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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
ESPIRITUALIDADE, TERAPIA E CURA:
UM ESTUDO SOBRE A EXPRESSÃO DA EXPERIÊNCIA
NO SANTO DAIME
Isabel Santana de Rose
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Santa Catarina, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre
em Antropologia.
Janeiro, 2005
Florianópolis – Santa Catarina
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2
Agradeço
Ao Grande Espírito.
À Mãe Terra, em sua abundância.
À todas as minhas relações.
À Tânia, Júlio, Felipe e toda a minha família, pelo seu amor.
Ao Alberto, que, além de ter uma contribuição inestimável no meu aprendizado da
antropologia, me ensinou muito sobre o respeito com os seres humanos.
À Bia Labate, Robin Wright e Marina Cardoso pelo apoio quando esta pesquisa ainda era
uma idéia.
À Madrinha Udi e ao Padrinho Chico, pela atenção e pelo carinho.
À Verinha, Patrícia Petinelli, dona Tereza, Marcos Holanda e Karina, pela amizade.
À toda irmandade do Céu da Mantiqueira, pela acolhida.
À todos os amigos, por compartilharem comigo esta jornada terrestre.
Aos colegas do mestrado.
Ao Júlio, pela revisão.
À Karina, pela imagem da capa.
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de
Santa Catarina.
À toda irmandade do Céu do Patriarca, Florianópolis.
À CAPES e ao CNPq, pela bolsa de mestrado.
À ilha de Florianópolis, em especial à praia do Campeche, fontes inigualáveis de
inspiração.
Ao Mestre Irineu e ao Padrinho Sebastião, pelos lindos ensinamentos que deixaram.
Ao Santo Daime, pela luz no caminho.
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3
Resumo
O Céu da Mantiqueira é uma comunidade do Santo Daime filiada ao CEFLURIS
(Centro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra) e localizada no sul do
estado de Minas Gerais. Neste trabalho, a partir da análise das expressões das
experiências dos participantes desta comunidade registradas na forma de desenhos e
narrativas - procuro levantar e definir as principais categorias culturais envolvidas na
experiência dos processos de cura, saúde e doença para os participantes do Céu da
Mantiqueira e compreender estas categorias em suas relações com os procedimentos
terapêuticos grupais, buscando identificar os modelos que motivam e sustentam estes
procedimentos e categorias culturais. Também procuro situar no contexto das relações
sociais e procedimentos terapêuticos as pessoas que trabalham profissionalmente na
área da saúde.
A temática da cura foi definida a partir de interesses que me parecem centrais para os
participantes do Céu da Mantiqueira. Ao longo da trajetória desta comunidade, vários
acontecimentos apontam para a construção e reconstrução de uma identidade coletiva
enquanto “centro de cura”. Esta identidade encontra-se ancorada na história do grupo, em
interação com a práxis de seus participantes.
No Céu da Mantiqueira, espiritualidade e terapia são concebidas e vivenciadas como
dimensões que se interpenetram e estão intimamente relacionadas. Observando esta
imbricação entre o espiritual e o terapêutico, identifiquei um duplo movimento,
convergente e simultâneo, de terapeutização da espiritualidade e espiritualização dos
procedimentos terapêuticos. Levanto, assim, a hipótese de que o modelo que fundamenta
os procedimentos terapêuticos existentes no Céu da Mantiqueira é o de um continuum
espiritual-terapêutico, com a doutrina daimista em um de seus pólos e os procedimentos
terapêuticos e as pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde no outro. A
substância que circula entre estes dois pólos é formada pelos valores que provém de
ambos. Estes valores fundamentam os procedimentos espirituais e terapêuticos.
Devido à ênfase na integração entre espiritualidade e terapia, este modelo difere do
modelo predominante na biomedicina oficial, baseado no paradigma cartesiano que
separa mente e corpo. Penso que o modelo do continuum espiritual-terapêutico pode
ajudar a compreender as práticas de cuidados da saúde existentes na
contemporaneidade em outros contextos, onde também uma intersecção entre novas
formas de espiritualidade e procedimentos terapêuticos.
4
Abstract
Céu da Mantiqueira is a Santo Daime community associated to CEFLURIS and located
in the south of Minas Gerais state. In this work, based in the analysis of the expressions of
the experiences of the participants of this community - registered in drawings and
narratives - I try to define the major cultural categories involved in the experiences of the
processes of health and disease for Céu da Mantiqueira’s participants. I attempt to
comprehend theses categories in their relations with the group’s therapeutic procedures,
trying to identify the models that motivate and sustain these procedures and cultural
categories. I also try to place in the context of the social relations and therapeutic
procedures the health care professionals.
I defined the healing thematic based on interests that seem to be central for the Céu da
Mantiqueira’s participants. Many events in the community’s trajectory point to the
construction and reconstruction of a collective identity as a “healing center”. This identity is
related to the group’s history, in interaction with the praxis of its participants.
In Céu da Mantiqueira, spirituality and therapy are conceived and experienced as
dimensions that are intimately related. Observing this imbrication between spirituality and
therapy I identified a double movement, simultaneous and convergent, of therapeutization
of spirituality and spiritualization of therapeutic procedures. Therefore, my hypothesis is
that the model that supports the therapeutic procedures in Céu da Mantiqueira is that of a
spiritual-therapeutic continuum. In one of its ends is the “doctrine” of Santo Daime; in the
other are the therapeutic procedures and the health care professionals. The substance
circulating along the continuum is formed by the values coming from both ends. These
values provide support to the spiritual and therapeutic procedures.
Because of the emphasis on integration between spirituality and therapy, this model
differs from the dominant model in official biomedicine, based in the cartesian paradigm
that separates mind and body. I think that the spiritual-therapeutic continuum model may
help to comprehend the health care procedures that exist in contemporanity, in other
contexts where new forms of spirituality intersect with therapeutic procedures.
5
Índice
Índice das fotos e desenhos .............................................................................................. 7
Índice dos quadros, gráficos e figuras................................................................................ 8
Introdução.......................................................................................................................... 9
1. O Santo Daime......................................................................................................... 10
2. O Santo Daime e as “religiões ayahuasqueiras brasileiras”...................................... 15
3. Interesse pessoal e interesse antropológico............................................................. 17
4. Sobre o estudo da experiência................................................................................. 20
5. Breve nota sobre ayahuasca e experiência.............................................................. 22
6. Espiritualidade e procedimentos terapêuticos .......................................................... 25
Capítulo 1: Reflexões metodológicas............................................................................... 29
1. Sobre a importância do trabalho de campo .............................................................. 29
2. Da relação entre as diversas etapas de uma pesquisa............................................. 30
3. Trabalhos espirituais, plantas e culinária.................................................................. 33
4. Técnicas de pesquisa............................................................................................... 36
5. Algumas considerações sobre terapias religiosas e imagens................................... 37
6. Fotografia e interdição ritual ..................................................................................... 39
7. Negociações e amizades ......................................................................................... 43
8. Transformações ....................................................................................................... 45
Capítulo 2 – Trajetória e constituição do Céu da Mantiqueira como um “centro de cura”. 48
1. História e narrativa ................................................................................................... 48
2. A “história” do Céu da Mantiqueira........................................................................... 50
3. Os Trabalhos de Cura .............................................................................................. 53
4. Os Trabalhos de Mesa Branca e o Atendimento Mediúnico ..................................... 54
4.1 Análise de um ritual de Mesa Branca.................................................................. 56
5. “Comunidade simbólica”........................................................................................... 62
Capítulo 3 – O continuum espiritual-terapêutico............................................................... 65
1. A “terapeutização” do Céu da Mantiqueira ............................................................... 65
2. A espiritualização dos procedimentos terapêuticos .................................................. 66
3. Narrativas sobre a participação no Céu da Mantiqueira ........................................... 68
4. Associações entre Santo Daime e terapia................................................................ 75
5. Relações sociais ...................................................................................................... 77
5.1 Relações sociais e categorias culturais importantes para os participantes do Céu
da Mantiqueira.......................................................................................................... 81
6
Capítulo 4: O “sistema de cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira............................ 85
1. Corpo e experiência, natureza e cultura ................................................................... 85
2. Algumas considerações sobre antropologia da saúde e experiência........................ 89
3. Os principais procedimentos terapêuticos utilizados pelos participantes do Céu da
Mantiqueira .................................................................................................................. 91
3.1 Uso de tinturas feitas de ervas e flores ............................................................... 92
3.2 Banhos de ervas e chás ..................................................................................... 96
3.3 Florais da Amazônia ........................................................................................... 96
3.4 Kambô ................................................................................................................ 99
3.5 Medicalização................................................................................................... 101
3.6 Alguns aspectos do processo de medicalização no Céu da Mantiqueira .......... 102
3.6.1 Casos nos quais não é indicado tomar daime ............................................ 102
3.6.2 Uso de medicação alopática....................................................................... 104
3.7 Psicoterapia...................................................................................................... 105
3.7.1 O daime e a “cura” da dependência química e da depressão..................... 106
3.7.2 Relação terapeuta-paciente........................................................................ 107
3.8 Psicoterapia com daime.................................................................................... 109
4. As pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde............................ 111
5. Categorias culturais importantes para compreendermos as experiências de saúde,
doença e cura para os participantes do Céu da Mantiqueira...................................... 115
5.1 O daime como um “ser divino” .......................................................................... 116
5.2 “Comunidade simbólica” ................................................................................... 116
5.3 Os dois lados da realidade................................................................................ 117
5.4 Mediunidade e diferentes tipos de transe.......................................................... 117
5.5 Os vários corpos que constituem o ser humano ............................................... 119
6. Saúde, doença e cura ............................................................................................ 121
6.1 Doença ............................................................................................................. 121
6.2 Saúde ............................................................................................................... 123
6.3 Cura.................................................................................................................. 123
Considerações Finais .................................................................................................... 125
Bibliografia:.................................................................................................................... 128
Anexo 1: Ficha de Filiação............................................................................................. 137
Anexo 2: Ficha de Anamnése........................................................................................ 138
Anexo 3: Calendário de 2004......................................................................................... 141
7
Índice das fotos e desenhos
Beija flor .......................................................................................................................
capa
Desenho 1: “a roda da cura”.........................................................................................
59
Desenho 2: “os vários corpos”......................................................................................
120
Foto 1: “bateção”...........................................................................................................
41
Foto 2: “limpeza das folhas”..........................................................................................
41
Foto 3: vista da igreja do Céu da Mantiqueira..............................................................
51
Foto 4: Trabalho de Cura..............................................................................................
54
Foto 5: plantas usadas para preparar as tinturas.........................................................
94
Foto 6: imposição de mãos sobre os frascos de tintura...............................................
95
Foto 7: consulta com os florais da Amazônia...............................................................
98
Foto 8: aplicação da “vacina” kambô............................................................................
100
Foto 9: aplicação da “vacina” kambô............................................................................
100
Formatado
8
Índice dos quadros, gráficos e figuras
Figura 1: continuum espiritual-terapêutico.................................................................................67
Quadro 1.1: como as pessoas definem a sua vida “antes” de começar a participar do Santo
Daime.........................................................................................................................................69
Quadro 1.2: como as pessoas definem a sua vida “antes” de começar a participar do Santo
Daime (continuação)..................................................................................................................70
Quadro 2.1: como as pessoas definem a sua vida “depois” de começar a participar do Santo
Daime.........................................................................................................................................71
Quadro 2.2: como as pessoas definem a sua vida “depois” de começar a participar do Santo
Daime (continuação)..................................................................................................................72
Gráfico 1: cidade de residência.................................................................................................63
Gráfico 2: especializações dos profissionais da área da saúde................................................65
Gráfico 3: respostas à pergunta “como você conheceu o Santo Daime”..................................76
9
Introdução
A trajetória desta pesquisa está ligada à minha própria trajetória. Começou quando eu
estava cursando a graduação em Ciências Sociais. Nesta época eu tinha um grande
interesse por estados modificados de consciência e por “plantas de poder”
1
. Foi este
interesse que me levou a procurar o Santo Daime. Santo Daime é uma expressão
multivocal, ou seja, pode ter vários significados. Refere-se a um movimento religioso que
teve início entre as décadas de 20 e 40 no estado do Acre e a partir da década de 80
expandiu-se por todo o Brasil e posteriormente para o exterior. O termo Santo Daime
referencia também dois grupos religiosos: Alto Santo e Centro Eclético de Fluente Luz
Universal Raimundo Irineu Serra ou CEFLURIS
2
.
Além disso, Santo Daime é o nome que os participantes deste movimento religioso dão
à bebida que consomem em seus rituais. A denominação “daime” indica uma invocação
ao “espírito” da bebida, a quem os fiéis pedem (por isso dai-me) luz, saúde, iluminação,
etc. (Groisman, 1991; Goulart, 2002). Já a palavra “santo” faz referência ao caráter
sacramental que esta bebida tem para os participantes do Santo Daime
3
. O daime é
produzido pela cocção de duas plantas nativas da floresta amazônica: o cipó
Banisteriopsis caapi e a folha do arbusto Psychotria viridis
4
, chamados pelos participantes
1
Substâncias que tem poder de modificar de alguma maneira a consciência dos que as utilizam. A
pesquisa científica oficial dos anos 30 e 50 chamava estas substâncias de “alucinógenos”. Até hoje, este
é o termo considerado científico para descrever em termos farmacológicos seus efeitos (Carneiro, no
prelo). Este termo, porém, incorporou-se ao senso comum e carrega consigo uma série de preconceitos
sobre essas substâncias e seus usos. Frente a isso, pesquisadores da área vêm se esforçando para
desenvolver denominações mais adequadas que reflitam, entre outros, o caráter sagrado que estas
substâncias costumam ter para os grupos que as utilizam e também a sensação de comunhão com
Deus ou com o cosmos que costuma ser relatada como um de seus efeitos (Winkelman, 1996). Alguns
dos termos criados por esses pesquisadores foram: “enteógenos” (Wasson, Hofmann e Ruck, 1980),
“holotrópicos” (Grof citado em Winkelman, 1996) e “psicointegradores” (Winkelman, 1996). A
denominação “plantas de poder” que foi usada aqui procura refletir estas dimensões acima citadas,
também trazendo um aspecto importante da visão que o grupo estudado tem da substância que utiliza,
a saber: que esta substância é considerada como um “ser divino”, capaz de transmitir conhecimento. No
restante do trabalho, optarei por usar o termo “enteógeno”, pois este foi escolhido pelos participantes da
pesquisa como forma de se referir à substância que utilizam. O uso do termo “enteógeno” foi proposto
por Wasson, Hofmann e Ruck (1980). Este termo vem do grego e significa aproximadamente deus
dentro de si” ou “ação de vir a ser, de se tornar”.
2
Ver maiores detalhes sobre Alto Santo e CEFLURIS na próxima sessão. O presente trabalho trata
exclusivamente do CEFLURIS.
3
Para fins deste trabalho, vou me referir à religião como Santo Daime e à bebida como daime.
4
Análises químicas revelaram que o Banisteriopsis caapi contém alcalóides de beta-carbolina: harmina,
harmalina e tetrahidroharmina. a Psychotria viridis contém o alcalóide N-dimetil-triptamina (DMT).
Esta substância, tomada sozinha e por via oral é inativa, mesmo em altas doses, devido à atuação da
enzima monoamina oxidase (MAO). As análises mostram que, embora as beta-carbolinas encontradas
nos preparos estejam em doses demasiado baixas para manifestarem suas propriedades psicoativas,
elas parecem desempenhar um papel na inibição da MAO, livrando assim o DMT de sua ação e
10
do Santo Daime de “jagube” e “rainha”, respectivamente. Esta bebida é considerada como
um “ser divino”, dotado de personalidade própria e capaz de curar e de transmitir
conhecimento.
Após freqüentar os rituais daimistas por alguns meses, fiz uma viagem ao Acre para
conhecer melhor esta região considerada pelos participantes do Santo Daime como o
lugar onde foi fundada a “doutrina” daimista
5
. Ao retornar, me fardei
6
, marcando meu
fascínio e também ligação pessoal ao Santo Daime.
Ao mesmo tempo que o Santo Daime despertou o meu interesse pessoal, também
trouxe a tona um interesse antropológico pelo tema, principalmente quando comecei a ter
contato com a literatura existente a respeito. Foi então que comecei a ter vontade de fazer
uma pesquisa para poder compreender melhor este universo novo para mim, que me
despertava tanto fascínio e que, ao mesmo tempo, levantava uma série de
questionamentos. Assim, interesse (e ligação) pessoal e interesse (e ligação)
antropológica, no meu caso, estão indissoluvelmente ligados.
Conheci o “Céu da Mantiqueira”
7
, em dezembro de 2000 e quando comecei a
concretizar a idéia de fazer uma pesquisa sobre o Santo Daime me interessei em fazer
meu trabalho de campo devido a uma série de especificidades e de questões
interessantes que serão levantadas em detalhe durante o decorrer desta dissertação.
Desde este momento até a presente data muitas transformações aconteceram.
Principalmente o meu próprio amadurecimento, que também está relacionado ao
amadurecimento da idéia desta pesquisa.
1. O Santo Daime
O Santo Daime congrega em seus sistemas de rituais e crenças elementos
provenientes das tradições indígenas, do catolicismo popular, do espiritismo kardecista,
permitindo-lhe manifestar suas propriedades. Este processo é explicado pelos usuários do chá, que
entendem que o cipó (Banisteriopsis caapi) a força e a folha (Psychotria viridis) traz a luz (Luna,
1986).
5
De acordo com Groisman e Sell (1996), não é possível definir exatamente o que significa a
“doutrina” daimista. Este termo pode se referir ao movimento religioso; pode abranger os
significados dos hinos daimistas e pode definir a interpretação que uma pessoa faz do
conhecimento religioso e moral que adquire ao tornar-se um participante do Santo Daime
(1996:249). Para estes autores, o conteúdo da cosmologia daimista é sintetizado dinamicamente
na expressão genérica “doutrina”. Servindo como um modelo, a doutrina constrói e alimenta o
processo explanatório da vida de seus participantes (1996:250).
6 Os participantes do Santo Daime têm a opção de se fardar”, o que significa usar uma “farda”
durante os rituais. No plano simbólico, o fardamento é visto como um compromisso com a doutrina.
A questão de ser fardada e também pesquisadora será problematizada na sessão 3 da introdução.
11
do esoterismo europeu, das religiões afro-brasileiras e do universo da Nova Era. Existem
duas principais “linhas” ou ramificações que se auto-designam como Santo Daime, o “Alto
Santo” e o “Centro Eclético de Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra”, ou
CEFLURIS. Ambos situam sua origem num mesmo fundador, Raimundo Irineu Serra,
conhecido como “Mestre Irineu”
8
.
O Alto Santo permaneceu praticamente restrito ao estado do Acre. Esta denominação
refere-se a um conjunto de centros que se distinguem e funcionam de maneira autônoma,
embora reivindiquem uma origem comum e tenham relações de proximidade (Goulart,
2004). Muitos destes centros, inclusive, localizam-se no bairro de Rio Branco (AC)
conhecido como Alto Santo. o CEFLURIS é a principal organização responsável pela
expansão nacional e internacional da doutrina daimista, contando atualmente com cerca
de 40 igrejas no Brasil (segundo o site www.santodaime.org), além de centros em países
como Estados Unidos, Japão, Espanha, Holanda, Portugal, Itália, Grécia, Inglaterra, País
de Gales, França, Suíça e Alemanha
9
.
Sebastião Mota Melo, conhecido como “padrinho Sebastião”, é considerado como a
principal liderança do CEFLURIS. Esta organização foi criada em 1974 a partir de uma
ruptura com o “Centro de Iluminação Cristã Luz Universal” (CICLU), igreja fundada por
Raimundo Irineu Serra e que após a morte deste ficou sob a direção de Leôncio Gomes.
Em 1983 um grupo de pessoas liderado por Sebastião Mota fundou o “Céu do Mapiá”,
localizado no município de Pauiní, Amazonas. Esta atualmente é a sede do CEFLURIS,
tendo uma importância central para esta organização.
Apesar de tanto o Alto Santo como o CEFLURIS serem conhecidos com Santo Daime
e terem uma série de semelhanças em seus sistemas de crenças e rituais, também
importantes diferenças. Entre estas diferenças, destaca-se a introdução de alguns rituais,
tais como os de Cura e Estrela
10
, instituídos durante a vida de Sebastião Mota Melo, e os
de São Miguel e Mesa Branca
11
, mais recentes, estando ligados à atual direção do
7 As igrejas filiadas ao CEFLURIS costumam ter a palavra “céu” no início de seus nomes, por
exemplo “Céu do Mapiá”, “Céu da Mantiqueira”, “Céu de Midam”, etc.
8
Para maiores detalhes sobre a formação do Santo Daime ver Groisman (1991, 2000), MacRae (1992),
Goulart (1996, 2004).
9
De acordo com Groisman (2000), até 1996 existiam 28 grupos daimistas na Europa associados ao
CEFLURIS.
10
Sobre o Trabalho de Cura, ver capítulo 2. De acordo com o livro Normas de Ritual (1997), editado
pelo CEFLURIS, Trabalho de Estrela refere-se a todos os rituais realizados na “casa da estrela” no Céu
do Mapiá. Em outras igrejas do CEFLURIS, porém, Trabalho de Estrela pode significar um Trabalho de
Cura que tenha abertura para manifestações mediúnicas.
11
O Trabalho de Mesa Branca será tratado em detalhe no capítulo 2. O Trabalho de São Miguel tem
uma estrutura semelhante ao primeiro, porém, enquanto o ritual de Mesa Branca costuma ter uma data
12
CEFLURIS, cujo presidente é Alfredo Gregório de Melo (um dos filhos de Sebastião Mota
Melo). Todos os rituais daimistas são permeados pela noção de “cura” (Groisman, 1991;
Peláez, 1996; Labate, 2000, 2002), porém estes rituais citados são considerados como
sendo direcionados especificamente para a “cura”
12
.
Outra diferença importante entre o CEFLURIS e o Alto Santo é a introdução do
consumo ritualizado da cannabis sativa por parte da “linha” do CEFLURIS. Autores como
MacRae (1992), Groisman (1991, 2000) e Goulart (2004) documentaram esta utilização.
Durante minha pesquisa de campo, porém, fui informada de que o consumo da cannabis
no CEFLURIS está suspenso. Optei, portanto, por não tratar desta questão
13
.
Os primeiros autores que pesquisaram o Santo Daime, como Clodomir Monteiro da
Silva (1983) e Vera Fróes (1983), enfocaram a origem histórica da doutrina, oferecendo
dados gerais sobre sua organização. Outros autores mais recentes, tais como Sandra
Goulart (1996) e Arneide Bandeira Cemin (1998) continuam nesta linha, discutindo sobre
as tradições culturais a que se filia o Santo Daime.
Em sua etnografia do Céu do Mapiá, Alberto Groisman (1991) aprofundou a discussão
sobre a cosmologia daimista delineando as suas principais categorias, tais como os
conceitos de cura”, “salvação”, “merecimento”, entre outros. Além disso, Groisman
propõe o uso do termo êmico ecletismo para definir a doutrina do Santo Daime. De acordo
com ele, o ecletismo possibilita a convivência entre diversos sistemas cosmológicos, tais
como o cristianismo, a Umbanda e o espiritismo, sendo um sistema totalizante que
engloba todos os aspectos da vida do sujeito (Groisman, 1991).
Muitos autores dedicaram-se a discutir se o Santo Daime constitui ou não um sistema
xamânico. Couto (1989) e MacRae (1992), por exemplo, sustentam a tese do xamanismo
coletivo, alegando que nesta religião todos seriam aprendizes de xamãs ou xamãs em
potencial. Groisman (1991), defende a idéia de que haveria no Santo Daime uma
práxis xamânica e não um sistema xamânico por excelência. MacRae (1992) discute
também a questão da viabilidade do uso controlado de uma substância psicoativa,
mostrando que os controles culturais sobre este tipo de uso são muito eficientes.
também um conjunto de estudos mais recentes sobre a expansão do Santo Daime
para os centros urbanos, incluindo temas como a análise do imaginário do novo adepto
determinada para acontecer, o de São Miguel é considerado como sendo de “limpeza espiritual”, sendo
realizado quando os dirigentes das igrejas sentem necessidade.
12
Além dos rituais citados, também são considerados como sendo direcionados para a “cura” os rituais
de Cruzes e a Missa, que são da época de Raimundo Irineu Serra (Labate, 2002).
13
Esta opção envolve também considerações éticas, pois esta pareceu uma questão delicada para as
pessoas que participaram da minha pesquisa.
13
urbano do culto, o aparecimento de outras modalidades de consumo da ayahuasca
14
nos
centros urbanos e a expansão destas religiões para o exterior (Labate, 2002). Luís
Eduardo Soares (1994a, 1994b) relaciona a adesão das camadas médias urbanas ao
Santo Daime ao fenômeno da “nova consciência religiosa” (Soares, 1994a, 1994b).
Beatriz Labate (2000) estuda o surgimento de novas modalidades urbanas de consumo
da ayahuasca, formando o que a autora chama de “rede ayahuasqueira urbana”, onde
são criados novos tipos de rituais. Alberto Groisman (2000) pesquisou a expansão do
Santo Daime para o exterior, realizando uma etnografia dos grupos holandeses.
Poucos estudos foram dedicados especificamente à questão da cura. Primeiramente,
alguns autores (Monteiro da Silva, 1983; Couto, 1989; Groisman, 1991; MacRae, 1992;
Goulart, 1996) abordaram este tema lateralmente em seus estudos, discutindo sobre as
concepções daimistas de cura, doença e salvação. Em uma breve revisão sobre as
pesquisas a respeito da cura no Santo Daime, Maria Cristina Peláez (1996) destaca os
estudos de Monteiro da Silva (1983), que mostra como as origens das doenças estariam
relacionadas a transgressões às leis divinas; Couto (1989), que assinala a importância
das desarmonias na gênese das doenças e Groisman (1991), que mostra como a doença
tem uma dupla natureza corporal e espiritual e é um evento gerado pelo indivíduo ao
não cumprir as recomendações doutrinárias ou ao não levar uma vida harmônica. Este
autor define ainda a cura como uma “limpeza espiritual”. Posteriormente, Groisman Sell
(1996) usaram a definição de um informante daimista de doença como um “nó psíquico”
para mostrar que a doença constituiria uma oportunidade de “trabalho interior” e de
“estudo”. Para Peláez (1996), todos estes autores têm algumas interpretações similares,
pois identificam as raízes da doença em transgressões sociais e espirituais e vêem o
significado da cura para os participantes do Santo Daime como um restabelecimento do
equilíbrio e a reintegração numa ordem social e cósmica.
Peláez (1996), na sua dissertação, discute a relação entre práticas terapêuticas e os
estados modificados de consciência, buscando aproximações e distanciamentos entre as
práticas de cura daimistas e o modelo conceitual proposto por Stanislav Grof (1977, 1987,
1989) a partir da psicoterapia com LSD. Beatriz Labate (2002), em uma revisão da
literatura sobre as “religiões ayahuasqueiras brasileiras”
15
, destaca a falta de estudos
sobre a questão da cura e chama atenção para a necessidade de uma classificação
detalhada dos trabalhos espirituais que são direcionados especificamente para a cura.
14
Sobre o termo ayahuasca, ver sessão 5 da introdução.
14
Como mostra Sandra Goulart (2004), a disseminação do Santo Daime para além da
região amazônica coloca a questão do relacionamento deste movimento religioso com a
sociedade mais ampla. Para a autora, um dos impactos desta disseminação é a inserção
cada vez maior da utilização da ayahuasca na discussão sobre o tema das “drogas”. De
acordo com Goulart, a expansão das religiões que têm como uma de suas bases o
consumo ritualizado de substâncias psicoativas traz à tona novos modos de pensar estas
substâncias.
Por outro lado, a expansão do Santo Daime, acompanhada pela inclusão do debate a
respeito do uso da ayahuasca na discussão sobre a temática contemporânea das
“drogas”, tem impactos importantes também no âmbito deste campo religioso. Quando
começa a se expandir, este movimento religioso chama a atenção da sociedade como um
todo, do Estado, de pesquisadores e da mídia. O Estado, utilizando a lógica da política
proibicionista às “drogas”, chegou a incluir por um período a ayahuasca na lista de
substâncias proscritas pela lei
16
.
A disseminação do Santo Daime e sua inclusão no que Gilberto Velho (1999) chamou
de “mundo das drogas”
17
também tem outra importante implicação. Como mostrou Velho
(1997), o consumo das substâncias que na sociedade contemporânea costumam ser
classificadas como “drogas” atualmente está relacionado à valorização de alguns destes
produtos. Esta valorização afeta seu consumo, que passa a ser ditado pelas lógicas do
mercado.
15
Categoria que costuma englobar Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha. Ver maiores detalhes e
discussão sobre esta categoria na próxima sessão.
16
De acordo com MacRae (1992), em 1985 a Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde
(DIMED), incluiu o Banisteriopsis caapi na lista de produtos de uso proscrito em território nacional,
sem a devida autorização do Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN). Pouco tempo
depois, o CONFEN formou um grupo de trabalho para pesquisar o uso ritual da ayahuasca no
Santo Daime e na União do Vegetal. Após a conclusão desta pesquisa, em 1987, a ayahuasca foi
excluída da lista de produtos proscritos pela DIMED e liberada para uso ritual (MacRae, 1992).
A legalidade do uso ritual da ayahuasca foi novamente questionada em 1988 e 1994, porém o
CONFEN manteve sua decisão anterior de permitir a utilização da bebida em contextos rituais,
incluindo as recomendações de que ela não fosse consumida por pessoas com problemas
psiquiátricos, grávidas ou menores de idade. Em 2004, o Conselho Nacional Antidrogas (CONAD)
suspendeu estas duas últimas restrições e instituiu um grupo multidisciplinar de trabalho para
levantamento e acompanhamento do uso religioso da ayahuasca, bem como para a pesquisa de
sua utilização terapêutica.
17
Velho elaborou o conceito de mundo das drogas” a partir das obras de Georg Simmel (1971) e
Alfred Schutz (1979), que sugerem “a possibilidade de classificar e identificar domínios da
realidade que se distinguiriam através de fronteiras sociológicas e descontinuidades culturais”
(Velho, 1999:84). Estes espaços e domínios simbólicos são chamados genericamente de “mundos”
(idem). Usando este conceito, Velho procura destacar “a necessidade de relativizar e contextualizar
o estudo do que se classifica de droga” (1999:85).
15
No caso do Santo Daime, estas questões aqui levantadas tem duas importantes
conseqüências. Primeiro, a interferência do Estado gera uma negociação com este
movimento religioso tanto a nível nacional quanto internacional a respeito da
legalidade do consumo da ayahuasca; das condições de extração das plantas que são
utilizadas para confeccionar a bebida; e das condições de seu preparo e transporte. Em
segundo lugar, a inserção da ayahuasca numa lógica de mercado levanta importantes
discussões sobre a questão da comercialização de uma substância que costuma ser
considerada “sagrada” pelos grupos que a utilizam
18
.
2. O Santo Daime e as “religiões ayahuasqueiras brasileiras”
Beatriz Labate (2002) incluiu o Santo Daime na categoria “religiões ayahuasqueiras
brasileiras”. Esta categoria refere-se às “religiões” brasileiras que têm como uma de suas
bases o uso ritualizado da bebida ayahuasca: Santo Daime, União do Vegetal
19
e
Barquinha
20
. No âmbito destas religiões, a bebida recebe outros nomes, tais como
“daime”, “santo daime”, “hoasca” e “vegetal”. Labate inclui o que chama de “religiões
ayahuasqueiras brasileiras” num campo mais amplo, definido como a rede
ayahuasqueira” (Labate, 2000). Esta abrangeria também grupos que utilizam a ayahuasca
em outros contextos. De acordo com a autora, nesta rede circulam pessoas, valores, bens
e substâncias (Labate, 2000).
É importante lembrar, porém, que a própria denominação Santo Daime efetua uma
homogeneização entre grupos que se consideram diferentes e que de fato têm uma série
de diferenças e disputas entre si, como é o caso do Alto Santo e do CEFLURIS. Assim,
enquanto a categoria “religiões ayahuasqueiras brasileiras” elaborada por Labate é
operacional do ponto de vista analítico, nos perguntamos quais são as implicações de
englobar numa mesma categoria tradições religiosas marcadamente distintas entre si. Um
primeiro ponto a levar em conta é que esta categoria pode efetuar uma homogeneização
entre estas tradições, minimizando a importância das diferenças que existem entre elas.
18
Não faz parte dos objetivos desta dissertação aprofundar estas discussões. Apenas quero chamar a
atenção para a complexidade do tema.
19
Destes grupos, é a organização que conta com maior número de participantes (cerca de 4500, de
acordo com Brito, 2002). Situa sua origem no baiano JoGabriel da Costa, conhecido como Mestre
Gabriel. Foi criada em Porto Velho, Rondônia, no ano de 1961 (Labate, 2000).
20
Foi criada na zona rural de Rio Branco em 1945. Daniel Pereira de Matos é considerado seu fundador.
Subdividiu-se, posteriormente, em várias igrejas, porém permanece praticamente restrita à cidade de
Rio Branco (Sena Araújo, 2002). É considerada como tendo maior influência da Umbanda com relação
ao Santo Daime e à União do Vegetal (Labate, 2002).
16
Também é importante levar em conta o fato de que esta é uma categoria ética, que pode
não contemplar os pontos de vista êmicos sobre a questão.
Por exemplo, nas narrativas dos participantes do Céu da Mantiqueira, é recorrente a
idéia de que daime e ayahuasca não são a mesma coisa. De acordo com algumas destas
narrativas, para que a bebida possa ser chamada de daime é preciso que ela seja
preparada de acordo com uma série de normas e prescrições rituais. Também é preciso
que ela seja consumida ou “consagrada” dentro de normas doutrinárias, e sob a proteção
da “egrégora do Santo Daime”, as “entidades espirituais” chefiadas pelo Mestre Irineu e
pela Virgem da Conceição. Assim, segundo este ponto de vista, o daime é a ayahuasca
inserida dentro de uma determinada tradição religiosa, marcadamente cristã.
Sandra Goulart (2004) utiliza as categorias “tradição religiosa ayahuasqueira” ou
“religiões da ayahuasca” para designar Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha e faz
um estudo comparativo entre estas três religiões. Apesar de usar estas categorias
inclusivas e abrangentes, a própria autora chama a atenção para o fato de que estas
categorias são analíticas e não correspondem aos pontos de vista êmicos. Pelo contrário,
de acordo com Goulart, o que os participantes de cada uma destas religiões enfatizam
são as diferenças e fragmentações tanto entre elas quanto internas a cada uma. Goulart,
porém, opta por incluí-las em uma única categoria, pois pretende mostrar que fazem parte
de uma mesma tradição. Ela considera que a existência de diferenças, rupturas e conflitos
faz parte da lógica que orienta a dinâmica das “religiões da ayahuasca” no Brasil, que faz
com que a identidade de cada um desses grupos seja construída em contraste com os
demais. Goulart centra seu estudo comparativo exatamente nestes conflitos.
Apenas quero destacar o fato de que quando se usa categorias como estas é preciso
não naturalizá-las, mas, pelo contrário, colocá-las em perspectiva e refletir sobre elas. O
estudo deste campo religioso definido como “religiões ayahuasqueiras brasileiras” é muito
interessante e oferece amplas possibilidades. Ele articula várias áreas do conhecimento,
tais como antropologia da saúde, antropologia da religião, antropologia cognitiva,
etnobotânica, entre outras. Foi somente no Brasil e a partir da década de 20 que foram
criadas estes movimentos religiosos que têm como uma de suas bases o consumo
ritualizado da ayahuasca. Trata-se, portanto, de um fenômeno marcadamente
contemporâneo. Desta maneira, esta área constitui um campo privilegiado para a reflexão
a respeito das questões relacionadas à contemporaneidade.
17
3. Interesse pessoal e interesse antropológico
Não é raro que os antropólogos que pesquisam religiões sejam também participantes
ou simpatizantes das religiões que constituem seu objeto de estudo. Este fato é
recorrente não apenas nas pesquisas sobre religiões ou tradições que utilizam
enteógenos, mas também nos estudos dos cultos afro-brasileiros, por exemplo. No caso
das “religiões ayahuasqueiras brasileiras”, e também de outros contextos onde se utiliza
enteógenos, freqüentemente é enfatizada a importância da participação do pesquisador (o
que pode envolver a ingestão da substância).
A antropóloga Beatriz Labate (2000) chamou a atenção para o fato que os
participantes do Santo Daime e também dos grupos “neo-ayahuasqueiros” pesquisadas
por ela consideram fundamental que o pesquisador tome a bebida nos rituais
21
. Benny
Shannon (2002) faz uma investigação fenomenológica sobre a ayahuasca e usa sua
própria experiência como uma importante fonte de dados. Também o médico francês
Jacques Mabit
22
(2002) enfatiza o fato de que a auto-experimentação por parte do
pesquisador é uma fonte de dados essencial no que diz respeito às investigações
científicas sobre ayahuasca. Mabit relaciona este fato com características que atribui à
própria ayahuasca no contexto estudado por ele: o saber xamânico no Peru e
especialmente na Alta Amazônia peruana. Assim, para o autor, neste caso, “a informação
não pode ser recolhida de fora, mas procede do interior do sujeito” (2002:172). De acordo
com Mabit, a subjetividade seria fundamental para se enfocar de maneira adequada o uso
da ayahuasca, pois “a abolição da distância entre observador e objeto constitui o
central da técnica terapêutica tradicional
23
(idem). Este autor também sugere que o
estudo dos estados modificados de consciência, induzidos ou não por enteógenos, exige
uma mudança de paradigma e “uma ampliação das concepções atuais em vigor (e dos
discursos) com o objetivo de abrir novas vias do pensamento” (2002:174).
