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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social
CAROLINE HIMMELREICH AYALA
PARA UMA ETNOGRAFIA DA CASA PANTANEIRA: TEMPOS E
ESPAÇOS VIVIDOS NA COLÔNIA SÃO DOMINGOS/MS
FLORIANÓPOLIS
SANTA CATARINA - BRASIL
2005
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AYALA, Caroline Himmelreich
Para uma etnografia da casa pantaneira: tempos e espaços vividos na Colônia São
Domingos/MS. Caroline Himmelreich Ayala – Florianópolis, 2005.
203f. : il,tab.
Orientadora: Prof. Dra. Alícia Norma Gonzáles de Castells.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Santa
Catarina. Centro de Filosofia e Ciências Humanas.Bibliografia: f. 192-199.
1. Antropologia do Espaço. 2. Antropologia do Território. 3. Casa Pantaneira.
I. Título
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CAROLINE HIMMELREICH AYALA
PARA UMA ETNOGRAFIA DA CASA PANTANEIRA: TEMPOS E
ESPAÇOS VIVIDOS NA COLÔNIA SÃO DOMINGOS/MS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Santa Catarina, como
parte dos requisitos para obtenção do título de
mestre em Antropologia Social.
ORIENTAÇÃO:
Prof. Dra. Alícia N. Gonzales de Castells
FLORIANÓPOLIS
SANTA CATARINA - BRASIL
2005
No Pantanal ninguém pode passar régua.
Sobremuito quando chove.
A régua é existidura de limites.
E o Pantanal não tem limites.
Manoel de Barros
Desenho de uma menina colonense de quatro anos de idade, representando a sua própria casa.
A meus pais Félix Antonio de Jesus Ayala Barreto e
Mirka Himmelreich, pelo amor incondicional e a meus
irmãos Tati e Marcelo por nossa união.
Ao Tércio, porque nele tudo se conecta:
a saudade da Avani (in memorian) que sempre acreditou
em nosso amor;
a amizade da querida Patrícia Paula;
a existência de Vaisnava e de Tarcísio, que me
adotaram com amor;
a vida de Théo - que fez tudo ter sentido.
AGRADECIMENTOS
Aos amigos Maurício, Bel e Bia, pelas trocas cotidianas de afeto e carinho. Ao Paulo
Guilherme, amigo que mesmo a distância sempre acreditou em meu trabalho.
À CAPES e a toda equipe do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social: à
primeira por me abrir algumas portas com o auxílio financeiro e à segunda pela dedicação e
carinho a mim dirigidos nestes dois anos de convivência. Ao apoio técnico-logístico e
principalmente pela confiança expressadas pelas seguintes pessoas: Egon Krackekhe
(SEPLANCT/MS), José Braga Neto e Adriana Bertholi (INCRA/MS), Humberto Maciel
(IDATERRA/MS), Amélia (CPT/Corumbá) e do Milton Zanotto.
À minha orientadora Alicia, que provou (mesmo sem querer) ser uma verdadeira
“mãezona”, e a quem dedico muito carinho, admiração e respeito.
A todo pessoal da Colônia São Domingos - em especial Dona Margarida e Seu Múcio
- que me mostraram um mundo diferente e me fizeram ter esperanças e acreditar em meus
sonhos.
RESUMO
Os colonenses são um povo pantaneiro que há quatro gerações interagem em um mesmo
território regido pela variação sazoneira. Através da etnografia de três sítios e suas respectivas
casas - representativos do universo doméstico da Colônia São Domingos - busco apreender
suas relações socioespaciais no cotidiano. Por vicissitudes históricas e pela maleabilidade do
território pantaneiro, a casa colonense vai sendo produzida e reproduzida nos diversos usos e
significados espaciais. Assim, pode-se dizer que o conceito cultural de casa opera na
constituição, invenção e reprodução dos padrões morais, da reciprocidade e da identidade
socioétnica - do ethos - que conforma o grupo local. Esta produção e reprodução no cotidiano
é o próprio sistema colonense - o modo de vida - que se concretiza histórica e socialmente
através das redes de relações de casas e entre casas. Deste modo, o estudo antropológico do
espaço permite compreender que a concepção de mundo para o colonense está regulada em
uma relação mútua, não apenas pelo convívio familiar e social, mas também através das
relações com o próprio território, em sua sazonalidade.
Palavras-chave: antropologia do espaço, antropologia do território, casa pantaneira.
Título: Para uma etnografia da casa pantaneira: tempos e espaços vividos na Colônia São
Domingos/MS.
ABSTRACT
The colonenses are a specific group of people from the Pantanal region who have for four
generations inhabited and interacted in the same territory controlled by seasonal variation.
Through the ethnography of three sites and their respective houses - representing the domestic
universe of the São Domingos colony - I tried to capture their everyday social-spatial
relations. Due to historical reasons and malleability of the Pantanal territory, the colonense
house has been produced and reproduced in various uses and spatial meanings. Thus one can
say that the cultural concept of house works through the constitution, invention and
reproduction of moral patterns, reciprocity and social-ethnic identity (ethos), which form the
local group. This production and reproduction of daily lives is the colonense system itself -
their lifestyle - which is historically and socially solidified through a network of relations of
houses and between houses. Therefore, the anthropologic study of the space makes it possible
to understand that the world concept to the colonense is regulated in a mutual relation
involving not only the family and social interactions, but also the relation with the territory
itself and its seasonal character.
Keywords: anthropology of the space, anthropology of the territory, Pantanal house.
Title: For an ethnography of the Pantanal house: time and space experienced in the São
Domingos colony / MS State.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Lista de mapas
Mapa 1 - Localização da Colônia São Domingos em Corumbá-MS. ......................................35
Mapa 2 - Mapa da Colônia São Domingos em classificações do INCRA/MS. Sem divisões
por sítios (primeiro eixo fundacional - de 1905 a 1979).
.........................................................39
Mapa 3 - Mapa da Colônia São Domingos em classificações do INCRA/MS. Com divisões
por sítios (segundo eixo fundacional - de 1979 aos dias de hoje).
...........................................40
Mapa 4 - Mapa atual da Colônia São Domingos em classificações nativas do território. .......50
Mapa 5 - Mapa de localização dos sítios escolhidos e seus entornos.......................................90
Mapa 6 - Mapa de implantação do Sítio Nova Vida................................................................92
Mapa 7 - Mapa de implantação do Sítio Santa Maria............................................................117
Mapa 8 - Mapa de implantação do Sítio Corixinho. ..............................................................132
Lista de plantas baixas
Planta baixa 1 - Casa 1 - de Dona Margarida e de Seu Múcio...............................................100
Planta baixa 2 - Casa 2 - do Nei e da Giorvânia.....................................................................111
Planta baixa 3 - Casa do Feliciano e da Noca.........................................................................122
Planta baixa 4 - Casa do Seu Júlio e de Dona Niroca ............................................................135
Lista de fotografias
Foto 1 - Os caminhos do corixo. ..............................................................................................54
Foto 2 - Os caminhos de chão. .................................................................................................54
Foto 3 - O largo na cheia..........................................................................................................58
Foto 5 - Os encontros no corixo...............................................................................................58
Foto 4 - O largo na seca............................................................................................................58
Foto 6 - Tapera. ........................................................................................................................58
Foto 7 - Rancho. .......................................................................................................................82
Foto 8 - Casa 1 - cozinha........................................................................................................102
Foto 9 - Casa 1 - sala..............................................................................................................102
Foto 10 - Casa 1 - batedor. .....................................................................................................103
Foto 11 - Casa 1 - locais externos. .........................................................................................103
Foto 12 - Casa 2 - manutenção...............................................................................................110
Foto 13 - O porto da casa 2. ...................................................................................................110
Foto 14 - Casa - sala...............................................................................................................127
Foto 15 - Casa - cozinha.........................................................................................................127
Foto 16 - “Casa nova” e “quintal de dentro............................................................................134
Foto 17 - “Casa velha” e “quintal de fora...............................................................................134
Foto 18 - A casa do confinado................................................................................................159
Foto 19 - A casa em construção. ............................................................................................174
Foto 20 - A sala colonense. ....................................................................................................183
Foto 21 - Casa colonense........................................................................................................183
GLOSSÁRIO
Acuri - A palmeira acuri (Scheelea phalerata) é uma das principais espécies vegetais usadas
para construção (através de suas folhas), além da importância do fruto, do palmito e
da castanha, da qual se faz azeite para comer. Queimando a castanha serve para
iluminação e para repelir insetos. Entre outras coisas, proporciona sombra, delimita
espaços e na bainha de suas folhas guarda-se toda espécie de pequenos objetos.
Ajuri - Modalidade de troca de dias de trabalho.
Baías - Termo genérico utilizado para designar vários tipos de lagoa de diferentes formas e
dimensões, podendo ser temporárias e permanentes.
Baceiro - Plantas aquáticas que povoam o corixo e baías, é “sujeira”, segundo os moradores,
porque impede a visão e principalmente atrapalha a navegação.
Batedor - Pequena plataforma colocada no corixo (a certa distância), cujo acesso se dá
através de pontilhões de troncos ou tábuas. Sob ela se lava roupas, se escova os
dentes, se toma banho ou serve para pegar água limpa para uso doméstico em geral.
Ainda nela, pode-se acessar a água para limpar a carne do bicho recém-abatido.
Bicho de chão - Animais venenosos ou peçonhentos como cobras, aranhas, lacraias, dentre
outros que demandam proteção.
Brejos - Lugares que ficam úmidos a maior parte do ano, cobertos por lama.
Cacimba - Espécie de poço que geralmente é cavado no leito do corixo quando as baías estão
secas ou sujas; normalmente é feito em épocas de seca extrema.
Caminhos - Os caminhos colonenses podem ser por água ou por terra e estão ambos sujeitos
à variação do rio.
Campina - Campos limpos localizados em partes mais baixas e úmidas, que podem ser
alagadas.
Campos - Limitando-se aos pontos mais elevados e mais secos, são lugares que persistem
emersos, formando como que ilhotas de vegetação.
Capões-de-mato - Semelhante às cordilheiras, se distinguem destas pelo fato de apresentar
formas circulares e subcirculares, muitas vezes de menor tamanho.
Chatas - Grandes embarcações de navegação para transporte de cargas no curso de rios de
grande calado.
Colonense - Os colonenses são uma população pantaneira que ocupa um lugar definido desde
1905 - data que marca o início da Colônia São Domingos. A categoria abrange os
indivíduos que assim se autodenominam e se consideram, ao compartilhar os hábitos
e valores da cultura local e as suas regras de convívio social.
Confinado/Confinamento (animal) - A criação do gado no território pantaneiro implica,
entre outros fatores, a maior exploração de determinados recursos naturais durante
períodos distintos: por exemplo, se na seca usam o largo como pasto comunal,
deixando o gado alongado (solto), na cheia recolhem a criação, ficando o gado
confinado (preso).
Confinado/Confinamento (pessoa) - Quando um novo casal permanece no lote dos pais, está
na condição de confinado, categoria que representa a forma de reprodução das
famílias colonenses no sistema atual.
Cordilheiras - Elevações do terreno que separam baías, geralmente areno-argilosas e com 1 a
2 metros de altura, caracterizadas por uma densa vegetação que as destaca da
paisagem, podendo ter formas comumente alongadas;
Corixo - Pequenos cursos d’água, normalmente permanentes que conectam baías;
Dona - Designação local para uma senhora.
Estrada - Caminho de uso coletivo que dá acesso a outras localidades, pode ser o rio ou
estradas de chão.
Firme - Categoria nativa para designar um local que não alaga.
Galpão - Nome dado a uma edificação usada como depósito e área para guardar e executar
serviços variados. Configura-se, no entanto, como local de dormir (na rede ou em
camas rústicas) para empregados regulares ou temporários.
Largo - Área de uso coletivo que ora está alagado (“quando vira tudo pântano” ou corixo),
ora está seco (transformando-se em pasto comunal).
Mata - A mata pode ter uso privativo, coletivo ou fazer a transição de um sítio ao outro. Os
colonenses usam rincões de mata para fazer a roça, como “banheiro” para suas
necessidades, para apanhar lenha, remédios, etc.
Mato - Refere-se a um conjunto de espécies vegetais nativas.
Pasto - Espaço destinado ou apropriado para o pastoreio de animais.
Pinguelas - Caminhos secundários sobre áreas alagadas ou brejos, onde é normal haver
passagens difíceis onde se coloca apenas um tronco e as pessoas se equilibram sobre
ele para passar de um lado a outro, apoiadas em “zingas” deixadas para este fim nas
suas extremidades.
Plantação - Referência às plantas cultivadas e ao ato de plantá-las.
Portos - A expressão porto pode ter na colônia vários sentidos distintos: há o porto privativo
de cada casa, onde se tem acesso aos caminhos internos desde o corixo, quando se
pode dizer “cada casa tem o seu porto”; há os portos (Virabrequinho e Figueira),
que não estão dentro dos limites da colônia, mas dão acesso às cidades e ao exterior,
pois se comunicam diretamente com o rio ou estrada; e há situações onde o porto
privativo de uma casa pode receber embarcações maiores; neste caso se diz que “a
casa também é porto”.
Posses - Medida de riqueza, referem-se a quem tem mais posses e quem tem menos posses.
Rancho - Categoria nativa que designa a construção feita para abrigar as pessoas que estão
cuidando da roça e consiste em um único cômodo que abriga a rede e o fogão à
lenha, sendo um telhado de duas águas fechado com acuri trançado desde o chão até
a cumeeira.
Retiros - Núcleo de casas e galpões afastados da sede principal, com atividades e
especificidades próprias.
Roça - Referência ao espaço de trabalho onde se faz a plantação.
Salinas - Baías com grande concentração de sais alcalinos em suas águas.
Taperas - Categoria nativa usada para designar uma casa ou um lugar da antiga casa, deixada
pelos moradores com o intuito de reconstruí-la em outro lugar.
Varadores - São corredores de uso coletivo cercados que desembocam no largo e ligam um
lugar a outro, passando na divisa dos sítios.
Vazantes - Canais temporários ou permanentes, que servem de escoadouros a baías e corixos;
Zinga - É um tipo de navegação muito usado no Pantanal, principalmente nos lugares que
alagam. Consiste em manusear um bambu de aproximadamente três metros e
preparado com uma forquilha em uma das pontas (chamada também de “zinga”),
com o qual se empurra ou dá-se impulso no fundo ou na beirada do rio para que a
prancha, a canoa ou o barco se movimente.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................14
A busca do campo ................................................................................................................17
Sobre o trabalho de campo...............................................................................................18
Ida ao campo.........................................................................................................................22
O encontro etnográfico.....................................................................................................25
Pantaneiros, paiaguenses e colonenses.............................................................................30
CAPÍTULO I............................................................................................................................36
UM OLHAR SOBRE A COLÔNIA E SUAS GENTES.........................................................36
1.1 Memória e sobreposição de mundos ........................................................................37
1.2 O atual sistema colonense ........................................................................................49
1.2.1 Os caminhos de dentro .....................................................................................53
1.2.2 O espaço - habitat colonense............................................................................58
1.2.3 O espaço das relações sociais colonenses.........................................................60
1.2.4 Acabou o tempo das festas ...............................................................................65
1.2.5 Aspectos de sociabilidade - os ambientes humanizados ..................................69
1.2.6 Aqui se planta, aqui se troca.............................................................................74
1.2.7 Os ciclos de uma vida.......................................................................................83
CAPÍTULO II...........................................................................................................................89
TERRITÓRIOS DA VIDA COTIDIANA: O ESPAÇO VIVIDO...........................................89
2.1 Sítio Nova Vida........................................................................................................91
2.1.1 A casa e os usos do corixo................................................................................95
2.1.2 Casa 1 - A ilha de Dona Margarida e de Seu Múcio........................................97
2.1.3 O corpo da casa 1 .............................................................................................99
2.1.4 A casa - domínio do social .............................................................................101
2.1.5 A casa - domínio do feminino ........................................................................104
2.1.6 O lugar da “limpeza” e da “sujeira”...............................................................106
2.1.7 A casa - domínio do íntimo............................................................................107
2.1.8 Casa 2 - do Nei e da Giorvânia.......................................................................109
2.1.9 A “frente” versus o “fundo” ...........................................................................110
2.1.10 A casa do confinado .......................................................................................112
2.2 Sítio Santa Maria....................................................................................................115
2.2.1 A casa do Feliciano e da Noca .......................................................................118
2.2.2 O corpo da casa - vida íntima e coletividade..................................................119
2.2.3 A casa e seus quintais.....................................................................................120
2.2.4 A casa - cenário do social...............................................................................121
2.2.5 A casa e sua planta arquitetônica....................................................................122
2.2.6 O corpo dividido (1).......................................................................................124
2.2.7 O corpo feminino (2)......................................................................................125
2.2.8 O corpo em transformação (3) e (4)...............................................................127
2.3 Sítio Corixinho .......................................................................................................129
2.3.1 A água como fonte de riqueza........................................................................131
2.3.2 O caso de Seu Júlio e de Dona Niroca ...........................................................133
2.3.3 A casa e suas etapas: “casa velha”, “casa nova” e “casa ideal” .....................133
2.3.4 Os quintais da casa - distintos domínios.........................................................135
2.3.5 A “casa nova”.................................................................................................137
2.3.6 A casa e os tempos - do cotidiano e das festas...............................................139
2.3.7 O lugar do velho e do novo ............................................................................139
2.3.8 A casa entre o habitual e o ideal.....................................................................140
2.3.9 A casa e o ritual de “limpeza”........................................................................141
CAPÍTULO III .......................................................................................................................144
COM A CASA NAS COSTAS - ENTRE CORIXOS E TAPERAS.....................................144
3.1 Para baixo ou para cima - os caminhos do corixo São Domingos .........................145
3.1.1 Casas e configuração de casas.......................................................................146
3.1.2 O espaço socializado - ritmo da vida colonense.............................................151
3.2 De dentro e de fora - tempo e espaço no mar de Xaraiés.......................................154
3.2.1 Confinado ou alongado - a (re)produção social colonense.............................157
3.2.2 No ritmo da variação sazoneira......................................................................162
3.2.3 O vai-e-vem da casa no território...................................................................166
3.2.4 Transumância pantaneira - migração e mobilidade.......................................169
3.2.5 A criatividade na construção de seu habitat - um ritual colonense................174
3.2.6 O ambiente doméstico e suas partes...............................................................176
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................188
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................190
ANEXOS................................................................................................................................199
14
INTRODUÇÃO
Este é um estudo etnográfico da produção social do espaço no cotidiano da casa
colonense realizado através de uma abordagem téorico-metodológica em que o espaço é
conceitualizado como o local onde se formula e se transforma o social
1
.
Os colonenses são uma população pantaneira que ocupa um lugar definido desde
1905
2
- data que marca o início da Colônia São Domingos – tempo a que remetem quando
falam de seu passado, quando foi instituído o seu território a partir de uma “doação”
governamental operada pelo então Marechal Cândido Mariano Rondon no contexto do que se
convencionou chamar de “política indigenista do século XX” (OLIVEIRA, 1998a)
3
. Nessa
política, o Estado Nacional cedia parte das terras devolutas para criar “reservas” destinadas a
“acomodar” populações indígenas da região. Com o passar do tempo, a essa população que
são pensados e se pensam originários, juntaram-se outros (alguns não-índios)
4
.
Desde então o território colonense sofreu várias transformações produzidas pelas
dinâmicas internas e também por intervenções externas e fluxos imigratórios. Tais
transformações se rebateram sobre os modos de vida e também sobre a paisagem, marcando,
desta forma, uma sucessão histórica de povos que foram se misturando e ocupando de várias
maneiras um mesmo território
5
. São transformações históricas, engendradas na relação entre
território e população local, deflagrando mudanças em múltiplos níveis de sua existência
ambiental e sociocultural. Essas mudanças irão configurar o pano de fundo desta análise,
1
Bettanini, 1982; Castells, 1987 e 2001a; Certeau, 1994; Choay, 1979; Giddens, 1989; Paul-Levy e Segaud,
1983; dentre outros.
2
A população pesquisada será agrupada aqui na categoria colonense, pois assim se autodenominam. A categoria
abrange os indivíduos que assim se consideram, ao compartilhar os hábitos e valores da cultura local e as suas
regras de convívio social.
3
As expressões e falas dos colonenses estão todas em itálico para diferenciá-los das demais citações.
4
Os primeiros habitantes foram trazidos de outros lugares e representavam várias etnias indígenas, embora,
depoimentos dão conta que havia, entre eles, grupos sociais Bororo e Guaná. A memória colonense alcança a
certeza que descendem de índios, porém o referencial de origem étnica encontra-se muitas vezes obscurecido
pela memória da nacionalidade (ou região de origem) da qual são originários ou descendentes (por exemplo,
boliviano, paraguaio, rio-grandense ou mato-grossense). Decorre disto que a origem étnica das “casas”
colonenses não é um conjunto imediantamente localizável para o pesquisador.
5
A paisagem no contexto deste estudo é vista como complexo onde ocorrem as manifestações, os
acontecimentos e as dinâmicas locais. O território segundo Little (2002) remete à conformação de vínculos
sociais, simbólicos e rituais estabelecidos entre um grupo social e o seu respectivo ambiente biofísico.
15
especialmente para buscar compreender, através da experiência cotidiana dos colonenses. Nas
relações que se estabelecem no ambiente ficam evidenciados elementos da concepção do
tempo e do espaço - a própria casa pantaneira - os seus usos, bem como, os significados a eles
atribuídos.
Para além da dinâmica e da diversidade interior, a unidade dos colonenses é dada não
somente por suas instituições, nem exclusivamente por sua história ou pelas específicas
relações ambientais, mas, sobretudo, por pertencerem à colônia, açambarcadora indissociável
de sua história e geografia.
O principal referencial geofísico colonense é o rio Taquari que, pelo menos uma vez
ao ano, extravasa o seu leito formando um verdadeiro labirinto de águas. O sobe-e-desce do
rio nas estações acomoda dinamicamente a ciclicidade dos mais variados ambientes
pantaneiros e suas gentes
6
. Neste sentido, trabalho sob o pressuposto de que esta sazonalidade
conforma um princípio organizatório fundamental dos usos dos espaços colonenses, podendo,
ainda, evidenciar a dinâmica das relações sociais e aspectos da identidade e da vida social
colonense.
Para se chegar às organizações espaciais colonenses contemporâneas, fez-se
imprescindível o estudo destas no passado, sobretudo quanto à noção de espaço compartilhada
pelos colonenses - junto com a qual, muitas vezes, caminha a noção de tempo - na definição
de sua identidade e de sua alteridade
7
. Sendo o espaço vivido, segundo Bettanini (1982, p.
49), não-passivo, a percepção do espaço socializado coletivamente pelos colonenses
confronta-se-á com e modelará o espaço, e será por este modificada
8
.
O espaço social colonense constitui-se a partir da ocupação de seu território
produzindo um modo de vida próprio.Vale ressaltar que a Colônia São Domingos - apesar de
localizada no interior do Pantanal (vocábulo usado na região para substantivar a porção
6
O termo ambiente neste trabalho tem o sentido de habitado, produzido e dotado de significado por eles
(“nativos”).
7
A noção de tempo e de espaço existem em todos os sistemas sociais; as categorias durkheimianas do
entendimento advém de processos sociais complexos e continuam no cerne das indagações antropológicas. Em
muitos grupos sociais os dois conceitos se fundem como no caso dos Nuer, povo sul-africano estudado por
Evans-Pritchard (1978), que assinalam o tempo por meio de certas atividades, sendo este calibrado por
condições ecológicas. O ano Nuer se divide em dois grandes períodos que correspondem às cheias dos rios e à
sua vazante (similarmente à colônia), mas que são vividos, em aldeias e acampamentos. De modo significativo,
no sistema ritual Nuer o tempo opera como que ligando dois espaços e os conjuntos de atividades que
certamente salientam a apreciação de duas durações diferenciadas, indicando que não se pode falar de tempo
sem falar de espaço (e vice-versa). O espaço e o tempo para o colonense estão inextricavelmente unidos, penso
que a eliminação de uma dimensão transformaria profundamente a outra.
8
Da noção de espaço vivido se ocuparam vários autores, segundo Bettanini (1982): na arquitetura Norberg-
Schulz e Diamandopoulos, na geografia Chevalier, na psicopatologia Minkowski e desde seus próprios
territórios, Merleau-Ponty e Bachelard, entre outros.
16
brasileira de uma das maiores planícies inundáveis do globo - o Pantanal Mato-grossense) - se
diferencia da forma mais comum de ocupação o ambiente, qual seja, a grande fazenda de
gado. Contudo, a colônia não se reproduz como território isolado, sem interação com os
centros urbanos e outras localidades adjacentes. Os colonenses são parte da mão-de-obra
flutuante que ocupa as fazendas pantaneiras e, do mesmo modo, muitas de suas expectativas
se dirigem para as cidades da região.
Tendo em vista essas considerações iniciais, espero que esta pesquisa possa servir para
estimular o estudo acerca da ocupação das áreas inundáveis do Pantanal, ou seja, para
distinguir os modos pelos quais ela foi produzida e se nos apresenta. Outrossim, que possa
chamar a atenção para a necessidade iminente de melhor conhecer os grupos pantaneiros, e de
se apreender tanto a pluralidade de suas arquiteturas quanto à diversidade de expressão
sociocultural que pode co-habitar um mesmo território.
Esta pesquisa se divide em três partes. Primeiramente insiro alguns aspectos gerais da
região onde se dá o universo da pesquisa. Para facilitar a compreensão das formulações
desenvolvidas no decorrer do trabalho, procuro enfocar o contexto histórico e geográfico em
que se colocam as relações sociais colonenses
9
. Busco a estruturação sociológica o como a
colônia se compõe interiormente e se distingue em relação àquilo que a circunda. Com base
no esboço de uma etnografia dos usos do território, busco também uma apreensão da
espacialidade e da temporalidade compartilhada entre eles, como parâmetro balizador de suas
práticas sociais. No segundo capítulo descrevo o espaço do cotidiano doméstico de três sítios
e suas respectivas casas. São espaços representativos de um modo de vida colonense. Por fim,
a partir dos usos dados e significados atribuídos ao território e aos espaços do cotidiano
doméstico, o terceiro capítulo desta etnografia trata do lugar social da casa no liame das
relações sociais colonenses.
Contudo, antes do conhecimento das questões metodológicas, sobre a abordagem e os
instrumentos da Antropologia utilizados para a pesquisa, conjugo, nesta introdução, as
especificidades do trabalho de campo e de minha experiência pessoal de inserção neste
universo do outro. Destaco, sobretudo, a aprendizagem que os aportes do método
antropológico somados à experiência pessoal em planejar e analisar espaços e arquiteturas me
propiciaram ao realizar este estudo.
9
No contexto macro, o da expropriação camponesa desencadeada pelo latifúndio agropecuário. Para uma visão
desta problemática em uma região pantaneira ver Banducci (2005), em outros ver: Esterci (1980) e Martins
(1981, 1982 e 1989). No contexto micro, o trabalho de campo coincidiu com o momento em que o
INCRA(MS) inicia um (re)cadastramento das famílias da Colônia São Domingos - uma nova intervenção -
portanto, da possibilidade eminente de se iniciar um novo processo de Reforma Agrária.
17
A busca do campo
Esta pesquisa é o resultado de uma trajetória que inclui um distanciamento pessoal
desta pesquisadora de anos envolvida em planejamento e gestão de políticas públicas no
âmbito de habitação rural e de espaços de sociabilização para assentamentos da Reforma
Agrária. Por outro lado, o processo interior consistiu em relativizar a visão direcionada pela
Arquitetura e pelo Urbanismo, exigindo o estranhamento do olhar antropológico. Este duplo
movimento se traduz na busca de compreender a própria articulação entre território e cultura,
ou seja, de sua indissociabilidade prática onde o território também é cultura e vice-versa.
A minha passagem nas estruturas do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul
(1999-2002) foi constituída no esforço coletivo de elaboração de políticas públicas
direcionada para a Reforma Agrária, especificamente em modelos de assentamentos rurais
que buscam favorecer a sociabilidade do homem do campo. Como Arquiteta e Urbanista,
fazia intervenções em espaços individuais e coletivos, buscando coaduná-los à ideologia dos
Movimentos Sociais (ligados à luta pela terra) e seus reflexos nesta temática e dimensão
social.
Neste sentido, algumas observações concorreram para a apreensão daquilo que viria a
conformar minhas preocupações e objetos de interesse etnográfico posterior, em especial o
fato de que, no decorrer dos planejamentos dos Assentamentos de Reforma Agrária
(sumarizados nos PDAs - Planos de Desenvolvimento dos Assentamentos), as demandas
quase irrefutáveis no interior da política governamental diziam respeito a dois aspectos que
me pareceram interessantes: (a) um pressuposto do chamado “modelo semicoletivo” com a
presença de agrovilas; (b) a construção de casas iguais para todos. Em contrapartida, a
reivindicação maior dos assentados se concentrava em justamente refutar a idéia de casas
iguais, seguida da premissa básica de não aceitar morar amontoados, relativizando ou
apresentando propostas diversas de agrovilas
10
.
A dúvida na capacidade e viabilidade objetiva (no referido contexto) de conceber e
implementar políticas públicas de habitação que pudessem ser capazes de contemplar
diferenças socioculturais e socioespaciais fez emergir a necessidade de compreensão deste
10
Grosso modo, os conflitos se instalavam quando, mesmo a par das reivindicações, os idealizadores das
políticas públicas tendiam a contemplar somente um único padrão de construção, elaborando plantas-tipo
(quando muito dando opções de reforma) ao mesmo tempo que pressionavam para aumentar as áreas do
coletivo, nas agrovilas, em detrimento dos lotes individuais. Essas tensões terminaram por frustrar as
tentativas de contemplar as diferenças e especificidades de cada grupo. Assim, não se soube se realmente é
possível trabalhar tais diferenças dentro de políticas públicas. Para uma análise antropológica do espaço e das
agrovilas em assentamentos rurais da Reforma Agrária, ver Castells (2001a).
18
universo e das relações que este processo todo constituía, ou seja, das razões do Estado e dos
diferentes significados das demandas sociais em relação à organização socioespacial em que
os grupos de assentados de Reforma Agrária pensavam viver. Nesse sentido, movida pelo
impulso de buscar uma nova forma de diálogo entre o estudo da habitação e da organização
do espaço doméstico e coletivo, concentrei-me primeiramente em encontrar e, depois, em
estudar uma população que vivesse de forma espontânea (onde os espaços não tivessem sido
planejados externamente), e, assim, poder descobrir algum referencial analítico para uma
melhor compreensão desta dimensão da vida humana.
No decorrer dessa busca, ouvi alguns depoimentos sobre um grupo social que estaria
passando por recentes transformações, e que, por conta disto, estaria “somente” agora
realizando maior interação com o aparelho estatal; tratava-se da Colônia São Domingos
11
.
Uma população “esquecida” e onde a pesquisa etnográfica seria inédita, que vinha ao
encontro da minha expectativa
12
. E, para a minha surpresa, esses depoimentos prévios davam
conta de que, contrariando minha experiência nos assentamentos rurais, as casas da Colônia
São Domingos partiriam (sem qualquer planejamento externo) de uma tipologia igualitária:
“lá todas as casas são iguais”, afirmaram o Milton e o Tércio (meus primeiros informantes).
Então, pensei, como compreender os fundamentos desta aparente contradição?
Sobre o trabalho de campo
O trabalho de campo na antropologia implica um vai-e-vem (entre “nós” e “eles”) que,
por sua vez, traz questões e posturas do campo propriamente dito, tanto no ato das atividades
de campo como depois, na ocasião de interpretar as entrevistas e demais materiais
iconográficos.
Durante as entrevistas, a intenção é ouvir o “nativo” segundo suas próprias
categorias, não somente no sentido de representação, isto é, de mimeses, de algo que não é
diretamente ligado ao real, mas também e sobretudo, no sentido de participação concreta, no
11
A Colônia São Domingos me foi apresentada no decorrer desta pesquisa prévia, quando encontrei os meus
primeiros informantes, os quais foram importantes principalmente ao subsidiar com dados cruciais o recorte
do projeto de pesquisa: primeiramente meu esposo, rcio Fehlauer, que estivera anteriormente por dois
períodos de uma semana na Colônia São Domingos, em ofício de extensão rural (a pedido da CPT - Comissão
Pastoral da Terra da Igreja Católica - tendo em vista a emergência de doença que acometia os bananais
colonenses); além dele, o Milton Zanotto (desde Florianópolis) e a Amélia (desde Corumbá) que trabalham há
mais de dez anos junto aos colonenses (através da CPT), favorecendo os primeiros contatos e mediando junto
a eles a autorização para a realização da pesquisa na colônia.
12
Esquecida também pela constatação de que em uma prospecção preliminar de estudos locais não obtive
qualquer pesquisa etnográfica na região da colônia, a exceção de relatos de cronistas locais que não
ultrapassam o caráter de registro folclórico a respeito da “cultura pantaneira”.
19
mesmo campo de interação
13
. O campo onde se dá o encontro dialógico não é algo estável e
separado do antropólogo; pelo contrário, ele traz suas demandas e seus posicionamentos a
todo instante. Em outras palavras, penso que o antropólogo em campo, entendido aqui como
terreno onde se realiza o “confronto etnográfico” (PEIRANO, 1995 e 1997), em sua
performance etnográfica, toma inevitavelmente parte deste terreno que estuda
14
.
Nesta perspectiva, a pesquisa de campo passa a ser vista na essência da "observação
participante" como o lugar de confronto etnográfico consistente de um diálogo recursivo,
contingente e, sobretudo, experiencial.
A apreensão proposta, a partir da noção de “cultura emergente de Ortner (1984),
enfoca a atenção no agente, nos atores que colocam significados nas suas ações e influenciam
o sistema, da mesma maneira que são influenciados por ele, conformando uma perspectiva
cuja experiência é de certo modo transformadora, construída em cena, imprevisível, que se
constitui na interação com os outros atores (ou agentes). Assim, o estudo da produção do
espaço colonense traz, como pressuposto de relevância, o desvendar e a compreensão dos
modos como a visão de mundo colonense se realiza através de suas experiências e práticas
sociais do espaço
15
.
Neste sentido, o confronto etnográfico acontece entre indivíduos que possuem
subjetividades e individualidades, historicidades e, portanto, experiências que geram
perspectivas diferentes. O diálogo entre eles é, e deve ser, de fato, constantemente vivenciado,
pois o que se pretende é a comunicação.
Sob esse aspecto, adotei realizar uma abordagem socioespacial da Colônia São
Domingos, focalizando particularmente o estudo da casa colonense como um fato
arquitetônico que expressa tanto uma conjunção de uma leitura do espaço como forma
organizadora e produtora das práticas desenvolvidas nesse mesmo espaço quanto uma
revelação, na ação criativa e na realização de seus modos pessoais (ou sociais) de inscrição
prática no mundo, as quais são integradas pelos colonenses em seu cotidiano doméstico.
13
Uso o termo nativo para remeter ao “eles” em oposição ao “nós”, referindo ao grupo que o antropólogo se
propõe a estudar.
14
Para uma noção de performance etnográfica ver Tirano (1992); Rosaldo (1989); Stoller (1996).
15
O enfoque na experiência relaciona-se a uma mudança de perspectiva analítica e interpretativa. Nele subjaz,
nos termos de Ortner (1984), “um deslocamento da ênfase em estruturas e sistemas para pessoa e práticas e de
análises estáticas e sincrônicas para análises diacrônicas e processuais”.
20
Para trabalhar a dimensão espacial das práticas sociais cotidianas, em particular no que
diz respeito à produção social do espaço, situo-me dentro das áreas disciplinares consideradas
para esta reflexão: as Ciências Humanas e a Arquitetura e Urbanismo
16
. Segundo Castells
(2001), a matriz epistemológica das Ciências Humanas, como especificidade, tem a noção de
espaço como suporte para análise das relações sociais; na Arquitetura e Urbanismo, por sua
vez, o espaço é meio e fim de seu objeto de estudo, pois nela se tem a possibilidade de ação
sobre o objeto de estudo.
O espaço como objeto de estudo não se constituiu, até pouco tempo, um objeto
específico da pesquisa etnográfica e etnológica, sendo referenciado apenas episodicamente;
costumava ser deixado de lado ou tratado como secundário. De forma geral, a literatura
antropológica, quando faz referência à vivenda e à forma dos assentamentos (implantação), no
lugar do analítico trata-o comumente de forma descritiva. Os trabalhos que se dedicam a
investigar os espaços humanos produzem, geralmente, leituras diretas da organização social
do grupo em uma determinada imagem espacial, que se encerra em si mesma, tornando-se o
espaço apenas mais um “aspecto” da cultura. A partir dessa alusão, Loch (2004) infere que
um estudo do espaço não é frutífero se ele somente reifica a lógica de um sistema cultural.
Contudo, várias exceções se apresentam através de alguns autores que realizam análises e
explicitam a importância das especificidades socioespaciais para evidenciar as organizações
internas e as condições em que se estabeleceram, em especial, a certos campesinatos
17
.
Segundo Marcelin (1999) diversos antropólogos estudaram a partir da definição de
Lévi-Strauss (1987) sobre “sociétes a Maison”, ou seja, pensaram a produtividade teórica da
casa. Como categoria analítica, o conceito de casa (Maison) foi proposto por Lévi-Strauss
16
Nas Ciências Humanas, existem diversas tentativas conceituais de apreender o fenômeno socioespacial nas
suas múltiplas facetas. Existem também diversos cruzamentos teóricos entre áreas fronteiriças que disputam a
propriedade do objeto, entre elas a Arquitetura e Urbanismo. Para Castells (2001), o trabalho de delimitar os
desafios que a dimensão espacial coloca às ciências humanas, diante das práticas sociais, realiza-se a partir do
mapeamento da noção de espaço trabalhada por diversas áreas disciplinares e diferentes abordagens teóricas.
O objetivo da autora é delimitar as ferramentas conceituais para análise das práticas sociais no cotidiano, na
sua dimensão espacial, concebida tanto no plano físico-instrumental como no plano simbólico, permitindo
assim a descoberta de lógicas simbólicas presentes na organização e no uso que as pessoas fazem do próprio
espaço do cotidiano. Este mapeamento foi imprescindível para este estudo, a começar porque abriu um leque
de possibilidades de autores e abordagens ao mesmo tempo que possibilitou um recorte etnográfico inserido
na mesma conjunção interdisciplinar em que me inscrevo.
17
Destaco algumas análises etnográficas que privilegiam o espaço doméstico e que influenciaram de alguma
forma esta pesquisa: Castells (2001), Gregor (1982), Hall (1966); Hugh-Jones e Carsten (1995), Lea (1986),
Loch (2004), Paul-Levy e Segaud (1983), Rapoport (1969).
21
para designar essas unidades que não se deixam definir nem como famílias, nem como clãs
ou linhagens”
18
.
Por outro lado, diversos autores trabalham a temática espacial explorando as conexões
entre Arquitetura e Antropologia, evocando questões centrais para a antropologia do espaço,
mostrando as possibilidades deste novo campo
19
. Entre eles, destaco Gregor (1982) em seu
estudo nas terras baixas da América do Sul, realizando uma etnografia do uso do espaço
Mehinaku, mostrando que o mundo social daquele grupo molda e é moldado pelo plano da
aldeia e pela arquitetura das casas. Outros trabalhos que vêem o espaço de uma perspectiva
sociocultural estão publicados no livro organizado por Novaes (1983), Habitações indígenas.
Nele, diversos grupos indígenas são descritos através do seu modo de habitar, mostrando que
a casa se manifesta em um espaço mais amplo; o espaço analítico que ocupa a casa não se
encerra em sua concretude, as descrições extrapolam a casa como unidade espacial, e muitas
vezes ocupa o espaço territorial da aldeia como expressão dos estilos de vida de cada povo
20
.
Para Bourdieu (1970) a maison kabile é, em si mesma, as relações que ela
circunscreve. Assim o gosto, a aptidão e a tendência à apropriação de uma certa categoria de
bens são "práticas classificadas e classificadoras”, e ainda, “é a fórmula generativa que está no
princípio do estilo de vida" (BOURDIEU, 1977). No estudo sobre a maison do Béarn francês
18
Levi-Strauss introduziu a noção de Casa no sentido de pessoa jurídica para descrever etnologicamente
sociedades onde há tensões entre princípios antagônicos, como, por exemplo, à descendência e a residência,
que são mutuamente exclusivos. As casas Yurok (da América do Norte) para Levi-Strauss são outro exemplo:
“tidas pelos etnólogos como meros edifícios, são verdadeiros sujeitos de direitos e deveres” (1984, p.190). O
autor escreveu sobre a categoria casa em vários outros textos em 1983 e em 1987. Sobre a análise da
categoria casa em Lévi Strauss, pode-se consultar entre outros Hugh Jones e Carsten (1995), Cuisenier (1991)
e Waterson (1992). Para Marcelin (1999), Lévi Strauss tentou construir a noção de casa como um categoria
analítica que daria conta de experiências comparáveis, no âmbito da cultura e da organização social, em
diferentes sociedades; a casa resultaria de parentesco cognático, escapando assim dos paradigmas analíticos
da descendência e da aliança. No entanto, segundo o autor, “Levi Strauss não está interessado na casa como
um processo, menos ainda na sua gênese nas sociedades cognáticas, mas apenas enquanto pessoa moral
detentora de direitos e deveres, que se perpetua pela transmissão de bens simbólico e materiais”, neste caso,
não traduzindo uma unidade sociocultural como propõe Marcelin (1999).
19
A casa expressa como uma idéia de estrutura material e simbólica pode ser lida na casa camponesa de Garcia
Jr. (1983a); como materialização da família encontra-se igualmente evidenciada em Heredia (1979) e Moura
(1978); sobre a casa em sua relação com o trabalho em Palmeira (1977); para estudar a casa e as questões de
gênero, Bourdieu (1970); na sua dimensão cosmológica Woortmann (1981), nas suas dimensões ideológica e
hierárquica ver Da Matta (1997).
20
Estilo de vida é a forma pela qual uma pessoa ou um grupo de pessoas vivenciam o mundo e, em
conseqüência, se comportam e fazem escolhas. O que define os elementos que compõem o conjunto
simbólico a que se chama de estilo de vida é, basicamente, sua distância (dos elementos) em relação às
necessidades básicas dos indivíduos ou grupos (BOURDIEU, 1977). "Necessidades básicas" são aquelas que
determinam minimamente a sobrevivência dos homens: comida, abrigo, etc. No entanto, se comer é uma
necessidade, o modo como se come, a escolha que se faz entre os diferentes tipos de comida ou, ainda, o uso
de talheres e a opção que se faz entre diferentes tipos e materiais dos talheres é indicadora de valores que
constituem estratégias de distinção no meio social. Portanto, as opções de uso podem revelar anseios, práticas,
adesão a valores e estratégias de distinção numa dada sociedade. Do mesmo modo, as escolhas são
significativas. Neste sentido, os elementos que preenchem os critérios de livre escolha, como os estéticos,
artísticos, religiosos e outros, passam a ser significativos para a definição do estilo de vida de um dado grupo.
22
(1962) o autor considera que a casa (e a terra) são “pessoas sociais” ou “pessoas morais” em
momentos específicos de suas histórias. O que importa é a reprodução de cada casa e da
relação entre elas, à reprodução da sociedade. Assim, o estudo da casa e das relações
constitutivas do espaço doméstico pode ser signatário de um estilo de vida colonense
21
.
Perante as fortes relações de proximidade e identidade do colonense com seu espaço
como um todo, acredito que a tipologia igualitária das casas não oculta a evidência da
diversidade com que os colonenses organizam e experienciam o habitar. O estilo de vida se
reflete na casa colonense criando e recriando - a forma peculiar de organização dos espaços
domésticos na Colônia São Domingos, de como eles se orientam na ocupação destes - e
sinalizando a própria maneira como os colonenses se situam no mundo (INGOLD, 1996).
Para realizar uma interpretação espacial (ZEVI, 1984) desta Arquitetura colonense, longe de
vesti-los, portanto, de metáforas ou representações, a atenção volta-se para dentro do mundo
vivido, cada vez mais profundamente.
Ida ao campo
Para se chegar à colônia, da maneira mais usual, é necessário cumprir três ou quatro
etapas de viagem: o primeiro trajeto é por rodovias intermunicipais até a cidade de
Corumbá/MS; a segunda etapa é feita pela água, Pantanal adentro; depois ainda há a etapa da
zinga
22
- que vem a ser a terceira e última para os sítios que se localizam na parte de baixo
(onde o território é mais alagável) - e, ainda, há a quarta etapa: uma caminhada ou cavalgada,
para os sítios que estão na parte de cima (onde o território é, na maior parte, seco).
Nesta empreitada, a primeira etapa (de carro), de aproximadamente 600km (de
Dourados/MS a Corumbá/MS), foi realizada com o veículo abarrotado pelos materiais para
pesquisa, equipamentos, “tralhas” de acampamento e, sobretudo, alimentos (ou “matula”,
como se chamam regionalmente as provisões), pois planejava passar, no mínimo quarenta
dias em campo, eu e meus dois companheiros
23
.
21
Sendo que “pars totalis, cada dimensão do estilo de vida simboliza todas as outras" (BOURDIEU, 1977, p.84)
este orienta e organiza as práticas mais diversas, desde a escolha de uma roupa, uma bebida, até a decoração
da casa, a religião a que se adere ou as opções de lazer. Essas peculiaridades parecem ser fatores de
agrupamento e, ao mesmo tempo, instrumentos organizacionais no desenvolvimento de limites, formas de
comunicação e outros mecanismos necessários à organização de um grupo.
22
“Zinga” é um tipo de navegação muito usado no Pantanal, principalmente nos lugares que alagam. Consiste
em manusear um bambu de uns três metros e preparado com uma forquilha em uma das pontas (a “zinga”,
propriamente dita) empurrando ou dando impulso no fundo ou na beirada do rio para que a prancha, a canoa
ou o barco se movimente. A forma de zingar e a zinga colonense é idêntica à descrita por Oliveira (1996),
usada entre os índios pantaneiros e canoeiros Guató.
23
Meus companheiros na pesquisa de campo foram o Tércio (meu marido) e o Théo (meu filho, que acabara de
completar um ano).
23
Havia acertado antecipadamente com a chefia da Polícia Ambiental de Corumbá o
compromisso de que os “piloteiros” (quem tem licença para dirigir) daquele destacamento nos
levariam de lancha até o “Porto Virabrequinho”, nas cercanias da colônia
24
. Uma vez no
Pantanal propriamente dito, iniciei a segunda etapa do deslocamento (de lancha), ao alvorecer
do segundo dia de viagem. Contudo, um “pequeno” incidente me fez ver que a vida por aqui
não é muito simples: menos de meia hora após a saída, no momento em que a nau se
aproximou das corredeiras do grande rio, a lancha começou a “fazer água”, ou seja, começou
a afundar, literalmente. Foi este o evento que marcou a minha estréia em campo, o meu
primeiro susto (e que susto!)
25
. Nesta segunda etapa, independentemente do tipo da nau,
navega-se pelo rio Paraguai, depois pelo rio Paraguai Mirim e, finalmente, pelo rio Taquari.
São quatro horas de viagem fluvial até encontrar a boca da colônia, como os nativos chamam
a entrada, ou seja, o acesso ao porto mais próximo
26
.
Para a compreensão do Pantanal Mato-grossense deve-se imaginar uma extensa
planície inundável, balizada por uma rede de coordenadas espaço-temporais muito
diversificada
27
. Isto vem a revelar, no decorrer da viagem, que as muitas mudanças na
paisagem e na forma de navegar - existem muitas diferenças de um rio para o outro, fazendo-
se perceber as nuances de transformações ambientais - são inerentes à diversidade da
paisagem pantaneira.
Os elementos da paisagem do Pantanal combinam a ocorrência dos assentamentos
humanos no ambiente com as formas de relevo peculiares e com denominações regionais da
planície pantaneira: as populações locais se concentram em meio a matas ciliares, campos
limpos (sob forma de capões-de-mato ou cordilheiras
28
) e nas margens de vazantes, corixos,
baías, salinas, banhados e rios ou, então, próximas a serras e morros isolados
29
.
24
Esta etapa da viagem foi realizada com recursos da Seplanct/MS (Secretaria de Estado de Planejamento) e do
destacamento da Polícia Ambiental de Corumbá, que fica à beira do rio Paraguai, na divisa com a Bolívia.
25
O atraso de duas horas para preparar, abastecer e carregar uma outra nau foi como um banho de água fria em
minha ansiedade e pretensão de argonauta. Senti-me, porém, posteriormente recompensada, pois a potência e
o conforto da lancha tipo Marajó, que finalmente me levou à colônia, era muito superior em recursos quando
comparada à primeira lancha, que após o episódio, soube mais tarde, foi “aposentada”.
26
Havia a possibilidade também de ir com a chalana que faz a linha normal até a colônia, através da qual os
pantaneiros vêm e vão de Corumbá. No entanto, dado o volume de material, estaria comprometendo parte da
capacidade de carga da embarcação (normalmente comprometida com as compras que fazem na cidade, às
vezes, até excedendo ao oficialmente especificado para carga deste tipo de embarcação). O tempo normal de
viagem deste tipo de embarcação até a Colônia São Domingos é de 26 horas.
27
O Pantanal Mato-grossense não é homogêneo, mas formado por vários pantanais; cada tipo de pantanal está
relacionado às sub-bacias de drenagem e apresenta diferenças na extensão e duração das cheias, na
organização e na distribuição espacial das paisagens, ecossistemas e grupamentos humanos.
28
Cordilheiras- elevações do terreno que separam baías, geralmente areno-argilosas e com um a dois metros de
altura, caracterizadas por uma densa vegetação que as destaca da paisagem, podendo ter formas comumente
alongadas; Capões-de-mato- semelhante às cordilheiras, se distinguem destas pelo fato de apresentar formas
circulares e subcirculares, muitas vezes de menor tamanho.
29
Vazantes- canais temporários ou permanentes, que servem de escoadouros a baías e corixos; Corixos-
pequenos cursos dágua, normalmente permanentes que conectam baías; Baías- termo genérico utilizado para
designar vários tipos de lagoa de diferentes formas e dimensões, podendo ser temporárias e permanentes;
Salinas- baías com grande concentração de sais alcalinos em suas águas.
24
Nos terrenos permanentemente alagados, nos lagos, nas baías e nos corixos encontra-
se espécie flutuante como os aguapés (Eichornia spp), com os diversos matizes de branco,
azul e roxo de suas flores, a erva-de-santa-luzia (Pistia atratiotes) e, ainda, espécies de águas
rasas que enraízam no fundo, além da vitória régia regional (Victoria cruziana). A vegetação,
ora típica de campo cerrado, pode ceder lugar quase sem transição a um campo de pastagem
natural, formado por um tapete de gramíneas, principalmente os capins-mimosos (Paratheria,
Setaria e Reimaria). Essas campinas - como também são chamados estes campos limpos -
encontram-se em partes mais baixas e úmidas, que podem ser alagadas; os campos cerrados,
limitando-se aos pontos mais elevados e mais secos, persistem emersos, formando como que
ilhotas de vegetação. Esses campos são entremeados de áreas de mata e grupos de palmeira
usados nas construções das “tradicionais” casas pantaneiras, sobressaindo-se entre as
palmeiras os carandazais (Copernicia austrails), os buritizais (Mauritia vinifera) e os
acurizais (Attalea phalerata).
Quanto mais se adentra no Pantanal, mais difícil fica de identificar o leito do rio - tão
nítido no início da viagem - e mais se percebem diferentes nichos ecológicos, formados por
condições diversas, nos quais proliferam vários tipos de vegetação e uma fauna especial,
característica a cada um deles. Se no rio Paraguai a navegação é perigosa, pelo volume e
correnteza das águas e pelas enormes embarcações que por ele passam constantemente
(conhecidas como “chatas”), o rio Paraguai Mirim, por ser menos caudaloso que o anterior,
aparenta maior segurança e tranqüilidade para a viagem. A segurança de estar equipada com
GPS (“Global Positioning System”) diminui o risco maior que é o de ficar perdida no meio de
tanta água, situação que acontece com muita freqüência na região (e na confiança de que
ninguém naufraga duas vezes num mesmo dia...)
30
. No rio Taquari, o perigo maior passa a ser
a colisão com os bancos de areia (colidimos três vezes), ocasião em que o tranco na lancha
pode ser destruidor. Por isso, nesta parte do trajeto, a velocidade diminuiu bastante, pois
escolher o caminho errado pode ser “comprometedor”, explicaram os policiais.
Nas proximidades do porto, o desafio é o de conseguir enxergar (no meio de um
cenário tão homogêneo) o esperado “Porto Virabrequinho”. Pelo visto, tarefa mais simples
para quem tem a prática de lidar com a paisagem pantaneira (ou para quem está com o ponto
exato marcado no GPS).
30
GPS (Global Positioning System) é um sistema eletrônico guiado por satélites que confirma a posição exata de
um ponto no território.
25
Por volta das duas da tarde me despedi do conforto do barco a motor e dos policiais
para andar nos caminhos do corixo, guiada pelo Vital (o meu primeiro guia “nativo”), genro
de Dona Margarida (78 anos), que viria a ser, digamos assim, minha primeira anfitriã. O
trecho que vai deste porto até o sítio Nova Vida, onde mora Dona Margarida, consiste na
terceira etapa da viagem, onde a navegação só é possível aliando-se o uso da zinga (nas partes
mais rasas) com o do motor (nos trechos que o permitiam, como nas baías, onde a
profundidade é maior).
A chalana de madeira, muito menor que a lancha anterior, ficou, portanto, entulhada
com as provisões da pesquisa. Pude experimentar que não seria difícil o desejado
“estranhamento” antropológico no desconforto do sol forte e o temor constante de que a
embarcação poderia encalhar a qualquer momento. Se para mim já pareceu complicado
navegar no rio com uma potente lancha a motor, imagine depender da força e do jeito de um
único homem. As estradinhas d´água formam um emaranhado, para mim ininteligível, pois
sinuosas e, em alguns trechos, quase totalmente cobertas pela vegetação. Porém, fora estes
percalços, a viagem ocorreu sem problemas maiores. No final de outras três horas, bastante
cansada e sob ameaça de chuva, finalmente chegamos ao sítio Nova Vida, recinto que
abrigaria a minha primeira estadia na colônia
31
.
O encontro etnográfico
Os três primeiros dias do trabalho de campo representam uma fase de adaptação para
ambas as partes. Para mim seria difícil começar a observar ou fazer perguntas sem uma
preliminar e adequada assimilação da realidade. Para nossos anfitriões, suponho, tenha sido
também uma passagem um tanto constrangedora; era-lhes difícil de agir naturalmente, uma
vez que, ao saírem de casa, inevitavelmente encontravam uma parafernália instalada no
quintal, bem como pessoas estranhas, com atitudes ainda mais estranhas, dizendo ser
pesquisadores.
31
A escolha do sítio Nova Vida para a primeira e principal estadia para o trabalho de campo ocorreu a partir de
conversas e intermediação da Amélia (CPT) quando falara sobre a importância histórica desta casa onde
“todos eram nascidos na colônia” e também da situação geográfica especial do sítio que se incluía entre os de
“menos posse”. Todo o tempo do trabalho de campo (quarenta e cinco dias) fiquei alojada em barracas, sendo
que, houve a necessidade de se escolher uma base principal, digamos assim, para abrigar a barraca maior e as
provisões. A idéia era permanecer a maior parte do tempo no acampamento principal e fazer pequenas e
médias incursões levando barracas menores e provisões (basicamente produtos de higiene pessoal, água,
roupas e comida) para poucos dias, nos sítios que iam sendo escolhidos após um reconhecimento inicial.
26
As informações prévias de que dispunha sobre a colônia e sua gente eram gerais e,
sobretudo, bastante difusas, inclusive quanto ao suposto número de família de moradores,
cujas informações do INCRA e CPT eram contraditórias. (O INCRA afirmava ser 60 e a CPT
75 famílias.) Portanto, buscando um roteiro prévio de entrevistas semi-estruturadas básicas,
planejei buscar dados sob distintos blocos temáticos: sobre a colônia; sobre a sua gente; suas
histórias e modos de vida; sobre a arquitetura das casas e o plano comunitário no espaço
vivido. Para descrever o espaço antropológico, segundo Merleau-Ponty (apud BETTANINI,
1982, p.84), deve-se levar em conta as variedades da experiência. Procurar a experiência
originária do espaço, de acordo com o autor, é a partir da fixação do sujeito no mundo, de um
contexto que determina um campo perceptivo, das modalidades desta fixação. Para Durkheim
(apud BETTANINI, 1982) o espaço não poderia ser o que é, se como o tempo, não fosse
dividido e diferenciado através de atributos e valores. As representações do espaço são,
portanto, de origem social; o espelho da organização social (em termos de uma
fenomenologia) é “um revestimento ideal do mundo vivido”. Enfim, acreditando como os
autores citados que a organização da sociedade se comunica naturalmente ao espaço que
ocupa busquei expressões da representação espacial da organização social colonense no
mesmo espaço e tempo em que se desenvolvem a experiência e práticas tanto da
individualidade da vida de cada um deles como da vida coletiva.
É mister anotar que as observações desta pesquisa não se restringiram ao trabalho de
campo propriamente dito, mas também nas entrevistas com os informantes do INCRA, da
CPT e de outros que já estiveram na colônia em outras ocasiões. Desta maneira, estas
entrevistas preliminares permitiram o recorte e também as questões orientadoras para a
pesquisa. No entanto, o primeiro momento em campo consistiu em elaborar um mapa dos
sítios e das casas junto aos colonenses (Mapa 4 - lista de moradores e casas feita por eles; e
Tabela 2 – em anexo) e a partir desta relação obtidas nestas primeiras conversações,
programar incursões de visita e entrevistas. Por outro lado, no momento de analisar as
informações sistematizadas, utilizo várias outras etnografias para complementar algumas
lacunas deixadas pelo trabalho de campo.
Assim, o roteiro inicial das visitas e das entrevistas foi sendo marcado no próprio
transcorrer do trabalho de campo
32
; algumas vezes aleatoriamente, outras, através de convites,
e outras, ainda, levando em consideração as especificidades do território colonense. Porém, o
32
Quanto às entrevistas, sabe-se que existem vários modelos; e a opção por um desses modelos depende do tipo
de dados que se quer obter e também do tipo de pesquisa que se quer realizar (QUEIROZ, 1988). Sendo que,
no contexto de (re)cadastramento das famílias colonenses pelo INCRA, muitas falas a respeito de
legitimidade e identidade dos colonenses (principalmente em oposição aos seus “outros”, os fazendeiros)
podem parecer ambíguas e devem ser relativizadas. Paradoxalmente esta situação potencializa as falas dos
informantes e os fez revelar coisas que em tempos normais talvez não aparecem.
27
enfoque principal proposto, dadas às especificidades das relações sociais e interações
socioambientais, seria, sobretudo, observar o colóquio doméstico e, assim, realizar um estudo
etnográfico da produção social do espaço no cotidiano da casa colonense.
