: JODELET,
Denise (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. p. 155-171.
ALBUQUERQUE, Lia Matos Brito de. Habitus, representações sociais e a
construção identitária dos professores de Maracanaú. 2005. 140f. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2005.
ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da instrução pública no Brasil (1500-
1889): história e legislação. São Paulo: EDUC; Brasília-DF: INEP/MEC, 1989.
ALMEIDA, Jane Soares de. Vestígios para uma reinterpretação do magistério feminino
em Portugal e no Brasil. In: SOUZA, Rosa Fátima; VALDEMARIN, Vera Tereza;
ALMEIDA, Jane Soares. O legado educacional do século XIX. Araraquara: UNESP –
Faculdade de Ciências e Letras, 1998. p. 107-181.
ALMEIDA, Ângela Maria de Oliveira. A pesquisa em representações sociais:
proposições teórico-metodológicas. In: SANTOS, Maria de Fátima de Souza;
ALMEIDA, Leda Maria (Orgs.). Diálogos com a teoria da representação social.
Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005. p. 117-160.
ANDRADE, Daniela B. da Silva Freire: O lugar feminino na escola: um estudo em
representações sociais. Cuiabá: EdUFMT/FAPEMAT, 2007.
ANDRADE, Erika dos Reis Gusmão; CARVALHO, Maria do Rosário de Fátima;
ROAZZI, Antonio. O saber, o fazer e o saber do fazer docente: as representações sociais
como resistência. In: CARVALHO, Maria do Rosário de Fátima de; DOMINGOS
SOBRINHO, Moisés; PASSEGGI, Maria da Conceição (Orgs.). Representações
sociais: Teoria e pesquisa. Mossoró, RN. Fundação Guimarães Duque/ Fundação Vingt-
um Rosado, 2003. p. 85-100.
APPLE, Michael. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe
e de gênero em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
AQUINO, Júlio; MUSSI, Mônica C. As Vicissitudes da Formação Docente em Serviço:
a proposta reflexiva em debate. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 27, n. 2, p. 211-
227, Jul/Dez. 2001.
ARROYO, Miguel Gonzalez. Quem de-forma o profissional de ensino. In: VIELLA,
Maria dos Anjos Lopes (Org.). Tempo e espaço de formação. Chapecó: Argos, 2003.
p. 103 – 117.
ARRUDA, Angela. Pesquisa em representações sociais: a produção em 2003. In:
MENIN, Maria Suzana de Stefano; SHIMIZU, Alessandra de morais. Experiência e
representações sociais: questões teóricas e metodológicas. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2005. p.59-92.
152
AZEVEDO, Fernando. A transformação da cultura. São Paulo: Melhoramentos;
Brasília: INL, 1976.
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1995.
BATISTA, Anália Soria; CODO, Wanderley. Crise de identidade e sofrimento. In:
CODO, Wanderley. (Coord.) Educação, carinho e trabalho. Petrópolis: Vozes/
Brasília: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação: Universidade de
Brasília. Laboratório de Psicologia do Trabalho, 1999. p. 60-85.
BATISTA, Anália Soria; ODELIUS, Catarina Cecília. Infra-Estrutura das escolas
públicas. In: CODO, Wanderley. (Coord.) Educação, carinho e trabalho. Petrópolis:
Vozes/ Brasília: Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação: Universidade
de Brasília. Laboratório de Psicologia do Trabalho, 1999. p. 161-173.
BAUER, Martin. A popularização da ciência como “imunização cultural”: a função de
resistência das representações sociais. In: GUARESCHI, Pedrinho;
JOVCHELOVITCH, Sandra. (Orgs.). Textos em representações sociais. Petrópolis:
Vozes, 2003. p. 229-257.
BENJAMIN, Alfred. A entrevista de ajuda. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu.
Petrópolis: Vozes, 2003.
BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu: sociologia. Grandes Cientistas Sociais, n. 39.
Renato Ortiz (Org.). São Paulo: Ática, 1983a.
