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Introdução
A trajetória desta pesquisa está ligada à minha própria trajetória. Começou quando eu
estava cursando a graduação em Ciências Sociais. Nesta época eu já tinha um grande
interesse por estados modificados de consciência e por “plantas de poder”
1
. Foi este
interesse que me levou a procurar o Santo Daime. Santo Daime é uma expressão
multivocal, ou seja, pode ter vários significados. Refere-se a um movimento religioso que
teve início entre as décadas de 20 e 40 no estado do Acre e a partir da década de 80
expandiu-se por todo o Brasil e posteriormente para o exterior. O termo Santo Daime
referencia também dois grupos religiosos: Alto Santo e Centro Eclético de Fluente Luz
Universal Raimundo Irineu Serra ou CEFLURIS
2
.
Além disso, Santo Daime é o nome que os participantes deste movimento religioso dão
à bebida que consomem em seus rituais. A denominação “daime” indica uma invocação
ao “espírito” da bebida, a quem os fiéis pedem (por isso dai-me) luz, saúde, iluminação,
etc. (Groisman, 1991; Goulart, 2002). Já a palavra “santo” faz referência ao caráter
sacramental que esta bebida tem para os participantes do Santo Daime
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. O daime é
produzido pela cocção de duas plantas nativas da floresta amazônica: o cipó
Banisteriopsis caapi e a folha do arbusto Psychotria viridis
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, chamados pelos participantes
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Substâncias que tem poder de modificar de alguma maneira a consciência dos que as utilizam. A
pesquisa científica oficial dos anos 30 e 50 chamava estas substâncias de “alucinógenos”. Até hoje, este
é o termo considerado científico para descrever em termos farmacológicos seus efeitos (Carneiro, no
prelo). Este termo, porém, incorporou-se ao senso comum e carrega consigo uma série de preconceitos
sobre essas substâncias e seus usos. Frente a isso, pesquisadores da área vêm se esforçando para
desenvolver denominações mais adequadas que reflitam, entre outros, o caráter sagrado que estas
substâncias costumam ter para os grupos que as utilizam e também a sensação de comunhão com
Deus ou com o cosmos que costuma ser relatada como um de seus efeitos (Winkelman, 1996). Alguns
dos termos criados por esses pesquisadores foram: “enteógenos” (Wasson, Hofmann e Ruck, 1980),
“holotrópicos” (Grof citado em Winkelman, 1996) e “psicointegradores” (Winkelman, 1996). A
denominação “plantas de poder” que foi usada aqui procura refletir estas dimensões acima citadas,
também trazendo um aspecto importante da visão que o grupo estudado tem da substância que utiliza,
a saber: que esta substância é considerada como um “ser divino”, capaz de transmitir conhecimento. No
restante do trabalho, optarei por usar o termo “enteógeno”, pois este foi escolhido pelos participantes da
pesquisa como forma de se referir à substância que utilizam. O uso do termo “enteógeno” foi proposto
por Wasson, Hofmann e Ruck (1980). Este termo vem do grego e significa aproximadamente “deus
dentro de si” ou “ação de vir a ser, de se tornar”.
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Ver maiores detalhes sobre Alto Santo e CEFLURIS na próxima sessão. O presente trabalho trata
exclusivamente do CEFLURIS.
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Para fins deste trabalho, vou me referir à religião como Santo Daime e à bebida como daime.
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Análises químicas revelaram que o Banisteriopsis caapi contém alcalóides de beta-carbolina: harmina,
harmalina e tetrahidroharmina. Já a Psychotria viridis contém o alcalóide N-dimetil-triptamina (DMT).
Esta substância, tomada sozinha e por via oral é inativa, mesmo em altas doses, devido à atuação da
enzima monoamina oxidase (MAO). As análises mostram que, embora as beta-carbolinas encontradas
nos preparos estejam em doses demasiado baixas para manifestarem suas propriedades psicoativas,
elas parecem desempenhar um papel na inibição da MAO, livrando assim o DMT de sua ação e