Depois de familiarizada, e escolhidos os principais informantes, realizei entrevistas
abertas e semi-estruturadas, procurando obter respostas livres e fluidas que permitam maior
profundidade nos dados. Busquei, algumas vezes, estabelecer um diálogo com os colonenses
de mais idade ou, noutras, provocar conversas informais incentivadas por temáticas dirigidas -
todas registradas no gravador e em diários de campo. Tudo isso contribuiu para a revisão das
interpretações e dos insights de campo, assim como para o desenvolvimento de hipóteses,
sugestões de trabalhos futuros e melhor refinamento dos dados de campo. Contudo,
reconhecendo os limites desta pretensão, a idéia seria compreender a dinâmica geral da vida
colonense a partir desses princípios de análise, tendo em vista os processos de manutenção e
transformações socioespaciais.
Para examinar como se vive, como se mora e como se constrói na Colônia São
Domingos parti de uma autorização prévia para visitar os seus moradores (no total visitei
trinta casas), realizando entrevistas (realizei aproximadamente trinta entrevistas das quais
todas foram gravadas, posteriormente transcritas e sistematizadas). Para os estudos da
vivência no espaço colonense, observando aspectos de sua vida doméstica, adotei os
princípios da “observação participante” (MALINOWSKI, 1978), procurando o diálogo e a
interação e buscando uma análise reflexiva dos "mundos emergentes", conforme referencial
de Cardoso de Oliveira (1986)
33
. Ademais, procurei realizar, de acordo com os preceitos de
Castells (2001a), um levantamento arquitetônico e fotográfico das habitações, enfatizando os
pontos recorrentes e as variações, no discurso e no uso das construções e das áreas adjacentes.
Procurei distinguir, como a autora citada, os espaços e as suas arquiteturas, para melhor
entendimento deste universo, de acordo com as categorias nativas, buscando os significados
que essas pessoas dão ao espaço construído - observações comuns à Arquitetura e Urbanismo
da estruturação da malha espacial. Em outras palavras, observei as formas de entrada e saída
dos sítios e das casas, os limites reais e virtuais do território, a disposição das casas no
território, orientação e distâncias entre os equipamentos coletivos e familiares
34
, os usos
principais e secundários das unidades domésticas, o programa de necessidades básicas de cada
33
Os nomes dos entrevistados nesta pesquisa se mantém originais a pedido ou com autorização prévia dos
informantes.
34
Equipamentos - entram nessa categoria varias construções que se relacionam às moradias, mas que servem
principalmente como um apoio às atividades da casa. São elas: galpões, casa de máquinas, batedores, portos,
engenhos, currais, galinheiros, fornos, paióis, chiqueiros, pontes, pinguelas, cercas, porteiras, jiraus, pilões,
mangueiros, cochos, bebedouros, moedores, jaulas, estrutura para secar carnes ao sol e bancadas para
trabalhos diversos.
28
casa, a estética dos locais, o uso de símbolos no espaço cotidiano e os usos externos e internos
diferenciados que compõem o corpus da casa colonense
35
. Também foram analisados os
critérios utilizados na construção das casas, reformas ou acréscimos, e os sentidos atribuídos
aos locais, considerando as diferenças segundo as variáveis sociais (de gênero ou idade) e do
território (sazonalidade).
Como me propus a realizar um exercício que expressasse uma conjunção
metodológica, ou seja, realizar uma interpretação espacial da arquitetura, como nos estudos de
Paul-Levy e Segaud (1983), busquei “tratar o espaço como uma categoria explicativa do
mesmo tamanho que as organizações sociais, os sistemas políticos econômicos, os sistemas de
valores”
36
. Busquei, sobretudo, seguir as recomendações de Malinowski para “evocar o
verdadeiro espírito do nativo” com a "aplicação sistemática e paciente de algumas regras de
bom-senso, assim como de princípios científicos bem conhecidos" (MALINOWSKI,1978,
p.20)
37
. Através da observação participante, procurei realizar uma interpretação dos códigos
sociais colonenses, envolvendo diferentes comportamentos próprios da área restrita ao espaço
doméstico e dos locais tidos como de uso coletivo. Entre outras coisas, buscava obter
parâmetros descritivos referenciais para entender como os colonenses estabelecem suas
interações e como se apropriam dos espaços, tanto individual quanto coletivamente.
Prestar atenção ao cenário das relações sociais - às características físicas e espaciais
que, ao mesmo tempo, refletem e agem sobre o curso das representações - exige sensibilidade
à forma e aos limites das redes de comunicação, ao conteúdo das mensagens, às regras de
privacidade e discrição que controlam os seus movimentos (assim como em GREGOR, 1982).
35
Corpus é o modo que eu encontrei para substantivar o conjunto de elementos que forma a casa colonense. Os
autores que esporadicamente se referem à tradicional casa pantaneira usam-na como mera curiosidade ou
folclore local, quando muito se referindo aos materiais e métodos construtivos (materiais da terra e
autoconstrução), como sendo as especificidades que diferenciam essas casas das demais casas rurais. Não
encontrei escrito algum que fizesse alusão às diferenças no uso dos espaços domésticos da chamada "casa
tradicional pantaneira”. Estas construções em partes separadas aparecem quando muito como sendo a
cozinha ou o banheiro separados da casa. Existe menção à casa pantaneira como “marcas da cultura na
paisagem natural” (ROSSETTO & BRASIL JR., 2002) embora não se constitua em uma etnografia sobre sua
especificidade.
36
Paul-Levy e Segaud (1983) preocupam-se ainda em “elaborar os conceitos, os métodos, as problemáticas
necessárias a uma antropologia que tenha o espaço por objeto” porém, tenho ciência da complexidade teórica
e metodológica da proposta para o escopo desta pesquisa.
37
A metodologia utilizada foi resultado da conjunção, por um lado, de uma experiência pessoal na elaboração de
projetos arquitetônicos e urbanísticos para os Assentamentos Rurais da Reforma Agrária e, por outro, de
minha formação na Antropologia Social.
29
No trabalho de campo, junto à observação participante e às entrevistas, a história
oral, a história de vida e o diário de campo tornaram-se instrumentos metodológicos
imprescindíveis para apreender os contornos de identidade e da memória colonense
38
.
Para buscar os relatos do cotidiano, para incorporar e reproduzir na mesma ação de
contar os aspectos da memória do grupo, eu tinha como princípio buscar uma adequação
possível ao jeito colonense, interferindo minimamente no cotidiano das pessoas. Para tanto,
estava equipada para realizar todas as necessidades básicas da pesquisa e, ao mesmo tempo,
criar uma rotina diária. Porém, independentemente de minha pretensa vontade de discrição,
não havia como tomar banho sem usar o corixo, tampouco poderia lavar a louça, ou a roupa, e
fazer as demais primeiras necessidades humanas, sem me integrar à própria rotina da casa.
Em campo surgem questões epistemológicas, políticas e metodológicas para serem
pensadas e experimentadas; existem maneiras e maneiras de se apreender a realidade. Na
tentativa de realizar uma performance etnográfica, as práticas culturais emergem como
processos dialógicos, polifônicos, freqüentemente multissituados. Nestes, as "culturas" têm
implicações analíticas, de forma diferente das "sociedades", que são essencialmente unidades
empíricas. Assim, a descrição de "culturas" não se resume a técnicas científicas, mas envolve
questões políticas, morais e epistemológicas muito delicadas.
Na prática, isso se traduziu na necessidade de legitimar identidades (levando em conta
agência e intersubjetividades), de compreender o “outro”, de escutar sem necessariamente
partilhar as mesmas opções (relativizando) e para captar a forma de percepção da alteridade.
A tradução das experiências de campo para a realização desta etnografia se mostrou o lugar-
comum desta abordagem - sedimentada sobre uma relação intersubjetiva - que me custou,
entre outras coisas, muitas lágrimas
39
.
O aprofundamento da observação participante, que era o princípio para compreendê-
los, ocorreu nas interações cotidianas de nossa convivência. Contudo, esse processo de
aproximação foi intensificado a partir de alguns incidentes; destaco, em especial o episódio
38
Das técnicas de pesquisa utilizadas, a “história oral” foi adotada no propósito de resgatar vínculos iniciais e,
ao mesmo tempo, estimular a memória dos grupos estudados na construção de sua própria história, a exemplo
de Woortmann (1995); de acordo com Maria Isaura Queiroz (1988, p.20), a “história de vida” pode ser
definida “como o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstituir os
acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu”. Esta técnica ajudou tanto a estabelecer
um diálogo com os interlocutores da pesquisa como a compreender suas expressões sobre a experiência. O
“diário de campo” tornou-se pesquisa, a forma privilegiada de registro e reflexão, tanto durante o campo
quanto depois, na análise dos dados e na redação do texto. Nesta pesquisa, o registro das minhas observações
de campo, das minhas impressões, inquietações e também da minha própria experiência foram um
instrumento fundamental na construção da análise, principalmente no momento de articular e sistematizar o
método e os dados de campo.
39
Esse problema foi identificado por Peirano (1992, p.136) a respeito da dificuldade da “transposição desta
dimensão dialógica para o texto etnográfico”.
30
em que, num final de tarde, o vento soprou mais forte, tornando-se uma “imponderável”
tempestade que nos desalojou, desmontando o acampamento
40
. Naquele momento de
improvisos, senti-me mais próxima deles ao experimentar a solidariedade dos moradores do
sítio Nova Vida; passei a me sentir parte daquilo e, sobretudo, a entender o significado de
muitas coisas. Descortinou-se o que posso chamar de modus vivendi - o ethos colonense - algo
que eu pude experienciar, e que a meus olhos dá unidade à Colônia São Domingos; algo que
ainda posso sentir quando fecho meus olhos e que está, em parte, descrito ao longo desta
dissertação.
Pantaneiros, paiaguenses e colonenses
A Colônia São Domingos é um distrito de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. De
acordo com a classificação de Adamóli (1981), está compreendida no Pantanal de Paiaguás,
que recebe as águas do rio Paraguai e de seus tributários, em especial o rio Taquari
41
. Esta
área caracteriza-se principalmente por configurar um ecossistema que periodicamente sofre
inundações conformando duas estações nitidamente distintas, uma seca (de maio a setembro),
e outra chuvosa (de outubro a abril)
42
. As águas do Taquari (de influência direta na colônia),
quando extravasam, inundam uma extensa área, inclusive o corixo São Domingos, que
empresta o nome à colônia federal em questão
43
. A área total da colônia é de 3.671,22
hectares (INCRA/MS) e os colonenses reconheceram como sendo esta a medida de “uma
légua de largura por três de comprimento” sendo que, na época do trabalho de campo,
localizaram o total de “cinqüenta e sete famílias de moradores colonenses”.
Esta grande área alagável não apresenta uniformidade em sua extensão e pode ser
subdividida de acordo com a variação das inundações, feições geográficas, fauna e flora,
40
Malinowski argumenta que é somente vivendo um bom tempo junto aos nativos que o etnógrafo tem
possibilidade de construir mais que um esqueleto da sociedade estudada. É somente com esta convivência que
ele consegue atingir o que autor chamou de os imponderáveis da vida real, que são aqueles aspectos da vida
cotidiana e do comportamento habitual dos nativos que dão vida, ou, para utilizar a expressão do autor - carne
e osso, à etnografia.
41
A denominação de Região de Paiaguás ou paiaguenses (quando se referem aos seus habitantes) tem origem na
etnia Paiaguá, cujos descendentes atuais são os Kadiwéu que habitam o sul do Pantanal, mas que
historicamente ocuparam a região da colônia.
42
O chamado Pantanal Mato-grossense é uma depressão inundada durante um período do ano, com a área de
136.700 km
2
, na bacia do Alto Rio Paraguai e de seus afluentes. Dois terços da área do Pantanal estão
localizados no Mato Grosso do Sul e, nesta área ocorrem dois fluxos de cheias anuais (normalmente
sucessivos): um provocado por chuvas locais, e outro gerado indiretamente pelas águas que chegam do norte
(Mato Grosso e Bolívia), através da captação de chuvas nas sub-bacias de rios tributários do Rio Paraguai
daquela região. Adamóli (1981) encontrou dez feições diferentes para o Pantanal: 1- Cáceres; 2- Poconé; 3-
Barão de Melgaço; 4- Paiaguás; 5- Nabileque; 6- Aquidauana; 7- Paraguai; 8- Miranda; 9- Nabileque; e 10-
Abobral.
43
Existem, no mesmo Pantanal de Paiaguás, mais duas colônias: a Bracinho e a Amolar. Esta pesquisa, porém,
se limita à Colônia São Domingos.
31
dentre outras características. O “Complexo do Pantanal” é uma mistura heterogênea de
diversas composições vegetais que, ali aparecem em equilíbrio dinâmico. Assim, mesmo no
interior de um “mesmo Pantanal” a paisagem é muito variada, pois esta depende, sobretudo,
da variabilidade climática que pode ser interanual (com duas estações notadamente distintas)
e plurianual (com alternâncias de ciclos de anos muitos chuvosos ou relativamente secos). No
ano em que se realizou esta pesquisa, por exemplo, não houve um período próprio de seca.
Avaliou-se, portanto, que nesta circunstância seria inerte uma segunda ida a campo (planejada
no projeto), especialmente porque houve um grande período de estiagem em plena cheia
(quando se deu o trabalho de campo), possibilitando estudar a organização socioespacial
colonense, em suas duas variações, embora num mesmo período
44
.
Na região pantaneira preponderam grandes fazendas de gado. No entanto, a
diversidade de outras formas de ocupação atuais (colônia de pescadores, pequenos
proprietários, grupos indígenas, áreas de explorações turísticas, entre outros) não chegam a
reverter o baixo índice de povoamento
45
. Isto se deve, segundo Banducci (2005,p. 14), à
“presença do latifúndio que, apoderando-se de uma parcela considerável das terras e
praticando uma pecuária extensiva ainda bastante rudimentar, absorve um número
extremamente reduzido de mão-de-obra”.
Vários sítios arqueológicos (OLIVEIRA, 1996) atestam a antigüidade das populações
pantaneiras e avançam, assim como os estudos de populações ameríndias em florestas
tropicais (BALEÉ, 1988,1993; POSEY, 1987), em apontar a multiplicidade de formações
anteriores e mostrar inúmeras possibilidades de ocupação de um mesmo ambiente.
Num contexto mais amplo, as formulações apresentadas por Susnik (1978) apresentam
um panorama do modelo de ocupação pantaneira, que pressupõe, segundo o autor, em
princípio, uma situação de pressão demográfica, a qual, por sua vez, caracteriza a região como
uma área de grande diversidade étnica e lingüística, de intensos contatos interétnicos e
influências culturais.
Há uma grande complexidade histórica em relação aos fluxos humanos, em geral, e o
dos grupos indígenas historicamente habitantes do Pantanal
46
. Com o advento das sesmarias
(BANDUCCI, 2005), houve um grande fluxo imigratório para o Pantanal Sul-Mato-
Grossense, juntando-se, assim, aos grupos sociais nativos, outras populações que se
44
Sob orientação prévia da Prof. Alicia Castells, no tempo em que eu permaneci em campo procurava sempre
saber as diferenças no território (espaços domésticos e coletivos e seus usos) nos dois períodos (de seca e de
cheia). Eles inclusive estranhavam a razão pela qual eu sempre perguntava o contrário do que eu via: quando
o território estava seco perguntava da cheia e vice-versa.
45
Para uma noção desta (des) proporção ver em anexo a tabela dos imóveis rurais em Corumbá (Tabela 1).
46
A ocupação do Pantanal por habitantes não-índios iniciou por volta do séc. XVI, por espanhóis e portugueses.
Sobre as tentativas de colonização espanhola e sobre a ocupação indígena da região pantaneira, ver Oliveira
(1996).
32
estabeleceram na região. Densamente povoado por povos indígenas, o Pantanal foi palco de
inúmeras batalhas e conflitos históricos - inicialmente entre índios e colonizadores, depois, no
contexto da Guerra do Paraguai (1840-1845) e, ainda, através do processo sistemático do
avanço da agricultura e da pecuária capitalista (OLIVEIRA, 1996). Com o término da guerra,
a vida econômica passou a desenvolver-se nas regiões ribeirinhas e grandes fazendas
47
. Nesta
época, Corumbá (lembrando que a colônia é distrito deste município) experimentou um
grande apogeu, pois seu porto centralizava a chegada de mercadorias importadas e a saída de
carne bovina e demais produtos da região (SILVA, 1998).
O começo do Século XX trouxe ao Estado de Mato Grosso do Sul a Comissão Rondon
(em 1904), que percorreu a região com a principal missão de pacificar os índios (empregando-
os, entre outras coisas, na construção das linhas telegráficas)
48
. Nesse período da história
nacional, o governo republicano visava implementar uma política para resolver os problemas
(cada vez mais notórios) com os índios; pensava-se em novas formas de relação que
abrangesse na totalidade os diferentes grupos indígenas. A questão maior na época era
estabelecer o direito dos índios ao seu território, decidindo-se pelo estatuto de “Reservas
Indígenas”. Naquele momento, a demarcação de algumas áreas possibilitou uma certa
reestruturação da vida comunitária (esfacelada pela guerra), trazendo de volta muitas famílias
indígenas que estavam vivendo nas fazendas.
Tendo Cândido Mariano Rondon como mediador oficial, alguns grupos indígenas
tiveram suas terras demarcadas e auferida a tutela social pelo recém-criado SPI (Sistema de
Proteção ao Índio). Todavia, embora possibilitasse o (re)agrupamento, “a forma de
organização do território, a organização do espaço das moradias, das plantações, das
cerimônias e demais atividades não foi respeitada pelos administradores do SPI”
(BITTENCOURT, 2000, p.97).
Embora na colônia esta “política indigenista” limitou-se à demarcação da “reserva” e
ao “deslocamento” das primeiras famílias (as demais políticas não foram efetuadas), a
Colônia São Domingos formou-se neste ciclo, no início do século XX.
47
Segundo Corrêa (1946) “as fazendas pantaneiras foram compostas com preponderância do caboclo regional,
descendentes indígenas Bororo, Pareci, Guató ou de Chiquitos, índios bolivianos”. Para um exemplo
etnográfico de como as fazendas pantaneiras são ocupadas contemporaneamente, desde que se consolidaram
nas primeiras sesmarias, ver Banducci (2005).
48
Curiosamente, Cândido Mariano da Silva Rondon era descendente de índios Terena, Borôro e Guaná. Desde
1892 chefiou várias comissões para instalar linhas telegráficas no interior do Brasil, identificadas,
genericamente, pelo nome de Comissão de Construção de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso
ao Amazonas, mais conhecida como Comissão Rondon. Ao mesmo tempo em que realizava o trabalho,
Rondon fez levantamentos cartográficos, topográficos, zoológicos, botânicos, etnográficos e lingüísticos da
região percorrida nos trabalhos de construção das linhas telegráficas. A repercussão da obra “indigenista” de
Rondon valeu-lhe o convite feito pelo governo brasileiro para ser o primeiro diretor do Serviço de Proteção
aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPI), criado em 1910.
33
Os primeiros índios que participaram dos trabalhos da comissão foram os Bororo.
Quando a linha telegráfica chegou à margem do rio Taquari, os Bororo não quiseram
mais continuar seu trabalho. Dali para frente, disseram eles, estava o território dos
Guaicuru e dos Terena” (BITTENCOURT, 2000, p.81)
A oralidade colonense revela que foram os índios Guaná (expropriados de suas terras,
no entorno de Corumbá/MS) os primeiros a serem “trazidos”, junto com algumas famílias
Bororo (não se sabe quantos e quais outros povos poderiam também estar representados), para
uma área de terras devolutas, “doadas” por Rondon em 1905. Estima-se que o território de
ocupação Bororo durante pelo menos sete mil anos atingia a Bolívia, a oeste; o centro sul de
Goiás, a leste; as margens do rio Xingu, ao norte; e as margens do rio Miranda, ao sul. Por
outro lado, este é também conhecido como o principal território Guaná (o interflúvio
Miranda-Aquidauana-Taquari). Em vista disso, coloco aqui a estranheza que me causou ouvir
expressões como o “deslocamento indígena” ou que as terras foram “doadas” por outrem.
Apesar de ser conhecida como terra de índios mesmo pelos atuais moradores, a colônia não
se configurou estatutariamente como “reserva ou terra indígena”
49
. Se por um lado escapara
dos desmandos e da posterior tutela dos organizadores do SPI e do Estado nacional, por outro
foi praticamente “esquecida” ou lançada à própria sorte de suas próprias interações (internas e
externas) por quase cem anos.
Apesar dos relatos históricos, há poucos registros de etnografias realizadas na região
da pesquisa
50
. A exceção mais notória está na descrição elaborada por Lévi-Strauss (1986),
quando da sua viagem à região dos Kadiwéu, e outras fontes etnológicas que apresentam um
conjunto de dados com relatos e ilustrações do Pantanal da época, as quais se encontram
49
A Colônia São Domingos foi instituída na origem como território destinado aos povos indígenas desaldeados,
tendo em vista o agravamento provocado pela expropriação das populações nativas como reflexo da Lei das
Terras (1850) cujo princípio era a “regularização” das propriedades rurais (grandes fazendas pecuárias),
legitimadas pelas frentes expansionistas imperiais em detrimento das populações autóctones. No entanto, de
forma um tanto sui generis, mesmo após instituída como “terra de índios”, a São Domingos não foi efetivada
na plenitude da política indigenista governamental, especialmente ao não demandá-la com o rigor do estatuto
de população indígena, isto é, na condição oficial de “objeto administrativo de um Estado-sujeito”
(FOUCAULT, 1979). Em termos gerais, pode-se dizer que as razões desta idiossincrasia devem-se a um
pressuposto de não-necessidade de mediação cultural e política junto a estes povos (fato constituinte da
condição oficial de Reserva Indígena), uma vez que, no caso, as relações políticas com o entorno poderiam,
como de fato foram (dentro de um certo limite), ser reguladas pelo mercado: a colônia como repositório de
mão-de-obra barata disponível proporcionando aos fazendeiros uma alternativa à relação de agregação do
empregado às fazendas, que as condições do Pantanal exigiam, em especial, dadas as distâncias e
especificidades práticas.
50
Embora não realizados na Região do Paiaguás, três estudos contemporâneos se aproximam bastante desta
pesquisa e foram importantes fontes de inspiração e subsídios, ora como contraponto, ora corroborando os
dados e ora demandando cautela. Enfim, as etnografias pantaneiras de Banducci (2005), na Região da
Nhecolândia, de Silva, entre os mimoseanos (1998) e de Oliveira, sobre os Guató (1996) permitiram
inferências importantes para esta análise.
34
inseridas no Programa Arqueológico do MS -Projeto Corumbá (1989)
51
. Apesar de não haver
menção direta sobre a colônia, estas fontes fornecem elementos para a interpretação da
história colonense, realizada a partir de trechos de suas lembranças e da memória coletiva - na
história oral - mas que perpassa por toda ela através do esforço de compreensão do modo de
vida dessas pessoas sejam elas pantaneiras, paiaguenses ou colonenses (formas com que
atualmente se autodenominam, dependendo do contexto em que se insere a sua fala).
Esta pesquisa está circunscrita a um território determinado e há uma população
também definida a qual, de certa forma, interage em um mesmo espaço há pelo menos quatro
gerações. A população pesquisada poderia ser a princípio agrupada na categoria
“pantaneiros”, “paiaguenses” ou “colonenses”, como já foi dito. Estas três categorias são
relacionadas à relação homem-ambiente, sendo que, as duas primeiras são mais abrangentes
aumentando-se o risco de generalizações. Esta é uma das razões pela qual opto pela terceira
categoria, ademais além de uma alusão espacial, os colonenses buscam subsídios para
garantirem o seu território – lócus fundamental para a reprodução de uma sociedade
(AZANHA, 2002) - com base em histórias contadas por mais de cem anos de convivência e
experiência comum.
As primeiras informações sobre a colônia (ou a falta delas) determinaram a realização
de um estudo sobre a história da região, antes do trabalho de campo propriamente dito. No
entanto, na falta de etnografias e de estudos que privilegiam aspectos sócio-culturais da
região, ficou para mim evidente a necessidade de que o sentido “das casas todas iguais” só
poderia ser evidenciado se analisadas no próprio contexto em que são produzidas. Desta
forma abdico neste trabalho da ampla pesquisa histórica inicial (um capítulo inteiro que, de
certa forma está escrito e acessível em registros históricos) para interpretar as histórias
contadas por eles em seus territórios, das pessoas que o vivem-habitam
52
. A fim de contribuir
para o alargamento do discurso (a supremacia etnográfica) dou ênfase à descrição: para
conhecer melhor as representações e práticas que fundamentam o modo de vida colonense, ou
seja, o espaço vivido no território da vida cotidiana.
Para esta descrição parto de algumas pistas iniciais como os primeiros depoimentos
que evidenciam conflitos existentes entre as diferentes formas de ocupação do território.
Trata-se de um grupo heterogêneo em sua formação, proporcionando, de certa forma um
exercício- sob o ponto de vista espacial- para pensar a identidade étnica dos grupos
pantaneiros. Através da oralidade ficou evidenciada algumas passagens históricas em que
51
Deste programa destaco os escritos de Oliveira (1996). Trabalharam a história da ocupação da região, entre
outros cronistas, Cabeza de Vaca (1987) e Castelnau (1949). Cardoso de Oliveira (1976 e 1968) realizou
estudos etnográficos entre os Terena tidos como últimos descendentes da nação Guaná no Brasil.
52
Escreveram sobre a história da ocupação do Pantanal, entre outros: Altelfender (1949), Castelnau (1949),
Cunha (1992), Rondon (1972), Susnik (1978) e Taunay (1923).
35
emergem novas concepções e novos referenciais na vida e nas trajetórias dos colonenses. Em
termos nativos ocorre uma “mudança de sistema”. A idéia para esta etnografia é compreender
o modo de vida colonense (ou em que termos são as casas todas iguais) a partir de dois
princípios de análise: tendo em vista “os processos de manutenção e transformações
socioespaciais” (MENEZES, 2000) operados na mudança do sistema de vida (a produção de
uma coletividade, desvelada pela história oral) e nas diferenças e similitudes nos usos dados e
significados atribuídos ao espaço da casa (ou seja, no cotidiano doméstico de um território
regido pela variação sazoneira).
Mapa 1 - Localização da Colônia São Domingos em Corumbá-MS.
36
CAPÍTULO I
UM OLHAR SOBRE A COLÔNIA E SUAS GENTES
O principal objetivo deste capítulo é descrever e explicar, à medida do possível, o
“conjunto de coisas em que se assenta a vida coletiva a partir da forma que elas assumem ao
estabelecerem-se no solo, o volume e a densidade da população, a maneira como ela se
distribui” (MAUSS, 1971). Neste sentido, por razões meramente analíticas, realizo algumas
distinções que categorizo em termos de eixos fundacionais colonenses, entendidos como
marcados momentos ou passagens históricas em que emergem novas concepções e novos
referenciais na vida e nas trajetórias dos colonenses. A análise desses eixos fundacionais
torna-se, portanto, o ponto de partida para uma interpretação do histórico da colônia a partir
da ocupação de seu território.
O primeiro eixo fundacional diz respeito, em linhas gerais, aos marcos da criação da
Colônia São Domingos e da movimentação dos grupos étnicos que a “colonizaram”, num
período em que a colônia é recordada e descrita como terra de todos
53
. Um segundo eixo
fundamental remete às conseqüências sociais, aos modos de apropriação local, às condições
restritivas de uso do solo através das delimitações de propriedades privadas e à conformação
dos limites individuais do que agora se denomina sítio.
Dois eixos fundacionais, duas realidades da experiência histórica do colonense. Nestas
narrativas do passado, o tempo é contextual; por isso está produzido de várias maneiras.
Como alternativa para estas historicidades diversas, Sahlins (1990) propõe a análise das
estruturas históricas de significância, as quais atuam como operadores de continuidade
54
.
Contudo, são examinadas da mesma forma nos eventos que evocam ruptura e mudança. A
análise da estruturação (GIDDENS, 1989) fornece uma via alternativa à teoria da reprodução
cultural, no sentido de contemplar a dinâmica dos movimentos sócio-culturais e de conferir
agência às sociedades estudadas.
53
As narrativas colonenses remetem a um passado onde a memória coletiva associa e situa suas vidas a uma
experiência fundadora: “no início da colônia” ou “o ínicio de tudo” (forma pela qual os colonenses iniciam
sua fala para referir-se ao passado) foi em 1905, quando “tudo começou”.
54
Para compreender o problema da historicidade, aspectos de mudança e continuidade, Sahlins (1997) estabelece
um modelo analítico em que as estruturas podem ser “prescritivas” ou “performativas”. As primeiras seriam
muito mais resistentes aos eventos, visto sempre como atualizações da estrutura; as segundas, mais receptivas
aos eventos, os quais promoveriam uma verdadeira transformação na estrutura (LOCH, 2004).
37
Na atualidade, os colonenses operam uma síntese entre tradição e inovação, instalam-
se na problemática do inexaurível questionamento entre estabilidade e continuidade dos
sistemas culturais. Neste ponto, volto a atenção para a casa colonense - como elemento e
costura sociológica de algo que tanto permanece como transforma.
A ênfase na agência nativa vem recolocar a idéia de um contexto de transformações e
realizações práticas em face às contingências estruturais (das intervenções) da história vivida.
No passado busco, então, aprender como este grupo social pôde superar (a seu modo) as
contingências históricas e chegar a obter, de certa forma, benefício das condições impostas
para, nos termos de Certeau (2003) criar para si um “espaço de movimentação” (e poder
descobrir sua liberdade)
55
. Já no presente, atenta para as feições da identidade colonense
impressas no espaço vivido, perpasso os diversos aspectos da vida cotidiana, para fazer uma
descrição da conformação atual do território levando em conta este espaço vivido. Busco,
assim, descrever a multiplicidade de formas e configurações socioespaciais, a síntese das
transformações que foram por eles vivenciadas - a própria colônia, que contém em si mesma
essas transformações e é resultado deste “espaço de movimentação”, da criatividade e da
expressão cultural colonense.
1.1 Memória e sobreposição de mundos
O processo de ocupação da colônia está pouco documentado. Os dados encontrados
sobre a origem das propriedades provêm de alguns de seus moradores que mantêm relações
fundiárias por mais de quatro gerações no local. Não havendo registros escritos de sua
história, a tradição oral conforma o referencial histórico para esta experiência etnográfica
56
.
A história da Colônia São Domingos remete a um processo social e político de
territorialização, nos termos de Little (2002)
57
. A conformação da territorialidade colonense
55
Para Certeau (2003, p.19), a definição destes espaços de movimentação diz respeito à própria condição para a
expressão cultural de um povo, uma vez que, em seus próprios termos “cultura pode ser comparada com arte,
condicionada pelos lugares, regras e dados; ela é uma proliferação de invenções em espaços circunscritos”.
56
Como em Azanha (2002) considero que os padrões sócioculturais são dinâmicos e se alteram frente às
vicissitudes da história. O termo tradição, do ponto de vista antropológico, segundo a acepção do autor, não
quer dizer “salvaguarda de relíquias” e muito menos “resgate cultural”.
57
A territorialização traduz, segundo Little (2002, p.3) “o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar,
controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
território ou homeland”. A assunção de uma territorialidade remete à conformação de vínculos sociais,
simbólicos e rituais estabelecidos entre um grupo social e o seu respectivo ambiente biofísico. Estes vínculos
se referem ao pertencimento do grupo ao lugar, ou seja, à sua origem no lugar, sendo eles os primeiros ou não.
38
ocorre, portanto, a partir da ação humana deste grupo social em seu ambiente. Segundo Little
(2002, p.11),
[...] a expressão dessa territorialidade, então, não reside na figura de leis e
títulos, mas se mantém viva nos bastidores da memória coletiva que
incorpora dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua
área, o que dá profundidade e consistência temporal ao território.
A territorialidade humana pode se expressar de diversas formas, de acordo com a
diversidade sociocultural do grupo que o habita. Assim sendo, a relação entre o território e o
grupo particular é o que define a cosmografia do grupo específico
58
. Desta forma, considero a
produção da territorialidade e da identidade colonense um produto histórico de processos
sociais e políticos aos quais os colonenses surgem como grupo social em um contexto
histórico específico, isto é, a partir de quando afirmam e defendem o seu território. Para esta
análise, a história oral da Colônia São Domingos passa a ser narrada na perspectiva desta
territorialidade.
Neste sentido, a história traçada na tradição oral colonense vai definir um primeiro
padrão de territorialidade, o qual categorizo nos termo de um primeiro eixo fundacional da
Colônia São Domingos, remetendo ao início do Século XX, quando algumas famílias
indígenas das etnias Guaná e Bororo constituíram o seu território. A condição de terra
compartilhada e de uso comunal durou, digamos assim, pacificamente, até 1979 - que marca o
segundo eixo fundacional - quando moradores recém chegados decidiram cercar o seu próprio
lote, levando ao fracionamento do território, originando-se, assim, as propriedades
particulares (ver mapa 2 e mapa 3)
59
.
Está claro que não se pode esperar um retorno idílico às bases territoriais ou
sócioculturais de antigamente, contudo que se possa esperar, a rigor, que os colonenses
passem a ocupar todo o seu território (em sentido amplo). Porém, o que se objetiva é que
possam assegurar as bases necessárias para atualização e manutenção do ethos colonense - sua
reprodução social - segundo os usos e as apropriações, os costumes e as tradições locais.
58
A cosmografia é entendida por Little (2002, p.4) como “saberes ambientais, ideologias e identidades -
coletivamente criados e historicamente situados - que um grupo social usa para estabelecer e manter o seu
território”. A cosmografia de um grupo inclui o seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém
com seu território específico, a história de sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao
território e as formas de defesa dele.
59
“Eu tinha acabado de chegar com a família e tinha um conhecido no INCRA, no tempo do coronel Barreto,
um primo. Eu queria por cerca, daí ele mandou um tal de Juca pra medir aqui, em 74, a criação tinha ficado
no”pastoreio”. [...] acho que essa gente [os colonenses] me culpa porque veio a medição, ninguém queria,
era tudo junto, era diferente.” (Sr. Paulino - 83 anos)
39
Mapa 2 - Mapa da Colônia São Domingos em classificações do INCRA/MS. Sem divisões
por sítios (primeiro eixo fundacional - de 1905 a 1979).
40
Mapa 3 - Mapa da Colônia São Domingos em classificações do INCRA/MS. Com divisões
por sítios (segundo eixo fundacional - de 1979 aos dias de hoje).
41
O começo do século XX (1905) marca o início da Colônia São Domingos enquanto
tal. Originalmente a colônia foi ocupada por algumas famílias de índios da etnia Guaná que
foram trazidos de um local conhecido como Rabichão, do entorno da cidade de Corumbá/MS.
Há evidências também da permanência de índios Bororo, alguns oriundos da Bolívia e,
eventualmente, do Paraguai. Os depoimentos indicam que algumas famílias já poderiam estar
morando no lugar. Como característica de sua fundação, o território da Colônia São
Domingos foi demarcado como uma área única, sem divisões internas, aos moldes de uma
“reserva indígena”, expressa nos depoimentos sobre o início desta colônia, como segue:
Dona Margarida (78 anos): ”Meu pai ajudou a medir a colônia, mas não
tirou pra ele separado, mediu tudo. Não dividiu. Mas não sei porque
inventaram de fazer esta colônia, decerto porque morava as bugradas”.
Sr. Nego Paes (96 anos): “Então o Candido Mariano achou interessante isto
aqui para fazer uma colônia para presentear os índios, né? Tinha bastante
índio aqui. Eles moravam aqui. Meu pai contava que a maioria era Guaná,
nossa descendência aqui. Mas quando a terra foi presenteada e publicou o
presente veio índio de toda parte, do Paraguai, boliviano. De fato era bonito
aqui”.
Estes depoimentos confirmam grande presença indígena e tudo indica que na forma
comunal de ocupação da terra está subsumida a própria noção colonenses de território. Em
outras palavras, estas são concepções que se encontram relacionadas e vão sendo construídas
historicamente a partir de suas origens étnicas.
Os relatos informam, ainda, que desde um primeiro momento se manteve a ligação
com a cidade de Corumbá, de onde muitos vieram. E ainda que, no sistema de antigamente
(como eles chamam este período ao comparar com o sistema de agora), a colônia era tida
como local de terra disponível e pública. Deste modo, nas três primeiras décadas de sua
constituição, houve um primeiro fluxo de imigração para a colônia (não há registro de
qualquer resistência indígena a esta ocupação alheia)
60
. Neste sentido, Dona Anastácia (69
anos) afirma que “teve muitos índios aqui, mas foram embora por causa do povo que foi
aumentando...”. A chegada de estranhos - para Dona Anastácia, povo (leia-se não-índio)
poderia ser, a princípio, indícios da razão de um primeiro refluxo da população indígena da
colônia. No entanto, “a par de muitas pessoas saindo, muitas outras vinham chegando”,
afirma Seu Múcio (86 anos).
60
A dispersão familiar, a conjunção étnica de duas (Guaná e Bororo) ou mais etnias e o desdém do Estado na
consolidação do estatuto de colônia (ou de reserva) parecem indicar um caminho explicativo coerente para
esta não-resistência e falta de unidade em defesa da sua territorialidade (porém sem evidências definitivas).
42
A partir dos depoimentos, pode-se averiguar ainda os marcos de um segundo refluxo
de grupos indígenas da colônia, dadas as agruras de uma seca devastadora na década de
quarenta.
Depoimentos revelam que antes “os lotes não eram demarcados” (Seu Múcio - 86
anos); viviam todos num mesmo território - a colônia. As pessoas exploravam as matas para
fazer a roça, em um “sistema” de itinerância, pelo qual se mudavam as casas de tempos em
tempos, percorrendo o território conforme ele mesmo se modificava, devido à variação
sazoneira. A oralidade colonense revela que este período, do sistema de antigamente, foi
caracterizado pela prosperidade e sem excessos climáticos (muita seca ou muita cheia), com
exceção da cheia de 1974
61
.
A rigor, a terra ocupada de forma comunal está diretamente relacionada a três fatores
cultural e ecologicamente importantes para a permanência do grupo na época: a sazonalidade
(período de seca e cheia), a forma de organização social (famílias autônomas), e a mobilidade
espacial. Desses fatores se altera, com a mudança de sistemas, a relação entre sazonalidade e
mobilidade espacial. São transformações que modificam o espaço no qual se movem os
colonenses, e também suas possibilidades de reprodução. Em outras palavras, muda a noção
colonense de território
62
!
Antigamente as famílias ocupavam as margens do corixo na época da seca (embaixo)
e buscavam as partes mais altas (de cima) na época das cheias. Estas mudanças não ocorriam
necessariamente a cada estação, mas eram contextuais: correspondiam aos diferentes usos do
território, dependiam das atividades de cada família e das dinâmicas transformações no
cotidiano. Nem todas as famílias se mudavam e nem sempre ocupavam um mesmo território
(chegando a extrapolar os próprios limites físicos da colônia). À medida que iam levando suas
casas para outros confins, ao lugar da antiga morada chamavam taperas (será mais bem
estudado no segundo capítulo). As taperas marcam, no território atual, as relações sociais das
gerações passadas. À configuração atual do território somam-se estas dinâmicas das redes de
taperas e a mudança de sistema a partir do qual ficam coibidas estas andanças.
61
Uma grande cheia se aplacou sobre o Pantanal de Paiaguás, onde fica a Colônia São Domingos. O Sr. Paulino
(83 anos) e Dona Olga (73 anos) contam que vieram com os doze filhos para a colônia no mesmo ano do
início da grande enchente: “Viemos para a colônia em 74, ali minha morada (aponta para um pasto, a uns cem
metros), veio a primeira enchente, encheu tudo isso aqui, só ficou seco este rincão que agora está a casa
[...].Naquele tempo era muita seca, era um “margozal” nesse corixo, não dava nada, foi quando veio a
enchente, tive que mudar o barraco que tava no meio do corixo.”
62
O território ocupado pelos colonenses são: o recanto, o fundo, o centro, a lagoinha e a parte de cima; e ainda,
13 moradores ocupam uma porção que está fora da área original, à parte de baixo (vide mapa 5).
43
A partir de 1979 ocorre a primeira transformação do território colonense - o segundo
eixo fundacional - mudança que será institucionalizada somente no ano de 1983
63
. Como
conseqüência da demarcação dos lotes individuais também procede ao que defino como
terceiro refluxo populacional da colônia, visto a iniqüidade das divisões, a redução do
território total da colônia e a decorrente falta de terra para a reprodução social dos colonenses.
Quando houve essa demarcação, chegava-se até a colônia de carro, contam os técnicos
do INCRA, e o critério para a divisão dos lotes foi o da própria ocupação, ou seja,
demarcaram-se as áreas dispares, conforme os usos. Desde os que haviam acabado de se
mudar até, inclusive, as áreas que já vinham sendo ocupadas por fazendeiros. Mudava
também o estatuto da terra, de reserva para colônia, e a organização social de terras comunais
para sítios particulares.
A medição e a legalização de suas posses, em 1979, desencadearam todo um processo
que praticamente terminou com o “sistema tradicional” de posse de terra e quase extinguiu o
uso comunal de pastagens, modificando o modo de exercício de territorialidade dos
colonenses
64
. Regularizar e dar o documento oficial, certificando a propriedade privada da
terra, trouxe conflitos que explicitaram diferenças anteriores, tais como ter ou não nascido no
local, de ser ou não descendente de índios, e de ter nascido em “cima” ou em “baixo”, assunto
que será visto mais detalhadamente no segundo capítulo.
Houve uma modificação fundamental nos códigos sociais colonenses, uma vez que,
em função do casamento, o acesso às terras do amplo território colonense como um todo não
poderia mais ser possível. Surgia, então, a categoria confinamento, uma vez que, por ocasião
do casamento de um filho ou de uma filha, inviabilizava-se a ocupação de uma nova área, a
não ser pela compra; dessa forma, o novo casal permanece no lote dos pais, na condição de
confinado, em espaços de vida cada vez mais reduzidos (este assunto será estudado no
terceiro capítulo)
65
.
63
1982 - somente em 23 de novembro desse ano foi registrada em Corumbá/MS “uma área de terras, com a
configuração de um polígono irregular, de 64 lados, com a superfície de 3.671,20 hectares, constituído de
campo, revestido de pastagens naturais, localizada na região do Paiaguás, com a denominação de ‘Colônia
São Domingos‘, neste município” (Cartório do 1
o
oficio - livro2 - fls191). Em 1983 foi concedida aos
posseiros licença de ocupação bem como alguns títulos definitivos de propriedade, segundo a divisão dos
lotes conforme o Relatório de Viagem Nacional - INCRA /MS. Estava sacramentada a primeira divisão de
lotes na Colônia São Domingos, operada pelo INCRA em 1979.
64
Neste texto uso o conceito de tradicional conforme Sahlins (1997), quando observa que as tradições culturais
se mantêm e se atualizam mediante uma dinâmica de constante transformação.
65
Quando um novo casal permanece no lote dos pais, está na condição de confinado, categoria que representa a
forma de reprodução das famílias colonenses no sistema atual.
44
Essa etapa de “medições” criou, entre outras coisas, a distinção entre os que têm mais
posses e os de menos posses. O INCRA da época adotou o extraordinário critério de basear as
medidas de cada sítio pelo uso a que cada família dava ao lote no momento da medição. Não
se levou em conta, porém, outros aspectos, como, por exemplo, a grande mobilidade da
população local e, portanto, o fato de que o uso era variável ao longo do ano, em função das
especificidades de cada família, inclusive quanto à opção de plantios. Outra variável preterida
foi a da maleabilidade e também as relacionadas as transformações ambientais a que estava
sujeito o território pantaneiro
66
. A conseqüência direta foi à conformação de um mapa de
iniqüidade maior do que, segundo relatos, havia anteriormente na colônia. Hoje, há sítios com
oito hectares e outros com cerca de duzentos hectares, isso sem falar nas fazendas.
Alguns relatos sugerem indícios de outras irregularidades neste processo oficial de
demarcação das terras. Porém, o que se pôde averiguar pelos depoimentos é que, naquele
momento, houve pessoas mais bem informadas que foram privilegiadas, pois souberam (não
se sabe como), com antecedência, da vinda dos técnicos do INCRA e, portanto, puderam se
preparar para a expansão de seus territórios particulares. Segundo os mesmos depoimentos, na
ocasião da demarcação das terras, a colônia viu, de uma vez, seu território reduzido,
conquanto as fazendas vizinhas avançaram no território colonense, oficializando a grilagem.
Grande parte dos colonenses, porém, nunca havia tido a experiência de viver de uma
forma “não-tradicional” de territorialidade, cada qual em seu lote. Hoje, paradoxalmente, a
posse oficial da terra garantida por escritura pública é vista por todos como benefício em
relação aos riscos de grilagem de terra, prática anteriormente atribuída aos fazendeiros da
região.
Para apreender a totalidade do contexto atual, há que se ressaltar esta intervenção do
INCRA, dada a radicalidade de suas implicações no modo de vida nativo que, até então
ocupava livremente um mesmo território. Nesse sentido, categorizei este momento como
sendo seu segundo eixo fundacional (em termos da modificação de seus padrões de ocupação
do espaço territorial). A partir de então, o processo de cercamento adquire outros significados,
que não apenas a modificação de um modo de produção comunal, mas a própria modificação
da compreensão das categorias tempo e espaço, esta última nas diferentes formas de usos e
apropriações.
66
Por exemplo, o crescente assoreamento e alagamento de áreas sob influência do rio Taquari, a mudança de
curso do mesmo rio e a subseqüente impossibilidade de acessar a cidade e demais localidades por acessos de
terra.
45
Salienta-se o fato de que o avanço das fazendas nos territórios da colônia se realiza,
sobretudo, através do processo de cercamento. Segundo Moura (1984, p.83), o processo de
cerceamento dos campos ou de
[...] expulsão do camponês (seja ele colono, morador ou agregado) do interior
de grandes propriedades (seja elas fazendas de gado ou lavouras) funda-se na
derrubada de uma cerca que separa pasto ou roça, ou na anulação dos limites
entre chão de terra e canavial.
Ainda no entender de Moura (1984, p.82),
[...] a idéia de falar em cercamento e, mesmo, a tentativa de fazer uma
antropologia desta questão no Brasil é, antes, produto da constatação de que,
se o tema está documentado na produção recente de nossas ciências sociais,
pelo menos, no que tange à invasão e à expulsão, ainda está em elaboração o
esforço empírico e teórico que reúna estes três processos sociais básicos que
envolvem o camponês e a terra - invasão, expulsão e sucessão - numa
perspectiva unificadora.
No entanto, é importante frisar que a Colônia São Domingos não se constitui na
relação com as fazendas; porém, em parte, é através desta relação que, no sistema atual, ela se
produz e se reproduz socialmente. Os meandros muito particulares desta relação encontram-se
evidenciados principalmente no final da década de oitenta, quando da nova legislação
trabalhista
67
, e na época da caça ao jacaré
68
, as quais tiveram sua parcela para a atual
formação da colônia. Este tempo é lembrado como de abundância, pois a relação com a gente
de fora que se instalara na colônia trazia muitos lucros e, apesar de poucos colonenses
estarem envolvidos nesta atividade, foi através da ilegalidade que muitos conseguiram “até
comprar casa na cidade, melhorando muito de vida” (Dona Margarida -78 anos)
69
.
67
Esta mudança contribuiu para a evasão das fazendas, levando os empregadores rurais a evitar vínculos
permanentes com os empregados, a fim de evitar o atendimento das exigências legais para o caso. Vários dos
atuais moradores, que neste movimento perderam seus empregos e moradia, vieram a se instalar na colônia,
trazidos pela notícia de terras livres e abundantes, passíveis de serem ocupadas. Para uma visão sobre as
mudanças nas relações trabalhistas e suas conseqüências nas fazendas pantaneiras ver Banducci (2005).
68
Os colonenses contam que no tempo da caça ao jacaré foram construídos vários campos de pouso de aviação
pela colônia afora e que era grande o movimento de aviões pousando e decolando rumo ao Paraguai. Homens
estranhos ou “de fora” também apareciam, muitas vezes querendo comprar víveres. Dona Margarida (78 anos)
dá seu relato: “Era os fazendeiros que comprava [couro] e levava pro Paraguai. Já tinha trato com os piloto.
Antes iam longe pra caça mesmo, carregavam mantimentos. Não paravam muito porque o campo era alheio.
Caçavam só à noite. De dia ficavam tirando a pele do bicho. Faziam escondido, era contrabando. Ninguém
dava alarme. Passavam lá no retiro precisavam alguma coisa, a gente às vezes nem conhecia. A gente vendia
um arroz, uma fruta e eles compravam. Meus filhos não caçavam, não estavam mais comigo, né? Às vezes, à
noite escutava tiro, mas não dava medo por que o jacaré ficava na vazante do rio, não no brejo”.
69
Nota-se que, para os pantaneiros, a disputa pelo espaço com outros animais, entre eles o jacaré, faz parte da
rotina diária para quem depende da criação ou da plantação para sobreviver. Ver Banducci (2005).
46
Em meados da década de noventa, combinando excessivas chuvas de verão na
cabeceira, aliadas ao fenômeno de assoreamento do rio Taquari (reflexo das alterações
provocadas pela intensificação agrícola na sua bacia a montante), este curso d´água teve seu
curso deslocado e estendido até a região da Colônia São Domingos, chegando ao rio Paraguai-
Mirim. Após esta grande cheia de 1995, foi fundada a Associação dos Moradores da Colônia
São Domingos - em um processo de discussão com a Comissão Pastoral da Terra que
começou a atuar desde o começo da década na colônia - para dar conta das demandas
organizacionais e para que os colonenses adquirissem capacidade de gestão coletiva, como
uma credencial ao recebimento de recursos provenientes da igreja e de ONGs européias de
ajuda humanitária
70
.
No ano desta pesquisa (2004), os técnicos do INCRA retornaram à colônia e, em seu
“Relatório de Viagem Nacional”, José Braga Neto e Teodoro Basto Neto, colocaram o
objetivo deste percorrido como sendo o de “identificar o número de famílias que estão
ocupando a Colônia São Domingos e são detentores de licença de ocupação ou título
definitivo, bem como a área que estão explorando”. Em posse do histórico oficial sobre a
colônia, que se resume em três linhas - os técnicos realizaram as visitas e medições das áreas
ocupadas
71
. No relatório concluíram que ainda havia os 46 lotes nos quais “foram constatados
a presença de 43 famílias que residem dentro [...] foi concedido a licença de ocupação” e
“constatamos a posse de 13 famílias” ocupando uma área adjacente. Quando da visita na
propriedade, continuam os técnicos, o fazendeiro “informou que está disposto a destinar e
escriturar 12,00 hectares para cada família que estão com a posse dentro de seu imóvel, porém
os ocupantes querem uma área de 40,00 hectares”. E ainda:
[...] cabe destacar as enormes dificuldades em que vivem as famílias
ocupantes da Colônia São Domingos, não possuem meio de transporte, não
possuem estradas, as escolas tem um ensino precário, não tem assistência
médica e odontológica, a produção da Colônia não tem escoamento e o único
meio de transporte é através de barco ou lancha.
Ao fazer uma leitura do relatório do INCRA identifiquei que, dos 46 lotes, 12 são
fazendas, das quais cinco se encontram totalmente abandonadas e outras cinco se encontram
70
Inicialmente, neste esforço, foram viabilizados um triturador e recursos para a construção de uma chalana de
madeira que serviria para o translado de pessoas e mercadorias da colônia para Corumbá.
71
Histórico de ocupação. “No ano de 1979, o INCRA identificou a posse das famílias que ocupava a colônia São
Domingos e fez medição e demarcação de 46 lotes e em 1983 concedeu aos posseiros LICENÇA DE
OCUPAÇÃO (em negrito) e alguns títulos definitivos de propriedade”. Eu acrescentaria nesta sinopse que no
último relatório (abril de 2005) inscreveram-se 103 famílias como candidatos colonenses ao processo
almejado e iniciado atualmente pelo INCRA: de concluir na área um processo de reforma agrária.
47
ocupadas apenas por empregados, apenas duas estão sendo utilizadas atualmente por
fazendeiros. Estes 12 lotes ocupados pelas fazendas vão de 18,07 hectares a 1.038,75
hectares, perfazendo um total de 2.112,10 hectares. Pelo relatório do INCRA, restariam 34
lotes ocupados por colonenses que vão de 7,66 hectares a 199,76 hectares, ocupando uma área
total de 1.559,12 hectares. Destes apenas dois estão abandonados, portanto, pelo relatório, 32
famílias de colonenses residindo na área, mais duas que estão com licença de ocupação, mas
fora da área original, e mais 13 posseiros ocupam 68,50 hectares, totalizando 47 famílias (para
o INCRA). Lembrando que a área total da colônia é de 3.671,22 hectares
72
.
Se juntarmos a história do INCRA à história oral, teremos um processo segundo o qual
as famílias passam de índios a posseiros num primeiro momento, e de posseiros a sitiantes ou
colonenses em um segundo, havendo até hoje a distinção de posseiros para as famílias que
ocupam o baixo. Eles reconhecem como sendo moradores atuais da colônia 57 casas. Sendo
que, estas diferenças no número de moradores pode ser interpretada como sendo em parte
conseqüência do atual processo de reforma agrária: quando uma área está prestes a se tornar
assentamento (e o INCRA já deu início a este processo na área da Colônia São Domingos) há
um natural reagrupamento das pessoas que se consideram herdeiros, legítimos ou que tem
esperança de conseguir um pedaço de terra. Por outro lado, estas discrepâncias podem ser
devido às próprias diferenças na concepção de família ou do que se considera como morador
(neste caso o mal-entendido passa a ser entre o INCRA e os colonenses).
Uma vez evidenciada a heterogeneidade que forma internamente a Colônia São
Domingos, principalmente devido às origens étnicas da população local, fica claro a
importância da realização de um estudo de parentesco
73
. Na ausência deste, adoto para este
estudo o termo família elementar quando me refiro diretamente aos pais e seus filhos solteiros
em diferenciação com a família extensa que significa ter no grupo outro(s) morador(es) ou
afim(ns), como por exemplo, genro(s), nora(s), avó(s), neto(s) ou em alguns casos menos
freqüentes, sobrinho(s) e afilhado(s). Assim como para Woortmann & Woortmann (1997,
p.20), o sítio, neste contexto, “designa uma parcela de terra da qual se é dono pelo trabalho
exercido e onde se localiza a casa, lugar da família”. Contudo, diferentemente dos sitiantes
nordestinos estudados pela autora, para o colonense um sítio pode significar um conjunto de
72
Para os colonenses esta área total é dada em léguas, sendo que o total é de três léguas de comprimento por uma
de largura.
73
O estudo de parentesco tem relação direta com as relações de propriedade, sendo possível estudar como as
relações matrimoniais e patrimoniais colonenses se transformam no tempo, ou seja, na mudança de sistemas.
48
casas, sendo assim, o sítio pode ser o lugar das famílias. Em termos práticos as casas podem
não corresponder necessariamente ao número de sítios.
Na mudança de sistemas ou eixos fundacionais, a situação de pressão demográfica e
exigüidade territorial, insere as famílias numa teia de reciprocidade, assim como, ocorrem
mudança nas possibilidades de reprodução social colonense, surgindo à categoria confinado.
Isto quer dizer, entre outras coisas, que a casa principal e a do confinado são consideradas
separadamente no cômputo dos moradores. Deste modo, mesmo que as áreas estejam de certa
forma “abandonadas”, são respeitadas como de direito, pois mesmo os donos estando
ausentes, estes continuam percebidos como colonenses.
Os não nascidos na colônia - podem ser moradores antigos ou recém-chegados - são
vistos normalmente com simpatia, mas diferem entre si em suas interações, ou seja, no grau
de inserção e na partilha do sentimento de pertencimento à localidade. Isto quer dizer que
mesmo os recém-chegados podem vir a ser considerados colonenses. O mais comum é que a
pessoa que vem de fora se identifique como tal, e não o contrário; ou seja, ela não é excluída
pelos que já são de dentro, ou nascidos originalmente na colônia. Os fazendeiros,
diferentemente, são tratados como gente de fora que não faz parte da colônia.
Não se pode esquecer que ainda há os que emigraram e são considerados como
colonenses da cidade ou que estão morando em fazendas da região. Não é necessário estar
morando na colônia para ser considerado colonense, mas compartilhar de um mesmo ethos, de
um elo que os une. Assim, pode-se dizer que há uma relação de continuidade entre os
colonenses “da colônia” e os que moram na cidade. Da mesma maneira, nem todos que
moram no território da colônia são considerados colonenses, como se verá mais adiante.
A Colônia São Domingos resulta, pois, de uma população de certa forma inserida em
uma colônia federal compartilhando comunalmente terras devolutas
74
- o que constituiu seu
primeiro eixo fundacional; num segundo momento houve o que chamamos de segundo eixo
fundacional - iniciou com cercas em volta das roças e casas, e finalmente, culminou na
exclusão progressiva de uma parcela da população
75
.
Os dados contidos na documentação escrita, somados às informações obtidas através
de relatos orais, possibilitam aduzir que o colonense passou a se afirmar como tal quando
necessitou defender o seu território cada vez mais pressionado pelos fazendeiros, mas
74
Desde a Lei de Terras (1850) que se proíbe no Brasil o acesso gratuito a terras devolutas, embora lembrando
que desde os primeiros tempos da Colônia São Domingos (de 1905 a 1979) ocupou-se um mesmo território
sem qualquer impedimento legal.
75
Foram indicados vários nomes de famílias colonenses tradicionais que se encontram hoje morando na cidade,
e que necessitam ser mapeadas numa pesquisa futura. Alguns estão vivendo “até no meio dos sem-teto”.
49
principalmente quando foram impedidos, impossibilitados pela demarcação do INCRA, de
ocupar livremente o seu território, ficando impedidos de ir livremente para cima (lugares mais
secos) na época da cheia ou ocupar para baixo (onde é mais alagável) em épocas de seca
como faziam no sistema de antigamente. Uma vez que todos os lotes foram sendo
demarcados, as famílias condicionaram seus modos de sustento à exploração ininterrupta de
um mesmo pedaço de chão e tiveram de encontrar outros meios de conviver com a
sazonalidade do território pantaneiro.
O último relatório do INCRA (abril/2005), manifesta a existência de um plano técnico
que prevê nova intervenção oficial na Colônia São Domingos e o remanejo das áreas
definindo um novo formato à colônia através do “assentamento”, em um processo de reforma
agrária, das famílias de posseiros que estão na área de baixo, em troca de regularizar as áreas
de algumas fazendas em cima (gerando excedentes fundiários). No entanto, há, neste
momento, 103 candidatos que deverão ser selecionados e assentados na Colônia São
Domingos.