Michael Taussig (1993) em sua descrição sobre a região do Putumayo nos mostra uma
maneira interessante de lidar com a questão da subjetividade nas Ciências Sociais. Este
autor opta por assumir completamente sua inserção no texto sua subjetividade como
21
Penso que isto está relacionado com o fato de que nos rituais das “religiões ayahuasqueiras” do Brasil
geralmente é pressuposto que todos os participantes tomem a bebida. Talvez a situação seja diferente,
por exemplo, em pesquisas que enfoquem contextos onde apenas o xamã ou pajé faça uso do
enteógeno.
22
Jacques Mabit é diretor do Centro Takiwasi em Tarapoto, Peru. De acordo com nota explicativa do
livro O uso ritual da ayahuasca (2002), este centro é um espaço dedicado à exploração de alternativas
ao tratamento de toxicômanos mediante a associação da psicoterapia contemporânea e o uso
ritualizado de plantas psicoativas.
18
dimensão constitutiva da análise. Desta maneira, ele privilegia a sua observação, a
interpretação que faz a partir dela e também a sua própria experiência como maneiras de
tentar apreender a experiência alheia. Taussig também afirma que isto se torna mais
necessário quando estamos lidando com experiências relacionadas à ingestão da
ayahuasca. De acordo com ele, como não existe uma experiência padrão com a
ayahuasca, “em algum momento é preciso assumir a história e descrever as noites em
que se toma o yagé
24
em termos de sua própria experiência” (1993:383). É desta maneira
que a experiência do próprio autor aparece como uma dimensão constitutiva fundamental
de sua análise.
No meu caso, a inserção no campo foi marcada por uma relação extremamente
dinâmica de sucessivas aproximações e distanciamentos, questionamentos, conflitos e
tensões internas. Quando estava me preparando para começar o trabalho de campo, eu
mesma me coloquei estas perguntas: como seria a minha relação pessoal com o Santo
Daime agora, como pesquisadora? quais seriam as implicações da minha ligação pessoal
para a pesquisa? E me dirigi para o campo com estas perguntas todas em aberto (e
muitas outras também).
Considero que foi importante tomar o daime nos rituais durante a pesquisa de campo.
A ingestão da bebida neste contexto facilitou a interação com os participantes da
pesquisa. Além disso, minhas próprias experiências com a substância forneceram uma
base importante para que eu pudesse procurar compreender as expressões das
experiências dos participantes do Céu da Mantiqueira, dialogar com elas e refletir a seu
respeito. A ingestão do daime também constitui uma forma de respeitar o ponto de vista
êmico, que vê a bebida como um ser divino, capaz de transmitir grandes ensinamentos.
No Céu da Mantiqueira, existem dois rituais que são “fechados”, ou seja, nos quais
apenas os fardados podem participar: a Concentração
25
do dia 15 e o trabalho de Mesa
Branca
26
. A participação principalmente neste segundo ritual foi fundamental, pois este é
um dos dois trabalhos considerados como sendo dirigidos especificamente para a “cura”
que são regularmente realizados no Céu da Mantiqueira. Sua observação também
levantou uma série de dados e questões interessantes para a pesquisa. Além disso, o fato
23
Aqui o autor está se referindo às técnicas de cura encontradas na Alta Amazônia peruana, onde, de
acordo com ele, “a ayahuasca representa a base do edifício terapêutico” (Mabit, 2002:146),
24
Termo nativo para denominar a ayahuasca.
25
O trabalho de Concentração é realizado todos os dias 15 e 30 de cada mês. Neste ritual, os
participantes ficam sentados. Ele costuma ser caracterizado por períodos de silêncio que podem durar
uma hora ou mais.
26
Ritual direcionado para o desenvolvimento mediúnico dos participantes. É realizado no Céu da
Mantiqueira todo dia 27. Será descrito e analisado no capítulo 2.
19
de ser fardada me possibilitou participar de vários papéis diferentes durante os rituais:
ficar na “corrente”
27
, ser “fiscal”
28
, sentar na “estrela”
29
, etc., o que me permitiu olhar para
os rituais a partir de perspectivas distintas.
Também considero que o meu conhecimento prévio do campo permitiu um acesso
privilegiado às pessoas e às informações e facilitou o estabelecimento de um
relacionamento amistoso e de diálogo. Fui convidada para ficar hospedada na “casinha
das ervas”
30
, um espaço onde pude ter facilidade de acesso aos rituais e outras atividades
comunitárias desenvolvidas no Céu da Mantiqueira, além de ter a oportunidade de
conviver diariamente com algumas pessoas da comunidade, o que teve uma contribuição
inestimável para o enriquecimento dos dados de pesquisa. Também sinto que, por que a
maioria das pessoas que entrevistei me conhecia, houve uma relação de confiança, o
que facilitou as entrevistas.
A sistematização dos meus dados de campo me mostrou a importância da experiência
intensa de imersão no campo, pois percebi que, mesmo já freqüentando o Santo Daime
quatro anos e sendo fardada há três, havia muitas questões e conceitos com os quais
me deparei durante o trabalho de campo a respeito dos quais eu apenas tinha um
conhecimento preliminar e muitos outros dos quais eu sequer imaginava a existência.
Assim, mesmo estando num universo que poderia à primeira vista ser considerado como
sendo “familiar” para mim (até por mim mesma), a imersão no campo e a convivência
diária com as pessoas me mostrou o quanto na verdade uma grande parte dele era
nebulosa e desconhecida.
27
Os participantes do Santo Daime acreditam que, durante os rituais, a união das pessoas forma uma
“corrente” de energia. Esta “corrente espiritual” constitui uma espécie de entidade coletiva a quem
podem ser atribuídas características como harmonia/ desarmonia, força/ fraqueza, etc. Nesse sentido,
pode-se pensar na “corrente espiritual” como uma metáfora do próprio grupo.
28
Os fiscais são pessoas que ficam encarregadas de zelar pelo controle e pelo bom andamento dos
rituais, auxiliando as pessoas que tiverem eventuais dificuldades e cuidando da manutenção do salão”.
A fiscalização é sempre constituída por duas equipes, uma masculina e uma feminina. Esta foi uma
função especialmente interessante de desempenhar, pois, nas vezes em que fiquei na fiscalização a
minha função durante o ritual era exatamente observar com atenção tudo que estava acontecendo.
29
A estrela é uma mesa que fica no centro do salão nos rituais. Ela recebe este nome, pois tem o
formato de uma estrela de seis pontas (nem todas as igrejas daimistas têm a mesa em formato de
estrela). Sobre esta mesa são dispostos uma série de elementos simbólicos importantes, como uma
cruz de Caravaca (cruz de dois braços), também chamada de “cruzeiro”; fotos das lideranças daimistas,
etc. Ao seu redor sentam-se 12 pessoas, seis homens e seis mulheres (no Céu da Mantiqueira este
número é sempre mantido, porém, participei em rituais de outras igrejas do CEFLURIS nos quais o
número de pessoas sentadas ao redor da estrela variava). A estrela de seis pontas é um símbolo
importante no Santo Daime: os fardados utilizam em seu peito um broche com este formato; além disso,
algumas igrejas são construídas na forma de estrela de seis pontas, como é o caso das igrejas do Céu
do Mapiá e do próprio Céu da Mantiqueira.
30
“Casinha das ervas” é o nome dado pelos participantes do Céu da Mantiqueira” a um espaço
onde são realizadas atividades como orações e trabalhos com plantas medicinais.
20
Por outro lado, qualquer posição na qual nos colocamos para fazer uma pesquisa,
inevitavelmente terá suas vantagens e desvantagens. Assim, o fato de ser fardada trouxe
também seus desafios. Um deles é exatamente por conhecer as pessoas previamente
e, durante a pesquisa de campo, ter estabelecido com elas relações de amizade e
afetividade, acabar tendo dificuldade de me aprofundar em algumas questões. Além
disso, esta situação também me colocou numa posição delicada com relação a algumas
informações. Enfim, o lugar em que me encontro exige da minha parte um trabalho
constante de distanciamento e autocrítica. É nesse sentido que faço o esforço de
explicitar e também problematizar as condições de pesquisa.
Optei, portanto, por aceitar a posição na qual me encontro, com suas vantagens e
desafios inerentes, e, a partir dela, procurar construir uma análise antropológica da melhor
maneira que me seja possível, procurando responder às questões levantadas e percorrer
com as pessoas que participaram da pesquisa e os leitores pelas experiências que foram
narradas e desenhadas.
4. Sobre o estudo da experiência
Este trabalho pretende enfocar a expressão da experiência. O enfoque na experiência
está relacionado a uma mudança de perspectiva na própria antropologia. A partir da
década de 80, vemos um deslocamento da ênfase em estruturas e sistemas para pessoas
e práticas e de análises estáticas e sincrônicas para análises diacrônicas e processuais.
De acordo com Sherry Ortner (1994), é neste período que cresce o interesse em estudos
que enfocam dois eixos que envolvem uma série de termos inter-relacionados. No
primeiro eixo temos prática, práxis, ação, interação, atividade, experiência, performance e,
no segundo, agente, ator, pessoa, self, indivíduo, sujeito. Para Ortner, a práxis é o
símbolo-chave desta nova orientação teórica.
Victor Turner também chama a atenção para o surgimento de um “post-modern turn”
(1987:76) na antropologia, no qual passariam a ser enfatizados os processos e as
qualidades processuais. Assim, no “post-modern turn”, a performance e a apresentação
do self na vida cotidiana estão no centro das atenções. O enfoque dirige-se para o agente
empírico e para a maneira como este experiencia as coisas.
Segundo Turner (1981), é preciso ir além das dimensões cognitivas da experiência; é
preciso levar em conta aspectos como a volição e o afeto. Ele afirma que o poder
transformador do ritual não está apenas nos aspectos cognitivos dos seres humanos, pelo
contrário, é retirado “from their human depths (1981:156). Desta maneira, para poder
21
compreender o ritual, é importante levar em conta todos os sentidos e percepções dos
participantes e performers.
É também neste contexto de mudanças e revisões que o corpo torna-se uma
preocupação central da antropologia, passando a constituir uma dimensão que possibilita
pensar vários aspectos da cultura e do self (Csordas, 2000). Indo além de uma tendência
de pesquisas anteriores que tratavam o corpo como uma “tabula rasa”, propõe-se que
este seja visto como uma fonte de agência e intencionalidade. Emergem estudos que
sugerem que a cultura e o self podem ser entendidos a partir do embodiment
31
como uma
condição existencial na qual o corpo é a fonte subjetiva ou o terreno intersubjetivo da
experiência (Csordas 2000:181). Estas novas teorias criticam dualidades conceituais tais
como mente/corpo, sujeito/objeto, sexo/gênero, corpo/embodiment. A questão central
passa a ser a maneira pela qual o corpo é uma condição essencial da vida. Contrapondo-
se a muitas teorias que reduzem a experiência à linguagem, discurso e representação, há
um resgate da tradição fenomenológica numa busca de transcender essas reduções.
Neste contexto de estudos centrados na experiência, Thomas Csordas (1997) propõe
uma abordagem que denomina de “cultural phenomenology”, caracterizada por “a concern
for synthesizing the immediacy of embodied experience with the multiplicity of cultural
meaning” (1997:VII). A partir desta abordagem, a proposta de Csordas é entender como a
cura religiosa funciona e qual a natureza de sua eficácia terapêutica. Em um sumário das
hipóteses sobre a eficácia ritual da cura religiosa, ele chama a atenção para o fato de que
a experiência dos pacientes na cura nunca foi examinada. A premissa estabelecida pelo
autor para o estudo dessa experiência é “that there is an experiential specificity of effect in
religious healing” (1997:3). Segundo Csordas, o locus dessa eficácia é o self. A tarefa que
ele se propõe, portanto, é formular uma teoria do self que permita especificar os efeitos
transformativos da cura religiosa.
Os estudos centrados na experiência e na práxis nos oferecem uma nova perspectiva
para se pensar tanto a teoria antropológica quanto a pesquisa etnográfica. No âmbito
teórico, são colocadas novas perguntas, procurando transcender velhas dicotomias e
complementar ou substituir conceitos consagrados. Já no âmbito da etnografia, constitui-
se uma nova maneira de olhar para o objeto de pesquisa. Este novo olhar, dinâmico,
diacrônico, processual, procura enxergar dimensões da experiência que antes não eram
31
Csordas define o embodiment como “an existential condition in witch the body is the subjective source
or intersubjective ground of experience” (2000:181). Já o self é definido como “an indeterminate
capacity to engage or become oriented in the world, characterized by effort and reflexivity” (1997:5).
22
levadas em conta ou o eram enfatizadas, e mais, procura integrar as várias dimensões
da experiência na análise.
Esta perspectiva é especialmente interessante para tratar das experiências de estados
modificados de consciência e especificamente das experiências com a ayahuasca. O
estudo destas experiências evidencia a articulação das diversas dimensões da
experiência e desafia dualidades e dicotomias que costumam caracterizar as análises
antropológicas.
É nesse sentido que penso que a busca de um diálogo entre a antropologia e a
fenomenologia pode ser muito produtivo para o estudo das experiências relacionadas aos
estados modificados de consciência induzidos pela ingestão da ayahuasca. Assim, foi a
partir dessa perspectiva que me propus a olhar para as expressões das experiências dos
processos de saúde, doença e cura, tomando como ponto de partida para a minha
observação uma comunidade do Santo Daime. Também procurei articular abordagem
teórica e prática metodológica, buscando uma metodologia que possibilitasse considerar
várias formas de expressão da experiência. O que se pretende, portanto, é fazer uma
reflexão sobre as contribuições que este tipo de abordagem pode trazer para a
investigação do fenômeno das “religiões ayahuasqueiras brasileiras”, colocando novas
perguntas e também sugerindo outra perspectiva para as que foram levantadas e
discutidas.
5. Breve nota sobre ayahuasca e experiência
Ayahuasca é uma palavra que vem da ngua quéchua e significa liana ou cipó dos
mortos, da alma, dos espíritos (Luna, 1986). Este termo pode referir-se a uma bebida e
também é o nome popular do componente principal desta bebida, o cipó Banisteriopsis sp
(Fericgla, 1997). Embora as bebidas produzidas com o Banisteriopsis sp sejam
conhecidas pelo nome genérico de ayahuasca, elas recebem mais de 40 nomes distintos
(Fericgla, 1997). Elas são utilizadas em contextos diferentes definidos como: “indígena”
32
;
“vegetalista”
33
; “caboclo”
34
; as “religiões” criadas no Brasil a partir da década de 30: Santo
32
Luis Eduardo Luna contabiliza 72 grupos indígenas que fazem uso desta bebida na Amazônia
Ocidental (Luna, 1986).
33
Segundo Luís Eduardo Luna e Marlene Dobkin de Rios (1986 e 1972, citados em Labate 2002) “os
vegetalistas são curandeiros de populações rurais do Peru e da Bolívia que mantém elementos de
antigos conhecimentos indígenas sobre as plantas, ao mesmo tempo que absorvem algumas influências
do esoterismo europeu e do mundo urbano” (Labate, 2002:231).
34
Mariana Pantoja e Osmildo Silva Conceição (2002) falam sobre o uso do “cipó”, termo nativo para
designar a ayahuasca, entre os seringueiros do Alto Juruá (AC). De acordo com eles, a cultura nativa
23
Daime, União do Vegetal e Barquinha; e também os chamados “neo-ayahuasqueiros”
urbanos. A ayahuasca é conhecida pelas experiências descritas como extraordinárias,
fabulosas e amedrontadoras que é capaz de produzir naqueles que a ingerem (Dobkin de
Rios, 1992; Mabbit, 2002; Shannon, 2002; Taussig, 1993). Também é famosa pelos seus
efeitos de “purga”
35
(Dobkin de Rios,1992; Taussig,1993; Zuluaga, 2002). Ambos são
simbolicamente interpretados de diversas maneiras pelos grupos e indivíduos usuários
desta bebida.
São freqüentes os relatos de sensações de comunhão com o sagrado, fusões com o
cosmos e metamorfoses (Winkelman, 1996, que se refere também a outras “plantas
sagradas”; Shannon, 2002). As pessoas que têm experiências com esta bebida costumam
narrar visões deslumbrantes de arabescos coloridos, seres mágicos, cidades encantadas,
animais, paisagens, e muitos outros. Usa-se aqui o termo visões, mas é importante
ressaltar que é usual que estas experiências tenham efeitos sinestésicos
36
, envolvendo
e muitas vezes arrebatando – também os sentidos do tato, paladar, audição e olfato. Além
disso, é comum serem relatadas modificações nas percepções de tempo e espaço
(Shannon, 2002).
Outro fato que chama a atenção é que a estas experiências tidas como profundas e
intensas freqüentemente são atribuídos poderes de cura. Esta cura costuma ir além de
algo meramente físico, muitas vezes leva as pessoas a reorientarem sua vida e mudarem
seus hábitos (Couto, 2002; Groisman, 1999, 2000; Goulart, 2002; Mabbit, 2002; MacRae,
1992; Peláez, 1996, 2002). Muitos consideram, portanto, que a ayahuasca tem um caráter
transformador sobre aqueles que a ingerem. É também comum que se destaque a
velocidade desta transformação.
Como muitos pesquisadores já afirmaram, o set e o setting
37
, além das próprias
características psicoquímicas da bebida, têm um papel fundamental no seu uso, nos seus
efeitos e nas maneiras como estes são interpretados (Peláez, 1996, 2002; Winkelman,
1996). Trata-se, portanto, de uma experiência cultural e subjetiva (Langdon, 2002) Por
sobre o uso do cipó” teria se formado na interface com o uso nativo da bebida por parte dos povos
indígenas que habitam o Juruá, tais como Kaxinawá, Ashaninka e Katukina.
35
“Purga” é um conceito amplo que indica limpeza tanto física – através dos vômitos e diarréias
freqüentemente produzidos pela ingestão da ayahuasca quanto psíquica (Dobkin de Rios, 1992). De
acordo com Taussig (1993), a “purga” evidencia o entrelaçamento das dimensões física e metafísica,
material e espiritual na experiência da ingestão da ayahuasca.
36
Efeitos nos quais percepções de modalidades mistas são encontradas (Shannon, 2002). A
sinestesia também pode ser definida como a mudança de uma modalidade sensorial por outra
(Peláez, 1996).
37
Set refere-se às características psicológicas do sujeito e suas atitudes em relação à experiência; o
setting faz referência ao entorno social e cultural (Peláez, 2002).
24
outro lado, indícios de que estas experiências teriam recorrências transculturais, o que
levou alguns estudiosos a levantarem a hipótese de que a experiência com a ayahuasca
revelaria aspectos universais da mente humana (Shannon, 2002).
Michael Winkelman (1996) afirma que para podermos compreender as propriedades
das “plantas sagradas” e a maneira como elas agem, é necessário uma abordagem
neurofenomenológica, que articule várias dimensões: o plano fenomênico da experiência;
o plano neurofisiológico relacionado a como essas substâncias agem na mente, no
cérebro e no corpo humano; o plano da cultura que envolve fatores como o set e o setting.
Assim, a análise desse tipo de experiência deve transcender a rígida dicotomia
natureza/cultura que costuma estar subjacente a grande parte da teoria antropológica,
integrando esferas que nossa cultura ocidental contemporânea costuma conceber como
sendo separadas, tais como medicina e espiritualidade, religião e ciência.
Jean Langdon (2002), tratando das experiências com yagé
38
dos índios Siona da
Colômbia, também considera que o uso do Banisteriopsis faz parte de uma experiência
cultural e subjetiva e que, para entender essa experiência, é necessário ir além da análise
dos efeitos psicoquímicos desta substância. Langdon destaca que o uso e os efeitos do
Banisteriopsis devem ser entendidos como uma experiência mediada pela cultura. Como
Winkelman (1996), ela propõe que se tenha uma abordagem neurofenomenológica da
questão.
Para Joseph Fericgla (1997), a forma de atuar e o verdadeiro sentido do que o autor
define como “estados alternativos de consciência” (1997:123), gerados pela ingestão de
ayahuasca ou de outros enteógenos, exige do investigador o uso de todos os seus
recursos de campo e muito mais, pois este objeto de estudo evoca uma dimensão
integradora do fenômeno humano, uma dimensão prática e simbólica, uma dimensão
fisiológica e outra psicológica (1997:123). Fericgla afirma que tal objeto de análise desafia
todos os sistemas explicativos e interpretativos clássicos (idem).
Desta maneira, é possível recortar um campo de estudos das experiências com esta
bebida milenar. Este campo de estudos é fascinante, intrigante e desafiante, pois levanta
uma série de questões que podem, inclusive, nos levar a rever os próprios paradigmas e
premissas da ciência. O estudo deste tipo de experiência também nos induz a uma
reflexão a respeito da dimensão analítico-metodológica da investigação: que tipo de
abordagem utilizar para dar conta de um fenômeno tão complexo, multifacetado e
interessante?
38
Termo nativo para denominar a ayahuasca.
25
Assim, o estudo das experiências com a ayahuasca desafia os limites da própria
ciência. Para podermos olhar para algo que evidentemente vai além dos domínios da
razão humana envolvendo também emoções, sentimentos, sensações é preciso fazer
um esforço para estender os limites dessa racionalidade convencional e olhar um pouco
adiante.
6. Espiritualidade e procedimentos terapêuticos
O que pretendo nesta pesquisa é a partir das expressões das experiências dos
participantes da pesquisa registradas na forma de desenhos e narrativas - e dos dados
coletados durante o trabalho de campo, levantar e definir as principais categorias culturais
envolvidas na experiência dos processos de cura, saúde e doença para os participantes
do Céu da Mantiqueira e procurar compreender estas categorias em sua relação com os
procedimentos terapêuticos
39
grupais, buscando identificar os modelos que motivam e
sustentam estes procedimentos e categorias culturais. Também pretendo identificar e
situar no contexto das relações sociais e procedimentos terapêuticos as pessoas que
trabalham profissionalmente na área da saúde
40
que estão ligados ao Céu da Mantiqueira,
procurando perceber como são suas relações com o grupo.
O Céu da Mantiqueira é o lugar onde realizei meu trabalho de campo. É uma
comunidade do Santo Daime filiada ao CEFLURIS e localizada na serra da Mantiqueira,
no sul do estado de Minas Gerais, na área rural da cidade de Camanducaia. Esta
comunidade começou a se constituir em 1997 e conta atualmente com cerca de 150
pessoas filiadas à igreja, além dos participantes eventuais.
Conta-se que quando foram iniciados os trabalhos espirituais com o Santo Daime
neste lugar, os “guias” e “mentores espirituais” se manifestaram através dos médiuns que
estavam presentes e disseram que ali era um “centro de cura” e que era preciso tomar as
devidas providências para que isto pudesse se concretizar
41
. Hoje, o Céu da Mantiqueira
é definido pelos seus próprios participantes como um “centro de cura”. A temática da cura
tem, portanto, importância fundamental para este grupo, constituindo mesmo um dos
39
Utilizo o termo “procedimentos” no lugar de “práticas” terapêuticas para chamar a atenção para a sua
riqueza simbólica. Mais do que práticas, aqui estes procedimentos são pensados como conversões
práticas de motivações simbólicas.
40
Uso expressões como “pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde” ou “profissionais
da área da saúde” para me referir aos participantes do Céu da Mantiqueira que definiram sua profissão
como sendo ligada à área da saúde, incluindo tanto a biomedicina oficial quanto o campo das terapias
alternativas”.
41
Esta discussão sobre a construção de uma identidade coletiva enquanto “centro de cura” será
aprofundada no Capítulo 2.
26
eixos que contribui para construir sua especificidade e sua identidade. Desta maneira, foi
a partir de interesses que me parecem centrais para o grupo onde realizei meu trabalho
de campo que defini o enfoque desta pesquisa.
Como mostrou Beatriz Labate (2000), existe uma “rede ayahuasqueira” ao redor da
qual circulam pessoas, valores, bens e substâncias (além de símbolos, crenças, práticas,
concepções, rituais, etc.). Esta rede inclui as “religiões ayahuasqueiras brasileiras”, mas
também vai além delas. É neste âmbito – especialmente no circuito das igrejas do
CEFLURIS, porém não ficando restrito a ele – que o Céu da Mantiqueira vem construindo
sua identidade coletiva como um “centro de cura”, tornando-se uma referência entre as
outras igrejas daimistas.
Atualmente são realizados todos os meses dois rituais definidos como sendo
direcionados especificamente para a cura, os trabalhos de Cura e Mesa Branca. Ambos
são considerados como sendo muito importantes pelos participantes da comunidade e
têm também um papel fundamental na dinâmica do grupo. Um dos fatos que demonstra
isso é a constância com que pessoas ligadas a outras igrejas do Santo Daime vêm
participar destes rituais no Céu da Mantiqueira.
Além disso, é disponível aos membros do Céu da Mantiqueira uma ampla gama de
procedimentos terapêuticos, provenientes de diferentes campos como da própria cultura
daimista, que vem desenvolvendo ao longo dos anos uma tradição terapêutica
característica; da biomedicina; de grupos indígenas; de outras tradições religiosas e
também das chamadas “terapias alternativas”. Algumas das mais utilizadas são:
tratamento com os florais da Amazônia
42
, kambô
43
, reiki
44
e psicoterapia (freqüentemente
envolvendo o uso de medicação alopática).
Também chama a atenção a presença de um número expressivo de pessoas que
trabalham profissionalmente na área da saúde entre os participantes da comunidade,
correspondendo a 15% do total de integrantes. Uma de minhas hipóteses é que a
presença desses profissionais na igreja contribui tanto para a consolidação da identidade
42
Sistema de florais desenvolvido por participantes do Santo Daime a partir de essências de plantas da
Floresta Amazônica (ver Capítulo 4).
43
Segundo os relatos coletados durante a pesquisa de campo, a kambô é uma “vacina” de origem
indígena feita a partir de uma secreção extraída de uma nativa da região amazônica. É considerada
como tendo o poder de fazer uma grande “limpeza” no organismo e também fortalecer o sistema
imunológico, ajudando a prevenir e a curar doenças. O mesmo vale para a dimensão espiritual (ver
Capítulo 4).
44
Técnica de cura com as mãos de origem japonesa que nos últimos anos vem se tornando popular no
Ocidente.
27
coletiva como de “centro de cura” quanto para a legitimação desta identidade perante a
comunidade daimista mais ampla.
Um dos desdobramentos relevantes da inserção dos profissionais ligados à área da
saúde no Céu da Mantiqueira é o desenvolvimento de uma tendência das pessoas que
participam da comunidade se tratarem com participantes do mesmo grupo, principalmente
de fazerem psicoterapia com os psicólogos e psiquiatras. De acordo com relatos,
entrevistas e observações de campo, o que distingue este tipo de terapia é a possibilidade
de levar em conta também aspectos espirituais, que seriam ignorados por grande parte
dos profissionais da saúde e que, para os participantes do Santo Daime, representam
uma dimensão fundamental da vida. Outra noção muito recorrente é a de que o daime
tem o efeito de “potencializar” ou “catalizar” o processo terapêutico, aumentando sua
intensidade e acelerando seus resultados.
Estamos, portanto, diante de um contexto onde a interpenetração entre o espiritual e o
terapêutico é tão grande que fica praticamente impossível separar os dois domínios.
Penso inclusive que é possível que neste caso não faça mesmo sentido pensar-se nesta
separação. Identifiquei, assim, o que defino como um duplo movimento convergente e
simultâneo de terapeutização da espiritualidade e espiritualização dos procedimentos
terapêuticos. Desta maneira, os domínios espiritual e terapêutico constituem um
continuum.
Isto indica a possibilidade de que estejam sendo construídas novas leituras, visões e
interpretações a respeito do espiritual, do terapêutico e também a respeito dos
procedimentos, tanto espirituais quanto terapêuticos com relação ao paradigma
biomédico-científico e à cosmologia daimista-espiritual
45
. A própria presença de pessoas
que trabalham profissionalmente na área da saúde no Céu da Mantiqueira é um indício
deste processo, levantando uma série de questões, tais como: qual é o lugar desses
profissionais de saúde na comunidade? como se configuram as relações
terapeuta/paciente neste contexto? como se a convivência entre o paradigma
biomédico-científico e a cosmologia daimista-espiritual?
Sem dúvida este processo que identifiquei no Céu da Mantiqueira é muito mais amplo.
Como mostrou Sônia Maluf (2003), atualmente estamos diante da “emergência de um
vasto campo de intersecção entre novas formas de espiritualidade e práticas terapêuticas
alternativas” (2003:1). Para esta autora, a “dupla implicação entre o terapêutico e o
28
espiritual” está relacionada, sobretudo, ao sentido dado a essa experiência (idem). Ela
chama a atenção para a importância da “experiência terapêutico-espiritual” (2003:17) nas
narrativas tanto de médicos quanto de terapeutas ligados ao que poderíamos chamar de
rede terapêutico-espiritual alternativa.
Parece-me que o estudo do Céu da Mantiqueira oferece uma possibilidade
interessante para a investigação dos valores que vêm orientando esta imbricação entre o
espiritual e o terapêutico, das práticas daí resultantes e das implicações deste processo.
Assim, a partir do estudo de um contexto específico procuraremos compreender os
valores que orientam as práticas do cuidado da saúde neste contexto, buscando a partir
daí levantar questões que estejam também relacionadas à reflexão a respeito das práticas
do cuidado da saúde em outros contextos mais amplos.
45
Aqui o que chamo de paradigma biomédico-científico” e de cosmologia daimista-espiritual” são
pensados como tipos ideais (Weber, 2002). o considero que eles existam em uma forma pura, assim
o uso destes tipos ideais tem como objetivo facilitar a análise e a compreensão.
29
Capítulo 1: Reflexões metodológicas
1. Sobre a importância do trabalho de campo
Atualmente os antropólogos passam por um período de formação acadêmica durante o
qual aprendem as bases teóricas da disciplina, muitas vezes antes de ter qualquer
experiência de trabalho de campo. Aprendem, entre outras coisas, sobre a importância do
trabalho de campo, tema constantemente reafirmado por autores clássicos (Malinowski,
1976; Evans-Pritchard, 1978) e contemporâneos (Carvalho, 1993; Da Matta, 1987;
Gonçalves da Silva, 2000; Peirano 1995; Seeger, 1980). O trabalho de campo torna-se,
então, uma importante motivação para os iniciandos na antropologia. Contribuem para
criar esta aura as afirmações de que o trabalho de campo constitui uma espécie de rito de
passagem
(Da Matta, 1987) ou de estado alterado de consciência (Groisman, 1991) e de
que o pesquisador dificilmente passa por esta experiência sem sair (muitas vezes
profundamente) transformado (Carvalho, 1993; Da Matta, 1987; Evans Pritchard, 1978;
Gonçalves da Silva, 2000).
Aprendemos sobre a importância de ir para campo munidos de uma bagagem teórica e
de perguntas pois é isto que possibilita direcionar o olhar e também torná-lo
propriamente antropológico (Oliveira, 2000). Por outro lado, grande ênfase também na
necessidade de “deixar o campo falar”, ou seja, estar sensível às questões “colocadas
pelo campo”. Assim, considera-se que o trabalho de campo tem uma influência decisiva
nas perguntas que são colocadas e no desenvolvimento da pesquisa (Evans-Pritchard,
1978). Tudo isto contribui para criar uma grande expectativa relacionada à experiência do
trabalho de campo.
No meu caso, tinha contato com a comunidade onde realizei o trabalho de campo
para a dissertação, desde o ano 2000, tendo realizado pesquisa de campo
anteriormente nos anos de 2001 e 2002 para o meu trabalho de conclusão da graduação
em ciências sociais (Rose, 2002)
46
. Estas primeiras experiências de pesquisa de campo,
porém, foram incursões iniciais realizadas na forma de visitas esporádicas. O trabalho de
campo para a minha dissertação de mestrado foi a primeira oportunidade que eu tive de
realizar uma experiência de campo intensiva, tendo permanecido cerca de três meses no
Céu da Mantiqueira. E acho que é realmente impossível não se lembrar de Malinowski e
46
Neste trabalho, meu objetivo principal foi fazer uma análise sobre a noção de cura para os
participantes do Céu da Mantiqueira, buscando estabelecer relações entre a noção de cura e as noções
de saúde, doença e corporalidade. Também procurei fazer uma descrição densa do Céu da Mantiqueira,
de sua história e dos rituais de cura realizados nesta comunidade.
30
ter a vaga sensação de estar sozinho numa praia deserta (Malinowski, 1976), mesmo
quando se está muito distante da Polinésia e até do mar, no meu caso, no sul de Minas
Gerais, na serra da Mantiqueira, cercada por colinas verdes.
Também foi a primeira vez que realizei um trabalho sistemático de observação
participante, tendo meu diário de campo como principal aliado e confidente, e também
fazendo entrevistas, coleta de desenhos e registros fotográficos. Na introdução desta
dissertação fiz uma reflexão a respeito da importância que esta experiência de campo
intensa teve para me ajudar a estranhar o que num primeiro momento poderia ser
considerado como “familiar” para mim. Acrescento aqui que a observação participante
como trabalho sistemático, incluindo o registro e reflexão a respeito de minhas próprias
experiências, também teve um papel fundamental na produção deste estranhamento.
Concordando com os autores que afirmam que é necessário estar atenta às questões
colocadas pelo campo, defini o enfoque em cura e procedimentos terapêuticos a partir de
questões que pareciam ser importantes para os participantes da comunidade onde
realizei meu trabalho de campo. Como desde o início de minha pesquisa para o trabalho
de conclusão de curso da graduação estas pessoas demonstraram interesse pelo meu
trabalho, procurando participar de maneira ativa e crítica do processo de pesquisa, eu me
dirigi para o campo com uma proposta de buscar construir uma etnografia dialógica e
compartilhada, utilizando o diálogo entre pesquisadora e participantes da pesquisa como
uma fonte de dados e um lócus de produção do conhecimento.
2. Da relação entre as diversas etapas de uma pesquisa
Podemos pensar nas relações entre as diversas etapas envolvidas na realização de
uma pesquisa – elaboração do projeto, trabalho de campo, análise dos dados e redação –
como relações espirais (Gonçalves da Silva, 2000), onde todas estas etapas se
influenciam e intercomunicam mutuamente. assim uma “circularidade” entre a
abordagem teórica e a experiência de campo (Gonçalves da Silva, 2000) Também é
importante lembrar que “as sociedades e culturas que constituem o objeto da investigação
antropológica influenciam, de modos variados e decisivos, as teorias sobre a sociedade e
a cultura formuladas a partir desta investigação” (Viveiros de Castro, 1999:153) e
influenciam todas as outras etapas de produção do conhecimento antropológico.
Concordo com os autores que afirmam que é necessário ter tanto uma bagagem
teórica quanto um planejamento prévios ao campo. Gostaria, porém, de chamar a atenção
para alguns aspectos que considero importantes tanto para o trabalho de campo quanto
31
para a própria produção do conhecimento: trata-se dos chamados “imponderáveis da vida
real” (Malinowski, 1976) que, sem vida, também encontram-se presentes nestas
experiências. Desta maneira, mesmo mediante todo planejamento prévio o fluir dos
acontecimentos e as sincronias (aqueles acasos que invariavelmente acontecem) sempre
nos reservam surpresas, e é assim que nos deparamos com questões e situações que
nunca imaginaríamos encontrar e que passam a ser fundamentais para nossa análise.
Durante a análise dos dados e redação da dissertação, percebi o quanto o enfoque
escolhido, a proposta de buscar uma relação de diálogo com as pessoas que participaram
da pesquisa e a abordagem teórica utilizada que desde o início eu procurei manter
estreitamente ligada com a metodologia contribuíram para que eu pudesse
compreender questões fundamentais para os participantes do grupo onde realizei meu
trabalho de campo. Inversamente, elementos importantes da visão de mundo do grupo
me ajudaram a compreender e refletir a respeito da abordagem teórica que fundamenta
esta pesquisa, me levando a notar que existe uma coerência entre a abordagem teórica
centrada na expressão da experiência e alguns aspectos da visão de mundo dos
participantes do Céu da Mantiqueira.
A visão de mundo daimista é marcada por uma interação entre duas dimensões
fundamentais da vida: a “dimensão material” e a “dimensão espiritual”. A primeira diz
respeito aos fenômenos empíricos da vida cotidiana, o mundo visível, enquanto a
segunda está relacionada principalmente ao mundo implícito ou invisível e às
experiências de estados modificados de consciência vivenciadas durante os rituais. Mais
do que dois mundos distintos e separados a existência destas duas dimensões
corresponde a duas formas de perceber o todo (Groisman, 1991). Os fenômenos relativos
à “dimensão espiritual” são concebidos como sendo de grande importância e acredita-se
que tenham influência sobre a realidade empírica. Por outro lado, a “dimensão material”
também é considerada importante, pois está estreitamente relacionada à vida espiritual”
do indivíduo. Assim, o que é fundamentalmente enfatizado é a necessidade de manter-se
um equilíbrio entre estas duas dimensões da realidade. Como veremos adiante, não é
simples colocar na prática este ideal do equilíbrio entre o material e o espiritual, o que
pode gerar tensões tanto a nível individual quanto a nível grupal.
Paralelamente à esta visão mais geral, é recorrente entre os participantes do Céu da
Mantiqueira, em diferentes níveis de percepção e expressão, a não de que o ser
humano seria constituído por vários corpos, entre os quais destacam-se: o “corpo físico”,
32
o “corpo mental”, o “corpo emocional” e o “corpo etérico” ou “espiritual”
47
. Esta noção
parece estar relacionada a uma influência da Fraternidade Branca
48
que pode ser
fortemente sentida no grupo. O que é importante ressaltar aqui é que, da mesma maneira
que é enfatizada a necessidade de manter um equilíbrio entre as dimensões material e
espiritual da realidade, acredita-se que deve haver um equilíbrio entre todos os corpos
que constituem o ser humano.
Foram estes dois importantes aspectos da visão de mundo grupal que me levaram a
refletir a respeito da abordagem teórica centrada nas múltiplas dimensões da experiência.