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu:
sociologia. Grandes Cientistas Sociais, n. 39. Renato Ortiz (Org.). São Paulo: Ática,
1983b. p. 122-155.
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato. Pierre
Bourdieu: sociologia. Grandes Cientistas Sociais, n. 39. Renato Ortiz (Org.). São Paulo:
Ática, 1983c. p. 82-121.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato. Pierre
Bourdieu: sociologia. Grandes Cientistas Sociais, n. 39. Renato Ortiz (Org.). São Paulo:
Ática, 1983d. p. 46-81.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus,
1996a.
BOURDIEU, Pierre. Marginalia: algumas notas adicionais sobre o dom. 1996b.
Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
93131996000200001&script=sci_arttext&tlng >. acesso em 30 de novembro de 2007.
BOURDIEU, Pierre. Compreender. In: BOURDIEU, Pierre (Org.). A miséria do
mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.
153
BOURDIEU, Pierre. O capital social: notas provisórias. In: NOGUEIRA, Maria Alice;
CATANI, Afrânio (Orgs.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalinas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clinica do campo
científico. São Paulo: Editora da UNESP, 2004a.
BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004b.
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005a.
BOURDIEU, Pierre (Org.). O ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na
sociologia. Petrópolis: Vozes, 2005b.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre: Zouk, 2007.
BRABO, Tânia Suely A. M. Formação da professora numa perspectiva de gênero.
Educação em Revista, Marília, n. 3, p. 43-70, 2002.
CAMPOS, Jameson Ramos; ANDRADE, Erika dos Reis G. Ser professor: semeando
esperanças em meio às adversidades. Seminário de Pesquisa do CCSA, 2006a, Natal.
Anais... Natal: UFRN, 2006a. 1 CD-ROM.
CAMPOS, Jameson Ramos; ANDRADE, Erika dos Reis G. Retratos na parede:
histórias de uma vida, percursos de formação. Congresso Internacional sobre Pesquisa
(Auto) biográfica, 2006b, Salvador. Anais... Salvador: UNEB, 2006b. 1 CD-ROM.
CAMPOS, Jameson Ramos; ANDRADE, Erika dos Reis G. Meus alunos e seus pais: o
professor e os dilemas da profissão. Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e
Nordeste, 2007, Maceió. Anais... Maceió: UFAL, 2007. 1 CD-ROM.
CAMUS, Albert. A queda. Rio de Janeiro: Record, 1997.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Lisboa: Edição Livros do
Brasil, [1960 e 1980].
CARVALHO, Marília Pinto de. No coração da sala de aula: gênero e trabalho docente
nas séries iniciais. São Paulo: Xamâ, 1999.
CERISARA, Ana Beatriz. Professoras de educação infantil: entre o feminino e o
profissional. São Paulo: Cortez, 2002.
DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho.
São Paulo: Cortez / Oboré, 1992.
DIEESE, A situação do trabalho no Brasil. São Paulo, 2001.
154
DOMINGOS SOBRINHO, Moisés. “Habitus e Representações Sociais”: questões para
o estudo de identidades coletivas. In: MOREIRA, Antonia Silva Paredes; OLIVEIRA,
Denise Cristina. (Orgs.). Estudos interdisciplinares de representação social. Goiana:
AB Editora, 2000. P. 117-129.
DOMINICÉ, Pierre. O processo de formação e alguns dos seus componentes
relacionais. In: NÓVOA, António; FINGER, Matthias. O método (auto) biográfico e a
formação. Ministério da Saúde/ Departamento de Recursos Humanos da Saúde/ Centro
de Formação e Aperfeiçoamento Profissional: Lisboa, 1988. p. 51-61.
FISCHER, Beatriz T. Daudt. Professoras: histórias e discursos de um passado presente.
Pelotas: Seiva, 2005.
FONTANA, Roseli A. Cação. Como nos tornamos professoras? Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
GARCIA, Maria M. A; HYPOLITO, Álvaro M; VIEIRA, Jarbas S. As identidades
docentes como fabricação da docência. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31, n. 1, p.
