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FABIO HUNGARO KARAM
CONHECIMENTOS TRADICIONAIS,
PROPRIEDADE INTELECTUAL E POLÍTICA
EXTERNA BRASILEIRA.
Dissertação apresentada ao Departamento
de Ciência Política do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da UNICAMP, como
exigência para a obtenção do título de
Mestre em Relações Internacionais, na
área de concentração ‘Política Externa
Brasileira’.
Orientador: Prof. Dr. Reginaldo Carmelo Correa de Moraes.
Campinas
2008.
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2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
_____________________________________
Prof. Dr. Sebastião Velasco e Cruz (titular)
_____________________________________
Prof. Dr. Reginaldo Carmelo Corrêa de Moraes (titular)
_____________________________________
Profa. Dr. Ricardo Ubiraci Sennes (titular)
_____________________________________
Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto (suplente)
_____________________________________
Prof. Dr. Luis Fernando Ayerbe (suplente)
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3
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Título em inglês: Traditional knowledge, intellectual property and Brazilian
Foreign policy
Palavras chaves em inglês (keywords) :
Área de Concentração: Relações Internacionais
Titulação: Mestre em Relações Internacionais
Banca examinadora:
Data da defesa: 11 agosto -2008
Programa de Pós-Graduação: San Tiago Dantas
International organization
Biological diversification
Intellectual property
Brazil – Foreign relations
Reginaldo Carmello Correa de Moraes, Sebastião
Velasco e Cruz, Ricardo Ubiraci Sennes
Karam, Fabio Hungaro
K143c Conhecimentos tradicionais, propriedade intelectual e política
externa brasileira / Fabio Hungaro Karam. - - Campinas, SP :
[s. n.], 2008.
Orientador: Reginaldo Carmello Correa de Moraes.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
1. Organizações internacionais. 2. Diversidade biológica.
3. Propriedade intelectual. 4. Brasil –
Relações exteriores.
I. Moraes, Reginaldo C. Correa de (Reginaldo Carmello Correa
de), 1950-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.
(cn/ifch)
4
AGRADECIMENTOS.
Ao Professor Dr. Reginaldo Carmelo Correa de Moraes, que desempenhou
papel de verdadeiro orientador, pela atenção e pela disponibilidade e por dar
sugestões valiosas e proporcionar a liberdade para que eu fizesse minhas próprias
escolhas.
Ao Professor Dr. Shiguenoly Miyamoto, pela orientação anterior ao Mestrado
e durante a qual ocorreu o desenvolvimento do projeto que iniciou este trabalho.
A todos os amigos do Programa San Tiago Dantas, pela amizade sincera e
companheirismo em nosso ambiente de estudo, possibilitando o bom
desenvolvimento de minha pesquisa.
Aos queridos professores do Programa San Tiago Dantas, pelos sempre
estimulantes ensinamentos e pela contribuição à minha formação acadêmica e
intelectual.
Aos professores Reginaldo Mattar Nasser, Shiguenoli Miyamoto, Sebastião
Velasco e Cruz, Ricardo Sennes e Williams Gonçalves, com os quais discuti em
momentos diferentes a elaboração da dissertação de mestrado, cujas observações e
críticas sempre pertinentes muito contribuíram para o desenvolvimento da pesquisa e
do texto final da dissertação.
A CAPES e a FAPESP, instituições que acreditaram no sucesso deste
empreendimento e que apoiaram financeiramente a minha pesquisa no decorrer dos
dois anos do Mestrado.
Aos meus pais José Júlio, Alaíde e ao meu irmão Eloy, pela educação,
compreensão, carinho e especialmente pelos ensinamentos mais importantes de
minha vida e meus valores.
A Fernanda Rabone, por tanta compreensão, dedicação, apoio e,
especialmente pelo carinho e amor sinceros em todos os momentos.
A Deus, a quem agradeço acima de tudo, por tornar isso possível.
5
RESUMO.
Conhecimentos Tradicionais, Propriedade Intelectual e Política Externa Brasileira.
O objetivo deste trabalho é analisar como e por que se formou, nas reuniões
da Organização Mundial do Comércio, da Convenção da Diversidade Biológica e da
Organização Mundial da Propriedade Intelectual uma agenda de negociações
relacionada à proteção dos conhecimentos tradicionais e dos recursos biogenéticos
a eles associados com a intenção de controlar as suas apropriações.
A agenda não se esgota nas próprias negociações. Elas têm estabelecido as
bases conceituais sobre as quais o tratamento sul americano e internacional do
respectivo tema tem se estruturado no decorrer da década de 1990 e no limiar do
século XXI.
Tais negociações, pela pluralidade e heterogeneidade de seus interlocutores,
tem espelhado um aglomerado de posições e interesses conflitantes que demandam
dos países menos influentes e com maior potencial de desenvolvimento sustentável,
caso dos países ricos em biodiversidade, variados esforços diplomáticos na
obtenção da revisão do acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados
ao Comércio (TRIPs), com o intuito de torná-lo incapaz de promover a interpretação
restritiva dos dispositivos da CDB e de uniformizar o tratamento desta problemática
nas distintas organizações internacionais.
Analisar como se organizaram e quais os elementos precípuos de
antagonismo e de cooperação entre os países desenvolvidos e os países em
desenvolvimento liderados pelo Brasil e pela Índia no que tange a esta problemática
no interior do Regime Internacional de Propriedade Intelectual, constitui, por
conseguinte, o escopo central deste trabalho.
Propriedade Intelectual, Organizações Internacionais, Diversidade Biológica,
Brasil – Relações Exteriores.
6
Abstract.
Traditional Knowledge, Intellectual Property and Brazilian Foreign Policy.
The objective of this work is to describe how and why it was formed, in the
meetings of the World Trade Organization, of the Convention On Biological Diversity
and of the World Intellectual Property Organization, an agenda of negotiations related
to the protection of the traditional knowledge and the biogenetic resources associated
to them with the intention of controlling its appropriations.
The agenda is not sold out in the proper negotiations. They have established
the conceptual bases on which the South American and international treatment of the
respective subject has structuralized in elapsing of the 1990’s decade and in the
threshold of XXI century.
Such negotiations, by the plurality and difference in kind of its interlocutors,
have inspired an accumulation of positions and conflicting interests that demand of
the less influent countries and with greater potential of sustainable development, case
of the megabiodiverse countries, varied diplomatists efforts in the attainment of the
revision of the TRIPs agreement, aiming to make it unable to promote the restrictive
interpretation of the CDB devices and to unify the treatment of this problematic in the
distinct international organizations.
To analyze how they were organized and the main questions of antagonism
and cooperation among the developed countries and the megadiverse countries led
by Brazil and India which refers to this problematic issue, it is, therefore, the central
target of this work.
Intellectual Property, International Organizations, Biological Diversity, Brazil
Foreign Relations.
7
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS.......................................................................................................p.4
RESUMO..........................................................................................................................p.5
ABSTRACT......................................................................................................................p.6
INTRODUÇÃO..................................................................................................................p.9
CAPÍTULO 1.....................................................................................................................p.13
GÊNESE E EVOLUÇÃO DO DEBATE RECENTE NO PLANO INTERNACIONAL
CAPÍTULO 2.....................................................................................................................p.21
O REGIME INTERNACIONAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL.
Introdução..........................................................................................................................p.21
O Regime Internacional de Propriedade Intelectual: evolução e estrutura........................p.22
CAPÍTULO 3.....................................................................................................................p.35
O ACESSO À BIODIVERSIDADE E AOS SABERES TRADICIONAIS ASSOCIADOS:
ORIGENS E TERMOS DO DEBATE INTERNACIONAL.
CAPÍTULO 4.....................................................................................................................p.59
A POSIÇÃO BRASILEIRA PERANTE AS NEGOCIAÇÕES DO REGIME INTERNACIONAL
DE PROPRIEDADE INTELECTUAL.
CAPÍTULO 5.....................................................................................................................p.67
AS NEGOCIAÇÕES MULTILATERAIS NA CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE BIOLÓGICA.
Introdução..........................................................................................................................p.67
As Negociações que antecederam a criação da CDB.......................................................p.68
As Negociações que se seguiram à criação da Convenção da Diversidade Biológica.....p.78
A Primeira Fase de Negociações na CDB Fase da Identidade
Indefinida............................................................................................................................p.80
A Segunda Fase de Negociações na CDB – Fase da Identidade em Vias de Conclusão.p.93
Algumas Reflexões a Guisa de Conclusão........................................................................p.121
CAPÍTULO 6.....................................................................................................................p.125
AS NEGOCIAÇÕES MULTILATERAIS NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO.
Os Avanços da Rodada Doha e as Negociações Envolvendo a Relação entre o TRIPs e a
Convenção da Diversidade Biológica.................................................................................p.134
CAPÍTULO 7.....................................................................................................................p.147
AS NEGOCIAÇÕES MULTILATERAIS NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPRIEDADE
INTELECTUAL.
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................p.169
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................p.177
REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS.....................................................................................p.187
8
9
INTRODUÇÃO
O equilíbrio entre biodiversidade e sociodiversidade, traço distintivo das
regiões que compreendem comunidades tradicionais, encerrou transformações
plurais ao longo do tempo. Sejam decorrentes de fenômenos naturais, sejam
resultantes de intervenções deliberadas, tais alterações ocasionaram efeitos muitas
vezes prejudiciais às populações tradicionais presentes e passadas que têm
ocupado estas regiões desde tempos imemoriais.
Entretanto, em período recente, devido às características do mundo
globalizado e às transformações da economia mundial, a apropriação, a predação e
a erosão da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais têm se concretizado de
forma potencializada e, nessa direção, agravado efeitos deletérios que incidem
diretamente nestas coletividades.
Preocupações e constatações como estas têm reivindicado a atenção dos
pesquisadores de diferentes disciplinas e direcionado seus esforços para o estudo
dos atuais debates e discussões que tratam da proteção, da promoção e da
preservação dos recursos biogenéticos e dos conhecimentos tradicionais a eles
associados.
A despeito da complexidade e da abrangência destas discussões, três temas
centrais e inter-relacionados despontam nas negociações e nos debates nacionais e
internacionais: as problemáticas do controle do acesso à biodiversidade e à
sabedoria tradicional a ela associada, da má apropriação desta matriz de potenciais
produtos e processos por intermédio dos direitos de propriedade intelectual e da
formulação de um regime internacional capaz de promover o compartilhamento de
benefícios com as comunidades tradicionais.
Analisar a emergência destes temas multifacetados no cenário internacional
recente, sob a ótica das relações internacionais, constitui, por conseguinte, o objetivo
precípuo deste trabalho. Seguramente, um esforço como este não constitui tarefa
simples em razão da escassez de material de apoio, da interdisciplinaridade das
questões envolvidas e da atualidade dos debates internacionais.
Não obstante, revelou-se uma tarefa gratificante quando, no decorrer da
pesquisa e dos estudos, constatamos que, em tempos recentes, seja em razão de
mudanças no cenário global e regional, seja em razão de transformações internas
10
aos Estados que compartilham estas regiões e estas populações, a marginalização
ou mesmo exclusão das coletividades tradicionais pode iniciar sua ruptura, cedendo
espaço a um novo paradigma de diálogo e empoderamento, o qual, a despeito de
arraigadas resistências e interesses contrários, aparenta principiar a sua
consolidação.
A dissertação está dividida em Introdução, 7 capítulos, Conclusão e
Bibliografia. O Capítulo 1 procura analisar a emergência dos temas do acesso aos
recursos biogenéticos e aos saberes associados como temas relevantes da agenda
global. Reveste-se, portanto, de caráter introdutório, pois objetiva proporcionar ao
leitor a apresentação da problemática central desta dissertação.
O Capítulo 2 explora o contexto de negociações que possibilitou a inclusão
dos temas de acesso à biodiversidade e aos saberes tradicionais associados na
agenda do Regime Internacional de Propriedade Intelectual e, ainda, apresenta uma
caracterização sumária da estrutura deste regime e de sua evolução recente. Além
de analisar o conceito de regime internacional, este capítulo compõe o quadro das
principais transformações verificadas no Regime Internacional de Propriedade
Intelectual do início da década de 80 até o fim dos anos 90. O intuito é evidenciar os
novos obstáculos que surgiram para uma ação internacional dos países em
desenvolvimento e, dessa forma, verificar as principais oportunidades e
constrangimentos fornecidos pelo Regime Internacional para a manutenção ou
reorientação das estratégias de negociação de diferentes países, em especial do
Brasil.
O Capítulo 3 explicita a arquitetura geral das origens e dos termos dos
debates internacionais sobre conhecimentos tradicionais. Neste sentido, tem o
objetivo de apresentar os principais conceitos, pontos de discórdia, hiatos e
consensos que têm permeado as discussões sobre os temas do controle do acesso
aos recursos genéticos e aos saberes tradicionais associados, da repartição de
benefícios e da denominada prática da biopirataria. Em suma, procura fazer uma
apropriação organizada dos elementos que sejam mais úteis ao exame do objeto de
pesquisa e das negociações apresentadas nos capítulos subseqüentes.
O Capítulo 4 evidencia algumas diretrizes da política externa pátria que nos
possibilitam uma primeira interpretação do posicionamento diplomático brasileiro
perante estes temas no fórum de negociações do Conselho do TRIPs na OMC e nos
11
Comitês da Organização Mundial de Propriedade Intelectual e da Convenção da
Diversidade Biológica. Com efeito, foi elaborado com o objetivo precípuo de revelar
ao leitor algumas diretrizes e princípios da política externa nacional que possam nos
auxiliar a compreender o posicionamento brasileiro sobre os novos temas do acesso
e da repartição de benefícios no complexo tabuleiro de negociações multilaterais.
O Capítulo 5 apresenta a análise das negociações no âmbito da Convenção
da Diversidade Biológica. Dessa forma, exibe o mapeamento dos principais debates
e das discussões centrais sobre os temas em destaque nas reuniões das
Conferências das Partes dos grupos de trabalho especializados da Convenção,
ressaltando, a atuação da diplomacia brasileira e dos demais países desenvolvidos e
em desenvolvimento que influenciaram e contribuíram para a evolução das
negociações. Para tanto, revela o exame das propostas, das posições, das
argumentações, das alianças e dos antagonismos observados no processo de
interação entre estes atores centrais engajados nas negociações.
Por fim, o Capítulo 6 apresenta as negociações multilaterais que alcançaram
a Organização Mundial do Comércio, enquanto que o Capítulo 7 explicita a análise
das negociações nos fóruns multilaterais da Organização Mundial da Propriedade
Intelectual. Compartilham, portanto, da mesma estrutura e organização do Capítulo
5.
Finalmente, faz-se necessário advertir que na Conclusão evita-se a simples
repetição dos argumentos e dos exames apresentados e procura-se sublinhar a
necessidade de ampliar os objetos de análise para alcançar resultados mais
abrangentes e respostas mais substantivas. A Conclusão, portanto, não tem a
função de proporcionar soluções finais para os problemas tratados, mas tenta propor
reflexões que demandarão análises futuras.
12
13
CAPÍTULO 1
GÊNESE E EVOLUÇÃO DO DEBATE RECENTE NO PLANO
INTERNACIONAL.
No decorrer das décadas de 1980 e de 1990, debates e discussões sobre
dois processos internacionais distintos ganharam consistência através de reuniões
multilaterais no âmbito das organizações internacionais.
Por um lado, um esforço de ajustes bilaterais e multilaterais buscou
fundamentar um regime internacional de proteção uniforme à propriedade intelectual,
movimento este que se caracterizou por negociações ocorridas na rodada Uruguai
do antigo GATT (que se desdobrou na atual OMC) e por imposições, sanções e
retaliações bilaterais, estranhos aos marcos legais desta organização internacional,
que transformaram em ficção qualquer esperança de conversação por parte dos
países em desenvolvimento.
Por outro lado, grupos indígenas adquiriram respeito e reconhecimento da
comunidade internacional em função de sua riqueza cultural, sua sofisticada perícia
em manejar recursos naturais e seu conhecimento relacionado à agricultura e à
medicina. Variadas agências de conservação e preservação não tardaram em
considerar o conhecimento ecológico dos povos indígenas e de outros grupos
étnicos minoritários “que envolvem estilos de vida tradicionais” (daí o emprego do
adjetivo tradicional) como uma valiosa matriz de tecnologias capaz de ser explorada
e potencializada na busca por vias sustentáveis de desenvolvimento e na
preservação da biodiversidade. Quase que ao mesmo tempo, um crescente número
de ativistas e de especialistas acadêmicos tornou imperativo a busca pela proteção
legal do conhecimento tradicional, seja através de formulações já existentes, como
os direitos de propriedade intelectual, seja, mais freqüentemente, por intermédio da
criação de novos regimes normativos especialmente adaptados às necessidades e
peculiaridades destes grupos culturais.
Embora o desenvolvimento destes dois processos tenha temporalmente
coincidido, seus desdobramentos não poderiam ser mais dessemelhantes.
Enquanto, no limiar da década de 1990, a dedicação e o empenho conjunto dos
14
paises desenvolvidos em uniformizar uma legislação mundial de proteção aos ativos
intangíveis resultou na elaboração e na adoção dos Direitos de Propriedade
Intelectual Relacionados ao Comércio (sigla em inglês TRIPs)
1
, os esforços em
relação à proteção do conhecimento tradicional
2
não ultrapassaram o âmbito do
planejamento e do debate.
Neste sentido e como espelho desta assimetria, ainda que o acordo TRIPs
contenha vários dispositivos que reconhecem os interesses dos países em
desenvolvimento
3
, inexiste qualquer menção em sua gica normativa à proteção
dos conhecimentos tradicionais. Portanto, sob o ponto de vista dos países em
desenvolvimento, ao nascimento conjunto destes temas inter-relacionados seguiu-se
uma ruptura entre a salvaguarda dos recursos genéticos, dos conhecimentos
tradicionais e do folclore, considerados herança comum” da humanidade, e a
proteção dos intangíveis congregados sobre a égide do conceito de propriedade
intelectual. Por conseguinte, uma visão cada vez mais preponderante no cenário
internacional passou a afirmar que este desequilíbrio beneficia amplamente as
indústrias dos países desenvolvidos, as quais se apropriam e manipulam os
recursos genéticos, os conhecimentos tradicionais e o folclore dos países em
desenvolvimento para sua produção intelectual.
Estas evoluções assimétricas podem ser compreendidas se também
observadas através da súbita atuação dos Estados desenvolvidos acerca dos
debates sobre direitos de propriedade intelectual e a marginalização pelos mesmos
Estados das discussões envolvendo a proteção dos conhecimentos tradicionais.
1
O acordo TRIPs (Trade-related aspects of intellectual property rights) estabeleceu um conjunto de normas
jurídicas que deveriam ser adotadas por todos os países pertencentes ao GATT/OMC até o prazo máximo de
2006. As controvérsias mais expressivas que se seguiram à aplicação desta uniformização estiveram
relacionadas à salvaguarda de patentes de medicamentos e de patentes de recursos naturais manipulados
através de processos científicos.
2
Neste capítulo introdutório, o termo conhecimentos tradicionais é utilizado para se referir aos
“conhecimentos, inovações e práticas das comunidades indígenas e locais que encerram estilos de vida
tradicionais”, assim como “tecnologias indígenas e tradicionais”. (Convention on Biological Diversity,
Articles 8(j) and 18.4). Não obstante, a utilização de termos como indígena e tradicional ainda permanece
bastante problemática.
3
Entre estes interesses, destaca-se a promoção da inovação tecnológica e da transferência e difusão de
tecnologia, em benefício mútuo de produtores e usuários de conhecimento tecnológico. Também, o acordo
resguarda a possibilidade de adotar medidas necessárias (1) para proteger a saúde e nutrição pública e para
promover o interesse pátrio, ou (2) para restringir e impossibilitar o abuso dos direitos de propriedade
intelectual por seus titulares ou (3) para evitar o recurso a práticas que limitem de maneira injustificável o
comércio ou que (4) afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia.
15
Destarte, durante a primeira metade da década de 1990, participantes nas
discussões sobre direitos de propriedade intelectual para comunidades e povos
tradicionais eram majoritariamente atores não governamentais. As principais
deliberações foram conduzidas em fóruns tais como conferências acadêmicas sobre
biologia, etnia, direito e eventos organizados por povos indígenas, os quais
ocorreram por vezes de maneira independente com relação as grandes reuniões
internacionais, desde a Conferencia das Partes (COP) até as conferências sobre a
Organização das Nações Unidas sobre Agricultura e Alimentação (FAO). Assim, a
gênese da proteção e da promoção dos conhecimentos tradicionais foi formulada e
promovida por estas organizações independentes, tornando o envolvimento
governamental, num primeiro momento, bastante inexpressivo.
Não obstante, a atuação decisiva das Ongs no cenário internacional fez com
que as preocupações sobre o conhecimento tradicional alcançassem as pautas das
grandes organizações internacionais
4
. Com isso, em 1992, o Conselho sobre
Diversidade Biológica (CDB)
5
incluiu alguns importantes conceitos relacionados à
proteção do “conhecimento tradicional, inovações e práticas” em seus tratados
internacionais.
Em período recente, através de um movimento amplo e gradual, a indiferença
demonstrada pelos governos e organizações intergovernamentais para com o
conhecimento tradicional cedeu lugar ao engajamento sério e compromissado. As
questões referentes à manipulação e à apropriação dos bens intangíveis tradicionais
adquiriram, em conseqüência, um lugar privilegiado nas principais negociações
desenvolvidas na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), na
UNCTAD, na Organização Mundial do Trabalho (OMT), na Organização Mundial da
Saúde (OMS), na Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos e na
5
Pode-se afirmar que a Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada pela primeira vez durante a ECO
92, inaugurou os debates interestatais acerca da proteção da biodiversidade e dos conhecimentos
tradicionais. Anteriormente ao advento da CDB, os recursos genéticos eram considerados um patrimônio
comum da humanidade. Contudo, variadas críticas por parte da comunidade internacional tiveram por alvo
as limitações e as insuficiências inerentes aos acordos firmados na CDB. Ver Roberto P. Guimarães, “Da
Oposição entre Desenvolvimento e Meio Ambiente ao Desenvolvimento Sustentável: Uma Perspectiva do
Sul”, in: Temas de Política Externa Brasileira II, Brasília/São Paulo, IPRI, FUNAG, PAZ e TERRA, 1997,
pp. 218 e 219.
16
Organização Mundial do Comércio (OMC), particularmente desde que o Conselho
Geral iniciou os preparativos para a conferencia ministerial de Seattle em 1999.
Neste sentido, e como resultado direto deste esforço de cooperação, tornou-
se temática privilegiada na agenda global a redução deste desequilíbrio
caracterizado pela assimetria entre direitos e deveres de produtores e consumidores
de propriedade intelectual, e entre o estímulo à produção de tecnologia no futuro e
sua utilização no presente. Em especial, esforços conjuntos têm ocorrido em favor
de uma reinvenção do conceito de propriedade intelectual capaz de torná-lo
aplicável a conhecimentos e expressões culturais tradicionais.
Por conseguinte, as preocupações precípuas destas discussões multilaterais
convergem na análise e na troca de informações com relação à eficácia dos
sistemas existentes de proteção intelectual (copyright, indicações geográficas,
segredos de negócios, mecanismos de acesso e troca de benefícios, e proteções às
variedades de plantas) quando transferidos para a conjuntura dos bens intangíveis
tradicionais coletivos. De maneira análoga, estes fóruns multilaterais igualmente
contemplam reflexões sobre a conveniência do desenvolvimento de sistemas sui
generis e da realização de um tratado internacional
6
. As principais razões alegadas
para a condução de tais reflexões e para a fundamentação de tal tratado incluem
pelo menos dois aspectos: evitar a concessão de patentes sobre conhecimentos
tradicionais para pessoas que não sejam parte das comunidades que os
desenvolveram, constrangendo, assim, os efeitos negativos provenientes de
monopólio sobre produtos que antes eram gratuitos
7
; e evitar a utilização de
6
De forma bastante simplificada, no que diz respeito ao sistema de proteção dos conhecimentos
tradicionais, duas perspectivas possíveis. Por um lado, existe a denominada proteção “defensiva”, ou
seja, medidas que são tomadas com vistas única e exclusivamente a evitar que terceiros se apropriem dos
conhecimentos tradicionais. De outra parte, existe a proteção “positiva”, caracterizada pela aquisição de
direitos proprietários sobre estes conhecimentos.
7
Talvez o exemplo que melhor ilustra esta ambição, de transformar em patente um conhecimento
tradicional relacionado à medicina e os custos sociais e econômicos dela provenientes, seja o caso das
árvores Neem localizadas na Índia. No centro desta disputa estava o reconhecimento de varias patentes em
território estadunidense relacionadas a múltiplos elementos químicos essenciais aos processos tradicionais
de exploração das arvores Neem. Dois problemas principais resultaram destas iniciativas. O primeiro é que
o acordo TRIPs obrigou o governo indiano a salvaguardar a emulação científica de processos tradicionais
em seu próprio território, desestruturando toda uma organização social e econômica em torno da produção
sustentável dos compostos Neem. O segundo é que as empresas que obtiveram as patentes, protegidas pelo
TRIPs, iniciaram uma política de limitação do mercado destes compostos ao pagar mais de 300 lares por
tonelada de sementes neems, o que acabou por aumentar consideravelmente os custos e as restrições de
tratamentos antes disponíveis a grandes parcelas da população mais vulnerável. (MAY. Christopher, A
Global Political Economy of Intellectual Property Rights: The new enclosures?, London, Routledge, 2002,
pp 103 e 104).
17
conhecimentos tradicionais sem o consentimento das comunidades que os
originaram e sem o compartilhamento dos benefícios com essas comunidades.
Dito isto, conclui-se que as razões acima apontadas têm por orientação o
questionamento e a contestação de uma dinâmica histórica onde o Norte
comercializa a biotecnologia, enquanto o Sul disponibiliza a biodiversidade e os
conhecimentos a ela relacionados, processo este que se revela amplamente
favorável aos países desenvolvidos do Norte, muito avançados no que tange à
biotecnologia e capazes de utilizá-la para produzir bens de alto valor agregado.
Tal dinâmica, longe de se constituir em temática exclusiva dos debates sobre
conhecimento tradicional, espelha a enorme autonomia de certos agentes
transnacionais (grandes empresas multinacionais, lobbies empresariais) que
influenciam os regimes internacionais e o processo de globalização de acordo com
interesses relacionados à uniformização dos ordenamentos jurídicos nacionais em
beneficio da preservação de monopólios tecnológicos (caso do acordo TRIPs).
Diante de tal autonomia, não nos deve causar espanto que as iniciativas
relacionadas às questões sobre conhecimento tradicional estejam amplamente
subordinadas ao regime de propriedade intelectual ocidental, forjado em uma Europa
novecentista e recentemente praticado em todo o sistema internacional, a despeito
da heterogeneidade das realidades nacionais.
Tal sujeição impõe complexas limitações àqueles que objetivam fundamentar
um regime internacional de promoção, de preservação e de proteção aos
conhecimentos tradicionais, aos recursos biogenéticos e ao folclore, e reaver
processos de biopirataria. Se voltarmos nossa atenção ao contencioso em torno das
patentes sobre o cupuaçu amazônico, poderemos visualizar com clareza estes
constrangimentos.
Entre os meses de outubro de 2001 e julho de 2002, a multinacional japonesa
Asahi Foods patenteou o método de extração de óleo e gordura da semente e
processo de produção do cupulate, uma espécie de chocolate elaborado a partir da
fruta, e requisitou a salvaguarda da marca Cupuaçu no Japão e na Europa. Tais
iniciativas vieram a público no início de 2003, quando a Amazonlink, uma ONG que
apóia produtores da Amazônia na comercialização de derivados de cupuaçu,
descobriu, através de uma negociação para fechamento de contrato de venda com
uma empresa alemã, que seus produtos não poderiam ser comercializados se
18
vinculassem a palavra cupuaçu. Neste sentido, diante dos fatos consumados de
patentes e marcas sobre o cupuaçu brasileiro, sempre no âmbito dos governos e das
leis de outros paises, ficou claro que o resgate somente seria possível se alcançado
por meio de ações coordenadas em escala internacional, neste caso em particular,
concatenadas nas negociações em curso da OMC e nos tribunais japoneses sobre
propriedade intelectual.
O quadro somente resultou revertido no momento em que se confirmou que o
registro como marca de um nome genérico de produto é uma prática vedada na
legislação sobre propriedade intelectual internacional (artigo 15.1 do acordo TRIPs).
Mesmo assim, não sem grandes desentendimentos, visto que o TRIPs não
estabelece critérios suficientemente claros de registrabilidade
8
. De maneira
concomitante, em fevereiro de 2004 a Embrapa conseguiu que o bureau de
propriedade intelectual do Japão negasse os pedidos de patenteamento da empresa
Asahi Foods, uma vez que o processo requisitado era idêntico ao processo cuja
patente foi solicitada pela própria Embrapa ao INPI em 1990.
Com efeito, na ausência de um ordenamento jurídico internacional capaz de
se contrapor ao TRIPs e adequado à salvaguarda dos bens intangíveis tradicionais e
dos recursos biogenéticos, os paises em desenvolvimento vêm-se na eminência de
aproximar lógicas normativas distintas e, variadas vezes contraditórias, para fazer
com que trabalhem em sentido universal e favoreçam da forma mais ampla as
diversas nacionalidades.
Diante de tal conjuntura, em que a correlação de forças no sistema
internacional revela-se amplamente desfavorável aos paises detentores de generosa
riqueza biogenética e tradicional
9
, o objetivo central desta dissertação é por em
relevo o tipo de inserção internacional preconizada e perseguida pela diplomacia
brasileira com vistas à concretização deste planejamento, a qual tem seu marco
8
O artigo 15.1 do TRIPs garante que qualquer sinal ou combinação de sinais capaz de distinguir bens
serviços poderá constituir uma marca.
9
Para que a distinção entre o potencial de recursos biogenéticos e tradicionais entre os países desenvolvidos
e os em desenvolvimento adquira contornos mais expressivos, voltemos nossos olhares às seguintes palavras
de Guimarães: “Existem, por exemplo, mais espécies de aves no Parque Nacional de Sangay, no Equador, o
que em todo o continente norte-americano. Uma única reserva natural na região do Choco, na Colômbia,
preserva potencialmente mais espécies de plantas do que o total preservado em toda a história dos Estados
Unidos”. Roberto P. Guimarães, “Da Oposição entre Desenvolvimento e Meio Ambiente ao
Desenvolvimento Sustentável: Uma Perspectiva do Sul”, in: Temas de Política Externa Brasileira II,
Brasília/São Paulo, IPRI, FUNAG, PAZ e TERRA, 1997, p 210.
19
inicial nas preparações para o Convenio sobre Diversidade Biológica, arquitetado em
1992 durante a ECO 92.
Acreditamos que o melhor meio para atingir esse objetivo está na análise das
negociações, dos debates e das polêmicas, internos e externos ao Brasil, em torno
dos temas da proteção, da promoção e da preservação do conhecimento tradicional
e dos recursos genéticos.
A razão é que estes novos temas concentram questões associadas aos
movimentos de biotecnologia e propriedade de bens intangíveis, cujos domínios
passaram a ser requisitos essenciais de qualquer projeto de desenvolvimento
sustentável por parte dos países do Sul
10
e de cristalização do status quo por parte
dos países pertencentes ao Norte
11
, daí se constituírem em temáticas controversas.
De forma semelhante, as negociações sobre a proteção, a preservação e a
promoção dos conhecimentos tradicionais significaram uma alteração importante na
própria lógica do regime internacional de propriedade intelectual, pois ultrapassaram
o campo dos monopólios comerciais e dos fluxos financeiros ao alçarem como
temáticas privilegiadas as condições particulares daqueles que se encontram à
margem dos processos de globalização e uniformização e que, por isso mesmo,
demandam maiores cuidados.
Antes de traçar o plano da dissertação e apresentar os resultados obtidos, é
importante ressaltar que, ao alçar como meta favorecida o estudo do sistema
internacional
12
, de suas regras e padrões de conduta, das relações de poder que se
desenvolvem nos regimes de propriedade intelectual e de salvaguarda dos
10
Segundo estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no caso do Brasil, a
biodiversidade e os conhecimentos a ela associados têm valor potencial estimado de US$ 2 trilhões. Ver.
Izique. Claudia, “Ações contra a biopirataria: Ompi estuda medidas para proteger culturas e recursos
genéticos”, Revista Pesquisa Fapesp, mês 6, ano 2002.
11
A preservação desta dinâmica que opõe paises desenvolvidos e paises em desenvolvimento pode ser
compreendida, entre outros exemplos, em função dos ganhos obtidos pelas indústrias farmacêuticas: “... de
los 119 medicamentos com estructuras químicas conocidas que son extraídas de plantas superiores y que
eram usadas em los países industrializados em 1988, más de 74% fueron descubiertas por químicos que
buscabam identificar las sustancias químicas em plantas usadas em la medicina tradicional”. Sarmiento.
Álvaro. Zerda, Propriedad Intelectual sobre el Conocimiento Vernáculo, Bogotá, Ediciones Antropos, 2003,
p. 69.
12
A temática da propriedade intelectual e dos conhecimentos tradicionais melhor se enquadra na definição
de sistema internacional proposta por Nye e Keohane: “One can think of governments as linked not merely
by formal relations between foreign offices but also by inter-governmental and transgovernmental ties at
many levels from heads of government on down. These ties between governments may be reinforced by
norms prescribing behavior in particular situations and in some cases by formal institutions. We use the term
international organization to refer to these multilevel linkages, norms, and institutions”. Keohane. Robert O,
and Nye. Jospeh S, Power and Interdependence, Harper Collins Publishers, 1989, p. 54.
20
conhecimentos tradicionais e, sobretudo, do quadro de incentivos e
constrangimentos para a ação internacional do Brasil, esta pesquisa pressupõe o
Estado, retratado através de seus representantes governamentais, como um ator
racional e unitário.
Este pressuposto, ao mesmo tempo em que simplifica a análise e torna os
objetivos alcançáveis, impossibilita a opção por uma análise eclética ideal, ou seja,
uma interpretação minuciosa da interdependência entre os processos domésticos, os
múltiplos atores globais e a dinâmica do sistema internacional. Assim, embora a
interação entre o nacional e o internacional, entre o Estado e os demais agentes
mundiais, defina um traço constitutivo da disciplina de relações internacionais
(Halliday. Fred, 1994, p. 4.), e conseqüentemente deste projeto, maior ênfase recairá
sobre o Estado nacional soberano
13
como unidade básica de estudo.
Portanto, em termos gerais, de um lado, será abordada a definição dos
interesses e dos objetivos do Brasil, assim como a caracterização de seus
respectivos atributos e dos elementos que lhe outorgam poder de negociação no
cenário internacional; de outro lado, serão consideradas a influência de alguns
fatores internos e a estrutura das preferências dos agentes governamentais
diretamente engajados na negociação de ganhos e de posições brasileiras frente ao
tratamento dos conhecimentos tradicionais. Serão examinados, por fim, os
condicionamentos e as formas pelas quais seus mais importantes protagonistas
atuaram no plano das negociações multilaterais, mobilizando recursos de natureza
política e técnica para ampliar e garantir a consecução dos interesses e objetivos
tidos por nacionais.
13
No que tange aos temas e objetivos levantados nesta dissertação, o conceito de soberania nacional adquire
definição atinente àquela proposta por Pinto Coelho: “Soberania, no que se refere às questões propostas pela
agenda ambiental, está intimamente ligada ao controle das informações e a seu eventual ordenamento por
via multilateral”. Coelho. Pinto. Mota. Pedro, “O Tratamento Multilateral do Meio Ambiente: Ensaio de um
Novo Espaço Ideológico”, in: Temas de Política Externa Brasileira II, Brasília/São Paulo, IPRI, FUNAG,
PAZ e TERRA, 1997, p 253.
21
CAPÍTULO 2
O REGIME INTERNACIONAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL.
2.1- Introdução.
Com a finalidade de contextualizar a consecução dos objetivos acima
realçados, pode-se afirmar que a atuação diplomática do Brasil e dos demais países
em desenvolvimento sobre a problemática dos conhecimentos tradicionais tem seu
marco inicial nas negociações que resultaram na criação da Convenção sobre
Diversidade Biológica, a qual entrou em vigor em 29 de dezembro de 1993 e ilustrou
um esforço internacional para a questão da propriedade e da soberania sobre os
recursos genéticos, da utilização sustentável de seus componentes e da repartição
justa e eqüitativa dos benefícios deles derivados.
Entretanto, esta interdependência entre acesso à biodiversidade e
salvaguarda da sociodiversidade, de amplo interesse para os países em
desenvolvimento, resultou marginalizada em razão da manipulação do Acordo
TRIPs, instrumento este capaz de promover a interpretação restritiva dos
dispositivos da CDB que tratam de acesso e transferência de tecnologia e capaz de
restringir o escopo da proteção aos saberes tradicionais pelos direitos de
propriedade intelectual. Conseqüentemente, as diplomacias destes países alçaram
como metas privilegiadas nas negociações da OMC, da OMPI e da CDB tanto a
harmonização entre o Acordo TRIPs e o CDB, quanto a revisão do próprio acordo
com a finalidade de torná-lo apto a encerrar diretrizes mínimas de proteção aos bens
intangíveis tradicionais, estratégias estas que analisaremos no decorrer deste artigo.
No entanto, antes de adentrarmos nas negociações propriamente
salientadas, convém ponderarmos sobre uma interrogação que se impõe logo de
saída: como estes objetivos podem ser acomodados no interior de uma arquitetura
internacional composta por regras e padrões multilaterais, regionais e bilaterais que
22
estruturam o Regime Internacional de Propriedade Intelectual e que proporcionam
variados constrangimentos aos raios de manobras dos países em desenvolvimento?
Para que possamos ensaiar uma resposta satisfatória a esta questão,
devemos primeiramente identificar, mesmo que sumariamente, algumas reflexões e
contribuições da teoria das relações internacionais que nos auxiliem a examinar e a
compreender o Regime Internacional de Propriedade Intelectual.
2.2- O Regime Internacional de Propriedade Intelectual: evolução e estrutura.
A queda do muro de Berlim e a derrocada da União Soviética, em fins da
década de 1980, espelharam o desmoronamento de um sistema internacional cuja
estrutura adquiriu contornos nas conferências de Yalta e Potsdam, ocorridas no
período imediatamente posterior à segunda guerra mundial. Com efeito, as relações
leste-oeste, a corrida armamentista, a estabilidade dos pólos de poder e a intensa
concorrência ideológica que definiram as bases gerais deste sistema, se não
resultaram superadas, acabaram atenuadas em uma lógica internacional mais
complexa, onde novos paradigmas, tendências e atores, antes relegados ao segundo
plano, definem os parâmetros da agenda global.
Esta nova conjuntura evidenciou mudanças importantes nos padrões pelos quais
os Estados estruturam o sistema internacional e são por ele estruturados. Com
efeito, as relações entre os Estados e outros atores internacionais ganharam
tamanha consistência a ponto de definir um complexo contexto de
interdependências, conexões e permeabilidade de soberanias.
Por conseguinte, diante deste cenário caracterizado pela interpenetração de
múltiplas questões, é aceitável que ocorra aumento significativo no papel potencial e
na variedade dos regimes internacionais, visto que eles podem auxiliar a estabelecer
a agenda internacional, servem como instrumentos para formação de coalizações e
como arena para iniciativas políticas, habilitam os políticos a administrar com um
grau de segurança aceitável os sistemas de regras e informações constitutivos da
política internacional e congregam “novos temas” da agenda global, que passam a
integrar de maneira definitiva a pauta de política externa dos mais variados países.
23
Tamanhas transformações na complexa realidade apreendida pela teoria das
relações internacionais acarretaram vigorosas reflexões na estruturação das distintas
tradições da política internacional, cada qual fundamentando um corpus teórico
fecundo capaz de interpretar a emergência dos regimes internacionais e
formalizando um debate acadêmico profícuo e interessante.
Neste sentido, no início da década de 1980, o estudo dos regimes
internacionais adquire contornos mais nítidos e esta temática passa a ser
contemplada através de distintas posições. Esta pluralidade de interpretações não
impediria, contudo, a focalização dos interesses em algumas questões pontuais (a
gênese dos regimes internacionais, a evolução e as transformações nos regimes
estabelecidos, a eficácia e a eficiência dos regimes para a cooperação, por
exemplo), e, tampouco, evitaria a consagração de uma definição consensual para
regime internacional. Proposta pelo professor Stephen Krasner em 1983, assim
permaneceria a referência básica e mais aceita para o conceito de regime
internacional:
“Os regimes podem ser definidos como conjuntos de princípios,
normas, regras, implícitos ou explícitos, e procedimentos de decisão em torno
dos quais as expectativas dos atores convergem em uma dada área das relações
internacionais. Princípios são crenças sobre fatos, causação ou retidão. Normas
são padrões de comportamento definidos em termos de direitos e obrigações.
Procedimentos de decisão são práticas predominantes para se fazerem e
implementarem escolhas coletivas.”
14
Segundo Krasner, importa distinguir entre as características definidoras de
um regime e os demais traços que o compõem. Assim, para o autor, são os
princípios e as normas que proporcionam as características permanentes dos
regimes, visto que estas variáveis tendem à estabilidade enquanto os procedimentos
de tomada de decisão e as regras tendem a transformação. Por conseguinte, as
alterações de normas e princípios levam à mudança do regime, enquanto
transformações nas regras e procedimentos são consideradas alterações no interior
de um mesmo regime.
14
Krasner. Stephen D (editor), International Regimes, Ithaca, Cornell University Press, 1983, p. 2.
24
Para facilitar a exposição do regime internacional de propriedade intelectual e
não exceder os limites do nível de análise desejado, julgamos conveniente organizar
estes elementos precípuos dos regimes em três dimensões de análise propostas
pelo professor Laurence Helfer
15
.
Helfer dedicou-se a explicar como a recente expansão do Regime
Internacional de Propriedade Intelectual, conduzida sobretudo no plano comercial,
ocasionou a emergência de novos temas, debates, negociações e transformações
em um conglomerado de regimes internacionais, organizações intergovernamentais
e fóruns multilaterais. Acontecimento observado no decorrer dos últimos 10 anos, a
recente evolução deste Regime Intenacional direcionou o tema da propriedade
intelectual para o centro das atenções de uma ampla gama de organizações e
espaços políticos, tais como a Organização Mundial do Comércio, a Organização
Mundial da Saúde, a Organização para a Agricultura e Alimentação, a Convenção da
Diversidade Biológica, a Comissão sobre Recursos Genéticos para a Alimentação e
a Agricultura e a Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Baseando-se neste conceito da teoria das relações internacionais, Helfer
sustenta que um nível de análise mais minucioso e extensivo sobre este complexo
regime internacional poderia ser alcançado através de uma subdivisão dos atributos
explicativos propostos por Krasner em três dimensões de análise: a) dimensão
substantiva; b) dimensão institucional; c) dimensão interacional.
Nessa linha de argumentação, a dimensão substantiva trata,
necessariamente, dos princípios, das normas e das regras do regime, ou seja, das
prescrições ao comportamento estatal que poderiam ser organizadas em níveis
decrescentes de abstração. Por seu turno, a dimensão institucional faz referência
aos procedimentos de tomada de decisão, os quais congregam as instituições
formais e os acordos informais que os atores utilizam para a criação das prescrições.
Por fim, Helfer sublinha que a dimensão interacional tanto engloba as áreas
temáticas perante as quais as expectativas dos atores convergem no interior de um
regime particular, quanto congrega as interações entre essas áreas e os domínios
temáticos dos demais regimes existentes.
15
HELFER. Laurence. R, “Forum Shopping for Human Rights”, University of Pennsylvania Law Review,
Vol. 148, January 2000. 0
25
No caso particular do Regime Internacional de Propriedade Intelectual, sua
dimensão substantiva compreenderia, portanto, os elementos a seguir. Em primeiro
lugar, revelaria os princípios, os quais incluem tanto o reconhecimento de que os
estados devem assegurar propriedade privada para bens intangíveis abstratos que
encerram inovação e criatividade humanas, quanto o imperativo de se proteger essa
propriedade da exploração ou de usos não autorizados que venham a ocorrer entre
fronteiras nacionais. Menos abstratas, as normas do regime incluem a obrigação dos
estados elaborarem monopólios legais (no formato de direitos exclusivos controlados
pelas partes interessadas) que geram incentivos à inovação e à criatividade
humanas e que proporcionam aos criadores e investidores estrangeiros a
possibilidade de comercializar seus produtos em diferentes jurisdições nacionais em
condições de igualdade para com os criadores e inovadores locais. Finalmente, as
regras encerram as prescrições e as proscrições através das quais este conjunto de
princípios e normas adquire efetividade, assim, teríamos, por exemplo, a regra da
nação mais favorecida, as regras de tratamento nacionais, direitos específicos
exclusivos e os padrões mínimos de proteção.
Por sua vez, os arranjos cooperativos formulados pelos estados para
desenvolver os princípios, as normas e as regras acima destacadas
compreenderiam a dimensão Institucional do Regime Global de Propriedade
Intelectual. Helfer ressalta que estes arranjos podem ser organizados em uma
escala, cujas extremidades abarcariam, de um lado, organizações
intergovernamentais bem estruturadas, capazes de internalizar equipes de
especialistas, elevados orçamentos e aparatos administrativos, e, do outro lado,
redes informais de funcionários governamentais capazes de negociar e compartilhar
informações e coordenar políticas nacionais. Importa salientar que as instituições
congregadas nessa escala se diferenciam em relação aos seus quadros de
membros, suas regras de votação, aos escopos e às amplitudes das áreas tratadas,
aos recursos de que dispõem, à centralização de tarefas, à flexibilidade das regras e
à permeabilidade a atores não estatais.
Uma análise sumária do Regime Internacional de Propriedade Intelectual
revela que a sua dimensão institucional tornou-se progressivamente complexa e,
atualmente, compreende uma ampla diversidade de acordos multilaterais,
organizações internacionais, convenções regionais e tratados bilaterais.
26
Os tratados multilaterais, com a notável exceção do Acordo TRIPs, são
administrados em sua quase totalidade pela Organização Mundial da Propriedade
Intelectual e podem ser classificados em quatro modelos. Neste sentido, em primeiro
lugar, temos os tratados que estabelecem padrões míninos e básicos de proteção.
Exemplos ilustrativos seriam a Convenção de Paris, a Convenção de Berne e a
Convenção de Roma, administrados pela OMPI, e a Convenção Internacional para a
Proteção de Novas Variedades de Plantas (UPOV)
16
e o Acordo TRIPs, ambos
administrados pela Organização Mundial do Comércio.
Em segundo lugar, existem os acordos multilaterais que promovem sistemas
globais de proteção, com o intuito de facilitar o registro e a concessão de direitos de
propriedade intelectual em vários paises. Podemos incluir nessa categoria o Tratado
de Cooperação em Patentes (PCT), e o Acordo Internacional de Madrid relacionado
ao registro de marcas.
Em terceiro lugar, importa destacar os tratados de organização, estruturados
com a finalidade de organizar as informações relacionadas a invenções, marcas e
desenhos industriais. Por fim, mas não menos importante, temos os demais tratados
internacionais que não o administrados no interior do Regime Internacional de
Propriedade Intangível, mas que possuem disposições importantes sobre
propriedade intelectual, tais como a Convenção da Diversidade Biológica e o
Tratado Internacional sobre Recursos Genéticos de Plantas para Agricultura e
Alimentação (International Treaty on Plant Genetic Resources for Food and
Agriculture – ITPGRFA)
17
.
16
A Convenção Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas (The International
Convention for the Protection of New Varieties of Plants UPOV Convention) foi assinada em 1961 em
Paris. Desde então, o texto da Convenção encerrou três revisões importantes, concretizadas respectivamente
em 1972, 1978 e 1991. A Convenção estabeleceu a International Union for the Protection of New Varieties
of Plants, a qual permanece estabelecida na cidade de Geneva e, atualmente, conta com 38 estados membros,
incluindo o Brasil. Em termos gerais, a UPOV proporciona modelos para a proteção de variedades de plantas
por intermédio de direitos de propriedade intelectual, os quais recebem a denominação de plant variety
rights ou, mais comumente, plant breeders’ rights (PBRs). Os critérios mínimos exigidos para a proteção de
uma variedade de planta são a sua distinção, sua estabilidade, sua uniformidade e sua novidade. A revisão de
1978 determinou que a entidade agraciada pelo breeders’ right teria o direito de autorizar atos como a
produção da variedade para fins comerciais e produção e comercialização de material reprodutivo ou
vegetativo proveniente da variedade. Já, a revisão de 1991 estendeu estes direitos, pois elevou o número de
atos que exigem autorização prévia, tais como a produção ou reprodução sem fins lucrativos, estoque,
importação, exportação etc. Para uma análise comparada dos tratados da UPOV ver: DUTFIELD. Graham,
Intellectual Property Rights, Trade and Biodiversity, The World Conservation Union IUCN and Earthscan,
Earthscan Publications LTD, London, 2002.
17
Este Tratado Internacional foi criado em 2001 no interior da Organização para a Agricultura e a
Alimentação - FAO. O ITPGRFA tem por objetivo destacado facilitar o acesso aos recursos genéticos de
27
Os tratados ou instrumentos regionais também devem ser inseridos na
dimensão institucional do regime internacional. Exemplificam estes formatos de
tratados a Convenção Européia de Patentes, O Regime Comum da Comunidade
Andina para a Propriedade Industrial e a Diretiva da Comunidade Européia para a
Proteção Legal das Invenções Biotecnológicas. De forma semelhante, alguns
acordos comerciais regionais igualmente contemplam tópicos relacionados aos
direitos de propriedade intelectual, tais como o Acordo de Livre Comércio das
Américas.
Por fim, importa salientarmos, ainda, o papel de destaque desempenhado
pelos acordos bilaterais no recente desenvolvimento de princípios, regras e normas
do regime internacional de propriedade intelectual. Em especial, observações
atentas revelam que os países desenvolvidos utilizam tratados e acordos bilaterais
de investimentos para adquirir comprometimento dos países em desenvolvimento
aos parâmetros de propriedade intelectual e elevar estes padrões.. Vale destacar
como exemplo destes acordos o Acordo de Livre Comércio e de Direitos de
Propriedade Intelectual entre os Estados Unidos e o Camboja e o Acordo de Livre
Comércio entre os Estados Unidos e o Vietnã.
Na abordagem de Helfer, se a dimensão substantiva e a dimensão
institucional efetivamente nos proporcionam um estudo sistemático dos atributos do
Regime Internacional de Propriedade Intelectual, a dimensão interacional é capaz de
elucidar em que medida um regime particular é capaz de congregar e internalizar
áreas temáticas plurais. Também, esta dimensão nos possibilita analisar os padrões
de conexões através estas áreas e as áreas temáticas dos demais regimes
existentes. No caso particular do Regime Global de Propriedade Intelectual, esta
dimensão de análise proporciona algumas reflexões iniciais para um exame, por
exemplo, da associação entre o Regime Internacional de Comércio e os direitos de
plantas controlados pelas partes contratantes e inseridos em bancos de coleções internacionais, reconhecendo
que estes recursos são indispensáveis ao melhoramento genético. O tratado inclusive reconhece a
contribuição dos agricultores na conservação, aperfeiçoamento e disponibilização destas variedades e que
estas contribuições alicerçam os direitos dos agricultores (Farmers’ Rights). Embora o ITPRGFA direcione
para os governos a responsabilidade pela implementação dos direitos dos agricultores, ele não impõe
quaisquer restrições aos direitos dos agricultores utilizarem, compartilharem e comercializarem sementes
agrícolas. Um exame pormenorizado do ITPGRFA pode ser obtido no capítulo 3 do livro: COMMISSION
on Intellectual Property Rights, Integrating Intellectual Property Rights and Development Policy Report of
the Commission on Intellectual Property Rights, London, September 2002.
28
propriedade intelectual, interação esta concretizada na adoção do Acordo TRIPs em
1994.
Acreditamos, ainda, que ela possa auxiliar o analista de relações
internacionais a mapear e caracterizar complexas questões transversais que
insistem em alcançar a agenda de negociações do regime internacional de
propriedade intelectual, em particular, o debate envolvendo os conhecimentos
tradicionais e o acesso aos recursos genéticos.
Esta elevação progressiva do número de questões transversais que têm
alcançado os espaços de negociações do Regime Internacional de Propriedade
Intelectual impõe como imperativo um exame mais detalhado dos fatores
responsáveis pela recente evolução de sua dimensão interacional. Com efeito,
identificamos até o momento dois fatores precípuos que teriam atuado
decisivamente na caracterização desta dimensão como traço distintivo do Regime
Internacional.
O primeiro fator está relacionado às evoluções, observadas no decorrer dos
últimos trinta anos, das legislações que compreendem o Regime Internacional de
Propriedade Intelectual. Esta evolução recente do aparato legal do regime
internacional não passou despercebida ao professor Graham Dutfield, o qual, ao
analisar os efeitos dos direitos de propriedade intelectual na economia global,
concluiu que esta evolução poderia ser sistematizada em três fenômenos centrais
18
.
De acordo com o autor, o primeiro fenômeno compreenderia a ampliação do
escopo dos direitos existentes e incluiria, por exemplo, a extensão da proteção por
copyright aos programas de computador e a aplicação da proteção patentária à
organismos geneticamente modificados e genes clonados.
Por sua vez, a despeito da enorme flexibilidade e da expressiva capacidade
das legislações tradicionais de propriedade intelectual abarcarem novos temas,
produtos e processos, nem todas as inovações verificadas nos últimos 30 anos
resultam tranquilamente regulamentadas e protegidas na arquitetura do regime
internacional. Observa-se, portanto, a tendência à elaboração de novos direitos,
denominados de direitos sui generis, especialmente constituídos com o intuito de
regulamentar estas áreas muito complexas e problemáticas. Para Dutfield, esta
18
DUTFIELD. Graham, Intellectual Property Rights, Trade and Biodiversity, The World Conservation
Union IUCN and Earthscan, Earthscan Publications LTD, London, 2002, pp. 9 e 10.
29
impressionante capacidade de se adaptar e de se subdividir, verificadas nas
legislações que tratam de ativos intangíveis, revelaria o segundo fenômeno que
contribuiu para o processo de desenvolvimento da dimensão interacional do regime
de propriedade intelectual.
Convém destacar como exemplos destas adaptações e desdobramentos
legais a criação de legislações especialmente direcionadas para a proteção das
variedades de plantas, o desenvolvimento dos direitos aos designs de circuitos
integrados e a consolidação dos direitos de expressões performáticas.
Finalmente, o terceiro fenômeno observável está relacionado à progressiva
harmonização/padronização das legislações de propriedade intelectual. Processo de
harmonização este que permanece como um dos aspectos mais criticados e
debatidos no regime internacional de propriedade intelectual.
Em termos concisos, poderíamos afirmar que o processo de harmonização se
caracteriza pela adoção de modelos consagrados de direitos de propriedade
intelectual nos mais diferentes contextos. Neste sentido, o que se propõe é a
utilização de normas patentearias idênticas nos Estados Unidos e no Vietnã, por
exemplo, a despeito de constituírem países diametralmente opostos no que tange ao
nível de desenvolvimento científico, tecnológico e financeiro. Consequentemente,
para os especialistas em desenvolvimento econômico e social, competitividade,
concorrência e outras áreas afins, a harmonização dos direitos que incidem sobre
ativos intangíveis permanece como um dos aspectos mais problemáticos do regime
internacional de propriedade intelectual.
Neste contexto, vale a pena atentar para o questionamento salientado pelo
economista Joseph Stiglitz:
respostas para questões tais como o que deveria ser patenteado e qual a
abrangência e período da patente concedida não são óbvias, e não razões
para afirmarmos que respostas corretas para um determinado país, setor ou
período possam ser igualmente adequadas para outros contextos.”
19
.
19
STIGLITZ. E. Joseph, Making Globalization Work, New York and London, W.W. Norton & Company, p.
114.
30
A despeito de críticas como a acima mencionada e de dúvidas plurais, o
analista atento facilmente constata que o processo de harmonização tem se
desenvolvido e consolidado de forma progressiva e, quase sempre, agressiva.
Tendência esta que contrasta, por exemplo, com a conclusão geral apontada
no texto final elaborado pela Comissão para os Direitos de Propriedade intelectual,
cuja mensagem não poderia ser mais clara: os interesses dos países desenvolvidos
serão respeitados somente se seus governantes forem bem sucedidos em adaptar
os direitos de propriedade intelectual às circunstâncias econômicas e sociais
particulares destes países
20
.
A estes três características da evolução recente do regime poderíamos
acrescentar outras observações relevantes. É o caso, por exemplo, da ampliação
dos benefícios obtidos com os direitos de propriedade intelectual e a percepção de
que estes direitos têm alcançado um número cada vez maior de campos
tecnológicos.
A estes fenômenos poderíamos associar um quarto, ou seja, a crescente
expansão dos direitos de propriedade intelectual para as mais distintas realidades
nacionais, em outras palavras, são poucos os países que atualmente não contam
com algum tipo de proteção por intermédio de direitos de propriedade intelectual.
A atuação conjugada destes fenômenos e, em particular, a criação de novos
direitos e as suas extensões para novos campos do saber, tenderiam a explicar a
elevada capacidade de conexão verificada no Regime Internacional de Propriedade
Intelectual. É lícito concluir, por conseguinte, que a extensão de direitos para a
esfera dos conhecimentos tradicionais, por exemplo, favoreça a gênese de uma
pluralidade de questões em outros regimes, tais como questões relacionadas aos
direitos das coletividades indígenas, aos tratados que regulam o acesso a este corpo
de saberes (por exemplo, a CDB), aos acordos e tratados que regulam os campos
da agricultura, da alimentação e da saúde, entre outros.
Questões estas que ultrapassam seus espaços inicialmente delimitados de
negociações e, assim, retornam aos órgãos de discussões congregados na
dimensão institucional do Regime Internacional de Propriedade Intelectual.
20
COMMISSION on Intellectual Property Rights, Integrating Intellectual Property Rights and Development
Policy – Report of the Commission on Intellectual Property Rights, London, September 2002.
31
Desdobramentos semelhantes poderiam ser estendidos aos casos dos direitos
associados aos medicamentos, às variedades de plantas e às indicações
geográficas.
Assumem papel igualmente privilegiado na elevação da dimensão
interacional do Regime Internacional de Propriedade Intelectual as próprias
considerações estratégicas dos atores nele engajados. Assim, a congregação de
áreas e temas plurais sob a responsabilidade de um único regime pode ser motivada
pela disposição dos atores elevarem seus poderes de barganha ou mesmo
expandirem o escopo de acordos delimitados através de trade-offs entre diferentes
objetivos e assuntos.
Nestes casos, para obterem os efeitos desejados, os atores podem, por
exemplo, manipular a dimensão substantiva de um regime, ou seja, transfigurar suas
normas, princípios e regras com o intuito de criar normas de contenção
(counterregime norms) em outros regimes. Estas normas compreenderiam desde
regras obrigatórias até padrões legislativos optativos capazes de estabelecer
conflitos ou sinergias com outras prescrições e, assim, alterar o status quo
desfavorável de um determinado regime ou mesmo potencializar a eficiência da sua
arquitetura legal existente.
No caso em particular do regime internacional de propriedade intelectual, não
é raro observarmos atores em desvantagem objetivando articular normas de
contenção que apenas modificam regras existentes, mas que ignoram os princípios
mais amplos através dos quais estas regras emanam. Este é o caso, por exemplo,
de um Estado ou de uma organização que logra reestruturar obrigações que exigem
o patenteamento de determinados produtos e processos ou que ampliam os
benefícios e os escopos das patentes sem, no entanto, questionar a relação entre
proteção patentária e patrocínio à inovação.
Em outras instâncias, as normas de contenção podem ser revolucionárias em
oposição às normas evolucionárias do exemplo acima. Nestes casos, vale destacar
os atores que questionam a relação entre desenvolvimento de benefícios
econômicos e sociais e concessões de direitos de propriedade intelectual.
O conjunto de ações como estas recebe o nome de estratégia de flutuação de
fóruns (forum shifting) e adquire significado quando constatamos que as dimensões
32
institucionais dos regimes existentes proporcionam uma série de atalhos para os
atores conduzirem a estratégia das counterregime norms.
Os professors Peter Drahos e John Braithwaite concluíram que a estratégia
de flutuação de fóruns pode incorporar quatro táticas centrais: a) transposição de
uma determinada agenda de negociações de uma instituição para outra mais
favorável; b) abandono de uma organização; c) tratamento paralelo de uma mesma
agenda em dois ou mais fóruns de negociação; d) impedimento da incorporação de
uma determinada agenda em uma instituição internacional. Para os autores,
somente os estados poderosos podem planejar esta estratégia (ressaltam que
somente os Estados Unidos conduziram com alguma regularidade as táticas de
flutuação de fóruns), entretanto, ela pode proporcionar novas oportunidades para os
autores mais fracos.
21
Neste sentido, alguns estudos de caso revelaram que o processo geralmente
adquire uma seqüência regulatória. Assim, geralmente o estado poderoso inicia uma
crise de credibilidade em um determinado fórum para, em seguida, estabelecer
redes de recompensas e coerções.
Os fatores que influenciarão a escolha de determinado fórum pelos atores
serão justamente as diferenças no que concerne às disparidades na composição e
na influência dos membros, nos métodos de formulação de leis, nos mecanismos de
disputa, nas culturas institucionais e na permeabilidade a atores não estatais. Estas
dessemelhanças emergem tanto de comparações entre os distintos regimes, quanto
de contraposições entre as diferentes instituições e arranjos congregados na própria
dimensão institucional de um único regime.
Exemplo de uma estratégia como esta, que se revelou muito bem sucedida,
foi a inclusão do acordo TRIPs na Organização Mundial do Comércio pelos Estados
Unidos com o apoio da Comunidade Européia, do Japão e do Canadá. Este Acordo
posteriormente revolucionaria as três dimensões do próprio Regime Internacional de
Propriedade Intelectual, ao acentuar as regras presentes nos demais acordos e
tratados internacionais, impor um conjunto de elevados padrões de proteção, e
estender estes padrões a todos os estados membros da Organização Mundial do
Comércio.
21
Para uma análise aprofundada desta estratégia ver o capítulo 24 do livro: BRAITHWAITE. John and
DRAHOS. Peter, Global Business Regulation, Cambrige and New York, Cambridge University Press, 2001.
33
Como observado, a evolução do regime internacional de propriedade
intelectual e a sua conseqüente arquitetura complexa e multifacetada, ao mesmo
tempo em que abre novos espaços e possibilidades para os países em
desenvolvimento, lhes impõe novas dificuldades e desafios.
Com efeito, convém ponderar brevemente acerca de alguns desafios
precípuos que se colocam para os formuladores de política externa preocupados em
negociar o tema multifacetado do acesso aos recursos biogenéticos e aos saberes
tradicionais e do compartilhamento de benefícios no interior desta arquitetura
complexa do regime internacional de propriedade intelectual.
Neste sentido, até o momento, foi possível levantar quatro desafios centrais
que se colocam para os atores menos poderosos em um contexto de negociações
interinstitucionais.
Em primeiro lugar, a proliferação de instituições que tratam do mesmo tema
no interior de um regime ou mesmo entre diferentes regimes pode favorecer o
questionamento de ordenamentos e aparatos legais anteriormente acordados e
consolidados. Este é o caso, por exemplo, das normas de contenção analisadas por
Helfer, cuja proliferação nos últimos anos proporcionou um aumento expressivo no
número de pontos focais para os quais regras e expectativas dos atores podem
convergir dificultando a obtenção de consenso.
Em segundo lugar, a existência de acordos interligados torna mais difícil a
percepção de atitudes e iniciativas que tenham por objetivo enfraquecer,
desorganizar e desestabilizar alguns regimes internacionais existentes.
Em terceiro lugar, a criação de mandatos legais que poderão futuramente
entrar em conflitos pode vir a enfraquecer a percepção dos atores quanto à
necessidade de consolidar, de concretizar e de tornar obrigatórias as normas e as
regras anteriormente acordadas.
Por fim, em quarto lugar, vale destacar que a progressiva complexidade das
estruturas globais de governança pressiona os países mais fracos, os quais não
possuem recursos suficientes para mapear e acompanhar todas as negociações
simultâneas e as interações entre as mesmas que tratam de um mesmo assunto.
22
22
Para uma análise mais aprofundada sobre estes desafios ver: DREZNER. Daniel. W, The Power And Peril
of International Regime Complexity, The Fletcher School, Tufts University, Working Paper, February 2007.
Disponível em: http://www.princeton.edu/~smeunier/complexity.htm
34
Este é o caso, por exemplo, do tema do acesso e da repartição de
benefícios, pois ao negociarem esta temática em uma miríade de tratados
internacionais e de estruturas globais de governança, os países mais fracos se vêem
na iminência de congregar e manter variados especialistas e técnicos instruídos no
tema em pauta.
Principais atores afetados pelo unilateralismo, pela proliferação institucional e
pela abrangência do movimento regulatório internacional, aos países em
desenvolvimento, em especial aqueles com maior desenvolvimento relativo, cabe a
responsabilidade e a urgência de incluir o tema dos conhecimentos tradicionais e do
acesso controlado à biodiversidade no sistema jurídico da Organização PI, da
Organização Mundial do Comércio e da Convenção da Diversidade Biológica. Nas
próximas seções, observaremos como o Brasil, e, em menor grau a Índia,
responderam a esses desafios e a outras dificuldades impostos pelo regime
internacional de propriedade intelectual e pela sua interação com outros regimes
internacionais de destaque.
35
CAPÍTULO 3
O ACESSO À BIODIVERSIDADE E AOS SABERES TRADICIONAIS
ASSOCIADOS: ORÍGENS E TERMOS DO DEBATE INTERNACIONAL.
No decorrer dos últimos dez anos, o tema multifacetado e complexo do
conhecimento tradicional tem concentrado atenção privilegiada na agenda
internacional.
A capacidade de esta temática congregar diferentes preocupações e
considerações nos espaços de negociações globais resulta da variedade de fatores
que contribuíram para a gênese do tema na arquitetura de negociações
internacionais, dentre os quais, importam destaque os seguintes: reconhecimento da
importância da medicina tradicional para parcela majoritária da população global; a
atuação destacada destes saberes na conservação da diversidade biológica; as
inquietações e temores acerca do nível elevado de erosão deste conjunto de
saberes e fazer saber; preocupações acerca do uso não autorizado e do
patenteamento dos conhecimentos associados a recursos biológicos seguido pelo
não compartilhamento de benefícios com as comunidades tradicionais; progressivo
interesse em potencializar a capacidade dos saberes tradicionais na promoção do
desenvolvimento sustentável; e elevada atenção direcionada para os direitos dos
povos indígenas.
Esta pluralidade de fatores alicerçou uma variedade de objetivos que, de
acordo com Sophia Twarog, podem ser sumarizados em três categorias centrais:
preservação, proteção e promoção
23
. Embora estas categorias abrangentes não
possam congregar todos os objetivos levantados no debate internacional, visto que
alguns não se ajustam facilmente a qualquer uma delas, ou mesmo que alguns
objetivos podem ser inseridos nas três categorias (objetivo da equidade e do
compartilhamento de benefícios, por exemplo), fato é que elas nos auxiliam a
estruturar o debate e compreender a complexidade e a peculiaridade inerentes às
23
TWAROG, Sophia, “Preserving, Protecting and Promoting Traditional Knowledge: National Actions and
International Dimensions”, In: TWAROG. Sophia and KAPOOR, Promila (Editors), Protecting and
Promoting Traditional Knowledge: Systems, National Experiences and International Dimensions, New York
and Geneva, United Nations Publication, 2004.
36
negociações no Regime Internacional de Propriedade Intelectual que envolvem a
agenda do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais e a
repartição de benefícios.
Antes de adentrarmos na análise do debate internacional propriamente
mencionado, importa salientar que, neste trabalho, evitamos apresentar uma
definição simplificadora de comunidades tradicionais. Acreditamos que o conceito é
muito complexo e abrangente para que permaneça restrito a uma definição de
poucas linhas. Portanto, julgamos mais conveniente apresentar uma lista de
características que possa definir a especificidade destas coletividades.
Neste sentido, podemos afirmar que estas sociedades se caracterizam: a)
pela dependência da relação de simbiose entre a natureza, os ciclos e os recursos
naturais renováveis com os quais se constrói um modo de vida; b) pelo
conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na
elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais; conhecimento
que é transferido por oralidade de geração em geração; c) pela noção de território ou
espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente; d) pela moradia e
ocupação do território por várias gerações, ainda que alguns membros individuais
possam ter-se deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra de seus
antepassados; e) pela importância das atividades de subsistência, ainda que a
produção de mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implicaria
uma relação com o mercado; f) pela reduzida acumulação de capital; g) pela
importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de
parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e
culturais; h) pela importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça,
pesca e atividades extrativistas; i) pela tecnologia utilizada, que é relativamente
simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente; há uma reduzida divisão técnica
e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo produtor e sua família dominam
todo o processo até o produto final; j) pelo fraco poder político, que em geral reside
nos grupos de poder dos centros urbanos; e l) pela auto-identificação ou identificação
por outros de pertencer a uma cultura distinta
24
.
24
Para uma análise detalhada das características apontadas nesta lista ver: DIEGUES. Antonio Carlos, e
ARRUDA. Reinaldo. S. V, (orgs.), Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil, Brasília, Ministério do
Meio Ambiente/NUPAUB-USP, 2001.
37
De forma concisa, portanto, convém ponderar brevemente acerca das
especificidades de cada uma dessas dimensões de objetivos. No que concerne à
preservação, a preocupação central que exige atenção dos atores e que delimita o
âmbito e a natureza das ações a serem concretizadas é o processo de erosão já
avançado dos saberes tradicionais
25
. Dentre as razões que elucidam este processo
convém salientar, em primeiro lugar, a destruição do meio ambiente natural com o
qual as coletividades tradicionais mantêm uma relação de dependência mútua, daí a
importância dos governos nacionais reconhecerem os direitos exclusivos destas
comunidades em relação às suas terras ancestrais. Em segundo lugar, a
desvalorização e o desaproveitamento dos conhecimentos tradicionais pode
favorecer a renúncia das novas gerações a esta sabedoria e, com isso, igualmente
facilitar a erosão
26
. Ainda, em terceiro lugar, frequentemente estas comunidades
permanecem em situações de pobreza avançada, revelando-se imprescindível a
criação de novas oportunidades econômicas para obstar a pauperização das
mesmas.
As amplitudes e as complexidades inerentes aos fatores acima ordenados, e
a outros que igualmente alicerçam o processo de erosão dos saberes tradicionais,
revelam que as medidas de preservação esboçadas podem estar direcionadas
25
No que tange ao processo de erosão dos saberes tradicionais, quando direcionado para a esfera da perda da
diversidade lingüística dos povos tradicionais, o parágrafo a seguir elaborado por Gonzalo Oviedo, Aimée
Gonzales e Luisa Mafti, apresenta com clareza a extensão do problema. “Numerous studies have drawn
attention to the fact that a crisis of far greater magnitude than the biodiversity crisis is affecting the world’s
diverse cultures and languages. Recent estimates pout the impending rates of species extinction on Earth at
1,000 to 10,000 times (UNEP, 1995)… By contrast, estimates for the proportion of native languages (and
thus, by and large, the cultures expressed by them) that will have gone extinct or face extinction in the next
100 years are as high as 90 per cent over 6,000 currently spoken languages (Kraus 1992, 1996).” OVIEDO.
Gonzalo, GONZALES. Aimée, and MAFTI. Luisa, “The Importance of Traditional Ecological Knowledge
and Ways to Protect It”, In: TWAROG. Sophia and KAPOOR, Promila (Editors), Protecting and Promoting
Traditional Knowledge: Systems, National Experiences and International Dimensions, New York and
Geneva, United Nations Publication, 2004, p. 74.
26
Um estudo recente conduzido pelo professor indiano Anil K Gupta revelou que o desestímulo aos saberes
tradicionais no contexto das comunidades tradicionais resulta de fatores plurais e, variadas vezes, inter-
relacionados. Uma relação sumária destes fatores pode ser analisada no parágrafo que segue: “The rate of
erosion of local knowledge about biodiversity has never been so high. There are several factors which
explain this: changing family structures, from extended to nuclear families; consequential weakening of the
links between the grand-parent generation, which holds much of this knowledge, and the grand-children
generation; a diminished esteem for this knowledge in primary school curricula; the transition from a largely
oral to a largely written or documented culture; and the inability or unwillingness of many older healers and
herbalists to share their knowledge or agree to its transcription, or to transcribe it themselves.” GUPTA.
Anil. K, WIPO-UNEP Study on the role of intellectual property rights in the sharing of benefits arising from
the use of biological resources and associated traditional knowledge, 2004, p. 39, disponível no site:
http://www.iprsonline.org.
38
para duas alternativas de conservação precípuas. De um lado, permanecem
congregadas sob a égide da preservação “in situ”, que se caracteriza pela
manutenção dos conhecimentos tradicionais no ambiente das comunidades locais
que os conhecem, os protegem, os gerenciam e os produzem e atualizam. Em
suma, as atenções estão direcionadas para o reconhecimento dos saberes
tradicionais como um corpo vivo de conhecimento, em constante evolução e incapaz
de estar dissociado dos contextos das coletividades tradicionais que os administram.
De outro lado, resultam centralizadas na preservação “ex situ”, a qual, até o
momento, pode ocorrer através da documentação dos saberes tradicionais em
formato escrito, registros ou bases de dados. Em particular, existem esperanças de
que esta documentação possa preservar saberes tradicionais que sofram processos
de erosão já bastante avançados.
No que tange à esfera da proteção, a preocupação central a enquadrar os
objetivos políticos e a definir as agendas das negociações multilaterais é a
prevenção da utilização não autorizada ou inapropriada dos conhecimentos
tradicionais por terceiros. Como veremos mais adiante, estas práticas recebem o
nome de biopirataria e, de forma simplificada, podem incluir tanto o uso comercial
não autorizado destes saberes quanto a extensão de direitos de propriedade
intelectual sobre os mesmos que ignorarem o consentimento prévio e informado das
coletividades tradicionais e o compartilhamento dos benefícios provenientes.
Quando interpretada no contexto dos direitos de propriedade intelectual, esta
proteção passa a ser dividida em proteção positiva e proteção defensiva. A proteção
defensiva representa o anseio dos atores engajados nas negociações e nos debates
em controlar a obtenção de monopólios concedidos e protegidos pelos direitos de
patentes e copyrights sobre os saberes tradicionais, propósito este que, acreditam,
poderá se concretizar através de uma reforma no regime internacional da
propriedade intelectual que possibilite a inclusão nos processos de requisição de
patentes da revelação da origem geográfica do saber tradicional, do consentimento
prévio e informado da autoridade responsável e do compartilhamento de benefícios
com as comunidades responsáveis pelos saberes relevantes.
Com relação à proteção positiva, seus proponentes logram evitar que estes
conhecimentos sejam tratados como um conjunto de saberes no domínio público e,
portanto, livremente disponíveis a todos interessados e a todos os fins. Neste
39
sentido, a proteção ofensiva logra reformar o sistema de propriedade intelectual com
o intuito de possibilitar aos detentores dos conhecimentos tradicionais a requisição
ponderada de direitos que comumente incidem sobre os bens intangíveis não
tradicionais, tais como uma patente adaptada ou um direito alternativo resultante de
um sistema sui generis especialmente ajustado às peculiaridades de seus
conhecimentos, inovações e práticas.
Por fim, mas não menos relevante, a promoção dos conhecimentos
tradicionais internaliza as preocupações e os debates relacionados à utilização e ao
desenvolvimento dos sistemas de conhecimentos tradicionais e das inovações neles
alicerçadas e à comercialização ponderada, sustentável e apropriada de algumas
categorias dos conhecimentos tradicionais.
No que concerne à promoção do desenvolvimento, desdobram-se duas
perspectivas. Em primeiro lugar, variadas medidas de promoção consideram que o
conhecimento tradicional possui relevância ímpar para as próprias coletividades que
deles se encarregam, pois parcela significativa dessas comunidades deles depende
para a sua própria sobrevivência. Consequentemente, medidas como estas
procuram fortalecer as bases de conhecimentos tradicionais levando em
consideração a constatação de que os caminhos para o desenvolvimento destas
comunidades devem ser especialmente adaptados às suas necessidades
particulares. Com efeito, projetos especialmente adaptados a esta realidade singular
tem sido elaborados, dentre os quais merecem maior destaque o programa do
Banco Mundial para o conhecimento tradicional
27
e a iniciativa indiana denominada
Honeybee Network.
27
Em 1998, o Departamento do Banco Mundial para a região africana deu início oficial ao programa
intitulado Indigenous Knowledge for Development Program em parceria com outras doze organizações
internacionais. No decorrer de quase dez anos desde o início do programa, variados instrumentos e serviços
foram elaborados com o objetivo declarado de promover o desenvolvimento das comunidades tradicionais,
dos próprios saberes tradicionais e dos países africanos nos quais estas coletividades estão localizadas.
Dentre estas medidas, Nicolas Gorjestani, funcionário do Banco Mundial e divulgador do projeto no
seminário da UNCTAD de 2004, declarou que as mais relevantes constituem a criação de um banco de
dados para mais de 200 práticas indígenas; uma publicação eletrônica mensal denominada IK Notes cujo
intuito é divulgar as experiências e os resultados progressivos do projeto; a criação de um web site em vários
idiomas; o financiamento dos esforços das comunidades contempladas em compartilhar seus saberes através
de contatos diretos e, por fim, o incentivo à concretização de parcerias entre cientistas, juristas e praticantes
de conhecimentos tradicionais na obtenção de medidas de validação científica para estes conhecimentos. No
que concerne aos desafios futuros e presentes que se colocam ao projeto, Gorsjeani ressalta a necessidade de
mais países formularem e implementarem estratégias para a integração de saberes tradicionais, o imperativo
de se elevar a capacidade e o potencial das redes nacionais e regionais de conhecimentos tradicionais, a
promoção da adaptação e do intercâmbio local dos saberes indígenas e a identificação de mecanismos
40
Concebida nos debates como complementar à primeira, uma segunda
perspectiva que se desdobra é a inclusão do conhecimento tradicional nas
estratégias e nos projetos governamentais de desenvolvimento. Para tanto, torna-se
fundamental uma inserção das comunidades tradicionais nos processos de decisão
e implementação de projetos nacionais o que poderá garantir maior adequação
destes projetos às realidades destas comunidades e eliminar possíveis conflitos com
os programas que as tenham como enfoque. Por seu turno, os governos nacionais
poderão contar com as vantagens deste conjunto de saberes no tratamento de
externalidades plurais ao meio ambiente que invariavelmente resultam de macro
empreendimentos governamentais cujos escopos incidem nas esferas do
desenvolvimento, da modernização e da integração regional.
Já, no que tange à comercialização de alguns produtos provenientes dos
saberes tradicionais, as reuniões multilaterais revelam uma postura cautelosa dos
especialistas e das próprias organizações intergovernamentais com relação à
possibilidade deste conjunto de saberes adentrar no comércio local e mundial. Como
bem afirmou Twarog, “de forma geral, o conhecimento tradicional não foi
desenvolvido com objetivos comerciais em mente, mas com o intuito da utilização
local no âmbito da própria comunidade”
28
, daí a constatação de que parcela
significativa deste conjunto de saberes e saber fazer pode não ser apropriada para a
comercialização, particularmente, a sabedoria de significado cultural e espiritual
dificilmente poderá adentrar no mercado e, se isto for estimulado, as conseqüências
poderão ser prejudiciais para as comunidades direta ou indiretamente envolvidas.
Não obstante, outros produtos provenientes da sabedoria tradicional ou
estão no mercado gerando recursos bastante expressivos
29
ou revelam grande
inovadores para a proteção destes conhecimentos por vias que favoreçam o desenvolvimento, a promoção, a
validação e o intercâmbio futuros dos mesmos. Para uma análise pormenorizada do programa ver:
GOJESTANI. Nicolas, “Indigenous Knowledge for Development: Opportunities and Challenges”, In:
TWAROG. Sophia and KAPOOR, Promila (Editors), Protecting and Promoting Traditional Knowledge:
Systems, National Experiences and International Dimensions, New York and Geneva, United Nations
Publication, 2004.
28
TWAROG, Sophia, “Preserving, Protecting and Promoting Traditional Knowledge: National Actions and
International Dimensions”, In: TWAROG. Sophia and KAPOOR, Promila (Editors), Protecting and
Promoting Traditional Knowledge: Systems, National Experiences and International Dimensions, New York
and Geneva, United Nations Publication, 2004, p. 66.
29
Este é o caso, por exemplo, dos artesanatos ou artes e trabalhos manuais. Madhavi Sunder, professor da
Universidade da Califórnia, aponta algumas estimativas numéricas que nos proporcionam uma percepção
razoavelmente clara do tamanho do mercado que estes produtos movimentam tanto no contexto global,
quanto no contexto doméstico dos Estados Unidos, alem de ressaltar os custos dos países em
41
potencial de comercialização. Nestes casos, é fundamental identificar as
comunidades tradicionais que não se opõem à comercialização de produtos
baseados ou derivados do saber tradicional e proceder ao reconhecimento dos
saberes que tenham valor potencial nos mercados, como é o caso da medicina
tradicional
30
.
Por conseguinte, as divergências que apareceram nas negociações
multilaterais sobre as medidas de regulamentação dos conhecimentos tradicionais
surgiram das diferentes interpretações sobre os significados dos termos envolvidos e
das razões que deveriam respaldá-los. Em particular, permanecem visões opostas
acerca da necessidade ou não de uma ação internacional para a regulação dos
saberes tradicionais e do folclore.
Estes desacordos resultaram, em grande medida, de uma multiplicidade de
visões e interesses que convergem para o tema e que são decorrentes da atuação
destacada de muitos países e comunidades ao redor do mundo em analisar a
emergência dos saberes tradicionais como novo tema da agenda global, objetivando
descobrir qual a melhor maneira de tratá-lo nos âmbitos nacional, regional e
internacional.
Na medida em que qualquer sistema de proteção revela-se um instrumento
para a obtenção de certos objetivos, um questionamento fundamental que antecede
as considerações sobre a forma da proteção internacional é justamente a definição
desenvolvimento em razão de participarem marginalmente neste mercado: “To begin with, there is
significant economic value here, although just how much is unclear. Handicrafts alone were estimated at
close to $2 billion in value annually on the export market and $1 billion in the domestic market in 2000. The
UN estimates that developing countries lose about $5 billion in royalties annually from unauthorized use of
traditional knowledge”. SUNDER, Madhavi, "The Invention of Traditional Knowledge" (February 24,
2006). UC Davis Legal Studies Research Paper No. 75, p. 16. Disponível no site da SSRN:
http://ssrn.com/abstract=890657
30
Particularmente na Asia, o mercado calcado na medicina tradicional tem revelado um crescimento
impressionante, consequentemente, ilustrado variados casos de envolvimento de comunidades tradicionais
em todos os elos deste processo. Em muitos destes casos estas coletividades estão envolvidas na fabricação
do produto final, no fornecimento das matérias primas e na venda dos produtos com valor agregado
relativamente alto. O jurista argentino Carlos Correa apresenta uma caracterização bastante esclarecedora
do potencial deste mercado: “Traditional Medicine also plays a significant role in developing countries,
where the demand for herbal medicines has grown in recent years. The world market for herbal medicines
has reached, according to one estimate, US$ 43 billion, with annual growth rates of between 5 and 15%. For
China, the leading country in this field, WHO estimates that TM generated income of about $5billion in
1999 from the international and $ 1 billion from the domestic market. The European market in 1999 was
calculated to be $ 11.9 billion (where Germany had 38%, France 21% and United Kingdom 12%).
CORREA. Carlos. M, Traditional Knowledge and Intellectual Property: Issues and Options Surrounding
the Protection of Traditional Knowledge, Quaker United Nations Office Discussion Paper 18, 2001, p. 3.
42
das razões perante as quais ela deve ser concretizada no Regime Internacional de
Propriedade Intelectual.
Neste sentido, um exame detalhado da documentação direcionada ao
conselho do TRIPs, aos cuidados da Organização Mundial da Propriedade
Intelectual e aos grupos de trabalho da Convenção da Diversidade Biológica nos
últimos 16 anos de negociações revela que as principais razões alegadas para a
proteção dos saberes tradicionais nestes fóruns não se restringem à lógica da
valorização econômica, ou seja, ultrapassam a simples afirmação de que, em razão
de alguns saberes tradicionais encerrarem valor comercial na economia local ou
global, eles devem ser protegidos. O desdobramento desta lógica econômica
restringe e direciona o escopo da proteção à redistribuição dos vultosos lucros
provenientes da biopirataria, ou seja, da bioprospecção executada pelas grandes
corporações da área de biotecnologia. O prolongamento lógico desta interpretação
restritiva é justamente a constatação de que se a prática da biopirataria não estiver
ocorrendo em uma escala suficientemente elevada a fim de justificar uma reforma
legal internacional, não existiriam maiores razões para a obtenção da proteção
internacional aos conhecimentos tradicionais.
Conscientes dos riscos que envolvem uma centralização da proteção nos
atributos unicamente econômicos dos saberes tradicionais, variados países em
desenvolvimento, entre eles o Brasil, sistematizaram 7 justificativas fundamentais
que legitimariam o estabelecimento de um regime global de proteção aos saberes
tradicionais escorado na Organização Mundial do Comércio, na Convenção da
Diversidade Biológica e na Organização Mundial da Propriedade Intelectual. São
elas: a) valor econômico destes conhecimentos; b) equidade; c) segurança
alimentar; e) dimensão cultural dos conhecimentos tradicionais; f) promoção do
desenvolvimento sustentável; g) coerência entre as legislações nacionais e
internacionais; h) combater a prática da biopirataria ou má apropriação dos recursos
genéticos e/ou dos conhecimentos tradicionais associados.
A primeira justificativa relaciona-se ao potencial econômico inerente aos
saberes tradicionais e caracteriza a intenção dos principais atores envolvidos em
adequar a inclusão da temática dos conhecimentos tradicionais na agenda de
negociações da Organização Mundial do Comércio.
43
Conscientes da valorização dos saberes tradicionais como promotores de
desenvolvimento endógeno e das suas progressivas transformações em recursos
valiosos para o comércio internacional, principalmente em razão de se constituírem
em catalisadores de novos produtos e processos relacionados aos setores mais
dinâmicos da economia atual, como o farmacêutico, de cosmético, de agricultura e
de alimentação, os países em desenvolvimento ressaltam ser imperativo o
estabelecimento de condições e procedimentos no regime internacional de
propriedade intelectual que sejam favoráveis à preservação dos bens intangíveis
tradicionais e das condições de vida das populações e comunidades que os
gerenciam e desenvolvem.
Não obstante, seguramente constitui tarefa complexa associar saberes
tradicionais e comércio internacional, uma vez que a própria amplitude e a
complexidade deste conjunto de saberes exige um tratamento flexível, abrangente e
capaz de acomodar os distintos padrões de proteção nacionais. Neste sentido,
convém destacar que existem variadas incertezas com relação ao valor econômico
dos conhecimentos tradicionais. Duas são as razões centrais que nos auxiliam a
compreender estas incertezas.
Primeiramente, quando utilizados por empresas os recursos genéticos e os
saberes tradicionais associados geralmente contribuem para o avanço de um
processo de pesquisa em andamento, o que dificulta uma avaliação precisa de
suas contribuições, pois a própria capacidade do processo gerar valor futuro ainda é
incerta (DRAHOS, 2004.). Em segundo lugar, um corolário provável da bem
sucedida adaptação dos direitos de propriedade intelectual à esfera dos
conhecimentos tradicionais será uma expressiva elevação dos custos destes
conhecimentos para as empresas interessadas. Quando constatamos que seu valor
ainda é incerto, é provável que ocorra diminuição da demanda por estes recursos,
situação que poderá ser agravada se existirem substitutos mais acessíveis a estas
empresas, tais como a química combinatória e a exploração da diversidade biológica
em áreas não regulamentadas. Portanto, o efeito poderá ser justamente o
desestímulo à comercialização de parcela expressiva dos saberes tradicionais.
A segunda justificativa relaciona-se às considerações de equidade e baliza
parcela significativa das propostas para a proteção dos saberes tradicionais. Para
estas propostas, os saberes tradicionais fornecem valores que, em razão do sistema
44
de recompensa atualmente vigente, não são adequadamente reconhecidos e
recompensados. Esta omissão do sistema revela-se ainda mais problemática
quando se constata que o acordo TRIPs obriga os países com comunidades
indígenas e tradicionais a salvaguardarem, através dos direitos de propriedade
intelectual, um extenso conjunto de campos de inovações, sejam eles relacionados à
produtos e processos costumeiros, sejam eles direcionados a áreas
contemporâneas, tais como as variedades de plantas, materiais biológicos, design
de lay out e de softwares. Neste sentido, constituiria responsabilidade dos países
membros da Organização Mundial do Comércio primar pela equidade, reconhecer
legalmente os saberes tradicionais e criar um sistema igualitário para a validade,
aquisição, manutenção e aplicação dos direitos de propriedade intelectual, com a
finalidade de torná-los incapazes de excluir qualquer setor da sociedade.
Um exemplo ilustrativo desta lógica pode ser encontrado no caso dos
recursos genéticos provenientes de plantas. É justo supor que os agricultores
tradicionais utilizam seus saberes tanto na conservação quanto na utilização destes
recursos, e, ao fazê-lo, os preservam e os desenvolvem, uma vez que atuam
decisivamente na seleção e na manipulação das melhores variedades, na
conservação e na troca de sementes e na sustentação da resultante diversidade de
espécimes. Entretanto, as variedades conservadas e desenvolvidas por estes
agricultores são posteriormente coletadas, destinadas à pesquisa e à reprodução e
acabam adentrando nos mercados nacionais e internacionais através das grandes
companhias de sementes. A conseqüência imediata é o contraste entre a
salvaguarda pelos direitos de propriedade intelectual dos produtos obtidos por estas
corporações privadas e a omissão com relação aos esforços igualmente relevantes
conduzidos pelos agricultores tradicionais.
Nesse contexto, como argumentam os países em desenvolvimento, os
agricultores tradicionais não são recompensados pelo aperfeiçoamento e pela
conservação que eles proporcionam ao conjunto dos recursos genéticos
provenientes de plantas, uma vez que as corporações atuantes na área de sementes
e da manipulação genética tanto obtêm acesso livre e não regulamentado a estes
recursos quanto ignoram qualquer forma de compensação posterior ou
compartilhamento de benefícios com estes agricultores. Com efeito, na visão de
45
países como o Brasil, esta lógica da não equidade pode ser aplicada aos demais
casos envolvendo outros bens intangíveis tradicionais.
A justificativa calcada na segurança alimentar também adquire papel central
na argumentação elaborada pelos países em desenvolvimento. Como acima
demonstrado, parcela significativa do saber considerado tradicional incide sobre a
biodiversidade com o intuito de entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la,
retirar suas espécies e acrescentar outras, frequentemente enriquecendo-a. Este
manejo que se estende sobre um conjunto de seres vivos detentor de um valor de
uso e de um valor simbólico, muitas vezes integrado em uma complexa cosmologia,
tem por objetivo, variadas vezes, o desenvolvimento de campos de cultivo
destinados à sustentação destas coletividades tradicionais e à certificação de suas
garantias alimentares. O reconhecimento e a proteção internacional dos
conhecimentos tradicionais, por conseguinte, auxiliariam na manutenção e na
promoção destes saberes imprescindíveis à própria sobrevivência das comunidades
que deles dependem.
A constatação de que os conhecimentos tradicionais podem ser definidos
como o conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e
sobrenatural traz implícita a percepção de que estes conhecimentos, em razão de
suas amplitudes e complexidades, ultrapassam o utilitarismo imediato, ao revelarem
observações e experiências que proporcionam não somente resultados práticos e
imediatamente utilizáveis às comunidades que os desenvolveram, mas igualmente
alicerçam a formação de um agrupamento de representações, símbolos, mitos e
rituais desenvolvidos por estas populações e que lhes fornecem os instrumentos de
interação para com o meio natural. Tem-se aqui, consequentemente, a percepção de
uma dimensão cultural do conhecimento tradicional.
Esta dimensão cultural dos saberes tradicionais recentemente alcançou a
pauta de negociações de um outro fórum multilateral no processo que resultou na
adoção da Conveção Internacional para a Preservação da Herança Cultural
Intangível (International Convention on the Preservation of the Intangible Cultural
Heritage). Considerada um complemento à Convenção de 1972 relacionada à
Proteção da Herança Cultural e Natural Mundial, ela decorreu da conferência
realizada pela UNESCO no período de 29 de Setembro a 18 de Outubro de 2003.
46
O objetivo central desta Convenção é a preservação desta dimensão cultural,
através da extensão da proteção às tradições e expressões orais, incluindo as
linguagens como veículos da herança cultural, artes performáticas, práticas sociais,
rituais e eventos festivos, saberes e práticas direcionados à natureza e ao universo e
a esfera dos artesanatos tradicionais.
Como podemos observar, esta definição bastante ampla e flexível utilizada
pela Convenção da UNESCO agrega mais um significado ao conceito de proteção,
tornando-o mais abrangente, visto que ele igualmente passa a simbolizar a
preservação do conhecimento não associado aos recursos genéticos, uma ação que
demanda medidas interdisciplinares e especializadas que ultrapassam a disciplina
dos direitos de propriedade intelectual.
Um outro significado relevante que tem progressivamente alcançado a esfera
da proteção dos saberes tradicionais se relaciona com a promoção do
desenvolvimento sustentável. Implícito nas preocupações que envolvem esta
justificativa permanece o paradoxo que contrasta o potencial muito elevado destes
saberes na promoção do desenvolvimento local e global com a realidade de seu
desaproveitamento e de seu avançado processo de erosão.
Este paradoxo adquire contornos ainda mais expressivos quando confrontado
com a evidência de que à responsabilidade das coletividades tradicionais pela
descoberta, desenvolvimento e preservação de um agrupamento bastante
expressivo de plantas medicinais, produtos agrícolas e florestais e artesanatos que
atualmente adquirem alto valor econômico no comércio global, contrasta-se a
marginalização destas mesmas comunidades no processo de repartição de
benefícios provenientes desta valorização.
Portanto, se o potencial de desenvolvimento dos saberes tradicionais é
algo concreto na esfera do comércio global, gerando lucros expressivos e
produzindo bens de alto valor agregado e elevada demanda nos países
desenvolvidos, no âmbito local, o potencial dos saberes tradicionais como
promotores de desenvolvimento sustentável e viável ainda permanece, em grande
parte, uma promessa.
A fim de esclarecer a amplitude e ilustrar este potencial de desenvolvimento
local, Anil K Gupta compilou uma lista de campos tecnológicos abertos a inovações
provenientes dos conhecimentos tradicionais. Embora o foco de pesquisa de Gupta
47
seja o contexto interno da Índia, é válido supor que suas conclusões podem ser
estendidas a outros contextos nacionais. Os principais campos compilados são os
seguintes: a) proteção de cultivares; b) produção de cultivares; c) zootecnia; d)
armazenagem de grãos; e) piscicultura; f) criação e domesticação de aves; g)
indústria de couros; h) conservação do solo e da água; i) conservação e manejo de
recursos florestais; j) implementos agrícolas; l) produtos orgânicos; m) variação e
diversidade de sementes e n) indicativos ecológicos.
Recentemente, tanto o Banco Mundial quanto a UNCTAD validaram esta
associação entre desenvolvimento sustentável e saberes tradicionais e direcionaram
esforços ao aperfeiçoamento de medidas capazes de viabilizar esta associação.
Entre as medidas consideradas relevantes para a consecução deste objetivo, a
UNCTAD lista o potencial dos direitos de propriedade intelectual para a promoção do
empoderamento das comunidades e dos indivíduos detentores destes saberes e
para a obtenção da comercialização dos bens tangíveis e intangíveis agregados ao
conjunto dos conhecimentos tradicionais. Ainda, destaca que estes mesmos direitos
poderão engendrar investimentos tanto públicos quanto privados na validação
científica e na subseqüente comercialização dos conhecimentos tradicionais.
Outra justificativa levantada nos espaços de negociações da OMC, da CDB e
da OMPI relaciona-se à necessidade premente de coerência entre as legislações
dos âmbitos nacional e internacional. Neste sentido, o reconhecimento do
conhecimento tradicional, incluindo os direitos dos agricultores, como matéria sujeita
à proteção estaria em conformidade com a obrigação de respeitar, preservar e
manter o conhecimento, as inovações e as práticas das comunidades locais e
indígenas na forma como se encontra no artigo 8 (j) da Convenção da Diversidade
Biológica. Esta justificativa permanece alicerçada na constatação de que a
inexistência de um mecanismo internacional invalida os esforços e as leis nacionais
e regionais que reconhecem os direitos coletivos dos povos indígenas e das
comunidades locais sobre seus conhecimentos tradicionais.
Como até aqui ilustrado, a abrangência do tema dos saberes tradicionais,
aliada ao seu caráter transversal e interdisciplinar, torna-o um objeto de negociação
que exige e concentra múltiplas interações entre dimensões muitas vezes
contraditórias. Esta arquitetura do tema torna compreensível a presença e a
construção de justificativas plurais que, não raro, ignoram as fronteiras de
48
especialização dos fóruns de negociações do Regime Internacional de Propriedade
Intelectual. Consequentemente, como é de se esperar, cada delegação engajada
nestas discussões multilaterais fundamenta sua agenda de argumentação e
justificativas levando em consideração o contexto doméstico do país por ela
representado e ressaltando uma dimensão do problema que a ela seja sensível, o
que, por sua vez, favorece a opção particular por uma ou outra justificativa.
Destarte, quando voltamos nossa atenção para a última justificativa
apresentada, a qual permanece estruturada no paralelo entre a idéia de proteção ao
conhecimento tradicional e a reação à prática da biopirataria, tendemos a concluir
que, em razão da inexistência de uma percepção consensual acerca do que constitui
biopirataria e da flexibilidade e polêmica inerente a este conceito, uma atuação
concertada dos países em desenvolvimento no fórum de negociações com a
presença de argumentos semelhantes e clara definição conceitual dificilmente
ocorreria.
Tal percepção adquire significado quando voltamos nossos olhares para as
reflexões do professor Graham Dutfield, o qual, em artigo recente, sumarizou
algumas ações que são comumente consideradas como atos de biopirataria
relacionada aos saberes tradicionais.
Suas conclusões são interessantes e nos proporcionam uma visão mesmo
que incompleta da multiplicidade de significados que o conceito tem congregado nos
últimos 10 anos. Neste sentido, segundo o autor, constituiriam atos de biopirataria:
a) o uso não autorizado dos saberes tradicionais coletivos, ou seja, compartilhados
por mais de uma comunidade tradicional; b) a utilização não autorizada do
conhecimento tradicional encontrado apenas em um único grupo tradicional; c) o uso
não autorizado destes saberes obtidos através de fraude, engano ou falha em
revelar plenamente o a motivação comercial por traz da aquisição; d) o uso não
autorizado destes conhecimentos quando adquiridos através de uma transação que
objetiva a exploração; e) a utilização não autorizada desta sabedoria sob a premissa
de que toda e qualquer transação constitui inerentemente exploração, ou seja,
qualquer bioprospecção é biopirataria; f) o uso comercial destes saberes quando
descobertos através de uma análise bibliográfica; g) requisição de patente sobre
este conjunto de saber fazer na forma em que ele foi obtido; h) quando uma patente
49
cobre um refinamento do conhecimento relevante; finalmente, i) quando uma patente
cobre uma invenção baseada no saber tradicional e outro conhecimento moderno
31
.