A coerência que identifiquei entre a visão de mundo do grupo e esta abordagem está
relacionada ao fato de que, enquanto os antropólogos abordados afirmam que as várias
dimensões da experiência devem ser integradas na análise (Csordas, 1997, 2000; Turner,
1981; Winkelman, 1996), os participantes do Céu da Mantiqueira também enfatizam esta
integração ao afirmar que as dimensões material e espiritual e que os corpos que
constituem o ser humano e aqui é possível pensar numa analogia entre estes corpos e
as várias dimensões da experiência – devem estar em equilíbrio.
Além disso, a noção dos vários corpos me levou a refletir a respeito do conceito de
embodiment proposto por Csordas (1997, 2000). Penso que no caso do presente estudo,
para poder compreender as expressões da experiência dos participantes do Céu da
Mantiqueira, quando se pensa no conceito de embodiment, é necessário levar em conta
os vários corpos que os participantes do Céu da Mantiqueira afirmam existir. Como
veremos mais à frente, a noção de que existem vários corpos fundamenta tanto os rituais
daimistas quanto os procedimentos terapêuticos neste grupo, e tanto rituais quanto
procedimentos terapêuticos são concebidos como tendo efeitos em um, vários ou todos
os corpos citados.
47
Esta discussão sobre a concepção dos vários corpos e sua influência para os procedimentos rituais e
terapêuticos será aprofundada no capítulo 4.
48
A Fraternidade Branca é um grupo fundado em 1931 nos EUA por espiritualistas e ocultistas. De
acordo com Amaral (1998, citado em Labate, 2000), esta é uma importante referência no universo Nova
Era. Existe na casinha das ervas”, um altar dos mestres ascencionados da Fraternidade Branca. Neste
altar da Fraternidade Branca, estão representados através de imagens sete mestres e sete raios,
correspondentes aos sete dias da semana. Cotidianamente são realizadas invocações para o mestre e
o raio do dia. Os moradores das redondezas, os hospedes da comunidade e os visitantes são
convidados a participar dessa prática, de forma que estas informações vão se difundindo entre os
participantes do grupo.
33
3. Trabalhos espirituais, plantas e culinária
Cheguei ao Céu da Mantiqueira em seis de janeiro de 2004, um pouco preocupada,
pois pretendia resolver a questão da estadia durante o trabalho de campo. Para meu
grande alívio, tudo se decidiu numa conversa de menos de cinco minutos. Fui convidada
pela “madrinha” da igreja
49
para ficar hospedada na “casinha das ervas” e fazer as
refeições na casa dela. Desta maneira, uma semana depois eu voltei para para ficar,
munida de duas mochilas enormes que, além de umas poucas roupas e coisas pessoais,
continham toda minha parafernália de pesquisa: cadernos, canetas, materiais de
desenho, papéis, livros, gravador, fitas, máquina fotográfica, filmes, etc.
Meu trabalho de campo durou cerca de três meses, sendo dividido em duas etapas
com um intervalo entre elas. A primeira etapa durou cerca de um mês e foi um período de
ambientação e mapeamento do campo. Realizei um levantamento dos dados referentes
ao perfil dos participantes da comunidade mediante consulta às fichas da secretaria da
igreja
50
. Também dediquei-me bastante às entrevistas, tendo feito, inclusive, uma viagem
para São Paulo para entrevistar alguns participantes do Céu da Mantiqueira que
trabalham profissionalmente na área da saúde e residem nesta cidade. Na segunda etapa
do campo, que durou cerca de dois meses, eu dediquei-me mais à permanência na
comunidade, à convivência intensa com as pessoas, à participação nos rituais e outras
atividades comunitárias e às conversas informais, além do trabalho de registro no diário
de campo, buscando aprofundar as questões que havia levantado anteriormente e
também levantar novas questões.
Durante minha estadia no Céu da Mantiqueira, participei de um total de 22 rituais,
sendo cinco Hinários
51
; seis Concentrações; três Trabalhos de Iniciantes
52
; três Trabalhos
49
Os grupos daimistas costumam ser dirigidos por pelo menos uma “madrinha” e um “padrinho”. Estas
pessoas costumam ter considerável influência nas comunidades daimistas, freqüentemente sendo
responsáveis pelo “comando” dos “trabalhos espirituais”. Neste trabalho, quando eu usar os termos
madrinha e padrinho sem o acompanhamento de nomes próprios, estarei referindo-me aos dirigentes do
Céu da Mantiqueira.
50
Quando a pessoa filia-se à igreja ela preenche uma ficha onde estão dados como nome, idade, sexo,
profissão, etc (ver cópia de ficha de filiação no anexo 1). Este material foi disponibilizado para consulta,
facilitando assim meu trabalho de mapeamento do campo.
51
Ocasião em que se canta um determinado hinário (conjunto de hinos em geral “recebidos” pela
mesma pessoa), seguindo o calendário oficial do CEFLURIS (ver calendário do Céu da Mantiqueira no
anexo 3). Costuma ser considerada uma ocasião festiva.
52
Este é um trabalho realizado uma vez por mês no Céu da Mantiqueira sendo direcionado
especialmente para os “iniciantes”, ou seja, pessoas que estão indo tomar daime pela primeira vez.
Antes do início do ritual, realiza-se uma reunião com estas pessoas, durante a reunião é feita uma
entrevista com os “novatos” e eles preenchem uma ficha de anamnése (ver cópia desta ficha no anexo
2). Também são explicados alguns fundamentos da doutrina e dos rituais daimistas. Tive a oportunidade
de participar de duas dessas reuniões.
34
de Cura; três Trabalhos de Mesa Branca e duas Missas
53
. Pode-se, assim, ter uma idéia
da intensidade da vida ritual desta comunidade, pois realiza-se cerca de um ritual por
semana e muitas vezes mais. Além disso, tive a oportunidade de participar de algumas
atividades especiais que contribuíram muito para a pesquisa.
Uma destas atividades foi um feitio que durou uma semana. O feitio é o ritual de
preparo do daime. Este foi um feitio especial, pois foi realizado em comemoração do
aniversário de sete anos do Céu da Mantiqueira. Assim, pela primeira vez, o daime foi
produzido apenas com a matéria prima e pessoas de lá (geralmente, parte da matéria
prima, “jagube” e “rainha”, costumam vir do Céu do Mapiá. Também costumam vir
residentes do Céu do Mapiá para ajudar na coordenação do feitio).
Além disso, tomei parte no preparo coletivo de tinturas de ervas para serem aspergidas
na igreja durante os rituais ou administradas por via oral em caso de necessidade. Essas
tinturas são usadas em rituais no Céu da Mantiqueira cerca de um ano em caráter
experimental. Seu uso tem como base as propriedades das plantas que as compõem,
assim, plantas consideradas estimulantes, como o alecrim, são utilizadas em momentos
nos quais que se sente que a “corrente” está precisando de um estímulo; plantas
consideradas calmantes, como o hortelã e a menta são utilizadas para trazer
tranqüilidade
54
.
Outro evento importante que aconteceu durante minha permanência em campo foi a
inauguração da igreja nova que está sendo construída no Céu da Mantiqueira. Esta
inauguração foi um ritual que contou com a presença do padrinho Alfredo e sua
“comitiva”, ou seja, o grupo de pessoas que costumam acompanhá-lo em suas viagens;
além de muitas pessoas ligadas a outras igrejas do CEFLURIS. Alfredo Gregório de Melo,
conhecido como “padrinho Alfredo”, é um dos filhos de Sebastião Mota Melo. Atualmente,
o padrinho Alfredo é o presidente do CEFLURIS e sua visita à igreja é considerada como
uma ocasião muito importante. Neste caso, isto ficou muito claro tanto pelos preparativos
que antecederam sua visita, que envolveram um grande número de pessoas e um
trabalho muito intenso de organização, quanto pelo número de participantes que
estiveram presentes no trabalho que ele dirigiu (cerca de 300 pessoas).
53
A Missa é um ritual realizado nas datas das “passagens” (mortes) das principais lideranças daimistas;
em outras datas como a Semana Santa; e nas primeiras segundas feiras de todos os meses, para as
almas. Inicialmente reza-se o terço e a seguir são cantados dez hinos do Mestre Irineu específicos para
este ritual, sem acompanhamento de instrumentos musicais. Intercalando cada um dos hinos, são
rezados três Pai-Nossos e três Ave-Marias (Goulart, 2004).
54
Ver maiores detalhes sobre o uso de tinturas no Céu da Mantiqueira no capítulo 4.
35
Além disso, participei das orações realizadas todos os dias pela manhã no espaço
onde eu estava hospedada e de atividades comunitárias como terços
55
; ensaios de
hinários; festas de aniversários e aulas de yoga que estavam sendo ministradas
gratuitamente uma vez por semana na comunidade.
Motivada pela idéia de usar também minha própria experiência como fonte de dados,
utilizei o critério metodológico de experienciar pessoalmente os procedimentos
terapêuticos disponíveis aos participantes do u da Mantiqueira na medida do possível.
Assim, durante a estadia em campo, além de participar dos rituais daimistas, fiz um
tratamento com os florais da Amazônia e tomei aplicações da “vacina” kambô
56
.
No cotidiano me engajei ativamente no trabalho com as plantas medicinais coordenado
pela madrinha e do qual participam algumas moradoras das redondezas. Este era um
espaço que me possibilitava a convivência diária com estas pessoas e o acesso aos seus
conhecimentos sobre plantas medicinais. Aproveitava, então, para levantar nas conversas
tópicos do meu interesse, tirar dúvidas relacionadas à pesquisa e aprofundar as questões
levantadas. Foi assim que participei do planejamento e preparo de canteiros, plantio,
colheita e desidratação de plantas para preparar banhos de ervas, chás e misturas para
defumação. Esta produção era destinada principalmente à comercialização, sendo alguns
produtos, como as misturas para defumação, também utilizados na igreja
57
.
Outro espaço que tornou-se privilegiado para a interação com as pessoas foi o preparo
das refeições. Como eu fazia minhas refeições diárias na casa da madrinha, nós sempre
cozinhávamos juntas muitas vezes acompanhadas de mais participantes da
comunidade – e este tornou-se um momento especial para o intercâmbio de informações.
Notei neste contexto um inegável caráter social permeando toda a questão da
alimentação. O evento de comer juntos é importante na sociabilidade do grupo,
principalmente para os moradores das redondezas, pois é um momento no qual as
pessoas se encontram.
Tanto a culinária quanto o evento de fazer as refeições foram fatores que tiveram uma
contribuição decisiva no direcionamento do meu olhar para um enfoque na estética, que
55
No Céu da Mantiqueira, todas as segundas feiras é realizado um “terço para as almas”. O terço
designa ao mesmo tempo um objeto (um cordão com um número definido de contas, em um
espaçamento também definido e com uma cruz) e uma seqüência de preces que costuma ser marcada
por este objeto (as suas contas servem para contar as preces). Depois de rezado o terço, são cantados
alguns “pontos” para as almas.
56
Ver capítulo 4.
57
Esta produção era artesanal, sendo direcionada principalmente para o “empório” da igreja. O
“empório” é uma loja que funciona após os trabalhos espirituais, onde os participantes do Céu da
36
acompanha todas as relações sociais que vou tratar no segundo capítulo. A estética
também é muito enfatizada tanto no preparo quanto no decorrer dos rituais realizados no
Céu da Mantiqueira.
Com relação ao preparo das refeições, imediatamente chamou minha atenção todo o
cuidado e o tempo despendidos com esta atividade, que muitas vezes perpassava todo
nosso dia. Muitas vezes pela manhã já acendíamos o fogão à lenha para cozinhar o feijão
e depois eu saia para colher nas hortas as verduras e temperos para nosso almoço do
dia. A madrinha também não se cansava de me lembrar que “nós somos do povo do
capricho”, me mostrando a importância de se fazer as coisas com cuidado, atenção e
carinho.
A culinária constituiu também uma oportunidade para que eu pudesse tentar
estabelecer uma reciprocidade para com as pessoas da comunidade. Assim, procurei
compartilhar o que pude dos meus conhecimentos e, enquanto aprendi a usar um fogão a
lenha e fazer pamonha e bolo de milho, ensinei como se faz granola, gersal, tofu e bifes
de soja.
4. Técnicas de pesquisa
Utilizei como técnica fundamental de pesquisa a observação participante,
acompanhada pelo registro do que estava sendo observado e também das minhas
próprias experiências além de impressões, dúvidas, anseios, emoções, no diário de
campo. Como parte da observação participante, fiz entrevistas acompanhadas da coleta
de desenhos. Além disso, realizei registros fotográficos.
Para selecionar as pessoas que iria entrevistar, utilizei dois critérios: um planejamento
feito durante a redação do projeto de pesquisa e os dados levantados no mapeamento do
campo. Fiz doze entrevistas, sendo sete com pessoas que trabalham profissionalmente
na área de saúde. As entrevistas foram realizadas de maneira semi-aberta, sendo
baseadas num roteiro elaborado previamente. Este roteiro consistia numa série de temas
e sub-temas a respeito do qual eu pedia que as pessoas falassem. Os temas principais
diziam respeito à trajetória da pessoa; seu trabalho terapêutico (no caso das pessoas que
trabalham profissionalmente na área da saúde) e visões a respeito de saúde, doença,
cura e corpo. As entrevistas duraram cerca de hora cada, tendo sido realizadas em
Mantiqueira podem expor os seus produtos. Gera-se, assim, uma fonte de renda para estas pessoas.
Além disso, parte dos lucros arrecadada é direcionada para a construção da igreja.
37
diferentes lugares, como casas e consultórios dos entrevistados e também na casa onde
eu estava hospedada.
Seguindo as normas de ética estabelecidas pela Resolução 196/96, do Conselho
Nacional de Saúde, todos os entrevistados receberam e assinaram um termo de
consentimento livre e esclarecido, cujo objetivo era informar estas pessoas a respeito da
pesquisa e de seus objetivos e também garantir a elas que os dados coletados seriam
utilizados apenas para fins científicos. Além disso, optei por manter o anonimato dos
entrevistados para evitar a possibilidade de criar qualquer risco ou constrangimento para
eles.
Para trazer para a prática etnográfica o enfoque teórico que escolhi utilizar, optei por
um procedimento metodológico que consistia em, durante as entrevistas, pedir às
pessoas que desenhassem alguma experiência marcante que haviam tido com o daime.
Depois que o desenho estava pronto eu conversava a respeito dele com a pessoa e pedia
que ela me explicasse o que quis expressar ali. Durante a pesquisa de campo, obtive
nove desenhos, sendo que nem todos foram realizados imediatamente após as
entrevistas, nem todos os entrevistados desenharam e alguns fizeram mais de um
desenho. Motivada por esta cnica, também realizei durante o trabalho de campo quatro
desenhos nos quais procurei expressar experiências que havia tido neste período. Estes
fizeram parte do material de reflexão a respeito de minhas próprias experiências.
A coleta de desenhos foi uma das técnicas que encontramos para colocar na prática a
proposta teórica de levar em conta múltiplas dimensões e formas de expressão da
experiência. Foi muito interessante colocar em prática este procedimento, pois permitiu
trabalhar com o lúdico e o estético, estimular a criatividade e a expressividade, além de
gerar momentos de descontração e diversão. Também possibilitou a obtenção de um
material muito rico e interessante que sem dúvida contribuiu muito para o enriquecimento
da análise.
5. Algumas considerações sobre terapias religiosas e imagens
Miriam Rabelo (1999b) fornece uma perspectiva interessante para pensarmos nossa
abordagem centrada nas várias formas de expressar a experiência, mostrando a
importância das imagens nos tratamentos religiosos. De acordo com Rabelo (1999b), nos
estudos de tratamentos religiosos, além de compreender a dinâmica interna do ritual, é
necessário também ampliar o foco da análise, buscando articulação com contextos mais
amplos nos quais se desenvolve a experiência da doença e da cura. Neste sentido, a
38
autora sugere, por um lado, a investigação dos processos de interação ou redes sociais
que sustentam determinadas interpretações e lhes conferem legitimidade e, por outro, a
análise da relação “entre os símbolos e práticas rituais e o próprio curso da doença, visto
aqui como realidade social e biológica” (1999b:55). A autora destaca o papel da imagem
na cura religiosa (Rabelo, 1999b; Rabelo, Cunha e Schaeppi, 1999). Para ela, é a
transformação de diferentes modelos de cura religiosa em imagens e práticas que
possibilita uma ressignificação da experiência do doente (Rabelo, 1999b:54).
Rabelo, Cunha e Schaeppi consideram o “estudo dos modos de imaginação
desenvolvidos no curso da participação religiosa” (1999:230) como um dos caminhos para
a abordagem da experiência de indivíduos que buscam tratamento em agências
religiosas. De acordo com estas autoras, “todo tratamento religioso oferece a seus
clientes e fiéis em potencial um conjunto de imagens a serem trabalhadas” (idem). Neste
sentido, “a religião não opera primeiro ou especialmente no plano do discurso intelectual
abstrato... mas mediante imagens que apelam aos sentidos e convidam à ão”
(1999:231). Assim, a partir da imagem como “imagem ato” ou imaginação, é possível
dirigir a atenção “para o modo como o universo religioso é gradativamente incorporado à
vida” (idem).
Segundo Rabelo, Cunha e Schaeppi (1999), a transformação da experiência efetuada
por intermédio dos tratamentos religiosos está relacionada a um novo modo de imaginar o
contexto da aflição. Desta maneira, a compreensão das trajetórias religiosas exige uma
reflexão sobre o papel da imaginação na configuração das experiências vivenciadas. Por
fim, elas chamam a atenção para o fato de que a produção de imagens em terapias
religiosas envolve uma dimensão intersubjetiva, pois as imagens “sempre se produzem,
remodelam e mantém em contextos de interação” (1999:258). Desta maneira, falar destas
imagens ou de sua produção implica em dar conta “de uma dinâmica relacional, o que
inclui também tratar de interesses e projetos, questões de poder e legitimação”
(1999:257).
Rabelo, Cunha e Schaeppi (1999) tratam de imagens de um tipo diferente das que
utilizamos como dados de pesquisa. A análise destas autoras não se refere a desenhos
produzidos pelos participantes da pesquisa, mas sim a uma “paisagem interna” ou a
imagens religiosas consagradas dentro de determinado contexto social. Apesar disso,
consideramos que suas reflexões constituem um ponto de partida interessante para
pensarmos a respeito do procedimento teórico-metodológico de coletar desenhos
expressões das experiências dos participantes do Céu da Mantiqueira como dados de
39
pesquisa. Estes desenhos e as narrativas sobre eles podem ser considerados como uma
maneira dos participantes do Céu da Mantiqueira comunicarem as imagens relevantes
para eles. Desta maneira, assim como a análise das narrativas, a análise destes
desenhos pode constituir um meio de acesso às experiências destas pessoas. Esta
análise também pode contribuir para que compreendamos as categorias culturais
importantes relacionadas às experiências de saúde, doença e cura. Por fim, chamo a
atenção para a possibilidade de que o trabalho com desenhos contemple dimensões da
experiência que não são abrangidas pelas narrativas verbais ou escritas.
6. Fotografia e interdição ritual
Utilizei a fotografia como um instrumento de registro de rituais, procedimentos
terapêuticos e atividades comunitárias importantes e relevantes para a pesquisa. A
fotografia foi um fator importante no estabelecimento de relações de reciprocidade, pois
muitas fotografias foram presenteadas e, além disso, fiz alguns registros fotográficos
atendendo a pedidos.
O uso da imagem fotográfica na pesquisa antropológica abre novas possibilidades de
representação que vão além da voz do outro, permitindo que os relatos etnográficos
incluam também “os corpos, faces, gestos, símbolos e olhares do outro” (Bittencourt,
1994:231). Assim, utilizo a fotografia como um instrumento que pode ajudar tanto a olhar
para as várias dimensões da experiência, quanto a registrá-las e pensar sobre elas.
Considero também que a fotografia pode contribuir para estimular a reflexão dos
participantes da pesquisa a respeito de suas experiências. Além disso, a fotografia
consiste em mais uma maneira de tentar transpor esse caráter vivo e multifacetado da
experiência humana para a etnografia, através da interação dinâmica entre texto e
imagem.
A utilização da fotografia também levantou uma reflexão interessante sobre a relação
entre a fotografia e a interdição ritual, principalmente em duas ocasiões. A primeira delas
foi durante o feitio. Eu havia estabelecido o propósito de registrar todas as etapas do
preparo do daime: colheita das folhas e do cipó, limpeza das folhas, “raspagem” e
“bateção” do “jagube”, cozimento e “apuração” do daime.
Para compreendermos a relação entre a interdição ritual e a minha intenção de
fotografar todas as etapas do feitio, é necessário examinarmos alguns aspectos da
cosmologia do Santo Daime. A doutrina daimista é fundamentada numa polaridade
masculino/feminino e acredita-se que estas duas “energias” sejam complementares
40
(Groisman, 1991; MacRae, 1992). Assim, o “salão”, espaço onde são realizados os rituais,
é dividido em dois lados ou “alas”, masculina e feminina. Esta polaridade é estendida às
plantas que compõe o daime: o cipó “jagube” é identificado com o masculino, com
“Juramidam”
58
e com a “força”, enquanto a folha “rainha” é identificada com o feminino,
com a Rainha da Floresta ou a Virgem da Conceição e com a “luz” ou a “miração”
59
. Desta
maneira, as várias etapas do feitio citadas são distribuídas entre os participantes da
comunidade, sendo que a parte relacionada com o jagube – colheita, “raspagem” e
“bateção” e também o cozimento do daime são tarefas realizadas exclusivamente pelos
homens
60
.
Eu havia iniciado o trabalho de registro fotográfico do feitio quando começou a
“bateção” do “jagube”. Este é um momento bastante intenso do ritual, pois o cipó deve ser
batido até ser transformado em fibras finas. Este trabalho é feito manualmente com
marretas de madeira. Os homens posicionam-se em filas, uma na frente da outra, e
batem com as marretas no “jagube” compassadamente. A “bateção” pode durar vários
dias e os homens vão se revezando em turnos.
Como eu queria fotografar também esta etapa do feitio, expliquei ao padrinho minhas
intenções e pedi autorização para tirar as fotografias. E foi assim que eu, antropóloga, de
saia e máquina fotográfica em punho, pude ter acesso a este espaço exclusivamente
masculino. É claro que uma presença como a minha naquele lugar, naquele momento,
dificilmente passaria despercebida, e repetidamente tive que explicar o que eu estava
fazendo ali e afirmar que já havia pedido autorização. Mesmo mediante estas explicações,
senti o ambiente tenso, e fui explicitamente solicitada a realizar minha tarefa o mais rápido
possível.
58
De acordo com Groisman (1991), “Juramidam” é “uma expressão sintética que reúne o todo (cosmos-
jura-pai), ou seja, a fonte de poder espiritual, e o coletivo (sociedade-midam-filhos), a força da luta dos
espíritos encarnados” (1991:162). Juramidam também é identificado com o Mestre Irineu. Este autor
afirma ainda que Juramidam e a Rainha da Floresta correspondem a duas entidades do plano espiritual
que fundamentam a cosmologia daimista (Groisman, 1991).
59
“Miração” corresponde à sensação física e espiritual produzida pela ingestão do daime articulada
com a prática dos ensinamentos doutrinários, na qual o indivíduo experimenta uma nova percepção do
mundo” (Groisman, 1991:113). A miração traz sensações de transcendência e revela ao indivíduo as
experiências mais profundas da espiritualidade (Groisman, 1991).
60
De acordo com esta lógica, poderia se pensar que as tarefas ligadas à folha seriam de
responsabilidade exclusivamente feminina, porém, embora elas sejam consideradas uma atribuição
feminina, é permitido que os homens participem. Fiquei intrigada com este fato e tentei compreende-lo,
porém as minhas perguntas sobre este assunto foram todas respondidas com afirmações que diziam
que as coisas eram assim com base na “tradição”, o que não permitiu esclarecer minhas dúvidas.
41
Foto 1: “bateção”
Foto 2: “limpeza da folhas”
42
Outra oportunidade que tive para vivenciar esta relação entre fotografia e interdição
ritual foi quando quis fotografar o atendimento mediúnico que acontece durante o trabalho
de Mesa Branca. Estava decidida a fazer este registro, pois tinha me proposto a fotografar
os rituais direcionados especificamente para a cura e os procedimentos terapêuticos
realizados no Céu da Mantiqueira. Como veremos adiante, o atendimento mediúnico
consiste num momento bastante denso do ritual de Mesa Branca, pois é quando alguns
“médiuns” considerados como sendo “mais desenvolvidos” retiram-se para um recinto
separado onde “recebem” os “doutores” da “falange” de Bezerra de Menezes
61
para
poderem “atender” às pessoas
62
.
Como no caso do feitio, neste caso também havia pedido autorização prévia para
fotografar. Esta autorização havia sido concedida, porém com alguma reticência. Apesar
disto, na hora que me dirigi para a “sala dos atendimentos” para fazer as fotografias, os
responsáveis pela coordenação deste espaço me pediram para voltar em outro momento.
Senti-me constrangida em insistir mais e acabei optando por não fotografar este
acontecimento.
Ambas as situações descritas são momentos rituais carregados de dramaticidade e
intensidade. É importante lembrar que as pessoas envolvidas nelas (inclusive a
pesquisadora) estavam sob os efeitos do daime, com sensações e sensibilidades à flor da
pele. Desta maneira, qualquer movimento e especialmente acontecimentos não usuais
como o ato de fotografar adquiriam um significado especial nestes contextos.
Apesar de não ter perguntado explicitamente a razão destes constrangimentos, a
reflexão posterior sobre estes dois acontecimentos me levou a pensar que a sensibilidade
das pessoas com relação à fotografia nestes momentos pode estar relacionada à
seriedade com a qual são encarados os rituais daimistas. Esta seriedade pode ser um dos
elementos que faz com que em determinadas situações a fotografia seja alvo de
interdições rituais. Nestas ocasiões durante as quais acredita-se que seja possível
estabelecer uma ponte entre o lado “material” e o lado “espiritual” da realidade, uma
comunicação com o “mundo astral”, é recomendado que todas as ações sejam comedidas
e controladas.
61
Bezerra de Menezes é uma entidade importante do espiritismo kardecista. Afirma-se que ele foi um
dos “guias” de Sebastião Mota Melo antes mesmo deste ingressar no Santo Daime (Groisman, 1991).
No Céu da Mantiqueira, Bezerra de Menezes é considerado um importante “mentor espiritual”.
62
Ver análise detalhada do atendimento mediúnico no capítulo 2.
43
7. Negociações e amizades
É importante lembrar que as relações estabelecidas durante a pesquisa de campo são
relações entre seres humanos, com emoções e subjetividades. Como em qualquer outro
contexto, também neste caso estas relações são fundamentalmente relações de
negociação (Velho, 1978): negocia-se tanto significados, quanto lugares, físicos e
simbólicos, nos quais as pessoas (no caso o pesquisador ou pesquisadora) se colocam e
são colocados. Sem dúvida, as relações estabelecidas entre as pessoas durante o
trabalho de campo terão uma influência decisiva na coleta de dados e,
conseqüentemente, no texto etnográfico. Desta maneira é importante problematizarmos e
refletirmos a respeito das relações que construímos e dos lugares em que nos colocamos
e somos colocados durante a pesquisa de campo para se ter clareza a respeito das
condições de produção do conhecimento. Entre outras coisas, devemos nos perguntar o
que levou as pessoas deste grupo a nos aceitarem (Seeger, 1980).
Também é importante recuperar esse lado extraordinário e extático” das relações
entre pesquisador e pessoas do grupo onde o trabalho de campo foi realizado (Da Matta,
1987:173), levando em conta a importância do sentimento e da emoção e considerando a
subjetividade e a carga afetiva que a acompanha como partes constitutivas da pesquisa
antropológica (Da Matta, 1987).
Como afirmei, dirigi-me para o campo com uma proposta de construir relações de
diálogo e interlocução com os participantes do Céu da Mantiqueira. De certa maneira,
esta proposta foi facilitada pelo fato de tratar-se de pessoas que eu já conhecia. Assim, foi
um pouco amenizada a sensação de ser uma estranha em um lugar desconhecido.
Mesmo assim, não se pode ignorar o fato de se estar entrando na vida dessas pessoas e
em seu cotidiano, morando em suas casas, participando de seus trabalhos espirituais e
muitas vezes partilhando as suas experiências mais íntimas. Também não se pode
ignorar o fato de que passado um tempo, talvez justamente quando elas já estivessem se
acostumando com a sua presença ali, você simplesmente vai embora, levando saudades
e muitas lembranças (e registros etnográficos) dos momentos vividos ali.
Penso que minha posição como pesquisadora teve um papel de abrir portas e facilitar
as coisas durante o trabalho de campo, contribuindo para justificar e legitimar perante o
grupo a minha presença ali. No geral, os participantes do Céu da Mantiqueira
demonstraram interesse pela minha pesquisa, procurando colaborar para sua realização.
Em parte, esta aceitação pode ter sido motivada por um interesse na divulgação do Santo
Daime e dos trabalhos realizados no Céu da Mantiqueira. A realização de pesquisas
44
acadêmicas sobre Santo Daime é estimulada, pois considera-se que isto pode ajudar no
esclarecimento dos preconceitos que ainda existem com relação ao assunto.
Foi a partir desta posição como pesquisadora que fui construindo a rede de relações
estabelecidas durante o trabalho de campo, dentro dos espaços de interação que
descrevi na segunda seção deste capítulo: rituais daimistas, trabalho com as plantas
medicinais, preparo das refeições e atividades comunitárias. Estas relações foram
fundamentalmente amistosas e estabeleci como premissa metodológica procurar evitar
qualquer tipo de conflito.
Como mostrarei adiante, apenas uma parte dos participantes do Céu da Mantiqueira
mora na região de Camanducaia, sendo que a grande maioria reside em São Paulo e em
outras cidades mais ou menos próximas e viaja para a igreja para poder participar dos
trabalhos espirituais. Assim, durante o cotidiano eu convivia mais com os moradores das
redondezas: as mulheres que trabalhavam no projeto das ervas medicinais, os homens
que trabalhavam na horta e na produção de húmus
63
, as pessoas que participavam das
orações matinais realizadas na casinha das ervas, os que comiam diariamente conosco
na casa da madrinha ou vinham fazer visitas e os que participavam das atividades
comunitárias. Estas pessoas com quem eu me relacionava diariamente e podia trocar
informações de maneira constante foram importantes colaboradoras da minha pesquisa.
Com uma outra parte dos participantes do Céu da Mantiqueira eu mantive relações um
pouco mais distantes, pois nos encontrávamos principalmente nos trabalhos espirituais,
tendo uma interação menor.
Numa busca de tornar a observação realmente participante e também de procurar
tornar a minha presença útil não apenas para mim e minha pesquisa, me engajei
ativamente nas atividades comunitárias, ajudando em mutirões e em tarefas como
limpeza e organização da igreja e preparo dos rituais. E talvez tenha até exagerado, pois,
em alguns momentos, me encontrei tão envolvida nestas atividades que tive dificuldades
de ter tempo para manter o registro no meu diário de campo. Nestes momentos, então, eu
procurava deixar as coisas fluírem e viver intensamente tudo que estava acontecendo
para depois, quando surgisse o tempo, registrar e refletir.
Se, por um lado, eu era vista pelos participantes do Céu da Mantiqueira como
antropóloga e pesquisadora, por outro, eu também era encarada como daimista e
fardada. Havia, portanto, por parte da comunidade uma expectativa de que eu cumprisse
meus “deveres” como fardada: participar dos rituais e tomar o daime. Depois de passar
63
O padrinho coordena um projeto de produção de húmus para uso próprio e comercialização.
45
uma boa parte de dois Trabalhos de Cura deitada nos colchões do “quarto de cura”
64
,
atravessando momentos não tão agradáveis, porém profundamente instrutivos, da
experiência com o daime e sem me sentir em condições de me mover e muito menos de
retomar meu lugar na corrente”, foi preciso reunir minha coragem e conversar com o
padrinho. O padrinho era em geral o responsável por servir o daime para as mulheres, de
maneira que neste caso minha negociação era exclusivamente com ele. Padrinho, acho
que estou precisando tomar menos daime” eu disse a ele, pois era necessário conseguir
obter um mínimo de controle sobre a minha experiência para poder realizar a observação
dos rituais.
8. Transformações
Sem dúvida, o trabalho de campo é uma experiência de profunda transformação, pois
abandona-se casa, amigos, namorado, hábitos, rotina e (com treinamento e sorte)
preconceitos e padrões mentais e de comportamento para se ingressar em um mundo
novo e desconhecido (pois, por mais conhecido ou familiar que ele possa parecer à
primeira vista, a imersão nele e a reflexão a seu respeito sempre trarão à tona mistérios e
surpresas, revelando facetas ocultas e inimaginadas). Como mostrou Roberto da Matta, a
viagem ao campo permite ao antropólogo vivenciar a diversidade humana, para poder
relativizar-se e ter a esperança de transformar-se num ser “verdadeiramente humano”
(1987:150).
Refletindo sobre o caráter iniciático da antropologia, José Jorge de Carvalho (1993)
sugere que a vocação crítica desta disciplina seja estendida ao próprio antropólogo num
sentido completo: pessoal, biográfico e espiritual. Para ele, esta vocação crítica está
relacionada à capacidade que a antropologia tem de, através da experiência iniciática do
trabalho de campo, gerar uma crise no sujeito que exerce a atividade de antropólogo. Ele
chama a atenção para o lado “subjetivo, metafísico, emocional, enigmático, supersensível,
sobrenatural” (1993:76) da antropologia e afirma que as teorias científicas devem ser
vinculadas com os impactos recebidos pelo antropólogo em sua condição humana
particular.
Fazendo uma analogia entre a antropologia e a tradição esotérica ocidental, Carvalho
sugere que ambas estão fundadas na busca do outro para resgatar algo que teria sido
perdido pelas civilizações ocidentais. A diferença da antropologia seria negar a introdução
64
O “quarto de cura” é um espaço onde ficam alguns colchões para o caso das pessoas precisarem se
deitar durante os trabalhos.
46
de uma “gnosis pessoal” nas etnografias como resultado das andanças etnográficas
(1993:80). Assim, enquanto para os buscadores da tradição esotérica, o verdadeiro
objetivo das viagens externas seria a realização de uma viagem interna que possibilitasse
o auto-aperfeiçoamento enquanto seres humanos, na antropologia, esta transformação
interna seria negada devido à ligação com uma determinada tradição acadêmica ainda
bastante ancorada nos valores da modernidade e do positivismo.
Desta maneira, para Carvalho, grande parte da produção antropológica seria
caracterizada por uma dupla negação: por um lado, nega-se a existência das dimensões
extra-empíricas da realidade, reduzindo-as ao domínio simbólico; por outro lado, através
da defesa da ausência de sentimento ou de intuição por parte dos antropólogos julga-se
que estes e por extensão todos os outros seres humanos sejam incapazes de fazer
contato com estas dimensões e manejá-las.
Segundo este autor, portanto, é necessário retomar a crítica à tradição acadêmica na
qual a antropologia se insere e levar a sério a sua vocação de ir ao fundo das
experiências enigmáticas e desafiadoras da razão objetiva vivenciadas pelos
antropólogos, enfrentando a dupla dimensão do empírico e do metafísico e tornando o
que Roberto Cardoso de Oliveira (1990, citado em Carvalho, 1993) definiu como “choque
cultural” a experiência vivenciada durante o trabalho de campo uma fonte real de
conhecimentos e não apenas a acumulação de um saber especializado.
Enquanto Carvalho faz uma reflexão sobre a antropologia enquanto experiência
iniciática, Da Matta (1987) estabelece uma analogia entre o trabalho de campo e os ritos
de passagem, afirmando que em ambos os casos acontece “uma passagem maior que
aquela determinada por um simples deslocamento no espaço” (1987:153). Esta
passagem possibilitaria a mudança do ponto de vista e um alcance de uma nova visão do
ser humano e da sociedade. A importância da antropologia enquanto ciência seria, então,
a partir da experiência de campo e da posterior reflexão sobre ela, possibilitar o
deslocamento da nossa própria subjetividade (Da Matta, 1987). É assim que podemos
perceber que existem muitas outras (talvez potencialmente infinitas) maneiras de
perceber, sentir e expressar as experiências e é isso que pode permitir alcançar o objetivo
de alargar o discurso (e não apenas o discurso) humano.
Talvez esta transformação seja ainda mais intensa num mundo em que as
experiências - principalmente as experiências rituais com estados modificados de
consciência - o pautadas pela intensidade e onde a própria noção da transformação
aparece como um tema importante e recorrente. Como indicou Carvalho (1993), são
47
justamente estas experiências de profunda transformação que os antropólogos costumam
relutar a incluir em suas reflexões e etnografias. Para ele, da mesma maneira que é
preciso rever a tradição acadêmica que sustenta a antropologia, também é preciso
repensar os cânones da subjetividade e da consciência com os quais a disciplina vem
buscando legitimar-se academicamente. Desta maneira, seguindo a reflexão deste autor,
é importante refletir a respeito das experiências de estados modificados de consciência
vivenciadas pelo antropólogo em campo, incluindo esta reflexão nas etnografias, assim
como é importante incluir também as transformações decorrentes na pessoa do
antropólogo a partir destas experiências
65
.
Ao mesmo tempo em que nos transformamos no decorrer do trabalho de campo,
também contribuímos para transformar ou ao menos influenciar momentaneamente o que
está ao nosso redor, pois é ingenuidade pensar que podemos simplesmente atravessar a
vida das pessoas sem deixar nenhuma marca, assim como é ingenuidade pensar que a
presença do antropólogo ou antropóloga em campo não terá nenhuma influência na
dinâmica do grupo que escolheu para realizar seu trabalho de campo.
Acrescento que esta transformação vivenciada pelo antropólogo não se encerra com o
fim do trabalho de campo, pelo contrário, continua durante a análise dos dados e redação,
através da reflexão sobre as experiências vividas durante o período de imersão no campo
e de sua repercussão na vida do pesquisador, que inevitavelmente passará a ser vista
com outros olhos, sentida com outras sensações, vivenciada com novas emoções.