45-56, jan/abr. 2005.
GIROUX, Henry. Escola Crítica e Política Cultural. São Paulo: Cortez: Autores
Associados, 1988.
GOMES, Marineide de Oliveira. As Identidades de educadoras de crianças pequenas:
caminhos plurais. Educação & linguagem, São Paulo, n. 13, p. 252-269, jan/jun. 2006.
GOUVEIA, Maria Cristina. Mestre: profissão professor(a) – processo de
profissionalização docente na província Mineira no Período Imperial. Revista
Brasileira de Historia da Educação, Campinas, n. 2, p. 39-57, jul/dez. 2001.
GUARESCHI, Pedrinho; JOVCHELOVITCH, Sandra. Introdução. In: GUARESCHI,
Pedrinho; JOVCHELOVITCH, Sandra. (Orgs.). Textos em representações sociais.
Petrópolis: Vozes, 2003. p. 17-25.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a
uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. Cultura escolar/cultura oral em São Paulo (1820-
1860). In: VIDAL, Diana Gonçalves; HILSDORF, Maria Lúcia Spedo (Orgs.) Brasil
500 anos: tópicas em história da educação. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2001. p. 67-96.
JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET,
Denise (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 17-44.
KULESZA, Wojciech A. Escola normal e educação popular no Brasil (1870-1930). In:
SCOCUGLIA, Afonso Celso; PINHEIRO, Antônio Carlos F. (Orgs). Educação e
historia no Brasil contemporâneo. João Pessoa: Editora universitária/ UFPB, 2003. p.
137-148.
155
LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico-social
dos conteúdos. São Paulo: Loyola, 1984.
LIRA, André Augusto Diniz. Tornar-se, ser e viver do professorado: entre
regularidades e variações identitárias. 2007. 271f. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
LUGLI, Rosário S. Genta. As representações dos professores primários: estratégia
política e habitus professoral. Revista Brasileira de História da educação, Campinas,
n. 9, p. 231-262, jan/jun. 2005.
MARMOZ, Louis. O professor e seus espelhos. Revista Colóquio Educação e
Sociedade, Lisboa, n. 4, p. 13-40, dez. 1993.
MASLACH, Christina; LEITER, Michael P. Trabalho: fonte de prazer ou desgaste?
Guia para vencer o estresse na empresa. Campinas: Papirus, 1999.
MENDONÇA, Ana Waleska Pollo Campos. A reforma pombalina dos estudos
secundários e seu impacto no processo de profissionalização do professor. Educação.
Santa Maria. v. 3, n. 2, p. 27-42, 2005.
MIGUEL, Maria Elisabeth Blanck. O significado da educação pública no Império
(Paraná – Província). In: FILHO, Luciano Mendes de F. (Org.) Pesquisa em História
da Educação: perspectivas de análise, objetos e fontes. Belo Horizonte: HG edições,
1999. p. 87-94.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa
em saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1999.
MONTAGNER, Rosângela. “Lá encontrei pela primeira vez a professora... Era uma
dedicação incansável”. In: Imagens de professor: significações do trabalho docente.
Ijui: Ed. Unijui, 2004. p. 197-215.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social.
Petrópolis: Vozes, 2005.
NÓBREGA, Sheva Maia. Sobre a teoria das representações sociais. In: MOREIRA,
Antonia Silvia Paredes (Org.). Representações sociais: teoria e prática. João Pessoa:
Editora Universitária, 2001. p. 55-87.
NOVOA, Antonio. Formação de professores e profissão docente. In: NOVOA, Antonio.
Os Professores e sua Formação. Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1997. p. 13-33.
NÓVOA, António. O passado e o presente dos professores. In: NÓVOA, António
(Org.) Profissão professor. Porto: Porto Editora, 1999. p. 13-34.
NÓVOA, António. Os professores e as histórias da sua vida. In: NÓVOA, António
(Org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 2000. p. 11-30.