Diante deste quadro, penso que medidas externas que incidam sobre o elemento que os
une, identifica e dá significado ao ser colonense - o espaço de seu território - podem ser
desastrosas se tenderem a ser homogêneas e indiferenciadas. No entanto, em vias de uma
nova intervenção do território, não quero me deter a conjecturas sobre suas eventuais
implicações aos colonenses, mas principalmente colocar a premissa para um entendimento
desse processo que passe pelo conhecimento dos modos históricos de transformação e
apropriações socioespaciais colonenses.
Desde que o “plano da comunidade não somente diz algo sobre a maneira pela qual
vive um povo, mas também exerce influência sobre a maneira como ele vive” (GREGOR,
1982, p.60) apresento, a seguir, o jeito de viver colonense, para que se possa formar um
quadro do cotidiano na própria produção de seu espaço e estilo de vida atual.
1.2 O atual sistema colonense
As terras originalmente da Colônia São Domingos, grosso modo, estão divididas, na
atualidade, entre fazendeiros, sitiantes e posseiros. De acordo com os que atualmente moram
na colônia, os quais se identificam como colonenses, somente os primeiros não são
considerados como membros desse mesmo grupo social (ver mapa 4). Segundo a classificação
do INCRA, existem os que têm o título definitivo (sitiantes e fazendeiros), os que possuem
uma licença de ocupação (anual) e posseiros (Ver Tabela 2 - anexo)
76
.
76
Está em curso no INCRA-MS um plano de reforma agrária, prevendo o remanejo das áreas que sugere uma
nova distribuição espacial à colônia, “assentando” as famílias de posseiros que estão embaixo em troca de
regularizar as áreas de algumas fazendas em cima.
50
Mapa 4 - Mapa atual da Colônia São Domingos em classificações nativas do território.
51
O território colonense espelha a interação de fatores sociais e ambientais bastante
particulares. Em uma primeira instância divide-se na parte de baixo, ou mais alagada, e na
parte de cima, ou mais seca (classificação nativa), ambas ocupadas por sítios, havendo,
todavia, a diferença de que os ocupantes dos primeiros sítios ainda são posseiros e os dos
segundos têm título definitivo ou licença de ocupação (classificação do INCRA). Em uma
divisão mais ampla, o território está formado por diferentes agrupamentos (de cima, do
centro, de baixo, da lagoinha, dos fundos e do recanto) sem um núcleo de casas exclusivo,
mas com especificidades e hierarquias próprias como se verá no segundo capítulo.
O sistema produtivo e construtivo colonense baseia-se em métodos e técnicas
conhecidas, com poucas incorporações modernas (descritas ao longo do trabalho). Se a terra
ocupada de forma comunal está diretamente relacionada à sazonalidade, à forma de
organização social e à mobilidade espacial colonense (o sistema de antigamente ou primeiro
eixo fundacional), a ocupação atual (o sistema de agora ou segundo eixo fundacional, por
sítios, de certa forma, independentes entre si) mostra, em cada um desses fatores, as formas
com que a população local respondeu às transformações ecológicas e sociais.
Já mencionei que a variação sazoneira está diretamente ligada à mobilidade dos grupos
domésticos, desde que, no sistema de antigamente, eles tinham como hábito ocupar
comunitariamente as margens do rio durante a seca e as áreas protegidas da inundação durante
a cheia. Essa mudança dependia de vários fatores e, quando a faziam, levavam consigo suas
casas (ou parte delas) deixando para trás o lugar da antiga residência que passava a ser
conhecida como tapera. Isto não quer dizer que era apenas devido à sazonalidade que
aconteciam as mudanças e tampouco que sempre se mudavam de lugar todas as casas de uma
mesma família. Normalmente não eram grandes as distâncias de uma casa a outra, podendo
até ser visualizadas; outras vezes essas mudanças e andanças extrapolavam o próprio território
colonense, uma vez que as terras devolutas podiam ser requeridas (e ocupadas), pois
abundavam na região.
Atualmente a organização socioespacial por sítios abriga famílias elementares ou
extensas, que podem, num primeiro momento, ocupar uma única casa ou estar confinadas à
casa dos pais. Desta maneira, um sítio pode ter várias casas, que se relacionam e têm
hierarquias, entre si e com as demais, mas que são relativamente autônomas, ou seja, não há
uma única autoridade reconhecida por todos (isso não significa que não haja status
diferenciado). Em relação à sazonalidade, as famílias não se mudam mais como antigamente,
embora busquem da melhor maneira, cada qual em seu sítio, ocupar os espaços levando em
52
consideração as modificações no território produzidas pelos períodos de seca e de cheia.
Ainda hoje, quando saem de suas casas, dizem que vão para baixo ou para cima como o
faziam no sistema de antigamente.
O estudo de Mauss (1971) sobre a morfologia social esquimó aproxima-se, em vários
pontos, com os colonenses, e se pode interpretar através dele como a vida coletiva é afetada
pela forma material que os agrupamentos humanos tomam. Neste caso, para entender quais
são as reais transformações que a mudança de sistemas opera nos modos de vida colonense.
No sistema de antigamente, grande parte das famílias que ocupavam as margens do
corixo, na seca (parte de baixo) - para Mauss (1971) é a “dispersão do verão” - mudavam-se
para locais menos alagáveis (em cima) - é a “concentração de inverno”. Como para Mauss, na
colônia em estudo, a seca marca o território ampliado, assim como quando as casas esquimó
são construídas distantes umas das outras; o segundo momento, o da cheia, assinala a retração
do território, marcando a imobilidade do grupo e sua maior densidade populacional.
Na atual configuração colonense, a sazonalidade ainda pode ser observada na
ampliação (dispersão) e retração (concentração) do território, ligando-se diretamente à
sociabilidade do grupo como se verá oportunamente. A variação sazoneira ainda é uma das
especificidades, dentre outras, que dita o ritmo das atividades diárias e condiciona o uso do
tempo e do espaço da vida doméstica e coletiva colonense.
Para Mauss (1971, p.300), a razão para o ritmo sazonal é uma necessidade natural que
uma determinada sociedade possui, de mudar constantemente seu modo de vida. Para o autor,
o que importa é a noção de verão e a noção de inverno; pode-se dizer, portanto, que essas
noções “são dois pólos em torno dos quais gravita o sistema de idéias dos esquimó”. Essas
mudanças estão, portanto, condicionadas a um ser e fazer social. Mauss (1971, p. 241)
conclui o argumento, dizendo:
[...] para que os homens se aglomerem, em vez de viverem dispersos, não basta que
o clima ou a configuração do solo os convide; é também preciso que sua
organização moral, jurídica e religiosa permita a sua vida em aglomerado.
O ritmo atual da vida colonense também está condicionado a um território que ora se
expande, ora se retrai. Há, entretanto, uma diferença: agora tudo isso se dá num território fixo,
eles não se mudam mais de lugar com as secas e cheias como faziam antigamente, mas
aprendem a viver em um ambiente que tem variação sazonal. A morfologia social colonense e
os diferentes modos de atividade coletiva (diferentemente da dupla morfologia esquimó)
53
acompanham as transformações no território. Para alcançar a organização espacial colonense,
busco a seguir apreender esta territorialidade colonense nas próprias noções de seca e de
cheia, compartilhadas entre eles, e de como eles se relacionam com o seu tempo e com o seu
espaço de vida.
O sentimento de pertencimento e identidade colonense é compartilhado por todos e
aproxima-os. No sistema de trocas e na reciprocidade cotidiana não é necessário estar
morando na colônia, mas basta ser considerado (e se considerar) filho do lugar (para os
originários), ou simplesmente colonense. Por outro lado, a alteridade colonense passa a existir
e a se refletir na própria classificação do território quando estes não consideram como tais os
fazendeiros que não são, em seus termos, moradores colonenses, apesar de ocuparem
reconhecidamente o território colonense. O território lhes pertence, mas os moradores não.
Um caso reverso acontece com os moradores de baixo que são considerados colonenses, ainda
que ocupem um território que não é tido como sendo da colônia.
No mapa 4, isso pode ser visto quando, na classificação nativa do território, a relação
dos moradores começa com os de baixo (mesmo que estejam fora do território original da
colônia) e termina na parte de cima, que fica exatamente no meio do mapa oficial da colônia
(apresentado pelo INCRA). Isso quer dizer que, longitudinalmente continuam as terras, mas
os moradores não (pois são fazendeiros).
Para que seja possível visualizar as soluções dadas pelos colonenses ao espaço
habitado, experimento, a seguir, um esboço de uma etnografia dos usos de seu território. É
mister considerar que esta visão só pode se realizar (e só faz sentido para esta análise) a partir
do estudo do cotidiano doméstico, das casas, da relação entre casas e de tudo o que ela
representa nas práticas sociais colonense no contexto atual.
1.2.1 Os caminhos de dentro
“O caminho era aqui (corixo). A estrada (rio) era mais pra lá” (Dona Margarida)
A constatação acima refere à importância e, ao mesmo tempo, à transitoriedade dos
caminhos colonenses. Isto ocorre porque os caminhos podem ser por água ou por terra e estão
ambos sujeitos à variação do rio. O corixo passa por dentro da colônia, interligando
internamente pela água os sítios; por isso é considerado caminho, pois faz a conexão com os
demais caminhos pelo chão. Ambos são sempre picadas abertas na mata, nos brejos, nas
baías, no largo e nas campinas, podendo “cortar” pastos e roças, sendo alguns tornados
54
maiores (mais amplos) e mais bem conservados, devido às necessidades de uso mais intenso:
por exemplo, o caminho para a escola ou para a igreja e os caminhos para os portos, bem
como aqueles caminhos usuais das carroças que vão e vem em direção às fazendas da região.
Os caminhos por terra ou de chão cruzam várias vezes o corixo, veios d’água e brejos.
Para transpor estes “obstáculos” são arranjadas pinguelas, não mais que troncos de madeira
posicionados como ponte com um corrimão de segurança ou com uma vara comprida que se
segura contra o chão para dar apoio, ou então são posicionadas pedras à distância de um passo
(exigindo um equilíbrio difícil para “forasteiros”). Os caminhos do corixo (foto 1) estão
desenhados de acordo com a profundidade e as voltas do rio (são braços dele). Essas picadas
contornam ou cortam as matas, os brejos, o corixo (nas partes mais fundas) e as grandes
lombadas de terra (chamadas de cordilheiras), mas principalmente interligam uma rede de
diversos lugares, essencialmente as casas e as roças.
Foto 1 - Os caminhos do corixo.
Foto 2 - Os caminhos de chão.
Não há carros, tampouco motos ou bicicletas na colônia. Tudo se faz a pé, a cavalo,
sobre o carro-de-boi ou de chalana e canoa
77
.
Durante o trabalho de campo, andei quase todos os dias por horas, exceto quando
chovia. Fazer paradas de descanso no trajeto era, por assim dizer, meio comprometedor, uma
77
As categorias de naus, usadas pelos colonenses, são a chalana, a canoa, a lancha, a voadeira, o barco e o
navio. A primeira embarcação construída pelos índios foi o batelão, espécie de jangada que levava oito dias
de zinga para chegar em Corumbá.
55
vez que ”ninguém aqui é bobo para se cansar”. O sentido dessa afirmação remete ao fato de
que para ir de um sítio de baixo a um de cima, pode-se levar até quatro horas de caminhada e
ninguém deseja “perder” o dia todo caminhando.
A circulação principal não é totalmente homogênea: tem pontos largos e outros mais
estreitos; alguns lugares estão bem “sujos” (capoeiras) independentemente da chuva ou da
seca; há trecho de pleno sol e outros sob a sombra das matas, sendo que, nesses últimos, há
locais de visibilidade e outros onde a mata se fecha de ambos lados.
O caminho de chão (foto 2), no entanto, se torna muito mais fácil no tempo da seca.
Isto porque, quando vêm as águas, vários lugares se alagam e a paisagem se transforma. Há
pontos que se transformam em verdadeiros brejos, obrigando-se a fazer grandes desvios,
abrindo-se novas picadas margeando esses pontos úmidos, tornando, assim, mais longo o
caminho. A estrada de chão como também é chamado o caminho que liga a parte de baixo
com a parte de cima é entrecortada pelo corixo São Domingos e se ramifica em toda a
extensão da colônia pelos varadores e picadas, sendo transitáveis por pessoas, animais e
carros-de-boi
78
.
Uma vez que os caminhos normalmente têm pontos que permitem visibilidade, é
comum, quando se está defronte a alguma casa, as pessoas que estão “de passo” serem
geralmente observadas pelos moradores, que assim normalmente tecem algum comentário na
passagem, ou mesmo à larga distância, quando os transeuntes ou navegantes são identificados.
As andanças acontecem geralmente à luz do dia, com exceção dos dias de culto (quintas-feiras
à noitinha), pois quando começa a anoitecer se faz necessária a luz das lanternas, e corre-se o
risco de ataque de animais. Estando o tempo bom, arriscam-se visitas noturnas, mas somente
em casas vizinhas e por pouco tempo, mesmo porque, em dias normais, todos acordam e
dormem cedo.
De um sítio para o outro, unindo igualmente as fazendas, existem vários caminhos,
sendo mais utilizado o corixo ou largo, pois possibilita realizar o trajeto montado (na seca) ou
de canoa (na cheia). O sistema de circulação colonense se cria (e recria) e se realiza na própria
dinâmica da sazonalidade. Os caminhos continuam a ser pensados e definidos como no
sistema de antigamente. As entradas ou “portos” dos sítios são posicionados em pontos
acessíveis ao corixo, permitindo a chegada pela “frente” do lote. Caminhos mais íntimos
78
Os varadores são corredores usados coletivamente e cercados que desembocam no largo e ligam um lugar a
outro, passando na divisa dos sítios; largo é uma parte de uso coletivo, que ora está alagada, “quando vira
tudo pântano” ou corixo, ora está seca, transformando-se em estrada e pasto comunal.
56
utilizados pelas famílias e pelas crianças no trajeto da escola interligam alguns sítios,
independentemente do caminho principal, e normalmente cruzam outros sítios “por dentro”.
Existem caminhos secundários internos aos sítios que ligam a casa à roça, a casa ao corixo, ao
pomar, ao batedor (onde se lava roupa), ao engenho, ao curral, e que ultrapassam os limites
do sítio como, por exemplo, os caminhos da roça de um à roça do outro (pelo seco), ou de um
porto a outro (pela água). Assim sendo, a pessoa que necessita se deslocar a sítios mais
distantes precisa estar preparada para encontrar vários ambientes (que variam muito
dinamicamente), desde campinas secas a brejos com água até pela cintura, dificultando
bastante o acesso a alguns sítios.
Enfim, ligando um lugar a outro estão os varadores, como são chamados os caminhos
principais (os que levam de um lugar importante a outro, como, por exemplo, da escola para a
igreja e destes em direção aos distintos agrupamentos), e as pinguelas, caminhos secundários
que levam de um sítio a outro (podendo ser entrecortados por brejos e lugares sujos), ou de
um agrupamento a outro, etc. Nestes caminhos pode haver cercas para limitar os animais que
estão soltos e também os que são transladados através deles. Geralmente estes caminhos
desembocam no largo principal (na seca) ou no corixo (na cheia) que são lugares bastante
utilizados pelos colonenses, principalmente nos domingos e feriados, quando fazem visitas e
costumam se reunir
79
.
Os caminhos colonenses têm uso coletivo e semicoletivos e têm a especificidade de
entrecortar os sítios, entrelaçando desta forma os vários ambientes domésticos. Se em
algumas partes eles passam ao largo das casas, sendo estas apenas visualizadas ao longe,
outras vezes cortam pelo meio do pasto ou do quintal. Da mesma forma, estes caminhos
passam pelas roças, circundam os pomares, os galpões, os engenhos, etc.
A expressão porto pode ter na colônia vários sentidos distintos: há o porto privativo de
cada casa, onde se tem acesso aos caminhos internos desde o corixo, quando se pode dizer
“cada casa tem o seu porto”; há os portos (Virabrequinho e Figueira), que não estão dentro
dos limites da colônia mas dão acesso às cidades e ao exterior, pois se comunicam
diretamente com o rio ou estrada (porquanto ligam o corixo ao rio); e há situações onde o
79
Se na época da seca essas visitas têm um alcance maior, na época das chuvas, quando saem menos, o sítio
escolhido para a reunião pode ser simplesmente o de mais fácil acesso (que também pode mudar de uma
estação para outra).
57
porto privativo de uma casa pode receber embarcações maiores; neste caso se diz que “a casa
também é porto”
80
.
Se por um lado a casa ou o sítio é domínio reservado, por outro há um caminho de uso
coletivo que está passando por eles, levando a um outro lugar ou a uma outra casa (foto 5).
Neste complexo sistema de comunicação, o mais admirável, porém, é que os caminhos
colonenses denunciam uma concepção de território onde não prepondera a divisão por sítios,
uma vez que eles não acompanharam a mudança de sistemas. Da mesma forma, pode-se
observar que os caminhos indicam a rede formada pelos locais que já foram moradas dos
antigos, conhecidos como taperas (foto 6), onde aconteceram episódios que são preciosos para
o colonense, e que imprimem ao território marcas que só fazem sentido porquanto parte de
um patrimônio comum. Taperas tanto podem ser ruínas de antigas construções como lugares
onde já foi morada de alguém. Em alguns casos inclusive não existe mais nada material no
lugar, apenas marcas que vão sendo fixadas na memória coletiva como vestígios de um tempo
e de pessoas que já passaram, mas que ainda são consideradas e respeitadas
81
.
80
Os de baixo estão mais próximo ao Porto Virabrequinho, e para ter acesso a ele somente navegando
(aproximadamente uma hora de zinga) pelos caminhos de água; os de cima guardam suas canoas nos portos
das casas dos sítios de baixo e vão caminhando ou montados até lá para embarcarem a caminho do porto que
comunica com a cidade; os de cima estão localizados mais próximos ao Porto Figueira, que pode ser acessado
por terra e por água, os que o utilizam, o fazem geralmente montados (pela distância, levam aproximadamente
duas horas). As chalanas que fazem o trajeto regular colônia-cidade e vice versa, param atualmente somente
nos dois portos (Virabrequinho e Figueira). As chalanas e lanchas que fazem o transporte de pessoas e de
mercadorias são programadas a chegar na colônia ao amanhecer. As pessoas para estarem prontas no
embarque necessitam sair bem cedo de suas casas porque o acesso a estes portos leva, nos mais próximos por
volta de duas horas, chegando a demorar até 3 horas para o caso dos sítios mais distantes, isto em tempo bom.
Após a chegada, antes de embarcar, os ”volumes” precisam ser preparados e pesados, assim como negociar
(ou pechinchar) o preço do transporte. Para quem chega da cidade, a volta para as respectivas casas acontece
nas primeiras horas do dia e geralmente são bastante esperadas pelos de casa, quais se colocam em volta do
fogão, degustando algum alimento preparado para a ocasião e comentando os assuntos e as notícias.
81
Por várias vezes passei por lugares onde se dizia ser a tapera de “fulano de tal”. E somente depois de muito
observar a paisagem (olhando para uma mata, por exemplo), consegui identificar um vestígio de pomar, ou
um pequeno aterro, marcas que deixavam a evidencia de que ali já existira outro contexto.
58
Foto 3 - O largo na cheia
Foto 5 - Os encontros no corixo.
Foto 4 - O largo na seca
Foto 6 - Tapera.
1.2.2 O espaço - habitat colonense
Na Colônia São Domingos as formas de usos e manejos dos ambientes dependem da
forma de sustento de cada família que, por sua vez, depende da sua própria habilidade
autônoma de obter os recursos necessários à sua sobrevivência. Este sistema explica a
mobilidade espacial e a ocupação sazonal do território colonense. A ocupação sazonal do
território implica, entre outros fatores, a maior exploração de determinados recursos naturais
durante períodos distintos: por exemplo, se na seca usam o largo como pasto comunal,
deixando o gado alongado (solto), na cheia recolhem a criação, ficando o gado confinado
(preso) no entorno das casas
82
. Da mesma forma, os acessos ficando mais fáceis na seca, as
pessoas se visitam mais (as pessoas se alongam como o gado); o contrário acontece no
período das chuvas, quando a família fica mais recolhida aos domínios da casa.
82
A categoria de confinado é usado analogamente para referir ao filho que mesmo depois de constituir família
ainda continua ocupando parte das terras do pai.
59
Há a ocupação sazonal do território (no sistema de antigamente) e a ocupação do
território que é regido por uma variação sazoneira (que abarca o sistema de antigamente e o
sistema atual). À primeira subentende-se uma mudança de domicílio: se na seca a família
buscava um lugar próximo ao rio, nas cheias procurava um outro lugar para se estabelecer que
não fosse alagável. Hoje não ocorre mais essa mudança de endereço conforme as estações. Na
situação atual, as famílias organizam suas vidas em um único lugar - o sítio colonense - não
necessariamente tendo que mudar a casa de lugar, mas utilizando diferentemente um mesmo
território em duas estações distintas. Tampouco isso quer dizer que não mudem mais a casa de
lugar (porque continuam a fazê-lo), mas somente que esta mudança não se dá mais no ritmo
sazoneiro, embora este contribua de certa forma para as tomadas de decisões.
No universo colonense aprende-se, desde cedo, a relacionar diferentes espécies de
animais e vegetais, conversa-se sobre as possibilidades e os perigos que eles representam,
aprende-se a olhar o território e a reconhecer os sinais da paisagem, reconhecem-se as
diferenças nos espaços, aprende-se a se localizar no território e a reconhecer habitat
pantaneiro em suas diversidades. Deste processo de conhecimento, da relação homem-animal-
território, advêm muitas das crenças e dos mitos que povoam as narrativas colonenses
83
.
Com base nessas narrativas, pode-se dividir os sítios em duas partes básicas: o espaço
“domesticado”, representado pelo firme, lugar da casa e da roça (sendo que o segundo é
domínio do homem e o primeiro da mulher), “protegido” dos animais e das enchentes, e o
campo “selvagem” (não domesticado), espaço mais abrangentes, que engloba os lugares de
pastagem e a mata (domínio exclusivo dos homens) e que está mais sujeito às variações
sazoneiras (ou seja, pode alagar). O território da colônia no geral divide-se em sítios e
fazendas (particular) e caminhos e estradas (compartilhado).
Em torno de cada sítio se configura uma paisagem familiar (pois é o que se vê no dia-
a-dia) onde se desenvolvem as atividades principais. O sítio é o lugar da família colonense,
tem o espaço da casa, da roça e da criação (dependendo da situação todos podem estar no
plural). A roça pode estar contígua a casa, ou em um espaço separado, e é usada
indiscriminadamente por homens, mulheres, crianças e velhos. A divisão ou união se dá nas
atividades: os homens cuidam de preparar a terra e plantar, as mulheres ajudam na colheita, as
crianças e os de mais idade vigiam e limpam entre a plantação. Há o espaço do horto
doméstico, ou quintal (para eles), ligado à casa, onde se pode ter o plantio em menor escala
83
Evidenciar o significado dos relatos que tratam de algumas destas identidades e o seu papel entre os quais se
difundem é o estudo realizado por Banducci (2005).
60
criar pequenos animais e desenvolver demais atividades cotidianas. Cuidam deste espaço
predominantemente as mulheres da casa.
A criação se divide em doméstica (localizada nos arredores de cada casa) e do campo,
(os animais de porte maior são criados num outro espaço do sítio). Neste caso, o campo tem
atributo de local de trabalho dos homens da família. Por outro lado, o campo pode ser
compartilhado como, por exemplo, no pasto comunal na época da seca (quando acontece de o
gado e demais animais de maior porte ocuparem o largo, como é chamado este espaço coberto
de capim mimoso). Na época da cheia, este mesmo campo é ocupado pelo corixo, ou são
formadas baías de caráter predominantemente de uso coletivo, como são os lugares de intensa
circulação.
Desta forma, posso observar que o espaço ocupado pelo corixo é compartilhado por
todos, mas pode com certa freqüência adquirir o caráter de semicoletivo, quando atravessa ou
se aproxima aos domínios da casa, estando sujeito o seu uso a regras de sociabilidade e
normas próprias de conduta. Sendo assim, a casa colonense é domínio do reservado e também
do coletivo, pois é na casa que os colonenses se encontram, realizam visitas mútuas,
confraternizam e realizam as trocas.
Ao se atentar para seus usos e significados, o espaço do sítio é interrompido, formando
vários espaços distintos; porém, é único e indiviso ao se falar de território. O território
colonense, não se encontra estanque no tempo e no espaço; à medida que vai sendo
humanizado, vai sendo reconhecido coletivamente, vai se tornando familiar. Torna-se, desta
forma, um referencial para o grupo social. O espaço produzido e organizado é, sobretudo, o
mundo habitado pelo colonense e sobre o qual ele desenvolve e articula suas relações.
1.2.3 O espaço das relações sociais colonenses
Na Colônia São Domingos, via de regra, a complementaridade das tarefas
reprodutivas, as divisões sexuais do trabalho e a solidariedade baseiam-se em laços
matrimoniais, de parentesco e consangüíneos. No entanto, as relações de compadrio também
fazem um diferencial no sistema de reciprocidade e das interações sociais colonenses.
Na colônia parente e família são termos equivalentes e a elas se acrescentam e se
enaltecem as afinidades advindas do compadrio, formando uma rede de solidariedade que está
para além da família, pois é uma questão de escolha pessoal (como em COSTA, 1994). Isto,
na prática, se traduz em visitas freqüentes, nas relações de ajuda mútua, nos mutirões e na
61
realização das trocas, como se verá mais adiante. Pelo ritual do batizado a escolha do
padrinho “transforma” os envolvidos em parentes. O uso social desta categoria consiste em
reafirmar relações de amizade, de vizinhança ou mesmo familiares que são importantes na
constituição das redes sociais.
Por outro lado às relações que se notam mais exaltadas são aquelas que ocorrem entre
os que freqüentam a igreja, havendo uma clara distinção entre os evangélicos, chamando-se
entre si de irmãos. Além da alcunha, o grupo divide responsabilidades (como mutirões de
limpeza e manutenção da igreja e dos caminhos) e deveres (assistir ao culto e realizar visitas),
encontrando-se mais assiduamente. Dividem igualmente o privilégio de poder contar com os
serviços gratuitos - ou com um bom desconto - para quem pertence à igreja, de uma lancha
que faz o trajeto colônia-cidade e vice-versa.
A colônia caracterizou-se segundo seus atuais moradores pela instalação de “famílias”
aparentadas entre si, que “situaram” (organizaram o espaço) o “território original” (antes da
“mudança de sistemas”). Sendo assim, o parentesco entre os colonenses tem relação direta
com as relações de propriedade, sendo possível aprofundar (em estudos posteriores) - na
relação casa-(tapera)-casamento - como as relações matrimoniais e patrimoniais colonenses se
transformaram no tempo
84
. Atualmente a família colonense tanto pode ser do tipo elementar
(pais e filhos solteiros) quanto extensa (quando há na casa outro morador como, por exemplo:
genro, nora, avó, neto ou sobrinho e afilhado) constituindo uma unidade produtiva e
reprodutiva. Os cônjuges são geralmente contemporâneos, são escolhidos na própria colônia
ou em lugares próximos, e são, em sua maioria, paiaguenses
85
.
Quanto aos padrões de herança, a situação parece à mesma observada por Seyferth
(1985), a qual coexiste a forma de partilha indivisa com a forma de partilha igualitária, sendo
que a mulher (talvez não na mesma proporção) também herda a terra.
Outra questão observada é a adoção dos netos pelos avós, quando o casamento do
filho esteja falido ou em dificuldades. Neste caso, não apenas assumem a responsabilidade de
criá-los; muitos registram a criança no cartório da cidade como sendo o seu filho legítimo. Os
colonenses “antigamente casavam com dezenove, vinte anos. Agora não, menina já com 14
anos tá ganhando nenê” (Dona Margarida -78 anos). No entanto, há famílias antigas, com
cônjuges com mais de quarenta anos, onde a prole varia de sete filhos ou mais, enquanto as
84
Penso que o estudo de parentesco traria à luz, como o estudo da organização social colonense, dimensões de
um processo que possibilita a reprodução social do grupo.
85
Lembrando que o adjetivo paiaguense refere-se ao conjunto dos moradores da Região do Pantanal de
Paiaguás, onde se localiza a Colônia São Domingos.
62
famílias mais jovens variam de um a sete filhos; há famílias que têm a maior parte de seus
filhos morando em Corumbá.
A migração como estratégia de reprodução social é deveras usada pelos colonenses,
neste caso, porém a saída não significa um desvinculamento com relação ao parentesco, mas
ocorre muitas vezes uma ampliação no espaço de movimentação dos grupos. A migração
pode estar relacionada aos impasses dos padrões de herança ou ser sintoma da exigüidade
territorial. Para Woortmann (1995, p.115) a imigração no campesinato obedece a uma regra
que privilegia a terra como requisito de reprodução social, de uma “reprodução camponesa”.
Na cidade ou em outras localidades, assim como na ocupação de terras adjacentes à colônia
pelos posseiros, ainda se articulam as relações de parentesco, sendo que, neste último,
também aparecem as relações de vizinhança.
Os membros das famílias dos antigos, nascidas nas primeiras décadas do século XX,
são a ponte entre a geração mais jovem e o tempo dos antigos, quando a colônia era ainda,
como dizem, terra dos índios; são os elos de transição, que viram as modificações no espaço e
na maneira de viver; enfim, são os colonenses originais, os quais passaram, após sucessivas
intervenções externas, de índios para a nova condição, de camponeses
86
. A categorização
deste grupo social como camponeses deve-se fundamentalmente à definição de Woortmann &
Woortmann (1990), segundo a qual a concepção de família camponesa está estreitamente
86
O que não significa uma adesão à tese assimilacionista dos grupos sociais indígenas, onde o contato é
representado como condição destrutiva e desordenadora, a qual os indígenas acabariam por sucumbir diante
do colapso de seus sistemas culturais. Sahlins (1997) chama de pessimismo sentimental à crença de alguns
antropólogos de que seus objetos de estudo estariam desaparecendo frente a uma possível hegemonia
ocidental. Ribeiro (1970), por exemplo, até arriscou um prognóstico de desaparição das culturas indígenas,
face os processos de acamponesamento e proletarização a que os índios estariam submetidos. Segundo
Viveiros de Castro (1999) o demérito desta tese assimilacionista (a qual foi opositor) vem reforçar o
argumento de que o próprio processo de acamponesamento é “uma transformação histórica e estrutural dos
regimes nativos tradicionais e, mais do que isso, que a transformação era um processo inerente ao
funcionamento destes regimes”. O que explicaria casos, especialmente no nordeste brasileiro (Oliveira,
1998b), em que algumas localidades rurais situadas nas áreas mais arquetipicamente ‘camponesas’ do país
põem-se a reassumir sua condição indígena, em um processo de transfiguração étnica que é o exato inverso
daquele prognóstico de Ribeiro (1970). Desta forma, nos termos de Viveiros de Castro “grupos que se
estudava como se fossem ‘comunidades rurais que apresentavam a particularidade de ser indígenas’
mostravam ser, na verdade, ‘comunidades indígenas que tinham a capacidade de ser camponesas’”. Contudo,
no caso da colônia São Domingos, a condição indígena aparece como memória e ancestralidade, sobrepujada
pela identidade de colonense. A compreensão desta condição remete à particularidade histórica da Colônia
São Domingos e à sua não oficialização no estatuto de Reserva Indígena. Assim a auto-referência como
colonenses (portanto, de certa forma, camponeses) diz respeito ao sentido de pertencimento ao local, a
experiência das interações socioambientais inscritas nos próprios corpos e sempre presente na movimentação
destas pessoas no ambiente pantaneiro em que vivem, os quais vêm a estabelecer um referencial e parâmetro
para um trajetória social concreta de colonenses. A apreensão desta trajetória e experiência social e suas
contingências históricas nos fazem concordar com Viveiros de Castro (1999), quando afirma que “tais
coletivos certamente têm outras coisas com que se ocupar além de ‘ser índios”. Contudo, cabe ressaltar, não
por isso deixam de ser de interesse etnológico (se assim não fosse estaria se admitindo uma naturalização do
tipológico que a antropologia tem, destarte, refutado).
63
ligada à idéia de colônia (no estudo em questão teuto-brasileiros), a qual constitui a própria
caracterização desta campesinidade. Todavia, esta condição camponesa ao colonense é aqui
assumida, dada a sua especificidade, de forma geral e fluída (relativizada), uma vez que não
exclui outras identidades culturais, conforme observa Viveiros de Castro (1999) quando
analisa o caso de grupos indígenas “arquetipicamente” camponeses do nordeste brasileiro.
Desta forma, observa-se que da primeira geração de colonenses ainda moram na
colônia dois grupos Guaná e dois grupos Bororo. Os descendentes, embora assumam esta
ancestralidade, autodenominam-se colonenses. Contudo, quando falam daquelas pessoas que
casaram com índios, estão se referindo à primeira geração de colonenses, embora
identifiquem exatamente a qual das etnias pertençam, reforçando a premissa de uma
camponesidade indígena colonense (colonense, por assim se autodenominar).
O parentesco entre os colonenses apresenta-se como um dos elementos fundamentais a
ordenar as relações. Woortmann (1985, p.192) observa:
[...] o parentesco desempenha papel fundamental para o campesinato,
articulando entre si grupos domésticos (unidades de produção) numa rede
mais ou menos extensa onde se constroem relações de reciprocidade e um
‘capital social’, tanto mais importante quanto mais descapitalizado seja o
campesinato no que se refere a um “capital econômico”.
Na colônia, ser parente, pode ainda situar alguém na estrutura social, assim como
legitimar sua permanência na terra
87
. Embora atualmente as famílias se organizem em sítios
autônomos, é comum que um conjunto de sítios próximos forme um grupo mais unido, devido
a maior interação e cooperação econômica e pela partilha de alimentos
88
. A unidade destes
grupos de vizinhança é dada pelo compartilhamento nas regras de conduta controlada por eles
e não na figura de um chefe (sendo respeitadas as decisões em conjunto dos chefes de família,
no sítio estes podem ser encontrados na figura de um pai ou de um irmão mais velho). Esta
pode ter como foco aglutinador uma parentela que mora em lotes adjacentes ou se agrupam
em áreas contíguas, muitas vezes até por algum ancestral comum, ou formar uma vizinhança
entrelaçada por outros vínculos. A casa pode ser equivalente à família (elementar ou extensa),
o sítio pode ser o lugar da ou das famílias e a parentela ou grupo de casas pode formar um
grupo de vizinhança. Esta organicidade espacial proporcionada pelo entrelaçamento das
relações familiares, de parentesco, de compadrio e de vizinhança faz parte da organização dos
87
Em vias de uma nova remodelação do seu território, há que se ponderar que pode ocorrer uma enfatização no
ser de dentro ou de fora da colônia, e muitas vezes se deve colocar entre aspas os depoimentos,
principalmente os que versam sobre legitimidade ao acesso a terra ou que não consideram certas diferenças.
88
Nestes grupos de vizinhança o apoio mútuo é a regra, mas isto não quer dizer que não ocorram cisões.
64
colonenses. Por princípio, é na organização do espaço que se pode ver a trama formada pelo
parentesco e pelo convívio. Nesta teia de relações formada pela parentela se define e se
caracteriza cada região onde vivem. Muitas famílias moram próximas umas das outras, uma
vez que as casas colonenses estão localizadas ao longo do corixo. Assim o grupo de
vizinhança está formado por um conjunto de casas que pode ser um agrupamento familiar
(como é o caso da lagoinha) ou por duas grandes famílias (como na parte de baixo). Há, no
entanto, lugares onde existe um número maior de famílias diferenciadas (como no centro ou
na parte de cima) e famílias distintas (como no recanto). Estes locais foram classificados
ainda no tempo de antigamente e perduram podendo ser considerados como “território de
parentesco” (WOORTMANN, 1995) ou analogamente como “território de reciprocidade”
(WOORTMANN, 1990).
As histórias destas relações ficam impressas no território, quando se vê, por exemplo,
que mesmo que uma filha esteja hoje morando em um sítio, afastado da mãe, existe nas
proximidades o lugar da tapera (primeira residência) deixada pelo casal.
Há muitos solteiros e alguns poucos viúvos na colônia, e estes buscam o casamento
dentro da igreja, quando são convertidos, ou nas localidades e fazendas adjacentes, quando
não o são. Involuntariamente o cortejo ou namoro normalmente inicia mediante cartas, ou nas
festas (atualmente mais esporádicas) onde a maioria dos casais se conhece.
Nas casas dos colonenses evangélicos não há os habituais altares de santos e tampouco
se realizam as festas cristãs; mas, fora isso, a interação com os colonenses católicos se dá sem
maiores distinções, sendo, segundo eles, convidados e participando das festas (religiosas ou
não), dos mesmos códigos e do convívio social como sendo um único grupo social
89
. Em
termos de vestimentas, existe a diferença de os evangélicos usarem roupas sociais e as
mulheres vestirem saias e não cortarem os cabelos. Mas a diferença mais acentuada se nota no
comportamento, pois na colônia existe o problema do alcoolismo (afetando os homens no
geral, mas principalmente os jovens) e os que pertencem à igreja evangélica não fazem uso da
bebida e criticam (veladamente) os que o fazem (nos dias festivos).
89
Quando se fala que acabaram as festas na colônia, isto não quer dizer que haja uma proibição ou que não se
realizem mais festas sob hipótese alguma; de uma maneira ou outra, há famílias que ainda realizam reuniões
nos dias dos santos devotos.
65
1.2.4 Acabou o tempo das festas
As festas religiosas, de quinze anos e de casamento eram, até muito pouco tempo,
habitualmente celebradas entre os colonenses, havendo um calendário anual conhecido por
todos que desenha no mapa das relações sociais a ordem da casa e respectivas datas a serem
celebradas. Os depoimentos lamentam que estas reuniões estão aos poucos se acabando,
devido ao excesso de bebidas alcoólicas e das conseqüentes brigas ocasionadas por quem as
consome em excesso, caso que acontece principalmente entre os jovens. Assim se manifestou
Dona Branca (que é evangélica):
Já deu problema este negócio de bebida. Estes dias mesmo que eu tava pra
Corumbá, saiu uma briga aí, bateram neste meu filho, quase mataram.
Bebedeira. [...]As festas de santo tá acabando por causa das briga. Quando
sai baile eles não deixam a gente dormir. Fica com medo. Tiro, né? Eu até
queria mudar pra mais longe do corixo, tá ficando perigoso. A gente nunca
fala porque o pessoal é tudo daqui [...]Quase todo sábado é esta farraiada.
Fica muito difícil. [...]são boas pessoas, mas só estes casos aí que é muito
perigoso, né? Eles gostam de festa e também porque faturam com a bebida.
Eles ficam meio assim com a gente, porque a gente é da igreja. Eles acham
que a gente não ama eles. Mas a gente ama eles. A gente gosta de todas
pessoas, as que vem de fora...”
O depoimento cita as festas religiosas e os bailes que estão mais recentemente sendo
incorporados por algumas casas colonenses. Apesar de muitas das festas de santo estarem
suspensas, algumas casas ainda mantêm esta “tradição”, especialmente em dia do santo
devotado pela família
90
. Neste dia podem-se constatar muitas rezas endereçadas ao santo
protetor, sendo que a fartura e a comensalidade devem se expressar com muita ênfase.
As festas colonenses fazem um contraponto a um convívio esporádico. O pico das
festanças coincide com os meses de seca, quando aumenta naturalmente a convivência entre
os colonenses, pois se têm os territórios expandidos, e também no primeiro mês do ano
quando o convívio social está em seu auge pelas visitas dos que estão de férias e vêm da
cidade. O convívio religioso, por um período curto e intenso, promove uma sociabilidade
ritualizada que se dá no espaço da casa e em seu entorno imediato, podendo durar de dois a
quatro dias consecutivos. Na época das festas, várias casas podem estar ligadas por vários dias
em torno do trabalho para viabilizá-la. Os convidados podem extrapolar, sendo convidados os
colonenses que estão vivendo nas cidades e fazendas e ainda se pode ter convidados de fora.
90
Os rituais e o calendário de festas católicas colonenses seguem o mesmo padrão estudado por Silva (1998)
entre os mimoseanos: festa de São Sebastião e São Gonçalo em janeiro; festa do Divino, em maio; festa de
Santo Antônio, São João e São Pedro em junho, e de São Benedito em julho.
66
As festas, como eventos sociais ligados ao calendário cristão, podem trazer prestígio
ou, ao contrário, ser mal lembrada, pelos convidados. Apesar do que consta dos depoimentos,
nestas datas o excesso no consumo de bebidas e alimentos é aceitável. As promessas e as
comemorações reservadas para estes eventos se mesclam ao sistema de trocas do dia a dia;
desta maneira, a reciprocidade do cotidiano colonense pode crescer na mesma medida em que
aumenta o círculo de convidados.
Nos dias de festa são vistos os trajes completos de passeio. Eles incluem, para homens
e mulheres, uma cartucheira, um cinto cheio de balas lustrosas rodeando a cintura e uma arma
no coldre, que são entregues para o anfitrião na chegada à casa dos anfitriões. Esta
indumentária faz parte da honra e da hierarquia própria do lugar, sendo que, aqueles que
podem se enfeitam deste modo para ocasiões especiais. “Arrumo o meu cabelo deixando ele
solto e bem penteado, coloco minhas botas, a arma na cintura e vou (José, 19 anos)”. Quando
possível, vão “montados”, sendo que o cavalo também é enfeitado ao máximo. Apesar de
irem a galope, em certos lugares mais tranqüilos, quando podem ser vistos, e também na
chegada da festa, diminuem o passo do animal e aprumam o próprio corpo, literalmente
desfilando para os que estão observando (e todos assim o fazem)
91
.
Segundo relatos, as brigas, em geral, ocorrem a partir de pessoas de outras localidades
que costumam tumultuar a vida da colônia. A referência mais recorrente é relativa a
moradores do “Cedro”, identificado como um lugar de pessoas de má índole. Trata-se de uma
relação de alteridade que traduz a complexidade histórica das relações entre grupos sociais do
Pantanal, cujas diferenças mereceriam um estudo aprofundado com pesquisas posteriores.
Apesar da preponderância dos discursos que demonstram harmonia e equilíbrio nas
relações entre os colonenses, há inúmeros relatos de desavenças, casos de roubo e crimes
entre eles. Dentre os conflitos que surgem, os de dentro são resolvidos, normalmente, no
âmbito da parentela. São conflitos geralmente passionais (casos de ciúmes ou inveja) ou
relacionados a desrespeito a limites físicos e simbólicos, como por exemplo, devido a animais
domésticos que eventualmente atacam a roça de outrem (e coisas desse tipo).
Contudo houve também referência de brigas entre jovens com certo grau de
parentesco, às vezes entre irmãos. Wolf (1971) refere casos semelhantes ao observar as
tensões entre siblings, decorrentes da necessidade de manter as terras sem divisões, quando
91
Em toda a colônia é normal e, portanto, comum, especialmente homens andarem diariamente armados,
principalmente ao sair de casa. Trata-se de um “costume” arraigado à imagem do homem pantaneiro em geral,
que traz como razão prática a necessidade de garantir a segurança, dadas as imprevistas situações, como o
ataque de animais, especialmente cobras, onças ou jacarés.
67
um irmão assume a autoridade na casa é desafiado pelos irmãos em posição inferior. A
realidade é que em um passado não muito distante não havia sequer cercas divisórias na
colônia e tampouco a escassez de terras era problema para quem desejava constituir família e
viver numa área comunal.
Outra interpretação das causas das brigas está relacionada à saída de jovens que vão
trabalhar nas fazendas, cujo retorno esporádico, em época de festas e para os bailes de fins de
semana, marca o momento performático de afirmação social.
No decorrer das visitas, houve uma sucessão de referências a casos de brigas e
episódios dramáticos de fama local, bem como a conflitos não tão espetaculares, mas que
dizem muito sobre os costumes e crenças dos colonenses. A narrativa local destes episódios
configura verdadeiras performances
92
. A temática dessas narrativas tende a ser relativa a
algum tipo de violência ou de “defesa de honra”; da mesma forma, escutam atentamente a
qualquer anúncio de óbito ou de acidente ou tragédia noticiada pelo rádio.
A região acomoda uma conjuntura em que a tradição oral se faz muito presente. Em
outro contexto, explorando a expressão complexo evento narrativo (BAUMAN apud
HARTMANN, 1999), a autora, em uma análise da performance, refere-se aos contadores de
“causos” gaúchos, como responsáveis por incorporar e reproduzir “na sua mesma ação de
contar, aspectos da memória do grupo”. Cabe aqui o registro da análise desta oratória entre
os vaqueiros da Nhecolândia, realizada por Banducci (2005), e da plausibilidade de muitas de
suas afirmativas também para a realidade da colônia.
Outro assunto que se destaca e que é motivo para várias discussões entre os
colonenses, especialmente quando a conversa é com pessoas de fora, é a da temática (recente)
da associação (oficialmente denominada Associação dos Moradores da Colônia São
Domingos).
Proposta por alguém de fora, ou seja, por agentes da Comissão Pastoral da Terra, no
sentido de conferir ao grupo uma institucionalidade (mais comumente conceituada como
organização) a fim de facilitar o processo de gestão das atividades econômicas e
instrumentalizar os anseios individuais dentro de uma coletividade formal, a associação
trouxe, contudo, a experiência de sucessivas frustrações. A vicissitude do processo
92
Segundo Bauman (1992) a performance fundamentalmente é um modo de comunicação verbal que consiste na
assunção de responsabilidade da audiência para uma “vitrine” de ação comunicativa, ou seja, a expressão será
colocada em relevo bem marcado na pratica discursiva do cotidiano, tem uma platéia que vai escutar e
analisar a partir de uma “chave” que detonará a performance.
68
associativista vem confirmar o que Cleaver (2000) traduz como crítica à teoria moderna deste
novo institucionalismo, especialmente por normalmente não considerar devidamente as bases
informais de cooperação no cotidiano das pessoas, bem como as divergências e disputas
internas. Assim, a prática associativista, como condutor de uma ideologia fundamentada na
inculcação de valores morais e características desejáveis entre os partícipes (responsabilidade,
cooperação, comportamento coletivo, dentre outras), tem concorrido para a exacerbação das
diferenças, retirando-as da informalidade e fluidez do cotidiano grupal para inseri-las em
esquemas de julgamento moral que, paradoxalmente, têm afastado algumas pessoas entre si e
a grande maioria da própria associação.
A “novidade” da associação e seus anacronismos são, por estas razões, assunto
recorrente entre os colonenses. Objeto de indignação, os maiores erros apontados àqueles que
dirigem ou já dirigiram a associação, foi o de emprestar para qualquer um (leia-se seus
parentes e amigos) a embarcação de posse da associação, centralizar a infraestrutura
conseguida, além de cobrar pelo uso sem a devida prestação de contas. Agrega-se a isto o fato
de que o espaço da associação, segundo a maioria dos depoimentos, tem gerado fofoca e
constrangimentos, como o de tirar “sarro” quando alguém esta falando, bem como torcer
contra ou disputar para si algum projeto do coletivo.
Neste sentido, alguns depoimentos dão conta que “instituições informais”
(CLEAVER, 2000) de cooperação que antes “funcionavam” lograram maiores dificuldades
depois do advento da associação. Um exemplo são os depoimentos recorrentes sobre a falta de
mutirão para limpar o corixo. Assim, a necessidade de se limpar o corixo para que as
embarcações possam navegar livremente não é maior do que a dificuldade em organizar um
grupo para executar a empreitada.
Todavia, há um certo consenso da importância da associação para a superação de
algumas dificuldades crônicas, em especial, o transporte para a cidade. Neste sentido, o que se
quer é a viabilização da Cancioneiro, embarcação que é apontada por todos como algo de
bom, que facilita a vida do colonense
93
.
93
A Cancioneiro é uma chalana com capacidade para 15 pessoas e que foi adquirida em 1995, através da
interveniência da Comissão Pastoral da Terra (CPT), para uso (a baixo custo) dos colonenses, tanto para o
transporte de pessoas como de mercadorias. A contrapartida, de gestão associativa, tem sido um tanto
polêmica, com denúncias de desvios de recursos e “maus tratos”, cujo resultado levou ao sucateamento da
embarcação. Agora, ela está sendo reformada, através da CPT. Todavia, assim que estiver pronta para
navegar, enfrentarão desafios para a não-reprodução das dificuldades organizativas; por isso também a atual
ansiedade e tensão local em relação ao assunto associação.
69
Pode-se dizer que no espaço social colonense os espaços individuais, domésticos e
coletivos se interconectam e articulam as relações no território, podendo ser estas visualizadas
no sistema de comunicação próprio do lugar. São depoimentos que entram no rol dos
mexericos e conversas e fazem parte do sistema informal de informações e também notícias
públicas (pois são amplamente divulgadas e compartilhadas por todos) que se comunicam
através da rádio pelo programa Alô Pantanal. As notícias diferem das conversas informais e
mexericos em vários aspectos, por exemplo, enquanto que no primeiro prepondera o que deve
ser dito em ocasiões especiais (o bom comportamento) o segundo tipo transmitem as
informações de domínio pessoal para indivíduos mais do que para toda a coletividade e têm
mais relação com casas e quintais do que com a colônia (como se quer que aconteça através
da Associação). Similarmente ao observado entre os Mehinaku na colônia as notícias são
anunciadas na frente ou na sala em espaços nitididamente sociais, enquanto que os mexericos
(o mau comportamento) propositadamente fica restrito aos fundos da casa, de domínio mais
íntimo. Sem embargo, os mexericos circulam livremente e, como sugere Gluckman (apud
GREGOR,1982), ele pode ter o fim imediato de servir de sanção, para controlar o mau
comportamento, e de artifício, para afirmar o sistema normativo, escarnecendo daqueles que o
violam, ou para marcar as fronteiras de grupos faccionários dentro de uma mesma sociedade.
1.2.5 Aspectos de sociabilidade - os ambientes humanizados
Para um visitante eventual, a Colônia São Domingos pode deixar a impressão de
isolamento entre vizinhos e de que a interação entre grupos familiares deva ser bastante
esporádica (como entre os mimoseanos estudados por Silva, 1998). No entanto, o grau da
interação colonense demonstra grande variação e permite uma análise sazonal, de gênero,
intergeracional, intercultural, de tempos distintos (tempo das festas, tempo da colheita, férias),
de distinção semanal (durante a semana e nos fins de semana), etc.
Desta maneira se pode observar que quando o território se retrai por conta das chuvas,
retraem-se com ele as andanças e as visitas, tendendo a tornar o convívio mais familiar;
quando chega o tempo de seca, o território se expande, e com ele as atividades, e as pessoas
saem mais, ocupando os mais variados espaços
94
.
94
Isto não significa que na cheia não haja movimentação, uma vez que, como já foi dito, o uso de embarcações
merece destaque. Porém, a dificuldade deste meio de transporte é declaradamente maior e mais passível de
intempéries, como por exemplo, o súbito fechamento (devido a ventos, correntezas, dentre outras causas) das
estradas pelos baceiros (matéria vegetal tida como “sujeira”).
70
Os homens visivelmente circulam mais, e o seu relacionamento com o espaço é mais
intenso, especialmente com relação ao trabalho, pois cuidam da roça e da criação, fazem
trabalhos esporádicos e, eventualmente, participam de mutirões. As mulheres tendem a estar
mais restritas ao circulo familiar, cuidando das tarefas domésticas e dos filhos. Contudo,
ambos, homem e mulher colonense, recebem e fazem visitas, tornando a casa o lugar por
excelência da socialidade e do convívio.
Apesar das muitas crianças (nas 103 famílias, do último relatório do INCRA/MS,
consta cerca de 141 crianças entre 0 e 14 anos), a população colonense encontra-se bastante
envelhecida, por conta das migrações, principalmente dos jovens em busca de trabalho e das
famílias mais jovens, que por opção ou por constrangimento, devido à falta de alternativas de
trabalho ou de terra para trabalhar, buscam assim melhores condições de vida nas cidades. As
mulheres não saem como os homens em busca de trabalhos temporários, mas podem
acompanhar seus filhos e morar temporariamente na cidade. Os mais velhos, segundo
depoimentos, tendem à preferência por continuar a morar (e morrer) na colônia.
As crianças colonenses crescem soltas pelos quintais e têm obrigações desde muito
cedo ajudando na lavoura e nas lidas da casa, aprendem vendo e fazendo, junto a seus pais.
Em casa as crianças aprendem a cuidar de seus irmãos, o mais velho normalmente fica
responsável de ensinar e de cuidar do irmão mais novo. Conta-nos Dona Margarida (78 anos):
Com 9 anos já ajudava minha mãe. Fazia farinha, rapadura, lavava roupa.
Ajudava a ralar mamão, lavava louça e cortava carne. Eu criei os filho como
eu fui criado, ajudando buscar água, jogar lixo, carpir piquete, vigiar
passarinho, levar comida na roça. Antigamente passarinho não comia na
roça, as crianças que vigiavam. Não tinha colégio.
Atualmente os alunos ficam na colônia até concluir a quarta série, com baixo índice de
desistência até o término desta etapa (há no total 42 alunos nas duas escolas colonenses).
Contudo, o prosseguimento nas séries seguinte é mais raro por não haver escola apta na
localidade ou mesmo nas redondezas. O mais comum é uma criança parar na quarta série,
continuando na colônia e ajudando os pais na “lida” diária. Os que desejam prosseguir com os
estudos e têm algum amparo para isto (normalmente relacionado à disponibilidade ou convite
de algum parente que mora na cidade), mudam-se para Corumbá.
Os adolescentes da colônia, durante a semana, costumam permanecer nos sítios,
participando das atividades do cotidiano, seja no âmbito doméstico ou na roça. As interações
sociais se intensificam nos fins de semana ou, eventualmente, no caso de uma visita, quando
acompanham os pais. Nestas oportunidades costumam se reunir para tomar “tereré” e jogar
futebol.
71
Eventualmente, participam dos bailes realizados (sempre aos sábados) em uma das
casas, que à noite funciona também como bar e durante o dia é escola e venda. Quando há
baile, o som pode provir de aparelhos estereofônicos domésticos ou de música ao vivo. Nesta
última opção, dançam e bebem ao som de sanfonas, violas e violões, tocando polcas, vanerões
e rasqueado. Segundo os moradores, estes bailes não têm ligação com as festas referidas
anteriormente (de caráter religioso), quando os dias de santo eram, de acordo com
depoimentos, celebrados anualmente por uma mesma família, que se fazia responsável pela
festa. Para uma festa, vinha gente “de todo lado”, na qual se ficava “por dois ou três dias,
todos em uma mesma casa”.
As interações sociais colonenses podem se estender para as cidades (Corumbá e
Ladário) e, em especial, às localidades adjacentes, entre os mais citados o Bracinho, o
Morcego, bem como às diversas fazendas da região e, em menor grau (pelos motivos já
mencionados), o Cedro.
De muitas maneiras a relação com a cidade de Corumbá se faz presente: os víveres são
trocados, adquiridos ou encomendados de ambos os lados, fazendo com que uma intensa
circulação de pessoas (embora a maior parte das pessoas que vêm e vão são sempre as
mesmas) e mercadorias se realize pelo menos duas vezes na semana. Esta movimentação
conforma um dos principais elementos que dão o tom, o ritmo e o estilo de vida na Colônia
São Domingos.
O programa “Alô Pantanal”, da rádio Difusora de Corumbá, tornou-se uma instituição
para os colonenses. Este programa, que tem início todos os dias às 12:00 horas e vai até as
14:00 horas (em dias normais), é praticamente imperdível para os colonenses, desde que a
bateria do rádio tenha a energia suficiente para o aparelho funcionar. Neste programa são
veiculados pedidos de mercadorias, seja o encomendado por parentes citadinos (para envio de
produtos da colônia que tenham mercado ou para alimentação familiar) como os dos
colonenses (solicitando compra de remédio ou para compra de algum gênero ou produto
necessário, como pilhas, querosene e sal). Estas encomendas são endereçadas à embarcação
da preferência ou de acordo com o plano de horário de saída e chegada mais conveniente para
o demandante do serviço
95
.
Ademais, a expressão do programa “Alô Pantanal” vai além da importância para a
economia e logística colonense; ele configura um canal de comunicação fundamental para a
95
O frete é cobrado por volume, na época da pesquisa era operado ao preço de R$5,00 a saca,
independentemente do peso e tipo de produto.
72
sociabilidade local. Através dele são enviados os “avisos” cotidianos e extraordinários: são
notícias, recados, mensagens e dedicatórias que reforçam os laços de solidariedade entre
parentes ou afins que, por determinadas contingências, têm que enfrentar o distanciamento
geográfico entre os que estão na colônia e os da cidade. Além disso, pelo programa, os
colonenses de uma família ficam sabendo dos acontecimentos de outras famílias, criando um
espaço expressivo e informacional que contribui para a estruturação das bases comunicativas
locais ou de “comunidades de conversação”
96
.
A quase total ausência institucional do Estado na Colônia São Domingos condiciona a
vida do colonense. Embora julgamentos de determinados comportamentos passam
normalmente pelo crivo do referencial da legalidade, em que o colonense contrasta com as
sanções executadas na cidade contra alguém que tenha cometido algum delito, é observável
que, na prática (dada a ausência de força coercitiva oficial ou força policial) alguns códigos
morais tácitos e habilidades explicitas comuns de “diplomacia” regulam as relações sociais.
Quando alguém da própria colônia apresenta, por exemplo, um comportamento agressivo,
este tende a ser interpretado como uma característica daquela personalidade ou um desajuste
que inspira cuidados bem mais que sanções, não raro contornado com acomodações internas
em que a pessoa desajustada adquire um espaço social próprio e respeito (dentro de um certo
limite tácito), permitindo a sua convivência grupal e a reprodução social destas diferenças.
No entanto, cabe ressaltar que a assistência social oficial teve, segundo diversos
relatos, no passado, maior presença que nos dias atuais. Nos termos de Dona Branca:
Antes vinha todo ano vacinação pras crianças. Faz tempo que não vem.
Tinha urna de votação na zona do Morcego e tinha no Rolon (outras
localidades do Pantanal de Paiaguás). Mas recolheram tudo. Tinha cartório.
Aqui nunca teve. Pra votar agora tem que ir pra Corumbá. Quem tem o título
vai, é preciso, né? É uma despesa. [...] Médico faz tempo que não vem.
Dentista não, também. Vacinação quando tem é só pra criança.
A assistência em saúde corresponde ao principal apelo dos colonenses em relação ao
amparo estatal, exaltado especialmente pelos relatos de mulheres que morreram em trabalho
de parto e dos casos mais graves de picada de cobra. A redução do “movimento” na colônia -
leia-se densidade populacional - traduz as dificuldades de realização dos meios locais para a
gestão dessas situações limites: por exemplo, é cada vez mais raro existir uma parteira boa e,
da mesma forma, as donas de agora dizem não conhecer tanto de plantas que curam como
96
No programa observam-se aspectos da semântica e da prosódia pantaneira.
73
conheciam suas mães
97
. Porém, deve-se ressaltar que a falta de assistência médica permite a
sustentação local de uma rede de solidariedade e mobilização, para casos de problema de
saúde, e isso fortalece o sentido de informalidade institucional que os define como
colonenses.
Nos procedimentos de cura, assim como na forma como os homens se comunicam
com os animais e na relação que mantêm com as espécies vegetais e suas propriedades,
percebe-se como estão inseridos num mesmo universo indiviso cujas partes interligadas
exercem influência mútua sobre suas vidas. Entretanto, a esses conhecimentos acumulados
através das gerações, somam-se novas informações, provenientes dos centros urbanos, as
quais acabam influenciando o seu modo de viver e de se relacionar.
Em todas as famílias visitadas há casos de parentes vivendo nas cidades próximas.
Muitos deles já moraram na colônia, numa espécie de revezamento familiar; outros ainda
estão por lá para trabalhar e/ou estudar e alguns chegam a manter casas nos dois lugares
98
.
A distância dos parentes que moram na cidade é bastante lamentada, sendo comum a
expectativa de melhorias na colônia para que seja possível o retorno dos entes queridos que,
por uma necessidade ou outra, tiveram que se deslocar de sua origem. Essa expectativa
também diz respeito à percepção comum entre os colonenses de que a vida dos parentes que
moram na cidade é muito difícil. “Na cidade a gente tem que dormir com a mão no bolso”
(Dona Olga -73 anos), frase repetida inúmeras vezes, como alusão ao conjunto das despesas
com transporte, luz, água e mantimentos inerentes à vida urbana. Outro sentimento comum
sobre a vida na cidade é que “lá não tem nada para fazer, você acorda e fica olhando um
para a cara do outro” (Seu Paulino - 83 anos).
Quando os colonenses necessitam viajar para a cidade ou sair para trabalhos
temporários, é preciso garantir que uma ou duas pessoas permaneçam tomando conta do sítio
e realizando os afazeres considerados imprescindíveis, como dar comida aos animais, manter
o terreno varrido, receber os visitantes, bem como esperar o recado no “Alô Pantanal” com
relação ao retorno da cidade para a providência da busca (de chalana) das pessoas (e
mercadorias) no porto. Na época de férias escolares, é comum que os jovens que estudam na
cidade voltem para a colônia e aí, segundo a Dona Margarida, “todos os dias é uma festa”.
97
Dona é a forma mais usual de chamarem as mulheres colonenses casadas.
98
Para não perder o direito sobre a terra, a família que necessita se ausentar escala alguém da família para ficar
cuidando da terra ou esta permanece sob os cuidados das pessoas mais velhas que geralmente preferem
permanecer na colônia ante a possibilidade de morar na cidade.
74
Outra forma comum de relação social consiste na troca de gêneros alimentícios entre
as famílias, conformando relações de reciprocidade estruturantes da socialidade colonense.
Além disso, no caso de situações de infortúnio, como a perda acidental da lavoura de uma
família (por exemplo, causada por fogo ou inundação), geralmente são oferecidos reforços de
alimentos em troca de algum serviço ou favores na lavoura de outrem.
Se a troca é um princípio que faz parte da vida colonense, para entender este
fundamento é esclarecedor perceber o que se troca. Para Sahlins (1978, p.215), a natureza dos
bens trocados parece ter um efeito independente no caráter da troca, embora, a comida seja
fonte de vida e a troca de comida um “delicado barômetro”, uma afirmação ritual, por assim
dizer, de relações sociais. Por outro lado, para Woortmann (1991, p.38), o espaço camponês é
um espaço moral, pois a troca entre os homens é a continuidade da troca com a natureza. É na
troca de alimentos que se realiza a troca com a terra; e é nas trocas (de tempo) do trabalho que
se constrói a terra e se produzem os alimentos. Para o autor, o elemento central desta troca é a
comida. Se ela tem um valor social grande demais para ser mercadoria, é por seu valor de uso
que ela assume o valor de troca no contexto da reciprocidade
99
. Entretanto o valor de uso da
comida não se limita às suas qualidades alimentícias; ele envolve também suas qualidades
como linguagem, uma linguagem que fala do pai, da família, do trabalho, da honra e da
hierarquia camponesa. Neste caso, a primazia é do todo sobre o indivíduo. Se a reciprocidade
exige um outro para que possa haver a troca, ela supõe, também, a construção de um nós, que
se contrapõe a um outro outro - o estranho. Esse nós é constituído por iguais em honra. Por
isso a reciprocidade se realiza no interior de um território que é, também, um espaço de
identidade (IDEM,1991, p.56-57).
1.2.6 Aqui se planta, aqui se troca
Os colonenses asseguram suas providências através da roça, combinada com o uso dos
quintais, que fornecem alimentos de hortas improvisadas, de árvores frutíferas e de pequenas
criações de aves. A criação de gado é uma atividade exercida por poucos e que se encontra
dificultada por restrições fundiárias e pela instabilidade de pastagens decorrente das
intempéries climáticas. Os vencimentos da aposentadoria dos mais velhos complementam a
economia nativa representando importante fator para a aquisição de medicamentos e produtos
99
Para Woortmann é a noção de reciprocidade mais do que a noção de troca que permite entender a
campesinidade. Ainda sobre o conceito de camponês e sua aplicabilidade em contextos brasileiros, ver Velho,
1982; sobre o sitiante tradicional e percepções do espaço, acessar Queiroz, 1974.
75
de uso doméstico não produzidos na colônia, como sal, macarrão, industrializados, tecidos,
dentre outros
100
.
Nos sítios colonenses, a roça geralmente encontra-se despegada da casa, e a forma
com que medem as distâncias é pelo tempo que se leva para chegar até ela. Desta maneira, a
roça pode estar a cinco minutos, a treze minutos, e houve caso de vinte minutos de passos
rápidos ou cinco minutos montado, e assim por diante. No caso de distâncias maiores, a
medida utilizada é a légua, como para indicar as distâncias até os portos ou para nos dizer a
medida total da colônia.
As ferramentas utilizadas na agricultura colonense limitam-se ao arado, à foice, à
enxada e ao enxadão. A produção agrícola é, em sua maior parte, destinada ao consumo da
família e da criação, especialmente galinhas, sendo o excedente trocado ou comercializado na
cidade, conforme os pedidos dos parentes que moram lá (através do “Alô Pantanal”), ou
destinado a atender as encomendas de pequenos comerciantes aos barqueiros que fazem o
trajeto da colônia.
Por ocasião da colheita, parte compatível é reservada e guardada em garrafas, que
ficarão à sombra ou nos quartos da casa. Esses grãos serão utilizados como sementes no
plantio seguinte. Os colonenses demonstram muita curiosidade e aceitação à oferta de novas
plantas e sementes para experimentação.
O cultivo em maior escala (variável aproximadamente de mil a vinte mil metros
quadrados) ocorre no espaço da roça, normalmente a uma certa distância da casa. À volta da
casa é comum encontrar as mesmas espécies plantadas em menor escala (aproveitando
espaços secos disponíveis), acrescida de árvores frutíferas que compõe a paisagem com as
plantas, árvores nativas e as construções
101
. Como geralmente a roça é cortada por um
caminho que leva a outros sítios ou faz parte da estrada para a casa, é comum fazerem fileiras
100
A aposentadoria, apesar de ser atributo à pessoa, sofre arranjos e re-arranjos mensais, pois, dependendo da
demanda familiar, ela não necessita chegar às mãos do legítimo titular do benefício. A maioria dos
aposentados autoriza a alguém da família que mora na cidade para retirar a aposentadoria no banco. Assim,
alguns destes são incumbidos de transferir parte do benefício para uma poupança em nome do aposentado, ou
de distribuir entre os filhos do aposentado; outros, ainda, devem direcionar parte do dinheiro para compras (a
serem enviadas para a colônia), mediante lista recebida pelo lancheiro ou recado pelo rádio. Isto tudo pode
variar de um mês para o outro, dependendo das especificidades de cada caso.
101
As plantas mais cultivadas nas roças da colônia são o milho, o feijão, o arroz, a mandioca, a batata, a batata-
doce, a cana, o cará, a banana e a abóbora. Muitas ervas medicinais como o “Passa-já”, a “Dipirona”,
“Algodão-do-mato”, dentre outras. Às frutas silvestres existentes adicionam-se plantios, geralmente próximos
à casa, de abacaxi, manga, laranja, fruta do conde, ata, limão coco, banana, amora, uva, maracujá. As hortas
geralmente são compostas de temperos variados, cenoura e beterraba; raramente folhosas. Segundo
depoimentos, isso se dá devido ao sol forte do local.
76
de plantas como corredor, normalmente frutíferas, criando uma espécie de avenida que
demonstra o capricho do agricultor.
A supressão do uso comunal do território colonense a partir da demarcação privada
dos sítios e a insuficiente área da grande maioria dos sítios da colônia têm, segundo
depoimentos, limitado a possibilidade no sistema itinerante “tradicional” de cultivo
102
. A
afirmação corrente é que quase não há mais mata para se plantar. No entanto, essa afirmação
diz respeito ao interesse e à demanda por plantios maiores, o que não significa que não se faça
uso de alguma forma de cultivo itinerante; isso foi possível constatar, em algumas
oportunidades, em que a experiência e sabedoria nativa no manejo de seu ambiente são
exercidas, reafirmadas e reinventadas a cada ano, dadas as diferentes situações e dificuldades
decorrentes.
Na lavoura, quando falam de seca, não necessariamente estão se referindo à estação,
mas também à estiagem, que pode variar dentro de cada estação. Por exemplo, pode-se ter um
período de seca em plena cheia e vice-versa, dificultando ou propiciando a lida agrícola. Um
tempo depois da brota e todas as vezes que for necessário faz-se a limpeza das roças, tirando
as ervas que podem competir com a plantação. Desde o plantio até a colheita observam-se as
fases da lua como determinante para as atividades. Por exemplo: “para o plantio de arroz a
lua melhor é a crescente, para o plantio de rama de mandioca a melhor e a minguante” (Seu
Feliciano). Estes critérios específicos também se fazem na coleta de qualquer material, seja
para fins medicinais ou madeiras para construções (retiradas principalmente na lua minguante,
segundo o informante).
No ritmo de vida pantaneiro, assiste-se, diuturnamente, a ataques de vários animais
tanto à roça quanto aos animais domésticos. A eminência desses ataques exige um modo ativo
de proteção da roça que, conforme foi possível averiguar, é antigo e necessário por aqui: o de
vigiar os animais, principalmente os pássaros que, em geral, atacam a roça em revoadas. Esta
atividade compõe o conjunto das atividades básicas do cotidiano colonense, durante todos os
102
O assim chamado “sistema” itinerante de cultivo, também denominado tecnicamente de agricultura de
“coivara”, consiste na derrubada de uma parte da mata, “enleiramento” e queima dos materiais para posterior
plantio de arroz combinado com uma série de espécies de interesse, especialmente banana e feijão de corda.
Após três ou quatro anos, com os primeiros sinais de enfraquecimento do solo e problemas com pragas, ervas
daninhas, sombreamento e rebrota da mata, esta era abandonada para início do processo em outro local,
permitindo a regeneração da mata dentro de um ciclo de regeneração e cultivo característico dos sistemas
agrícolas tradicionais.
77
dias do ano e independentemente da idade da pessoa que o faz, normalmente do sexo
masculino
103
.
Os procedimentos de colheita e armazenamento demandam bastante tempo e
concentração de esforços da família, sendo eventualmente feitos mutirões ou troca de serviço.
A razão da urgência de se colher está no fato de que, especialmente para cereais, o risco de
ataque de pássaros e de perda de produção nesta fase da planta é reconhecidamente maior. O
procedimento, no caso do arroz, consiste em cortar as plantas com foice, deixando-as durante
o dia sobre uma lona, secando ao sol; à noite as plantas são cobertas com a própria lona.
Depois de um tempo de secagem, batem-se as plantas em cima da lona; posteriormente os
grãos são recolhidos em sacolas próprias para o armazenamento na despensa sobre um jirau
feito de troncos de palmeira cortados ao meio. O milho também é recolhido na despensa e
armazenado ainda nas espigas, normalmente pendurado a certa altura, sob a ação da fumaça
que sai do fogão de lenha (para não carunchar); o feijão é colocado para secar na vagem, em
andaimes próprios, depois é batido e os grãos são armazenados com a palha e a poeira da
vagem seca (para não carunchar); os cachos da banana são colhidos em tempo e postos para a
maduração em local fechado, e assim tudo vai sendo retirado aos poucos para o consumo
diário. Normalmente calculam a quantidade que se vai consumir durante o ano, porquanto
tratam logo de trocar ou comercializar o excedente. As frutas e legumes são consumidos
assim que são colhidos ou, ao contrário, colhidos apenas na hora do consumo.
O sucesso da lavoura e da criação depende em grande parte da habilidade de realizar
leituras dos sinais e produzir o que Cândido (1971) chamou de “simbiose com a natureza”.
Apesar de os colonenses esquadrinharem o céu várias vezes ao dia, em busca de sinais
de mudança do tempo, eles não estão imunes a mudanças imprevisíveis. Muitas são as
conseqüências possíveis de uma tempestade surpreendente. Durante o período em que estive
na colônia, vivi tal experiência, quando uma dessas tempestades impressionou pela força e
pela rapidez como tudo se deu. Percebi, após o fatídico dia, que a paisagem, assim como os
caminhos do corixo, mudaram completamente com o vento. Uma tempestade transforma
totalmente a estrada na água, os baceiros (plantas aquáticas tidas como “sujeira” pelos nativos
por atrapalhar a navegação) mudam de lugar, impedindo a passagem em alguns trechos; na
103
Confesso que achei um tanto pitoresco encontrar o Seu Múcio (86 anos) vestido para a roça, com uma
“funda” (estilingue) e um saquinho de pano (cheio de coquinhos) amarrado ao corpo e pronto para espantar os
passarinhos. O Seu Henrique (73 anos) disse que mantinha o costume de seu antepassado Bororo que durante
o dia “vigiava” (a roça) e à noite “sondava” (a casa), contrastando assim uma diferença entre controlar a
entrada das aves (de dia) e procurar vestígios ou ninhos destes animais e de outros perigos à noite.
78
terra a maior parte da plantação deita, dificultando enormemente a colheita e propiciando o
aparecimento de bichos do chão
104
. A tempestade que constatei também provocou a queda de
inúmeras árvores e o destelhamento de várias casas. A reação das pessoas à tempestade era de
resignação, agindo com naturalidade e comentando o fato como se fosse algo quase que
corriqueiro. A Dona Anastácia, por exemplo, disse que aproveitaria para mudar o seu quarto
de lugar, pedindo a seus filhos uma nova construção.
No auge das cheias, dadas as dificuldades de circulação pela falta de espaço (seco),
quem possui cavalo ou alguma criação de gado tem que levá-los a cercados arranjados
estrategicamente em locais não sujeitos à inundação, ficando praticamente confinados nestes
locais mais altos que denominam cordilheiras.
Os criadores de gado, búfalos e carneiros os mantêm, em certas épocas do ano, em
confinamento nos currais próximos às casas. Porém, em alguns casos, deixam o gado
alongado (que se opõe à situação de confinado); isto é, os animais ficam soltos nos pastos
nativos, em acordos com os vizinhos (às vezes até com fazendeiros), ou são transladados
ocuparem eventuais pastos vizinhos.
O gado é considerado demonstração e fonte de riqueza, uma vez que poucos têm área
suficiente para sua criação e recursos para aquisição destes animais. Agrega-se a isso o fato de
os colonenses ter na carne o símbolo do alimento de excelência e de consumo invariável em
ocasiões especiais, festas e comemorações. Assim, Dona Margarida (78 anos) demonstra ficar
impressionada com a possibilidade de troca da produção da roça por carne, dada a quase
incomensurabilidade simbólica de valor entre estes alimentos e que, pelos mercados de troca
citadinos, é tornada exeqüível.
As poucas vacas existentes nos sítios colonenses são ordenhadas num regime que
depende da época do ano. Nas cheias, conseguem cerca de três litros de leite de cada vaca por
dia; na seca, esta quantidade se torna bastante reduzida, chegando a extremos de não se poder
ordenhar a vaca para assegurar o pouco leite para o sustento do bezerro, caso contrário, os
nativos sabem que este morreria de fome. O leite produzido na colônia é usado principalmente
104
A colheita ficou bem mais difícil e muito mais perigosa, pois, a exemplo de uma colheita, os grãos ficando
próximos ao chão atraíam ratos que, por sua vez, atraíam cobras. Como a colheita do arroz é feita
manualmente, a atenção neste caso devia ser redobrada. Desta feita, em poucos dias, em um pedacinho de
terra encontraram-se três cobras bocas-de-sapo e uma cascavel.
79
na alimentação de crianças e é objeto de dádiva entre famílias, quando alguma tem
necessidade maior (mais crianças pequenas)
105
.
A criação é cuidada com muita atenção; os animais são geralmente conhecidos em
suas características distintivas, sobressaindo-se os diferentes humores entre indivíduos.
Alguns recebem nomes próprios e muitas vezes são tratados como extensão do próprio
homem, são e fazem parte dos assuntos tratados nas rodas de tereré ou nas conversas em torno
do fogão, na rotina doméstica
106
.
No período das cheias, dada as limitações do espaço no seco, há peremptoriamente um
adensamento populacional de homens e outros animais, colocando todos em estado de
atenção, especialmente em relação às fêmeas com suas crias, normalmente mais agressivas às
intromissões em seu território. O caso mais típico é o do jacaré fêmea com sua ninhada,
temida pelos nativos nessas épocas. Ao contrário, mas similarmente, o período das secas se
torna mais perigoso para o caso de animais aquáticos agressivos ao homem, especialmente o
jacaré e peixes como a piranha e traíra, concentrando-se esses animais agressivos em
constritos cursos d’água, coibindo muitas vezes até o banho dos colonenses em alguns destes
locais.
Apesar do variado comércio interno e das trocas, como já foi dito, a Colônia São
Domingos não tem auto-suficiência alimentar. A produção local é complementada por
mercadorias da cidade. Pode-se comprar na própria cidade, fazer encomendas pelas lanchas
ou comprar produtos da cidade revendidos em alguns domicílios que comercializam alguns
produtos, recebendo os pagamentos em dinheiro ou na forma de troca, quando não usando o
expediente do fiado
107
.
A dieta muito rica em proteínas de origem animal torna as refeições pantaneiras
bastante pesadas. A carne (toda vez que se fala em carne é na carne de gado) é um produto
escasso e a carne de caça ou a carne de frango acaba por ser uma alternativa mais barata. A
situação de não ter geladeiras obriga a quem realiza um abate salgar a carne ou, então,
105
Como um exemplo de solidariedade local, nas cheias, a produção extra de leite é transformada em queijo
utilizado pelos próprios colonenses para fazer a tão apreciada chipa. Chipa é uma espécie de pão-de-queijo de
origem paraguaia, bastante presente na culinária regional.
106
Banducci (2005) escreveu que o convívio entre o pantaneiro e os animais domésticos evidencia que, longe de
expressar um interesse meramente pragmático, a relação entre ele se estabelece, baseada no contato diário, na
afetividade, no diálogo mútuo, possui uma infinidade de outros significados com que os animais chegam até
mesmo a simbolizar as qualidades ou os defeitos daqueles com quem estão envolvidos. “Por intermédio dos
animais, os homens conseguem mobilizar seu status através da hierarquia de prestígio social” (IDEM, 2005,
p.97).
107
O preço das mercadorias vendidas na colônia pode chegar a cinco vezes o da cidade, principalmente o fumo e
as bebidas alcoólicas..
80
distribuí-la entre os seus. Isto se faz normalmente na base da troca, embora as peças possam
também ser vendidas ou presenteadas.
Outras fontes de renda da colônia (além da roça, da criação e dos vencimentos das
aposentadorias) são os trabalhos temporários ou fixos nas fazendas de gado da região (que
podem durar de uma semana a mais de dois meses) e o engajamento militar. Muitas vezes
todos os homens de uma casa estão por conta destes serviços, ficando toda a semana fora e
movimentando os fins de semana na colônia com os seus retornos às casas. O engajamento no
serviço militar é referido como algo muito significativo para os pais colonenses quando algum
filho consegue este feito, sendo que muitos procuram aulas particulares em fazendas da região
para se preparar melhor para as provas. Paralelamente aos filhos que moram na cidade e aos
que estão engajados no serviço militar, estão os empregados fixos das fazendas. Quando nesta
condição, normalmente voltam para casa quinzenal ou mensalmente. Há casos em que
realizam trabalhos dos fazendeiros relacionados à própria colônia ou através dela,
transportando produtos dos portos ou dos sítios para as fazendas ou vice-versa. A questão é
que a dinâmica de quem está, quem vai e quem fica, mobiliza às vezes toda uma vizinhança
ou toda uma parentela, que redistribui os serviços e as obrigações. Encarrega-se de fazer
funcionar, de manter e de resguardar as casas, as pessoas, os sítios e a colônia como um todo.
Esse “sair para trabalhar” é inerente à própria mobilidade do pantaneiro. Os
mecanismos que lhe dão sustentação são complexos e extensos e podem ser, em parte, vistos
no estudo de Banducci (2005), quando fala da autonomia do vaqueiro e suas implicações.
Muitas vezes ocupando o lugar de peões pantaneiros, os colonenses estendem suas redes de
relações através das fazendas. Segundo o autor, os trabalhadores temporários ficam por
longos períodos residindo em acampamentos isolados nos campos e beiras de mato, onde
constroem pequenos ranchos cobertos com folha de acuri, palmeira comum na região,
distribuindo entre eles as tarefas de cozinha e limpeza, pois nos acampamentos não existem
mulheres
108
.
As mulheres colonenses ficam em casa quando seus maridos e filhos estão trabalhando
fora. Nesse caso, o mais usual é contar com a ajuda dos filhos ou filhas menores, e de um
empregado para tratar da lida no sítio (roça e criação). É comum nesses períodos realizarem
visitas mútuas (para se fazerem companhia), ou combinarem executar as tarefas em grupo,
108
O rancho é uma categoria nativa que designa a construção feita para abrigar as pessoas que estão cuidando da
roça e consiste em um único cômodo que abriga a rede e o fogão à lenha, sendo um telhado de duas águas
fechado com acuri trançado desde o chão até a cumeeira (ver foto 7). Pode-se construir no local um jirau
(espécie de mesa fixa) que abriga todos os pertences do empregado. Este mesmo tipo de rancho ou casa
temporária pode ser o usado pelos colonenses quando estes saem para um trabalho temporário nas fazendas da
região. As características construtivas do rancho colonense são idênticas às da “tradicional casa Guató” que
funciona como abrigo provisório, descrita e ilustrada por Oliveira (1996).
81
como no caso de lavar roupas na época da seca, ou participar dos mutirões de colheita. A
mulher raramente é remunerada pelos serviços, a não ser quando faz queijos e doces para
vender ou quando ajuda na lavação de roupas e na cozinha para alguém de fora que está de
visita - ainda que ficando nos domínios de sua própria casa -, ou quando trabalha ficando nos
domínios da praia (como é chamado o lugar da casa principal na fazenda pantaneira), o que
ocorre quando o marido é contratado e a leva consigo pelas fazendas por um período maior.
As adversidades e a sazonalidade dos serviços, dada as especificidades da roça e da
criação colonense, muitas vezes fazem emergir formas espontâneas de organização para o
trabalho. Outro exemplo dessas formas coletivas e solidárias de trabalho ocorre quando é
preciso limpar a estrada do corixo, para o benefício de todos que ali trafegam. Nestas
contingências, chega-se a juntar de doze a quinze homens em um grande mutirão para
trabalhar com água pela cintura por até trinta ou quarenta dias. Porém, é recorrente o
depoimento dando conta da progressão da dificuldade da formação destes mutirões, somente
realizado quando a situação torna-se insustentável. As razões do incremento dessas
dificuldades cooperativas devem-se, segundo alguns informantes, a desentendimentos entre
alguns moradores, principalmente em torno da questão da associação. Estes desentendimentos
também aparecem refletidos nos espaços e comportamentos, como por exemplo, em forma de
cercas ou de caminhos alternativos para se “desviar” da casa rival
109
. Outra modalidade de
mutirão observada consiste em organizar uma vizinhança para limpar um varador usado pelas
crianças no acesso à escola, ou em limpar os acessos à igreja ou o próprio terreno em volta do
templo.
No entanto, o mutirão mais comum de ser observado é quando alguém está em
dificuldades para a colheita e com riscos de perda caso esta não se realize rapidamente.
Reúnem-se então (quase que numa convocação) os que podem ajudar até o término da tarefa,
sendo o dono da casa encarregado de assegurar as refeições e de fornecer água, eventualmente
bebidas e outros emolumentos de interesse dos presentes. Em casos especiais de acidentes ou
de danos materiais sofridos por uma família devido a eventos climáticos, ocorre também a
realização de um mutirão de solidariedade. Foi o que constatei com a construção de uma casa,
realizada às pressas, que precisou ser refeita em outro lugar por conta de uma enchente.
Em grande parte dos sítios visitados, encontrei alguma pessoa tida como empregado
ou agregado. A principal exigência é que seja um “estranho” (não ter vínculos familiares),
109
Foram observados alguns casos em que os envolvidos em brigas foram afastadas do convívio entre os
colonenses. Deste modo, alguns se tornaram empregados temporários em fazendas ou retiros afastados e
outros encaminhados para a cidade, reduzindo as possibilidades de persistir o conflito. Houve um caso em
que as crianças da casa é que foram penalizadas, tendo que caminhar por horas diariamente para freqüentar a
escola mais longínqua por causa de uma briga entre os seus pais e a família da professora da escola mais
próxima.
82
pois o sítio é lugar da troca e ademais, “com parente não se neguceia” (WOORTMANN,
1990). Via de regra, são pessoas que atendem alguma das seguintes condições: a) pessoas
idosas que têm dificuldade de arranjar emprego na cidade, normalmente recebendo
aposentadoria; aceitam trabalhar na colônia em troca da alimentação e moradia para assim
poder “livrar” o dinheiro da aposentadoria, quase sempre comprometido com algum parente
em dificuldades financeiras; b) homens aposentados devido a alguma deficiência, com
problemas de doenças, mas que não os impedem de contribuir nas tarefas domésticas; c)
homens da cidade ou da colônia com problemas mentais; d) homens com problemas com a
justiça ou foragidos desta; e) pessoas, geralmente jovens, cujos parentes venderam suas terras,
mas moram na colônia por opção e laços afetivos. As atividades por eles exercidas são das
mais variadas do âmbito doméstico (como buscar e cortar lenha, buscar água, varrer o quintal,
“vigiar” as galinhas do ataque de pássaros ou jacarés, dentre outras) bem como,
eventualmente, ajudando na roça. Trabalham normalmente desde uma hora a meia hora antes
do alvorecer até aproximadamente oito horas da noite, quando, após breve conversa junto ao
grupo familiar dos “patrões”, vão dormir em seus ranchos (foto 7)
110
.
Foto 7 - Rancho.
Ainda figuram na colônia as parteiras, benzedeiras(os) e curandeiras(os), atividades
normalmente associadas a mulheres e homens de idade mais avançada. Segundo habilidades
especiais, existe ainda o domesticador de reses para carro-de-boi, o “achador” de água (cuja
técnica consiste em usar uma forquilha de madeira ou um galho preso à cintura, percorrendo o
terreno até que voluntariamente a ponta da forquilha se inclina para baixo indicando o ponto),
o mateiro, o marceneiro que confecciona barcos e móveis, o cortador de cabelos e o piloteiro
(oficialmente habilitado a navegar).
110
Estes agregados/empregados recebem, no geral, quantias muito baixas pelo seu trabalho (de R$ 60,00 a 80,00
ao mês, além da alimentação) se comparados ao salário mínimo rural, quando não somente, como se diz, “o
necessário para sustentar o vício”. Neste caso, o pagamento é feito informalmente, mantendo suas
“necessidades” em aguardente e fumo.
83
1.2.7 Os ciclos de uma vida
Ainda há menos de uma década os nascimentos se realizavam na própria casa da
família colonense, conduzido pelas parteiras da região ou por alguém da família, como conta
a Dona Margarida (78 anos):
Minha sogra é que fez os meus partos. Na colônia tinham outras parteiras.
Lá no Bracinho tinha uma parteira famosa. Tinha a Nhanhá, uma bugrinha,
parteira boa. Eu ficava escorada, deitada dói mais. Seu Múcio segurava as
pernas. A parteira endireitava quando a barriga não tava boa. Sabia onde
tava o braço, as pernas e endireitava. Só pela mão passando já conhecia. De
cima pra baixo, só ia colhendo. Eu ficava cansada. E dizia: se demorar mais
um bocadinho eu vou morrer! E ela falava: cala com essa boca, Margarida!
Para com essa boca! Fica quieta! Botava uns pano na minha boca. Quando
de noite, só passava um pano no nenê. Cortava o umbigo e queimava com
vela.
Ainda ocorre de mulheres preferirem ter seus filhos deste modo. No entanto, devido a
alguns casos relatados de complicações do processo de parto com um final trágico (morte da
mãe, do bebê ou mesmo de ambos), agravados pela inviabilidade de outros recursos pela
distância da cidade, hoje predomina a opção por realizar o parto na cidade. Porém, cabe
ressaltar que muitas mulheres dizem só preferir a cidade devido à falta de boas parteiras.
Considerando a dificuldade do transporte e as largas distâncias, as futuras mamães
costumam ser deslocadas para a cidade até com um mês de antecedência, para esperarem o
dia do parto, tendo, portanto, que viabilizar previamente esta estadia e apoio entre parentes e
conhecidos citadinos. E somente após terminar o devido período de resguardo pós-parto (o
puerpério) retomam suas vidas na colônia. Dona Branca expressa assim o drama de se ter
filho neste lugar,
Tive quatro filho aqui. Minha sogra foi parteira de todos. Dona Maria
Ciriaca, mãe do Justino. Ela faleceu faz 28 anos. Tem dois que fui lá pra
cidade pra nascer. Fui porque já não tinha mais a sogra... Teve mês lá
esperando, tava meio perdida no tempo. Fomos na lanchinha. Saía lá da
Figueira. Era dois dia de viagem até Corumbá. Teve uma dona que o nenê
nasceu dentro do barco. Saiu do porto Piuvinha. Outra foi pra Figueira e
ganhou no porto, antes de sair.
Há muitos colonenses que ainda hoje nunca foram à cidade, não possuem registros ou
quaisquer documentos. Para atos oficiais como casamentos e batizados, exige-se também um
deslocamento para o município, algo que há pouco tempo acontecia somente em casos muito
extremos.
84
Em questão de crenças religiosas, os colonenses declaram-se ou católicos ou
evangélicos. Há algum tempo, realizavam-se missas católicas com freqüência bimensal na
colônia (com o padre vindo da cidade). Atualmente, segundo depoimentos, essas cerimônias
têm sido menos freqüentes. A cerimônia católica costuma ser realizada no espaço da escola. A
igreja Assembléia de Deus (única representação evangélica do local) localiza-se na parte de
baixo e tem sua sede própria (uma singela construção de madeira). O vizinho de lote se
encarrega da manutenção do templo e há mutirões de limpeza quando se mostra necessário. O
pastor mora há uma distância razoável do templo (aproximadamente 30 minutos), e o
caminho nem sempre está limpo, apesar de ser grande parte no seco para a maioria das
pessoas. Já houve reuniões com até quarenta membros, mas normalmente os cultos têm sido
bem mais modestos.
De todo modo, a relação do colonense com a religião está diretamente ligada com os
elementos da natureza e com a as pressões que os envolve no cotidiano, muitas vezes sem a
mediação da igreja oficial (a semelhança dos camponeses descritos por MOURA, 1986, p.20).
As vestimentas e a linguagem bastante peculiar dos moradores da colônia completam
singularmente os predicados desta população. As roupas que vestem são muito simples, sendo
que parte delas é confeccionada na própria colônia, uma vez que toda casa, invariavelmente,
tem uma máquina de costura. Os evangélicos tendem a se diferenciar em suas vestimentas: as
mulheres sempre estão de saia, mesmo que debaixo delas vistam calças, e os homens vestem
no dia-a-dia roupas sociais, mesmo remendadas. Hoje em dia se tornou mais fácil comprar
camisetas e calças na cidade, sendo que, segundo Dona Margarida (78 anos), antigamente não
era assim; os jovens, ao saírem, normalmente usavam camisa e calças compridas, vestidos,
saias e blusas, confeccionadas pelas mães, muitas vezes com um mesmo tecido,
principalmente para os dias de festa, quando “se passava a noite costurando”.
A religiosidade católica se evidencia na devoção aos santos. A devoção é reafirmada
na comemoração aos dias santos que são religiosamente guardados, nos nomes dados aos
sítios, na benção pedida aos mais velhos seguidos de um “Deus abençoe” e nos altares
domésticos, sempre presentes em lugares de destaque nas casas dos católicos. Os evangélicos
são mais discretos, limitando-se a frases de proteção escritas nas paredes (ou portas). Os sítios
de evangélicos recebem nomes como Nova Vida, Nova Morada, Nova de Paz, etc.
111
111
Outros nomes podem se referir a alguma propriedade do meio ambiente em que vivem, do tipo: Corixinho,
Piuvinha, Lagoinha, Recanto, etc; ou referir-se a coisas mais gerais como: Maravilha, Pingo D’água, Guarani,
etc.
85
Independentemente do crédo, as mulheres usam madeixas compridas amarradas nas
costas ou presas em um coque. Em geral, os varões cultivam um bigode bem aparado, e a
barba é geralmente feita uma vez por semana. Normalmente são exímios andarilhos e
zingadores, sugerindo aí uma explicação para a preponderância de corpos fortes ou magros
(não constatei qualquer homem colonense com sinais de obesidade; as raras exceções são do
sexo feminino).
Os colonenses demonstram algumas particularidades semânticas e de prosódica que
constituem a fala pantaneira, fluindo respeitosamente na presença de estranhos. A fala comum
dá identidade ao colonense. Quando alguém conta uma novidade, é comum ouvir um “mas
quá”, demonstrando incredulidade e também como sinal de atenção e interesse no assunto.
Algumas pessoas são conhecidas pela habilidade em contar “causos”, mas as conversas
cotidianas atestam amenidades e a alegria simples do colonense. Raramente foram observadas
situações de conversas que implicassem descontentamento, tristeza ou revolta. Falam muito
de experiências passadas e saudosamente do tempo em que a colônia era mais movimentada,
com mais festas e com muito mais moradores que na atualidade (curiosamente até mesmo os
evangélicos, via de regra, referem-se aos bons tempos das festas da colônia, mostrando que há
uma mescla difusa nas crenças).
No geral, os colonenses, homens ou mulheres meneiam pouco a mão, gesticulam
pouco e falam baixo, discrição quebrada somente por alguns que se mostram mais curiosos
diante de estranhos, perguntando a respeito de tudo e usando todos os recursos para chamar
atenção, mas, normalmente, sem fitar nos olhos do interrogado. Quando o assunto está muito
interessante, podem inclinar um pouco o corpo, mas normalmente conservam as distâncias
dos corpos muito superiores às da praxe urbana. Fiz esta constatação tanto observando as
conversas entre eles como estranhando as distâncias (às vezes até de três metros) com que
dispunham os bancos ou cadeiras quando se chegava em alguma casa para visitar. Raramente
se tocam; o cumprimento é de apenas por meio de um aperto de mão, ou batendo com a mão
no chapéu, ou mesmo tirando-o da cabeça e inclinando-se suavemente. A despedida é do
mesmo modo bastante fugaz, seguida de recomendações e saudações respeitosas à família.
O uso do espaço na interação, segundo HALL (1968), é visto como parte de um
sistema de gestos, em grande parte inconsciente, que revela a formação das pessoas e a visão
que elas têm da situação social. As técnicas corporais, ou seja, o corpo tomado como objeto
específico de estudo, são “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade, e de
86
maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos” (MAUSS, 1974b, p. 211)
112
. Em outras
palavras, pode-se dizer que a percepção do espaço acontece no “fazer que nele se desenvolve”
(BETTANINI,1982, p. 30)
113
.
Os mortos na colônia são enterrados em quaisquer dos três cemitérios existentes,
localizados nas proximidades do corixo: um na parte de cima, outro na parte de baixo e um
terceiro no centro. Percebi (embora tardiamente) que o planejamento dos espaços dos
cemitérios poderia fornecer pistas sobre a organização social colonense. A separação em três
espaços diferentes, por exemplo, é um forte indicativo de que o território seria ocupado
distintamente pelos primeiros grupos que ocuparam a colônia (há nos três cemitérios túmulos
do início do século XX). Na atualidade, escolhem simplesmente o que está mais próximo à
casa do falecido. Os caixões são providenciados por eles mesmos, e o velório acontece na sala
da casa do falecido. Muitas vezes, no transporte do defunto, há corixos ou pinguelas, que para
transpor torna o enterro um ritual cheio de percalços. A limpeza do cemitério não é realizada
assiduamente, segundo depoimentos, com exceção de algumas pessoas que limpam em
véspera do dia dos finados ou em dia de aniversário de um parente falecido. Na prática, afora
curtos períodos durante o ano, o que se vê é uma expressão de abandono nos três locais, até
porque, pela baixa população e a dispersão em três locais, os enterros tornam-se casos raros.
Em uma observação superficial, uma modesta cruz de madeira marca cada cova, uma cruz
maior marca em cada extremo o lugar do cemitério. O cemitério mais centralizado, segundo
consta, antigamente era um cemitério de crianças, embora hoje não tenha mais esta
especificidade. A manutenção dos cemitérios colonenses indica as três regiões em que mais se
evidenciam os locais comunitários, indicam concepções e práticas diferenciadas que merecem
um estudo mais detalhado além do alcance deste estudo.
Considero essencial para concluir este capítulo reter algumas idéias que são centrais
para este estudo. As formas do uso do território diferem sensivelmente nas diferentes regiões
colonenses, sendo que, os de baixo estão muito mais sujeitos aos usos do corixo e às suas
variações, diferentemente da situação dos sítios e moradores da região central e de cima, onde
112
Para o autor “o corpo é o primeiro e mais natural instrumento do homem... o primeiro e mais natural objeto
técnico e ao mesmo tempo meio técnico...” (p.217) e “a especificidade é o caráter de todas as técnicas”
(p.213) e também de toda atitude corporal, sendo que “cada sociedade tem os hábitos que lhe são próprios”
(IDEM). Desta maneira, como os hábitos são socialmente construídos, não existiriam “maneiras naturais”. Ele
propõe, portanto, para a adequada investigação dos fenômenos referentes ao corpo, a adoção de uma “tríplice
consideração”, englobando a sociologia, a psicologia e a biologia, possibilitando assim que o ser humano seja
visto de maneira total. Moore (2000) nos lembra que o corpo é uma das formas de construir a identidade e
traça paralelos entre a relação entre corpo e representação e o elo entre corpo e auto-identidade.
113
Segundo Bettanini, o pressuposto é recíproco, ou seja, não pode haver um fazer sem espaço e de que não há
um espaço sem fazer.
87
é possível criar o gado e outros animais de porte maior. Da mesma maneira, a proximidade
dos animais selvagens e do ambiente mais vulnerável ao alagamento faz com que as
atividades dos de baixo sejam vistas como sendo mais perigosas e menos admiráveis.
Contudo, não se pode esquecer que o gado para o pantaneiro representa poder e riqueza, assim
como pode refletir sua hombridade e habilidades pessoais
114
.
Os outros agrupamentos colonenses se diferenciam principalmente pelas poucas
famílias que ocupam rincões muito específicos, como é o caso da lagoinha com sete casas
(onde são todos parentes) e do recanto e do brejão, cada qual com quatro casas (com
distinções familiares). Apesar das diferenças na socialização do território e nas respostas
adaptativas de cada casa ou grupos de casas, estes não estão isolados; a exemplo de Silva
(1998), de certa forma, “aqui tudo é parente”
115
.
Desta maneira, em suas próprias terras, os colonenses desenvolvem suas relações
sociais e compartilham seus valores definindo um modo próprio de vida. Surgem como grupo
social em um contexto histórico específico, a partir de quando afirmam e defendem o seu
território. A concepção de mundo para o colonense está regulada não apenas pelo convívio
familiar e social que se definiu através da história, mas também por uma relação específica
com o seu território (Pantanal), fruto de um modo de conceber e ordenar o tempo e o espaço
que acaba por ser representação de si mesmo (pantaneiro).
Exemplo desta concepção é o sistema de circulação e comunicação colonense que se
cria e recria permanentemente e se realiza na própria dinâmica da sazonalidade. O modo
como o colonense classifica o seu território, a fauna e a flora, trazem elementos que
ultrapassam a ordem pragmática das coisas. As relações baseadas no contato diário, na
afetividade, reproduzem os seus valores outros. Do convívio intenso em um mesmo território
- entre pessoas, animais e plantas - os colonenses (como legítimos pantaneiros) “não existem
por si mesmos, mas apenas enquanto elementos considerados em relação mútua” (Banducci,
2005, p.46).
114
Os estudos de Banducci (2005, p.91e117) mostram as ambigüidades desta representação, sendo que em
contextos pantaneiros o ser peão entra em contraste direto com o ser agricultor que é uma atividade tida como
de pouca valentia e ainda anti-social, pois é necessário morar no mato para exercê-la, alijando-se o agricultor
do convívio social. A ambigüidade fica por conta de que, para domesticar a terra tornando-a mansa, o
agricultor tem que lidar com o habitat de animais ferozes e precisa de habilidades não menos admiráveis que
a do peão. Outra questão é que, na colônia como nas demais localidades, é usual que as mulheres trabalhem
no espaço da lavoura, não sendo a ela permitido, pelos perigos que representa, a lida no campo, lugar
masculino por excelência.
115
Penso que para aprofundar as possibilidades desta pesquisa seria necessário realizar um estudo de parentesco
entre os colonenses, em uma interface do que considero campo da etnologia indígena.
88
O debate antropológico sobre apropriações do espaço (CASTELLS, 1987) busca
entender como isto acontece, “o espaço contém em si as qualificações e, especialmente, as
diferenciações que definem modos peculiares de saber e sentir para aqueles que nele vivem”.
Se privilegiarmos os usos dados e os significados atribuídos, pode-se dizer que os espaços da
casa (particular) e do corixo (coletivo) são e sempre foram o grande local de encontro entre os
colonenses. Da relação casa-corixo se pode, a princípio, inferir que os caminhos colonenses
fazem parte de uma rede de atalhos que ligam vidas e denunciam uma concepção de território
onde não prepondera a divisão por sítios; eles não acompanham a mudança de sistema (dos
eixos fundacionais).
O “plano da comunidade” se pode observar na relação entre os diferentes espaços
(entre a criação e os demais animais, entre a plantação e a mata, entre o corixo e o rio, entre a
casa e a tapera, nos caminhos, etc.). Esta espacialidade inscrita no cotidiano pode ser a própria
expressão da liberdade para o colonense, uma vez que estão intrinsecamente ligados à
mobilidade, que se liga por sua vez à autonomia, à riqueza e ao prestígio social. O
conhecimento e a habilidade em torno dos processos de cura, da lida com a criação e com a
agricultura, das construções e da fabricação de instrumentos, da prática e da orientação nos
usos do território e do habitat variado, podem, igualmente, evidenciar a forma com que se
situam no mundo. No entanto, são nas regras de sociabilidade e nas normas de conduta,
tecidas numa convivência secular com plantas e animais, com ciclos permanentes de secas e
cheias, que se evidenciam as práticas sociais, o modo como o colonense percebe o seu
ambiente cotidiano e como se relaciona com seus pares.
Neste estudo busquei os processos socioespaciais para dar sentido às práticas sociais
no espaço do cotidiano a partir as diferenças engendradas pela troca de sistemas. Observei que
do sistema de antigamente continuam presentes as taperas, os caminhos e o sistema de trocas,
que são a base para a configuração e os modos em que se assenta a atual vida coletiva
colonense. Ao me instalar no cotidiano doméstico, observo que mesmo após sucessivas
intervenções sobre o território e sobre os modos de vida colonense, o estilo de vida e as casas
mantêm a mesma forma!
89
CAPÍTULO II
TERRITÓRIOS DA VIDA COTIDIANA: O ESPAÇO VIVIDO
No capítulo anterior estão colocados elementos da história da Colônia São Domingos a
partir da gênese da ocupação e do uso do território, contada pela narrativa oral colonense, um
processo que se inicia em 1905 e que continua até hoje. Busco ainda, no capítulo anterior
caracterizar, sumariamente, os modos da espacialidade na colônia - para compreender a
relação ambiente e práticas sociais - porque, por contraste, serão fundamentais para entender o
cotidiano doméstico e a casa como espaço colonense de sociabilidade.
Os colonenses têm como forte referencial o meio físico, e, portanto, a realidade
espaço-temporal que ordena e organiza as suas vidas é constituinte indissociável de sua
condição como grupo social. A partir do quadro da espacialidade e dos usos do território
colonense projetam-se três regiões colonenses que mais se evidenciam como pólos
diversificados de atividades ou locais comunitários: do baixo, do centro e de cima. No
contexto colocado pela etnografia dos usos do território, nas distintas quadras do ano,
descrevo a diversidade de formas com que os colonenses em diversos pontos do território se
apropriam e socializam o habitat e como a forma da casa coloca-se como chave explicativa
para compreender o espaço e a territorialidade sob o ponto de vista das exegeses nativas.
Para apreender as práticas e representações sociais destes espaços do cotidiano, dou
ênfase analítica a três sítios representativos das várias situações socioespaciais colonenses.
Para tanto, os critérios de seleção foram: a) as categorias nativas do “de baixo” e do “de
cima”, tendo o cuidado de optar igualmente por um terceiro sítio que estivesse localizado
mais ao centro do território; b) selecionei, da mesma maneira, uma família extensa, uma
família elementar e uma outra, que estivesse na situação de “confinada” do pai; c) procurei
igualmente sítios que expressassem o de “menos posses”, o “de mais posses” e ainda outro
que fosse intermediário; d) outro critério usado foi a classificação do INCRA, que define as
famílias com “título definitivo”, com “licença de ocupação” e apenas com “posse” do lote; e)
e, finalmente, o critério com relação à casa que, embora semelhante na forma, apresenta
materiais e usos diferenciados.
90
Mapa 5 - Mapa de localização dos sítios escolhidos e seus entornos.
91
2.1 Sítio Nova Vida
O Sítio Nova Vida é, em parte, uma ilha (de 3,00 hectares) e é, em parte, uma
península (com 8,00 hectares). Um sítio e duas casas, sendo que, em termos nativos, os
moradores de uma casa são confinados aos da outra. O sítio está situado na parte de baixo, na
região mais alagável da colônia
116
. Sua localização não é exatamente dentro da colônia, mas
encontra-se na “fronteira” pois fazem parte do rol de casas colonenses que reivindicam a
terra, são posseiros que moram a mais de dez anos no local. Os “de baixo” e os “de cima” são
expressões que aludem, a princípio, a dois extremos do território, conforme já largamente
explicado: à parte mais baixa e alagável (a de baixo) e a parte mais e alta e seca (a de cima),
mas que também ensejam outras propriedades como se verá adiante.
Há duas maneiras para se chegar ao Sítio Nova Vida: navegando pelo caminho do
corixo ou andando pelo caminho de chão. Pelo corixo dá-se primazia à chegada ao porto da
casa 1 e pelo caminho de chão, à na casa 2 (ver implantação das casas no mapa 6). Nas casas
não há outro acesso possível; as pessoas sempre chegam pelo mesmo lado caminhando e/ou
montadas ou desembarcam nos portos das casas (lembrando que na colônia cada casa tem o
seu porto).
As casas deste sítio são próximas, porém estão separadas pelo corixo. Desta maneira,
uma casa não tem a visão da outra, o que, todavia, não impede que tenham espaços de uso em
comum. Como se pode ver na implantação (mapa 6), a roça 2 encontra-se pegada à casa 2 e a
roça 1 se localiza separada fisicamente da casa 1. Optou-se por juntar as casas e as roças. As
roças neste caso são correspondentes às duas casas do sítio, localizaram-nas juntas na melhor
terra para lavoura. O fato de o sítio estar situado numa região que é alagada durante a maior
parte do tempo pode ter implicações diversas, como, por exemplo, a de ter sua a casa
despegada da roça.
116
No baixo colonense os sítios geralmente são circundados pelos corixos e em determinadas épocas do ano
formam verdadeiras ilhas. O território na parte de baixo não está demarcado fisicamente, diferentemente do
restante da colônia onde os sítios se dividem e há cercas delimitando cada lote. Esta é uma área que pertence a
uma fazenda e que foi ocupada há 22 anos com o consentimento do proprietário, que posteriormente a
vendeu. As famílias que ocuparam a parte de baixo são colonenses ou paiaguenses que já trabalhavam a
agricultura em região pantaneira porquanto se interessam pelo ambiente do baixo bastante propício para a
agricultura. Muitos são parentes ou conhecidos de largo tempo que, por vários motivos, perderam suas terras
ou empregos anteriores, ocupando atualmente esta área bastante inóspita e alagável.
92
Mapa 6 - Mapa de implantação do Sítio Nova Vida.
93
A cordilheira escolhida para abrigar as duas casas deste sítio mantém parte da
vegetação nativa. As casas e seus quintais são verdadeiras ilhas, pois se encontram
circundadas pelo corixo e pela vegetação. Dividem as duas casas o corixo e uma vegetação
fluvial que é o habitat de jacarés, segundo os moradores. Esta vegetação impede a visão de
uma casa para a outra ou, melhor dizendo, de um batedor para o outro. Não obstante a cortina
formada pela vegetação, dá para escutar nitidamente o ruído de quem está trabalhando na
outra casa. Fora dos locais onde se localizam os portos, os moradores deixam o resto das
margens com a vegetação nativa, para proteger o corixo e, ao mesmo tempo, evitar, em suas
palavras, “que a terra afunde”. Nos locais limpos ficam os batedores e os portos onde são
estacionadas as chalanas que ligam a casa ao exterior.
Diferentemente das regiões onde a maior parte da água se esgota em determinadas
épocas, possibilitando o planejamento do uso dos espaços dentro da variação sazoneira, na
região sempre alagada do Sítio Nova Vida e de seus vizinhos posseiros (são treze casas no
total), a parte do firme (que não alaga) tem muito valor. Usa-se o terreno de acordo com as
possibilidades que ele oferece. A dificuldade em lidar com criações de grande porte como o
gado, cavalo e carneiros no terreno alagadiço empurra os seus moradores a procurar
alternativas na agricultura.
As cordilheiras e capões-de-mato muito férteis são utilizados para o plantio. As
famílias que ocupam a totalidade dessas áreas possuem aptidão e habilidades especiais para a
agricultura; foram chegando aos poucos pela possibilidade de fincar morada. Para
acompanhar melhor a especificidade do terreno, procuram conversar e combinar entre si as
alternativas e formas de plantio, que são individuais ou “a meia”, se pensarmos em termos de
trabalho e renda, mas é patrimônio de um coletivo, se pensarmos em termos de resultado
prático e do conhecimento
117
. Tanto que acabam por produzir excedentes e assim realizar as
trocas (principalmente por produtos de origem animal). Não havendo cercas dividindo um
sítio de outro, quase como no sistema de antigamente (visto no capítulo anterior), o que
prepondera é uma combinação de marcos naturais que delimitam o que é de cada um e o que
pode ser usado pelo coletivo. Uma mata pode ter uso coletivo ou fazer a transição de um sítio
ao outro e o uso de áreas que estão descansando ou ainda não exploradas, dependendo dos
acordos entre vizinhos.
O sentido de ser vizinho neste contexto (do baixo) adquire um sentido muito mais
definido, pois, para superar as barreiras inóspitas, as pessoas se aproximam e a interação entre
117
De “a meia” significa fazer a roça compartilhada com uma outra pessoa.
94
casas se torna muito mais solidária e profunda. Fazem companhia uns aos outros quando
necessário, no caso de alguma onça estar rondando a casa, por exemplo. A socialização do
território é distinta daquela dos outros ambientes colonenses. Enquanto no centro e em cima
as famílias dividem o pasto e se preocupam com o fogo na época das queimadas, suas
mulheres precisam ir longe e se agrupar para lavar roupas e as casas compartilham o uso de
cacimbas
118
, os de baixo observam com muito mais atenção a variação do rio, fazendo
contenção e aterros ou mudando a casa de lugar em casos mais extremos; buscam a parte mais
limpa das baías para trazer água potável e compartilham rincões de mata para apanhar lenha,
remédios, etc.
Na região do baixo as principais estradas são as do corixo, e o transporte é feito em
chalanas e canoas que cada sítio possui. É esta a forma mais comum de se visitar e
compartilhar os alimentos, realizar as trocas e se presentear
119
. Neste caso, o porto que cada
casa possui é o principal ponto de chegada, e as estradas do corixo são o principal articulador
das relações dos sítios e das casas. Nas cheias, esta articulação se estende aos demais
conjuntos de casas colonenses, sendo possível ir de uma ponta a outra de canoa ou chalana.
Por outro lado, os sítios que estão em cima não têm a prática e tampouco o equipamento que
os de baixo têm para lidar com as cheias, ficando reféns em seus sítios e casas, confinados a
um espaço mais restrito, assim como o seu gado.
O sítio Nova Vida é um dos mais humildes da colônia, e também um dos mais
animados, pois lá se costuma receber visitas vindas da cidade. No Sítio Nova Vida, todos
freqüentam a igreja Assembléia de Deus. As vestimentas e a linguagem são bastante
peculiares entre moradores evangélicos. As roupas são muito simples, confeccionadas por eles
ou compradas na cidade. As donas (como chamam as mulheres casadas) sempre usam cabelos
compridos e saia, mesmo que debaixo dela, quando faz frio, vistam calças compridas. Os
118
Cacimba consiste em uma espécie de poço que geralmente é cavado no leito do corixo quando as baías estão
secas ou sujas; normalmente é feito em épocas de seca extrema. Quando a água da cacimba é boa, ou seja,
tem água potável em abundância, pode ser compartilhada por várias casas. As pessoas muitas vezes
caminham quilômetros para buscar água, inclusive para dar de beber aos animais. As cacimbas são diferentes
dos poços; estes existem independentemente da estação, são dispostos geralmente próximos às casas e é mais
um subsídio para provê-las de água limpa e potável em curta distância, sendo de uso particular. A cacimba é
cavada no leito do corixo, em lugar tido como sendo do coletivo.
119
É mais provável que a carne seja conseguida em sítios que ficam na parte central onde já é possível a criação
e onde se carneia. Quando isso acontece, manda-se avisar a família, pessoas que estejam passando por
alguma dificuldade ou compadres, que por sua vez ficam com uma dívida a qual pode ser paga no mesmo
momento que alguém for buscar a carne levando algo de seu próprio sítio ou reservando separados grãos ou
legumes de algum pedido especial, participando de mutirões ou fazendo algum tipo de agrado, como ajudar
em um translado para o porto ou mesmo fazendo um bolo que pode saldar simbolicamente uma dívida.
95
homens vestem no dia-a-dia roupas sociais, até para ir à roça, ainda que bastantes surradas e
às vezes com remendos.
De acordo com a história de vida dos moradores deste sítio, mudaram-se para este
local quando o sítio anterior (nas adjacências da colônia) inundara
120
. Embora não pudessem
mais explorá-lo, foi graças a ele (com o título da propriedade puderam provar que são
trabalhadores rurais) que conseguiram a aposentadoria rural, para os dois, sendo hoje esta a
principal fonte de renda do sítio. Não há gado, tampouco ovelhas, porcos ou cavalos. Há, sim,
duas roças muitas bem cultivadas e uma centena de aves domésticas. Na prática eles realizam
trocas com outros moradores da colônia quando há excedente agrícola ou compram (com a
aposentadoria) na própria colônia ou na cidade as outras mercadorias.
Embora haja no sítio divisões espaciais não há cercas delimitando os espaços. Nos
locais de grande sociabilidade pode-se “combinar” os horários de uso: é o caso do uso dos
batedores (no corixo) e dos banheiros (no mato), equipamento e espaços comuns a todas as
casas visitadas
121
. Estes locais dependem de diversas maneiras de fazer e podem ser
potenciais pontos de conflitos.
2.1.1 A casa e os usos do corixo
A utilidade do batedor neste sítio é a mais variada: desde lavar roupas, escovar os
dentes, tomar banho ou pegar água limpa para a cozinha ou para o banho. Ainda nele se lava a
louça e se limpa a carne do bicho recém-abatido.
As duas casas que compõem o sítio encontram-se separadas pela água e dividem o uso
do corixo. A água corre no sentido da casa 2 para a casa 1 (que se localiza na extremidade
inferior do mapa). A “sujeira“, neste caso, restos de comida e água suja vai de uma casa à
outra; assim, a localização do batedor e do banheiro das duas casas obedece a critérios que
levam em conta a correnteza. Da mesma forma, o uso desses equipamentos corresponde a
120
A “história de vida” (em anexo) neste caso conta que primeiro moravam na colônia, cada qual com a sua
família no sistema de antigamente. Quando se casaram foram morar com os pais dele. Mudaram-se todos
para fora da colônia, numa área particular. Por conta de que ele (Seu Múcio) gostava muito da criação,
mudaram-se para um local mais propício e, também, com terras próprias. Este lugar alagou totalmente nas
cheias de 1994 e 1995. Mas, como, desde o começo a roça havia ficado um pouco distante da casa,
resolveram se mudar para perto dela e permanecem até hoje. Há dez anos que eles têm uma carta de posse,
escrita à mão, muito bem guardada por Dona Margarida na qual o proprietário autoriza o uso da terra, desde
que não toquem nas matas.
121
Os batedores podem ser no barranco do rio, móvel, ou em forma de trapiche, como no Sítio Nova Vida, onde
todos são feitos de madeira. Consistem basicamente em uma plataforma que serve principalmente para lavar
roupas, muitas vezes fica no meio do rio ou em forma de uma mesa que pode ser mudada de lugar conforme
o movimento das águas ou armada sobre forquilhas.
96
certos horários: por exemplo, não dá para pegar água para a cozinha em uma casa ao mesmo
tempo em que alguém estiver se banhando ou lavando roupas na outra
122
. A casa 1 é a casa da
matriarca da família, é a primeira, portanto, na hierarquia familiar, quase tudo se organiza no
sítio de acordo com a sua vontade, embora a outra casa tenha autonomia.
Aparentemente o corixo, em termos de uso, é o lugar de mais amálgama do sítio, pois,
ao mesmo tempo que é caminho, sujeito à passagem de qualquer pessoa, é também o local
usado para o banho diário e para certas tarefas domésticas, além de ser o habitat do jacaré e
de outros animais que marcam forte presença e são respeitados e temidos por todos. A regra
dita que não se deve olhar quando alguém está fazendo o uso do corixo, e se deve fazer
apenas um aceno breve em sinal respeitoso quando se está trabalhando ou passando por ele, a
não ser que seja íntimo da casa, neste caso algum parente ou compadre.