Como indica Roberto Cardoso de Oliveira (2000), a partir da diferenciação estabelecida
por Clifford Geertz entre o trabalho de campo, “beeig there”, e a etapa de análise dos
dados e redação, “beeing here”, “é o escrever ‘estando aqui’, portanto fora da situação de
campo, que cumpre sua mais alta função cognitiva” (2000:25). Para Oliveira, isto deve-se
à existência de “uma relação dialética entre o comunicar e o conhecer” (2000:26).
Também cumprem uma importante função nesta etapa da pesquisa o relacionamento
com o “idioma da disciplina” (Oliveira, 2000:26) e com os colegas antropólogos como
“uma comunidade de comunicação e de argumentação” (Karl Otto Apel, citado em
Oliveira, 2000:26). Desta maneira, é durante a escrita, ou a “textualização” do que foi
observado em campo (Oliveira, 2000), que refletimos sobre as experiências vivenciadas
durante o trabalho de campo e nos damos conta das transformações pelas quais
passamos.
65
Apesar de não ter incluído explicitamente minhas próprias experiências e as transformações que
passei devido à experiência de campo, considero que elas estão implícitas no texto e nas reflexões.
48
Capítulo 2 Trajetória e constituição do Céu da Mantiqueira como
um “centro de cura”
Neste capítulo eu pretendo localizar simbolicamente a comunidade onde realizei minha
pesquisa de campo, fazendo uma análise do contexto de interação dos participantes do
Céu da Mantiqueira. Assim, primeiro abordarei alguns elementos importantes da
“história”
66
do Céu da Mantiqueira, mostrando como vem sendo construída e consolidada
sua identidade coletiva enquanto “centro de cura”. Também vou fazer uma análise dos
rituais que são direcionados especificamente para a “cura” realizados no Céu da
Mantiqueira: o Trabalho de Cura e o Trabalho de Mesa Branca, mostrando a importância
que estes rituais têm para a comunidade.
1. História e narrativa
A “história” que será contata aqui é uma história estruturada a partir de narrativas, ou
seja, a partir do que as pessoas disseram sobre suas trajetórias e sobre a constituição
Céu da Mantiqueira. Antes de iniciarmos convém esclarecer o que entendemos por
história e por narrativa. De acordo com Jean Langdon, “uma narrativa consiste em contar
um acontecimento numa seqüência estruturada” (2001:247). Esta autora chama a
atenção para a dimensão simbólica da narrativa e afirma que “a narrativa é uma
expressão simbólica que explica e instrui como entender ‘o que está acontecendo’”
(2001:248). Desta maneira, a narrativa, como o rito, constitui uma maneira de representar
e estruturar o mundo (Langdon, 2001). Para Langdon, “a narrativa envolve uma seqüência
de eventos e uma seleção paradigmática ou metafórica para expressar um ponto de vista
particular” (2001:249). Além disso, a narrativa atualiza e organiza também a abordagem
da pessoa sobre sua trajetória.
Rabelo, Alves e Souza (1999) vêem as narrativas como um modo de acesso às
experiências das pessoas. Eles consideram que não se pode postular uma equivalência
entre experiência e narrativa ou reduzir a experiência ao discurso narrativo, porém
destacam que deve-se reconhecer a existência de “uma vinculação estreita entre a
estrutura da experiência e a estrutura narrativa” (1999:19).
Tratando de experiências de aflição, Alves e Rabelo afirmam que grande parte da
comunicação destas experiências se por meio da elaboração de narrativas, nas quais
49
a experiência é apresentada “como parte de um transcurso temporal de ações, eventos e
encontros” (1999a: 173). De acordo com estes autores, as narrativas podem revelar “tanto
os padrões culturais gerais que orientam a interpretação quanto a tentativa do
sujeito/narrador de objetivar sua experiência com base nestes padrões” (Rabelo e Alves,
1999b:194). Para eles, isto acontece porque as histórias são contadas através do corpo,
envolvendo movimentos, expressões e posturas, e contribuem para criar a perspectiva a
partir da qual este corpo se engaja no mundo. Rabelo e Alves consideram, portanto, que
as narrativas que os indivíduos elaboram “não apenas refletem uma percepção do mundo,
mas conduzem a um modo específico de ser no mundo” (1999b:201).
Assim, nas análises de narrativas, é necessário estar atento à forma como estas são
estruturadas e também refletir a respeito do porque foram escolhidos determinados
acontecimentos e não outros para serem narrados. Estas escolhas de estrutura,
seqüências de acontecimentos e acontecimentos a serem narrados estão longe de serem
aleatórias, constituem pistas para percebermos o que o narrador considera importante e
deseja ressaltar, possibilitando identificar e compreender as categorias culturais
importantes que compõem as narrativas. Além disso, como ressaltaram Alves e Rabelo
(1999b), as narrativas estão relacionadas a modos específicos de ser no mundo.
Marshall Sahlins (1990) nos mostra que a história está em relação dinâmica com a
ação das pessoas, ou seja, é “construída” e “modificada” pela práxis
67
. De acordo com
Sahlins, “a cultura é historicamente reproduzida na ação” (1990:7). Para o autor, é desta
maneira que os seres humanos repensam seus esquemas culturais, possibilitando que a
cultura seja alterada historicamente na ação. Sahlins critica a oposição entre estrutura e
história, chamando a atenção para o aspecto dinâmico de ambos estes termos. Segundo
ele, existe uma “interação dual entre a ordem cultural enquanto constituída na sociedade
e enquanto vivenciada pelas pessoas; a estrutura enquanto convenção e na ação,
enquanto virtualidade e enquanto realidade” (1990:9). Como a história está relacionada
com as ações das pessoas, é evidente que ela não pode ser separada das pessoas.
Assim, história e pessoas que a construíram devem ser consideradas conjuntamente.
Outro aspecto importante a ressaltar é que Sahlins a história como sendo
construída. Desta maneira, é importante percebermos quais são os eventos que adquirem
uma “significância histórica” (Sahlins,1990:15), pois estes eventos têm também uma
66
Uso aqui o termo “história” entre aspas, pois trata-se de uma etnohistória, ou seja, uma “história” do
grupo estruturada a partir das narrativas de seus participantes.
67
Sahlins define a noção de práxis como a realização prática das categorias culturais em um contexto
histórico específico” (1990:15).
50
“significância cultural”, são apropriados “por e através do esquema cultural” (idem). Assim,
nos eventos que adquirem “significância histórica” também é possível perceber categorias
culturais importantes para o grupo onde foi realizada a pesquisa. Desta maneira, a análise
das narrativas e, através delas, a análise da história, nos possibilita delinear a visão de
mundo desse grupo.
2. A “história” do Céu da Mantiqueira
O Céu da Mantiqueira fica na serra da Mantiqueira, no sul do estado de Minas Gerais,
na área rural de Camanducaia, a cerca de quatro quilômetros da cidade. Foi fundado em
1998, tendo antes funcionado como “ponto” desde 1993
68
. O grupo é dirigido por um
casal, padrinho Chico e madrinha Udi, em conjunto com outros participantes da igreja que
formam um “conselho”, responsável por tomar as decisões e pela administração. Este
conselho é formado por alguns dos participantes mais antigos do Céu da Mantiqueira; por
alguns participantes relativamente recentes que adquiriram rapidamente uma posição
influente na comunidade; e pelas pessoas que tem um vínculo institucional com a igreja,
ocupando cargos como os de secretario e tesoureiro
69
.
Padrinho Chico e madrinha Udi se mudaram de Rondonópolis no Mato Grosso para um
sítio na área rural de Camanducaia em 1989, pois, segundo suas narrativas, tinham
vontade de se distanciar da vida urbana e “viver da terra”. Na época de sua mudança, o
casal alugava uma parte do sítio. De acordo com os participantes do Céu da Mantiqueira,
o segundo grupo que alugou este espaço era composto por participantes do Santo Daime
ligados ao “Céu de Midam”
70
. Foi através deste grupo que a Udi e o Chico tiveram contato
com o Santo Daime. Assim, quando perguntei a eles como conheceram a doutrina, eles
responderam dizendo que “o daime veio bater na nossa porta”. Esta forma de narrar o
acontecimento é importante, pois tem uma conotação simbólica, representa um
“chamado” para seguir na “linha” do Santo Daime. Esta idéia de receber um chamado” é
um dos elementos que pode confirmar o pertencimento ao “povo do daime”, que seria
formado pelas pessoas “escolhidas” para fazer parte da doutrina.
68
Os participantes do Santo Daime referem-se aos lugares onde são realizados os seus rituais como
“ponto” ou “igreja”. Um “ponto” é uma unidade geralmente menor, mais recente e mais informal. Já a
“igreja” é uma unidade mais consolidada dentro da estrutura institucional do CEFLURIS.
69
O conselho do Céu da Mantiqueira se reúne periodicamente para tomar decisões relativas à
administração e organização da igreja. Decidem, por exemplo, as datas dos trabalhos espirituais e de
atividades como os feitios. Também discutem questões relativas à administração dos recursos
financeiros.
70
Igreja filiada ao CEFLURIS localizada em Sorocaba, SP.
51
Depois disso, Chico e Udi passaram a freqüentar o Céu de Midam, fardando-se
posteriormente nesta igreja. A partir de então, o Céu da Mantiqueira começou a se
constituir enquanto “ponto” do Santo Daime, sendo dada a autorização pelo padrinho
Jonas, dirigente do Céu de Midam naquela época, para serem realizadas Concentrações
e, posteriormente, Trabalhos de Cura no local.
Foto 3: vista da igreja do Céu da Mantiqueira
Paralelamente à chegada do Santo Daime no lugar que futuramente seria conhecido
como Céu da Mantiqueira e ao “chamado” para Chico e Udi participarem da doutrina,
acontece outro evento que é destacado nas narrativas como sendo importante. Conta-se
que nos primeiros rituais com o daime realizados, os guias” e “mentores espirituais”
dos médiuns que se encontravam presentes manifestaram-se afirmando que ali era um
“centro de cura” e pedindo para que fossem realizados regularmente rituais naquele lugar.
Estes “guias” teriam ainda pedido para que os rituais fossem realizados de acordo com as
normas da doutrina daimista.
Este acontecimento é importante, pois denota a importância que o tema da “cura” tem
para o grupo. Também aponta para a construção de uma identidade coletiva como “centro
52
de cura”, sendo que esta identidade encontra-se ancorada na construção e reconstrução
da história do grupo em interação com a práxis de seus participantes (Sahlins, 1990).
Nas narrativas sobre o início do Céu da Mantiqueira, encontramos ainda outro
acontecimento que aponta para a importância da temática da cura neste grupo: trata-se
da “cura” do próprio padrinho Chico. Conta-se que na época que o Santo Daime “chegou”
no lugar, o padrinho era alcoólatra, bebia todos os dias, e que após tomar o daime por
alguns meses parou de beber completamente. Esta cura”, além de chamar a atenção da
madrinha Udi e do padrinho Chico para as potencialidades terapêuticas da bebida,
incentivando-os a ingressarem na doutrina, teria contribuído para motivá-los a auxiliar na
cura de outras pessoas.
Conta-se também que, nos primeiros anos, o Céu da Mantiqueira teria recebido um
grande número de pessoas alcoólatras, dependentes químicas e portadoras de problemas
emocionais. Muitas dessas pessoas teriam encontrado a sua “cura” no Santo Daime,
tendo se firmado”
71
no Céu da Mantiqueira e constituindo atualmente uma parte de seus
participantes mais antigos. Estas pessoas que teriam “se curado” através do daime e da
doutrina, também teriam trazido outras pessoas “para a doutrina”, seus familiares e
amigos, contribuindo para o crescimento da comunidade. Não foram apenas os
participantes antigos do Céu da Mantiqueira que tiveram um histórico de alcoolismo,
dependência química, e desequilíbrios emocionais. Atualmente também a comunidade
continua recebendo pessoas com estas características, sendo que algumas destas
pessoas optam pela participação no Céu da Mantiqueira como uma via para buscar sua
“cura”.
Além disso, durante cerca de dois anos, o Céu da Mantiqueira ficou aberto para
receber pessoas para residirem lá durante um período. Estas pessoas tinham a
oportunidade de, além de participar dos rituais com o daime, levar uma vida comunitária e
fazer trabalhos no dia a dia em atividades como culinária, limpeza, hortas e plantas
medicinais. Este trabalho experimental começou a ser desenvolvido de maneira informal,
a partir de pedidos de pessoas que estavam participando da igreja e passavam por
dificuldades. Assim, uma parte dos atuais participantes do Céu da Mantiqueira chegou a
residir lá durante um tempo.
Tive a oportunidade de acompanhar o desenvolvimento deste trabalho enquanto fiz
pesquisa de campo para a minha monografia de conclusão do curso de graduação, em
53
2001 e 2002. No início de 2002 este trabalho foi desativado, com a proposta de
futuramente voltar a funcionar contando com uma estrutura melhor. Em parte esta
desativação ocorreu porque o conselho do Céu da Mantiqueira decidiu que naquele
momento era necessário privilegiar outros projetos, como a construção da igreja.
Como vimos, vários acontecimentos contribuíram para que ao longo do tempo o Céu
da Mantiqueira fosse construindo e consolidando sua identidade como um “centro de
cura”. Também foi importante a realização constante de dois rituais dirigidos
especificamente para a cura: o Trabalho de Cura e o trabalho de Mesa Branca, como
veremos a seguir. Atualmente estes rituais têm um papel muito importante na dinâmica da
comunidade e também atraem muitas pessoas, tanto participantes eventuais quanto
pessoas ligadas a outras igrejas do Santo Daime.
3. Os Trabalhos de Cura
Os Trabalhos de Cura começaram a ser realizados no início da constituição do Céu
da Mantiqueira, quando ainda era um “ponto”. Estes eram realizados nos finais de
semana, sendo antecedidos pelo Trabalho de Iniciantes
72
. A realização constante dos
Trabalhos de Cura também constitui um fator importante na construção e consolidação da
identidade coletiva como “centro de cura”, contribuindo para construir a especificidade do
centro. Afirma-se que foi a realização constante destes trabalhos que atraiu as pessoas
para a igreja, fazendo com que ela crescesse
73
.
O Trabalho de Cura é considerado como um trabalho da “corrente espiritual”
74
, durante
o qual a pessoa busca contatar o seu “eu superior”
75
e também os seres espirituais para
receber instruções, orientações e curas”. Durante este ritual é cantado um hinário
chamado Hinário de Cura. Este hinário é um conjunto de hinos das principais lideranças
daimistas e de pessoas influentes no CEFLURIS e foi organizado sob a direção do
71
“Se firmar” ou ter “firmeza” são virtudes que os participantes do Santo Daime almejam alcançar. A
“firmeza” é constantemente referenciada nos hinos. Constitui a capacidade de perseverar, tanto na vida
material quanto nos trabalhos espirituais, mantendo a fé apesar das dificuldades.
72
Ver capítulo 1.
73
Atualmente os Trabalhos de Cura são realizados uma vez por mês, porém houve períodos em que
eles aconteciam duas vezes por mês.
74
Ver introdução.
75
Segundo Groisman (1991), para os participantes do Santo Daime, o ser humano seria constituído por
três dimensões: o “aparelho”, a “matéria” e o “espírito”. As categorias espírito” e “matéria” estariam
relacionadas a duas outras categorias: o “eu inferior e o “eu superior”. O primeiro estaria ligado às
motivações materiais e o segundo às motivações espirituais e ambos fariam parte da natureza do ser
humano. Um dos objetivos dos rituais daimistas seria permitir despertar” ou “revelar” o “eu superior”, a
natureza espiritual do ser humano (Groisman, 1991). Groisman afirma também que “a ‘revelação’ desta
dimensão espiritual da existência modifica a visão de mundo do sujeito que a experiencia e o faz
reinterpretar sua trajetória, fazer um ‘balanço’ de sua vida à luz dos novos significados” (1991:111).
54
padrinho Sebastião. O daime ingerido nos Trabalhos de Cura costuma ser especialmente
escolhido, sendo mais concentrado do que o usado em outros rituais (Groisman e Sell,
1996). Além disso, como indica o próprio nome Trabalho de Cura, a intenção deste ritual é
especialmente direcionada para a cura. Esta cura pode ser dos participantes, da
“corrente” ou mesmo de pessoas ausentes
76
.
Foto 4: Trabalho de Cura
4. Os Trabalhos de Mesa Branca e o Atendimento Mediúnico
Outro ritual cuja implantação tem um papel importante na história do Céu da
Mantiqueira e na construção e consolidação da sua identidade coletiva enquanto “centro
de cura” é o trabalho de Mesa Branca. Este é um ritual relativamente recente, passou a
fazer parte do calendário oficial do CEFLURIS a partir de 1997, sendo realizado nos dias
7 e 27 de todos os meses no Céu do Mapiá e nos dias 27 em algumas outras igrejas
77
.
76
Não aprofundo a discussão sobre os Trabalhos de Cura, pois eles foram abordados por autores
como Groisman (Groisman, 1991; Groisman e Sell, 1996).
77
Este ritual não é realizado regularmente em todas as igrejas do CEFLURIS, em algumas ele só ocorre
ocasionalmente e em outras não é realizado.
55
O trabalho de Mesa Branca ou Desenvolvimento Mediúnico tem grande influência do
espiritismo kardecista e conta com uma seqüência de preces de Allan Kardec. Ele
também é chamado de trabalho de “banca aberta”, pois é aberto para a incorporação de
espíritos, visando o desenvolvimento mediúnico de seus participantes. No Céu da
Mantiqueira, este ritual começou a ser realizado em 2001, sob supervisão de residentes
do Céu do Mapiá, que vêm cerca de uma vez por ano participar do ritual e dar
orientações. A partir da realização constante dos rituais de Mesa Branca, desenvolveu-se
no Céu da Mantiqueira um atendimento mediúnico que ocorre durante um determinado
período deste ritual
78
.
Como vimos, para os participantes do Santo Daime a “dimensão espiritual” é uma
dimensão fundamental da vida, sendo vivenciada como algo tão real quanto a “dimensão
material”. Fazem parte desta “dimensão espiritual” os seres espirituais ou “entidades”. De
acordo com uma definição êmica, as entidades espirituais estão distribuídas ao longo de
uma escala de graduação. Em uma das pontas desta escala estariam “os seres ascensos
e as hostes angélicas”; ao longo dela estariam situados os “amigos e inimigos colhidos ao
longo de nossas encarnações”; e na outra ponta da escala se encontrariam ”os patamares
escuros do desequilíbrio e da incorporação da sombra”, que seriam representados pelas
“forças luciferianas”.
Acredita-se que o ser humano esteja em constante interação com estas entidades, de
maneira consciente ou inconsciente. Estas entidades “atuariam”, ou seja, se
manifestariam através do “aparelho” do ser humano. Esta “atuação” ou manifestação das
entidades pode ser consciente ou inconsciente, positiva ou negativa. Este relacionamento
com as “entidades espirituais” pode ser pensado como sendo bastante dinâmico e sujeito
a mudanças. Penso que ele também consiste num idioma para expressar as expectativas
de comportamento grupais. Assim, os comportamentos ideais e desejáveis são
relacionados à influência de entidades “de luz”, enquanto os comportamentos
indesejáveis são ligados à influência de entidades “das trevas”, “zombeteiras” ou
“obsessoras”. Neste sentido, o desenvolvimento mediúnico e a “doutrinação das
entidades” podem ser vistos como processos dinâmicos de adequar o comportamento a
padrões desejáveis.
No Céu da Mantiqueira, o desenvolvimento mediúnico é incentivado porque permitiria
adquirir uma consciência sobre este relacionamento com as “entidades”. Assim, através
do desenvolvimento mediúnico, seria possível conhecer essas entidades e adquirir
78
Ver análise detalhada sobre o atendimento mediúnico na próxima sessão.
56
controle sobre sua “atuação”. Além disso, o desenvolvimento mediúnico possibilita que o
“aparelho”
79
do médium seja utilizado para trabalhos considerados como sendo “de
caridade”, como o próprio atendimento mediúnico.
Para Labate (2002), a relação entre os estados modificados de consciência e a cura
está ligada à discussão sobre os diferentes tipos de transe. Esta autora relaciona a
“incorporação” com a noção de cura, considerando-a como um instrumento para sua
realização. Ela afirma também que a cura está ligada ao conceito de caridade espiritual,
que “consiste em doutrinar os espíritos sofredores através dos hinos, leituras ou preleções
ou deixa-los incorporar para que expressem sua dor e desta forma evoluam” (2002:
242). De acordo com ela, a “caridade espiritual” também pode ser compreendida como
sendo de cada um para consigo mesmo, devido ao fato do desenvolvimento mediúnico
ser considerado como algo necessário para o equilíbrio do médium.
No “sistema de cuidados da saúde” (Kleinman, 1980)
80
daimista, a doença é
freqüentemente relacionada com transgressões sociais e espirituais (Groisman, 1991;
Groisman e Sell, 1996; Peláez, 1996). Estas transgressões são consideradas como sendo
de responsabilidade individual. Ela também pode ser explicada com referência a outros
agentes, tais como maus fluidos, maus espíritos, ou transgressões realizadas em outras
vidas (doenças cármicas) (Monteiro da Silva, 1983). Mesmo quando as doenças são
consideradas como sendo geradas por agentes externos, tais como espíritos ou energias
ruins, em última análise a responsabilidade é remetida ao indivíduo, pois foi ele que “abriu
as brechas”, ou seja, cometeu alguma transgressão que permitiu a atuação desses
agentes. É neste sentido que o desenvolvimento mediúnico, visto neste contexto como
uma forma de, ao mesmo tempo, adquirir consciência e controle sobre si mesmo e sobre
a “atuação” dos espíritos, pode ser pensado como uma forma privilegiada de buscar a
cura (Montero, 1985).
4.1 Análise de um ritual de Mesa Branca
Escolhi um dos rituais de Mesa Branca de que participei durante meu trabalho de
campo para fazer uma análise mais detalhada. Transcrevo a seguir um trecho do meu
diário de campo, onde descrevo este ritual.
79
“Aparelho” é um conceito muito usado pelos participantes do Céu da Mantiqueira. De acordo com uma
definição êmica, refere-se a um dium que cede seu corpo para que, através dele, as entidades
possam “trabalhar”. Desta maneira, ele se torna um “aparelho mediúnico” ou “canal”.
80
Kleinman (1980) define o sistema de cuidados da saúde” ou “health care system” como o sistema
cultural que engloba as atividades relacionadas ao cuidado com a saúde. Este sistema envolve
“curadores”, doença, cura, seus tratamentos e suas interpretações.
57
Depois do primeiro “despacho”
81
, foram cantados os hinos da Oração do padrinho
Sebastião (conjunto de hinos “recebidos” pelo padrinho Sebastião cantados em todos os
rituais de Cura, Mesa Branca e Concentração do CEFLURIS). A seguir, começou a segunda
parte do hinário de cura. Algumas pessoas, consideradas como “médiuns” já “desenvolvidas”
se retiraram para ir fazer os atendimentos”. Quando estava acontecendo o segundo
“despacho” eu disse à pessoa responsável por organizar os “atendimentos” que eu gostaria
de ser atendida. Ela falou que iria colocar meu nome na lista, mas que não sabia se ia dar
tempo. Menos de cinco minutos depois, eu ainda nem tinha voltado para o “salão”
82
, ela veio
me procurar e disse: “pode esperar ali (referindo-se ao sofá que fica perto da ‘sala dos
atendimentos’) que você é a próxima”. Me perguntou se eu tinha tomado o “despacho” e
disse para que fosse tomar antes.
Esperei um pouco sentada no sofá, e logo me chamaram. Antes de entrar no espaço dos
“atendimentos”, me pediram para tirar o sapato e eu passei por um procedimento de
defumação com um incenso. O espaço onde são realizados os “atendimentos” é separado
por um biombo e uma cortina. um colchão no chão e os médiuns ficam em ao redor
deste colchão. Quando entrei, me pediram para deitar no colchão, colocaram um travesseiro
sob os meus joelhos e me cobriram com um lençol. Os médiuns ficaram ao meu redor, todos
com os braços estendidos, apontando as palmas das mãos na minha direção. Fechei os
olhos, mas a certa altura, percebi que alguém fazia passes na região da minha cabeça. Senti
uma sensação de energia bem forte e tentei prestar atenção. Não pareceu durar muito
tempo. Quando terminou, me deram um copinho de água e disseram para tomar tudo.
Saindo doatendimento” voltei para o “salão”. Ainda estavam cantando os hinos de cura.
Logo depois, esta parte do trabalho terminou e as pessoas que estavam participando dos
atendimentos voltaram para a “corrente”. Começou então a “abertura da banca”. Esta é a
parte do ritual onde ocorre o maior número de “manifestações mediúnicas”. Especialmente
em alguns hinos específicos, as pessoas se levantam, fazem uma série de gestos com as
mãos, falam em línguas estranhas, dão passes, saem dos seus lugares, etc. Tentei me
concentrar nos hinos. Em alguns momentos senti um tremor muito forte nas pernas, que
subia para o resto do corpo. Esta é considerada como uma manifestação mediúnica. Nesta
ocasião, o tremor estava tão forte que cheguei a derrubar o caderno de hinos do colo.
Terminada a “abertura da banca”, o padrinho rezou algumas preces e abriu o terceiro
“despacho” para cantarmos uma parte do hinário do Valdete (filho de Sebastião Mota Melo e
importante liderança do CEFLURIS). Bem no final do hinário eu comecei a sentir um peso
muito grande. Estava com o estômago muito embrulhado, mas agüentei até o fim.
81
Esta é a denominação êmica para o momento em que o daime é servido aos participantes dos rituais.
Costumam haver cerca de três “despachos” em cada ritual e em rituais mais longos, como Hinários,
podem haver mais. Não é estritamente obrigatório tomar o daime em todos os despachos, mas é
altamente recomendado.
58
A partir desta descrição, dividi o ritual em três fases para fins analíticos. A primeira fase
não foi descrita no trecho do diário de campo transcrito acima. Será chamada de abertura
e segue o padrão dos demais rituais daimistas: com o salão devidamente preparado,
todos os participantes se colocam em seus devidos lugares e rezam algumas preces para
“abrir o trabalho”
83
. O daime é distribuído e todos se sentam. São cantados alguns hinos.
Tem início, então, a segunda fase do ritual, durante a qual ocorrem duas coisas
simultaneamente. Um grupo permanece no salão, cantando os hinos do Hinário de Cura e
outro grupo se retira para outro espaço para realizar o atendimento mediúnico. Faremos,
a seguir, uma análise mais detalhada do atendimento mediúnico. Esta análise será
realizada a partir do trecho que transcrevi de meu diário de campo e de um desenho feito
por uma participante do Céu da Mantiqueira.
A autora chamou o desenho 1 de “a roda da cura” e me explicou que ele consiste
numa representação do atendimento mediúnico realizado no ritual de Mesa Branca. De
acordo com ela, no centro está representada “a alma”; o círculo azul corresponde ao
“limite de seu corpo etérico”; as pontas representam os médiuns que abrem seu
“aparelho” para “canalizar e irradiar energia curativa” e o verde e amarelo que vai das
pontas em direção ao centro representa a irradiação desta energia.
82
Termo êmico utilizado para referir-se ao espaço onde ocorrem os rituais.
83
Os participantes do Santo Daime consideram que é necessário pedir permissão aos seres do mundo
espiritual para “abrir” os trabalhos ou rituais. Esta permissão é pedida através das preces. Estas preces
59
Desenho 1: “a roda da cura”
chamariam as “entidades espirituais” para vir guardar os trabalhos. Da mesma maneira, no seu
encerramento os trabalhos são “fechados”, novamente através de preces.
60
Como vimos na minha descrição, o atendimento mediúnico ocorre num espaço
separado, fora do “salão”. Tanto os médiuns que vão participar quanto as pessoas que
são atendidas se defumam para purificar-se antes de entrar neste espaço. A defumação
consiste num meio de “limpar” o “aparelho” de energias negativas que possam estar
presentes para que ele possa entrar na sintonia dos planos mais elevados do “astral”.
O conceito de “limpeza” tem um papel importante na ideologia daimista de “cura”.
Trata-se de um conceito bastante denso e sintético. A “limpeza” pode acontecer a nível
individual ou grupal (como no caso de uma “limpeza” da corrente); pode referir-se à
dimensão espiritual, à dimensão material ou a ambas; e pode abranger todos os corpos
citados anteriormente (físico, mental, emocional e espiritual). Este conceito costuma ser
relacionado às “catarses fisiológicas” (Peláez, 1996:84), que podem ser experienciadas
durante os rituais (vômitos, diarréias, choros). Estas experiências podem ser muito
intensas. De acordo com Peláez, elas são vivenciadas e interpretadas como “vias visíveis
e concretas de eliminação das impurezas, físicas, mentais e espirituais” (1996:84)
84
. A
“limpeza” tem uma conotação positiva, pois acredita-se que é “se limpando” que o
indivíduo poderá ter acesso ao conhecimento e às “curas” proporcionadas pela ingestão
do daime.
O conceito daimista de “limpeza” remete à discussão que Mary Douglas (1966) faz a
respeito do “puro” e do “impuro”. Douglas encara os ritos de pureza e impureza como atos
simbólicos e afirma que estes ritos conferem unidade à nossa experiência. Para a autora,
as crenças sobre a poluição expressam as relações entre diferentes elementos da
sociedade e constituem o reflexo de uma organização válida para todo o sistema social.
Ela considera que a reflexão sobre a impureza implica uma relação entre a ordem e a
desordem; desta maneira, as noções de impureza devem ser encaradas como um
sistema. Pensando o conceito daimista de “limpeza” a partir destas considerações,
podemos perceber que ele ordena e confere significados a certos tipos de experiências
que costumam ser vivenciadas nos rituais, inserindo-as num sistema. Desta maneira, este
conceito pode nos ajudar a compreender categorias como puro/impuro, ordem/desordem,
saúde/doença no contexto daimista
85
.
84
Segundo Peláez (1996), no Santo Daime o crescimento espiritual é produzindo através de “profundos
impactos no corpo e na mente” (1996:84). Neste sentido, o sofrimento é visto como algo importante e
mesmo necessário, pois constitui uma forma de aprendizado e purificação.
85
Apesar de fazer uma reflexão interessante a respeito das relações entre pares como pureza/impureza,
ordem/desordem, Douglas (1966) tem uma visão estática destas categorias. Penso que categorias
como estas devem ser encaradas de uma maneira fluida e dinâmica.
61
No caso do atendimento mediúnico, a “limpeza” através da defumação constitui um
meio de purificar a pessoa para que ela possa receber as “energias curativas”. Devido ao
fato do espaço onde acontecem os atendimentos encontrar-se separado tanto física
quanto simbolicamente do recinto ritual, este espaço pode ser pensado como sendo
liminar (Turner, 1969) com relação ao próprio espaço ritual.
Considera-se que no atendimento mediúnico, os médiuns recebem as “entidades” da
“falange” de Bezerra de Menezes. Estas entidades são chamadas de “doutores” ou
“médicos” e são seres que, como o próprio Bezerra de Menezes, durante sua vida na
terra teriam sido médicos. Eles agem através do “aparelho” dos médiuns, que servem
como um “canal” para que estes seres possam trabalhar no plano físico. Assim, através
da irradiação energética é possível que os pacientes recebam esta energia que vem
dessa “corrente médica do astral”. Esta “cura” que acontece durante o atendimento
mediúnico, assim como em todos os outros rituais daimistas, é considerada como uma
“cura espiritual”. Ela pode ter efeitos no que os participantes do Céu da Mantiqueira
chamam de “corpo físico” ou nos outros corpos, mas isto não é tão importante. O que é
realmente enfatizado é a “cura espiritual”.
No desenho 1, podemos relacionar a importância da “cura espiritual” com o grande
destaque que é dado ao “corpo etérico”, representado pelo círculo azul. Esta ênfase es
ligada à influência que concepção kardecista de reencarnação tem na doutrina daimista.
MacRae (2000) situou o Santo Daime no que Camargo (1961) definiu como o “continuum
mediúnico brasileiro”. Este continuum teria em um de seus pólos o espiritismo kardecista
e, no outro, a Umbanda. Segundo Camargo, a principal característica comum das
religiões dispostas ao largo deste “continuum mediúnico” é o fato de reservarem um
espaço importante para o cultivo de estados modificados de consciência.
MacRae (2000) chama a atenção para a influência do espiritismo kardecista no Santo
Daime. Esta influência estaria presente em noções como as de evolução espiritual,
reencarnação e carma. De acordo com MacRae, os rituais daimistas são concebidos
como ocasiões para a doutrinação dos espíritos. Este autor afirma que, da mesma forma
que os espíritas, os participantes do Santo Daime acreditam que todos tem potencial
mediúnico e se comunicam com os espíritos (MacRae, 2000). Partindo da proposta de
Camargo (1961), MacRae considera que, no “continuum mediúnico brasileiro”, o Santo
Daime estaria mais próximo do pólo do espiritismo kardecista.
Devido à influência da noção kardecista de reencarnação, os participantes do Santo
Daime acreditam que os seres humanos são todos espíritos que estão constantemente
62
reencarnando. Desta maneira, o “corpo físico” é visto como algo meramente transitório,
enquanto o “corpo etérico” ou “espiritual” é considerado como sendo permanente. O
desenho também nos mostra que o atendimento mediúnico é considerado como um
acontecimento forte, detentor de grande poder curativo, pois a energia “canalizada”
através de cada médium é irradiada em linha reta diretamente para o centro, convergindo
no paciente. Este recebe, então, todas estas “energias curativas” somadas.
Passada a situação liminar do atendimento mediúnico, tanto médiuns quanto
pacientes, agora reequilibrados pelo atendimento que receberam, retornam ao espaço
onde está se desenrolando o ritual e se reintegram ao grupo que está no salão. É então
que acontece a terceira fase do ritual de Mesa Branca: trata-se de um momento bastante
intenso caracterizado pela “abertura da banca”. As entidades, tanto os “doutores” que
participam dos atendimentos quanto outros seres, tais como “caboclos” e “pretos velhos”
são convidados a participar do ritual. Esta fase do ritual pode ser pensada como um
momento de communitas (Turner, 1969), onde se congregam os participantes do ritual,
tanto seres humanos quanto “entidades espirituais”.
O ritual de Mesa Branca difere do padrão dos outros rituais daimistas como Hinários,
Concentrações e Trabalhos de Cura. Enquanto estes são caracterizados pela disciplina e
pelo rigoroso comedimento das ações, o ritual de Mesa Branca é marcado por uma
relativa flexibilidade e por uma expressão individual mais livre (Labate, 2002; MacRae,
2000). Durante a “abertura da banca”, as pessoas procuram entrar em contato com as
“entidades espirituais” e podem “receber” ou incorporá-las. Os participantes do ritual tem
liberdade de movimento e expressão, visando o objetivo do “desenvolvimento mediúnico”.
De acordo com Labate (2002), esta abertura para que as pessoas possam contatar seus
“guias” e as “entidades” faz parte do processo terapêutico e de autoconhecimento.
5. “Comunidade simbólica”
Nesta sessão, veremos alguns dados relativos à constituição da “comunidade” do Céu
da Mantiqueira. Esta constituição também é evidenciada pela formação do grupo de
participantes da comunidade. De acordo com os dados obtidos mediante a consulta das
fichas de filiação que ficam arquivadas na secretaria da igreja (ver cópia da ficha no
anexo 1)
86
, a maioria dos participantes regulares do Céu da Mantiqueira mora nas cidades
de São Paulo (71 pessoas) e Camanducaia (27 pessoas, levando em conta as áreas
86
Estas fichas são preenchidas pelos participantes do u da Mantiqueira que são filiados à igreja, ou
seja, aqueles que tem uma participação relativamente regular.
63
urbana e rural). Os outros residem em cidades próximas no estado de Minas Gerais:
Extrema, Pouso Alegre, Cambuí, etc. ou no estado de São Paulo: Campinas, Bragança
Paulista e outras (ver gráfico1).
Gráfico 1: cidade de residência
27
71
20
20
Camanducaia
18,1%
São Paulo (capital)
47,6%
outras cidades do
estado de Minas
Gerais 13,4%
outras cidades do
estado de São
Paulo 13,4%
Apesar desta relativa dispersão geográfica, é fortemente enfatizada a idéia de que
existe uma comunidade. A noção daimista de comunidade não é necessariamente
definida pelo fato de seus membros co-habitarem o mesmo espaço geográfico. Pode
também ser uma “comunidade simbólica” (Turner, 1969), caracterizada pelo
compartilhamento de experiências, práticas, valores e crenças comuns (Groisman e Sell,
1996). Esta ênfase na noção de comunidade encontra-se refletida na oposição êmica
entre os que são “de dentro” e os que são “de fora” da doutrina. A partir daí, podemos
pensar em outra definição relevante para o Santo Daime, que pode ser considerado
também como um “território simbólico” (Turner, 1969).
Neste caso, os “de dentro” são os que também participam do Santo Daime, estando
potencialmente aptos a compreender e compartilhar experiências semelhantes; os que
são “de fora” são os que “desconhecem o daime” e/ou não estarão comprometidos com a
doutrina e, desta maneira, provavelmente não compreenderiam algumas coisas. Um dado
relevante aqui é que é comum que os participantes do Céu da Mantiqueira se casem
entre si e procurem levar seus familiares e amigos para a doutrina. Além disso, eles
costumam procurar profissionais da área da saúde que também estejam ligados ao Santo
Daime.
64
É importante observar que do ponto de vista êmico uma ênfase fundamental na
ingestão da bebida. Como foi dito, o daime é considerado como um ser divino e a ele
são atribuídos amplos poderes curativos. Gostaria, porém, de chamar a atenção para a
importância da construção de laços de solidariedade e sociabilidade entre os participantes
do Santo Daime. Um dos elementos que podem estimular o desenvolvimento destes laços
são ensinamentos da própria doutrina daimista, que afirmam que devemos amar os
“irmãos” e enfatizam a importância da união. Assim, apesar de também ocorrerem
conflitos entre os participantes do Céu da Mantiqueira, desenvolve-se uma espécie de
cumplicidade entre essas pessoas, devido ao fato de compartilharem valores, crenças e
experiências em comum.