156
OLIVEIRA, Eloíza da Silva Gomes de. Trabalho de professor – trabalho de Sísifo? A
heróica dimensão imaginária da docência. In: VIELLA, Maria dos Anjos Lopes (Org.).
Tempo e espaço de formação. Chapecó: Argos, 2003. p. 197 – 218.
ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da prática. In: BOURDIEU, Pierre.
Pierre Bourdieu: sociologia. Grandes Cientistas Sociais, n. 39. Renato Ortiz (Org.).
São Paulo: Ática, 1983. p. 7-36.
OSÓRIO, Miryam Báez. Las escuelas normales colombianas y la formación de
maestros en el siglo XIX. Eccos – Revista científica, São Paulo, v.7, n. 2. p. 427-450,
2005.
PAREDES, Eugênia Coelho. Entrevista: anotações para pesquisadores iniciantes. In:
MENIN, Maria Suzana de Stefano; SHIMIZU, Alessandra de morais. Experiência e
representações sociais: questões teóricas e metodológicas. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2005. p. 131-156.
PEREIRA, Julio Emílio Diniz; FONSECA, Maria da Conceição F. Reis. Identidade
docente e formação de educadores de jovens e adultos. Educação & Realidade, Porto
Alegre, v. 26, n. 2, p. 51-73, jul/dez. 2001.
PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira. Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos
escolares na Paraíba. Campinas, SP: Autores Associados; São Paulo: Universidade
São Francisco, 2002.
PINTO, Maria das Graças C. S. M. Gonçalves; MIORANDO, Tânia Micheline.
Docência e Gênero: histórias que ficaram. In: Imagens de professor: significações do
trabalho docente. Ijui: Ed. Unijui, 2004. p. 217-232.
POPKEWITZ, Thomas S. Profissionalização e Formação de Professores: algumas notas
sobre sua história, ideologia e potencial. In: NOVOA, Antonio (Coord.). Os
Professores e sua Formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997. p. 35-50.
RAY, Fernando Luis González. Sujeito e subjetividade: uma aproximação histórico-
cultural. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2003.
RABELO, Amanda O. O gênero e a profissão docente: impactos na memória das
normalistas. 2007. Disponível em <
http://www.prodema.ufpb.br/revistaartemis/numero6/artigos/artigo_06.pdf >. acesso em
13 de março de 2008.
RIBEIRO, Maria Luiza Santos. História da educação Brasileira: a organização
escolar. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
RIBEIRO, Simone. Falando com professoras sobre vocação, qualificação para o
trabalho e relações de gênero: o que pensa quem faz? In: PAIVA, Edil V. (Org.).
Pesquisando a formação de professores. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 143-168.
157
ROAZZI, Antonio. Categorização, formação de conceitos e processos de construção de
mundo: procedimento de classificações múltiplas para o estudo de sistemas conceituais
e sua forma de análise através de métodos multidimensionais. Cadernos de Psicologia,
[S. l.], n. 1, p. 1-27, 1995.
SÁ, Celso Pereira de. A construção do objeto de pesquisa em Representações
Sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
SACRISTÁN, Gimeno. O aluno como invenção. Porto Alegre: Artmed, 2005.
SAVIANI, Dermeval. Historia da formação docente no Brasil: três momentos decisivos.
Educação, Santa Maria, v. 30, n. 2, p. 11-26, 2005.
SANTOS, Maria de Fátima de Souza. A teoria das representações sociais. In: SANTOS,
Maria de Fátima de Souza; ALMEIDA, Leda Maria de. (Orgs.). Diálogos com a teoria
das representações sociais. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2005. p. 13-38.
SCHAFFEL, Sarita Lea. A identidade profissional em questão. In: CANDAÚ, Vera
Maria (Org.). Reinventar a escola. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 102-115.
SCHUELER, Alessandra Frota de. Representações da docência na imprensa pedagógica
da corte imperial (1870-1889): o exemplo da instrução pública. Educação e Pesquisa.