As mudanças no uso do corixo estão diretamente relacionadas com a época do ano: na
cheia há menor possibilidade de a água estar suja, a estrada fica mais transitável, a terra fica
comprimida pela água, diminuindo o território de plantio e dos animais, há abundância de
comida, a concentração dos animais fica sendo mais próxima às casas; na seca aumenta o
ataque dos animais como o jacaré que chega “a subir no quintal”, a comida precisa ser
racionada, os animais são levados para pastos mais longínquos, as pessoas saem mais de suas
casas e realizam mais assiduamente as trocas (em termos nativos, se “presenteiam” com mais
atenção sendo que se provê de víveres principalmente às famílias que têm crianças pequenas
ou casos de doença) e os mutirões são realizados mais freqüentemente.
Os sítios que compõem o baixo são exemplo dos códigos sociais e de convívio
colonense que, no geral, falam do uso do bom senso e dos sentidos humanos que são bastante
aguçados, ou seja, não é preciso anunciar o que se vai fazer para que as pessoas se preparem;
normalmente se escuta o som ou se vê a vibração ou mudanças na água ou da terra, assim
também pressentem rapidamente a presença de animais e de predadores, ou ainda que o clima
122
As roupas da casa são sempre lavadas pela dona. A técnica para lavar as roupas no corixo começa na
confecção do sabão e passa pela “leitura” diária da água: há dias em que tudo o que for lavado mancha, pois
o corixo está com “ferrugem”. Nesta situação, aliás, não se pode usar água para nada. Somente depois desta
leitura se inicia um longo processo onde as roupas são ensaboadas, “batidas” (daí o nome batedor), quaradas,
enxaguadas, torcidas e penduradas em um arame farpado, defronte ao batedor. Quando há longa estiagem, o
corixo fica baixo e com “água de quadra” para alguns, ou “ferrugem” para outros. Nesta situação, a água não
é potável e chega a “manchar a roupa” (quando lavada), provocando muitas moléstias no corpo
(principalmente de quem não está acostumado). Esta situação é provocada, segundo os moradores, por uma
chuva que vem logo após um período de estiagem, quando traz todas as cinzas da roça queimada para dentro
do corixo, por isso o nome “água de quadra”: quadra é à medida que alguém pode dar conta de roçar ou de
cuidar. Quando são feitas as cacimbas, em época da seca, são feitas no meio do corixo, onde a probabilidade
de dar água boa aumenta. Na maioria das vezes não há estrutura alguma para demarcar o local da cacimba;
então, em tempo de chuva, quando está alagado, a profundidade nos poços do lugar da cacimba é conhecida
e, por isso, esses locais são evitados por todos.
97
vai mudar. O que se percebe é que todos sabem de tudo; de certa forma, há uma certa
antecipação dos eventos, uma certa ciclicidade, onde tudo o que se faz e o que se vai fazer - o
como e o quando - são compartilhados entre as casas, assim como os “porquês” de as coisas
serem como são ou acontecerem desta e não de outra maneira.
A paisagem do sítio Nova Vida é rodeada pela vegetação nativa. Com exceção do
rincão ocupado pelas casas e pelas roças, é mais incidente a ocorrência de predadores. As
duas casas do sítio encontram-se rodeadas de árvores nativas e frutíferas, respeitando-se um
raio em volta de cada casa onde se forma uma clareira. As casas comunicam-se entre si e com
os outros principalmente a partir de seus portos. Os seus vizinhos são todos posseiros e suas
vidas, como a de muitos colonenses, encontram-se marcadas pelas andanças no território
(errância que fica evidenciada pela existência das taperas).
2.1.2 Casa 1 - A ilha de Dona Margarida e de Seu Múcio
Na casa 1 é possível chegar somente após cruzar o corixo. Para tanto, quem chega
deve “pedir passagem”: isto significa, em termos nativos, gritar na margem contrária para
que alguém da casa o busque ou então que “lance” a embarcação para que se possa assim
“terminar de chegar”. Os que vêm pela estrada do corixo, cruzando o Pantanal pelas baías e
desviando dos baceiros, chegam diretamente no porto, localizado nesta casa entre dois acuris
(palmeira nativa)
123
.
Nesta casa moram o Seu Múcio (86 anos), que se apresenta como tendo sido criado na
colônia e apresenta sua esposa, a Dona Margarida, como sendo“nascida e criada na colônia,
(e) moradora original mais antiga”. Com 78 anos de idade, a dona é filha de índia Guaná
com o “encarregado” (incumbido pelo Marechal Rondon de fazer a primeira demarcação de
terras da Colônia São Domingos). Mora também o Márcio (25 anos), neto que está, segundo
ele próprio, designado pela família a “cuidar dos velhos” e o Seu Astrogildo, empregado já
aposentado na cidade e que está encarregado dos afazeres mais diversos da casa principal e
completa os moradores desta casa.
Em dias normais acorda-se antes dos primeiros raios de sol, com a oração matinal da
dona, que se coloca diariamente atrás da casa das galinhas, apoiada em sua bengala, para um
ritual de agradecimento e pedidos que a absorve cerca de quarenta minutos.
123
Baceiro se refere às plantas que tomaram conta do corixo e das baías, é “sujeira”, segundo os moradores,
porque impede a visão e principalmente atrapalha a navegação.
98
A partir dali se segue o ruído normal de um amanhecer na roça, do tipo: canto de
pássaros, bater de asas das galinhas, algumas vezes o som de um machado cortando lenha
para se fazer o “chá com bolinhos”. De repente, se pode ouvir o chamado para as aves da
casa. Lançar o milho para as galinhas e para os patos, é uma correria, é uma festa, ao som do
púuuu, púu, púuuu de seu Múcio.
Na realidade, as tarefas domésticas já começaram há tempo, porém longe das vistas
alheias. O costume é o de acordar as quatro da manhã, pois a tarefa de “vigiar” os
passarinhos, segundo eles, deve começar antes mesmo do amanhecer; dá tempo apenas de
tomar o café puro, pois a roça fica a treze minutos de passos rápidos depois de atravessar o
corixo (lembrando que a casa fica numa ilha).
Para manter afastados os predadores, igualmente se mantém o Negrito, cachorro da
casa, em constante alerta às ameaças e perigos locais. Apesar da importância atribuída ao
cachorro, nesta casa são as galinhas que normalmente dão os sinais de alerta. São incessantes
os cuidados e os percalços que exigem uma criação neste ambiente, com a presença de
animais dos mais diversos tipos, atacando o animalejo doméstico e também as pessoas.
Para se ter tudo bem sincronizado, cada qual tem o seu papel. Lá se trabalha sob a
perspectiva de que todos os partícipes - pessoas, animais, plantas, solo - passam a ter papéis
decisivos. Há, por exemplo, muitos casos de animais que se comunicam, denunciando a
presença de homens em seu habitat. Sendo assim, quando o Márcio volta da roça, o quintal já
está varrido (tarefa de Seu Astrogildo, sendo que, na ausência deste, é a própria dona da casa
que realiza a limpeza pelo menos na área próxima às conjunções das edificações). O Seu
Múcio já contou os animais, já verificou as frutas do quintal, já observou o céu, o vento, o rio,
os animais, fazendo a leitura de como vai transcorrer o resto do dia.
“Daqui eu só saio morta” é uma das frases mais enfatizadas por Dona Margarida, ora
mostrando um pouco de tensão, ora exibindo certo orgulho pela corajosa opção, ora confiança
plena e amor ao local escolhido por ela para viver, tudo depende do contexto em que se
coloca a sua fala
124
. Alguns de seus filhos fazem freqüentemente pressão para que o casal se
mude para a cidade, pela facilidade de acesso aos médicos, principalmente agora que estão
com uma idade mais avançada. Cada vez que isso é sugerido parece, porém, causar efeito
124
Esta expressão é aplicável há vários colonenses, orgulhosos de sua condição. Pode mostrar uma escolha
geracional, pois é uma expressão muito usada pelos de mais idade ou, em outras situações, pode ser
compreendido como ideal de inserção, enraizamento, identidade; por exemplo: uma mãe, em não
conseguindo com os médicos da cidade diagnosticar a doença rara da filha de quatro anos, preferiu voltar
rapidamente para a colônia “para o caso de acontecer o pior”.
99
contrário, pois reafirmam a sua vontade de permanecer na colônia, haja o que houver. Como
exemplo está o monólogo de Dona Margarida:
[...] agora ficou a gente meio sozinho aqui. Por isso que meu filho pergunta:
o que é que a mamãe quer lá? Meu filho que morreu em Campo Grande que
falava: qualquer dia eu ia ser picada por uma sucuri. Quando ele morreu
depois de uns dias fiquei assustada. E olhava, ficava com o facão lá perto.
Lavava a roupa no batedor aqui perto e ficava com medo. Ele morreu, de
repente, né? Acontece, né? Agora acabou meu medo. Vem uma sucuri
derruba você e não tem ninguém. Tinha vez que seu Múcio ficava dias em
Campo Grande, por causa do tratamento, e eu ficava sozinha. Ficava aqui
porque é economia de dinheiro. Se mora na cidade o dinheiro não dá.
Compro um pouco de carne lá, passo uns dias mato uma galinha. E aí
carneia por aqui, compro carne, né? Por isso gosto daqui.
Primeiro dissera que é “pela economia”, pois na cidade não se economiza nada; ao
contrário, lá “se dorme com a mão no bolso”. Sobretudo quando economia para o colonense é
o próprio sistema de trocas. Outro argumento usado é que lá não há “nada para fazer” e que a
sua última estada lá, mais prolongada, a tinha deixado “gorda e branca, de tanto ficar dentro
da casa
125
. Apesar de várias queixas, o casal aprecia, de vez em quando, ir para cidade para
“comprar e ver algumas coisas diferentes”.
O casal teve doze filhos na colônia, dos quais quatro ainda moram lá: três filhas
casadas (com seus respectivos cônjuges e filhos) e o filho caçula, que está momentaneamente
fora (além do neto já mencionado). Atualmente eles vão para a cidade de três em três meses,
para visitar os demais filhos e netos e para tratamento de saúde. Aproveitam para fazer
compras pessoalmente, pois nas outras oportunidades mandam a relação de mercadorias a
serem compradas por carta para uma das filhas que mora na cidade mais próxima.
A história de vida deste casal fala de uma vida intensa, de um mudar constante e do
uso da criatividade para a sobrevivência cotidiana, mas, sobretudo, fala de amor à colônia e ao
seu estilo de vida, apesar das dificuldades e os percalços da luta diária. Quando se mudaram
para o Sítio Nova Vida, há dez anos, já aposentados, vieram apenas com um de seus doze
filhos, o qual primeiramente ajudou a construir a casa.
2.1.3 O corpo da casa 1
A casa que abriga uma família extensa (o casal e um neto) começara a ser construída
por duas partes básicas: a primeira era um quarto fechado com sala, coberto de duas águas de
acuri e com chão batido, onde hoje é a sala, sem paredes (totalmente aberta como toda sala
125
Estas são afirmações recorrentes quando falavam das diferenças entre a opção de ficar morando na cidade
(como muitos já fizeram) e o arraigo pela colônia.
100
colonense), e com piso cimentado; no segundo lance se construiu a cozinha que ainda
permanece. Posteriormente foram construídos dois quartos e assim a casa foi crescendo
conforme aumentava a necessidade da família (Planta baixa 1).
Planta baixa 1 - Casa 1 - de Dona Margarida e de Seu Múcio
Quatro partes distintas, três fechadas (dois quartos e a cozinha) e uma “aberta” (a
sala), cada qual abrigando um conjunto de atividades, compõem a casa 1. As partes do corpo
da casa estão separadas entre si por locais externos que são também parte integrante do corpus
da casa. Quanto ao material e ao método construtivo, a casa foi idealizada com a participação
das mulheres da família. Elaborada no sistema de autoconstrução, pela “turma dos homens”
(da família), foi construída na época da estiagem (seca) e com materiais da terra (paredes de
101
tronco de buriti e telhado de acuri trançado). Com o passar dos anos, a casa foi crescendo de
acordo com as necessidades da família, nas etapas e rituais corriqueiros dos modos de
construção colonense.
A tipologia desta casa está no padrão das casas colonenses “tradicionais”, no sentido
de que eles reproduzem a sua forma nos moldes do sistema de antigamente
126
. O sentido dado
pelos moradores da casa a esta forma e maneira de construir foi simplesmente que era assim
que ele (Seu Múcio) aprendera de seu pai, que por sua vez aprendera com os “índios de
antigamente”; por isso, todas as vezes que mudou de casa (e não foram poucas) sempre fez
deste jeito, pelo “costume”. Aprendera a trançar o acuri e, desde então, sempre faz do mesmo
jeito, seja para construir o telhado, seja para acrescentar mais cômodos à casa ou para colocar
e tirar paredes; sempre faz como aprendera dos “índios que colocam sentido nisso e eu sigo
esse conhecimento”.
Todos as quatro partes que compõem a casa atual são retangulares e estão orientadas
no sentido Leste-Oeste. No estilo mais típico, mais importante do que cuidar da posição do sol
(ou insolação) é que a casa esteja voltada para o caminho: aí fica delimitada a “frente” da
casa. Pela implantação da casa se está privilegiando a “frente” que está delimitada pelo lugar
por onde se chega (pelo corixo). O local privilegiado em relação à chegada principal é a sala.
Em contraposição, a cozinha marca o “fundo” da casa. Entre estas duas situações localizam-se
os quartos e as projeções, locais externos que completam o corpus da casa e que possuem de
três a cinco metros.
2.1.4 A casa - domínio do social
Pela implantação, a casa privilegia a chegada pelo corixo, lembrando que o principal
ponto de chegada para esta casa é o porto. O corixo é o elemento que comunica a casa com o
exterior; além de ser o caminho mais usual, é a partir dele que se caracterizam os locais
formais que os moradores deixam ver ou informais que escondem. Esta chegada está
planejada em correspondência com a sala da casa - o corpo que se coloca como o principal
espaço social marcando a “frente” da casa. Em contraposição, é a partir da cozinha que se
configura o “fundo” da casa. Entre estas duas ocorrências de domínio particular e coletivo
planejam-se os locais externos e as partes e equipamentos da casa.
126
Ao longo desta dissertação, faço referências à forma tradicional da casa colonense selecionando os critérios
que me permitiram, no terceiro capítulo (depois da análise microscópica dos sítios e casas), inferir sobre este
possível modelo arquitetônico.
102
Foto 8 - Casa 1 - cozinha.
Foto 9 - Casa 1 - sala.
A sala (1) da casa está planejada para o social, recebe um piso cimentado (todos os que
podem fazem desta forma) e se encontra mais próxima ao porto da casa, importância atribuída
porque este faz a comunicação com o mundo de fora, com os seus outros. A sala, como
modelo de ordenamento do espaço, destaca o código social colonense de priorizar o coletivo.
Contudo, nesta casa, usam-se plantas, mato e plantações como artifícios para protegê-la
visualmente
127
. Entre a sala e o porto, plantas ornamentais servem de cerca viva,
determinando uma situação de privacidade média, expressada ao não querer que a sala fique
demasiado exposta visualmente, ou seja, que o espaço seja “muito divulgado”. Ocorre uma
mediação entre o particular e o coletivo.
Neste local onde está o filtro de água, inusitadamente é também o lugar de uma caixa
onde uma das galinhas da criação põe ovos todos os dias (ambos sobre uma mesa)
128
. Na
verdade, esta galinha que “se acostumou na sala” é o último recurso para prover a casa de
ovos, pois fica mais fácil para protegê-los dos predadores. O local está planejado para receber
as visitas; é aberto, inclusive quando estas visitas pernoitam, em redes ou em barracas. Neste
caso, a sala serve de exemplo de que existem usos superpostos dos locais da casa - entre o
particular e o coletivo - havendo certa flexibilidade dependendo da hora do dia.
Cotidianamente a sala é usada como lugar de dormir na rede, por ser mais fresco, pelos
homens solteiros. Os casados, no entanto, dormem sempre no quarto, onde tem a cama com
127
Grosso modo, plantas são espécies ornamentais ou plantadas por eles; mato se refere a espécies nativas; e
plantações quando é parte da roça ou do roçado.
128
A água está diretamente relacionada à espacialidade e à própria sociabilidade do grupo (evidenciadas pelas
variações sazoneiras). A visita que chega, se é de casa, vai logo se servindo; outras esperam ser convidadas
para um “tereré”. Muitas vezes a água vem de longe, precisa ser buscada em alguma baía ou corixo especial,
ou mesmo provém de alguma cacimba, especialmente nas épocas de seca.
103
mosquiteiro e o espaço é mais reservado. Ela é aberta por sua função social esporádica, mas
também por que ali eles trabalham e dormem no dia-a-dia, em função do calor.
Pelos usos, a sala é, igualmente, um local alternativo de trabalho; é também o lugar,
em todos os sítios visitados, da máquina de costura (quando se tem a máquina) e onde se
realizam os trabalhos manuais familiares mais variados, como consertar a rede ou debulhar o
milho, principalmente em dias chuvosos (foto 9). Na sala também são acomodados os bancos
da casa, quando não estão sendo usados.
No dia-a-dia, estes bancos são levados daqui para lá, de acordo com as necessidades:
isso quer dizer, na prática, entre outras coisas, que quando chegam visitas, estas são
acomodadas na sombra de alguma árvore no quintal, a não ser que esteja chovendo. Nesta
casa, na projeção da sala se coloca um banco fixo, entre a sala e o quarto do casal, aos pés de
um acuri (foto 11). Ainda que a sala esteja planejada para receber as visitas, seu espaço é
usado para se trabalhar durante o dia e para dormir à noite. Correspondentemente as visitas se
recebem nos locais abertos na projeção da sala. Neste caso, os corpos da casa se estendem por
uso aos locais externos.
Foto 10 - Casa 1 - batedor.
Foto 11 - Casa 1 - locais externos.
104
2.1.5 A casa - domínio do feminino
Nesta como em todas as casas colonenses visitadas, há um rádio sempre à mão. Às
vezes este rádio fica na sala (1); porém, aqui, o lugar preferido para ele é a cozinha (2), onde
todos podem escutar o “Alô Pantanal” ao mesmo que podem acompanhar as atividades da
culinária. Dentro da cozinha, a louça areada e o fogão à lenha em bom estado mostram o sinal
de capricho da dona. Este é o lugar, entre outras coisas, do trabalho e dos predicados
femininos. A edificação é fechada inclusive com porta e janela para impedir principalmente a
entrada das galinhas e de seus filhotes; está estrategicamente colocada em relação aos outros
cômodos e equipamentos da casa, sendo que a circulação se dá principalmente em direção à
água, pois as atividades da casa voltam-se em determinadas horas do dia para o uso do corixo
(foto10).
Nesta cozinha há os dois tipos de fogões (à lenha e a gás), e os dois são muito usados,
embora o fogão à lenha o seja muito mais. Geralmente o fogão a gás é usado em dias de
chuva ou quando não há um estoque suficiente de lenha; é usado, também, em qualquer
situação de emergência quando se precisa esquentar algo rapidamente (por exemplo, de
madrugada, quando o fogão à lenha ainda não esteja ligado ou em dias de festa para fazer
certos tipos de bolo). Apesar da praticidade, o que depõe contra este sistema é o preço e a
dificuldade para se comprar e trazer o gás. Além do mais, o fogão à lenha articula um
conjunto de coisas em seu uso que vai além de questões pragmáticas: o fogo na colônia é um
convite para se aproximar.
No fogão à lenha, pode-se ter água quente a qualquer hora do dia e para qualquer
eventualidade, como quando aparece uma visita inesperada. O fogo fica acesso
ininterruptamente durante o dia, com variação apenas na intensidade das chamas, o que
propicia um ambiente de preparo do alimento que neste sistema tem função nutritiva,
simbólica e social, desde que a preparação do alimento e a arte culinária em si são elementos
da própria prestação e sistema de trocas colonense. Desta maneira, se a família não pode
exibir sua riqueza em termos de posse ou de gado, poderá fazê-lo com uma boa cozinheira a
preparar algo talvez até com o que acabaram de ser presenteados, retribuindo assim
imediatamente o presente. Saber receber e permitir a circulação dos alimentos opera vários
níveis da sociabilidade colonense, como se verá mais adiante, atualizando a cooperação,
vizinhança e amizade entre casas.
Assim como a cozinha é o centro da casa colonense, o fogão à lenha é o centro da
cozinha colonense. Simbolizado pelo fogo que fica ininterruptamente ligado, é na cozinha que
105
se concentram as principais atividades domésticas, permanecendo as pessoas em sua volta.
Embora nesta casa o fogão esteja localizado em um dos cantos (forma de fazer criticada, pois
fica ruim de cozinhar e é mais fácil de pegar fogo na casa), é o elemento principal de
sociabilidade do grupo doméstico: em volta do fogo do fogão à lenha ocorrem as conversas
cotidianas e se recebe a visita mais íntima. Entre seus usos, o fogão faz as vezes de fonte de
aquecimento e de iluminação, complementado por pequeninas chamas das lamparinas de
querosene, feitas de lata por eles. Acima do fogão penduram-se pedaços de carne para
conservar a defumação, ou cachos de banana que querem madurar.
Os principais equipamentos da casa localizam-se estrategicamente em volta da
cozinha. São eles: o pilão, os batedores, o engenho e os cochos onde se alimenta a criação de
aves. A cozinha fica localizada mais distante da água, apesar de necessitar estar conjugada
com os equipamentos que estão na água, preponderando a necessidade de “esconder a sujeira
no fundo”, de acordo com Dona Margarida (referindo-se aos restos de comida e água que são
jogados pela janela e ao lixo a ser queimado). Isto indica que se ela fosse projetada nas
margens do corixo, o “fundo” ficaria na vista de quem por ele passasse e não ficaria de seu
agrado.
Os afazeres em torno de questões culinárias são tão intensos que pode se dizer que são
eles que ditam o verdadeiro ritmo do dia. Dependendo do que se tem para preparar ou para
comer, movimentam-se as pessoas e os utensílios. O pilão, sempre estrategicamente
posicionado, é praticamente usado todos os dias; a peneira, o machado e o ralador também.
Usa-se o pilão para fazer a farinha e para esfarelar o que será dado às galinhas e aos patos.
Usa-se principalmente a mandioca, o milho e o arroz, que são transformados em farinha ou
fubá, para serem depois transformados em pratos típicos ou em ração. Outros alimentos
bastante utilizados na culinária local são as frutas da época (principalmente a banana), o
feijão, a batata e a abóbora.
As pessoas não se sentam, via de regra, em cadeiras em torno de uma mesa para
comer, mas se concentram em bancos, nas proximidades da cozinha, ao abrigo do sol e do
vento. O local externo adjacente à cozinha é também usado quando fazem fogo, à noite, para
esperar a janta (em quase todas as casas se faz fogo, à noite, como fonte de luz, lugar para “se
juntar” as pessoas para conversar e para afastar os bichos). Ao ar livre, colocam os bancos
para fora e acendem os frutos verdes do acuri, que ficam em forma de brasa soltando fumaça
106
para espantar os pernilongos e as mutucas
129
. Na cozinha se trabalha, se dorme na rede
quando a temperatura fica muito baixa e se prepara o fogo símbolo do convívio social. No
espaço externo imediato tomam-se as refeições.
A cozinha tem duas mesas usadas para preparo de alimentos e um armário para
guardar panelas; os demais utensílios ficam dependurados nas paredes. Debaixo do fogão à
lenha está o lugar de alojar algumas poucas lenhas. No padrão dos demais cômodos
colonenses, os poucos móveis foram feitos por eles próprios e as paredes de buriti, assim
como as tranças do acuri, servem para deixar os utensílios sempre à mão, apesar de não
protegê-los dos morcegos e insetos que fazem do acuri sua casa.
Uma janela pequenina, localizada na lateral da cozinha, marca o “fundo” da casa. É
nessa área que os restos de comida são arremessados para os animais; aí são, também, jogados
os demais detritos, em um buraco para serem soterrados ou, então, são colocados em um
canto para serem queimados. Se a garrafa de vidro for do tipo que pode ser vendida ou
trocada, acomodam-na aos pés de uma árvore nativa, sempre no “fundo”. Embora façam uma
classificação do que se pode aproveitar na casa, na roça, para a cozinha mais especificamente,
para dar aos bichos ou para vender, tudo o que não tiver uma utilidade prática pode
simplesmente ser jogado no corixo.
2.1.6 O lugar da “limpeza” e da “sujeira”
Os sinais externos de donos de casa asseados e caprichosos são a palha sempre em
ordem e o quintal bem varrido. Neste sítio, apenas o primeiro item é regiamente cumprido. “A
palha eu sempre trocava quando eu era mais moça”, disse a Dona Margarida. Se a
construção da casa parece ser uma tarefa masculina, a manutenção dela e o feitio do fogão
ficam por conta das mulheres, ou ainda isso pode ser uma empresa da família. Internamente, a
limpeza fica em evidência pelo chão sempre limpo e pelos utensílios areados
130
.
O “varrer o pátio” é um ritual realizado metodicamente em todas as casas visitadas.
Demonstra limpeza e é ele quem define até onde vão certos espaços domésticos, assim como,
indica a hierarquia do uso dos espaços. Na prática, é varrido, diariamente, até o limite
129
Estes insetos são terrivelmente irritantes, a ponto de Dona Margarida dizer que são as únicas coisas que
podem fazer com que ela desista de morar na colônia. Há regiões, na colônia, em que esses ataques são
amenizados e há outros lugares em que se concentram em determinadas horas do dia. No sítio Nova Vida o
ataque era constante e intenso como não vi em nenhum outro lugar.
130
A vassoura é feita artesanalmente e necessita ser confeccionada de dois em dois dias.
107
considerado a projeção da casa. O local que eles escolheram para o acampamento da pesquisa,
eu mesma tinha que varrer. Esta delimitação se realizou naturalmente e sem muita rigidez; foi
feita de uma forma “casual” e serviu para conservar de ambos lados a privacidade.
Entre as partes do corpo da casa, nos locais externos, varre-se pelo menos duas vezes
ao dia. Estes espaços funcionam como passagem que interliga as partes da casa, liga a casa ao
corixo e a alguns equipamentos mais próximos e, principalmente, são usados para receber
visitas à sombra, para comer no dia-a-dia e para as reuniões cotidianas da família. Em
contrapartida, a região do “fundo” é varrida muito esporadicamente.
No varrer o quintal se colocam outras situações como, por exemplo, a apontada por
Seu Múcio: “aqui era alto e abaixou de tanto varrer. Era bem alto, por isto escolheu aqui, a
água não chegava. Graças a Deus não enche mais que isto”
131
. Perder a terra continuamente
de tanto fazer limpeza é apenas uma delas. A questão do varrer implica também questões
estéticas (o que “dá para ver”) e manter afastados os bichos de chão que tanto povoam o
território colonense.
2.1.7 A casa - domínio do íntimo
Criada a partir de um modo de vida onde muitas coisas são compartilhadas (entre as
famílias e os vizinhos), a casa colonense assume o caráter de local totalmente íntimo somente
no interior de alguns de seus cômodos.
Segundo Dona Margarida, primeiro se fez o quarto “só fechado em volta da cama. Em
seguida fez a cozinha. Ficamos um ano só neste quarto. Só depois fez o outro quarto”. Nesta
casa, os dois dormitórios (3 e 4) são duas construções independentes (diferente dos outros
moradores, que dormem na sala e em redes, o casal dorme em seu quarto e em cama). O
quarto do casal assume a característica de ser o lugar de descanso, do banho feminino, de
lugar onde se reza à noite, mas, principalmente, serve de alojamento para as coisas mais
valiosas. O segundo quarto é usado como local provisório para guardar certos tipos de
objetos, como as barracas, colchões e demais mercadorias deixadas pelas visitas sob sua
responsabilidade. Em ambos os casos, porém, é um lugar reservado aos mais íntimos, e aos
131
Os colonenses falam que o território está afundando, de tanto varrer a terra vai embora, “Agora tá secando,
mas logo enche. Aqui entrou água de enchente aqui ó. De tanto limpar e fazer limpo, vai escorrendo. Como
ali na beira do corixo, este pé de arvoredo ali, tá pra revirar.” (Seu Denirde)
108
quais poucas vezes se tem acesso
132
. São ambos lugares escuros, de chão batido e sem janelas,
entrando a luminosidade apenas por frestas estreitas.
No quarto (3) encontra-se recostada a uma parede uma “cristaleira” onde a dona
organiza, longe do alcance dos olhos e das mãos alheias, os mais diversos objetos de valor: a
tesoura com a caixinha de linhas e agulhas, o caderno juntamente com uma caneta, pilhas
novas, algumas peças de porcelana, panos de cozinha, toalhas, etc. Este último móvel me
pareceu à espera de um cômodo mais apropriado, talvez na própria sala que ela disse querer
um dia voltar a “fechar” ou da “casa nova de material” prometida recentemente pelo
superintendente estadual do Incra. “Só eu sei onde estão guardadas as coisas, aqui ninguém
acha nada [...] têm que ser no meu quarto, senão some” dissera a Dona Margarida. Na porta
do quarto tem uma corrente com cadeado que ela inclusive fecha ao se ausentar.
Diante da porta do quarto, entre este e a sala, está um acuri que é utilizado como uma
espécie de prateleira, guardando os mais variados objetos de higiene e utilitários (cordas,
abanicos, pasta de dente, escova de cabelo, aparelhos descartáveis de barbear, etc). Serve
igualmente como um dos pés de um banco que está fixado nele. Deste ponto se vê toda a casa
e parte do quintal, assim como o corixo e o porto. É o local externo em que mais acontecem as
reuniões familiares principalmente no final da tarde.
No último quarto (4) construído, o uso é polivalente. Há uma mesa pequenina onde
estão objetos pessoais e uma geladeira, à espera da energia elétrica e certamente da “casa
nova, com cozinha de dentro” (alusão referida as mais recentes visitas do INCRA). Ficam
neste cômodo, em cima de um jirau feito com forquilhas de madeira, uma caixa grande de
isopor com tampa, onde se guarda a compra do mês e demais mantimentos comprados na
cidade. Este quarto fica mais tempo com as portas abertas e as pessoas da casa têm mais
acesso durante o dia, diferentemente do quarto do casal.
Se nas atividades da casa propriamente dita a mulher ou dona é quem decide, no
espaço fora dos limites da varrição ficam, na maior parte do tempo, os homens da casa,
cuidando da criação e da roça. Para Gregor (1982, p 57), a casa está associada à feminilidade
em oposição aos demais espaços que se ligam à masculinidade. Em grande parte, entre os
Mehinaku, a identificação dos homens é com o mundo exterior às casas e das mulheres com a
própria casa. Isto ocorre, segundo o autor, porque a divisão do trabalho tende a dispersar os
homens e a localizar as mulheres dentro e à volta da unidade doméstica. Destaca-se, ainda, no
132
Nem todas as famílias visitadas negaram a entrada nos quartos, embora algumas vezes o tivessem permitido
graças ao fato de ter levado comigo um bebê que, às vezes, dormia em pleno serviço.
109
espaço doméstico desta casa, a delimitação simlica de se ter nos “fundos”, entre dois acuris,
a entrada do banheiro e, no extremo oposto, do mesmo modo, entre dois acuris marcados, o
porto e a frente da casa, na beira do corixo.
Cruzando para a outra margem está a casa 2, que abriga o genro e a filha do casal. São
confinados, categoria que representa a forma de reprodução das famílias colonenses no
sistema atual.
2.1.8 Casa 2 - do Nei e da Giorvânia
O Nei é nascido no Pantanal de Paiaguás, genro de Dona Margarida e de Seu Múcio, e
está casado com a Giorvânia com quem tem dois filhos. A casa do jovem casal fica a maior
parte do tempo habitada apenas por ele, desde que há um ano sua esposa levou os dois filhos
do casal para continuar os seus estudos na cidade. Eles vêm somente nas férias “quando tudo
fica melhor”, pois há muito mais para fazer e o “barulho das crianças que brincam e correm
no quintal”. Assim, Giorvânia se faz presente principalmente na época da colheita, quando há
mais necessidade, e nas férias, quando traz as crianças.
A situação de ter a família separada é sentida por todos do sítio, embora ao mesmo
tempo seja vista como sendo “de necessidade”. A continuação dos estudos dos filhos é vista
como uma possibilidade de melhorar de vida, além de que a presença da mulher na cidade
possibilita outra fonte de renda.
Quando o marido fica sozinho, é ele quem cuida de tudo, lava suas roupas, cozinha,
alimenta os animais, varre o quintal, cuida da roça e do pomar e quase não sai de casa. Além
desses serviços habituais, ele ainda gosta de construir barcos e maquinários para ajudar no
dia-a-dia, como um carrinho de mão, uma escada para pegar cocos, o engenho para moer
cana, etc. Como ele sabe, também, cortar cabelo, aos sábados e domingos algumas pessoas o
procuram para essa função. Ele manda o que pode para ser vendido na cidade. Lá, possui um
carrinho onde a esposa vende garapa, rapadura e coco produzidos por eles. Quando surge a
oportunidade os moradores vendem a mandioca, o milho e as frutas da época - principalmente
a laranja e a banana - seja para outros moradores da colônia, seja para atravessadores no porto
Virabrequinho ou mesmo direto ao consumidor na própria cidade.
Quando está sozinho, o marido fica a maior parte do dia trabalhando na roça, almoça
com o seu empregado (quando tem) e se dirige todas as noites à casa da sogra para ouvir e
principalmente contar “causos”, realizando verdadeiras performances. Quando sua esposa
chega da cidade, a rotina da casa se transforma completamente. Dividem o serviço da casa e
da roça, mas, segundo ele, como sua esposa é mais exigente na casa, tudo tem que ser feito
110
com mais esmero. Deste modo, por exemplo, em um único fim de semana, é possível renovar
o barreado do quarto (foto 12), terminar a construção do banheiro e concluir a colheita do
arroz. Ela, além de ajudar nesta última tarefa, fica com os serviços gerais da casa.
Foto 12 - Casa 2 - manutenção.
Foto 13 - O porto da casa 2.
Os animais domésticos e de criação da casa consistem em galos e galinhas, patos, dois
cachorros (cada casa tem um), um gato e os peixes que povoam com muita graça o corixo
defronte às duas casas (casa 1 – foto 10; e casa 2 – foto 13).
2.1.9 A “frente” versus o “fundo”
Todos as partes do corpo desta casa são retangulares e estão no sentido Leste-Oeste
(como na casa anterior), com exceção da sala (1) que está no sentido contrário. Esta posição
diferenciada deve-se ao fato de que esta casa tem a particularidade de ter duas áreas que
podem ser chamadas de “frente”: o porto (anterior) e a área correspondente à chegada pelo
caminho de chão (atual).
A primeira construção realizada pelo casal consiste em duas partes separadas, que
ainda hoje existem, embora estejam recebendo usos distintos de outrora, quando “a casa
também era porto da colônia”, ou seja, quando recebiam embarcações vindas de fora. Um
dos lances consiste na sala aberta, com telhado de duas águas de acuri e com o piso
111
cimentado; o outro é a cozinha (2), com quartos contíguos, também construída com materiais
da terra. A sala toda aberta está rodeada de flores e plantas ornamentais; em sua lateral, uma
avenida de coqueiros guia quem chega pelo caminho de chão. Os dois únicos móveis deste
ambiente usado para receber as visitas são um banco comprido e uma mesa.
Planta baixa 2 - Casa 2 - do Nei e da Giorvânia.
Antigamente a entrada principal era pelo porto, usando-se a estrada de chão somente
entre familiares. Porém, quando o porto foi sendo desativado, a chegada na casa foi sendo
pelo caminho de chão que, neste caso, dava para o que se considerava “fundo”. Um artifício
usado pela família para resolver este impasse foi conduzir o visitante a percorrer a avenida de
112
cocos, chegando desta forma diretamente na sala da casa. Estão espalhadas, na parte do
“fundo”, algumas árvores frutíferas e o pilão. Lá, também, fica o galinheiro, o buraco para se
jogar o lixo da casa, o engenho e o caminho da roça (que é a mesma estrada de chão por onde
passam os visitantes). Este caminho é utilizado por todos do sítio, na verdade é o único acesso
por terra.
Ficando a sala voltada para o porto e para a estrada de terra ao mesmo tempo, adquiriu
a orientação norte-sul, diferentemente das demais partes. Para atenuar a visibilidade da casa
desde os caminhos da sala e dos locais externos, implantaram o novo quarto (3) entre o
caminho de chão e a sala e colocaram vegetações em pontos estratégicos. Na parte da “frente”
têm fileiras de mandioca, um pouco de cana, algumas árvores frutíferas e a avenida de cocos.
Entre a sala e o porto destaca-se um caramanchão que impede a visão entre eles.
Na sala, o casal atualmente recebe as visitas (diferentemente da casa 1), mas isso não
impede que nela se realizem trabalhos esporádicos como é o caso de cortar o cabelo ou
acondicionar cocos em caixas para enviar para a cidade. O mais importante, no entanto, é
observar que a orientação da casa e dos espaços domésticos está disposta de tal modo que sua
parte social (frente e sala) dá para a chegada, diretamente vis-à-vis à sua oposta, a de serviço
(cozinha e fundos).
2.1.10 A casa do confinado
A casa está composta atualmente de quatro partes separadas, que começam muito
próximo às margens do corixo. À medida que a família foi construindo, a casa se ampliou em
direção contrária à água (e o porto foi caindo em desuso). Assim como na casa 1, entre as
partes da casa há os locais externos onde se projetam diversas atividades da casa. A sala já
descrita e a cozinha foram os primeiros. A cozinha está construída juntamente com dois
dormitórios contíguos, retangulares, com telhado de duas águas de acuri trançado, piso batido
e paredes de tábuas de madeira dispostas verticalmente. Hoje os antigos quartos servem de
despensa e de abrigo para equipamentos da roça, mas, quando as crianças estão em casa,
servem ainda de dormitório.
Há três anos, quando a casa também era “porto” (foto 13), construiu-se uma pequena
sala (4), nos moldes da primeira - somente um pouco menor - para abrigar os que estavam de
113
passagem
133
. Esta sala, quase encostada na lateral da cozinha, hoje está sendo subutilizada,
mas antes servia para que as pessoas descansassem após a viagem ou para esperar a próxima
embarcação; o local servia, igualmente, para realizar as refeições preparadas na casa e para
pendurar a rede no caso de alguém pernoitar. Ao lado dela, há resquícios do que teria sido um
banheiro usado pelos visitantes de fora. Quando construíram a casa, o porto era o acesso mais
usual, ficando como “frente” da casa. Agora que já não se usa mais esse porto, a “salinha” e o
banheiro que recepcionavam as pessoas está com ares de abandono.
Por outro lado, à estrada de chão, outrora caminho secundário passou a ser mais
utilizada. Dessa forma ficaram no meio do caminho locais que deveriam ficar escondidos, que
deveriam fazer parte do “fundo” da casa. Este caminho é usado pela casa 1, e por quem
necessita chegar até ela, passando pelo meio da casa 2. O uso dado é o mesmo de uma
servidão, ou seja, enquadra-se em códigos específicos. Aliás, em várias ocasiões os
colonenses cortam caminho por dentro dos quintais de seus vizinhos. Nessas ocasiões, dão um
aceno breve ou param para conversas ligeiras, diferentemente de quando estão de visita. Pelas
características do território colonense, estão permitidas as servidões e, inclusive, essas
situações de encontro estão contempladas na organização social, criando-se até mesmo uma
convenção: a do cumprimento.
Prensados pelos dois caminhos (o de chão e o do corixo), o batedor e o banheiro (em
construção por sobre o corixo) desta casa têm acesso através de um trapiche de madeira
roliça. É um local que deveria ser particular pelas atividades que enseja, mas tem
características de semicoletivo pelo movimento de pessoas que passam pelos caminhos. Os
moradores da casa resolvem esta complexidade dividindo os usos de acordo com as horas do
dia. Na verdade, são poucas as pessoas que transitam pelo sítio e normalmente são pessoas da
família. Sabe-se que nas horas liminares (no amanhecer, ao entardecer e ao meio-dia) é
normal uma maior circulação e, se for necessário passar por ali em outros momentos, espera-
se um aviso ou o bom senso e a discrição do transeunte.
Mais recentemente o casal ergueu o quarto lance da casa, um pouco mais afastado do
corixo. Desta vez, contudo, com o material bem distinto das outras construções: o quarto do
133
Quase se desculpando pela situação de sujeira em que se encontrava o corixo, os moradores relatam que
“antigamente se chegava mais fácil, era tudo branco (reflexo da água), era tudo lindo, dava para ver toda a
baía e não tinha baceiros [...] as crianças vinham de longe para tomar banho no corixo”. Há pouco tempo
(aproximadamente há três anos), havia muito mais movimento de pessoas no sítio, pois este era “porto”, isto
quer dizer que as chalanas trazendo e levando pessoas e mercadorias chegavam nele rotineiramente. O
término dessa situação é lamentado até porque, naquela época havia a possibilidade de que o corixo fosse
limpo pelo coletivo, além, é claro, de se ter ampliada a possibilidade de se fazer negócio (trocas).
114
casal é um retângulo de “material”, recebe um barreado, têm a cobertura de duas águas de
fibrocimento e possui duas portas e duas janelas. As duas portas (uma para o “fundo” e a
outra para a “frente”) são para “arejar” porque dentro fica muito quente. Por dentro está
equipada com poucos móveis rústicos e o piso é de chão batido. “Fica mais bonito e não dá
bicho” foram as razões apontadas para as mudanças nos materiais de construção,
principalmente do telhado. Segundo o casal “tem muita gente que não gosta do telhado
porque é quente” e também porque “faz mal à saúde”.
Foi constatado que as casas e os moradores do sítio Nova Vida não estão isoladas no
território e que embora estejam construídas de forma autônoma (não compartindo elementos
construtivos) usam juntos o corixo e os caminhos (servidão) criando-se para tanto códigos e
hierarquias próprias. As casas guardam as mesmas características e são representativas de
uma forma própria (colonense) que se produz e se reproduz no tempo e no espaço.
Pensando-se em termos de partido arquitetônico ou de forma, ambas as casas estão
construídas de forma habitual, mas o melhor exemplo seria a casa 1: está construída em partes
separadas, cada qual com sua função, usos e significados diferentes. Estas partes dividem
(física e simbolicamente) a casa em áreas que podem ser polivalentes em sua função, mas que
se destacam por ter espaços de serviço (“fundo”), íntima e de descanso (quartos), exclusiva da
família e também voltada para o social (“frente”). Em termos de material, são usados recursos
exclusivos da terra; troncos e tábuas de árvores nativas (tirados de forma também habitual),
fazem a vedação e a estrutura da casa enquanto que as folhas do acuri se encarregam da
cobertura. Com relação à construção, é planejada pela família (atendendo a seus projetos e
necessidades) e realizada em forma de autoconstrução pelos homens da casa (podendo contar
com a ajuda de parentes ou compadres). A cozinha, o quarto, a sala e a despensa são
construídas separadas e interligadas por locais externos. Não há uma construção que sirva
como banheiro, em termos urbanos, mas há lugares distintos: um para o banho (homens no
corixo, mulheres no dormitório) e outro para as demais necessidades. Os equipamentos (forno
e fogão, porto e batedor, galinheiro e curral, engenho, pilão, bancadas, etc.) são externos,
sendo que a localização do corpus da casa depende basicamente do corixo e também do lugar
por onde se chega - ou seja, a instalação da sala e da cozinha, por exemplo, depende da
localização dos caminhos e estradas.
115
2.2 Sítio Santa Maria
O Sítio Santa Maria está localizado segundo seus moradores no centro, no centro da
vida social colonense. De acordo com depoimentos, o sítio já foi palco de muitas festas, de
campeonatos de futebol e de reuniões da associação de moradores, atividades que se
encontram atualmente arrefecidas. Embora com menos intensidade, ainda hoje as relações
sociais se encontram robustecidas na região central, principalmente nos fins de semana, pela
presença dos jovens trabalhadores temporários que circulam pela colônia. Este movimento
ocorre talvez pela própria localização centralizada - o local é confluência de caminhos - e
pelas múltiplas atividades que se concentram no sítio. O fato é que esta casa funciona como
hospedaria, como escola, como venda e como local de bailes.
O sítio está provido de uma antena de celular, que é socializada entre os moradores e,
em parte também, é vendida como serviço. Por todas essas atividades, por sua localização,
pelas atividades da produção (principalmente a criação) e pelo tamanho total da área, este está
entre os mais bem sucedidos sítios da colônia.
A família bastante numerosa (tem vários parentes morando na colônia) é descendente
de “Guaná, das primeiras famílias que vieram para cá”, trazidas do Rabichão (sua aldeia
original) por Rondon, no começo do século XX. De acordo com o casal, eles se situaram
30 anos o sítio, em um local de confluência de estradas: “se passa por ele para ir de baixo
para cima; pra ir de cima para a lagoinha ou para a igreja; para ir dos fundos para a
lagoinha”. Há outros caminhos alternativos, mas que são pouco usados pelos colonenses
porque são mais “sujos”.
Embora hoje eles sejam uma família “de posses”, o casal lembra com orgulho que “no
começo não havia nada por aqui, desmatamos a beirada do corixo e fizemos a casa, aquela
tapera”. Em 1978 souberam que o Incra viria; então, sob orientação do pai do atual dono,
cercaram a área, pois ele “tinha visão e queria, assim também fizeram meus irmãos, ficamos
com a área titulada [...] Depois quando minha filha mais velha casou, eu troquei por animais
uma propriedade para ela, o Sitio São José”. Este depoimento demonstra que não apenas os
fazendeiros conseguiram, na época, cercar e legitimar (e ampliar) suas terras e que as trocas
acontecem em vários níveis da vida do colonense, conforme já descrito no primeiro capítulo.
Neste sítio, além das atividades já citadas, também se trabalha com roça, com uma
vasta criação e com a fabricação de móveis e canoas na marcenaria. Outra forma de melhorar
a renda doméstica é o aluguel do carro-de-boi para terceiros. Parte dessas atividades implica o
uso diferenciado do território, em relação ao sítio anterior. Há, por exemplo, cercas impedindo
116
a passagem dos animais. No espaço doméstico, isto se reflete na presença de quintais e das
categorias “de dentro” e “de fora”, como se verá na descrição da casa.
Diferentemente do sítio anterior, estes colonenses são criadores de gado, de búfalo e
de carneiros. Em certas épocas do ano mantêm os animais em confinamento nos currais
próximos às casas, mas, na maior parte do tempo, deixam-nos alongados, soltos nos pastos
nativos ou, em função de acordos feitos com os vizinhos, os animais são transladados para
ocuparem os seus pastos. Esse uso dos pastos pode ser obtido por empréstimo ou, então, por
arrendamento, tudo dependendo do acordo. De qualquer forma, o ambiente tem que ser
preservado, sendo que nenhum desses tipos de negociação de trocas de serviço ou de animais
permite a derrubada da mata ou qualquer outro tipo de exploração, a não ser que seja
previamente combinada. Algumas poucas madeiras, contudo, são socializadas com os demais
moradores, desde que estes se responsabilizem pela retirada. Os acordos se fazem no interior
das relações familiares, de compadrio ou de vizinhos, entre colonenses, e podem ser verbais
ou escritos.
Há várias maneiras de se chegar ao Sítio Santa Maria; porém, a maneira mais usual é
pelo largo principal que, em qualquer época (de seca ou de cheia), é a principal estrada na
colônia.
Localizado na confluência de estradas, a sua vizinhança está composta por colonenses
e fazendeiros. O Sítio Santa Maria se destaca por seus 162,79 hectares e por ter a única
construção de alvenaria com quatro águas de telha de barro. A casa se compõe de mais três
outras partes separadas e mais a tapera. Vários equipamentos estão articulados com a casa e
seus quintais: o batedor, o porto, o campo de pouso, o campo de futebol, o poço, o rancho dos
empregados, o galpão da marcenaria, o galpão do motor, o engenho, o pomar, o buraco do
lixo e os currais.
Neste sítio, a incidência de predadores é menor do que a sugerida pelos moradores do
baixo, talvez por haver tráfego maior de pessoas ou por ser mais limpo. A paisagem formada
predominantemente por campos pareceu-me muito menos perigosa do que a descrita no sítio
anterior. Mesmo assim, o jacaré ataca igualmente e o “bicho de chão” ainda aparece
bastante
134
. A família é católica e está entre os mais ricos da colônia; sua casa tem energia
elétrica gerada pelo motor que funciona à gasolina, tem aparelho de som “moderno”, contam
ainda com televisão e geladeira.
134
Existem pequenas diferenças nesses ataques. Por exemplo, aqui aparecem mais jibóias, que descem das
árvores, enquanto que nos outros lugares, principalmente no baixo, a incidência maior é a da sucuri, que vive
dentro d'água.
117
Mapa 7 - Mapa de implantação do Sítio Santa Maria
118
2.2.1 A casa do Feliciano e da Noca
Alvo de muitos falatórios, a casa única reúne a família extensa, o jovem casal Seu
Feliciano e a professora Noca, a Jose que é a filha caçula e os três netos do casal (filhos da
filha mais velha). Moram ainda no sítio três empregados (que moram cada qual em seu
rancho) e a filha de uma amiga que mora e ajuda nas tarefas da casa.
Neste sítio há uma única casa onde se concentra toda a atividade cotidiana de seus
moradores. Ou seja, com exceção de alguns empregados, ou em dias excepcionais, todos
permanecem nos arredores da casa. As mulheres desta casa têm um papel diferenciado da
descrita anteriormente; além de trabalhar na cozinha, viajam para a cidade, cuidam das vendas
e da escola durante a semana e participam dos bailes dos fins de semana. Todas as atividades
(com exceção da incumbência de viajar) são restritas ao “quintal de dentro”.
Em contraposição, seu Feliciano passa o dia no galpão da marcenaria, no “quintal de
fora”, ou lidando com o gado no campo, embora também fique em torno à casa arrumando e
melhorando tudo (faz calçada de cimento para melhorar a casa, trabalha na instalação e
manutenção da casa e dos equipamentos e cuida das tarefas mais difíceis como, por exemplo,
ficar o dia em torno do tacho para fazer doce para as crianças).
Ocasionalmente, nos dias de semana à noite, aparece alguém para esperar ou para
fazer uma ligação; muitos marcam dias para usar o telefone celular (ou a antena) do sítio e
assim se comunicar com os seus
135
. Nos fins de semana a rotina da casa se altera
completamente; além das atividades essencialmente diurnas (mais em função casa e da
escola), passam a funcionar as atividades noturnas: servem bebidas alcoólicas e realizam
bailes, sendo que muitas das atividades do dia de sábado e domingo direcionam-se a elas.
Aparentemente esta casa funciona como as sedes de fazenda (descritas por
BANDUCCI, 2005), ou seja, as atividades locais centralizam-se em torno da casa que
extrapola a função de abrigo da família e abarca outras atividades que dizem respeito ao grupo
social em que se insere. Em outras palavras, em termos de atividade esta casa foge, de certa
forma, aos modos da casa colonense.
Por acumular funções, as atividades sociais se intensificam nesta casa. O convívio com
pessoas de fora da família a coloca em outros níveis: ora se porta como um ponto de encontro,
ora como local para pedir alguma informação ou encomendas da cidade, ora serve como
135
Os depoimentos atestaram que, com o advento do celular (e pontos de antena), a comunicação com a cidade
melhorou sobremaneira, possibilitando falar diretamente, em casos urgentes, e menos através de avisos como
se fazia anteriormente.
119
farmácia e também como bar, lugar de bailes e hospedaria. Os espaços que seriam ocupados
normalmente pela família adquire um uso coletivo; eles têm usos diferenciados além de ficar
mais visíveis e expostos a olhares alheios. Sob este aspecto, eles tanto observam como são
observados: o caminho ou passagem mais movimentado (por sua localização) passa ao largo
da casa, propiciando aos moradores acompanhar de perto o vai-e-vem dos demais colonenses.
2.2.2 O corpo da casa - vida íntima e coletividade.
Nesta casa, que funciona também como escola local, há aulas de segunda a sexta-feira,
(em dias bons, porque quando chove ou faz muito frio “as mães não mandam suas crianças”)
durante o dia, e há também venda de víveres (as principais são carne, bebidas e fumo); nos
fins de semana, à noite, funciona uma espécie de casa noturna, onde se dá principalmente a
venda de bebidas alcoólicas e a realização de bailes.
Esses eventos noturnos transformam a casa em palco de perfomance corriqueira
realizada pelos homens quando chegam. Vão chegando, dois ou três, logo após escurecer, dão
um aviso sonoro “êia” ainda sem descer do cavalo, com um “vamô arreá” seguido do pedido
licença”. O dono da casa responde “vamô chegá”. Os homens pedem licença novamente
enquanto descem de seus cavalos ou enquanto cruzam o portão da entrada: “licença”, “vamô
chegando”, e logo após são revistados pela filha e pela afilhada dos donos da casa
136
. A esta
hora já se ligou o motor e as luzes já iluminam a casa. Sentam-se na sala e logo pedem uma
bebida, esperando, entre uma brincadeira e outras amenidades, haver o número suficiente de
pessoas para ligar o som e começar o baile. Soubemos de apenas uma senhora viúva que
participa das danças, além, é claro, das mulheres da casa. As crianças permanecem dentro dos
dormitórios contíguos à sala e, às vezes, espiam, dando risadinhas, por entre as frestas. Por
sua vez, o dono que também faz parte da performance marca as “regras” da casa servindo os
clientes e observando o movimento, colocando respeito quando necessário. A noite segue com
os anfitriões estimulando o consumo, até que por qualquer razão o dono da casa decide que já
está na hora de terminar. Então, após o acerto das contas e das despedidas, os jovens vão
embora dando gritos que chegam a quilômetros de distância, assombrando os que já estão
dormindo.
136
A revista na chegada dos clientes é um procedimento recentemente adotado no sítio por causa das brigas e até
de uma morte que ocorreu, há pouco tempo, “por desentendimento” bem em frente à casa.
120
Estes “são bailes de duas ou três damas”, disseram algumas mulheres indignadas,
mas, explicaram prontamente, o problema maior reside em vender bebidas alcoólicas no
próprio recinto onde funciona a escola. Os domingos são recheados pelas conversas sobre
essas noitadas, assunto obrigatório mesmo para quem assiste ao culto. Pode ser que grande
parte das contendas seja porque estamos no local mais bem sucedido (dentre os que são
sitiantes da colônia). Sem dúvida, as múltiplas atividades e atitudes, conseqüência desta
variedade de funções, colocam, como alvo de críticas, essa casa e sua gente. Da mesma
foram, esta casa e seus moradores se colocam em evidência pela aparente desordem e pelas
ambigüidades de alguns de seus códigos sociais.
2.2.3 A casa e seus quintais
Há vários quintais separando as diferentes atividades desta casa, divididos em espaços
específicos denominados de “quintal de dentro” e “quintal de fora”. Pode-se dizer que num se
concentram as atividades da casa e noutro as do sítio, respectivamente.
No quintal de dentro está a edificação que funciona como casa propriamente dita, a
escola, a venda e o lugar para bailes (não colocaram um nome específico como bar, boteco ou
casa noturna, por exemplo). Durante a semana, a escola e a venda são preponderantes, e as
atividades da família se dirigem principalmente a elas. Nos fins de semana, a casa funciona
voltada para o coletivo; torna-se o lugar onde os colonenses se encontram para tocar
instrumentos musicais, ouvir música e dançar. Estes bailes não são como as festas religiosas e
acontecem somente se houver o número de pessoas suficientes
137
.
A casa está localizada na parte de cima de um terreno “limpo”, rodeada pelo pasto na
frente e nas laterais. Tem o corixo à “frente” e a mata aos “fundos”. Embora haja a
delimitação por quintais, continua a prática da varrição, existindo então duas delimitações. O
ritual não se perde apesar da existência das cercas, repetindo-se a “limpeza” na área do social
e mantendo-se a “sujeira” da área de serviço.
Distante do corixo (aproximadamente 500m) e quase sem vegetação em volta, o chão
de areia clara, diariamente varrido, marca os domínios da casa (os outros quintais da casa não
são varridos). O quintal de dentro recebe sombra de alguns coqueiros e outras frutíferas de
pequeno porte na “frente”. Nos “fundos”, um ingazeiro (fruta nativa), posicionado diante da
cozinha, serve como sombra principal, lugar da roda de tereré e onde os homens almoçam
137
Informalmente as meninas da casa se encarregam de avisar a um e outro que passam por lá para saber se vai
ter algo à noite, se haverá música. Quando a notícia se espalha e as pessoas vêm, acontecem os bailes.
121
sentados em um banco. Ainda há uma parreira de maracujá que serve como lugar de preparo
de alimentos.
Como já foi dito, estes locais externos são uma projeção da casa. As sombras são
importantes no aspecto de sociabilidade colonense. Em determinadas épocas faz muito calor e
não há lugar mais refrescante que embaixo de um bom abrigo; não é tampouco tão íntimo
como seria entrar na casa (embora se esteja na casa).
2.2.4 A casa - cenário do social
Há um portal de madeira pintado de branco que permanece sempre aberto na “frente”
da casa. É por esta entrada que chegam as visitas (família) e onde param os que estão
“montados”(outros), esperando ser convidados a “apear” e “chegar” na casa. É também neste
alpendre que são revistados os que chegam para beber ou para dançar, tornando-se, desta
forma, o limite entre os que estão “para fora” ou estão convidados “para dentro” da casa. É
por ali que igualmente chegam as crianças da escola ou que passam os que vão em direção a
outros agrupamentos. O lugar se transforma tendo em vista as diferentes situações sociais que
confluem nesta casa.
Por ser um local de passagem, muitos aproveitam para mandar recados pelos
transeuntes, que se valem da oportunidade, no meio do caminho, também para descansar e
saber das últimas novidades. Nessas ocasiões transmitem recados, contam suas necessidades
ou conquistas mais recentes, encomendam e especulam sobre os mais variados assuntos.
Dessa maneira, sentados à sombra, “assuntando aqui e ali”, recebem e fazem convites,
fortalecem-se as inter-relações e engendram-se as trocas. Um único lugar reúne quase todas as
atividades colonenses.
Nem todas as visitas têm um tom assim tão casual; muitas aproveitam a passagem para
convocar, por exemplo, uma participação efetiva na colheita atrasada, pedir algum remédio,
pedir guarida em casos de contendas, etc. A atitude de ajudar é bastante considerada pelos
colonenses, fazendo com que se respeite à atitude honrosa do dono da casa e fortalecendo os
laços ao mesmo tempo em que se ameniza a inveja que porventura possa se estabelecer em
meio à relação (desigual) de quem possui mais ou menos posses.
122
2.2.5 A casa e sua planta arquitetônica
Nesta casa não há um padrão único de materiais e métodos de construção, mas uma
mesma tipologia que se enquadra no padrão das casas colonenses: compõe-se por quatro
partes separadas - 1) escola e quarto; 2) sala e quartos; 3) copa, cozinha e despensa; e 4)
banheiro separado. Estas se localizam, cada qual, em posição variada no terreno, formando
como que uma pequena região central onde se concentra a circulação de pessoas e onde se dá
a projeção da casa e de suas atividades (como estudado nas casas do sítio Nova Vida). Apesar
de, à primeira vista, diferir das demais casas da colônia, pelos métodos e materiais
construtivos (alvenaria e telhado de barro e fibrocimento), esta casa igualmente está pensada
em várias partes interdependentes, interligadas por locais externos que estão, por sua vez,
delimitados pela varrição diária e pelo uso rotineiro. Estes locais estão articulados com vários
equipamentos, também externos. Também está pensada dentro de um padrão local de
implantação, que tem como referencial localizar a sala no lugar de acesso principal, ou a
“frente”, pela qual se chega, e a cozinha ao “fundo”.
Planta baixa 3 - Casa do Feliciano e da Noca.
123
A “casa de material” só foi possível construir, segundo Seu Feliciano, “graças ao
meu cunhado. O irmão da dona (sua esposa) é o rapaz da chalana (que faz o transporte da
cidade para a colônia) e trouxe todo o material. Eu, junto com meu irmão que fez o telhado
diferente”. “Diferente” porque é de quatro águas (único na colônia) e também porque recebe
telha de barro. O “material”, como chamam as casas de alvenaria, é objeto de desejo de
muitos moradores; a telha de barro também. Mas a maior dificuldade é trazer a mercadoria da
cidade, pois o frete aumenta muito o custo da construção, além da mão-de-obra que precisa
ser mais especializada.
“Se é aberta é sala”, é um pressuposto nativo. Nas casas colonenses, as salas, como
são abertas e expostas aos olhares, ficam no meio termo entre o coletivo e o particular. No que
concerne às atividades, esta, como toda sala colonense, é polivalente; no discurso dizem que
“é para receber visitas”; porém, como já foi dito, para receber, os colonenses ainda preferem
o frescor e a paisagem da sombra. Em assim sendo, tendo em vista as atividades que nela se
desenvolvem, a sala pode ser área social, de serviço, podendo, ainda, outras vezes, ser usada
(à noite) pelos homens solteiros para dormir em redes. No entanto, nesta casa em estudo, a
sala não é usada para este fim; se há visitas para pernoitar, estas são acomodadas nas
dependências da escola ou do galpão
138
.
A sala aqui é resguardada em certos períodos, à noite e nos dias de semana, como
lugar da família se reunir antes de deitar. Neste caso é semifechada, pois recebe um muro de
uns cinqüenta centímetros em duas laterais, e uma parede fechada onde fica a entrada para os
quartos. Somente a quarta lateral é totalmente aberta e está direcionada para o corredor que
faz ligação para a copa e cozinha. A sala desta casa até pouco tempo atrás estava em
correspondência com o modelo padrão: era um corpo separado e totalmente aberto. Contudo,
atualmente esta sala foi transformada em sala de aulas, ocupando o lugar da sala principal
uma outra que era secundária (um tipo de varanda). Ficou caracterizada uma situação
concomitante de uso íntimo e social, pois contíguo à atual sala estão os quartos da casa.
Durante o dia a sala (assim como o quintal) é intensamente usada pelas crianças da
escola; também têm livre acesso a ela os empregados e os eventuais visitantes. Há em seu
centro uma mesa grande sobre a qual fica um vaso com flores ornamentais de plástico
colorido e, a seu lado, um rádio pequeno que é ligado na hora do “Alô Pantanal”, programa
138
Galpão é o nome dado a uma edificação que faz parte do sítio colonense, enquanto um depósito e área para
guardar e executar serviços variados. Fica comumente no quintal de fora e configura-se, no entanto, como
local de dormir (na rede ou em camas rústicas) para empregados regulares ou temporários.
124
escutado por todos. Em um canto há uma bancada fixa onde colocam o aparelho de som
“moderno”, ligado somente em dias de baile. Em outros tempos esta bancada já fora o lugar
da água. Hoje a água está em destaque, próxima da cozinha, e é usada por todos da casa e
pelas crianças da escola. Das tesouras do telhado pendem, de lado a lado, enfeites feitos de
garrafas plásticas descartáveis de refrigerante, que são constantemente renovados pelas
meninas. Esses enfeites dão um ar festivo ao lugar.
2.2.6 O corpo dividido (1)
Todos os moradores da casa dormem nos cômodos internos da construção principal,
que aqui se destaca por ser sala (social) e quarto (íntimo), e que está em processo de reforma
(pretendem fazer mais dois quartos contíguos para as crianças). Eles perderam a sala
“tradicional” quando fizeram dela a sala de aulas, ficando assim uma mesma construção como
abrigo para duas atividades antagônicas. Na sala acontecem os bailes de fins de semana e,
contíguo a ela, estão os quartos onde dormem todos, inclusive as crianças.
O dormitório principal possui duas camas de casal dispostas lado a lado. Uma das
camas está feita in situ, onde dorme o casal. A outra cama, trazida da cidade, é tubular, e nela
dormem as crianças. Este dormitório permanece aberto durante o dia é usado intensamente
pelos de casa num entra e sai constante, principalmente pelas crianças. As portas são fechadas
quando começa “a hora dos mosquitos, de tardezinha”.
Internamente, a diferença desta para as outras casas é marcada, essencialmente, pela
abundância de mobiliário - diferente do que ocorre nos quartos colonenses mais modestos - e
por permitirem a entrada de estranhos. Na casa de Dona Margarida, por exemplo, dificilmente
uma pessoa de fora tem acesso ao seu quarto. Nas demais casas também se obedece a este
costume, exceto quando há uma pessoa convalescendo. Quando a questão é saúde, a casa se
abre, e as visitas são levadas para dentro do quarto onde o doente fica a maior parte do
tempo
139
.
No quarto contíguo também em uma cama de casal tubular onde dorme a filha mais
nova do casal. Em frente à cama há um fogão vermelho a gás, “usado só em caso de doença,
como é o caso que eu precisava de vez em quando esquentar água para minha mãe fazer chá,
sem precisar sair da casa”; na outra lateral, um guarda roupas e um berço cheio de roupas
139
Em casos mais graves se espera que o doente melhore e tenha condições de viajar para então levá-lo na
cidade, em caso de doenças crônicas, picada de cobra, e outras situações mais graves ou que não se tem
diagnóstico se opta por cuidar do doente em casa mandando chamar benzedeiros e curandeiros.
125
completam os móveis deste cômodo. Os enfeites deste quarto são mais singelos e se resumem
a algumas folhas de revista na parede e um bicho de pelúcia sobre a cama. A porta para fora
dá para o corredor da cozinha.
Embora, para os colonenses, esta casa seja sinônimo de posses pelos materiais mais
nobres, os arranjos internos dos locais e a acumulação de diferentes objetos e
eletrodomésticos não usados ou usados alternativamente à espera de cômodos adequados
constitui fato comum às casas colonenses. Apesar de haver o motor de energia, este é ligado
somente duas horas ao dia, no começo da noite, em dias de semana, até terminarem a janta, e
nos fins de semana, enquanto houver visitas.
2.2.7 O corpo feminino (2)
No segundo corpo da casa está a copa, a despensa e, entre elas, a cozinha. Os três
ambientes contíguos vão sendo usados simultaneamente pelas mulheres da casa, sendo um a
extensão do outro. A cozinha é sem dúvida o local mais movimentado da casa, é o lugar do
trabalho e do domínio feminino. Através da porta e da janela da cozinha, sempre abertas, as
mulheres podem observar o que acontece na casa e, ao mesmo tempo, trabalhar no fogão (foto
15). A porta da copa, ao contrário, é mantida permanentemente fechada, para evitar que os
bichos a invadam. Os empregados e as visitas têm acesso à cozinha, ainda que isso não os
exima de ter que pedir “licença” à dona para entrar.
A copa tem uma pia onde é lavada a louça. Este é um luxo que não existe em nenhuma
outra casa colonense, embora, também aqui, não se elimine a tarefa de se ter que buscar água
no corixo
140
. Nas outras casas levam a louça até o corixo ou até uma bancada nos “fundos” da
casa. A despensa é resguardada da vista de estranhos; é utilizada para guardar as mercadorias
da casa e cumpre também a função da venda. Na cozinha, como preferem as mulheres da
casa, o fogão de lenha é centralizado, permitindo que várias pessoas fiquem à sua volta
(artifício muito usado em dias frios). Os utensílios e móveis feitos da maneira local mostram
que as diferenças desta casa para as outras são no sentido de mais ou menos posses e não em
formas distintas de fazer.
140
A água é trazida para a casa em baldes, num carrinho de mão, várias vezes por dia. A água que bebem
também é pega no corixo e se torna um complicador desde que as crianças na escola também bebem desta
água não tratada. O poço, embora tenha sido feito “no capricho”, não deu água boa; ”deu água amarela”, que
não dá para beber.
126
Pode-se dizer que a divisão de tarefas nesta casa é feita de acordo com a habilidade de
cada um. Se o homem da casa impõe respeito por participar das trocas cotidianas, pode
também criar hostilidade por abrigar pessoas que bebem; da mesma maneira, as mulheres
podem criar desafetos pelas danças. Na presteza em lidar com as diferenças pessoais,
diferenciam-se os afetos e os desafetos que se amenizam ou se acentuam nas práticas
cotidianas. Quando acontecem eventuais brigas na casa, cria-se, num primeiro momento, um
constrangimento para, num segundo momento, passar por cima destes em caso de problemas
maiores.
Nesta casa não se faz distinção na hora das refeições; assim como nas demais casas
colonenses, todos comem as mesmas coisas e ao mesmo tempo. Os pratos são servidos na
cozinha pelas meninas, sendo que em dias de aula as crianças comem junto. Na parte dos
“fundos” da casa há uma sombra, vários bancos e uma mesa grande que são mudados de lugar
conforme o evento. É nessa mesa que almoçam quando há muitos convidados ou em dias de
festa. Na sombra desta árvore frutífera almoçam, no dia-a-dia, os empregados e o Seu
Feliciano; eles sentam nos bancos sem usar a mesa, com o prato sobre o colo. Os homens
comem todos juntos e, geralmente, estão de chapéu, pois não o tiram nem para realizar as
refeições. As mulheres comem na cozinha (local interno) e adjacências (locais externos).
No local dos “fundos”, atrás da cozinha, realizam-se diversas atividades diárias ligadas
aos preparos da comida, aos mexericos cotidianos e às relações com os membros da família.
Lá existe um forno e um fogão de barro feitos artesanalmente e sem cobertura, onde se faz
doces, e há uma parreira de maracujá, em cuja sombra há bancos fixos. Esta sombra é
aproveitada para as conversas cotidianas e para executar alguns serviços gerais, como o de
ralar mamão verde para os doces, tirar a palha do milho, consertar o motor da lancha, afiar
alguns instrumentos etc. Entre a sala e a cozinha, nos locais externos, algumas vezes é
colocada uma das mesas da casa para fazer a massa do pastel ao ar livre ou preparar a massa
da chipa (bolinho salgado de polvilho e queijo), que depois será assada no fogão à lenha.
Depois de tudo pronto, entra em ação a vassoura feita artesanalmente e a chapa de ferro que
serve como pá; os restos são juntados num carrinho de mão e jogados no buraco do lixo.
.
127
Foto 14 - Casa - sala.
Foto 15 - Casa - cozinha.
2.2.8 O corpo em transformação (3) e (4)
A terceira e última parte do corpo desta casa a ser descrito é o que funciona como sala
de aulas (3). Inicialmente era uma sala (aberta) com piso cimentado e com cobertura de duas
águas de fibrocimento. Posteriormente essa sala foi parcialmente fechada, recebendo em três
lados meia parede de tijolos sem reboco, pintada de branco. O restante da parede foi fechado
com telinha verde até alcançar a cobertura. Fizeram também um quarto que serve aos mais
variáveis usos. Nele fica um beliche, para receber visitas. Há, também, uma geladeira onde
ficam guardados o refrigerante e a cerveja a serem vendidos ou consumidos pela família em
dias de festa. O piso é de chão batido, diferentemente daquele da sala de aula que é cimento
queimado. Este quarto permanece fechado, mas todos os da casa têm acesso a ele. Embora
ofereçam este quarto para as visitas pernoitarem, é na sala de aula que geralmente se armam
as barracas. Era assim quando esta era a sala da casa e continua sendo, mesmo com as
atividades da escola. Dessas atividades advém a necessidade de uma quarta construção: o
banheiro fechado.
A maior inovação da casa, apesar do forte diferencial - material e método construtivo -
são, segundo os donos, o “banheiro de material e com encanamento” (4) e também o recente
encanamento que leva água diretamente do poço para a cozinha. O banheiro, contudo, é
separado da casa e o encanamento, como se viu, ainda está em vias de ser instalado pelo dono
da casa. O banheiro está posicionado em uma lateral neutra do terreno; está próximo ao poço
128
apesar de estarem em quintais diferentes. Observe-se que não está na “frente”, nem aos
“fundos”, e tampouco há portas da casa em sua direção; fica, portanto, em um lugar bastante
discreto, ao lado de uma pequena horta cercada. Quando se referem ao banheiro é “porque
precisa, pelas visitas e pela escola” e não como um complemento natural à casa. Os de casa
continuam usando a mata e o corixo, onde ficam mais à vontade para suas necessidades.
Para lavar as roupas da casa, as meninas dirigem-se ao corixo, onde há uma mesa que
muda de lugar conforme o nível da água. A lavação exige que elas entrem no corixo com água
pelo joelho, a menos de dez metros de onde “mora o jacaré”! É neste mesmo lugar que se
toma banho diariamente. Na minha opinião, há ainda o inconveniente de o corixo estar
posicionado em um local de passagem, sujeito, portanto, a olhares. “Pode tomar banho
tranqüila, pode até tirar a roupa, aqui ninguém olha”. Segundo os depoimentos, este é um
dos principais códigos com relação ao uso do corixo, como fora falado no sítio Nova Vida
141
.
O papel social deste sítio vai além da localização estratégica de passagem e da
variedade de atividades que acomoda. É, também, um lugar onde se concentram muitas
representações nativas. Dependendo da hora do dia, pelas atividades realizadas, a casa
sintetiza alternância entre o “puro” e o “impuro”, condensados em um mesmo local: o lugar
em que se reúnem as crianças colonenses e os (mal-falados) bailes semanais. Agregam-se em
um mesmo espaço o caráter reservado da casa e aspectos que são nitidamente de domínio
coletivo. Destaca-se, portanto, seja por quebrar um padrão igualitário das casas, seja pelas
inter-relações protagonizadas por seus integrantes.
O lugar social ligado à questão de gênero coloca dois contextos específicos ao sítio:
que ter posses (a família é bem sucedida financeiramente) atrai a “inveja” e que são
cumpridas as diferenças entre os papéis sociais do homem e da mulher. O homem da casa é
bem quisto por ser modelo de trabalho e por participar das trocas (que, entre outras coisas,
serve para atenuar a “inveja”), enquanto que a mulher, apesar de cuidar das crianças na escola
durante a semana, é criticada porque participa do “impuro” (bailes nos fins de semana).
Inclusive os colonenses cobram do homem da casa (quando não assume o modelo) dizendo
que a ele está começando a “faltar autoridade”, no caso, para coibir as brigas que acontecem
nos bailes da casa.
141
“Está vindo alguém”, dissera uma vez a minha acompanhante, quando estávamos lavando as roupas da
semana. “Como você sabe?” perguntei curiosa, pois nada percebera. “As vacas, estão com a cabeça
levantada”. De fato, logo se ouviu e depois se avistou um casal, cada qual em seu cavalo; passaram por nós
sem olhar. “Eles sabem que estamos aqui, mas não olham”.”Eles fingem que não olham” eu disse, ao que
ela prontamente negou: “Não, é certeza que eles não olham, aqui ninguém olha quando tem alguém no
corixo” - e continuou, sorrindo ante a minha suspeita - “ainda mais que aquela Dona ali é bem ciumenta, ela
é dez anos mais velha que ele, ai dele se ele olhar!”.
129
2.3 Sítio Corixinho
Nesta seara de descrições dos sítios e casas colonenses, começou-se a caminhar desde
o baixo, no Sítio Nova Vida, depois se visitou a região do centro, no Sítio Santa Maria, e
agora se chega ao Sítio Corixinho, que está localizado para cima, na classificação nativa do
território. Este sítio faz parte da classificação nativa em que se considera lugar de “fronteira”,
para os colonenses: entre os “de fora” e os “de dentro”.
A família que nele habita, porém, não é dos últimos moradores daquela extensão de
terras; representa, sim, um dos últimos colonenses que moram naquela extremidade ou
fronteira
142
. Todavia, adiante ainda existem lotes cadastrados como sendo parte da colônia; o
território é originalmente pertencente à colônia, existem marcos que indicam isso, porém os
moradores não os reconhecem como sendo colonenses, isto é, reconhecem o território, mas
não as pessoas. No mapa oferecido pelo INCRA (mapa 3), esta fração de lotes situa-se pelo
meio do corte longitudinal. Acima deles se localizam algumas fazendas, não havendo mais
sítios, casas ou colonenses, em termos nativo. Como já se viu, a área ocupada pelas fazendas
deixa de ser colônia, porque está lá somente gente de fora (leia-se: fazendeiros).
Além disso, os colonenses aventam que os fazendeiros foram se apropriando
gradativamente e ilegalmente de uma área que outrora fora deles, da colônia.
[...] os fazendeiros foram comprando os sítios, colocando as famílias para
fora. Eles compravam para tirar o povo de perto [...] para carregar drogas
[...] construíram pistas de pouso. Eles tinham dois ou três aviões, todos na
colônia acompanhavam os pousos e as decolagens rumo Norte. Fizeram
também um casarão para receber mulheres, todos também sabiam quando
eles chegavam para as festas. Eles pagam bem, mas não usam a terra para
nada [...] não usam para a produção, eles também não cuidam da terra e
quando cuidam é só das cercas. Agora está tudo abandonado, foram todos
presos. (Júlio)
Apesar dessas ponderações, os moradores deste sítio ainda arrendam deles parte do
pasto necessário para suprir sua criação, e assim o faz a maior parte dos que moram em cima.
De acordo com os depoimentos, se por um lado a parte de cima é “muito boa para a
criação”, pois desde a “’grande cheia’ quando tudo secou que não alaga”, ficando o
142
“Fronteira” neste caso, como no caso do sítio Nova Vida, é um referencial indicando que estes sítios
encontram-se no limiar do território. Como a prática dos fazendeiros é avançar sobre o território colonense,
comprando as terras que estão contíguas às deles, acredita-se que os sitiantes/colonenses que estão na
“fronteira” (que fazem divisa por cercas com as fazendas) são candidatos em potencial a serem os próximos a
perder suas terras.
130
território ampliado, por outro há muita dificuldade de sobrevivência na época de secas
extremas, “fazendo muita falta a água do corixo
143
.
Os moradores descrevem o que encontraram quando chegaram a este rincão de terra:
[...] era na época da ‘grande cheia’, quando o rio passava bem em frente à
casa (aponta para um campo seco). Naquele ano encheu tudo. Tudo era
‘pantâno’, tudo ficou bonito. Eu pescava bem ali em frente, era bem limpo e
tinha correnteza. Era o rio mesmo. Naquela época não tinha muita gente, a
terra não se comprava, apenas as benfeitorias. Meu pai comprou a casa e
nos mudamos. Aquela casa ficou com meu irmão, lá no começo do varador,
beirando o corixo. Depois tudo secou e nunca mais encheu. O rio mudou de
lugar. Agora é sujo, não tem mais peixe, tem ferrugem, a água não corre
mais, ficou choca e os pássaros não comem mais”
144
.(Júlio)
No sítio mora a família, e há um empregado que “dorme no rancho”, como a grande
maioria dos empregados (que trabalham para colonenses) tem a sua casa na localizada nas
proximidades da roça. As refeições fazem-nas todos juntos, com exceção dos domingos,
quando, geralmente o empregado tem o dia de folga e cozinha ele próprio sua comida. É
assim em toda a colônia; segundo alguns patrões, os empregados aproveitam estes dias para se
embriagar.
Neste sítio de 43 hectares, além dos animais domésticos e das aves, criam-se gado,
cavalos e ovelhas. Durante o tempo das águas, os animais permanecem no sítio; no período de
seca, o gado e as ovelhas são encaminhados para uma outra propriedade onde arrendam 300
hectares de pasto. Em tempos de água, a dona faz queijos e doces para vender, ajudando na
renda doméstica. A lã das ovelhas também faz a sua parte nesta renda familiar, pois é bastante
solicitada para as montarias.
A roça fica a uma distância de dez minutos (caminhando), e é a principal fonte de
abastecimento familiar uma vez que eles vão à cidade apenas de dois em dois meses. A maior
dificuldade apontada por eles é o acesso ao Porto Figueira, pois “leva umas duas horas
montado”, e aos recentes problemas de saúde do casal, principalmente “a dona, que não
143
Não se deve esquecer que, no Pantanal, de todas as atividades desenvolvidas, a pecuária é a mais
determinante do ponto de vista econômico e ocupacional. Permite a ocupação dos lugares mais inóspitos e
traz consigo os desequilíbrios inerentes à pecuária tradicional (extensiva de corte, com fases de cria e recria,
mas sem engorda) que necessita basicamente de amplos espaços para desenvolver-se com a utilização
mínima da força de trabalho. Se a terra não é em si sinônimo de riqueza, é um bem necessário (de menor
valor se quando relacionada ao gado), porque traz prestígio e com ele condições de exercer o poder. Num
contexto de relações sociais fundamentada na troca, a posse da terra é o requisito básico para se exercer o
controle sobre os agregados, neste caso os colonenses. Paradoxalmente, são os próprios colonenses que,
como celeiro de mão-de-obra, dão sustentação para que estas fazendas entre outras coisas expandam seus
domínios territoriais.
144
Esta casa a que o Sr Julio se refere primeiramente ficava “na beira da estrada”; segundo a sua cunhada e
moradora atual, todavia, desde então, já se mudaram três vezes, para o firme (lugar que não alaga), por conta
da invasão da água.
131
consegue mais montar”. A dificuldade maior é provocada pelo excesso de peso da senhora
que é chamada jocosamente na família como a única “mais pesada” da colônia. Apesar disso,
eles ainda mantêm a rotina de duas vezes na semana caminharem uma hora e meia para
chegar ao sítio do Feliciano e, assim, ligar para a família para saber notícias. Fora isso, saem
muito pouco de casa.
2.3.1 A água como fonte de riqueza
A dona da casa mostra orgulhosamente a sua “maior riqueza”: o poço com sete
metros de profundidade e água limpa. Segundo eles, o poço provê de água a casa e todos os
animais, principalmente na época da seca quando “tem que controlar senão acaba”, pois
mesmo nas pastagens arrendadas falta água para os animais beberem
145
. Os poços, apesar de
corretamente perfurados, muitas vezes não dão água boa podendo ser de cor amarela,
vermelha ou salobra. Esta falta de água é responsável, segundo os moradores, pela introdução
do coco, que está sendo plantado pela colônia afora “para a gente beber a água”. Com
referência aos animais, é preciso tomar cuidado pois eles, quando têm sede e fome, muitas
vezes comem os frutos verdes do acuri, ficando intoxicados. Nessas situações, o palmito do
acuri é retirado para os animais, e é considerado como sendo a última opção da seca. O fruto
não é apreciado como comida pelas pessoas, pois representa contextos de extrema
dificuldade. Outro “benefício” deste sítio é a bomba (motor à gasolina) que gera energia para
ligar as máquinas de uma pequena marcenaria.
Embora se fale de falta de água, a localização do sítio é bastante propícia para a
criação, pois a maior parte da propriedade está constituída de pasto e mata nativa. Ainda
assim o arrendamento se fez necessário, pois é costume, no Pantanal, criar o gado alongado,
ou seja, a pecuária extensiva, ficando o território do sítio pequeno para esta atividade.
O Sítio Corixinho se enquadra nos que se localizam para cima na colônia, não têm
nem muita, nem pouca posse”, possuem uma “licença de ocupação” expedida pelo INCRA
em 1979 e abriga uma única casa e família elementar. O acesso principal se dá pelo varador,
que também liga a colônia às fazendas da região, tem como vizinhos parentes, fazendeiros e
outros colonenses. O corixo passa detrás da propriedade, mas, na maior parte do tempo, está
seco e com a água suja, sendo pouco utilizado atualmente.
145
No Pantanal não é muito simples construir poços. A dificuldade maior está em encontrar pontos próximos às
casas, nos quais a água seja acessível e ao mesmo tempo potável, havendo muita ocorrência de salinas (água
salobra) e de “água amarela” e ou com “ferrugem”. O poço tem presença pouco significante: existe em
apenas quatro casas visitadas, apesar de ser enaltecido pelos que o possuem. Construí-lo não é garantia de
água boa. A grande maioria depende completamente do corixo para abastecer a casa, para a realização das
tarefas domésticas e para os animais.
132
Mapa 8 - Mapa de implantação do Sítio Corixinho.
133
2.3.2 O caso de Seu Júlio e de Dona Niroca
O Seu Júlio é morcegano (veio da Fazenda Morcego), mudou-se para a colônia em
1974 juntamente com os seus pais e mais sete irmãos paiaguenses (nascidos todos no Pantanal
de Paiaguás). Vieram depois de perder os seus empregos (e sua morada), de acordo com ele,
devido ao cerco colocado pelas questões trabalhistas do momento
146
.
Seu Júlio é casado com Dona Niroca, filha mais velha de Dona Margarida e Seu
Múcio, com a qual teve dez filhos. O casal se conheceu numa festa na colônia e mora junto a
quase trinta anos. Na primeira casa, próxima à da Dona Margarida (hoje tapera
147
), criaram
todos os filhos. Mais tarde mudaram-se para o sítio atual (da família dele) onde construíram
nova morada, permanecendo com eles apenas o caçula de onze anos que está freqüentando a
escola e ajudando na roça; os demais vêm apenas de visita, pois se encontram pelas cidades e
fazendas da região.
2.3.3 A casa e suas etapas: “casa velha”, “casa nova” e “casa ideal”
Esta casa apresenta uma particularidade: a primeira casa construída no local, a “casa
velha”, edificada há mais de vinte anos, ainda permanece (parte dela, pelo menos, sendo ainda
ocupada como quarto do casal), há igualmente a casa onde moram atualmente, a “casa nova”,
que começou a ser construída há cinco anos, e há, ainda, a casa ideal, que seria a casa que está
em obras e ainda não foi totalmente concluída. Pode-se acompanhar, desta forma - a casa
colonense - desde os planos iniciais até como idealizaram toda a construção atual que se
encontra momentaneamente parada.
A “casa velha”, construída por eles quando se mudaram para este sítio, encontra-se na
parte de trás da “casa nova”, no que chamam de “quintal de fora” e consiste em duas partes
separadas: o quarto e a cozinha (foto 17). A primeira está feita com paredes de troncos de
buriti perfilados verticalmente, em parte barroteado, está coberto com folhas de acuri
trançado; o piso é de chão batido e as pequenas aberturas permanecem sempre fechadas (hoje
esta construção é usada como dormitório e não recebe manutenção há tempos). A segunda é
uma meia água de acuri sem paredes e de chão batido.
146
Na colônia moram ainda dois de seus irmãos, juntamente com suas respectivas famílias, um deles mora para
baixo e o outro no sítio que era de seu pai, os demais “se espalharam”.
147
Lembrando que taperas para o colonense são lugares que já foram casas, esta categoria nativa é usada para
designar uma casa ou um lugar da antiga casa, deixada pelos moradores com o intuito de reconstruí-la em
outro lugar.
134
Foto 16 - “Casa nova” e “quintal de dentro.
Foto 17 - “Casa velha” e “quintal de fora.
À primeira vista, a “casa velha” tem internamente dois quartos conjugados. O segundo
corpo da “casa velha” é parte do que foi a antiga cozinha, encontra-se no mesmo sentido da
primeira (leste-oeste) e consiste em um local aberto com um jirau (espécie de mesa ou balcão
fixo) e algumas poucas ferramentas penduradas. Localiza-se no canto superior do quintal, no
mesmo local por onde se tem o acesso à mata que usam até hoje como “banheiro”. Neste
quintal chegam as ovelhas e as aves. Existem nele árvores frutíferas, uma bancada onde se
lava a louça, o engenho de moer cana e um enorme tacho de cobre recostado sob um tronco.
Eles contaram que, apesar da dificuldade do transporte, trouxeram para a “casa nova”
alguns tijolos e telhas de Corumbá, a madeira e os móveis foram preparados por Seu Júlio no
próprio galpão que funciona como uma pequena marcenaria nos fundos da casa. O projeto foi
idealizado pelo casal, mas o palpite sobre a cozinha e sobre a distribuição do mobiliário é
dado principalmente pela dona, ao homem compete cuidar do acabamento e da construção,
prevalecendo suas idéias em grande parte da obra. O Seu Júlio começou a construir com a
ajuda de um filho (que trabalha nas fazendas), e espera terminar assim que for possível contar
novamente com a sua ajuda. Para tanto conserva os tijolos empilhados na lateral da “casa
nova”.
A “casa nova” fica no “quintal de dentro” e está muito bem cercada; ao contrário do
que ocorre com a maioria das casas visitadas possui um portão simples, na entrada, que
sempre fechado
148
. Nesta “frente” ficam do lado de fora: dois piquetes para o gado, o poço, o
lugar “para tomar banho”, um bebedouro e um cercado para os bezerros, uma bancada
(batedor) para lavar roupas e o caminho que leva à roça. Na lateral está o varador, que é o
148
Esta diferença se dá entre as casas que estão em cima e em baixo sendo que nas primeiras é mais comum as
casas receberem cercas, pois o território é mais ampliado e trabalham com o gado, as casas de baixo tem
como limite os marcos naturais e alguns marcos simbólicos plantados ou deixados pelo homem, como é o
caso do acuri ou as pequenas plantações que delimitam os espaços.
135
acesso principal da propriedade por onde comumente se chega. Na entrada do sítio há uma
porteira, atravessando o pasto em direção à casa, onde dois jatobás centenários recebem os
visitantes.
2.3.4 Os quintais da casa - distintos domínios
Os quintais das casas colonenses marcam fisicamente o que é domínio exclusivo do
doméstico, sendo que chamam de “quintal de dentro” o espaço fechado em que fica a casa. O
“quintal de dentro” está sempre no singular, pois existe apenas um por casa, diferente dos
“quintais de fora” que podem ser vários e nitidamente funcionam como espaços de transição:
acontece um uso interligado entre as práticas da casa e as do sítio, incluindo a roça e a
criação. Quando não há esta divisão por cercas, como acontece na casa de Dona Margarida, o
limite fica marcado pela divisão de até onde se varre (a casa) ou não (outros espaços), quando
se referem à totalidade da “ilha” onde se localiza a casa. A separação dos quintais por cercas é
menos comum às famílias que não criam gado ou animais de médio e grande porte.
Planta baixa 4 - Casa do Seu Júlio e de Dona Niroca.
136
Quando a casa está localizada nas proximidades do corixo, é comum os equipamentos
fazerem parte do quintal de fora; ficam, portanto, em locais intermediários, são semicoletivos.
Há outros equipamentos que ficam nos espaços dos quintais de fora como o pomar, o galpão
de serviços, o engenho, os batedores, etc. As atividades diferem seguindo a ciclicidade das
estações e se diferenciam entre casas de maior ou menor proximidade (ou distância) do
corixo. O pomar, por exemplo, em determinadas épocas do ano pode ser a principal fonte de
sustento familiar, e as frutas podem ser colhidas pela família, podem ser vendidas no pé ou
levadas para o porto ou cidade. Assim também usam o engenho para fazer rapadura e melaço,
fazem móveis e constroem as casas, realizam as trocas e as festas religiosas, etc. As atividades
ligadas ao corixo se diferenciam, sobretudo para os que, como neste sítio, não têm a casa
ligada diretamente ao seu uso. Isto implica, entre outras coisas, um maior isolamento entre
vizinhos. As atividades da casa, da mesma maneira, concentram-se em espaços mais
especializados (por exemplo, em torno do poço) e são menos compartilhadas, podendo ser
consideradas de domínio particular ao contrário dos espaços de intermediação (semicoletivo)
dos demais sítios que articulam diretamente o funcionamento da casa ao corixo.
Na relação casa-corixo, pode-se observar que o corixo, nos sítios colonenses, ora
aparece como um lugar compartilhado onde se pode circular livremente, ora é um lugar de
intermediação entre o coletivo e o particular. Embora em muitos contextos o corixo seja
estrada, é nele que funcionam vários equipamentos da casa, é, pois, um lugar semicoletivo.
Por outro lado o corixo, caminho coletivo e semicoletivo, diferencia-se do rio ou estrada,
público por excelência.
Existem códigos sociais para o uso dos caminhos (pelo chão e pela água). Existe a
convenção do cumprimento para as servidões, há o acordo de “não olhar” se houver alguém
usando o corixo, de não usarem ao mesmo tempo os caminhos para atividades que não
combinam, e ainda há a convivência com os outros habitantes: o jacaré, a sucuri e as piranhas,
entre outros. No entanto, há casas que estão optando por cobrir o local do banho ou levar a
água até ele (sítio Santa Maria e sítio Corixinho), outros na colônia tomam banho de roupas,
demonstrando que o código de “não olhar” está, no momento, sob suspeita e que as
apropriações dos modos de “fazer diferente” colocam o banheiro em um meio termo: não se
leva o banheiro para dentro da casa, mas se coloca um tapume, localizam-no nas
proximidades (às vezes dentro) do corixo, ou no quintal de fora, portanto, na fronteira entre o
coletivo e o particular.
137
2.3.5 A “casa nova”
No dia-a-dia a “casa nova”, apesar de pequena, tem os domínios espaciais claramente
delimitados: a cozinha como lugar preferido pela mulher e a sala pelo homem. A limpeza e a
organização da casa é normalmente feita pela mulher; por outro lado, se for necessário sair
para alguma coisa, como levar ou buscar algo do porto, é o Seu Júlio quem o faz, a não ser
que seja ligar para a família, tarefa que qualquer um dos dois realiza. Se for ela, vai a pé, em
companhia do filho. Para ir à escola, que é no mesmo lugar de onde ligam, o menino vai
montado, e é também sobre o cavalo que os homens da casa fazem a maioria de suas tarefas
rotineiras.
A cozinha (1) no lar de Dona Niroca e de Seu Júlio é o centro das atividades
domésticas e o lugar do trabalho feminino. Todos da casa têm acesso, mas somente uma
pessoa realmente pode “lidar”. Não é “um lugar de estar” como se quer que seja a sala (2),
pelo menos não no verão, por causa do calor intenso. Contudo, é nos “fundos” da cozinha em
torno da meia-água que funciona como um anexo (3), onde as pessoas se aglomeram e
esperam algo para comer, um mate para aquecer ou uma bebida refrescante.
O centro da cozinha é o fogão à lenha, como nas outras casas, sobre o qual há água
sempre quente. Contra uma das paredes está um fogão a gás, pouco usado, e ao seu lado, uma
prateleira com alguns utensílios, os pratos e os copos. Há um banco ao lado do fogão principal
que abriga panelas reluzentes; os demais utensílios encontram-se muito bem organizados pela
parede da cozinha. Na cozinha não há lugar para sentar; no chão, algumas caixas de papelão,
algumas lenhas recém-cortadas e latas grandes de querosene. A porta de saída da cozinha está
localizada para os “fundos”, para um local de trabalho aberto nas laterais e coberto com meia-
água de fibrocimento. Neste local há uma bancada de trabalho para o preparo dos alimentos,
outra bancada onde se coloca água limpa e um banco onde se sentam para realizar as refeições
ou esperá-las oportunamente “jogando conversa fora”. Entre os locais cobertos estão os
espaços de projeção usados cotidianamente como nas outras casas já descritas.
Nos “fundos” está o lugar, a que denomino “anexo da cozinha”. Nele encontram-se
pendurados a carne de sol e alguns poucos utensílios de cozinha. Em sua frente há uma
bancada de serviço encostada num limoeiro e nele um bambu posicionado para colocar
comida aos passarinhos. “Assim posso olhar para eles enquanto trabalho”, disse a Dona
Niroca. Todos os móveis da casa são rústicos e foram feitos no próprio sitio pelo Seu Júlio.
138
Deste espaço sai uma das ligações para o quintal de fora, mais especificamente o
portão que dá para uma outra bancada de serviços gerais, a lavação de louças, por exemplo.
Este é o local de trânsito mais intenso da casa, principalmente à hora das refeições. É um local
intermediário entre o íntimo, o serviço e o que fica à mostra para a visão de estranhos. Apesar
de ficar nos “fundos” da casa, permite receber visitas, desde que estas sejam íntimas da casa
ou no caso de já terem passado primeiramente por um largo tempo sentadas na sala e estejam
convidadas para o almoço.
O lugar que eles chamam de “copa” se destaca pelo telhado “novo” de fibrocimento.
Este cômodo foi feito parcialmente fechado, pois tem meia parede de tábua de dois lados, e
paredes inteiras dos outros dois lados; liga-se para a frente (na sala) e para os fundos (no
quintal) por pequenos portões. O telhado é de duas águas e o piso é de cimento queimado. A
copa está enfeitada por um calendário e por algumas páginas de revistas. É o local onde se
encontra a água, o rádio e uma mesa, apesar de não ser esta usada nas refeições diárias.
Penduram na meia parede, quase um guarda-corpo, as toalhas de mesa que serão usadas no
dia. A copa é um lugar intermediário entre a zona propriamente de trabalho (cozinha e
“fundo”) e os locais destinados ao social (sala e “frente”).
A família é evangélica e essa, me parece, ser a razão de estar vazio de santos e
imagens este pequeno cômodo. A exemplo de Silva (1998, p.212), os colonenses católicos
comemoram, no mês de janeiro, São Gonçalo e São Sebastião, em maio, a festa do Divino, em
junho, São João, São Pedro e Santo Antônio e no mês de julho comemora-se o dia de São
Benedito. Outros dias festivos mencionados foram o Natal, a Páscoa e o Ano Novo.
Na entrada, do lado de fora de cada porta (tanto da copa, da despensa, quanto da
cozinha), fizeram um quadrado de cimento para “limpar os pés” ou deixar os calçados.
Para tomar banho, construíram entre o quintal de fora e a frente da casa, ao lado do
poço, um banheiro que serve somente para este fim. É sem telhado, suas paredes estão feitas
com restos do telhado de fibrocimento que cobre a copa, o chão é de tábuas de madeira e a
porta é um pedaço de lona amarela. No chão há um grande balde para a água. O outro
banheiro é a mata ao lado, como fazem na grande maioria das casas da colônia; não
especificaram um lugar exato, embora cada um tenha o seu local preferido “de costume”.
139
2.3.6 A casa e os tempos - do cotidiano e das festas
Os quintais desta casa dividem-se em três cercados: dois “de fora”, estando, em um
deles, a “casa velha”, e um “de dentro” onde está a “casa nova”. Os quintais de fora abraçam a
casa, estão quase que completamente à sombra, servem de cercado para alguns animais
(ovelhas e galinhas) e está feito de postes de madeira roliça e arame liso. Neles se encontram
alguns equipamentos da casa (bancadas de serviço, traves para pendurar carnes, etc.), os
cochos para dar comida aos animais, o pomar e a casa mais antiga (o atual quarto do casal e
do filho caçula). Em contraposição, o quintal de dentro diferencia-se pelas atividades, pela
quase ausência de sombra e por ser bem fechado com ripas de madeira “para não entrar
nenhum bicho”
149
. Interligam os quintais três portões, os quais ficam todo o tempo fechados
por uma tramela, para dificultar o acesso dos animais.
Nesta casa, o espaço do quintal de dentro se transforma em tempos de festa. Usam
cobrir com lona um desses locais externos para abrigar um maior número de pessoas, ou
simplesmente ocupam a sala. Em uma casa onde ainda se realizam estas rezas festivas,
inclusive há uma viga que fica permanentemente apoiada no quarto e na sala, colocada para
este fim. Para os preparativos e no decorrer das celebrações, tanto os quintais de dentro
quanto os quintais de fora são ocupados: se dentro acontece a festa propriamente dita, nos
outros se utilizam os equipamentos (os fornos, o local do banheiro, etc.) e as sombras, que são
usadas como abrigo e para armar acampamento no caso de haver quem queira pernoitar.
2.3.7 O lugar do velho e do novo
Os critérios para localização desta casa no terreno e os referentes espaciais exteriores à
casa (localização da “frente” e do “fundo”) preexistem à própria idealização. A construção da
casa e a posterior localização da mesma no terreno são caracterizadas por critérios bem
específicos e que definem a separação entre mundos - o mundo coletivo dos caminhos e o
mundo particular da casa. A “frente” da casa e, de certa forma, os quintais de fora servem
como mediação. Se a sala identifica a “frente”, os “fundos” são simbolicamente representados
a partir de uma porta ou uma janela que marca a convenção de uso estritamente familiar, mas
principalmente marca um local de serviço. Se existe o lugar do informal, do bagunçado do
149
A ausência de árvores no quintal de dentro ou nas proximidades da casa, se não houver estas denominações, é
devida às tempestades que costumam derrubá-las colocando em perigo os moradores. É comum após estes
vendavais ver várias árvores do pomar e dos campos caídas, inclusive obstruindo a passagem nos caminhos
ou sujando e mudando os caminhos.
140
dia-a-dia, existe o outro lado caracterizado pela ordem, pela preocupação estética, voltado
para os outros.
Na descrição da casa 2, no sítio Nova Vida, foi possível observar que, pela má
localização (se o “fundo” não consegue ficar em um local adequado em relação aos acessos),
a família pode sofrer para conseguir um mínimo desejado de privacidade. Desta maneira,
quando prejudicadas certas práticas características da família (as tarefas de serviço e as
consideradas sujas), o “fundo” é reacondicionado para se manter de alguma forma uma clara
distinção entre a zona particular e a zona coletiva do território. A “frente” por outro lado deve
estar voltada para o que é agradável de se olhar, o jardim e a sala.
No preservar as práticas do cotidiano e no preparar a casa para receber, ficam
evidenciadas - na definição “frente-fundo” - as relações entre o coletivo e o particular. Entre
outras coisas, no uso desses espaços nota-se que o homem tem a nítida tendência a usar e a se
apropriar dos espaços mais expostos da casa (sombra e lazer) assim como também o faz com
o território da colônia como um todo (o campo e os caminhos). Por outro lado, a mulher
ocupa os lugares mais reservados da colônia (o espaço doméstico) e da casa (a cozinha), pois
recebe as visitas cotidianas, enquanto trabalha. Assim, a cozinha, posta como lugar de
encontro familiar, é também o lugar por excelência do trabalho feminino. As saídas da mulher
consistem principalmente nas visitas mútuas (quando os maridos não estão), ficando nos
domínios das casas (particular), ou quando saem para realizar tarefas em grupo (na roça e na
lavação de roupas).
Nos critérios utilizados para a distribuição espacial quanto ao uso íntimo da casa, a
mulher se apropria da cozinha e dos quartos (guarda objetos, toma banho, etc.) e o homem
pode ocupar a sala ou as sombras dos quintais de fora, como preferir. Quando solteiros, estes
podem escolher qual o lugar mais agradável para dormir, existindo em algumas casas o
“quarto dos homens” onde dormem todos juntos em um local separado ou ocupam os galpões,
sombras ou salas quando escolhem dormir em camas ou redes. Às mulheres solteiras não é
permitido que durmam sozinhas ou em quartos ou locais separados dos pais.
2.3.8 A casa entre o habitual e o ideal
Das edificações existentes, a cozinha, a despensa e a “casa velha” estão feitas nos
moldes originais: piso de chão batido, fogão à lenha com chaminé externa feita de latinhas de
óleo, as paredes são de buriti, não dispostas verticalmente, às vezes com reboco (“casa velha”)
ou sem (cozinha e despensa) e com a cobertura de duas águas em acuri trançado.
141
A “casa nova” possui três partes distintas: a primeira para quem chega pelo acesso
principal é a sala; ela é totalmente aberta apesar de estar o baldrame da fundação à vista,
denotando que se pretende fechar algum dia (pelo menos parte dela); os pilares são de
madeira cerrada e igualmente a estrutura do telhado está muito bem acabada. A cobertura é
constituída por duas águas de telha de barro. A sala nesta casa é realmente usada para receber,
sobretudo pelo Seu Júlio, pois não há outra sombra no quintal de dentro. Ela encontra-se
envolta por plantas ornamentais que impedem que esta fique totalmente à mostra, tapando ao
mesmo tempo a visão para os outros quintais. A provisoriedade, neste caso, pressupõe um
meio e não um fim, embora já dure três anos, e a idéia original do casal é fazer debaixo do
telhado da atual sala dois dormitórios contíguos e fechados, deixando apenas uma parte na
frente aberta como sala, tudo muito bem acabado.
No mesmo sentido (norte-sul) e atrás da sala, a uns cinco metros de distância, está a
segunda parte do corpo da “casa nova” que apresenta, de maneira contígua, a cozinha, a
despensa e a copa. A diferença, contudo, está no material que recebe a copa (de certa forma
uma inovação), diferenciado da cozinha, que é o espaço mais padronizado nas casas
colonenses. A construção tem telhado de duas águas, metade de acuri (a cozinha e a despensa)
e metade de fibrocimento (a copa). Copa e despensa foram contempladas com paredes de
tábua, e a cozinha está terminada com troncos roliços.
A copa aparece duas vezes (na casa descrita anteriormente e nesta) como local
intermediário. Em ambas as casas ela é mais usada em ocasiões especiais, como nas festas, e,
assim como a sala, é indispensável como variável estética. A existência de tais locais é
imprescindível para as donas de casa porque, mesmo que a periodicidade de uso proposto para
o local seja muito mais baixa em relação aos outros locais da casa, a existência se deve a
alguma necessidade futura.
A sala sempre bem limpa e arrumada significa a possibilidade de existir um lugar
próprio para se receber, mas o uso real torna o significado ilusório e o discurso entra em
contradição. Entre os lances da casa há os habituais locais externos com uma árvore
pequenina e nada mais, tudo muito bem varrido.
2.3.9 A casa e o ritual de “limpeza”
A questão do varrer aparece em todos os sítios colonenses e já é sabido que o ritual
marca o espaço de projeção da casa (o particular). O que não é varrido é parte do quintal (o
142
semicoletivo). A varrição diária delimita a própria projeção da casa. O espaço varrido é
percebido como o espaço da própria casa, ou seja, a casa termina onde não se varre.
A associação entre mato e sujeira faz referência a classificações que podem revelar
formas de pensar o espaço doméstico. De modo genérico, chamam de mato o que não é
plantado, o que não é domesticado, e de planta o que é cultivado ou que tem uma utilização
direta na produção de remédios ou frutas. Mato ou baceiro (quando é na água) são sinônimos
no significado, indicam as espécies daninhas ou aquela que não possuem utilidade prática e
que ainda invadem o domínio humano. Assim, o mato pode ser sujeira para alguns que
querem proteger sua casa dos bichos de chão ou também porque tudo limpo deixa o terreno
bonito”. Mas pode ter alguma utilidade como os que usam o mato para conter o
assoreamento ou para os que pretendem com ele impedir o avanço do corixo sobre suas terras.
Por outro lado, todos concordam que o não domesticado pode, em certos contextos, ser a
fonte principal de poluição, como são os baceiros no sítio Nova Vida que impedem a
navegação nos corixos e transformaram o que era belo e “bonito de se ver” em lugar “sujo e
difícil de andar”. Muitas vezes o que prevalece são questões de comodidade, por exemplo,
quando se joga a garrafa no corixo, como no Nova Vida, ou quando se faz o banheiro para
atender uma convenção colocada pelos “de fora” como no Santa Maria.
O quintal colonense como espaço adjacente a casa é um elemento a ser destacado
pelos usos diversificados. Além da multiplicidade de seres vivos compartilhando um mesmo
espaço (plantas, cultivos e criação) e ademais da infinidade de usos dados pelos colonenses
(engenho, batedor, varal, pilão, etc) o quintal divide funções e atributos com a casa revelando
espaços de trabalhos, de encontros e de festas. Vistos como extensão da casa, os quintais
colonenses, funcionam como pequenas unidades produtivas gerenciadas quase que
exclusivamente pelas mulheres. São espaços valorizados e valorizadores dos atributos
pessoais e femininos.
O espaço do sítio como domínio masculino que se caracteriza pela disponibilidade de
terras, da habilidade e dos projetos familiares e do acordo entre casas; estas diferenças
refletem-se na criação, no planejamento e na dinâmica dos espaços. Por exemplo, no sítio
Nova Vida as galinhas se alimentam principalmente dos restos de comida e são fonte de ovos
e carne, ficam nos domínios da casa, compassadas ao ritmo do cotidiano. No sítio Corixinho,
a criação de carneiros se reproduz menos e exige pasto, transita entre o quintal (espaço das
mulheres e crianças) e o pasto (espaço dos homens) podendo ocupar-se delas tanto homens,
143
mulheres, velhos e crianças. O gado presente no sítio Santa Maria prende-se simbolicamente
ao mundo dos homens, apesar de se reproduzir mais lentamente o seu valor unitário é muito
maior, produzindo o leite e servindo como dote e também como poupança.
Tanto no espaço do sítio como no da casa estima-se as habilidades pessoais de criar os
espaços para o trabalho nos distintos tempos, ou seja, a diferença entre as estações
corresponde ao momento em que se compartilha os espaços com os animais e as plantas
(retração nas cheias) ou ao tempo de remaneja-los na escassez (expansão na seca). Assim,
cada período corresponde a um processo de trabalho que exigem cuidados especiais. Estes
ciclos produtivos caracteriza a organização familiar colonense - que combina a sazonalidade
do ambiente pantaneiro com o calendário das festas - e correspondem aos picos (interação e
recolhimento) de sociabilidade humana.
144
CAPÍTULO III
COM A CASA NAS COSTAS - ENTRE CORIXOS E TAPERAS
Pode-se dizer que as produções da casa e do espaço domésticos são expressão da
própria territorialidade e identidade colonense, que se produz e reproduz no território apesar
da mudança de sistemas (são os eixos fundacionais, estudado no primeiro capítulo). Acredito
que esta seja uma das características mais marcantes deste sistema socioespacial.
Em grande parte isto ocorre porque organizam o espaço doméstico à partir das noções
espaciais do cotidiano. Devido à maleabilidade do meio ambiente em que vivem criam e
recriam as suas casas acompanhando as mudanças produzidas no território pantaneiro. Esta
produção e reprodução do cotidiano é também o próprio sistema de comunicação e de trocas
colonense e estão diretamente relacionados com suas origens étnicas. No sistema de práticas
originais observadas no cotidiano se pode observar que para o colonense a casa e a família
são termos equivalentes e tem significação ontológica. A casa é o lugar de onde ele sustenta
sua existência social como pessoa, na experiência cotidiana entre os seus. Estas relações estão
baseadas em critérios de proximidade (do parentesco e da consideração) que se concretizam
através das redes de relações nas casas e entre as casas. O corixo São Domingos é o centro
desta dinâmica de transformações cotidianas e não porque esteja sujeito à variação sazoneira
mas porque de por si vêm de fora, em seguida perpassa e se ramifica pelo território
articulando as casas e depois vai embora.
A partir da descrição dos sítios e das casas, pode-se assegurar que os colonenses, em
função da sua concepção de território, embora diferenciem vários lugares, na representação
nativa, quando saem de casa, eles utilizam apenas dois referenciais: sempre vão para baixo ou
para cima, como no sistema de antigamente. É possível inferir também que a organização do
espaço doméstico parte de uma mesma tipologia que se reflete na forma igualitária da casa
colonense. Acredito que as casas expressam a concepção de cosmos, a concepção sobre o
mundo. Ao colocar a casa como categoria cultural central para explicar as suas vivências (de
como as suas relações sociais se sustentam, das relações que projetam e de como as pessoas
fazem a sua vida ali dentro) focalizo as relações em seus contextos, nas relações circunscritas
na prática cotidiana dos agentes (BOURDIEU, 1977).
145
3.1 Para baixo ou para cima - os caminhos do corixo São Domingos
Segundo Little (2002), a territorialidade humana pode se expressar de diversas formas.
De acordo com a diversidade sociocultural, a relação entre o território e o grupo particular
define a sua cosmografia
150
. A expressão da territorialidade colonense manifesta-se na própria
composição da Colônia São Domingos que, do ponto de vista geográfico (portanto secundária
em relação às categorias mais amplas de cima e de baixo), divide-se, segundo seus moradores,
em localidades: de cima, do centro, de baixo, da lagoinha, dos fundos e do recanto (ver mapa
5).
A distinção social na Colônia São Domingos traz referências ao espaço físico. As
categorias de cima e de baixo, utilizadas para localizar as pessoas com relação ao lugar em
que moram, descrevem mais do que uma posição geográfica, elas significam uma posição na
hierarquia de prestígio social que as famílias colonenses desfrutam
151
. Por exemplo, os de
baixo estão, via de regra, considerados como em condições de menor status social, menos
devido às restrições à produção e mais em relação à austeridade que o ambiente parcialmente
alagado proporciona para a vida social.
Ligando uma parte à outra estão os caminhos ou estradas, compostos pelo largo e
varadores (no seco) e pelo corixo (na água). O corixo atravessa a colônia de uma ponta a
outra, os sítios e as casas se acomodam ao longo dele no firme. Para se ir de um lugar a outro
na colônia, se pode passar por pinguelas, baías, largos, campina, lagos, matas, varadores,
campos, retiros, taperas, portos, roça, pasto ou por brejos e brejões, para usar algumas
categorias nativas de classificação da paisagem.
Os colonenses dão nome aos lugares, tornando-os mais familiares e acessíveis, e
significando desta maneira conjuntamente os espaços. Estes nomes podem ser relativos a
elementos da paisagem (porto da piuvinha), fazer parte de uma história comum (capão do
Alfredinho), estar ligado às pessoas (retiro da Irene), às atividades nele exercidas (retiro dos
porcos), à sua função (varador da escolinha), etc. Faz parte da memória do grupo, onde
nasceram uns e outros morreram, as taperas entre todos têm um significado muito especial:
marcam simbolicamente a trajetória de vida familiar e do grupo social ao traçar os caminhos
150
Paul Little (2002) parte do pressuposto da conduta territorial como parte integral de todos os grupos humanos,
cuja manifestação explícita depende de contingências históricas, para a noção de territorialidade como “o
esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica
de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu território ou homeland.” (2002, p.3).
151
Dentre as partes que compõem os agrupamentos colonenses destacam-se na ponta de baixo, as famílias que
estão se integrando novamente à colônia e onde são todos posseiros; e na parte de cima, as famílias que já
possuem as terras regularizadas (de acordo com a classificação do INCRA).
146
percorridos ao longo do tempo e perpassar os distintos sistemas de ocupação do território. É
desta maneira que as casas (famílias) se perpetuam, através das taperas que são um
patrimônio (enquanto valor) do grupo.
3.1.1 Casas e configuração de casas
As trajetórias pessoais, familiares e dos grupos - a mobilidade inscrita na sazonalidade
- entrelaçam-se em um mesmo território e se anotam na memória do grupo. Ao sobrepor estas
trajetórias fica evidenciada a complexidade dos sistemas de relações e a própria
territorialidade colonense - desde os primórdios da Colônia São Domingos até a atualidade -
que se manifesta nos relatos e andanças do cotidiano, quando através das taperas (suas
próprias e também de quem já não se encontra mais) lembram das pessoas e falam das
diferenças e similitudes dos modos de vida colonense, de antes e de hoje em dia.
Marcelin (1999) propõe que a ação dos agentes se dá em função da cosmovisão
(conhecimento e crença) que possuem de si mesmos, dos outros e do meio em que vivem.
Este conforma um conjunto de representações e de práticas sociais - o sistema de cada povo -
que se encontram circunscritas no domínio das relações sociais. Para o autor, um estudo da
construção e do uso sociocultural dos modos de habitar se funda na relação indissociável entre
dois níveis - o da casa e o da “configuração de casas” (conjunto de casas vinculadas por uma
ideologia da família e do parentesco) - que conformam um sistema de sentidos. A ordem da
casa corresponde, dentre outros, aos princípios que governam as relações entre gêneros e
gerações.
A casa colonense, assim como a estudada por Marcelin (1999, p.37),
[...] não é uma entidade isolada, voltada para si mesma. A casa só existe no
contexto de uma rede de unidades domésticas. Ela é pensada e vivida em
inter-relação com as outras casas que participam de sua construção - no
sentido simbólico e concreto. Ela faz parte de uma configuração. [...] Da
gênese da casa à sua construção, desta ao exercício, no cotidiano, da
experiência familiar, os agentes não se pensam e não pensam a vida
doméstica a não ser no contexto das redes dentro das quais eles interagem.
(grifo do autor; Idem:37)
O processo de produção da casa, a organização da vida doméstica no seu interior, a
relação entre casas, fazem da casa uma “unidade sociocultural” na qual e pela qual o agente
(colonense) se realiza, um lugar no qual ele se identifica. Ainda no pensamento do autor, a
partir de referências socioespaciais, cada casa se localiza em uma dada configuração - que é a
147
representação analítica de um dispositivo de posições articulando redes de casas - que
acontece em um território histórica e socialmente produzido.
A configuração atribuída pelos colonenses que guardam o passado - representada pelas
taperas – convivem no território, simultaneamente, com as casas atuais. A organização social
colonense resiste em sua “tradição” enquanto resposta às vicissitudes históricas, e também
passa pelo referencial da ancestralidade, especialmente quando este referencial está orientado
pelo parentesco. Na parte de baixo situam-se linhagens parentais de descendentes dos
primeiros Bororo que ocuparam a área. Na parte de cima, estão os descendentes de Guaná,
declaradamente do grupo que foi instalado na área desde a implantação da colônia em 1905.
Os que não nasceram na colônia ou não sabem a que etnia pertencem declaram-se
simplesmente paiaguenses ou colonenses
152
. Atualmente estes grupos “que foram se
misturando” (Seu Henrique) aos não nascidos na colônia formam um único grupo. Assim,
ambos os grupos têm parentes entre si e formam sistemas de relações. Talvez seja por isso
que, quando perguntados, não compartilham dessas diferenças, dizendo que a taxonomia do
território (baixo e cima) é exclusivamente porque um lugar está mais baixo do que o outro.
A produção do espaço social, ou a sua representação, através das categorias de cima e
de baixo, sugere uma estrutura diferenciada de poder onde se exprime uma desigualdade,
manifesta no acesso às melhores terras. Contudo, a questão do conceito nativo de terra
demonstra-se um tanto relativo. O inquestionável maior status social dos de cima diz respeito
mais a uma convenção, reforçada pelo valor simbólico da criação de gado, praticamente
viável somente nas áreas não alagáveis de cima
153
. A predominância de sítios maiores na parte
de cima também concorre para isto. Contudo, isto pode ser relativizado, pois quem mora em
baixo nem sempre desejaria morar em cima. Se por um lado o alagamento de baixo dificulta a
atividade pecuária, por outro lado permite a agricultura com mais estabilidade durante
152
A princípio ouvi a alcunha paiaguense chegando a acreditar que se tratava de descendentes de um grupo que
ocupou historicamente a região. No entanto, os Paiaguá, estão considerados extintos há algumas centenas de
anos, sendo realmente necessário aprofundar a pesquisa para esta inferência. Apenas depois de algum tempo
andando entre eles percebi o termo colonense, constatando que eles assim se autodenominam a partir do
momento em que tem que se afirmar enquanto grupo social e lutar por manter um território comum. Com
certeza se sabe que são descendentes de Bororo e Guaná e tudo indica que cada um destes grupos ocupou
historicamente uma das margens do corixo São Domingos.
153
Banducci (2005, p.155) escreve que “a inserção do roceiro no contexto pastoril conduz a uma situação
duplamente paradoxal. De um lado, o fato de viver com suas famílias em matas cerradas e distante do núcleo
humano [...] faz dele, aos olhos do peão, uma figura anti-social [...]de outra parte, o seu trabalho, procedendo
à domesticação da terra, transforma a mata, domínio natural em sua acepção extrema, em roça, domínio da
cultura. No entanto, a ação domesticadora do roceiro sobre o solo rústico é de tal forma eficiente [...] que
acaba por transformá-lo em espaço controlado, seguro, aproximando-o desse modo do espaço feminino.
Tanto é assim que na roça se admite a presença efetiva de mulheres [...] As atividades seguras e, portanto,
‘leves’, não condizem com o ideal de vida masculino, o que, mais uma vez, leva à depreciação da figura do
roceiro.”
148
períodos secos. Em períodos de seca intensa, os de cima vêm procurar os de baixo para buscar
os gêneros alimentícios que lhes faltam, reafirmando a interdependência da colônia como um
todo (até porque, quando os de cima vêm à procura de produtos agrícolas, normalmente
trocam pela carne bovina que dispõem, agradando a todos).
Assim, a troca realizada cotidianamente nas casas colonenses tem importância
bastante significativa no estabelecimento das relações sociais colonenses. O compartilhar o
alimento pode servir tanto como um instrumento de reiteração das relações sociais quanto
para suas funções nutritivas. A circulação dos alimentos opera-se em vários níveis de
sociabilidade, o costume de trocar ou presentear acontece dentro das casas e com as famílias
presentes e faz parte de um ritual de visitas recíprocas e acompanhamento interessado, desde
os primeiros passos, no planejamento, do que, quando e onde se vai plantar ou criar
154
.
O sistema de trocas é a própria morfologia social, nos termos de Mauss (1974a) que
reúne diversas noções em torno de um mesmo evento. Assim como o sistema de trocas
evidencia as coletividades e funciona como um elo importante na cadeia de relacionamento
entre vizinhos e no grupo social em questão, o uso do corixo está circunscrito a vários círculos
relacionais: na relação dos moradores entre si, com os demais grupos colonenses e deles com
os de fora.
A distinção entre os de baixo e os de cima descreve uma situação política e social no
que se refere a elementos constitutivos da ordem colonense, tais como: os de cima constituem
na maioria os descendentes de Guaná, os de baixo, os de Bororo; os de cima têm a situação
fundiária regularizada, entre os de baixo, são poucos que a têm (a maioria é tida como de
posseiros); os de cima, em média, têm mais posses (riqueza) do que os de baixo, embora isso
não queira dizer que não há diferenças de posses entre eles, além de exceções
155
; os de cima
têm mais criação, enquanto os de baixo trabalham mais a agricultura; em cima a área alaga
menos, o território é mais amplo porque fica seco na maior parte do tempo, embaixo os sítios
154
Pode-se dizer que o sistema de prestação alimentar colonense define-se por duas motivações: a necessidade
de dividir os alimentos que aqui são considerados como parte do próprio grupo (como se fazia no sistema de
antigamente); a vontade de obter prestígio demonstrando generosidade e chegando à ostentação de suas
riquezas. Assim, além de sua função nutritiva, o alimento tem aqui função simbólica e social. Se é
“vergonha” não ter nada para oferecer às visitas, a “generosidade” é vista com muita admiração com o poder
de provocar ou atenuar “inveja e mau-olhado”.
155
A riqueza na colônia é mensurada pelo tamanho da terra dividida pelo número de filhos, pelas criações, pela
infra-estrutura, inclusive a posse de bombas geradoras de energia, ou antenas de celular, pela situação da
habitação e pela presença de água potável próxima às casas. Frases do tipo “puxa, vocês estão melhor que
nós, tem só dois anos que estão aqui e já têm animais!“ são bastante esclarecedoras do que os colonenses
consideram como sendo posse no sentido de riqueza material. Entretanto, para o bem-estar, sobretudo, água
boa é necessária, e muitos sítios até bem prósperos ainda não alcançaram este objetivo enquanto sítios bem
mais humildes esbanjam água potável.
149
são verdadeiras ilhas, que ficam com o território comprimido, em função das águas, na maior
parte do ano; em cima andam mais a pé e a cavalo do que de barco, embaixo dependem do
barco para deslocamento, sendo para os de baixo a movimentação mais dispendiosa em
esforço físico
156
. Não obstante os de cima tenham um certo privilégio durante a cheia, eles
passam dificuldades em anos de seca extrema, situação mais aceitável e de efeito mais ameno,
como foi visto, para os de baixo, que aproveitam para comercializar excedentes agrícolas.
A maioria dos moradores de baixo vive na condição de posseiros; eles ocupam uma
área comum, moram em treze casas, cujos limites de sítios são tomados informalmente, com
base no usufruto e em caráter flexível, conforme o interesse e a atividade a ser desenvolvida.
Em outras palavras, vivem sem configurar terras divididas por cercas e legitimados por
documentos oficiais
157
. Nesta porção da colônia, pode-se dizer que ainda se tem um parco
referencial do que viria a ser o primeiro eixo fundacional da Colônia São Domingos, pois
naquela época ainda não ocupavam a área e, portanto, em parte, não estavam afetados pelas
implicações decorrentes que configuram o que chamei de segundo eixo fundacional, a
desestruturação do modo mais conhecido de uso do solo.
Dos tempos do sistema de antigamente pleno na colônia (primeiro eixo fundacional),
apesar da dificuldade e do sofrimento de algumas passagens históricas, todos falam com
saudades. Daqueles tempos, os colonenses ainda reproduzem o sistema de trocas, de
circulação, a alimentação, a agricultura, o modo de criação animal, a forma da casa e das
configurações entre casas e de outras construções como o engenho de cana, os pilões e as
canoas, em que pese a falta de “espaço” para estas práticas.
A noção colonense de reciprocidade está condicionada a distâncias sociais e espaciais.
A obrigação de dar, receber e retribuir (estudados por MAUSS, 1974a e retomado por
SAHLINS, 1978) é um princípio organizador do relacionamento dentro e fora das casas e que
se alarga nas relações com o mundo. A situação de reciprocidade ocorre nos momentos de
maior convergência de interesses, mas pode ser também verificada em certas situações em
que relações desequilibradas e assimétricas acontecem como, por exemplo, na troca com os de
fora (fazendeiros) onde a relação é por interesses opostos, portanto muito mais econômica. As
relações entre si e com os de fora são mais um elemento constitutivo da trama de base que
compõe a colônia.
156
Esta situação pode ser paradoxal mesmo que demande um esforço maior a possibilidade de movimentação
pelo corixo aumenta para os de baixo que têm os meios e habilidades de locomoção. Dependendo do nível da
cheia, os de cima dependem dos de baixo para levá-los até o porto Virabrequinho, pois fica difícil o acesso
mais usual para o porto Figueira.
157
Estas famílias estão em via de terem suas terras regularizadas de acordo com uma recente (porém não
expedita) demarcação do INCRA, em 2004.
150
A partir da conexão entre fluxo de bens materiais e relações sociais em função da
variedade de trocas, há uma espécie de gradação de formas de reciprocidade (SAHLINS,
1978), que vai daquelas que envolvem relações mais próximas entre os participantes àquelas
de relações mais impessoais e distantes. Para o autor, a comida como um elemento de trocas
recíprocas que envolvem relações mais próximas entre os participantes é altamente
significativo, a ponto de não serem tratadas por mercadorias. Entre os colonenses, a troca de
alimentos é singularmente importante na ausência de dinheiro nas relações internas aos
grupos. Esta singularidade encontra-se em muitos grupos camponeses onde existem códigos
costumeiros regulando a reciprocidade e a solidariedade como possibilidade de reprodução
social das famílias. Subsumido no valor social há valor simbólico, “alimentos não podem ser
tratados como qualquer coisa. A comida é fonte de vida [...] simbólica do fogo do lar”
(SAHLINS, 1978, p.215).
As trocas baseadas no princípio simétrico da reciprocidade não são exclusivamente de
bens e serviços, coisas economicamente úteis, como mostra Mauss (1974a). Entre os
colonenses, elas abrangem todos os aspectos da atividade humana; nas trocas cotidianas e
troca-se também amizade, alegrias, gentilezas, compadrio, fofocas, confiança. Uma
linguagem que garante a produção e a sobrevivência do grupo. Pode-se dizer que a
reciprocidade obedece a padrões de simetria, é uma troca entre iguais, uma igualdade moral,
estabelecida por laços de consangüinidade e afinidade. O trabalho é pago com o próprio
trabalho, dentro do grupo doméstico ou entre casas. Essas trocas estão baseadas no respeito,
em afinidades e confiança, que transcendem a pura troca e nas quais é possível ver a
subsunção da reciprocidade moral.
O conceito cultural de casa opera neste sentido como um foco estratégico na
constituição, invenção e reprodução dos padrões morais, da reciprocidade e da identidade
socioétnica - do ethos - que conforma o grupo local. A casa não muda de forma com a
mudança de sistemas, ela se configura no sistema de trocas que se mantém apesar da mudança
nos modos de vida colonense
158
.
158
Para estudar sobre as transformações ocorridas sob ponto de vista das origens étnicas - na organização e na
estrutura social - assim como as mudanças ocorridas na forma de pensar a casa dos grupos que situaram a
colônia, se poderia começar com Novaes (1983) descrevendo os Bororo através das casas e da espacialização
da aldeia. Viertler (1978) também escreveu sobre aspectos rituais e sobre o domínio doméstico Bororo.
Dentre cronistas que escreveram sobre os Guaná, cito Castelnau (1949), Altelfender (1949) e Susnik (1978),
aparecendo em suas descrições aspectos de sua organização social, e também sobre suas casas e aldeias.
Atualmente grande parte das nações que compunham os Guaná estão agrupadas sob a denominação Terena
(Etelenoe). Sobre os Terena (tronco lingüístico Aruak), etnografou Cardoso de Oliveira (1968 e 1976) e mais
recentemente estudaram Azanha (2002) na aldeia Terena Cachoeirinha/MS e Fehlauer (2004) na aldeia
Terena LimãoVerde/MS.
151
Da mesma forma, a noção colonense de território está subsumida à própria noção de
seca e de cheia que, por sua vez, se liga à forma da casa e à própria distribuição do espaço
doméstico. Essas diferenças se expressam na “configuração de casas” e nos usos do território.
A partir de referências socioespaciais, cada casa se localiza em uma dada configuração, que
se articula em uma rede de casas em um território histórica e socialmente produzido. Com
efeito, os sítios de cima variam radicalmente de medida, resultado da medição de 1979. Os
sítios de baixo, contudo, apesar das restrições impostas pelo alagamento, foram sendo
ocupados de forma eqüitativa (desde 1982), não havendo muitas diferenças de área de um
para o outro.
3.1.2 O espaço socializado - ritmo da vida colonense
A diferença no tamanho e na localização dos lotes dita outras diferenças. A posse
material de cada grupo doméstico é uma diferença que se equaciona nas trocas cotidianas, não
afetando diretamente os modos de vida. São modos de ser e de fazer que se refletem na
tipologia igualitária das suas casas. Desta maneira, a função social da troca é essencial para
entender como, a partir da reciprocidade, se articulam as redes de casas que dão expressão à
própria identidade colonense.
A reciprocidade, no entanto, se reflete nos usos desses espaços, pois é justamente
explorando o que de melhor cada território pode oferecer que os colonenses produzem os
excedentes e realizam as trocas no e entre os coletivos. Pode-se dizer que o espaço produzido
pelas variações sazoneiras é socializado pelos colonenses de forma a produzir e reproduzir o
seu sistema de vida. Se não há mais o sistema comunal de antigamente, de certa maneira é
ainda desta forma que percebem e usam o território, cada qual faz o melhor dentro de uma
dinâmica que dá unidade e permite a existência do grupo.
Mauss (1971) observa que uma organização social não é determinada pelo meio ou
pelo clima, mas que o ritmo da vida social relaciona-se, sim, às modificações ambientais,
propiciadas pelas condições climáticas. As variações sazoneiras permitiram a Mauss
estabelecer proposições que reafirmaram a não-preponderância da condição geográfica -
constituindo esta apenas uma das condições das quais depende a forma material dos
agrupamentos humanos na sua totalidade e complexidade. A vida coletiva, observa o autor,
está permeada por “mudanças na organização morais, jurídicas e religiosas que por sua vez
152
conformam as relações sociais” e, por conseguinte, os modos de apropriação dos ambientes
vividos.
Observo que a sazonalidade influi de maneira distinta nos ambientes colonenses,
dependendo da localização do sítio no território, localização esta que por sua vez influencia o
tipo das atividades exercidas, que influencia a ocupação dos espaços, que influencia a geração
dos produtos e que, por sua vez, engendram as trocas. O modo pelo qual o ambiente atua
sobre o grupo como um todo produz os ritos de cada estação, que por sua vez acontecem no
mesmo ritmo da organização social colonense
159
.
No caso das sociedades esquimós, estudadas por Mauss (1971), ocorre que, conforme
as estações, muda completamente a maneira pela qual os homens se agrupam, mudam a
extensão e a forma de suas casas e a natureza de seus estabelecimentos. Na colônia isso
acontece em outro nível: mudam os comportamentos socioespaciais. Quero enfatizar aqui que,
na colônia, além das variações sazoneiras, ainda há as variações inerentes ao território e às
diferenças ambientais, como se viu, ocupados por grupos distintos - embaixo os sitiantes das
cordilheiras (e das águas), em cima os sitiantes dos campos (e da alternância entre secas e
cheias) e no centro a efervescência do social.
Afora estas diferenças internas e sua importância sociológica, entendo, todavia, as
relações colonenses, enquanto conformadoras de um único grupo social, singular e
estabelecido em um território definido. Nos termos de Diegues (1996, p.428), “existem
diversas formas de apropriação de espaços e recursos naturais”, mas que se baseiam em um
“conjunto de regras e valores consuetudinários, da ‘lei do respeito’, e de uma teia de
reciprocidade sociais onde o parentesco e o compadrio assumem um papel preponderante”.
Como em Mauss (1971), ademais das regras sociais, a variação sazoneira, permite ver
com mais clareza propriedades do social que são marcadamente menos nítidas em outras
realidades. O que marca a vida esquimó são as diferenças na intensidade da vida social que se
intercala periodicamente, variações estas que regulam a vida na sociedade
160
. O ritmo da vida
individual e coletiva colonense, mais do que mero produto da variação sazoneira reflete esta
necessidade natural de pensar a ocupação terra. O território ocupado de forma comunal está
diretamente relacionado às sua origens étnicas. A unidade das casas e entre as casas une as
159
No estudo realizado por Mauss (1971) afirma-se que os efeitos da variação sazoneira afeta também
profundamente as idéias, as representações coletivas, numa só palavra, toda a mentalidade esquimó, pois se
ligam a uma divisão mais vasta e mais geral, que compreende todas as coisas.
160
Conforme o autor, o ritmo da variação sazoneira é uma espécie de necessidade natural da vida em sociedade,
pois a vida social é, em todas suas formas, função de seu substrato matéria; varia, portanto, com esse
substrato.
153
diferentes famílias colonenses e se expressam nas práticas sobre o espaço social ocupado por
eles.
Viver em um ambiente de austeridade climática, ambiental e econômica implica, na
prática, um viver socializado que, em termos colonenses, é refletido nos comportamentos
socioespaciais. Um exemplo disso é que na colônia todos os sítios e casas têm portos, mesmo
que o corixo não chegue mais a seus limites. A parte de cima, como se pode ver no
depoimento dos moradores do sítio Corixinho, há anos que não alaga. Isso não quer dizer que
não voltará mais a encher, mas que será necessário uma cheia maior para que isto aconteça.
Entretanto, cada vez que constroem uma casa nova, arranjam também o espaço do porto,
como se viu na descrição dos sítios.
Mesmo com as transformações ocorridas, socializar o mesmo ambiente pode ainda
significar: deixar a criação em um único pasto ou lugar que não alaga; dividir entre as famílias
e animais de duas ou mais casas a água de uma cacimba que tem água boa; limpar o corixo ou
o varador que permitem os acessos principais; apagar os incêndios muito comuns na época de
muita seca; trocar os excedentes; garantir o leite para as crianças menores; ter cuidados
especiais quando há alguém com problema de saúde; prender os animais que possam causar
dano à roça do outro; realizar os mutirões relativos à agricultura; realizar visitas em ocasiões
especiais; reunir as mulheres para lavar as roupas no corixo alheio na época da seca; enfrentar
juntos os desmandos de algum fazendeiro, etc.
161
. Em caso de desavenças dentro ou fora do
grupo, podem ser colocadas ou constituidas verdadeiras fronteiras que ficam demarcadas pela
presença de inimigos da família. Nestas circunstâncias muda-se a rota de navegação e os
caminhos de chão, aumenta-se à vigia diurna e a sonda noturna, busca-se aliados, aumenta-se
os mexericos, entre outros desdobramentos. São contextos de certa forma diferenciados para
cada grupo e que se expressam nas relações sociais, nas apropriações do território e se
refletem nas configurações socioespaciais.
Enfim, ao realizar uma análise sociológica do espaço colonense, entendo que se o
sentido do coletivo na colônia é dado pela concepção de ser de cima ou de baixo, contudo,
esse coletivo é situacional, não significa uma unidade social. O sentimento de pertencimento é
dado pelo compartilhar de um mesmo ethos, ou seja, pelo sentimento de ser colonense. Os
matizes desta situação, porém, expressam-se por meio de uma outra classificação nativa: ser
de dentro ou ser de fora. Fundamentalmente, quando se referem aos colonenses ou aos de
161
Tanto os de baixo como os de cima, cada qual em seus contextos, vivem de alguma forma na fronteira sob o
desafio das relações assimétricas e conflituosas com os fazendeiros.
154
dentro, estão aludindo a um padrão territorial de ocupação, a uma identidade e ancestralidade;
os de fora são os que não compartilham deste mesmo ethos.
3.2 De dentro e de fora - tempo e espaço no mar de Xaraiés
162
Os sitiantes colonenses estão cercados pelas grandes fazendas de gado e outras
pequenas localidades que abrem um pequeno mercado de trabalho e junto com ele um leque
de interações
163
. Pode-se afirmar que a distintividade entre os de dentro (sitiantes e posseiros)
e os de fora (fazendeiros) acontece devido às diferenças que advêm, de um lado, das
diferenças sociais e, de outro, da própria concepção de território de cada grupo.
Pelo lado das diferenças sociais ressalta, quanto aos fazendeiros, a própria condição de
ser de fora. Esse peso sobre o fazendeiro, nesta relação, é acentuado pela falta de vínculo
social ou comunicativo e é agravado por graus distintos na hierarquia social de poder. Assim,
com os fazendeiros, apesar de necessária a relação é competitiva, quando não coberta pela
tensão da sujeição, diferentemente do que é observado entre sitiantes, independentemente da
condição de posseiros ou “escriturados”. Cabe ressaltar, neste aspecto, que razões históricas e
políticas separam colonenses de fazendeiros, pois a extensão ocupada pelas fazendas tem
limitado o espaço da colônia através de constatações nativas de grilagens de terras da colônia,
realizadas geralmente pelos fazendeiros adjacentes a esta (algumas oficializadas em 1979 –
segundo eixo fundacional).
Porém, por outro lado, as diferenças entre fazendeiros e colonenses perpassam as
distintas formas de conceitualização do território pantaneiro. Na colônia, mesmo em tempos
de formalização da posse dos sítios em escrituras, a esta noção de propriedade subjaz uma que
lhe antecede, a da legitimidade pelo trabalho, no usufruto do território pela sua socialização
familiar, articulando desta forma princípios do “sistema tradicional” acomodados à nova
estrutura jurídica. Portanto, trata-se de códigos de territorialidade não compartilhada pelos
fazendeiros, para os quais a terra é tornada mercadoria, anterior à apropriação social que lhe
162
O mar de Xaraés ou Xaraiés - como já foi chamado pelos espanhóis que percorreram a região no séc XVI - foi
denominado de Pantanaes apenas e a partir do séc XVII, segundo Costa (1999). O termo reaparece com
bastante freqüência em vários discursos contemporâneos.
163
Nos sítios mais ricos é praticada, como nas fazendas, a pecuária extensiva, tida como atividade tradicional
exercida na ocupação do território pantaneiro, propiciada pelas pastagens naturais bem como pelo cavalo
pantaneiro, colaborador importante do modo de vida dessa região. A atividade pecuária, comum entre estes
sitiantes e as fazendas, provoca o incremento de possibilidades de interação econômica e até social entre
estas categorias sociais pantaneiras (exemplo: arrendamento de pasto, vendas conjugadas de animais, compra
de medicamentos, troca de serviços, dentre outras).
155
realiza, podendo configurar-se, no limite, em objeto de especulação (a especulação fundiária)
e o território abstraído como símbolo de riqueza em si (uma mercadoria).
Contra os fazendeiros depõe o comprar “ilegalmente” a terra (pois é área do governo
federal), embora o agravo se dá por não trabalhar esta terra, sobretudo não plantar roça. Eles
não adquirem o “direito” de usá-la como seria o “normal” na concepção camponesa
colonense. Segundo os colonenses, os fazendeiros “dão pouco valor a terra e valoram mais a
cerca”, preocupam-se com a própria segurança e não fazem as trocas, a não ser quando
oferecem emprego ou compram o excedente, mesmo assim o que fica marcado é a relação de
superioridade, não participam tampouco dos mutirões, das festas e nem mesmo se envolvem
nas brigas, pois simplesmente “não fazem parte da colônia”
164
.
Se o fazendeiro é percebido como o de fora, o sitiante é visto como vizinho que
participa das trocas, dos mutirões de ajuda na limpeza e na colheita da roça. A ajuda entre os
vizinhos expressa a reciprocidade e não como acontece com o outro. Isso não quer dizer que
somente os vizinhos se ajudem e tampouco que os sitiantes sejam iguais entre si - há
diferenças internas -, porém, identificam-se entre si como sitiantes e vizinhos. Desta maneira,
as relações sociais remetem a distintas hierarquias: entre eles se obedece a regras de padrão de
trocas matrimoniais e aos princípios de honra e de reciprocidade; porém, a relação com o
outro é de compra e venda de força de trabalho.
Segundo Woortmann (1995, p.286), nestes casos, parte das disputas advém da
diferença entre a concepção a respeito do gado (termo regional usado para designar o gado
bovino). Na fazenda o gado é destinado ao mercado ele é um fim (pecuária); enquanto que no
sítio o significado do gado é um meio (criação), como reserva de valor para aquisição de terra,
para sobreviver à seca, como dote, como herança, etc.
Os conflitos vêm de concepções opostas de propriedade ou de formas antagônicas de
ocupação da terra, mas, sobretudo, como resposta a uma brusca mudança no modo de exercer
e legitimar o uso da terra: se antes ser dono (pela posse) bastava para o reconhecimento
164
É por esse mesmo motivo que as terras da fazenda são terras sem sentido e o assalariamento é tido como
cativeiro, entre os sitiantes estudado por Garcia Jr. (1983b) e Woortmann, (1991). A hierarquia entre os
colonenses e os fazendeiros fica mais evidente quando os últimos se adjudicam eles próprios a justiça:
vários “causos” de roubo em que colonenses foram amarrados e surrados em um poste. Nestes e em outros
casos sempre, segundo os colonenses, os policiais estão a serviço dos fazendeiros: são violentos e de fora.
Neste caso há uma troca de acusações: os policias acusam-os de serem “hostis” e de haver entre eles muitos
“foragidos e também delinqüentes” (“coureiros e ladrões de gado”). Quanto às contendas entre eles próprios,
os de dentro (os sitiantes colonenses) se espera o máximo de diplomacia, para resolvê-las. Contudo, isso não
significa que não haja eventualidades de casos de violência. Paradoxalmente, muitos moradores demandam
policiamento na colônia.
156
consuetudinário, hoje é preciso ter documentos
165
. As próprias dimensões do “antagonismo”
entre os dois códigos de apropriação da terra não podem assim reduzi-los ao problema da
legalização (ou não) da posse. Os camponeses têm a idéia de que basta situar a terra (morar e
trabalhar) para torná-la sua
166
.
O lugar do vizinho na colônia necessita ser visto no contexto real que ocupa. Vizinho é
uma categoria ligada a território e a proximidade, quando se afirma “todo mundo era dono”
ou “todos eram vizinhos” julgam possuir a terra? Quem pode lhes tirar o direito ou a
liberdade de morar e trabalhar? E ainda, podem ser vizinhos fazendeiros e sitiantes? Podem
dividir um mesmo território se não compartilham dos mesmos direitos, do mesmo código
moral, sendo patrões e empregados?
Nos casos de terras comunais analisados por Sá (1975) e Soares (1981), sendo ou não
reconhecida legalmente, a propriedade da terra possui, para os camponeses, um estatuto
“jurídico” a priori, que é pressuposto dos direitos individuais e que os condiciona, não só por
circunscrevê-los a uma unidade territorial de limites definidos, mas também por subordiná-los
ideologicamente ao “compromisso grupal” de conservação de terras grupais e indivisas. Com
base nos relatos do cotidiano, a diferença entre concepções fica enunciada no termo-chave
usado por eles para a posse - ter o direito. Com esse termo designam os domínios individuais
de apropriação da terra, a extensão e a antigüidade da posse, e o objeto das transações
mercantis.
Deve se levar em conta que, diferentemente da “colonização espontânea”, nesta
colônia a ocupação está circunscrita a uma unidade territorial de limites definidos; nela, a
terra de todos traz referência a uma identidade e a um espaço coletivo, enquanto pré-condição
e limite para o exercício dos direitos individuais. As terras são consideradas herança e
patrimônio do conjunto de descendentes dos índios. Por exemplo, se entre os atuais posseiros
existem estes descendentes, isso os faz colonenses originários; embora não estejam em
165
Neste caso, dono é o termo que se utiliza para designar tanto os posseiros quanto os proprietários. Segundo
Woortmann (1991, p.28) dono de terra e pai de família expressam o mesmo princípio moral do trabalho:
assim como na colônia, dono é uma categoria moral entre os sitiantes de Sergipe, opondo-se à de
proprietário. Enquanto a última remete a uma ordem econômica, onde a terra é mercadoria, e a uma lógica
jurídica coerente com tal ordem, a primeira remete a uma ordem moral, onde a terra é patrimônio e
transmitida como tal, de geração a geração, segundo padrões camponeses de herança que variam de lugar
para lugar, mas sempre espelham essa ordem moral (BOURDIEU,1962; MOURA 1978; WOORTMANN
1987; 1991). O dono se faz pelo trabalho, independentemente de possuir propriedade jurídica sobre a terra; e
o proprietário se realiza pela compra, designa na terminologia local o outro, o forte. O sitiante constitui o
espaço do sítio, espaço por excelência da família, pelo trabalho ou pela herança. Pode-se dizer que os
documentos são almejados pelos colonenses, pelo fato de eles garantirem, com mais tranqüilidade, o acesso à
aposentadoria rural.
166
O termo proprietário, além de se referir ao titular de qualquer propriedade, incluindo o grande fazendeiro,
identifica a categoria de pequenos produtores que são titulares das terras fora dos limites da colônia.
157
condições de igualdade, compartilham de um mesmo pertencimento. Isso ocorre
principalmente por entenderem que, mesmo não estando com a posse regularizada, eles
também têm o direito sobre as terras, pois são colonenses.
Até o final do século XIX, a maior parte das terras na região Paiaguás era de terras
livres ou devolutas, não possuíam um dono a priori, mas pertenciam a todos os que a
amansaram (a mata) e a dominaram (mormente pelo fogo). Da idéia de que o espaço pertencia
a quem o socializasse, advém a afirmativa de que só as benfeitorias pertencem ao colonense e
que somente os produtos dos trabalhos são negociáveis. Aparece, portanto, ainda hoje, uma
concepção comunal da propriedade da terra: a terra “em si” não lhes pertence; é como se
estivessem morando e trabalhando em terras de outros. Isto se expressa no direito almejado:
não sobre a propriedade ou contra a grande propriedade, mas para ter controle sobre a terra. A
liberdade aspirada colocada por eles é no sentido de o território voltar a ser “mais espaçoso”.
No devir cotidiano dos colonenses, o que prepondera é uma distinção que transcende à
circunstância extraordinária (e temida) da necessidade de comercializar a terra. Esta distinção,
segundo Garcia Jr (1983a), contempla a seguinte sentença: “Se fazenda é propriedade, o sítio
é como terra de trabalho”. O sítio colonense contém a casa, o chão de morada é, neste
sentido, a morada da vida (HEREDIA, 1979), portanto, portadora de valor moral e simbólico.
3.2.1 Confinado ou alongado - a (re)produção social colonense
Ser colonense remete sempre ao passado e a um modo de vida cuja referência é o
“sistema de antigamente”. Este modo remete a uma experiência vivida por alguns, mas
reconhecida por todos. Mesmo os atuais moradores (como eles dizem) percebem a colônia de
antes, como o lugar que oferece mais liberdade, por contraste ao sistema atual de relativa,
como dizem, “servidão”. É neste fluxo de memórias que se constituem e em seu resgate oral
que se afirmam e reafirmam colonenses ou donos do lugar (colonenses originários ou das
primeiras famílias)
167
.
167
O Sr Denirde fala, em seu depoimento, de algumas diferenças do sistema de antigamente para o sistema
atual: “Isto é do tempo de minha mãe. Eles morreram e eu não fiquei sabendo a quantia. [...] Eram um povo
antigo, um povo simples que não tinha sabedoria de nada como hoje tá tendo aí. É considerado de nossa
parte aqui. Meu pai e minha mãe não me mandou educar. Eu sou uma pessoa que não tem escrita não.
Vamos falar a verdade. Eles eram deste tempo antigo. Hoje um pai e uma mãe manda educar os filho e um
filho e uma filha tem que conhecer, pra servir. Só que tem o que eu aprendi muito ao modo dos antigo, as
pessoas que têm certos plano pra falar, pra conversar. Eu peguei como prática, mas não que eu sei ler, não
sei nada, nada. [...] Minha mãe falava idioma de bugre. Eu ainda fiquei sabendo algum pouquinho, deixou
um pouco. Tudo é falta de praticar, de não saber adivinhar. Quem ia esperar que hoje nós somos
testemunha, uma prova que é verdade que nós somos filhos do lugar.”
158
O sistema de antes permitia uma liberdade maior, uma sociabilidade mais intensa, pois
era mais espaçoso. Segundo eles, além de dividir as tarefas, antes todos juntos podiam
testemunhar os eventos, as experiências eram mais socializadas, de uma forma ou de outra,
todos participavam dos acontecimentos. Ademais, a proximidade era muito maior entre as
habitações, a organização do espaço e das atividades cotidianas proporcionava uma
coletividade maior do que a atual. Hoje o convívio se restringe mais ao espaço estritamente
doméstico e de domínio privativo de cada casa, família ou sítio, embora o grau de intensidade
se altere de acordo com as estações e com a localização no território. Hoje o espaço de
sociabilidade adquire uma dimensão de reduto familiar. O confinamento é a mais genuína
expressão desta atual falta de espaço. É a criação de novos códigos que asseguram a própria
reprodução social colonense, códigos estes que dizem respeito aos modos de apropriação e
interpretação das suas novas contingências históricas.
Os recém-casados normalmente vivem um pequeno período ainda na casa de seus pais.
Iniciam com uma pequena roça e depois constroem suas casas próximas à lida. Se o espaço de
que dispõem é pequeno, podem vir a construir suas casas próximas à dos pais e assim usar
alguns equipamentos e ferramentas em conjunto. Não há uma divisão formal do sítio, mas
espaços que podem ser usados em comum (mata, pasto, corixo, etc) ou com certa autonomia.
Normalmente o filho que demonstra vontade e habilidade para a lida na agricultura ou com a
criação, antes mesmo de se casar pode receber uma parte da terra para preparar sua própria
roça. Contudo, isso não o desobriga de suas atribuições como filho, mas o conduz a ter num
futuro próximo a sua própria parcela de terra.
Estar confinado aos pais configura uma situação paradoxal: se por um lado
proporciona uma certa autonomia à nova família, de outro, cria-se amarras ao ficar próxima
dos pais até que estes possam receber a aposentadoria, quando é a vez do filho cuidar do pai.
A aposentadoria é um recurso esperado e usufruído por toda a família. Este tema é parte das
novas estratégias advindas da mudança; trata-se de uma “modernidade” importante e
perfeitamente integrada aos valores da família colonense. Por outro, lado pode haver
problemas quando o tamanho dos lotes é insuficiente para todos os filhos, principalmente
quando se leva em conta que parte do ano ele fica debaixo da água (algumas vezes a maior
parte dele) ou totalmente sem água, ou seco. Estas condições locais têm implicações nas
circunstâncias e no modo do confinamento, como o exemplo de Dona Branca:
Aqui mora minha nora, meu filho mais novo casou e tão morando aqui. São
casado novo, não tem mês. Tão fazendo aquela casa pra eles morarem. Mais
adiante vão morar no fundo, nestas terra mesmo. Já tem gramado lá. Tem
roça lá. Tem o brejo perto. Dá pra pegar água. Na seca fica sem, mas daí faz
cacimba.? Água boa já com 3 metros.
159
Foto 18 - A casa do confinado.
Na foto acima a casa do filho confinado aparece atrás e próxima à casa do pai. No
entanto, quando o confinado constrói sua casa separada da casa do pai, pode criar outros
vínculos (por exemplo, com a vizinhança) e se inserir no domínio de outras relações que não
as familiares. A configuração da ocupação espacial colonense expressa esta rede que as
relações familiares, de parentesco, de compadrio e de vizinhança vão tecendo ao longo do
tempo.
Uma análise mais microscópica da mudança de sistema na colônia demonstra
diferenciações internas relacionadas ao prestígio (e a perda dele) e a um relativo poder
econômico - baseado na situação fundiária, no tamanho dos lotes e dos rebanhos. As
diferenças internas entre os sítios colonenses passam pela variação no tamanho dos lotes, do
número de filhos que ficam e de uma certa dependência dos recursos naturais.
Paradoxalmente há continuidade no fluxo das interações sociais, pois no sistema de trocas,
aos laços de parentesco se agregam os laços de vizinhança ou as relações de compadrio. As
diferenças podem ser relativizadas a partir de que as transformações vivenciadas se expressam
na superposição das relações. As afinidades entre casas se conformam, enfim, em uma
sucessão de espaços igualmente interligados historicamente como se percebe nas
configurações deixadas pelas taperas. Estes espaços contêm em si as qualificações e,
especialmente, as diferenciações que definem os modos peculiares de saber e sentir para
aqueles que nele vivem (LOCH, 2004, p.87).
160
O uso histórico da terra na colônia está ligado à passagem da herança e obedece a uma
certa complexidade, na medida em que não há uma regra única que determine a partilha de
bens entre herdeiros colonenses. Antigamente, segundo os moradores “dependia somente da
disponibilidade do espaço”, cada qual ocupava a parte que lhe interessava, normalmente os
espaços da roça eram contíguos e se podia ir de um lugar a outro “pela sombra do laranjal”.
Neste sentido e considerando a questão fundiária determinante da reprodução social
camponesa, Wolf (1976, p.70) demonstra que um traço recorrente entre os camponeses é
separar os irmãos em duas categorias: a de expulso e a de herdeiro
168
. Na colônia, com a
transformação da posse comunal em propriedade privada, ocorre a necessidade de deixar a
quem de direito pertencem as terras. No entanto, o que se verifica é que, para além da
formalidade legal, o que se consagra é a necessidade precípua de assegurar a terra como
espaço de vida para o grupo familiar, mesmo que para isto a posse tenha que ser realizada por
outros familiares, por exemplo: um tio, avô ou irmão que assuma de fato esta opção, quando o
filho não quiser ou puder assumi-la.
Segundo Woortmann (1987), a circulação das mulheres em contraposição à fixidez
dos homens e da terra é central na reprodução da casa e para a preservação do patrimônio
entre os camponeses. Neste caso, a fixidez dos homens se relaciona à herança da terra. As
alianças matrimoniais colonenses desenham a movimentação das pessoas, necessária à própria
reprodução social do grupo. Esta movimentação não necessariamente está ligada à saída das
mulheres. As uniões conjugais são práticas que se realizam no marco doméstico e podem ser
vislumbradas na relação casa-casamento.
O fato é que houve incorporação de “gente de fora” à rede social do lugar. No
entanto, os discursos expressam uma busca de continuidade do grupo na medida que
consideram colonenses os que passam a morar na colônia. Os estranhos são incorporados em
dois níveis: primeiro na família, com o casamento acionam o papel de parente; e, segundo,
sendo morador da colônia (aceitando as regras de convívio consuetudinárias), transformando-
se em colonense. Os discursos e as práticas matrimoniais estão ligadas à construção da
identidade do grupo em oposição aos “de fora”, ou seja, do “nós” em face do “outro”.
De um lado, há o casamento com estranhos (que são incorporados como parentes e
colonenses) estabelecendo-se laços de afinidade, de outro, a memória colonense trabalha
sobre a idéia de descendência. A relação casa-casamento está diretamente relacionada aos
168
Ver Moura (1978).
161
modos de apropriação da terra: passa-se de uma forma comunal (a terra como patrimônio de
todos) para uma forma parcelar (a terra como patrimônio de uma família). A colônia comunal
ainda está presente na ideologia do grupo e opera diretamente na organização social. O
sistema de propriedades se modifica, mas o território enquanto patrimônio do grupo se
mantém.
Na colônia, cada sítio pode conter várias casas. O sítio pode significar uma “território
de parentesco” descendente de um ancestral comum; é o espaço onde se reproduzem
socialmente várias famílias de parentes ou de uma só família elementar; portanto, o sítio é o
resultado e o lugar do trabalho familiar. O território colonense muda concomitantemente com
a mudança do sistema de vida, atravessando, assim, os vários ciclos de vida social na colônia.
Porém, sob certos aspectos, a fase comunal (do primeiro eixo fundacional) ainda faz
parte do ethos colonense, pois, ao se fazer uma distinção dos marcos estruturais da colônia em
termos de dois sistemas vividos (o de terras públicas ou comunal e o de terras privadas ou
particular), percebe-se a permanência de padrões que, mesmos reinterpretados, ainda
designam o espaço da família, do trabalho e das trocas, ou seja, constitui o lugar da hierarquia
familiar, da honra e da reciprocidade camponesa em “novos tempos”.
No contexto da hierarquia familiar, a organização do trabalho passa pela hierarquia e
reciprocidade pai-filho; pelo espaço da mãe entre a casa e o roçado; do pai entre o roçado e a
criação e do filho, quando se encontra confinado ao pai. Quando me refiro ao espaço da
família colonense, posso, dependendo do caso, estar me referindo a uma casa específica, pois
quem mora na casa é a família (elementar ou extensa), assim como posso me referir a um sítio
enquanto família, podendo este abrigar uma casa (família extensa ou elementar) ou várias
casas (famílias elementares e confinados) que formam juntas uma só família. Como em
Woortmann (1991, p.31) “sítio e trabalho são termos polissêmicos e paralelos, mas cuja
polissemia ‘unifica’ categorias de espaço e de parentesco”. Analogamente, dentro do sítio e,
por conseguinte, da casa ou família colonense, não se está apenas produzindo a vida, “mas
reproduzindo um modo de vida”.
Lima (1987), estudando os caboclos na Amazônia, observou que a produção é
realizada por famílias nucleares, mas a propriedade da terra é considerada comunal (como nos
de baixo); o uso da terra para a agricultura é temporal, a terra em si não tem dono, mas as
roças cultivadas e as capoeiras em descanso, sim. Nessas “comunidades” caboclas o trabalho
familiar é complementado pelo ajuri, a troca de dias de trabalho, que é pago com comida. Há
similaridade com os mutirões organizados pelos colonenses, talvez com graus distintos de
162
reciprocidade (SAHLINS, 1978), mas com os mesmos princípio a ordenar as trocas e o uso da
terra.
O sitiante da colônia controla o seu processo de trabalho e com ele o seu tempo,
estando ambos organizados através do parentesco. Os colonenses trocam tempo entre si, o pai
doa o tempo e o chão de roça para o filho para que ele possa, com o tempo, acumular
recursos para o casamento. Quando um filho se torna pai, ele ganha o chão de morada. O
filho ainda morando no sítio do pai continua dando seu tempo, diferentemente dos que estão
trabalhando fora, que não têm tempo porque estão sujeitos à subordinação e às vicissitudes do
patrão ou proprietário
169
.
Se, na colônia, grande parte dos filhos se torna assalariado com emprego anual ou
temporário (por “empreitada”), é porque, de acordo com os estudos de Bourdieu (1962) e
Moura (1978), na lógica da reprodução social camponesa, somente um dos filhos tem o
privilégio de se reproduzir enquanto pequeno produtor, comprando este a parcela da herança
dos irmãos. Na colônia, o discurso recorrente dos pais é que o filho só sai para trabalhar fora
ou para morar na cidade “porque precisa”, notadamente sob o argumento de buscar meios de
progredir na vida ou, então, por razões dos constrangimentos da seca.
Tanto o herdeiro (o confinado) como os que devem emigrar (o alongado) são
constituídos numa temporalidade mista de continuidade e ruptura, para assegurar a
reprodução social do grupo. Quando da ruptura (normalmente conseqüência de adversidades
como seca ou cheia extrema) pela emigração da família, a permanência ou a retomada da
posse do sítio se dá num âmbito familiar mais difuso, ou seja, depende do contexto de
pertinência e interesse em que algum familiar eventualmente opta pelo ofício.
3.2.2 No ritmo da variação sazoneira
Para os colonenses as práticas do cotidiano estão muito relacionados com o ambiente
que os envolve. Os conceitos e o manejo que eles fazem do espaço muitas vezes são
temporalizados, ou seja, o tempo assume características que orienta as ações práticas sobre o
uso do espaço, e vice-versa. Como em Silva (1998), mescla-se o calendário cristão que rege a
passagem linear do tempo; o calendário climático com quatro estações regidas pela freqüência
das chuvas e o volume das inundações; o tempo histórico que se refere a acontecimentos
169
Uma relação que se caracteriza pela disponibilidade do tempo ao patrão é a negação mesma da temporalidade
que supõe a agricultura (GARCIA JR., 1983b).
163
passados; e o calendário agrícola que cruza categorias temporais com espaciais. Criam-se,
desta mistura, coordenadas espaço-temporais, que estão voltadas para as ações cotidianas. De
acordo com a época do ano, os colonenses dispõem do espaço e especificam quais manejos
serão mais adequados naquele momento. O tempo é percebido como uma sucessão de vários
ciclos ecológicos e de gerações que se sobrepõem, gerando uma continuidade temporal. A
simultaneidade de como vivem estes ciclos (representada pelas taperas) conferem um ritmo
singular à vida na colônia
170
.
Silva (1998) sugere que o tempo e o espaço social, enquanto conceitos, são variáveis.
De acordo com a vivência dos colonenses, a maneira como se percebe a passagem do tempo
pode estar vinculada ao uso do espaço: pode ser cíclico, dado por fenômenos naturais; pode
ser pelo calendário cristão, com a contagem anual, progressiva e cumulativa; pelo calendário
agrícola, com o tempo da colheita, do plantio e da fartura; o tempo do gado (e junto com ele o
dos homens) alongado e dele confinado; o tempo de sondar e o tempo de vigiar. Enfim, a
passagem das luas, os ciclos anuais e o tempo dos animais, por exemplo, são formas de
perceber, sentir e vivenciar temporalidades e espacialidades muito distintas.
Para além do tempo prescrito e linear e do espaço geográfico definido existem
temporalidades e espacialidades que se realizam contextualmente através da experiência e da
prática cotidiana do colonense.
Para buscar o entendimento da natureza da temporalidade colonense, em especial
recorro a uma analogia a um estudo de Bourdieu (1977) sobre os agricultores da etnia Berber,
da África meridional, no qual o autor demonstra que o calendário agrícola daqueles povos não
se configura como um tipo de molde sazonal que guiaria a decisão do que fazer na agricultura,
mas, sobretudo, um produto do processo de fazer decisões. Na colônia, esta dimensão da
temporalidade nativa se exprime através das percepções ambientais e dos “sinais dos tempos”
inscritos nos espaços pelos quais se movimentam.
Desta forma, para viver na colônia (e no Pantanal), é necessário um conhecimento
muito refinado do tempo e do espaço (no sentido climático e físico, respectivamente); é
necessário perceber os sinais de modificação climática que, por sua vez, norteiam a chegada
das cheias e da seca, que anunciam os tempos e os espaços domésticos, da agricultura e da
criação. Sabe-se que há outras populações brasileiras que convivem com modificações
170
Evans-Pritchard (1978) observa duas maneiras diferenciadas entre os Nuer de perceber o tempo, conceituadas
por ele como tempo ecológico e tempo cíclico. Outros autores que refletem sobre as experimentações e
representações sobre o tempo são Geertz (1978), Leach (1974), Overing (1995), Panikkar (1975), entre
outros.
164
climáticas cíclicas, para as quais o meio físico se altera em função dessas variações que altera
o ritmo de vida das pessoas
171
.
Observo assim que a temporalidade e a espacialidade colocam-se de uma maneira
especialmente importante dentro da ciclicidade, propiciada pela variação sazonal
172
. A
recorrência de eventos e fenômenos, o controle sobre a terra e seu uso, o controle dos meios
de produção e um regime social relativamente igualitário parecem estar ligados à leitura do
tempo e do espaço. Pode-se dizer que os colonenses têm um grande controle sobre o uso de
seu tempo desde que neste sistema próprio de percepção do tempo e espaço reside a sua
liberdade
173
.
Evans-Pritchard (1978, p.107) observa que a concepção Nuer sobre o tempo está
estritamente ligada à sua leitura particular do espaço que, por sua vez, está influenciado pelo
ambiente físico, mas que estes valores de espaço e tempo “dependem de princípios estruturais,
que pertencem a uma ordem diferente de realidade”, ou seja, o autor expressa, sobretudo, a
idéia de que os Nuer pensam o tempo e o espaço de uma maneira bem relativa, não
permitindo uma visão determinista.
Do mesmo modo, na Colônia São Domingos, o ambiente dá sinais percebidos pelos
moradores e que servem de marcadores do tempo através dos quais se orientam nas suas
decisões. Eles conhecem o comportamento dos fatores ambientais que podem afetar suas
vidas. A capacidade de prever os fenômenos ao longo do tempo é a chave do sucesso de suas
práticas agrícola e de criação. São sensíveis aos sinais que prenunciam mudanças como o
canto de alguma ave, o comportamento dos animais, o vento que muda de direção, a árvore
que floresce, ou percebem quando o pássaro começa a fazer o seu ninho, dentre outras.
Perscrutam várias vezes por dia o céu; da mesma forma, observam o rio, a freqüência de
171
Por exemplo, as populações ameríndias do alto Xingu.
172
Desde a escolha e o corte da madeira para as construções até a forma do transporte e a maneira de processar
esta madeira são feitos de maneira muito próprias. A avaliação das árvores e o grau de dificuldade para o
transporte pode inspirar as habilidades pessoais ou incitar um grupo de ajuda, tudo no tempo certo e
obedecendo a certos rituais de comportamento. Normalmente, os colonenses não derrubam árvores para a
lenha apesar de classificar as que se prestam para isso (que variam, segundo eles, na forma e no tempo de
combustão), coletam para esse fim as que já estão mortas ou caídas, carregando-as nas costas até a casa. Para
as construções mais específicas, como é o caso da casa, dos barcos ou dos móveis, conhecem profundamente
as árvores nativas e suas principais propriedades, conhecimento que vai sendo passado de pai para filho nas
caminhadas ou nas remadas cotidianas. Colhem galhos e forquilhas para as construções menores e muitas
ervas medicinais para colocarem no mate ou para usarem em casos específicos. As vassouras e os
travesseiros são feitos com ervas e técnicas também bastante peculiares.
173
Para Silva (1998, p.182), o significado do tempo como mercadoria, embora vinculado ao capitalismo, não é
universalmente aplicado; as sociedades e grupos humanos que mantêm uma relativa independência do
capital, por exemplo, as sociedades indígenas, os camponeses e as populações tradicionais, conseguem
manter uma leitura específica do tempo; estas leituras parecem refletir outros tipos de organização social e
econômica, que, por existirem ao largo do sistema capitalista, conservam maior liberdade.
165
chuva nos primeiros dias do ano e a passagem das luas. Enfim, estes sinais estão no ambiente
e enfeixam uma vasta gama de manifestações. Isto, porém, não impede que os colonenses
escutem atentamente no rádio as previsões de modificações climáticas e, de certa forma,
guiem suas atividades a partir delas.
As variações inter e intra anuais, chuva e estiagem, são aguardadas nos meses certos, e
grandes enchentes ou secas são esperadas de tempos em tempos. Esperam sempre, por
exemplo, uma “cheia fora de hora, que sempre acontece em março ou, quando atrasa, em
abril". Os numerosos indícios são recolhidos nos vários espaços, observando o
comportamento comum à época (por exemplo, dos animais anunciadores) e nas
excepcionalidades que variam a cada ano. São procedimentos que vão sendo percebidos,
traduzidos e ordenados, que são apropriados no próprio ato de fazer, marcando culturalmente
a vida e as práticas cotidianas. Esses processos que os colonenses observam e interpretam, são
comunicações que se entrelaçam no conhecer o tempo e o espaço, o primeiro muitas vezes
determinando e organizando o segundo. As atividades como a colheita e o plantio, o corte de
madeira e a retirada do acuri, o sacrifício e o nascimento de animais, são orientados e
esperados por esses indicadores
174
.
Muitas classificações nativas, portanto, partem desta simbiose com a natureza
(Cândido, 1971, p.123) para elaborar teorias e categorizar vários elementos da alimentação,
da produção e da construção. A sazonalidade define, a par das relações sociais, o contexto de
vida da população local ao mesmo tempo em que é o elemento essencial para a organização
socioespacial da Colônia São Domingos.
Contudo, como afirma Descola (1996) “as relações de uma sociedade com o seu meio
ambiente não são unívocas e não podem ser concebidas exclusivamente em termos de
resposta do tipo adaptativa”
175
.
Conforme Bettanini (1982, p.10-12), por detrás do que vemos fisicamente “está uma
teia de relações historicamente traçadas pelo homem: relações que não são perceptíveis
apenas como elementos de uma ‘paisagem’” mas como modos de apropriação, interpretação e
representação socialmente inscritos. Os colonenses enaltecem os eventos importantes do
passado a todo tempo, tomados como referência para o cotidiano do grupo. É a partir desses
referenciais que igualmente conhecem e classificam o território. É a partir deles que eles se
174
Por exemplo, para construírem suas casas e cercas, a retirada dos mourões e do acuri se dá na lua fraca,
porque “é mais fácil, dura mais e não ataca os bichos”.
175
Nestes termos o aporte maior do etnólogo está em mostrar a parte da criatividade que cada cultura coloca na
sua maneira de socializar a natureza (DESCOLA, 1996, p. 22).
166
orientam e contam a sua história. A tapera pode ser vista como uma forma colonense de
pensar o tempo. Através dela podem classificar famílias, gerações e origens étnicas. A
memória traz à tona velhas e novas configurações espaciais, lugares e eventos que se
sobrepõem constantemente. Estes lugares na memória são maneiras de manter vivas as formas
antigas (taperas), ainda que não seja possível percebê-las em sua concretude; tais como
patrimônios históricos, guardam em si mesmo os acontecimentos (LOCH, 2004).
Reis (1994) refere-se a esta forma de marcar o tempo como tempo calendário, quando
um evento fundador - a que eu chamo de eixo fundacional - inaugura o tempo em duas
direções, o passado e presente
176
. Na Colônia São Domingos, esta mudança no sistema
coloca-se em três tempos: os tempos imemoriais, anteriores a 1905 - quando algumas famílias
inicialmente ocuparam a colônia; de 1905 a 1979 - quando sofreram a primeira intervenção do
Incra; de 1979 a 2004 - ano em que se realizou esta pesquisa e que ainda está em processo.
3.2.3 O vai-e-vem da casa no território
Na colônia, o tempo e o espaço expressam principalmente uma intensa mobilidade
praticada pela população local. Esta mobilidade inclui até mesmo regiões fora do perímetro
original da colônia mostrando que a amplitude de suas andanças extravasa os primeiros
domínios estipulados. Este vai-e-vem às fazendas, cidades e outras localidades próximas
imprime uma dinâmica toda especial à colônia. Os espaços - que já foram morada de alguém e
que podem vir a ser ocupado por outrem - sobrepõem-se na memória das pessoas. Desta
maneira, as pessoas se intercalam no uso dos ambientes e fazem desses lugares patrimônio do
grupo. Os modos de fazer, porém, sofrem transformações, assim como os códigos sociais
mudam sensivelmente no tempo. Neste contexto de intervenções e de apropriações subjazem
as práticas no cotidiano.
Compartilho as idéias de Silva (1998, p.197) quando afirma que os conceitos de tempo
e de espaço nativos são ferramentas úteis que lhes possibilitam uma leitura do ambiente a qual
orienta e organiza suas ações. Assim, faz-se necessária a análise das relações que se
estabelecem no processo de produção e de reprodução social do espaço colonense,
176
Reis (1994, p.74) observa que o tempo calendário ainda faz a medição entre o tempo da natureza e o tempo da
consciência. As cadências, ou ritos do tempo histórico obedecem às cadências não determinadas pela
natureza, mas atravessa o tempo ecológico, na medida em que seu referencial se apresenta baseado em outros
parâmetros.
167
especialmente de como se organizam as formas de acesso e as modalidades locais de
utilização espacial
177
.
As categorias espaciais colonenses mais determinantes, o baixo, o cima, o largo, o
firme, o pantanal, o brejo, o varador, as baías, a campina, o corixo, o rio, são categorias que
descrevem, informam a respeito do uso e dos significados do espaço. Estar num ambiente que
alaga temporariamente cria especificidades próprias à população local. A paisagem cria
modificações sucessivas que estão condicionadas às mudanças sazonais, e os espaços passam
por importantes modificações ligadas aos ciclos ecológicos. O espaço percebido, desta
maneira, pressupõe um movimento provocado pela freqüência das chuvas e pelo alagamento
do rio - retração e ampliação do território. Assim, a paisagem é incessantemente modificável.
O pantanal, para os colonenses, é o território quando está tomado pelas águas. Cada
pedaço do território é internamente diferenciado pelos moradores, de acordo com sua
utilização social e localização: rio, corixo, baía, lagoa, brejo, etc. O brejo é visto como uma
área que não seca e que, portanto, dificilmente poderá ser utilizado para quaisquer atividades
humanas. Ambos, brejo e pantanal, contrapõem-se ao firme, local onde nunca alaga e que se
caracteriza por ser a sua contra-face. Quando a água seca, o pantanal transforma-se em
campo, portanto, um mesmo espaço pode ter práticas diferenciadas em dois grandes períodos
distintos: o corixo na época das cheias e o campo quando o território fica seco. Desta maneira,
campo e firme podem estar do mesmo lado. O contraste da vida social em dois ambientes e
períodos distintos, porém no mesmo espaço físico, opõe-se ao se comparar o firme
“domesticado” - espaço das casas - com o campo “selvagem” - espaço da natureza.
Normalmente as casas estão construídas no firme (lugar do doméstico e do particular) em
oposição ao largo (lugar de passagem e de uso compartilhado, pasto comunal) ou ao campo
(lugar do trabalho masculino e de uso particular) que podem alagar durante as cheias e são
usados como pasto na seca.
Baía, corixo, rio, lago e lagoa são categorias espaciais humanizadas e representam
espaços importantes como recursos alimentares e de água e para a locomoção e transporte de
pessoas e mercadorias. Têm características sazonais fortes, pois se transformam com o
177
Na conceituação e utilização das categorias tempo-espaço, nas Ciências Sociais, destaca-se a contribuição de
Bourdieu (apud CASTELLS, 2001b), que enfatiza o estudo da ordenação simbólica do espaço e do tempo,
porque considera que é essa ordenação que fornece uma estrutura para as experiências, mediante as quais
apreendemos quem ou o quê somos na sociedade. Para o autor, essas experiências impõem nos indivíduos
esquemas duradouros de percepção, de pensamento e de ação. Giddens (1981), ao propor a noção de “local”,
encontra nela implicada o uso do espaço, criticando a concepção simplista que não dá poder de agência aos
atores colocando-os em contextos de tempo-espaço estruturados, tomados independentes da vida cotidiana.
168
excesso ou a falta de chuvas (intra e interanualmente). Para compreender os modos de
socialização dessas categorias espaciais, pode-se observar o contexto e a circulação das
pessoas em suas visitas cotidianas, conforme foi visto na descrição dos sítios e das casas ou na
movimentação das chalanas que fazem o transporte das pessoas e mercadorias para a cidade
nos dias predefinidos para as viagens (terças, quintas e sábados).
Nestes dias, as pessoas se mobilizam para trazer da roça a mandioca, a banana, o coco
ou para pegar lima ou laranja e outros gêneros da época nos quintais. Em seguida, são todos
devidamente acomodados e embalados, a fim de ocupar o menor volume possível (uma vez
que o custo do frete é por volume transportado). Quando tudo está pronto e chegando a hora
marcada, os que estão na parte de baixo colocam os volumes na chalana e os levam de zinga
ao porto Virabrequinho; os que moram na parte de cima fazem o transporte a cavalo ou de
carro-de-boi até o porto Figueira. Esta movimentação, descrita no capítulo inicial, se dá antes
do alvorecer, fazendo com que, nesses dias, as horas da madrugada sejam as de maior
circulação de pessoas no corixo e varadores da colônia. Cria-se, nesta movimentação, uma
rede de informações onde as vidas e as informações são compartilhadas. As cartas, os
pagamentos (aposentadoria) e as compras feitas na cidade também percorrem estes mesmos
caminhos.
Às movimentações cotidianas, de acordo com as estações, mesclam-se as demais
contingências situacionais. A par da expansão-retração do rio, os colonenses podem vir a
mudar de lugar, levando consigo as suas casas. Isto não acontece em cada estação, como com
os esquimós, a exemplo da descrição de Mauss (1971). Aqui não há uma dupla morfologia,
mas a mobilidade colonense (como nos esquimós) é necessária à própria reprodução social e
faz parte da representação que compõe aspectos de suas relações - com o ambiente, entre os
sexos, intergeracionais e de casamentos. As alianças advindas dessas relações desenham,
neste mesmo espaço, a movimentação das pessoas, traçam os caminhos escolhidos. Os
itinerários por onde andam, onde estabelecem contato são traçados pelas uniões conjugais.
Grande parte da socialização destas práticas se realiza no marco doméstico.
O espaço habitado não constitui um todo homogêneo, uma vez que está imbuído das
formas de apropriação e dos usos dados pelos colonenses. Da mesma forma o território
colonense é o espaço de produção e reprodução, é concebido e se amplia (ou se reduz) na
mesma medida em que vai se dividindo e se hierarquizando em distintos domínios.
169
3.2.4 Transumância pantaneira - migração e mobilidade
A casa e o corixo são os principais locais de encontro entre os colonenses. O estudo
desta relação dá visibilidade ao estudo do espaço como meio para determinar identidades e
desvendar lógicas culturais inscritas no cotidiano colonense.
Dos caminhos, o corixo é sem dúvida o mais socializado entre os colonenses. Dele
depende o escoamento da produção, a interligação entre casas e sítios e destes até os portos.
Esta movimentação depende de vários fatores externos, pois, “se está sujo, dificulta, se o rio
está seco, dificulta ainda mais a vida” (Vital). O corixo articula os espaços entre os sítios e
entre a colônia e outras localidades.
No entanto, as ligações espaciais internas aos sítios (casa-roça, casa-criação, criação-
roça, etc) normalmente se faz sem utilizar o corixo (por picadas). Quando possível, eles
concentram tais atividades de forma a facilitar o trabalho; atravessar o corixo cada vez que
necessitam ir para a roça é um inconveniente. Este é um problema enfrentado pelas famílias
que ficam no baixo, como no Sítio Nova Vida. Em outras palavras, de acordo com as suas
experiências, é mais fácil para eles mudar a casa de lugar do que manter por muito tempo a
situação de precisar andar longamente (ou cruzar brejos e corixos) para chegar até o local da
roça ou onde está a criação.
O sobe-desce-sobe-desce do rio dita as coisas práticas e concretas do dia-a-dia (dentre
outras coisas, o local do banheiro e demais equipamentos, a qualidade da água e a localização
dos animais, que depende muito desta questão) e a mobilidade do grupo. Apesar de haver
duas épocas marcadamente distintas, esta variação não é assim tão fixa; pode acontecer que
em um determinado ano não encha ou não seque o esperado (como no ano da realização desta
pesquisa, no qual, especificamente, não houve seca), pode ser que venha uma cheia intensa ou
um largo período de seca, pode haver estiagem em pleno andamento da cheia, ou vice-versa.
Desde os tempos mais remotos, a escassez da água tem sido decisória na permanência
ou não das famílias na colônia e, segundo nos conta a oralidade colonense, foi um período de
seca prolongada que provocou a dissidência da maioria das famílias originárias. Falou-se de
cacimbas de sete e oito metros no meio do leito do rio e de épocas que somente a constante
migração salvava os homens e os animais da seca. Atualmente alguns sítios têm formas de
captar e armazenar a água da chuva, outros usam produtos químicos para assentar a sujeira e
torná-la potável. A maioria, no entanto, mostra-se alheia aos riscos, consome a água
diretamente do corixo e sem tratamento.
170
Se a seca é a grande responsável pelas dissidências na colônia, a cheia é contornada de
outras formas tão antigas quanto à existência dos próprios moradores e de suas casas. As
observações de Proença (1958, p.21-22) sugerem inícios de migração, embora não haja
estudos completos sobre a transumância pantaneira:
[...] na porta as canoas amarradas balouçam, nervosas como cavalos
irrequietos prontos a partir. E quando o rio subir mais um pouco, lá se vai
pelo campo alagado a família inteira, à procura do firme.
Encontramos algumas delas pelo caminho, as canoas calando
exageradamente sob o peso da carga, víveres, utensílios de cozinha [...]
Estamos assistindo a um dos aspectos característicos da geografia humana no
Pantanal; migração dos portos para o firme, nas grandes águas; regresso do
firme para os portos, na seca [...]
Fala-se que na colônia cada casa é também um porto. Para viver neste ambiente as
referências do jeito de fazer no cotidiano mostram-se essencialmente sociais. É na
solidariedade entre as casas que se expressa a coesão do grupo. É nesta coesão que criam e
recriam ciclicamente os espaços domésticos, os espaços de trabalho e de convívio.
A migração e a mobilidade se entrelaçam na Colônia São Domingos. São mecanismos
complexos, ativados social e culturalmente. Em um primeiro momento, a partir de suas redes
de relações, estabelecem-se várias formas de solidariedade, em que se combinam aspectos
afetivos, políticos, econômicos e outros. Isto faz com que famílias inteiras se mudem para a
colônia: muitas vezes começa com uma visita que acaba levando à decisão de migrar quando,
por uma razão ou outra, a pessoa “se agrada” de um lugar (VELHO, 1984, p.36). É esta base
de solidariedade familiar que legitima a decisão de migrar. Isto não exclui, todavia, um outro
tipo de migração menos usual, que é constituída de indivíduos isolados ou grupos masculinos,
quando estão experimentando ou explorando alguma atividade econômica.
Dependendo do contexto, a migração se mescla à própria rotina de trabalho temporário
para os homens e à dinâmica das alianças matrimoniais para as mulheres. Buscam-se os
casamentos principalmente com os não-nascidos no lugar, assim como, o trabalho temporário:
nas colônias adjacentes (Bracinho e Amolar), nas cidades da região e nas outras localidades
paiaguenses.
Há muitas situações que envolvem as mudanças sazonais no espaço doméstico. Vêem-
se situações que podem ou não ser concomitantes, mas que descrevem as rotinas das casas e
das pessoas: quando as mulheres, em contextos de dificuldades ou para a educação dos filhos,
organizam-se na base familiar para a vida na cidade, porém mantendo o vínculo com o sítio
171
através do marido e, não raro, retornando oportunamente ao lugar; quando os homens se
ausentam da casa para trabalhos temporários (na época da seca) e as mulheres se reúnem para
lavar roupas em um lugar que ainda não secou (que fica neste caso à uma hora de caminhada
do sítio em questão):
Dona Anastácia: Os homens vão trabalhar pras fazenda, Santo Onofre, Santa
Cristina, Santa Catarina, e as mulheres ficam aqui. Tem uma moça que mora
lá no fundo que vem às vezes aqui com as crianças me fazer companhia.
Marido dela trabalha na fazenda.
Dona Branca: Quando a seca é braba não dá pra plantar nada, nada de
lavoura, tem que sair pra trabalhar. Deus ajuda que não dê mais. Até perigo
de fogo, acontece. Nossas casa é de palha, é perigoso. A gente não põe fogo,
mas os fazendeiro às vezes põem fogo, né? Já pegou fogo numas casa aí no
corixo. Quando seca, qualquer fagulha espalha fogo por tudo. É seco
mesmo. Falta água para as criação. Ali mesmo onde mora o Laurindo, lá
onde vocês foram, lá nunca secou. Quando secou aqui a gente ia lavar roupa
lá três vezes por semana. A menina de lá é minha afilhada, né? Então a gente
juntava, ia bastante mulheres junto. Lá lavava na bancada e aqui não tinha
que puxar da cacimba e colocar na banheira, pôr água. Passava o dia lá,
secava as roupas pra trazer. Ficava conversando...Tomava chimarrão com o
Laurindo e vinha embora.
Na verdade não são somente os fazendeiros que colocam “fogo no mato” e uma vez
instalados na colônia, há muitos outros motivos para se mudar a casa de lugar e outros tantos
para refazer parte dela. A referência, no entanto, para este constante criar e recriar é da mesma
maneira essencialmente social.
Se o objetivo principal é a pequena agricultura, a presença da família é fundamental e,
em boa parte, é responsável por laços extremamente fortes, onde a solidariedade e a coerção
coexistem e se complementam. O agricultor colonense reconhece que não pode funcionar fora
de um contexto familiar. Todavia, como o interesse pela terra não se restringe a um
determinado pedaço de terra, e também a família não é sempre a mesma, a migração muitas
vezes associa-se à constituição de uma nova família.
Concretamente dizem que fazem a casa em várias partes e mudam de lugar quando as
casas pegam fogo - seja porque a palha está seca demais ou porque o fazendeiro põe fogo na
pastagem -, outras vezes porque a casa alaga, porque o corixo se expandiu ou porque
escolheram mal o lugar, e ainda há o problema da seca extrema que não permite a criação ou
o roçado.
Na mobilidade colonense, os valores básicos para tomadas de decisão ou “fatores de
repulsão” (VELHO, 1984, p.36) traduzem-se em novas alianças ou em desconfiança do lugar
no caso de doença, morte, brigas ou azares de toda espécie. Na colônia, migração e
172
mobilidade são experiências históricas que não são estritamente individuais e que se
cristalizam no espaço vivido. É através da memória coletiva que se constroem as
configurações anteriores, formadas pelas taperas, mas que coexistem com as atuais, dando
sentido a novos lugares.
A julgar pela presença das taperas na toponímia local é possível inferir que esta reflete
a própria reprodução da casa colonense ao longo das gerações. A terra opera como suporte
fundamental no campesinato, para que a casa possa se perpetuar. Embora na colônia as
mudanças constantes sugiram uma territorialidade onde a casa faz parte, ela se reproduz
enquanto uma tradição que representa a família. O casamento também está diretamente ligado
à terra e desta relação dependerá em boa parte a reprodução social colonense. A casa como
centro das práticas matrimoniais estendem o patrimônio e a solidariedade; a rigor não são os
colonenses enquanto indivíduos que se casam, mas duas casas que assumem compromissos
mútuos. São acordos (alguns emigram, outros ficam confinados) negociados em um affaire de
famille (WOORTMANN, 1995, p. 158).
Há suportes não materiais que se colocam ao construir uma nova casa: são crenças,
costumes e valores. A primeira providência tomada pelos moradores na colônia é a escolha da
localização no terreno de que dispõem - o firme. A casa é erguida nas proximidades do
corixo, com o cuidado de escolher um local que seja próximo à água, mas que não alaga. A
construção se realiza em lances separados, ou seja, são várias partes interligadas e
complementares umas das outras, cada local e o seu espaço (externo) de projeção formam o
corpus da casa colonense.
Para chegar até a casa dos colonenses, o visitante poderá ou não encontrar cercas, mas
invariavelmente cruzará pelo corixo ou pelo pasto. Apesar de a morfologia colonense,
expressa na disposição das casas e na configuração do espaço, não favorecer o convívio (por
causa das distâncias e das dificuldades dos caminhos), o visitante ficará intrigado por já estar
sendo esperado. Além dos sentidos serem mais aguçados, as notícias correm rapidamente
entre os colonenses, e a alameda de chegada de uma casa normalmente está disposta de forma
a favorecer a visão e a audição, fazendo com que, certamente, quem chega seja avistado ou
escutado ao longe
178
. Ao menor sinal de aproximação de visitantes, os colonenses já se
178
Como nos Mehinaku, descrito por Gregor (1982), as crianças são as maiores portadoras de novidades e de
recados, pois, ao passarem pelos sítios em direção às escolas, levam as notícias para dentro das casas. A
etnografia de Gregor em especial trabalha a estreita relação entre o social e o espacial, afinidade realçada na
riqueza descritiva de uma etnografia do espaço Mehinaku. De certa forma, apóio nele este estudo do espaço
nas relações sociais colonenses.
173
preparam para receber, sinal que se torna evidente, pois mudam os bancos de posição (para o
lugar mais fresco naquela hora do dia) e se adiantam dizendo em voz alta uma frase clássica
de boas vindas, “vamo chegá” ou “vamo chegando”, encorajando o visitante a se aproximar.
Caso o visitante, quando chegar, não encontrar ninguém à vista, espera-se dele que
grite no portão “óh de casa”. Na ausência de resposta, entra mais um pouco e grita
novamente “óh de casa”. Se houver alguém, com certeza dirá “entre prá dentro” ou “vamo
terminá de chegá”, ao que o chegante responde com intermináveis “dá licença”, para em
seguida perguntar sobre a saúde da família “como está passando” ou “como passaram de
ontem”; talvez faça alguma brincadeira sobre as condições do tempo, até ser conduzido pela
Dona (maneira pela qual eles chamam as mulheres, dona da casa) para algum banco à sombra.
Se for íntimo da casa, estará trazendo algo nas mãos, alguma notícia ou convite, ou terá vindo
para combinar algo, será a razão principal da visita, uma carta, um bolo, um pedaço de carne,
algum pesquisador a tiracolo, qualquer coisa. De todos os modos, provavelmente já estará
sendo esperado.
Com meia hora de conversa será servido um café, água ou tereré e, se houver,
biscoitos e bolinhos. Se notarem que a visita se prolongará um pouco mais, servirão garapa,
água de coco ou um balde de frutas da época, deixando que a visita se sirva à vontade.
Quando o visitante anunciar que vai embora, depois de esgotados todos os motivos da visita,
ouvirá rapidamente um “o que é isso, porque tão rápido” ou então “vamo fica pro almoço”,
que deverá ser respondido com “fica pra outro dia”. E, assim, a prosa vai se estendendo até
que se cumpra todo um longo protocolo de convites e recusas, gentilezas feitas na saudação,
na despedida e nas recomendações finais “venha sempre” ou “vai com Deus”.
Há casas de localização muito antiga, ou seja, houve construção e reconstrução da casa
num mesmo local. Há também a situação das taperas que muitas vezes já não existem
fisicamente, mas somente na memória
179
. Nos dois casos, os relatos orais deixam patente a
utilização dos mesmos métodos construtivos, a mesma forma de conceber a arquitetura, a
divisão e a disposição da planta que se fazia nos tempos de antigamente quando o sistema era
outro. Apesar dos usos diversificados do espaço doméstico, descrito no segundo capítulo, a
relação que os colonenses têm com suas casas é bastante semelhante.
179
Diferentes das taperas, existem ainda as casas fechadas. Num dos casos ela se encontra fora de funcionamento
por conta de uma separação: a mulher foi embora e o rapaz voltou para a casa dos pais com o único filho do
casal. Noutra ocorrência, o casal, juntamente com os filhos, está tentando a sorte na cidade. Eles deixaram a
casa para os pais dele tomarem conta, pois pretendem voltar. Em ambos os casos os filhos são confinados,
categoria utilizada quando o pai ou a mãe cede uma parte da área para o filho ou filha e sua respectiva
família.
174
3.2.5 A criatividade na construção de seu habitat - um ritual colonense
O fazer e o refazer da construção colonense ou de parte dela segue sempre o mesmo
ritual: em aproximadamente três dias constrói-se em sistema de autoconstrução a estrutura da
casa e, com calma, termina-se de fechar (foto 19). Os motivos da mudança também parecem
ser sempre os mesmos: em caso de morte do antigo morador; quando há novo casamento;
quando as construções estão muito velhas; quando são inadequadas; com o
avanço/retraimento da água; e quando há alguém de idade ou doente que necessita de mais
cuidados.
Nas novas construções, aproveitam, quando possível, grande parte dos ajustes
impostos aos terrenos (os barrancos e os aterros), assim como grande parte do material. A
escassez do material, que vai sendo substituído à medida que não pode mais ser encontrado na
natureza, é uma das razões para as mudanças no modo de construção, embora as casas não se
alterem na forma. Na casa colonense prevalecem os critérios culturais no modo de construir,
embora se note a presença de elementos diferentes que vão aos poucos sendo incorporados à
realidade colonense (como é o caso da copa e do banheiro ou do fibrocimento e da telha de
barro).
Foto 19 - A casa em construção.
175
Quem decide construir normalmente o faz nos meses secos, ou na entressafra, na
época do frio. Quando uma construção vai se realizar, as idéias são primeiramente
compartilhadas pelos membros da casa, inclusive pelas mulheres. Como nas casas estudadas
por Costa (1994), segue-se um riscado no chão e é escolhido o local. Após tudo calculado,
começa o trabalho dos homens: primeiro preparam o madeiramento que vai ser utilizado,
somente depois acertam com alguém da família ou algum vizinho para participar da
empreitada. O madeiramento geralmente é amarrado, levando em apenas alguns lugares outro
tipo de material, como pregos, por exemplo. A madeira pode ser cortada no serrote, ou pode
ser usada serra elétrica e demais equipamentos de marcenaria de alguma casa próxima, cujo
serviço será, todavia, cobrado. Por outro lado, a madeira pode ser conseguida nos lugares que
ainda têm mata fechada, mesmo que seja na mata de algum vizinho, não sendo cobrada a
madeira (denuncia uma certa diferença de valor se comparado às cidades).
A providência seguinte é ajeitar o terreno no enxadão, nivelando e preparando a
fundação, geralmente feita também de madeira. São escolhidas espécies apropriadas para
resistir à umidade do chão e é definido o dia certo para tirá-las da mata (depende da lua).
Todas as casas recebem os esteios de madeira, os troncos nas partes enterradas guardam a
casca até pelo menos um palmo do chão e o resto é conservado roliço. Assentam-se os
baldrames e a terra é nivelada. Armam-se as tesouras e depois a estrutura do telhado,
colocando-se as ripas e os caibros, a cumeeira assentando-se nas tesouras. Terminada a
armação e a estrutura do telhado, cobrem a construção com o acuri, que é cortado na véspera.
Trançadas as folhas e devidamente aparadas, praticamente sem beiral, está pronta a cobertura.
Agora podem trabalhar nas paredes sob o seu abrigo.
Coberta a construção e terminada a armação da estrutura, colocam os barrotes para
assentar o piso, instalam as vergas e os peitoris, definindo as aberturas. Colocam a seguir, a
uma meia altura em volta de toda construção, uma ripa onde será apoiado o madeiramento
que compõe a parede. Este madeiramento pode ser colocado horizontal ou verticalmente,
pode ser um misto de madeira roliça com tábuas de madeira, ou somente de meios-paus
roliços, isto é: roliço por fora e plano por dentro. Em algumas paredes é feito o barreado; o
barro escolhido deve ser argiloso, com aderência necessária; é misturado com água e
pisoteado até adquirir a consistência certa. É aplicado com a mão ou com a pá de pedreiro por
dentro e por fora das paredes, às vezes somente por fora. Depois de seco, pode apresentar
rachaduras que são atenuadas com mais uma camada fina de barro. Preparam, a seguir, as
portas e as janelas do tamanho necessário e com tábuas ou troncos justapostos, travados por
no mínimo duas travessas.
176
A planta das distintas partes que conformam a casa colonense é sempre retangular. A
frente do cômodo é aleatória, pode estar no comprimento ou na largura. O piso de terra batida
é feito no final da obra. Para sua feitura, colocam tocos de madeira fincados na face interna
das paredes, para depois jogar a terra, socando-a até atingir a altura necessária. Agora é só
fazer o fogão, se o cômodo construído for a cozinha; ou a cama, se for um dormitório; ou um
jirau, se for uma despensa. Em algumas casas as portas e janelas são pintadas, em outras são
colocadas tela nas vazaduras, para impedir a entrada de insetos.
Uma das especificidades mais marcantes das construções na colônia é que são eles
próprios a fazer tudo. Nos lugares onde há marcenaria fazem todos os tipos de móveis e ao
vender o fazem a preços muito menores do que os praticados nas cidades da região. Os
colonenses fazem canoas e até chalanas ou barcos de passageiro; os moradores, em geral,
fabricam o próprio engenho de moer cana, encomendando na cidade apenas os parafusos.
Assim também fazem os próprios pilões (que são de diferenciados tipos), os jiraus, as
carroças, os fornos e fogões, etc.
Outra característica que se acentua é a exigüidade do espaço interno: os cômodos têm
o espaço mínimo necessário para o seu uso, para satisfazer as necessidades básicas,
funcionando a casa quase como um abrigo das necessidades. Os quintais são como um
prolongamento da habitação, rodeando as casas com os equipamentos, a vegetação e o corixo.
Na Colônia São Domingos como nos esquimó, a morfologia da casa confunde-se com
a própria morfologia do grupo social que a ocupa. Nos estudos de Mauss (1971), as variações
nas formas e nas extensões são de acordo com as estações. Na colônia, as contingências
ambientais conferem maleabilidade na forma da casa (dependendo do ambiente não se
permite que haja rigidez nas construções). Pode-se, então, dizer que morfologia da casa
confunde-se com a própria morfologia do território que o grupo ocupa. As variações do uso
dos espaços e da sociabilidade são de acordo com as estações, embora a forma seja a mesma,
os regimes afetam-se mutuamente.
3.2.6 O ambiente doméstico e suas partes
Ao estudar a dinâmica espacial colonense, pode-se dizer que as casas fazem parte da
paisagem e apresentam em si os aspectos morfológicos e funcionais do grupo social.
A forma com que se estabelecem no território e os usos que fazem do material da terra
permite antever os seus sistemas de valores os seus modos de vida (pois têm autonomia em
177
definir os seus projetos). Pode-se atribuir a condição de convivência “harmônica” da
população local em seu ecossistema aos próprios atributos impostos pela sazonalidade. O
“grande teatro inundável” (RONDON, 1972) caracteriza-se pela ampla mutabilidade dos
cenários naturais, nas diferentes épocas do ano. A organização espacial própria ao colonense
oferece especificidades que se inscrevem no amplo conhecimento da topografia e do relevo,
do caminho das águas e da cosmologia local. Os usos da casa e os significados atribuídos aos
espaços domésticos acompanham esta ciclicidade.
Na colônia existem territórios dentro do território; portanto é necessário saber qual é o
habitat da sucuri, do jacaré, da onça e do porco do mato - animais mais temidos pelos
colonenses. Também se sabe qual a incidência maior de situações (que depende do lugar, da
hora do dia, etc.) onde os bichos de chão (cobras) e os bichos de pêlo (onça, porco do mato,
dentre outros) vão atacar e como fazer para se prevenir ou se defender
180
.
No entanto, no cotidiano colonense, as ações são sobremaneira contextuais; em grande
medida, a experiência prática dessas pessoas na interação com esses animais permite reações
apropriadas a cada situação
181
. Percebe-se entre os colonenses elementos de precaução a tais
ataques, como, por exemplo: não se sai desacompanhado em certas horas para adentrar a
algum território (conforme o conhecimento do comportamento e da movimentação de
determinado animal); mantém-se as distâncias necessárias quando alguns animais são
avistados ou quando é percebido algum sinal que sugira sua presença. As mulheres costumam
sair sempre acompanhadas ou se agrupam nas épocas mais extremas, sempre que estiverem
sem os seus filhos ou maridos em casa. Os homens mais acostumados a andanças pelo
território, quando podem também se fazem acompanhar.
Se a leitura do chão se faz no próprio ato de caminhar, assim também se observa se há
galhos quebrados, buracos recém-abertos, os cheiros e outras pistas que os animais deixam e
que os colonenses aprendem a perceber desde a mais tenra idade. São marcas deixadas no
território, são coisas que se aprendem através da experiência prática cotidiana, lições de vida
que se realizam na interação com os outros seres em espaços compartilhados de interação e
convívio. Através destas experiências traçam-se ano após ano os caminhos, as fronteiras e as
paisagens que refletem a organicidade do território colonense.
180
Para espantar onça e outros predadores, por exemplo, usa-se o sebo de uma onça abatida e esfrega-se esta
gordura em todas as cercas e mourões para que assim “nenhum outro bicho chegue na casa” (Seu Múcio).
181
Uso contexto nos termos de Briggs (1986), não sendo simplesmente a soma dos elementos presentes no
momento em que o evento emerge; contexto, neste sentido, não conforma, portanto, dados a priori, mas, sim,
esquemas interpretativos que são construídos pelos participantes ao longo de um discurso.
178
As moradias também partem destas leituras e “interpretações” (da paisagem e do
território) e se expressam nos diferentes partes que compõem a casa. As casas colonenses,
quando avistadas à distância, têm uma série de características comuns. A sua tipologia
igualitária se distingue por ser uma cadeia de construções que, pode-se dizer, são
complementares entre si. Situam sua morada estrategicamente próxima à água, ou seja, ao
corixo. A época mais usual para a construção é na estiagem de inverno, havendo necessidade
de conhecer o terreno para assim prever o alcance da área alagadiça.
Ao longe se tem a impressão de que a casa está ladeada por vegetação arbórea
(frutíferas e árvores nativas), ou cercadas pela mata em recuperação
182
. Ao se chegar mais
perto, vê-se que a construção da casa provoca verdadeiras clareiras, respeitando a distância de
alguns metros de diâmetro até o início da plantação.
Os diversos lances da casa podem estar alinhados no sentido leste-oeste, norte-sul ou
distribuídos aleatoriamente, porém, sempre formam um agrupamento. Participam de sua
construção somente “a turma dos homens”, segundo Seu Múcio, sendo que, às mulheres
cabem aspectos da ideação, compete providenciar as refeições para os participantes da
construção, cuidar do feitio do fogão e da manutenção depois da edificação pronta. A
manutenção pode ser feita tanto por homens quanto por mulheres, embora a casa seja
sabidamente um campo social nitidamente feminino (referências), mesmo que na colônia isto
dependa da época do ano ou do contexto familiar (observado no subitem seguinte).
Como já foi dito, as características de construção de todas as casas colonenses
visitadas são bastante semelhantes (com poucas exceções): prevalece o partido arquitetônico
com separação nos cômodos da casa em lances diferentes, compondo várias partes de um
mesmo corpo, separadas pelo uso e pelo significado. As casas habituais são retangulares e de
duas águas; as coberturas são de acuri (com poucas exceções), cujas folhas permite um
trançado diferente das outras
183
; todas as casas foram construídas pelo sistema de
182
Não existem mais matas virgens, que não foram algum dia exploradas pela população local, mas existem as
que estão há vários anos descansando. A inexistência de vegetação frutífera em volta da casa é indicador de
casa nova, quando certamente as mudas estarão crescendo ou talvez mostre a existência de salinas, as quais
impedem o crescimento das árvores.
183
O acuri, palmeira nativa que existe em abundância na região, aparece em quase todos os momentos do dia
colonense. Pude observar que suas folhas são usadas na trança do telhado, como quebra vento ou quebra sol,
como parede de banheiros e outras pequenas construções. O tronco, por sua vez, transforma-se quase num
armário utilitário onde é guardado de tudo, desde produtos de higiene pessoal, materiais de limpeza e de
construção a diversos outros tipos de instrumentos. Os seus frutos são colocados diariamente em uma
caçarola, virando brasa para espantar mosquitos, balançada de um lado a outro forma uma espécie de
defumador sempre presente ao anoitecer. O acuri, além de dar sombra, pode ser usado para marcar ou
delimitar o território, é comum o porto ficar entre dois acuris. Pode ser usado como pilar, às vezes é usado
para sustentar redes ou mesmo bancos e mesas. O palmito de acuri, apesar de comestível, é estigmatizado:
por ser usado em casos extremos para dar comida aos animais quando a seca ou a enchente já acabou com
179
autoconstrução, ou seja, por seus próprios moradores (à exceção de um caso de mutirão, que
contou com a força de trabalho de toda uma vizinhança); apenas as duas casas que funcionam
como escola e a igreja se diferenciam por suas atividades, embora sigam os mesmos padrões
de divisão em partes separadas; as diferenças nos pisos são apenas na cor do cimentado,
porém a grande maioria é de chão batido; as paredes são todas feitas do mesmo material, com
a diferença de que algumas recebem um barreado; as outras se diferenciando apenas na
disposição das tábuas e troncos. Os vãos das casas (portas e janelas) seguem o mesmo padrão
de tamanho, de método e de material construtivo; o madeiramento da casa e o acuri usado na
cobertura geralmente são pegos no entorno da casa, havendo “reservas” de ambos em quase
todos os sítios. A exceção fica posta pela da casa do sítio Santa Maria, que possui quatro
águas e telha de barro e é de “material” apesar das dificuldades do transporte.
A casa colonense começa a ser construída pelo quarto, seguido da cozinha e por último
pela sala. Ela gradativamente vai sendo ampliada pela adição de outros cômodos, cresce
juntamente com o ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico. A Dona Margarida fala de
uma de suas casas: “primeiro fizemos o quarto, só fechado em volta da cama. Em seguida fez
a cozinha. Ficamos um ano só neste quarto. Só depois fez o outro quarto”. Neste caso, a casa
aumentou quando o neto foi morar com eles.
No sistema de antigamente era a casa se mudava com freqüência (para perto da roça,
para mais perto ou para mais longe do corixo, etc.), mas, devido às mais recentes
transformações (divisão por sítios), estas andanças se encontram reduzidas.
A casa se transforma juntamente com a família (mudam os usos ou se amplia
acrescendo um corpo) ou quando se cria uma nova família. Quando um novo casal inicia a sua
vida, pode começar em um cômodo da casa dos pais e depois construir o seu quarto, até
chegar à sua própria casa. Isso se dá principalmente no momento em que o casal tem filhos,
quando passam a ser confinados aos pais. Assim, quando o filho se muda para a sua própria
casa, fica sobrando um quarto, que prontamente se agrega à casa, seja como depósito ou para
guardar as coisas de um outro filho que precisa temporariamente ficar fora de casa, ou como
dormitório para outro filho ou para abrigar visitantes, etc. Da mesma forma, se alguém da
casa adoecer, prontamente se abrirá um espaço da casa para o ínterim de sua recuperação. Se
houver pessoas de idade, sua casa é momentaneamente fechada (até que outra família decida
usá-la ou quando esta receber de volta algum filho pródigo), construindo-se um quarto para
tudo, aceitam usá-lo, nas refeições diárias, somente como último recurso. Nas edificações principais, as
tranças do acuri muitas vezes guardam alguns utensílios e equipamentos como facas, foice, facão, etc. A
palha do acuri, além disso, é usada como matéria-prima para a fabricação de muitas peças artesanais.
180
abrigar o ancião. Da mesma forma, é possível transformar a despensa da cozinha em
dormitório provisório para um novo casal até que estes providenciem a sua nova morada, etc.
Desta mesma maneira, as casas colonenses e constituem o espaço onde se dão as
grandes transformações naturais como a procriação, a puberdade e o envelhecimento. A casa
colonense, nesses termos, torna-se um repositório da tradição, é um importante campo
semântico, um instrumento de análise para entender a alma humana (BACHELARD,
2000)
184
. É na casa que as pessoas preparam e repartem o alimento, que se compartilha dos
mesmos espaços e códigos sociais. Na casa colonense, todos têm o seu lugar: as crianças, os
velhos, os solteiros, os casados, os doentes, as mulheres, os homens, os parentes, os
empregados, os animais, as plantas e os visitantes. Mas tais espaços variam de uso de acordo
com a hora do dia, da época do ano e de outros contextos mais específicos.
Na busca de interpretações plausíveis sobre o tipo de ação das práticas sociais no que
diz respeito à ocupação e representação do espaço, Castells (2001b) infere que os indivíduos
desempenham um papel importante como agentes de transformação e mudança social, sendo
necessário focalizar o estudo da espacialidade a partir de uma abordagem que assuma as suas
representações, suas práticas e, particularmente, a sua apropriação do espaço, objetivando essa
transformação. Tendo isso em mente, observo que a dinâmica das transformações das casas
colonenses segue os acontecimentos, além das próprias mudanças de contextos das pessoas e
das famílias, que, por sua vez, acompanham os ciclos das variações sazoneiras.
Na casa colonense, os nomes dos cômodos não estão dados somente por aspectos
meramente funcionais, como é o caso de chamarem de sala toda e qualquer construção aberta.
A sala está idealizada, segundo os colonenses para ser o local “onde se recebem as visita”,
embora muitas vezes este lugar ideal seja substituído por um lugar à sombra, no quintal, onde
é mais fresco. Por outro lado, o principal atributo da sala - ser aberta - faz com que se refiram
muitas vezes como sala a lugares que funcionam como depósito de equipamentos da roça
(galpão), ou como copa, quando está contígua à cozinha ou sendo marcadamente o lugar que
fazem a refeição ou então onde realizam parte da higiene pessoal. Da mesma maneira, a copa
notadamente não é o lugar em que se faz as refeições cotidianas (feitas em locais externos),
mas pode ser usada para servir as refeições às visitas da cidade, por isso o chamam de copa,
“porque é bonito”.
Os colonenses localizam a casa na parte mais central e dominante da propriedade (no
firme, onde normalmente os terrenos são planos e com areia clara). A partir da chegada
184
Para o autor, a imagem da casa se torna a topografia de nosso ser íntimo.
181
localizam sala e cozinha, planejam as outras partes e definem o uso dos locais externos e dos
equipamentos que compõem a casa colonense.
O espaço da casa se realiza - se concretiza e se completa - com a feitura dos quintais,
com os acessos aos caminhos, com a localização do porto, considerando-se a passagem do sol
e dos ventos e com a fachada sempre voltada para a circulação principal. Os colonenses
consideram que fazem parte da casa as edificações que se encontram englobadas no quintal de
dentro e que respeitam o limite da varrição diária, ou seja, a casa termina onde não se varre
diariamente; os demais lances e espaços que estão no quintal de fora são equipamentos (que
podem estar dentro ou fora dos limites da casa) ou fazem parte do quintal ou do sítio no geral.
Há casas em que dois e até três quintais cercados independentemente hierarquizam os
espaços: o menor e mais próximo a casa é o quintal de dentro onde transitam livremente as
pessoas e alguns dos animais domésticos; no quintal de fora ficam geralmente os demais
animais, o banheiro e vários outros locais para trabalhos mais específicos. Os animais de porte
maior, como vacas, búfalos e cavalos, ficam no pasto ou em currais localizados também nas
proximidades da casa e igualmente próximos à água
185
.
Quanto à variação do modelo habitual, uma casa pode ter várias salas, uma vez que, na
colônia, considera-se sala todo local aberto. Se a cozinha apresentar uma varanda, eles a
chamarão de sala, assim como se ao quarto antevir um local semelhante (coberto e aberto).
Contudo, mesmo que houver várias salas na casa, haverá a sala principal, quase sempre é o
lugar que abriga o pote de barro com a água. Aliás, um dos maiores destaques que se dá em
todas as casas visitadas é o lugar em que se encontra a água potável, bastante rara em algumas
épocas do ano. A água fresca e potável é um recurso escasso e que tem um significado social,
está diretamente ligado à sociabilidade do grupo porque as pessoas se reúnem para tomar
“tereré”, no dia-a-dia todos da casa (inclusive os empregados e as visitas) têm livre acesso à
água, inclusive sem precisar pedir licença. Este é também um dos indicativos de que a pessoa
é íntima da casa, serve-se mesmo na ausência dos donos. Ter água potável em casa é, além
disso, sinal de posses, porquanto se dá muito valor a uma casa que tenha um bom poço, ou
seja, que tenha água boa.
Via de regra, o chão da sala recebe um cimentado; em poucas casas a sala é ainda de
chão batido. Em geral há poucos móveis, talvez uma mesa, mas com certeza vários bancos
185
A maioria dos animais da criação ficam impedidos de entrar neste pátio que dá acesso a casa, às vezes
cercado com madeira, outras apenas com um fio que, muitas vezes, também é usado como varal.
182
(que mudam constantemente de lugar
186
). Os móveis, na maior parte, são rústicos, feitos no
lugar. A sala também é o lugar dos solteiros dormirem na rede, principalmente no verão, e
serve também para abrigar as visitas que pernoitam. Em algumas casas, a sala possui enfeites
feitos de papel - bandeirolas e pendentes - pendurados de um lado a outro, dando um ar
festivo ao lugar; em outras, a sala parece mais para um lugar de guardar as tralhas do dia-a-dia
do que, digamos, para receber pessoas.
A casa em si tem a parte da “frente”, onde se localiza a parte mais social, e os
“fundos”, parte normalmente delimitada pela cozinha e que se caracteriza por ser um local de
serviços gerais, de queima do lixo e de lida com os animais. Sem dúvida, o lugar mais
movimentado dos sítios é a cozinha; pode ser considerada o centro da casa, pois é nela que a
família se reúne. Enquanto que a sala se caracteriza por um uso ritual esporádico é na cozinha
o uso ritual cotidiano. A sala é o lugar de destaque social, mas é na cozinha que as pessoas
ficam a maior parte do tempo. Todos da casa usam os mesmos espaços domésticos, tanto
externos quanto internos, tanto a “frente” quanto os “fundos”, mas estes usos dependem das
tarefas do dia de cada um, as quais se diferenciam entre casas, entre os momentos e entre os
ciclos das respectivas vidas. Normalmente entre a “frente” e os “fundos” localizam-se os
dormitórios.
Se as crianças preferem permanecer no quintal a maior parte do dia entre jogos e
brincadeiras ou executando suas tarefas e obrigações cotidianas (vigiar a roça, buscar lenha,
pegar ovos, etc), as pessoas de mais idade ficam em volta da casa, ouvindo os programas de
rádio, cuidando da criação e da plantação e principalmente de entreter as visitas. Os moços
jovens trabalham fora dos domínios da casa e quando entre eles se reúnem o fazem à sombra
de alguma árvore onde tomam tereré e conversam. Podem combinar pescarias, jogos de
futebol aos domingos ou sair em grupos a cavalo para fazer visitas a familiares ou para ir aos
bailes. Quando estão em casa permanecem na cozinha (sendo que, muitos cozinham quando é
necessário) e nos fundos fazendo pequenas tarefas, tomam banho direto no corixo e preferem
a sala para dormir. As moças por outro lado ficam no dia-a-dia às voltas com os afazeres
domésticos: trabalhos culinários, costuram e lavam as roupas da casa e cuidam da limpeza.
Reúnem-se para executar estas tarefas em conjunto ou em visitas mais esporádicas quando
186
Os bancos que mudam de lugar falam do espaço de sociabilidade mais usado nas casas visitadas: no dia-a-dia
as sombras das árvores que ficam no quintal de dentro ou nas adjacências da casa; nos dias de festa
permanecem na sala onde são acomodados os visitantes .
183
Foto 20 - A sala colonense.
Foto 21 - Casa colonense
vão acompanhadas dos pais ou irmãos. Elas podem estar encarregadas de vários afazeres na
roça e na cidade como fazer compras e cuidar da colheita e das vendas. Diferentemente dos
homens estas nunca dormem na sala e somente em algumas casas tomam banho diretamente
no corixo e quando o fazem usam roupas especiais para este fim. Por outro lado, as tarefas
cotidianas podem ser delegadas independente do sexo, mas por grupos de idade: as crianças
tem suas responsabilidades assim como os jovens. Estas atividades com o passar do tempo irá
depender da habilidade de cada um e de como se apropriam pessoalmente dos espaços. Sendo
que, diferenciam-se sensivelmente o comportamento, o uso dos espaços e as atribuições
cotidianas entre os que são casados e os solteiros e entre os mais velhos e os mais jovens.
Pode haver quartos contíguos, com divisões internas, fazendo com que, para se chegar
a um dormitório, seja necessário passar até por dois outros quartos; são os “quartos dentro do
quarto”. Este espaço de intimidades é bastante reservado; poucas vezes estranhos têm acesso
a ele. Normalmente há duas portas, cada qual para um lado diferente; uma porta, em geral, se
direciona para a sala e a outra para os “fundos” da casa, “para o meu marido urinar à noite”
disse uma moradora. A outra contou que ter duas portas é bom “para arejar o quarto”, nos
dias de muito calor. A exemplo das escassas e diminutas janelas, as portas também
permanecem diuturnamente fechadas, e recebem tela e venezianas rústicas. O quarto,
portanto, como os demais cômodos da casa, é um lugar escuro, permitindo a entrada de
luminosidade apenas por frestas estreitas.
As camas são habitualmente erguidas sobre forquilhas, e o colchão é feito de couro,
embora já existam algumas peças trazidas da cidade. O número de camas muitas vezes não
corresponde ao número de moradores, principalmente nos locais onde há muitas crianças,
184
indicando que alguns dormem juntos, embora os homens usem freqüentemente a rede “por
causa do calor”.
Como em todos os espaços produzidos nas sociedades humanas, a ordem da casa
corresponde, dentre outros, aos princípios que governam as relações entre gêneros e gerações
(MARCELIN, 1999). É comum aos homens dormir em redes nas salas ou no abrigo de
alguma árvore mais fechada. Com certa regularidade, podem construir para si um quarto
independente ou entre irmãos, a construção separada é normalmente chamado pela dona de o
“quarto dos rapazes”. Esta prática, porém, não se reproduz quando se trata das mulheres da
casa, principalmente entre as solteiras, que devem dormir todas juntas ou em quartos
contíguos aos dos pais, mas nunca sozinhas em uma construção independente, a não ser que
sejam de idade ou viúvas. As pessoas doentes permanecem a maior parte do tempo no interior
de seus quartos e lá recebem as visitas.
Os colonenses de fato reconhecem a propriedade particular e permanente da família
sobre a casa e o quintal que ela ocupa, apesar da inexistência de cercas. Todos reconhecem a
sua porção e ninguém penetra nos domínios do outro. Há, além das regras informais, certas
especificações visando a regular a relação entre os espaços, há critérios para resolver os
conflitos mais comuns como, por exemplo, sobre a lavoura e a casa, a invasão das roças e dos
quintais pelos porcos, casos de roubo, o uso comunal do corixo.
A unidade casa, na colônia, corresponde a cada grupo doméstico. O sítio pode ter
várias casas que estão hierarquizadas entre si. Há a casa principal, a dos progenitores, e as
casas dos confinados. O espaço da roça, o espaço da criação, o acesso ao rio está tudo
pensado a partir do posicionamento da casa principal: é nela que se chega primeiro, a ela
pertence às terras já “abertas” pronta para o plantio ou para a criação, etc. Enquanto que, para
a casa do confinado, tudo ainda precisa ser feito, pois o que se almeja é que cada família tenha
cada vez mais autonomia e privacidade. Embora, enquanto isto não aconteça, estejam sujeitos
às decisões e prioridades da casa principal, há um período de transição quando ocorrem
acordos de respeito mútuo, entre casas, quando as famílias usam juntos as terras e os demais
equipamentos do sítio.
Ocorre algo semelhante ao observado por Soares (1981) na situação de “terras
comunais”: é como se o direito sobre a casa fosse extensivo ao espaço correspondente à sua
projeção, ao seu rebatimento. Como se houvesse o desdobramento e a reprodução ampliada
do direito sobre a casa por efeito de uma lógica metonímica. A casa seria então maior que ela
mesma, abrigando a terra disposta num raio não definível com precisão a priori,
indeterminável numa geometria fria. Só a prática, o processo das relações sociais poderia
185
determinar a fronteira do direito legítimo. O que importa é observar, segundo o autor, o
“princípio da extensividade” ou do “desdobramento projetivo” do poder sobre a casa.
A casa colonense se constituiu no sistema de antigamente (quando a terra era
comunal), como um núcleo do qual se irradia um direito e ao qual se legitima a apropriação
privada (pela família) e permanente de uma extensão de terra com fronteiras não limitadas a
priori, mas submetidas “à regulação casuística, ao acordo informal ou até a disputas entre
moradores vizinhos” (SOARES, 1981, p.75). O espaço do quintal muitas vezes transborda o
domínio das benfeitorias e do terreno utilizado pela família. Porém, a correlação de forças
envolvidas nas lógicas metonímicas com o passar do tempo obriga a relativizar a idéia de
terras comunais e a noção de que o colonense vincula estritamente direito ao uso da terra e ao
trabalho nela materializado. A apropriação dos espaços na colônia obedece a regras
complexas e maleáveis.
O sistema mais usual da ocupação colonense é contextual e cria de certo modo uma
ciclicidade própria, na dinâmica do uso e desuso devido à maleabilidade dos espaços, além da
proporcionada pela diferença no clima; é interessante perceber como a relação casa-roça-
pastagem remete a representações mais gerais sobre a terra, os animais e as pessoas. Por
exemplo, tanto se referindo aos bois e a terra como ao homem, pode-se usar os mesmos
termos: solto versus sujeito ou liberto versus cativo ou alongado versus confinado.
Para Rapoport (1977, p.65),
[...] dado um certo clima, a possibilidade de se encontrar certos materiais, as
limitações e os meios de um certo nível técnico, o fator que, finalmente,
decide a forma de uma habitação, modela os espaços e as suas relações, é a
visão que um povo tem da vida ideal. O ambiente procurado traduz
numerosas forças socioculturais, que compreendem as forças religiosas, a
estrutura da família e do clã, o modo de se ganhar a vida e as relações sociais
entre os indivíduos. Eis porque as soluções são muito mais variadas que as
necessidades biológicas, os meios técnicos e as condições climáticas [...] a
análise da casa nos remete diretamente a compreender toda a concepção de
espaço elaborada por uma sociedade.
Segundo Novaes (1983, p.6), estas formas possíveis de concepção do espaço “envolve
não apenas uma adaptação ecológica específica ao meio ambiente, mas, sobretudo, formas
diferenciadas de apropriação e hierarquização do espaço habitado”.
Entendo que a forma de apropriação do espaço colonense pode ser expressa pela
categoria de confinados, uma vez que ela ultrapassa a medida e o recorte estipulado
externamente (a divisão em lotes) para concretizar (ao modo colonense) uma outra divisão
que garante a sua produção e sua reprodução social. A situação de ter uma família de
confinados amplia, ultrapassando os próprios limites das cercas, ou seja, de uma casa única.
186
Este é o sistema que articula as famílias e os mecanismos de reprodução biológica e social do
grupo.
A casa expressa as mudanças e a hierarquia da organização social. Contudo, para
traçar os limites da casa, tem que se ter em vista, fundamentalmente, que na colônia o espaço
doméstico é integrado. Da mesma maneira, observa-se na organicidade do espaço que existem
pouquíssimos lugares especializados, ou seja, ao qual tenha acesso somente um grupo
determinado de pessoas. Além do que a unidade doméstica (onde a noção de família se
alarga) pode ser a própria unidade de produção que, por sua vez, é a mesma unidade de
consumo. Porém, ao observar o sistema de trocas, essas unidades de consumo serão ainda
mais ampliadas e ultrapassarão os limites físicos da própria colônia. Lembrando que não é
necessário estar morando na colônia para ser considerado colonense; mas é imperativo, sim,
compartilhar de um elo que os une.
Segundo Ladeira, (1983, p.21). “inscrever as relações sociais num espaço é tornar
legível este mesmo espaço, é dar-lhe sentido”. Do mesmo modo, Bourdieu (1970) observa
que a maison kabile é, em si mesma, as relações que ela circunscreve. A casa colonense é
cíclica como o território em que se insere, é essencialmente uma unidade de vivência
cotidiana.
A categoria confinado mostra princípios organizatórios que podem ser lidos como
ritos de emancipação. Quando nasce o primeiro filho, o casal tem que construir a sua própria
casa precisa ter o seu próprio fogo; o homem passa a ser respeitado como pai e lhe é atribuído
um espaço maior no sítio. Porém, como permanecem confinados aos pais, acontece uma
mudança sensível de status, principalmente ao homem, pois continua subordinado ao pai ou
ao sogro (lembrando que o domínio dos homens está no sítio). Por outro lado, as mulheres
conquistam a autonomia mais cedo, pois simplesmente dependem de ter a casa separada
(neste caso, separada da casa dos pais) para ser a dona da casa.
A casa colonense pode ser considerada a síntese do masculino e do feminino, pois nela
há divisões dos espaços predominantemente masculinos (sala), femininos (cozinha) e ainda
locais mistos (quartos e locais externos). Nas cheias a casa representa o lugar da família
colonense e nas secas, com a saída dos homens para o trabalho temporário, a casa completa e
engloba o reino feminino. O homem apresenta maior mobilidade no uso dos espaços, a
mulher fica mais restrita aos domínios da casa. O homem acompanha o gado e os locais de
pastagem que mudam constantemente, a mulher, assim como o fogo do fogão, movimenta-se
pouco. A casa, insígnia do abrigo, contrapõe-se aos locais de pastagens e à roça. Na seca, com
a ampliação do espaço, a mobilidade também se expande, e nas cheias, com a retração, o
espaço se restringe ao cercado da casa. Homem e gado vêm e vão, ficam alongados ou
187
confinados, acompanham o ciclo das águas; as mulheres permanecem no interior da cerca,
vivenciando diferentemente este movimento. Cada qual com seu ritmo, cada qual com sua
atividade, de seu lugar acompanham as modificações climáticas e espaciais.
Nos sítios colonenses, a casa pode expressar o espaço feminino e também da família; o
espaço da roça, assim como a casa, pode ser uma síntese do masculino e do feminino,
diferente do espaço da criação que é por excelência um ambiente masculino. A casa colonense
é o locus da reprodução por excelência, é o espaço do repouso e da intimidade, local de
armazenar e transformar o alimento, espaço de segurança para a família, lugar de trabalho ao
mesmo tempo em que se fortalece como sendo o centro da sociabilidade e experiência
cotidiana.
188
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo procurei mostrar que a casa colonense pode ser compreendida como
costura sociológica das relações sociais colonenses no ambiente pantaneiro. Propus uma
etnografia que considera categorias e experiências (representações e práticas) advindas de
processos sócio-históricos e culturais como foco de análise do cotidiano doméstico colonense.
A arte de fazer e de se relacionar no território, de produzir e reproduzir suas casas em dois,
três ou quatro partes separadas e interligadas por locais externos é, sem dúvida, a
conformação assumida no espaço doméstico colonense. A maleabilidade com que tratam de
seu território é a mesma que usam para dar forma às suas casas. Partindo do processo pelo
qual se estruturam estas casas, observo que os usos dados aos ambientes são diversificados
(dependem da situação familiar, das especificidades do território, de contextos pessoais, etc.),
mas os significados atribuídos a estes espaços são basicamente os mesmos em todas as casas.
Deste modo, pode-se dizer que se assentam, na casa colonense, o modo próprio de representar
um mesmo território e nele relacionar-se, traduzindo-se esta relação em valores, crenças e
costumes próprios do local.
A organização espacial reflete uma concepção de sociedade, o estudo de uma
subentende o desvelar da outra: “o espaço habitado e a concepção que o engendra são frutos
de toda uma concepção de mundo, que é única para cada povo” (NOVAES, 1983, p. 8). Pode-
se dizer que na Colônia São Domingos adotou-se uma solução específica quanto à
socialização do território: o espaço é criado e se lê a partir da própria ciclicidade pronunciada
do ambiente em que vivem os colonenses. Na colônia, o espaço doméstico e as relações
socioeconômicas e culturais estão circunscritas a esta ciclicidade. Nessa dinâmica expressa-se
o sentido de seus modos de vida, da forma de suas casas e de sua organização social.
A organização espacial reflete uma concepção de sociedade, o estudo de um
subentende o desvelar do outro: “o espaço habitado e a concepção que o engendra são frutos
de toda uma concepção de mundo, que é única para cada povo” (Novaes, 1983: 8). Pode-se
dizer que na Colônia São Domingos adotou-se uma solução específica quanto à socialização
do território: o espaço é criado e se lê a partir da própria ciclicidade pronunciada do ambiente
em que vivem. Na colônia o espaço doméstico e as relações socioeconômicas e culturais estão
circunscritas a esta ciclicidade. Nesta dinâmica se expressa o sentido de seus modos de vida,
da forma de suas casas e sua organização social.
Se por um lado existe uma longa tradição da casa colonense, por outro lado ela se
constitui no contexto de uma série de transformações no território, engendradas por
intervenções externas e por um longo histórico de contato com as cidades e fazendas da
189
região. A forma igualitária das casas está impregnada de sentido; são criações e
transformações realizadas a partir de um histórico de apropriações e interpretações próprias.
Entender o princípio organizador da colônia é perceber o modo como estas pessoas se
movimentam e de como este movimento articula os espaços.
A forma da casa e a relação entre casas fazem parte da dinâmica e do modo de vida
das famílias na Colônia São Domingos (e quiçá, pantaneira). Os lugares a que eles se
reportam, a todo o momento, para contar o seu passado (como no caso das taperas) ativam
relações e valores que são como ordenadores do cosmo. São atualizações em forma de
conhecimento toponímico, de diferenciação e classificação das coisas do mundo. A partir de
lugares referenciais no cotidiano do grupo, localizam e significam o seu território. É a partir
destes referenciais que eles se orientam, é através deles que contam a sua história. Mesmo
com novas configurações espaciais, as antigas continuam vivas. São simultâneos os lugares na
memória, tais como patrimônio histórico na nossa cultura. Guardam em si mesmos os
acontecimentos que os qualificaram e os tornam diferentes dos outros, e mais extraordinários,
porque contêm a sua história (LOCH, 2004, p.43).
A casa pode ser lida como um “mundo de ethos” (MARCELIN, 1999, p.51) do
colonense. As leituras colonenses no cotidiano doméstico sobre o espaço e o tempo
pressupõem um movimento provocado pelo ambiente temporariamente alagável e
temporariamente seco. As dinâmicas produzidas a partir da variação sazoneira se traduzem
em termos de estar constantemente reconstruindo os espaços no território (os caminhos e as
casas). É um complexo sistema de natureza e cultura pelo qual a percepção social se traduz na
permanente criação e recriação destes espaços de vida.
Ter experienciado como arquiteta e antropóloga aprendiz uma relação direta com os
terrenos, com as águas, com os climas, com os ventos, com os animais e os vegetais e com as
estações - enfim, o tempo e o espaço na Colônia São Domingos - e ademais ter visto como
eles conhecem os materiais e as regras de sua utilização, permitiu acolher as manifestações e
as criações de sua arquitetura e também a sensibilidade estética com que eles lidam no
território. Através da etnografia da casa colonense pude perceber que o relativo não-
enraizamento a lugares fixos não exclui a arte do traçado, mas faz parte da própria concepção
colonense de tempo e de espaço. É bastante perceptível a relação deles com a terra e com o
céu, mais do que uma simples analogia a relação corporal homem-ambiente mostra uma
relação de identidade. O corpo-a-corpo desta relação é o próprio modo como eles articulam –
dão continuidade ou substituem – contemporaneamente os seus espaços e tempos de vida.
Buscar entender esta relação com todas as suas diferenças e ambigüidades deveria ser
o princípio para quaisquer projeto de intervenção ou de definição de políticas (neste caso, no
diálogo entre a Antropologia e a Arquitetura e o Urbanismo). Neste entendimento, o que
deveria ser para mim o arremate de um trabalho não é mais do que um novo começo.
190
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ANEXOS
200
Tabela 1 - Corumbá: Imóveis cadastrados / 1992
Tipo de imóvel Quantidade Área / hectares
Minifúndio 825 3.310,60
Empresas Rurais 820 4.915.416,40
Latifúndio por Exploração 421 1.329.677,80
Sem Classificação 25 65.222,30
Total do Município 2.091 6.343.437,10
Fonte: INCRA – Diretoria de Cadastro e Tributação (Banducci,2005, p. 33)
Tabela 2 – Famílias e moradores segundo o INCRA (Mapa 3)
Número do Lote Nome Área / hectares
Lote 01 José Pires de Moraes 110,0761
Lote 02 Domingos José da Silva 71,871
Lote 03 Benedito Deodato Correia 88,2325
Lote 04 Antônio Costa Paes 1038,7554
Lote 05 Alfeu Vilalva Leite 266,1774
Lote 06 Silvério Vilalva Leite 54,0517
Lote 07 Pio Vilalva Leite 100,5083
Lote 08 Benedito Leite 55, 4911
Lote 09 Miguel da Silva 47,0429
Lote 10 Jose Maia da Costa 56,7929
Lote 11 Marcelino Paes 91,0758
Lote 12 Adolfo Pessoa 43,8045
Lote 13 Justino do Nascimento 199,7644
Lote 14 Celina Ribeiro de Freitas 13,6094
Lote 15 Luzia Pessoa 10,6315
Lote 16 Flaviano Pessoa 35,4384
Lote 17 Ladislau Gomes 7,6646
Lote 18 Feliciano do Nascimento Paes 162,7940
Lote 19 Geraldo Romualdo da Silva 68,5408
Lote 29 Adelino de Freitas Gil 150,6350
Lote 21 Irene Magalhães da Silva 32,7608
Lote 22 Lucrécio de Souza 147,4119
Lote 23 Vito da Cruz 32,3171
Lote 24 Aristeu Bispo de Souza 23,0725
Lote 25 Constantino Soares 11,6612
Lote 26 Rozenio Gomes da Silva 42,3743
Lote 27 Luiz Mário Cavalcante Sabatel 18,0781
Lote 28 João Herculano da Silva 35,1735
Lote 29 Ruth Silva dos Santos 22,7491
Lote 30 Nestor de Santana 10,1746
Lote 31 Paulino Gomes da Silva 37,3610
Lote 32 Anízio Gomes 30,1938
Lote 33 Pedro Paulo dos Santos 124,9012
Lote 34 Ramão Pessoa 17,6243
Lote 35 Luciano Theodoro da Silva 28, 3840
Lote 36 Domitila Pessoa 40,8427
Lote 37 Athanasio Eloy das Neves 36,5020
Lote 38 Antônio Divino Eloy das Neves 42,5005
Lote 39 Juliano Eloy das Neves 42,4205
201
Lote 40 Maria Celeste de Moraes 37,4354
Lote 41 Sabino de Souza 155,2398
Lote 42 Paulino Rodrigues de Brito 8,1900
Lote 43 Hermegildo Vilalva Leite 16,3447
Lote 44 Pedro Ribas 9,8770
Lote 45 Ramires Ribas da Silva 8,5941
Lote 46 Jaime do Espírito Santo 11,4092
Tabela 3 – Famílias colonenses visitadas no trabalho de campo (2004)
Casa
nº do lote e situação
INCRA/MS
Nome dos moradores
segundo os colonenses
Nome do Sítio
Casas
1 07 Mindo / Creunice Primavera 1
2 44 Pedro Ribas / Eremita (2 filhos confinados) Sta Catarina 3
3 42 Nego Paes / Paulina (3 filhos confinados) 3 Gavetas 4
4 38 Zenaide / Antonio Divino Capão do Cedro 1
Cima
5 39 Júlio / Niroca Corixinho 1
6 36 Anastácia (1 filho confinado) Livramento 2
7 35 Olália Sta Aparecida 1
8 16 Ladislau / Sebastiana São Jorge 1
9 13 Justino / Clarice Santo Antonio 1
Centro
10 18 Feliciano / Noca Sta Maria 1
11 31 Lino / Bega (confinados) Lagoinha 1
12 31 Maria Retiro lagoinha 1
13 31 Benedito / Vergínia (confinados) Retiro lagoinha 1
Lagoinha
14 32 Paulino / Olga (2 filhos confinados) Lagoinha 3
15 posse Clarindo / Mônica Nova de Paz 1
16 posse Bastico C. Maravilha 1
17 26 Osíris / Nanci 5 de Março 1
18 28 Laurindo / Maria Helena (confinados) São Sebastião 1
Recanto
19 28 João Herculano São Sebastião 1
20 24 Aristeu / Mercedes São Lucas 1
21 posse Henrique / Ana (3 filhos confinados) São Jorge 4
22 posse Denirde (1 filho confinado) Canarinho 2
23 21 Joelson / Ermelina São João 1
24 23 Vítor / Otadia (3 filhos confinados) Sta Terezinha 4
25 posse Evanildo / Joana (confinados) JV 1
26 posse Eduardo / Tunda Piuvinha 1
27 posse Jacinta Piuvinha 1
28 posse Margarida / Múcio Nova Vida 1
29 posse Nei / Giorvânia (confinados) Nova Vida 1
Baixo
30 posse Vital / Joanita Nova Morada 1
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