Vimos, portanto, neste capítulo, como ao longo da trajetória do Céu da Mantiqueira
vem sendo construída e consolidada uma identidade coletiva como um “centro de cura”. A
“história” do Céu da Mantiqueira, estruturada a partir das narrativas de seus participantes,
contem vários elementos que apontam para a construção desta identidade. O status que
os rituais de Cura e Mesa Branca, considerados como sendo direcionados
especificamente para a “cura”, têm no Céu da Mantiqueira também está relacionado à
importância que a temática da “cura” tem para o grupo. A constituição de um “centro de
cura” mostra que existe no Céu da Mantiqueira uma abordagem peculiar a respeito da
relação entre espiritualidade e “cura”, como veremos no próximo capítulo.
65
Capítulo 3 – O continuum espiritual-terapêutico
Neste capítulo, iniciarei a discussão sobre a idéia de um continuum espiritual-
terapêutico. Também farei uma análise das trajetórias de vida de alguns participantes do
Céu da Mantiqueira. Além disso, vou analisar as relações sociais entre eles, levando em
conta as relações de poder e de negociação de lugares, territórios e significados. No
decorrer do capítulo, a partir dessas discussões e análises, começo a delinear as
categorias culturais que considero importantes para compreendermos a visão de mundo e
as expressões das experiências dos participantes do Céu da Mantiqueira.
1. A “terapeutização” do Céu da Mantiqueira
Um acontecimento destacado nas narrativas sobre a história do Céu da Mantiqueira é
a chegada das pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde e sua
integração na comunidade. Conta-se que, atraídos e motivados pela relação desta
comunidade com a cura, muitos desses profissionais ligados a área da saúde se tornaram
participantes regulares do grupo. O levantamento que eu realizei mostrou que de 149
pessoas atualmente filiadas ao Céu da Mantiqueira, 23 são profissionais ligados a área da
saúde, o que equivale a aproximadamente 15% do total dos participantes. Ainda de
acordo com este levantamento, entre estes profissionais existem várias especializações,
como mostra o gráfico abaixo.
Gráfico 2: especializações dos profissionais da área da saúde
20%
10%
15%
25%
5%
10%
15%
terapeuta
fisioterapeuta
enfermeiro(a)
médico(a)
farmacêutico(a)
massoterapeuta
psicólogo(a)
A partir da integração destas pessoas que trabalham profissionalmente na área de
saúde no Céu da Mantiqueira, começou a se desenvolver um duplo movimento: ao
mesmo tempo que os participantes do Céu da Mantiqueira começaram a se interessar em
fazer terapia com estes médicos e terapeutas que estavam se integrando à comunidade,
pessoas que eram pacientes destes profissionais ligados à área da saúde começaram
66
a se interessar em conhecer o Santo Daime. Inicia-se assim o que chamo de
terapeutização da comunidade do Céu da Mantiqueira. Utilizo o termo terapeutização para
indicar um processo que considero diferenciado e mais amplo que a “medicalização”, pois
apesar de incluir também a medicalização não se restringe a ela. A própria noção da
terapia torna-se um valor. Isso evidencia-se em muitos depoimentos nos quais as
pessoas afirmam que a combinação ideal é fazer os rituais com o daime e também a
terapia.
É interessante destacar que o que é enfatizado é a combinação entre a doutrina
daimista e o trabalho terapêutico. Como mencionamos, são recorrentes nas narrativas
tanto de terapeutas quanto de pacientes as afirmações de que o daime, sempre
considerando sua utilização inserida em determinado contexto religioso, tem a capacidade
de “potencializar” ou “catalizar” o processo terapêutico, acelerando e intensificando seus
resultados. Também são recorrentes as afirmações de que a terapia pode ajudar muito os
participantes do Santo Daime a compreenderem as experiências vivenciadas nos rituais.
Neste contexto, é comum que os profissionais da área da saúde recorram a categorias
características da psicanálise como “inconsciente”, “subconsciente” e “catarse” para
explicar as dimensões abrangidas pelas experiências de estados modificados de
consciência. Considera-se que estas experiências são muito profundas e que a terapia
pode ajudar a lidar com elas. E aqui convém fazer uma observação muito importante: esta
terapia deve ser realizada com uma pessoa que também seja participante do Santo
Daime, pois um terapeuta “de fora” não teria condições de compreender o que o paciente
está vivenciando, e, desta maneira, não poderia ajuda-lo.
Como mencionamos, para os participantes do Santo Daime, o daime é considerado
como um ser divino, uma bebida que tem personalidade própria e é capaz de curar e
transmitir conhecimento de acordo com o merecimento de cada um. Então, como ficam os
terapeutas neste contexto? Qual é o seu papel? De acordo com eles, este papel seria de
“ajudar o daime”. Assim, são recorrentes as afirmações de que quem faz o trabalho e as
curas é o daime e o terapeuta age apenas como um “auxiliar”.
2. A espiritualização dos procedimentos terapêuticos
Paralelamente ao que chamo de terapeutização da comunidade do Céu da
Mantiqueira, também ocorre um processo de espiritualização dos procedimentos
terapêuticos. Enquanto a terapia, um valor que vem da biomedicina e das chamadas
“terapias alternativas” torna-se também um valor importante para os participantes do Céu
67
da Mantiqueira, integrando-se à sua visão de mundo, a espiritualidade, valor fundamental
da cosmologia daimista e também do universo da Nova Era, passa a fazer parte também
do idioma e das práticas desses profissionais ligados a área da saúde. E é nesse sentido
que os médicos e terapeutas podem se ver como “auxiliares” do daime.
É importante lembrar aqui que, como ressaltamos antes, o Céu da Mantiqueira está
inserido numa “rede ayahuasqueira urbana” (Labate, 2000), por onde circulam pessoas,
valores e substâncias. Esta rede, por sua vez, está relacionada com o universo da Nova
Era, de forma que os valores de ambos estes circuitos se interpenetram e se influenciam
mutuamente. Como vimos, estamos diante da “emergência de um vasto campo de
intersecção entre novas formas de espiritualidade e práticas terapêuticas alternativas”
(Maluf: 2003:1), onde existe uma “dupla implicação entre o terapêutico e o espiritual”
(idem). O estudo do caso do Céu da Mantiqueira evidencia esta implicação. Neste
contexto, se pensarmos em termos de um continuum entre o espiritual e o terapêutico,
ambos os pólos do continuum estariam se influenciando. A substância que circula entre
os dois pólos, formando o continuum, é constituída fundamentalmente pelos valores,
provenientes tanto do pólo da espiritualidade quanto do pólo da terapia. Estes valores, por
sua vez, fundamentam os procedimentos espirituais e terapêuticos.
Figura 1: continuum espiritual terapêutico
Como está ilustrado pela figura acima, ambos os pólos do continuum se influenciam.
Enquanto no processo de terapeutização da espiritualidade, os valores e categorias
característicos da biomedicina e das práticas terapêuticas chamadas de “alternativas”
interagem com os valores característicos da doutrina daimista, influenciando-os, no
processo de espiritualização da terapia, os valores e categorias característicos da
Pólo da Espiritualidade: doutrina do
Santo Daime, rituais daimistas
Pólo da terapia: profissionais ligados à área da
saúde, terapia e procedimentos terapêuticos
Terapeutização da
espiritualidade
Espiritualização da
terapia
68
doutrina daimista influenciam os profissionais da saúde e os procedimentos terapêuticos,
modificando-os e adaptando-os ao novo contexto
87
.
Citarei dois exemplos etnográficos para nos ajudar a perceber como estamos diante de
um contexto no qual o espiritual e o terapêutico estão estreitamente imbricados e em
interação constante e dinâmica. Observei que imediatamente após os Trabalhos de Cura,
eram realizadas na igreja (ou seja, no mesmo ambiente que ocorreu o ritual) aplicações
da “vacina” kambô
88
. Também observei que a mesma pessoa que auxiliava na direção
dos trabalhos de Mesa Branca (uma psicóloga) nos dias subseqüentes a estes rituais
realizava sessões de psicoterapia com os participantes do Céu da Mantiqueira. Nestas
sessões eles podiam, entre outras coisas, discutir suas experiências espirituais. Estes
dois exemplos nos mostram como o modelo de um continuum espiritual-terapêutico pode
nos ajudar a compreender os valores e categorias que orientam os procedimentos
espirituais e terapêuticos no Céu da Mantiqueira. Neste contexto, espiritualidade e
procedimentos terapêuticos são concebidos e vivenciados como dimensões
complementares e integradas.
3. Narrativas sobre a participação no Céu da Mantiqueira
Fazendo uma análise das trajetórias de vida de 11 participantes do Céu da Mantiqueira
a partir de suas narrativas, é possível perceber que, apesar das diferenças, existem
algumas recorrências relevantes para nossa análise. Nos quadros 1.1 e 1.2, a seguir,
podemos observar elementos importantes na trajetória de vida das pessoas entrevistadas
(primeira linha dos quadros) e também como estas pessoas definem sua vida antes de
começar a participar do Santo Daime e do Céu da Mantiqueira (segunda linha dos
quadros). Nestes quadros, cada coluna equivale a trechos da narrativa de uma pessoa.
As narrativas dos quadros são tanto de profissionais da área da saúde quanto de pessoas
que tem outras ocupações.
87
É importante retomarmos a idéia de que aqui as categorias espiritualidade e terapia são pensadas
como tipos ideais (Weber, 2002), ou seja, não existem em forma pura ou completamente independente.
88
Durante minha pesquisa de campo, estas aplicações estavam sendo realizadas após todos os
Trabalhos de Cura e a proposta era que continuassem ocorrendo sempre nestas datas.
69
Quadro 1.1 Como as pessoas definem sua vida “antesde começar a participar do Santo
Daime
Estudante de
fisioterapia.
Trabalhava na
área de
informática e
abandonou.
Começou a
tomar daime
em São Paulo
procurando
uma “abertura
de
consciência”,
uma “planta de
poder”
Faixa etária: 26
a 30 anos
Agricultor.Natural
do Ceará, tendo
residido por um
tempo no Mato
Grosso. Tem
formação técnica
na área de
agricultura
Faixa etária: 50
anos ou mais
Médica
neurologista,
mora e
trabalha em
São Paulo.
Conheceu o
Céu da
Mantiqueira
através da
indicação de
um colega
psiquiatra.
Faixa etária:
41 a 45 anos
Formação na área
de psicologia, na
qual já trabalha há
cerca de 20 anos.
É dirigente de uma
igreja daimista
perto de Belo
Horizonte e
freqüenta
periodicamente o
Céu da
Mantiqueira para
auxiliar nos
trabalhos de Mesa
Branca e fazer
atendimentos
terapêuticos.
Faixa etária: 50
anos ou mais
Médica
psiquiatra,
trabalha e
mora em São
Paulo.
Conheceu o
Santo Daime
através do
marido e da
paciente de
um colega.
Faixa etária:
36 a 40 anos
Artista plástica,
morava em São
Paulo. Começou a
namorar um
participante
eventual do Céu
da Mantiqueira
que mora próximo
à comunidade.
Eles tiveram um
filho e ela mudou-
se para
Camanducaia.
Participa
eventualmente
dos rituais e não é
fardada.
Faixa etária: 31 a
35 anos
“Eu estava
meio perdida
mesmo, não
sabia bem que
caminho tomar,
o que fazer,
para onde ir”.
“Eu estava num
desenvolvimento
do alcoolismo já
grande, eu já
estava bebendo
todo dia, já estava
influenciando no
meu
relacionamento”.
“Eu entrei num
processo
depressivo e
queria tentar
alguma coisa
mais natural”;
“a questão do
dia a dia
estava me
deixando muito
angustiada,
desanimada”;
“eu queria
tomar um
remédio”;
“eu fazia as
coisas, mas eu
não tinha
muito mais
razão”;
“até dentro da
medicina
mesmo, eu
estava fazendo
muito
automático”.
“Eu trabalhava
com psicologia e,
dentro do meu
caminho
terapêutico, eu
sentia que o que a
ciência me dava
não me satisfazia”.
Não
expressou
sentir
nenhuma
necessidade
de modificar
sua vida
antes de
começar a
participar do
Santo Daime.
“Eu não tinha
espiritualidade, eu
não acreditava em
nada... sempre a
dúvida ficava em
mim”;
“eu sempre morei
em São Paulo,
sempre fui muito
urbana”.
70
Quadro 1.2 Como as pessoas definem sua vida “antesde começar a participar do Santo
Daime (continuação)
Estudante.Começou a
tomar daime muito nova,
levada pela mãe, pois
estava viciada em
cocaína. Atualmente está
desligada do Céu da
Mantiqueira e mora no
Rio de Janeiro, onde
participa de outra igreja
do Santo Daime.
Faixa etária: 18 a 25 anos
Médico psiquiatra,
trabalhava na
Escola Paulista de
Medicina.
Atualmente faz
atendimentos em
consultório.
Conheceu a
ayahuasca ao
participar das
pesquisas do
hoasca project em
Manaus.
Faixa etária: 36 a
40 anos
Formado em
educação física,
atualmente
trabalha como
terapeuta e
professor de
yoga. Começou a
tomar daime em
São Paulo, na
igreja Flor de Luz
Faixa etária: 36 a
40 anos
Terapeuta. Nascida
no interior de São
Paulo.Fez ciências
sociais na
USP.Trabalhou por
um período na área
de educação,
mudando-se
posteriormente
para o Mato
Grosso.
Faixa etária: 50
anos ou mais
Médica psiquiatra,
morava e
trabalhava em
São Paulo.
Atualmente
mudou-se para
Camanducaia e
trabalha em São
Paulo apenas
alguns dias da
semana.
Conheceu o
Santo Daime
através de um
colega psiquiatra
que já era
participante do
Céu da
Mantiqueira.
Faixa etária: 31 a
35 anos
Mãe foi para
Camanducaia “se tratar
de uma falência na
hipófise”.
Ela e a irmã eram
“viciadas em cocaína no
último”.
“Era completamente
cético, não
acreditava em
Deus, tinha uma
coisa muito ligada
com a medicina,
com o
conhecimento
científico”.
Sempre teve a
“mediunidade
muito aberta” e
sofria muito com
isso.
“Quando eu
cheguei em São
Paulo eu tinha
muitas visões,
muitos sonhos”;
“quando eu
cheguei aqui (no
Céu da
Mantiqueira) eu
era médium
inconsciente”;
“eu já vinha
buscando essa
coisa de estar
trabalhando a
minha
mediunidade”.
Marido “estava num
processo ligado ao
vício do álcool,
tomava em média
um litro de pinga
por dia, e eu não
via muita
perspectiva dele
poder se curar”.
“Eu tinha muitas
críticas formais à
forma como se
desenvolvia o
ritual” (relaciona
isso com sua
formação
acadêmica);
“tinha um ceticismo
muito grande”
(mesmo na fase
inicial do daime).
“Estava saturada
do que eu estava
vivendo em São
Paulo”.
“Trabalhava
muito”
estava cansada
do seu processo
terapêutico, em
busca de algo que
lhe desse “maior
profundidade”.
Tinha um
problema de
saúde (não
especifica o que
é), que coloca
como um dos
fatores que a
levou para o
daime.
A análise destes quadros nos mostra que, apesar das trajetórias serem bastante
diversas, pois trata-se de pessoas de diferentes procedências, com diferentes formações
e também de várias idades, há uma recorrência em expressar uma necessidade de
modificar sua vida. Vemos nos quadros que somente uma das pessoas não manifestou
esta necessidade. Esta necessidade de mudança pode ser um dos fatores que levou as
pessoas a procurarem o Santo Daime.
Nos quadros 2.1 e 2.2, a seguir, vemos trechos das narrativas destas mesmas pessoas
sobre como o Santo Daime as ajudou a resolverem de alguma maneira esta necessidade
71
de mudanças em suas vidas. As narrativas encontram-se na mesma ordem que nos
quadros anteriores. Este recorte em termos de “antes” e “depois” das pessoas
começarem a participar do Santo Daime foi estabelecido através de elementos das
próprias narrativas das pessoas entrevistadas, que em sua grande maioria eram
estruturadas nestes termos.
Quadro 2.1 Como as pessoas definem sua vida “depois” de começarem a participar do
Santo Daime
Narra que depois
que começou a
participar do
Santo Daime, “foi
corrigindo alguns
desvios de
consciência, de
modo de vida, de
visão de vida”.
Afirma que esse
processo a tirou
da cidade e a
levou para morar
nas montanhas,
mudou sua vida.
Considera que o
daime “fez essas
limpezas, foi
gradual”, foi
tirando seus
vícios, “não só
vícios de
conduta, quanto
vícios de
matéria”. Afirma
hoje que não
fuma, não bebe,
não usa drogas.
Além disso, narra
que depois que
começou a tomar
daime percebeu
que seu emprego
como
administradora
de banco de
dados não a
satisfazia e que
ela queria outra
coisa para sua
vida.
Assim “recebeu
um
entendimento,
um
direcionamento”.
Narra que
depois que
começou a
participar do
Santo Daime foi
perdendo seu
costume de
beber e que
atualmente está
curado do
alcoolismo.
Narra que o
Santo daime
“abriu sua história
espiritual”, “abriu”
sua consciência
para isso e o
coração
também”. Conta
que depois de ter
participado do
primeiro ritual
voltou a fazer
terapia, com um
dos psiquiatras
que participa da
comunidade (já o
conhecia antes e
já havia feito
terapia com ele) e
que começou a
melhorar da sua
depressão e “a
sentir novamente
sentido para as
coisas que estava
fazendo”.
Também afirma
que sentiu
que estava
“encaminhando”
os espíritos que a
acompanhavam”.
Além disso, conta
que encontrou
outros colegas
médicos no Céu
da Mantiqueira e
relata a “abertura”
do seu
desenvolvimento
mediúnico.
Narra que
quando
começou a
participar do
Santo Daime
viu que “era ali
a sua história”.
Conta que não
sabe o que
seria sua vida
sem o daime
“porque a
minha vida é
dedicada ao
daime, a minha
entrega é
minha e de
minha família”.
Considera que
a doutrina a
ajudou a criar
suas duas filhas
e também
ajudou “na
minha
profissão, no
encontro do
meu caminho
profissional,
espiritual, a
minha direção”.
Narra que
quando começou
a tomar daime
“era como uma
terapia. Cada
vez que eu ia no
trabalho valia por
dez sessões de
análise... mas
ficava por aí, eu
não tinha noção
do que era a
espiritualidade”
.“Aos poucos eu
fui tendo contato
com essa
experiência
espiritual e foi
aprofundando”.
Além disso,
afirma que “o
daime sempre
me ajudou a ter
firmeza, a ter
uma boa
conduta, a ter
amor com as
pessoas, a ter
mais
compreensão, a
ter tolerância”.
Conta que já era
calma antes e
que “depois do
daime” ficou bem
mais tranqüila
com sua calma”.
Narra que
participar do
Santo Daime
representou
“uma abertura
para esse lado
da
espiritualidade”.
“É como se eu
tivesse mesmo
sido resgatada
para saber o
que é esse lado
espiritual, que
eu não sabia
em São Paulo”.
72
Quadro 2.2 Como as pessoas definem sua vida “depois” de começarem a participar do
Santo Daime (continuação)
Narra que foi
“legal” começar a
participar do Santo
Daime porque
ajudou a “segurar
uma onda”,
porém, afirma que
mesmo assim, por
um bom tempo
ainda continuou
usando cocaína
“até começar a
entrar num
processo de
entendimento”.
Narra que depois de
começar a freqüentar
o Céu da Mantiqueira
começou a atender
pessoas da igreja.
Também começa a
ser procurado por
pacientes que querem
conhecer o daime
“como uma
perspectiva de cura”.
Afirma que com
relação ao seu
trabalho como
psiquiatra, o Santo
Daime o colocou
“num trabalho muito
mais profundo, num
envolvimento muito
mais profundo com as
pessoas”.
No campo pessoal,
narra a “abertura de
um campo de uma
sensibilidade” que
pode ser percebido
“na minha capacidade
de amar, na
capacidade de ter
paciência” e na
ampliação da
percepção. Relata
também uma
“abertura” de sua
mediunidade.
Além disso, afirma
que percebe “como o
Santo Daime vai me
ajudando a poder
reconhecer e depois
saber
conscientemente
dominar coisas que
antes eu não
conseguiria”. “Eu
percebo que em
vários níveis eu me
transformei muito e
me harmonizei mais”.
“A coisa da minha
ansiedade melhorou,
a coisa da paciência,
com o amor”.
Narra que encontrou
seu “bem estar com
a mediunidade” na
doutrina, pois com o
tempo começou a
conseguir dominar a
mediunidade e não
sofrer mais tantos
“ataques espirituais”.
Assim, afirma que
sua vida melhorou
bastante, pois “com
essa mediunidade
aflorada, com esse
campo energético
aberto, existiam
muitas confusões”.
Afirma também que
“melhorou bastante
em todos os
sentidos, de olhar
mais para o meu
ser, de entender
mais as pessoas, de
não fazer confusão,
de saber separar
bem as coisas,
trabalhar dentro da
razão.”
Sobre sua mudança
recente para
Camanducaia, conta
que com o
tempo“você vai
percebendo que
precisa mudar, que
precisa ficar mais
em contato com a
natureza”.
Narra que o marido,
depois de começar a
tomar daime, “num
espaço de tempo
relativamente curto,
de três a cinco
meses, parou de
beber
completamente”. Isto
chamou sua atenção
e ela começou a
dirigir a atenção mais
para si, porém “ainda
estava bastante em
conflito comigo
mesma” com relação
à doutrina.
Narra que depois
de começar a
participar do Céu
da Mantiqueira,
conheceu o futuro
marido, se casou,
teve uma filha,
mudou de São
Paulo para
Camanducaia .
Afirma que isto foi
“uma cura” para
ela, pois
possibilitou a
realização como
esposa e como
mãe. Afirma
também que
os trabalhos com o
daime melhoram
claramente seu
problema de
saúde, e que com
apenas um
trabalho já nota
uma mudança de
“padrão”.
Sobre a mudança
de São Paulo para
Camanducaia,
também afirma
que sentiu
necessidade de
“estar mais perto
da natureza”.
Um dos fatores que pode motivar esta forma de narrar, estruturada em termos de
“antes” e “depois” das pessoas começarem a participar do Santo Daime, pode ser
73
relacionada com a importância que estas pessoas dão à doutrina daimista. De acordo
com Miriam Rabelo (1999a), a religião desempenha um papel fundamental tanto como
fonte para construção dos projetos, quanto como meio para sua realização. Rabelo
considera que a religião fornece imagens que guiam a interpretação das experiências.
Para ela, isto acontece por que “toda religião consiste, mais do que em um conjunto de
princípios abstratos, em um conjunto de esquemas corporificados
89
, e nisso reside sua
eficácia para reorientar a vida” (1999a:225). De acordo com Clifford Geertz (1989), além
de fornecer imagens, a religião também fornece aos seres humanos um sistema de
duradouras disposições e motivações que parecem “singularmente realistas” (1989:105).
De acordo com Geertz, o impacto mais importante dos rituais religiosos está fora dos
limites do próprio ritual e está relacionado à capacidade que as disposições e motivações
geradas pelos rituais têm de modelar a realidade.
A forma como os participantes do Céu da Mantiqueira estruturam suas narrativas
mostra que estas pessoas passam a considerar a participação no Santo Daime e no Céu
da Mantiqueira como uma parte fundamental e mesmo prioritária de seus projetos de vida.
Assim, é a partir desta participação que elas vão reestruturar suas perspectivas e suas
maneiras de ver o mundo, reavaliando a partir dos paradigmas da cosmologia daimista
também suas narrativas e suas interpretações sobre seu passado.
Através da análise das narrativas das pessoas entrevistadas, esquematizadas em
quadros sinópticos, podemos perceber algumas recorrências relevantes para nossa
análise. Vemos que é comum a idéia de que o Santo Daime proporciona uma “abertura”
da espiritualidade (quadro 2.1, colunas 3, 5 e 6). Algumas pessoas narram um ceticismo
anterior (quadro 1.1, coluna 6; quadro 1.2, colunas 4 e 5). Também é recorrente a idéia de
que o Santo Daime pode ajudar a abandonar vícios, como álcool e drogas (quadro 2.1,
colunas 1 e 2; quadro 2.2, coluna 4) e a modificar a conduta, a ter mais entendimento” e
mais “compreensão” e a se relacionar melhor com as pessoas. Vários entrevistados
narram a “abertura” ou desenvolvimento de sua mediunidade (quadro 2.1, coluna 3;
quadro 2.2, colunas 2 e 3).
Estes aspectos nos ajudam a compreender qual é a noção de “cura” para os
participantes do Céu da Mantiqueira, pois todos os aspectos citados estão relacionados à
esta noção. A noção de cura dos participantes do Céu da Mantiqueira é bastante ampla,
89
Rabelo (1999a) fala em “esquemas corporificados” pois considera que o corpo tem um papel
importante “no delineamento da situação na qual se insere o sujeito e no projeto mesmo de transcender
esta situação” (1999a:208). Para Rabelo, ao mesmo tempo que o modelo genérico da religião inscreve-
74
podendo envolver tanto a dimensão material quanto a dimensão espiritual da vida e
também abrangendo todos os corpos que eles afirmam existir: físico, mental, emocional e
espiritual. Assim, a cura pode se processar em qualquer um ou em vários desses níveis.
A noção de cura pode referir-se também a um aumento no “entendimento” ou na
compreensão, a um insight, a uma mudança de comportamento e/ou de consciência; à
resolução de um problema familiar ou financeiro. Como mencionou Peláez (1996), noção
de cura, porém, é fundamentalmente equacionada com a noção de equilíbrio (e,
conseqüentemente, a noção de doença com a de desequilíbrio): equilíbrio entre os
diversos corpos, entre as dimensões material e espiritual, entre a pessoa e aqueles com
quem ela se relaciona e, em última instância, entre o ser humano e o divino.
Também encontramos várias narrativas que refletem uma insatisfação com a vida
urbana e a busca de um contato maior com a “natureza” (quadro 2.1, colunas 1 e 6;
quadro 2.2, colunas 3 e 5). Esta necessidade de estar próximo da “natureza” es
relacionada com valores característicos da doutrina daimista que se refletem na noção de
“floresta”, constantemente referenciada nos hinos e também muito presente na narrativa
das pessoas. Há, assim, uma oposição entre a vida na “cidade” e a vida na “floresta” que
penso ser relacionada com a oposição citada entre “matéria” e “espiritualidade”. A
cidade é associada com a “matéria”, com o “mundo da ilusão”, enquanto a “naturezae a
“floresta” são relacionadas com a espiritualidade.
Como vimos anteriormente, para os participantes do Santo Daime, o ideal é manter um
equilíbrio entre a “vida material” e a “vida espiritual”. Pude perceber, porém, que este ideal
do equilíbrio parece ser um pouco difícil de colocar em prática, o que gera uma tensão.
Isto pode estar relacionado às próprias exigências da doutrina. As pessoas que são
fardadas têm o dever de cumprir o calendário do CEFLURIS, o que significa participar
pelo menos dos “trabalhos oficiais”
90
. Para as pessoas que moram em outras cidades, isto
envolve viagens constantes para o Céu da Mantiqueira. das pessoas que vivem nas
proximidades da igreja, é esperado que participem também de outras atividades
comunitárias e que ajudem na organização e administração da igreja.
se no corpo, como sinal de uma transformação, ele adquire um significado próprio, à luz da situação
biográfica particular (1999a:216).
90
Estes deveres” dos fardados podem ser considerados como uma espécie de conhecimento social
implícito” (Taussig, 1993:369). Taussig define o “conhecimento social implícito” como um conjunto de
técnicas para interpretar as nuanças do significado das situações sociais, uma teoria das relações
sociais que funciona como uma “força discursiva imanente” (1993:370). Este conceito pode ser útil para
pensar os “deveres” dos fardados do Santo Daime, pois estes não costumam ser explicitamente
mencionados, assim como não costuma ser aplicado nenhum tipo de punição para aqueles que não os
cumprem. Mesmo assim, as pessoas sabem que eles existem e procuram cumprí-los.
75
Como a maioria das pessoas tem outras ocupações que estão mais relacionadas ao
“mundo material”, nem sempre é possível conciliar de forma ideal a “vida material” e a
“vida espiritual”, sendo necessário fazer a opção de se dedicar mais a uma destas duas
dimensões da vida. Este tipo de opção envolve também a decisão de morar na cidade ou
mudar-se para perto da igreja, um lugar que também é metaforicamente chamado de
“floresta”, apesar de ser relativamente perto da cidade de Camanducaia e também
próximo a grandes centros urbanos. A noção de “floresta” dos participantes do Céu da
Mantiqueira constitui, assim, uma metáfora do “não-urbano”. Talvez o que esta metáfora
nos mostre é que um dos ideais daimistas seja afastar-se da vida urbana e morar na
“floresta”, onde é possível dedicar-se mais à espiritualidade. A noção de “floresta”
aparece, portanto, como um símbolo que reflete um ideal de vida. Mais do que um espaço
físico, esta noção expressa uma metáfora de uma visão de mundo.
A “floresta” também é um meio de referir-se ao Céu do Mapiá, sede matriz do
CEFLURIS, localizada no estado do Amazonas. Além disso, a importância conferida à
“floresta” e à natureza” está relacionada ao fato das plantas utilizadas para confeccionar
o daime serem nativas da floresta Amazônica. Goulart (2004) relaciona a valorização da
“natureza” e da “floresta” e a construção de um centro no interior da Amazônia com a
expansão do CEFLURIS. De acordo com ela, mediante estes elementos, o Santo Daime
forneceria alternativas ao desencanto com a vida urbana e com a sociedade em geral.
4. Associações entre Santo Daime e terapia
A análise dos quadros sinópticos também nos mostra a recorrência da associação do
Santo Daime com a terapia: em uma narrativa (quadro 2.1, coluna 3), a pessoa
entrevistada nos conta que depois que começou a participar do Santo Daime voltou a
fazer terapia e assim melhorou de sua depressão; em outra narrativa (quadro 2.1, coluna
5), a pessoa entrevistada estabelece uma analogia entre o daime e a terapia, afirmando
que cada vez que participava de um ritual “valia por dez sessões de análise”. Vemos
também duas narrativas de profissionais ligados à área da saúde onde estes nos contam
como a participação no Santo Daime mudou sua relação com seu trabalho profissional.
Na quarta coluna do quadro 1.1, temos a narrativa de uma pessoa que antes de começar
a participar do Santo Daime trabalhava como psicóloga e estava insatisfeita com o que a
ciência oferecia. Na segunda coluna do quadro 2.2, um profissional ligado à área da
saúde afirma que depois que começou a participar do Santo Daime “aprofundou” sua
76
relação com seu trabalho como psiquiatra e também começou a ter um “envolvimento
muito mais profundo com seus pacientes”.
Por fim, nas narrativas analisadas, vemos que duas pessoas afirmam que conheceram
o Santo Daime por intermédio de um profissional ligado à área da saúde que era
participante do Céu da Mantiqueira (quadro 1.1, coluna 3 e quadro 1.2, coluna 5). Este
dado também apareceu no levantamento que realizei através da consulta às fichas da
secretaria da igreja. Segundo este levantamento, um número expressivo de pessoas
respondeu à pergunta “como você conheceu o Santo Daime” afirmando que havia sido
através de um profissional ligado à área da saúde que era participante do Céu da
Mantiqueira. No gráfico 3, abaixo, podemos ver que 46% das pessoas afirmam que
conheceram o Santo Daime através de amigos; 24% através de familiares e 15% por
intermédio de um profissional da área da saúde ligado ao Céu da Mantiqueira.
Gráfico 3: respostas à pergunta “como você conheceu o Santo Daime”
46%
24%
7%
15%
4%
1%
3%
Estas recorrências das associações do Santo Daime com a terapia nas narrativas dos
entrevistados e também o número expressivo das pessoas que afirmaram que
conheceram o Santo Daime por intermédio de um profissional ligado à área da saúde
apontam para a hipótese que formulei anteriormente a respeito da existência de um
continuum entre o espiritual e o terapêutico no Céu da Mantiqueira.
As narrativas dos profissionais da área de saúde analisadas nos quadros sinópticos e
citadas acima também nos mostram que a participação destes profissionais no Santo
Legenda do Gráfico:
Amigos
Familiares
Marido/esposa
ou namorado(a)
Profissional da
área da saúde
ligado à igreja
Freqüentador da
igreja
Madrinha ou
padrinho
Outros
77
Daime de fato influencia seu trabalho terapêutico, levando-os a criar uma nova relação
com este trabalho e também modificando seu relacionamento com os pacientes. Outro
fato que confirma está hipótese são as afirmações por parte destas pessoas de que parte
de sua clientela é composta por participantes do Santo Daime. Todos os profissionais da
área da saúde entrevistados atendem tanto pessoas que participam quanto pessoas que
não participam do Santo Daime e alguns afirmaram que cerca de metade de sua clientela
é composta por participantes da doutrina.
5. Relações Sociais
Nesta seção faço uma análise das relações sociais entre os participantes do u da
Mantiqueira. Através desta análise, começo a delinear as categorias culturais que
considero importantes para compreendermos as expressões das experiências dos
participantes do Céu da Mantiqueira. Para fazer esta análise, vou narrar um conflito que
observei durante minha estadia na comunidade e que envolveu grande parte de seus
participantes. Como veremos, este conflito é estruturado na forma de um drama social
(Turner, 1969). Langdon define os dramas sociais como “unidades de seqüência de ação
que analiticamente podem ser separadas do fluxo contínuo do processo social”
(2001:249), sendo marcadas pelas fases de ruptura da ordem normal, crise, tentativas de
compensação, e resolução quando a ruptura é resolvida ou a divisão do grupo se torna
permanente e reconhecida” (idem, grifos da autora).
Este acontecimento será contado com base nas narrativas dos participantes do Céu da
Mantiqueira. Como veremos, trata-se de uma disputa de poder, polarizada em duas
figuras principais, o padrinho do Céu da Mantiqueira e o vice-presidente da igreja, um
psiquiatra. Além deles, os outros protagonistas importantes no desenrolar deste conflito
são a madrinha do Céu da Mantiqueira; uma psiquiatra que é a esposa do vice-presidente
da igreja; uma psicóloga que é dirigente de outra igreja do CEFLURIS e o padrinho
Alfredo. Este conflito mobilizou uma grande parte dos participantes do Céu da
Mantiqueira, gerando amplas repercussões. Assim, além de permitir perceber como se
dão as relações sociais entre os participantes do Céu da Mantiqueira, a reflexão a
respeito deste evento possibilita, através da análise das explicações e interpretações
sobre ele e das soluções adotadas para resolvê-lo, delinear categorias importantes da
visão de mundo dos participantes do Céu da Mantiqueira.
As narrativas situam a fase de ruptura num acontecimento que teve lugar alguns anos
atrás. Trata-se de um acidente grave sofrido pelo padrinho, uma queda de um telhado,
78
que o colocou em coma por um tempo e teria gerado uma perda parcial de sua memória.
É interessante levarmos em conta também as interpretações sobre as causas deste
acidente. De acordo com as narrativas, o acidente do padrinho teria sido causado por
“espíritos obsessores” que estariam tentando “fechar a igreja”. Neste momento, então, o
padrinho fica sem condições de assumir sua função de dirigir os rituais, o que gera uma
crise na comunidade.
Como uma primeira tentativa de compensação, a direção dos trabalhos espirituais é
dividida entre alguns casais mais antigos da comunidade
91
. Ficaram se revezando, então,
nesta função três casais formados por participantes antigos do Céu da Mantiqueira. Este
arranjo durou algum tempo, mas gerou conflitos, pois nem todos os participantes do Céu
da Mantiqueira concordavam que as pessoas designadas estivessem na direção dos
rituais. Surgiram conflitos também entre os casais que estavam dirigindo os rituais.
Esta era a situação quando o padrinho começou ter melhoras no seu estado de saúde
e quis retomar sua função como dirigente dos rituais. Isto acabou agravando a crise e
gerando um afastamento do vice-presidente da igreja. Junto com ele um grupo de
pessoas também se afastou. Este afastamento aconteceu num momento bastante
dramático, antes do início do “festival”
92
do final do ano de 2003. Assim, os participantes
do Céu da Mantiqueira fizeram seu “festival” com um grupo reduzido. Nas narrativas, este
acontecimento é referido como um “balanço” que a comunidade estaria passando, gerado
pela ação dos mesmos “espíritos obsessores” que teriam causado o acidente do
padrinho.
É frente a esta situação, que ameaça, inclusive, gerar uma separação definitiva do
grupo, que são feitas as tentativas de resolução. A fase da resolução se inicia quando o
padrinho do Céu da Mantiqueira entra em contato com o padrinho Alfredo. Este aconselha
o primeiro a conversar com o vice-presidente da igreja, afirmando que o tempo é “de
união”, e não “de separação”. O padrinho e a madrinha se encontram então com o vice-
presidente do Céu da Mantiqueira e sua esposa para conversar. A partir desta conversa
fica decidido que estes últimos voltariam a participar de pelo menos alguns rituais.
O conflito, porém, continua, e agora se mobiliza em torno da direção de dois rituais
específicos: o Trabalho de Cura e o trabalho de Mesa Branca. Antes de seu afastamento,
estes rituais estavam sendo dirigidos pelo vice-presidente da igreja. Alguns participantes
91
No Céu da Mantiqueira, os rituais costumam sempre ser dirigidos por um homem e uma mulher em
conjunto. Antes deste acidente, o casal responsável era formado pelo padrinho e pela madrinha.
92
Os participantes do Santo Daime chamam de “festival” dois períodos do ano nos quais se concentram
vários rituais, um no meio do ano, na época das festas juninas, e outro entre o final e o início do ano.