São Paulo, v. 31, n. 3, p. 378-390, set/dez. 2005.
SILVA, Marilda da. Como se ensina e como se aprende a ser professor: a evidência
do habitus professoral e da natureza prática da didática. Bauru: EDUSC, 2003.
SILVA, Lucélia Maria F. da. Ser professor: uma gênese recíproca. Cadernos de
Educação, v. 8, n. 1, p. 99-118. 2004.
SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola primária
graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1998.
SOUZA, Rosa Fátima de. Espaço da educação e da civilização: origem dos grupos
escolares no Brasil. In: SAVIANI, Demerval; ALMEIDA, Jane Soares de; SOUZA,
Rosa Fátima; VALDEMARIN, Vera Teresa. O legado educacional do século XIX.
Campinas: Autores Associados, 2006. p. 33-84.
VALLE, Ione Ribeiro. Carreira do magistério: uma escolha profissional deliberada?
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v. 87, n. 216, p. 178-187,
maio/ago. 2006.
VIDAL, Diana Gonçalves; CARVALHO, Marília Pinto de. Mulheres e magistério
primário: tensões, ambigüidades e deslocamentos. In: VIDAL, Diana Gonçalves;
HILSDORF, Maria Lúcia Spedo (Orgs.). Brasil 500 anos: Tópicas em história da
educação. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. p. 205-224.
VIEIRA, Sofia Lercher. Ser Professor: pistas de investigação. Brasília: Plano Editora,
2002.
158
VIEIRA, Juçara Dutra. Identidade expropriada: retrato do educador brasileiro.
Brasília: CNTE, 2004.
VILLELA, Heloisa de O. S. O mestre-escola e a professora. In: LOPES, Eliane Marta
T; FARIA FILHO, Luciano Mendes; VEIGA, Cynthia Greive (Orgs.). 500 anos de
educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 95-134.
APÊNDICES
160
APÊNDICE A – QUESTIONÁRIO DE CARACTERIZAÇÃO.
161
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – CCSA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGED
QUESTIONÁRIO DE CARACTERIZAÇÃO
1. Sexo: ( ) Masculino; ( ) Feminino.
2. Idade: ___________________
3. Estado civil: ( ) Solteiro/a; ( ) Casado/a; ( ) Divorciado/a; ( ) Viúvo/a; ( ) Outro.
4. Naturalidade: _________________________________.
5. Se casado/a qual a profissão do esposo/a: __________________________________.
6. Se casado/a qual a escolaridade do esposo/a:
( ) Não escolarizado/a
( ) Ensino fundamental incompleto.
( ) Ensino fundamental completo.
( ) Ensino médio incompleto
( ) Ensino médio completo.
( ) Ensino superior incompleto
( ) Ensino superior completo.
( ) Pós-graduação.
7. Tem filhos: ( ) Sim; ( ) Não. Quantos: _______________________.
8. Onde reside: ( ) Zona urbana; ( ) Zona rural.
9. Casa própria: ( ) Sim; ( ) Não.
10. Quantos são os membros da família: _______________________.
11. Renda total da família:
( ) Menor ou igual a 1 salário mínimo.
( ) Acima de 1 até 3 salários.
( ) Acima de 3 até 6 salários.
( ) Acima de 6 até 10 salários.
( ) Mais de 10 salários.
12. Qual a sua renda pessoal como professora: _______________________________.
13. Possui alguma outra atividade remunerada alem da docência:
( ) Não; ( ) Sim: Qual? __________________________________________.
14. Qual a profissão/ ocupação de seu Pai: ___________________________________.
162
15. E de sua Mãe: ____________________________________________.
16. Qual o grau de escolarização de seu Pai:
( ) Não escolarizado.
( ) Ensino fundamental incompleto.
( ) Ensino fundamental completo.
( ) Ensino médio incompleto
( ) Ensino médio completo.
( ) Ensino superior incompleto
( ) Ensino superior completo.