Diante deste quadro caracterizado pela sobreposição de múltiplos
significados ao conceito de biopirataria, e da necessidade dos atores engajados
delimitarem uma esfera de negociação e análise conceitual, esforços expressivos
foram direcionados à formulação de uma definição cuja clareza e precisão fosse
capaz de orientar as negociações no Regime Internacional de Propriedade
Intelectual.
Portanto, buscou-se evitar que, em função do desacordo acerca do
significado e das ações envolvidas na biopirataria, persistissem fortes
desentendimentos nas reuniões multilaterais, mesmo entre os países em
desenvolvimento, sobre como tratar de forma eficaz o problema. Dessa forma,
tornou-se imperativo para os países líderes engajados nos debates do Regime
Internacional de Propriedade Intelectual restringir o escopo das ões congregadas
no termo biopirataria, com a finalidade de proporem uma solução suscetível de se
concretizar através de uma revisão do próprio acordo TRIPs da OMC, da
reorganização dos sistema de patentes proposto pela OMPI e do fortalecimento
legal dos tratados da CDB.
Por conseguinte, no âmbito do conselho do TRIPs, dos grupos de trabalho e
das conferências das partes da CDB e das reuniões da OMPI, na visão da Índia e do
Brasil, o sentido da prática que constitui biopirataria pode ser assim definido:
apropriação do conhecimento tradicional e dos recursos biogenéticos através do
sistema de propriedade intelectual, em especial, por intermédio da exploração de
patentes.
Nestes termos, por um lado, a prática da biopirataria resulta concretizada
quando patentes incorretas são disponibilizadas, ou seja, em situações nas quais
patentes são concedidas a invenções que não constituem novidade e que não
respeitam o próprio critério de inventividade, visto que foram baseadas nos saberes
tradicionais que permanecem em domínio público.
Já, em segundo lugar, a prática pode ocorrer mesmo em situações nas quais
patentes que protegem inovações calcadas em saberes tradicionais e/ou recursos
31
DUTFIELD, Graham, Protecting Traditional Knowledge: Pathways to the Future, International Centre for
Trade and Sustainable Development ICTSD, Draft Paper, April 2006. Disponível no site:
www.iprsonline.org
50
biogenéticos são concedidas em conformidade com as legislações nacionais de
alguns países. Neste caso, pode-se afirmar que a prática constitui biopirataria nas
seguintes condições: a) quando os critérios para o patenteamento são
demasiadamente reduzidos, o que favorece a extensão dos direitos de propriedade
industrial para produtos que são obviamente meras descobertas de material genético
e saber tradicional associado
32
; b) quando a patente representa uma invenção
genuína, o que pode ocorrer nos casos em que a substância ou a forma de vida foi
modificada, teve algo adicionado ou subtraído, resultou mesclada com alguma coisa
para se criar um efeito anteriormente desconhecido e potencializado, ou mesmo foi
modificada totalmente a ponto de ser irreconhecível, mas cuja comercialização
ignora os preceitos da Convenção da Diversidade Biológica. Em outros termos, não
reconhece e divulga a declaração de origem do material que fundamentou o
processo, o consentimento prévio e informado da coletividade que disponibilizou o
conhecimento a ele associado e a repartição justa e eqüitativa de benefícios
provenientes.
Consequentemente, para países como o Brasil e a Índia, a prática da
biopirataria assim definida permanece fundamentada em duas insuficiências centrais
no sistema internacional de patentes. A primeira deficiência refere-se à definição do
conceito de arte prévia (prior art) que é utilizado para a verificação do critério de
novidade de uma patente. Em termos bastante simples, arte prévia significa todo o
conhecimento em domínio público anterior à data de prioridade que pode ser
relevante na definição do critério de novidade ou não obviedade de uma invenção. O
problema ocorre essencialmente em função das incertezas que envolvem o que
constitui critério de novidade e de inventividade no acordo TRIPs. Em conseqüência,
os estados membros possuem liberdade suficiente para que eles mesmos definam
estes critérios de acordo com suas legislações nacionais, legislações que, como no
caso dos Estados Unidos, não integram na esfera da arte prévia os saberes
tradicionais transmitidos oralmente e inseridos no domínio público de outros países.
32
Como podemos entender a gica no sistema de propriedade intelectual que concede proteção patentária a
produtos que, a despeito de constituirem obviamente descobertas são tratados como se fossem invenções? A
elucidação relaciona-se à permanencia nas legislações de patentes dos Estados Unidos, da Europa e de
outros países da possibilidade do interessado obter a proteção em razão de ter realizado uma extração de algo
encontrado na natureza, tendo torná-lo acessível, pela primeira vez, à utilização industrial. Ainda, é possível
constatar que os processos de exame de patentes não são tão minuciosos como seria desejável, pois ocorre
escassez de mão de obra qualificada até mesmo nos escritórios de propriedade intelectual dos Estados
Unidos (Dutfield, Graham, 2004).
51
Esta primeira deficiência nos auxilia a entender a segunda falha do sistema
de patentes que teria papel ativo na sustentação da prática da biopirataria. Trata-se,
em termos gerais, da natureza da informação na arte prévia disponível aos
escritórios de patentes. Com efeito, os países que procuram obstar a biopirataria têm
argumentado que os casos de patentes adquiridas erroneamente ilustram que os
saberes tradicionais não são adequadamente conhecidos e documentados pelos
profissionais do escritório de patentes, pois ou o conhecimento tradicional existe
somente em formato oral ou permanece documentado em linguagens não acessíveis
aos administradores destes escritórios.
Em suma, no âmbito do regime internacional de propriedade intelectual,
argumentam o Brasil e a Índia, a maior parte das violações que fundamentam a
prática da biopirataria procuram burlar o regime mediante a utilização de medidas de
“área cinzenta”, aquelas que, mesmo em desacordo com os princípios gerais do
regime, não são explicitamente reguladas ou proscritas (principalmente a falta de
clareza com relação aos critérios de inventividade e não obviedade), numa possível
tentativa de evitar o confronto direto com as regras institucionalizadas e preservar
uma aparência de legitimidade.
Estratégia esta que foi bem assinalada pelo professor Graham Dutfield no
seguinte parágrafo:
“Um extrato ou mistura de extratos de planta ou animal, de que um
grupo indígena conhece uma característica benéfica, não pode ser patenteado
por não ser uma novidade. Entretanto, a façanha de ser o primeiro a explicar a
eficácia do extrato por meio de alguns testes, a descrever seu modo de ação na
linguagem da Química, ou mesmo a simplesmente fazer uma modesta
modificação na mistura, parece suficiente, em algumas jurisdições, para merecer
o prêmio de uma patente. É comum essas patentes não fazerem referência
alguma ao conhecimento tradicional relevante (...) ou simplesmente o
mencionarem superficialmente como se fosse de pouca importância(...).”
E continua:
52
“É decepcionante ver que o setor de negócios geralmente não
reconhece a seriedade do problema, a não ser para lançar declarações públicas
ocasionais, O fato de algumas empresas serem atacadas mesmo quando tentam
sinceramente fazer a coisa certa, não desculpa sua postura passiva, ao continuar
a abusar do sistema de patentes, procurando – muito frequentemente com
sucesso patentear o impatenteável e estendendo seus monopólios das
patentes de drogas lucrativas por períodos às vezes muito mais longos do que o
razoável.”
33
Com efeito, esta possibilidade dos setores interessados tangenciarem,
silenciarem e deslegitimarem o problema da biopirataria não permanece alicerçada
apenas no domínio e no controle dos desvios e dos hiatos do sistema internacional
de propriedade intelectual, mas igualmente em outras questões implícitas que
transformam a problemática em um objeto de discussão demasiadamente polêmico,
dificultando a negociação diplomática e a obtenção de resultados pelos países em
desenvolvimento, a despeito dos esforços no sentido de delimitar os limites e os
significados do conceito.
Assim, por um lado, uma das variáveis centrais que respalda a imprecisão do
conceito e dificulta a cooperação multilateral é justamente a o compreensão do
sistema de patentes por alguns atores e/ou interessados envolvidos nos debates
sobre este problema. Em particular, a retórica que envolve a biopirataria congrega
incompreensões, desconhecimentos e omissões acerca destas áreas cinzentas do
sistema de propriedade intelectual, o que proporciona à indústria de biotecnologia e
a países como os Estados Unidos e o Japão argumentos de defesa consistentes nas
negociações.
Um exemplo deste tipo de má compreensão é a afirmação equivocada de
que a concessão de uma patente sobre um recurso genético ocasiona
inevitavelmente uma restrição do acesso ao produto patenteado na sua forma
natural no país de origem. Como visto, um dos princípios centrais que alicerçam os
direitos de propriedade intelectual é justamente a proibição do patenteamento de
33
DUTFIELD, Graham, “Repartindo Benefícios da Biodiversidade: Qual o Papel do Sistema de Patentes?”,
in: PLATIAU. Ana Flávia Barros e VARELLA. Marcelo dias (Organizadores), Diversidade Biológica e
Conhecimentos Tradicionais, Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2005, p. 78.
53
seres vivos na forma como se encontram na natureza. Ainda, é demasiado difícil
estabelecer uma relação de causa e efeito entre que a concessão de uma patente e
a restrição do acesso ao produto natural no país de origem.
Por outro lado, até o momento, permanece uma enorme divergência acerca
da existência ou não de uma quantidade expressiva de casos concretos que
poderiam corroborar, justificar e elucidar a magnitude dos problemas e dos valores
congregados na prática da biopirataria. Tal divergência adquire significado quando
constatamos que parcela significativa destes casos apresentados é imprecisa e que
estas imprecisões fundamentam alegações e afirmações de que o problema assumiu
uma dimensão equivocada, ou mesmo que os raros casos existentes representam
exceções excepcionais, inerentes a qualquer sistema, seja ele relacionado aos
direitos de propriedade intelectual ou não
34
.
Um observador apressado poderia concluir que a escassez de casos
concretos efetivamente revelaria a face equivocada e problemática da retórica da
biopirataria. Não obstante, um exame mais ponderado tende a indicar que este
número restrito de casos é resultado direto das inúmeras dificuldades inerentes às
atividades de rastreamento e levantamento de casos, e não conseqüência da
inexistência dos mesmos. Quando associamos a constatação de que, em muitos
casos, os pesquisadores e as instituições responsáveis por este rastreamento têm,
necessariamente, que consultar o sistema de patentes ou as legislações nacionais
para a obtenção dos dados precisos, com a revelação de que estes sistemas
regulatórios nacionais e internacionais ainda não se adequam a este tipo de
consulta, em muitos contextos nem sequer existem, concluímos ser inevitável a
permanência de alegações como as acima sublinhadas.
Dentre estas dificuldades que envolvem os processos de rastreamento e
levantamento, convém atentarmos para as mais relevantes e ilustrativas. Quando
confrontado com a complexa tarefa de revelar casos de patentes problematicamente
concedidas, o pesquisador não tem como, por exemplo, determinar a data exata de
34
Um exemplo eloquente desta afirmação pode ser encontrado no parágrafo a seguir do professor Jim Chen:
“I come not to praise the biopiracy narrative, but to bury it. Most allegations of biopiracy are so thoroughly
riddled with inconsistencies and outright lies that the entire genre, pending further clarification, must be
consigned to the realm of “rural” legend. Grace has no patent on neem-derived products in India, and it is
not clear that the Grace patent, granted under American law, will have any negative economic or social
effect in India.” CHEN. Jim, “There’s No Such Thing As Biopiracy… And It’s A Good Thing Too”,
McGeorge Law Review, Vol. 36, 2004, p. 5.
54
acesso ou aquisição do material biológico ou do saber tradicional associado, pois a
documentação patentária disponível explicita somente a data de aplicação da
propriedade industrial. No caso da biopirataria, uma análise precisa da data é
imprescindível, pois na grande maioria dos países as regras de acesso foram
revisadas após a assinatura e a ratificação da Convenção da Diversidade Biológica.
Outro problema bastante relevante se refere à inexistência de mecanismos
precisos para a verificação do país ou indicação geográfica perante os quais o
material foi retirado. Em muitos casos, o registro escrito que detalha a aquisição
somente descreve a origem como “africano”, ou asiático”, por exemplo. Um
problema certamente complexo, pois não raro verificamos que muitos saberes
tradicionais ou materiais biológicos são facilmente encontrados em diversas regiões
vizinhas sob jurisdições distintas.
De forma semelhante, não é possível, no contexto atual, rastrear quando
autoridades nacionais, representantes indígenas ou comunidades locais
proporcionaram o consentimento prévio informado para o acesso, visto que ou
inexistem registros escritos sobre os mesmos ou o acesso a essa documentação é
restrito. De forma semelhante, resulta complicado descobrir se alguma repartição de
benefícios foi efetivamente concluída, pois inexiste um registro público centralizado
de acordos de acesso e compartilhamento de benefícios para uma consulta de caso
a caso.
Ainda, uma outra questão importante é a impossibilidade dos sistemas
fornecerem informações precisas sobre a natureza dos atores centrais engajados no
processo, ou seja, muitas vezes não é possível estabelecer uma distinção segura
entre o pesquisador desinteressado e o traficante de espécimes de fauna e flora, por
exemplo.
A despeito de todas essas adversidades, os últimos dez anos evidenciaram a
emergência progressiva de um número expressivo de concessões de patentes
problemáticas para inovações da indústria de biotecnologia. Em particular, variadas
organizações não governamentais e alguns pesquisadores têm organizado estudos
de casos precisos e providenciado relatórios bem fundamentados com listagens
sobre prováveis atos e processos que seriam ilustrativos da prática de biopirataria ou
apropriação de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados. O
55
exame de alguns desses casos concretos recentes poderá nos proporcionar,
portanto, uma compreensão mais rigorosa do problema em destaque.
Como observado anteriormente, subsiste certa especulação com relação aos
indícios de que coletividades tradicionais possam ser prejudicadas por patentes
problemáticas e por atos de biopirataria. Todavia, no caso particular da patente
denominada Enola, concedida nos Estados Unidos em 1999 para uma variedade de
feijão amarelo
35
, à concessão da proteção por direito de propriedade intelectual
seguiram efeitos prejudiciais a agricultores mexicanos que tradicionalmente cultivam
feijões semelhantes à variedade enola.
Mas como podemos compreender uma sucessão de eventos como essa?
Uma primeira resposta satisfatória é que Larry Proctor, proprietário desta patente,
requisitou uma salvaguarda demasiadamente ampla de um produto que não
apresenta características peculiares, ou seja, é praticamente impossível estabelecer
uma diferenciação minimamente cuidadosa entre as muitas variedades de feijões
mexicanos e a espécie protegida na legislação norte-americana.
A segunda informação importante é que Larry Proctor, amparado pela
legislação patentaria, reivindicou seus direitos sobre a patente enola de forma
radical, decidindo processar uma empresa intitulada Tutuli que importava do xico,
desde 1994, variedades mexicanas de feijão amarelo. Consequentemente, com as
restrições impostas pela fiscalização às atividades da Tutuli, esta empresa teve
problemas financeiros e interrompeu a compra dos feijões produzidos pelos
agricultores mexicanos.
36
Em raras ocasiões, as próprias aplicações de patentes fazem menções
explícitas à apropriação dos conhecimentos tradicionais. Este é o caso, por exemplo,
de uma patente concedida nos Estados Unidos sobre a utilização de extratos da
planta medicinal norte-africana Artemisia judaica para o tratamento de diabetes.
37
Esta patente, requisitada pela empresa inglesa Phytopharm, assim apresenta a
descrição do uso tradicional:
“Artemisia judaica is used in Libyan traditional medicine as an infusion for
the treatment of "wasting disease", almost certain diahetes mellitus. Little scientific
35
US patent number 5.894.079, issued 13 April 1999.
36
ETC Group, “Proctor’s Gamble”, News Release, 17/12/2001.
37
US patent number 6.350.487, issued 26 February 2002.
56
work has been done on this herb although various Artemisia species are known to
have some pharmacological activity.”
38
Embora resulte difícil precisarmos o grau exato de contribuição do saber
tradicional para a alegada invenção, não restam dúvidas quanto à existência efetiva
de contribuição, mas hesitações persistem com relação à imprudência do US Patent
Office na concessão do direito de propriedade intelectual.
Convém ponderar que o pesquisador Jay MacGown, em relatório recente,
pesquisou com maior acuidade este caso particular e, a despeito dos esforços, não
encontrou indícios de compartilhamento de benefícios com a Libia e tampouco sinais
sobre a existência de uma política oficial desta empresa para com os conhecimentos
tradicionais
39
.
4.2. Conclusão
O debate internacional que envolve a regulamentação do acesso aos recursos
biogenéticos e aos conhecimentos a eles associados e o compartilhamento de
benefícios com as coletividades relevantes contrasta a sua existência recente com a
complexidade de sua arquitetura multifacetada.
Como observado no decorrer deste capítulo, o tema em questão revela-se um
problema multifacetado envolvendo não apenas desacordos entre países com
interesses e objetivos diametralmente opostos como igualmente desentendimentos
no interior destes mesmos países com relação à organização da problemática e a
formulação de uma posição consistente no tabuleiro de negociações bilaterais e
multilaterais.
Todavia, mesmo no interior de um contexto temático tão plural como este,
uma questão tem adquirido cada vez mais atenção e concentrado progressivamente
maior energia diplomática dos agentes interessados: a problemática da biopirataria.
38
A descrição integral desta patente pode ser obtida no site: http://www.patentstorm.us/patents/6350478-
description.html
39
MCGOWN. Jay, Out of Africa: Mysteries of Access and Benefit Sharing, Edmonds Institute in
cooperation with African Centre for Biosafety, 2006. Disponível no site: http://www.edmonds-institute.org/
57
Neste sentido, a despeito dos rios esforços concatenados com o intuito de
deslegitimar este problema, as preocupações fundamentais elencadas até o
momento revelam que o tema levanta uma série de questionamentos importantes
que incidem sobre o sistema ocidental de propriedade intelectual e de ativos
intangíveis.
Em particular, permanece no cerne destes questionamentos uma interrogação
primordial para todos os envolvidos: no que se constituiria um equilíbrio justo e
eqüitativo entre a imprescindível promoção da inovação e a imperativa proteção das
sociedades que irão arcar com os custos dos monopólios fornecidos pelos Estados
nas formas de direitos de propriedade intelectual.
Para os países em desenvolvimento e para as sociedades tradicionais, um
equilíbrio desejável somente poderá ser concretizado se as concessões de patentes
e outros direitos de propriedade intelectual revelarem-se flexíveis a ponto de
internalizarem as políticas e os objetivos da proteção, da promoção e da preservação
da biodiversidade e da sociodiversidade a ela relacionada.
Construir esta flexibilidade em um regime internacional caracterizado por leis,
normas e regras cada vez mais fortes, inflexíveis e atinentes às orientações do
mundo empresarial e do mercado constituirá, por conseguinte, o objetivo central de
países como o Brasil e Índia.
Nos próximos capítulos, veremos como o Brasil, a Índia e outros países em
desenvolvimento organizaram seus esforços com o intuito de administrar esta
complexa tarefa em um contexto amplamente desfavorável aos seus interesses e
objetivos.
58
59
CAPÍTULO 4
A POSIÇÃO DO BRASIL NAS NEGOCIAÇÕES DO REGIME
INTERNACIONAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL.
O retrato deste debate internacional, caracterizado pelo desentendimento
entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento com relação a estes pontos
controversos, esboçado em seus traços mais significativos nas páginas acima,
conduz a algumas indagações fundamentais. Qual teria sido a resposta do Brasil em
termos de discurso diplomático e de elaboração de política externa diante de tais
desdobramentos?
Para que possamos fundamentar uma resposta adequada a esta indagação,
dois princípios passam a despontar como norteadores da exposição. O primeiro
procura evidenciar alguns traços gerais da política externa brasileira nos governos
de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva que se revelem capazes
de esclarecer as posições adotadas pelo Brasil perante a problemática em relevo. O
segundo concentra a atenção sobre a atuação do Brasil e dos demais países
megadiversos em relação às questões técnicas e argumentativas levantadas no
fórum da TRIPs na OMC, no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica e nos
fóruns da Organização Mundial de Propriedade Intelectual envolvendo as
considerações acerca da proteção, da proteção e da preservação dos saberes
tradicionais.
A estratégia da diplomacia brasileira perante as negociações na OMC e na
OMPI adquire maior clareza se analisada em paralelo com as diretrizes diplomáticas
gerais salientadas pelos representantes oficiais brasileiros em seus discursos
públicos. Por conseguinte, para que possamos compreender as posições do Brasil
nos espaços multilaterais do Regime Internacional de Propriedade Intelectual, torna-
se imperativo contemplar alguns importantes elementos da condução diplomática
pátria.
Neste sentido, em primeiro lugar, convém ressaltar que observamos a
manutenção, no governo Lula, das linhas gerais da política externa preconizada por
Fernando Henrique Cardoso com relação à problemática do acesso aos recursos
60
genéticos e aos saberes tradicionais e do compartilhamento de benefícios oriundos
da comercialização dos produtos resultantes.
Com efeito, os indícios levantados até o momento permitem supor que os
formuladores de política externa de ambos os governos interpretaram as principais
divergências acerca do tema no seio do regime internacional de propriedade
intelectual a partir da ótica do conflito Norte/Sul, em outras palavras, da oposição
entre países desenvolvidos (produtores de propriedade intelectual e consumidores
de recursos biogenéticos e saberes tradicionais) e países em desenvolvimento
(consumidores de propriedade intelectual e provedores de conhecimentos
tradicionais e recursos biogenéticos).
Em segundo lugar, é lícito supor que estes governos conceberam a política
externa como instrumento de apoio ao projeto de desenvolvimento social e
econômico do país. Esta posição está explicitada com clareza no discurso de posse
do presidente Lula:
“No meu Governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada por uma
perspectiva humanista e será, antes de tudo, um instrumento do
desenvolvimento nacional. Por meio do comércio exterior, da capacitação de
tecnologias avançadas, e da busca de investimentos produtivos, o
relacionamento externo do Brasil deverá contribuir para a melhoria das
condições de vida da mulher e do homem brasileiros, elevando os níveis de
renda e gerando empregos dignos.
40
.
Em terceiro lugar, convém salientar que os processos de estruturação e de
consolidação deste paradigma de desenvolvimento congrega os conhecimentos
tradicionais, pois teriam papel destacado na promoção do desenvolvimento
sustentável, desde que respeitados, reconhecidos, protegidos e promovidos nos
âmbitos nacional e internacional
A relação entre desenvolvimento sustentável, recursos biogenéticos e
conhecimentos tradicionais pode ser contemplada nos discursos elaborados em
40
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na Sessão de Posse, no Congresso
Nacional. Brasilia, Brasil, 01/01/2003.
61
razão das reuniões que integram as conferências das partes da CDB. O parágrafo a
seguir é exemplar nesse sentido:
“O que a COP-8 está dizendo é que a biodiversidade não é a fronteira
devoluta do século XXI. Sua exploração adequada, ao contrário, é o grande rumo
para a construção de novos paradigmas de progresso, que vão enlaçar, de uma
vez por todas, o cálculo econômico à qualidade de vida e ao equilíbrio ambiental.
A luta pela adoção de um regime internacional de repartição dos benefícios, que
resultam do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais
associados, é parte desse percurso.”
41
.
Em quarto lugar, vale ressaltar que persiste a valorização dos fóruns
multilaterais como espaços privilegiados de negociações e de obtenções de
resultados e, principalmente, como espaços capazes de contrapor as assimetrias
que inevitavelmente incidem sobre os tratados e acordos bilaterais.
Nestes termos, é válido afirmar que a valorização dos fóruns multilaterais
fundamenta uma das diretrizes mais consistentes e permanentes da política externa
brasileira. A manutenção desta orientação no decorrer dos primeiros anos do
governo Lula resulta salientada em variados parágrafos do discurso brasileiro
perante as Nações Unidas no ano de 2004, dentre os quais encerra maior destaque
o seguinte:
“Reitero o que disse no ano passado desta Tribuna: uma ordem
internacional fundada no multilateralismo é a única capaz de promover a paz e o
desenvolvimento sustentável das nações. Ela deve assentar-se sobre o diálogo
construtivo entre diferentes culturas e visões de mundo. Nenhum organismo
pode substituir as Nações Unidas na missão de assegurar ao mundo
convergência em torno de objetivos comuns.”
42
.
41
Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura do segmento de alto nível da Oitava
Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 8). Curitiba, Paraná, 27/03/2006.
42
Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na 59ª Assembléia-Geral da ONU. Nova
York, EUA, 21/09/2004.
62
Finalmente, em quinto lugar, fundamentar e consolidar parceiras consistentes
com sócios estratégicos privilegiados, cujos interesses sejam atinentes aos
interesses brasileiros, e que possam fortalecer a posição brasileira nos fóruns
multilaterais, igualmente constitui diretriz almejada.
No caso particular das negociações envolvendo a reformulação do Acordo
TRIPs em conformidade com a CDB, a reorientação do Regime Internacional de
Propriedade Intelectual e a estruturação de um Regime internacional capaz de
proteger, preservar e promover os saberes tradicionais o Brasil tem atuado em
conjunto com a Índia, com os Países Nórdicos
43
, com a China, com a África do Sul,
com a Argentina, com vários países africanos e com diversos países latino
americanos, elaborando documentos coletivos assinados em união com este países
e desenvolvendo grupos específicos de negociação.
Neste sentido, particularmente relevante é a cooperação no âmbito regional
da Bacia Amazônica, visto que os recursos destas regiões e os conhecimentos
tradicionais a eles associados são fronteiriços e demandam uniformidade de
tratamento nos âmbitos regional e internacional. A percepção oficial desta
aproximação ganha caráter concreto nas palavras a seguir:
“A OTCA começa a afirmar-se como o mais importante instrumento de
aproximação entre os países da bacia amazônica. A nossa união nos fortalece e
reforça a soberania individual de cada um dos nossos países. A integração não é
contraditória com a soberania, muito pelo contrário, ela será um reforço do
exercício, em alguns casos conjunto, e sempre em colaboração uns com os
outros, da nossa soberania. A valorização e o desenvolvimento sustentável da
Amazônia são sem dúvida a melhor forma de proteção dos nossos interesses.
Será também a forma de responder às expressões, por vezes equivocadas, que
ouvimos de vários quadrantes do mundo sobre a questão da adequação e do
manejo adequado desses recursos.”
44
43
Os países nórdicos compreendem uma região ao norte da Europa, a região nórdica, composta por
Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca e Islândia.
44
Discurso do Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, na Cerimônia de Abertura da
Primeira Oficina de Trabalho das Comissões Nacionais Permanentes dos Países Membros da Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica. Brasília, 01/07/2004.
63
Este discurso denunciador de uma ordem mundial injusta para os países em
desenvolvimento, em especial no que concerne à problemática do acesso aos
recursos biogenéticos e aos saberes tradicionais associados, e as diretrizes de
orientação diplomática verificadas refletem os desafios e as dificuldades que se
colocam para a diplomacia brasileira traduzir suas posições em resultados
favoráveis.
Esta escassez de poder de barganha, por sua vez, é causada pela própria
complexidade da problemática, na medida em que o tratamento inovador destes
temas envolve uma pluralidade de atores influentes com interesses divergentes e
demanda atuação concertada em um contexto de interações entre instituições e
regimes internacionais.
Com efeito, acreditamos que, talvez, a maior dificuldade com a qual se
depara o ator interessado em estudar e negociar a problemática internacional dos
recursos biogenéticos e dos conhecimentos tradicionais associados está ligada à
constatação de que as negociações e os debates a ela relacionados não estão
dissociados das discussões e negociações atinentes a uma série de outros temas
debatidos globalmente, tais como os temas da produtividade agrícola, da diversidade
biológica, do patrimônio cultural da humanidade, da segurança acerca da
alimentação, dos direitos humanos, da sustentabilidade ecológica, do comércio
internacional, da saúde pública, da pesquisa científica, do desenvolvimento
sustentável e dos direitos de propriedade intelectual.
Esta constatação adquire significado quando observamos que o número, os
níveis de detalhes e os temas sujeitos aos acordos cooperativos internacionais
cresceram exponencialmente nas últimas décadas. Por sua vez, a emergência
destes novos acordos e tratados elevou as densidades dos regimes internacionais
existentes, pois eles passam a abarcar estes novos conjuntos de prescrições e
regulamentações que, muitas vezes, não estão diretamente relacionados aos seus
âmbitos de especialização.
Consequentemente, como esse processo não é ordenado, verificamos uma
proliferação de conexões e interações entre acordos distintos, administrados por
organizações internacionais diferentes, que tratam de temas idênticos. Como o
sistema internacional não pode estabelecer uma clara hierarquia entre estes distintos
conjuntos normativos (recordemos que inexiste no sistema internacional uma
64
instituição com autoridade para ordenar e hierarquizar normas e regras), suas
conexões e relações favorecem a persistência de conflitos entre suas prescrições.
A questão internacional que pesquisamos e que os formuladores de política
externa pátria negociam (controle do acesso aos recursos genéticos e/ou aos
conhecimentos tradicionais a eles associados ou não e repartição de benefícios por
intermédio dos direitos de propriedade intelectual) ilustra claramente este fenômeno.
Destarte, a estrutura institucional internacional desta problemática caracteriza-
se pela sobreposição de acordos e processos legais que são criados e mantidos em
distintas organizações intergovernamentais por diferentes atores. Um quadro deste
complexo tabuleiro de negociações internacionais pode ser visualizado na figura
abaixo:
Tal quadro de complexidade fortaleceu o engajamento do Brasil e dos demais
países em desenvolvimento nas discussões da OMPI, da OMC e da CDB, na
medida em que uma eventual reformulação ou revisão do ordenamento jurídico do
acordo TRIPs em conformidade com a estrutura legal da CDB e das demais
legislações internacionais administradas pela OMPI e que tratam dos direitos de
propriedade intelectual poderá proporcionar um alicerce seguro contra as atividades
CDB
FAO
OMPI
UNESCO
OMS
OMC
Recursos
Genéticos
Conhecimentos
Tradicionais
UNCTAD
65
de biopirataria e favorecer uma melhor divisão de recursos através de um tratado
vinculante realmente efetivo.
A razão deste engajamento privilegiado no Conselho do TRIPs e nos Comitês
da OMPI está estruturada em três observações centrais. Em primeiro lugar, embora
o direito internacional econômico seja marcado por um conjunto de regras sob a
égide de três organizações internacionais (Banco Mundial, FMI e OMC) e constitua
sistema normativo com lógica própria, autonomia e supremacia perante os demais
sistemas normativos globais, convêm afirmar a existência de sinais que indicam a
sua possível flexibilização. Não somente a sua flexibilização, mas a possibilidade
deste forte e dominante sistema normativo favorecer, por exemplo, a eficácia de
determinados acordos ambientais.
E aqui convém destacar um relatório apresentado no final de 2006 por
Thomas Gehring e Sebastian Oberthur, representantes do comitê científico do
projeto Institutional Dimensions of Global Environmental Change (IDGEC), o qual
constatou que diversos estudos empíricos conduzidos pelo projeto levam à
conclusão de que as interações entre a Organização Mundial do Comércio e alguns
acordos ambientais multilaterais (MEAs na sigla em inglês) favorecem mais a
sinergia do que o conflito entre as distintas lógicas normativas ambientais e
comerciais. Voltemos nossos olhares às palavras dos próprios autores:
“Overall, these results suggest that the interaction between the WTO and
MEAs is more balanced than some early analyses might have suggested. A
growing number of studies during the past decade have highlighted the
achievements of MEAs in shaping the balance between trade and environment.
The emerging picture is one of an increasingly institutionalized and thus
recognize division of competences and labor between MEAs and the WTO.”
45
Em segundo lugar, as conversações na OMC e na OMPI incluem
necessariamente os Estados Unidos, um país central nas negociações que, ao
desprezar e rejeitar as regras, normas e princípios acordados nos demais regimes
internacionais que tratam de questões referentes aos recursos genéticos e saberes
45
GEHRING. Thomas and OBERTHUR. Sebastian, Interplay: Exploring Institutional Interaction, Keynote
Paper for the IDGEC Synthesis Conference, December 06 –December 09, Bali, disponível no site:
http://fiesta.bren.ucsb.edu/~idgec/abstracts.php
66
tradicionais associados, podem usufruir de liberdade suficiente para pressionar os
países em desenvolvimento na adoção de diretrizes do acordo TRIPs, dos Tratados
sobre Leis de Patentes e dos acordos bilaterais sobre direitos de propriedade
intelectual, mais conhecidos como TRIPs-plus.
Em terceiro lugar, a própria abrangência da TRIPs e seu forte caráter de
positivação, alem do acúmulo de lógicas distintas entre seu conjunto normativo e os
demais conjuntos que tratam do regime de acesso aos recursos genéticos e aos
saberes associados, incluída aqui a lógica da CDB, tornam a negociação no âmbito
da OMC imperativa e urgente, pois pouco valor terão os demais tratados se não
tiveram respaldo na legislação da OMC. Portanto, caso não ocorra sinergia entre as
soluções apontadas nos distintos fóruns de negociação, o acesso não controlado
acaba por submeter o acesso informado.
Já, no que concerne à energia diplomática destinada às negociações da
CDB, a razão central repousa no fato de que a Convenção constitui uma
Organização relativamente flexível e mais favorável aos objetivos e interesses dos
países em desenvolvimento do que a OMPI e a OMC. Constatação esta que,
esperamos, poderá ser compreendida com mais profundidade no decorrer do
Capítulo sobre as Negociações na Convenção da Diversidade Biológica.
67
CAPÍTULO 5
AS NEGOCIAÇÕES NA CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE BIOLÓGICA.
5.1. Introdução
O equilíbrio entre biodiversidade e sociodiversidade, traço distintivo das
regiões que compreendem comunidades tradicionais, encerrou transformações
plurais ao longo do tempo. Sejam decorrentes de fenômenos naturais, sejam
resultantes de intervenções deliberadas, tais alterações ocasionaram efeitos muitas
vezes prejudiciais às populações tradicionais
46
presentes e passadas que têm
ocupado estas regiões desde tempos imemoriais. Entretanto, em período recente,
devido às características do mundo globalizado, a predação e a erosão da
biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais têm se concretizado de forma
potencializada e, nessa direção, agravado efeitos deletérios que incidem diretamente
nestas coletividades.
Tais constatações favorecem uma análise centrada nas atuais discussões da
Convenção da Diversidade Biológica que possuem por objetos privilegiados a
regulamentação do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais
a elas associados.
Com efeito, neste âmbito de negociações em particular, dois temas precípuos
congregam estas discussões atuais: a) a problemática da biopirataria, traduzida no
esforço diplomático compreendido pelos países em desenvolvimento no sentido de
obstar a má apropriação dos recursos genéticos e dos saberes tradicionais
associados por intermédio do sistema internacional de propriedade intelectual; b) a
criação de um conjunto de mecanismos, instrumentos e aparatos legais capazes de
promover, preservar e proteger os saberes, as práticas e as inovações das
comunidades tradicionais.
Esperamos que esta análise nos possibilite avaliar em que medida, em
tempos recentes, seja em razão de mudanças no cenário global e regional, seja em
68
razão de transformações internas aos Estados que compartilham estas regiões, este
padrão de alteridade com relação às coletividades tradicionais pode iniciar sua
ruptura, cedendo espaço a um novo paradigma que, a despeito de arraigadas
resistências e interesses contrários, aparenta principiar a sua consolidação.
Por fim, com o intuito de contribuir com estas discussões, o capítulo resulta
dividido em 3 partes. A primeira explora o contexto de negociações que antecedeu a
criação e a assinatura da Convenção da Diversidade Biológica e, ainda, apresenta
uma caracterização sumária desta Organização e de seu caráter inovador.
A segunda e mais substantiva procura interpretar o posicionamento
diplomático brasileiro perante estes temas no fórum de negociações das
Conferências das Partes da Convenção da Diversidade Biológica e das Reuniões
dos Grupos de Trabalho sobre determinadas questões específicas que também
respondiam ao secretariado executivo da CDB. Ao final, procura-se extrair
conclusões preliminares sobre os desafios e as potencialidades que se revelam aos
principais atores envolvidos com estas questões.
6.2. As Negociações que antecederam a criação da Convenção da Diversidade
Biológica.
Negociada sob a chancela do Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente, UN Environment Programme (UNEP), a Convenção da Diversidade
Biológica foi adotada em 1992 e entrou em vigor em 1993. Estruturado com o intuito
de abarcar variadas e complexas preocupações referentes à conservação e ao uso
sustentável da biodiversidade, o longo texto da Convenção que formataria as
negociações posteriores não se restringiu a estes tópicos centrais, mas igualmente
abarcou variadas questões e inquietações não diretamente relacionadas à erosão da
diversidade biológica, tais como a biotecnologia, a transferência de tecnologia e a
propriedade intelectual.
O texto revelava-se igualmente inovador ao desdobrar temas que, até então,
tinham recebido pouca ou nenhuma atenção nos demais tratados multilaterais
ambientais. Este era o caso, por exemplo, da relação entre conhecimentos
69
tradicionais, coletividades tradicionais e a conservação e promoção da diversidade
biológica.
Também inovador foi a acomodação da noção de soberania e de seu
exercício a novos tipos de interferências e ingerências. Essas repetidas tentativas de
legitimação da ação coletiva, quando transferidas para a esfera do acesso aos
recursos da biodiversidade, geravam tensões entre os países desenvolvidos e os
países em desenvolvimento que se manifestavam nas reuniões preparatórias à
Rio 92. Com efeito, os países desenvolvidos reafirmavam a tese do livre acesso,
sustentando que plantas e animais constituíam patrimônio comum da humanidade, e
que, portanto, deveriam tanto circular livremente, quanto serem coletados sem
maiores restrições no país de origem. O Brasil, apoiado por vários países em
desenvolvimento, sustentava o argumento de que o acesso deveria ser
regulamentado por algum tipo de acordo, sob o discernimento do país detentor da
biodiversidade, e alicerçado no princípio do direito soberano do Estado sobre os
recursos biológicos localizados em seu território.
Consequentemente, longe de se constituir em mero registro desambicioso de
um princípio cuja existência ultrapassa quatro séculos, a menção à soberania no
corpo da Convenção da Diversidade Biológica trazia, nas entrelinhas, o objetivo
bastante ousado de consagrar e concretizar a complexa adaptação do conceito para
a esfera do até então acesso livre a áreas e fontes de biodiversidade.
Desdobrava-se, portanto, a percepção de que se tornava imperativo
regulamentar o acesso aos recursos genéticos e desenvolver medidas que
assegurassem a justa e eqüitativa repartição de benefícios para os estados e os
detentores do conhecimento tradicional. Inicialmente implícita nesta lógica e
posteriormente explícita permaneceria a conclusão de que ao acesso deveria
corresponder tanto formas de compensação quanto a transferência de tecnologia.
O que isso exatamente significava na prática? Significava uniformizar o
tratamento dos recursos biológicos e dos bens intangíveis a eles associados, ou
seja, se o acesso aos processos e produtos finais decorrentes da biotecnologia
resultava invariavelmente restringido aos países em desenvolvimento pela proteção
obtida através dos direitos de propriedade intelectual, o acesso às matérias primas
que fundamentavam estes mesmos produtos e processos, em particular os recursos
70
genéticos e os saberes tradicionais associados e presentes nos países do Sul,
igualmente deveria ser controlado.
Mas como deveria ocorrer este controle? Nos primeiros anos da década de
1990, a solução aparentemente simples poderia ser a utilização desses mesmos
direitos de propriedade intelectual para a proteção e a regulamentação das matérias
primas, leiam-se recursos biológicos e saberes tradicionais associados. No entanto,
se atualmente esta solução encerra incontáveis problemas, naquele momento
revelava-se simplesmente impraticável. Consequentemente, optou-se por uma
estratégia inicial que igualmente teria no sistema de propriedade intelectual seu
alicerce: tratava-se da compensação por intermédio da transferência de tecnologia e
do compartilhamento de benefícios provenientes da comercialização dos produtos,
processos e patentes.
O problema central enfrentado pelas delegações dos países que apoiavam
esta proposta revelava-se, desse modo, tangenciar a resistência dos países
industrializados à inserção desta proposta polêmica no texto da Convenção e
assegurar que as suas interpretações sobre os artigos considerados mais
importantes (15 a 21, sobre propriedade intelectual, transferência de tecnologia e de
recursos financeiros) prevalecessem na conclusão das negociações. A amplitude e a
complexidade deste desafio, associar soberania com progresso tecnológico,
propriedade intelectual, recursos genéticos e saberes tradicionais, não passaram
despercebidas pelo então Chefe da Divisão do Meio Ambiente (DEMA), do Ministério
das Relações Exteriores, Pedro Motta Pinto Coelho:
“Como assinalado acima, a área de diversidade biológica e do
desenvolvimento de biotecnologias vulnerabiliza particularmente o conceito
tradicional de soberania que, para ser plenamente exercido, necessita da ajuda
de novos instrumentos, mais aprimorados, entre os quais a conscientização
nacional dos novos tipos de riquezas e de como estão sendo ameaçados os
patrimônios nacionais. Acrescente-se a essa nova permeabilidade das fronteiras,
em função dos desníveis de informação e de estágios de desenvolvimento
tecnológico, a rápida evolução do tratamento internacional (mas também por
71
meio de medidas unilaterais) visando a proteção dos resultados (comerciais,
econômicos e políticos) obtidos por esses avanços tecnológicos.”
47
Neste sentido, persistia a percepção de um conflito global de interesses entre
países desenvolvidos e em desenvolvimento acerca da regulamentação do acesso
ao patrimônio biogenético, o que, por sua vez, impunha um trabalho de coordenação
regular de posições destes últimos com vistas a tangenciar um importante desafio
incial: barrar a omissão de uma importante cláusula no texto da Convenção que
estava em vias de se concretizar durante as negociações iniciais.
Tratava-se, em termos gerais, da exclusão de quaisquer parágrafos que
enfatizassem ou mesmo mencionassem o controle do acesso às denominadas
coleções ex-situ. Estas coleções ex-situ são compilações de sementes, grãos,
animais e microorganismos estratégicos estocados em bancos de genes localizados
nos países desenvolvidos e denominados de International Agricultural Research
Centers (IARCS). Na grande maioria dos casos, estas coleções congregam
conjuntos de objetos idênticos ou que possuem laços lógicos uns com os outros
(variedade de uma mesma espécie e parentes selvagens, por exemplo). Também,
possuem um duplo aspecto: os materiais concretos e os dados intelectuais a eles
relacionados. É justamente a associação entre a riqueza das amostras e a precisão
e a atualidade dos dados intelectuais que define o valor destes bancos.
Sem querer ser exaustivo, podemos dividir estas coleções em seis categorias
principais: coleção de base, de trabalho, coleção pública, coleção privada, coleção
agronômica ou de conservação. A despeito desta variedade de escopos, funções e
naturezas, todas estas coleções compartilham, em maior ou menor grau, as funções
de conservação e de produção de conhecimento, assim como igualmente possuem
um lado econômico expressivo.
Neste sentido, elas congregam elementos potencialmente úteis para a
criação de novas variedades, mais resistentes a doenças, cuja adaptação às
condições climáticas pode ser mais elevada, ou mesmo mais rentáveis do ponto de
vista comercial. Diante de tal quadro, é natural que façamos questionamentos, tais
como: a quem elas pertencem? Quem tem o direito de acessar os seus conteúdos e
47
COELHO. Pedro. Mota. Pinto, “O Tratamento Multilateral do Meio Ambiente: Ensaio de um Novo
Espaço Ideológico”, In: FONSECA JÚNIOR. Gelson e NABUCO DE CASTRO. Sérgio. Henrique, Temas
de Política Externa Brasileira II, Volume 1, São Paulo, Editora Paz e Terra, Funag, IPRI, 1997, p. 254.
72
em quais condições? Seria lícito conceder proteção por intermédio dos direitos de
propriedade intelectual a variedades presentes nestes bancos vitais?
Foram questionamentos como estes e suas respectivas respostas que
permearam e fundamentaram todo o processo de desenvolvimento da Convenção
da Diversidade Biológica. Não obstante, estes debates traziam um desafio a mais
para os atores engajados nas negociações: a hipótese de que esses recursos em
particular mereceriam um tratamento especial, visto que foram coletados, retirados
de seu meio natural e posteriormente colocados em estado ex-situ.
Destarte, se, os países desenvolvidos argumentavam de forma justa e
coerente que estes recursos foram nutridos, conservados e aperfeiçoados por
intermédio de investimentos técnicos, intelectuais e financeiros importantes, os
países em desenvolvimento e as organizações não governamentais igualmente
apresentavam argumentos justos e adequados, ao enfatizarem que os materiais
coletados em seus meios ambientes originais concentravam parcela significativa
de inovação e trabalho intelectual, mesmo que este trabalho tivesse sido elaborado
de forma não convencional pelas coletividades tradicionais presentes nos países de
origem.
Nestes termos, os debates nas reuniões preparatórias da CDB acerca destas
coleções envolveram uma quantidade significativa de protagonistas e atores: os
Estados onde foram coletados os recursos, os Estados onde se situam as coleções,
os indivíduos ou instituições que coletaram e enriqueceram as coleções, aqueles
que as conservaram que descreveram e trabalharam os seus conteúdos e as
coletividades tradicionais que gerenciaram e aperfeiçoaram muitos destes recursos
quando em seus estados naturais. Não nos deve causar espanto, por conseguinte,
que este tema tenha concentrado a atenção dos atores nas negociações iniciais da
CDB.
Tendo em vista este quadro de posições, justificativas e valores envolvidos,
podemos compreender porque estes conjuntos de recursos biogenéticos congregam
umas das mais valiosas matrizes na sustentação da indústria de biotecnologia e da
agroindústria dos países desenvolvidos. Com efeito, como bem assinalou Christine
Noiville:
73
“Num âmbito preciso, ou seja, aquele da agricultura, a perspective é
inversa. Uma razão simples a explica: a maior parte, chamada de ‘recursos fito
genéticos para o uso agrícola ou alimentar (RFGAA), foi muito tempo
coletada na natureza e situa-se no momento em numerosas coleções que
representam mais de 80% da biodiversidade agrícola. Isso porque, nesse
domínio, a coleção sempre constituiu uma ferramenta privilegiada dos
selecionadores e dos agricultores. É o ‘reservatório’ do qual estes últimos tiram
permanentemente as variedades necessárias para o aprimoramento vegetal.”
48
Uma conclusão que podemos obter destas análises é justamente a
percepção de que parcela expressiva da matéria prima destinada às invenções
biotecnológicas e à agroindústria provem destes centros de coleções, os quais foram
instituídos anteriormente ao desenvolvimento da Convenção da Diversidade
Biológica e que, por isso mesmo, resultaram desenvolvidos sob a lógica do livre
acesso aos recursos da biodiversidade e da sociodiversidade a ela associada.
Consequentemente, as instituições gestoras destes processos paralelos de
coletas e depósitos de materiais biogenéticos
49
, em particular o denominado
Consultative Group on International Agricultural Research (CGIAR),
desconsideraram a possibilidade de retribuir economicamente ou mesmo reconhecer
por outros meios as contribuições das coletividades tradicionais responsáveis pela
administração de parcela expressiva deste material. De forma paralela, mesmo no
decorrer das negociações iniciais acerca da Convenção sobre a biodiversidade,
rejeitavam a proposta da extensão da soberania estatal para os recursos biológicos
e o compartilhamento de benefícios.
Conscientes do valor econômico e do enorme potencial inerente a estas
coleções internacionais e nacionais para os seus setores de biotecnologia e
agricultura, os Estados Unidos e a União Européia, entre outros países
desenvolvidos, davam sinais claros de que não aceitariam a menção no corpo do
48
NOIVILLE, Christine, “O Estatuto Jurídico da Coleção dos Recursos Genéticos”, in: PLATIAU. Ana
Flávia Barros e VARELLA, Marcelo Dias, (orgs.), Diversidade Biológica e Conhecimentos Tradicionais,
Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2004, p. 256.
49
De acordo com um estudo da Organização internacional, existem aproximadamente mais de 1200 coleções
de recursos genéticos no mundo todo, localizadas em mais de 160 países e territórios. No entanto, a
administração destas coleções é distribuída da seguinte forma: os governos administram aproximadamente
83 % das compilações, os IARCs gerencionam 11% e, por fim, o setor privado controla os 1.27% restantes.
UNEP/CBD/IC/2/13, 1994.
74
tratado da Convenção às palavras coleções ex –situ, logrando, assim, desvincular
estes bancos das novas regras de acesso e controle estipuladas pelo tratado da
CDB. Em outras palavras, estes países desejavam perpetuar o status de natureza
jurídica “especial” destas coleções, ao mesmo tempo em que ambicionavam
associar às mesmas o mínimo de obrigações.
Em contrapartida, muitos países em desenvolvimento lutavam pelo
compartilhamento de benefícios advindos das utilizações destas grandes coleções
de espécimes e variantes e julgavam imprescindível ao menos incluir nos esboços
do tratado da CDB menções às coleções ex-situ, mesmo que estes estivessem entre
parênteses indicando a grande falta de consenso na sua inserção. Provavelmente,
estes países logravam preservar o debate para as futuras reuniões da Convenção, o
que somente poderia ocorrer se o texto apresentasse alguma alusão ao tema.
Em suma, neste momento, o debate central gravitava em torno da questão se
as regras da Convenção deveriam ser retroativas e, assim, abarcar e regulamentar
as movimentações de recursos biogenéticos anteriores à ratificação e validação da
CDB.
Não é preciso analisar exaustivamente para concluirmos que a possível
ausência destas coleções da estrutura da CDB enfraqueceria, e muito, o escopo, a
natureza e a estrutura da Convenção propostos pelos países em desenvolvimento.
O fato de estes bancos serem instituídos de forma livre e funcionarem de acordo
com as regras por eles escolhidas, quando associado à constatação de que
inúmeras empresas e organismos de pesquisa mantêm com eles intenso contato e
cooperação, levaram os países em desenvolvimento a pensar que haveria a
manutenção de quadro puramente voluntário e privado das regras do acesso às
mesmas, a despeito das negociações iniciais da CDB.
Além do mais, como grande parcela das coleções vegetais preexistiam muito
antes da CDB, quase todas elas escapariam da regra da repartição de benefícios,
desdobramento este considerado desde o inicio politicamente insustentável pelos
países em desenvolvimento que providenciaram a maior parte do material contido
nas coleções.
No entanto, não era somente a resistência dos países desenvolvidos que
contribuía para a elevada magnitude, complexidade e complicação deste projeto
calcado na obtenção de uma Convenção da Biodiversidade retroativa e organizado e
75
conduzido pelos países em desenvolvimento. Outros fatores também relevantes
eram as inconsistências relacionadas à definição do regime jurídico das coleções no
interior do ordenamento jurídico proposto pela CDB.
Destarte, ao que aparenta, os países em desenvolvimento não possuíam
naquele momento uma proposta de inclusão uniforme e livre de inconsistências,
indefinições e hiatos. Assim como os demais conceitos desenvolvidos e inseridos no
tratado da Convenção, a menção às coleções ex-situ deveria principalmente
pavimentar um caminho futuro para possíveis reflexões e, consequentemente,
soluções.
Tratava-se, em outros termos, de assegurar a continuidade das discussões e
garantir um plano de trabalho com o objetivo não pouco ambicioso de conciliar as
normas, princípios e regras da Convenção com aquelas dos demais tratados e
regimes internacionais destinados à regulamentação das coleções, em particular, as
decisões da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO).
A despeito da postura ativa dos negociadores representantes dos países em
desenvolvimento com relação a esta questão, as dificuldades acima elencadas,
associadas à postura obstrucionista e inflexível norte americana, determinariam o
desdobramento final. Conclusão esta que se caracterizou pela estruturação de uma
Convenção não retroativa em essência, mas que, nem por isso, desconsiderou a
posição dos países em desenvolvimento.
Destarte, se a CDB não permaneceu exaustiva no que diz respeito às
coleções, seus redatores compreenderiam a relevância das mesmas ao requisitar,
em uma resolução em separado
50
, a depuração do estatuto das coleções e a idéia
de conciliação entre a CDB e a FAO. Ainda, este dispositivo explicitava que esta
conciliação permaneceria sob a autoridade da FAO.
Outros pontos de conflito verificados nas reuniões preparatórias e
relacionados ao tema do acesso e do compartilhamento de benefícios
ultrapassavam o âmbito de questões mais técnicas e precisas, como o debate
acerca das coleções e, assim, diziam respeito aos princípios centrais que se
revelariam posteriormente os alicerces fundamentais da Convenção. Neste sentido,
50
Resolução número 3, de 22 de maio de 1992, “Ligações entre a Convenção sobre a Diversidade Biológica
e a promoção de agricultura sustentável”.
76
tratava-se, essencialmente, do primado da soberania em detrimento da concepção
de “herança comum da humanidade” e da menção aos direitos de propriedade
intelectual como tema transversal na redação final, propostas amplamente
defendidas pelos representantes brasileiros nas reuniões iniciais.
Nestes casos, não sem muito esforço e energia, ocorreu uma vitória
diplomática brasileira frente ao isolamento da postura radical norte americana,
permanecendo nítida ênfase no corpo do documento final sobre o princípio da
soberania nacional e a autoridade dos governos para regulamentar o acesso dos
interessados, leia-se empresas farmacêuticas e de biotecnologia, aos recursos
genéticos
51
. Assim como persistiria menção direta à propriedade intelectual no
contexto da transferência de tecnologia, supostamente um dos principais tipos de
benefícios que os países fornecedores poderiam receber
52
.
Se uma primeira menção à propriedade intelectual consistia mais em uma
garantia aos países desenvolvidos de que os países megadiversos que
eventualmente obtivessem essas tecnologias respeitariam os direitos de propriedade
intelectual, a segunda alusão a este conjunto de direitos, elaborada no parágrafo
16.5, encerraria mais polêmica e principiaria o grande debate acerca da
compatibilidade ou não entre a Convenção da Diversidade Biológica e os tratados
basilares do Regime Internacional de Propriedade Intelectual, em particular o Acordo
TRIPs. O artigo 16.5 recomenda que as partes:
reconhecendo que patentes e outros direitos de propriedade intelectual podem
influir na implementação desta Convenção, devem cooperar a esse respeito em
51
A menção explícita ao princípio da soberania nacional sobre os recursos genéticos da biodiversidade está
no artigo 15 da Convenção, o qual resultou redigido no seguinte formato: “15.1- Em reconhecimento dos
direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos
genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional.” Igualmente relevante é o
desdobramento 15.5 “O acesso aos recursos genéticos deve estar sujeito ao consentimento prévio
fundamentado da Parte Contratante provedora desses recursos, a menos que de outra forma determinado por
essa Parte.”
52
O artigo 16 sobre o acesso e a transferência de tecnologia postula que os membros da Convenção se
comprometam a proporcionar e/ou facilitar o acesso e a transferência de tecnologia a outras partes. Embora o
único campo de tecnologia mencionada seja a biotecnologia, o artigo 16 também faz referência a qualquer
tecnologia que seja relevante para a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica ou faça uso de
recursos genéticos sem causar danos significativos ao meio ambiente. A referência aos direitos de
propriedade intelectual pode ser compreendida em razão do reconhecimento de que estas tecnologias são
muitas vezes sujeitas à patentes e a outros direitos de propriedade intelectual. Portanto, como o texto da
Convenção não obriga esta transferência de tecnologia, optou-se por persuadir os participantes a concretizá-
la através da garantia de que o acesso a estas tecnologias deve ser em termos que reconheçam e sejam
consistentes com a adequada e efetiva proteção dos direitos de propriedade intelectual.
77
conformidade com a legislação nacional e o direito internacional para garantir que
esses direitos apóiem e não se oponham aos objetivos desta Convenção.
A linguagem e o conteúdo do parágrafo, cuidadosamente organizados no
sentido de evitar qualquer sentido ameaçador, refletem com clareza a expressiva
divergência que tomou conta das negociações entre os países que reconheciam
ocorrer conflito entre os dispositivos e os objetivos da CDB e os direitos de
propriedade intelectual e aqueles países como os Estados Unidos, o Reino Unido, a
França, a Itália e a Suíça que não viam contradição entre as duas esferas. Assim,
mesmo esta tênue tentativa de influenciar as regras e as normas de propriedade
intelectual foi combatida exasperadamente pela delegação norte americana, a qual
posteriormente assinaria a Convenção, mas não a ratificaria.
De forma inevitável, portanto, desdobrou-se um processo longo, difícil e
contencioso acerca da obtenção de um texto final aceitável tanto para os governos
dos países pobres em diversidade do mundo industrializado, como para os dos
países em desenvolvimento ricos em biodiversidade. Resultou deste processo a
transformação do texto final em um documento complexo, desequilibrado e não
prescritivo, pois à inclusão destes variados temas complexos seguiu-se a tentativa
quase imediata de inter-relacioná-los no decorrer dos artigos centrais da Convenção
e optou-se pela caracterização das diretrizes e dos objetivos sistematizados como
princípios abrangentes e facultativos
53
.
Conseguida a vitória processual, colocavam-se aos países em
desenvolvimento quatro desafios precípuos: a) formular um conjunto sistemático de
esboços e propostas substantivas tendente a estruturar os princípios, as normas e as
regras inicialmente esboçadas no texto da Convenção; b) criar um quadro
institucional e organizacional no interior da própria Convenção capaz de assegurar a
aplicação destas normas; c) organizar uma estratégia político-diplomática capaz de
53
Este caráter vago e não prescritível pode ser claramente observado, por exemplo, na redação do artigo 8(j)
da CDB, o qual trata da conservação in situ dos recursos biológicos e que menciona diretamente as
comunidades tradicionais e as populações indígenas: Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e
conforme o caso: j) Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o
conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida
tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua
mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e
práticas; e encorajar a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento,
inovações e práticas.
78
viabilizar as referidas mudanças e contrapor a esperada resistência e as
contrapropostas dos Estados desenvolvidos; d) fundamentar uma identidade
concreta da Convenção da Biodiversidade, com o objetivo de contrapor a influência
de outras organizações internacionais atuantes sobre o tema, leia-se a Organização
Mundial do Comércio e a Organização Mundial da Propriedade Intelectual.
6.3. As Negociações que se seguiram à criação da Convenção da Diversidade
Biológica.
Reduzido a sua expressão mais simples, este era o contorno básico dos
objetivos e das posições assumidas pelos estados em desenvolvimento em 1993.
Convém ponderar que suas linhas essenciais não iriam modificar-se radicalmente
nos 15 anos posteriores, embora variados elementos relevantes tenham sido
acrescentados ou mesmo ressaltados nestes anos posteriores.
Cabe, por conseguinte, considerar neste momento a operação político-
diplomática através da qual se procurou, desde a ratificação da Convenção da
Diversidade Biológica, viabilizar as posições e os objetivos acima esboçados.
Tratava-se, em última análise, de persuadir países econômica e politicamente mais
fortes e influentes a aceitar mudanças consideráveis numa ordem internacional que
lhes era amplamente favorável. Seguramente um objetivo deveras ambicioso, visto
que, claramente, poucos países em desenvolvimento tinham condições de contribuir
de forma significativa para semelhante esforço. O Brasil, a Índia e a China
representavam alguns desses poucos, o que, por sua vez, obrigavá-os a assumir
papel de liderança numa mobilização que se propunha nada menos do que a
reestruturação da lógica comumente empregada na obtenção do livre acesso aos
recursos biogenéticos e aos saberes tradicionais associados.
Cabe agora lançar uma visão de conjunto sobre este amplo campo de
negociação diplomática que percorreu aproximadamente 15 anos de conferências e
reuniões na Convenção da Diversidade Biológica. De que maneira objetivos tão
ambiciosos se enquadraram num contexto geral de negociações? De que modo as
metas, as formas de atuação e os objetivos mais próximos das partes negociadoras
foram condicionados pela natureza do respectivo organismo da CDB?
79
Para ensaiarmos respostas satisfatórias a estas questões necessitamos
atentar para uma constatação que se impõe logo de saída: o período que
compreende as reuniões da Convenção é demasiado extenso e, portanto, exige do
observador analista uma subdivisão inicial capaz de facilitar o mapeamento dos
condicionamentos e das formas pelas quais seus mais importantes protagonistas
atuaram no plano das negociações multilaterais, mobilizando recursos de natureza
política e técnica para ampliar e garantir a consecução dos interesses e objetivos
tidos por nacionais.
Consequentemente, a análise de 8 Conferências das Partes e de 9 reuniões
paralelas nos possibilita subdividir o período geral de 15 anos em duas fases
centrais: uma primeira fase que compreenderia o intervalo entre a primeira
Conferência das Partes concluída em 1995 até a quinta Conferência das Partes
encerrada em 2000 e, uma segunda fase que compreenderia o intervalo entre a
sexta Conferência das Partes até a oitava Conferência das Partes, ou seja, de 2002
a 2007.
Para efeitos de organização, poderíamos denominar o primeiro intervalo de
“Fase de Identidade Indefinida da Convenção”, enquanto que, para o segundo
intervalo, optamos pela denominação de “Fase de Identidade em vias de
Conclusão”
54
.
Nestes termos, a fase de Identidade Indefinida caracteriza-se pela ausência
de uma posição clara e estruturada acerca dos temas da propriedade intelectual, do
acesso e compartilhamento de benefícios e da proteção aos saberes tradicionais e
às coletividades tradicionais. Acrescente-se a estes fatores a não delimitação e a não
coerência dos principais princípios e normas envolvidos e a desorganização da
estrutura interna da Convenção.
Em suma, entre 1995 e 2000 a Convenção não foi capaz de estruturar um
plano de trabalho suficientemente organizado no que concerne à temática do acesso
e do compartilhamento de benefícios, assim como não traduziu uma posição
coerente no tabuleiro das negociações internacionais capaz de contrapor as
54
Como o próprio tratado da Convenção atesta, o escopo das negociações e das reuniões na CDB
ultrapassam as preocupações referentes exclusivamente à questão do acesso, da repartição de benefícios e da
proteção aos saberes tradicionais. Convém ressalvar, por conseguinte, que os critérios por nós utilizados na
elaboração da respectiva divisão em Identidade Indefinida e Identidade em Vias de Conclusão se referem
exclusivamente aos temas em pauta. Destarte, não julgamos acreditamos que esta divisão possa abarcar
igualmente a evolução de todos os demais temas.
80
deliberações na OMC e na OMPI. Por ora, a exposição destas características mais
expressivas é suficiente, pois no decorrer deste capítulo analisaremos com maiores
detalhes a influência deste contexto nas negociações ocorridas durante a segunda
metade da década de 1990.
Já, no que concerne ao período denominado de “Fase de Identidade em vias
de Conclusão”, podemos elencar algumas característica precípuas que o diferenciam
da fase anterior. Com efeito, a partir de 2000 as negociações na Convenção
adquirem um caráter progressivamente mais definido no tratamento do tema do
acesso e da repartição de benefícios, delimitação esta que contrasta com as
indefinições do intervalo anterior.
Destarte, a primeira metade da década de 2000 observaria nas negociações
da CDB o estabelecimento de uma tríade de questões organizadas em torno dos
seguintes temas: acesso e repartição de benefícios, status das coleções ex-situ, e
direitos de propriedade intelectual, temas esses que passaram a transitar em torno
da questão transversal da proteção aos saberes tradicionais. Ao mesmo tempo, a
Convenção procederia a uma definição de postura internacional, comtrapondo-se às
negociações da OMC relacionadas ao Acordo TRIPs e ao tratamento dos direitos de
propriedade intelectual preconizado pela OMPI. Ainda, a própria estrutura e dinâmica
das negociações e das reuniões internas adquiriria substância, pois vários grupos de
trabalho surgiram com o objetivo explícito de organizar estes temas especialmente
complexos e controversos.
6.3. A Primeira Fase de Negociações na Convenção da Diversidade Biológica
Fase da Identidade Indefinida.
Cabe agora proceder a uma análise direcionada para a atuação dos atores
centrais nas reuniões mais importantes e para os desdobramentos mais relevantes
congregados na primeira fase de negociações da Convenção.
As Conferências da Convenção da Diversidade Biológica tiveram origem nos
meses finais de 1994, após a conclusão de duas reuniões preparatórias promovidas
pelo Comitê Intergovernamental para a Convenção da Diversidade Biológica,
(ICCBD), instituído em maio de 1993.
81
A primeira Conferência das Partes da CDB direcionou para a mesa de
negociações temas e problemas que, naquele momento em particular, revelavam-se
bastante desafiadores. Tratava-se, em poucas palavras, de estruturar basicamente
as negociações, definir a delimitação do que deveria ser negociado, obter resultados
nas distintas áreas temáticas e dar coerência e significado aos conceitos de
compartilhamento de benefícios, conhecimento tradicional, consentimento prévio e
informado e termos de acesso mutuamente acordados.
Diante deste quadro, questões particulares chamaram a atenção dos
observadores por congregarem desde o início controvérsia significativa. Era o caso,
por exemplo, dos direitos de propriedade intelectual e das “questões indígenas”.
Destarte, no que tange aos debates referentes aos direitos de propriedade
intelectual já era possível observar um debate estruturado em torno de 3 grupos
centrais de interlocutores. Assim, a apoiar um tratamento transversal do tema em
pauta, organizado em torno das questões do acesso aos recursos genéticos e aos
saberes tradicionais associados, dos direitos indígenas comunitários e do
compartilhamento de benefícios, permaneciam as Organizações Não
Governamentais participantes. Em oposição a esta orientação permanecia os
Estados Unidos e alguns países desenvolvidos, os quais logravam tratar da
propriedade intelectual de forma isolada e separada das demais questões de acesso
e de repartição de benefícios.
Do ponto de vista do Brasil, respaldado pelo Grupo dos 77, a linguagem
concernente aos direitos de propriedade intelectual no artigo 16 exigia uma
consideração mais ampla e abrangente, visto que observava na Convenção um
fórum mais favorável aos interesses dos países em desenvolvimento quando
contrastado com a Organização Mundial do Comércio e com a Organização Mundial
da Propriedade Intelectual. Neste cenário de debates e discórdia, os Estados Unidos
manobravam no sentido de negociar a sua efetiva ratificação da Convenção em
contrapartida à diluição da posição relativamente forte da CDB com relação à
temática dos direitos de propriedade intelectual. Por fim, a não obtenção de
consenso perante o tema transferiu para as conferências futuras a determinação do
escopo e da natureza das cláusulas relacionadas à propriedade intelectual.
Por seu turno, no que concerne às questões indígenas, acordou-se entre as
partes que tais temas deveriam estar ausentes das próximas negociações até o ano
82
de 1996. Este adiamento foi considerado inapropriado pelos representantes da
sociedade civil, os quais o contrastaram com as referências concretas à importância
da repartição de benefícios com comunidades tradicionais no próprio corpo da
Convenção.
Importa salientar que, a nosso ver, o resultado da Conferência das Partes
foi, no entanto, positivo. Abordaram-se aspectos de interesse comum aos países
participantes, havendo-se estabelecido uma série de objetivos agrupados em torno
do denominado Programa de trabalho de Médio Prazo e elaborado no sentido de
guiar o trabalho da CDB para os próximos três anos e de concluir uma agenda de
negociações. Neste sentido, ainda em 1994 foi concluída uma agenda rotativa e
flexível, destinada à organização dos seguintes temas: mecanismos de
financiamento da CDB; a administração e o orçamento do Secretariado; relatórios
nacionais de implementação; relações da CDB com outros regimes e organizações
internacionais ambientais; compilação de informações referentes aos direitos de
propriedade intelectual e à transferência de tecnologia na área do acesso aos
recursos genéticos.
Entre os dias 6 e 17 de novembro de 1995 a segunda Conferência das Partes
da CDB foi organizada. Iniciada com o tema proposto “Biodiversidade para o bem
estar justo de todas as pessoas”, esta longa Conferência ocorrida na cidade de
Jacarta daria os passos iniciais à programação da CDB. Destarte, se Nassau tivera
caráter “fundacional”, Jacarta teria, sobretudo uma dimensão de planejamento.
Neste sentido, poucas delegações e demais participantes discordavam com
relação à necessidade urgente de proporcionar à reunião alguma substância
operacional, para que o formato pudesse gradualmente obter expressão prática.
Todavia, se as partes concordavam quanto a esta prioridade, discordavam quanto a
uma série de questões importantes, principalmente aquelas relacionadas ao tema do
acesso e da repartição de benefícios.
É justamente neste contexto que podemos compreender a expressiva
divergência que tomou conta das negociações referentes a uma proposta elaborada
com o intuito de requisitar ao Secretariado uma compilação das interpretações dos
participantes sobre as definições de alguns termos presentes no Artigo 15, incluindo,
por exemplo, consentimento prévio e informado, termos mutuamente acordados,
83
compartilhamento justo e eqüitativo de benefícios e o status das coleções ex-situ
obtidas anteriormente à negociação da Convenção da Diversidade Biológica.
Por fim, se foi possível obter um compromisso dos negociadores no sentido
de manter a requisição ao Secretariado sem, no entanto, especificar os conceitos, as
referências às coleções ficaram de fora da decisão final, com a alegação de que
deveria ser negociada no Tratado da Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e Alimentação.
Convém destacar que a Conferência de Jacarta manteve o debate sobre
direitos de propriedade intelectual verificado em Nassau, com a diferença de que o
eixo das discussões direcionou-se para a questão da reforma do sistema
internacional de patentes. Reflexo de diversos pronunciamentos e propostas
elaborados pelos representantes indianos, empenhados em encaminhar alguns
temas concretos de negociação na reunião de Jacarta, o aprofundamento das
discussões passaria a abarcar tanto os temas da inclusão do consentimento prévio e
informado e da revelação da origem do recurso genético nas requisições de
patentes, quanto os temas vinculados à adaptação dos direitos de propriedade
intelectual às especificidades dos saberes tradicionais e à interação entre a CDB e o
Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio da OMC.
Este esforço diplomático concatenado pela delegação indiana encontrava a
sua razão de ser na entrada em vigor do Acordo TRIPs no âmbito da OMC. Por
conseguinte, na visão dos representantes indianos tornava-se imperativo associar,
desde o início, os distintos tratamentos da propriedade intelectual propostos na CDB
e no acordo TRIPs. Não se tratava de uma tarefa fácil, dado o contraste entre a
fragilidade e a morosidade das negociações iniciais da CDB e a celeridade e força
das negociações na OMC.
Os episódios acima ilustram a magnitude dos desafios associados à
implementação dos objetivos da Convenção da Biodiversidade. Não obstante, se
naquele momento ainda não havia maneira de resolver questões como as acima
salientadas, progressos concretos foram obtidos com respeito à funcionalidade da
CDB como agente de relações internacionais.
Consequentemente, no que tange ao papel que a Convenção da
Biodiversidade se propõe a desempenhar no plano mundial a segunda conferência
das partes concluiu dois processos bastante relevantes. Em primeiro lugar, no que
84
poderíamos descrever como assuntos internos, os delegados presentes conduziram
a primeira revisão de prioridades estabelecidas pela Convenção e pela primeira
conferência das partes. Com efeito, ao realizar este empreendimento, os atores
envolvidos iniciaram um processo inédito até aquele momento, visto que principiaram
a exploração e a revisão dos procedimentos do programa de trabalho, tornando-o
mais uniforme e representativo das preferências dos distintos agentes engajados nas
negociações. Esta iniciativa iria contribuir, inclusive, para a percepção de que
variados aspectos do programa tinham a tendência de cruzar as questões da
biodiversidade ultrapassando, consequentemente, as fronteiras da própria CDB.
Em segundo lugar, provavelmente em razão do caráter transversal dos temas
abarcados pela Convenção, é válido afirmar que as reuniões de Jacarta
presenciaram certo amadurecimento da postura da CDB com relação a variados
processos internacionais que vinham se desdobrando de forma paralela às
negociações da biodiversidade. Neste sentido, variados observadores chegaram a
afirmar que a COP -2 teria encetado a condução das relações externas da CDB.
Em um momento de expressivas incertezas e indefinições quanto às
estruturas das negociações, aos significados dos princípios, das regras, das normas
e dos conceitos envolvidos, é espantoso observar que a Convenção iniciava,
mesmo que de forma retraída, um esboço de postura e de posicionamento no
tabuleiro das negociações multilaterais internacionais, enviando uma mensagem
suficientemente concreta sobre as preocupações da biodiversidade.
A terceira sessão da Conferência das Partes (COP 3) da CDB se reuniu em
Buenos Aires, Argentina, durante o período compreendido entre 4 a 15 de novembro
de 1996. Uma análise em retrospectiva permite afirmar que, se a COP -1
estabeleceu os mecanismos básicos da Convenção e a COP -2 adotou decisões
para a programação, a COP -3 logrou tratar da implementação no contexto destas
decisões. Com efeito, as três etapas até aquele momento concluídas indicavam que
a Conferência das Partes adquiria uma identidade em vias de formação, na medida
em que objetivava assegurar sua autoridade perante a UNEP, refinar seus
mecanismos internos, focalizar as atenções divergentes no seu programa de trabalho
e na sua futura agenda, definir seus relacionamentos com os demais regimes
internacionais, e desenvolver pautas de ação para um conjunto relevante de
questões substantivas.
85
No que tange particularmente aos temas do acesso, da repartição de
benefícios e dos direitos das comunidades tradicionais, se havia estabelecido um
formato de comparação e de ordenação das diferentes posições e interpretações,
caracterizado pela elaboração de documentos provisórios capazes de congregar
pontos de consenso e discórdia. Mas a substância do mecanismo ainda parecia
pouco nítida. Para que a Conferência de Buenos Aires tivesse o êxito desejado pelos
países em desenvolvimento, tornava-se necessário imprimir-lhe qualidade que
superasse os aspectos inaugurais de Nassau e de planejamento de Jacarta.
O passo seguinte seria, portanto, o de desenvolver uma posição oficial da
CDB acerca dos direitos de propriedade intelectual, que estivesse apta a ressaltar os
aspectos ambientais e sócio-culturais da propriedade intelectual, e a comunicar esta
posição aos demais fóruns relevantes. Objetivava-se, dessa forma, contrapor a
lógica cristalizada no acordo TRIPs e fazer com que a CDB emergisse como
influência significativa nas atividades da própria OMC e da OMPI.
Mas permaneciam indagações muito relevantes. Como organizar ações
concretas? Onde obter os recursos de negociação disponíveis? Como organizar os
objetivos referentes à tríade acesso aos recursos genéticos, direitos das
comunidades tradicionais e repartição de benefícios? Como evitar a proliferação de
grupos de trabalho e, assim, obstar o tratamento isolado dos temas transversais?
Nas semanas finais de 1996 a evolução das negociações indicava que ainda não
havia maneira de dar respostas decisivas a estas indagações. Um fator a contribuir
para este estágio em que se encontrava o desenvolvimento das iniciativas era
justamente a ausência de pontos de vista precisos sobre o futuro dos mecanismos e
das posições da CDB.
Entendeu, portanto, as delegações brasileira e indiana que a melhor maneira
de contribuir para o desenvolvimento do processo das Conferências das Partes seria
a de centralizar atenção no tratamento como temática transversal dos temas do
acesso, da repartição de benefícios, da proteção ao conhecimento tradicional e da
propriedade intelectual.
Neste sentido, alguns países em desenvolvimento, logrando proporcionar uma
moldura institucional e conceitual apropriada aos seus propósitos, orientaram as
negociações preparatórias para a associação de posições minimamente comuns
entre três itens precípuos da agenda de negociações: item 11 – saberes, inovações e
86
práticas das comunidades locais e indígenas; item 12 acesso aos recursos
genéticos; e item 13 – direitos de propriedade intelectual.
A solução encontrada pelo Brasil, pela Índia e pelo Grupo Africano para
viabilizar a posição acima esquematizada foi engenhosa. Partiu-se da premissa de
que a propriedade intelectual deveria orientar a organização das negociações
relativas aos demais temas transversais. Com a finalidade de canalizar a energia
diplomática em iniciativas concretas, estes países propuseram a busca de
adaptações dos direitos de propriedade intelectual para os saberes tradicionais, a
criação de um mecanismo legal capaz de regular o acesso e a elaboração de
estudos sobre mecanismos de revelação de origem do material genético utilizado em
patentes da biotecnologia.
Destarte, parcela significativa da energia negociadora do Brasil em Buenos
Aires concentrou-se em dotar a COP de personalidade internacional, objetivando
torná-la apta a elaborar propostas minimamente estruturadas acerca dos temas em
destaque e que pudessem favorecer a Revisão do Acordo TRIPs na OMC, a qual
deveria ocorrer em 1999 e influenciar as reuniões da OMPI.
O Documento de Conclusões (UNEP/CBD/COP/3/L.18) aprovado ao término
das negociações encoraja a troca de informações a respeito de estudos de caso
sobre o impacto dos direitos de propriedade intelectual na consecução dos objetivos
da CDB, incluindo a transferência de tecnologia e o compartilhamento de benefícios
com as comunidades locais e indígenas. Reiteram-se ademais os seguintes picos:
a necessidade da COP-3 transmitir suas decisões à Organização Mundial do
Comércio; ressalta a possibilidade de obtenção de benefícios mútuos quando
compartilhar informações com o Conselho do TRIPs e reconhece a necessidade de
desenvolver uma posição comum acerca da relação entre os direitos de propriedade
intelectual, o Acordo TRIPs e a Convenção da Diversidade Biológica.
A amplitude dos debates, a retomada das reuniões sobre as questões das
comunidades tradicionais, o aprimoramento dos mecanismos e dos processos
internos de organização e o encadeamento de uma postura mais estruturada perante
os demais regimes e instituições internacionais não encobriram, porém, algumas
deficiências das Conferências da Diversidade Biológica. Neste sentido, apesar de
todo o esforço que esteve direcionado para a preparação e para a convergência dos
debates, não faltaram dúvidas quanto à adequação dos resultados concretos obtidos.
87
Em particular, a despeito da COP-3 ter desenvolvido, pela primeira vez, uma
comunicação sobre o tema da propriedade intelectual e tê-la direcionado para a
OMPI, não foi possível precisar a natureza, o escopo e a magnitude da interação
entre a OMC e a Convenção da Diversidade Biológica.
A última Conferência das Partes a ser concluída na década de 1990 ocorreu
entre os dias 4 e 15 de maio de 1998 na cidade de Bratislava, Slovakia. Reunida pela
primeira vez em 18 meses, as delegações que compareceram à COP-4 tiveram que
negociar uma ampla agenda de questões, incluindo, entre outros, os temas da
implementação do artigo 8(j), do acesso e da repartição de benefícios e da
propriedade intelectual.
A despeito das dificuldades que estiveram associadas à amplitude da agenda
temática, o que, por sua vez, ocasionou uma série de desafios administrativos e
gerenciais, uma análise abrangente da Conferência explicita que variados avanços
foram obtidos. Neste sentido, as reuniões de Bratislava reproduziram a dupla
determinação dos membros da Convenção da Biodiversidade de reivindicar uma
personalidade política que a distinguisse no cenário internacional e de aperfeiçoar a
organização das atividades internas.
Tratava-se, em outros termos, de tangenciar a caracterização da CDB como
um instrumento exageradamente abrangente, caráter este que insistia em dificultar a
hierarquização de tópicos distintos, a associação de temas transversais, a obtenção
de sinergia entre as COPs e as demais reuniões multilaterais internacionais, a
delimitação de uma agenda de negociações viável e a ordenação das próprias
delegações, na medida em que necessitavam segmentar seus representantes entre
as distintas áreas e temas que vinham sendo debatidos e negociados de forma
paralela e, variadas vezes, isolada.
Para o Brasil, para a Índia e para os demais países que estavam a eles
associados, diante da proximidade da revisão sobre o acordo TRIPs na OMC,
tornava-se decisivo delimitar uma posição da CDB perante os temas da propriedade
intelectual. Foi neste contexto de urgência que a Etiópia introduziu um documento
detalhando os conflitos observados entre a lógica do acordo TRIPs e as disposições
presentes e negociadas na CDB (UNEP/CBD/COP/4/Inf.29). Seguiu-se à
apresentação da comunicação duas sugestões que requisitavam ao secretariado da
88
Convenção a criação de um grupo de trabalho dedicado a tratar esta questão e a
inserção deste tema nas atividades inter-setoriais.
A posição deste grupo de países centrava-se em um conjunto de argumentos
que sublinhavam a inadequação de se tratar os temas do acesso, da repartição de
benefícios e da propriedade intelectual de forma não associada nos distintos fóruns
de negociação, ignorando, assim, o processo de aperfeiçoamento técnico e de
compartilhamento de experiências que vinha se desdobrando no decorrer das COPs.
Desde o final de 1996 a União Européia, a Austrália e a Suíça vinham
manifestando as suas dificuldades em aceitar as posições dos países em
desenvolvimento referentes aos temas do acesso, da repartição e da propriedade
intelectual. Em maio de 1998, portanto, manobraram no sentido de barrar as
propostas que se sucederam à apresentação do documento da Etiópia. Com base na
alegação de que inexistia hierarquia entre a OMC e os distintos regimes ambientais
multilaterais e de que, por conseguinte, não era possível observar qualquer conflito
entre o acordo TRIPs e a CDB, este grupo de países obstruiu o estabelecimento do
novo processo de desenvolvimento de sinergia proposto.
Paralelamente a estas discussões envolvendo a sinergia da CDB com outros
regimes internacionais, ocorriam outras reuniões relevantes que tratavam dos temas
do compartilhamento de benefícios e do Artigo 8(j).
Na esfera das reuniões sobre a repartição de benefícios, seguiu-se um
processo de negociação que analisou e debateu este tema como um item particular
da agenda da COP. Esta reorganização do tema em item isolado representou um
avanço considerável no processo de implementação, visto que possibilitou aos
estados e atores membros direcionar os debates e as contribuições à obtenção de
um rigor terminológico para o conceito.
Não obstante, em razão da expressiva divergência que tomou conta destas
negociações e das circunstâncias em que o processo foi posto em marcha, o texto
final que sumarizou as conclusões permaneceria envolto em parênteses, hiatos e
compromissos (UNEP/CBD/COP/4/L.2/Add.4). Seguramente contribuíram para este
desenlace do tema a natureza complexa do conceito e o desentendimento sobre a
inclusão ou não das coleções ex-situ no escopo da CDB. Neste sentido, enquanto o
G77/China, a Índia, a Etiópia e a Turquia advogavam pela inclusão de um parágrafo
no texto final que explicitasse a permanência das coleções na Convenção, a União
89
Européia, a Austrália, a Suécia e o Japão manobravam em direção à exclusão de
quaisquer referências aos termos ex-situ no documento final.
Por fim, com a finalidade de consagrar algum consenso entre as partes, foi
adotado um texto não oficial cuidadosamente balanceado
(UNEP/CBD/COP/4/CRP.4) que iria substituir o texto oficial. Entre outras
orientações, este documento estipulava que o Secretariado executivo deveria
granjear informações a respeito das coleções ex-situ, elaborar recomendações para
a quinta Conferência das Partes e estabelecer um painel de especialistas
regionalmente equilibrado, composto por representantes dos setores público e
privado e por representantes das comunidades tradicionais, com a incumbência de
explorar opções para acesso e para a repartição de benefícios em termos
mutuamente acordados, incluindo códigos das melhores práticas, guias de conduta e
princípios de comportamento.
Por fim, a declaração ressaltava a importância de o Secretariado compilar e
disseminar informações acerca dos procedimentos destinados a promover e avançar
os acordos de repartições de benefícios.
No âmbito das negociações acerca do Artigo 8(j) o grande acontecimento
que marcaria a Conferência foi a criação de um grupo de trabalho dedicado
exclusivamente à implementação do artigo 8(j). É interessante observar que, a
despeito de algumas objeções levantadas com relação à necessidade ou não dos
representantes das comunidades tradicionais participarem efetivamente do grupo de
trabalho, a criação deste novo órgão da CDB angariou posturas favoráveis de quase
todas as partes engajadas na conferência. Desse modo, traduziu um avanço
significativo na dinâmica organizacional da CDB, pois passaria a desempenhar
posteriormente papel central na delimitação das questões concatenadas aos temas
da proteção, preservação e promoção dos saberes tradicionais
55
.
Diante deste quadro de avanços, foi possível observar o comprometimento de
parcela expressiva das representações e o assentimento que logo começaram a
55
A decisão sobre a implementação do artigo 8(j) (UNEP/CBD/COP/4/WG.1/CRP.6), adotada no dia 14 de
maio de 1998, ilustraria claramente a natureza, a operação e as funções do grupo de trabalho recem
instituido. De acordo com o texto, o mandato do grupo deveria abarcar, entre outras funções: a) aconselhar
acerca da implementação e do desenvolvimento de formas de proteção legais ou não para os conhecimentos,
as inovações e as práticas tradicionais relevantes à conservação e ao uso sustentável da biodiversidade; b)
aconselhar a COP na implementação de um programa de trabalho orientado tanto para o nível nacional
quanto para o nível internacional; c) recomendar medidas á COP direcionadas ao fortalecimento da
cooperação no nível internacional.
90
surgir por parte dos representantes acerca dos caminhos propostos ao avanço do
processo negociador. A contribuir para este processo, permanecia a constatação de
que as reuniões de Bratislava presenciaram uma mobilização inédita gerada pela
Conferência: tanto a Conferência propriamente dita quanto as suas reuniões
paralelas congregaram um número considerável e sem precedentes de ONGs e
movimentos de base de todos os continentes, somados a um contingente cada vez
maior de Delegações governamentais sensibilizadas pelos problemas da
biodiversidade.
Igualmente relevante foi a bem sucedida iniciativa da COP-4 de aprimorar
suas futuras operações através do desenvolvimento de um novo programa de
trabalho associado a um ajustamento de suas questões institucionais. Com efeito, o
novo programa de trabalho estabeleceria as novas agendas de negociações para as
COPs 5-7 baseado em uma estrutura renovada de áreas temáticas ímpares,
questões transversais de apoio e o desenvolvimento de relações com instituições e
convenções tematicamente relevantes (UNEP/CBD/COP/4/L.3/Add.4)
56
.
É no interior deste contexto, caracterizado pela gradual transição entre uma
fase de ausência de identidade definida em direção a uma fase de identidade em
vias de concretização, que podemos compreender as intervenções otimistas das
delegações presentes na Convenção da Diversidade Biológica, as quais abordavam,
em sua grande maioria, a constatação de que as COPs estavam começando a
influenciar os comportamentos sociais, econômicos e políticos, tanto no nível
nacional, quanto no nível global, assim como já proporcionavam um arcabouço
político capaz de alicerçar os esforços da comunidade internacional no sentido de
proteger e utilizar de forma sustentável as formas de vida na Terra.
Os anos de 1999 e 2000 presenciariam mais duas reuniões sobre os temas
do acesso e da repartição de benefícios que iriam efetivamente concretizar a
transição da Fase da Identidade Indefinida da CDB para o estágio da Identidade em
vias de Conclusão.
56
O novo programa de trabalho estipulava, no que concerne á àrea temática do acesso, da repartição de
benefícios e da proteção aos saberes tradicionais, a seguinte divisão: a Conferência das Partes deveria
tratar dos temas do acesso aos recursos genéticos; a Conferência deveria se ater ao tema do
compartilhamento de benefícios e, por seu turno, resultou acordado que a Conferência das Partes teria por
responsabilidade discutir os temas associados da transferência de técnologia e dos direitos de propriedade
intelectual.
91
Negociado sob a chancela da CDB entre os dias 4 a 8 de outubro de 1999 em
São José, na Costa Rica, o primeiro painel de especialistas sobre os temas do ABS
(acces and benefit sharing) seria concluído com o intuito de proporcionar à
Conferência das Partes um conjunto de recomendações destinado a elevar a
celeridade do processo de implementação desta área em particular.
Com a responsabilidade semelhante de informar a futura Conferência das
Partes, mas tratando de uma temática de análise distinta, o Grupo de Trabalho
Open-Ended AD HOC sobre o Artigo 8(j) se reuniria durante os dias 27, 28, 29, 30 e
31 de Março de 2002 na cidade de Sevilha, na Espanha. Assim como o Painel de
Especialistas, este Grupo de Trabalho tinha por incumbência precisar o quadro de
perspectivas, debates, questões controversas e possíveis pontos consensuais
acerca da complexa temática dos saberes tradicionais. Não obstante, distintamente
do tema ABS, as considerações acerca do Artigo 8(j) haviam surgido de maneira
bastante hesitante e vaga no decorrer das negociações da últimas quatro
Conferências das Partes. Neste sentido, se a complexidade dos temas era de fato
semelhante, a primeira reunião do Grupo de Trabalho não poderia desconsiderar o
desafio a mais de iniciar uma primeira organização dos temas, para que os detalhes
efetivamente pudessem ser debatidos ainda na 5ª COP.
A despeito de todos estes desafios, a cidade de Sevilha internalizaria uma
reunião profícua e bem sucedida no que diz respeito ao objetivo de mapear as
principais questões para futuras negociações e para a tão ambicionada
implementação. Neste sentido, foi possível ao Plenário discutir, entre outras
questões, a cooperação internacional entre distintas comunidades tradicionais, as
prioridades e as oportunidades para a colaboração e para a implementação do
programa de trabalho, a aplicação e o desenvolvimento de formas de proteção aos
saberes tradicionais, fossem elas de natureza legal ou não, mecanismos para
assegurar a participação destas coletividades nas discussões multilaterais,
mecanismos legais capazes de promover a repartição de benefícios, as utilizações
das práticas culturais tradicionais para a obtenção do desenvolvimento sustentável e
da conservação da biodiversidade e, por fim, a natureza e o escopo de elementos
destinados à monitorar os mecanismos de repartição e participação.
Convém ponderar que a magnitude dos assuntos discutidos explicitava que,
naquele momento, ainda não era possível visualizar um quadro definido e rigoroso
92
de temas destinados às negociações futuras das Conferências. Acreditamos que a
transparência inerente a esta reunião, a qual possibilitou que variadas
representações da sociedade civil participassem e contribuíssem ativamente em
todos os momentos das negociações, tenha contribuído para este tratamento
deveras abrangente do artigo 8(j). Neste contexto particular de negociação
multilateral, já era esperado o fato das deliberações terem explicitado diferenças
filosóficas fundamentais sobre a proteção do conhecimento tradicional como um
direito cultural ou como um direito econômico.
Com efeito, diferenças substantivas sobre percepções ideológicas complexas
vieram a tona a medida que se desdobravam os debates sobre a natureza do
mecanismo de justa repartição de benefícios, como deveria ocorrer a disseminação
de informações entre os governos e as comunidades por eles representadas ou não,
ou mesmo acerca das múltiplas considerações relacionadas às naturezas e aos
escopos dos sistemas de proteção.
Entretanto, posições divergentes como estas decorrem naturalmente de um
processo decisório multilateral pautado na transparência e na diversificação dos
atores envolvidos. Neste sentido, se a obtenção de consenso torna-se
consequentemente mais prolongada, é lícito supor que os resultados colhidos terão
alto potencial de desenvolvimento e contribuição. Importa observar, portanto, que o
texto final de recomendação para COP-5 (UNEP/CBD/WG8J/1/L.2) traduziu uma
solução eqüidistante tanto da posição preconizada pelas delegações
governamentais, quanto da posição advogada pelas representações de ONGs e
comunidades tradicionais.
Dessa forma, a recomendação permaneceria dividida entre as cláusulas
operacionais e um anexo contendo o programa de trabalho. Consequentemente,
em seu preâmbulo, este importante documento afirmava que os objetivos precípuos
do programa de trabalho seriam promover a justa implementação do Artigo 8(j) e
assegurar a participação das comunidades tradicionais em todos os níveis e estágios
das negociações. Por fim, o documento listava uma série de princípios avançados e
inovadores que detalhavam como propósitos plenos da Convenção da Diversidade
Biológica o papel das mulheres no gerenciamento da biodiversidade e dos saberes
tradicionais associados e uma aproximação holística e ambiental aos temas.
93
Ao associarmos esta experiência inédita e bem sucedida do Grupo de
Trabalho sobre o 8(j) com a igualmente exitosa reunião do Painel de Especialistas
sobre a temática ABS, nos sentimos encorajados a enfatizar que os primeiros 6 anos
de negociações na Convenção da Diversidade Biológica deixariam como legado para
a quinta Conferência das Partes uma rota definida, para que os diplomatas e a
sociedade civil pudessem dar uma passo adiante na direção de se elaborar guias de
boa conduta, aperfeiçoar a agenda de questões, desdobrar os significados e as
particularidades dos conceitos envolvidos e criar mecanismos multilaterais capazes
de assegurar o consentimento prévio e informado, a repartição de benefícios e os
termos mutuamente acordados.
6.4. A Segunda Fase de Negociações na Convenção da Diversidade Biológica
Fase da Identidade em Vias de Conclusão.
As reuniões analisadas até este momento iriam coroar a transição das
negociações sobre os temas do acesso, da repartição de benefícios e da proteção
aos saberes tradicionais para a denominada Fase da Identidade em vias de
Conclusão, caracterizada, essencialmente, por uma abordagem destas temáticas
que alcançaria progressivamente maior amplitude e delimitação e pela criação de
novos grupos de trabalho especializados capazes de iluminar aspectos e hiatos que
até aquele momento nem sequer haviam sido abordados.
Além desses desenvolvimentos, certas tendências iriam afirmar-se a partir do
ano 2000 e traduzir certo distanciamento entre a dinâmica das negociações ocorridas
na década de 1990 e o encaminhamento das negociações sucedidas nos primeiros
anos do novo milênio.
A primeira delas foi o crescimento das funções, dos poderes e da autonomia
da Convenção da Diversidade Biológica, no contexto do Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), tal como poderíamos deduzir do expressivo
aumento da amplitude de suas atividades e do elevado número de suas reuniões
regionais, internacionais e temáticas. Embora o Tratado da CDB limite a competência
das reuniões às temáticas relacionadas à biodiversidade, assim como lhes imponha
o princípio do respeito à soberania dos Estados Membros, é verdade que as
94
Conferências das Partes, sob o argumento da complexidade, da transversalidade e
da interdisciplinaridade dos temas que aborda, não somente concretizaria uma
extensão cautelosa e meticulosa de sua competência para áreas negociadas em
outras instituições, como também devotaria cada vez mais atenção e energia
diplomática a situações cujo conteúdo doméstico revelava-se tão importante quanto
as tendências internacionais (poderíamos citar como exemplos: as representações
nacionais das comunidades tradicionais, as legislações nacionais de acesso e
repartição de benefícios, o papel exercido por instituições nacionais na má
apropriação dos recursos genéticos e dos saberes tradicionais associados, etc).
Além disso, a Convenção da Diversidade Biológica, sob o impulso dos países
em desenvolvimento e, em particular, dos países nórdicos e dos países
megadiversos, investigaria e recorreria a novos e polêmicos mecanismos para firmar
a sua autoridade e a sua identidade, como a criação de um Regime Internacional de
Acesso e Repartição de Benefícios; as Guias de Boas Condutas para o Acesso e
para a Proteção dos Saberes Tradicionais e as recomendações direcionadas ao
aperfeiçoamento das legislações nacionais. Particularmente controversos do ponto
de vista jurídico, diplomático ou mesmo político, estes novos mecanismos nem por
isso deixariam de distinguir o trabalho e as contribuições da CDB perante a
variedade de iniciativas elaboradas por um conglomerado de regimes e organizações
internacionais engajadas nos temas em destaque.
Uma terceira tendência seria a da atrofia da dimensão propriamente
diplomática e negociadora das Conferências das Partes da CDB no que diz respeito
à substância das questões sob suas considerações. Assim, com a exceção da quinta
Conferência das Partes, na qual ainda era possível observar uma agenda de temas e
questões sobrecarregada e bastante abrangente, as demais Conferências
direcionariam para os Grupos de Trabalho especializados o tratamento dos tópicos
mais abrangentes e controversos, logrando acelerar a implementação dos objetivos
inicialmente estipulados através da análise e da consideração das listas de questões
sumarizadas e simplificadas contidas nos dossiês e relatórios elaborados por estes
grupos de auxílio e obtenção de consenso.
Essencialmente, e com risco de simplificar em demasia, podemos afirmar que
as grandes Conferências da Biodiversidade passariam a funcionar como poderosos
autômatos com as funções de legitimar, endossar, concretizar, ecoar, anular, ou
95
mesmo desaprovar decisões adotadas nos seus intervalos bianuais de reunião.
Como veremos mais adiante, esta reordenação da administração dos debates, dos
diálogos e das negociações produziria corolários por vezes positivos e por vezes
negativos aos atores envolvidos. Em suma, forneceria às delegações engajadas
novos e complexos desafios e oportunidades.
Interpretar esse processo e suas implicações políticas e legais é uma
preocupação constante deste capítulo. Portanto, a fim de ensaiar um primeiro quadro
explicativo satisfatório a esta interpretação, julgamos conveniente analisar em
maiores detalhes o panorama evolutivo das negociações ocorridas sob a alçada das
4 Conferências das Partes que compõem esta segunda fase da CDB e de alguns
encontros relevantes reunidos sob a jurisdição dos Grupos de Trabalho
especializados.
O projeto de reunir as Conferências das Partes nos cinco continentes teria
mais uma vez êxito no ano de 2000, quando mais de 1500 participantes
representando 156 governos, Organizações não Governamentais, Organizações
Intergovernamentais, organizações de comunidades tradicionais e instituições
privadas e educacionais reuniram-se na cidade queniana de Nairobe durante o
período de 15 a 26 de Maio de 2000.
No decorrer das reuniões e, principalmente, na conclusão do processo,
surgiria a percepção de que ocorrera maior dinamismo nas negociações referentes à
tríade acesso e repartição, propriedade intelectual e saber tradicional, a qual será
denominada tríade ABS. É muito provável que a destacada organização da COP-5
tenha contribuído decisivamente para a evolução dos debates referentes à tríade
ABS, assim como para a progressiva orientação destes debates pela ótica de um
conflito norte-sul. Embora esta orientação dos debates tenha pautado as reuniões
que antecederam as primeiras Conferências das Partes, em 2000, já era possível
observa algo que até aquele momento revelava-se imperceptível, ou seja, o
surgimento de grupos com propostas e posturas relativamente homogêneas e, por
conseguinte, mais organizados no sentido de promover um tratamento da tríade em
torno de objetivos minimamente comuns.
É interessante observar que nas questões relacionadas aos saberes
tradicionais e ao Artigo 8 (j) permaneciam as distintas visões de mundo entre
delegações governamentais e representantes indígenas e de ONGs preconizadas na
96
primeira reunião do Grupo de Trabalho sobre o 8 (j). Não obstante, este desacordo
não foi suficientemente radical a ponto de barrar certo avanço nas discussões sobre
estes temas.
Esta constatação adquire maior substância quando voltamos nossa atenção
aos temas do acesso e da repartição de benefícios. Neste caso, as questões
majoritárias envolvidas nesta temática plural ultrapassariam a esfera das indefinições
ao centralizarem as atenções dos participantes numa questão de suma importância
para as Conferências posteriores: a oposição entre guias de boas condutas não
obrigatórias, mecanismos multilaterais vinculantes e outras alternativas para
administrar as questões da tríade ABS e do acesso às coleções ex-situ.
Outro tema que insistia em exigir as energias diplomáticas dos participantes
consistia na administração das relações entre a CDB e os demais regimes
internacionais sobre propriedade intelectual, em particular, na oposição ou não entre
a CDB e o acordo TRIPs.
Neste momento, uma ressalva faz-se necessária. Se as atenções das
delegações estavam convergindo para poucos temas e, consequentemente,
delimitando uma agenda futura e informal de temas prioritários a serem debatidos,
este processo trazia como conseqüência não desejável uma reorientação de
posturas conflitantes. No caso em particular da relação entre o TRIPs e a CDB, a
obtenção de consenso tornou-se quase inalcançável quando muitos delegados
questionaram se a CDB seria o fórum mais adequado para tratar deste assunto.
Quase que ao mesmo tempo, outros representantes contribuíram para polêmica ao
ressaltar que as posturas favoráveis à caracterização da relação entre a CDB e o
TRIPs como essencialmente conflituosa seria improdutiva e potencialmente danosa à
CDB.
Ao término da Conferência era possível concluir que dois desafios centrais
iriam determinar o legado de Nairobi para as próximas reuniões. Tratava-se, em
termos gerais, da CDB manifestar progressos na formulação de políticas e na
implementação de temas que vinham sendo negociados por mais de 8 anos. Em
outros termos, pouco espaço de manobra estaria reservado para a CDB no tabuleiro
internacional se ela o realizasse uma transição da política para a ação. O outro
desafio que adquiria progressivamente maior relevância era a necessidade de os
membros integrarem efetivamente as negociações acerca dos temas transversais,
97
visto que, na área de ABS, propriedade intelectual, repartição de benefícios e
proteção aos saberes tradicionais vinham sendo debatidos de forma desaproximada.
Assim foi que também estas preocupações terminaram por serem objetos de
uma reforma, que se consubstanciou na adoção da Decisão V/26, a qual estabeleceu
Grupo de Trabalho Ad Hoc sobre ABS (access and benefit sharing) dedicado a
desenvolver guias de referência e conduta e alternativas aos seguintes temas:
consentimento prévio e informado; termos mutuamente acordados; papeis,
responsabilidades e participações dos envolvidos em todos os níveis do processo de
acesso; aspectos da conservação e do uso sustentável das coleções ex-situ e in-situ;
mecanismos para a repartição de benefícios; e a preservação e a promoção dos
conhecimentos tradicionais.
Dessa forma, lograva-se estabelecer para as próximas Conferências das
Partes parâmetros mais estreitos para os desdobramentos das atividades futuras da
organização nesta área de trabalho.
Em suma, em um quadro internacional no qual se pretendia promover uma
atuação crescente da CDB e diante da óbvia sobrecarga daquela organização para
tratar de um conjunto de questões e temas destacadamente complexos e
controversos, a idéia de criar grupos de trabalho para determinadas tarefas ganharia
simpatia crescente, reestruturando, consequentemente, a antiga dinâmica de
negociações.
Dentro desse contexto, ficou acordado que a primeira reunião do Grupo de
Trabalho sobre ABS deveria ocorrer na cidade alemã de Bonn, no período de 22 a 26
de Outubro de 2001. E foi exatamente desta forma que aproximadamente 350
participantes provenientes de 87 países e 88 organizações deliberaram sobre uma
agenda ambiciosa de tópicos no Centro Internacional de Congressos Bundeshaus.
No decorrer da semana de negociações, o Grupo de Trabalho viu-se diante da
árdua tarefa de selecionar os aspectos centrais de uma extensa lista de discussões e
contribuições provenientes de dois painéis de especialistas e das numerosas
decisões adotadas nas 5 Conferências das Partes já concluídas sobre os temas ABS
e transformá-los em uma guia de conduta e referência politicamente aceitável. O
andamento deste processo sofreria resistência de variados lados, na medida em que
muitos países temiam que as guias pudessem obstruir as legislações nacionais e as
práticas relacionadas aos recursos genéticos.
98
Dessa forma, os temas e as discussões que internalizaram maiores debates e
desentendimentos foram os associados aos papeis das partes envolvidas, à
discriminação de membros internacionais perante os nacionais e à diferenciação
entre as obrigações dos países provedores e dos países usuários.
Neste contexto, os países provedores de recursos biogenéticos se uniram e
se opuseram à inserção de cláusulas ou mesmo qualquer palavra no texto das guias
sobre a não discriminação entre membros nacionais e não nacionais perante a
arquitetura legal do acesso, a alicerçar esta posição permanecia a argumentação de
que as questões de acesso não se assemelham às questões de discriminação no
comércio internacional, de que a assistência ao desenvolvimento nacional constitui
pilar basilar de qualquer política pública séria e de que o Artigo 15 da Convenção da
Diversidade Biológica ressalta a relevância da soberania nacional.
Questões como essas indicavam claramente que a maior dificuldade em
negociar uma guia de conduta seria desenvolver uma lista de princípios ou áreas de
referência particularmente útil para uma grande diversidade de atores, incluindo
países de origem que também são usuários, organizações usuárias, comunidades
tradicionais, instituições acadêmicas, e outros agentes. Na medida em que as
circunstâncias podem divergir expressivamente entre os países, visto que existe
enorme diferença entre seus ordenamentos legais, o maior desafio seria desenvolver
guias potencialmente úteis a todos os membros.
Outro tema que passou a ser objeto de atenção e desentendimento crescente
no âmbito do Grupo de Trabalho é o da propriedade intelectual. Provavelmente, isto
se deva ao fato da reunião ter colocado o acento em questões de natureza técnica
propriamente dita, em detrimento de considerações mais amplas e menos
delimitadas. Com efeito, as negociações trataram de propostas para a inclusão das
informações sobre a origem dos recursos genéticos e das evidências do
consentimento prévio e informado para a utilização dos saberes tradicionais. Convém
observar que, ao direcionar as deliberações para estas questões concretas, o Grupo
de Trabalho iria se aproximar das discussões que vinham ocorrendo no Conselho do
TRIPs na OMC e na OMPI.
A despeito do questionamento acerca da legalidade de tais procedimentos,
este processo revelou-se bem sucedido na medida em que contribuiu para a
apresentação de práticas capazes de realizar a implementação da CDB, tais como a
99
revisão do que constitui arte prévia no processo de requisição de patentes,
alternativas disponíveis para o tratamento das patentes adquiridas de forma incorreta
e as informações que deveriam constar nas requisições de patentes da
biotecnologia.
Consequentemente, os observadores presentes puderam constatar que, no
geral, as delegações expressaram satisfação com a Decisão final adotada na
conclusão da reunião (UNEP/CBD/WG-ABS/1/L.3), pois ressaltariam que o
reconhecimento da necessidade de tratar da revelação do país de origem ou da
utilização dos conhecimentos tradicionais nos pedidos de patentes traduzia um
avanço significativo, mesmo que inicialmente estabelecidos como requerimentos
voluntários.
Outra constatação positiva que os atores concluíram do processo como um
todo foi que o Grupo de Trabalho revelou-se um primeiro passo na rota de
familiarização dos participantes com as especificidades e as particularidades de
outros grupos e dos múltiplos temas associados ao ABS.
A estas recomendações e decisões adotadas pelo Grupo de Trabalho sobre
ABS somaram-se as indicações e as propostas concebidas durante a segunda
reunião do Grupo de Trabalho sobre o Artigo 8(j). Organizada durante a primeira
semana de Fevereiro de 2002 na cidade canadense de Montreal, a reunião sobre o
artigo 8(j) traçou como objetivo central integrar as discussões sobre o 8(j) na
Convenção da Diversidade Biológica, logrando, com isso, desassociar do tema a
adjetivação enigmática que insistia em caracterizá-lo até aquele momento.
A magnitude deste objetivo não deve passar despercebida, principalmente se
levarmos em consideração as diferentes perspectivas dos atores envolvidos com
relação aos principais tópicos discutidos. Com efeito, a reunião de Montreal
conservou a oposição, observada na primeira reunião do grupo de trabalho, entre
a postura dos representantes indígenas presentes, caracterizada pela defesa da auto
determinação, da governança e dos direitos territoriais e culturais como os alicerces
fundamentais de um regime de proteção aos saberes tradicionais e a postura dos
representantes governamentais, singularizada na prerrogativa da soberania nacional,
no primado das autoridades e da legislação nacional e na caracterização dos temas
como questões de justiça internacional e desenvolvimento nacional. Esta era a
100
postura, por exemplo, defendida com maior afinco pelas delegações do Brasil, do
Canadá e da Argentina.
A despeito destas diferentes visões de mundo, os pronunciamentos dos
envolvidos ressaltaram a boa organização do evento e a obtenção do objetivo central
inicialmente estipulado, ou seja, se as discussões sobre sistemas sui generis de
proteção ao conhecimento tradicional, sobre o desenvolvimento de uma base de
dados internacional ou sobre os direitos costumários de proteção não foram
direcionadas para o desejável caminho do delineamento técnico, o texto final
adotado (UNEP/CBD/WG8J/2/L.6) traduziria a maior atenção que seria dispensada a
estes temas na agenda de negociações da futura sexta Conferência das Partes. Com
esta finalidade, a comunicação final estipulava que o secretariado executivo da CDB
deveria, entre outras responsabilidades, assegurar: a) o desenvolvimento, a
implementação e a avaliação das estratégias para promover maior acesso às
informações relacionadas ao Artigo 8(j); b) o fortalecimento da participação das
comunidades tradicionais no processo de tomada de decisão sobre os saberes
tradicionais e sobre os sistemas legais internacionais e nacionais de proteção e estes
conhecimentos; c) a comunicação com outros secretariados de organizações
internacionais dedicadas a analisar os temas do conhecimento tradicional.
Foi justamente neste contexto que os administradores deram início aos
trabalhos de preparação da sexta Conferência das Partes da Convenção da
Diversidade Biológica. Distintamente das conferências anteriores a COP-6 teve a sua
organização associada a uma agenda de negociações revisada e amplificada pelos
trabalhos dos Grupos temáticos que a precederam.
Destarte, não se tratava, como antes, de determinar o que alcançar no
decorrer das duas semanas de reuniões, mas sim focalizar nos tópicos já
determinados de antemão. Esse era o caso, por exemplo, das Guias de Boas
Condutas e de referências, cujos parâmetros iniciais haviam sido delimitados pela
primeira reunião do Grupo de Trabalho sobre ABS, ou mesmo dos mecanismos de
revelação a serem incluídos nos processos de requisição de patentes com o intuito
de obstar a má apropriação dos saberes tradicionais, cujas estruturas tinham sido
debatidas com afinco na segunda reunião do Grupo de Trabalho sobre o Artigo 8(j).
Dessa forma, não foram poucas as expectativas que antecederam a abertura
dos portões do Centro de Congresso Holandês da cidade de Haia, o qual deveria
101
hospedar a COP-6 durante o período de 7 a 19 de Abril de 2002. Contando com mais
de 2000 participantes e 176 governos representados, a COP-6 se destacaria por
apresentar umas das agendas mais ambiciosas negociadas por uma conferência
da CDB, assim como por adotar o primeiro grande mecanismo de implementação do
tema do acesso e da repartição de benefícios.
Logo de início acordou-se que a pesada agenda de negociações exigia uma
subdivisão dos temas a serem analisados. Dessa forma foram criados ainda em 7 de
abril dois grupos de trabalhos temporários que deveriam coordenar as negociações
de dois conjuntos de temas: o Grupo 1 deveria considerar os relatórios nacionais,
biodiversidade florestal, espécies e ecossistemas e as preparações para a COP-7:
por seu turno, o Grupo 2 teria por incumbência tratar do artigo 8(j), dos mecanismos
para a implementação, a cooperação com outras instituições internacionais e as
questões do acesso e da repartição de benefícios.
Convém destacar que, pela primeira vez, a Conferência das Partes concluiria
uma subdivisão a priori dos temas relacionados ao ABS e dos demais temas
atinentes à biodiversidade com o intuito de acelerar a adoção das recomendações
estipuladas pelas reuniões dos Grupos de Trabalho do artigo 8(j) e do ABS. Tratava-
se, nas palavras do próprio presidente da Conferência, Geke Faber, de ultrapassar
um duplo desafio: impelir a CDB para a efetiva implementação e não mais enfatizar
única e exclusivamente o desenvolvimento de políticas indefinidas. Não eram poucos
os representantes favoráveis à obtenção desta mudança, visto que após 10 anos de
existência, tornava-se imperativo legitimar a existência da Convenção e validar o seu
futuro.
Não obstante, se havia consenso perante a urgência da CDB ultrapassar
estes desafios, imperava a divergência acerca dos mecanismos, das práticas e do
tempo necessários à consecução deste objetivo.
Neste momento uma ressalva faz-se necessária: devido às limitações de uma
tese de mestrado não objetivamos analisar minuciosamente todos os importantes
pontos de divergência esboçados no decorrer da COP-6, mas sim detalhar as
controvérsias que caracterizaram o que consideramos o grande feito da COP-6, ou
seja, o processo de adoção das Guias de Boas Condutas esboçadas pelo Grupo de
Trabalho sobre ABS.
102
Ao contrário do que inicialmente podemos supor, o processo de adoção das
Guias de Boas condutas internalizou expressiva divergência no decorrer das
negociações da sexta Conferência da CDB. Indícios de que o processo de adoção
exigiria muita energia diplomática podiam ser observados no próprio texto
elaborado pelo Grupo de Trabalho em outubro de 2001e direcionado para a COP-6,
o qual estipulava um conjunto expressivo de questões controversas a serem
negociadas em Haia, dentre as quais podemos destacar: o escopo das guias com
respeito aos produtos e processos derivados dos recursos genéticos; o envolvimento
dos colaboradores; o papel dos direitos de propriedade intelectual na
regulamentação do acesso, da repartição de benefícios e da relação entre a
Convenção da Diversidade Biológica e o Acordo de Direitos de Propriedade
Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs) da Organização Mundial do Comércio.
Naturalmente, nem o maior esforço diplomático seria suficiente para resolver
todos estes pontos controversos em Haia. Diante da magnitude da tarefa e do
momento favorável à obtenção de uma guia, o segundo Grupo de Trabalho da
Conferência organizou os seus esforços no sentido de resolver as questões que
efetivamente poderiam anular a obtenção das guias. Neste sentido, a estratégia
revelar-se-ia bem sucedida no momento em que as partes chegaram a um
importante compromisso referente à inclusão de produtos ou derivados de recursos
genéticos no campo das Guias relacionado ao consentimento prévio e informado e
aos termos mutuamente acordados. Igualmente relevante para o andamento do
processo foi a solução adotada para a delimitação dos termos a serem utilizados no
texto das guias, neste caso, optou por determinar como referência os termos
inicialmente presentes no corpo da Convenção.
Se, até aquele momento, estas indefinições estavam em processo de efetiva
resolução, permaneceria um debate importante sobre o caráter de obrigatoriedade
das Guias. Esta questão em particular revelava-se mais complexa em razão dos
desdobramentos diplomáticos observados no Conselho do Acordo TRIPs da OMC.
Em termos gerais, a Índia e o Brasil, apoiados pela Jamaica e pelo Peru,
logravam uniformizar o tratamento do tema na CDB e na OMC, assim como
estabelecer na CDB um alicerce capaz de influenciar o difícil processo negociador no
âmbito do Conselho do TRIPs. Como veremos mais adiante, a Índia e o Brasil
permaneciam engajados nas negociações da OMC com o intuito de reformar o
103
Acordo TRIPs no sentido de incluir os requerimentos de revelação nas requisições
de patentes. Tornava-se, por conseguinte, imperativo assegurar no âmbito da CDB
que as Guias encorajassem as partes a exigirem nos pedidos de patentes a
revelação do país de origem dos recursos genéticos e a evidência da repartição de
benefícios e do consentimento prévio e informado das comunidades tradicionais.
Esta caracterização das Guias permaneceria, contudo, refutada
veementemente pela União Européia, pelo Canadá, pela Austrália e pela Suíça,
países que desejavam tornar as Guias um instrumento unicamente de referência e,
portanto, incapaz de internalizar obrigações de qualquer natureza. Em suma,
manobravam no sentido de assegurar que as guias fossem opcionais.
Diante destas diferentes e inconciliáveis posturas, o 2º Grupo de trabalho, sob
a ameaça de não concluir o texto final das guias até o prazo final das negociações,
viu-se na iminência de constituir uma solução de compromisso entre estes grupos de
países. Ao término do processo, foi possível obter um texto eqüidistante, o qual
estabeleceu que os requerimentos para a revelação da origem do material genético e
do saber tradicional associado deveriam vir adicionados nas Guias como possíveis
mecanismos de cumprimento dos objetivos estipulados, assim como substituiu o
termo “direitos de propriedade intelectual” por patentes no texto final. Em adição, e
por força da atuação assertiva do Brasil e da Índia, foi adicionada ao texto final
(UNEP/CBD/COP/6/L.19) uma seção denominada “O papel dos direitos de
propriedade intelectual na implementação dos acordos de acesso e repartição de
benefícios”, a qual convidava as partes a encorajar a inclusão dos requerimentos de
revelação nos pedidos de propriedade intelectual e o Secretariado Executivo da CDB
e da Organização Mundial da Propriedade Intelectual a providenciar maiores
informações a respeito desta temática.
No dia 19 de Abril de 2002, uma sexta feira, foram oficialmente adotadas as
denominadas Guias de Boas Condutas de Bonn. Fruto de uma longa, contenciosa e
complexa dinâmica de negociação, as “Guias de Boas Condutas de Bonn sobre o
Acesso aos Recursos Genéticos e o Compartilhamento Justo e Eqüitativo de
Benefícios Oriundos de Sua Utilização” representavam um mecanismo inédito e o
primeiro passo concreto no tratamento multilateral dos temas do acesso, dos saberes
tradicionais e dos mecanismos de repartição de benefícios.
104
Pela análise do texto final, podemos concluir que sua proposta é auxiliar o
esboço e o desenvolvimento de medidas legislativas, administrativas e políticas
sobre o Acesso e a Repartição de Benefícios e sobre contratos. As menções aos
direitos de propriedade intelectual ocorrem em cláusulas precisas, as quais, entre
outras coisas, orientam os membros que congregam usuários de recursos genéticos
sobre suas jurisdições a considerarem a adoção de “medidas para incentivar a
divulgação do país de origem dos recursos genéticos e da origem do conhecimento
tradicional, inovações e práticas de comunidades indígenas e locais, nas solicitações
de direitos de propriedade intelectual”.
57
A partir daí, o Guia de Boas Condutas recomenda uma série de providências
concretas e específicas relativas a diversas questões relevantes, incluindo: a)
impacto dos regimes de propriedade intelectual sobre o acesso aos recursos
genéticos, sua utilização e pesquisa científica; b) papel de leis e práticas usuais em
relação à proteção de recursos genéticos e conhecimento tradicional, inovações e
práticas, e seu relacionamento com os direitos de propriedade intelectual; c)
eficiência da divulgação do país de origem e da autorização prévia para auxiliar no
exame da solicitação de direitos de propriedade intelectual e reexame dos direitos de
propriedade intelectual concedidos; d) exeqüibilidade de um sistema de certificação
de origem internacionalmente reconhecido como evidência de autorização explícita
prévia e de termos mutuamente acordados; e) reconhecimento de evidência oral nas
perícias anteriores aos exames, concessões e manutenções dos direitos de
propriedade intelectual.
Um dos grandes méritos do Guia de Boas Condutas de Bonn foi o
redirecionamento das atividades da CDB relacionadas à conservação, área de
interesse dos países desenvolvidos, para o tema da repartição de benefícios. Em
outras palavras, uniformizou o tratamento da temática nos fóruns do regime
internacional de propriedade intelectual e nos espaços de negociação da CDB.
Também, no plano de implementação adotado no documento, decidiu-se pelo início
das negociações para a formulação de um regime internacional capaz de promover
a repartição de benefícios resultantes da utilização dos recursos genéticos e dos
saberes tradicionais associados. Por último, o Guia proporcionou termos de
57
Secretaria da Convenção sobre Diversidade Biológica, “Report of the Sixth Meeting of the Conference of
the Parties to the Convention on Biological Diversity”, 2002, parágrafo 16(d)(ii).
105
referência delineados com o intuito de definir o marco das futuras discussões entre
os participantes, as quais, a partir desse momento, permaneceriam voltadas para a
questão da relação entre o Acordo TRIPs e a CDB.
Não obstante, na prática, a natureza opcional das diretrizes de Bonn
reforçaria a percepção da diplomacia brasileira de que o fórum mais apropriado para
a criação de um instrumento internacional obrigatório era a OMC. Com freqüência,
esta constatação de que a obrigatoriedade do instrumento internacional é condição
necessária a sua correta atuação aparece vinculada no discurso da diplomacia
brasileira:
“O Brasil defende que deve ser um instrumento vinculante, para que
seja realmente efetivo no combate ao acesso não autorizado a recursos
genéticos e ao conhecimento tradicional associado. Atualmente, existem
diretrizes não vinculantes sobre o assunto, as Diretrizes de Bonn, que são
insuficientes exatamente por serem voluntárias. Isso é algo que está definido
na posição brasileira”
58
Não obstante, a despeito de seu caráter voluntário, não devemos subestimar
a importância da adoção das Guias de Bonn para o tratamento destas questões no
tabuleiro internacional e, em específico, para a caracterização da Convenção da
Diversidade Biológica como um ator relevante das relações internacionais.
Em primeiro lugar, a presença indiscutível da linguagem referente à revelação
do país de origem e da utilização dos conhecimentos tradicionais em requerimentos
de direitos de propriedade intelectual, em um texto oficial adotado pela Conferência
das Partes, traduzia um passo adiante no processo internacional multilateral como
um todo. Com efeito, a partir de abril de 2002 a Convenção da Diversidade Biológica
não somente estabeleceria um mandato para tratar dos temas dos direitos de
propriedade intelectual como igualmente adquiria uma identidade concreta nesta
área de negociações, retirando da Organização Mundial da Propriedade Intelectual a
responsabilidade exclusiva na elaboração de mecanismos legais capazes de
58
Discurso da Diplomata Adriana Sader Tescari no Seminário As Encruzilhadas das Modernidades e a
Lógica da Diversidade, realizado de 4 a 6 de outubro de 2005, em Brasília-DF. In: MATHIAS. Fernando e
NOVION. Henry, As Encruzilhadas das Modernidades, Debates sobre Biodiversidade, Tecnociência e
Cultura, São Paulo, Instituto Sócio Ambiental, Fevereiro de 2006, p. 357.
106
prevenir a má apropriação dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais
associados.
Em suma, a partir da COP-6, a CDB permaneceria ativamente integrada na
complexa arquitetura do Regime Internacional de Propriedade Intelectual,
desempenhando um papel relevante na propagação de uma postura perante o tema
da proteção aos produtos da biotecnologia progressivamente mais favorável aos
países em desenvolvimento.
É interessante observar que este importante avanço da CDB não somente
traria mudanças significativas para as agendas das futuras negociações, como
também ocasionaria uma transformação nas dinâmicas das futuras reuniões dos
grupos de trabalho sobre o ABS e o artigo 8(j). Em particular, deslocaria o eixo de
negociações para as relações entre a CDB e a Organização Mundial da Propriedade
Intelectual e facilitaria o surgimento de grupos compostos por países com interesses,
propostas e posturas semelhantes.
Neste sentido, pela primeira vez em mais de 10 anos, os países em
desenvolvimento mais engajados nestas negociações da CDB iriam se expressar
com uma voz. Com efeito, no decorrer de 2003, África do Sul, Bolívia, Brasil,
China, Colômbia, Costa Rica, Equador, Filipinas, Índia, Indonésia, Madagascar,
Malásia, México, Peru, Quênia, República Democrática do Congo e Venezuela
adentraram nas negociações da CDB reunidos sob o Grupo dos Países
Megadiversos a Afins.
Em fevereiro de 2002, este grupo de 12 países
59
representando
aproximadamente 70% da diversidade biológica terrestre se reuniu em Cancun para
concretizar a formação do Grupo dos Países Megadiversos Afins. A Declaração de
Cancun, texto formal que lançou oficialmente o Grupo, revela que a finalidade central
do processo de cooperação é coordenar posições sobre como prosseguir nas
negociações da CDB, da OMC e da OMPI e sobre como obter avanços na
formulação de um novo regime internacional capaz de fundamentar a repartição de
benefícios provenientes da utilização da biodiversidade. A análise da Declaração
igualmente explicita que este regime internacional deverá estar alicerçado na
reforma do sistema de patentes com o intuito de nele incluir as revelações de
59
O grupo possui o seguinte endereço eletrônico próprio que contem todos os documentos oficiais
importantes: http://lmmc.nic.in/
107
origem, de consentimento prévio informado e do compartilhamento de benefícios
60
.
Ainda, constituem objetivos relevantes para o Grupo harmonizar as legislações
nacionais dos estados-membros que tratam da biodiversidade e desenvolver
projetos estratégicos bilaterais, regionais e internacionais, fundamentados na
cooperação Sul-Sul, com o intuito de promover a conservação e o uso sustentável
da biodiversidade.
Desde a sua formação, em Cancun, o Grupo dos Megadiversos concluiu uma
Reunião Ministerial na cidade peruana de Cusco, em novembro de 2002, uma
Reunião de Especialistas em Formulação Institucional em Kuala Lumpur, na Malásia
em julho de 2003, e, desde que a Índia ocupou a presidência do Grupo, foi
organizada uma Reunião na cidade de Nova Déli em janeiro de 2005. Até o
momento, vale destacar que o Grupo centralizou seus maiores esforços nas
reuniões da Convenção da Diversidade Biológica. Com efeito, o Plano de Ação
esboçado em Kuala Lumpur recomendou o estabelecimento de duas forças tarefas
que deveriam atuar na CDB. À primeira força tarefa foi delegada a responsabilidade
de avançar as negociações relacionadas ao acesso, ao compartilhamento de
benefícios, aos saberes tradicionais e aos direitos de propriedade intelectual. Já, a
segunda força tarefa deveria se incumbir de tratar das discussões envolvendo
biosegurança e biotecnologia. Por fim, à Declaração Ministerial de Nova Déli seria
anexado documento organizado no sentido de detalhar aspectos técnicos do
desejável Regime Internacional de Acesso e Repartição de Benefícios (ABS, na sigla
em inglês), tais como seu escopo, sua relação com as legislações nacionais, seus
elementos etc.
Foi no interior deste novo contexto que ocorreu a segunda reunião do Grupo
de Trabalho sobre o ABS na cidade canadense de Montreal no período de 1 a 5 de
dezembro de 2003 e a reunião do Grupo de Trabalho sobre o Artigo 8(j) pouco tempo
depois, no período de 8 a 12 de dezembro, também na cidade de Montreal.
60
Nos termos da Declaração: Parágrafo 1(h). Seek the creation of an international regime to effectively
promote and safeguard the fair and equitable sharing of benefits arising from the use of biodiversity and its
components. This regime should contemplate, inter alia, the allowing elements: certification of the legal
provenance of biological materials, prior informed consent and mutually agreed terms for the transfer of
genetic material, as requirements for the application and granting of patents, strictly in accordance with the
conditions of access agreed by the countries of origin.
108
Logo no início das reuniões foi possível observar a ruptura com a dinâmica de
negociações do passado recente, pois as atenções estariam voltadas para duas
questões centrais: os papéis respectivos a serem desempenhados pela Convenção
da Diversidade Biológica e pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual na
conservação, no uso sustentável e no compartilhamento de benefícios relacionados
aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais; e a necessidade ou não de
se estabelecer possíveis elementos concretos para o desenvolvimento de um
Regime Internacional de Acesso e repartição de Benefícios.
As relações com a OMPI revelaram-se o ponto mais controverso das
negociações em ambos os Grupos de Trabalho. Em particular, surgiram dois grupos
centrais de atores com duas propostas diametralmente opostas. Por um lado, o
Brasil, a Índia, o México e mais 9 países, atuando em nome do Grupo dos Países
Megadiversos, estruturaram uma postura uniforme perante o assunto, a qual ganhou
o apoio do Grupo Africano e passou a defender um papel de liderança da Convenção
da Diversidade Biológica na formulação e na implementação de dispositivos de
revelações nas requisições de patentes e de direitos de propriedade intelectual ou
sui generis na proteção aos saberes tradicionais.
Por outro lado, a União Européia, o Japão a Austrália, o Canadá e a Suíça se
uniram na defesa de um fortalecimento da colaboração entre a OMPI e a CDB, com
o intuito de assegurar o papel de coordenador e orientador nestes temas que já vinha
sendo desempenhado pela OMPI. Em termos gerais, argumentavam que a CDB
possuía pouca ou nenhuma experiência no tratamento de termas de propriedade
intelectual, o que contrastava claramente com a enorme experiência acumulada pela
OMPI nas áreas em destaque. Como veremos mais adiante no capítulo sobre as
negociações na OMPI, os países em desenvolvimento tinham fortes razões para
temer a centralização dos temas de propriedade intelectual no fórum de negociações
desta organização internacional.
Já, no que tange à questão da formulação de um novo Regime Internacional
para o ABS o enquadramento das negociações permaneceu estruturado em torno
dos debates entre os mesmos grupos de países. Com efeito, mais uma vez o Grupo
dos Megadiversos e o Grupo Africano defendiam o início mais breve possível das
negociações sobre o regime, assim como a sua estruturação em torno de um caráter
obrigatório. Logravam, com isso, reequilibar a balança entre o acesso e a repartição
109
de benefícios, assim como desenvolver um instrumento multilateral capaz não
somente de requisitar a adoção de medidas por países provedores e usuários,
promover a certificação, operacionalizar a repartição de benefícios, e assegurar o
respeito internacional pela extensão da soberania nacional aos recursos genéticos,
como igualmente tratar dos derivados e incluir mecanismos de solução de
controvérsias.
Por seu turno, o grupo dos países desenvolvidos apoiavam a implementação
das Guias de Boas Condutas de Bonn e a incorporação das experiências obtidas
com este instrumento não obrigatório. Ainda, criticavam ativamente qualquer aspecto
obrigatório presente no futuro Regime Internacional.
Como podemos observar, à delimitação das questões debatidas seguiu-se o
endurecimento das posturas negociadoras, o que, por seu turno, dificultava a
obtenção de consenso e de uma postura ao menos eqüidistante. Traduziu, portanto,
expressivo sucesso naquele contexto a obtenção de uma decisão de recomendar à
COP-7 o estabelecimento de um mandato para que o Grupo sobre ABS elaborasse e
desenvolvesse o Regime Internacional de Acesso e Compartilhamento de
Benefícios.
No entanto, se esta decisão final provocaria aplausos de muitas delegações,
vários observadores não se furtaram em afirmar que a criação de um regime
internacional teria que lidar com grandes obstáculos no presente próximo. Com
efeito, entre outros argumentos relevantes, estes observadores ressaltaram que não
somente a implementação das Guias de Boas Condutas já vinha internalizando
muitas dificuldades, como também o estabelecimento de um complexo mecanismo
internacional exigiria uma percepção mais acurada sobre os temas do acesso e da
repartição de benefícios, percepção que esta que em 2003 dificilmente poderia ser
construída.
Neste conjunto de obstáculos poderíamos inserir mais um e que talvez fosse o
mais complicado e o mais árduo de todos. Tratava-se de harmonizar e uniformizar o
tratamento do tema em todas as organizações internacionais que lidavam ativamente
com estas questões e com temáticas intimamente a elas relacionadas para, assim,
possibilitar às futuras Conferências das Partes da CDB meios concretos de estruturar
o Regime Internacional de Acesso e Repartição de Benefícios.
110
Se recordarmos que no final de 2003 não menos do que a Organização
Mundial do Comércio, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a
Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, a
Organização Mundial da Saúde, a Organização das Nações Unidas para a
Agricultura e a Alimentação, a Unesco e uma série de organizações regionais
tratavam ativamente dos temas do acesso aos recursos genéticos, da repartição de
benefícios por intermédio dos direitos de propriedade intelectual e da proteção,
promoção e preservação dos saberes, técnicas e inovações das coletividades
tradicionais de forma muitas vezes desconectada, promovendo sobreposições de
agendas e mandatos e estabelecendo regras, princípios e normas contraditórias, não
nos deve causar espanto que a manutenção de uma conjuntura como esta
enfraqueceria a obtenção de um Regime multilateral internacional nas próximas
conferências da CDB.
É interessante observar que nem os países megadiversos e nem tampouco os
países industrializados ignoravam estes desafios e obstáculos. Aliás, é possível
mesmo afirmar que estruturaram suas estratégias diplomáticas vindouras em torno
deste conjunto de características.
No caso em particular do Brasil, da Índia e dos demais países africanos e
megabiodiversos, a consciência desta conjuntura desfavorável aos seus interesses
direcionaria as suas energias diplomáticas, no âmbito da CDB, em direção à
obtenção de uma estrutura mínina para o Regime Internacional o mais breve
possível. Para tanto, não poupariam esforços no sentido de delimitar a natureza, o
escopo e o funcionamento do Regime Internacional em meio à evolução das
negociações concluídas paralelamente nos demais fóruns, tornando-o um
instrumento único, legalmente vinculante e capaz de assegurar o compartilhamento
de benefícios com os países de origem.
Já, no que tange aos Estados Unidos, ao Canadá, à Austrália, ao Japão e à
Suíça, países abertamente favoráveis à manutenção do status quo nos temas do
acesso e dos direitos de propriedade intelectual, a percepção desta conjuntura
favorável às suas políticas orientou-os tanto a barrar qualquer avanço na evolução
do Regime Internacional almejado pelos países em desenvolvimento, quanto a
ordenar este instrumento no sentido de torná-lo habilitado a facilitar o acesso de suas
111
indústrias de tecnologia e de suas instituições de pesquisa aos recursos biogenéticos
e aos saberes, inovações e práticas tradicionais a eles associados.
No interior deste quadro composto por duas posições diplomáticas e
negociadoras quase totalmente opostas, emergiu uma postura de conciliação.
Esboçada gradualmente pelos países nórdicos desde o final da fase da “identidade
indefinida da CDB”, esse ponto de vista ganharia consistência e influência com a sua
adoção pela delegação da União Européia a partir das reuniões de 2004. Neste
sentido, um dos atores mais poderosos e influentes da Convenção da Diversidade
Biológica, a União Européia adotaria uma postura conciliadora e razoavelmente
eqüidistante das posições mais radicais esboçadas pelos grupos dos países
provedores e dos países usuários. Como veremos logo mais, longe de favorecer a
condição dos países provedores nas futuras negociações, esta inflexão da delegação
européia traria por conseqüências uma erosão na união dos países pertencentes ao
Grupo dos Países Megabiodiversos e Afins, assim como fortaleceria a posição dos
países industrializados nas futuras conferências das partes da CDB.
Inicia-se, assim, no interior desta complexa situação a Sétima Conferência
das Partes da Convenção da Diversidade Biológica. Organizada na cidade malaia de
Kuala Lumpur, durante o período de 9 a 20 de fevereiro de 2004, a COP-7
internalizou na sua agenda de negociações e na estrutura de seus ambientes
multilaterais estas circunstâncias intrincadas e labirínticas das relações
internacionais. Caracterizada como uma das conferências mais ambiciosas e
movimentadas organizadas pelo secretariado da CDB, a COP-7 direcionava para
as delegações diplomáticas e para os representantes da sociedade civil não menos
do que 3 novos programas para analisar, variadas questões transversais e
aproximadamente 300 páginas de decisões que necessitavam de exames
minuciosos.
No caso em particular do terceiro objetivo precípuo da Convenção, leia-se a
repartição justa e eqüitativa dos benefícios provenientes da utilização dos recursos
genéticos, a tarefa revelava-se ainda mais incerta, pois o texto submetido pela
segunda reunião do Grupo de Trabalho sobre ABS permanecia ainda
demasiadamente vago, envolto em parágrafos e repleto de hiatos.
A exemplo do que ocorreu em muitos outros momentos importantes e difíceis
do processo de negociação, os países membros conseguiram superar as
112
expectativas dos observadores mais céticos ao concluir uma simplificação
significativa do texto, chegar a um compromisso e adotar uma decisão e alguns
termos de referência para os trabalhos futuros do Grupo sobre ABS.
No que concerne à questão específica do Regime Internacional para o ABS,
as análises dos documentos finais (UNEP/CBD/COP/7/L.28) e dos relatórios sobre a
Sétima Conferência indicam que foram obtidos três tipos de acordos. Em primeiro
lugar, as partes presentes em Kuala Lumpur concordaram em incluir no escopo do
Regime Internacional não somente os recursos biogenéticos, mas também os
conhecimentos, as práticas e as inovações das coletividades tradicionais.
Seguramente este desdobramento fundamentou um avanço significativo, visto
que exigiu maior cooperação e comunicação entre os Grupos de Trabalho sobre o
ABS e o Artigo 8(j) e assegurou maior participação das coletividades tradicionais nas
negociações sobre o tema. Sua maior virtude, entretanto, foi retirar o Grupo de
Trabalho sobre o Artigo 8(j) de uma posição isolada no interior da CDB, que pouco
contribuía e quase não influenciava as tomadas de decisões nas conferências das
partes.
Em segundo lugar, foi possível observar um pequeno avanço com relação à
questão da cooperação com outras organizações para a legitimação e para a
estruturação do Regime Internacional. Em particular, as partes chegaram a um
acordo sobre a inclusão da UNCTAD e de outras organizações como instituições
aptas a fornecer dados e materiais sobre os pontos técnicos do Regime, adotada na
decisão final em razão de grande pressão exercida pelos países em
desenvolvimento e com o intuito de barrar a influência da Organização Mundial da
Propriedade Intelectual no desenvolvimento dos traços legais do instrumento
multilateral.
Por fim, em terceiro lugar, e como resultado naturalmente esperado de uma
negociação calcada em posturas muito contraditórias, as opções sobre a natureza do
Regime Internacional permaneceram as mais abertas possíveis. Com efeito, ao
término da Conferência, seguiu-se a orientação de que o Regime Internacional
poderia permanecer composto por um ou mais instrumentos organizados em torno
de um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomadas de
decisões, fossem eles legalmente obrigatórios ou não. Neste caso, pouco ou nenhum
113
progresso seria verificado, permanecendo em Kuala Lumpur a indefinição na
natureza do Regime verificada na COP-6.
Com a posterior adoção da decisão VII/19, a Sétima Conferência das Partes
encerraria os seus trabalhos em 2004, confirmaria a exigência dos Grupos de
Trabalho especializados negociarem o Regime Internacional de Acesso e marcaria
para a cidade de Bangkok a terceira reunião do Grupo de Trabalho sobre o ABS, a
qual deveria ocorrer entre 14 e 18 de fevereiro de 2005.
Esse encontro, a despeito de representar o primeiro passo concreto na
construção do Regime Internacional, se notabilizaria por organizar quase todos os
pontos controversos envolvidos na negociação deste tema e as respectivas posições
dos países acerca de cada um destes pontos. Neste sentido, a despeito da
complexidade dos assuntos, da dificuldade em desenvolver uma posição comum
sobre a natureza do regime, ou mesmo sobre a sua real necessidade, e da estrutura
internacional confusa, o Grupo de Trabalho foi bem sucedido em identificar várias
opções para a natureza, o escopo, os objetivos e os elementos do Regime
Internacional. Como conseqüência, conseguiu pavimentar o caminho para futuras
deliberações mais planejadas.
Acreditamos que este êxito seja fruto da eficiente organização das discussões
que foi adotada durante as reuniões de Bangkok e que possibilitou ao Brasil, à Índia
e aos demais países do Grupo dos Megadiversos e do Grupo Africano explicitarem e
defenderem suas posições perante cada um dos pontos do Regime.
Com relação, por exemplo, à natureza do Regime Internacional, o Grupo dos
Megadiversos, o Grupo Africano e outros países em desenvolvimento defenderam a
necessidade de se constituir um regime legalmente obrigatório. Posição esta
largamente criticada pela União Européia, pelo Canadá, pelo Japão e pela Austrália,
países que advogavam por uma posição mais aberta ao ressaltarem que a repartição
de benefícios deveria ser regulamentada por variados instrumentos em diferentes
níveis. Permanecendo este desacordo, tornou-se necessário adotar uma decisão que
harmonizasse as duas posturas. E foi justamente isto que ocorreu quando as partes
concordaram em inserir no relatório da reunião que o regime deveria permanecer
com as opções abertas, mas que, ao mesmo tempo, seu cerne deveria ser
constituído por um mecanismo obrigatório.
114
No que tange às considerações sobre o escopo do Regime, os Estados
Unidos, a União Européia e o Canadá ressaltavam o imperativo de se analisar
experiências nacionais, internacionais e regionais sobre os instrumentos e processos
de ABS como pré-requisito à definição deste escopo. Denominada de “análise das
brechas”, esta orientação dos países industrializados seria criticada pelo Grupo dos
Megadiversos sob o argumento de que as brechas eram suficientemente
conhecidas, leia-se o acesso e a utilização o autorizada dos recursos genéticos e
dos saberes tradicionais, e que esta análise poderia de fato ocorrer em paralelo com
as negociações sobre o desenvolvimento do regime.
Estratégia idêntica foi organizada pelos países industrializados com relação às
negociações sobre os objetivos e sobre os elementos constitutivos do Regime
Internacional, pois ressaltavam que a “análise das brechas” deveria anteceder
qualquer consideração mais delimitada sobre a estrutura do instrumento multilateral.
Temerosos de que esta orientação pudesse prolongar e dificultar ainda mais a
agenda de prioridades e atrasar as negociações, os países provedores de recursos
genéticos e saberes tradicionais manobraram no sentido de delimitar da forma mais
precisa possível o que deveria constituir objetivos do regime. Com efeito, ao final do
evento, concluíram que os objetivos deveriam ser: a) prevenir a contínua má
apropriação e o mau uso dos recursos genéticos e dos seus derivados; b) assegurar
que os benefícios estejam também direcionados para os países de origem; c)
proteger os direitos das comunidades tradicionais sobre seus conhecimentos; e d)
reforçar as legislações nacionais de acesso.
Não chega a surpreender, assim, que esta situação tenha gerado um
documento bastante abrangente e que apresentou 6 opções submetidas pelas partes
com relação à natureza, ao escopo, aos elementos e aos objetivos do futuro regime
(UNEP/CBD/WG-ABS/3/2). Procurava-se, assim, preservar os ganhos
administrativos obtidos em Bangkok e deixar como legado para a próxima reunião do
Grupo de Trabalho sobre ABS um documento mais organizado a ponto de favorecer
o avanço dos principais pontos controversos.
A análise da quarta reunião do Grupo sobre ABS, organizada na cidade
espanhola de Granada durante o período de 30 de janeiro a 3 de fevereiro de 2003
indica que os objetivos de Bangkok foram parcialmente alcançados. Se, de fato, o
texto proveniente da última reunião proporcionou as bases para a criação de um
115
novo documento mais ambicioso, detalhado e atinente aos interesses dos países
provedores, também é igualmente verdade que o aperfeiçoamento do texto provocou
uma intensificação dos debates e da oposição entre os estados industrializados e os
estados em desenvolvimento.
Sob a alegação de que o novo texto direcionava radicalmente as negociações
para o caminho de um instrumento legalmente vinculante, o grupo de países
desenvolvidos favoráveis a “análise das brechas”, com o apoio da Nova Zelândia e
da Coréia do Sul, se opuseram obstinadamente ao seu encaminhamento para
Conferência das partes da CDB.
Esta oposição e a insistência dos países em desenvolvimento em direcionar
o texto para a futura Conferência das Partes exigiram um longo trabalho de revisão
que acabou por torná-lo repleto de parágrafos instituídos com o propósito de
destacar as divergências sobre seus pontos centrais.
Este era o caso, por exemplo, das cláusulas relacionados aos requerimentos
de revelação de origem dos recursos genéticos e dos saberes tradicionais
associados que deveriam estar vinculados à obtenção dos direitos de propriedade
intelectual. Embora estes requerimentos já estivessem incluídos nas Guias de Boas
Condutas de Bonn, muitos países em desenvolvimento, liderados pelo Brasil e pela
Índia, logravam assegurar um mandato explícito neste assunto para a Convenção da
Diversidade Biológica, objetivando, assim, fortalecer suas posições negociadoras no
âmbito do Conselho do Acordo TRIPs da OMC. Como veremos em outro capítulo
deste trabalho, as negociações do Grupo de Países Megadiversos, no interior da
Organização Mundial do Comércio, igualmente tinham por objetivo concretizar os
requerimentos de revelações, mas neste caso por intermédio de uma reforma no
Acordo TRIPs, daí a importância destes países garantirem a consecução desta
questão no âmbito da CDB.
Convém ponderar, entretanto, que a despeito deste documento final
internalizar estes pontos controversos, ele igualmente explicitava um conjunto de
matérias urgentes que deveriam ser discutidas ainda na COP-8 e que, efetivamente,
definiriam as operações futuras do Grupo de Trabalho. Tratava-se, em termos gerais,
de quatro questões precípuas: a) a definição da futura agenda de trabalho para o
Grupo sobre ABS; b) a necessidade ou não de se estabelecer um grupo de
especialistas para discutirem os possíveis usos de um certificado internacional de
116
revelação de origem e os termos de referência para este grupo; c) medidas para
assegurar a obediência às cláusulas de consentimento prévio e informado para o
acesso; e d) indicadores para o ABS.
Ao final, acordou-se que este documento revisado deveria ser enviado para a
secretariado da COP com o intuito de contribuir para as discussões vindouras.
Poucas vezes na história do processo de negociação um documento elaborado por
um Grupo de Trabalho especializado iria delimitar e influenciar com tal magnitude as
negociações na grande Conferência das Partes. Um retrato claro de que os temas
sobre acesso, repartição de benefícios e proteção aos saberes tradicionais
demandavam e recebiam cada vez mais atenção diplomática dos estados membros
da Convenção da Diversidade Biológica.
Foi no interior deste contexto que o Brasil constatou a dupla oportunidade de
adiantar-se nas negociações e de moderar os desdobramentos vindouros. Com este
intuito, se candidatou a hospedar a Conferência das Partes da Convenção na
cidade de Curitiba durante o intervalo de 20 a 31 de março de 2006.
Como a análise da COP atesta, não foi somente o Brasil que percebeu a
singularidade do momento de negociações, pois o conjunto de reuniões atrairia o
maior número de participantes governamentais da história da Convenção e um
número recorde de partes interessadas, em especial representantes do setor
privado.
Particularmente importante e significativo foi o retorno da Convenção ao país
e ao ambiente que sediou a própria criação da Convenção da Diversidade
aproximadamente 14 anos atrás. Traduzindo, talvez, certa consolidação de uma
identidade para a Convenção, esta Conferência das Partes distinguiu-se das demais
por apresentar de antemão uma agenda não excessivamente ambiciosa e uma
seleção delimitada de temas, assim como, já no decorrer dos trabalhos
preparatórios, os atores concordaram em direcionar a atenção precípua da COP-8
para os procedimentos imprescindíveis à evolução dos temas ABS, em particular,
para a identificação dos desafios à instituição de um Regime Internacional de ABS.
É possível afirmar, ainda, que a COP-8 revelou os principais atores engajados
nestas negociações, suas propostas e suas posturas negociadoras, a inflexão
observada na política externa da União Européia para estes temas, a atuação
destacada dos países nórdicos, em especial a Noruega, e um problema significativo
117
no interior da dinâmica de negociações adotada durante a COP-4 e caracterizada
pelo diálogo entre as grandes Conferências das Partes e as reuniões dos grupos de
trabalhos especializados. Em suma, espelhou com clareza os principais desafios e
as principais oportunidades que se revelavam para os estados membros e para os
demais atores num futuro próximo de negociações, daí sua grande importância para
a conclusão deste capítulo.
Por intermédio desta orientação de análise, podemos afirmar que as
negociações sobre os temas de acesso e repartição de benefícios uma vez mais
salientaram as diferenças fundamentais entre três grupos de países e atores: a)
aqueles que desejavam concluir as negociações sobre um instrumento internacional
o mais rápido possível, seus maiores representantes eram o Brasil, a Índia, os
demais integrantes do Grupo dos Megadiversos, os integrantes do Grupo Africano e
variados países asiáticos que, pela primeira vez, se reuniram durante a Convenção
sob a denominação G77/China e com uma orientação homogênea para avançar as
negociações; b) aqueles que desejavam avançar as negociações, mas que ainda
não estavam seguros sobre a natureza dos seus mecanismos principais, adotavam
esta via, entre outros, a União Européia e a Noruega; c) aqueles mais interessados
em intercambiar experiências nacionais do que instituir um regime internacional
propriamente dito, e aqui podemos inserir a Austrália, o Canadá e o Japão.
Como temos observado durante algum tempo, em essência, a postura de
variados países, dentre eles o Brasil, conservou uma continuidade expressiva desde
as primeiras Conferências. No entanto, é digna de nota a tentativa do Grupo
77/China de administrar uma complexa aliança entre um número tão expressivo de
partes durante a COP-8 com o objetivo de aprovar uma proposta que determinava a
Conferência das Partes como o prazo máximo para a conclusão das negociações
sobre o Regime Internacional.
Em contraste com esta continuidade de posicionamento diplomático, quando
voltamos nossas atenções à União Européia, podemos observar que, durante as
negociações da COP-8, ela se notabilizaria por adotar uma postura bem mais flexível
com relação ao Regime Internacional do que aquela posição comumente observada
nas demais conferências. Como podemos explicar as razões de tal ruptura e as suas
conseqüências para o contexto negociador permanecem, por conseguinte, duas
indagações muito instigantes.
118
Infelizmente, as limitações de um trabalho de mestrado impossibilitam uma
análise minuciosa da evolução diplomática da União européia e de seu contexto
interno político para que possamos ensaiar uma resposta satisfatória à primeira
indagação. Não obstante, acreditamos que esta flexibilidade observada possa estar
relacionada a uma série de publicações sobre propriedade intelectual, elaboradas
por comissões de especialistas, que foram capazes de ilustrar os variados incentivos
que o sistema de propriedade intelectual proporciona à má apropriação dos recursos
genéticos e dos saberes tradicionais e a necessidade de reformar o sistema de
concessão de patentes.
61
Já, no que tange à segunda indagação, temos subsídios suficientes para
interpretar as conseqüências desta mudança de postura para o contexto de
negociações da Convenção da Diversidade Biológica.
Para tanto, em primeiro lugar é necessário compreender que a mudança de
postura da União Européia se traduziu na apresentação de uma proposta para a
definição do Regime Internacional. Em outras palavras, a delegação européia,
durante a COP-8 a Reunião do Grupo de Trabalho sobre ABS, abandonou a
orientação de obstar qualquer discussão sobre a natureza do regime e passou a
afirmar que alguns elementos do instrumento internacional poderiam ser regulados
por padrões internacionais mínimos e que, assim, possibilitassem às partes alguma
flexibilidade na implementação de leis nacionais.
Em segundo lugar, a mudança de postura adquire significado quando
constatamos que a União Européia participou ativamente destas últimas
negociações, fazendo o possível e o impossível para convencer o Grupo dos
77/China a adotar uma proposta intermediária. Em face da impossibilidade de
obtenção de consenso entre os grupos com as propostas mais radicais, esta atuação
européia revelou-se bem sucedida, na medida em que alguns países sócios do
Grupo dos Países Megadiversos foram os primeiros a apoiar a delegação européia,
seguidos por alguns países do Grupo Africano e, por fim, por vários países asiáticos.
Em terceiro lugar, bem intencionada ou não, esta atuação da União Européia
provocou um cisma no interior destes Grupos de atuação, em particular e com maior
61
Entre outros trabalhos, vale a pena mencionar os seguintes: Comission on Intellectual Property Rights
(CIPR), Integrating Intellectual Property Rights and Development Policy, 2002; Nufield Council on
Bioethics, The ethics of Patenting DNA, 2002; Royal Society, Keeping Science Open: the effects of
intellectual property policy on the conduct of science, London, 2006.
119
intensidade no Grupo dos Megadiversos, a ponto dos países mais favoráveis ao
desenvolvimento de um regime forte e obrigatório terem questionado se valeria a
pena ou não fazer parte do Grupo e se seria mais interessante criar um novo grupo
mais homogêneo e com posturas semelhantes. Concluir-se-ia, assim, um
enfraquecimento do grande Grupo 77/China, o qual, ironicamente, havia conseguido
esboçar apenas seus passos iniciais.
Finalmente, em quarto lugar, todo este processo trouxe por corolário uma
grande desorganização no interior dos próprios grupos diplomáticos e entre estes
grupos e os demais agentes envolvidos. Esta situação comprometeria a estratégia de
longo prazo concatenada pelos países em desenvolvimento e que visada isolar no
cenário diplomático o Canadá, a Austrália, a Suíça e o Japão e flexibilizar as suas
posturas frente a pressão proveniente de parcela majoritária dos membros da
Convenção.
Poderíamos supor que esta conjuntura enfraqueceria os possíveis ganhos a
serem obtidos na COP-8, criando, assim, um anticlímax às elevadas expectativas
dos atores e ao contexto inicialmente bastante favorável para a evolução das
negociações. Mas não foi o que ocorreu.
Como que uma evidência da capacidade habitual da Convenção em
superar situações desfavoráveis e difíceis, a Conferência das Partes, após longas
e cansativas reuniões, conseguiu adotar uma data para o término das negociações
sobre o Regime Internacional, a qual foi bem recebida tanto pela União Européia,
quanto pelo Grupo 77/China. Assim, ficou acordada para a data de 2010 a provável
conclusão das negociações sobre os procedimentos dos temas de acesso e
repartição, estendendo às partes a obrigação de iniciar a implementação dos
mecanismos obtidos a partir daí.
Outro avanço significativo que se concretizou em Curitiba, a despeito do
contexto de desorganização entre os grupos, foi obtido com relação ao tema dos
direitos de propriedade intelectual. Como já nos informamos, constituiu desde o início
objetivo central dos países em desenvolvimento criar um mandato claro para a
Convenção tratar da área da propriedade intelectual. E como também foi
demonstrado, a criação deste mandato sofreu pesadas resistências de vários países
desenvolvidos, os quais desejavam confinar estas discussões nos âmbitos da OMC e
da OMPI.
120
Não causa surpresa, portanto, que, durante a Conferência, países como o
Brasil tentassem assegurar que o mandato da CDB sobre o tema fosse não somente
preservado, como também desenvolvido para os próximos anos. Assim foi que os
países em desenvolvimento conseguiram inserir na decisão final
(UNEP/CBD/COP/8/L.34) um parágrafo que atestava o estabelecimento de um grupo
de especialistas que deveria discutir a aperfeiçoar os certificados de origem/fonte do
recurso genético e do saber tradicional associado.
Se a criação de mais um grupo de estudos especializados seria bem recebida
por parcela significativa dos atores envolvidos, alguns observadores e algumas
delegações consideraram a iniciativa uma ameaça em potencial para a evolução das
negociações futuras. O argumento levantado para justificar esta observação
pessimista gravitava em torno da constatação de que a relação que vinha se
desdobrando desde 2000 entre as Conferências das Partes e os Grupos de Trabalho
sobre o Artigo 8(j) e sobre o acesso e o compartilhamento de benefícios havia
fundamentado um ciclo vicioso para as negociações.
Neste sentido, de acordo com esta posição, a própria dinâmica da
Conferência de Curitiba atestaria que a criação dos Grupos de Trabalho
especializados pode ter fundamentado um ciclo deficiente para a evolução das
negociações sobre os temas do acesso, da repartição de benefícios e da proteção,
promoção e preservação dos conhecimentos tradicionais. Mas como poderíamos
compreender a lógica deste ciclo vicioso?
Desde as primeiras reuniões concluídas pelos Grupos do ABS e do Artigo 8
(j), estas associações têm elaborado documentos aprofundados que são enviados
para as grandes Conferências com o intuito de que ela adote decisões substantivas.
No entanto, no decorrer das conferências, estas documentos perdem sua força
persuasiva. Diante disso, as Conferências ignoram estes avanços e restringem seus
escopos a questões de procedimento, referências, retornando, assim, aos Grupos de
Trabalho as questões mais urgentes e substantivas. No interior desta lógica, que se
repete desde a COP-5, não aparenta ocorrer, até o momento, um diálogo profícuo
entre as decisões adotadas nas reuniões especializadas e os texto finais concluídos
nos grandes congressos pluritemáticos.
É com a atenção direcionada para esta lógica que podemos entender a
insistência destacada dos países em desenvolvimento na adoção pela COP-8 de
121
uma decisão minimamente equivalente àquela aprovada pela Reunião do Grupo
de Trabalho sobre ABS e, de forma inversa, a persistência de alguns países
desenvolvidos em barrar determinados processos de continuidade documental e
diálogo institucional.
5.5. Algumas Reflexões a Guisa de Conclusão.
Ao final de mais de 15 anos de negociações é possível afirmar que a
Convenção da Diversidade Biológica tornou-se dado objetivo da operação
diplomática dos países que a integram. As oito Conferências das Partes até o
momento cumpridas, autorizam, portanto, algumas previsões, mesmo que não
definitivas, a respeito de seu futuro.
Não mais persiste, por conseguinte, a preocupação inicial de que a
Convenção carece de substância e de formato definido. Como foi possível observar,
a alicerçar esta primeira conclusão permanece a constatação de que gradualmente
foram encontrados caminhos de atuação que possibilitaram às conferências afirmar a
sua personalidade e confirmar sua utilidade como veículo de expressão diplomática
dos países que as integram.
Contudo, como igualmente observamos, este processo de obtenção de
densidade foi longo, desafiador e repleto de controvérsias que poderão retroceder os
ganhos obtidos até este momento. São três as razões principais que justificam a
permanência deste caráter frágil da Convenção.
Em primeiro lugar, temos que atentar para a heterogeneidade dos atores que
integram as conferências. Não seria exagero afirmar que muitos são provenientes de
mundos distintos. Seria o caso, portanto, de questionarmos se os interesses que
separam as partes da Convenção não seriam mais fortes do que os que os
aproximam no plano das afinidades. Não nos parece, a esta altura, haver maneira de
resolver, tanto as contradições entre as propostas dos países em desenvolvimento e
os projetos dos países desenvolvidos, quanto os contrastes entre a compreensão da
problemática dos conhecimentos tradicionais provenientes dos representantes das
comunidades tradicionais e a compreensão da problemática revelada pelas
delegações governamentais.
122
Na realidade, o vinculo principal entre os países em desenvolvimento e os
representantes das coletividades tradicionais se encontra na crítica à prática da
apropriação dos recursos biogenéticos e dos saberes associados. No entanto,
quando as discussões envolvem detalhes técnicos e legais, torna-se
demasiadamente difícil preservar os laços de cooperação. Surgem, por conseguinte,
posições contraditórias sobre quase todos os aspectos centrais dos exercícios
propostos para a regulamentação dos temas do acesso e da repartição de
benefícios. Como exemplo, poderíamos citar os acalorados debates no âmbito do
Grupo sobre o Artigo 8(j) sobre a necessidade ou não das comunidades tradicionais
também compartilharem com os Estados nacionais os benefícios provenientes dos
recursos genéticos associados aos seus saberes, práticas ou inovações.
Em segundo lugar, é lícito questionar qual a capacidade de mobilização dos
grupos criados para acelerar o processo na Convenção. Se, como observarmos
durante a Conferência das Partes, alguns países associados ao Grupo dos
Megadiversos e afins chegaram a questionar a continuidade da própria existência da
associação, convém indagarmos de onde surgirão elementos capazes de conferir às
afinidades que unem os países megadiversos uma funcionalidade coletiva que se
revele capaz de sobrepujar os interesses nacionais particulares que os separam.
Acreditamos que estes elementos poderão emergir dos processos de
integração regional, tais como a iniciativa para a biodiversidade em vias de
negociação no Mercosul, pois como sabemos, existe, por parte do Brasil, interesses
concretos em liderar o processo de negociação e moldar seus desdobramentos em
função de interesses regionais.
Como os diplomatas brasileiros bem entendem, não adianta somar esforços
nos espaços multilaterais com o intuito de se construir um regime que regule o
acesso se variados países não constituírem legislações nacionais minimamente
semelhantes, pois as instituições interessadas em obter os recursos genéticos e os
saberes associados poderão burlar com facilidade o regime ao negociar diretamente
com estes países. Daí o imperativo da cooperação sul-sul e da cooperação regional.
Por fim, em terceiro lugar, se comparada com a Organização Mundial do
Comércio e com a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, a Convenção da
Diversidade Biológica exibe uma existência muito recente que lhe impossibilita
exercer um papel preponderante no interior da complexa teia de regimes e
123
instituições internacionais que tratam dos temas de acesso, de repartição de
benefícios e da proteção, promoção e preservação dos saberes tradicionais.
Como se não fosse suficiente, a OMPI possui largo e tradicional domínio das
questões referentes à propriedade intelectual, enquanto a Convenção engatinha no
sentido de abarcar esta área temática complexa e transversal. Já, a Organização
Mundial do Comércio internaliza um sistema de solução de controvérsias
extremamente influente e poderoso, enquanto a Convenção carece de qualquer
caráter obrigatório.
Finalmente, a despeito desta natureza frágil, a Convenção da Diversidade
Biológica exerce papel ativo na divulgação destes temas difíceis e atuais, organizou
Guias de referência e objetiva estabelecer a curto prazo um regime internacional
inédito e revolucionário. É possível concluir, por conseguinte, que grandes méritos e
grandes contribuições da Convenção existem efetivamente, mas somente serão
reconhecidas a médio e longo prazos.
124
125
CAPÍTULO 6
AS NEGOCIAÇÕES NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO.
As questões envolvendo a problemática dos saberes tradicionais adentraram
na Organização Mundial do Comércio através de duas rotas primordiais. Por um
lado, as temáticas da relação entre o acordo TRIPs e a Convenção da Diversidade
Biológica e da proteção aos conhecimentos tradicionais alcançou a pauta das
negociações envolvendo o Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente (CTE),
estabelecido em 1995 com o intuito central de examinar os vínculos entre as
medidas de comércio e os objetivos ambientais.
Ainda em 1994, a Decisão Ministerial de Marrakesh sobre Comércio e Meio
Ambiente estabeleceu os termos de referência do CTE e determinou que os
trabalhos futuros conduzidos pelo órgão deveriam atentar para as provisões
relevantes do Acordo TRIPs. Esta recomendação se concretizou formalmente
através da inclusão do Item 8 no programa de trabalho do Comitê
62
.
Desde 1995, os temas da proteção aos conhecimentos tradicionais e da
relação entre o Acordo TRIPs e a Convenção da Diversidade Biológica centralizaram
as atenções dos estados membros nas reuniões relacionadas ao Item 8 do CTE.
Após a Declaração Ministerial de Doha, em 2001, as discussões do Comitê
basicamente permaneceram direcionadas para a relação entre o TRIPs e a CDB e
desnudaram até o momento 3 posicionamentos centrais dos países engajados nas
negociações. Com efeito, um grupo de países em desenvolvimento, incluindo o
Brasil, têm reiterado a proposta defendida em outros fóruns multilaterais de emendar
o Acordo TRIPs a fim de exigir como critério para a requisição de patentes a
revelação da origem do material biológico e do conhecimento associado. Esta
postura é criticada por outros membros, principalmente os Estados Unidos e o
Japão, que julgam conveniente tratar deste problema por intermédio de mecanismos
62
Ao todo o Programa de Trabalho do CTE resulta constituído por 10 itens precípuos de análise. São eles:
Items 1 and 5 Trade Rules, environment agreements, and disputes; Item 2 Environmental protection and the
trading system; Item 3 How taxes and other environmental requirements fit in; Item 4 Transparency of
environmental trade measures; Item 6 Environment and trade liberalization; Item 7 Domestically prohibited
goods; Item 8 Intellectual property-The relevant provisions of the Trade-Related Aspects of Intellectual
Property Rights (TRIPS) Agreement; Item 9 Services; Item 10 The WTO and other organizations. Em 2001,
a Declaração Ministerial de Doha requisitou que o CTE focalizasse a sua atenção nos itens 3, 6 e 8.
126
que não envolvam o sistema de patentes. Por fim, países como a Noruega são
favoráveis a uma posição intermediária, igualmente favorável ao estabelecimento de
um requerimento de revelação no sistema de patentes, mas que não seja obrigatório
para a requisição de patentes.
Por outro lado, preocupações similares resultaram congregadas no complexo
processo de revisão do artigo 27.3(b) do acordo TRIPs coordenado pelo
denominado Conselho do TRIPs
63
. Este artigo demanda aplicação de patentes sobre
microorganismos e sobre processos não-biológicos e microbiológicos direcionados à
produção de plantas ou animais, alem de favorecer a proteção de variedades de
plantas através de patentes e/ou de processos sui generis. Convém analisar,
portanto, a redação do artigo na forma como ela se apresentou na versão final do
acordo:
Artigo 27 Matéria Patenteável
3. Os Membros também podem considerar como não patenteáveis:
(b) plantas e animais, exceto microorganismos e processos essencialmente
biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos
não-biológicos e microbiológicos. Não obstante, os Membros concederão
proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um
sistema sui generis eficaz, seja por uma combinação de ambos. O disposto neste
subparágrafo será revisto quatro anos após a entrada em vigor do Acordo
Constitutivo da OMC.
63
O artigo 68 do Acordo TRIPs assim estabelece as atribuições do Conselho: O Conselho para TRIPS
supervisionará a aplicação deste Acordo e, em particular, o cumprimento, por parte dos Membros, das
obrigações por ele estabelecidas, e lhes oferecerá a oportunidade de efetuar consultas sobre questões relativas
aos aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio. O Conselho se desimcumbirá de
outras atribuições que lhe forem confiados pelos Membros e, em particular, lhes prestará qualquer assistência
solicitada no contexto de procedimentos de solução de controvérsias. No desempenho de suas funções, o
Conselho para TRIPS poderá consultar e buscar informações de qualquer fonte que considerar adequada. Em
consulta com a OMPI, o Conselho deverá buscar estabelecer, no prazo de um ano a partir de sua primeira
reunião, os arranjos apropriados para a cooperação com os órgãos daquela Organização.
127
Esta confusa redação do artigo 27.3(b) resultou da heterogeneidade, na
época da redação do TRIPS, entre as legislações americana e européia com relação
aos sistemas de proteção de variedades de plantas (CUNHA. Manuela, p. 154). A
ressalva constituiu, portanto, um compromisso considerado provisório e a cláusula
de revisão foi embutida em razão da natureza controversa das obrigações presentes
no artigo, daí os negociadores na OMC concordarem em revisá-la no ano de 1999,
quatro anos após a entrada em vigor do acordo da OMC.
As longas negociações que ocorreram no ano de 1999 no Conselho foram
marcadas pela contínua explicitação de posições divergentes entre os países
envolvidos quanto aos pontos centrais de revisão do acordo, leia-se: a) em quais
ocasiões e de que forma a exclusão ao patenteamento deveria se aplicar a plantas e
animais; b)os efeitos das proteções destinadas ao microorganismos e aos processos
não biológicos microbiológicos; c) a natureza dos sistema sui generis requisitado e a
sua efetividade. Assim, por exemplo, o hiato entre as posições opostas era muito
amplo no que concerne às lacunas de patenteamento para formas de vida, visto que
à proposta norte americana de estender a proteção das patentes a toda e qualquer
forma de vida, contrapunha-se a orientação indiana e do grupo de países africanos
de eliminar totalmente o patenteamento de seres vivos. Neste primeiro momento e
no que concerne à esta esfera central de debate das negociações iniciais, a
delegação brasileira manteve-se neutra, alegando ser de interesse nacional uma
posição intermediária, cuja característica era a manutenção da flexibilidade do artigo
na forma como se apresentava na redação final do acordo.
De maneira concomitante, não se chegou, também, a acordo sobre outros
temas que, a despeito de não apresentarem relação direta para com o assunto
propriedade intelectual, insistiam em alcançar a pauta de negociações da revisão.
Foi justamente no interior deste contexto que, na reunião ocorrida em 17 de fevereiro
de 1999, o embaixador uruguaio Carlos Pérez del Castillo, presidente da
negociação, se viu obrigado a elaborar uma lista de temas centrais que vinham
sendo debatidos no conselho do TRIPs com a finalidade de organizar melhor as
discussões. Esta lista inicial revela a magnitude e a variedade de problemas e
preocupações que o artigo 27.3(b) havia ocultado na conclusão do acordo ainda em
1994 e incluía os seguintes itens: a relação entre as provisões do artigo 27.3(b) e o
128
desenvolvimento; questões técnicas interligadas à proteção por patentes sob o artigo
em destaque; questões técnicas relacionadas à proteção sui generis de variedades
de plantas; preocupações éticas direcionadas ao patenteamento de formas de vida;
a relação entre a conservação e o uso sustentável de materiais genéticos; e o
paralelo entre os conceitos de conhecimento tradicional e de direitos dos
agricultores.
Em abril de 1999, na reunião que deveria estabelecer um primeiro acordo
acerca dos pontos centrais de revisão esboçados pelo presidente das negociações,
repetiu-se o cenário dos meses anteriores. Com efeito, antes de facilitar o consenso,
esta agenda favoreceu os antagonismos entre países desenvolvidos e países em
desenvolvimento. Sob o ponto de vista do Brasil e da Índia, tornava-se urgente
reorientar o caminho para o qual a revisão vinha se direcionando, ou seja,
ultrapassar a mera coleta de informações relativas à implementação do artigo
27.3(b) pelos países em desenvolvimento através de suas legislações nacionais,
direção esta que Estados Unidos, Japão e Comunidade Européia apoiavam
abertamente desde 1998.
Igualmente relevante para as delegações indiana e brasileira no decorrer das
primeiras reuniões era a percepção de que a agenda proposta pelo embaixador
uruguaio tangenciava ou mesmo silenciava sobre duas questões da maior
importância que deveriam constar formalmente no programa de revisão, ou seja, a
relação entre o acordo TRIPs e a Convenção da Diversidade Biológica e a desejável
reforma do sistema internacional de patentes para adaptá-lo à alguma forma de
proteção aos saberes tradicionais.
Os seis meses finais de 1999 presenciaram ainda duas reuniões no conselho
do TRIPs sobre a revisão do artigo 27.3(b). Nas negociações que se seguiram as
atenções permaneceram voltadas tanto para o formato que a revisão deveria seguir
quanto para o debate acerca do patenteamento ou não das formas de vidas. Para a
Índia e para o Brasil, paises em desenvolvimento cujas atuações revelavam-se as
mais assertivas nestas primeiras reuniões, tornava-se imperativo esclarecer a
relação de conflito entre o TRIPs e a CDB e inserir a problemática dos saberes
tradicionais, visto que a dispersão dos debates proporcionaria aos países
desenvolvidos duas vantagens precípuas nas negociações futuras. Em primeiro
lugar, Estados Unidos, Japão, Austrália, Canadá e a Comunidade Européia
129
logravam finalizar a revisão do artigo ainda no final de 1999 e a multiplicidade de
questões levantadas facilitava a dispersão das atenções em tópicos plurais,
dificultando, consequentemente, o exame concertado dos países em
desenvolvimento sobre as questões consideradas mais relevantes do processo, as
quais nem sequer constavam explicitadas no único documento oficial destinado aos
países membros. Em segundo lugar, corria-se o risco destas negociações
adentrarem no campo extremamente complexo, técnico e especializado das
interações entre regras e normas estabelecidas, algo que inevitavelmente
marginalizaria as delegações menos numerosas e que não aparentava estar muito
distante das questões envolvendo sistemas de proteção sui generis a variedades de
plantas e definições legais de microorganismos e processos microbiológicos.
Consequentemente, em julho de 1999, a Índia assumiu a dianteira ao
esclarecer pela primeira vez as deficiências do sistema de propriedade intelectual no
tratamento de sistemas informais de conhecimento, as relações de sinergia e conflito
entre os dois tratados e ao propor um projeto concreto de associação entre ambos.
Varias dimensões de problemas relacionados ao patenteamento de formas de vida
foram então desdobradas pela delegação indiana no contexto da revisão do artigo
27.3(b). Assim, em um primeiro momento, os embaixadores indianos centraram
esforços na apresentação de variadas questões éticas relevantes envolvidas no
padrão atual do patenteamento de formas de vidas.
Ao tratar da omissão da dimensão ética envolvida no processo de requisição
de propriedade intelectual, a Índia foi bem sucedida em apresentar um sumário das
objeções e vidas compartilhadas pelos países em desenvolvimento com relação à
evolução do regime internacional de propriedade intelectual. O escopo da crítica
ética incluía a explicitação de um amplo leque de omissões e insuficiências do
regime que, na visão da Índia, seria capaz de auxiliar as delegações a constatarem a
inegável necessidade de uma revisão mais abrangente do acordo. Voltemos nossa
atenção, por conseguinte, a este relevante discurso do embaixador indiano no
âmbito da OMC:
“Patenting of life forms marked a significant further step in the larger
process of the commodification of life and the reduction of the value of life and
nature to merely economic. Intellectual property regimes generally made no
130
allowances for the protection of communal rights and intergenerational innovation
which were the hallmark of many developing country cultural traditions. Patenting
also resulted in increasing privatization which shifted scientific research away
from its traditional values of openness and discussion towards confidentiality and
secrecy resulting in strengthening the power of corporate interests while
marginalizing questions of human welfare and social justice. Technological
development in this area was moving at an unprecedented pace and it might be
necessary to stem any privatization of such knowledge for the larger benefit of
mankind. Patents also had the danger of economic motives superseding
ecological motives.
64
Do ponto de vista indiano, a estruturação do acordo TRIPs coroou uma
extensão imprudente de direitos de propriedade intelectual sobre novas matérias que
não eram salvaguardadas em muitos países em desenvolvimento antes da
assinatura do acordo. Por sua vez, esta expansão do regime, quando analisada sob
o prisma dos recursos biológicos, tem ocasionado efeitos deletérios de ordem ética,
econômica, moral e social que não podem ser solucionados ou mesmo cogitados no
interior do atual sistema de propriedade intelectual.
Ainda na visão da Índia, estes efeitos deletérios são resultantes da percepção
restritiva do significado do conceito de propriedade intelectual e da apropriação
exígua deste conceito pelo mundo industrializado a despeito de uma dimensão mais
abrangente de direitos sobre o conhecimento capaz de congregar sua apropriação,
sua utilização, sua transferência e sua disseminação.
Com efeito, ressalta a delegação indiana com o apoio dos países em
desenvolvimento, ao reconhecer unicamente os sistemas formais de conhecimentos,
os regimes de propriedade intelectual inevitavelmente ignoram os muitos sistemas
tradicionais e informais de saberes existentes nos países em desenvolvimento.
Desdobram-se, por conseguinte, percepções muito críticas de países como o
Brasil e a Índia no que concerne à evolução dos direitos de propriedade intelectual,
visto que à enorme flexibilidade apresentada pelo regime de propriedade intelectual
na inclusão de temas atuais e complexos como os circuitos integrados, os
programas de computadores, as variedades de plantas e os produtos farmacêuticos,
64
IP/C/M/24, Minutes of Meeting Held in the Centre William Rappard on 7-8 July 1999, p. 13.
131
contrasta a rigidez deste mesmo regime no tratamento das inovações e práticas
provenientes dos saberes do mundo em desenvolvimento.
Portanto, na medida em que, sob o ponto de vista da Índia, do Brasil e dos
demais países em desenvolvimento africanos e sul-americanos, o acordo TRIPs
passou a constituir o alicerce central deste regime internacional faccioso e os
saberes tradicionais concentram soluções potencias para os problemas ressaltados
na comunicação indiana de ordem ecológica, econômica e sócio-cultural, uma
reforma deste acordo orientada para proteção dos conhecimentos tradicionais
deverá constituir um dos caminhos mais atraentes para a obstrução destes efeitos
deletérios e para o aperfeiçoamento do regime, tornando-o mais razoável e
imparcial.
Em um segundo momento, os embaixadores indianos procuraram dar uma
interpretação que extrapolava as diretrizes de negociação inicialmente esboçadas,
ou seja, procuravam identificar quais fatores principais de divergência distanciavam
as lógicas cristalizadas na Convenção da Diversidade Biológica e no Acordo TRIPs
com relação ao acesso aos recursos genéticos e aos saberes tradicionais
associados.
Um fator apontado como precípuo foi a oposição entre o reconhecimento no
preâmbulo do acordo TRIPs de que os direitos de propriedade intelectual sobre
materiais biológicos devam constituir direitos privados e a reafirmação no preâmbulo
da CDB de que os Estados Nacionais possuem direitos de soberania sobre seus
recursos biológicos. A posição indiana, apoiada abertamente pela delegação
brasileira, foi, portanto, a de insistir no “estudo da relação entre as provisões da CDB
e as provisões do acordo TRIPs e de sugerir a reconciliação de quaisquer
contradições entre os documentos mencionados, desde que inteirada do objetivo
geral em obter desenvolvimento sustentável com conservação dos recursos
biológicos”.
65
A Índia não se limitou a defender a harmonização acima destacada
unicamente pela identificação das divergências, mas estruturou igualmente uma
primeira proposta de emenda ao acordo TRIPs que seria aperfeiçoada nas reuniões
subseqüentes pelo Grupo dos Países Megadiversos. A proposta, esboçada no ano
65
Documento da OMC intitulado IP/C/M/24, Minutes of Meeting Held in the Centre William Rappard on 7-
8 July 1999. p. 18.
132
de 1999 ainda em linhas iniciais, foi de operacionalizar este objetivo através da
inclusão no acordo TRIPs de uma obrigação em compartilhar os benefícios oriundos
da comercialização da propriedade intelectual sobre material biológico e/ou saberes
tradicionais associados por intermédio de acordos de transferência material e de
acordos de transferência de informação. Uma obrigação como essa deveria ser
incorporada através da inclusão de provisões no artigo 29 que requisitassem as
revelações explícitas da matriz do material biológico e do país de origem desta
matriz.
Para o Brasil e para os demais países em desenvolvimento, a revisão do
artigo 27.3(b), revelou-se o meio mais adequado para a introdução de numerosas
propostas de emenda ao acordo TRIPs.
Estas propostas demandavam uma ambiciosa revisão do próprio acordo, com
o intuito de proporcionar aos estados membros (1) formas de harmonizar as regras
de propriedade intelectual com aquelas acordadas nos tratados da CDB e da FAO;
(2) evitar a concessão de patentes a invenções inconsistentes com as diretrizes da
CDB; (3) proteger os saberes tradicionais; (4) garantir compatibilidade entre o TRIPs
e as legislações nacionais destinadas a proteção dos direitos dos agricultores.
No decorrer das reuniões que iniciaram os trabalhos de revisão deste artigo,
tornou-se clara a percepção de que persistiria uma pluralidade de visões sobre o
escopo da revisão. Em especial, alguns países em desenvolvimento como a Índia, o
Brasil, o Grupo Africano, a Tailândia, o Equador e o Egito passaram a advogar por
uma revisão mais ambiciosa do artigo em relevo, objetivando alcançar uma
renegociação do próprio acordo TRIPs, tornando-o capaz de congregar áreas que
ultrapassassem as questões de direitos de propriedade intelectual. Esta postura
sofria forte oposição dos países desenvolvidos, em particular dos Estados Unidos,
os quais negavam a existência de quaisquer inconsistências entre o acordo da OMC
e os demais acordos internacionais, afirmavam a não adequação da OMC como
espaço para o tratamento de temas correlatos à proteção dos saberes tradicionais e
logravam centralizar as atenções em aspectos técnicos, a fim de obter elevações
dos padrões de propriedade intelectual e de restringir ao máximo a apresentação de
exceções à requisição de patentes.
Não obstante a existência desta clivagem entre os países do Norte e do Sul a
respeito da revisão do artigo 27.3(b), o que certamente dificultava sobremaneira as
133
conversações e principiava uma possível exclusão destes debates de uma futura
agenda de ajustes, os debates ganhariam status de questões permanentes ao
alcançarem a agenda de negociações da Declaração Ministerial de Doha, em
novembro de 2001. Tal fato pode ser atribuído ao empenho assertivo de países
como o Brasil e a Índia, os quais elaboraram uma série de propostas que detalharam
a natureza das inconsistências legais específicas entre os distintos ordenamentos
normativos da CDB e do TRIPs, fundamentaram o papel precípuo que o acordo
TRIPs exerceria no processo de formulação de um regime internacional de proteção
aos saberes tradicionais e incluíram uma série de alternativas e diretrizes que
deveriam legar à questões pendentes futuros desenlaces.
Neste sentido, apesar da resistência dos Estados Unidos, não foi possível
evitar a inclusão dos temas sobre biodiversidade e conhecimentos tradicionais na
Declaração de Doha, a qual, por pressão dos países em desenvolvimento, adotou
uma solução de compromisso para o impasse, destacando que uma atribuição
central do Conselho do TRIPs consistiria em examinar a relação entre o acordo
TRIPs e a Convenção da Diversidade Biológica, analisar a proteção dos
conhecimentos tradicionais e do folclore e, por fim, proporcionar subsídios aos
membros negociadores na consecução da revisão do artigo 27.3(b) em
conformidade com esta atribuição. A forma final adotada pelo parágrafo 19 da
declaração é reveladora a este respeito:
“19. Determinamos ao Conselho TRIPS que, em continuidade a seu
programa de trabalho, o qual, na revisão do Artigo 27.3(b), inclui a revisão da
implementação do Acordo TRIPS, em conformidade com o Artigo 71.1, e o
trabalho previsto no parágrafo 12 da presente Declaração, a examinar, inter alia,
a relação entre o Acordo TRIPS e a Convenção sobre Diversidade Biológica, a
proteção do conhecimento tradicional e do folclore, bem como outros novos
desdobramentos de caráter relevante levantados pelos membros em
conformidade com o Artigo 71.1. Na consecução dessa tarefa, o Conselho TRIPS
orientar-se-á pelos objetivos e princípios definidos nos Artigos 7 e 8 do Acordo
TRIPS e considerará em sua integralidade a magnitude da questão do
desenvolvimento. desenvolvimento.”
134
Estabeleceram-se, assim, três grandes áreas de discussões
interdependentes sobre esta temática na rodada Doha: área de negociações acerca
da relação entre o TRIPs e a CDB, âmbito de negociações sobre a revisão do artigo
27.3(b) e, por fim, a esfera de negociações voltada para as questões envolvendo a
proteção dos bens intangíveis tradicionais através dos direitos de propriedade
intelectual. Amparados por este mandato, os países em desenvolvimento passaram
a adotar posturas mais agressivas em suas comunicações. Neste sentido, enquanto
propostas anteriores a 2002 advogavam pela inclusão optativa da declaração de
origem nas patentes relacionadas à biodiversidade, a partir deste ano elas passaram
a ressaltar o imperativo de que as requisições de patentes elaboradas por todos os
estados membros relacionadas a materiais biológicos e saberes tradicionais
deveriam ter na revelação uma condição imprescindível para a obtenção da proteção
legal. Por fim, esta revelação deveria conter as informações detalhadas sobre quem
providenciou os materiais genéticos e os saberes tradicionais utilizados nas
aplicações de patentes, alem de provas consistentes de compartilhamento de
benefícios e consentimento prévio e informado.
7.1. Os Avanços da Rodada Doha e as Negociações Envolvendo a Relação
entre o TRIPs e a Convenção da Diversidade Biológica.
Como observado no capítulo referente às negociações na Convenção da
Diversidade Biológica, o texto final da CDB atesta que as negociações e os debates
nesta área da diplomacia ambiental atentavam para os desfechos das discussões
envolvendo a evolução do regime internacional de propriedade intelectual. O mesmo
não pode ser afirmado do documento final sobre o Acordo TRIPs, texto que
posteriormente seria considerado o maior responsável pela grande inflexão ocorrida
na legislação internacional de propriedade intelectual no final dos anos 90.
O registro escrito que formataria oficialmente as interpretações dominantes
sobre o Acordo TRIPs reconheceria como orientação o livre acesso aos recursos
genéticos em detrimento das provisões acordadas na CDB quase um ano antes de
sua redação. No entanto, longe de se converter em tema sobrepujado pela
135
agressividade com a qual os países desenvolvidos exigiam a implementação do
TRIPs e de uma extensão ainda maior dos direitos nele consagrados, a relação
entre o acordo da OMC e a Convenção da Diversidade Biológica seria discutido
desde 1993 nas Conferências das Partes bianuais da CDB e retornaria em poucos
anos aos centros das atenções dos demais espaços multilaterais, em particular ,
como observado, no Conselho do TRIPs e no Comitê sobre Comércio e Meio
Ambiente, ambos da Organização Mundial do Comércio.
As relações entre estes dois instrumentos legais internacionais tornam-se
conflitivas quando observamos que ambos possuem diferentes considerações
acerca do papel exercido pelo domínio público e pelos distintos atores engajados no
processo de inovação. Destarte, o acordo TRIPs reconhece e legaliza a concepção
de autoria romantica, ou seja, a idéia de que indivíduos e corporações criam a partir
do vazio ou de uma tábula rasa, ignorando a possibilidade de se apropriarem de
idéias, saberes, fontes e inspirações que podem estar ou não no domínio público. O
corolário imediato desta lógica é o reconhecimento do caráter inovador e, por
conseguinte, a distribuição dos valores comerciais exclusivamente para as
instituições e para os indivíduos que investem no desenvolvimento de bens de alto
valor agregado.
A Convenção da Diversidade Biológica, por sua vez, promove o
reconhecimento e a recompensa às coletividades tradicionais em função de suas
atuações na preservação da biodiversidade e do conhecimento tradicional que
constituem este domínio público. Em outras palavras, ela estabelece o primeiro
passo em direção ao reconhecimento da inventividade das comunidades
tradicionais, pois admite o alargamento do processo de invenção, direcionando as
atenções também para os atores, os produtos e os recursos localizados no início do
processo. Em suma, postula que ao menos parcela do valor comercial proveniente
dos produtos resultantes do final do processo deva ir para os fornecedores e os
provedores dos materiais e saberes que fundamentaram a gênese do processo.
Neste sentido, no decorrer da Rodada Doha de negociações, permaneceu no
centro das discussões e das negociações na OMC envolvendo a relação entre o
TRIPs e a CDB a questão de como desenvolver um mecanismo, que possa ser
inserido no sistema internacional de obtenção de patentes, capaz de promover a
sinergia entre estes dois conjuntos normativos e, assim, como bem sublinhou a
136
delegação brasileira em Genebra, reduzir ou mesmo evitar a má apropriação dos
recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais associados:
“A principal preocupação dos países em desenvolvimento
megabiodiversos está baseada na ausência de mecanismos para coibir a
biopirataria no campo da propriedade intelectual: nada no Acordo TRIPs impede,
atualmente, que os recursos genéticos de um membro da OMC sejam
patenteados em outro membro, sem que este último respeite os objetivos da
CDB de consentimento prévio informado e de repartição de benefícios. A
questão torna-se ainda mais complexa em razão do fato de que os EUA não são
membros da CDB.”
66
No que tange ao papel desempenhado por essa lacuna do acordo TRIPs no
encorajamento da biopirataria, a argumentação básica está alicerçada na seguinte
reflexão: o artigo 27 do acordo TRIPs adota uma postura mínima, deixando à
escolha dos países membros a possibilidade de restringir ou não a patenteabilidade
de seres vivos, entretanto, ao fazê-lo, via transversa, permite o seu patenteamento
sem a anuência do país de origem e sem a garantia de que haja distribuição justa e
eqüitativa dos benefícios resultantes. Portanto, não como, da forma como se
estrutura o sistema patenteário internacional atual, se evitar a concessão de uma
patente, por exemplo, conferida sobre um processo obtido a partir de algum recurso
genético e/ou saber tradicional da Amazônia, se o processo for considerado novo,
inventivo e com possibilidade de aplicação industrial pelo escritório patenteário junto
ao qual foi depositado o pedido da patente.
Situações como essa, argumentam os países megadiversos, são corriqueiras
e de difícil solução, pois o problema tende a se agravar quando constatamos as
dificuldades associadas à revogação destas patentes inapropriadas, seja em razão
dos custos proibitivos que envolvem o processo de resgate e do número elevado de
patentes problemáticas, seja em conseqüência das omissões a situações como essa
no regime internacional de propriedade intelectual. Nesse sentido, para os países
megadiversos, as discussões multilaterais sobre o tema e a investigação de
soluções para este problema devem necessariamente permanecer orientadas para a
66
Carta de Genebra, Missão do Brasil em Genebra, Ano 1, Vol. 6, Julho de 2002, p. 11.
137
compatibilização do Acordo TRIPs com a Convenção da Diversidade Biológica e
para o desenvolvimento de um regime de propriedade intelectual mais equilibrado,
que leve em conta as necessidades e anseios dos países em desenvolvimento.
É justamente esta posição integracionista entre estas distintas lógicas
internacionais aquela que congrega o engajamento do Brasil, da Índia, do Peru e dos
demais países aliados (países andinos, africanos, asiáticos e centro-americanos)
nas reuniões do Conselho de TRIPs e que possui por traços definidores o
entendimento de que os dois acordos contêm elementos conflitantes e que,
consequentemente, deve-se assegurar que o Acordo TRIPs incorpore elementos da
CDB, a fim de evitar que a harmonização dos direitos de propriedade intelectual
imponha obstáculos ou limitações à implementação da Convenção, em particular por
meio da incorporação dos elementos de identificação da fonte dos recursos
genéticos utilizados na patente, da repartição de benefícios e do consentimento
prévio informado.
Destarte, desde que a Declaração Ministerial de Doha criou um mandato
específico para examinar a discussão da relação entre o TRIPs e a CDB, em 2001,
consagrou-se implicitamente a necessidade de que os dois acordos sejam
implementados de maneira que se auxiliem mutuamente. Também, a Rodada Doha
corou a entrada da China na OMC, um país importante que rapidamente assumiria
postura favorável à Índia e ao Brasil nas negociações do Conselho do TRIPs.
Finalmente, o tema passaria a estar vinculado a negociações comerciais, pois o
parágrafo 19 da Declaração estipulou que estas negociações deveriam ocorrer em
conformidade com o programa de trabalho sobre Temas Pendentes de
Implementação, os quais estão associados à Agenda para o Desenvolvimento de
Doha.
Devemos, todavia, reconhecer que o aprofundamento e a aceleração desta
discussão na Rodada do Milênio foram igualmente estimulados por ações e
iniciativas que ocorreram em outros espaços do tabuleiro internacional. Dentre estes
processos, dois merecem atenção especial: a criação do Guia de Boas Condutas de
Bonn, adotado oficialmente na Sexta Reunião da Conferência das Partes da CDB
(COP 6) em maio de 2002, e da formação do Grupo dos Países Megadiversos,
oficialmente criado em fevereiro de 2002 na cidade mexicana de Cancun.
138
No que tange às negociações na Organização Mundial do Comércio, após a
criação do Grupo dos Megadiversos Afins, comunicações elaboradas coletivamente
por este agrupamento de países substituiriam gradualmente as comunicações
individuais características das negociações anteriores à Rodada Doha.
A análise das negociações e das discussões sobre o tema do acesso aos
recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais que se seguiram ao
estabelecimento da Rodada Doha e a estes desdobramentos no tabuleiro
internacional impõe considerações de pelo menos duas ordens. Primeiro, o
destacamento do assunto na Declaração Ministerial e a sua associação às
negociações comerciais não impediram a continuidade das posturas obstrucionistas
que Estados Unidos, Canadá e Japão tem assumido em relação ao tema, pois
continuaram a insistir que inexiste conflito entre os acordos TRIPs e CDB e que os
governos nacionais podem e devem implementá-los de forma conjunta através de
procedimentos unicamente nacionais.
Segundo, a despeito dos entraves concatenados pelas delegações destes
países desenvolvidos e das suas tentativas em dificultar discussões substantivas
sobre os modelos da emenda propostos, Brasil, Índia e aliados foram bem sucedidos
em evitar que o caráter restritivo e confuso das primeiras discussões pudesse ter
alcançado as negociações subseqüentes à nova Rodada, ou seja, conseguiriam
delimitar o escopo das reuniões futuras aos aspectos técnicos da sua proposta de
emenda ao TRIPs. Com efeito, a partir de 2004, as discussões mais importantes
revelariam certo desgaste da estratégia norte-americana em desviar o foco das
discussões e permaneceriam direcionadas para os diferentes formatos que este
processo de emenda deveria internalizar.
Em março de 2004, o Brasil e a Índia, com o apoio de outros seis países co-
patrocinadores (Bolívia, Cuba, Equador, Peru, Tailândia e Venezuela), apresentaram
em reunião um novo e importante documento sobre o tema que representaria o
primeiro passo em direção à centralização de sua proposta de disclosure na agenda
do Conselho do TRIPs. Essa reunião foi considerada muito frutífera, pois a
comunicação (IP/C/M/420) revelou-se bem sucedida em organizar um resumo das
questões levantadas pelos países no decorrer das reuniões e em propor a realização
de um debate que estivesse estruturado na proposta de emenda. Com a finalidade
de orientar o debate foi apresentada uma lista de interrogações (checklist of issues),
139
que seriam desenvolvidas através de 3 comunicações posteriores, sobre cada um
dos três pontos precípuos e desejáveis de emenda ao Acordo TRIPs, são eles: i) a
identificação (disclosure of the source and country of origin) da fonte e do país de
origem dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais utilizados na invenção;
ii) informação que comprove que os referidos recursos foram obtidos em pleno
respeito ao consentimento prévio e informado (prior informed consent) no país de
origem; iii) informação de que haverá repartição de benefícios justa e eqüitativa
(benefit sharing), em conformidade com o regime nacional relevante.
Este documento receberia apoio do Paquistão, Indonésia, China, Quênia e
África do Sul. No entanto, mais importante naquele momento foi a recepção positiva
da proposta pela Noruega e pela Comunidade Européia, países desenvolvidos
relevantes que endossaram a idéia de iniciar uma discussão aprofundada sobre a
proposta do Grupo Megadiverso de emenda ao TRIPs. A contrastar com a
flexibilização dessas posturas européias, permaneciam as rejeições norte-
americanas e japonesas à checklist of issues, pois a consideravam detalhada
demais para ser examinada no Conselho do TRIPs e insistiam que o foro mais
adequado ao tratamento deste tema seria a Organização Mundial de Propriedade
Intelectual, particularmente o Comitê Intergovernamental sobre Propriedade
Intelectual e Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais (ICG).
Importa salientar que esta insistência dos Estados Unidos e do Japão pela
transferência das negociações para outros organismos internacionais constitui a
denominada estratégia de flutuação de fóruns (forum shifting). Este tipo de tática
impõe aos países em desenvolvimento variados desafios. Como observaremos no
capítulo sobre as negociações na OMPI, um eventual redirecionamento destas
negociações para o ICG provavelmente prejudicaria a concretização da proposta de
disclosure. Conscientes desses desafios, os paises em desenvolvimento insistiram
na importância de manter a discussão na OMC. O Brasil recordou na ocasião,
inclusive, que o Conselho do TRIPs dispõe de mandato explícito para analisar o
assunto sob o parágrafo 19 de Declaração Ministerial de Doha e afirmou que a
Assembléia Geral da OMPI, ao renovar o mandato do ICG em 2003, havia
reconhecido que as suas discussões não deveriam obstar os trabalhos em outros
foros.
140
A reação norte americana foi célere. Reiteraram seus argumentos em defesa
de uma aproximação denominada national-based-approach para a apropriação
de recursos genéticos e saberes tradicionais e de uma abordagem contratualista,
semelhante àquela defendida na OMPI, para a questão da repartição de benefícios,
esta última de cunho privado e direcionada às legislações civis e criminais de cada
estado-membro. Por fim, condenaram o estabelecimento de sanções no sistema de
patentes, um traço fundamental da proposta disclosure.
Neste sentido, para os Estados Unidos, a insistência dos países em
desenvolvimento tanto nas insuficiências do sistema de patentes quanto no
imperativo da ação internacional têm sido vistas como aproximações equivocadas.
Para os representantes norte-americanos, as justificativas até o momento expostas
não legitimam a necessidade de uma ação internacional para a proteção dos
saberes tradicionais e dos recursos genéticos, pois julgam essencial, em um
primeiro passo, o estabelecimento de regimes nacionais concretos de proteção aos
conhecimentos tradicionais, e com esta intenção apresentaram variados documentos
dando prioridade à formulação de um quadro de princípios e regras para a
estruturação de tais regimes.
Na prática, esses documentos apresentavam uma definição de proteção que
inclui as seguintes pontuações: a) a utilização de leis atualmente em vigor pode
proporcionar a este conjunto de saberes uma proteção imediata; b) não existem
evidências concretas neste momento de que os regimes nacionais que regulam o
acesso aos conhecimentos tradicionais e postulam o compartilhamento de
benefícios sejam insuficientes para tratar da apropriação; c) considera-se
prudente que os estados membros compartilhem suas experiências nacionais,
determinem áreas de inadequação e conduzam análises de custo-benefício antes de
se engajarem na concretização de uma ação internacional; d) um sistema nacional
pode adquirir caráter internacional desde que seja flexível o suficiente a fim de
conter escolha de fórum, opção por legislação e arbitramento internacional em
questões envolvendo disputas trans-fronteiriças.
Igualmente desafiador para o Grupo dos Megadiversos foi tangenciar a
sugestão alternativa elaborada pelo próprio presidente da seção, Joshua Low, com
relação à organização dos trabalhos futuros do Comitê. Esta proposta, apoiada
pelas delegações do Quênia, do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia, se
141
aproximava bastante da orientação norte-americana ao procurar redirecionar as
discussões futuras para as revisões das legislações nacionais e outros pontos
abrangentes.
Portanto, nas reuniões subseqüentes a estas negociações de março de 2004,
a tática dos negociadores brasileiros e indianos consistiria em reduzir a ênfase dada
pelos EUA, pelo Japão e pelo Canadá nas dúvidas levantadas quanto à existência
de incompatibilidades entre as duas molduras jurídicas internacionais e quanto à
eficácia da proposta de emenda ao sistema de patentes para coibir a biopirataria
67
.
Também, questionavam os problemas apontados por estes mesmos países quanto à
operacionalidade das exigências desta proposta dentro do sistema de patentes, leia-
se, que são exageradamente trabalhosas, custosas e que se distanciam demais dos
critérios tradicionais para a expedição de patentes.
Quase que ao mesmo tempo, como havia sido acordado em março de 2004,
deslocaram a atenção para os aspectos práticos de sua proposta, em especial,
prepararam documentos técnicos em apoio à posição comum adotada pelo Grupo
dos Megadiversos, os quais tinham por objetivo elucidar questionamentos dos
demais membros que se revelavam persistentes, tais como as formas pelas quais os
requerimentos de disclosure poderiam prevenir a biopirataria, como eles poderiam
ser implementados na prática e as razões que alicerçavam suas críticas às
insuficiências das propostas norte-americanas.
Após a apresentação da comunicação IP/C/M/420, cuja finalidade, como
observado, era coordenar posições sobre como prosseguir nas negociações de
propriedade intelectual e como obter avanços na Rodada Doha, o grupo de países
que passaria a ser denominado Grupo disclosure apresentaria mais três documentos
67
Este grupo de países industrializados tem ressaltado que uma aplicação correta do critério de
patenteamento deverá garantir a conclusão de patentes válidas sobre materiais genéticos. A razão repousa no
fato de que os critérios para a obtenção destas patentes não elevam barreiras à correta aplicação dos
dispositivos da CDB, pois o controle de uma patente sobre um composto genético isolado ou modificado não
proporciona a apropriação dos próprios materiais genéticos, nem providencia direitos de propriedade sobre a
fonte através da qual o material original foi obtido. Portanto, uma patente requisitada sobre um gene isolado,
identificado e modificado concede àquele que a requisitou apenas a garantia de que outros não irão produzir,
comercializar e utilizar o gene modificado. Assim, a fonte através da qual o gene foi coletado não será
afetada pelo processo de patente. Ainda, esta argumentação resulta alicerçada na constatação de que não
existem citações sobre exemplos de conflitos específicos entre os dois conjuntos normativos e que a
implementação do acordo TRIPs pode até fortalecer procedimentos que venham a tornar as obrigações da
CDB mais eficientes, ou seja, que os requerimentos necessários ao patenteamento e ao caráter de invenção
podem auxiliar a prevenir patentes ilegais e que o controle sobre a produção e a distribuição dado ao
proprietário da patente e aos seus licenciados pode promover a distribuição de tecnologia.
142
que efetivamente proporcionariam maturidade técnica suficiente à proposta
disclosure para que o Grupo pudesse alcançar uma posição confortável nas reações
a quaisquer questionamentos de ordem técnica e na a redação de um texto preciso
de emenda. Em suma, às alegações norte-americanas e japonesas de que o
caminho a ser seguido deveria compreender somente a quantificação dos problemas
e a análise de experiências nacionais sobre a repartição de benefícios em matéria
de patentes concedidas a partir de recursos genéticos e saberes tradicionais, os
países megadiversos reagiram estruturando três comunicações precisas que
detalhavam todos os pontos práticos e políticos controversos de cada uma das três
etapas de emenda.
O Brasil e outros países megadiversos, portanto, consideravam primordial,
antes do estabelecimento de legislações nacionais específicas sobre acesso a
recursos genéticos e saberes associados, a criação de um instrumento internacional
que fosse capaz de resolver importantes problemas e desafios transnacionais. Com
efeito, argumentavam que, a despeito de todos os esforços compreendidos, a
quase totalidade das leis e ações nacionais elaboradas para regular o acesso
revelavam insuficiências estruturais em razão das seguintes dificuldades: a) a
natureza transnacional das atividades de pesquisa e desenvolvimento, assim como a
transferência e o movimento contínuo entre fronteiras de recursos genéticos e
saberes tradicionais; b) a ineficiência e a inconsistência dos mecanismos
obrigatórios presentes em leis sobre biodiversidade tanto nos países provedores,
quanto nos países usuários, incluindo a falta de mecanismos de execução
extraterritoriais; c) a grande maioria de casos de apropriação ocorreu fora do
país provedor; d) dificuldades na cooperação entre autoridades do meio ambiente e
corporações privadas na identificação de prováveis casos de má apropriação ou
acesso ilegal; e) baixa qualidade no exame de patentes biotecnológicas em razão da
enorme elevação no número de requisições devido aos avanços tecnológicos.
Consequentemente, revela-se necessária e imprescindível a obtenção de um
instrumento internacional uniforme (mecanismo de disclosure), respeitado e
implementado nos vários fóruns de debate, capaz de promover sinergia entre os
acordos internacionais e entre as iniciativas descentralizadas e eliminar estes
desvios. Visto que o Acordo TRIPs é consensualmente considerado o pilar mais
importante do regime internacional de propriedade intelectual ele estabelece um
143
conjunto mínimo de princípios que deve ser implementado e respeitado por todos os
membros da OMC não nos deve causar espanto que o Grupo dos Países
Megadiversos logre reformá-lo no sentido de consagrar os mecanismos de
revelação.
Persistiam, entretanto, dificuldades importantes a respeito dos aspectos
centrais da proposta em discussão. No tocante ao formato dos três requerimentos,
por exemplo, haviam controvérsias com relação à necessidade desses mecanismos
tomarem a forma de simples formalidades, de um requerimento adicional aos
critérios de patenteamento, ou uma condição adicional e substantiva para a
requisição de direitos de patentes. Igualmente faltava acordo quanto ao caráter
mandatório ou facultativo destes requerimentos e quanto ao formato das
conseqüências de não obediência a estes mecanismos (por exemplo, anulação ou
rejeição da aplicação pelos direitos de propriedade intelectual e invalidação ou
revogação das patentes). Ainda bastante controversa era a inclusão de conceitos e
idéias complexos e de significados não consensuais na proposta, tais como o próprio
conceito de revelação, os termos que deveriam ser utilizados para a definição dos
requerimentos de revelação, os casos nos quais estes requerimentos deveriam ser
aplicados (invenções diretamente alicerçadas em recursos genéticos e saberes
tradicionais e/ou invenções que indiretamente haviam sido desenvolvidas com a
utilização de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais).
Observava-se, portanto, a despeito da atuação destacada das delegações
brasileira e indiana, um quadro de paralisia desta agenda multilateral com relação à
temática em destaque. Nas reuniões posteriores, o Brasil e a Índia sentir-se-iam em
condições de exercer maior protagonismo nesse hiato através da apresentação de
três propostas que visavam promover a obtenção de convergências com seus pares
estratégicos e, assim, limitar as margens de manobra dos países desenvolvidos.
A primeira das 3 comunicações
68
destinadas a aprimorar a proposta de
revelação, apresentada pelo Brasil, Índia, Paquistão, Peru, Tailândia e Venezuela,
durante a reunião de 27 de setembro de 2004, tornava explícita que a prioridade do
Grupo era examinar o conceito de revelação de origem. A evolução das discussões
até aquele momento demonstrava que esta primeira requisição de emenda havia
68
“Elements of the Obligation to Disclose the Source and Country of Origin of Biological Resource and/or
Traditional Knowledge Used in an Invention”, (IP/C/W/429).
144
sido bem recebida pela maioria dos países membros. Revelava-se, por conseguinte,
um primeiro passo suficientemente seguro ao desenvolvimento da discussão e à
obtenção de convergência.
A segunda comunicação tratava exclusivamente da revelação do
consentimento prévio informado e foi apresentada na reunião de 1 a 2 de dezembro
de 2004
69
. Esta proposta direcionava atenção destacada para o artigo 15 da
Convenção da Diversidade Biológica, o qual exige que a parte contratante é
obrigada a revelar o consentimento prévio para patentes que envolvam o uso de
materiais biológicos.
Por fim, a terceira proposição lograva sublinhar aos países membros
aspectos técnicos e vantagens da revelação de evidência da repartição justa e
eqüitativa de benefícios
70
. Divulgada em 4 de Março de 2005, esta comunicação
concluiria a estruturação do empreendimento indiano e brasileiro, cujos primeiros
esboços haviam sido elaborados em 1999, calcado no estabelecimento de norma de
disclosure de caráter universal e mandatório no corpo do Acordo TRIPs.
Nos meses finais de 2005, a despeito da conclusão do processo técnico
inciado em 2004 e em razão da continuidade da clivagem norte-sul que vinha
delineando as discussões, o exame da relação entre o Acordo de TRIPs e a
Convenção passaria a transcorrer, na OMC, em duas instâncias. Com a finalidade
de organizar as discussões e obter certo consenso, o tratamento das questões
técnicas permaneceria no âmbito das sessões ordinárias do Conselho de TRIPs, sob
a proteção do Parágrafo 19 da Declaração Ministerial de Doha. Por outro lado, o
exame alcançaria as sessões de consultas sobre os temas procedimentais da
Rodada de Doha, instruídas pelo Pacote de Julho e realizadas ao abrigo do
Parágrafo 12 da Declaração de Doha.
Em 21 de novembro de 2005, este segundo espaço de negociações,
presidido pelo Diretor Geral Adjunto Rufus Yerxa, presenciou a apresentação de
uma proposta organizada pelo Brasil e pela India, de inclusão de parágrafo preciso
69
“The Relationship Between the TRIPs Agreement and the Convention on Biological Diversity (CBD) and
the Protection of Traditional Knowledge – Elements of the Obligation to Disclose Evidence of Prior
Informed Consent Under the Relevant National Regime”, Submission from Bolivia, Brazil, Cuba, Ecuador,
India, Pakistan, Peru, Thailand and Venezuela, IP/C/W/438.
70
“The Relationship Between the TRIPs Agreement and the Convention on Biological Diversity (CBD) and
the Protection of Traditional Knowledge Elements of the Obligation to Disclose Evidence of Benefit-
Sharing Under the Relevant National Regime”, Submission IP/C/W/442, from Bolivia, Brazil, Colombia,
Cuba, Dominican Republic, Ecuador, India, Peru and Thailand, 18 March 2005.
145
na Declaração Ministerial de Hong Kong. Este parágrafo visava estabelecer mandato
negociador para uma emenda ao Acordo TRIPs, de forma a que a identificação da
origem dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados passasse a
figurar como condição para a concessão de patentes. Com essa iniciativa, os
negociadores indianos e brasileiros visavam conferir previsibilidade e continuidade
ao processo de emenda, dificultanto, concomitantemente, quaisquer formas de
retrocesso. As delegações destes países entendiam, portanto, como imperativa a
inclusão da proposta no primeiro esboço da futura Declaração de Hong Kong.
Para o Brasil e para a India, além desses objetivos importantes, esta
organização da futura declaração permitiria imprimir ritmo intenso às negociações
vindouras, consolidar os ganhos obtidos nos últimos 6 anos, comprometer a
Noruega e a Comunidade Européia cada vez mais com a proposta dos países
megadiversos, e dificultar, ao mesmo tempo, a possibilidade de retração na postura
desses países, o que, caso se concretizasse, representaria o fortalecimento dos
países obstrucionistas.
Como reação, os Estados Unidos alinharam-se com os países contrários à
inclusão do parágrafo (Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Suíça, Coréia do Sul e
Japão) para barrar a modificação do esboço. Por fim, em função das divergências
entre os membros, não houve acordo sobre o formato do primeiro plano da
Declaração, o qual apenas tomava nota dos trabalhos realizados nestas sessões de
consultas e instruia o grupo a continuar as negociações sob os auspícios do Diretor
Geral Rufus Yerxa.
Tais resistências, contudo, não se mostraram capazes de provocar
retrocessos ou de barrar o fortalecimento e a ampliação dos membros favoráveis à
proposta de inclusão de relevação no Acordo TRIPs. Mesmo com a omissão do texto
de disclosure no esboço da Declaração de Hong Kong durante a última reunião da
Rodada Doha, a iniciativa indiana e brasileira teve desdobramentos positivos para o
Grupo dos Megadiversos na medida em que estimulou a apresentação de uma
proposta alternativa elaborada pela Noruega que igualmente reconhecia no
procedimento de emenda a melhor forma de garantir sinergia entre o Acordo TRIPs
e a CDB
71
.
71
O documento norueguês expõe princípios relevantes, de acordo com os quais o disclosure de recursos
genéticos e conhecimentos tradicionais em pedidos de patentes deveria internalizar: a) obrigção
146
Por fim, com essas negociações, grande parte da feição que o tema viria a
assumir e que o caracteriza até o presente resultou delineada. Desse modo, a
despeito das posturas antagonistas dos Estados Unidos e do Japão, aparenta
consolidar-se, desde o término da Rodada Doha, uma consideração da matéria
condizente com a posição indiana e brasileira e alicerçada em um text-based
approach acerca das suas propostas de disclosure.
internacional vinculante a todos os membros da OMC; b) alcance sobre todos os pedidos de patentes, sejam
eles nacionais, regionais ou internacionais, em compatibilidade com o International Treaty on Plant Genetic
Resources for Food and Agriculture e seu sistema multilateral; c) sanções pre-grant no regime de patentes;
d) sanções post-grant fora do sistema de patentes; e) criação de sistema multilateral de notificações de
pedidos de patentes no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica. Convé sublinhar que a proposta
norueguesa encerrou maior amplitude, em alguns pontos, do que a proposta patrocinada pelo Brasil e pela
Índia. Em particular, determinou a obrigação de identificação dos conhecimentos tradicionais, ainda que não
associados a recursos genéticos. A proposta da Noruega pode ser obtida no site da OMC pelo seguinte
código: WT/GC/W/566.
147
CAPÍTULO 7
AS NEGOCIAÇÕES NA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA PROPRIEDADE
INTELECTUAL.
A Organização Mundial da Propriedade intelectual administra a grande
maioria das convenções internacionais relacionadas aos direitos de propriedade
intelectual
72
. Estabelecida formalmente no ano de 1967, a OMPI atualmente possui
por objetivos centrais administrar os tratados internacionais relacionados às leis de
propriedade intelectual, proporcionar assistência aos seus 176 estados membros na
promulgação de legislações sobre bens intangíveis e obter maior harmonização
entre estas legislações nacionais.
Quando contrastamos a limitação territorial dos direitos de propriedade
intelectual (somente podem ser exercidos no interior da jurisdição do país que
proporcionou estes direitos) com o expressivo aumento na interdependência entre os
países, chegamos à conclusão de que constitui papel precípuo da OMPI
proporcionar as regras, as práticas, os meios e os instrumentos para que qualquer
habitante de um país membro possa requisitar e salvaguardar seus direitos de
propriedade intelectual nas jurisdições dos demais países membros.
A OMPI, por conseguinte, possui atuação destacada no regime internacional
de propriedade intelectual. A despeito de não possuir um mecanismo de disputa
como aquele vinculado à Organização Mundial do Comércio e que possibilita aos
países mais poderosos subordinar questões de comércio às questões de
propriedade intelectual, não constituiria exagero afirmar que esta Organização
Internacional assumiu o papel de liderança no desenvolvimento de novos direitos e
no aperfeiçoamento dos direitos já existentes.
72
A OMPI administra, entre outros, os seguintes tratados internacionais: a) Convenção de Paris para a
Proteção da Propriedade Industrial, cuja revisão inicial data de 1883 e cuja revisão mais recente data de
1967; b) Convenção de Berne para a Proteção de Obras Artísticas e Literárias, datada de 1886, revisada mais
recentemente em 1971; c) O Acordo de Madri relacionado ao Registro de Marcas, revisado mais
recentemente em 1967; d) Acordo de Lisboa para a Proteção de Indicações de Origem e seus Registros
Internacionais, cuja revisão foi concluída em 1967; e) Tratado de Cooperação em Patentes, o qual data de
1970 e foi modificado em 1984; f) Tratado de Budapeste para o Reconhecimento Internacional do Depósito
de Microorganismos para os Procedimentos de Patentes, o qual entrou em vigor em 1977 e que foi
emendado em 1980.
148
Assim, ainda em novembro de 1997, a Divisão Global de Questões de
Propriedade Intelectual (Global Intellectual Property Issues Division) foi estabelecida
pela OMPI para lidar com a emergência de três desafios que estavam se
direcionando para o sistema de propriedade intelectual em um mundo em constante
transformação. Tratava-se, em termos gerais, do acelerado avanço tecnológico, da
integração entre os sistemas globais econômico, ecológico, cultural, comercial e
informacional e, por último, a elevada expansão dos direitos de propriedade
intelectual nestes sistemas. Estas preocupações alicerçaram uma estratégia de
atuação que tinha por objetivo central:
“...identify key areas where economic, technological, cultural and
social change may impact on the IP system and to consider how such impact
should be explored and addressed by WIPO and Its Member States. The
program’s findings are expected to provide input and resources for policy
formulation and for use in WIPO’s other activities, such as in the areas of
development cooperation and, possibly, progressive development.
73
A elevada e progressiva capacidade do sistema de propriedade intelectual em
trabalhar com novos temas complexos e inter-relacionados tornou imprescindível, na
visão da OMPI, a estruturação deste sistema com a finalidade de transformá-lo em
matriz de progresso cnico, cultural, econômico e social para uma ampla gama de
populações mundiais.
Tratava-se, em outras palavras, de aproximar o tempo das inovações do
tempo do direito, ou seja, de somar esforços em direção ao reconhecimento formal
de uma gama muito ampla de saberes e saber fazer, os quais, ou permaneciam
tangenciados pela arquitetura legal do regime internacional, ou resultavam
problematicamente agregados ao sistema.
O material que se constituiria, a partir deste momento, em objeto de pesquisa
e análise na Divisão Global proporcionaria, portanto, muitos desafios aos
especialistas da Organização e aos países engajados nas negociações. A razão é
73
WIPO, Intellectual Property Needs and Expectations of Traditional Knowledge Holders, WIPO Report on
Fact-Finding Missions on Intellectual Property and Traditional Knowledge (1998-1999). Geneva, April
2001, p. 16.
149
que este processo que ainda se revelava embrionário trazia implícitas oportunidade
tanto para os países desenvolvidos, quanto para os países em desenvolvimento.
Para os países desenvolvidos desdobrava-se a possibilidade de aperfeiçoar e
homogeneizar os direitos de propriedade intelectual direcionados para temas que
lhes eram de interesse fundamental, tais como as novas variedades de plantas e
microorganismos. Para os países em desenvolvimento, por sua vez, emergia a
possibilidade de reorientar o regime internacional de propriedade intelectual com a
finalidade de torná-lo apto ao reconhecimento e análise dos conhecimentos
tradicionais e do folclore.
Neste sentido, a Divisão passou a interpretar e desenvolver estudos sobre
variados temas relevantes, dentre os quais podemos destacar quatro que se
relacionam intimamente à temática dos saberes tradicionais e que efetivamente
coroam a introdução deste tema na agenda de negociações e discussões da OMPI.
Assim, em primeiro lugar, novas aproximações às possibilidades de utilização
dos direitos de propriedade intelectual por novos beneficiários constituíram tarefa
precípua da Divisão. Acordou-se, portanto, que esta tarefa deveria se concretizar por
intermédio da verificação das necessidades dos encarregados dos saberes
tradicionais, de inovações, da cultura e dos recursos genéticos interligados, por
exemplo, às esferas da agricultura e da medicina; de análises centradas no potencial
das bases de dados dos conhecimentos tradicionais; e de reflexões encaminhadas
para as inter-relações entre as distintas e plurais referências aos direitos de
propriedade intelectual presentes em acordos multilaterais que tratam de outras
dimensões, leia-se aqueles estruturados em torno dos direitos humanos, do meio
ambiente, da cultura, do comércio, da saúde e de investimentos.
Em segundo lugar, constituiu esfera de atenção privilegiada a interação entre
biodiversidade, biotecnologia e propriedade intelectual. Conscientes da magnitude e
da complexidade inerentes a esta esfera de análise, os países membros optaram por
instituir os seguintes eixos centrais de estudos: a) o papel dos direitos de
propriedade intelectual na preservação, conservação e disseminação da
biodiversidade global; b) os direitos de propriedade intelectual relacionados à
biotecnologia; c) a utilização desses direitos na transferência de tecnologia no
interior de acordos multilaterais ambientais.
150
Em terceiro lugar, a Divisão julgou conveniente orientar os países membros e
as reuniões futuras para o estudo e os debates acerca da proteção às expressões
de folclore
74
. Dentre as medidas plurais destacadas como relevantes à obtenção
desta proteção, podemos ressaltar a avaliação da necessidade, da provável
natureza e do escopo de novas formas de proteção às expressões de folclore e a
aplicação do sistema existente de propriedade intelectual na obtenção de uma
comercialização favorável destas expressões para as comunidades delas
encarregadas.
Por fim, em quarto lugar, adentrou como tema relevante na agenda de
questões emergentes da OMPI a associação entre propriedade intelectual e
desenvolvimento, cujo desdobramento incluiu tanto a análise do papel dos bens
intangíveis na promoção do desenvolvimento econômico, cultural, social e
tecnológico, quanto à elaboração de estudos sobre a atuação da propriedade
intelectual na transferência de tecnologia ambientalmente sustentável aos países em
desenvolvimento, a qual deveria ocorrer em referência às obrigações presentes em
acordos multilaterais, com especial ênfase no artigo 66(2) do acordo TRIPS.
O caráter transversal da problemática dos conhecimentos tradicionais tornava
imperativo, já no intervalo entre 1998 e 1999, uma organização mais sistemática de
atividades, que passariam a primar pela identificação das necessidades das
populações e dos indivíduos considerados detentores da sabedoria tradicional. O
programa da OMPI reconhecia ser imprescindível, portanto, direcionar os esforços
iniciais para uma coleta sistemática de dados e para o aperfeiçoamento conceitual,
os quais resultaram efetivamente concretizados por intermédio de missões de
74
A OMPI entende o conceito “expressões de folclore como “productions consisting of characteristic
elements of the traditional artistic-heritage developed and maintained by a community in the country or by
individuals reflecting the traditional artistic expectations of such a community.” Uma divisão mais detalhada
acerca destas expressões também é oferecida pela OMPI, a qual considera relevante subdividi-las em
expressões através de palavras (“verbal”), expressões através de sons musicais (“musical”), expressões do
corpo humano (“by action”) e, por fim, expressões incorporadas em objetos materiais (“tangible
expressions”). Ainda, as três primeiras formas de expressão dispensam a redução às formas materiais, ou
seja, igualmente devem ser contempladas as expressões intangíveis, tal como uma música que não exista no
formato de notas musicais. Já, as expressões tangíveis constituem aquelas incorporadas em algum tipo de
material permanente, como a madeira, os tecidos, os metais, as pedras etc. WIPO, Intellectual Property
Needs and Expectations of Traditional Knowledge Holders, WIPO Report on Fact-Finding Missions on
Intellectual Property and Traditional Knowledge (1998-1999). Geneva, April 2001, p. 22.
151
consultas conduzidas em diferentes localidades do mundo e de outras ações
relevantes
75
.
Ao privilegiar uma aproximação mais moderada, calcada no levantamento de
objetivos essenciais e diretrizes conceituais sobre o assunto, a OMPI encetou uma
avaliação da problemática que pragmaticamente atentava para os inúmeros desafios
congregados ao assunto, tais como as fracas e imprecisas legislações nacionais, a
fragmentação institucional internacional e a difícil conciliação de duas lógicas
distintas, a comercial e a ambiental.
No entanto, na visão dos países em desenvolvimento, esta aproximação, ao
mesmo tempo em que aperfeiçoava questões relevantes como o referencial
conceitual e a percepção das necessidades das coletividades tradicionais, ignorava
um ponto precípuo que alicerça a problemática, leia-se, o papel da enorme
assimetria entre os atores envolvidos (empresas multinacionais, Estados soberanos
industrializados e em desenvolvimento e comunidades locais) na fundamentação da
biopirataria.
Este tangenciamento, percebido como consciente, trazia por corolário, na
visão dos países em desenvolvimento, uma postura implícita da Organização da
Propriedade Intelectual favorável ao tratamento da temática em longo prazo, algo
que conflitava claramente com a opção destes países por um tratamento que
pudesse ser esboçado, desenvolvido e concretizado em curto prazo. Neste sentido,
se naquele momento era percebida como seguramente importante uma estruturação
mais aprofundada da temática, este esforço de organização não deveria ofuscar a
urgência de medidas destinadas à obstrução da má apropriação dos conhecimentos
tradicionais e/ou dos recursos biogenéticos.
No interior deste contexto, caracterizado pela clivagem progressiva entre
países favoráveis a uma reorientação das negociações e discussões em direção ao
problema da biopirataria e países simpatizantes ao exame progressivo dos aspectos
75
Desde 1998, a OMPI envolveu-se ativamente nas questões relacionadas ao conhecimento tradicional.
Dentre as atividades conduzidas no ano de 1998 e 1999, podemos salientar a organização de um Seminário
Asiático sobre a Propriedade Intelectual e Medicina Tradicional (Nova Delhi, Outubro de 1998), a
cooperação com o Programa para o Meio Ambiente das Nações Unidas (UNEP na sigla em inglês) na
análise de dois estudos de caso relacionados ao papel dos direitos de propriedade intelectual na repartição de
benefícios oriundos de plantas e saberes medicinais tradicionais, e o desenvolvimento de uma biblioteca
digital de conhecimentos tradicionais (Traditional Knowledge Digital Library TKDL), a qual inclui a
informações sobre aproximadamente 50 variedades de plantas medicinais e dos saberes a elas associados.
152
informativos e técnicos, a 25ª Seção da Assembléia Geral da OMPI
76
, ocorrida em
2000, presenciou o esforço do Secretariado em elaborar um documento que
convidava os estados membros a considerar o estabelecimento de um Comitê
Intergovernamental para a Propriedade Intelectual, os Recursos Genéticos, o
Conhecimento Tradicional e o Folclore (IGC na sigla em inglês). Com efeito, o
Secretariado da OMPI sugeriu que o IGC se tornasse um forum para os membros
discutirem três temas que haviam sobressaído nos exercícios de consultas ocorridos
nos anos de 1998 e de 1999 e que poderiam facilitar a convergência de expectativas
e a obtenção de concessões por parte dos países engajados nas discussões e
reuniões. Tratava-se, em termos gerais, de voltar as atenções para as questões de
propriedade intelectual que haviam despontado no contexto do acesso aos recursos
genéticos e do compartilhamento de benefícios; na conjuntura da proteção ao
conhecimento tradicional, associado ou não a estes recursos; e na circunstância da
proteção às expressões do folclore.
Ao final da sessão, esta sugestão acabou amplamente apoiada por um
grande número de países em desenvolvimento e ainda resultou aprovada sem
qualquer obstrução formal proveniente de qualquer membro. Uma razão que nos
auxilia a entender a criação consensual deste Comitê foi a constatação da própria
OMPI de que esta questões são transversais e que, portanto, ultrapassam as
esferas convencionais da legislação de propriedade intelectual não se enquadrando
nos demais comitês existentes na OMPI
77
.
Através da análise das atividades conduzidas pelo Comitê a partir de 2000,
podemos tecer a afirmação de que o programa de trabalho produziu um número
impressionante de documentos de discussão, levantamentos de legislações
nacionais e de dados relevantes. A percepção resultante da interpretação, mesmo
que sumária, deste material indica que as dimensões técnicas internalizaram a maior
parte das reflexões. Os resultados práticos mais importantes que emergiram destas
reflexões incluem a criação de um conjunto de ferramentas que poderão ser
76
A Assembléia Geral da OMPI comporta todos os signatários da Convenção de Estocolmo e constitui o
órgão máximo da Organização responsável pela coordenação e fiscalização de todos os demais.
77
Juntamente com o Comitê sobre os conhecimentos tradicionais, quatro outros comitês importantes
estruturam a dinâmica de negociações especializadas na OMPI. São eles: Standing Committee on the Law of
Patents (SCP); Standing Committee on Copyright and Related Rights (SCCR); Standing Committee on
Trademarks, Industrial Designs and geographical Indications (SCT); e Standing Committee on Informational
Technologies (SCIT).
153
utilizadas na administração da propriedade intelectual no contexto da documentação
dos saberes tradicionais e dos recursos genéticos, um guia prático para a proteção
das expressões culturais tradicionais, provisões e princípios operacionais contratuais
relacionados ao acesso aos recursos genéticos e ao compartilhamento de
benefícios, e propostas para a revisão da legislação sobre patentes a fim de torná-la
apta à promoção do compartilhamento de benefícios e à prevenção da apropriação
indevida dos bens intangíveis tradicionais.
No decorrer das reuniões concluídas durante o primeiro mandato do ICG, ou
seja no intervalo compreendido pelos anos de 2001, 2002 e 2003, a atmosfera das
negociações caminhou progressivamente em direção a uma clara divisão entre os
países com relação a uma série de questões controversas importantes.
Assim, desde 2001, quando países como o Brasil, a Índia, o Peru, a África do
Sul e Grupo Africano passaram a agir no sentido de associar proteção aos
conhecimentos tradicionais e obstrução da biopirataria por intermédio da reforma do
sistema de propriedade intelectual com vistas à criação de novas normas legais, a
posição norte-americana, japonesa e canadense foi de defesa dos sistemas legais
existentes no tratamento das questões levantadas. Para estes países
industrializados, o sistema de propriedade intelectual vigente era conveniente por
possibilitar e favorecer a abordagem contratual, ou seja, o tratamento da
apropriação por meio de contratos privados estabelecidos entre as partes engajadas
na atividade de bioprospecção. Em outros termos, afirmavam que as categorias
existentes de propriedade intelectual seriam suficientes para tratar o problema da
biopirataria. Em suma, os EUA, na liderança dos países desenvolvidos, pretendiam
restringir as discussões a termos excessivamente genéricos e, assim, resguardar o
status quo presente na atual arquitetura legal do sistema de propriedade intelectual.
Ainda, ao apoiar a abordagem contratual, logravam consubstanciar a idéia de que
toda e qualquer regulamentação sobre o tema acesso e repartição de benefícios
deveria ser integralmente feita mediante arranjos privados.
O Brasil e outros países em desenvolvimento, por outro lado, consideravam
primordial ultrapassar o estágio da discussão de aspectos técnicos e de definição,
que se revelava perene, com o intuito de obter uma regulamentação mais rigorosa
para a problemática dos recursos genéticos e dos saberes tradicionais. Em outras
palavras, logravam estabelecer um instrumento vinculante e realmente efetivo no
154
combate ao acesso não autorizado. Um ponto central de discórdia no Comitê era
justamente a natureza desse instrumento, visto que, na visão do Brasil, ele somente
internalizaria efetividade se resultasse respaldado em obrigações vinculantes na
legislação internacional de propriedade intelectual, como demonstra a declaração do
representante da Divisão de Propriedade Intelectual do Ministério das Relações
Exteriores, Henrique Moraes, em 9 de novembro de 2004:
“Essa posição não pretende necessariamente uma ruptura com os
parâmetros vigentes de propriedade intelectual. A idéia é simplesmente
resguardar a possibilidade que os países adotem sistema sui generis para
proteger o acesso e a utilização de conhecimentos tradicionais e recursos
genéticos, mas trazendo à superfície também as limitações às vezes
estruturais apresentadas pelo sistema de propriedade intelectual atual. Vários
casos demonstram que, por vezes, a própria chancela da apropriação indevida
de recursos genéticos/conhecimentos tradicionais se encontra materializada na
concessão de direitos de propriedade intelectual como a concessão de uma
patente, por exemplo.”
78
Destarte, para os representantes brasileiros tratava-se de agilizar as
negociações, e com esta intenção apresentaram variadas propostas dando
prioridade à formulação de um quadro de princípios e regras para o reconhecimento
dos conhecimentos tradicionais no sistema de patentes. Na prática, essas propostas
lidavam com dois desafios precípuos.
Por um lado, tinham a primeira incumbência de contraporem-se à proposta
contratual dos países desenvolvidos. Assim, estes documentos vinculavam o
parecer de que o assunto evidentemente possuía um viés privado, mas que esse
viés privado não encerrava o problema. Fruto de uma percepção equivocada na
visão do Brasil, a proposta dos Estados Unidos revestia de certeza algo que é
extremamente discutível: o caráter público ou privado da regulamentação do acesso
a recursos genéticos e saberes associados e a repartição de benefícios. Assim, os
representantes brasileiros manifestavam a posição de que era imprescindível
78
Seminário “Construindo a Posição Brasileira sobre o Regime Internacional de Acesso e Repartição de
Benefícios”, 09 a 10 de novembro de 2004, p. 27.
155
delimitar os espaços de caráter público e privado no tema em pauta e que toda e
qualquer abordagem privatista revelava-se restritiva e, portanto, deveria ser
afastada.
Reflexões recentes sobre o impacto da abordagem contratualista indicam que
os contratos privados estabelecidos entre os atores centrais no processo de
bioprospecção podem encerrar conseqüências tanto benéficas quanto deletérias às
coletividades tradicionais, as quais, em razão das assimetrias entre os atores
envolvidos, acabam por ocupar as posições mais frágeis nas negociações. Convém
ponderar, entretanto, que os impactos positivos resultam ofuscados quando
analisados em paralelo para com a magnitude dos corolários negativos provenientes
de uma abordagem contratualista, corolários estes que permanecem claramente
sumarizados no seguinte parágrafo da professora Manuela Carneiro da Cunha:
“(...) parte da inovação dos contratos é que os Estados Nacionais
passam a opinar pouco, em uma lógica que é consistente com o neoliberalismo
reinante. Uma das conseqüências é que interesses nacionais não têm como se
afirmar. (...) Outras conseqüências são que os termos das negociações e a
participação nos benefícios passam a depender fortemente do grau de
organização e mobilização dos grupos locais, o que pode significar, no caso de
grupos mais vulneráveis, uma venda a vil preço de seus recursos e
conhecimentos ou a perda para o país da oportunidade de valorizar seus
próprios recursos genéticos e conhecimentos. Caberia ao Estado estabelecer os
parâmetros mínimos para essas negociações , aplicáveis a instituições
nacionais e estrangeiras.
79
A estas insuficiências da abordagem contratual, poderíamos acrescentar
outras, como, por exemplo, as dúvidas que surgem quanto aos benefícios
esperados, quanto às responsabilidades nas ocorrências de ligações ou
superposições complexas, quanto às funções precisas das populações tradicionais
nas estruturas contratuais e quanto ao caráter de recomendação e não
obrigatoriedade que envolve a concretização destes contratos. Tratam-se, em outros
79
CUNHA. Manuela Carneiro, “A Convenção da Diversidade Biológica e suas repercussões no Brasil”,
Estudos Avançados,13 (36), 1999, p. 152.
156
termos, de hesitações e dificuldades que, embora possam ser atenuadas através
regulamentação contratual mais precisa, nem por isso evitarão a fundamentação de
injustiças e litígios plurais.
Some-se a estas preocupações a constatação de que os acordos de
prospecção da biodiversidade e de acesso aos saberes tradicionais associados
estão sujeitos a leis nacionais, que variam conforme o país onde ocorrem as
atividades, e visualizamos a manifestação de mais uma dificuldade na opção pela
abordagem contratual.
Assim, na medida em que inexiste em muitos países como o Brasil um marco
regulatório preciso e eficiente sobre o acesso ao material biológico e aos
conhecimentos tradicionais
80
, e que a ciência do direito ainda encerra variadas
dificuldades para elaborar respostas e diretrizes de reação aos desdobramentos do
progresso tecnológico atual, resulta de certa forma previsível a permanência de mais
incertezas do que seguranças na opção por um tratamento do assunto alicerçada
exclusivamente na abordagem contratual.
Estas insuficiências foram bem analisadas por Florence Bellivier, professora
da Universidade de Paris, que, ao desenvolver um estudo centrado na observação
da tipologia e da eficácia dos contratos sobre recursos genéticos vegetais, concluiu
que a abordagem contratual, por suas insuficiências, deve ser utilizada em paralelo
com outros mecanismos legais. Deixemos a autora concluir com suas próprias
palavras:
“Não é por acaso que se pensa em formular guias de boas condutas
(guidelines) para orientar a redação de todos os contratos relacionados com
recursos vegetais: tratar-se-ia de uma espécie de fundo comum do contrato de
bioprospecção, emanando da prática, tornando clara a divisão entre os
elementos de ordem pública e os elementos deixados à liberdade contratual. As
leis nacionais ou os textos internacionais teriam, pois, vocação de assegurar sua
80
No caso específico do Brasil, as normas que têm regulamentado o acesso aos recursos genéticos e a
participação das coletividades tradicionais neste processo são: Medida Provisória n. 2.186/16 de 23 de
agosto de 2001, Decreto n. 3.945, de 28 de setembro de 2001, Decreto n. 4.946, de 31 de dezembro de 2003,
o qual altera o Decreto n. 3.945 e a Medida Provisória n.2.186q16. A evolução deste aparelho jurídico
nacional tem no Conselho de gestão do Patrimônio Genético (CGEN) seu responsável central. Fazem parte
do CGEN representantes de nove ministérios nacionais: INPA, EMBRAPA, IBAMA, FIOCRUZ, CNPq,
FUNAI e INPI.
157
continuação. Mas estamos ainda longe disso e a necessidade de um trabalho de
recenseamento e de análise é fundamental.”
81
Neste contexto, não nos deve surpreender a postura categórica da diplomacia
brasileira e de outros países em desenvolvimento na promoção de uma alternativa
considerada mais cautelosa e adequada à regulamentação internacional da
problemática em questão. A identificação e a estruturação de uma abordagem
alternativa ao projeto contratual passaram a constituir, por conseguinte, o segundo
desafio a ser superado pelas comunicações brasileiras na OMPI.
A esta abordagem alternativa os representantes brasileiros deram o nome de
proposta de revelação, cuja idéia central é a associação entre o registro de patentes,
a repartição de benefícios e as normas nacionais e internacionais de acesso aos
recursos genéticos e aos saberes associados.
Importa salientar que esta proposta é muito semelhante à proposta defendida
pelo Brasil na Organização Mundial do Comércio, outro alicerce principal do regime
internacional de propriedade intelectual. As diferenças relacionam-se basicamente
aos respectivos acordos internacionais que deverão internalizar as cláusulas de
obrigatoriedade: no caso da OMC, como foi analisado, estas cláusulas deverão
resultar congregadas no acordo TRIPs, em particular, no formato revisado do artigo
27.3(b); já, no caso da OMPI, julgou-se conveniente agregar estas cláusulas no
denominado Tratado sobre Legislação em Matéria de Patentes (Substantive Patent
Law Treaty SPLT), cujo processo de negociação revela-se um dos pilares
fundamentais da agenda de patentes da OMPI.
O ano de 2001, alem de presenciar a criação do Comitê sobre Propriedade
Intelectual, Recursos Genéticos e Saberes Tradicionais, também testemunhou o
estabelecimento oficial da Agenda de Patentes da OMPI. Percebida como um
processo global de discussões, cujo intuito era proporcionar uma nova arquitetura
estratégica plenamente capaz de alicerçar o futuro desenvolvimento de um sistema
internacional de patentes, a Agenda de Patentes da OMPI internalizou, desde o
início, como objetivo central, a harmonização das leis de patentes. A fim de
concretizar este propósito, a Agenda tem organizado suas atividades em três áreas
81
BELLIVIER. Florence, “Os Contratos Sobre os Recursos Genéticos Vegetais: Tipologia e Eficácia”, In:
PLATIAU. Ana Flávia Barros e VARELLA. Marcelo Dias, (Orgs.), Diversidade Biológica e Conhecimentos
Tradicionais, Livraria Del Rey Editora, Belo Horizonte, 2004, p. 196.
158
principais: a) atividades relacionadas à ratificação do Tratado de Legislação
Patentária (Patent Law Treaty PLT); b)esforços direcionados à reforma do Tratado
de Cooperação Patentária (Patent Cooperation Treaty PCT); c) as negociações em
andamento sobre o Tratado de Legislação em Matéria de Patentes (Substantive
Patent Law Treaty – SPLT).
O SPLT, que tem sido progressivamente negociado no interior do Comitê
sobre Leis de Patentes (Standing Committee on the Law of Patents), tem o propósito
de fundamentar um sistema internacional de patentes capaz de proporcionar aos
solicitantes de propriedade industrial instrumentos necessários e adequados à
salvaguardada e à implementação de suas patentes nos países desejáveis. A lógica
que move o desenvolvimento deste tratado é a necessidade dos solicitantes de
patentes eliminarem uma característica que permanece definidora do regime
internacional de propriedade intelectual, ou seja, a exigência de que cada inventor
ou empresa que ambicione ter sua patente reconhecida dentro de um país deva
solicitar salvaguarda patentária em cada país, tornando o processo incômodo e
custoso.
Neste sentido, o Tratado sobre Legislação em Matéria de Patentes
provavelmente fornecerá as bases para a construção de um modelo único de pedido
de patente, que poderá ser implementado dentro de todos os países signatários do
Tratado. Para que este modelo único seja efetivamente concluído, as negociações
no Comitê têm se concentrado na criação de padrões uniformes de normas
patentárias com relação à arte prévia, aos critérios de novidade, inventividade e
utilidade e aos requerimentos de revelações.
O princípio da harmonização, na forma como resulta esboçado nas propostas
e nos documentos preparados pelo Comitê sobre Leis de Patentes, tem embasado
críticas contundentes por parte da comunidade acadêmica internacional. Não
constitui tarefa árdua, portanto, organizar trabalhos especializados calcados nos
diversos pontos problemáticos do processo de harmonização atualmente em
desenvolvimento no interior da Organização Mundial de Propriedade Intelectual.
Uma crítica central, por exemplo, incide sobre a conseqüente redução, dada como
certa, das flexibilidades presentes em outros tratados que alicerçam o regime
internacional de propriedade intelectual, em especial o acordo TRIPs, e que são
extremamente favoráveis aos países em desenvolvimento.
159
Ao estabelecer uma análise dos impactos do projeto de harmonização
defendido pelos Estados Unidos nas negociações da Agenda de Patentes da OMPI
para os países em desenvolvimento, os professores Sisule Musungu e Graham
Dutfield assim definiram os efeitos prejudiciais que poderão incidir sobre as demais
negociações que estes países têm conduzido no interior do regime internacional de
propriedade intelectual, entre elas as discussões sobre a temática dos
conhecimentos tradicionais:
“While most of the proposed standards will benefit international
industries, they will make it more difficult for developing countries to adapt their
patent laws to local conditions and needs including adapting their laws to take
into account their critical public health and other needs. Such a result will
undermine the achievements in Doha on public health and elsewhere on the
other issues of intellectual property and development. One can conclude that the
process of patent law and harmonization, coupled with various bilateral
agreements that contain TRIPS-plus standards, will seriously compromise the
ability of developing countries to use the various TRIPS flexibilities for
development objectives. Harmonized patent law standards will also make it more
difficult for these countries to seek amendments to the TRIPS Agreement, for
example, to introduce disclosure requirements with respect to genetic resources
and traditional Knowledge.
82
A principal ameaça que pairava sobre os negociadores brasileiros e sobre os
representantes dos demais países em desenvolvimento consistia, portanto, na
política de isolamento das negociações e dos resultados alcançados no Comitê
Intergovernamental para a Propriedade Intelectual, os Recursos Genéticos e os
Saberes Tradicionais com relação à Agenda de Patentes que vinha evoluindo
paralelamente no interior da Organização Mundial da Propriedade Intelectual.
Tratava-se de tática conduzida por países como os Estados Unidos e
caracterizava-se pelo estabelecimento de dois cronogramas de negociações
distintos nos dois Comitês da OMPI. Com efeito, no ICG, os países desenvolvidos
82
MUSUNGU. Sisule F, and DUTFIELD. Graham, Multilateral Agreements and a TRIPS-Plus World: The
World Intellectual Property Organization (WIPO), TRIPs Issues Papers, Published by Quaker United
Nations Office (QUNO), Geneva, 2003, p. 12.
160
liderados pelos americanos insistiam em um cronograma de trabalhos
excessivamente lento e moderado, algo que contrastava claramente com o
cronograma de negociações agressivo e célere defendido no SCP.
Os formuladores de política externa brasileira concluíram, por conseguinte,
que um importante desafio inicial perante a comunidade internacional seria o de
uniformizar o ritmo das negociações nestes dois fóruns de debate. Nesse contexto,
enfatizaram que os debates sobre recursos biogenéticos e saberes tradicionais
associados não deveriam permanecer restritos ao Comitê criado em 2001 e,
logrando colocar em prática esta estratégia, submeteram uma primeira proposta
relacionada ao tema dos conhecimentos tradicionais no interior Comitê sobre leis de
Patentes em novembro de 2002.
A proposta submetida pelo Brasil propunha a inclusão no corpo do Tratado de
cláusulas de exceção justificadas no interesse blico, as quais deveriam evitar
qualquer obstáculo ao direito dos estados nacionais protegerem a saúde pública, a
segurança alimentar e o meio ambiente (artigo 2.3). Ainda, a análise da proposta
nos possibilita afirmar que constituía interesse brasileiro assegurar a aquiescência
dos países desenvolvidos à inclusão de regras e normas no Tratado aplicáveis a
outros temas (saúde pública, segurança alimentar, considerações éticas na pesquisa
científica, meio ambiente, acesso aos recursos genéticos e proteção aos saberes
tradicionais) como substratos para eventuais recusas às requisições de patentes.
Tanto esta proposta brasileira quanto outra proposta semelhante apresentada
na mesma reunião pela República Dominicana em acordo com o Chile, a Colômbia,
Cuba, Honduras, Nicarágua, Peru e Venezuela e apoiada pelo Brasil, resultaram
incluídas no esboço do Tratado através de parênteses, em clara alusão à
discordância entre esses países e os Estados Unidos com relação à viabilidade das
mesmas. Inclusive, o corpo do esboço apresentada igualmente uma nota de rodapé
especificando que o Comitê havia acordado em incluir o parágrafo entre parênteses,
mas que seria indispensável adiar discussões substanciais sobre as provisões nele
explicitadas.
Paralelamente aos desentendimentos observados nas reuniões
subseqüentes da Agenda de Patentes, os resultados de dois anos de negociações
foram apresentados durante a quinta sessão do Comitê Intergovernamental para a
161
Propriedade Intelectual, os Recursos Genéticos, o Conhecimento Tradicional e o
Folclore de 7 a 15 de julho de 2003.
Em conformidade com a previsão de muitos observadores, durante esta
reunião os Estados Unidos, a União Européia e o Japão não desistiram de suas
posturas iniciais de que todos os problemas provenientes do acesso aos recursos
biogenéticos e aos saberes tradicionais deveriam ser examinados por intermédio de
contratos e de que a agenda de negociações do Comitê deveria permanecer
orientada unicamente para o trabalho de coleta de informações e de formulação de
conceitos.
Distintamente das continuidades apresentadas pelas posturas norte
americana, européia e japonesa no momento do desfecho de dois anos de
negociações, as posturas de países como o Brasil e a Índia apresentariam uma
alteração bastante relevante com relação ao significado do ICG e dos resultados
nele alcançados. Com efeito, o otimismo brasileiro e de seus aliados, demonstrado
em 2001 com relação à futura agenda de atividades do Comitê, cederia lugar, em
2003, ao ceticismo e à hesitação provenientes de uma análise pragmática dos
obstáculos presentes no primeiro mandato e das insuficiências inerentes aos
resultados concretos dessas atividades.
A percepção de que o primeiro mandato do ICG revelou-se um caso de
insucesso não permaneceu restrita aos diplomatas envolvidos nas negociações.
Membros da comunidade acadêmica internacional, como Carlos Correa, professor
da Universidade de Buenos Aires, não se furtaram a apresentar variadas
insuficiências que dificultavam um tratamento multilateral adequado à problemática
internacional dos saberes tradicionais. O seguinte parágrafo de Carlos Correa
sumariza com clareza algumas dessas insuficiências:
“Given the limited mandate of WIPO as an organization aiming to promote
intellectual property protection, its work has failed to consider, in an integral and
balanced manner, the benefits and costs of a possible system of TK protection.
No serious analysis has been made either of the standards for patentability
applied by WIPO members (such as the differential novelty standard applied in
the United Sates with regard to inventions disclosed in non-written form within
162
and outside the country) which allow the patenting of genetic resources and TK.
83
Portanto, a alicerçar esta mudança de posição estava a certeza de que havia
ocorrido um desvio do foco de trabalho do órgão e de que os documentos
elaborados pelo mesmo traziam nas entrelinhas a clara defesa das propostas dos
países desenvolvidos. Aguns meses após a conclusão da reunião, o representante
da Divisão de Propriedade Intelectual do MRE, Henrique Moraes, ressaltaria a
percepção bastante crítca da diplomacia brasileira com relação à evolução das
negociações no ICG da OMPI.
“O ICG foi criado especificamente para discutir formas de coibir, no âmbito
internacional, a biopirataria. Na sua origem, então, encontra-se a constatação de
que a biopirataria é um problema com dimensão internacional e que medidas
nacionais isoladas não solucionam o problema”, afirmou. E prosseguiu:
“Desde 2001, o ICG discute formas de estruturar no âmbito
internacional maneiras de coibir a pirataria. Apesar disso, um exame dos
documentos apresentados em cada uma das sessões permite ver que a
discussão eventualmente desvia desse objetivo. (...) Em outros termos, as
discussões no âmbito do ICG, de certa forma, transcendem esse objetivo de
coibir a biopirataria, como se esquecendo do foco da criação do próprio órgão.
84
Após o anuncio dos resultados do primeiro mandato, ocorrido durante a
sessão do ICG em julho de 2003, a clara clivagem entre países desenvolvidos e
países em desenvolvimento com relação à conveniência do ICG marcaria fortemente
o cenário político das negociações. No decorrer da sessão, as atenções e as
posições dessemelhantes e contrárias permaneceriam direcionadas para a possível
prorrogação do mandato do Comitê.
83
CORREA, Carlos, Update on International Developments Relating to the Intellectual Property Protection
of Traditional Knowledge Including Traditional Medicine, Trade-Related Agenda, Development and Equity,
South Centre, March 2004, p. 6.
84
Seminário “Construindo a Posição Brasileira sobre o Regime Internacional de Acesso e Repartição de
Benefícios”, 09 a 10 de novembro de 2004, pp. 25 e 26.
163
Ao longo do debate, os países desenvolvidos marcaram presença ao
defender a continuidade de um mandato restrito às análises técnicas e que deveria
prosseguir por um período de 2 anos ou mais. Os Estados Unidos, em particular,
propunham prolongar o mandato de forma inalterada por mais 4 anos. O Grupo
africano, em contraste, demandava o início imediato de negociações direcionadas
para a finalização de um instrumento legal obrigatório relacionado à recursos
genéticos, conhecimento tradicional e folclore. Países em desenvolvimento da Asia e
da América-Latina, entre eles o Brasil e a India, por seu turno, advogavam por uma
agenda orientada para a ação, logrando concretizar o estabelecimento imediato de
normas destinadas a obstar a prática da biopirataria e a má apropriação dos saberes
tradicionais.
Nos meses finais de 2003, a Assembléia Geral da OMPI decidiu prolongar o
mandato do ICG por mais dois anos. Como reação à posição dos países em
desenvolvimento, foi requisitado pela Assembléia que o Comitê acelerasse seus
trabalhos e focalizasse as atenções das negociações na dimensão internacional da
propriedade intelectual, dos recursos genéticos, da sabedoria tradicional e do
folclore.
No que foi descrito pelos observadores como uma das conseqüências mais
concretas do ano de 2004 para o segundo mandato do ICG
85
, as delegações em
negociação decidiram acelerar os trabalhos direcionados para a proteção do
conhecimento tradicional e do folclore através de duas rotas. A curto prazo, ficou
acordado que o Comitê deveria manter a identificação de objetivos políticos e
conceitos precípuos necessários à proteção dos conhecimentos tradicionais e do
folclore, a fim de estruturar de maneira mais eficiente as discussões futuras. A médio
prazo, por outro lado, caberia ao Comitê compilar opções políticas específicas e
elementos legais, assim como elaborar análises breves de suas implicações
práticas. Os trabalhos assim resultantes deveriam providenciar as bases para a
formulação de políticas nos níveis doméstico e internacional, em particular, deveriam
alicerçar a criação e a sustentação de um instrumento internacional para a proteção
dos saberes tradicionais e do folclore.
85
Ver: BRIDGES, Wipo Committee resumes work on genetic resources and TK, Volume 4, Number 6, 2
April 2004.
164
A esse compromisso inicial acerca das políticas e objetivos que deveriam ser
alcançados a médio prazo, entretanto, não correspondeu uma única forma de tentar
implementá-los internacionalmente no decorrer do segundo mandato
86
.
Essa era uma opinião compartilhada pelo Brasil, pela India, pelo Peru e pela
Africa do Sul capaz de nos auxiliar a compreender uma segunda mudança de atitude
destes países com relação ao ICG, transformação de postura que começaria a tomar
forma nos meses finais de 2005. Destarte, se no final do primeiro mandato estes
países ainda julgavam conveniente a existência de um ICG mais receptivo às suas
demandas e somaram esforços no sentido de reorientar o escopo da agenda futura,
na conclusão do segundo mandato suas percepções eram de que a existência do
Comitê prejudicava seus objetivos no interior da própria OMPI e nos demais regimes
internacionais que vinham tratando da proteção aos recursos genéticos e aos
conhecimentos tradicionais, principalmente no Conselho do TRIPs da Organização
Mundial do Comércio.
A percepção assim compartilhada pelas economias emergentes de que a
permanência do Comitê Intergovernamental para a Propriedade Intelectual, os
Recursos Genéticos, o Conhecimento Tradicional e o Folclore seria contrário aos
seus interesses levou, de um lado, à redução de seu mandato e operacionalização,
e, de outro, a iniciativas conjuntas que aumentassem as suas capacidades de
negociações nos demais Comitês da OMPI e nos demais regimes internacionais
relevantes.
86
Esse posicionamento bastante crítico acerca do segundo mandato do ICG não se restringiu aos
representantes das delegações diretamente engajadas na negociação. Parcela expressiva dos autores
analisados igualmente tem sustentado a permanência de variadas insuficiências do primeiro mandato nas
diretrizes de atuação para os anos de 2004 e 2005. Esse posicionamento pode ser verificado, por exemplo,
nos trabalhos elaborados pelo South Centre acerca das negociações no ICG, uma instituição financiada pelo
Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (United Nations Development Program UNDP) cujo
objetivo é monitorar e analisar temas da OMC sob a perspectiva dos países em desenvolvimento. Assim, ao
estabelecer um balanço das negociações na OMPI até o final de 2003, Robert Lettington e Kent Nnadozie
criticar assertivamente as diretivas para o segundo mandato do ICG: These problems also derive, in large
part, from the ambiguity of the extended mandate for the ICG. Of its three key elements, only that of
‘focusing on the international dimension’ comes close to hinting at specifics, although it should be noted that
there is no indication as to what this ‘international dimension’ might consist of in the view of different
members. ‘Accelerating’ its work is not really a part of the mandate at all, particularly in the absence of a
clear understanding of what that work is. A mandate ‘excludes no outcome” is also potentially problematic,
as it doesn’t point to what is specifically included.” E continuam: “If the extended mandate of the ICG is to
produce any tangible results for developing countries several factors need to be considered in the immediate,
short- to medium, and longer-term.” LETTINGTON. J. L. Robert, and NNADOZIE. Kent, A Review of the
Intergovernmental Committee on Genetic Resources, Traditional Knowledge and Folklore at WIPO, Trade-
Related Agenda, Development and Equity (TRADE), South Centre, December 2003, p. 21.
165
A intensificação das negociações e das atenções no Conselho do acordo
TRIPs na OMC e no Comitê sobre Leis de Patentes e o estabelecimento de um
fundo voluntário voltado para o financiamento da participação de coletividades
tradicionais nas discussões do ICG eram instrumentais nesse processo, assim como
uma comunicação elaborada pelo Brasil e pela Agentina, em 26 de agosto de 2004,
que propunha o estabelecimento de uma agenda para o desenvolvimento no interior
da OMPI.
Esta última iniciativa, a criação e a organização de uma agenda para o
desenvolvimento no interior do regime internacional de propriedade intelectual,
adquiriu progressivamente maior importância no decorrer do processo negociador no
interior da OMPI, pois estruturou um novo grupo negociador formado por países em
desenvolvimento com o intuito de fortalecer a capacidade de barganha e de
negociação de seus membros no interior de um contexto particularmente desafiador
para os mesmos.
Consequentemente, até o momento, a análise da documentação
87
existente
nos possibilitou subdividir o desdobramento da Agenda de Desenvolvimento na
OMPI em duas fases centrais.
Em primeiro lugar, podemos identificar a gênese formal do processo na
comunicação enviada pelo Brasil e pela Argentina em agosto de 2004. Este primeiro
documento se propôs a revelar 6 esferas precípuas que mereceriam atenção dos
estados membros e revisões mais consistentes. São elas: a) Concretizar a
salvaguarda dos mecanismos de flexibilidade relacionados a temas de interesse
público, em particular, objetiva-se evitar ou mesmo atenuar o processo de
harmonização defendido pelos Estados Unidos no processo do Substantive Patent
Law Treaty (SPLT); b) Assegurar a transferência de tecnologia através de maiores
investimentos diretos estrangeiros e do licenciamento de novas tecnologias; c)
Certificar o cumprimento ou a vigência dos direitos de propriedade intelectual de
forma justa e eqüitativa com a finalidade de obstar práticas abusivas; d) Promover e
levar o desenvolvimento orientado para a cooperação e a assistência técnica; e)
Intensificar a transparência da organização, em especial, garantir maior participação
da sociedade civil nos processos em negociação; f) Garantir a sinergia entre a OMPI
87
Estes documentos (WO/GA/31/11 e IIM/1/4) podem ser obtidos no site do Ministério das Relações
Exteriores do Brasil:
http://www.mre.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=766&Itemid=351
166
e outras organizações intergovernamentais relevantes, tais como a UNCTAD e a
OMC.
Em segundo lugar, podemos reconhecer na segunda fase, inaugurada
formalmente em abril de 2005, o reconhecimento e o endosso da proposta inicial
pelos seguintes países: África do Sul, Bolívia, Cuba, Equador, Egito, Iran, Peru,
Quênia, República Dominicana, Serra Leoa, Tanzânia e Venezuela.
O resultado desta cooperação pode ser analisado na comunicação que este
grupo de países, intitulado Group of Friends of Development, apresentaram na
Reunião Intergovernamental para a Agenda do Desenvolvimento da OMPI no
período de 11 a 13 de abril de 2005. Esta comunicação tinha por objetivo
privilegiado desenvolver 4 temas centrais para a cocretização dos objetivos
organizados na primeira proposta do Brasil e da Argentina. Tratam-se dos seguintes
temas: 1) o mandato e a governança da OMPI; 2) o processo de estabelecimento de
normas; 3) cooperação técnica: 4) transferência de tecnologia. Por fim, a Assembléia
Geral da OMPI decidiu, em outubro de 2005, estabelecer um Comitê provisório para
continuar essas discussões.
Contudo, essa postura de redução sofre uma inflexão por ocasião da reunião
da Assembléia Geral da OMPI, ocorrida entre 26 de Setembro e 5 de Outubro de
2005. Nesta ocasião evidenciou-se claramente que as restrições ao mandato
propostas pelo Brasil, pela Índia e pela África do Sul não impediriam o
estabelecimento de mais um mandato de dois anos para o ICG. Nesse caso, a
situação menos favorável para o Brasil e para os demais países aliados não seria a
manutenção do mandato do ICG, mas sim a possibilidade de países desenvolvidos
como os Estados Unidos, o Canadá e o Japão dificultarem, ou mesmo
impossibilitarem, a inclusão da proposta de disclosure no acordo TRIPs da OMC ao
defenderem ser o ICG o fórum mais apropriado para o tratamento destas questões.
Não obstante, resultaria acordado que a Assembléia Geral da OMPI estabeleceria
um Comitê provisório para continuar as discussões da Agenda para o
Desenvolvimento.
Com os impasses das reuniões finais do segundo mandato do ICG, as
negociações do terceiro mandato recomeçaram em Maio de 2006. A retomada
das negociações foi marcada pela inalteração da postura unilateral norte-americana
e pela manutenção da estratégia dos países em desenvolvimento.
167
Desse modo, a permanência do ICG exigia do Brasil e da Índia uma postura
conciliatória. Os representantes indianos, inclusive, chegaram a propor a
organização de reuniões associadas entre o Comitê sobre Leis de Patentes (SCP) e
o ICG, com o intuito de proporcionar um contexto adequado às negociações da
biopirataria. O Grupo dos Amigos do Desenvolvimento, por seu turno, expressou o
desejo de observar no processo de harmonização conduzido no SCP as inclusões
da revelação de origem, do consentimento prévio informado, do compartilhamento
de benefícios, de exclusões ao patenteamento (por exemplo, para formas de vida
como plantas e animais) e de mecanismos efetivos para o questionamento e a
invalidação de patentes já adquiridas. Tais iniciativas foram imediatamente refutadas
pelos Estados Unidos e pelo Japão.
Até o momento coroada de êxito, tem sido assim, calcada na manutenção do
ICG como fórum ineficaz ao estabelecimento de um instrumento internacional
vinculante e isolado das demais negociações internacionais, a estratégia dos
Estados Unidos, do Japão e do Canadá na Organização Mundial de Propriedade
Intelectual.
Finalmente, registre-se a inexistência de um entendimento ao menos formal e
sem ambigüidade entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento sobre
as medidas a serem tomadas nos mandatos futuros do ICG
88
e do SCP. indícios
de que os países em desenvolvimento permanecerão exigindo a formulação de um
instrumento vinculante, a chamada proposta disclosure, nos organismos da OMPI,
principalmente em razão desses países estarem defendendo concomitantemente
proposta idêntica em outras organizações internacionais, como a Convenção da
Diversidade Biológica e a Organização Mundial do Comércio.
88
Da 11ª Sessão do ICG, ocorrida entre 3 e 12 de julho de 2007, resultou a decisão de prolongar por mais
dois anos o mandato do Comitê. Alejandro Neyra, representante da delegação peruana, afirmou que a
redação deste novo mandato é praticamente idêntica ao mandato anterior. Ainda, destacou que os Estados
Unidos e o Canadá tiveram demasiado cuidado em evitar a inclusão de qualquer linguagem na declaração
que pudesse expandir o escopo do mandato. Ver: BRIDGES Weekly Trade News Digest, WIPO Committee
on Genetic Resources, Traditional Knowledge Extended Once More, Volume 11, Number 26, 18 July 2007.
Disponível no site: http://www.ictsd.org/weekly/07-07-18/inbrief.htm#2
168
8.1. Conclusão.
Em um contexto de interdependência entre negociações multilaterais, as
quais ocorrem em diferentes regimes e organizações internacionais sobre um
mesmo tema, como é o caso da problemática dos recursos genéticos e dos saberes
associados no interior do regime internacional de propriedade intelectual, é lícito
supor que mesmo a menor mudança de postura ou estratégia em qualquer um
desses fóruns poderá dificultar, de forma imprevisível, os resultados, os acordos e as
transações obtidas nos demais espaços de negociação.
Persiste, por conseguinte, uma falta de entendimento explícito entre o mundo
desenvolvido e o mundo em desenvolvimento que poderá levar a um abandono
progressivo dos canais multilaterais em favor dos tratados bilaterais no tratamento
futuro destas questões.
No entanto, seria prematuro afirmar existir um fracasso da OMPI com relação
ao gerenciamento multilateral da problemática dos conhecimentos tradicionais
perante a comunidade internacional. Sua larga experiência na estruturação das
questões envolvendo direitos de propriedade intelectual e temas associados, aliada
à presença de variados obstáculos à negociação deste tema nos demais fóruns e à
complexidade e atualidade do tema, tornam imprescindível a continuidade e o
desenvolvimento dos sérios trabalhos acadêmicos relacionados à elaboração
conceitual e ao levantamento de dados, informações, necessidades e peculiaridades
das coletividades tradicionais e políticas e legislações nacionais e internacionais.
Ainda, o tratamento multilateral de um tema como este, mesmo que
caracterizado pelo desacordo e pelo avanço demasiadamente lento, é preferível a
uma abordagem bilateral marcada por enormes assimetrias de poder e influência.
169
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constituíram objetivos privilegiados desta dissertação, desde o início,
interpretar a emergência da temática do acesso aos recursos biogenéticos e aos
saberes tradicionais associados no interior do sistema internacional de propriedade
intelectual e analisar o posicionamento do governo brasileiro perante esta
problemática nos espaços multilaterais de negociação da Organização Mundial do
Comércio, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual e da Convenção da
Diversidade Biológica.
Naturalmente, este estudo, por mais abrangente que possa ser, deparou-se,
desde o primeiro momento, com a dificuldade de explicar processos históricos e
legais cujos efeitos estão longe de se esgotarem. A esta dificuldade em lidar com
processos complexos cujos desdobramentos são desconhecidos, poderíamos
acrescentar o imperativo de se analisar um período de transformações profundas e
produzidas num ritmo frenético.
Tais determinantes não impediram, todavia, a investigação sobre alguns
aspectos relevantes desta temática. Destarte, partindo do mais abstrato (delimitação
dos termos do debate internacional, interpretação das diretrizes gerais que teriam
fundamentado o posicionamento diplomático brasileiro perante a problemática,
exame dos conceitos da teoria das relações internacionais de flutuação de fóruns e
regimes internacionais) e chegando ao mais concreto (as posições brasileiras e dos
demais países em desenvolvimento sobre os temas do acesso e da repartição de
benefícios na Organização Mundial do Comércio, na Organização Mundial da
Propriedade Intelectual e na Convenção da Diversidade Biológica, as disputas
diplomáticas com os países desenvolvidos e os jogos de força daí oriundos),
objetivou-se traçar um roteiro que pudesse lançar luzes sobre o comportamento
externo brasileiro e de seus principais aliados num contexto de incertezas,
interrogações e negociações multilaterais.
Neste sentido, pode-se afirmar que o caminho escolhido tornou possível
constatar que a emergência dos novos temas do acesso à biodiversidade e aos
saberes tradicionais associados na agenda global caracterizou-se pela dificuldade
singular em organizar os termos do debate.
170
A nosso ver, tal fato decorre da constatação de que o debate sobre o
conhecimento tradicional revelou-se particularmente multifacetado e complexo. Com
efeito, o debate não apenas desafia consensos e suposições implícitas no sistema
de propriedade intelectual, como também logra justificar a gênese de um outro
regime capaz de conceder certo grau de exclusividade aos seus usuários.
De forma semelhante, ele não somente abarca as populações tradicionais
e/ou indígenas existentes em grande parte dos países em desenvolvimento, como
igualmente alcança várias comunidades rurais.
Revela-se, ainda, um complexo ordenamento legislativo que congrega de
forma muitas vezes desarticulada, áreas, conceitos e temas tais como: sementes,
territórios, direitos humanos, direitos políticos das comunidades marginalizadas,
biotecnologia, ativos econômicos intangíveis, saberes e rituais religiosos,
uniformização cultural, relativismo cultural, estímulo à inovação, organismos
geneticamente modificados, entre outros mais.
Esta variedade de questões transversais, por sua vez, nos auxilia a constatar
que o debate internacional internaliza uma variedade impressionante de atores com
interesses e objetivos distintos que constantemente negociam e reestruturam a
própria arquitetura do debate internacional. Esta particularidade, alem de dificultar as
negociações multilaterais entre os Estados nacionais e a construção de uma
estratégia nacional de negociação e posicionamento, também dificulta o trabalho do
analista que almeja sistematizar para o leitor, de forma razoavelmente coerente e
coesa, os termos do debate internacional sobre os temas do acesso e da repartição
de benefícios.
Houve, portanto, dois componentes da realidade analisada que se procurou
evidenciar. De um lado, de que forma esta característica do debate fundamentou
uma dinâmica de negociações multilaterais que se desenvolviam em múltiplas
organizações internacionais e outros espaços multilaterais de forma paralela e, por
vezes, desconexa. De outro lado, até que ponto e com que intensidade os atores
engajados nas negociações utilizaram estas vias plurais de negociação para
salvaguardar seus interesses e elevar seus poderes de barganha.
Quanto ao primeiro componente, a interpretação realizada procurou
considera-lo como decisivo para a delimitação das alternativas e dos caminhos
disponíveis para a ação internacional do Brasil, de seus aliados, e dos países
171
desenvolvidos que atuaram decisivamente nas negociações. Neste sentido,
acreditamos que a análise da emergência e da evolução do debate recente no plano
internacional, que a sistematização dos termos do debate e que o exame do
desenvolvimento do Regime Internacional de Propriedade Intelectual tiveram o
mérito de compor o quadro geral de possíveis incentivos e constrangimentos para as
ações estatais no âmbito internacional.
No interior deste quadro de várias dimensões, um aspecto deve ser
ressaltado. Trata-se da estratégia de flutuação de fóruns, característica dos anos 90
quando a delegação norte americana foi bem sucedida em associar comércio e
direitos de propriedade intelectual na OMC, e retomada nas negociações envolvendo
este caso em particular com o intuito de construir diferentes tempos de negociação
na OMC, na CDB e na OMPI e, assim, obstruir as propostas de reforma do Acordo
de Direitos de Propriedade Intelectual propostas pelos países em desenvolvimento
no âmbito da OMC.
Esperamos que as análises das negociações na Convenção da Diversidade
Biológica, na Organização Mundial da Propriedade Intelectual e na Convenção da
Diversidade Biológica tenham tornado claro as estratégias de países como os
Estados Unidos, o Japão, o Canadá e a Austrália em deslocar o tema do acesso e
da repartição de benefícios da OMC e da OMPI, instituições influentes e fortes, para
a CDB, uma instituição recente, ainda destituída de mandato claro, coerente e
preciso e caracterizada por dinâmicas de negociações demasiadamente lentas.
Ao constatarmos que os temas do controle do acesso à biodiversidade e ao
saber tradicional associado concentram o que existe de mais dinâmico na economia
mundial, e nos quais tanto países desenvolvidos, quanto países em desenvolvimento
possuem e podem deter vantagens comparativas por demais importantes, não
surpreendem o interesse e a atuação assertiva de países como o Brasil, a Índia, o
Japão, os Estados Unidos e a União Européia nesse assunto.
No que concerne à atuação do Brasil neste contexto internacional adverso,
importa destacar que a diplomacia brasileira revelou-se obstinada em redirecionar as
vantagens e omitir os hiatos que o Regime Internacional de Propriedade Intelectual
concede aos países desenvolvidos na apropriação da biodiversidade e dos saberes
associados por intermédio dos direitos de propriedade intelectual.
172
Não obstante, convém ressaltar que esta orientação deve ser compreendida
no interior de um contexto de maior amplitude estratégica, no qual as delegações
diplomáticas brasileiras m procurado reformar o sistema internacional de
propriedade intelectual com o intuito de torná-lo mais transparente, flexível, favorável
à promoção do desenvolvimento nacional e acessível à sociedade em geral e aos
atores interessados.
Igualmente relevantes foram as manobras brasileiras no sentido de impedir
que as novas estratégias dos países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos,
fossem bem sucedidas em isolar os Estados mais fracos e desarticular a cooperação
Sul-Sul na desafiadora arquitetura de negociações multilaterais do Regime
Internacional de Propriedade Intelectual.
Neste sentido, a despeito da postura determinada dos negociadores
brasileiros, as pressões bilaterais norte-americanas aliadas à natureza multifacetada
do debate tendem a dificultar a manutenção de um grupo de países emergentes com
interesses comuns e postura homogênea nos fóruns de negociação. Resta saber se
o Brasil e a Índia terão meios para preservar a existência do Grupo dos Países
Megadiversos e Afins nas negociações futuras com o intuito de uniformizar o
tratamento da temática nos distintos fóruns multilaterais e isolar os países mais
inflexíveis.
Para tanto, a nosso ver, atenção destacada deverá ser direcionada tanto para
os processos de integração regional quanto para a cooperação Sul-Sul. Na medida
em que a via multilateral escolhida desde meados dos anos 90 não foi capaz de
ensejar a redistribuição da capacidade de influência e de decisão no processo
negociador dos temas do acesso e da repartição de benefícios, torna-se imperativo
orientar e informar os países de menor capacidade acerca dos hiatos e das
particularidades destes temas nas negociações bilaterais com os países
desenvolvidos.
Com efeito, ou o Brasil e a Índia orientam estes países a inserir no escopo e
na estrutura dos tratados bilaterais de livre comércio com os Estados Unidos, o
Japão e os países Europeus os temas do controle do acesso à biodiversidade e ao
saber associado, ou dificilmente a evolução do Regime Internacional de Propriedade
Intelectual internalizará os temas da má apropriação e do controle do acesso.
173
Nestes termos, a despeito da intensidade das negociações aqui analisadas,
vem ocorrendo uma passagem progressiva do processo negociador multilateral
sobre os direitos de propriedade intelectual e temas correlatos para o exercício
bilateral. Muito provavelmente originária do protagonismo norte americano, esta
passagem tem descaracterizado continuamente o projeto de reformulação do
sistema global de propriedade intelectual preconizado e perseguido pela diplomacia
brasileira e indiana.
Assim, observa-se uma tendência do exercício bilateral em consagrar
princípios, valores, regras, normas e instrumentos atinentes aos interesses dos
países mais fortes e industrializados no que concernem aos direitos de propriedade
intelectual. Em termos mais concretos, verifica-se que os tratados bilaterais de livre
comércio diminuem as flexibilidades presentes no Acordo TRIPs para os países em
desenvolvimento e tornam mais rígidas os parâmetros e as legislações de proteção
aos direitos de propriedade intelectual. Por fim, silenciam sobre as questões
envolvendo a má apropriação dos saberes tradicionais e dos recursos genéticos,
deslegitimando e prejudicando, consequentemente, os ganhos arduamente obtidos
nas negociações multilaterais.
É justamente neste contexto que os exercícios das lideranças indiana e
brasileira adquirem realce. Inicialmente observadas como fatores capazes de
dinamizar as obtenções de resultados por parte dos países menos desenvolvidos, no
decorrer da análise se constituíram em condição sine qua nom para a obtenção de
conteúdo e de sentido para as negociações multilaterais acerca dos temas do
acesso e da repartição de benefícios no Regime Internacional de Propriedade
Intelectual.
Revelam-se, ainda, imprescindíveis à simplificação da complexidade e à
eliminação da fragilidade das negociações multilaterais que resultaram diretamente
da expansão recente dos acordos bilaterais.
Observe-se que esta fragilidade adquire significado quando atentamos para a
origem e para a natureza de muitos problemas que têm acometido os espaços de
negociação da OMC, da OMPI e da CDB em suas dimensões políticas e
institucionais. Exemplificam esses problemas os relacionados ao sistema decisório,
à internalização de normas e regras, à harmonização de normas e princípios
oriundos de diferentes ordenamentos legais, à necessidade de capacitação e
174
qualificação das delegações que contam com menos recursos e ao aperfeiçoamento
jurídico de mecanismos propostos para regulamentar o acesso e a repartição de
benefícios, os quais representam, atualmente, desafios a serem confrontados.
Todavia, se a expansão do exercício diplomático bilateral, a complexidade e
abrangência dos termos do debate e a negociação paralela em espaços multilaterais
distintos têm atuado como fatores limitantes no processo negociador internacional
sobre os temas do acesso e da repartição de benefícios, a percepção gradual, no
mundo desenvolvido, de que o sistema internacional de propriedade intelectual
carece de reformas poderá impulsionar o avanço das negociações e a obtenção de
consenso.
Neste sentido, não são poucos os especialistas que ressaltam ser imperativa
uma reforma no atual sistema de propriedade intelectual. Os argumentos que
embasam tal reforma são muito interessantes e mereceriam uma nova dissertação,
mas vale dizer que, no geral, são consensuais no que concerne á probabilidade do
sistema evoluir para um duplo cenário negativo.
Com efeito, caso o sistema evolua no sentido do primeiro cenário, estaremos
diante de uma quantidade tão extensa de litígios legais em torno das concessões de
patentes e de outros direitos que acabará por impedir a inovação, um dos princípios
centrais do regime de propriedade intelectual. Neste sentido, na medida em que
progressivamente mais empresas desenvolvem verdadeiros portfólios de patentes, a
possibilidade de desrespeito à propriedade intelectual no desenvolvimento de novos
produtos ou processos revela-se quase certa, ocasionando litígios custosos e
problemáticos no interior do setor privado e nas relações com o setor público.
Por outro lado, um segundo cenário futuro para a evolução do sistema prevê
que os processos de concessão de patentes e outros direitos deverão revelar-se
ainda mais problemáticos e deletérios do que são atualmente. Com efeito, a
percepção cada vez mais consensual de que patentes podem ser utilizadas como
ativos estratégicos, tanto defensivamente quanto ofensivamente, deverá contribuir
para um tamanho crescimento da concessão de patentes que o sistema deverá
entrar em colapso num futuro próximo. Neste caso, o sistema não terá condições de
providenciar a necessária qualidade no processo de avaliação dos pedidos de
patentes e na conseqüente concessão da proteção intelectual.
175
Vale destacar, ainda, que estes dois cenários deverão interagir de forma
negativa em razão de que a proliferação de patentes problemáticas e medíocres
deverá, necessariamente, elevar o risco de custosos litígios legais.
Uma vez que o Brasil e os demais países em desenvolvimento centralizam
suas críticas justamente no processo falho de concessão de patentes, o qual, por
sua vez, estimula a outorga equivocada de patentes calcadas em meras descobertas
e descrições de recursos biogenéticos e conhecimentos tradicionais a eles
associados, e ressaltam os custos impeditivos dos litígios para a anulação destes
direitos, acabam por assumir postura semelhante aos especialistas do mundo
desenvolvido, elevando, consequentemente, seus poderes de barganha e
negociação.
A pesquisa realizada não permite ir muito alem de algumas suposições
iniciais acerca da possível obtenção de cooperação entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento em razão destas percepções. No entanto, para ficar apenas na
hipótese inicial, pode-se concluir que estas análises pessimistas sobre a evolução do
regime de propriedade intelectual podem ter influenciado o posicionamento
diplomático dos países da União Européia e dos países Nórdicos no que tange às
negociações sobre os temas do acesso, da má apropriação e da repartição de
benefícios. Dessa forma, teríamos, até o momento, ao menos uma possível, mas
não suficiente, explicação para o apoio dos Países Nórdicos às propostas do Brasil e
da Índia nos âmbitos da Convenção da Diversidade Biológica e da Organização
Mundial da Propriedade Intelectual.
Por fim, as soluções propostas para a proteção, promoção e preservação dos
conhecimentos tradicionais no interior do regime internacional de propriedade
intelectual resultam congregadas nas esferas da proteção defensiva e da proteção
ofensiva. Não obstante, é demasiado difícil estabelecer uma divisão segura entre as
discussões que envolvem estas duas esferas de reflexão. Assim, importa salientar
que as medidas de proteção defensiva deverão facilitar a implementação das
medidas de proteção ofensiva e vice-versa.
Diante desse cenário, muitos países, organizações não governamentais e
outros atores globais e nacionais relevantes consideram que a regulamentação
internacional do tema deva se iniciar com o estabelecimento de medidas destinadas
a coibir a biopirataria. A opção particular por este caminho é desejável em razão do
176
sistema de propriedade intelectual e, especialmente, em função da estrutura que
alicerça a concessão de patentes. Assim, revelam estratégias semelhantes às dos
países megadiversos, cujas atuações têm sido norteadas pela preocupação de que
a TRIPs possa cercear suas autonomias na definição de políticas nacionais de
desenvolvimento sustentável e de promoção, preservação e proteção dos
conhecimentos tradicionais.
Importa, por conseguinte, preservar ao máximo o espaço de manobra em
termos de regulamentações nacionais e concretizar, num primeiro momento,
desdobramentos e modificações nos direitos existentes de propriedade intelectual
para assegurar o acesso controlado à matriz de recursos biogenéticos e saberes
associados.
Já, em um segundo momento, importa fornecer ao sistema global um
instrumental suficientemente seguro e estruturado, capaz de promover o acesso das
comunidades tradicionais ao regime internacional de ativos intangíveis, e que seja
caracterizado tanto pela cooperação e pelo diálogo entre as organizações
internacionais plurais que tratam do tema, quanto pelo posicionamento
compromissado e ativo dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Finalmente, cabe afirmar que, apesar da posição cooperativa e propositiva do
Brasil e dos demais países em desenvolvimento, a inflexibilidade e a postura
resistente de países como o Japão e os Estados Unidos tem dificultado a inclusão
destes novos temas no Regime Internacional de Propriedade Intelectual e sua
própria reestruturação.
Conseqüentemente, a questão permanece agravada justamente pelo fato
destes temas incluírem a revisão de padrões históricos de comportamentos e
congregarem os setores que incorporam as tecnologias mais modernas ou que
disciplinam a possibilidade de seu uso e difusão.
177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
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REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS
Boletins do Instituto Internacional para o Desenvolvimento Sustentável -
International Institute for Sustainable Development (IISD).
A análise das negociações sobre o tema do acesso e da repartição de
benefícios no interior da Convenção da Diversidade Biológica não seria possível sem
o auxílio dos boletins elaborados pelo IISD. Estes boletins representam, na
realidade, extensos e minuciosos relatórios estruturados sobre cada Conferência,
reunião de grupo de trabalho ou mesmo encontros informais que ocorreram a partir
da criação da Convenção em 1992.
Denominados de Earth Negotiations Bulletin, estes relatórios constituem,
portanto, uma fonte muito relevante de informações sobre os principais atores
envolvidos, suas propostas, os debates mais complexos e a evolução do processo.
Portanto, quando analisados em paralelo com os documentos oficiais concluídos e
elaborados em cada reunião da Convenção, podem fornecer os dados necessários
para a elaboração de um ensaio como o que está anexado a este relatório.
O grande mérito deste trabalho conduzido pelo IISD consiste em ter
sistematizado todas as negociações desde 1992. Uma iniciativa muito rara, pois
todos os demais livros, periódicos ou mesmo sites que encontramos iniciavam as
análises e os relatórios das negociações na Convenção a partir de 2000 ou 2002.
Forneceram, portanto, os primeiros dados sobre a gênese do processo
diplomático. Por fim, com a exceção dos boletins relacionados à Organização das
Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, analisamos desde o volume 9
número 18, até o volume 9 número 416, ou seja, todos os boletins associados ao
tema da Diversidade Biológica e parcela significativa daqueles relacionados ao tema
dos recursos biogenéticos. A lista completa destes boletins e os seus respectivos
títulos e formatos eletrônicos podem ser obtidos no seguinte endereço eletrônico:
http://www.iisd.ca/vol09/
188
Artigos da revista eletrônica Bridges.
Os textos abaixo assinalados compreendem as reportagens da revista em
formato eletrônico denominada BRIDGES. Trata-se de uma revista publicada e
desenvolvida pelo ICTSD (The International Centre for Trade and Sustainable
Development em parceria com a UNCTAD) cujo foco de análise centra-se na
temática do tratamento internacional da propriedade intelectual e dos subitens a ela
relacionados. Convém salientar que estes artigos são elaborados por observadores
do próprio ICTSD que participam das reuniões e que conversam com os
participantes recolhendo relatos e posições não oficiais, daí constituírem em
documento atinente à nossa pesquisa. A lista aqui elaborada compreende apenas as
reportagens que analisamos no decorrer da nossa pesquisa.
A divisão dos artigos em itens é um reflexo da organização do
nosso tema, uma vez, como observado, alguns debates e negociações mais
expressivos encontram-se no âmbito da Organização Mundial do Comércio, em
particular no interior das quatro reuniões anuais do Conselho que trata do Acordo
TRIPS (Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). Igualmente
relevantes para a pesquisa foram os números relativos às negociações que possuem
por cenário as reuniões da CBD (Convenção da Diversidade Biológica).
Ainda, julgamos conveniente listar o material referente às negociações
no interior da OMPI a às suas iniciativas com relação aos Conhecimentos
Tradicionais, informações muito significativas, visto que alicerçam as argumentações
de variados países em desenvolvimento nos demais fóruns de negociações.
Por fim, mas não menos importante, os demais artigos
organizados tratam de temas igualmente relevantes, tais como a importância dos
tratados bilaterais para a proteção dos conhecimentos tradicionais e para a
cooperação entre os países em desenvolvimento nas negociações multilaterais, e
análises de casos concretos de má apropriação ou biopirataria.
189
ARTIGOS
Conselho TRIPS (OMC)
TRIPS Council: Debates on Genetic Resources and TK Remain Divisive
(BRIDGES Trade Biores, 3 November 2006)
Members Step Up Demands on GI Extension, Disclosure as Stalemate
Continues (BRIDGES Weekly, 21 June 2006)
Discussions On CBD-TRIPS Gain Momentum With New Proposals (BRIDGES
Trade BioRes, 16 June)
Developing Countries Propose TRIPS Amendment Requiring Disclosure In
Patent Applications (BRIDGES Weekly, 7 June, 2006)
WTO: Support for Disclosure Building in TRIPS talks (BRIDGES Trade
BioRes, 3 April 2006)
Members still Split on Relationship with CBD: GI Talks going nowhere
(BRIDGES Weekly, 22 March, 2006)
WTO Disclosure Talks Try to Clarify CBD-TRIPS Relationship (BRIDGES
Trade BioRes,17 March 2006)
CBD: Potential Text on Access and Benefit Sharing Regime Tabled
(BRIDGES Trade BioRes, 3 February 2006)
IP Standards in US-Peru FTA to Affect Talks with Colombia and Ecuador?
(BRIDGES Weekly 25 January 2006)
Intellectual Property Rights @ Hong Kong (BRIDGES Trade BioRes 9
December)
US And India Clash On Disclosure At TRIPS Meeting (BRIDGES Trade
BioRes, 28 October 2005)
TRIPS Council Focuses on Benefit-Sharing For Genetic Resources (BRIDGES
Trade BioRes, 18 March 2005)
TRIPS Council Considers Public Health, Biodiversity (BRIDGES Weekly, 4
December)
TRIPS Council Zooms In On Disclosure Requirements (BRIDGES Trade
BioRes, 23 September 2004)
TRIPS Council: Key Development Countries Seek to Move Debate Forward on
Disclosure Issues (BRIDGES Weekly, 22 September 2004)
190
Biodiversity Discussions Stagnate In TRIPS Council (BRIDGES Trade BioRes,
25 June 2004)
TRIPS Council: Renewed Calls for Moving Ahead on Biodiversity (BRIDGES
Trade BioRes, 19 March 2004) Uneventful TRIPs Council
Uneventful TRIPS Council Revisits Biodiversity Issues (BRIDGES Trade
BioRes, 28 November 2003)
Intellectual Property Rights @ Cancun (BRIDGES Trade BioRes, 5 September
2003)
Busy TRIPs Council Session Focuses On Health, Biodiversity, GIs And S&D
(BRIDGES Weekly, 12 June 2003)
Intellectual Property Among Key Issues As WTO Deadlines Loom (BRIDGES
Trade BioRes, 11 December 2002)
Summit Outcomes Cited As Impetus For Progress In TRIPs Discussions
(BRIDGES Trade BioRes, 26 September 2002)
TRIPs Council Split Over Role Of Intellectual Property To Prevent 'Biopiracy'
(BRIDGES Trade BioRes, 11 July 2002)
Little Headway On Traditional Knowledge And Biodiversity At TRIPs Council
(BRIDGES Trade BioRes, 21 March 2002)
TRIPs Council To Examine GI Extension, TRIPs-CBD Relationship, Protection
Of TK (BRIDGE Trade BioRes, 22 November 2001)
TRIPs Council Discusses Relationship With CBD (5 December 2000)
WTO Logjammed Over TRIPs (26 September 2000)
Developing Countries Tackle TRIPs Commitments (5 September 2000)
TRIPs Council Meeting Ends In Gridlock (4 July 2000)
TRIPs Meeting Leaves Review Questions Unanswered (28 March 2000)
Convenção da Diversidade Biológica
Reporting from CBD COP-8: Access and Benefit-Sharing Discussions Kick Off
At COP-8 (BRIDGES Trade BioRes, 22 March)
Trade @ COP-8: Access And Benefits-Sharing, Incentive Measures
(BRIDGES Trade Biores, 17 March 2006)
191
CBD: Potential Text on Access and Benefit Sharing Regime Tabled
(BRIDGES Trade BioRes 3 February 2006)
Traditional Knowledge On The Agenda At UNFF-4 (BRIDGES Trade BioRes,
28 May 2004)
Trade Permeates Biodiversity Talks In Kuala Lumpur (BRIDGES Trade
BioRes, 20 February 2004)
Trade @ COP-7: What To Look Out For... (BRIDGES Trade BioRes, 6
February 2004)
CBD Working Groups Ponder Relationship With WIPO (BRIDGES Trade
BioRes, 15 December 2003)
CBD Adopts Guidelines On Access To Genetic Resources And Alien Species
(BRIDGES Weekly, 23 April 2002)
CBD Working Group Adopts Guidelines On Access To Genetic Resources
(BRIDGES Trade BioRes, 18 April 2002)
Traditional Knowledge And Biodiversity Under Discussion At WTO And CBD
(BRIDGES Trade BioRes, 4 April 2002)
Misappropriation of Traditional Knowledge Discussed at CBD Working Group
(BRIDGES Trade BioRes, 21 February 2002)
Organização Para a Agricultura e Alimentação (FAO)
Model Agreement Adopted for Access and Benefit Sharing of Genetic
Resources (BRIDGES TradeBiores, 30 June, 2006)
Transfer Agreement for Genetic Resources Receives Tentative Support
(BRIDGES Trade BioRes, 19 May 2006)
Experts Identify Options for FAO Material Transfer Agreement (BRIDGES
Trade BioRes, 21 October 2004)
Concerns Raised As FAO Treaty Enters Into Force (BRIDGES Trade BioRes,
8 July 2004)
FAO International Undertaking Finally Adopted (BRIDGES Weekly, 6
November 2001)
Light At The End Of The Tunnel For FAO IU Revision (BRIDGES Weekly, 3
July 2001)
192
FAO IU Revision Still Far From Completion (BRIDGES Weekly, 1 May 2001)
FAO Expects Revised IU By November 2001 (5 December 2000)
FAO Plant Genetic Resources Negotiations Could Impact TRIPs (5 September
2000)
Organização Mundial da Propriedade Intelectual
WIPO Committee on Traditional Knowledge, Genetic Resources Suspends
Discussions Until December (BRIDGES Weekly, 3 May 2006)
WIPO Committee Considers Mechanism To Protect TK (BRIDGES Trade
BioRes, 19 May 2006)
Developing Countries Propose Disclosure at WIPO Patent Meeting (BRIDGES
Trade BioRes, 14 April 2006)
WIPO to Continue Work on Genetic Resources, TK (BRIDGES Trade BioRes,
14 October 2005)
WIPO Committee Fails To Move On Traditional Knowledge Treaty (BRIDGES
Weekly, 15 June 2005)
WIPO Committee Resumes Work On Genetic Resources And TK (BRIDGES
Trade BioRes, 2 April 2004)
WIPO Committee Continues Discussions On Legal Protection For TK
(BRIDGES Trade BioRes, 20 December 2002)
Developing Countries Raise Biodiversity Concerns In WIPO (BRIDGES Trade
BioRes, 11 December 2002)
WIPO Committee: Countries Divided On Need For And Scope Of Legal
System To Protect TK (BRIDGES Trade BioRes, 27 June 2002)
WIPO Committee: Countries Divided Over Need For New Legal Norms To
Protect TK (BRIDGE Trade BioRes, 20 December 2001)
Documentos da Organização Mundial do Comércio
No que tange aos documentos da OMC, optamos, primeiramente, pela leitura
integral de todos os documentos elaborados pelo Brasil, pela Índia, pelo Peru, pelos
Estados Unidos, pela Comunidade Européia e pelo Japão. A opção pela análise
destes países ganha significado quando constatamos que seus representantes têm
193
exercido papel de liderança nas negociações que envolvem conhecimentos
tradicionais e recursos genéticos.
Os documentos abaixo assinalados constituem comunicações direcionadas
às reuniões do Conselho do Acordo TRIPs na OMC, elaboradas pelas delegações
destes países nos últimos 9 anos, que revelam suas posições oficiais, suas
propostas e suas linhas de argumentações acerca dos principais debates e pontos
polêmicos atinentes ao tema dos conhecimentos tradicionais.
Em algumas ocasiões, entretanto, a análise destas comunicações oficiais não
foi capaz de proporcionar informações e subsídios suficientes para que pudéssemos
projetar um quadro abrangente da evolução das negociações e das discussões na
OMC. Nestes casos, tornou-se imperativo obter e analisar outras fontes de
informações. No decorrer do levantamento, descobrimos que a leitura de minutas de
reuniões poderia fornecer os dados necessários.
Assim, coletamos as minutas das últimas 45 reuniões que trataram do tema
do projeto no âmbito do Conselho do TRIPs. Como cada minuta apresenta as
transcrições literais das intervenções orais elaboradas por todas as delegações que
se manifestaram sobre o assunto, tornou-se imprescindível direcionar a nossa leitura
e a nossa análise somente para as intervenções do Brasil, da Índia, do Peru, dos
Estados Unidos, do Japão e, a partir de 2001, da China.
89
Neste sentido, o exame cuidadoso deste corpo documental proporcionou a
sistematização das discussões direcionadas para as propostas de aproximação entre
a TRIPs e a CBD, e a organização dos debates que convergem para a inclusão de
cláusulas de proteção aos conhecimentos tradicionais e de compartilhamento de
benefícios no corpo normativo do Acordo TRIPs.
Ainda, convém salientar que esta análise favoreceu o equacionamento da
atuação brasileira nesta respectiva organização com respeito à proteção,
preservação e promoção dos conhecimentos tradicionais. Em outras palavras, ela
revelou, com maiores detalhes, diretrizes, objetivos e prioridades dos formuladores
da nossa política externa. Portanto, segue abaixo a lista destes documentos
elaborados pelo Brasil e os demais documentos elaborados pelos demais países
engajados nas negociações.
89
Na Organização Mundial do Comércio, ao contrário das comunicações que aqui apresentamos, estas
minutas geralmente são intituladas através do seguinte código: IP/C/M/ + um numeração geral. Como a
quantidade de referências é muito elevada, decidimos não incluí-las no relatório.
194
Os Documentos elaborados pelo Brasil estão em destaque.
2005
Bolivia,
Brazil,
Colombia,
Cuba, India,
and
Pakistan
IP/C/W/459 The Relationship between the TRIPS
Agreement and the CBD, the Protection
of Traditional Knowledge and Folklore –
Technical Observation on US Submission
IP/C/W/449
18 November
2005
Peru IP/C/W/458 Analysis of Potential Cases of Biopiracy 7 November
2005
United
States
IP/C/W/449 Article 27.3(b) -
Relationship between the
TRIPS Agreement and the CBD and
Protection of Traditional Knowledge and
Folklore
10 June 2005
Peru IP/C/W/447 Article 27.3(b) -
Relationship between the
TRIPS Agreement and the CBD and
Protection of Traditional Knowledge and
Folklore
8 June 2005
Peru IP/C/W/441/Re
v.1
Revised version of document IP/C/W/441
-
Article 27.3(b) -
Relationship between the
TRIPS Agreement and the CBD and
Protection of Traditional Knowledge and
Folklore
19 May 2005
Brazil, India
IP/C/W/443 The Relationship between the TRIPS
Agreement and the Convention on
Biological Diversity (CBD) and the
Protection of Traditional Knowledge:
Technical Observations on I
ssues Raised
in a Communication by the United States
(IP/C/W/434)
18 March
2005
Bolivia,
Brazil,
Colombia,
Cuba,
Dominican
Republic,
Ecuador,
India, Peru,
Thailand
IP/C/W/442 The Relationship between the TRIPS
Agreement and the Convention on
Biological Diversity (CBD) and the
Protection of Traditional Knowledge –
Elements of the Obligation to Disclose
Evidence of Benefit-Sharing under the
Relevant National Regime
18 March
2005
Peru IP/C/W/441 Article 27.3(b) -
Relationship between the
TRIPS Agreement and the CBD and
Protection of Traditional Knowledge and
Folklore
8 March 2005
195
2004
Bolivia,
Brazil,
Cuba,
Ecuador,
India,
Pakistan,
Peru,
Thailand,
Venezuela
IP/C/W/438 The Relationship between the TRIPS
Agreement and the Convention on
Biological Diversity (CBD) and the
Protection of Traditional Knowledge –
Elements of the Obligation to Disclose
Evidence of Prior Informed Consent
under the Relevant National Regime
10 December
2004
United
States
IP/C/W/434 Article 27.3(b) - Relationship between
the TRIPS Agreement and the CBD and
the Protection of Traditional Knowledge
and Folklore
26 November
2004
Brazil,
India,
Pakistan,
Peru,
Thailand
and
Venezuela
IP/C/W/429 Elements of the Obligation to Disclose
the Source and Country of Origin of
Biological Resources and/or Traditional
Knowledge used in an Invention
21 September
2004
Switzerland
IP/C/W/423 Additional Comments by Switzerland on
its Proposal Submitted to WIPO
Regarding the Declaration of Source of
Genetic Resources and Traditional
Knowledge in Patent Applications
14 June 2004
Bolivia IP/C/W/420/Ad
d.1
Request of Bolivia to be added to the list
of sponsors of Document IP/C/W/420
5 March 2004
Brazil,
Cuba,
Ecuador,
India, Peru,
Thailand
and
Venezuela
IP/C/W/420 The Relationship between the TRIPS
Agreement and the Convention on
Biological Diversity (CBD) – Checklist of
Issues
2 March 2004
2003
Bolivia,
Brazil,
Cuba,
Dominican
Republic,
Ecuador,
India, Peru,
Thailand,
Venezuela
IP/C/W/403 The Relationship between the TRIPS
Agreement, the Convention on Biological
Diversity and Traditional Knowledge
24 June 2003
2002
196
Peru IP/C/W/356/Ad
d.1
Request of Peru to be added to the List
of Sponsors of Document IP/C/W/356
1 November
2002
European
Communitie
s and
Member
States
IP/C/W/383 Review of Article 27.3(b) of the TRIPS
Agreement, and the Relationship
between the TRIPS Agreement and the
Convention on Biological Diversity (CBD)
and the Protection of Traditional
Knowledge and Folklore
17 October
2002
Brazil on
behalf of the
delegations
of Brazil,
China,
Cuba,
Dominican
Republic,
Ecuador,
India,
Pakistan,
Thailand,
Venezuela,
Zambia and
Zimbabwe
IP/C/W/356
The Relationship between the TRIPS
Agreement and the Convention on
Biological Diversity
24 June 2002
2001
United
States
IP/C/W/257 Communication from the United States -
Views of the United States on the
Relationship between the Convention on
Biological Diversity and the TRIPS
Agreement
13 June 2001
EC IP/C/W/254 Review of the Provisions of Article
27.3(b) of the TRIPS Agreement:
Communication from the European
Communities and their Member States
13 June 2001
2001 (cont'd)
Peru IP/C/W/246 Communication from Peru: Peru's
Experience of the Protection of
Traditional Knowledge and Access to
Genetic Resources
04 March
2001
2000
Japan IP/C/W/236 Review of the pro
visions of Article 27.3(b)
- Japan's view
11 December
2000
Brazil
IP/C/W/228 Review of Article 27.3(b) –
Communication from Brazil
24 November
2000
India JOB(00)/6091 Non-paper by India 5 October
2000
197
United
States
IP/C/W/209 Review of the Provisions o
f Article 27.3(b)
-
Further Views of the United States –
Communication from the United States
3 October
2000
India IP/C/W/196 Communication from India 12 July 2000
India IP/C/W/195 Communication from India 12 July 2000
1999
Andean
Group
IP/C/W/165 Revi
ew of the Provisions of Article 27.3(b)
- Proposal on the Intellectual Property
Rights Relating to the Traditional
Knowledge of Local and Indigenous
Communities – Communication from
Bolivia, Colombia, Ecuador, Nicaragua
and Peru
3 November
1999
India IP/C/W/161
Review of the Provisions of Article 27.3(b)
- Communication from India
3 November
1999
Brazil
IP/C/W/164
Review of the Provisions of Article 27.3(b)
- Communication from Brazil
29 October
1999
United
States
IP/C/W/162 Review of the Provisions of
Article 27.3(b)
Communication from the United States
29 October
1999
Canada,
EC,
Japan and
USA
IP/C/W/126
Review of the Provisions of Article 27.3(b)
- Communication from Canada, the
European Communities, Japan and the
United States
5 February
1999
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