79
da comunidade não concordaram que o vice-presidente voltasse a dirigir estes rituais,
após ter se afastado de maneira tão abrupta. Foram organizadas, então, algumas
reuniões, para que as pessoas pudessem conversar e expressar suas opiniões, tentando
resolver o conflito. Primeiro aconteceu um almoço de mulheres e a seguir uma reunião do
conselho da igreja.
O almoço de mulheres aconteceu antes do primeiro trabalho de Mesa Branca que seria
dirigido pelo vice-presidente da igreja após seu afastamento, no mesmo dia do trabalho.
Nesta ocasião reuniram-se cerca de 20 mulheres participantes do Céu da Mantiqueira,
com o objetivo de expressarem suas opiniões a respeito do conflito e, desta maneira,
resolver as tensões que ele havia gerado, tentando chegar a um acordo comum. A
reunião do conselho aconteceu imediatamente após este trabalho, também no mesmo
dia. Não participei desta reunião, porém a madrinha me contou que algumas pessoas
expressaram sua insatisfação com o retorno do vice-presidente da igreja.
Depois do almoço de mulheres e desta reunião do conselho, ficou estabelecido que o
vice-presidente voltaria a dirigir o Trabalho de Cura e o trabalho de Mesa Branca. Esta
decisão foi definitivamente confirmada com a vinda do padrinho Alfredo, em uma outra
reunião do conselho da igreja da qual ele participou. Em parte, esta decisão foi motivada
pelo consenso coletivo de que o estado de saúde do padrinho do Céu da Mantiqueira
ainda requeria bastante cuidado. Assim, ele ficou responsável pela direção de rituais
como Hinários e Concentrações, enquanto o vice-presidente se encarregaria da direção
dos Trabalhos de Cura e Mesa Branca, considerados como sendo “mais fortes”. Este fato
evidencia a importância que estes dois rituais têm na dinâmica comunitária.
Acompanhando o desenvolvimento deste conflito, observei que estes rituais serviam
como um palco para o desenvolvimento, negociação e resolução dos conflitos importantes
e que envolvem todo o grupo.
Todo este conflito que se polarizou na disputa de poder entre o vice-presidente da
igreja e o padrinho reflete uma série de tensões internas que são catalizadas na situação
destas duas pessoas. Esta é uma situação análoga à analisada por Turner (1980) entre
os Ndembu, na qual um conflito que permeia todo o grupo é catalizado sobre uma
pessoa. No caso dos Ndembu, o “médico” realiza um ritual para curar esta pessoa em
particular, de maneira a mobilizar todas as pessoas da comunidade, possibilitando a
resolução de seus conflitos e tensões
93
.
93
Segundo Turner (1980), entre os Ndembu, a terapia constitui uma forma de, simultaneamente,
resolver conflitos e tensões sociais e livrar paciente de seus sintomas. Turner relaciona a forma do rito
80
De maneira semelhante, no evento que analisamos, um conflito que reflete uma série
de tensões internas ao grupo é catalizado sobre a pessoa do vice-presidente da igreja. A
nossa analogia continua, pois, da mesma forma que no caso dos Ndembu é realizado um
ritual que tem como finalidade última (embora não aparente) a resolução do conflito, no
caso do Céu da Mantiqueira este ritual também acontece, tendo a interferência
fundamental de alguém externo ao grupo: trata-se de uma pessoa que tem uma posição
influente no CEFLURIS e freqüenta periodicamente o Céu da Mantiqueira. Aqui é ela que
vai fazer um papel análogo ao do “médico” Ndembu. Durante um ritual de Mesa Branca
ela recebe uma “entidade” que vem falar ao grupo sobre a importância da união. Além
disso, ela tem o papel de servir como intermediária entre as principais partes envolvidas
no conflito, procurando conciliar os diferentes interesses e posições envolvidos. Neste
caso, a posição divergente era representada pelas pessoas que não concordavam que o
vice-presidente da igreja e sua esposa voltassem a dirigir os rituais.
Outra pessoa que teve um papel fundamental no desenrolar deste conflito foi o
padrinho Alfredo, interferindo em um primeiro momento à distância, através de conversas
com o padrinho do Céu da Mantiqueira e de uma mensagem gravada numa fita cassete
com um discurso, enviada para ser ouvida pelo grupo durante um ritual. Esta mensagem
mencionava diretamente o nome das principais pessoas envolvidas no conflito e falava
sobre a importância da união do grupo. Em um segundo momento ele interfere
pessoalmente, e é com a sua visita ao Céu da Mantiqueira, realizada para fazer a
inauguração da igreja nova, que o conflito fica definitivamente resolvido.
Aqui é interessante observar que devido à posição influente que o padrinho Alfredo tem
no CEFLURIS, sua palavra é considerada como algo muito importante e dificilmente é
questionada. Assim, o fato dele expressar sua opinião sobre o conflito, concordando com
a idéia de que a direção dos rituais deveria ser dividida entre o padrinho e o vice-
presidente da igreja, conforme mencionei anteriormente, é uma maneira de por fim às
opiniões divergentes a respeito da questão. Por fim, neste ritual dirigido pelo padrinho
Alfredo, vemos novamente como o espaço da igreja torna-se um palco da “dinâmica
comunitária”, refletindo e revelando relações de poder e negociações. A observação deste
ritual revelou como o posicionamento das pessoas dentro da igreja, ao menos num evento
importante como este, reflete relações de status e poder. Assim, percebi como as
terapêutico com a rede de relações sociais Ndembu e afirma que neste contexto o médico” tem o papel
de estudar os relacionamentos sociais, diagnosticar a incidência das tensões e diminuí-las através dos
rituais. Os ritos terapêuticos tem, portanto, implicações sociais.
81
posições importantes no ritual como sentar na “estrela”
94
ou na primeira fila da igreja,
servir o daime e ficar na fiscalização – foram designadas a pessoas detentoras de
posições de prestígio e poder no Céu da Mantiqueira.
5.1 Relações sociais e categorias culturais importantes para os participantes do Céu da
Mantiqueira
Narrado este conflito, podemos agora passar à análise das categorias culturais
importantes que ele evidencia. Em primeiro lugar, temos as interpretações dadas ao
acidente sofrido pelo padrinho e ao “balanço” atravessado pela comunidade devido ao
afastamento periódico de um grupo considerável de pessoas. Como vimos, as causas
destes dois acontecimentos são relacionadas à ação de “espíritos obsessores”.
Para podermos compreender esta explicação, é necessário considerarmos alguns
aspectos da visão de mundo daimista. De acordo esta visão de mundo, os seres humanos
vivem uma grande batalha entre as forças “da luz” e as forças “das trevas”, sendo que
estas forças estariam organizadas em “falanges” de seres espirituais. Desta maneira,
infortúnios como doenças ou como os acontecimentos em questão podem ser explicados
com referência à atuação de falanges de “entidades obsessoras” ou malignas. Seguindo
inspiração do kardecismo, estes espíritos ou entidades podem utilizar as pessoas como
um veículo para sua manifestação, ou seja, podem “atuar” através de uma pessoa,
modificando seu comportamento (Groisman, 1991). Os rituais ou “trabalhos espirituais”
constituem um momento privilegiado para o desenrolar dessa “batalha do astral”, porém
ela se estende também aos eventos da vida cotidiana, de maneira que se recomenda que
as pessoas estejam sempre atentas a suas ações (Groisman, 1991).
Este tipo de explicação dada pelos participantes do Santo Daime aos infortúnios
suscita uma discussão a respeito da causalidade dos infortúnios. Em seu clássico
trabalho sobre a bruxaria Azande, E.E. Evans Pritchard (1978) faz uma reflexão sobre
este tema. De acordo com Evans Pritchard, os Azande reconhecem uma pluralidade de
causalidades possíveis para os infortúnios: existe a “causalidade natural” ou instrumental
e a “causalidade mística”, ou seja, as explicações que atribuem os infortúnios à bruxaria.
O autor nos mostra que as explicações que atribuem a causa dos infortúnios à bruxaria
não implicam no desconhecimento da “causa natural”, pelo contrário, elas são relevantes
e explicam aspectos que não são abrangidos pela causalidade natural do acontecimento.
94
Ver introdução.
82
Assim, enquanto a “causa natural” procura descrever como determinado acontecimento
ocorreu, a “causa mística” está relacionada à explicação de por que ele aconteceu.
Dominique Buchillet (1991) retoma esta reflexão fazendo uma discussão sobre os
diferentes diagnósticos de doenças e as conseqüentes escolhas por determinados
métodos terapêuticos. Partindo de Sindzigre & Zempléni (1981, citados em Buchillet,
1991), ela propõe três níveis de causalidade como um modelo para a explicação dos
infortúnios: a “causa instrumental” que “traduz o meio ou mecanismo de produção da
doença”; a “causa eficaz” que “é o agente responsável pela doença” e a “causa última”
que “procura reconstituir a origem da doença” (1991:28). Ela também elabora uma
distinção entre o “registro das causas” e o “registro dos efeitos” (1991:29). O primeiro
seria característico dos procedimentos terapêuticos que, como a biomedicina, visam
fundamentalmente o tratamento dos sintomas das doenças, procurando responder como
a doença aconteceu e resolver o problema neste nível; o segundo registro estaria
relacionado a uma visão mais ampla, abrangendo dimensões ignoradas pela biomedicina
e permitindo preencher outras funções além da propriamente terapêutica. Este registro
visaria responder a perguntas que transcendem o domínio dos sintomas, separando
muitas vezes estes e as causas das doenças.
Penso que esta distinção estabelecida por Buchillet entre os diversos níveis de
causalidade dos infortúnios e entre os diferentes “registros” das causas pode ser
estendida às explicações daimistas sobre as doenças e também sobre outros infortúnios,
como é o caso dos acontecimentos que estamos analisando e que foram explicados com
relação à atuação de “entidades obsessoras”. Esta explicação estaria relacionada à
“causa última” destes acontecimentos, procurando dar conta de por que eles ocorreram
em um sentido mais amplo, relacionado com a visão de mundo daimista.
Segundo Groisman e Sell (1996), o paradigma terapêutico dominante na doutrina
daimista não é alopático, ou seja, não está centrado na remissão dos sintomas das
doenças. Eles afirmam que os participantes do Santo Daime vêem a doença como um
evento complexo e contextual, onde os aspectos sociais e simbólicos são fundamentais
para o sistema de cura. De acordo com Groisman e Sell, para os participantes do Santo
Daime, a doença é vista como o resultado de um desequilíbrio no relacionamento do
indivíduo com o mundo. Ela também é considerada como uma oportunidade para realizar
um “trabalho interior” para descobrir suas causas. Neste sentido, a doença constitui uma
manifestação do mundo espiritual. Além disso, é vista como uma “disciplina”, pois requer
83
que a pessoa modifique erros pessoais que são considerados como suas principais
causas.
Estes autores afirmam que os elementos centrais da cultura daimista não podem ser
considerados isoladamente, pois eles agem combinados no campo simbólico, criando
uma situação favorável para que os indivíduos reavaliem seus hábitos e padrões de
comportamento e reflitam sobre sua vida e suas experiências. Para Groisman e Sell
(1996), o conceito daimista de cura deve ser considerado como um evento mais complexo
do que apenas um evento orgânico, pois envolve o ser humano como um todo e inclui
tanto as relações com outros seres vivos quanto as relações cósmicas.
Como vimos, os participantes do Santo Daime costumam explicar as doenças com
referência a transgressões em relação as leis cósmicas; transgressões sociais; maus
fluídos, maus espíritos ou outras formas de energias negativas; transgressões realizadas
em vidas passadas (Groisman,1991; Groisman e Sell, 1996; Monteiro da Silva, 1983;
Peláez, 1996). Se pensarmos em termos de um “sistema de cuidados da saúde” do Céu
da Mantiqueira, conforme definição de Kleinman (1980), esta forma de explicar os
infortúnios nos ajuda a compreender os valores que orientam os procedimentos espirituais
e terapêuticos. Neste caso o conceito de “cura” é mais amplo que o biomédico, referindo-
se também a outras dimensões que vão além do “corpo físico”. Como vimos, a “cura”
pode estar relacionada tanto à dimensão física quanto à dimensão espiritual e abrange
também os corpos: físico, mental, emocional e espiritual.
É colocada uma grande ênfase no que Buchillet denominou de “registro das causas”
das doenças, procurando-se compreender quais são as causas mais profundas dos
infortúnios. É esta compreensão do porque da doença, que é considerada como um
“trabalho interior”, que pode gerar uma mudança nos hábitos e comportamentos,
conferindo às pessoas a oportunidade de ter novas perspectivas sobre a vida (Groisman e
Sell, 1996). É neste sentido que podemos pensar na importância da “cura espiritual”
(Peláez, 1996). A doutrina daimista pode ser vista como um meio ou um “caminho” para
se obter esta “cura espiritual” (Peláez, 1996), sendo que os procedimentos terapêuticos
disponíveis aos seus participantes são vistos fundamentalmente como ferramentas que
podem auxiliar nesta busca.
Levando em conta estes aspectos, poderemos passar agora a uma análise mais
aprofundada das principais categorias culturais envolvidas na experiência dos processos
de saúde, doença e cura para os participantes do Céu da Mantiqueira, procurando
compreender estas categorias em sua relação com os procedimentos terapêuticos e
84
identificar os modelos que motivam e sustentam estas categorias culturais e
procedimentos terapêuticos. Aprofundaremos também a análise a respeito de qual é o
papel que as pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde tem no Céu da
Mantiqueira. A partir daí, será possível refletirmos a respeito do que o processo de
terapeutização da espiritualidade e espiritualização da terapia que observamos no Céu da
Mantiqueira tem a nos dizer sobre as noções de espiritualidade e terapia que estão sendo
construídas na contemporaneidade.
85
Capítulo 4: O “sistema de cuidados da saúde do Céu da
Mantiqueira
Neste capítulo, faremos uma análise do “sistema de cuidados da saúde” do Céu da
Mantiqueira a partir de um enfoque teórico sobre a questão da experiência. O conceito de
“sistema de cuidados da saúde” foi proposto por Arthur Kleinman (1980). Kleinman sugere
que as práticas de cuidados da saúde, inclusive a biomedicina, sejam vistas como
sistemas culturais. Segundo este autor, os componentes fundamentais dos “sistemas de
cuidados da saúde” são os “curadores” e os “pacientes”. Para Kleinman, eles não podem
ser compreendidos fora deste contexto. Ele considera que a doença e a cura também
fazem parte do “sistema de cuidados da saúde”. De acordo com este autor, dentro deste
sistema, estas categorias são articuladas como experiências culturalmente construídas.
Segundo Kleinman, as crenças sobre a doença estão sempre ligadas a intervenções
terapêuticas específicas, constituindo, assim, sistemas de conhecimento e ação. Desta
maneira, elas não podem ser entendidas separadamente da maneira como são colocadas
em prática. Kleinman (1980) divide o “sistema de cuidados da saúde” em três setores, que
chama de popular, profissional e folclórico. De acordo com ele, em cada um desses
settings, a doença é percebida, interpretada e rotulada de determinada maneira, e formas
diferentes de cuidado são aplicadas.
Para analisarmos o “sistema de cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira, segundo
o ponto de vista de Kleinman, primeiro, faremos um levantamento dos procedimentos
terapêuticos mais utilizados pelos participantes da comunidade. A seguir, continuaremos
a discussão sobre a inserção das pessoas que trabalham profissionalmente na área da
saúde neste grupo. Por fim, vamos retomar as categorias culturais definidas nos capítulos
anteriores. A partir daí, daremos continuidade à discussão sobre a hipótese da existência
de um continuum espiritual-terapêutico no Céu da Mantiqueira para refletirmos sobre as
implicações desta hipótese para uma discussão mais ampla.
1. Corpo e experiência, natureza e cultura
É no contexto de uma mudança de perspectiva na antropologia, relacionada a um
deslocamento da ênfase em estruturas e sistemas para processos e práticas (Ortner,
19994) que o corpo torna-se uma preocupação central na disciplina. O corpo deixa, então,
de ser visto como uma “tabula rasa” e passa a ser encarado como um “corpo vivido”
(Rabelo e Alves, 2004:175), fonte de agência e intencionalidade (Csordas, 2000), produtor
86
de sentido e lócus em que se articulam formas de conhecimento e intervenção sobre o
mundo” (Rabelo e Alves, 2004:175). A partir desta perspectiva, passam a ser
questionadas dualidades conceituais tais como natureza/cultura, sujeito/objeto,
mente/corpo.
Segundo Miriam Cristina Rabelo, Paulo César Alves e Iara Maria Souza, o conceito de
experiência expressa uma preocupação em compreender como os indivíduos vivem seu
mundo” (1999:11). Desta maneira, este conceito tem relação com as idéias de
consciência e subjetividade e, especialmente, de intersubjetividade e de ação social. De
acordo com estes autores, “em uma perspectiva fenomenológica, a experiência não se
reduz ao modelo dicotômico que contrapõe sujeito e objeto” (1999:12), ela está inserida
no domínio da prática que “se define essencialmente por um engajamento ou imersão na
situação” (idem). Eles afirmam também que “a idéia de experiência enquanto modo de
estar no mundo nos remete diretamente ao corpo, como fundamento de nossa inserção
no mundo” (1999:12). Assim, os seres humanos são vistos como “seres em situação” e o
corpo é considerado como sendo “perpassado por uma dimensão simbólica, de sentido”
(idem).
A obra de Merleau-Ponty constitui uma referência para se pensar a experiência a partir
de uma reflexão sobre o embodiment (Csordas, 1997, 2000; Rabelo e Alves, 2004). De
acordo com Rabelo e Alves, Merleau-Ponty critica as teorias que igualam o sujeito da
experiência à consciência e “relegam o corpo a simples instrumento a serviço desta”
(2004:181). Assim, para Merleau-Ponty, o corpo constitui o fundamento de nossa
experiência no mundo, “constitui o ponto de vista pelo qual nos inserimos no mundo. É a
partir da perspectiva que o corpo nos fornece que nos orientamos no espaço” (Rabelo e
Alves, 2004:182).
A partir da discussão sobre corpo e experiência, Rabelo e Alves fazem uma reflexão
sobre as noções de sociabilidade e subjetividade e sobre a definição de cultura como
sistema de representações. Para eles, a imbricação entre corpo e consciência proposta
por Merleau-Ponty implica na redefinição dos dois termos. Assim, quando o corpo passa a
ser encarado como um “corpo vivido”, a subjetividade deixa de ser vista como
interioridade. Desta maneira, a definição do sujeito como “consciência encarnada”
(2004:182) implica num deslocamento do foco da análise “das atividades cognitivas dos
indivíduos para os modos de atenção e envolvimento que solicitam e engajam o corpo”
(2004:183).
87
As obras de Bourdieu são utilizadas para situar o embodiment no discurso
antropológico da prática (Csordas, 2000), estabelecendo uma conexão “entre o domínio
da prática e o da existência corporal” (Rabelo e Alves, 2004:184). Assim, a partir do
conceito de habitus
95
de Bourdieu, chama-se a atenção para o fato de que o corpo é
socialmente informado (Bourdieu, 1977 citado em Csordas, 1997); é “resultado de uma
história coletiva que se inscreve nas posturas, nos movimentos, nos gostos, que educa os
sentidos e marca distinções” (Bourdieu, 1987; 1996, citados em Rabelo e Alves,
2004:183).
Bourdieu (1994) critica abordagens objetivistas ou estruturalistas que vêem as práticas
como fatos acabados e as tratam como fatos simbólicos a serem decifrados. No lugar, ele
sugere que se leve em conta as relações dialéticas entre as estruturas “e as disposições
estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzir” (1994:47). Além de
chamar a atenção para a relação dialética entre a estrutura e a prática, Bourdieu coloca
uma grande ênfase na interação entre as pessoas, considerando esta interação como um
elemento fundamental na produção do habitus e, conseqüentemente, das práticas. Assim,
para Bourdieu, o habitus está relacionado às condições políticas e sociais nas quais se
encontram inseridos os atores sociais.
Segundo Rabelo e Alves, a discussão sobre o corpo e a experiência traz embutida uma
crítica à “noção de sujeito racional presente na teoria da ação” e à “idéia de que a relação
do indivíduo com o mundo é mediada por representações acerca do mundo” (2004:186).
Para eles, a idéia de hábito aponta para uma forma de compreender o mundo distinta da
“apreensão intelectual que produz representações” (2004:186-7). Desta maneira, de
acordo com estes autores, a retomada crítica do corpo na teoria social “está ligada a um
descentramento do sujeito, definido como interioridade autocontida que se relaciona com
o mundo por meio de representações e que desenvolve e exercita, no meio social, uma
capacidade de controle sobre os objetos, sobre o próprio corpo e sobre o outro”
(2004:187). Eles afirmam também que “esse descentramento tem como contrapartida
uma ênfase na sociabilidade” (idem), um resgate do outro (Taylor, 2000:187 citado em
Rabelo e Alves, 2004:188). Assim, com a recuperação da noção de corpo vivido, a
referência ao outro passa a ser constitutiva do “ser-no-mundo”.
Henrieta Moore (2000) também trata desta relação do corpo com a representação,
mostrando como ela transcende a representação textual. Para Moore, a relação do corpo
95
Bourdieu (1994) define o habitus como um sistema de disposições duradouras, que constitui o
princípio inconsciente e coletivamente inculcado para a geração e estruturação tanto das práticas
88
com a representação e a linguagem se não apenas em formas verbais, mas também
em formas que excedem e o podem ser reduzidas às palavras. Esta autora nos lembra
que o corpo é uma das formas de construir a identidade. Neste sentido, Moore traça
paralelos entre a relação entre corpo e representação e o elo entre corpo e auto-
identidade. De acordo com ela, o corpo humano não pode tomar nenhuma forma sem
estar sujeito à representação. Desta maneira, este corpo nunca é um corpo natural:
sempre tem dimensões imaginárias e simbólicas.
Segundo Moore (2000), este corpo simbolizado é necessário não apenas para a
produção de um sentido do self, mas também para as relações de uma pessoa com seu
próprio self e com os selves dos outros. Para ela, é o simbolismo que nos faz ser, e é daí
que deriva a necessidade de que os corpos sejam colocados em relação com a
representação e com a linguagem. Moore afirma que “this is not just another way to say
that bodies are socially constructed, but is rather to say that the very experience of
embodiment entails a confrontation with the imaginary and the symbolic” (2000:163). Para
a autora, os corpos marcam a intersecção entre o social e o simbólico; a relação de cada
sujeito com o seu corpo é ao mesmo tempo material e simbólica.
Rabelo e Alves (2004) relacionam o aumento da preocupação com o corpo nas
ciências sociais a uma tentativa de superar oposições cartesianas, tais como a de
natureza e cultura. De acordo com eles, “o conceito de experiência visa justamente
superar a cisão entre sensação e sentido, percepção e cognição, natureza e cultura,
apontando para uma cumplicidade com os outros que é a condição para que algo possa
ser posteriormente representado” (2004:192). Rabelo e Alves consideram que é o corpo
que “fornece a chave para unificarmos esses campos” (idem). Segundo eles, a existência
corpórea imbrica tanto a natureza quanto a cultura; o corpo não é “nem exclusivamente
natural nem exclusivamente cultural”, mas sim “ao mesmo tempo, totalmente natural e
totalmente cultural” (2004:195).
José Carlos Rodrigues (2003) elabora um argumento que vai nesta mesma direção.
Segundo este autor, somente a dimensão biológica é insuficiente para explicar a vida
humana, pois os seres humanos “são dotados de corpos destinados a variar de cultura
para cultura, de corpos constituídos para diferir” (2003:29). Rodrigues considera que, para
uma constituição plena da antropologia do corpo, é preciso compreender que, muito mais
do que criarem seus próprios ambientes, os seres humanos “criam” na realidade os seus
próprios corpos. Assim, no estudo da experiência humana não se pode separar natureza
quanto das representações.
89
e cultura, pois esta experiência é ao mesmo tempo simbólica e biológica. Também para
Rodrigues, a questão do corpo vai além da representação. As representações do corpo
não se limitam a ser apenas acontecimentos intelectuais, elas “ecoam e reverberam na
carne” (2003:31). Para ele, precisamos lembrar que biológico e cultural são apenas
conceitos. “O corpo humano não tem dois lados um físico e biológico, outro variável e
cultural mas apenas um. Conseqüentemente, a cada cultura corresponde uma
corporeidade própria” (2003:31-2).
2. Algumas considerações sobre antropologia da saúde e experiência
De acordo com Langdon (1994), a doença deve ser entendida como um processo
experiencial, cujas manifestações “dependem dos fatores culturais, sociais e psicológicos,
operando junto aos processos psico-biológicos” (1994:1). Para ela, ver a doença como
experiência implica em entendê-la “como um processo subjetivo construído através de
contextos sócio-culturais e vivenciado pelos atores” (Langdon, 1995:16). Langdon chama
a atenção para a relação entre o corpo e a cultura e afirma que “o que o corpo sente não
é separado do significado e da sensação, isto é, a experiência corporal pode ser
entendida como uma realidade subjetiva onde o corpo, a percepção dele e os significados
se unem numa experiência única que vai além dos limites do corpo em si” (1995:17).
A doença, portanto, nunca é um fato exclusivamente natural. Assim como em toda a
experiência corpórea, também na experiência da doença, “a natureza nunca se apresenta
como dado puro: é sempre retomada pela significação” (Rabelo e Alves, 2004:196).
Segundo Rabelo e Alves, a discussão sobre a experiência permite reconhecer dimensões
importantes da doença e do tratamento que escapam tanto às abordagens biomédicas
quanto aos estudos sócio-antropológicos centrados na abordagem da “representação”.
Para Alves e Rabelo, quando se enfatiza o conceito de experiência da doença é
possível, ao mesmo tempo, “compreender a experiência subjetiva da aflição em termos de
seu enraizamento no mundo da cultura” e “atentar para os processos sociais pelos quais
os indivíduos definem e legitimam certas experiências de sentir-se mal, comunicam e dão
significado para suas aflições e para as aflições dos outros” (2004:197). Assim, no campo
da experiência “se entrecruzam e ganham sentido existencial tanto o âmbito biológico
quanto o cultural” (2004:197-8). Estes autores consideram que enfatizar a idéia da
experiência significa procurar “revelar o processo contínuo pelo qual os indivíduos tomam
uma posição existencial em face do mundo” (2004:199). Para eles, ver esta posição como
90
sendo orientada pela cultura implica em “chamar atenção para um fato básico da
dimensão existencial humana: o de que a cultura é essencialmente vivida” (idem).
De acordo com Rabelo, Alves e Souza (1999), toda a doença tem um caráter
intersubjetivo. Este caráter intersubjetivo está ligado “à relação da doença com o âmbito
cultural e social” e ao “enraizamento fundamental do indivíduo no contexto social”
(1999:14). Estes autores afirmam que, no caso da antropologia da saúde, estas
considerações refletem duas questões, primeiro que a experiência subjetiva da doença
precisa ser compreendida “em termos de seu enraizamento na cultura” e, segundo, que é
preciso prestar atenção também aos “processos sociais pelos quais os indivíduos definem
e legitimam certas experiências de sentir-se mal, comunicam e negociam significados
para suas aflições e para as aflições dos outros” (1999:15).
Para Alves e Rabelo, o conceito de “experiência da enfermidade” refere-se “à forma
pela qual os indivíduos situam-se perante ou assumem a situação da doença, conferindo-
lhe significados e desenvolvendo modos rotineiros de lidar com a situação” (1999a:171).
Segundo estes autores, a enfermidade remete à corporeidade, “o sentir-se mal remete ao
corpo como corpo vivido” (1999a:172), indissociável da subjetividade que, por sua vez, é
vista como uma “subjetividade encarnada” (idem).
Alves e Rabelo também chamam a atenção para o fato de que para que haja a
experiência da enfermidade não basta o sentir-se mal; “é necessário que o mal-estar seja
transformado em objeto socialmente aceito de conhecimento e intervenção” (1999a:172).
Além disso, “toda enfermidade envolve interpretação ou julgamento e, enquanto tal, um
processo de construção de significado” (1999a:173). Eles vêem, portanto, a enfermidade
como uma “construção intersubjetiva”, “formada a partir de processos comunicativos de
definição e interpretação” (idem).
Langdon (1994) propõe que as doenças sejam encaradas como realidades simbólicas,
construídas através da interação social. Desta maneira, a doença não representa uma
realidade universal empírica. Esta autora afirma que “toda doença tem sua característica
individualizante e emergente, que depende do contexto sócio-cultural e da vida pessoal
do indivíduo” (1994:16). Segundo Langdon (1995), a doença pode ser melhor
compreendida quando é encarada como um processo, ou seja, “como uma seqüência de
decisões e negociações entre várias pessoas e grupos com interpretações divergentes a
respeito da identificação da doença e da escolha da terapia adequada” (1995:15). De
acordo com ela, as pessoas envolvidas no processo terapêutico fazem uma seleção entre
os significados potenciais dos signos do distúrbio e “negociam para chegar a uma
91
interpretação que seja aceitável no contexto cultural e que resulte numa terapia que seja
percebida como apropriada” (Langdon, 1994:20).
Uma das implicações importantes que a discussão sobre corpo e experiência tem na
antropologia da saúde é chamar a atenção para o fato de que categorias como saúde,
doença e cura não são universais, pois envolvem tanto o âmbito biológico quanto o
âmbito social e cultural. Tratam-se, portanto, de realidades simbólicas. Também se
destaca o caráter intersubjetivo destas categorias, o fato de que seus significados são
construídos e negociados em contextos de interação entre atores sociais.
3. Os principais procedimentos terapêuticos utilizados pelos participantes do Céu da
Mantiqueira
Nesta seção, vamos fazer um levantamento dos principais procedimentos terapêuticos
utilizados pelos participantes do Céu da Mantiqueira. Como vimos, segundo Kleinman
(1980), as crenças sobre a doença estão ligadas a intervenções terapêuticas, constituindo
sistemas de conhecimento e ação. Desta maneira, os procedimentos terapêuticos não
podem ser compreendidos separadamente da maneira como são colocados em prática. É
importante lembrar que esses procedimentos vão além da função puramente terapêutica,
constituindo também estratégias para relações sociais.
Os procedimentos terapêuticos existentes no “sistema de cuidados da saúde” do Céu
da Mantiqueira são provenientes de diversos campos: da cultura daimista; de outras
tradições religiosas; de grupos indígenas; das chamadas “terapias alternativas” e da
biomedicina. Estamos, portanto, diante de um “sistema de cuidados da saúde” que pode
ser considerado como um sistema plural (Kleinman, 1980), ou seja, oferece uma
variedade de opções terapêuticas aos indivíduos que estão inseridos nele.
É interessante, neste contexto, refletirmos a respeito dos valores e categorias culturais
que orientam as opções das pessoas por determinados procedimentos terapêuticos.
Penso que estes valores são orientados fundamentalmente pelo modelo do continuum
espiritual-terapêutico que defini anteriormente, ou seja, pela interação entre os valores
provenientes da doutrina daimista e os valores provenientes da biomedicina e das
terapias “alternativas”. Dentro deste modelo, os valores englobantes provém da doutrina
daimista. São estes valores que orientam a lógica através da qual são incorporados no
“sistema de cuidados da saúde” valores provenientes de outros campos. Isto está
relacionado com a ênfase êmica dada tanto à bebida quanto à doutrina. O daime é
considerado como uma “medicina universal” que pode curar todos os tipos de doenças
92
(Groisman e Sell, 1996). Como vimos anteriormente, neste contexto, os procedimentos
terapêuticos são vistos como “ferramentas” auxiliares.
A partir de uma lógica própria do que Wladimir Sena de Araújo (1999) definiu como
“cosmologias em construção”
96
, a doutrina daimista engloba e ressignifica elementos
provenientes de diversas tradições: de grupos indígenas, da tradição afro-brasileira, do
espiritismo kardecista, do esoterismo europeu, do catolicismo popular e do universo da
“nova era”, incorporando-os às suas crenças, rituais e práticas. Observando o “sistema de
cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira, penso que a mesma lógica pode ser utilizada
para pensar os procedimentos terapêutico-espirituais. Assim, os procedimentos
terapêuticos provenientes de outros campos são reinterpretados e ressignificados à luz da
cosmologia daimista.
Veremos, a seguir, os principais procedimentos terapêuticos utilizados pelos
participantes do Céu da Mantiqueira, de acordo com o levantamento que realizei durante
minha pesquisa de campo. Estes procedimentos foram divididos em dois grupos: os do
primeiro grupo uso de tinturas; banhos de ervas e chás; florais da Amazônia e kambô
estão mais relacionados ao “pólo da espiritualidade” do continuum espiritual-terapêutico,
enquanto os do segundo grupo psicoterapia e psicoterapia com daime estão mais
ligados ao “pólo da terapia”. Na transição entre estes dois grupos, faremos uma discussão
sobre a questão da medicalização procurando perceber se há uma influência do processo
de medicalização no “sistema de cuidados de saúde” do Céu da Mantiqueira.
Estes procedimentos terapêuticos são vistos como fazendo parte de um “sistema de
cuidados da saúde”. Assim, de acordo com a definição que Kleinman (1980) fez deste
conceito, para que eles possam ser compreendidos, é preciso levar em conta a relação
que eles tem entre si e também sua ligação com os outros componentes do “sistema de
cuidados da saúde”.
3.1 Uso de tinturas feitas de ervas e flores
No Céu da Mantiqueira, durante os rituais, são aspergidas no recinto onde este é
realizado tinturas feitas de plantas e flores. Considera-se que estas tinturas podem
auxiliar no trabalho, por exemplo, em momentos em que a “corrente” está muito “pesada”
ou precisando de uma “limpeza”. A utilização das tinturas durante os rituais começou a
96
Wladimir Sena Araújo usa o termo “cosmologias em construção” para definir as religiões não
indígenas que fazem uso da ayahuasca. O autor define “cosmologia em construção” como “um conjunto
de práticas religiosas que tendem a formar um doutrina específica, em que existe uma grande
93
partir da observação da chefe da fiscalização feminina
97
, que tinha uma tintura pessoal e
a usava em atendimentos individuais de pessoas que estavam passando por dificuldades.
Os resultados destes atendimentos, descritos como sendo “bastante impressionantes”,
trouxeram a idéia de usar as tinturas também no “salão”. Este uso é relativamente
recente, tendo sido iniciado há cerca de um ano. Constitui uma especificidade do Céu da
Mantiqueira, pois não é um procedimento adotado sistematicamente por outras igrejas
daimistas
98
.
Durante o meu trabalho de campo, participei do primeiro preparo coletivo de tinturas
realizado no Céu da Mantiqueira. A primeira etapa da confecção das tinturas consistiu na
colheita, limpeza e preparo das plantas que foram utilizadas. A seguir, elas foram
colocadas em frascos, sendo adicionados água mineral e álcool de cereais. Depois de
prontos, estes frascos com as tinturas foram agitados e etiquetados. A seguir foram
organizados em fila e todos se sentaram ao seu redor para fazer reiki e imposição de
mãos sobre os frascos, atos que transmitiriam “energias positivas” às tinturas. Finalmente,
eles foram enterrados para ficar em contato com a terra durante 28 dias, um ciclo lunar.
Foram preparadas as seguintes tinturas:
- Tintura de sete ervas: composta por alecrim, benjoim, alfazema, arruda, espada de
são Jorge, manjericão e mirra. Esta tintura tem a função de fazer uma “limpeza”, tanto
antes e depois quanto durante os rituais. Também tem poderes de proteção. É
indicada para ser utilizada nos Trabalhos de Cura, devido à sua força.
- Tintura de manjericão. O manjericão é considerado como sendo uma planta muito
poderosa, sendo dotada de grande capacidade de “limpeza”.
- Tintura calmante: composta por capim cidreira, cidreira americana e melissa.
Transmite tranqüilidade e pode ser utilizada em momentos de agitação e alteração
durante os rituais.
- Tintura de alecrim: o alecrim é considerado uma planta estimulante que pode ser
usada quando se sente que a “energia” dos trabalhos está “baixa” e a “corrente” está
precisando de um estímulo.
velocidade na incorporação e retirada de elementos simbólicos das práticas religiosas ou filosóficas que,
combinadas, compõem sua cosmologia” (1999:72).
97
Sobre “fiscalização”, ver introdução.
98
Nas outras igrejas que conheço costuma ser utilizada a defumação com ervas secas, um
procedimento que tem objetivos análogos. Esta pode ocorrer tanto antes do início dos rituais, para
“limpar” o salão, quanto durante o ritual, em momentos de necessidade. No Céu da Mantiqueira, as
defumações costumam ser realizadas antes e depois dos rituais, porém durante o ritual se prefere o uso
das tinturas.
Formatados: Marcadores e
numeração
94
- Tintura de menta e hortelã: pode ser usada em atendimentos individuais, por
administração oral, aliviando os distúrbios estomacais.
- Tintura de mil em ramas: indicada para dores em geral, pode ser utilizada em
atendimentos individuais por administração oral.
Também foram preparadas tinturas de lavanda e de flores, sobre as quais eu não
obtive dados mais específicos. A lógica que orienta o uso das tinturas é a mesma que
orienta os outros procedimentos terapêuticos. Considera-se que o grande remédio”
mesmo é o daime, porém as plantas são vistas como um importante aliado, podendo
trazer auxílio em casos de necessidade.
Foto 5: plantas usadas para preparar as tinturas
95
Foto 6: imposição de mãos sobre os frascos de tintura
96
3.2 Banhos de ervas e chás
É muito difundido entre os participantes do Céu da Mantiqueira o hábito de tomar
“banhos de ervas”, tanto antes quanto depois dos rituais e no dia a dia. Acredita-se que os
banhos de ervas e flores tem o poder de “limpar” e “descarregar” o aparelho, ajudando a
mantê-lo livre de influências negativas. Estes banhos podem ser feitos com plantas
frescas e colhidas na hora ou desidratadas. As pessoas gostam muito de usar plantas
como manjericão, alecrim, alfazema e também outras flores em geral em seus banhos.