( ) Pós-graduação.
17. Qual o grau de escolarização de sua Mãe:
( ) Não escolarizada.
( ) Ensino fundamental incompleto.
( ) Ensino fundamental completo.
( ) Ensino médio incompleto
( ) Ensino médio completo.
( ) Ensino superior incompleto
( ) Ensino superior completo.
( ) Pós-graduação.
18. Dispõe de computador em casa: ( ) Sim; ( ) Não.
19. Que meios você utiliza frequentemente para se manter informado/a:
( ) TV; ( ) Jornal; ( ) Revistas; ( ) Rádio; ( ) Internet; ( ) Outros. Quais: _____
____________________________________________________.
20. Você costuma ler com freqüência? ( ) Não; ( ) Sim; ( ) Ás vezes: Especifique:
_____________________________________________________________.
21. De que outras atividades (culturais, políticas, religiosas, etc.) você participa?
______________________________________________________________________.
22. Qual a sua religião? _______________________________________________.
23. O que você costuma fazer para se divertir nos fins de semana e nos feriados?
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
24. Qual o tipo de música de sua preferência?
( ) MPB; ( ) Rock; ( ) Sertanejo; ( ) Samba/pagode; ( ) Brega; ( ) forró;
( ) Axé; ( ) Outros: Especificar: __________________________________________.
25. Que tipos de programas você costuma assistir na TV? _______________________
______________________________________________________________________
______________________________________________________________________
163
26. Em que tipo de escola você cursou o ensino fundamental?
( ) Todo em escola pública.
( ) Parte em escola pública, parte em escola particular.
( ) Todo em escola particular.
27. E o ensino médio?
( ) Todo em escola pública.
( ) Parte em escola pública, parte em escola particular.
( ) Todo em escola particular.
28. Antes de cursar pedagogia, que tipo de formação pedagógica você possuía?
( ) Nenhuma.
( ) O logos.
( ) O proformação.
( ) O magistério.
( ) Outra/as. Especificar: _______________________________________.
29. Alguém da sua família foi ou é professor/a?
( ) Não; ( ) Sim; Quem: __________________________________________.
30. Há quantos anos você exerce a profissão docente?
( ) Menos de 5 anos.
( ) De 5 a 10 anos.
( ) de 11 a 15 anos.
( ) De 16 a 20 anos.
( ) de 21 a 25 anos.
( ) De 26 a 30 anos.
( ) Mais de 30 anos.
31. Qual a localização da escola onde você trabalha?
( ) Na zona rural.
( ) Na zona urbana.
32. Qual a distância aproximada de sua residência para o seu local de trabalho?
________________________________________.
33. Que meio de transporte você utiliza para se deslocar até o seu local de trabalho?
_____________________________________________________.
34. Você participou de algum curso de treinamento ou de capacitação desde que
concluiu o Curso de Pedagogia?
( ) Não;
( ) Sim. Qual? _________________________________________________________.
35. Você trabalha com turma multisseriada?
( ) Sim;
( ) Não.
164
APÊNDICE B – QUESTIONÁRIOS DE PRÁTICAS E
SIGNIFICADOS
165
UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE PEDAGOGIA EM REGIME ESPECIAL