Uma das atividades do projeto Erva Santa, coordenado pela madrinha, consiste no
preparo de banhos de ervas, que são também comercializados. Além de serem
produzidos banhos com apenas uma planta, também são feitos banhos compostos por
várias plantas, que tem finalidades específicas. Existem, por exemplo, o “banho de
proteção feminina”, feito com pétalas de rosa vermelha, artemísia e arruda; o “banho de
proteção masculina”, feito com artemísia, arruda e folha de manga; o banho das
crianças”, no qual são utilizadas flores pequenas e rosas brancas; o “banho dos sete
raios” feito com flores da estação, etc. Também é difundido o hábito de tomar chás, que
podem ou não ter finalidades terapêuticas.
3.3 Florais da Amazônia
Os florais da Amazônia consistem num sistema de essências florais “canalizado”
99
por
participantes do Santo Daime que residem no Céu do Mapiá. Maria Alice Freire e Isabel
Barsé são consideradas como as principais responsáveis por desenvolver este sistema de
florais. A bibliografia utilizada nesta sessão foi produzida por elas (Freire e Barsé, 2000).
De acordo com estas autoras, os florais da Amazônia são feitos a partir de essências de
plantas nativas da floresta Amazônica e também de plantas cultivadas. Elas afirmam que
o sistema de florais da Amazônia está baseado na “elemento-terapia, antiga sabedoria
que compreende que o equilíbrio da vida está expresso no equilíbrio dos elementos da
natureza (fogo, ar, terra e água)” (Freire e Barsé, 2000:13). Através da influência dos
“elementais”
100
das plantas, procura-se reequilibrar os “corpos sutis” do ser humano
(Freire e Barsé, 2000). Freire e Barsé consideram que os elementais da natureza podem
proporcionar ao ser humano o contato com a fonte de onde provém sua matriz original,
possibilitando uma “evolução da consciência”.
99
Esta noção será discutida adiante, na seção 5.4.
100
Freire e Barsé definem os “elementais” das plantas como “os elementos da natureza organizados de
forma bastante primária ou simples, apresentando matrizes que expressam, com nitidez, a essência
97
Tidos como poderosos auxiliares na cura, os florais da Amazônia são muito populares
entre os participantes do Céu da Mantiqueira. Alguns dos participantes desta comunidade
fizeram cursos deste sistema de florais para poder receitá-los aos que desejarem.
Também algumas pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde, incluindo
médicos e psiquiatras, utilizam os florais da Amazônia como uma alternativa de
tratamento.
Observei algumas consultas de florais da Amazônia que se passam da seguinte
maneira: sentam-se a pessoa que está dando a consulta e o consulente. Os vidros
contendo os florais são todos dispostos em rculos concêntricos sobre uma mesa. Antes
de se iniciar a consulta, pode ser feita uma oração, invocação ou mesmo alguns minutos
de silêncio. Então é pedido ao consulente que passe suas mãos sobre os vidros de
florais. Este ato de passar as mãos sobre o vidro serviria para deixar registrada ali sua
energia. A seguir, a pessoa que está realizando a consulta passa um pêndulo sobre cada
um dos vidros de floral. Quando o pêndulo passa sobre os florais que o consulente está
necessitando, ele se movimenta de uma maneira diferente, indicando assim qual é o floral
que deve ser receitado
101
.
Um aspecto importante no tratamento com os florais da Amazônia, que está presente
tanto na idéia de que este sistema de florais teria sido “canalizado” quanto no uso do
pêndulo para indicar quais florais devem ser receitados, está na valorização da intuição.
Aqui, a intuição é contraposta ao conhecimento científico” convencional, que é
considerado como sendo mais ligado ao pensamento racional, e é vista como uma fonte
valiosa de informações. Acredita-se que os florais da Amazônia atuem nos “corpos sutis”,
reequilibrando as energias. Existem outros sistemas de florais, porém o sistema dos
florais da Amazônia é considerado como sendo mais indicado para os participantes do
Santo Daime, por ter sido “canalizado” por pessoas que estão ligadas à doutrina.
pura dos elementos em interação” (2000:14). Estes elementais seriam governados pela consciência
superior” e estariam “em perfeito equilíbrio interno” (idem).
101
Nas consultas que observei, o movimento normal do pêndulo era horizontal e quando ele passava
por cima do floral que era indicado para o consulente, ele se movimentava em círculos.
98
Foto 7: consulta com os florais da Amazônia
99
3.4 Kambô
Durante a minha permanência em campo, após todos os Trabalhos de Cura estavam
sendo ministradas aplicações da “vacina” kambô para os interessados. Esta “vacina” é
feita a partir da secreção de uma rã, Phyllomedusa bicolor, que vive na floresta
Amazônica. Depois de ser extraída, a substância da rã cristaliza-se rapidamente, podendo
ser utilizada a qualquer momento. A kambô também é utilizada por povos indígenas,
como os Katukina, Kaxinawá, Yaminawá e Ashaninka (revista Globo Rural, edição 228,
outubro de 2004).
Enquanto estive no Céu da Mantiqueira, havia duas pessoas de Cruzeiro do Sul (AC)
fazendo as aplicações da kambô, acompanhadas pelo padrinho, que ficaria responsável
pela “vacina” depois da partida deles. Entrevistei uma dessas pessoas. Ele contou que
aprendeu a usar a kambô com seu avô que, por sua vez, teria aprendido diretamente com
os índios Katukina e teria sido um dos responsáveis por introduzir a “vacina” entre as
populações não indígenas. De acordo com sua narrativa, a kambô tem uma relação com
a ayahuasca, foi recebida pelos povos indígenas dentro da força da ayahuasca. Ela é
utilizada pelos povos indígenas para tirar a “panema”, definida por ele como “espíritos
negativos” que atrapalham as pessoas. A “vacina” teria a capacidade de “desbloquear a
energia” da pessoa e também permitir que ela perceba as energias da natureza. Também
possibilitaria o desenvolvimento da visão e da audição em níveis sutis. Ainda de acordo
com sua narrativa, a kambô age no organismo entrando na corrente sanguínea e ativando
a circulação. Pode produzir vômitos ou diarréias, fazendo uma “limpeza”.
Recomenda-se que a “vacina” seja tomada em jejum e, no caso dos participantes do
Santo Daime, antes ou depois de um ritual. A aplicação se dá da seguinte maneira: com a
ponta incandescente de um cipó são queimados alguns “pontos” na pele das pessoas
(geralmente no braço para os homens e na batata da perna para as mulheres). O número
dos “pontos” pode variar, quanto mais “pontos”, mais forte a “vacina”. Sobre estes pontos
passa-se a substância, que entraria diretamente na corrente sanguínea, produzindo fortes
reações orgânicas. Algumas das reações descritas são: taquicardia, sensação de inchaço
corporal, forte pulsação na cabeça, falta de ar, vômitos e diarréias. Como tratamento, é
recomendado que a kambô seja tomada uma vez por mês, em três meses consecutivos.
Formatado
100
Foto 8: aplicação da “vacina” kambô
Foto 9: aplicação da “vacina” kambô
101
3.5 Medicalização
De acordo com Kleinman (1980) o poder de criar a doença e o tratamento como um
fenômeno social, de legitimar uma certa construção da realidade como a única “realidade
clínica”
102
, o es igualmente distribuído. Para este autor, na sociedade ocidental
contemporânea uma grande ênfase no que ele define como o setor profissional do
“sistema de cuidados da saúde”. Segundo Kleinman, o aumento do setor profissional da
saúde está relacionado à progressiva medicalização da sociedade.
Irving Zola (1972, citado em Kleinman 1980) também trata deste processo de
medicalização progressiva da sociedade moderna. De acordo com ele, este processo
implica num aumento do uso da medicina e da psiquiatria para o controle social. Para
Zola, o “sistema de cuidados da saúde” ocupa um espaço maior na sociedade moderna
do que nas sociedades tradicionais e abrange funções que costumavam fazer parte de
outros sistemas culturais.
Outro autor que discute a questão da medicalização da sociedade moderna é Eduardo
Viana Vargas (1998). Segundo Vargas, atualmente a biomedicina impõe a busca de
certos ideais de saúde e bem estar que estão essencialmente relacionados à saúde dos
corpos. Este autor afirma que existe um “mito médico da terapêutica” e relaciona este mito
com um “princípio de preservação da vida” (1998:126). Para Vargas, este princípio é
particular e histórico e faz parte da cosmologia ocidental moderna. Ele destaca que em
torno deste princípio constituíram-se “os fundamentos de pesadas intervenções políticas
no espaço mesmo da existência das pessoas, as quais se deram sob a forma
aparentemente inócua, saudável mesmo, de um processo geral de medicalização dos
corpos e da vida” (idem).
Desta maneira, de acordo com Vargas, os saberes e as práticas médicas fariam
funcionar os dispositivos de saber/poder conectando dois pólos: o da disciplinarização e
docilização dos corpos – que se daria a nível dos corpos humanos propriamente ditos – e
o das intervenções e controles regulares, que estaria a nível da “biopolítica da população”.
Assim, “é no mesmo momento que os saberes e as práticas médicas tomam a vida sob
seus cuidados, sob sua proteção, em nome do critério extensivo de preservação da vida,
que eles a avaliam, a modelam, a disciplinarizam, preestabelecem seus passos, suas
etapas, suas finalidades, seus valores, seus sentidos e negam, como aponta Clavreul
102
Kleinman define a “realidade clínica” ou clinical reality” como “the beliefs, expectations, norms,
behaviors, and communicative transactions associated with sickness, health care seeking, practitioner-
patient relationships, therapeutic activities, and evaluation of outcomes. The social reality that expresses
and constitutes clinical phenomena and which itself is clinically constructed” (1980:42)
102
(1983:47, citado em Vargas, 1998:128) qualquer outra razão de viver que não seja a
razão médica que faz viver, eventualmente à força’”.
3.6 Alguns aspectos do processo de medicalização no Céu da Mantiqueira
Mencionei anteriormente que o processo de terapeutização da comunidade do Céu da
Mantiqueira inclui também a medicalização. Vamos examinar mais detalhadamente como
é este processo medicalização no Céu da Mantiqueira. Os médicos que participam desta
comunidade destacam dois aspectos. O primeiro destes aspectos diz respeito aos casos
em que não é indicado que a pessoa tome daime e o segundo está ligado ao uso da
medicação alopática
3.6.1 Casos nos quais não é indicado tomar daime
Segundo as narrativas das pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde
ligadas ao Céu da Mantiqueira, existem alguns casos nos quais não é indicado tomar
daime. Tratam-se de casos de pessoas diagnosticadas como psicóticas, esquizofrênicas
ou que estejam tomando determinado tipo de medicação antidepressiva com base na
fluoxetina. De acordo com eles, além dos casos em que a pessoa não deve ou não pode
tomar daime, existem também casos de pessoas que tem “alterações psíquicas” que
podem tomar pouco daime ou que só podem tomar daime com supervisão médica.
No Céu da Mantiqueira, para evitar que pessoas tomem daime sem ter a devida
orientação, é realizada antes dos rituais uma entrevista e uma anamnése com os
“iniciantes”
103
. Pessoas que tiverem dúvida sobre a compatibilidade de medicamentos
com a bebida também podem se orientar com os médicos que participam do Céu da
Mantiqueira. Estes afirmam que os únicos medicamentos incompatíveis com o daime são
os inibidores de recaptação de serotonina baseados na fluoxetina. De acordo com eles,
outros medicamentos podem ser utilizados sem contra-indicações. Além disso, as
pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde podem observar os
participantes durante os rituais e, se perceberem algum quadro que acham que condiz
com uma “alteração clínica”, podem conversar com a pessoa, sugerir que procure um
apoio terapêutico e indicar que tome menos daime.
Estes tipos de cuidado e de supervisão são direcionados para evitar os riscos do que
em termos êmicos é chamado de “rodar” e equivale à perda do controle da experiência
por parte da pessoa. Nas entrevistas que eu fiz com as pessoas que trabalham
103
Ver anexo 2.
103
profissionalmente na área da saúde, tentei compreender qual a explicação dada para os
casos das pessoas que “rodam”. Os profissionais da área da saúde que participam do
Céu da Mantiqueira relacionam estes casos com a existência de um quadro ou uma
predisposição prévios. Nestas circunstâncias, o daime poderia servir como um “gatilho” ou
desencadeador de um quadro mais grave. Estes profissionais enfatizam, porém, que não
se pode colocar a responsabilidade no daime. De acordo com eles, como trata-se de
pessoas que já apresentavam um quadro anterior ou uma predisposição para desenvolve-
lo, qualquer outra situação também poderia servir como desencadeador de um quadro
mais grave.
Estas questões remetem a uma discussão sobre o que é considerado como “normal”
ou como “loucura”. Stanislav Grof (1994) faz uma reflexão interessante sobre os
comportamentos que costumam ser classificados como doenças ou psicoses pelo modelo
biomédico oficial. Para Grof, estes estados podem ser considerados como uma
emergência espiritual. Ele define emergência espiritual como “estágios críticos e
experimentalmente difíceis de uma transformação psicológica profunda, que envolve todo
o ser da pessoa. Tomam a forma de estados incomuns de consciência e envolvem
emoções intensas, visões e outras alterações sensoriais, pensamentos incomuns, assim
como várias manifestações físicas” (1994:39).
Grof vê a emergência espiritual como um fator importante para o despertar progressivo
da dimensão espiritual e considera que estes estados, se forem adequadamente
entendidos e tratados como fases difíceis num processo natural de desenvolvimento,
“podem resultar em cura emocional e psicossomática, em profundas mudanças positivas
na personalidade e na solução de muitos problemas da vida” (1994:45). Para este autor, o
que faz com que estas experiências pareçam patológicas não é sua natureza, mas sim o
contexto no qual elas tem lugar. Assim, na sociedade moderna, a emergência espiritual
teria se tornado conhecida como uma doença.
No Céu da Mantiqueira, os casos nos quais o daime não seria indicado apontam para
uma espécie de controle do acesso à bebida. Este controle poderia constituir um indicador
de um incipiente processo de medicalização do próprio daime. É importante ressaltar,
porém, que trata-se de casos raros. Uma das psiquiatras que eu entrevistei descreveu
alguns casos de pessoas querodaram”, nos quais foi necessária a “suspensão” do
daime, mas durante minha pesquisa de campo não cheguei a acompanhar nenhum caso
deste tipo.
104
3.6.2 Uso de medicação alopática
O segundo aspecto destacado pelas pessoas que trabalham profissionalmente na área
da saúde que eu entrevistei é a utilização da medicação alopática, quando necessário. O
uso de medicação alopática e a ingestão do daime não são vistos como antagônicos, pelo
contrário, nas narrativas das pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde
entrevistadas uma recorrência da noção de que, dependendo do caso, a medicação é
necessária e mesmo indispensável. Penso que a mesma lógica que coloca os
procedimentos terapêuticos e os próprios profissionais da saúde como “auxiliares” do
daime também faz com que os medicamentos sejam vistos como “auxiliares” em
potencial, em casos de necessidade. Novamente aqui, os valores englobantes que
orientam esta lógica vem da doutrina daimista: o daime é considerado como o “grande
remédio”, e as outras “ferramentas” que podem ser utilizadas são vistas como estando
subordinadas a ele.
Todos os profissionais da área da saúde afirmaram que atendem tanto participantes do
Santo Daime quanto pessoas que não participam da doutrina e todos afirmaram também
que percebem grandes diferenças entre o processo terapêutico dos dois tipos de
pacientes. Com relação à questão do uso da medicação alopática, uma das psiquiatras
que eu entrevistei afirmou que percebe uma diferença entre os pacientes que ela medica
que tomam daime e os que não tomam. De acordo com ela, muitas vezes os que não
tomam o daime não conseguem mais ficar sem a medicação, enquanto os que participam
da doutrina precisam da medicação apenas por um período para ajudar em momentos
mais difíceis, conseguindo prosseguir depois sem precisar dela.
O papel que as pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde tem de a)
diagnosticar as pessoas que não podem tomar daime; b) orientar os participantes dos
rituais sobre a compatibilidade entre medicamentos e a bebida; c) observar os
participantes dos rituais, podendo conversar com eles quando acham que
necessidade; e d) receitar medicação alopática ou outros tipos de tratamento, nos
fornecem importantes pistas sobre qual é o status destes profissionais no u da
Mantiqueira. Vemos que eles se tornam uma importante referência dentro da comunidade.
Como mencionei anteriormente, considero que a presença destes profissionais no Céu da
Mantiqueira contribui para conferir legitimidade à identidade coletiva enquanto “centro de
cura” desta comunidade perante um contexto mais amplo.
É importante lembrar que estas pessoas são representantes do “setor profissional” do
“sistema de cuidados da saúde” (Kleinman, 1980). A ênfase que a sociedade ocidental
105
contemporânea coloca neste setor pode ter uma influência na posição que elas tem numa
comunidade que procura construir uma identidade como um “centro de cura”. Também é
importante considerar que, em muitos casos, eles podem ter funções de controle.
3.7 Psicoterapia
Como vimos, através da inserção de um número considerável de pessoas que
trabalham profissionalmente na área da saúde no Céu da Mantiqueira, desenvolveu-se
um processo que chamei de terapeutização da espiritualidade. Vimos que este processo
tem dois aspectos: por um lado, os participantes do Céu da Mantiqueira começam a se
interessar em fazer terapia com os profissionais da área da saúde e, por outro, alguns
pacientes destes profissionais se interessam em conhecer o Santo Daime. Um dos
indícios deste processo é o desenvolvimento de uma tendência de que as pessoas que
participam da comunidade façam terapia com profissionais da saúde que também são
ligados à doutrina e ao Céu da Mantiqueira, principalmente os psicólogos e psiquiatras.
Vejamos agora como é esta terapia, a partir das narrativas tanto das pessoas que
trabalham profissionalmente na área da saúde quanto de seus pacientes. Já vimos
anteriormente que, de acordo com os participantes do Céu da Mantiqueira, uma das
especificidades deste tipo de terapia é que ela possibilita levar em conta os aspectos
espirituais, dimensão fundamental para os participantes do Santo Daime e que, de acordo
com suas narrativas, costuma ser ignorada por outros tipos de terapias, realizadas por
pessoas que não são participantes do Santo Daime. Uma outra característica atribuída à
psicoterapia combinada com a doutrina daimista é o seu grande potencial transformador.
Este tipo de psicoterapia é considerado como sendo mais profundo do que o processo
terapêutico das pessoas que não tomam daime. O daime é visto como um “catalizador do
processo”, capaz de produzir “catarses” e acelerar os insights e o processo de
autoconhecimento.
Marlene Dobkin de Rios (1992) coloca a hipótese de que o que leva as pessoas a
procurarem os serviços de cura dos vegetalistas é o fato destes contemplarem a
dimensão espiritual, que constitui uma dimensão fundamental para seus pacientes. Penso
que no caso dos participantes do Céu da Mantiqueira, este também constitui um elemento
importante na opção das pessoas por fazerem psicoterapia com as pessoas que
trabalham profissionalmente na área da saúde que também estão ligadas ao Santo
Daime.
106
3.7.1 O daime e a “cura” da dependência química e da depressão
O daime é considerado pelas pessoas que trabalham profissionalmente na área da
saúde como sendo especialmente eficiente para casos de dependência química e
depressão. Devido à idéia de que a bebida alteraria a dinâmica da recaptação da
serotonina no cérebro, o daime é visto por estes profissionais como tendo propriedades
antidepressivas. Seus efeitos neste sentido, porém, não estão ligados apenas às
propriedades químicas da bebida. Como vimos, é comum que, a partir da participação no
Santo Daime, as pessoas reestruturem suas maneiras de ver o mundo, reavaliando suas
narrativas e interpretações sobre seu passado. Vimos que as narrativas dos participantes
do Céu da Mantiqueira que foram entrevistados costumam ser estruturadas em termos de
“antes” e “depois” de sua participação no Santo Daime e que uma recorrência em
expressar uma necessidade de mudanças. De acordo com estas narrativas, a
participação na doutrina forneceria um meio de resolver, ao menos parcialmente, esta
necessidade. Enquanto do ponto de vista êmico, tanto a “cura” da depressão quanto a
reestruturação da vida das pessoas estão relacionadas à ingestão da bebida, destaco
aqui novamente a importância que tem a construção de redes de solidariedade e
sociabilidade entre os participantes do Céu da Mantiqueira.
Em duas narrativas de psiquiatras que estão ligados ao Céu da Mantiqueira, apareceu
a idéia de que o daime pode ajudar na “cura” da dependência química, pois os
dependentes químicos seriam “buscadores espirituais” que estariam “usando a substância
errada, no contexto errado, com os métodos errados”, o que geraria um quadro de
compulsão e dependência. Já o daime, pelo contrário, seria a “substância certa, no
contexto certo”, possibilitando uma experiência iniciática e transformadora. A idéia
expressa nestas narrativas remete à discussão sobre o uso “controlado” e “não
controlado” ou “compulsivo” de substâncias psicoativas.
Na literatura sobre o Santo Daime, um estudo importante sobre este tema é o livro de
Edward MacRae (1992). A partir das oposições estabelecidas por Martine Xiberras (1989)
entre práticas “pesadas” e “leves” de usos de psicoativos e por Norman Zinberg (1984)
entre o seu uso “controlado” e “compulsivo”, MacRae afirma que o que de comum
entre estes dois autores é que tanto as “práticas leves” quanto o “uso controlado” referem-
se a padrões de comportamento regidos por regras e valores. Para MacRae, o Santo
Daime consiste num bom exemplo do uso controlado de um psicoativo, devido ao fato de
suas práticas serem prescritas nos menores detalhes. Este autor chama a atenção para a
107
importância do controle social do uso de psicoativos e afirma que os rituais do Santo
Daime reforçam a coesão social e a harmonia (Couto, 1989).
Outro autor que discute este tema é Nestor Perlongher (1994). Para Perlongher, existe
“uma diferença importante entre o uso ritualizado de plantas de poder e o uso ‘marginal’
contemporâneo: enquanto o primeiro reafirma os valores culturais, o segundo opera como
uma linha de ruptura ou de fuga que os desafia” (1994:12). Segundo Perlongher, “a droga
pode induzir o estado modificado de consciência, mas não determina o caráter nem a
qualidade da experiência” (idem). O que este autor procura destacar é que geralmente os
estados modificados de consciência pressupõem uma intervenção da sociedade para se
tornar efetivos. Desta maneira, para que o uso de psicoativos possa reafirmar os valores
culturais, é essencial que haja um conteúdo cultural que possa ser veiculado como
mensagem transmissível a uma comunidade que compartilha esses valores e crenças.
3.7.2 Relação terapeuta-paciente
Outro aspecto interessante de analisar é qual o tipo de relação que se desenvolve
entre os terapeutas e seus pacientes, visto que ambos participam da mesma “comunidade
simbólica”. Esta relação também pode nos fornecer pistas sobre o modelo espiritual-
terapêutico que vem sendo construído no Céu da Mantiqueira. Paula Montero (1985)
chama a atenção para este aspecto da relação entre profissionais da área da saúde e
pacientes em seus estudos sobre a Umbanda. A autora afirma que a singularidade da
relação terapêutica entre profissionais da saúde e pacientes que participam da Umbanda
se evidencia quando comparada às relações médico-paciente instituídas pela biomedicina
(Montero, 1985).
Vários profissionais da área da saúde entrevistados afirmaram que depois de
começarem a participar do Santo Daime mudaram tanto a sua relação com os pacientes
como seu trabalho profissional. Para uma das psiquiatras que eu entrevistei, a relação
com os pacientes que também participam do Santo Daime é uma questão delicada, pois
trata-se de pessoas são seus amigos. Ela contou que teve uma formação psicanalítica,
mas que agora está tendo que desenvolver com seus pacientes que também participam
do Céu da Mantiqueira outro tipo de relação terapêutica. Outro psiquiatra que entrevistei
afirmou que depois que começou a participar do Santo Daime, sua relação com os
pacientes, especialmente aqueles que também são ligados à doutrina tornou-se mais
intensa e mais profunda. Ele também afirmou que desenvolveu uma ligação mais forte
com seus pacientes.
108
Isto nos leva a refletir a respeito de um aspecto interessante enfatizado pelos
profissionais da área da saúde em suas narrativas: trata-se da existência de uma
cumplicidade entre eles e os seus pacientes que também participam do Santo Daime.
Esta cumplicidade pode estar relacionada ao fato de pertencerem à mesma “comunidade
simbólica”, compartilhando experiências, crenças, valores e práticas em comum. Já vimos
anteriormente que esta ênfase êmica na noção de comunidade, expressa na dicotomia
entre os “de dentro” e os “de fora” da doutrina, é uma das motivações para que os
participantes do Céu da Mantiqueira procurem profissionais da área da saúde que tenham
uma ligação com o Santo Daime.
Outra noção que apareceu nas narrativas das pessoas que trabalham
profissionalmente na área da saúde é a de que eles também estão passando por um
“processo de cura dentro da doutrina”, o que possibilitaria que eles compreendam melhor
seus pacientes. Este é mais um elemento que contribui, neste contexto, para criar uma
cumplicidade entre terapeutas e pacientes. Isto nos remete à idéia expressa por Montero
(1985) de que o lugar daquele que cura está em continuidade com o lugar daquele que
está doente. Assim, para esta autora, é a ambivalência do papel do curador que lhe
permite servir como mediador entre o estado de doença e o de cura. De acordo com
Montero, na Umbanda, o adepto tende a passar por uma experiência de doença antes de
tornar-se médium, o que significa que os que detém o direito de produzir atos terapêuticos
têm seu poder fundado no fato de que viveram experiências semelhantes às de quem
eles se propõem curar. Da mesma maneira, podemos pensar que o que permite que os
profissionais da área da saúde que participam do Céu da Mantiqueira sirvam como
mediadores das experiências rituais de seus pacientes é o fato de também vivenciarem
experiências semelhantes.
A partir de uma análise das práticas de cura desenvolvidas nos terreiros de
Candomblé, Andrea Caprara (1998) faz uma discussão sobre a questão da relação
médico/paciente. Ela utiliza o conceito demédico ferido” desenvolvido por Gadamer
(1994, citado em Caprara, 1998) para discutir “a necessidade de uma maior sensibilidade
por parte do médico frente ao sofrimento do paciente e a transformação da prática
médica, dirigida para uma medicina mais humana” (1998:124).
Segundo Caprara, no Candomblé, o tema do terapeuta sensível à dor e ao sofrimento
do paciente se manifesta de maneira profunda devido à presença de terapeutas que
vivenciaram eles próprios um processo de doença, de sofrimento e de cura. Ela também
109
afirma que “a dupla polaridade da figura doente com poderes de cura é freqüente nas
representações e práticas tradicionais” (1998:124).
A partir da discussão feita por Caprara e de nossas reflexões a respeito de como é a
terapia realizada pelos profissionais da área da saúde que participam do Céu da
Mantiqueira, e como se dão as relações médico/paciente neste contexto, podemos pensar
que um dos elementos que distingue este tipo de terapia é a possibilidade de permitir que
os pacientes expressem aflições e sofrimentos que não seriam considerados legítimos em
outros contextos. Assim, a cumplicidade existente entre terapeutas e pacientes devido ao
fato de compartilharem experiências, valores, práticas e crenças em comum e de
considerarem que estão passando por um “processo de cura” na doutrina daimista implica
na criação de um “idioma” que permita comunicar mais proximamente (e trabalhar na
psicoterapia) as experiências relacionadas à espiritualidade.
3.8 Psicoterapia com daime
Um pequeno grupo de pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde e
estão ligadas ao Céu da Mantiqueira está desenvolvendo um trabalho de psicoterapia
com daime que eles chamam de “cura xamânica”. Este trabalho consiste em uma sessão
especial, realizada dentro de um processo terapêutico mais amplo. O paciente e os
terapeutas escolhem juntos, durante o processo terapêutico, uma questão com a qual o
paciente tem mais dificuldade, para ser trabalhada nesta sessão. A sessão de
psicoterapia com daime tem uma duração mais longa, de três a quatro horas, e costuma
ser realizada por dois terapeutas em conjunto. De acordo com um dos profissionais da
saúde que realiza este trabalho, nesta sessão, a ampliação de consciência proporcionada
pelo daime é direcionada para trabalhar o ponto no qual o paciente tem dificuldade.
Esta sessão de psicoterapia é definida pelos profissionais da área da saúde que a
realizam como um “ritual”. De acordo com eles, no espaço em que a sessão é realizada
existe um altar com imagens das principais lideranças daimistas (Mestre Irineu, padrinho
Sebastião, etc.) e objetos que costumam estar presentes no altar da igreja (cruzeiro,
velas, incenso, etc.). Também são utilizados outros elementos característicos da doutrina
daimista, como orações e hinos. Além disso, os terapeutas podem “receber entidades”
para orientar o paciente e também para indicar o que deve ser feito na sessão.
Paralelamente, podem ser utilizadas técnicas provenientes da psicologia, da psiquiatria e
das “terapias alternativas”, como terapia de vidas passadas, por exemplo.
110
Durante a sessão de cura xamânica”, tanto os terapeutas quanto o paciente tomam o
daime. De acordo com um desses profissionais da saúde, exatamente o que vai
acontecer dentro da sessão é imprevisível, pois quem decide, quem diz o que precisa ser
feito, é o daime, e não o terapeuta. Nas suas palavras, “o daime é o cirurgião e eu sou o
bisturi. É ele que vai dizer o que eu vou fazer”. Outro profissional da área da saúde afirma
que neste trabalho todo seu conhecimento técnico é “entregue ao mestre”, para que o
terapeuta possa ser orientado pelos guias da doutrina. Ele também afirma que es
“aprendendo como trabalhar com esse estado ampliado de consciência dentro do
contexto terapêutico”.
Este exemplo da psicoterapia com daime é paradigmático para refletirmos a respeito
do modelo do continuum espiritual-terapêutico que eu acredito que orienta os
procedimentos espirituais e terapêuticos no Céu da Mantiqueira. Através das narrativas
dos profissionais da área da saúde que realizam este trabalho, vemos que a sessão de
psicoterapia é definida como um ritual. Além do próprio daime, são utilizados elementos
característicos da doutrina daimista, como o altar, hinos e orações. Além disso, os
terapeutas podem “receber” seus “guias” e “entidades” para orientar o paciente ou para
dizer o que deve ser feito na sessão. Estes elementos característicos da doutrina daimista
encontram-se combinados com técnicas e procedimentos advindos da psicologia e da
psiquiatria.
A partir deste exemplo, nos perguntamos: é possível separar aqui o que seria
“propriamente espiritual” do que seria “propriamente terapêutico”? Acredito que neste
contexto não é possível pensar nesta separação. Desta maneira, penso que o modelo do
continuum espiritual-terapêutico é realmente útil para nos ajudar a compreender os
valores que orientam os procedimentos espirituais e terapêuticos e também a opção por
determinados tipos de terapia no “sistema de cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira.
Francois Laplantine (1991) questiona a divisão entre antropologia da saúde e
antropologia da religião. O autor sugere que esta distinção está fundada numa
compreensão etnocêntrica. Para Laplantine, as duas áreas devem ser articuladas para
que categorias como saúde, doença e cura possam ser compreendidas. De acordo com
ele, todo fenômeno, médico ou religioso, é sempre um “fenômeno social total” (1991:214)
e envolve, além destas duas dimensões, dimensões políticas e econômicas, entre outras.
Laplantine considera, portanto, que existem relações entre a doença e o sagrado, a
medicina e a religião, a saúde e a salvação.
111
Para o autor, um exemplo do relacionamento entre estas dimensões, encontra-se nas
“situações terapêuticas nas quais aquilo que nós indicamos por religioso e o que
chamamos de médico estão estreitamente ligados” (1991:214). De acordo com
Laplantine, esta dimensão religiosa também existe na biomedicina, porém ela não é
percebida pela sociedade, devido à aparente autonomia entre medicina e religião. Este
autor afirma que “não existem práticas puramente ‘medicas’ ou puramente ‘mágico-
religiosas’” (1991:217). Para ele, quase sempre existem “dois níveis interpretativos
estreitamente ligados: uma interpretação concernente aos processos etiológico-
terapêuticos, uma interpretação concernente ao sentido e ao porquê” (idem) da doença.
Partindo das considerações feitas por Laplantine, podemos pensar que o modelo do
continuum espiritual-terapêutico que elaboramos observando a estreita imbricação entre o
espiritual e o terapêutico que existe no Céu da Mantiqueira poderia ser estendido também
a outros “sistemas de cuidado da saúde”. A diferença seria que na biomedicina ocidental
contemporânea convencional, procura-se manter uma ruptura entre a doença e o discurso
religioso e, desta maneira, entre a relação da doença com o social
104
(Laplantine, 1991).
Já as análises que fizemos do “sistema de cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira nos
mostram que, neste contexto, o que se procura é enfatizar esta relação entre as
dimensões terapêutica e espiritual. Desta maneira, os diferentes procedimentos
terapêuticos disponíveis fornecem um “idioma” que permite a expressão das experiências
relacionadas à espiritualidade, considerada pelos participantes do Santo Daime como
uma dimensão fundamental da vida.
4. As pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde
Vamos agora nos deter especificamente nas pessoas que trabalham profissionalmente
na área da saúde que são participantes do Céu da Mantiqueira, analisando suas
trajetórias de vida e suas narrativas. Eu entrevistei sete pessoas que trabalham
profissionalmente na área da saúde e também estão ligadas ao Céu da Mantiqueira,
sendo três psiquiatras, uma neurologista, uma psicóloga e um massagista. Escolhi para
analisar aqui as narrativas de duas dessas pessoas, uma psicóloga e um psiquiatra. Estas
narrativas foram escolhidas por se tratarem de pessoas que têm um status importante no
Céu da Mantiqueira. Como veremos, uma dessas pessoas é vice-presidente da igreja e a
outra tem o papel de auxiliar na direção dos rituais de Mesa Branca.
104
Laplantine vê o pensamento religioso como uma “forma de expressão totalizante do social”
(1991:217).
112
A primeira narrativa que vamos analisar é de uma psicóloga que já trabalha na área há
cerca de 27 anos. Ela é dirigente de uma outra igreja do CEFLURIS localizada perto da
cidade de Belo Horizonte e participa ocasionalmente do Céu da Mantiqueira, ajudando a
dirigir os trabalhos de Mesa Branca. Além de dirigir os rituais, quando viaja ao Céu da
Mantiqueira, ela realiza sessões de psicoterapia com os participantes da comunidade.
Estas sessões podem ser realizadas na cidade de São Paulo ou no Céu da Mantiqueira
mesmo
105
.
Em sua narrativa, esta pessoa nos conta que trabalhava como psicóloga, porém não
estava satisfeita com o que a ciência lhe oferecia. Então começou a pesquisar a
espiritualidade em várias linhas, entre as quais mencionou espiritismo e Umbanda. Nesta
busca pela espiritualidade, conheceu a União do Vegetal
106
, tendo participado deste grupo
por cerca de um ano e meio. Afastou-se, então da UDV e logo depois conheceu o Santo
Daime, tendo concluído que sua “missão” estava “na doutrina”.
Ela veio para o Céu da Mantiqueira pela primeira vez para realizar um ritual especial
com o grupo, a pedido da madrinha e do padrinho. A partir daí, conheceu os profissionais
da área da saúde que também participam da comunidade e começou a trabalhar junto
com alguns deles. Também a pedido da madrinha e do padrinho, começou a ajudar na
direção dos rituais de Mesa Branca, devido à sua experiência com mediunidade e com o
Santo Daime.
De acordo com sua narrativa, em sua trajetória profissional teve uma formação
psicanalítica e a seguir fez psicodrama analítico, psicossíntese e terapia de vidas
passadas. Tinha interesse também pelo xamanismo e fazia pesquisas sobre o assunto.
Ela afirmou que sempre usou muito a intuição e tinha manifestações mediúnicas e “dons
xamânicos”, que teriam vindo de outras vidas. De acordo com ela, o Santo Daime teria
permitido fazer a junção e a síntese entre todos estes elementos. Segundo esta
psicóloga, é preciso aliar o “lado espiritual” e o “lado científico”. Ela considera que “Freud
não explica tudo, e nem o pai de santo sabe tudo... é preciso juntar as duas coisas, pois a
verdade está dos dois lados”.
A outra narrativa que vamos analisar é do vice-presidente do Céu da Mantiqueira, um
psiquiatra. Este psiquiatra teve sua primeira experiência com a ayahuasca quando
105
Durante meu trabalho campo, em uma de suas visitas, ela utilizou o espaço da “casinha das ervas”
para realizar sessões de psicoterapia com os participantes do Céu da Mantiqueira. Em uma estadia de
dois dias, ela atendeu cerca de oito pessoas.
106
Ver introdução.
113
participava do hoasca project
107
. Depois disso, fez mestrado, tendo realizado um estudo
qualitativo sobre participantes da UDV que eram alcoólatras e pararam de beber depois
de tomarem o “vegetal”
108
por alguns meses
109
.
Conheceu o Santo Daime e o Céu da Mantiqueira através do convite de um paciente
de um colega psiquiatra. Depois de começar a participar do Céu da Mantiqueira, começou
a atender pessoas que também eram participantes da comunidade. Também começou a
ser procurado por pacientes que queriam conhecer o daime. Além disso, algumas
pessoas que eram seus pacientes se interessaram em conhecer a doutrina. A partir
deste trabalho de psicoterapia com os participantes do Santo Daime, tornou-se uma
referência dentro do Céu da Mantiqueira.
Este psiquiatra contou que antes de conhecer o Santo Daime era muito cético e
relacionou este ceticismo à sua ligação com a medicina e com o “conhecimento
científico”. De acordo com ele, em uma de suas primeiras experiências com a bebida,
teve um contato muito intenso com o divino, que representou um “despertar espiritual”.
Ele relatou que, durante o período que vem participando do Santo Daime, percebeu um
aumento de sua sensibilidade, uma “abertura” de sua mediunidade e uma “ampliação da
consciência”.
De acordo com ele, a biomedicina, no geral, ainda não reconhece o lado espiritual,
porém ele, a partir de suas experiências com o daime, percebeu que era preciso levar em
conta os lados físico, mental, emocional e espiritual do ser humano. Também devido a
estas experiências, que geraram uma insatisfação com o “modelo acadêmico”, ele
começou a se afastar da universidade e a buscar um trabalho “mais prático”.
As narrativas destas pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde nos
mostram que, antes ou depois de começarem a participar do Santo Daime, eles passam
por uma insatisfação com a “ciência”, por acharem que os modelos científico e biomédico
convencionais ignoram aspectos importantes da vida humana, principalmente o lado
107
O hoasca project foi uma pesquisa realizada em 1993 na cidade de Manaus por um grupo
interdisciplinar de pesquisadores provenientes dos Estados Unidos, da Finlândia e do Brasil. Teve como
objetivos conduzir um exame dos efeitos bioquímicos, e psicológicos da ayahuasca. Esta pesquisa foi
realizada com um grupo de voluntários participantes da UDV há mais de dez anos, tendo sido realizadas
investigações quantitativas e qualitativas. Foram aplicadas entrevistas estruturadas de diagnóstico
psiquiátrico, testes de personalidade, testes neuropsicológicos e foram realizadas entrevistas (Grob et
all, 2002). Também foram feitas avaliações dos efeitos fisiológicos agudos após a ingestão da bebida,
sendo coletados dados relativos à temperatura oral, diâmetro pupilar, freqüência cardíaca, pressão
arterial, freqüência respiratória e eletrocardiograma (Andrade et all, 2002). Além disso, foram realizadas
análises fitoquímicas e laboratoriais de amostras dos vegetais usados para confeccionar a bebida
(Andrade et all, 2002).
108
Termo utilizado pelos participantes da UDV para referir-se à ayahuasca.
109
Excepcionalmente, não incluo a referência bibliográfica para não identificar a pessoa.
114
espiritual. Na primeira narrativa analisada, a pessoa nos conta que buscava este lado
espiritual antes de começar a participar do Santo Daime, enquanto na segunda narrativa
vemos que esta busca se iniciou depois das primeiras experiências com o Santo Daime.
Esta noção de que a biomedicina convencional não contempla a dimensão espiritual da
vida é recorrente nas narrativas das pessoas que trabalham profissionalmente na área da
saúde entrevistadas, e leva estes profissionais a se afastarem do modelo biomédico
convencional, buscando outras alternativas tanto na espiritualidade no Santo Daime e
em outras tradições religiosas – quanto nas chamadas “terapias alternativas”. Vários
profissionais da saúde entrevistados afirmam que tiveram contato com outros grupos
religiosos antes de começarem a participar do Santo Daime, tais como espiritismo,
Umbanda, budismo e outros. Além disso, muitos destes profissionais utilizam alternativas
terapêuticas como florais da Amazônia, reiki e acupuntura, apesar de enfatizarem que
usam também a medicação alopática em casos de necessidade.
Vemos assim como os valores provenientes do campo da espiritualidade passam a
influenciar o trabalho profissional destas pessoas. Além das mudanças na profissão, as
pessoas relatam mudanças também na sua vida como um todo. No caso das narrativas
analisadas, vemos como a participação no Santo Daime torna-se uma prioridade nos
projetos de vida das pessoas (Rabelo, 1999a), tornando-se uma referência paraque
engloba suas outras atividades: uma das pessoas tornou-se dirigente de uma igreja do
CEFLURIS e outra é vice-presidente do Céu da Mantiqueira. Além disso, eles contam
que, depois de começarem a participar do Santo Daime, perceberam um aumento em sua
compreensão, na sua paciência, na sua capacidade de amar e na sensibilidade. Também
relatam uma expansão da consciência e o desenvolvimento da mediunidade.
A partir das análises das narrativas destes profissionais da saúde, podemos nos
perguntar se existe uma tensão entre a vida profissional e a vida espiritual destas
pessoas; entre o trabalho como profissionais da saúde, a formação acadêmica e os
valores da doutrina daimista. Vários dos profissionais da saúde entrevistados expressam
em suas narrativas esta tensão. De fato, ela já está presente na idéia de que a
biomedicina convencional não contempla a dimensão espiritual e na insatisfação com a
ciência que estes profissionais manifestam. Eles também comentam que sofrem
preconceito por parte de outras pessoas que trabalham na área da saúde devido ao fato
de tomarem daime. Afirmam que existe preconceito com relação aos “estados alterados
de consciência” e ao uso de “enteógenos”. De acordo com eles, isto pode gerar uma
115
dificuldade de convivência com os colegas de profissão e com os próprios meios
biomédico e científico.
Esta tensão também se expressa no fato do daime não poder ser indicado como um
tratamento, devido à ética da medicina, que diz que a ayahuasca não pode ser indicada
como um remédio, e às regulamentações do CONAD (Conselho Nacional Antidrogas) que
restringem a ayahuasca ao uso ritual
110
. Assim, as pessoas que trabalham
profissionalmente na área da saúde fazem questão de enfatizar que não recomendam
que ninguém tome daime como uma indicação médica.
Esta tensão pode ser considerada como uma expressão de uma insatisfação com o
modelo biomédico ocidental convencional. Este modelo está basicamente fundado no
paradigma cartesiano, que separa mente e corpo e ignora a dimensão espiritual. De
acordo com Laplantine (1991), ao efetuar uma ruptura entre a doença e o pensamento
religioso, o pensamento científico oculta “uma dimensão constitutiva da doença e da
própria prática médica: a relação com o social” (1991:225).
Talvez o que a análise da inserção das pessoas que trabalham profissionalmente na
área da saúde no Céu da Mantiqueira nos indique seja a possibilidade de estar sendo
construído um “novo” modelo terapêutico. Este modelo, diferente do modelo biomédico
convencional, enfatiza a necessidade de integração e equilíbrio entre as várias dimensões
constitutivas do ser humano: físico, mental, emocional e espiritual. Além disso, a relação
terapeuta/paciente que existe neste contexto também é diferente. Devido à existência de
uma cumplicidade entre pacientes e terapeutas, estes são mais sensíveis à dor e ao
sofrimento de seus pacientes. Fundamentalmente, este modelo que procura aliar
espiritualidade e procedimentos terapêuticos permite a expressão de experiências de
sofrimento e aflição que, no contexto da biomedicina oficial, não são consideradas
legítimas.
5. Categorias culturais importantes para compreendermos as experiências de saúde,
doença e cura para os participantes do Céu da Mantiqueira
A partir das análises e discussões realizadas até aqui, vamos agora procurar retomar
de maneira sistemática as categorias culturais que considero importantes para
compreendermos as experiências de saúde, doença e cura entre os participantes do Céu
da Mantiqueira.
110
Ver introdução.
116
5.1 O daime como um “ser divino”
O daime é considerado um “ser divino” e a ele são atribuídas características como
vontade e personalidade próprias. Ele também é visto como um “professor” que tem muito
a ensinar, dependendo do “merecimento” e do esforço pessoal de cada um. Além disso, o
daime é considerado como uma “medicina universal” (Groisman e Sell, 1996), capaz de
curar todos os males. Aqui é importante chamar a atenção para o fato de que a “cura”
depende do merecimento e do esforço pessoal de cada um. A ênfase êmica no estímulo à
ingestão da bebida é coerente com estas visões.
A ênfase êmica na ingestão da bebida é importante para compreendermos a lógica que
orienta a incorporação de procedimentos terapêuticos provenientes de outros campos no
“sistema de cuidados da saúde” daimista. Como vimos, o daime é considerado como o
“grande remédio” e os procedimentos terapêuticos são vistos como “ferramentas”
auxiliares na busca da “cura espiritual”. Neste mesmo sentido, o papel das pessoas que
trabalham profissionalmente na área da saúde é concebido como o de “auxiliares” do
daime. Desta maneira, no continuum espiritual-terapêutico, os valores englobantes
provém da doutrina daimista. São estes valores que orientam a lógica que define como os
procedimentos terapêuticos são incorporados no “sistema de cuidados da saúde”. Estes
procedimentos são reinterpretados e ressignificados de acordo com os valores da
doutrina.
5.2 “Comunidade Simbólica”
uma grande ênfase êmica na noção de comunidade. Esta é principalmente uma
“comunidade simbólica” (Turner, 1969), caracterizada pelo compartilhamento de valores,
experiências, crenças e práticas comuns (Groisman e Sell, 1996). Esta ênfase é expressa
na dicotomia entre os que são “de dentro” e os que são “de fora” da doutrina. O fato de
pertencerem a uma mesma “comunidade simbólica” gera uma espécie de cumplicidade
entre os participantes do Santo Daime.
Esta cumplicidade também se encontra presente nas relações terapeuta/paciente
existentes neste contexto, ou seja, aquelas que se dão entre os participantes do Santo
Daime e as pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde que estão ligadas
à doutrina. Estas relações diferem das relações médico/paciente características da
biomedicina oficial, sendo marcadas por uma maior sensibilidade do terapeuta para com o
sofrimento e as experiências de seus pacientes, devido ao fato do terapeuta vivenciar
experiências semelhantes e também considerar que está passando por um “processo de
117
cura” no Santo Daime. Este tipo de relação entre terapeutas e pacientes possibilita a
expressão de experiências de sofrimento e aflição que em outros contextos, tais como o
biomédico convencional, não são consideradas legítimas e contribui para criar um
“idioma” comum que permite que estas experiências sejam comunicadas.
5.3 Os dois lados da realidade
Os participantes do Santo Daime concebem a realidade como sendo formada pela
interação entre duas dimensões: o “mundo material” e o “mundo espiritual”. A primeira diz
respeito aos fenômenos empíricos da vida cotidiana, o mundo visível, enquanto a
segunda está relacionada principalmente ao mundo implícito ou invisível. De acordo com
Groisman (1991), mais do que dois mundos distintos e separados, a existência destas
duas dimensões corresponde a duas formas de perceber o todo. Os fenômenos relativos
à “dimensão espiritual” são concebidos como sendo de grande importância e acredita-se
que tenham influência sobre a realidade empírica. Por outro lado, a “dimensão material”
também é considerada importante, pois acredita-se que ambas as dimensões estariam
intimamente relacionadas e constituiriam uma reflexo da outra. Assim, o que é
fundamentalmente enfatizado é a necessidade de manter um equilíbrio entre estas duas
dimensões da realidade.
5.4 Mediunidade e diferentes tipos de transe
A mediunidade tem um papel muito importante para os participantes do Céu da
Mantiqueira, devido ao fato de eles considerarem que os seres humanos estão
interagindo constantemente com seres ou “entidades” espirituais. Assim, o
desenvolvimento mediúnico possibilitaria adquirir uma consciência do relacionamento com
as “entidades”. O desenvolvimento mediúnico, pensado como uma forma de, ao mesmo
tempo, adquirir consciência e controle sobre si mesmo e sobre a “atuação” dos espíritos,
também pode ser considerado como uma forma privilegiada de cura (Montero, 1985). De
acordo com Labate (2002), ele faz parte do processo terapêutico e de autoconhecimento.
Existem várias formas de manifestação mediúnica, ou de relacionamento com os
espíritos e o plano espiritual, tais como “canalização”, “irradiação”, “incorporação” e a
própria “miração”. De acordo com Wladimir Sena Araújo (1999), a “irradiação” seria uma
forma de transe intermediária entre a “miração” e a “incorporação”. Beatriz Labate (2002)
parte deste ponto para afirmar que no Santo Daime ocorre um encontro entre a “miração”
e os diversos níveis de contato com os seres espirituais. Para Labate, neste contexto, as
118
distinções entre as diversas formas de transe ou relacionamento com os espíritos não
podem ser separadas e têm limites fluidos e ambíguos.
As minhas observações de campo e as análises das expressões das experiências dos
participantes do Céu da Mantiqueira também indicam que no Santo Daime as diversas
formas de transe não podem ser separadas, pois muitas vezes ocorrem simultaneamente.
De fato, do ponto de vista êmico, as próprias categorias são fluidas e intercambiáveis. A
mesma categoria pode ser utilizada para referir-se a coisas diferentes e categorias
diferentes podem ser usadas referir-se ao mesmo fenômeno.
Uma categoria muito utilizada pelos participantes do Céu da Mantiqueira é a
“canalização”. Eles costumam referir-se ao ser humano como sendo um “aparelho”,
segundo definição êmica, um médium que cede seu corpo para que, através dele, as
entidades possam “trabalhar”. Estas “canalizações” podem ser expressas de diversas
formas, por via oral, escrita, desenhos, música, etc. Podem ser, por exemplo, instruções a
respeito da vida cotidiana, orações, florais, mensagens de entidades e desenhos. Os
próprios hinos do Santo Daime podem ser definidos como “canalizações”, pois são
considerados como sendo “recebidos” diretamente do “plano astral”. A noção de
“canalização” constitui um exemplo de como as categorias que se referem aos diferentes
tipos de transe ou de relacionamento com o mundo espiritual, do ponto de vista êmico,
são fluidas e intercambiáveis. A partir da definição êmica desta categoria, vemos que ela
pode englobar todos os tipos de transe citados, da “incorporação” à “miração”.
MacRae (2000) também faz uma discussão a respeito dos diferentes tipos de transe
existentes no Santo Daime. Ele critica a clássica distinção entre o transe de “vôo
xamânico” e de incorporação ou possessão, estabelecida por Mircea Eliade (1998).
Utilizando argumentos de Ioan Lewis (1977), MacRae desconstrói esta distinção e afirma
que os dois fenômenos ocorrem juntos e freqüentemente com o mesmo indivíduo.
Além de criticar a distinção que Eliade estabelece entre xamanismo e possessão,
MacRae também questiona a pouca importância que este autor ao uso de substâncias
“psicoativas” por parte dos xamãs. Partindo de Samorini (1990, citado em MacRae, 2000),
MacRae afirma que é provável que os estados de consciência induzidos por
“psicointegradores” estejam entre as modificações psíquicas mais arcaicas provocadas
pelo ser humano. Samorini também sugere a possibilidade de que as experiências com
“psicoativos” tenham tido um papel significativo na gênese do que Eliade chamou de
homo religiosus (Samorini, 1990:147-150, citado em MacRae, 2000).
119
De acordo com MacRae, no Santo Daime procura-se manter as experiências de
estados modificados de consciência circunscritas aos contextos rituais. Nestes contextos,
encontram-se presentes vários “elementos facilitadores”, tais como canto, instrumentos
musicais, incenso, trajes especiais, assim como a presença de um grupo de pessoas com
mais experiência. Para MacRae, nestas situações as modificações de consciência
produzidas tendem a confirmar as crenças e os valores do grupo e evitam-se as
conseqüências anti-sociais ou prejudiciais que os estados de transe poderiam produzir.
5.5 Os vários corpos que constituem o ser humano
Entre os participantes do Céu da Mantiqueira, é muito difundida a noção de que o
corpo do ser humano teria vários desdobramentos, entre os quais eles destacam o “corpo
físico”, o “corpo mental”, o “corpo emocional” e o “corpo etérico” ou “espiritual”. Esta
noção pode estar relacionada à uma influência da Fraternidade Branca
111
que está
presente no grupo. Da mesma maneira que é enfatizada a necessidade de haver um
equilíbrio entre a “dimensão material” e a “dimensão espiritual”, acredita-se que deve
haver um equilíbrio entre esses vários corpos. O “corpo físico” é concebido como sendo,
“mais denso”. Esta “densidade” dos corpos iria diminuindo até chegar ao “corpo
espiritual”, que seria o “mais sutil”.
O desenho 2 é uma representação feita por uma participante do Céu da Mantiqueira
dos vários corpos que constituem o ser humano. A seguir transcrevo uma definição êmica
para cada um dos corpos.
111
Ver introdução
120
Desenho 2: os vários corpos
121
Corpo físico: o ‘corpo físico’ é esse que a gente identifica como esse veículo mais
grosseiro e que está mais perto da terra. Ele abriga também dentro dele esses outros
corpos, o emocional, o mental e o espiritual. Tudo isso é traduzido, materializado,
manifestado através do corpo físico”.
Corpo emocional: nosso ‘corpo emocional’ trabalha no domínio das emoções, dos
sentimentos. Então ele comanda esse conjunto de sensações que nos afetam através dos
sentidos, das ligações com as outras pessoas, das ligações com o plano divino”.
Corpo mental: o corpo mental se refere ao que na ciência a gente denomina de uma
massa inteligente que articula raciocínio, a lógica, nossos pensamentos. Então é onde é a
casa, a morada dos nossos pensamentos. Ele tem um papel bastante determinante no
encaminhamento da nossa vida, porque o que nós pensamos, de uma certa maneira nós
vamos manifestar ao longo da nossa vida. A nossa vida vai ser o retrato do conjunto de
pensamentos, de afirmações positivas e negativas que a gente construiu. Nossa vida é uma
materialização do que a gente pensa”.
Corpo espiritual: a parte espiritual se refere à nossa alma. A esse ser que vem passar
por mais um estágio de conhecimento. Ele adquiriu ao longo de todas as suas jornadas,
suas encarnações, um certo grau de corpo físico, de corpo emocional, de corpo mental, tudo
integrado. Então ele é a somatória de todas essas conquistas que ele vem galgando ao
longo de todas as suas encarnações. E ele é a conexão do nosso ser com o plano divino,
com nosso pai celestial. Esse é o ‘corpo espiritual’”.
6. Saúde, doença e cura
Finalmente, vamos definir as categorias de saúde, doença e cura para os participantes
do Céu da Mantiqueira, retomando alguns aspectos que já abordamos. É importante
chamar a atenção para o fato de que saúde, doença e cura são compreendidos e
experienciados como processos altamente dinâmicos. Desta maneira, os fenômenos a
que se referem estas categorias são fluidos e estão intimamente inter-relacionados.
6.1 Doença
No “sistema de cuidados da saúde” daimista, a doença é freqüentemente relacionada à
transgressões sociais e espirituais (Groisman, 1991; Groisman e Sell, 1996; Peláez,
1996). Estas transgressões são consideradas como sendo de “responsabilidade
individual”. Ela também pode ser explicada com referência a agentes externos, como
maus fluidos e espíritos, ou a transgressões realizadas em vidas passadas (doenças
cármicas) (Monteiro da Silva, 1983). Mesmo quando as doenças são consideradas como
122
tendo sido geradas por agentes externos, em última análise, a responsabilidade é
remetida ao indivíduo, pois foi ele que “abriu as brechas”, ou seja, cometeu alguma
transgressão que permitiu a atuação desses seres.
Nas expressões das experiências dos participantes do Céu da Mantiqueira,
encontramos a idéia de que o espírito do ser humano teria sido criado à imagem e
semelhança de Deus, “como um corpo de luz radiante”, em perfeito equilíbrio e harmonia.
Porém, ao longo de suas muitas vidas, através do contato com a “matéria densa”, ele
seria exposto a diversas “armadilhas”. Desta maneira, de acordo com uma das pessoas
que eu entrevistei, a doença ou desequilíbrio é vista como sendo gerada principalmente
através da infração das leis espirituais e constituiria uma “manifestação do nosso
desligamento com Deus”.
Neste contexto, as explicações sobre a causalidade das doenças abrangem dimensões
que não são enfatizadas pela biomedicina e permitem preencher outras funções além da
propriamente terapêutica. Segundo Groisman e Sell (1996), o paradigma terapêutico
dominante na doutrina daimista não é alopático, ou seja, não está centrado na remissão
dos sintomas das doenças. Desta maneira, a remissão dos sintomas não constitui
necessariamente um indicador concreto da “cura”, da mesma forma que a morte de uma
pessoa não significa que ela não tenha sido “curada” (Peláez, 1996).
Groisman e Sell (1996) afirmam que os participantes do Santo Daime vêem a doença
como um evento complexo e contextual, onde os aspectos sociais e simbólicos são
considerados fundamentais para o sistema de cura. De acordo com estes autores, para
os participantes do Santo Daime, a doença é vista como o resultado de um desequilíbrio
no relacionamento do indivíduo com o mundo. Ela também é considerada como uma
oportunidade para realizar um “trabalho interior” para descobrir suas causas. Neste
sentido, a doença constitui uma manifestação do mundo espiritual. Além disso, é vista
como uma “disciplina”, pois requer que a pessoa modifique transgressões pessoais que
são considerados como suas principais causas (Groisman e Sell, 1996).
Entre os participantes do Céu da Mantiqueira, existe a noção de que a doença ou o
desequilíbrio podem se manifestar em qualquer um dos corpos do ser humano: físico,
mental, emocional e espiritual. A doença passaria, assim, por vários graus de
“densidade”, sendo a “doença física”, ou seja, a manifestação da doença no “corpo físico”,
o seu grau mais grave. Em termos êmicos, ela constituiria uma maneira de expressar este
desequilíbrio, de fazer com que ele “apareça” ou “saia”. É neste sentido que a doença é
compreendida como a oportunidade de realizar um “trabalho interior” (Groisman e Sell,
123
1996); uma oportunidade para buscar a cura. A doença também é encarada como uma
oportunidade de aprendizado. Acredita-se que, através do sofrimento que ela gera, é
possível compreender suas causas e corrigir os hábitos e padrões de comportamento e
pensamento que a geraram.
6.2 Saúde
A saúde é vista como sendo oposta à doença e é encarada como um estado ideal de
harmonia e equilíbrio. Neste sentido, é enfatizado que saúde e doença constituem
processos fluidos e dinâmicos. Dificilmente uma pessoa se encontra “totalmente doente”
ou “totalmente saudável”. Enquanto a doença é compreendida como a manifestação da
desarmonia ou do desequilíbrio, a saúde é relacionada à presença de harmonia e
equilíbrio, tanto no “corpo físico” e nos outros corpos que constituem o ser humano,
quanto em dimensões como o trabalho material e espiritual, o relacionamento com as
pessoas e o meio e o relacionamento com o plano espiritual.
6.3 Cura
De acordo com Groisman e Sell (1996), os elementos centrais da cultura daimista não
podem ser considerados isoladamente, pois agem combinados no campo simbólico,
criando uma situação favorável para que os indivíduos reavaliem seus hábitos e padrões
de comportamento e reflitam sobre sua vida e suas experiências. Para estes autores, o
conceito daimista de cura deve ser considerado como um evento mais complexo do que
apenas um evento orgânico, pois envolve o ser humano como um todo e inclui tanto
relações com os outros seres vivos quanto relações cósmicas.
A análise do “sistema de cuidados da saúde” do Céu da Mantiqueira nos mostra que
neste caso o conceito de “cura” é mais amplo que o biomédico, referindo-se também a
outras dimensões que vão além do “corpo físico”. A cura pode estar relacionada tanto à
dimensão física quanto à dimensão espiritual e abrange todos os corpos: físico, mental,
emocional e espiritual. Assim, a cura pode se processar em qualquer um ou em vários
destes níveis. A noção de cura também pode referir-se a um aumento no “entendimento”
ou na compreensão; a um insight; a uma mudança de comportamento e/ou de
consciência; à resolução de um problema familiar ou financeiro. A noção de cura, porém,
é fundamentalmente equacionada com a noção de equilíbrio (Peláez, 1996): equilíbrio
entre os diversos corpos; entre as dimensões material e espiritual; entre a pessoa e
aqueles com quem ela se relaciona; e, em última instância, entre o ser humano e o
cosmos ou o divino.
124
É a compreensão do porque da doença, considerada como um “trabalho interior”, que
pode gerar uma mudança nos hábitos e comportamentos, conferindo às pessoas a
oportunidade de ter novas perspectivas sobre a vida (Groisman e Sell, 1996). É neste
sentido que podemos pensar na importância da “cura espiritual” (Peláez, 1996). A
doutrina daimista pode ser vista como um meio ou um “caminho” para se obter esta “cura
espiritual” (Peláez, 1996), sendo que os procedimentos terapêuticos disponíveis aos seus
participantes são vistos como “ferramentas” que podem auxiliar nesta busca.
De acordo com as expressões das experiências dos participantes do Céu da
Mantiqueira, a cura seria o processo de busca constante deste estado ideal que é a
saúde. Da mesma forma que a doença pode se manifestar nos corpos físico, emocional,
mental e espiritual, acredita-se que a cura precise ser trabalhada em todos estes níveis.
Enquanto a doença é compreendida como a “manifestação do nosso desligamento com
Deus”, a cura é vista como o encontro ou reencontro com “nosso ser verdadeiro”, ou o “eu
superior”. Desta maneira, a cura é relacionada com a ampliação e elevação da
consciência, com a “capacidade de ver plenamente”.
A idéia da responsabilidade pessoal que se encontra presente na gênese ou origem da
doença também está presente na noção de cura. Assim, a cura aconteceria na medida da
“abertura” de cada um, dependendo do “merecimento” e do esforço para obtê-la. O
“processo de cura” é compreendido fundamentalmente como um processo de
transformação dos erros pessoais que estão na origem das doenças. O Santo Daime é
visto como um “grande veículo” para trilhar este “caminho” da cura e da transformação.
125
Considerações Finais
Vamos agora pensar nas implicações, para uma discussão mais ampla, do modelo do
continuum espiritual-terapêutico que elaboramos para compreender os valores e
categorias que orientam os procedimentos espirituais e terapêuticos no Céu da
Mantiqueira. Antes, porém, vamos retomar e sistematizar o modelo.
O modelo do continuum espiritual-terapêutico foi desenvolvido a partir da observação
de dois processos simultâneos e complementares que estão em andamento no Céu da
Mantiqueira. O primeiro deles foi definido como o processo de terapeutizão da
espiritualidade. Este processo está relacionado à integração das pessoas que trabalham
profissionalmente na área da saúde no u da Mantiqueira. A partir desta integração,
desenvolve-se uma tendência de que os participantes desta comunidade procurem
profissionais da saúde ligados ao mesmo grupo ou ao Santo Daime. Assim, a terapia,
categoria proveniente da biomedicina e do campo das “terapias alternativas” torna-se um
valor entre os participantes do Céu da Mantiqueira. Neste contexto, porém, este valor é
ressignificado segundo lógica própria da cosmologia daimista. O que se enfatiza é a
combinação entre o Santo Daime e a terapia. Considera-se que a terapia paralela à
participação na doutrina teria os efeitos de “catalizar”, “aprofundar” e “acelerar” o processo
terapêutico. Também se afirma que este tipo de terapia pode ajudar a compreender as
experiências vivenciadas nos rituais daimistas, auxiliando no desenvolvimento espiritual.
De acordo com as narrativas dos participantes do u da Mantiqueira, a principal
característica que distingue este tipo de terapia das terapias desenvolvidas em outros
contextos é o fato de levar em conta a dimensão espiritual, considerada como uma parte
fundamental da vida pelos participantes do Santo Daime.
O segundo processo identificado foi definido como a espiritualização dos
procedimentos terapêuticos. Neste processo, a espiritualidade, valor fundamental na
cosmologia daimista e também no universo da Nova Era, torna-se uma parte importante
do idioma e dos procedimentos terapêuticos das pessoas que trabalham
profissionalmente na área da saúde e que estão ligadas ao Céu da Mantiqueira. Estas
pessoas narram uma série de mudanças depois de começarem a participar do Santo
Daime: mudanças na maneira como encaram sua profissão, no relacionamento com seus
pacientes e também em sua vida como um todo.
No continuum espiritual-terapêutico teríamos, portanto, no pólo da espiritualidade a
doutrina do Santo Daime e no pólo da terapia as pessoas que trabalham
profissionalmente na área da saúde e os procedimentos terapêuticos. A substância que
126
circula entre os dois pólos do continuum, possibilitando sua existência, é formada pelos
valores que provém, por um lado, da doutrina daimista e, pelo outro, dos campos da
biomedicina e das “terapias alternativas”. Os valores englobantes provém da doutrina
daimista. São estes valores que vão orientar a lógica segundo a qual os procedimentos
terapêuticos provenientes de outros campos são incorporados ao “sistema de cuidados da
saúde” do Céu da Mantiqueira. Neste contexto, estes procedimentos são reinterpretados
e ressignificados. Utilizando este modelo, fizemos algumas reflexões que penso que
podem ser estendidas para outros contextos.
A partir das narrativas das pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde
e que estão ligadas ao Céu da Mantiqueira e das reflexões feitas por Montero (1985) e
Caprara (1998) sobre as relações entre terapeutas e pacientes na Umbanda e no
Candomblé, respectivamente, vimos que a relação entre terapeutas e pacientes
desenvolvida no contexto terapêutico do Céu da Mantiqueira é diferente do tipo de relação
médico/paciente que predomina na biomedicina convencional. Devido à existência de
uma cumplicidade entre pacientes e terapeutas, estes são mais sensíveis à dor e ao
sofrimento de seus pacientes. Desta maneira, o que distingue a terapia realizada pelas
pessoas que trabalham profissionalmente na área da saúde que estão ligadas ao Céu da
Mantiqueira é a possibilidade de permitir a expressão de experiências de aflição e
sofrimento que em outros contextos não seriam consideradas legítimas. Isto está
relacionado à criação de um “idioma” comum entre terapeutas e pacientes que permite
comunicar as experiências relacionadas à espiritualidade.
A análise dos procedimentos terapêuticos utilizados pelos participantes do Céu da
Mantiqueira também nos mostrou que neste contexto o é possível separar o que é
“propriamente terapêutico” do que é “propriamente espiritual”, pois estas duas dimensões
encontram-se intimamente relacionadas. Partindo das considerações feitas por Laplantine
(1991), vimos que o modelo do continuum espiritual-terapêutico, que elaboramos a partir
da estreita imbricação entre o espiritual e o terapêutico observada no Céu da Mantiqueira,
também pode ser estendido a outros “sistemas de cuidados da saúde”. De acordo com
Laplantine (1991), a doença e o sagrado, a medicina e a religião, sempre estão ligados,
devido à relação da doença com o social. Desta maneira, o “sistema de cuidados da
saúde” do Céu da Mantiqueira é um exemplo de um caso onde esta relação se encontra
evidenciada. Ele difere, portanto, da biomedicina oficial, que procura manter uma ruptura
entre a doença e o discurso religioso (Laplantine, 1991).
127
Por fim, analisamos as narrativas das pessoas que trabalham profissionalmente na
área da saúde e estão ligadas ao Céu da Mantiqueira e vimos que existe uma tensão
entre sua formação acadêmica e os valores provenientes do campo da espiritualidade:
entre sua vida profissional e sua vida espiritual. Esta tensão pode ser considerada como
uma expressão de uma insatisfação com o modelo biomédico convencional, basicamente
fundado no paradigma cartesiano que separa mente e corpo e ignora a dimensão
espiritual.
A partir daí, levantamos a possibilidade de que a imbricação entre o espiritual e o
terapêutico que observamos no Céu da Mantiqueira constitua um indício da construção de
um “novo” modelo terapêutico também num contexto mais amplo. Como mostrou Maluf
(2003), atualmente esta intersecção entre novas formas de espiritualidade e
procedimentos terapêuticos “alternativos” abrange um vasto campo que chamamos de
“rede terapêutico-espiritual alternativa”. Este modelo, diferentemente do modelo
biomédico convencional, enfatiza a necessidade de equilíbrio e integração entre as várias
dimensões que constituem o ser humano, procurando considerá-lo como um todo.
Fundamentalmente, este modelo que alia espiritualidade e procedimentos terapêuticos
permite a expressão de experiências de sofrimento e aflição que em outros contextos não
são consideradas legítimas.
128
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Anexo 1: Ficha de Filiação
138
Anexo 2: Ficha de Anamnése
139
Ficha de Anamnése (verso)
140
141
Anexo 3: Calendário de 2004
Céu da Mantiqueira
Calendário de Trabalhos Espirituais para 2004
Janeiro
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
05/01/04 – 2
a
feira Missa e Santos
Reis
O Cruzeiro – Mestre Irineu 18:00h Branca
07/01/04- 4
a
feira Aniversário do
Padrinho Alfredo
Nova Jerusalém e
Nova Era
19:00 Branca
15/01/04 – 5
a
feira Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
18/01/04 – dom São Sebastião
(19/01)
O Justiceiro – Pd. Sebastião 09:00 Branca
24/01/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
25/01/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
27/01/04 – 3
a
feira Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o Juruá)
20:00 Azul
30/01/04 – 6
a
feira Concentração Hinos do Pd. Sebastião 20:00 Azul
Fevereiro
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
02/02/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
15/02/04 – dom Concentração (só para fardados) 19:00 Azul
Março
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
01/03/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
06/03/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
07/03/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
15/03/04 – 2
a
feira Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
19/03/04 – dom São José (18/03) O Cruzeirinho – Pd. Alfredo
(fardamento)
19:00 Branca
27/03/04 – sab Hinário casa e
Valdete
Aberto – fora da carteira –
(fundos para o Juruá)
19:00 Azul
30/03/04 – 3
a
feira Concentração Hinos do Pd. Sebastião 20:00 Azul
Formatado
Formatado
Formatado
142
Abril
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
03/04/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
03/04/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
05/04/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
08/04/04 – 5
a
feira Quinta Feira Santa Hinário de Finados 20:00 Azul
9, 10 e 11/04/04
6
a
feira a dom
Feitio do Aniv. do
Céu da Mantiqueira
12:00 Sem
farda
15/04/04 – 5
a
feira Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
20/04/04 Aniversário da Igreja
Porto Seguro – Pd. Francisco
e Nova Era
19:00 Branca
27/04/04 – 3
a
feira Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o
Juruá)
20:00 Azul
30/04/04 – 6
a
feira Concentração Hinos do Pd. Sebastião 20:00 Azul
Maio
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
03/05/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
08/05/04 - sab Dia das Mães Hinário Lua Branca – Mad. Rita
e O Convite – Mad. Júlia
10:00 Azul
15/05/04 – sab Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
22/05/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
23/05/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
27/05/04 – 5
a
feira Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o Juruá)
20:00 Azul
30/05/04 – dom Concentração Hinos do Pd. Sebastião 19:00 Azul
Junho
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
05/06/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
06/06/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
07/06/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
12/06/04 - sab Santo Antônio O Justiceiro – Pd. Sebastião 18:00 Branca
15/06/04 – 3
a
feira Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
23/06/04 – sab São João O Cruzeiro – Mestre Irineu
(fardamento, batizado e
casamento)
20:00 Branca
25/06/04 – 6
a
feira Aniversário
Madrinha Rita
O Justiceiro – Pd. Sebastião 20:00 Branca
27/06/04 – dom São Pedro (28/06)
O Cruzeirinho – Pd Alfredo 10:00 Branca
30/06/04 – 4
a
feira Concentração Hinos do Pd. Sebastião 20:00 Azul
Formatado
Formatado
Formatado
143
Julho
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
05/07/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
06/07/04 – 3
a
feira Passagem do
Mestre - Missa
O Cruzeiro – Mestre Irineu 18:00 Azul
10/07/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
11/07/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
15/07/04 – 5
a
feira Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
27/07/04 – 3
a
feira Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o Juruá)
20:00 Azul
30, 31 e 01/ 08/04 Caminhada para
Aparecida do
Norte
Hinos do Pd. Sebastião 9:00
Agosto
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
02/08/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
07/08/04 – sab Dia dos Pais O Justiceiro – Pd. Sebastião 10:00 Branca
15/08/04 – dom Concentração (só para fardados) 19:00 Azul
21/08/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
22/08/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
27/08/04 – 6
a
feira Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o Juruá)
20:00 Azul
30/08/04 – 5
a
feira Concentração Hinos do Pd. Sebastião 20:00 Azul
Setembro
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
06/09/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
15/09/04 – 4
a
feira Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
18/09/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
19/09/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
27/09/04 – 2
a
feira Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o Juruá)
20:00 Azul
29/09/04 – 4
a
feira São Miguel Caboclo Guerreiro – Vô
Corrente e Instrução – Lúcio
Mortimer
20:00 Azul
30/09/04 – 5
a
feira Concentração Hinos do Pd. Sebastião 20:00 Azul
Formatado
Formatado
Formatado
144
Outubro
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
04/10/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
06/10/04 – 4
a
feira Aniversário do Pd
Sebastião
O Cruzeiro – Mestre Irineu 20:00 Branca
15/10/04 – 6
a
feira Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
16/10/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
17/10/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
27/10/04 – 4
a
feira Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o Juruá)
20:00 Azul
30/10/04 – sab Concentração Hinos do Pd. Sebastião 19:00 Azul
Novembro
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
01/11/04 – 2
a
feira Missa e Trabalho
de Finados
Hinário de Finados 18:00 Azul
15/11/04 – 2
a
feira Concentração (só para fardados) 20:00 Azul
20/11/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
21/11/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
27/11/04 – sab Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o Juruá)
19:00 Azul
30/11/04 – 3
a
feira Concentração Hinos do Pd. Sebastião 19:00 Azul
Dezembro
Data e dia Trabalho Hinário Horário
Farda
06/12/04 – 2
a
feira Missa 18:00 Azul
07/12/04 – 3
a
feira Virgem da
Conceição
O Cruzeiro – Mestre Irineu
(fardamento, batizado e
casamento)
20:00 Branca
14/12/04 – 3
a
feira Aniversário do
Mestre
O Justiceiro – Pd. Sebastião 20:00 Branca
18/12/04 – sab Trabalho de
Iniciantes
19:00 Azul
19/12/04 – dom Trabalho de Cura Hinário de Cura 10:00 Azul
24/12/04 – 6
a
feira Trabalho de Natal O Cruzeiro – Mestre Irineu 20:00 Branca
27/12/04 – 2
a
feira Trabalho de Mesa
Branca
(só para fardados, fora da
carteira – fundos para o Juruá)
20:00 Azul
30/12/04 – 3
a
feira Concentração Hinos do Pd. Sebastião 19:00 Azul
31/12/04 – 6
a
feira Trabalho de Ano
Novo
O Cruzeirinho – Pd. Alfredo 20:00 Branca
Formatado
Formatado
Formatado
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