MUNICÍPIO DE QUEIMADAS-PB
QUESTIONÁRIO DE PRÁTICAS E SIGNIFICADOS I
1. Idade________________
2. Sexo ________________
3. Escola onde trabalha_________________________________________________
4. A escola esta localizada: ( ) na zona urbana; ( ) na zona rural.
5. Há quantos anos leciona: ___________________________
6. Que série leciona atualmente____________________________
8. Qual a sua formação________________________________
9. Tem outra atividade além da docência? ( ) Sim ( ) Não.
10. Se tem, qual?__________________________________________.
11. Porque resolveu ser professor (a)?
12. Vale a pena ser professor(a)? Que motivos o(a) estimulam a continuar na profissão?
13. O que mais lhe desagrada na profissão?
14. Quais as maiores dificuldades que você enfrenta para desempenhar a sua profissão?
15. Você acha que o trabalho do professor(a) tem sido valorizado? Porque?
16. O que você proporia para melhorar o desempenho do trabalho do professor?
166
UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE PEDAGOGIA EM REGIME ESPECIAL
MUNICÍPIO DE QUEIMADAS-PB
QUESTIONÁRIO DE PRÁTICAS E SIGNIFICADOS II
1. Você acha que o trabalho do professor/a da educação infantil e das séries iniciais do
ensino fundamental deve ser desempenhado por mulheres? Porque?
2. Como é conciliar trabalho domestico com a profissão de professor/a?
3. Como você caracterizaria:
a- A sua escola.
b- O seu aluno.
c- A sua equipe de trabalho.
d- Os pais de seus alunos.
4. Você costuma ler com regularidade? Em caso afirmativo, O que está lendo ou leu
recentemente?
5. Você participa de alguma outra atividade (cultural, religiosa, política)? Qual?
167
UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
CURSO DE PEDAGOGIA EM REGIME ESPECIAL
MUNICÍPIO DE QUEIMADAS-PB
QUESTIONÁRIO DE PRÁTICAS E SIGNIFICADOS III
1. Que propostas você faria para mudar a qualidade da educação no seu município?
2. Qual a sua renda mensal como professora?
3. Relacione as principais deficiências de sua escola quanto à estrutura física?
4. Na falta de material didático, como você procura superar essa dificuldade?
5. O que você faz para estimular aquele aluno “rebelde” ou sem motivação para o
estudo?
6. Porque a maioria dos pais participa pouco ou quase nada da vida escolar de seus
filhos?
7. Relacione as maiores dificuldades que você encontra para trabalhar com turmas
multisseriadas?
168
APÊNDICE C – ROTEIRO DE ENTREVISTA
169
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – CCSA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO – PPGED
ROTEIRO DE ENTREVISTA
A. Primeiro eixo. Como me tornei o que sou?
1. Porque você resolveu ser professor? Quais foram os motivos, como foi que se
deu essa história de tornar-se professor?
2. Quais as pessoas que mais marcaram, que mais influenciaram na sua escolha
profissional? Que tipo de influência ela (as) exerceu (ram).
3. Antes de ser professor/a, o que você achava dessa profissão? Que imagens você
fazia de professor?
B. Segundo eixo. O que agora eu sou?
1. Caso alguém lhe pedisse para explicar como é seu trabalho de professor, como
diria?
2. O que é ser professor para você hoje?
3. Como você se vê hoje como professor?
4. É bom ser professor? Por quê?
5. O que tem de ruim em ser professor?
6. Como você avalia seus alunos?
7. Que estratégias você usa para apresentar um novo conteúdo aos seus alunos?
8. Que dificuldades você encontra em seu dia a dia com os alunos? Como as
resolve?
C. Terceiro eixo. O Curso de Pedagogia em nossa vida profissional.
1. Qual a importância do Curso de Pedagogia para a sua vida profissional?
2. O Curso modificou a sua maneira de ver a profissão?
3. Em que o Curso de Pedagogia contribuiu para modificar a sua maneira de
trabalhar no cotidiano da escola?
170
APÊNDICE D – RELATOS DE EXPERIÊNCIA
171
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
RELATO DE EXPERIÊNCIA
PROFESSOR (A): _______________________________________________________
TEMA: O QUE SE ESPERA DE UM BOM PROFESSOR
172
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
RELATO DE EXPERIÊNCIA
PROFESSOR (A): _______________________________________________________
TEMA: AS MAIORES DIFICULDADES QUE ENFRENTO NA PROFISSÃO E
COMO LIDO COM ELAS
173
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
RELATO DE EXPERIÊNCIA
PROFESSOR (A): _______________________________________________________
TEMA: UMA EXPERIÊNCIA QUE MARCOU A MINHA VIDA
PROFISSIONAL
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo