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Bernardo Borges Buarque de Hollanda
O clube como vontade e representação:
O jornalismo esportivo e a formação das torcidas
organizadas de futebol do Rio de Janeiro
(1967-1988)
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História Social da Cultura do Departamento de História da
PUC-
Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção
do título de Doutor em História.
.
Orientadora: Profª Margarida de Souza Neves
Volume I
Rio de Janeiro
Abril de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
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Bernardo Borges Buarque de Hollanda
O clube como vontade e representação:
O jornalismo esportivo e a formação das torcidas
organizadas de futebol do Rio de Janeiro
(1967-1988)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História Social da Cultura do Departamento de História da
PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção
do título de Doutor em História.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profª Margarida de Souza Neves
Orientadora
Departamento de História - PUC-Rio
Profº Ricardo Augusto Benzaquen de Araújo
Departamento de História – PUC-Rio
Profº Maurício Murad
Departamento de Sociologia – UERJ
Profº José Sérgio Leite Lopes
Departamento de Antropologia/Museu Nacional
UFRJ
Profº Luiz Henrique de Toledo
Departamento de Antropologia Social
Universidade Federal de São Carlos-USP
Profº Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 25 de abril de 2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, do autor e da orientadora.
Bernardo Borges Buarque de Hollanda
Mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio, em
2003 e, desde 2007, professor-substituto de História
Moderna e Contemporânea na UFRJ. Bacharel em
Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em 1996, e licenciado pela mesma instituição em
1999. Entre 1995 e 1996, trabalhou como bolsista de
iniciação científica no Núcleo de Etnologia Indígena do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, sob
orientação do antropólogo Marco Antônio Gonçalves.
Entre 1997 e 1998, trabalhou como bolsista de
aperfeiçoamento do Departamento de Ciências Sociais da
Fundação Oswaldo Cruz / FIOCRUZ, sob orientação da
socióloga Jeni Vaitsman.
Ficha Catalográfica
Hollanda, Bernardo Borges Buarque de
O clube como vontade e representação: o
jornalismo esportivo e a formação das torcidas
organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-
1988) / Bernardo Borges Buarque de Hollanda;
orientadora: Margarida de Souza Neves. – 2008.
2 v. : il. ; 30 cm
Tese (Doutorado em História)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. História Teses. 2. História social da cultura.
3. Futebol. 4. Cultura e sociedade. 5. História social e
memória coletiva. 6. Torcidas organizadas. 7.
Jornalismo esportivo. 8. Mário Filho. I. Neves,
Margarida de Souza. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de História.
III. Título.
Hollanda, Bernardo Borges Buarque de
CDD: 900
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à Frã,
sonho amoroso vindo de uma arca russa.
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Agradecimentos
À PUC-Rio, que ofereceu plenas condições de infra-estrutura e um ensino de
excelência para o desenvolvimento de minha investigação;
Ao CNPq e à FAPERJ, que concederam, em momentos alternados, o suporte
financeiro para a realização da pesquisa;
À CAPES, pela concessão de bolsa-sanduíche de seis meses na École de
Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, que se mostrou de inestimável
valia para a minha formação acadêmica, intelectual e humana;
À minha orientadora Margarida de Souza Neves, que me ensinou a perceber,
com sutileza, maestria e erudição, o quão fascinante pode ser o ofício de
historiador;
Ao professor Afrânio Garcia-Júnior, que acolheu e co-orientou com extrema
competência, seriedade e talento a tese durante minha estada na França;
Ao professor Ricardo Benzaquen de Araújo, que, com sua acuidade e potência
intelectual, norteou minha passagem pelo Programa de Pós-Graduação em
História da PUC;
Ao professor José Sérgio Leite Lopes, presença decisiva em minha tentativa de
aproximação com a história, a antropologia e a sociologia do esporte;
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Ao professor Maurício Murad, presença igualmente decisiva que, por ocasião
do meu exame de qualificação, argüiu, instigou e fez críticas seminais ao
projeto;
Aos professores Sérgio Miceli, Rodrigo Martins e Luiz Augusto Farinati, pela
gentileza da leitura de meu projeto e pelas criticas rigorosas, instrutivas e
iluminadoras;
Aos especialistas franceses em torcidas organizadas, os sociólogos Nicolas
Houcarde, de Lyon, e Patrick Mignon, de Paris, pela receptividade e pelo
acompanhamento;
À socióloga Marie-Claude Munoz, do Centre de Recherche sur le Brésil
Contemporaine (CRBC-EHESS), pela possibilidade de expor e debater a minha
pesquisa com colegas brasileiros e franceses;
Ao professor Procópio Abreu, da Aliança Francesa, e à madame Karine Brutin,
professora da Cidade Internacional Universitária de Paris (CIUP), pelas
inesquecíveis aulas de iniciação à língua e à literatura francesas;
Ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História Social da
Cultura da PUC-Rio, em particular, aos professores Antônio Edmílson Martins
Rodrigues, Marco Antônio Pamplona, João Masao Kamita e Marcelo Jasmim;
Ao corpo discente do Programa de Pós-Graduação em História Social da
Cultura, com destaque para os amigos: Carlos Eduardo Chacon, Charbelly
Estrella, Felipe Charbel, Fernando Vale Castro, Gustavo Naves Franco, João
Dias Duarte, Karina Vasquez, Leonardo Padilha, Marcelo Rangel e Patrícia
Corrêa;
Aos colegas do Núcleo de Pesquisa Esporte e Sociedade (NEPES) e da revista
acadêmica Esporte & Sociedade, sobretudo a Marcos Alvito, a Antônio
Holfmeister, a Martin Curi, a Simoni Guedes e a Luiz Fernando Rojo, pelos
momentos de aprendizagem, de alegria e de prazeroso convívio;
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Ao sociólogo Jorge Medeiros, precursor nos estudos sobre torcidas organizadas
de futebol no Rio de Janeiro, que com sua benevolência e generosidade
intelectual franqueou-me seus arquivos pessoais e proveu-me de farto material
de pesquisa;
À antropóloga Rosana da Câmara Teixeira, autora de uma dissertação original
acerca das torcidas jovens cariocas, que se revelou uma preciosa interlocutora
nos últimos quatro anos;
Ao historiador Raul Milliet Filho, pesquisador apaixonado e prestimoso, pelas
colaborações, tão intensas e variadas, que não seria possível aqui enumerar;
Ao antropólogo Arlei Sander Damo que, mesmo sem mal me conhecer,
colocou-se à disposição e, com paciência, remeteu do Rio Grande do Sul
importantes trabalhos, dentre eles, sua esplêndida tese de doutorado;
A Hernani Heffner, curador da Cinemateca do MAM, pela verdadeira aula
sobre cinema e futebol que me deu, de maneira espontânea e inesperada, certa
manhã no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro;
Ao jornalista esportivo francês Nasser Mabrouk, da Revista So Foot, que
ajudou e colaborou incansavelmente com meu trabalho durante toda minha
estada em Paris; à jornalista Adriana Moyses, da Radio France International,
que por duas vezes, durante a Copa do Mundo da Alemanha, concedeu-me
espaço para expor as idéias de minha pesquisa;
Aos colegas e amigos da Casa do Brasil a Maison du Brésil da Cidade
Internacional Universitária de Paris, onde durante seis meses vivenciei um dos
momentos mais intensos, frutíferos e felizes de minha vida: Adriana Caula,
Adriana Santos, Alexandre Nicoloni, Ana Barone, Ana Carolina Maciel, Anna
Baracho, Benedetta Pozzi, Carlos Sautchuk, Clóvis Dorigon, Cristina Brech,
Biagio Avena, Célia Belmiro, Daniel, Edílson, Elaine, Emanoel Barros, Emílio
Negreiros, Gustavo Madeiro, Helena Schiel, Irme Bonamigo, Kelly Araújo,
Lúcia Cervini, Magali Bueno, Marcelo Oliveira, Márcia Consolim, Maria
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Luísa, Maria Luísa Jardim, Patrícia Lira, Paulo Silveira, Pedro Armando de
Almeida Magalhães, Pedro Rolim, Pedro Veloso, Ronei Clécio, Sabrina Baltor,
Sandro Cabral, Suely Campos, Roberta Nascimento, Vinícius Brei e Vivian
Ugá;
Aos colegas de curso da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais a
EHESS – de Paris: à francesa Audrey Cassim, ao colombiano Carlos Camacho,
aos costarriquenhos Ixel Quesada e Luís Emílio Cuenca e à chilena Viviana
Manriquez;
Aos amigos que me ajudaram de múltiplas formas: André Luiz Ramos, Andréia
Loureiro, Bebel Kaastrup, Bruno Carvalho, Bruno Nathanson, Cristina Buarque
de Hollanda, Fernando Ferreira, Felipe Scovino, Filipe Costa, João Marcelo
Ehlert, José Luís Dutra, Juliano Borges, Lygia Costa, Luiz Fernando Mazzei
Sucena, Marcelo Guilhon, Maria Angert, Maria Teresa Xavier Martins,
Mariana Pinheiro, Mazinho de Paula, Melba Fernanda da Silva, Miguel
Palmeira, Pedro Murad, Rachel Resende e Rômulo Mattos;
Aos amigos da “feliz república” do Solar da Catãnha, onde esse trabalho foi
redigido: Emílio Domingos, Fabiene Gama e Marcius Vinícius Coutinho;
Aos ases do ASA, clube em que atuam os peladeiros do futebol mais
concorrido das sextas-feiras à noite no Rio de Janeiro;
Ao jornalista esportivo Hilton Matos, que propiciou a troca de várias
informações sobre torcedores e que me permitiu o acesso a inúmeros deles;
A Heitor D’Alencourt e a José Carlos Madureira, pelos contatos estabelecidos
junto às torcidas organizadas do Fluminense e do Vasco da Gama,
respectivamente;
A Marcelo Tosca, a Seu Francisco e a Jonhatan Cabo, que acompanharam e
colaboraram diariamente em minha pesquisa no Arquivo Histórico do Jornal
dos Sports;
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Ao quarteto de funcionários da secretaria da pós à alvinegra Edna Timbó, ao
cruzmaltino Cláudio, à botafoguense Cleuza e à rubro-negra Anair que me
atenderam, invariavelmente, com eficiência e bom-humor;
Aos fundadores e líderes de torcidas organizadas que com generosidade
prestaram seus depoimentos: Armando Giesta, Cláudio Cruz, Ricardo Muci,
Tia Aida, Márcio Zucarelli, João Venâncio Cysne, José Francisco de Moura,
Sérgio Aiub, Roberto Monteiro e Leonardo Ribeiro;
A Claude Mullois, da torcida Titti-Fosi, do Paris Saint-Germain, pela entrevista
concedida na França;
Ao delegado Orlando Zaconi, por colocar-se sempre à disposição para o
diálogo e o esclarecimento;
Aos integrantes e líderes de torcidas organizadas com quem mantive contato ao
longo desse tempo: Denise, Eliana Monteiro, Francisco Moraes, José Carlos
Peruano, Lúcia Pinheiro, Mônica, Paulo Aparício, Roberto China, Valéria
Monteiro e Wellington de Araújo;
A meus pais, Teodoro e Lavínia, e à minha irmã Fernanda, constelação
amorosa presente em tudo o que faço, a quem dedico a realização de mais um
maravilhoso descobrimento;
À minha querida vovó Lota, fonte de alegria e juventude;
À Franciele, que acompanhou os momentos decisivos da tese e se tornou, ela
própria, mulher decisiva em minha vida;
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Resumo
Hollanda, Bernardo Borges Buarque de; Neves, Margarida de Souza
(orientadora); O clube como vontade e representação: o jornalismo
esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de
Janeiro (1967-1988). Rio de
Janeiro, 2008. p. 77
1. Tese de Doutorado
Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
O ano de 1968 também foi marcado por agitações e revoltas nas
arquibancadas do Maracanã. Em um período de crise no desempenho de suas
equipes, grupos juvenis de aficionados torcedores lançam-se ao enfrentamento
contra dirigentes de grandes clubes cariocas, por meio de protestos,
manifestações e até passeatas fora do Estádio Mário Filho. Sob inspiração do
slogan internacional Poder Jovem, estes recém-formados agrupamentos adotam
de igual modo uma postura crítica face ao tradicional modelo de torcida, as
Charangas, oriundas da década de 1940. Ao longo do decênio de 1970, as
Torcidas Jovens consolidam-se no cenário esportivo e ensejam o surgimento de
uma profusão de pequenas e médias agremiações, que revestem o ato de torcer
de significados associativos e culturais, recreativos e sociais até então
inexistentes. A culminância deste processo ocorreria no início da década
seguinte, quando lideranças de tais grêmios tentam se agrupar em torno de
interesses comuns e, entre 1981 e 1984, deflagram uma série de sucessivas
greves, piquetes e boicotes pela redução do preço dos ingressos, entre outras
reivindicações. Tal postura resultaria na criação da ASTORJ, a Associação das
Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro, uma entidade com duplo objetivo: por
um lado, a legitimação de uma força corporativa com influência na estrutura de
poder dos esportes; por outro, a formalização do entrosamento entre os chefes
de torcidas rivais, expressa no lema “Congregar, Congraçar, Unir”. No decurso
da década de 80, o projeto da ASTORJ não prosperaria, com a perda da
representatividade e com a incapacidade de conter as crescentes rixas e
animosidades entre os componentes das facções torcedoras. Ao enfeixar esses
acontecimentos, extraídos da leitura serial de narrativas jornalísticas obtidas em
periódicos esportivos e de relatos orais colhidos em entrevistas, o presente
trabalho procura mostrar de que maneira um tipo específico de associação,
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pautado na idolatria clubística, ganhou vulto em escala nacional e internacional
nas décadas de 1960, 1970 e 1980, e assumiu particularidades histórico-
culturais no futebol profissional do Rio de Janeiro. Busca-se evidenciar como
esse fenômeno da segunda metade do século XX atendeu a novas demandas de
participação e de diferenciação por parte de contingentes urbanos em um
domínio cada vez mais competitivo, massificado e mercantilizado. A música,
de um lado, e a violência, de outro, foram os meios expressivos mais notáveis a
que esses movimentos recorreram para tomar parte e para adquirir visibilidade
no universo do espetáculo esportivo contemporâneo. Ao analisar a ação, a
formação e a transformação de um campo específico de subgrupos torcedores,
reconstituindo uma experiência histórica particular, a tese que ora se apresenta
tem o intuito de demonstrar em que medida as torcidas organizadas constroem
sua identidade através de uma relação direta com os meios de comunicação de
massa e orientam seus métodos de atuação através de uma bricolagem e de uma
leitura muito própria dos valores presentes no jogo, no esporte e no meio social
circundante.
Palavras-chave
Futebol, Cultura e Sociedade; História Social e Memória Coletiva;
Torcidas Organizadas e Jornalismo Esportivo; Mário Filho e Jornal dos Sports;
Torcidas Jovens e Cultura Juvenil; Espetáculo Esportivo e Violência.
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Résumé
Hollanda, Bernardo Borges Buarque de; Neves, Margarida de Souza
(directeur de thèse); Le Club comme volon et représentation: le
journalisme sportif et la formation des associations de supporters de
football
à Rio de
Janeiro. (1967-1988). Rio de
Janeiro, 2008. p. 77
1.
Thèse de Doctorat – Département d’Histoire, Pontifícia Universidade
Católica de Rio de Janeiro.
L’année 1968 a aussi été marquée par des troubles et révoltes
dans les
tribunes du Maracanã. En une période de crise, pendant laquelle leurs équipes
ne font pas bonne figure, des groupes de jeunes fans supporters se lancent dans
la confrontation avec les dirigeants des grands clubs cariocas, protestent,
manifestent et défilent à l’extérieur du stade Mario Filho. S’inspirant du slogan
international Pouvoir Jeune, ces groupements récemment formés adoptent une
posture critique face au modèle traditionnel d’associations de supporters, les
Charangas, dont la naissance remonte aux années 1940. Dans les années 1970,
les Associations de Jeunes Supporters se consolident sur la scène sportive et
permettent l’apparition d’une profusion de petites et moyennes associations
pour lesquelles l’acte de soutenir une équipe revêt aussi un aspect associatif et
culturel, récréatif et social jusqu’alors inconnu. Le point culminant de ce
processus aura lieu au début de la décennie suivante, quand les leaders de ces
associations tentent de se regrouper autour d’intérêts communs et, entre 1981 et
1984, déclenchent, pour obtenir la réduction du prix des entrées entre autres
revendications, une série de grèves avec piquets de grève et boycotts. D’une
telle posture s’ensuit la création de l’ASTORJ, Association des jeunes
Supporters de Rio de Janeiro, une institution qui a un double objectif: d’une
part, la légitimation d‘une force corporative pesant sur la structure du pouvoir
des sports ; d’autre part, la reconnaissance d’une entente entre les chefs des
associations rivales de supporters, exprimée par le slogan: “Congregar,
Congraçar, Unir” (Rassembler, Concilier, Unir). Au cours des années 1980, le
projet de l’ASTORJ ne prospèrera pas, de par la perte de représentativité et de
par l’incapacité de maîtriser les rixes croissantes et les animosités entre les
membres des différentes factions de supporters. Faisant la somme de toutes ces
informations, extraites de la lecture sérielle de récits journalistiques obtenus
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dans des périodiques sportifs et recueillies oralement en interview, ce travail
cherche à montrer comment un type spécifique d’association, dont le mot
d’ordre reposait sur l’idolâtrie d’équipes de sport, a pris un essor à l’échelle tant
nationale qu’internationale durant les décennies des années 1960, 1970 et 1980,
et comment elles ont assumé certaines spécificités historico-culturelles du
football professionnel de Rio de Janeiro. L’objectif recherché est de mettre en
évidence la manière dont ce phénomène, datant de la seconde moitié du XX
e
siècle, a répondu à de nouvelles expectatives de participation et de
reconnaissance de la différence, venues de contingents urbains soumis chaque
fois plus à la compétition, à la massification et au mercantilisme. La musique,
d’une part, et la violence, de l’autre, tels sont les moyens les plus notables
auxquels ces mouvements ont eu recours pour s’insérer et pour acquérir une
visibilité dans l’univers du spectacle sportif contemporain. Analysant l’action,
la formation et la transformation d’un domaine spécifique de sous groupes de
supporters, reconstituant une expérience historique particulière, la présente
thèse vise à démontrer dans quelle mesure les associations de supporters
construisent leur identité en relation directe avec les moyens de
communications de masse et orientent leurs méthodes de fonctionnement à
partir d’un bricolage et d’une lecture tout à fait personnelle des valeurs
existantes dans le jeu, dans le sport et dans le milieu social environnant.
Mots-clés
Football, Culture et Société; Histoire Sociale et Mémoire Collective;
Associations de Supporters et Journalisme sportif; Mário Filho et Jornal
dos Sports; Torcidas Jovens Associations de Jeunes Supporters et
Culture de la Jeunesse; Spectacle sportif et Violence.
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Sumário
Introdução 16
1. O chefe de torcida: entre vícios e virtudes 65
1.1 Ethos de espectador, pathos de torcedor
1.2 Do carisma pedagógico à retórica da humildade 90
1.3 Autenticidade, ambição e o novo estigma do profissionalismo 129
2. Microfísica do Poder Jovem 158
2.1 As formas simples do pragmatismo 158
2.2 O paradigma geracional e as vicissitudes da ruptura 210
2.3 O Estado e os estádios – e as multidões se organizaram ? 272
3. Genealogia da moral torcedora 339
3.1 Arqueologias da violência 339
3.2 Da aventura: caravanas e narrativas de viagem 414
3.3 A lira e o bumbo 503
(Canto coletivo, cultura de massa e paródia)
Conclusão 539
Referências bibliográficas 553
Apêndice 614
(Apontamentos biográficos:
1. Jaime de Carvalho, criador da Charanga
2. Sérgio Aiub, fundador da Organizada Jovem-Flu
3. Banha, ex-presidente da Torcida Jovem do Flamengo)
Anexos 654
(Fotografias, periódicos e materiais de torcida)
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“ – A torcida organizada / Derruba a cachorrada !”*
* Grito de protesto contra dirigentes esportivos - Poder Jovem do Flamengo.
Maracanã, setembro de 1968.
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Introdução
A cidade do Rio de Janeiro foi surpreendida naquele primeiro final de
semana do mês de dezembro de 1976. A surpresa não se deveu à classificação
do Fluminense para as partidas decisivas válidas pelo Campeonato Brasileiro
de futebol daquele ano. Afinal, o time tricolor que chegava às semifinais
comandado por Rivelino já havia se sagrado bicampeão estadual no mesmo
ano, conquistando a hegemonia entre os clubes cariocas, e recebia a alcunha
sugestiva de A Máquina, em sucessão, no plano nacional, à legendária
Academia, liderada pelo jogador do Palmeiras Ademir da Guia. O fato
inusitado que extravasou as páginas dos noticiários esportivos locais naquele
fim de semana e que alvoroçou boa parte da imprensa nacional dizia respeito à
vinda da equipe adversária, o Corinthians Paulista, mais precisamente, à
movimentação desencadeada pela chegada da sua torcida à cidade.
A afluência massiva dos torcedores de São Paulo ao Rio, entretanto, nada
tinha de inesperada ou surpreendente, caso se leve em consideração o incentivo
dos meios de comunicação na promoção do jogo. O evento vinha sendo urdido
desde o início do campeonato, com o acompanhamento de um clube de
extração popular que vivenciava o drama de mais de vinte anos sem a obtenção
de um título em nível estadual ou nacional, situações por que iriam passar
também outras equipes, como o Botafogo do Rio, na década seguinte. Parte
significativa dos jornais e das rádios paulistas, empenhada na dramatização do
espetáculo, dava ao acontecimento colorações místicas, com a cobertura da
cruzada dos fiéis alvinegros pelas estradas do país, em viagens que perfaziam
milhares de quilômetros
1
e que se intensificavam à medida da aproximação de
seu término. Ao todo, de acordo com jornais e revistas da época, a série de
1
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1976, p. 2. Cf. também ISTOÉ.
São Paulo: Dezembro de 1976.
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17
viagens dos corintianos que saíam de São Paulo e iam a Recife, ao Rio de
Janeiro e a Porto Alegre, entre outras capitais, percorreria mais de oito mil
quilômetros (8.340 km).
Embora ainda fosse a penúltima etapa a separar o Corinthians da
almejada conquista, o Rio de Janeiro parecia ser a culminância da jornada, a de
maior impacto e repercussão, uma vez que as duas cidades constituíam o
principal eixo esportivo e midiático do país. Desde o primeiro dia daquele mês
de dezembro, uma quarta-feira, cronistas como Nelson Rodrigues já
registravam a circulação de corintianos pelos pontos turísticos da cidade, seja
em Copacabana, seja na Vista Chinesa
2
. A expectativa de uma competição
entre as torcidas do Fluminense e do Corinthians assemelhava-se à própria
atração reservada às duas equipes em campo. O clima de disputa acirrava-se
com a iniciativa inusitada do presidente tricolor, Francisco Horta, que em tom
de desafio e escárnio enviara durante a semana em torno de quarenta e cinco
mil ingressos a São Paulo.
A resposta à provocação podia ser percebida a cada dia, à medida que
mais e mais corintianos eram vistos a perambular pela cidade. Mobilizavam-se
em caravanas, por conta própria ou mesmo sob os auspícios do governo de São
Paulo, que liberara uma parte da frota metropolitana de ônibus para os
torcedores de seu estado. Locomoviam-se também de carro, de trem, de avião e
até de motocicleta. Embandeirados, cruzavam a orla da Avenida Atlântica, do
Leme ao Ponto Seis, e se concentravam festivamente em frente ao luxuoso
Hotel Nacional, em São Conrado, inaugurado no início da década de 1970,
onde a delegação do Corinthians estava hospedada. Se não era possível
mensurar o número exato de corintianos presentes, constatava-se que na
Avenida Vieira Souto, em Ipanema, de cada seis carros um tinha placa oriunda
de São Paulo
3
.
Na véspera do jogo, o principal diário esportivo da cidade destacava o
esboço de reação da torcida local: “Galera do Flu protege o Corcovado”
4
. Os
dois representantes de torcida do Fluminense, dona Helena Lacerda, da Fiel
Tricolor, e Sérgio Aiub, da Organizada Jovem-Flu, preparavam-se para impedir
2
Cf. RODRIGUES, N. “Bom dia”. In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 01 de dezembro de
1976, p.
16.
3
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 1976, p. 16.
4
Cf. Id. Rio de Janeiro 04 de dezembro de 1976, p. 16.
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a promessa feita pelo líder corintiano Tantã de hastear uma imensa bandeira
alvinegra em um dos pontos mais emblemáticos do Rio. “– Os paulistas estão
chegando”
5
, era o comentário que se veiculava na cidade, em paródia a uma
música conhecida na época, com os cariocas ainda um pouco atônitos em meio
à algazarra promovida nos bares e nas praias por aqueles a quem seus
estereótipos mais arraigados e irônicos só atribuíam a seriedade e a disciplina
do trabalho. A seção Flashes, do Jornal dos Sports, complementava:
“Espalhados pela Zona Sul desde as primeiras horas da noite de sábado, os
corintianos começaram a chegar ao estádio por volta das oito horas da
manhã.”
6
.
Por fim, naquele domingo do dia cinco de dezembro, a partida, de baixo
nível técnico e transmitida em cadeia nacional de televisão para todo o Brasil,
seria vencida nos pênaltis pelo Corinthians, após um empate no tempo
regulamentar. A chuva torrencial que caíra ao longo de todo o jogo não
impediu a torcida visitante, endossada pela adesão de numerosos rubro-negros
e vascaínos, de ocupar quase metade do anel das arquibancadas do Maracanã.
No dia seguinte, o deslocamento extraordinário dos torcedores paulistas – as
estimativas mais exorbitantes referiam-se a setenta mil corintianos
7
–, fato raras
vezes registrado na história do futebol, mereceria atenção por parte da mídia
sob títulos chamativos como “A invasão da alegria” e “Fiel chegou ao Rio
cheia de amor para dar”
8
. Um hoje desconhecido cronista, Duarte Gralheiro,
não apenas refletia como interpelava aqueles que segundo ele deveriam estar a
estudar a matéria: “O espetáculo de ontem não foi apenas a luta de duas
equipes. Além das personagens convencionais, estava ali a mais fascinante de
todas as estrelas: uma população de 150 mil pessoas. Onde está o historiador
deste fenômeno, o Fernão Lopes destas ondulações trêmulas e fascinantes de
criaturas humanas ?”
9
.
Com efeito, convocados pela grande imprensa, os até então céticos e
recalcitrantes estudiosos das ciências sociais brasileiras não tardariam a
5
Cf. NEGREIROS, P. L. A invasão corintiana. São Paulo: Mimeo, 2004, p. 5.
6
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 1976.
7
Segundo a revista esportiva Placar: “Eram 70.000 corintianos no Rio. Um susto. Mas terminou
num piquenique e num carnaval”. Cf. PALCAR. São Paulo: Editora Abril, 17 de dezembro de
1976, n.º 349, p. 34-38.
8
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 1976, p. 04.
9
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 1976, p. 12.
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19
aparecer e a tentar analisar o “fascinante fenômeno” das multidões esportivas.
Se desde pelo menos a Copa de 1974 o antropólogo Roberto DaMatta, em
entrevista ao jornal Folha de São Paulo, já considerava o futebol um legítimo
objeto de estudo científico e invertia o tradicional menosprezo da
intelectualidade em relação aos esportes em um instrumento profícuo de análise
da realidade social brasileira, aquela manifestação em específico ainda não
havia merecido uma atenção maior por parte da nova geração de estudiosos
formada no Museu Nacional do Rio de Janeiro Simoni Guedes, Arno Vogel,
Luís Eduardo Soares, Luís Felipe Baeta Neves e Ricardo Benzaquen de Araújo
que integraria o futebol ao campo de estudos da florescente antropologia
urbana no Brasil
10
.
Mas, no fim de semana subseqüente à propalada invasão corintiana,
quando o clube paulista começaria a disputar a decisão do Campeonato
Brasileiro de 1976 contra o Internacional de Porto Alegre, o Jornal do Brasil
estamparia na primeira página do seu então ainda prestigioso Caderno B uma
importante reportagem assinada pelo cientista político Bolívar Lamounier e
pelo sociólogo Sérgio Miceli, com dois artigos acerca do tema intitulados
respectivamente A comunidade dos estigmatizados e Os que sabem muito bem
que estão lá embaixo. Este último autor, inclusive, enquanto terminava sua
pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo
11
, viria a ser contratado
pelo jornal para uma reportagem especial sobre as torcidas organizadas. Ele
acompanharia de ônibus a viagem da maior torcida organizada do Corinthians,
em uma caravana de São Paulo ao Rio Grande do Sul, que reuniria em vinte e
cinco ônibus cerca de mil integrantes da facção para a final.
De suas observações circunstanciais de repórter bissexto e de suas
pioneiras tematizações sobre o futebol nas reuniões da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC), em encontro ocorrido sob grande tensão
10
Cf. DAMATTA, R. “Brasil: futebol tetracampeão do mundo”. In: Pesquisa de Campo. Rio de
Janeiro: UERJ / Departamento Cultural, 1994, n.º 1. Cf. também Id (Org.). Universo do futebol.
Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. No ano de 1974 também, vem a lume o primeiro trabalho
acadêmico consagrado ao tema, oriundo do departamento de Letras. Cf. FERNÁNDEZ, M. do C.
L. de O. Futebol - fenômeno lingüístico: análise lingüística da imprensa esportiva. Rio de
Janeiro: PUC; Editora Documentário, 1974.
11
Cf. MICELI, S. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979.
Em 1972, Sérgio Miceli havia publicado uma tese de mestrado com uma análise da influência da
televisão e dos mass media no Brasil, a partir de programas de auditório como os apresentados por
Hebe Camargo. Cf. Id. A noite da madrinha. São Paulo: Perspectiva, 1972.
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20
política em Brasília no mês de julho de 1976
12
, Sérgio Miceli extrairia as
reflexões para o primeiro ensaio de que se tem conhecimento dedicado ao
tópico, sob o título de Os Gaviões da Fiel
13
. Ao identificar os valores, as
práticas e as representações desta agremiação, e do corintiano de uma maneira
geral, à luz dos ensinamentos da sociologia da religião de Max Weber e do
poder simbólico de Pierre Bourdieu, o sociólogo colocava-se em uma posição
de defesa perante uma manifestação cultural que a seu ver fugia à lógica dos
padrões de consumo dominante e que passava ao largo da capacidade de
entendimento dos detentores da cultura erudita, dos meios de comunicação de
massa e de inúmeros intelectuais. De acordo com o autor, aquela organização
nada tinha de amorfa ou espontânea, possuía, ao contrário, uma complexa
morfologia social, somada a critérios de admissão, a memória coletiva, a capital
de saber próprio, a formas de hierarquia e de solidariedade que lhe
asseguravam reprodução, identidade e autonomia.
A avaliação positiva creditada à agremiação, flagrada em uma nítida
postura de resistência do autor contra o “etnocentrismo de classe”
14
, talvez
possa ser compreendida de modo mais adequado caso se considere o contexto
de emergência das torcidas organizadas naquele momento. Surgidos em fins da
década de 1960, à sombra de uma nova etapa de expansão do futebol
profissional e do estabelecimento de um torneio de alcance nacional, que se
potencializava com o advento da televisão na emissão ao vivo das partidas, Os
Gaviões da Fiel constituíam um embrionário agrupamento que estabelecia as
bases para um novo tipo de associação e organização no interior do futebol.
Inicialmente distanciados e dissidentes do clube, reclamavam a si o direito de
representatividade, de participação e de pressão sobre uma administração
considerada autoritária – o presidente Wadih Helú, além de deputado estadual
12
No ano seguinte, em 1977, Sérgio Miceli também apresentaria trabalhos na SBPC com o tópico
“Futebol e política cultural”, de onde resultariam dois artigos para a revista Istoé: “A força política
que vem das arquibancadas” e “Corinthians. E o pão ?”. Cf. REVISTA ISTOÉ. São Paulo, 14 de
setembro de 1977, n.º 38, p. 48-50. Cf. também Id. São Paulo, 12 de outubro de 1977, n.º 42, p.
12-16.
13
Cf. Id. “Os Gaviões da Fiel: torcida organizada do Corinthians”. In: Revista de Administração
de Empresas. Rio de Janeiro: s.e., 1978, abril / junho.
14
Cf. Ibidem, p. 46.
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21
pela Arena, estava há quinze anos à frente do clube – e passível de
questionamento por segmentos sociais externos a ela
15
.
A fundação dos Gaviões da Fiel remontava ao ano de 1969, por
iniciativa de um grupo de jovens torcedores, alguns deles estudantes, em um
período crítico da história do clube e em uma fase tida como a mais repressora
da ditadura militar no Brasil. Um dos fundadores, Flávio de La Selva, estudava
direito na USP e participara das mobilizações estudantis de 1968 em São Paulo.
Segundo ele, em nenhum momento o grêmio havia sido pressionado ou
investigado diretamente pelo DOPS, mas se sabia da presença infiltrada de
membros da polícia política na torcida
16
. Seria apenas no decênio posterior, em
fins dos anos de 1970, quando Sérgio Miceli lançava seu ensaio, que as torcidas
de futebol começavam a ganhar vulto para além dos estádios, graças também,
como sugeria o sociólogo, à sua circulação e movimentação em território
nacional
17
, na esteira das viagens em apoio ao time. Ainda que não postulassem
qualquer projeto ou ambição política extra-esportiva mais abrangente, esses
grupos encontravam-se em consonância com o novo fluxo de vida associativa
encarnado pelos movimentos sociais que pouco a pouco voltavam a se
revitalizar nos bairros, nas fábricas, nas igrejas, nas universidades e em outros
ambientes civis. Tratava-se assim da afirmação de uma instituição de caráter
popular e sob essa perspectiva deveria ser valorizada pelos sociólogos.
A simpatia pelas torcidas de futebol e a sua vinculação ao processo
político-cultural da sociedade brasileira seria enfatizada por outros autores. O
jornalista esportivo Juca Kfouri, então redator-chefe do mais influente
semanário esportivo do país, a revista Placar, da poderosa Editora Abril,
proprietária do maior complexo gráfico e editorial da América Latina
18
,
corroborava tal tipo de visão, com o aval de quem havia se formado em
Comunicação e em Ciências Sociais pela USP: “Não terá sido por acaso, só
15
Cf. Ibidem, p. 46 e 47. Cf. também TOLEDO, L. H. de. “A invenção do torcedor de futebol:
disputas simbólicas pelos significados do torcer”. In: COSTA, M. R. da. (et al.). Futebol,
espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999, p. 151.
16
Cf. CÉSAR, B. T. Os Gaviões da Fiel e a águia do capitalismo: ou o duelo. Campinas:
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social / UNICAMP, 1981, p. 99 e 102.
17
Sérgio Miceli cita o exemplo do motorista de caminhão como um dos possíveis fatores que
contribuíram para a dispersão da torcida corintiana pelas diversas regiões brasileiras. Cf. MICELI,
S. op. cit., p. 44.
18
Cf. ABREU, A. A. de. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2002.
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22
como um exemplo qualquer, que a primeira faixa pela Anistia no Brasil a
aparecer para um grande público tenha sido desfraldada exatamente no meio da
torcida corintiana, numa partida contra o Santos, no Morumbi com mais de 110
mil pessoas, dia 11 de fevereiro de 1979.”
19
. Ainda sob a euforia da conquista
do título estadual pelo Corinthians contra a Ponte Preta, a recém-lançada
Revista IstoÉ, criada pelo editor Mino Carta na estratégia de concorrência com
a hegemonia da Veja, de onde saíra por desavenças quanto à falta de liberdade
editorial
20
, ofereceria espaço para que outros acadêmicos destacassem a
grandeza do feito corintiano e para que exaltassem a comemoração da sua
torcida, tal como fazia a crítica literária Walnice Nogueira Galvão em seu
artigo A Fiel e sua plenitude
21
.
O primeiro trabalho científico sistemático sobre torcidas organizadas de
que se tem notícia nas universidades brasileiras apareceria no início da década
de 1980. A dissertação de mestrado de Benedito Tadeu César, defendida no
departamento de Antropologia Social da UNICAMP, sob orientação de Rubem
César Fernandes, intitulava-se justamente Os Gaviões da Fiel e a águia do
capitalismo: ou o duelo. Por um lado, ela atestava a particular notoriedade
lograda por esta associação em específico que em termos quantitativos,
qualitativos e estruturais suplantava o estágio de desenvolvimento de qualquer
outra das suas congêneres; por outro, indicava o prosseguimento e o
aprofundamento da reflexão levada a cabo, no final da década anterior, pelos
intelectuais que se manifestavam a este respeito nos órgãos impressos. Isto
porque, conquanto a tese do antropólogo datasse de 1981, os seus resultados
derivavam de uma pesquisa de campo empreendida no segundo semestre de
19
Cf. KFOURI, J. A emoção Corinthians. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 36. O ex-presidente
dos Gaviões da Fiel, Douglas Deúngaro, confirma a informação: “Numa época de ditadura a
Gaviões foi a primeira entidade que abriu uma faixa – ‘anistia ampla e irrestrita’ – para cem mil
pessoas. Na época o pessoal que estava saindo do país veio pedir para a Gaviões, porque eles
aceitaram a idéia Gaviões. Eles disseram que ninguém tinha coragem de abrir uma faixa para cem
mil pessoas: ‘vocês vão ter que abrir’ e os Gaviões compraram a briga. (...) Na época foi todo
mundo para o banquinho do Doi-Codi. O presidente na época era o Julião e os policiais vieram
aqui e pegaram todo mundo. Ninguém tinha feito isso na época da ditadura, então, os Gaviões
eram uma força diferente das outras torcidas.”. Apud SANTOS, T. C. Dos espetáculos de massa
às torcidas organizadas: paixão, rito e magia no futebol. São Paulo: Annablume, 2004, p. 84.
20
Cf. MUNTEAL, O.; GRANDI, L. A imprensa na história do Brasil: fotojornalismo no século
XX. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Desiderata, 2005, p. 139.
21
Cf. GALVÃO, W. N. “A Fiel e sua plenitude”. In: Isto É. São Paulo: Editora Abril, 1977, n.º
44, p. 73.
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23
1977 e no primeiro semestre de 1978, a coincidir temporalmente, portanto, com
o interesse suscitado entre os autores acima referidos pelo assunto
22
.
A introdução desse objeto no interior da Academia não ocorreria sem
dificuldades e desafios teóricos
23
. O autor deveria pensá-lo sob as lentes do
aparato conceitual legado pelo marxismo e sob a vigência do instrumental de
análise consolidado nas Ciências Sociais brasileiras no decurso da década de
1970. A escolha daquele excêntrico fenômeno, passível de risadas dos colegas
mestrandos, pois ainda destituído de tradição acadêmica, deveria encontrar um
sentido que o orientasse e o justificasse no meio. Para tanto o autor, dividido
entre os pressupostos que embasavam ora a antropologia funcional-
estruturalista ora a sociologia marxista, optou por articular a tese em duas
partes, combinando as duas matrizes teóricas. Assim, uma acentuava os
aspectos descritivos, enquanto a outra, os analíticos.
A primeira parte apresentava um extenso relato, com linguagem fluente e
acessível, em que sobressaíam os minuciosos apontamentos do diário de campo
de um pesquisador que se deslocara de Brasília, sua cidade de origem, e de
Vitória no Espírito Santo, onde lecionava, para São Paulo, no intuito de assistir
às partidas finais do campeonato estadual de 1977. A narrativa conduzia o
leitor pelos meandros mais obscuros e menos conhecidos do universo em
questão, na tentativa de reconstituir com maior fidedignidade possível o
ambiente e o envolvimento emocional do autor na interação com os gaviões. A
observação participante – distendida integralmente em uma seção com mais de
cem páginas – impressionava pela capacidade de transmitir em cores vivas a
experiência etnográfica vivenciada no cotidiano dos componentes do grupo. A
imersão no campo permitia-lhe desde a freqüência à sede, às reuniões de
admissão dos novos membros e aos bate-papos informais, até a observação do
comportamento do grupo nos jogos, nos meios de transporte e nos
enfrentamentos físicos mais diretos com a polícia e com as torcidas adversárias,
retratando a crueldade das brigas de modo frontal e, por vezes, chocante.
22
É digno de nota que nesse mesmo período dois documentários de curta-metragem focalizariam a
torcida corintiana, um deles os Gaviões da Fiel em específico. Cf. RODRIGUES, L. A Fiel. São
Paulo: 1977. Cf. também KLOTZEL, A. Gaviões. São Paulo: 1982.
23
O pioneirismo do trabalho pode ser aferido pelo fato de se situar aquém do período considerado
como inicial para uma análise acadêmica de conjunto acerca do futebol no Brasil, tal como o fez o
antropólogo Luiz Henrique de Toledo. Cf. TOLEDO, L. H. de. “Futebol e teoria social: aspectos
da produção científica brasileira (1982-2002)”. In: BIB – Revista Brasileira de Informação
Bibliográfica em Ciências Sociais. São Paulo: EDUSC, 2001, nº 52.
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24
Benedito Tadeu César aproximava a metodologia de seu relato à “técnica
descritiva” e às “análises situacionais” propostas por Max Gluckman, em que
se reproduz com mais fidelidade possível e com maior riqueza de detalhes toda
a situação vivida no campo. Diga-se de passagem, quando da leitura do referido
trabalho, o caso similar que ato-contínuo me veio à mente foi a descrição dos
sustos e dos sobressaltos por que passou Clifford Geertz em meio à assistência
de uma briga de galos em Bali, prática então proibida pela polícia da Indonésia,
onde, na companhia de sua mulher, teve de correr em disparada e se esconder
da repressão policial local
24
.
Já a segunda parte do trabalho dedicava-se ao exame do lugar ocupado
por aquele agrupamento no âmbito da sociedade capitalista. O autor repisava de
início as conhecidas teses da Escola de Frankfurt, concernentes à função
reprodutora do lazer e do tempo livre no restabelecimento do mundo do
trabalho, concepção em que ficava patente a crítica dos meios intelectuais da
“antiga” e da “nova” esquerda à prática futebolística. A par disso, o torcedor
representava tão-somente a condição do homem-massa transladado para o
ambiente esportivo. Reflexo de uma consciência fragmentada, ele extravasava
sua hostilidade, insatisfação e frustração cotidiana sem compreender os
mecanismos concretos que de fato o subjugavam. Tal visão descambava de
maneira quase automática para o enquadramento dos esportes como mais uma
das instituições propostas por Althusser na conceituação dos aparelhos
ideológicos do Estado.
Em seguida, porém, o pesquisador acrescentava a seu repertório
científico a contribuição antropológica de Radcliffe-Brown, ao salientar como
as relações de amizade e inimizade, de conflito e complementaridade, de
provocação e brincadeira verificadas entre as torcidas poderiam ser pensadas
como pares de oposições. Estas dicotomias presentes nas sociedades complexas
remetiam à maneira do funcionamento dos clãs totêmicos nas sociedades ditas
primitivas, duais ou não-industriais. Sob a aparência de antagonismo com seus
rivais, tais grupos nada mais faziam, no jogo e no esporte, do que forjar
diferenças para em realidade se identificar mutuamente. Em última instância,
tratava-se de um conflito integrador, de uma identidade por contraste, na busca
24
Cf. CÉSAR, B. T. op. cit., p. 109. Cf. também GEERTZ, C. “Um jogo absorvente: notas sobre
a briga de galos em Bali”. In: A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
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25
pelos meios mais eficazes de assegurar o reforço da solidariedade e da
cooperação grupal interna.
Apesar da introdução da antropologia social inglesa no debate, a
problemática do pesquisador voltava sua preocupação primordial para o plano
da discussão sociológica do marxismo. Se o autor não refutava, à primeira
vista, a tese segundo a qual o futebol cumpria o papel de controle, manutenção
e reprodução do sistema político-econômico, a consensual idéia de dominação
poderia ser matizada sem se abrir mão da linhagem marxista de pensamento. A
adoção do enfoque de Gramsci nesse sentido, muito em voga na época,
legitimava-se na medida em que o pesquisador desvencilhava-se da percepção
do torcedor isolado, atomizado, apreendido apenas em esfera individual, e
passava a considerar a torcida organizada, uma entidade coletiva portadora de
valores cujas ambivalências mereciam investigação.
A criação de um espaço de congregação por elementos marginalizados
socialmente inseria as torcidas organizadas no mesmo rol das discussões do
marxista italiano sobre as potencialidades e as limitações da cultura popular, da
religião e do folclore. A título de esclarecimento cumpre dizer que, na
linguagem marxista então empregada, o autor entendia por elementos
marginais, marginalizados ou marginalizadores todos os indivíduos alijados das
possibilidades de acesso aos bens e serviços da sociedade. À época, a expressão
maloqueiro, por exemplo, já era empregada para designar a massa dos
componentes dos Gaviões, por oposição aos quadros dirigentes da mesma
torcida
25
.
O estabelecimento de laços comunitários entre indivíduos desprovidos,
no interior do futebol, permitia às torcidas uma tomada de consciência acerca
de seu lugar na sociedade, seja reforçando-a, seja questionando-a. Ainda que
esta reflexão se afigurasse débil e fugidia ao nível da transformação da
estrutura social, ela constituía ao menos um canal de aglutinação, de expressão
e de atuação em bloco por um grupo que reclamava distinção. A visão de
mundo e a práxis torcedora, ao reunir anseios e expectativas difusas da vida
social no mundo esportivo massificado, proporcionavam o compartilhamento
de um conjunto de histórias, símbolos, ritos, linguagens, códigos e interesses
25
Cf. CÉSAR, B. T. op. cit., p. 158 e 159.
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26
comuns que as dotavam de peculiaridades e características próprias, erigidas
com o tempo.
Benedito Tadeu César conclui seu trabalho com a postulação da
existência de rudimentos de uma cultura popular gaviã, originada das camadas
subalternas da sociedade, em meio às brechas abertas pelo Estado brasileiro,
visto então como autoritário, capitalista e dependente. Por outras vias, chegava-
se a uma concepção análoga à que já apontara Sérgio Miceli em seu texto de
cunho ensaístico. Nos interstícios do sistema seria possível identificar as
formas de resistências, com base em um conceito de popular definido como um
processo sempre dinâmico e dialético, um terreno crivado de tensões,
diferenças e conflitos. A posição do pesquisador evidenciava, ao menos, um
avanço em relação ao ceticismo das Teorias Críticas do Esporte
26
, fixadas no
plano internacional em fins da década de 1960. Em que pese sua simpatia pelo
movimento dos gaviões, perceptível nas entrelinhas do texto, o autor não
deixava de explicitar seu distanciamento face à visão populista típica do
ufanismo, que valoriza as manifestações oriundas do povo, definindo-as como
intrinsecamente boas.
Um interregno de dez anos separaria essa pesquisa inaugural das torcidas
organizadas no Brasil dos subseqüentes estudos acadêmicos sobre o tema no
âmbito da pós-graduação. A década de 1990 acumularia uma série de
discussões pautadas em acontecimentos transcorridos no curso do decênio
anterior que modificariam o viés do debate delineado pelos intelectuais até
então. O fenômeno continuava a circunscrever aspectos similares aos
reportados pelos meios de comunicação nos anos 70, com destaque para os
torcedores itinerantes que extrapolavam fronteiras territoriais em partidas
decisivas. Os excessos na demonstração do fervor pelo clube passavam a
assumir conotações negativas, de modo a preponderar sobre as tradicionais
imagens de abnegação, sacrifício e altruísmo. Desta feita, as narrações
jornalísticas das invasões de torcedores de uma cidade a outra, de uma região a
outra, de um país a outro ou de um continente a outro eram substituídas por
representações menos festivas e enaltecedoras.
26
Cf. VAZ, A. F. “Teorias críticas do esporte: origens, polêmicas, atualidade”. In: Revista
Esporte e Sociedade. <http//:www.esportesociedade.com/>. Rio de Janeiro, nº 1. Acesso em: 22
de setembro de 2006.
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27
O foco agora estaria voltado para os distúrbios ocorridos fora do Brasil,
em particular para aqueles irradiados pela mídia esportiva da Europa. Tais
incidentes punham em primeiro plano os torcedores ingleses, cuja fama secular,
que remonta a fins do século XIX, repontara na Copa do Mundo de 1966 e se
estendera pela década posterior. A intensificação das viagens no circuito de
competições daquele continente colocava à mostra o lado hostil de setores das
torcidas britânicas, atingindo seu clímax no ano de 1985, com o drama
televisivo conhecido como “a tragédia de Heysel”. Fatais e dramáticas, as cenas
da filmagem do esmagamento de milhares de torcedores italianos contra o
alambrado de um estádio na Bélgica, que resultaria na morte de quarenta deles,
momentos antes da partida final pelo Campeonato Europeu de Clubes, entre
Juventus da Itália e Liverpool da Inglaterra, repercutiriam em escala mundial e
viriam a representar um divisor de águas na percepção do tema
27
.
A emulação da rivalidade entre nórdicos e latinos, entre ingleses e
italianos, mais precisamente entre hooligans e ultras, vinha sendo incitada há
alguns anos com ameaças mútuas e, de certa forma, tal tragédia já vinha sendo
prenunciada nas temporadas anteriores. No ano de 1984, o mesmo Liverpool
disputara a partida final contra uma equipe da Itália, a Roma, com o
deslocamento de cerca de vinte mil torcedores ingleses para o Estádio Olímpico
na capital italiana. O prenúncio de um desfecho trágico tinha ocorrido também
durante o penúltimo jogo da Copa da UEFA, em 1984, quando os torcedores
britânicos do Tottehan, à saída do jogo contra o Anderlecht, investiram contra
automóveis, bares e vitrines de lojas na mesma capital belga, o que resultou em
um total de duzentas prisões, fazendo a primeira-ministra Margareth Thatcher
qualificar a onda de violência como “uma desgraça para a Inglaterra”
28
.
Em sentido contrário, no início daquele mesmo ano de 1985, meses antes
da tragédia em Bruxelas, parcela dos torcedores italianos havia tentado uma
mobilização internacional com a realização de um inédito Congresso Mundial
de Torcidas, em Roma, na Itália. A finalidade era promover o apaziguamento
27
O escritor argentino Juan José Sebreli elaborou uma lista em que colige distúrbios desta natureza
ao longo do século XX, centrado em informações veiculadas pela imprensa na Europa, na América
Latina e, com maior ênfase, na Argentina. Cf. SEBRELI, J. J. “Fútbol y violencia”. In: La era del
fútbol. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1998. Vale ressaltar ainda que uma cronologia
internacional de guerras e massacres do século XX incluiria o futebol com a “tragédia de Heysel”.
Cf. SALGADO, S. Êxodos: leituras da imprensa. São Paulo: Bei Comunicação, 2000, vol.2.
28
Cf. REVISTA PLACAR. “A torcida incendiária”. São Paulo: Editora Abril, 01 de junho de
1984, n.º 732, p. 24-27.
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28
da crescente intolerância entre os grupos, que havia se tornado sistemática,
contando inclusive com a presença no evento de um representante brasileiro, o
paulista Matheus Rodak, então com vinte e cinco anos, ex-presidente da TUP, a
Torcida Uniformizada do Palmeiras. Após a tragédia de Heysel os resultados se
mostraram inócuos, sem surtir efeito, com o reconhecimento da generalização
das brigas e com a incapacidade assumida pelos participantes do congresso de
controlar o arrivismo e de encontrar um denominador mínimo consensual,
mesmo em nível interno nacional
29
.
Assim, depois de codificar e de espraiar as regras do futebol associado
profissional no final do século XIX para parte considerável do mundo, os
ingleses, na década de 1980, viam sua imagem atrelada à difusão de um modelo
negativo de torcedor oriundo do seu ambiente esportivo: o hooligan. Diante dos
princípios morais requeridos pelos esportes, a existência deste personagem no
futebol moderno parecia a muitos um contra-senso, um anacronismo, um
aparecimento extemporâneo. Quando não, soava um paradoxo enigmático a ser
decifrado por um país que se acostumara durante muito tempo a cultuar a auto-
imagem do cavalheirismo e que se via então constrangido pelo antípoda do
lorde e do gentleman britânico apresentado ao mundo.
Em virtude disso, o contraste entre o hooliganismo e o caráter fleumático
do inglês, com a imagem da frieza, da moderação e do elevado nível de
autocontrole, receberia a atenção e o exame de expoentes da Escola de
Leicester, notadamente dos alunos de Norbert Elias, adeptos de sua sociologia
configuracional. No artigo Football hooliganism in Britain (1880-1989), Eric
Dunning e outros dois colaboradores mostravam de que maneira se deu na
década de 1920 a invenção do fair-play e da fleuma no futebol da Inglaterra,
como virtudes não apenas aristocráticas, mas essencialmente inglesas. Em um
período auto-representado como “idade de ouro”, foi criada uma oposição tanto
entre este tipo ideal inglês e as paixões típicas dos latinos da Europa
continental, quanto entre os civilizados ingleses e os supostamente bárbaros de
origem britânica: escoceses, celtas e irlandeses
30
.
29
Cf. Id. “A guerrilha dos verdes”. São Paulo: Editora Abril, 15 de março de 1985, n.º 773, p. 33.
30
Cf. DUNNING, Eric; MURPHY, Patrick; WILLIAMS, John. Football on trial: spectator
violence and development in the football world. New York: Routledge, 1999, p. 73.
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29
A polêmica em torno dos estereótipos tributados ao hooliganismo, dentre
eles os de fanatismo, de irracionalidade e de selvageria, não se cingiu às
explicações sociologizantes mais previsíveis e às ligações mais imediatas com
as esferas políticas e econômicas do país, sejam as retrações do emprego, sejam
os efeitos deletérios sobre a classe trabalhadora por parte das medidas liberais
do governo Tatcher nos anos 80. As punições sofridas pelos clubes ingleses,
impedidos de disputar torneios internacionais durante cinco anos, em virtude
das brigas de seus torcedores na Europa continental, iriam ainda recolocar um
amplo espectro de questões éticas sobre o agir humano em coletividade. A
partir do futebol, grandes temas universais para o homem ocidental do século
XX seriam retomados, a saber, a psicologia das multidões, a decadência do
Ocidente, o choque entre civilização e barbárie, a xenofobia e a intolerância
perante o outro.
É difícil averiguar em que medida a disseminação daquelas imagens
trágicas transmitidas pela televisão teria afetado a conduta das torcidas
organizadas no Brasil e no mundo, sem voltar a aventar as combalidas teses
antropológicas do difusionismo. Não é fácil também saber até que ponto o tipo
britânico do hooligan foi decodificado e passou a influenciar diretamente a
postura de determinados torcedores no país. De maneira progressiva, face à
nova realidade, verificou-se uma mudança de tratamento e uma diminuição no
espaço dado a esses grupos pelos meios de comunicação. As limitadas
reportagens a esse respeito passaram a concentrar seus interesses sobre os casos
de desordem e tumulto por eles ocasionados. As expectativas do cenário
nacional projetado em fins da década de 1970, com o paulatino
restabelecimento da abertura rumo à democracia e com a reconquista da
liberdade de associação, em que se inscreviam indiretamente as torcidas
organizadas, não teriam correspondentes na década seguinte.
A despeito da participação popular, da reorganização dos partidos, da
campanha em torno das Diretas Já e da promulgação da Assembléia
Constituinte, os anos 80 seriam comprometidos por inúmeros desdobramentos
advindos da política econômica antecedente, entre eles, a inflação, a dívida
externa e a hipertrofia do aparelho estatal. Decorrência da migração
desmesurada da região Nordeste para a região Sudeste e da explosão
demográfica nas grandes cidades, muitas delas transformadas em metrópoles
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30
caóticas, aquele seria um período de frustração para muitos, cognominado
também de a década perdida
31
. A violência urbana viria a constituir a tônica da
pauta jornalística e da preocupação governamental. O tráfico de drogas, que se
alastrara nas áreas mais carentes, mobilizaria a maior parte do dispêndio de
tempo da polícia, em uma rotina de confrontos, mortes e abusos de autoridade.
A crônica esportiva seguiria a tendência mais geral do jornalismo
brasileiro, ao dar ênfase ao problema da violência e ao cobrar resoluções
imediatas das autoridades competentes. As torcidas organizadas eram tratadas
sob essa mesma ótica, passando a ser vistas à parte do mundo do futebol, e
diferenciadas do torcedor comum. As matérias especiais a elas consagradas
responsabilizavam as facções, como começavam a ser chamadas, nomenclatura
sintomática do enquadramento corporativo-marginal que assumiam, por
sucessivos atos de vandalismo. A recorrência de tais fatos ia montando aos
poucos uma cronologia de transgressões, transtornos à ordem pública e
pequenos delitos. A vinculação deixava, pois, de ser feita com organizações
populares como sindicatos, escolas de samba e associações de bairro para
estabelecer um paralelo mais direto com galeras e gangues de rua, com
delinqüentes e pichadores, com lutadores de artes marciais e consumidores de
droga, enfim, com todos os tipos desviantes identificáveis entre as camadas
juvenis da sociedade.
O estigma se firmaria sobretudo entre 1988 e 1995, quando incidentes na
capital paulistana ultrapassariam a conjuntura dos jogos e adquiriam
ressonância nacional. O ano de 1988 assinalaria o falecimento de Cléo,
presidente da Mancha Verde do Palmeiras, assassinado por motivos obscuros
não desvendados pela polícia
32
. A premeditação do assassinato e a utilização de
armas de fogo revelariam o grau de beligerância a que chegavam as rixas entre
as torcidas organizadas, fato agravado ainda em razão de a vítima ser não
31
Segundo Alba Zaluar: “Quando o povo unido comemorava as pequenas conquistas da
democracia no início dos anos 80, não poderia imaginar que outros problemas por vir seriam tão
mais difíceis e ardilosos a ponto de confundi-lo e desuni-lo nas décadas seguintes.”. Cf.
ZALUAR, A. “Para não dizer que não falei de samba”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.).
História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol. 4, p. 246. Cf.
também RODRIGUES, M. A década de 1980: Brasil, quando a multidão voltou às praças. São
Paulo: Editora Ática, 1994.
32
Cleofa Sóstones Dantas da Silva foi assassinado no dia 17 de outubro de 1988 em frente à sede
da Mancha Verde do Palmeiras. Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 29 de outubro de
1988, p. 4.
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31
apenas um componente mas o líder de uma das mais conhecidas e temidas
agremiações do país. Fundada cinco anos antes, a Mancha era considerada uma
das primeiras torcidas a surgir com o propósito explicito de autodefesa e de
enfrentamento com as rivais, através da união de três pequenos grupos de
palmeirenses, o Império Verde, o Inferno Verde e o Grêmio Alviverde.
Segundo o depoimento de Paulo Rogério Serdan, um de seus fundadores: “Nós
costumamos dizer que foi um mal necessário, porque a torcida do Palmeiras,
antes da criação da Mancha, era uma torcida muito escorraçada. Era uma
torcida que apanhava de todo mundo. Era uma torcida desacreditada.”
33
. Morto
fora das circunstâncias de uma partida, o caso de Cléo seria levado para o
âmbito da criminalidade e da investigação policial. Transcorridos cinco meses
do assassinato de Cléo, a revista Placar mostrava em reportagem como o
inquérito 818/88 continuava sem elucidação, enredado nas malhas da
burocracia.
34
.
Já o ano de 1995 seria marcado por um acontecimento com impacto
equiparável, em nível nacional, àquele gerado na imprensa estrangeira com a
tragédia de Heysel. A gravação da final da II Supercopa de Juniores entre São
Paulo e Palmeiras permitiria que as câmaras de televisão registrassem a invasão
de campo das torcidas organizadas de ambas as equipes, a Independente e a
Mancha Verde, em um enfrentamento com bastões, paus e pedras naquela que
ficou batizada como a batalha campal do Pacaembu
35
. O episódio fez centenas
de feridos e resultou na morte de um menor de idade, com o registro ao vivo de
uma seqüência de cenas que seriam exibidas diversas vezes ao longo da
semana. As discussões na imprensa escrita, falada e televisada acarretariam,
por um lado, a sensibilização e a perplexidade de vários extratos alheios ao
futebol com a gravidade da situação; por outro, ensejariam reações extremadas
entre aqueles que viam no banimento das torcidas a providência mais adequada
para conter a escalada da violência.
O panorama colocava a Academia em face de novas demandas da
sociedade. Desde as primeiras incursões sobre o tema em fins da década de
33
Cf. CASTRO, K. de. Futebol brasileiro: o gigante a despertar. Rio de Janeiro: Revan, 1994, p.
148.
34
Cf. PLACAR. “O caso Cléo: inquérito passa de mão em mão”. São Paulo: Editora Abril, 17 de
março de 1989, n.º 979, p. 21.
35
Cf. TOLEDO, L. H. de. “Identidades e conflitos em campo: a ‘guerra do Pacaembu’”. In:
Revista USP. São Paulo: s.e., 1997, nº 32.
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32
1970, os estudos acadêmicos tinham de lidar com uma realidade social distinta
da que se configurara até então. Por seu turno, a pós-graduação se consolidara
no país com a diversificação das linhas de pesquisa, com a multiplicação de
abordagens teóricas e com a coexistência de vários domínios na apreensão de
um mesmo fenômeno, ao que se convencionou chamar interdisciplinaridade. A
necessidade de produção de explicações sobre o comportamento das torcidas
organizadas levou os pesquisadores a uma certa cautela em relação à maneira
sensacionalista como setores influentes dos esportes encaminhavam a questão.
Era necessária uma reconsideração dos pressupostos dos comentaristas
esportivos na emissão de suas opiniões sobre o assunto. Os procedimentos mais
elementares da atividade científica na interrogação de um objeto eram
evocados, como o afastamento dos juízos de valor, a desconfiança perante as
sentenças maniqueístas do senso comum e a adoção de uma atitude
compreensiva, que ultrapassassem as posições meramente explicativas e
judicativas.
A maior parte da produção científica brasileira sobre torcidas
organizadas de futebol ficou concentrada no eixo Rio – São Paulo, onde a
questão tinha maior visibilidade e de onde o modelo associativo se propagava.
Entre as exceções, note-se uma dissertação de mestrado em antropologia
defendida no Rio Grande do Sul no início da década de 1990, após um trabalho
de campo realizado na Copa União de 1987 com as torcidas organizadas do
Internacional
36
. Nos anos 90, o tema despertou interesse significativo entre
orientandos da primeira geração de pesquisadores sobre futebol no Brasil,
alunos de professores como Ronaldo Helal, Simoni Guedes, Waldenyr Caldas e
Maurício Murad, com a abrangência de uma área diversificada de
conhecimentos, tais como a Administração, a Antropologia, a Comunicação, a
Educação Física, a Geografia, a Psicologia, o Serviço Social e a Sociologia
37
.
36
Cf. DIAS, C. O. ‘Olê, olá, o nosso time tá botando pra quebrar’: um estudo sobre torcidas
organizadas no Brasil. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social / UFRGS,
1991.
37
A título de ilustração, é possível citar um exemplo por área de conhecimento, respectivamente:
COSTA, A. L. “A organização cordial: ensaio de cultura organizacional do Grêmio Gaviões da
Fiel”. In: Revista de Administração de Empresas. São Paulo: s.e., 1995, nov./dez. TOLEDO, L.
H. de. Torcidas organizadas de futebol. São Paulo: ANPOCS / Editores Associados, 1996.
SANTOS, T. C. Dos espetáculos de massa às torcidas organizadas: paixão, rito e magia no
futebol. São Paulo: Annablume, 2004. REIS, H. B. Futebol e violência. Campinas: Armazém do
Ipê, 2006. VALVERDE, R. A metáfora da guerra. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em
Geografia / UFRJ, 2003. LUCCAS, A. N. Futebol e torcida: um estudo psicanalítico sobre o
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33
Vista em seu conjunto, a maioria dos trabalhos de final de curso, das
monografias de graduação e das dissertações de mestrado procurou refutar a
visão corrente segundo a qual a violência seria uma patogênese social inerente
aos membros das torcidas organizadas e uma característica exclusiva da
contemporaneidade. As pesquisas acadêmicas demonstrariam de que maneira
termos como ‘patologia’ e ‘degeneração’, este último típico da escola italiana
de criminologia e das concepções de César Lombroso, Garofalo e Ferri,
elaborados na virada do século XIX para o século XX, teriam sido
incorporados pelo discurso da linguagem jornalística, de modo inconsciente ou
não.
A demonstração contrária fundava-se em dados colhidos junto à própria
imprensa em outros períodos históricos do futebol, quando também se
noticiavam vários casos de desordem nos estádios. No Brasil, o depoimento de
protagonistas do futebol que acompanharam os primeiros anos da prática
mostrava quão suscetível ao conflito este esporte sempre havia sido. Segundo
João Lyra Filho, ex-presidente do Botafogo e dirigente de várias entidades
esportivas: “Às vezes as torcidas dos clubes ensaiavam arremedos de guerrilhas
urbanas. Parte de uma saía à procura da outra para desforrar derrotas sofridas
em campo.”
38
. A inexistência de associações de torcedores organizados nessa
época era um indício de como a violência constituía um elemento estrutural que
transcendia grupos determinados e que estava presente em toda a história do
futebol, com a alternância de conjunturas de ascensão e declínio, de expansão e
retração, de estabilidade e anomalia. Ao paradigma de cariz racial e biológico
assimilado pelos jornalistas, contrapunha-se um paradigma culturalista adotado
pelos cientistas, informados pelas mais recentes teorias relativistas que,
iniciadas na linguagem da Física, transladaram-se no século XX para o
vocabulário das Ciências Humanas.
A Antropologia Social seria assim a principal enriquecedora do debate,
ao se valer da etnografia e de seus axiomas e métodos clássicos – a pesquisa de
campo, o relativismo cultural e o conceito de drama – para a captação do ponto
vinculo social. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Psicologia Social / PUC-SP, 1998. CURI,
M. Estrutura social das torcidas organizadas de futebol no Brasil: suas conseqüências nos
conceitos de serviço social a torcedores. Monografia de Graduação em Serviço Social:
Universidade de Nuremberg, 2002. PIMENTA, C. A. Torcidas organizadas de futebol:
violência e auto-afirmação. Taubaté: Vogal Editora, 1997.
38
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1968, p. 10.
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34
de vista do nativo e para a compreensão de seus atos, com a exposição do
sistema de rituais, de símbolos e de visões de mundo que norteavam esses
heterogêneos agrupamentos sociais. Conceitos-chaves como estilo, usado
inicialmente pelo Centro de Estudos Culturais de Birmingham para caracterizar
a “cultura jovem”, eram acionadas para dar conta dos padrões de sociabilidade
e distinção entre subculturas juvenis de torcedores na metrópole. Os códigos de
honra presentes nas torcidas organizadas passavam pela afirmação de valores
viris, pela demarcação de fronteiras sócio-espaciais e pela construção de ideais
de masculinidade, cujos traços de honorabilidade mais remotos e ancestrais
poderiam ser localizados na herança legada pelas sociedades mediterrânicas,
tais como a violenta hybris grega.
Para abordar a questão dos valores, a Antropologia Social, brasileira e
latino-americana, teria como base as obras organizadas por John G. Peristiany,
Honor y gracia e El concepto de honor en la sociedad mediterránea, em 1965
e 1968, respectivamente, nos quais contou com a colaboração de Julian Pitt-
Rivers. O antropólogo Arno Vogel, por exemplo, estudou a entronização de
categorias como respeito, honra e vergonha entre os torcedores brasileiros após
o desempenho da seleção nacional nas Copas do Mundo de 1950 e 1970.
Muitos estudiosos, inclusive argentinos, estenderam tal tipo de análise para o
caso das torcidas organizadas
39
.
A exacerbação do culto à superioridade do grupo diante do concorrente
podia levar ao rompimento da estrutura mais geral de relação entre torcedores
de equipes adversárias, que consistia nas gozações típicas do parentesco por
brincadeira, para seguir a sugestão de Radcliffe-Brown, ou na dadivosa
reciprocidade que unia as tribos e as sociedades, impedindo-as do massacre e
do sacrifício desagregador, para falar com Marcel Mauss
40
. Em lugar relações
das jocosas, o passo seguinte às provocações e às humilhações morais eram as
agressões físicas, com a suspensão ou a alteração das formas ordenadas de
competição que mimetizavam as regras derivadas da dinâmica disjuntiva do
39
Cf. PERISTIANY, J. G.; PITT-RIVERS, J. (Orgs.) Honor y gracia. Madrid: Alianza, 1993. Cf.
também. MOREIRA, M. V. “Trofeos de guerra y hombres de honor”. In: ALABARCES, P.
(Org.). Hinchadas. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005. Cf. ainda VOGEL, A. “O momento
feliz, reflexões sobre o futebol e o ethos nacional”. In: DAMATTA, R. (Org.). Universo do
futebol. Rio de Janeiro: Pinakoteke, 1982, p. 93.
40
Cf. RADCLIFFE-BROWN, A. R. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis:
Vozes, 1973.
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35
jogo, tal qual apontada por Claude Lévi-Strauss em O pensamento selvagem:
enquanto nos ritos dos povos primitivos os grupos em disputa se diferenciavam
para depois se igualar, os concorrentes modernos partiam de uma condição de
igualdade para terminar a contenda ritual em uma situação desigual.
Afora as contribuições antropológicas, um trabalho sem tradição
canônica, pouco conhecido no meio, explicitaria o potencial criativo possível
na interpretação das torcidas como objeto de estudo. Originário da área de
administração, André Lucirton Costa, em A organização cordial: ensaio de
cultural organizacional do Grêmio Gaviões da Fiel
41
, retomaria algumas
características históricas desta torcida paradigmática para vê-la sob a égide da
construção de um modelo brasileiro de gestão. Com o intuito de fiscalizar o
Corinthians, os fundadores deste grêmio eram membros alijados do processo
político de participação, em uma fase de transição, quando os elos comunitários
do clube se esgarçavam em meio à crescente burocratização administrativa. A
combinação entre a tendência à impessoalidade e a existência de uma direção
personalista evidenciava não só as circunstâncias críticas atravessadas pelo
clube, mas os impasses da transformação do futebol profissional no país como
um todo. Os dilemas aproximavam o domínio futebolístico da discussão acerca
do caráter contraditório da formação social brasileira, com as incongruências e
os arranjos instáveis entre uma sociedade de fundo patriarcal e as demandas do
capitalismo moderno.
Tal instabilidade estaria para o autor no cerne do homem cordial
proposto por Sérgio Buarque de Holanda na década de 1930 para definir a
personalidade típica do brasileiro, com a anteposição da emoção à razão, do
costume à lei, das reações impulsivas às ações calculadas. André Lucirton
Costa recoloca a importância dos afetos e das emoções assinalada pelo ensaísta
para mostrar como o futebol permitiu a criação de novas formas de identidade
coletiva no ambiente urbano, em substituição à perda de vínculos e referenciais
no seio das pequenas comunidades de origem rural. As torcidas organizadas
seriam uma contrapartida ao avanço da sociedade urbano-industrial e à
profissionalização do futebol, no momento em que os componentes afetivos
pareciam ser engolfados pela sobrevalorização dos interesses utilitários e
41
Cf. COSTA, A. L. op cit.
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36
pecuniários
42
. Ao fazer da passionalidade a força motriz de sua existência,
assentada em lemas altruísticos como “lealdade, humildade e procedimento”
43
,
os Gaviões da Fiel procurariam reaver princípios organizativos não mais
propícios na vida social no interior do clube. Ao contrário de outras analogias
já apontadas, o autor ressalta que o núcleo original dessas organizações
cordiais, regidas pela participação voluntária e pelo élan emotivo, encontraria
parâmetro em associações como as pequenas e médias empresas familiares no
Brasil.
A análise de André Lucirton Costa sobre a experiência de uma
agremiação brasileira dava contornos e colorações nacionais a um debate cujo
eixo na Europa girava em torno da categoria despossessão. Conforme a
expressão do sociólogo francês Patrick Mignon, a modernização dos clubes –
expressa através dos patrocínios da televisão, das transações milionárias de
jogadores, dos contratos internacionais e do aparecimento de novos agentes
intermediários – implicava na apartação dos torcedores, com a diluição do
caráter local do futebol e com a perda da influência direta da torcida sobre as
decisões clubísticas. O traço forte da identidade do torcedor organizado seria,
pois, a assimilação de uma postura reativa, de uma posição refratária às
mudanças, de uma resistência deliberada às transformações em curso no
universo esportivo moderno, com a inclusão da violência e do culto à força
física nesse horizonte de descontentamentos. Uma versão banalizadora e
anedótica desta teoria encontra-se no livro do jornalista norte-americano
Franklin Foer, onde se salienta o perfil de um ex-líder hooligan do Chelsea e
sua posição contrária à reformulação do clube nos anos de 1990, quando o
futebol inglês adquire um caráter empresarial, assentado em patrocínios de
companhias multinacionais.
44
.
O segundo ensaio pouco comentado, de restrito teor exploratório, parte
de uma via interpretativa centrada na psicanálise. Em A psicologia da torcida
42
O pensador alemão Georg Simmel analisou as intrincadas e extensas relações entre os valores
monetários e os valores afetivos, bem como a transformação dos meios em fins, com a invasão
progressiva do dinheiro na vida moderna. Cf. SIMMEL, G. Philosophie de l’argent. Paris:
Presses Universitaires de France, 1987. Cf. também WAIZBORT, L. As aventuras de Georg
Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.
43
Cf. COSTA, A. L. op cit, p. 52.
44
Cf. FOER, F. “O hooligan sentimental”. In: Como o futebol explica o mundo: um olhar
inesperado sobre a globalização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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37
45
, Jacques Akerman põe em relevo os apontamentos de Freud acerca da análise
do ego na identidade de grupo para compreender o funcionamento das massas e
o movimento da multidão, tendo por base exemplos de instituições como o
Exército e a Igreja. Como se sabe, a teoria freudiana tinha como premissa a
idéia de que o ser humano agia segundo processos psíquicos inconscientes, cuja
chave decifradora se encontraria em manifestações, em sintomas e em impulsos
patológicos de origem sexual. Dentre estes processos, um dos que constituía
ameaça à vida coletiva e à civilização dizia respeito ao escoamento pulsional da
agressividade. Segundo Freud, a satisfação da pulsão agressiva tornava mais
fácil a coesão entre membros de uma comunidade, uma vez que tal
identificação não se fazia sem a exclusão do outro e sem a hostilidade ao
diferente. A noção de “narcisismo das pequenas diferenças”
46
, presente em O
mal estar na civilização, era utilizada a fim de mostrar como a imagem e a
potência aglutinadora de uma comunidade dependiam das rixas e das
ridicularizações do rival antagônico, característica adequada à dinâmica de
unificação e contraposição entre as torcidas.
A formação do grupo no pensamento freudiano pode ser inferida da
estrutura do indivíduo, em que os mecanismos de identificação expressam a
mais remota ligação emocional com outra pessoa. Um grupo se viabiliza e se
constitui no momento em que um objeto, uma unidade de identificação, se
coloca no lugar do ideal de ego. As torcidas fariam assim convergir para um
ideal coletivo de grupo, em que o clube constitui seu principal objeto, vários
ideais de ego individuais. O autor sublinha ainda que as proposições de Freud
eram motivadas pela leitura da obra de Gustave Le Bon, escritor francês do
século XIX preocupado com a passagem degenerescente de um comportamento
individual racional para um comportamento coletivo irracional. Para este
último, a alma coletiva seria aquela em que os indivíduos subtraem seus
interesses pessoais conscientes em beneficio dos interesses coletivos
inconscientes. Ao abdicar do uso da razão, a multidão era colocada pelo
45
Cf. AKERMAN, J. op. cit.
46
De acordo com as palavras de Freud: “Em outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são
precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também sob
outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os
espanhóis e os portugueses por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os
escoceses e assim por diante”. Cf. Ibidem, p. 94. Cf. também FREUD, S. O mal-estar na
civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 71.
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oitocentista fin-de-sièle Le Bon no mesmo patamar de inferioridade das
crianças, das mulheres e dos selvagens. Comandado por um líder de prestígio,
sob o contágio de estados emocionais intensos e envolventes, que podem
lembrar processos transitórios típicos da hipnose, por exemplo, o ser humano
pauta sua ação em grupo de modo distinto dos procedimentos habituais do
indivíduo no cotidiano, outro ponto verificável em casos extremos de embates
entre algumas torcidas organizadas de futebol
47
.
Salvo esses trabalhos pouco citados, sem maiores repercussões na fortuna
crítica do tema, a produção acadêmica brasileira voltou-se para a absorção – às
vezes crítica e reflexiva, às vezes automática e passiva – de teorias formuladas
e reconhecidas em âmbito internacional acerca das torcidas organizadas. A
assimilação seguiria duas vertentes majoritárias: uma oriunda da Sociologia, a
outra da Comunicação.
A primeira delas compreendia a aplicação teórica do processo civilizador
de Norbert Elias, elaborada nos anos de 1930, em pesquisas posteriores
coordenadas pelo sociólogo alemão na Escola de Leicester sobre a gênese
social dos esportes modernos na Inglaterra. Estes não seriam passatempos
desinteressados de feição universal, mas parte de um lento movimento histórico
de pacificação daquela sociedade operada entre os séculos XVII e XIX. Com a
Revolução Gloriosa de Oliver Cromwell, as instituições parlamentares inglesas
eram consolidadas e atenuavam a luta fratricida entre as linhagens políticas
rivais. De modo correlato, a codificação dos esportes de acordo com leis e
limites preestabelecidos formava uma cadeia de interdependência com a
sociedade.
A homologia de regras na política e nos esportes condicionava a
estabilidade entre os grupos oponentes, com a substituição da violência física –
monopolizada de modo gradual pelo Estado – em favor da violência simbólica,
a simular o combate e a sublimar a guerra. O jogo esportivo passava a ser um
ritual de liberação controlada das emoções, onde seus praticantes deviam
atingir seus objetivos mediante o exercício cada vez mais aprimorado do
autocontrole individual. Já os espectadores eram atraídos pela busca da
47
Uma introdução sumária ao pensamento psicanalítico freudiano sobre a vida em sociedade,
notadamente sobre os conceitos de cultura e civilização, foi feita no Brasil por Betty Fuks. Cf.
FUKS, B. B. Freud & a cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
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39
excitação e pela tensão agradável engendrada por uma partida, em moldes
semelhantes aos apelos catárticos da tragédia grega descrita por Aristóteles.
O recrudescimento do hooliganismo no futebol durante a segunda metade
do século XX representou um desafio e pôs à prova a teoria do sociólogo
alemão na esfera esportiva. A manifestação de atos destrutivos e beligerantes
nos estádios ia de encontro ao sentido evolutivo de contenção processual da
força física e de aperfeiçoamento da autodisciplina requerida aos indivíduos na
vida civilizada. Se Norbert Elias havia encetado as linhas mestras de sua
sociologia do esporte nas décadas de 1950 e 1960, quando o problema
começava apenas a se insinuar, seriam seus epígonos Eric Dunning, John
Williams e Patrick Murphy
48
que se debruçariam sobre a aparente contradição
entre os princípios civilizadores do esporte e as práticas antiesportivas de
parcelas minoritárias radicais das torcidas britânicas. As considerações iniciais
ponderavam a não linearidade do sentido tomado pelo curso da civilização, ele
mesmo sujeito a momentos de descivilização, em que os mecanismos de
controle sobre extratos diferenciados da sociedade revelam a sua ineficácia
diretiva ou a sua incidência desigual.
Outra ponderação sustentava o hooliganismo como um fenômeno social
que expressava tensões externas ao esporte, só de relance imanentes a ele, com
a utilização do futebol para tornar-se visível socialmente na cena pública. O
diagnóstico dos autores, baseado em levantamento histórico, em revisão da
literatura e em observações pessoais, detectava o núcleo duro dos hooligans
como frações juvenis saídas das camadas mais desprovidas da classe
trabalhadora inglesa. A repetição do esquema divisório entre estabelecidos e
outsiders fazia-se notar em tais segmentos excluídos que cultuavam um estilo
agressivo e rude, onde o protótipo da macheza e da virilidade impunha-se tanto
nas brigas quanto nos cânticos ofensivos, por vezes xenófobos e racistas, a
denegrir o rival. O prazer da assistência a uma partida era deslocado com a
canalização de energias nas estratégias excitantes de burlar o policiamento nas
redondezas do estádio e de afrontar os adversários, jovens em geral
provenientes da mesma classe social.
48
Cf. DUNNING, E.; WILLIAMS, J.; MURPHY, P. “La violence des spectateurs lors des matchs
de football: vers une explication sociologique”. In: ELIAS, N.; DUNNING, E. (Orgs.). Sport et
civilisation: la violence maîtrisée. Avant-propos de Roger Chartier. Paris: Fayard, 1994.
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40
Já a vertente amparada nas teorias da comunicação via a emergência das
torcidas organizadas na sociedade contemporânea como uma variante do estado
de indefinição e da perda de referências sintomática da pós-modernidade. Seu
ponto de partida eram as impressões e as sensações de mudança teorizadas por
uma gama de autores europeus e norte-americanos, a partir da cunhagem do
discutível termo por Jean-François Lyotard no final dos anos 60
49
. Entre o
individualismo da modernidade e o anonimato da cultura de massas, a condição
pós-moderna testemunhada na segunda metade do século XX movia-se no caos
da fragmentação em que se estiolavam utopias políticas coletivas e projetos
racionalistas de ordenamento urbano-industrial. Com a configuração de uma
sociedade do espetáculo, o mundo se integrava através da televisão e das redes
eletrônicas de computação, com o comprometimento da própria acepção de
real e de realidade. As concepções de tempo e de espaço eram alteradas em
prol de uma intensificação e de uma aceleração do universo virtual, onde o
presente instantâneo impera sobre o passado e o futuro, ao passo que o local e o
global articulam-se por meio da diluição das fronteiras nacionais e da crise do
Estado-nação.
Tal conjunto de transformações afetava também a composição do núcleo
familiar, com a alteração dos papéis paternos e maternos e das noções de
masculinidade e de feminilidade. A idéia de juventude era atingida de igual
modo em uma sociedade de consumo paradoxalmente permeada pela opacidade
das mensagens imagéticas. A tendência do jovem foi a de se identificar com
comunidades que se colocavam à margem de instituições tradicionais como a
escola e a família. Da imagem romântico-marginal forjada pelo cinema nos
anos 50, passando pela rebeldia estudantil politizada dos anos 60 e pela
alternativa sensório-existencial dos anos 70, as décadas de 80 e 90 assistiram à
cunhagem da metáfora das “tribos urbanas” para contemplar subgrupos juvenis
periféricos denominados punks, skinheads, darks, funkeiros, entre inúmeros
outros. A identidade grupal buscou na música, na linguagem e em slogans de
vida, expressos em marcas visuais e epidérmicas, traços comuns de coesão e
49
Cf. HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
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41
sentido, a oscilar entre a recusa e a adesão aos valores dos meios de
comunicação de massa e da sociedade mais ampla
50
.
As mutações por que passava a sociedade também se manifestaram no
futebol. O comportamento das torcidas organizadas poderia ser inscrito por
autores como o escritor francês Michel Maffesoli nesse quadro contemporâneo
que procura restaurar dimensões da sensibilidade coletiva entre os jovens
através de uma revalorização do gregário, do instantâneo e do corpóreo. As
torcidas organizadas reviveriam a efervescência de ações rituais ancestrais com
características performáticas diversas da atuação do torcedor considerado como
indivíduo isolado ou massa indivisa. De modo paradoxal, a entrada da televisão
nas transmissões de futebol acentuaria o culto à auto-imagem, com a
consciência de uma performance em que o desejo de reconhecimento, de
prestígio e de visibilidade chega à escala do espetacular. Mesmo a exibição da
violência encerraria uma ambivalência pós-moderna, pois revelaria o fascínio
exarado entre tais indivíduos pelo simulacro e pelas tragédias humanas
transportadas para a tela, como sustentava o niilista francês Jean Baudrillard ao
tecer ilações entre futebol, terrorismo e mídia na tragédia de Heysel
51
. A
necessidade de aparecimento nos mass media, seja por meio de manifestações
festivas seja por meio de situações extremas, em que a guerra, o terror e o
horror também adquirem virtualidade, coaduna-se com uma época de
sobreposição da aparência à realidade, da estética à ética, dos fins aos meios.
*
A recapitulação histórica do fenômeno e a sucinta retrospectiva
bibliográfica acima traçada são um preâmbulo, um quadro de referências
preliminar, para a proposta a ser desenvolvida na tese que ora se apresenta. A
existência de uma razoável produção acadêmica acerca da temática no país
50
É válido consultar o ensaio do filósofo Emmanuel Carneiro Leão a respeito das oscilações da
condição juvenil na sociedade de consumo. Cf. LEÃO, E. C. “Juventude e tóxico”. In:
Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 1991, vol 1.
51
Cf. BAUDRILLARD, J. “Mirroir du terrorisme”. In: La transparence du mal: essais sur les
phénomènes extrèmes. Paris: Galilée, 1990. O estudioso francês Philippe Broussard também
corrobora tal visão: “Muito além dos limites do esporte, a atual violência dos hooligans é
reveladora da evolução de uma parte da juventude européia, voltada para um mundo onde estão
presentes, o tempo todo, tanto a violência quanto a imagem. Nos grandes estádios, freqüentemente,
estes jovens encaram suas ações como um prazer ritualizado, uma aventura renovada semana a
semana. Para esta geração, do vídeo game e da multimídia, a violência encontra-se tão banalizada,
que aparece como um produto de fast food, logo consumida, logo esquecida...”. Apud.
AGOSTINO, G. op. cit., p. 233.
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42
dispensa o tradicional costume de lamentar a condição de minoridade, de
marginalidade e de menosprezo a que até pouco tempo atrás era relegado o
futebol nos círculos universitários. Não obstante, no domínio estrito da História
Social da Cultura, é forçoso reconhecer, sem cantilenas, a escassez de pesquisas
sobre esportes, de uma maneira geral, e a inexistência de trabalhos sobre
torcidas organizadas, em particular. Ela possui uma dupla implicação: de um
lado, a aceitação tácita das cronologias dos fatos esportivos tais como
estipuladas e demarcadas pelos jornalistas da área, o que veio a arraigar no
senso comum uma concepção unívoca de história e de temporalidade histórica;
de outro, a posição caudatária perante as explicações macro-teóricas já
determinadas pelas Ciências Sociais, que ao longo do século XX assumiram
uma posição de vanguarda na assunção de temas pouco reconhecidos em
âmbito institucional-científico e na generalização de suas teorias sociais.
Em relação ao jornalismo, seria o caso de mencionar três exemplos: em
1951, Thomas Mazzoni, principal cronista esportivo de A Gazeta Esportiva,
que assinava com o pseudônimo de Olimpicus, publicava o livro História do
futebol brasileiro (18940-1950); em 1969, João Máximo, editor de esportes do
Jornal do Brasil, era responsável pela redação de quatro volumes de uma
História ilustrada do futebol brasileiro; em 1980, Roberto Assaf e Clóvis
Martins lançavam o livro Campeonato carioca: 96 anos de história.
Quanto à relação entre história e ciências sociais, é possível dizer que se
tratava de questão antiga também. A concepção que acentua o historiador
como um mero fornecedor de fatos, de exemplos e de ilustrações para a grade
de referência teórica da antropologia e da sociologia pode ser remetida à obra
de Lévi-Strauss e à sua formação filosófica. Desde pelo menos Raça e história,
escrita para a Unesco no contexto subseqüente à Segunda Guerra Mundial,
quando o autor estava empenhado na crítica à idéia de linearidade e de
progresso, desenvolvia-se a visão de que a história era uma disciplina
condenada à monografia e à ideografia
52
. Como resposta, buscava-se uma
distinção de ordem metodológica: enquanto os historiadores partiam dos fatos
para construir sua narrativa, os sociólogos tinham como ponto de partida os
conceitos elaborados de antemão. Ainda assim, era forçosa a admissão de que a
52
LÉVI-STRAUSS, C. Raça e história. Lisboa: Editorial Presença; São Paulo: Livraria Martins
Fontes, 1975.
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43
historiografia do século XX havia sido condicionada pelo diálogo teórico com
as Ciências Sociais, como atestavam os Annales e sua matriz durkeimiana
53
.
Dentre as exceções no Brasil, a tese de doutorado de Leonardo Affonso
de Miranda Pereira, defendida no departamento de História Social da
UNICAMP sob orientação de Maria Clementina Pereira Cunha e publicada em
forma de livro sob o título de Footballmania: uma história social do futebol no
Rio de Janeiro (1902-1938)
54
, despontaria no terreno da historiografia
brasileira na exata proporção em que conseguiria suprir essas duas carências
assinaladas, quer no tocante ao jornalismo esportivo, quer no tocante à
antropologia e à sociologia. A densidade da obra, alicerçada em volumosas
fontes, permitiu retraçar o período histórico de implantação e de difusão do
futebol na então capital da República, da belle-époque à Era Vargas, sob o
prisma de atores sociais distintos dos que até então eram privilegiados.
Amparado em fontes jornalísticas, Leonardo Affonso de Miranda Pereira
propunha uma leitura histórica com lentes diversas das empregadas pelos
cronistas esportivos e pelos sócios dos grandes clubes da cidade, notadamente
pelos relatos contidos na memorialística da obra clássica devotada ao assunto,
O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho. O papel deste jornalista
afigurou-se central, tanto na promoção do jogo levada a termo entre as décadas
de 1930 e 1960, quanto na capacidade de cristalizar em livros sua versão do
curso histórico do futebol no Brasil.
Com o tempo, tais registros tornaram-se fonte quase exclusiva de
referência ao tópico e mesmo cientistas sociais foram questionados por recorrer
ao livro de forma por vezes pouco crítica. Este questionamento foi lançado no
final dos anos 90 na tese de doutorado de Antônio Jorge Soares, do
departamento Educação Física da Universidade Gama Filho, sob a orientação
do antropólogo argentino Hugo Lovisolo, onde é posto em xeque o paradigma
narrativo de Mário Filho e suas ambivalências no âmbito da literatura e da
história, do fato e da ficção, do mito e da ciência. A crítica não chegava a ser
53
Cf. DOSSE, F. Histoire du structuralisme. Paris: Éditions de la Découverte, 1991, p. 221. Cf.
também HARTOG, F. “Le regard éloigné: Lévi-Strauss et l’histoire”. In: Évidence de l’histoire:
ce que voient les historiens. Paris: Éditions de L’École des Hautes Études en Sciences Sociales,
2005. Cf. ainda REVEL, J. “História e ciências sociais: uma confrontação instável”. In:
BOUTIER, J.; JULIA, D. (Orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; Editora FGV, 1998.
54
Cf. PEREIRA, L. A. de M. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro
(1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
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original, uma vez que a problemática seguia o debate semelhante a respeito da
narração desencadeado na teoria historiográfica a partir dos anos de 1970,
quando levantaria também inúmeras discussões.
Antes mesmo de a teoria literária norte-americana, liderada por Hayden
White e Dominick LaCapra
55
, explicitar a forma narrativa literária subjacente a
todo discurso da história, o historiador inglês Laurence Stone, estimulado
talvez pelo desejo de superar a voga estruturalista, seria responsável por
vulgarizar o debate com a publicação de um controvertido ensaio intitulado “O
retorno da narrativa”, na tradicional revista Past and Present. Nele, o autor
defende a idéia de uma reconciliação da disciplina com suas mais remotas
origens e reivindica uma volta à suposta simplicidade herodotiana na “arte de
contar histórias”, quando ver e ouvir, quando mythos e logos não se
encontravam ainda de todo dissociados
56
. Escusado dizer que o autor seria logo
alvo de uma saraivada de críticas, reparos e retruques, dentre os quais uma
resposta de Eric Hobsbawm no mesmo periódico. Guardadas as devidas
proporções, a polêmica sobre o que Soares chama de “novos narradores
acadêmicos”, seguidores do viés de Mário Filho na abordagem do futebol,
acendeu um análogo debate no meio intelectual brasileiro com direito a réplicas
e tréplicas na revista Estudos Históricos, da Fundação Getúlio Vargas do Rio
de Janeiro
57
.
Com base na rememoração e em entrevistas feitas com atletas dos
primórdios do futebol brasileiro, Mário Filho narrava como uma prática
originalmente de elite seria apropriada pelas camadas populares em uma série
de etapas que culminariam, ao fim e ao cabo, na ascensão social do negro no
esporte, espécie de paráfrase da sua emancipação na própria sociedade. Ao
compartilhar uma imagem harmônica e coesa de cultura com Gilberto Freyre,
55
Cf. KRAMER, L. S. “Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio literário de Hayden
White e Dominick LaCapra”. In: HUNT, L. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
56
Cf. HARTOG, F. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 33 e 34.
57
Cf. SOARES, A. J. Futebol, raça e nacionalidade no Brasil: releitura da história oficial. Rio
de Janeiro: Tese de Doutorado em Educação Física / Universidade Gama Filho, 1998. Cf. também
HELAL, R.; GORDON JR., C. “Sociologia, história e romance na construção da identidade
nacional”. In: HELAL, R.; SOARES, A. J.; LOVISOLO, Hugo. A invenção do país do futebol:
mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. Cf. ainda MURAD, M. “Considerações
possíveis de uma resposta necessária”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1999, n.º 24.
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45
autor do prefácio ao livro, Mário Filho sustentava uma visão triunfante do
negro e um sentido redentor para a história. Sem negar a validade de muitos
pontos da periodização estabelecida pelo jornalista, Leonardo Affonso de
Miranda Pereira procuraria demonstrar a polissemia do jogo e as diversas
possibilidades de percepção da sua apropriação entre outros segmentos da
população carioca. Os pontos de vista dos trabalhadores e dos operários eram
assim considerados no intuito de mostrar como diferentes práticas e tradições
populares impregnaram o futebol de significados distintos daqueles
preconizados pelo projeto oficial letrado, fator que gerou embates e disputas em
torno do mesmo. Em sintonia com a perspectiva da escola marxista inglesa das
décadas de 1950, 1960 e 1970, tendo à frente Christopher Hill, E. P. Thompson
e Eric Hobsbawm, Leonardo Affonso de Miranda Pereira frisa a condição ativa
da cultura operária dos trabalhadores da bola, partícipes ativos e não apenas
tábula rasa do processo que transformou o futebol em instrumento galvanizador
do sentimento nacional na primeira metade do século XX.
Ao salientar o conceito de cultura utilizado por esse autor brasileiro e por
essa corrente historiográfica internacional, que privilegia os aspectos culturais
conflitantes ante os conciliadores, os contrastivos ante os consensuais, os
fragmentários ante os holísticos
58
, o presente trabalho procura deslocar o foco
de pesquisa dos campos de futebol para as arquibancadas dos estádios. O
enfoque transita das práticas e representações dos protagonistas do jogo para a
dos seus assistentes, mormente para aqueles que se dedicaram a torcer em
grupo, de forma coletiva e associada, destacada dos demais, na contemplação
do espetáculo esportivo, tal qual constituído no decurso do século passado.
Homóloga à polêmica a respeito das origens sociais, raciais e profissionais dos
atletas, bem como aos benefícios morais e pedagógicos do futebol para a
formação do caráter do indivíduo na modernidade, a discussão relativa ao tipo
de freqüência e de conduta esperada pelos que assistiam aos jogos foi uma
questão presente desde a introdução do futebol no país. Em outras palavras,
tratou-se de perceber quais padrões de comportamento eram aceitáveis e quais
58
Dos expoentes da Nova Esquerda inglesa, no que se refere aos estudos culturais, é válida a
citação Richard Hoggart e Raymond Williams, este último responsável por sistematizar com mais
profundidade a concepção de cultura partilhada por aqueles autores marxistas. Cf. WILLIAMS, R.
Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. Cf. também THOMPSON, E. P. Costumes em
comum: estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 22.
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tipos de composição social eram preponderantes entre os membros da
sociedade que acorriam aos estádios de futebol.
Tais padrões e tipos variaram em conformidade com a dimensão e com o
estágio de desenvolvimento assumido por esse esporte em suas diversas fases.
A conotação aristocrata e burguesa do público esportivo no limiar do século
XX, quando o futebol surgiu como um evento de distinção da alta sociedade em
termos de linguagem, de vestimenta e de elegância, perdeu força porquanto o
afluxo de torcedores se massificou e porquanto o futebol se profissionalizou,
com a construção de estruturas físicas de maior envergadura para a recepção e
para a incorporação de contingentes com os mais diversos perfis econômicos e
sociais. O ato de torcer esteve vinculado às configurações do ato de jogar e
também se tornou passível de apropriação por parte de setores populares, que
tanto se adensaram no entorno dos campos quanto ingressaram nos gramados
dos grandes clubes de futebol.
Assim sendo, eis as questões gerais norteadoras da presente tese: até que
ponto o papel do torcedor, partícipe do futebol de espetáculo, delimitado
inicialmente pelo projeto jornalístico-letrado, emerge de um interação direta
com os meios de comunicação especializados ? Em que medida, ao se conjugar
com a imprensa esportiva, ele entroniza as suas mensagens passivamente ou,
por outra, as repele, as subverte e as reinterpreta ao seu próprio modo, ao
contrário do sentido que lhe havia sido prescrito em princípio ? Sob o ponto de
vista identitário, de que maneira determinadas formas coletivas de ver e de
sentir uma partida foram construídas historicamente, tradicionalmente, de
geração a geração, com parâmetros análogos à constituição da identidade de
classe proposta por E. P. Thompson no prefácio ao seu livro clássico de 1963
sobre a experiência histórica dos trabalhadores ingleses
59
? De que modo uma
heterogeneidade de indivíduos, egressos das mais diversas extrações sociais,
deu origem à formação de um determinando público futebolístico, sob a
designação geral de torcida ? Que processo levou a que essa mesma torcida se
desmembrasse e se seccionasse em grupos internos concorrentes denominados
torcidas organizadas ? Como estas torcidas imprimiram suas marcas sociais no
59
Cf. THOMPSON, E. P. A formação da classe trabalhadora na Inglaterra. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, vol. 1, p. 09.
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universo do futebol ? De que forma se plasmou uma cultura material e
simbólica no acompanhamento de campeonatos profissionais ?
Essas indagações preliminares permaneceriam suspensas em um plano
genérico se não fossem reportadas a um espaço e a um tempo específico. A
posição até certo ponto subordinada da História no interior das Ciências Sociais
não nos fez abrir mão da necessidade de adoção de uma perspectiva
interdisciplinar que dialogue com a tradição de estudos já consolidada acerca
do tópico, nem tampouco nos fez prescindir das fontes jornalísticas e dos
instrumentais sócio-antropológicos que ajudam a compreender a própria
construção do objeto. Sob o estímulo de trabalhos como os de André Lucirton
Costa, em que aspectos da discussão acerca do pensamento social brasileiro são
requeridos para pensar certas manifestações do universo esportivo, o interesse
aqui se volta para o processo de surgimento e de formação das torcidas
organizadas no Rio de Janeiro, em um arco temporal que se estende entre as
décadas de 1930 e de 1980.
Amparado ainda nos trabalhos dissertativos do antropólogo paulista Luiz
Henrique de Toledo
60
, que forneceu um arrojado instrumental analítico, da
socióloga Elisabeth Murilho da Silva
61
, que analisou de modo sistemático a
evolução da representação das torcidas na imprensa paulista, e ainda da
antropóloga Rosana da Câmara Teixeira
62
, que circunscreveu as torcidas jovens
cariocas como uma unidade identitária e um campo de estudo, procuro
entender como tais agrupamentos adquiriram corpo, forma e identidade própria
no futebol profissional do Rio de Janeiro mediante um discurso dialógico com
os meios de comunicação, que urdiram os valores do amadorismo e do
pertencimento clubístico, a fim de dar respaldo e reconhecimento à torcida no
cenário futebolístico. Ao ethos amadorista, supostamente definido como
intrínseco ao torcedor, agregaram-se conotações diversas culturais, sociais e
até políticas , que ora se entrosam ora se abalroam com os princípios
esportivos e com os interesses econômico-financeiros que movimentam o
futebol contemporâneo.
60
Cf. TOLEDO, L. H. de. Torcidas organizadas de futebol. São Paulo: ANPOCS / Autores
Associados, 1996.
61
Cf. SILVA, E. M. da As torcidas organizadas de futebol: violência e espetáculo nos estádios.
São Paulo: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais / PUC, 1996.
62
Cf. TEIXEIRA, R. da C. Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas. Prefácio de
Rosilene Alvim. São Paulo: Annablume, 2004.
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48
A construção de uma retórica da paixão
63
passa pela conversão de
afetos, qualidades e virtudes em lemas, cânticos, insígnias, entre outras formas
de apelos coletivos, simbólicos e passionais. Tal retórica, construída em
confluência com a linguagem midiática esportiva, legitima a ação desses
grupos, confere-lhes singularidade e os diferenciam dos demais integrantes do
meio, sejam os especialistas sejam os profissionais
64
. Em sua tese de
doutoramento, Lógicas no futebol, o antropólogo Luiz Henrique de Toledo
delimita três atores sociais em interação no cenário futebolístico: os
profissionais, os especialistas e os torcedores. No presente, adota-se essa
delimitação, sendo que as torcidas organizadas constituiriam um subgrupo do
terceiro elemento.
As motivações para a pesquisa partiram ainda da necessidade e do desejo
de aprofundar aspectos relativos à emergência de tais associações, cujas
informações disponíveis são limitadas, restritas a considerações vagas ou
encerradas na memória coletiva dos componentes dos grupos. Malgrado a
exigüidade de dados, que contribui para cristalizar uma imagem pouco
fundamentada das torcidas organizadas, com a contraposição entre um passado
tido como idilicamente pacífico – uma idade de ouro, uma era de fair-play entre
as torcidas
65
– e um presente tido como exclusivamente violento e decadente,
acadêmicos oriundos das ciências sociais, como José Sérgio Leite Lopes, Luiz
Henrique de Toledo e Maurício Murad
66
, esquadrinharam um esquema com
duas fases históricas correspondentes, por sua vez, a dois modelos
consecutivos.
O primeiro se dá no início da década de 1940, quando despontam as
primeiras entidades de torcedores, de caráter lúdico e espontâneo, ainda tênues
em sua organização, conhecidas como Torcidas Uniformizadas, Torcidas
Organizadas ou Charangas, pequenas orquestras musicais animadoras das
partidas, que ocupavam as arquibancadas sob a orientação de um líder,
possuidor de vínculos estreitos com o clube e com os meios de comunicação. O
63
Cf. ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
64
Cf. TOLEDO, L. H. de. Lógicas no futebol. São Paulo: Huicitec; Fapesp, 2000.
65
Cf. ASSAF, R. “Viagem à era do fair-play”. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18 de
setembro de 2001.
66
Cf. LOPES, J. S. L. “Le Maracanã, coeur du Brésil”. In: Sociétés et représentations. Paris:
s.e., 1998, nº 7. Cf. também TOLEDO, L. H. de. No país do futebol. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2000, p. 63. Cf. ainda MURAD, M. “Futebol e violência no Brasil”. In: Revista Pesquisa de
Campo. Rio de Janeiro: UERJ / Departamento Cultural, 1996, n.º 3/4.
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segundo remonta à virada dos anos de 1960 para os anos de 1970, quando são
formados os embriões das torcidas organizadas propriamente ditas, tal como
conhecidas nos dias de hoje, com o advento das Torcidas Jovens, que cindiriam
a unidade interna das torcidas de cada time e instaurariam um ciclo de
dissidências frente ao tradicional modelo de organização anterior, dotando-a de
uma estrutura com maior complexidade e com maior autonomia face aos
clubes. Sob uma visão macroscópica, tratar-se-ia de identificar a passagem da
carnavalização para a juvenilização das torcidas organizadas.
Em um momento inicial, verifica-se a conformação de uma cultura de
massas no Rio de Janeiro nas décadas de 1930, 1940 e 1950 e a extensão de
seus efeitos na área dos desportos nacional. A massificação do futebol na
capital da República vai passar pela edificação de praças públicas esportivas de
grande porte e pela estruturação de um campo autônomo na área da
comunicação – jornal e rádio – que se incumbem da tarefa de constituir uma
assistência e um público ordeiro nos estádios. Estes setores vão fomentar o
surgimento das torcidas organizadas, por meio da promoção de concursos,
dentre os quais se destaca a Competição de Torcidas, instituída por Mário Filho
em 1936, cujos quesitos estético-musicais tentam não só dar cor como modelar
uma forma de conduta no espetáculo então almejado para o ascendente futebol
profissional.
Em um momento seguinte, são verificados os desdobramentos e os
impasses da instituição dessa cultura de massas esportiva nas décadas de 1960,
1970 e 1980. A amplitude e a ressonância logradas pelos esportes, com a
entrada da televisão na transmissão dos jogos e com a criação de uma rede
clubística nacional proporcionada pelo Campeonato Brasileiro, ensejam
mutações na ordem de grandeza dos clubes e nas formas de identificação de seu
público. Novas demandas de vinculação levam ao fracionamento das
organizações torcedoras, que gozavam então de um status de homogeneidade,
de exclusividade e de oficialidade perante os clubes. Fruto do crescimento e da
disputa pelo poder de influência nos clubes, as torcidas organizadas
desencadeiam fissuras nas formas de torcer, com a abolição do apoio
incondicional como único desígnio associativo. A contestação, o protesto e a
pressão figuram como novas formas de intervenção de grupos, que passam a
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apresentar de maneira progressiva um perfil juvenil majoritário em suas
fileiras.
Esse segundo ciclo é descrito por jornalistas e por pesquisadores como a
inflexão das torcidas uniformizadas às torcidas organizadas, diante da
passagem de gerações que vivenciam distintas acepções no ato de torcer. E é aí,
à luz deste momento crítico do final da década de 1960, quando irrompe uma
fragmentação em parcela considerável do tecido social, a repercutir também no
mundo dos esportes cada vez mais tributário da sociedade do espetáculo
67
, que
incide o desejo de aprofundamento de nosso trabalho. Em paralelo à discussão
em torno de modelos sincrônicos, pretende-se um acompanhamento diacrônico
e uma reconstituição mais pormenorizada do processo de formação dessa
identidade juvenil, as Torcidas Jovens, que ambicionam subverter a
dependência clubística e comunicativa forjada nos anos de 1940, atentando-se
tanto para os discursos de ruptura quanto para as permanências verificadas no
bojo de um movimento em contínuo intercâmbio com o contexto econômico,
político e cultural da época.
Faz-se referência pontual a quarto associações: a Torcida Jovem do
Flamengo, fundada em 06/12/1969, embora já existisse informalmente sob a
designação de Poder Jovem desde 1967; a Torcida Jovem do Botafogo, criada
em 09/09/1969, também já conhecida como Poder Jovem há pelo menos um
ano; a Força Jovem do Vasco, criada em 1969, mas fundada oficialmente em
12/02/1970; e a Torcida Young-Flu, criada em 12/12/1970, mas antecedida pela
efêmera Jovem Flu, de 1967. Através delas, o intento é ainda sinalizar para a
importância de uma maior matização nas demarcações esquemáticas
estabelecidas até aqui pelas pesquisas acadêmicas no que toca às torcidas
organizadas, com a descrição e a análise da maneira pela qual as
transformações foram percebidas por seus agentes em sua conjuntura.
A pesquisa empreendida no Arquivo Histórico do Jornal dos Sports,
periódico que durante cinco décadas ocupou um lugar de proeminência entre os
diários esportivos cariocas e que encontrou equivalente na capital paulistana
67
A discussão em torno da passagem da massificação à fragmentação e o debate em torno da
criação de uma sociedade do espetáculo articulada pelos mass media podem ser encontrados nas
obras de Michel Maffesoli e de Guy Debord, respectivamente. Cf. MAFFESOLI, M. O tempo
das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1987. Cf. também DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.
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51
com o jornal A Gazeta Esportiva, foi um dos fios condutores principais para a
formulação das questões que serão desenvolvidas no decorrer deste estudo.
Pivô da criação de concursos, sorteios e premiações no incentivo às torcidas
desde os anos 30, este jornal pautou-se sempre pelo destaque dado à figura do
torcedor, a quem cabia cativar não só como o seu potencial leitor mas também
como a sua eventual notícia, chegando a ocupar algumas vezes o primeiro
plano das manchetes. Tal como sugere o antropólogo José Sérgio Leite
Lopes
68
, a modernização do jornalismo esportivo nos moldes cunhados por
Mário Filho correlacionava a implantação do futebol profissional no Rio de
Janeiro à constituição de um público de massa que se tornasse, por extensão,
seu principal consumidor.
As torcidas organizadas cariocas também são o subproduto desse projeto
jornalístico que transfere para as arquibancadas a mesma lógica competitiva de
dentro do campo e os mesmos critérios de animação já presentes no desfile das
escolas de samba, concurso instituído pelo próprio Mário Filho no carnaval
carioca desde 1932. À semelhança dos jogadores de origem negra que
angariavam espaço nos grandes clubes, figuras anônimas eram elevadas à
condição de personagens populares cuja função, ser “embaixador” ou “chefe de
torcida”, por exemplo, conferia-lhes autoridade e tornava-os referência no
mundo esportivo. O espaço concedido às torcidas na preparação para os
grandes clássicos e para as partidas decisivas permite a percepção do papel
outorgado às lideranças torcedoras, convertidas também nessas ocasiões em
atores, mesmo que coadjuvantes, sob o patrocínio dos meios de comunicação.
A pesquisa pretende avançar nessa linha de raciocínio ao constatar que
tal cenário não vai se modificar com o falecimento e a saída de cena de Mário
Filho em fins dos anos de 1960. Com a passagem da propriedade do Jornal dos
Sports a seu filho, Mário Júlio Rodrigues, o periódico incrementaria ainda mais
tal estratégia de incentivar e de fomentar as torcidas organizadas, com o
aproveitamento da voga juvenil de contestação e de insurgência por que
passava o Rio de Janeiro, o Brasil e o mundo ocidental naquele momento. A
política editorial do jornal procurou alargar o leque do seu público consumidor,
em sua maioria constituído na faixa etária juvenil, com a associação do esporte
68
Cf. LOPES, J. S. L. “A vitória do futebol que incorporou a pelada”. In: Revista USP. São
Paulo: s.e., 1994, n.º 22.
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à juventude e desta, por sua vez, à educação, à arte e à cultura. A nova
concepção levaria à confecção de vários cadernos especiais que valorizavam o
vestibular e o movimento estudantil, então em grande efervescência. Dentre as
inovações editoriais, em setembro de 1967 apareceria no interior do JS o
suplemento O Sol – o jornal do Poder Jovem, espécie de oficina de
reportagens, formada por uma equipe que mesclava famosos jornalistas, artistas
gráficos, intelectuais e neófitos aspirantes na profissão.
Nessas circunstâncias, o jornal forneceria apoio e cobertura ao
aparecimento de movimentos como o Jovem-Flu, o Poder Jovem do Flamengo
e o Poder Jovem do Botafogo, estes dois últimos inclusive a se inspirar, ao que
tudo indica e conforme sugere o paradigma indiciário de Carlo Ginzsburg
69
, no
bordão juvenil repetido com insistência pelo diário esportivo naquele período,
“o jornal do Poder Jovem”. A suspeita leva à hipótese de que as Torcidas
Jovens nascem em estreita sintonia com aquele novo projeto jornalístico
esportivo, a incorporar em sua retórica comercial a invenção de um estilo e de
um modo de ser jovem, tal qual operado em escala internacional. Surgidos
inicialmente sob a denominação Poder Jovem, os grupos de torcedores do
Flamengo e do Botafogo alterariam logo a seguir o nome, com a designação
específica de Torcida Jovem. Já a torcida do Vasco da Gama adotaria a
nomenclatura Força Jovem, enquanto a torcida do Fluminense utilizaria a
designação juvenil em inglês, Young-Flu, como uma forma de diferenciar-se
tanto das suas oponentes quanto do movimento Jovem-Flu, que despontou no
clube em 1967, sob a liderança de atores, artistas e músicos tricolores, como
Hugo Carvana, Nelson Mota e Chico Buarque, entre outros
70
.
Tais torcidas emergem sob o signo da inconformidade, quer no que tange
à diretoria do clube quer no que tange aos veteranos chefes de torcida, com o
favorecimento também da dramatização de um conflito de gerações, então em
cena com as revoltas estudantis no Ocidente e no Leste Europeu, no plano
futebolístico. Entre os exemplos de maior impacto e notoriedade, encontram-se
o Maio de 68, a Primavera de Praga e as manifestações da sociedade civil
norte-americana contra a Guerra do Vietnã, iniciadas na Universidade de
69
Cf. GINSBURG, C. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, emblemas, sinais:
morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
70
Sobre este último movimento, ver o livro de memórias do jornalista Nelson Motta. Cf. MOTTA,
N. Noites tropicais. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000.
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53
Berkeley, Califórnia; no Brasil, destaque-se a Passeata dos Cem Mil ocorrida
no Rio de Janeiro, no segundo semestre de 1968
71
. Da mesma maneira que os
antropólogos valem-se de dramas e de processos rituais como momentos
extraordinários da vida coletiva para pôr em evidência a representação que uma
dada sociedade faz sobre si mesma, procurei deter-me em acontecimentos
históricos amplamente reportados pelo Jornal dos Sports acerca das torcidas
organizadas que extravasaram o cotidiano da crônica esportiva, invertendo o
papel tradicional de espectadores e convertendo-os em atores no centro das
atenções, com grande destaque no periódico.
Tais eventos dramático-jornalísticos, a ocupar as manchetes e a primeira
página do jornal, põem em suspenso o lugar usual das torcidas organizadas
como protagonistas de uma festa competitiva
72
, que aliam a ambiência
carnavalesca ao espírito esportivo. Seu enquadramento temporal, tal qual a
pesquisa revelou, estaria situado entre fins dos anos de 1960 e início dos anos
de 1980. Em 1968, como foi assinalado, assistir-se-ia à narração de inúmeros
protestos de torcedores contra o desempenho das equipes, colocando tais
grupos em posições de destaque no jornal, à medida que realizavam enterros
simbólicos das diretorias dos clubes, passeatas dentro e fora dos estádios,
pedidos de demissão de técnicos, apedrejamento de carros e entrevistas em
emissoras de televisão para explicar os motivos da revolta.
Já entre 1981 e 1984, o jornal cobriria uma inédita onda de greves
promovidas pela recém-criada Associação de Torcidas Organizadas do Rio de
Janeiro, com a reivindicação da diminuição do preço dos ingressos nas
arquibancadas. Os protestos abrangiam uma série de ações, que incluíam
piquetes nas bilheterias para convencer os torcedores a não assistir aos jogos;
freqüência apenas no setor menos oneroso do estádio, a Geral, onde faziam
protestos com passeatas, faixas e palavras de ordem; e reuniões com o
presidente da federação de futebol do estado, a FERJ, para o atendimento de
suas solicitações. A ASTORJ participaria ainda da promoção do Simpósio da
71
Cf. RIDENTI, M. “1968: rebeliões e utopias”. In: REIS FILHO, D. A.; FERREIRA, J.;
ZENHA, C. (Orgs.). O século XX – o tempo das dúvidas: do declínio das utopias às globalizações.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, vol. 3.
72
A expressão foi extraída do estudo de uma antropóloga a respeito do processo de produção
material e simbólica do carnaval pelas escolas de samba do Rio de Janeiro. Cf. CAVALCANTI,
M. L. V. de C. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Funarte; UFRJ,
1994.
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54
Paz em 1985 e do I Congresso de Torcidas Organizadas dos Grandes Clubes,
realizado em Porto Alegre em 1987, na esteira da criação do Clube dos 13 e da
Copa União. Contudo, a representação das torcidas organizadas nos meios de
comunicação tornar-se-ia doravante unidimensional, com a recorrência quase
exclusiva de notícias cuja dramaticidade remetia aos atos de vandalismo e à
pecha de entidades essencialmente antiesportivas.
Longe de ser apenas um veículo neutro no registro de tal tipo de
incidentes, o Jornal dos Sports era em parte responsável pela sua produção, ao
abrir espaço, emular e atuar em determinados momentos como porta-voz das
torcidas ou como mediador entre as entidades torcedoras e os representantes
das demais esferas de poder do futebol. Este trabalho procura, no plano
heurístico, reconhecer este periódico esportivo como ator social, vendo-o mais
do que fonte ou meio para colher informações. Trata-se sobretudo de vê-lo
como um objeto de investigação em si próprio, em consonância com uma linha
de pesquisa historiográfica de estudos sobre a imprensa inaugurada no Brasil
pelas historiadoras da USP, Maria Helena Capelato e Maria Lygia Prado
73
.
Com base nela, o papel ativo central e estratégico desempenhado pelos meios
de comunicação, e pelo jornalismo esportivo em específico, é reconhecido, com
a observação de sua influência na elaboração de uma imagem específica das
torcidas organizadas, porquanto ela repercute na forma como seus membros
internalizam e elaboram sua própria identidade. A reconstituição de uma
experiência histórica concreta permite a observação de como tal construção se
deu até o momento em que a violência passa a ser a tônica dominante acerca
das torcidas organizadas, colocando tais entidades na contracorrente dos
imperativos financeiros, comerciais e morais assumidos pelo futebol
74
.
À parte esses acontecimentos mais notáveis, estampado em manchetes
epigramáticas, o Jornal dos Sports também propiciava a constituição de uma
identidade torcedora em seu cotidiano, com a publicação diária de cartas de
adeptos dos principais clubes em sua seção Bate-Bola, também conhecida
73
Cf. CAPELATO, M. H.; PRADO, M. L. O bravo matutino: imprensa e ideologia no jornal O
Estado de São Paulo. Prefácio de Paulo Sérgio Pinheiro. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1980, p.
XIX.
74
Este último argumento foi desenvolvido por um sociólogo paulista. Cf. PIMENTA, C. A. M.
“As transformações na estrutura do futebol brasileiro: o fim das torcidas organizadas nos estádios
de futebol”. In: COSTA, Márcia Regina da. (et. al.). Futebol, espetáculo do século. São Paulo:
Musa Editora, 1999.
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55
como Diário do torcedor
75
. O recurso facultava a comunicação ordinária
através da criação de uma espécie de fórum de discussão entre os leitores-
torcedores. A divulgação e a promoção das atividades das torcidas organizadas
– caravanas, encontros, anúncios, vendas, comemorações, filiações – dar-se-
iam por intermédio desta coluna, equivalente à seção de opinião dos grandes
jornais não-especializados. Ali se constituiria uma tribuna livre de debates,
onde os torcedores trocavam idéias, comentavam os jogos, emitiam suas
impressões a respeito de técnicos, jogadores e dirigentes, além de irmanar-se,
rivalizar-se, congratular-se e ameaçar-se mutuamente. A leitura serial dessa
interlocução permitiu a captação do modo como a identidade das torcidas
organizadas foi sendo urdida diariamente entre as décadas de 1960, 1970 e
1980
76
e de como o torcedor organizado fez daquele jornal um espaço
privilegiado para a elaboração da crônica do grupo a que pertencia.
Uma outra fonte descoberta na pesquisa junto ao Jornal dos Sports diz
respeito ao acervo não-impresso existente em seu Arquivo Histórico, mais
precisamente, às pastas catalogadas sob a rubrica Torcidas, com o material
fotográfico publicado pelo jornal e, o que é mais instigante, com o material
não-publicado. Os vários maços de fotos que encontrei à parte, onde se
misturavam sem catalogação os selecionados e os não selecionados para a
publicação, revelam as torcidas organizadas em ação não só nas sedes, nas
arquibancadas e na concentração antes dos jogos, como também na redação do
referido jornal ao longo da semana ou na véspera dos clássicos. Ao farejar a
preciosidade do material, o que proporcionou de imediato a sensação de um
achado à Ginzburg, não sem um quê detetivesco em meio às pilhas de fotos que
se multiplicavam sobre a mesa de pesquisa, foi possível perceber como aquelas
imagens deixavam entrever a maneira pela qual eram estabelecidas as relações
de torcedores com jornalistas esportivos, sendo estes últimos os mesmos
responsáveis pelas matérias a respeito das atividades das torcidas.
O grau de camaradagem compartilhado naqueles bastidores pelos
representantes de torcida de clubes rivais era evidente, na participação em
eventos festivos como a entrega de troféus, a promoção de debates e a
75
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 09 de junho de 1971, p. 08.
76
Foi feito um levantamento serial diário dessa coluna tal como veiculada entre janeiro de 1967 e
dezembro de 1984, além de leituras não sistemáticas de períodos que antecedem e sucedem estas
datas.
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comemoração de aniversários. A localização de tais pastas contrabalançou o
malogro dos contatos e das incursões que empreendi a algumas sedes de
torcidas organizadas do Rio de Janeiro, como as realizadas no Grêmio
Recreativo Movimento Cultural Raça Rubro-Negra e no G. R. C. Torcida
Jovem do Flamengo. Nelas, embora se encontrem materiais dispersos como
revistas, jornais, cartas, fitas de vídeo e cadernos de fotos, a inexistência de
fontes documentais mais substantivas e a suspeição com que são vistos
indivíduos estranhos aos grupos dificultaram a realização de uma pesquisa
serial e sistemática em seu interior. Assim, a título de exemplificação e de
ilustração, imagens publicadas e não-publicadas pelo Jornal dos Sports vêm
anexadas ao final da tese.
Além de apontar as conexões diretas entre jornalismo esportivo e torcidas
organizadas, outro objetivo central da pesquisa dirigiu-se à figura do torcedor e,
em particular, à figura do chefe de torcida. A tentativa de compreensão
morfológica do funcionamento das torcidas levou-me a dedicar especial
atenção à análise do papel desempenhado pelas suas lideranças. Em
consonância com a perspectiva de Georg Simmel
77
, segundo a qual a
constituição e o crescimento de todo e qualquer grupo social põem em risco as
fronteiras sempre tênues entre coesão e tensão, união e fragmentação,
fechamento e abertura – o dilema, no limite, entre a preservação e a
descaracterização das sociedades secretas, de seus rituais iniciáticos e de seu
esprit de corps –, visa-se mostrar a inexistência de uma homogeneidade no
interior desses agrupamentos, a despeito da presença catalisadora do líder. Em
vez dessa aparente unidade, ressalta-se como o conflito e a concorrência são
refletidos nas discordâncias em torno da figura do chefe de torcida. Em menor
ou maior grau consoante cada agremiação, as disputas internas refletem por
vezes uma descontinuidade entre as pretensões protopolíticas do núcleo
dirigente da torcida e as aspirações difusas da base formada por seus
integrantes.
Em sua dissertação pioneira, Benedito Tadeu César já remarcava as
diferenças de comportamento e de discurso entre o que considerava a massa e a
elite comandante dos Gaviões da Fiel, sendo a primeira composta por pequenos
77
Cf. SIMMEL, G. Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1983, p. 34.
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auxiliares de escritório, vendedores, boys, balconistas, entre diversas outras
profissões dos estratos mais baixos da sociedade e a segunda integrada por
pequenos proprietários, advogados e estudantes oriundos da classe média. O
antropólogo Luiz Henrique de Toledo também assinala que o perfil típico-ideal
do torcedor organizado contemporâneo – jovem entre 14 e 25 anos, do sexo
masculino, proveniente das classes populares, estudante que esporadicamente
exerce atividade remunerada – não é aplicável de forma automática aos
dirigentes das torcidas, pois o universo destes apresenta-se muito mais
complexo do ponto de vista etário, geracional e participativo
78
. A escolha
contempla a premissa de que os fundadores e os ex-chefes de tais grupos são
portadores de um projeto de torcida que almeja timbrar um estilo próprio e
diferenciado das demais agremiações, onde se imiscuem a identidade da
associação e a persona do líder.
Dada a heterogeneidade estrutural e hierárquica das torcidas organizadas,
sem negar todavia a circularidade existente em seu interior, a opção escolhida
aqui foi a de concentrar o enfoque nesse indivíduo que ocupa a posição mais
destacada na morfologia do grupo, por meio da obtenção de depoimentos e
entrevistas. A concentração nas antigas lideranças de torcida viabilizou ainda
um trabalho de análise do processo de construção social da memória nos
moldes propostos no Brasil por Ecléa Bosi em fins dos anos 1970
79
. À luz da
filosofia de Henri Bergson e da sociologia durkheimiana de Maurice
Halbwachs, “as lembranças de velhos” examinadas pela autora mostravam
como as transformações da cidade de São Paulo e da sociedade paulistana
vinham inscritas na percepção individual do tempo por parte das suas
depoentes.
A adoção de semelhante procedimento, com a obtenção de relatos junto a
chefes de torcidas organizadas respalda-se e inspira-se em nível nacional
também no exemplo do trabalho coletivo e institucional empreendido pelo
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da
Fundação Getúlio Vargas, o CPDoc/FGV, núcleo iniciado em 1973 com a
doação de arquivos privados de políticos como o ex-ministro Gustavo
78
Cf. TOLEDO, L. H. de. Lógicas no futebol. São Paulo: Huicitec; Fapesp, 2000, p. 230.
79
Cf. BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
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Capanema e que se desdobrou até a recente série sobre a Memória militar
80
.
Em esforço individual, e na outra ponta dos atores sociais focalizados, procurou
dar-se acesso a um conjunto de informações sobre torcidas organizadas não
registradas nos periódicos e que costumam ficar adstritas ao domínio oral das
relações intergrupais. A aplicação de um método qualitativo de investigação,
com a metodologia da História Oral inaugurada por Paul Thompson,
possibilitou a observação do percurso trilhado por esses torcedores que ficaram
à frente de tais agrupamentos, avaliando quais as motivações pessoais, quais as
implicações sociais, quais os dividendos econômico-políticos estão em jogo
com semelhante adesão.
Ao contrário das expectativas iniciais, os percalços no decurso do
doutorado inviabilizaram a apresentação dos resultados da análise da
transcrição das dez entrevistas gravadas com lideranças de torcida ao longo da
pesquisa, o que se pretende fazer em outra oportunidade. À descrição de como
foram forjados pela imprensa os perfis dos primeiros chefes de torcida no Rio
de Janeiro, a idéia era a proposição de um quadro mais complexo com os
fundadores e com ex-lideres de torcidas organizadas de diversas gerações por
mim entrevistados: Sérgio Aiub, da Torcida Organizada do Fluminense e da
Organizada Jovem-Flu; Banha, da Torcida Jovem do Flamengo; Tia Aida, da
Torcida Organizada do Vasco; Armando Márcio Zucareli, do Poder Jovem do
Flamengo; João Venâncio Cysne, da Força-Flu; Ricardo Muci, da Flamante;
Seu Armando, da Young-Flu; Cláudio Cruz, da Raça Rubro-Negra; Roberto
Monteiro, da Força Jovem do Vasco; e Capitão Leo, da Torcida Jovem do
Flamengo. De todo modo, houve tempo hábil para esboçar o perfil biográfico
dos dois primeiros entrevistados, o que vem exposto nos Apêndices da tese. A
biografia sumária de Jaime de Carvalho, feita com base em informações
recolhidas junto a antigos cronistas dos Jornal dos Sports, também aparece
nessa seção.
Outra impossibilidade de execução no curso deste trabalho diz respeito à
parte final da tese. Nas considerações finais, desejava alinhavar os principais
pontos desenvolvidos nessa tentativa de compreensão da formação das torcidas
organizadas de futebol do Rio de Janeiro entre as décadas de 1960 e 1980, sem
80
Cf. D’ARAÚJO, M. C.; SOARES, G. A. D.; CASTRO, C. Os anos de chumbo: a memória
militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
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excluir em tal fechamento espaço a algumas ligeiras proposições e
problematizações de ordem ensaística que sinalizam para o quadro
internacional e para a situação contemporânea. Visava delinear o rumo tomado
pelas torcidas organizadas a partir da década de 1980, com as possibilidades
abertas pelas condições estruturais do esporte na contemporaneidade e pela
integração esportiva efetuada pela televisão. À semelhança das táticas, dos
sistemas e dos estilos de jogo inventados por jogadores e técnicos, clubes e
seleções ao longo da história do esporte, como o futebol-arte e o futebol-força,
as torcidas organizadas buscam também cunhar suas próprias técnicas
corporais com base nessas categorias nativas tradicionais, que atribuem valor e
instituem parâmetros nas formas de torcer mediante uma leitura particular do
espetáculo esportivo. Donde se poderia conjecturar, a título de exemplo, a
existência análoga de estilos de torcida em que ora se enaltece a força, através
da contundência físico-viril de suas manifestações, ora se reivindica a beleza
ritualística, por meio da expressividade coreográfica, plástica e performática
dos cantos coletivos entoados nos estádios
81
.
Até o momento, as torcidas inglesas, italianas e argentinas têm sido
consideradas as matrizes fundadoras e difusoras na exportação de estilos
nacionais de torcer, transpassando fronteiras e irradiando seus modelos para
diversos países da Europa e da América Latina. Quanto mais o futebol de
clubes tem adquirido uma dimensão global, através de uma rede de
campeonatos em escala mundial, mais esses estilos de torcer são difundidos, o
que favorece recíprocas influências extraídas do contato estabelecido nas
viagens de acompanhamento do time em torneios intercontinentais ou das
imagens projetadas pela cobertura televisiva. Uma compreensão não muito
diferente das culturas híbridas de que fala o antropólogo argentino Nestor
Canclini pode ser aplicada às torcidas na caracterização da sua
contemporaneidade.
Ao palmilhar essa trilha, inspirava-me no último livro organizado por
Eric Dunning, Fighting fans: football hooliganism as a world phenomenon
(2002), em que é apresentado um mapa atual das torcidas organizadas em
81
Alguns estudiosos têm refletido acerca da dimensão estética do futebol. Cf. WELSCH, W.
“Esporte: visto esteticamente e mesmo como arte ?” In: ROSENFIELD, D. (Org.). Ética e
estética. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Cf. também GUMBRECHT, H. U. Éloge du sport. Paris:
Maren Sell Éditeurs, 2005.
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diversas partes do mundo, dos barra-bravas da Argentina aos hooligans da
Inglaterra, dos kutten fans da Alemanha aos tifosi da Itália, dos ultras da
Espanha aos siders da Bélgica, sem contar os grupos de torcedores do Leste
Europeu, da Grécia e da Turquia
82
. Perseguia ainda uma reflexão apenas
sugerida pelo antropólogo francês Christian Bromberger, com a indagação:
estar-se-ia assistindo à criação de uma cultura internacional de jovens
torcedores ? (“...il existe une culture vocale internationale du supporteur...”).
83
Para tanto, havia planejado, à guisa de conclusão, um breve esboço
comparativo que permitisse cotejar a cultura juvenil de torcidas organizadas no
Rio de Janeiro e em Paris, com base em atualização da bibliografia européia
disponível, em leituras de periódicos e em observações feitas no período de
estágio de doutoramento de seis meses na França, onde pude acompanhar o
campeonato nacional francês e, em específico, o comportamento das torcidas
do Paris Saint-Germain, um clube cujas associações de torcedores passaram por
turbulentas transformações nas últimas décadas. Isto porque, entre janeiro e
junho de 2006, estive vinculado à École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS), mais especificamente, ao Centre des Recherches sur le
Brésil Contemporaine (CRBC), sob a orientação do antropólogo Afrânio
Garcia, mediante a obtenção de uma bolsa-sanduíche concedida pela Capes.
Assim sendo, o presente estudo está estruturado em um formato tripartite.
O primeiro capítulo, O chefe de torcida: entre vícios e virtudes, propõe
de início o estabelecimento de uma definição histórico-conceitual do torcedor
de futebol. Com base em outras formas de assistência na história ocidental,
questiona-se a visão do espectador condicionada exclusivamente pela analogia
das funções catárticas do teatro grego, onde as energias internas contidas são
extravasadas pela platéia como forma de neutralização da ordem social, o que
põe em paralelo os espetáculos esportivos e os espetáculos artísticos. Entendido
em um momento inicial como público observador e contemplador – a
assistência –, é possível perceber a transformação da definição original em prol
de uma nova acepção que salienta a sua dimensão interativa e participativa, em
uma série de mutações e reviravoltas semânticas passadas pela categoria être
82
Cf. DUNNING, E.; MURPHY, P.; WADDINGTON, I.; ASTRINAKIS, A. E. Fighting fans:
football hooliganism as a world phenomenon. London: University College Dublin Press, 2002.
83
Cf. BROMBERGER, C. HAYOT, A.; MARIOTTINI, J-M. “Allez L’O.M. ! Forza Juve !”. In:
Terrain: Cahiers du Patrimoine Ethnologique. Paris: s.e., 1983, n. 8, P. 35.
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supporter
84
ao longo do século XX. Ao franquear uma gama de significados, a
materialização do pendor ativo no futebol do Rio de Janeiro dar-se-ia com o
aparecimento das Torcidas Organizadas na década de 1940, como entidades
destinadas a incentivar o clube. O fenômeno leva à invenção de um novo
personagem no meio futebolístico, o chefe de torcida, liderança carismática
reconhecida pelos torcedores de cada clube, erigida em autoridade moral das
arquibancadas, responsável pela intermediação com o chefe de polícia, pela
orientação dos espectadores e pelas campanhas de bom comportamento nos
estádios. Nos relatos jornalísticos, tal sentido perduraria até a década de 1980,
quando os chefes de torcida passam a ser vistos como portadores de modelos de
conduta negativos, promotores de desordens, distanciados da maioria dos
torcedores e mantenedores de relações obscuras com dirigentes esportivos de
mentalidade amadora e provinciana.
O segundo capítulo, Microfísica do Poder Jovem, analisa e descreve,
passo a passo com as matérias jornalísticas, como o ciclo de formação de
torcidas organizadas iniciado na década de 1940 encontrou seu ponto crítico em
fins dos anos 60, com a irrupção de torcidas dissidentes que questionam as
Charangas e as Torcidas Organizadas oficiais. Ao capitanear para si o discurso
da juventude, expresso, promovido e incentivado pelas narrativas do Jornal dos
Sports, os novos blocos organizados aglutinaram-se em torno do futebol com a
encenação de uma querela entre velhos e jovens torcedores, que comporta de
modo subjacente uma concorrência por espaço de participação na vida
clubística. Na década de 1970, a consolidação das Torcidas Jovens dar-se-ia em
meio ao intenso fluxo de torcidas de pequeno e médio porte que despontam a
partir daquelas dissidências juvenis, passando a fundir em neologismos a
identidade clubística à identidade territorial através da criação de inúmeras
torcidas de bairro. Inspirada nos modelos sindicais e no padrão das ligas das
escolas de samba, essa gama de torcidas tenta constituir, no início dos anos 80,
uma associação que representasse uma força corporativa no interior do futebol,
a Astorj. O objetivo da cúpula das torcidas fracassaria ao longo daquele
decênio com o acirramento da rivalidade na base de seus integrantes.
84
Cf. HOUCARDE, N. “La place des supporters dans le monde du football”. In: Pouvoirs –
Revue Française d’Études Constitutionelles et Politiques. Paris: s.e., 2002, n.º 101.
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O terceiro capítulo, Genealogia da moral torcedora, aborda de início
tanto algumas questões de ordem teórica sobre a violência quanto a evolução
do discurso jornalístico sobre o assunto. Este se inicia com a preocupação em
torno do comportamento humano nas grandes aglomerações públicas
esportivas, uma derivação das questões referentes à idéia de “pânico moral”
entre as multidões no século XX. Em seguida, o capítulo enfoca o discurso dos
torcedores, com a identificação de pequenas ofensas morais que se acirram até
atingir o planejamento coletivo de brigas e enfrentamentos entre estes. Nesta
escalada em espiral, para usar os termos do sociólogo francês Dominique
Bodin
85
, as mesmas Torcidas Jovens vão crescer em alguns casos de forma
notável, com a absorção de novos contingentes de torcedores e com a
polarização de tal rivalidade crescente. Por fim, o capítulo lança luz sobre um
conjunto de categorias morais construídas pelas formas coletivas de torcer nas
praças de esporte, à maneira da circularidade entre cultura erudita e popular,
entre escrita e oralidade, erigida nas praças públicas tais como descritas no
contexto histórico europeu por Mikhail Bakhtin, E. P. Thompson e Carlo
Ginzburg, entre outros, onde se fazem presentes padrões comunicativos
baseados na provocação, na jocosidade e na obscenidade. Dentre as marcas e
inovações gradativamente criadas pelas torcidas organizadas, algumas
requerem atenção especial, como fenômenos relativos à moral presente na
linguagem, na música e nas caravanas de viagem.
Essa última é entendida como uma missão torcedora, análoga à provação
peregrina cristã, mas também como momento de suspensão da rotina, uma
aventura passível quer de risco e perigo, quer de uma licenciosa
permissividade. Nas viagens, começa-se também a vislumbrar determinados
códigos coletivos de desvio e determinadas práticas comuns de transgressão,
como os pequenos furtos em paradas de estrada. Os deslocamentos territoriais
se tornam uma realidade identitária para esses grupos porquanto a década de
1960 assinala a alteração da escala de jogos, que passam da esfera clubística
regional à nacional, propiciando às torcidas o estabelecimento de relações de
convivência que extrapolam a comunhão circunstancial das partidas. Seu
corolário são as viagens sistemáticas de acompanhamento do time, com a
85
Cf. BODIN, D. Le hooliganisme. Paris: PUF, 2003
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tessitura de cadeias recíprocas de amizade e de inimizade, de hostilidade e de
hospitalidade com torcidas de clubes de outras capitais, que variam conforme a
disposição dos líderes das respectivas associações e o grau de rivalidade em
que se encontram as equipes.
Assim como as caravanas, a técnica musical da paródia, com a
incorporação de expressões vocabulares e de canções da cultura de massas no
repertório das agremiações, especialmente os sambas-enredo dos anos 70,
dentro do recorte temporal aqui proposto, será um elemento adaptativo e
criativo das torcidas analisado. Esses agrupamentos de torcedores constituem
corpos sociais que estabelecem novas formas de comunicação por meio de
cânticos, xingamentos e palavras obscenas
86
, o que canaliza a polifonia ruidosa
das praças esportivas e imprime marcas diferenciadas às massas amorfas e ao
fenômeno das multidões. Ver-se-á como o espaço público dos estádios é dotado
de significados inauditos, com uma distinta semântica estatuída pelas torcidas,
dentro da estrutura comunicativa elementar de interpelação e resposta, que
revelam o seu caráter vital sempre dinâmico e instável, fluido e semovente...
Como em quase todos os trabalhos acadêmicos, o momento da escolha
do objeto de pesquisa liga-se a critérios e interesses, conscientes e
inconscientes, que atendem a motivações de ordem pessoal. Em nosso caso,
não seria diferente, a opção seria condicionada por uma vivência em estádios
que remonta à adolescência, mais precisamente, ao período em que ia aos jogos
na companhia de meu pai e, depois, de colegas da mesma idade, em um ritual
de socialização por que muitos jovens do sexo masculino costumam passar.
Sem nunca ter pertencido a nenhuma torcida organizada, seriam entretanto
estes agrupamentos uniformizados e compactos que faziam deslocar com
freqüência minha visão do campo de jogo para a ambiência ao meu redor. À
distância e ao estranhamento inicial perante o fenômeno, sucedeu-se uma
aproximação paulatina, um querer conhecer mais, um querer indagar mais
sobre quem eram aquelas pessoas que promoviam aquilo que considerava
bonito, atraente e absorvente. Segundo as postulações do historiador francês
86
Cf. Id. “Por que xingam os torcedores de futebol ?”. In: Cadernos de Campo. São Paulo: s.e.,
1993, n.º 3.
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64
Marc Bloch, a curiosidade é o primeiro estímulo da história, a que se junta em
seguida o trabalho de pesquisa.
87
.
Ao longo de duas décadas permaneci acalentando essa curiosidade e essa
observação de modo informal, acumulando experiências, até que uma
inquietação paralela sobreveio e colocou-se para a minha imaginação. Ela dizia
respeito à existência daquelas torcidas no período anterior ao que tinha
presenciado, quando o discurso e a prática da violência ainda não haviam se
colado de modo tão peremptório à sua imagem pelos meios de comunicação e
pelo senso-comum. Desejava saber como havia sido seu surgimento, quem
estava por trás delas, como as gerações fizeram-na crescer, alternando e
modificando as suas configurações com a passagem do tempo. O historiador
literário alemão Hans Ulrich Gumbrecht chama de “aprender com a história” a
este sentimento difuso: “... aquilo que nos orienta especificamente em direção
ao passado é o desejo de atravessar o limite que separa as nossas vidas do
tempo anterior ao nosso nascimento. Queremos conhecer os mundos que
existiam antes que tivéssemos nascido, e ter deles uma experiência direta.”
88
. O
presente trabalho é fruto destas interrogações preliminares, deste interesse em
fornecer respostas às inquietações de quem prefere saber o que se passa no
burburinho das arquibancadas a saber o que ocorre dentro das quatro linhas do
campo.
87
Cf. BLOCH, M. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 12.
88
Cf. GUMBRECHT, H. U. “Depois de aprender com a história”. In: Em 1926: vivendo no
limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 467.
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1
O chefe de torcida, entre vícios e virtudes
1.1 Ethos de espectador, pathos de torcedor
“... transformai os espectadores em espetáculo, tornai-os atores...”
Jean-Jacques Rousseau
A imagem depreciativa usual que se costuma atribuir à figura do torcedor
de futebol – a do indivíduo vulgar, de atitudes não raras vezes irracionais,
possuidor de faculdades intelectuais medianas subordinadas a estados emotivos
instáveis, sobretudo a da pessoa que se vale do esporte como uma forma de
evasão da realidade, como um lenitivo para as frustrações do cotidiano –, tal
como tipificada por uma série de autores filiados às mais variadas correntes
teóricas e tal como arraigada ao senso comum ao longo do século XX, provém
de uma noção pouco precisa que, por sua vez, toma de empréstimo os debates
em torno da função do espectador no teatro. Sua definição mais ancestral e
arquetípica remonta a Aristóteles e a suas considerações sobre o teatro grego.
Ao discorrer acerca das características e dos elementos próprios da tragédia no
mundo helênico, o filósofo de Estagira deixou assinalado em breves linhas de
sua arte poética de que maneira os efeitos dramáticos podiam se fazer sentir no
ânimo do público assistente. Se a estrutura cênica compreendia a imitação de
uma série de ações e de situações da vida real, uma mimesis com início, meio e
fim, que levava a um ponto culminante, ao desfecho de um suspense
imprevisível ou ao desenlace surpreendente de uma intriga urdida pelo poeta
trágico, seu objetivo último consistia na obtenção da katharsis por parte do
auditório
1
.
A catarse, finalidade precípua da tragédia na Grécia antiga, que na
tradição ocidental se revestiria mais tarde também de conotações religiosas e
psicanalíticas, seria uma manifestação eminentemente purgativa e purificadora,
capaz de provocar no espectador a liberação de determinadas sensações e de
fazer com que aflorassem nele sentimentos como os de compaixão, de temor ou
1
Cf. ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. O termo
também é tratado no livro oitavo da Política.
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66
de humor incômodo. Segundo Aristóteles, as obras trágicas melhor sucedidas
sob um ponto de vista técnico eram aquelas cujos resultados podiam ser
aferidos na identificação da audiência com os assuntos levantados pela
respectiva trama – a empatia, o ‘sentir com’ – e na capacidade da narrativa de
despertar o prazer e a diversão na platéia dos anfiteatros. À tensão desenvolvida
ao longo do enredo, com a concorrência da música, da dança e de toda a
ambiência plástico-sonora do espetáculo, seguiam-se, pois, o gozo, a calma e o
relaxamento obtidos pelo “escoamento do excesso de emoções.”
2
.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche, na segunda metade do século
XIX, retomaria o interesse pela investigação em torno do nascimento da
tragédia e dos elementos eruptivos que tal gênero logrou acionar entre os que
vivenciaram seu esplendor na Antigüidade. Embora não tenha considerado a
idéia de catarse em sua análise, distante que estava das proposições cristãs e
socrático-aristotélicas, responsáveis segundo ele pela decadência da pujança da
arte trágica naquele período, o jovem Nietzsche via a possibilidade da criação
teatral com base no encontro de forças antagônicas, presentes nas energias
cósmicas e expressas nas divindades gregas, sem deixar de considerar suas
implicações nas afecções dos que contemplavam o espetáculo. A arte,
expressão primordial daquilo que é vital na natureza e na cultura humanas,
originava-se da fusão de dois princípios contraditórios, Apolo – símbolo do
equilíbrio, da lucidez e do autocontrole – e Dionisos – símbolo do
desregramento, da embriaguez e da possessão de cultos vindos do Oriente, da
Ásia Menor e do norte da África – geradores de obras raras e sublimes. Na
perspectiva nietzscheana, a matriz da tragédia não se encontraria no drama nem
no encadeamento lógico de sua história correspondente, mas nos ditirambos do
coro que proporcionavam a excitação, a agitação e a fulguração dos estados
psicológicos disruptivos:
“Ao coro ditirâmbico compete então a tarefa de levar os espíritos dos
auditores a um tal estado de exaltação dionisíaca em que já não vejam,
no herói trágico que aparece em cena, um homem de rosto coberto por
uma máscara informe, mas antes a visão da imagem nascida, por
assim dizer, dos seus próprios êxtases.”
3
.
2
Cf. ARISTÓTELES. op.cit., p. 232-235.
3
Cf. NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Lisboa: Guimarães Editora, 1988, p. 76.
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67
As diferenças substantivas entre o discurso médico-filosófico de
Aristóteles e o discurso artístico-filosófico de Nietzsche não impedem que se
vislumbre uma convergência entre a função catártica sustentada pelo primeiro e
a visão dionisíaca apregoada pelo segundo – o êxtase correspondendo à saída
momentânea figurada de si mesmo –, quando se focaliza a alma espectadora ou
a figura do espectador no teatro. As manifestações psíquicas e fisionômicas do
público perante um ritual coletivo de encenação, festividades praticadas de
início no espaço natural dos bosques, que transpõe mais tarde para o palco os
valores e as representações da vida cotidiana em sociedade, o theatrum mundi
da literatura dramática, segundo a definição clássica de Martin Esslin e a
definição contemporânea de Josette Feral
4
, além da sua apropriação por
antropólogos sociais na segunda metade do século XX, como Victor Turner,
Max Gluckman e Clifford Geertz
5
, conduzem os dois autores à observação da
alteração do comportamento físico e mental dos expectantes. Estes são
acometidos pela intensidade do clímax a que são elevadas determinadas
sensações, com repercussões orgânicas internas, em um momento transitório e
efêmero, sempre seguido pela volta a estágios ordinários de apaziguamento,
harmonia e equilíbrio.
Na experiência da dramaturgia, a ação do ator estaria condicionada pela
transmissão da emoção da personagem e pela recepção passional do público
presente, o que se pode deixar entrever no étimo da palavra teatro, “o lugar de
onde se vê”, e na própria etimologia da palavra grega para ator, hypokrités
(“respondedor”), aquele que responde ao coro e aos seus ditirambos, à platéia e
às necessidades de representação do grupo
6
, sintomática da relação de
dependência dialógica e de complementaridade estabelecida entre um e outro.
4
Cf. MERQUIOR, J. G. A estética de Lévi-Strauss. Rio de Janeiro: Editora Universidade de
Brasília / Edições Tempo Brasileiro, 1975, p. 24. Cf. também ESSLIN, M. Uma anatomia do
drama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1976. Cf. Ainda FÉRAL, J. “La théâtralité:
recherche sur la spécificité du langage théâtral”. In: Poétique. Paris: Seuil, 1988, n.75.
5
Antropólogos que contribuíram para a conceituação dos rituais coletivos como dramas sociais,
com a posterior inclusão entre eles dos fenômenos esportivos. Cf. DAMATTA, R. (Org.).
Universo do futebol. Rio de Janeiro: Pinakoteke, 1982, p. 21. Cf. também SOARES, L. E.
“Futebol e teatro: notas para uma análise de estratégias simbólicas”. In: Boletim do Museu
Nacional. Rio de Janeiro: s.n., 1979, n.33. No âmbito da historiografia, ver Peter Burke. Cf.
BURKE, P. O mundo como teatro: ensaios de antropologia histórica. Lisboa: Difel, s.d.
6
Cf. ROSENFELD, A. “O fenômeno teatral”. In: Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1973,
p. 41. Cf. também SODRÉ, M. “Futebol, teatro ou televisão ?”. In: O monopólio da fala.
Petrópolis: Vozes, 1981, p. 143. Cf. ainda MURAD, M. Dos pés à cabeça: elementos básicos de
sociologia do futebol. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1996, p. 169 e 1970.
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68
Para Martin Esslin: “O autor e seus intérpretes são apenas metade do processo
total: a outra metade é composta pela platéia e sua reação. Sem platéia não
existe drama. Uma peça que não é encenada é apenas literatura.
7
. Ainda de
acordo com o estudioso britânico, o público teatral constituiria mais do que um
agregado de indivíduos isolados, dispostos de maneira aleatória, para em lugar
disto conformar uma totalidade, um conjunto consciente, uma unidade coletiva
indivisa.
A ênfase aristotélica nas transfigurações psicológicas e nos reflexos
motoro-sensoriais da audiência das tragédias gregas, desencadeadas pela
alternância entre estados emotivos opostos que combinam tensão e alívio,
sofrimento e prazer, terror e comiseração, é então regida por dois princípios
constitutivos da cena dramática: o agir e o padecer
8
. Em consonância com tal
dinâmica, no desenrolar da trama, o ator age à medida que o espectador padece;
o primeiro faz mover, na proporção em que o segundo é movido; um é sujeito,
enquanto o outro, objeto. A ação articula-se à paixão porquanto esta sofre as
vicissitudes daquela. Cólera, desejo, calma, alegria, entusiasmo, ódio, inveja
seriam alguns dos impulsos afetivos acionados tanto pelo poeta quanto pelo
orador sofista que, por intermédio da retórica, é capaz persuadir os ouvintes ao
tocar no âmago da sua imaginação. O intelectual alemão Hans Robert Jauss,
formulador das bases da estética da recepção na teoria da literatura durante as
décadas de 1960 e 1970, assim sumariza o esquema aristotélico para a analogia
médica da catarse:
“... o espectador pode ser afetado pelo que se representa, identificar-se
com as pessoas em ação, dar assim livre curso às próprias paixões
despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa, como se
participasse de uma cura (katharsis).”
9
.
7
Cf. ESSLIN, M. op. cit., p. 21 e 26. A relação entre o teatro e a literatura na passagem da Idade
Média para a Idade Moderna foi analisada pelo historiador francês Roger Chartier e pelo
medievalista suíço Paul Zumthor. Cf. CHARTIER, R. Do palco à pagina: publicar teatro e ler
romances na época moderna (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. Cf.
também ZUMTHOR, P. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
8
Cf. LEBRUN, G. “O conceito de paixão”. In: NOVAES, A. (Org.). Os sentidos da paixão.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 17.
9
Cf. JAUSS, H. R. “O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis e
katharsis”. In: LIMA, L. C. (Org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 87.
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69
Freud considerava a catarse a descarga em ato ou mesmo a descarga
motora de uma emoção que permaneceu em suspenso, passível de gerar
traumatismo no sujeito enquanto um “acordo” não fosse encontrado. O
psicanalista francês Jacques Lacan retoma o termo não só de Freud como do
próprio Aristóteles no seminário “A essência da tragédia: um comentário de
Antígona de Sófocles”:
“A catarse aqui é apaziguamento, obtido a partir de uma certa música,
da qual Aristóteles não esperava o efeito ético, nem tampouco o efeito
prático, mas o efeito de entusiasmo. Trata-se então da música mais
inquietante, daquelas que lhes arrancava as tripas, que os fazia sair de
si mesmo, como para nós o hot ou o rock’n roll, e quanto à qual
tratava-se de saber para a sabedoria antiga se era preciso ou não
proibi-la.”
10
.
A estrutura binária ação/paixão leva à constatação de que o entendimento
do espectador em Aristóteles, e de parte significativa de sua ontologia ou de sua
antropologia, situa-se na esfera do patológico. O pathos grego e o passio latino
possuem um sentido original comum de passividade – sofrer uma ação sem
reagir –, sendo vistos de igual maneira como inferiores, posto que dependentes
dos atos de outrem, sem autonomia, amorfos, reflexo de atitudes que vêm de
fora e que provocam alterações em seu metabolismo interno. Conforme
esclarece o historiador francês Jean Starobinski, apenas no período medieval e
moderno o antônimo da ação passaria a ser a reação, em lugar da paixão,
segundo a terminologia latina reactio, que apareceria na física, na química e
depois se transladaria para outras esferas lingüísticas compartilhadas na
filosofia moral e na vida social. No século XVII, a expressão passio,
designadora de emoções profundas que tendem a explodir, passou a indicar o
dinamismo psíquico em geral, notadamente com o sentido de força de vontade
e de energia dirigida
11
.
As paixões consistiam, pois, na variação dos juízos daqueles que
esperam, que aguardam e que vêem, intercalando sentimentos de dor e prazer
por meio de suas percepções sensíveis. Já a mobilidade, a mutabilidade e a
instabilidade dos indivíduos apaixonados derivam do prolongamento dos
10
Cf. LACAN, J. O Seminário: livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 298.
11
Cf. STAROBINSKI, J. Ação e reação: vida e aventuras de um casal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002, p. 37.
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70
efeitos de certas emoções em sua alma e da variação de certas propriedades
físicas em seu organismo – como o quente e o frio, o seco e o úmido –, que são
também qualidades fisiológicas, pois reverberam nos indivíduos talhando e
moldando-lhes o caráter, a personalidade, a têmpera. Tal quadro configuraria a
galeria de tipos humanos aristotélicos, onde se encontrariam quatro figuras
principais, correspondentes por sua vez à clássica teoria dos Quatro Humores: o
sangüíneo (frio), o colérico (quente), o fleumático (constante) e o melancólico
(inconstante)
12
. De todo modo, agente e paciente, emissor e destinatário,
produtor e receptor, ator e espectador perfazem a base fundamental da interação
humana na cena dramática, de resto um princípio comunicativo elementar,
estabelecido em sua origem com um sentido unívoco e unilateral, fixo e
estanque.
Vale a ponderação de que, em contraposição às postulações
transcendentes da filosofia, a Antropologia despontaria no século XX com um
projeto teórico alternativo não redutível à tradição das paixões filosóficas. Ela
privilegiaria a apreensão da multiplicidade das categorias passionais elaboradas
pelas diversas culturas, conforme aponta Louis Dumont, em citação a seu
mestre Marcel Mauss: “As categorias aristotélicas não são as únicas que
existem. Temos, em primeiro lugar, de organizar o maior catálogo possível das
categorias.”
13
.
Mas, seguindo Aristóteles, a condição de passividade ou de
passionalidade própria das paixões, conquanto reveladora de uma imperfeição
ontológica, não é percebida de maneira negativa. Auxiliares da razão, as
paixões são dados da natureza humana e sobre elas se erigem a virtude, a ética
e a educação. O domínio, a regulação e a utilização adequada das pulsões
passionais constituem os atributos do ser virtuoso, de onde se originam seu
caráter (ethos) e sua conduta racional, ao passo que o homem vicioso seria
aquele cujo desregramento se evidencia na incapacidade de controlar a eclosão
e o transbordamento das paixões. Na tragédia, a catharsis cumpriria um papel
positivo de regulador da dinâmica passional, pois permitiria dar vazão a
12
Cf. ARISTÓTELES. O homem de gênio e a melancolia: o Problema XXX, 1. Rio de Janeiro:
Lacerda Editores, 1998. Cf. também ALBENQUE, P. A prudência em Aristóteles. São Paulo:
Discurso Editorial, 2003.
13
Apud DUMONT, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Rio de Janeiro: Rocco, 1985, p. 196.
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71
sentimentos extremados vigentes no ser humano – a euforia, o excesso e a
soberba desmesurada eram conhecidas pela cultura mediterrânica grega como
hybris, conforme já salientado na Introdução
14
–, com a subseqüente
restauração de seu equilíbrio e com o reencontro de sua medida.
Sob esse aspecto, parte da tradição ocidental, em paralelo ao legado
aristotélico, desde a desvalorização dos afetos no estoicismo, através da
reivindicação de uma postura apática
15
, até o dualismo substancialista das
posições cartesianas, onde os desejos são descartados da natureza essencial da
alma e as sensações obnubiladoras vindas do exterior são eliminadas por
intermédio da depuração do intelecto, acentuou a dicotomia entre corpo e
espírito, entre paixão e razão, entre objeto e sujeito, entre pathos e logos, com a
prevalência do segundo sobre o primeiro. Mesmo quando se considera o
significado de paixão em si, como o faz Hegel seguindo Aristóteles, a
ambivalência de seu sentido se bifurca entre o pathos em sua acepção antiga –
baixo, insignificante, menor –, assim como os gregos entendiam o patológico, e
o pathos em sua acepção moderna – elevado, digno, profundo , capaz de
inspirar nobres sentimentos e grandes realizações, como o amor ou as obras de
arte
16
.
A acentuação da antinomia sujeito-objeto no Ocidente, sistematizada
com o pensamento de Descartes, e a manutenção da catarse como desígnio
maior do teatro, desde sua enunciação nos fragmentos de Aristóteles, foram
dois movimentos paralelos que se irradiaram até a época contemporânea. Nos
limites da prática e da teoria teatral, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht
procurou efetuar a convergência dos dois fenômenos na primeira metade do
século XX, mediante o exame dos impasses do teatro de seu tempo. Em relação
ao primeiro movimento, Brecht demonstraria como o espaço cênico também
seria atingido pela progressiva delimitação dos campos da subjetividade e da
objetividade, com a clivagem instaurada entre o palco e a platéia em seguida ao
ocaso do teatro elisabetano nos séculos XVI e XVII, onde floresceu a obra de
Shakespeare. A ausência de separação nítida entre os que protagonizavam e os
que assistiam às peças era própria de um teatro popular cujas origens remetiam
14
Cf. ROSENFELD, A. op. cit., p.42.
15
Cf. NUNES, B. “A paixão de Clarice Lispector”. In: NOVAES, A. (Org.). Os sentidos da
paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 272.
16
Cf. LEBRUN, G. op. cit., p. 24-25.
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72
à tradição religiosa do mundo antigo e medieval. De acordo com a leitura
nietzscheana do antropólogo italiano Massimo Canevacci:
“A origem da tragédia não conhece nitidez na cisão entre quem olha e
quem é olhado, entre quem age e quem sofre a ação, entre quem é
publicamente móvel e quem é privadamente imóvel. Quem participa
da ação trágica – assim como da embriaguez orgiástica em honra de
Dioniso – mantém originalmente a dialética de ser sujeito e objeto da
história.”
17
.
Com a perda do referencial sagrado, o alvorecer do teatro burguês na
Renascença e sua evolução laica posterior no início do século XVII, quando o
gênero dominava a literatura ocidental através de figuras como Calderón de la
Barca, um dos representantes do Siglo del Oro espanhol, foram marcados pela
introdução de uma divisão mais enfática entre o proscênio e o público,
consubstanciado na hegemonia do palco italiano, uma novidade surgida por
volta de 1530, com a introdução do fosso e da cortina, o que afetaria
sobremaneira a relação entre representação e realidade, bem como a posição do
espectador face ao espetáculo
18
. As transformações do palco italiano no teatro
europeu incluíram, por exemplo, o desaparecimento do camarote real, com o
fim do privilégio da visão perspectiva e absoluta do rei, uma demonstração dos
nexos entre a forma da arquitetura teatral e a organização social assentada em
novas classes sociais. Neste mesmo momento fenômeno concomitante sucedia
na literatura, com a introdução do livro impresso, responsável por alterações
profundas à medida que apartava o narrador de seu ouvinte, cindindo a
comunicação direta deste par tradicional, separado agora em pólos antitéticos
de experiência, a do escritor de um lado e a do leitor do outro, e exprimindo o
17
Cf. CANEVACCI, M. Antropologia do cinema. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 41. Cf.
também LOPES, A. H. História e performance. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1994.
18
As informações aqui contidas derivam em grande parte da leitura do estudo do filósofo Gerd
Bornheim acerca da obra de Bertolt Brecht e de apontamentos do próprio dramaturgo na década de
1920. Cf. BORHNHEIM, G. Brecht, a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 195.
Cf. também BRECHT, B. “Davantage du bon sport”. In: Écrits sur le théatre. Paris: L’Arche,
1963. As diferenças do público elisabetano no tempo de Shakespeare foram enfocadas pelo
estudioso francês Guy Boquet e pelo crítico alemão Anatol Rosenfeld. Cf. BOQUET, G. Teatro e
sociedade: Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 1989. Cf. também ROSENFELD, A.
“Shakespeare e o pensamento renascentista”. In: op. cit.
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73
início de uma viragem, com primazia da escrita sobre a oralidade no período
moderno, conforme detectou o ensaísta alemão Walter Benjamin
19
.
A consecução de tais mudanças no contexto europeu não deixaria de
suscitar controvérsias intelectuais no século XVIII, quando Jean-Jacques
Rousseau instaura uma polêmica ao opor-se ao projeto de substituição do teatro
clássico pelo drama moral-burguês em Genebra, sua cidade natal, como
discorre em sua alentada carta a D’Alembert sobre os espetáculos
20
. Tendo
sempre como paradigma implícito a tragédia grega, representada a céu aberto
para a diversidade dos cidadãos atenienses, dispostos nos anfiteatros com
capacidade para catorze mil lugares segundo a idade, o sexo e a ocupação
profissional – sabe-se que membros do senado, efebos, estrangeiros e mulheres
não apenas assistiam como comiam e bebiam durante a apresentação das
peças
21
–, o filósofo franco-suíço contrapunha o teatro à festa pública, com a
explicitação do caráter refinado do primeiro e o caráter democrático-popular do
segundo.
Para Rousseau, cuja visão divergia de Descartes e de d’Alembert mas era
congruente com os apontamentos de Diderot relativos à corrupção do gênero
dramático, em um debate que incluía aspectos pedagógicos e propedêuticos e
que se estenderia entre autores como Racine, Corneille e Lessing, a dimensão
espacial não era um dado secundário ou irrelevante. A forma arquitetônica –
em suas disposições geométricas circulares, cônicas ou poliédricas, abertas ou
fechadas – determinava a composição e a qualidade do espetáculo, de modo
que o teatro moderno colocava o espectador em uma posição de inércia e
passividade:
“... não adotemos esses espetáculos exclusivos que fecham tristemente
um pequeno número de pessoas num antro escuro; que o guardam
tímido e imóvel no silêncio e na inação; que só oferecem aos olhos
19
BENJAMIN, W. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasilense, 1986,
vol.1.
20
Cf. ROUSSEAU, J.-J. Carta a D’Alembert. Campinas: Ed. UNICAMP, 1993. A polêmica
também é circunstanciada por Richard Sennet em sua análise do mundo público no Antigo
Regime. Cf. SENNET, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
21
Cf. BARTHES, R. “Le théâtre grec”. In: L’obvie et l’obtus: essais critiques III. Paris: Éditions
du Seuil, 1982, p 77 e 78.
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paredes, pontas de ferro, soldados, aflitivas imagens da desigualdade e
da servidão.”
22
.
Em estudo sobre o teatro grego, o estruturalista francês Roland Barthes
também sublinha as distinções formais dos locais onde se davam as
representações cênicas na Antigüidade e na Idade Moderna:
“...contrairement à notre théâtre bourgeois, pas de rupture physique
entre le spectacle et ses spectateurs; cette continuité était assurée par
deux éléments fondamentaux, que notre théâtre a essayé récemment de
retrouver: la circularité du lieu scénique et son ouverture. (...) De la
salle obscure au plein air, il ne peut y avoir le même imaginaire: le
premier est d’evasion, le second de participation.”
23
.
Sem descurar de um balanço desse legado histórico, as considerações de
Brecht tinham em mira tanto a finalidade do teatro aristotélico, com o primado
da catarse, quanto os princípios estruturais da dramaturgia burguesa, assentados
na dicotomia cartesiana sujeito-objeto e na relação que pressupõe a atividade
do ator e a passividade do público. Os aspectos catárticos eram combatidos
pelo dramaturgo uma vez que o teatro deveria ter como meta menos a
identificação emocional do público com as personagens em cena e mais a
produção do distanciamento e do estranhamento, condição necessária para um
posicionamento reflexivo perante a realidade enfocada. A superação teórica e
prática da poética de Aristóteles consistia na ultrapassagem do parâmetro
teatral calcado no estilo dramático em favor de um teatro épico que integrasse
diversão e aprendizagem, ensino e entretenimento, pedagogia e distração com
vistas a impedir o processo ilusório de empatia e com vistas a despertar os
questionamentos políticos do espectador sobre a realidade circundante. A
reivindicação brechtiana postulava um nivelamento entre a força então
hegemônica centrada na emoção e a condição marginal em que se encontrava o
espírito crítico:
“....o que Brecht mais ataca em toda a tradição aristotélica é a função
da catarse. Se o espectador deve ser purgado de certos sentimentos, ele
22
Apud. PRADO JR., B. “Gênese e estrutura dos espetáculos (notas sobre a Lettre à d’Alembert,
de Jean-Jacques Rousseau)”. In: Estudos CEBRAP. São Paulo: Editora Brasileira de Ciências,
1975, n. 14, p. 22.
23
Cf. BARTHES, R. op. cit, p. 76 e 77.
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é ‘engolido’ pelo espetáculo, no sentido de que a sua atividade é gasta,
usada. O importante, contudo, não é aliviar o homem ou melhorar a
sua alma, mas despertar a atividade do espectador enquanto ser
social.”
24
.
Os escritos do jovem Brecht, que nas décadas de 1920 e 1930 vivia a
ambiência da república de Weimar entre as duas grandes guerras mundiais, sob
o influxo do materialismo dialético marxista e de estéticas vanguardistas como
o expressionismo alemão, procuravam encontrar uma saída para a crise do
teatro e do homem de sua época. Ante um diagnóstico que detectava o fracasso
do teatro tradicional, com a evasão do público para outras esferas da vida
cultural, sua apreciação buscava soluções fora dos círculos teatrais e dos
ambientes artísticos situados a seu redor. Isto porque, se os apelos emotivos da
catarse levavam a uma obliteração da realidade e a uma transformação do
espectador em objeto passivo, desta feita à medida que seu comportamento se
volta cada vez mais para as virtudes civilizadoras do refinamento, da distinção
e da educação
25
, mediante peças de teor edificante e moralizante, o proclamado
sucessor do teatro na emergente modernidade européia, o cinema, elevava ao
máximo a dicotomia cartesiana sujeito-objeto e a condição inercial creditada ao
público
26
.
Essa posição seria corroborada por Edgar Morin, um dos primeiros
sociólogos franceses a se debruçar sobre o fenômeno da cultura de massas do
século XX:
“... o espectador das ‘salas obscuras’ é, quanto a ele, sujeito passivo no
estado puro. Não tem qualquer poder, não tem nada para dar, nem
sequer aplauso. Paciente, suporta. Subjugado, sofre. Tudo se passa
muito longe, fora do seu alcance. Mas ao mesmo tempo, e sem mais,
tudo se passa dentro de si, na sua coenestesia psíquica, se assim se
pode dizer. Quando os prestígios da sombra e do duplo se fundem na
tela branca de uma sala noturna, perante o espectador, enfiado no seu
alvéolo, mônada fechada a tudo, exceto à tela, envolvido na placenta
24
Cf. BORNHEIM, G. “Questões do teatro contemporâneo”. In: O sentido e a máscara. São
Paulo: Perspectiva, 1969, p. 28 e 29. O teatro de vanguarda da segunda metade do século XX
acentuaria o pendor antiaristotélico brechtiano. Em nível internacional, ele era representado por
Ionesco, Samuel Beckett e Antonin Artaud; em nível nacional, por José Celso Martinez Corrêa e
Augusto Boal, entre outros.
25
Os sociólogos Norbert Elias e Pierre Bourdieu dedicaram-se ao exame da incorporação de um
conjunto de habitus por parte de determinados grupos sociais, com o propósito de estabelecer
processos distintivos de notabilidade em torno de determinadas práticas tidas como elevadas,
superiores e eruditas. Cf. ELIAS, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
BOURDIEU, P. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Ed. de Minuit, 1992.
26
Cf. BORNHEIM, G. Brecht, a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 199.
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76
dupla de uma comunidade anônima de obscuridade, quando os canais
de ação se fecham, abrem-se as comportas do mito, do sonho e da
magia.”.
27
Em verdade, a problemática da inércia e da passividade no mundo das
artes já havia sido prenunciada pelo sociólogo alemão George Simmel em sua
conferência de 1903, “A metrópole e a vida mental”, quando apontou de modo
sumário e esquemático as análises contidas em A filosofia do dinheiro (1900),
obra opulenta que se debruça sobre as conseqüências da separação entre a
cultura objetiva e a cultura subjetiva e suas implicações no tocante à formação
da personalidade. A tragédia da cultura do ponto de vista simmeliano consistia
na atuação de forças sociais esmagadoras sobre o indivíduo nos aglomerados
humanos que constituíam as grandes cidades. A intensificação dos estímulos
nervosos proporcionada pelo ritmo célere da vida urbana afetava os
fundamentos sensoriais do universo psíquico, com reações do intelecto que se
voltavam para a autoproteção e para o resguardo da individualidade frente aos
imperativos da técnica, da quantificação e do anonimato nas metrópoles. Uma
das expressões da sobrecarga a que se encontrava submetido o indivíduo neste
meio era a atitude blasé, aquela do embotamento do poder de discriminar e de
reagir às sensações advindas do exterior. Encerrado em sua subjetividade,
desvalorizando os elementos externos do mundo objetivo à sua volta, o tipo
blasé expressava para Simmel a última possibilidade de acomodação ao
conteúdo e à forma nivelada da vida metropolitana
28
.
Entrementes, as primeiras teorias do cinema, elaboradas tanto por
Siegfried Kracauer quanto por grandes diretores nas décadas de 1920 e 1930,
como Sergei Eisenstein, não traziam acréscimos mais substantivos à definição
geral do espectador, tal qual postulada para o espaço cênico, muito embora seja
válida a ressalva de que sua matriz originária derivasse tanto do diálogo com o
teatro quanto da interseção com outras esferas da arte, em particular, a pintura,
a fotografia e a literatura. Em meio ao jogo dual entre projeção e identificação,
o cineasta soviético amparava-se na reflexologia condicionada de Ivan Pavlov,
27
Cf. MORIN, E.A alma do cinema”. In: XAVIER, I. (Org.). A experiência do cinema:
antologia. Rio de Janeiro: Graal / Embrafilme, 1983, p. 156. Cf. também MORIN, E. Cultura de
massas no século XX: o espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
28
Cf. SIMMEL, G. “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, O. G. (Org.). O fenômeno
urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1976, p. 12-17. Cf. também SIMMEL, G.
Philosophie de l’argent. Paris: Presses Universitaires de France, 1987.
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77
segundo a qual cada estímulo acarreta uma resposta calculável de modo quase
imediato, a que agregaria, no decênio de 1930, as formulações tecidas pelo
antropólogo Lévy-Bruhl sobre o “pensamento primitivo” e as idéias do
psicólogo Vygotsy acerca da linguagem
29
. O processo psíquico, com fundo
comportamental behaviorista, de indução do espectador a um determinado
filme com características extáticas, onde os efeitos da luz de que se vale a
técnica cinematográfica multiplicam em nível exponencial os estímulos quando
comparados ao naturalismo do teatro, coloca o indivíduo em um estágio
propício, do ponto de vista mental e intelectual, para o recebimento da obra. A
reação a tal ordem de elementos pictóricos e imagéticos correspondia à geração
do êxtase no espectador, o que equivale de modo literal a uma colocação “fora
de si” (ek-stasis), em termos análogos ao pensado para o papel da emoção no
alcance da catarse
30
.
A exposição desse quadro possibilita a observação de que não havia
discrepâncias conceituais significativas na passagem da relação ator-espectador
no teatro para a relação espectador-imagem no cinema. A montagem
cinematográfica, segundo Eisenstein, levava em consideração o espectador
como seu material e sua finalidade básica, em contraposição ao modelo de
cinema narrativo forjado por Griffith nos Estados Unidos à mesma época, cujo
objetivo pedagógico e moralizante sobressaía no intuito de constituir um
público condizente com a modernidade burguesa norte-americana que cada vez
mais se impunha ao mundo. Sorvida da experiência teatral, a visão utilitária e
engajada de Einsentein acerca da função da sétima-arte não destoava da
proposta de um teatro épico-didático formulado por Brecht, na medida em que,
para o cineasta soviético, as emoções poderiam ser redirecionadas na
configuração de um estado de espírito crítico. Não obstante a confluência de
projetos, os dois autores, contemporâneos entre si, divergiam em relação ao
método, pois, enquanto Brecht apregoava o estranhamento como princípio
necessário para uma racionalidade indagadora e interpeladora, Eisenstein
acreditava na aproximação sensorial despertada pelo fenômeno artístico como
forma de produzir a conscientização:
29
Cf. XAVIER, I. (Org.). op.cit., p. 177.
30
Cf. AUMONT, J. A imagem. Campinas: Papirus, 1993, p. 86 e 95.
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78
“Atração (do ponto de vista do teatro) é todo aspecto agressivo do
teatro, ou seja, todo elemento que submete o espectador a uma ação
sensorial ou psicológica, experimentalmente verificada e
matematicamente calculada, com o propósito de nele produzir certos
choques emocionais que, por sua vez, determinem em seu conjunto
precisamente a possibilidade do espectador perceber o aspecto
ideológico daquilo que foi exposto, sua condição ideológica final. (O
processo do conhecimento – ‘através do jogo das paixões’ – específico
ao teatro).”.
31
A despeito da tentativa teórica de aproximação de Eisenstein, a busca de
Brecht por um novo modelo de público para o teatro não se contentaria com o
suporte técnico proporcionado pelo cinema, muito embora o próprio
dramaturgo tenha-o visto como um meio de alcançar as massas e tenha atuado
nesta área de modo bissexto como diretor e roteirista de filmes. O empenho no
encontro de um público participativo, que articulasse sentimento e razão, o
levaria à passagem da consideração das platéias artísticas para as platéias
esportivas que despontavam como novidade em Berlim durante a década de
1920, com o esplendor das suas grandiosas arenas, dotadas de infra-estruturas
arquitetônicas capazes de abrigar milhares de aficionados dos mais variados
matizes e dos mais diversos estratos sociais. Ao lado do cinema, os esportes
configuravam um elemento típico da modernidade que passava de maneira
crescente a angariar adeptos e entusiastas em toda a sociedade.
Dentre as modalidades esportivas, o boxe era aquela que causava mais
fascinação e impacto no campo de experiência do dramaturgo, tendo em vista
não só o encantamento com a gestualidade exibida pelos atletas, mediante a
combinação de velocidade, força e tirocínio na superação do adversário – eram
notórias sua admiração e sua amizade pelo campeão de peso médio Paul
Samson-Körner, sobre quem começara a escrever uma biografia
32
–, mas
também em virtude da forma de participação e do envolvimento contagiante do
público no acompanhamento da luta. A sintonia entre o que ocorria no ringue e
o que se dava no comportamento de seus admiradores, a aliar entusiasmo e
31
Cf. EISENSTEIN, S. “Montagem de atrações”. In: XAVIER, I. (Org.). op. cit., p. 189 e 190.
32
Cf. BORNHEIM, G. “Os pressupostos gerais da estética de Brecht”. In: BADER, W. (Org.).
Brecht no Brasil: experiências e influências. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 50. A
plasticidade gestual presente em uma luta de boxe também despertou a atenção do contista
argentino Júlio Cortázar, conforme examinou Gustavo Naves Franco em sua dissertação de
mestrado. FRANCO, G. N. Os gestos do desejo: jogo, aspiração, modernidade e forma nos
contos de Júlio Cortázar. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em História Social da Cultura /
PUC-Rio, 2005.
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79
razão, paixão e lucidez, sensibilidade e raciocínio pelo esporte através de um
conhecimento objetivo pormenorizado das regras do jogo, em contraste com o
alheamento e a indiferença dos espectadores de teatro verificados por Brecht,
fazia-o exprimir-se em sentença lapidar: “Nos espoirs, c’est le public sportif qui
les porte.”
33
.
Em reforço à perspectiva que utilizava o exemplo esportivo como saída
para o impasse teatral, um estudo de Walter Benjamin consagrado a Brecht
assim retratava a situação:
“O teatro épico se dirige a indivíduos interessados, que ‘não pensam
sem motivos’. Mas essa é uma atitude que eles partilham com as
massas. No esforço de interessar essas massas pelo teatro, como
especialistas, e não através da ‘cultura’, o materialismo histórico de
Brecht se afirma inequivocamente. ‘Desse modo, teríamos muito em
breve um teatro cheio de especialistas, da mesma forma que um
estádio esportivo está cheio de especialistas’.”
34
.
Em texto benjaminiano clássico, “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, a comparação também seria feita com o cinema:
“A técnica do cinema assemelha-se à do esporte, no sentido em que
todos os espectadores são, em ambos os casos, semi-especialistas.”
35
.
A assertiva esperançosa com que Brecht saudava o público especialista
dos esportes no início do artigo escrito em um jornal berlinense em 1926,
mesmo ano em que começa a falar de “teatro épico” e em que inicia intensos
estudos marxistas e sociológicos
36
, seria indicativa para o historiador literário
Hans Ulrich Gumbrecht de uma tendência intelectual à admissão dos eventos
esportivos como sucedâneos das representações teatrais no período por ele
denominado de alta modernidade
37
. Tendo por base um tipo de indagação
próprio da tradição filosófica kantiana – “por que os atletas apreciam competir
33
Cf. BRECHT, B. op. cit., p. 7.
34
Cf. BENJAMIN, W. “Que é o teatro épico ? Um estudo sobre Brecht”. In: Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasilense, 1986, vol.1, p.
81.
35
Cf. Id. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: COSTA LIMA, L. Teoria
da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 239 e 240.
36
Cf. ROSENFELD, A. O teatro épico. São Paulo: Livro Técnico, 1965, p. 145 e 146.
37
Cf. GUMBRECHT, H. U. “Boxe”. In: Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34,
1998, p. 222. Cf. também Id. 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
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80
e por que nós, espectadores, apreciamos assistir-lhes?” – Gumbrecht, professor
de literatura comparada em Stanford, cujo interesse pela dimensão estética do
futebol se delineou a partir da Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos,
resultando na organização do dossiê “The Athete’s Body” para a revista
acadêmica Stanford Humanities Review em 1998
38
, às vésperas de outro
campeonato internacional, se situaria na contracorrente da visão hegemônica
mencionada no início do capítulo que tendia a separar teatro e esporte em
consonância com as diferenças demarcadas entre as artes altas e as artes baixas,
entre a chamada cultura erudita e a cultura popular, cisão efetuada de modo
progressivo a partir do Renascimento, mas embaralhada no século XX com a
conformação da cultura de massas. Em oposição a isto, Gumbrecht assinalava:
“... a imaginação dos intelectuais também aceita que a sobriedade, a
tensão e a concentração são estados de espírito que o boxeador
partilha com seus espectadores. Eis por que as multidões de boxe
tornaram-se um ideal normativo para a audiência do teatro moderno
(...). É quase uma provocação trivial dizer que os eventos esportivos,
especialmente as lutas de boxe, acabarão substituindo o teatro.”.
39
Um dos primeiros sociólogos franceses a estudar o esporte em moldes
científicos nos anos de 1960, Georges Magnane, não ficou imune também a tal
tipo de identificação, sendo o estádio um locus de sucessão dos espetáculos
antigos, com a atualização das funções catárticas do teatro na vida
contemporânea:
“... quando se eleva esse longo e intenso clamor, que pouco a pouco se
transforma em canto de alegria, amplo como um mar que ribomba,
rodopia e ferve, é impossível não sentir ali, debaixo do céu, muito
mais do que na maior sala de espetáculos do mundo, a realização da
catharsis coletiva esperada do teatro pelos gregos.”
40
.
Vale a ressalva de que esse tipo de comparação analógica, às vezes
pouco rigorosa ou carente de maior fundamentação, com o tempo seria
disseminado pelos cronistas esportivos como uma maneira de fornecer imagens
38
Cf. GUMBRECHT, H. U. (Org.). “The Athlete’s Body”. In: Stanford Humanities Review.
California: s.e., 1998, n.º 6.
39
Cf. Id. “Boxe”. In: Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 222.
40
Cf. MAGNANE, G. Sociologia do esporte. São Paulo: Perspectiva, 1969. Cf. também LYRA
FILHO, J. Introdução à psicologia dos desportos. Rio de Janeiro: Record, 1983, p. 116.
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81
literárias hiperbólicas ao futebol, sendo Nelson Rodrigues o exemplo-mor do
cronista que utiliza o “transbordamento de imagens” para falar do futebol. José
Carlos Marques analisa o autor inclusive à luz das teorias de Severo Sarduy
concernentes ao “espaço barroco”, capaz de engendrar uma “sintaxe visual de
relações inéditas”
41
. Já Bianca Pereira propõe uma aproximação entre a
perspectiva empregada por Mikhail Bakhtin na análise de François Rabelais e a
experiência e o exercício lúdico da linguagem efetuado por Nelson Rodrigues.
Em um jogo fluido de imagens e representações, as máximas de suas crônicas
transitam livremente entre a esfera sublime da arte e a realidade mais prosaica
das partidas de futebol
42
.
Sem entrar amiúde na pertinência das analogias ou no mérito dos
argumentos, deve-se atentar, outrossim, para as propriedades positivas –
exclusivas e distintivas –, do esporte moderno divisadas por Brecht no
entendimento do tipo de espectador que preconizava para o teatro.
Se já no século XVIII românticos alemães como Schiller, em suas Cartas
sobre a educação estética, consideravam que “o homem joga somente quando é
homem no pleno sentido da palavra, e somente é homem pleno quando joga
43
”,
em uma revelação da plenitude e da realização humanas alcançadas por tal
atividade; se teóricos do jogo como o historiador holandês Johan Huizinga
44
sublinhavam na década de 1930 a perda dos traços culturais lúdicos mais puros,
livres e desinteressados, de caráter arcaico e universal, com a introdução dos
clubes e da seriedade do esporte competitivo organizado no último quartel do
século XIX; ou ainda, se representantes do Colégio de Sociologia francês dos
anos de 1940, como Roger Caillois, vinculavam o jogo ora ao sagrado –
seguindo a tradição platônica – ora a uma tipologia identificadora de quatro
propriedades intrínsecas à prática, a saber, a vertigem (ilinx), o simulacro
41
Cf. MARQUES, J. C. O futebol em Nelson Rodrigues: o óbvio ululante, o Sobrenatural de
Almeida e outros temas. São Paulo: Educ/Fapesp, 2000, p. 18.
42
Faz-se referência à dissertação de mestrado de Bianca Pereira, defendida no IUPERJ sob
orientação de Ricardo Benzaquen. Cf. PEREIRA, B. C. V. “Literatura futebolística e brasilidade:
uma leitura damattiana das crônicas de Nelson Rodrigues”. In: Revista Digital Enfoques.
<http//www.enfoques.ifcs.ufrj.br/>. Rio de Janeiro, março de 2004, n.º 1. Acesso em: 09 de junho
de 2007.
43
Cf. SCHILLER, F. A educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo:
Iluminuras, 1990, p. 84.
44
Cf. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva,
1971.
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82
(mimicry), o combate (agôn) e a sorte (alea)
45
; o dramaturgo alemão adotava
em contrapartida um espírito cientifico positivo que via tais atividades de modo
descontínuo, porém afirmativo, em relação às demais formas de entretenimento
legadas pela tradição antiga e medieval.
A ênfase na positividade da ruptura, por outro lado, apenas
tangencialmente aproximava Brecht do sentido requerido em momento
posterior pelo sociólogo alemão Norbert Elias e pelo sociólogo francês Pierre
Bourdieu
46
. Ambos os autores apontavam o hiato existente entre os esportes
modernos e os passatempos rurais inscritos no calendário festivo e religioso até
então, em favor de uma perspectiva que ressaltava o desenvolvimento
específico de uma autonomia dos exercícios físicos e dos condicionamentos
corporais próprios da ginástica nas public schools inglesas. Elias entendia os
esportes originários da Inglaterra como um dos elos da cadeia de
interdependência atuante na formação histórica do Estado moderno naquele
país e na conversão da violência física em violência simbólica, por meio da
introjeção de um conjunto de hábitos de civilidade na consciência individual.
Para isto, contudo, o sociólogo alemão alicerçava-se ainda nos fragmentos
aristotélicos da teoria do lazer, mormente o efeito da música e da tragédia nas
pessoas, com a incorporação de dois conceitos, o de mimesis e o de catarse, em
suas reflexões sobre o esporte moderno
47
.
A clivagem entre jogo e esporte na ótica brechtiana segue suas
observações críticas acerca da função da representação na dramaturgia
ocidental – em particular, a relação da consciência com o binômio
realidade/ilusão e os efeitos da fragmentação perceptiva sobre a totalidade do
espaço cênico – e sua revisão da ordem de correlação entre os termos sujeito e
objeto nos espetáculos da modernidade. A transição do jogo para o esporte
obedeceu à mesma lógica da trajetória do teatro no Ocidente, com a
naturalização da dicotomia corpo/espírito no pensamento filosófico e na
tradição da ratio ocidental de Aristóteles a Descartes e com a destituição de seu
45
Cf. CAILLOIS, R. Les jeux et les hommes: le masque et le vertige. Paris : Gallimard, 1995, p.
47.
46
Cf. BOURDIEU, P. “Como é possível ser esportivo”. In: Questões de sociologia. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1983. Cf. ELIAS, N.; DUNNING, E. “Le football populaire dans
l’Angleterre médiévale et prémoderne”. In: Sport et civilisation: la violence maîtrisée. Avant-
propos de Roger Chartier. Paris: Fayard, 1994.
47
Cf. Id. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1995, p. 121 e 122.
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referencial sagrado originário, articulado à dimensão cósmica integradora da
música, do ritual e da festa. Enquanto o jogo promovia a ligação do homem no
cosmo através das festas e das atividades lúdicas acopladas ao calendário
litúrgico medieval, o esporte incidia de maneira progressiva no abstrato durante
o período moderno.
A ubiqüidade dos princípios do jogo, presentes em diversas esferas da
vida social – no direito, na política, na cultura, na religião – é abstraída pela
separação do esporte, que institui um universo à parte, dessacralizado,
delimitado e preciso. Ao contrário da tendência verificada no século XX, com a
tentativa de restituição de experiências lúdicas originárias nas artes dramáticas,
no balé ou na pantomima, que se valem do jogo mediante a conexão entre
movimento, música e corpo, anterior à dualidade sujeito-objeto, Brecht
mantém-se circunscrito à divisão operada pelo âmbito esportivo e procura
extrair dele não o conteúdo mas a forma para o teatro épico que então
postulava.
Tal forma se opunha ao modelo narrativo preestabelecido pelo teatro ao
seu público, pautado nas regras aristotélicas de verossimilhança e de
continuidade ilusionista, com uma estrutura de início-meio-fim já dada de
antemão, fatalismo a que o espectador contribuía tão-somente com o alívio
subseqüente ao clímax e com a purgação de seus sentimentos. Para o escritor
italiano Umberto Eco, eis as linhas mestras da abertura épica brechtiana que
iam de encontro à estrutura dramática tradicional:
“Se examinarmos a poética teatral de Bertolt Brecht, encontraremos
uma concepção da ação dramática como exposição problemática de
determinadas situações de tensão; propostas estas situações – segundo
a conhecida técnica da recitação ‘épica’, que não quer sugestionar o
espectador, mas apresentar-lhe de modo distanciado, estranhado, os
fatos a observar – a dramaturgia brechtiana, em suas expressões mais
rigorosas, não elabora soluções; caberá ao espectador tirar conclusões
críticas daquilo que viu.”
48
.
Privado de referentes transcendentais, o formato esportivo oferecia
espaço à indeterminação, à descoberta e à experimentação, onde o indivíduo
que o fruía podia intervir com seu intelecto e sua sensibilidade. De modo
48
Cf. ECO, U. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo:
Perspectiva, 1969, p. 49.
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aproximado aos “experimentos” das ciências naturais, o dramaturgo postulava
suas peças como locus para experimentos sociológicos de suas teorias. A
manutenção da hegemonia sujeito-objeto, em um mundo a ser construído pelo
homem com o ocaso da metafísica, somada à abertura estrutural da cena
esportiva, com sua dinâmica sem fim predeterminado, proporcionaria uma
mudança na relação ator/espectador do teatro quando considerada a díade
atleta/espectador nos esportes. À passividade contemporânea do teatro burguês,
cuja meta passava a ser o esquecimento da realidade, segundo o diagnóstico de
Brecht, corresponderia a postura ativa consciente como princípio inovador
observado no comportamento do espectador esportivo. Ainda em seqüência à
argumentação do estudioso da obra brechtiana, Gerd Bornheim:
“... em Brecht, a decisão é tomada a favor do esporte, fincado dentro
dos limites da dicotomia sujeito-objeto. A evolução futura de Brecht
está aqui: ele respeitará sempre a dicotomia sujeito-objeto, mas tentará
também transformar o comportamento interno dos dois termos que a
compõem: em vez de aceitar a relação de atividade (sujeito-
espetáculo) e passividade (objeto-público), elaborará técnicas para
mudar esse esquema em relações de atividade: o sujeito-espetáculo
ativo exige a resposta de um objeto-público igualmente ativo. Mas
isso sem abandonar jamais a dicotomia.”.
49
O dramaturgo endossa a postura por ele denominada “científica” do
público, decorrente da estrutura formal do esporte, pois seu espectador é aquele
que a seu ver apresenta uma capacidade dupla: ele sabe julgar com
objetividade, o que o leva a um distanciamento crítico por intermédio do
conhecimento das leis da partida, bem como dos seus aspectos técnicos e
táticos; e ao mesmo tempo ele é capaz de se entusiasmar com facilidade, o que
gera um envolvimento direto com o desenrolar dos acontecimentos da partida.
Em detrimento da mera assistência passiva, a intervenção do espectador seria
um emblema da experiência autêntica por parte do sujeito
50
, com o
estabelecimento de um olhar distanciado que conjuga frieza e excitação, calma
e inquietude, ponderação e nervosismo.
49
Cf. BORNHEIM, G. “A linguagem do esporte”. In: Brecht, a estética do teatro. Rio de
Janeiro: Graal, 1992, p. 96.
50
Em ensaio instigante, Gumbrecht discute a cisão corpo-espírito no Ocidente e seus efeitos nos
esportes e na experiência literária da modernidade. GUMBRECHT, H. U. “‘É apenas um jogo’:
história da mídia, esporte e público”. In: Corpo e forma: ensaios para uma crítica não-
hermenêutica. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998, p. 118.
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Com efeito, segundo a observação do crítico acima aludido, a história do
público não se restringiria desde então apenas ao ato de ver, pois as formas de
acompanhamento do espetáculo esportivo minimizaram a onisciência do olhar,
tornando-o secundário. A condição de permanecer sentado deixou de ser o
denominador comum do assistente e passou a incluir não só os gestos e a
agitação dos corpos mas também a fala e toda sorte de gritos, comentários,
interjeições, apupos, ovações, além das palmas contínuas no transcorrer da
contenda. Isto se opunha a uma recente tradição oitocentista instaurada no
teatro, na ópera, no balé e em outras modalidades de concerto clássico onde os
aplausos eram reservados ao final da apresentação como relaxamento da
tensão, em consonância com os códigos de etiqueta estudados por Elias
51
.
O aburguesamento do teatro europeu foi, pois, concomitante à introdução
da disciplina do silêncio nas platéias londrinas e parisienses do século XIX,
conforme demonstra o estudioso da formação do domínio público no Ocidente,
o escritor norte-americano Richard Sennet:
“Refrear as emoções no teatro passou a ser um traço distintivo para
que as classes médias das platéias se separassem das classes operárias.
Uma platéia ‘respeitável’, por volta de 1850, era uma platéia que
podia controlar os seus sentimentos por meio do silêncio. A
espontaneidade antiga era tida como ‘primitiva’”
52
.
O elogio tecido ao público de esporte por Brecht na década de 1920 pode
ser mais bem compreendido caso se considere que seus pontos de vista iam de
encontro ao pensamento de autores como Oswald Spengler, cuja tese
apresentada em sua volumosa obra A decadência do Ocidente tinha vindo a
lume em 1918 e se popularizara com rapidez na Europa no decênio seguinte
53
.
Nela, o autor defendia o argumento determinista, claramente inspirado em
analogias retiradas da biologia, segundo o qual todas as sociedades humanas,
em quaisquer épocas, após vicejarem, florescerem e amadurecerem, estariam
fadadas ao perecimento. Balizado por uma diferenciação entre a idéia de
51
Cf. LOPES, J. S. L. “Esporte, emoção e conflito social”. In: Revista Mana: Estudos de
Antropologia Social. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995, vol.1, n. 1, p. 155.
52
Cf. SENNET, R. op. cit., p. 256.
53
A tiragem alemã de 1924 alcançou 140 mil exemplares. Cf. SPENGLER, O. A decadência do
Ocidente: esboço de uma morfologia da História Universal. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964,
p. 09.
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cultura e a de civilização diferenciação por sinal radicalmente distinta da que
faria pouco depois Norbert Elias na descrição do processo civilizador, tendo a
primeira um cunho nacional e a segunda um caráter universalista , Spengler
sustentava que toda etapa histórica cultural marcada pela ascensão e pela
criatividade era sucedia por uma etapa civilizatória ulterior caracterizada pela
queda e pela imitação decadente.
Ainda que somente aparecesse citado em traços ligeiros no décimo
segundo capítulo de seu trabalho, o fenômeno esportivo não deixaria de ser
apreciado pelo autor como uma expressão do declínio do jogo e, por
conseguinte, como mais um sintoma do destino inexorável de decadência do
mundo ocidental. Em versão condensada do livro de Spengler, disponível ao
público brasileiro, encontra-se a seguinte passagem:
“A tensão intelectual não conhece senão uma única forma de recreio, a
especificamente metropolitana: o oposto da tensão, a ‘diversão’. O
Cinema, o Expressionismo, a Teosofia, as lutas de boxe, as danças
negras, o pôquer, as apostas nas corridas de cavalo – tudo isso poderá
ser reencontrado em Roma.”
54
.
Na mesma proporção em que a cultura helênica tinha sido responsável
pelo florescimento dos jogos olímpicos e da ginástica na Grécia antiga, tal
gênero atlético havia sido corrompido pela degradação do circo no Império
Romano, com o panis et circencis narcotizante oferecido às massas; do mesmo
modo que o jogo era uma prática lúdica espontânea, criada para ser exercida
sem pretensões e de modo livre, esta atividade estava sendo substituída e
deturpada pelo utilitarismo dos esportes competitivos nos estádios europeus,
onde se assistia à histeria coletiva do público e ao amestramento dos jogadores.
À visão decadentista preconizada por Oswald Spengler em 1918, cujas
apreciações sobre os pares jogo/esporte e cultura/civilização passaram ao largo
do crivo de Johan Huizinga em 1933, durante sua aula inaugural como reitor da
Universidade de Leiden, na Holanda, onde apresenta seu primeiro esboço
reflexivo a respeito da dimensão universal do hommo ludens, uma década
depois da publicação do clássico O declínio da Idade Média (1924)
55
, em que
54
Cf. ibid, p. 282.
55
Cf. HUIZINGA, J. O declínio da Idade Media. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,
1978.
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também tematiza os estertores de uma fase da civilização ocidental, sucedia a
visão afirmativa salientada por Bertolt Brecht acerca do público esportivo.
Ela evidencia a discrepância das interpretações atinentes à construção da
imagem do torcedor de futebol durante o século XX. Em que pese a
proximidade do pensamento brechtiano com as idéias estéticas marxistas
veiculadas nas décadas de 1930 e 1940, sua valorização da experiência do
espectador esportivo afiguraria-se uma voz isolada, sem encontrar eco entre os
expoentes da Escola de Frankfurt. Mesmo outro autor dissonante nesse
contexto, o jovem Gramsci, seria incapaz de reverter tal imagem no campo do
pensamento marxista. Em breve artigo escrito para o jornal italiano Avanti!, a
26 de agosto de 1918, ele saúda o futebol e os esportes modernos realizados em
espaços abertos, protótipos do espírito de iniciativa, da ética individualista e da
igualdade perante a lei, em oposição a jogos como o baralho, realizados nos
ambientes fechados e obscuros dos botequins, sujeitos a trapaças e a
desrespeitos às regras.
O artigo causa espanto porquanto ele contém insights originais que mais
tarde seriam fisgados e desenvolvidos pela Antropologia Social: no Brasil, por
Roberto DaMatta; na Argentina, por Eduardo Archetti; e na França por
Christian Bromberger.
56
. Entre os artistas internacionais filiados em algum grau
ao marxismo, Gramsci teria a companhia de um conterrâneo, o cineasta Pier
Paolo Pasolini, que escreveu crônicas sobre futebol entre as décadas de 1950 e
1970. Ao contrário da admiração de Brecht pelo boxe, Jean-Paul Sartre
considerava-o a expressão do capitalismo
57
, sendo mais sensível ao futebol
como fenômeno esportivo pleno, influenciado para isto pela argumentação e
pela vivência do amigo Albert Camus, relatada no romance A queda: “Les
matchs dans un stade plein à craquer et le théâtre, que j’ai aimé avec une
passion sans égale, sont les seuls endroits du monde où je me sente
innocent.”
58
.
Como é sabido, os frankfurtianos tenderiam a ler o esporte na chave da
alienação da consciência na vida moderna, decorrente da divisão do trabalho, e
56
Cf. GRAMSCI, A. “O futebol e o baralho”. In: Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2004.
57
Cf. MURAD, M. A violência e o futebol: dos estudos clássicos aos dias de hoje. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 85.
58
Cf. CAGNACCI, A. Pays du foot : une passion et des styles. Paris: Éditions Autrement, 1998,
p. 70.
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a associar as suas afinidades estruturais à ideologia do mundo industrial,
aprisionadora da mente e do corpo do indivíduo. Embora a compreensão da
ocupação do tempo livre por Theodor Adorno tenha sido feita com base na
leitura da teoria da classe ociosa de Veblen, de 1905, pode-se especular o
quanto a visão degradante acerca do esporte apontada por Spengler se
incorporou, ainda que de modo indireto ou não intencional, ao discurso
corrente do marxismo, em sua versão mais prosaica, lata e vulgar, com a
atribuição ao futebol do estereótipo de ópio do povo – sendo o torcedor a
expressão mais rasa, mais chã deste –, transladado da esfera institucional
religiosa para a esfera institucional esportiva na modernidade.
Dessa maneira, toda uma tradição que nasce no final do século XIX com
Thorstein Veblen e vai até o século XX com Oswald Spengler, passando por
José Ortega y Gasset e Theodor Adorno, chegando até Henri Lefèvre e Jünger
Habermas, e destes a comentaristas como Umberto Eco
59
, contribuiu para
associar de modo ensaístico e pontual o comportamento da multidão de futebol
ao fanatismo, à decadência e à alienação. Isto foi feito ainda em abono –
explícito ou implícito – à valoração negativa mais abrangente estabelecida por
uma outra linhagem de pensadores, como Gustave Le Bon e Gabriel Tarde,
Sigmund Freud e Wilhelm Reich, que se debruçaram, cada um à sua maneira,
na análise da psicologia das massas típica do Novecentos.
Em momento posterior, na segunda metade do século XX, com uma
atuação já em âmbito mais sistemático e institucionalizado, estudiosos
contemporâneos como Jean-Marie Brohm, Juan José Sebreli e Roberto Ramos
– para citar um francês, um argentino e um brasileiro – seriam emblemáticos de
tal tipo posicionamento, calcado em pressupostos frankfurtianos, que dariam
corpo na década de 1960 à chamada Teoria Crítica do Esporte
60
. O
comportamento do torcedor foi confinado a uma manifestação emotiva em
59
Cf. ECO, U. “A falação esportiva”. In: Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984.
60
Sobre esta, além da referência já assinalada na Introdução, ver o trabalho de Valter Bracht. Cf.
BRACHT, V. Sociologia crítica do esporte: uma introdução. Ijuí: Editora Ijuí, 2003. Cf.
RAMOS, R. Futebol: ideologia do poder. Rio de Janeiro: Vozes, 1984. Cf. também SEBRELI,
J. J. “El hincha”. In: La era del fútbol. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1998. Cf. ainda
BROHM, J.-M. La tyrannie sportive: théorie critique d’un opium du peuple. Beauchesne: Paris,
2005.
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estado bruto, próxima da irracionalidade e, por conseguinte, da natureza
61
. Só
assim seria possível entender a visão que ficou cristalizada a seu respeito, com
a percepção da instabilidade e da variação emocional dos seus humores, no
sentido proposto remotamente por Aristóteles, embora, ainda aqui, na
contrafação da idéia de genialidade que emerge associada à melancolia no
Renascimento
62
: atitudes pendulares e violentas, oscilantes e basculantes, dadas
a interpolações extremadas e a exclamações inflamadas, a urros vociferantes, a
súbitos desatinos.
Assim, sem atentar para as virtudes entrevistas por Brecht em relação ao
distanciado porém consciente e rigoroso espectador moderno, notadamente o
público de boxe dos anos de 1920, em um cotejo original, fundamentado do
ponto de vista histórico na evolução do binômio sujeito-objeto, com as platéias
de teatro; sem considerar a passagem de um paradigma passivo para um
paradigma ativo no interior da discussão hegeliano-dialética do marxismo, com
a investigação das formas de contemplação no Ocidente e com a constituição
processual da dinâmica comunicativa e participativa dos espetáculos
esportivos; sem atinar para a possibilidade da existência de uma conduta
consciente, racional e equilibrada, o domínio de uma razão torcedora, ao lado
daquela que assevera a exclusividade do indivíduo cujas manifestações são, via
de regra, exaltadas e exacerbadas, para não dizer descontroladas e irracionais;
e, por fim, sem avaliar as heterogeneidades sociais e culturais do futebol,
reivindicadas com mais ênfase pela Antropologia a partir da década de 1990, a
figura do torcedor seria grosso modo relegada por parte significativa dos
intelectuais e, por extensão, pelo senso comum no decorrer do século XX à
condição de tábula rasa, a uma derivação patológica das emoções oferecidas
pela matriz aristotélica da catarse teatral, com o reabastecimento ilusório das
energias despendidas na lida cotidiana e com o desvirtuamento dos sentidos
concretos que ligam o ser humano à realidade.
61
Esse é o ponto crítico de que parte o antropólogo Arlei Damo, na apresentação do premiado
livro de Luiz Henrique de Toledo. Cf. DAMO, A. S. “Torcidas organizadas de futebol – resenha”.
In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, n. 31, p. 194.
62
Cf. SCLIAR, M. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003.
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1.2 Do carisma pedagógico à retórica da humildade
A aparência de uniformidade e de mediania atribuída ao perfil geral do
espectador de esportes, e ao torcedor de futebol em específico, não seria apenas
traçada por alguns expoentes da inteligentsia acadêmica e artística
internacional, dedicada em ocasiões tópicas à reflexão sobre a incidência do
fenômeno da cultura de massas na elaboração da subjetividade e dos tipos
humanos sociais durante o século XX. No âmbito particular do esporte, vários
agentes contribuiriam para enfeixar um conjunto de imagens tidas como
características e idiossincráticas do seu público assistente, em correspondência
com o processo de transformações históricas por que passou o futebol, tendo
em vista a sua crescente popularização, profissionalização e massificação, cujo
marco no Brasil remonta aos anos de 1930. Enquanto artistas e intelectuais
teciam suas interpretações abrangentes sobre o papel do espectador, quer nas
artes quer nos esportes, de maneira ensaística, episódica ou circunstancial, a
proposição e a prescrição de um modelo de comportamento mais determinado
para os torcedores eram urdidas por especialistas letrados do meio futebolístico,
com destaque para jornalistas e cronistas esportivos
63
.
Sabe-se que a difusão internacional dos esportes modernos originados na
Inglaterra se deu na virada do século XIX para o século XX e que, dentre eles,
o football association se disseminou com maior êxito graças à sua capacidade
extraordinária de transposição de fronteiras geográficas, econômicas e sociais.
No bojo da concorrência imperial britânica pela dominação de portos e pela
construção de estradas de ferro, cada colônia, ex-colônia ou república
emergente assimilou em escala local não somente as respectivas práticas
esportivas como também a constelação lingüística subjacente a elas
64
.
Conquanto se ressaltasse a universalidade de suas regras e normas, válidas para
qualquer espaço e tempo de maneira indiscriminada, a criação de tradições
63
Segue-se a subdivisão, já mencionada na Introdução, estipulada na França por Pierre Bourdieu e
no Brasil por Luiz Henrique de Toledo. Os especialistas seriam responsáveis pela intermediação
material, simbólica e tecnológica dos torcedores com os profissionais (jogadores, técnicos, juízes,
dirigentes), em uma integração que compõe a base tripartite ou a estrutura ternária do campo
esportivo. Cf. BOURDIEU, P. “Programa para uma sociologia do esporte”. In: Coisas ditas. São
Paulo: Brasiliense, 1990, p. 218. Cf. também TOLEDO, L. H. de. Lógicas no futebol. São
Paulo: Hucitec / Fapesp, 2002, p. 15 e 160.
64
Cf. ELIAS, N. “A gênese do desporto: um problema sociológico”. In: ELIAS, N.; DUNNING,
E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1995, p. 187.
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nacionais vinculadas a tais atividades adquiriu diferentes contornos segundo as
fases de evolução e de desenvolvimento do futebol em cada país.
Isso pode ser aferido na gama de vocábulos nativos, de expressões
peculiares e de significados próprios a cada língua, no intercâmbio circular
entre os registros falado e escrito, erudito e popular, de que tratam em outro
contexto histórico Bakhtin e Ginzburg
65
. Durante a década de 1980, Peter
Burke e um grupo de pesquisadores ingleses dedicaram-se também ao
desenvolvimento de uma história social da linguagem, que resultou na
organização de uma trilogia sobre o assunto. A dinâmica da análise lingüística
não se confinaria ao relato de suas transformações filológicas e semânticas, mas
compreenderia a busca de sentido e a sua repercussão na sociedade, uma vez
que a linguagem é uma instituição social de importância capital na
comunicação cotidiana, permitindo a constituição de identidades e a inclusão
simbólica de subgrupos
66
.
Assim, a incorporação vocabular se deu em paralelo à invenção de estilos
nacionais do jogo, com a inovação de aspectos técnicos e táticos mais
convencionais e hegemônicos. À importação inicial de elementos estrangeiros
que denotavam erudição, absorvidos em princípio de modo integral, sobrepôs-
se uma aclimatação e uma reconversão histórica paulatina no nível da ação e da
representação do fenômeno esportivo. A esfera representativa da linguagem,
circunscrita em seus primórdios ao discurso dos benefícios ético-morais
oferecidos pelos exercícios físicos na conformação espiritual dos indivíduos de
ethos aristocrático e burguês, ou no condicionamento e no controle do labor
operário, alargou o seu raio de influência na proporção em que o
acompanhamento dos campeonatos das ligas amadoras se tornou um hábito e
uma constante em diversos países no limiar do século XX.
65
Sobre a relação entre os dois autores, sugere-se o ensaio da antropóloga Karina Kuschnir. Cf.
KUSCHNIR, K. “Bakhtin, Ginzburg e a cultura popular”. In: Cadernos de Campo. São Paulo:
s.e., 1993, n. 3.
66
Cf. BURKE, P.; ROY, P. (Orgs.). Linguagem, indivíduo e sociedade. São Paulo: Editora
UNESP, 1994. Cf. também Id. História social da linguagem. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
Cf. ainda Id. Línguas e jargões: contribuições para uma história social da linguagem. São Paulo:
Editora UNESP, 1997. No Brasil, dois trabalhos precursores na área de Letras tangenciaram a
temática, com uma análise do léxico esportivo. Cf. FERNÁNDEZ, M. do C. L. de O. Futebol -
fenômeno lingüístico: análise lingüística da imprensa esportiva. Prefácio de Mônica Rector. Rio
de Janeiro: PUC; Editora Documentário, 1974. Cf. também PROENÇA, I. C. Futebol e palavra.
Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1981.
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O prazer provocado pelo ato de jogar logo chamou a atenção e veio a ser
cultivado por aqueles que descobriram a emoção ensejada pelo
comparecimento nas disputas. De início restrita a sócios dos clubes e a
familiares dos jogadores, cedo a atividade se propagou entre outros estratos
econômico-sociais com a disseminação do futebol nas companhias industriais,
nos clubes recreativos, nos logradouros públicos e nos terrenos baldios. Neste
sentido, coube a Eric Hobsbawm assinalar em breves linhas como a restrição
do futebol aos círculos de elite foi ultrapassada rapidamente na Inglaterra do
último quartel do século XIX pelas classes operárias britânicas, que se
apropriaram deste esporte tanto em sua prática quanto em sua apreciação. E
junto a este autor, na virada dos anos de 1970 para 1980, outros historiadores
aprofundaram estudos sobre as origens histórico-sociais do futebol nas cidades
inglesas
67
.
Quanto mais o gosto pelo ato de ver as competições esportivas se
incrementou, mais os comentários sobre os mesmos se multiplicaram no dia a
dia e mais a edificação de espaços físicos adequados para a acomodação deste
público incipiente fez-se necessária. A cobertura jornalística dos eventos
futebolísticos, porquanto estes ganhavam importância social para além dos
limites esportivos, não apenas atendeu a esta demanda como tratou de fomentá-
la e vislumbrou em tal meio o potencial de um espetáculo articulado ao mundo
da leitura e do consumo de periódicos, o que foi levado a termo de modo mais
incisivo e explícito na década de 1930. Além da fixação da crônica esportiva
como um gênero especializado na mídia impressa, o plano lingüístico foi
desenvolvido também nos anos de 1930 pelo advento da cobertura esportiva do
rádio no Brasil. A elocução radiofônica tanto forjou quanto dinamizou e
propalou inúmeras expressões da fala corrente nos estádios
68
. Até então,
especialistas eram convocados a fazer a crônica dos jogos em linguagem grave
67
Cf. HOBSBAWM, E. J. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2000. Cf. também MASON, T. “L’équipe d’Angleterre, entre clubs et
nation”. In: Sociétés et représentations. Paris: s.e., 1998, nº 7. Cf. ainda KORR, C. “Une
rhétorique de la famille: West Ham United”. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales.
Paris: s.e., 1994, n. 103.
68
Cf. LOPES, J. S. L. “A vitória do futebol que incorporou a pelada”. In: Revista USP. São
Paulo: s.e., 1994, n. 22. Os marcos e a problemática geral da introdução dos meios de
comunicação de massa no país, bem como suas implicações culturais na constituição de uma
identidade nacional, foram analisados pelo sociólogo paulista Renato Ortiz. Cf. ORTIZ, R. A
moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988.
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e altissonante, própria à estilística do período, com a acentuação em seus
relatos da aura de elegância e distinção que circundava as partidas, tal como se
verificou na belle-époque do Rio de Janeiro da década de 1910
69
e tal como já
ocorria com as corridas de cavalo e com as competições de remo na cidade em
fins do século XIX
70
.
Os primeiros apontamentos dos cronistas na descrição dos
acontecimentos esportivos transpunham os termos cunhados no original
britânico quando as abordagens se atinham a propriedades estritas dos
componentes do jogo – a posição dos atletas no campo, os utensílios materiais e
a infra-estrutura requerida pela prática – ao passo que as reportagens da
imprensa deram margem de modo progressivo ao aparecimento de novas
expressões para retratar a atmosfera e a ambiência das arquibancadas e das
gerais. Assim, poucas alterações foram verificadas em relação ao repertório
técnico. A grafia da palavra football, por exemplo, manteve-se conservada
durante tempo considerável em quase todos os lugares e assistiu a variações
vocabulares pouco expressivas: na França foi adotada a palavra football; na
Alemanha, fussball; na Espanha, na Argentina e no Uruguai, fútbol. No Brasil,
a substituição do football pelo abrasileiramento lingüístico futebol data somente
da década de 1950.
A exceção seria a Itália, onde se preferiu o calcio, termo autóctone
pertencente à tradição renascentista de um remoto jogo com bola em Florença,
e salvo as ex-colônias britânicas, como os Estados Unidos, a Austrália e o
Canadá, onde se instituiu o soccer, contração da palavra association
71
, como
forma de diferenciação do football rugby –, um grau de relativa liberdade e
fluidez lingüística foi concedido aos cronistas na caracterização dos tipos
humanos que acorriam às praças esportivas.
69
É vasta a literatura que enfatiza os aspectos distintivos do futebol nos primeiros decênios do
futebol no Brasil, sendo vulgarizado no senso comum o imaginário exclusivamente elitista voltado
para a descrição dessa época. Sob o rigor científico, além da tese do historiador Leonardo Affonso
de Miranda Pereira, já mencionada na Introdução, indica-se a leitura de um ensaio do mesmo
autor. Cf. PEREIRA, L. A. de M. “Pelos campos da nação: um goal-keeper nos primeiros anos do
futebol brasileiro”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997, nº 19.
70
Cf. MELO, V. A. de. Cidade Sportiva: primórdios do esporte no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2001. Cf. também NEEDEL, J. Belle-époque tropical: sociedade e
cultura de elite no Rio de Janeiro na virada do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
71
Cf. MÁXIMO, J.; WERNECK, J. L. “Futebol”. In: Enciclopédia Mirador Internacional. Rio
de Janeiro / São Paulo: Enciclopédia Britânica do Brasil, 1990, vol. 10, p. 5030.
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A variedade conotativa atribuída à figura do espectador de futebol, que
não se subsumia como nos outros casos à cópia da matriz originária inglesa,
revela a direção impressa por estes escritores na observação e na fixação de
uma imagem para este recém-integrado personagem do futebol. Em cada país,
os nomes escolhidos para mencionar os espectadores apresentariam
singularidades e sutilezas muito específicas, integrando-se por vezes ao estoque
e ao repertório de “lendas locais”. Mas é possível observar em quase todos eles,
em consonância com a matriz aristotélica da catarse, estudada no primeiro item
deste capitulo, o acento de uma qualidade sensório-motora, de uma reação
patológica, de uma pulsão física e orgânica, que supostamente atenderia à
tradução mais fidedigna da vivência emocional dos envolvidos com a
observação de uma partida. Assim, a heteronomia das palavras em seu contexto
nacional não equivalia a uma polissemia muito distinta do que se interessava
frisar em um plano geral, onde o élan catártico ressurgia com todo seu vigor
metafórico. Longe de ser uma nomeação desinteressada ou fortuita, seus
significantes traziam embutidos consigo uma série de valores e conteúdos
sugestivos, porém semelhantes, daquilo que se acreditava como intrínseco e
essencial à sua condição.
No final do século XIX, a Inglaterra consagraria dois termos específicos
para fazer menção ao espectador de futebol: fan, abreviação de fanatic, palavra
de raiz religiosa ligada, por um lado, à idéia de devoção e doação e, por outro, à
de exaltação e idolatria; e supporter, derivação de to support, verbo que implica
defender, apoiar, incentivar. Se na França o léxico seria vertido em sua
integralidade, le supporteur, o mesmo não ocorreria em outras regiões latinas
da Europa e da América do Sul, onde o futebol primeiro se espraiou. Na Itália,
por exemplo, a categoria adotada na década de 1920 seria uma expressão de
origem médica, tifosi ou tifoso, aquele que é acometido por uma febre (tifo), o
que remete à imagem do estado febril de quem é contagiado por uma
enfermidade incontrolável ou de quem vê alterada a normalidade de sua
conduta em virtude da elevação térmica do corpo, decorrente da excitação e do
transtorno emocional a que está sujeito um indivíduo no ápice de uma partida.
Segundo o historiador francês Pierre Lanfranchi:
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“Les journaux spécialisés des annés 1920 perdent ce caractère
didactique pour se focaliser sur la personnalité des vedettes. Les
premières biographies de footballeurs sont publiées au début des annés
1920. Le public prend une importance croissante, le terme ‘tifoso’ naît
au cours de ces annés.”
72
.
Já os países de língua hispânica, em especial, Espanha, Argentina e
Uruguai, utilizariam a partir dos anos de 1950 o vocativo hincha para designar
o adepto do futebol, em substituição a palavras até então correntes como
aficionados, fanáticos e simpatizantes
73
. A tradução correspondia ao verbo
inchar, que suscita a idéia de uma transformação similar a uma bola de futebol
quando inflada por uma bomba de gás. Por analogia, o termo foi pensado como
uma compressão corporal associada à oscilação dos estados de ânimo daquele
que assiste ao jogo, ora a retrair-se com a condição adversa de uma derrota ora
a insuflar-se com a condição favorável de uma vitória. De acordo com o
intelectual argentino Juan José Sebreli, o termo tem uma origem legendária e
uma explicação difusionista:
“Este último término fue aplicado por primera vez em Montevideo a
Prudencio Miguel Reyes, talabartero uruguayo, encargado de
‘hinchar’ la pelota de su club preferido, el Nacional de Montevideo, al
que alentaba con gritos durante el partido. De Uruguay el término
pasó a la Argentina y luego a España.”
74
.
Em língua portuguesa, a crônica também iria se comprazer no decênio de
1920 com a criação de um discurso sui generis para a identificação e até certo
ponto a glamourização das sensações vividas no futebol. Se em Portugal seria
empregada a palavra adepto, “aquele que se ajoelha em respeito quase religioso
por seu time”
75
, o tom anedótico de suas origens no Brasil era atribuído à
autoria do beletrista Coelho Neto. Este escritor, notabilizado nas primeiras
décadas do século XX no Rio de Janeiro por seu pendor entusiástico pelo
Fluminense Football Club, do qual foi diretor, punha em evidência os aspectos
72
Cf. LANFRANCHI, P. “La Première Guerre Mondiale et le développement du football em
Europe: l’exemple italien”. In: GASTAUT, Y.; MOURLANE, S. (Orgs.). Le football dans nos
sociétés: une culture populaire (1914-1998). Paris: Éditions Autrement, 2006, p. 145.
73
Cf. CONDE, M. “La invención del hincha en la prensa periódica”. In: ALABARCES, P. (Org.).
Hinchadas. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2005, p. 22.
74
Cf. SEBRELI, J. J. op. cit., p. 35.
75
REVISTA LÍNGUA. Futebol & linguagem. São Paulo: Editora Segmento, 2006, ano I,
número especial, p. 7.
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que seriam valorizados para uma sugestiva tipificação ancorada na
originalidade do imaginário lingüístico.
A palavra torcedor, oriunda do verbo torcer, era consignada pelos
cronistas com base em uma observação pitoresca feita nos dias de jogo: em
meio aos lances de indefinição e expectativa anteriores ao arremate de um gol,
lenços eram torcidos e contorcidos na arquibancada por parte do público
feminino presente que, conhecido pela contenção e pela moderação verbal,
contrastantes com os gritos, os berros e os impropérios mais permissivos ao
público masculino, exprimia de maneira sutil seu sofrimento com as tensões
emanadas da partida. Usados pelas mulheres de início para a saudação aos
jogadores do time no decorrer do ritual futebolístico – seja a entrada da equipe
em campo, seja a comemoração da vitória de sua equipe –, junto às fitas
coloridas que serviam de adorno e de distintivo clubístico aos chapéus de cada
espectador, a torção de tais adereços passou a simbolizar os gestos de aflição,
bem como, os efeitos de contração do corpo a que se submetia de um modo
generalizado todo e qualquer torcedor. Segundo a reconstituição até certo ponto
idílica feita pelo jornalista Mário Filho acerca do futebol no Rio de Janeiro da
década de 1910:
“Os jogadores distraíam-se, cercados de moças, cada uma querendo
namorar um deles. No dia seguinte elas estariam na arquibancada,
mordendo lencinhos de renda, soltando gritinhos, torcendo pela vitória
do Flamengo” (...) “Muito torcedor de fitinha no chapéu gostava de
assistir ao jogo atrás do gol. Para ver a bola entrando, suspendendo a
rede. Para gritar gol antes da bola entrar. Para torcer mais à vontade.
Como um moleque. Sem essa coisa de olhar para ver se tinha moça
perto. O torcedor, com um palavrão na boca, tendo de engolir o
palavrão.”
76
.
Os lenços antecederam também a introdução das bandeiras como
mecanismos de sinalização e de saudação dos torcedores aos jogadores em
campo, como se pode observar nas imagens fílmicas de que se tem registro até
a década de 1950
77
. Para o crítico de teatro Anatol Rosenfeld, tal utensílio dava
76
Cf. RODRIGUES FILHO, M. O negro no futebol brasileiro. Prefácio de Gilberto Freyre. Rio
de Janeiro: Mauad, 2003, p. 78 e 102. Um ensaio instigante sobre o emprego contemporâneo do
palavrão nos estádios foi escrito por Luiz Henrique de Toledo. Cf. TOLEDO, L. H. de. “Por que
xingam os torcedores de futebol ?”. In: Cadernos de Campo. São Paulo: s.e., 1993, n.º 3.
77
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1970, p. 06.
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ensejo à cunhagem ímpar de um vocábulo no Brasil, que exprimia um
movimento capaz de reproduzir com maestria a cooperação motora, a tendência
do espectador em impelir a equipe para frente e o sentimento de “também-
poder”, incomparavelmente maior, para este observador estrangeiro, no futebol
do que em esportes como o tênis ou o hóquei de gelo, onde não se verifica a
identificação íntima do público com o jogo e com os jogadores:
“O verbo ‘torcer’ significa virar, dobrar, encaracolar, entortar, etc... O
substantivo ‘torcedor’ designa, portanto, a condição daquele que,
fazendo figa por um time, torce quase todos os membros, na
apaixonada esperança de sua vitória. Com isso reproduz-se muito
plasticamente a participação do espectador que ‘co-atua’ motoramente,
de forma intensa, como se pudesse contribuir, com sua conduta aflita,
para o sucesso de sua equipe...”
78
.
O crítico de origem judia, que emigrou da Alemanha para o Brasil com a
ascensão do nazismo, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, radicando-se na
cidade de São Paulo em 1937, escreveu esse estudo introdutório para o público
alemão no ano de 1956, tendo em vista a importância do futebol no país, o que
segundo depoimento do autor constituiu uma das suas primeiras vias de acesso
à cultura brasileira. Publicado em sua língua materna no Anuário Staden
Jahrbuch, do Instituto Hans Staden, foi vertido para o português duas décadas
depois pelo historiador paulista Modesto Carone.
Já dentre os analistas acadêmicos contemporâneos, Roberto DaMatta vai
ao encontro da visão de Rosenfeld ao sustentar que a invenção brasileira do
“torcedor” transfigurou a acepção inglesa de fan, ou seja, a do aficionado
ardente capaz de perder a cabeça por seu time, em favor de uma perspectiva
que salienta a torção corporal com vistas ao êxito do time:
“... o torcedor cria com o espetáculo uma relação absolutamente
ausente do evento erudito, em que os reis, príncipes, duques e nobres
não estão tocando – ou no caso do futebol brasileiro, jogando – mas
permanecem quedos e seguros na platéia.”
79
.
78
Cf. ROSENFELD, A. “O futebol no Brasil”. In: Revista Argumento. São Paulo: Paz e Terra,
1974, n.º 4, p. 76, 77 e 78. Cf. também Id. Negro, macumba e futebol. Campinas: UNICAMP;
São Paulo: EDUSP, 1993.
79
Cf. DaMATTA, R. “Antropologia do óbvio – notas em torno do significado social do futebol
brasileiro”. In: Revista USP. São Paulo: s.e., 1994. n.º 22, p. 15.
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98
O historiador Nicolau Sevcenko segue a mesma linha interpretativa, com
a análise da tensão corporal e espiritual da atividade do jogador, quando
comparada à atividade do torcedor: “Jogar futebol exige imenso desempenho
físico e forte controle nervoso. Torcer implica uma tremenda descarga nervosa,
com grande controle físico.”
80
.
Ao lado da definição em nível individual, uma expressão específica,
concernente ao conjunto indiscriminado de torcedores presentes nas
dependências de um estádio, seria muito usual entre os cronistas. A palavra
assistência teria vigência até os anos de 1930 entre a crônica carioca e paulista
na alusão a uma coletividade de espectadores de futebol
81
. O termo adotado
pela imprensa esportiva teria uma origem erudita, pois era deslocado da
taxonomia dos espetáculos musicais, como os concertos ocorridos no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro, espaço de gala e requinte erigido nos anos
seguintes à proclamação da República, capaz de atualizar uma tradição que
vinha desde o período imperial, quando a cidade já conhecia esses espaços
concedidos à execução das grandes óperas italianas, das peças francesas e de
outros divertimentos europeus vigentes na Corte
82
.
O ato de assistir, próprio da assistência, encontrava inspiração no ato de
ouvir, próprio da audiência, que em princípio deveria compartilhar um mesmo
habitus nestes eventos de encontro da alta sociedade carioca. Cedo, porém, a
palavra inverteria sua semântica e ganharia um outro viés no contexto
futebolístico, com a definição da condição do torcedor comum, de extração
popular, em contraposição aos sócios, termo indicativo da seleta
individualidade creditada aos membros dos clubes de elite, derivada da
estratificação social já verificada nas demais modalidades esportivas
83
. A
80
Cf. SEVCENKO, N. “Futebol, metrópoles e desatinos”. In: Revista USP. São Paulo: s.e., 1994.
n.º 22, p. 36.
81
Segundo Luiz Henrique de Toledo, a palavra seria muito usual em jornais como A Gazeta
Esportiva. Cf. TOLEDO, L. H. de. Lógicas no futebol. São Paulo: Hucitec / Fapesp, 2002, p. 223.
82
Cf. LUCCHESI, M. “Mitologia das platéias (A Ópera na Corte: 1840-1889)”. In: Teatro
alquímico: diário de leituras. Rio de Janeiro: Artium Editora, 1999.
83
Cf. TOLEDO, L. H. de. “Sócios vs assistências”. In: Lógicas no futebol. São Paulo: Huicitec;
Fapesp, 2000, p. 220 e 223. Em ensaio sobre as mensagens ideológicas veiculadas no futebol,
escrito em fins dos anos de 1970, onde é analisada a simbologia do poder na divisão dos espaços do
Maracanã, Luiz Felipe Baêta Neves Flores contrapõe a massa indivisa componente das
arquibancadas e gerais à noção de indivíduo referida àqueles que se situam nos assentos das
tribunas de honra, das cadeiras especiais e dos camarotes. Cf. FLORES, L. F. B. N. “Na zona do
agrião. Sobre algumas mensagens ideológicas do futebol”. In: DAMATTA, R. (Org.). Universo do
futebol. Rio de Janeiro: Pinakoteke, 1981, p. 54.
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99
nomenclatura instituía assim a convenção que operava uma cisão entre as
massas (assistência) e a idéia de indivíduo (sócio) no âmbito das platéias de
esporte.
Expressão inicial das primeiras décadas do futebol no Brasil, cunhada
pela imprensa, a palavra assistência cederia lugar com o advento do
profissionalismo a um outro termo genérico para a designação do público de
esportes. De adjetivo ou substantivo próprio a um indivíduo simpatizante de um
clube, torcedor, aquele que prefere torcer por um clube a simplesmente assistir
ao jogo, originava-se em português o substantivo dado à totalidade de
espectadores presentes em um estádio: torcida. A neutralidade do indivíduo
isolado era substituída pelo bloco homogêneo e compacto que designava o
conjunto entusiasta de torcedores de um time, no momento em que as
identidades clubísticas encontravam-se difundidas nas grandes cidades e em
alguns casos a rivalidade de seus clássicos locais já se acirrava. Os
historiadores Nicolau Sevcenko e Leonardo Affonso de Miranda Pereira
identificam o ano de 1919 como aquele em que os derbys no Rio de Janeiro e
em São Paulo já segmentavam parcela considerável da população, quer a
disputa final do Campeonato Carioca nas Laranjeiras, entre Flamengo e
Fluminense, quer a decisão do Campeonato Paulista no Parque Antártica, entre
Palestra e Paulistano, quando a referência à assistência e aos assistentes ainda
era largamente empregada
84
.
Já nos idos de 1930, com o intuito de estimular a formação de um
público de massas no futebol e de disciplinar os contingentes cada vez maiores
de torcedores que afluíam às partidas, os jornais e as rádios promoveriam uma
série de atividades, como sorteios de prêmios, campanhas de bom
comportamento e concursos de fantasias direcionadas à torcida. Esta se tornava
um ente coletivo atuante, onde cidadãos antes desconhecidos começavam a
ganhar notabilidade e a avultar no interior da massa indiferenciada por seu
empenho, fervor e dedicação a um clube. Em 1936, ocorreria a primeira
“Competição de Torcidas” promovida pelo Jornal dos Sports, no mesmo ano
em que este periódico é comprado por Mário Filho. O escritor e memorialista
84
Cf. SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992,
p. 58 e 59. Cf. PEREIRA, L. A. de M. op. cit., p. 23.
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Ruy Castro, biógrafo da família Rodrigues, atribui a primazia desse processo às
ações do jornalista Mário Filho:
“... Mário Filho passou a promover o Fla-Flu. Inventou o campeonato
de torcidas. Na semana de cada jogo estimulava os torcedores a se
superarem. Os grupos mais criativos, mais festivos e mais organizados
ganhariam taças e medalhas. Premiava o primeiro torcedor a chegar ao
estádio. Sorteava uma geladeira entre a torcida.”
85
.
Deve-se ressalvar que, no âmbito da discussão acadêmica, há críticas à
consideração de Mário Filho como inventor da crônica esportiva moderna, feita
pelo historiador paulista José Renato de Campos Araújo, e à utilização pouco
criteriosa sob o ponto de vista heurístico dos cientistas sociais perante o
material jornalístico, feita por Hugo Lovisolo
86
.
Em seqüência à narração, vale dizer que de maneira concomitante à
partida disputada entre Flamengo e Fluminense nas Laranjeiras, um corpo de
jurados, constituído de cronistas do meio, avaliava qual dos dois grupos de
adeptos era o mais animado e o mais original no apoio ao seu time. Mário
Filho, um dos idealizadores e patrocinadores do evento, se valeria de sua
experiência com a então recém-inaugurada promoção de desfiles das Escolas de
Samba, onde eram premiadas as agremiações carnavalescas que sobressaíam
frente a um conjunto de quesitos musicais, estéticos e festivos estabelecidos
pelo seu antigo jornal O Mundo Esportivo. Com o também chamado “Duelo de
Torcidas”, Mário Filho investia em um projeto jornalístico e comercial em que
se podia perceber uma simbiose entre duas de suas principais áreas de atuação:
a música e o futebol. A arquibancada tornava-se alvo da confluência tanto da
lógica competitiva dos esportes verificada no campo de jogo quanto da lógica
competitiva dos desfiles de carnaval expressa nos requisitos coreográficos,
plásticos e rítmicos, com um sub-reptício enquadramento disciplinar no que diz
respeito à tentativa de padronização do comportamento das massas.
O cultivo da proximidade com o público torcedor não era um caso
excepcional, uma vez que ele também podia ser observado em A Gazeta.
85
Cf. CASTRO, R. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992, p. 132. Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1951,
p. 1.
86
Cf. CAMPOS ARAÚJO, J. R. de. Imigração e futebol: o caso do Palestra Itália. São Paulo:
Editora Sumaré / IDESP, 2000. Cf. LOVISOLO, H; HELAL, R.; SOARES, A. J. (Orgs.). A
invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria. Rio de Janeiro: Mauad, 2001.
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Periódico congênere ao Jornal dos Sports em São Paulo, de propriedade de
Cásper Líbero, que fundou em 1928 o seu suplemento esportivo, este tinha em
Thomaz Mazzoni o principal cronista, vindo a exercer papel equivalente ao
ocupado por Mário Filho no Rio de Janeiro, quando se considera a construção
de uma memória futebolística nacional. Além de seções específicas voltadas
para o esclarecimento e o atendimento das dúvidas dos leitores/torcedores, o
jornal instituiu ao longo dos anos de 1940 uma competição anual entre as
associações de torcedores, no mesmo momento em que o suplemento tornou-se
independente e passou a circular em 1947 sob o nome de Gazeta Esportiva.
Com a discriminação rigorosa dos itens envolvidos na competição – disciplina,
entusiasmo, coro, organização, harmonia, originalidade e número de
componentes –, o jornal publicava a cada semana uma tabela com a pontuação
de cada torcida no decurso do campeonato. Nela, havia espaço para
comentários e dava-se abertura à apreciação da evolução daquela concorrência
paralela à ocorrida no campo de jogo.
O historiador Plínio José Labriola, em sua tese de doutorado sobre o
futebol paulista e suas tensões com o Estado Novo nos anos 30 e 40,
transcrevia os comentários de um cronista de A Gazeta com sua avaliação da
competição, onde é possível perceber não obstante a utilização de termos ainda
em inglês:
“... nas arquibancadas os fans uniformizados também estarão se
‘defrontando’ pela conquista do título de melhor ‘torcida’ de 1943.
Competição difícil, porque, ao contrário do que se pode julgar, a
melhor ‘torcida’ não será aquela que mais barulho irá fazer e, sim, a
que melhor sabe incentivar os seus jogadores, a mais unida, a que sabe
cultivar bem a disciplina, a mais numerosa, mais harmoniosa e
original...”
87
.
Dois anos depois da primeira “Competição de Torcidas”, outra iniciativa
lançada pelo Jornal dos Sports por ocasião da Copa do Mundo de 1938 foi a
eleição de dois torcedores, um homem e uma mulher, escolhidos pela
população e pelos leitores para representar a torcida brasileira na França
durante a realização do campeonato. Os candidatos, cada um representando um
clube, apareciam em fotos nas primeiras páginas do jornal para a votação, que
87
Cf. NEGREIROS, P. J. L. A nação entra em campo: futebol nos anos 30 e 40. São Paulo:
Tese de Doutorado em História / PUC-SP, 1998, p. 98.
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de fato se daria pouco antes do acontecimento e que levaria os vencedores, um
de cada sexo, às terras européias na condição respectiva de embaixador e de
embaixatriz da torcida brasileira, em uma promoção repetida de maneira
consecutiva em várias Copas
88
. O alegórico posto diplomático atribuído ao
torcedor tinha uma origem antiga, segundo esclarece Mário Filho, pois desde a
primeira década do século XX o jogador Oscar Cox, fundador do Fluminense,
cunhara a expressão embaixada esportiva para aludir à viagem de trem da
Central do Brasil para São Paulo, na realização a primeira partida oficial entre
cariocas e paulistas.
Esse tipo de concurso por meio do voto popular remontava também a
uma tradição dos jornais cariocas, que desde o final dos anos de 1920 faziam a
população participar e eleger suas preferências futebolísticas, seja a do clube, a
da torcida ou a do craque de maior prestígio. Leônidas da Silva, por exemplo,
foi eleito em 1936 o craque mais popular do Rio de Janeiro no evento
promovido pela fábrica de cigarros Magnólia. Já em promoção feita pelo Jornal
do Brasil no ano de 1927 para escolher o clube de maior torcida no Brasil,
ficou conhecida a artimanha de torcedores do Flamengo que usurparam os
votos dos torcedores do Vasco a fim de reverter a desvantagem e ganhar o
troféu Salutaris, nome de uma famosa marca de água mineral que patrocinou o
evento na ocasião
89
.
A inserção participativa dos torcedores tinha o objetivo de forjar um
atrativo, um engajamento e uma mobilização favorável à consolidação de
espetáculos que se articulavam em escala regional, nacional e internacional.
Afora a eleição sazonal de indivíduos anônimos, elevados à posição de
representantes da embaixada da torcida brasileira em jogos no exterior,
nomeação sugestiva dos valores missionários, cosmopolitas e pacifistas que se
queriam incutir no futebol, necessários a eventos de magnitude como a
competição mundial implantada pela FIFA na década de 1930, em pleno
interregno entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, outra alcunha seria
veiculada também nesse período pela imprensa para o dia a dia dos
campeonatos locais: o chefe de torcida. A cada clube e a cada segmento de
88
Cf. RODRIGUES FILHO, M. Histórias do Flamengo. Rio de Janeiro: Gernasa, s.d.
89
Cf. Id. O negro no futebol brasileiro. Prefácio de Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Mauad,
2003, p. 34.
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torcedores filiados a um time, um chefe correspondente passava a ser
identificado.
Esse era caracterizado como alguém que se destacava nas arquibancadas
por sua seriedade e compromisso, figura assídua e tradicional nos jogos, com
uma capacidade de comunicação e com uma liderança tidas como inatas,
reconhecidas pelos torcedores, pelos dirigentes e pelo policiamento na
coordenação do incentivo aos jogadores. Em jogos entre os selecionados
cariocas e paulistas, muito comuns à época, o próprio radialista Ary Barroso
poderia ser designado o chefe da torcida do Rio de Janeiro no estádio de São
Januário, nos anos 40, com a arregimentação de quase mil torcedores
uniformizados, separados por um cordão de isolamento
90
. Tais predicados o
faziam ir pouco a pouco, de maneira espontânea e carismática, aglutinando em
torno de si uma legião de simpatizantes e curiosos que apreciavam assistir aos
jogos ao seu redor.
Assim como as designações enumeradas até aqui provinham de palavras
de universos lingüísticos particulares, o epíteto chefe de torcida era decalcado
do contexto de dominação dos aparelhos de Estado da época, traduzida em
nomes correntes no cotidiano que evocavam papéis masculinos de mando e de
autoridade na sociedade brasileira, como as expressões chefe de polícia, chefe
de família, chefe da nação, entre outras. Um exemplo célebre deste termo
encontra-se em uma das paródias consagradas para a letra do primeiro samba
gravado no Brasil em 1916, Pelo telefone, de autoria de Donga. Nele faz-se
alusão ao “chefe da folia” e àquele que expressa a presença de figuras de
autoridade no imaginário popular: “O chefe da polícia/ pelo telefone/ manda
me avisar/ que na Carioca/ tem uma roleta/ para se jogar...”.
Uma das conseqüências da profunda mudança por que passava o mundo
do futebol no período Entre-Guerras
91
, com a entrada de jogadores de origem
popular nos grandes clubes, promotora da alteração do perfil dos atletas na
vigência do profissionalismo, e com a centralização do poder político dos
esportes durante a ditadura do Estado Novo, desde a criação do Conselho
90
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 22 e 23 de dezembro de 1943.
91
Eric Hobsbawm também alinhava algumas impressões sobre a massificação do esporte em nível
espetacular, acoplada aos discursos nacionalistas, na Europa das décadas de 1920 e 1930. Cf.
HOBSBAWM, E. J. Nações e nacionalismo desde 1870. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p.
170.
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Nacional de Desportos (CND) em 1941, vinculado ao Ministério da Educação e
da Saúde, era a descaracterização do glamour em torno da imagem aristocrática
das torcidas. Esta, fixada pelos cronistas do período da belle-époque carioca, se
esvaía de maneira nostálgica para muitos “época em que a arquibancada do
Fluminense mais parecia um bouquet de flores”, tempo romântico em que “o
torcedor do bodoque atrapalhava o goleiro”
92
em lugar dos crescentes
xingamentos, das ofensas, das freqüentes hostilidades entre torcedores rivais e
da imposição progressiva de padrões de sociabilidade masculina nos estádios
de grande porte, agora construídos e administrados pelo governo federal, a
preponderar com cada vez mais ressonância e amplitude
93
. João Lyra Filho,
cronista e jurista responsável por redigir a legislação esportiva do CND, não se
eximia de exaltar aqueles tempos com o tradicional pendor nostálgico-
romântico:
Os jogos de futebol, ao contrário dos atuais, possuíam grande
concorrência feminina. Sobretudo moças filhas de gente importante,
que para ali se deslocavam à cata de namoros. Naquele tempo de
amadorismo o futebol tinha mais alma. De regra os jogadores eram
alunos de cursos universitários. A propósito, lastimo a inexistência
atual de campeonatos acadêmicos.”
94
Sabe-se hoje, contudo, quão relativa é essa imagem de um passado
idílico e pacífico, quando se consideram os primeiros anos do futebol. Já
naquela época registram-se descrições de sururus, invasões de campo,
apedrejamento de trens, ameaças a jogadores e a torcedores. Segundo Mário
Filho, tais entreveros no Campeonato Carioca começaram com as partidas
realizadas em Bangu, quando se instaurou a rivalidade entre os clubes do
subúrbio e os clubes da cidade.
92
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 19 de setembro de 1967. Cf. Id. Rio de Janeiro,
22 de fevereiro de 1976, p. 03.
93
Cf. DAMO, A. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da
formação de jogadores no Brasil e na França. Porto Alegre: Tese de Doutorado em Antropologia
Social / UFRGS, 2005, p. 349. Apesar da Cf. RODRIGUES FILHO, M. op. cit., p. 42 e 43. Em
sua dissertação de mestrado, a socióloga Elisabeth Murilho Silva demonstra a relação entre
violência e futebol, com o acompanhamento de uma cronologia de incidentes e distúrbios
veiculados pelo noticiário esportivo ao longo do século XX. Cf. SILVA, E. M. As torcidas
organizadas de futebol: violência e espetáculo nos estádios. São Paulo: Dissertação de Mestrado
em Ciências Sociais / PUC, 1996.
94
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1968, p. 10.
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A contrapartida para este quadro que se intensificava nas décadas de 30 e
40 era a preocupação cívico-disciplinar de manutenção da ordem e de educação
esportiva nesses domínios sob ingerência governamental, com base em
motivações ideológicas estipuladas em torno de idéias como raça, povo, nação
e juventude
95
. O enquadramento moral mencionado pelo antropólogo Luiz
Henrique de Toledo no processo de incorporação das camadas populares ao
futebol constituiu uma tentativa de contrabalançar a perda do proclamado
caráter nobre de que era revestido esse esporte até então
96
. A configuração
humana e social do novo público espectador era correlata, segundo o mesmo
autor, não apenas aos condicionantes políticos externos, mas às modificações
operadas no nível interno das regras modernizadoras do jogo e das maneiras
mais sistemáticas de praticá-lo.
A alusão dizia respeito às dezessete leis introduzidas pela International
Board em 1938, em substituição às treze existentes desde a primeira
codificação regulamentar de 1863, e ao sistema tático vigente a partir de 1925,
conhecido como WM, facultado pela nova lei do impedimento, onde a
coletividade passa preponderar sobre a individualidade e o planejamento, sobre
a espontaneidade
97
, o que ficava patente no crescimento da importância da
figura do técnico de futebol. O fenômeno se expressava no Brasil com a
contratação de respeitados treinadores internacionais, como o uruguaio Ondino
Vieira, que passava a dirigir o Vasco, o argentino Cabelli e o húngaro Dori
Kruschener, contratado pelo Flamengo. Em virtude de suas inovações, com a
tentativa de implantação de sistemas rígidos de jogo, este último, também
conhecido como “Feiticeiro de Viena”, enfrentaria grande resistência por parte
da torcida, dos jogadores e dos conselheiros do clube que habitualmente se
reuniam no Café Rio Branco. Seu epíteto chama a atenção, todavia, para o
caráter sobrenatural comumente atribuído aos treinadores e às suas estratégias,
um terreno fecundo no imaginário popular para os sortilégios de conselheiros,
95
Cf. TOLEDO, L. H. de. “A invenção do torcedor de futebol: disputas simbólicas pelos
significados do torcer”. In: COSTA, M. R. da (et al.). Futebol, o espetáculo do século. São
Paulo: Musa Editora, 1999, p. 150.
96
Cf. Id. Lógicas no futebol. São Paulo: Huicitec; Fapesp, 2000, p. 220.
97
Cf. TOLEDO, L. H. de. “Três exercícios conceituais em torno das dezessete regras do futebol”.
In: XXVI Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu: Mimeo, 2002.
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feiticeiros, magos, bruxos, dentre os quais no Brasil se destacariam Vicente
Feola e Fleitas Solich
98
.
O aparecimento simultâneo de formas coletivas ou coletivizadas de
torcer atendia aos imperativos de ampliação da integração, da coesão e da
participação do público esportivo. Os seus representantes, agora denominados
chefes de torcida, mediavam os interesses dos torcedores junto ao chefe de
polícia dos estádios e passavam a ter a responsabilidade de controle vis-à-vis
daqueles atores emergentes no cenário futebolístico, uma amostra exemplar
também de parcela significativa dos setores populares que logravam
visibilidade na vida nacional. Segundo a ótica dos meios de comunicação,
havia uma preocupação crescente com a má educação nos estádios, ensejada
por uma relação direta com o baixo poder econômico, o que gerava um
empenho institucional na criação de formas de contenção no interior desses
estratos da população e na deliberação de poder a esses indivíduos cuja conduta
era vista como exemplar nas arquibancadas.
A materialização e a concretização mais cabal da importância assumida
por essa nova autoridade esportiva podem ser percebidas na virada da década
de 1930 para a década de 1940, com o surgimento de associações intituladas
Torcidas Organizadas no Rio de Janeiro e Torcidas Uniformizadas em São
Paulo. Estas entidades iriam conferir legitimidade aos chefes de torcida perante
os demais segmentos do universo esportivo, que por sua vez apoiavam tais
corporações em razão da afinidade explicitada por seus princípios basilares,
estampados por elas próprias em suas autodenominações: uniformidade, os
torcedores assemelhavam-se em nível interno porém se diferenciavam em nível
externo face aos demais espectadores; e organização, o grupo funciona por
cooperação entre si e por subordinação a uma liderança única consensual
99
. Sob
os auspícios de dirigentes e jornalistas esportivos, os agrupamentos
distinguiam-se do torcedor comum em arenas públicas como o Estádio
98
Cf. GIL, G. "O drama do ‘futebol-arte’: o debate sobre a seleção nos anos 70". Revista
Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, n.º 25, p. 102.
99
Poder-se-iam evocar ou sugerir os conceitos de solidariedade mecânica de Durkheim e de
dominação carismática de Weber para entender as primeiras formas organizativas de tais grupos.
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Municipal de São Paulo, o Pacaembu, e o Estádio Municipal do Rio de Janeiro,
o Maracanã, inaugurados respectivamente em 1940 e em 1950
100
.
A identificação de tais grupos tornava-se mais perceptível através da
introdução de pequenas orquestras musicais, com instrumentos de sopro e de
percussão, da adoção de camisas bordadas dos times nas arquibancadas, à
maneira dos jogadores em campo, o que simbolizava a sua condição ativa e
participante, além da confecção de faixas dispostas sobre o alambrado a indicar
o território ocupado pela agremiação no estádio, o que servia também para a
orientação dos torcedores comuns quanto à divisão das torcidas, e da criação de
coreografias que se valiam de trajes criativos e multicoloridos. Embora
atendessem a princípios estruturais análogos no Rio e em São Paulo, seria
possível constatar diferenças sociais significativas em relação à experiência
vivenciada por cada grupo, o que trazia variações ao projeto original das
torcidas organizadas, tal como concebido pelas instâncias organizadoras e
formuladoras dos eventos esportivos. A trajetória social dos chefes e o perfil
dessas lideranças da arquibancada em cada um dos estados aludidos podem ser
bons indícios das dimensões assumidas por tais grêmios no âmbito da criação
de culturas locais.
No Rio de Janeiro, é possível identificar nos grandes clubes da cidade os
principais chefes de torcida que tiveram expressão pública para além da esfera
meramente esportiva entre as décadas de 1940, 1950 e 1960. O exemplo mais
notório de agremiação torcedora foi a Charanga do Flamengo, criada em 1942
por Jaime de Carvalho. Depois desta, seria fundada em 1944 a Torcida
Organizada do Vasco (TOV), por Aida de Almeida e um grupo de amigas que
nos anos de 1950 passariam o comando a Dulce Rosalina; em 1946, surgiria a
Torcida Organizada do Fluminense (TOF), por Paulista, que chefiava os
tricolores desde 1939; em 1952, foi criada a Torcida Organizada do Bangu,
liderada por Juarez; e, em 1957, a Torcida Organizada do Botafogo (TOB) era
assumida por Tarzan, que substituía Salvador Peixoto, veterano torcedor
alvinegro da década de 1940.
100
Dois historiadores dedicaram-se a acompanhar as repercussões na imprensa esportiva durante o
período de construção dos dois estádios: Plínio Negreiros e Gisela de Araújo Moura,
respectivamente . Cf. NEGREIROS, P. J. L. “Construindo a nação: futebol nos anos 30 e 40”. In:
COSTA, M. R. da (et al.). Futebol, o espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999.
MOURA, G. de A. O Rio corre para o Maracanã. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1998.
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108
Dentre esses, Jaime de Carvalho pode ser considerado o exemplo
paradigmático, espécie de tipo-ideal, do que então se preconizara como chefe
de torcida, com a combinação de aura, de autoridade e de exemplo para os
demais torcedores, tendo em vista a reputação em âmbito não só local como
nacional. Nascido em Salvador, Bahia, em 1911, Jaime passou a acompanhar o
Flamengo em fins dos anos de 1920, quando se radicou na cidade do Rio de
Janeiro. Funcionário de baixo-escalão do Ministério da Justiça – agente de
portaria , casado com a portuguesa dona Laura, sua acompanhante em todos
os jogos, tinha prestígio perante os dirigentes do clube, o que lhe possibilitou a
criação da Charanga na final do Campeonato Carioca de 1942. Por seu estilo
cordial e conciliador – tal como o ato simbólico em campo, costumava oferecer
uma corbeille de flores às torcidas adversárias e ia ao encontro dos chefes
oponentes antes dos jogos em sinal de confraternização, dando uma volta com
sua charanga no anel das arquibancadas –, logo se tornou uma espécie de
torcedor-oficial da cidade, incumbido pelas autoridades públicas, por ocasião
da Copa do Mundo de 1950, da organização do incentivo à Seleção
Brasileira
101
.
Tal apoio teria prosseguimento no torneio seguinte, durante a Copa do
Mundo da Suíça, em 1954, quando uma campanha promovida pelo Jornal dos
Sports, a pedido do jogador Didi, patrocinaria a viagem de Jaime a Berna,
capital suíça. Naquela oportunidade, o torcedor voltaria a exercer o tradicional
cargo de embaixador da torcida brasileira, entrando em campo junto com os
jogadores e estendendo uma faixa com o lema: Avante, Brasil. Sua participação
internacional se prolongaria até a Copa do Mundo da Alemanha, em 1974, a
última antes de seu falecimento dois anos depois. Em colaboração com a
Polícia Militar, instituição com a qual nutria as melhores relações – por ela
condecorado como “torcedor número 1” do Maracanã em 1958 –, Jaime de
Carvalho era responsável pela coordenação de campanhas de educação
esportiva nos estádios e, através do auxílio de um megafone, abordava as
inconveniências da queima de fogos de artifício, condenava as palavras de
101
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1968, p. 6. Cf. também LEVER,
J. A loucura do futebol. Prefácio de Sandro Moreyra. Rio de Janeiro: Record, 1983, p. 133.
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109
baixo-calão e chegava a expulsar componentes da torcida por mau
comportamento
102
.
Se a função social e o papel desempenhado por esse personagem no cenário
esportivo coincidiam na caracterização das torcidas no Rio e em São Paulo, as
condições econômico-sociais de seus integrantes pareciam destoar quando se
comparavam os dois estados. No caso da cidade de São Paulo, a Torcida
Uniformizada do São Paulo (TUSP) havia sido fundada em 1940, um ano após a
tentativa de criação do Grêmio São-Paulino na Mooca, tradicional bairro de
imigrantes, tendo como mentores e primeiros chefes Manoel Raymundo Paes de
Almeida e o Tenente Porfírio da Paz, que compusera o hino do clube. Além de
tenente e general, este último fora professor de geografia e história do Ginásio
Anglo-Brasileiro, na Vila Mariano, chegando a tornar-se vice-governador do
Estado de São Paulo. Segundo o depoimento de um dos fundadores,
“O Grêmio São-Paulino surgiu na Mooca, em 1939. Fazíamos tudo
com entusiasmo e por nossa conta. Lembro-me do primeiro espetáculo
que demos no Pacaembu. Uma festa maravilhosa, com serpentinas e
confetes. Fizemos depois uma magnífica marche aux fambleaux, em
1943, quando a moeda caiu em pé e o São Paulo foi campeão.
Montamos um carro alegórico, com uma moeda gigante de pé, e
fomos, em cortejo de automóveis buscar a Taça de Invictos de A
Gazeta Esportiva.”
103
.
A TUSP era constituída por quadros do clube, sócios em sua maior parte
membros da classe média alta e estudantes da tradicional Faculdade de Direito
do Largo do São Francisco. Ao contrário das torcidas organizadas cariocas,
cujos chefes encontravam-se à margem da esfera de poder instituída do clube,
situavam-se em sua maioria na faixa etária já adulta e pertenciam aos setores
subalternos do pequeno comércio ou da baixa hierarquia da burocracia estatal,
muitos deles saídos do campo, do interior de estados circunvizinhos ou da
região nordestina – a migração de contingentes populacionais da zona rural
para o ambiente urbano, mormente para o Rio de Janeiro, capital da República,
intensificava-se de forma marcante naquele período –, as torcidas
102
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1968.
103
Cf. BRANDÃO, I. de. L. “Torcidas organizadas: o jogador das arquibancadas”. In: São Paulo
F. C.: a saga de um campeão. São Paulo: DBA, 1996, p. 40 e 43.
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110
uniformizadas de São Paulo eram compostas em seu início por rapazes e moças
integrantes das classes abastadas da sociedade paulistana.
Ainda no tocante à Torcida Uniformizada do São Paulo, cujo exemplo
em breve seria seguido pelos jovens sócios do Palmeiras no ano de 1943 –
nome adotado pelo Palestra Itália no contexto da Segunda Guerra Mundial –,
vale especificar a sua composição, proveniente de notável fração da juventude
universitária, como a família Mesquita, do jornal O Estado de São Paulo, os
filhos de Paulo Machado de Carvalho e Laudo Natel, sendo que este último
viria a ser presidente do clube e depois governador do estado entre 1971 e
1975
104
. Outra especificidade das torcidas uniformizadas de São Paulo dizia
respeito à sua fonte de inspiração, que remontava às bandas e às coreografias de
espetáculos esportivos norte-americanos como o rúgbi, o basketball, o football
americano e o baseball. Se até fins do século XIX as classes bem aquinhoadas
tinham por hábito enviar seus jovens filhos para a Europa, a fim de aprimorar
sua formação educacional, como Charles Miller, introdutor oficial do futebol na
cidade de São Paulo, depois de passar dez anos estudando em Southtampton, na
Inglaterra, em meados do século XX era moda entre a elite paulistana que
estudava ciências jurídicas na faculdade de Direito do Largo de São Francisco
conhecer os Estados Unidos, onde nasceu o encantamento pelas torcidas
universitárias daquele país
105
.
A exceção no estado seria Elisa, a torcedora-símbolo do Corinthians,
uma mulher conhecida por suas origens negras e proletárias, que trabalhava
como cozinheira e dona de casa. Embora a chefia da torcida coubesse a Tantã,
pseudônimo de um conhecido sócio do clube, João Constantino Casanova, era
ela quem parecia encarnar com mais propriedade as características cultivadas
pelo clube acerca de si próprio. Isto é corroborado por imagens desta torcedora
encontradas no filme O corintiano, estrelado por Mazaroppi, onde Elisa
aparece contracenando nas arquibancadas do Pacaembu. Na película, o torcedor
104
Cf. GIANOLI, M. G. M. O torcedor de futebol e o espetáculo da arquibancada. São Paulo:
Dissertação de Mestrado em Comunicação e Artes / USP, 1996, p. 33 e 34. Cf. também TOLEDO,
L. H. de. “Transgressão e violência entre torcedores de futebol”. REVISTA USP. São Paulo:
s.e., 1994, p. 94, nº. 22.
105
Cf. SILVA, E. M. da. “A violência no futebol e a imprensa esportiva”. In: COSTA, M. R. da.
(et. al.). Futebol, o espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999, p. 175. Cf. também Id.
As torcidas organizadas de futebol: violência e espetáculo nos estádios. São Paulo: Dissertação
de Mestrado em Ciências Sociais / PUC, 1996, p. 80.
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111
é encarnado como o protótipo do caipira, carregando os estigmas de bronco,
ignorante, supersticioso e violento
106
.
Criado em 1910 por ferroviários do bairro Bom Retiro, após a passagem
pela cidade de um time homônimo inglês, o Corinthians era produto do futebol
de fábrica na cidade – seus fundadores eram empregados da São Paulo Railway
–, e tentava traduzir sua imagem popular também no perfil de suas primeiras
lideranças na arquibancada. Parecia assim haver uma espécie de continuum
entre os aspectos sociais ressaltados na apreciação genérica de cada clube – a
dicotomia elite/povo assumia o lugar de mito de origem no imaginário das
identidades clubísticas
107
– e a proveniência econômica de seus representantes
entre os torcedores.
Ao lado da autoridade evocada por esse novo personagem do mundo
esportivo, que podia sofrer variações, adaptações ou acomodações segundo as
especificidades culturais ou regionais e que apresentava diferenças ou
semelhanças no perfil de cada grupo de acordo com sua liderança, pode-se
identificar um outro conjunto de traços comuns para essa mesma linhagem de
chefes de torcida, a primeira reconhecida pela imprensa, de quem os cronistas
esportivos se empenhariam em propagar a fama, como símbolos, personas
emblemáticas, catalisadoras de uma série de virtudes no exercício de funções
ora instrutoras ora animadoras nas arquibancadas. Finda a marca de nobreza do
espectador da belle-époque, equivalente ao encerramento da era de ídolos
aristocráticos como Marcos Carneiro de Mendonça e ao início da emergência
dos atletas profissionais de extração negra e operária, como Fausto, Domingos
da Guia e Leônidas da Silva, o esforço de vários especialistas do futebol se
voltou então para uma reelaboração da imagem do torcedor, que consistia em
reintroduzir uma acepção positiva para o ethos amador no futebol.
106
Cf. AMARAL, M. O corintiano. São Paulo: Pam Filmes, 1966. Na década de 1970, tia Elisa
também foi destacada em fotos e texto na reportagem sobre o Corinthians feita pela revista
Realidade. Cf. REALIDADE. São Paulo, junho de 1972, p. 40 e 41. Sobre o futebol de fábrica na
cidade de São Paulo, ver Fátima Antunes. Cf. ANTUNES, F. M. R. F. “O futebol na Light &
Power de São Paulo”. In: Pesquisa de Campo. Rio de Janeiro: UERJ / Departamento Cultural,
1994, n. 3/4.
107
Cf. MATTOS, C. 100 anos de paixão – uma mitologia carioca no futebol. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997. Sobre o Corinthians, ver a dissertação de Plínio Negreiros. Cf. também
NEGREIROS, P. J. L. Resistência e rendição: a gênese do Sport Club Corinthians Paulista e o
futebol oficial em São Paulo (1910-1916). São Paulo, Dissertação de Mestrado / PUC-SP, 1992.
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112
À primeira vista, a homologia entre os jogadores e os torcedores na etapa
do futebol profissional parecia coerente e indubitável, uma vez que em ambas
as situações se ressaltavam as origens populares dos novos segmentos
populacionais presentes nos estádios, seja no campo seja nas arquibancadas.
Em larga escala, o chefe de torcida passava a exemplificar o percurso trilhado
por inúmeros torcedores e jogadores que provinham das mais díspares regiões
do país, oriundos de famílias modestas, egressos dos contingentes médios e
baixos da sociedade, cujo trabalho em geral não ultrapassava o anonimato e a
invisibilidade do cotidiano. Por outras vias, tratava-se da mesma forma de fazer
do torcedor o apanágio de uma visão nacional-popular, forjada historicamente
por uma gama de folcloristas, intelectuais e cronistas que entendiam o povo
como puro e bom em sua essência.
Mariana Conde, por exemplo, antropóloga vinculada ao grupo de estudos
sobre hinchadas, coordenado por Pablo Alabarces na Argentina, mostra como o
vocativo pueblo, empregado em relação à generalidade dos espectadores de
futebol em meados do século XX, esteve articulado ao discurso político do
peronismo no que se refere à imagem da nação. Ao longo dos anos 50, os
hinchas foram retratados pelos meios gráficos desportivos por seu propósito
simples e puro de passar uma tarde de emoção, realizando sacrifícios e
martírios pelo amor ao futebol
108
.
No entanto, à diferença do movimento dos atletas rumo ao
profissionalismo e ao recebimento de salários, o discurso referente ao torcedor
preservava-o e reinventava-o sincronicamente como um dos últimos elos da
cadeia imaginária com o amadorismo no futebol, ainda que sem o verniz
aristocrático, haja vista o fato de seu pertencimento clubístico não se pautar em
interesses financeiros, utilitários ou pecuniários diretos, mas em uma filiação de
ordem afetiva e passional
109
. Ao invés de ser inferiorizada, a posição social
desses torcedores era exaltada e tipificada pelos cronistas como expressão
genuína de espíritos altruístas, abnegados e amadores, capazes de quaisquer
108
Cf. CONDE, M. op. cit., p. 22 e 26. Cf. também BURKE, Peter. Cultura popular na Idade
Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
109
O antropólogo gaúcho Arlei Damo empreendeu considerações críticas ao emprego do modelo
dicotômico amadorismo/profissionalismo, quando aplicado como categoria analítica, ora
diacrônica ora sincrônica, pelas pesquisas acadêmicas de esporte. Suas reflexões não são
desconsideradas nesse trabalho. Cf. DAMO, A. “O uso dos termos amadorismo e profissionalismo
como categorias sociológicas na literatura acadêmica sobre futebol”. In: XXVI Encontro Anual
da ANPOCS. Caxambu: Mimeo, 2002.
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113
renúncias em âmbito individual, familiar ou econômico para a sua vivência
esportiva. Na retórica em torno da autenticidade e da pureza da paixão
torcedora, a demonstração da fidelidade passava por uma concepção de fundo
religioso que poderia, mais especificamente, ser remetida a uma variante do
discurso clássico do cristianismo. O modelo franciscano, tratado por Erich
Auerbach em seus estudos de história dos estilos literários
110
, simbolizava o
tipo do sermo humilis o étimo remonta ao húmus, àquilo que vem da terra ,
que na tradição cristã conjugava a postura humilde com a sublime e combinava
a narrativa elevada com a baixa, onde a vivência do homem desprendia-se de
todo conforto ou riqueza material, entregando-se a uma vida casta e simples.
De maneira análoga, os cronistas realçavam nos torcedores traços do
despojamento e da devoção incondicional ao clube, manifestos em toda sorte de
sacrifícios pessoais empreendidos em prol do acompanhamento dos jogos de
seu time.
A legitimação mais ampla dos cronistas a essa peculiar humildade e a
esse intrínseco amadorismo dos torcedores, e dos chefes de torcida em
específico, passava não apenas pela cobertura de suas atividades cotidianas nos
periódicos do Rio de Janeiro. Conforme a magnitude dos jogos os esforços
despendidos pelos líderes nos preparativos para a partida eram divulgados
durante toda a semana. Ela compreendia um sentido retrospectivo de
reconstituição do passado onde se buscavam os exemplos extremos de
abnegação dessas figuras ao longo do tempo. Para além do registro jornalístico
diário, os torcedores ganhavam também uma expressão mais acabada por
intermédio da publicação de obras em que nomes de outrora das arquibancadas
eram relembrados e homenageados. Se Mário Filho, que em 1945 com seu
Histórias do Flamengo, na comemoração dos cinqüenta anos do clube rubro-
negro, dedicava várias páginas à atuação de Jaime de Carvalho à frente da
Charanga durante a conquista do seu primeiro tricampeonato (1942/43/44), o
escritor Paulo Coelho Neto, cujo pai havia cunhado o termo torcedor nos anos
de 1920, em seu livro História do Fluminense, de 1952, lançado também por
ocasião da celebração do cinqüentenário de fundação do clube, incluía o
110
Cf. AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
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114
capítulo “O 12.º jogador do Fluminense”, com uma extensa listagem daqueles
mais haviam se destacado no apoio ao time no decorrer de sua existência.
Abstraída a variedade das idiossincrasias e dos semblantes de cada
torcedor, onde se acentuavam suas colorações exóticas mais superficiais, todos
eram equacionados em um mesmo patamar, vistos à luz do “estoicismo”, das
provas de abdicação de suas próprias vidas em favor do clube e da capacidade
positiva de interferir no resultado dos jogos:
“Chico Guanabara, Barriga, Batista e Peitão simbolizam a evolução da
torcida tricolor, hoje – sem sombra de dúvida – uma das maiores e
mais entusiastas do Brasil. Na atualidade, os tipos representativos da
evolução do torcedor do Fluminense podem ser retratados através de
dezenas de figuras populares, verdadeiramente fanáticas pelo campeão
de 1951, como entre outras: Guimarães, sempre reivindicando o título
de torcedor n.º 1 do Fluminense; Alemão, o velho jornaleiro dos iu-rá-
rés desesperados, quando a sombra de uma derrota começa a pairar
sobre o quadro tricolor; Paulista, o regente – nas arquibancadas do
Maracanã – do formidável corpo coral do supercampeão; Pastel,
escoteiro do Fluminense, indo ao extremo de cortar relações com
amigos que criticam o seu clube, e Gélson Ceciliano, o homem da
gaitinha nos jogos de juvenis, a correr de ponta a ponta as
arquibancadas dos estádios das Laranjeiras e do Bangu, sempre
reclamando contra os companheiros retardatários, são células do
gigantesco corpo do 12.º jogador do Fluminense que, não raro, com
seu estímulo desinteressado, contribui para que uma derrota iminente
se transforme em uma vitória consagradora; que suporta estoicamente
o sol abrasador ou a chuva diluviana; que passa o dia inteiro fora de
casa, privando-se de alimentação substancial e suportando todas as
dificuldades de trens, bondes e ônibus superlotados; enfim, que vibra,
exulta ou sofre com a vitória ou derrota dos quadros tricolores.”
111
.
Seria, entretanto, uma alentada obra publicada em fins dos anos de 1960,
de autoria do jurista e jornalista João Antero de Carvalho, cuja família também
era ligada ao mundo do futebol, que se dedicaria de modo integral a fixar a
imagem desse ator condicionado por tais pressupostos. Em Torcedores de
ontem e de hoje
112
, livro com mais de trezentas e cinqüenta páginas, coligidas
111
Cf. COELHO NETO, P. História do Fluminense. Rio de Janeiro: s.e., 1952, p. 400 e 401. Na
música popular, as composições de Wilson Baptista dedicadas ao futebol descrevem o torcedor
sob esse mesmo prisma, como em Samba rubro-negro: “... pode chover,/ pode o sol me queimar,/
que eu vou pra ver/ a Charanga do Jaime tocar:/ Flamengo, Flamengo/ tua glória é lutar,/ quando
o Mengo perde/ eu não quero almoçar/ eu não quero jantar.”.
112
Cf. CARVALHO, J. A. de. Torcedores de ontem e de hoje. Prefácio de Torcedores de
ontem e hoje. Prefácio de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968. Da família de
João Antero, podem ser citados Marcus Vinícius de Carvalho, seu irmão, que fora dirigente do
Clube de Regatas do Flamengo e vice-presidente da Federação Carioca de Futebol, Gustavo de
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115
de crônicas publicadas em O Dia, onde se perfilavam cinqüenta torcedores dos
clubes mais tradicionais da cidade, escolhidos entre figuras ilustres e ignotas,
seguindo critérios de seleção que pareciam atender mais ao bel-prazer das
simpatias pessoais do autor do que a uma distribuição eqüitativa ou
representativa de cada clube, procurava-se reverenciar o multifacetado universo
de aficionados do futebol através da exposição do que chama seus flashes
biográficos
113
.
Evocação memorialística, somada a depoimentos coletados diretamente
por João Antero, com caricaturas de Humberto Marinho, desenhos de Mário
Agostinelli, poemas de Mário Peixoto e prefácio de Nelson Rodrigues, este
último um exímio artífice de imagens consagradas ao torcedor “aquele que
acompanha o clube na glória e no infortúnio, mais neste que naquele”
114
, os
principais chefes de torcida da cidade tinham suas desconhecidas trajetórias
narradas lado a lado com o radialista Ari Barroso, o compositor Lamartine
Babo, o escritor Marques Rebelo, o ex-goleiro Marcos de Mendonça e o
cronista Jota Efegê, entre outros expoentes da vida social carioca. A primeira
geração de líderes de torcida mencionada acima figurava em sua quase
integralidade no livro – Paulista do Fluminense, Dulce Rosalina do Vasco,
Tarzan do Botafogo e Juarez do Bangu – à exceção do popularíssimo
115
chefe
dos rubro-negros, Jaime de Carvalho, ausência lamentada na apresentação da
obra, que fazia o autor justificar a necessidade de prosseguimento do trabalho
em um segundo volume.
Eis alguns excertos, repletos de adjetivos, em que se enaltecem as
provações altruísticas, o não-esmorecimento ante as situações adversas e a
entrega absoluta de cada um deles:
“‘Paulista’, que em 1951, ano de uma competição de torcidas, entrou
em campo vestido de casaca e cartola, acompanhando enorme caixa de
pó-de-arroz, em cujo interior se encontrava bela jovem, segue seu
clube por toda a parte. Tem tido, por motivos partidários, repetidos
desforços pessoais. Aquele que mais o impressionou foi a luta travada
com integrantes da torcida do Flamengo, desde o campo da Gávea até
o hipódromo do ‘Jockey Club’, num ano em que seu time venceu o
Carvalho, ex-jogador e ex-presidente do clube, e Joaquim Vaz de Carvalho, produtor de livros e
filmes sobre futebol.
113
Ibid, p. 246.
114
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 03 de janeiro de 1978, p. 04.
115
Cf. CARVALHO, J. A. de. op. cit. , p. 08.
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116
rubro-negro e os jogadores do Fluminense, após garantirem um escore
favorável, para ‘fazer cera’ arremessaram inúmeras vezes a bola na
Lagoa”.
*
“Atualmente, é a única mulher que comanda uma torcida de futebol. E
o coração feminino torna-se desmedidamente grande na devoção.
Oferece muito e, não raro, em troca de nada. Dulce Rosalina confirma
essa verdade. Sua paixão pelo Vasco da Gama encerra algo de belo,
idolátrico, imorredouro. Vê-la nos instantes de arrebatamento
esportivo ou quando vibra de emoção ao referir-se ao clube predileto é
passar a crer na virtude de certos seres. Bendigamos-lhe o sentimento,
a intensa e admirável veneração ao grêmio a que de todo se entregou.”
*
“Desde 1953 acompanha o Botafogo. Sua presença é infalível em toda
e qualquer atividade de seu clube, principalmente nas partidas de
futebol. Foi, porém, em 1957 que começou a comparecer munido de
bandeira e fogos de estampido. E tal foi sua atuação que em pouco o
proclamaram chefe da torcida do ‘Glorioso’, tendo até sido
homenageado pelas torcidas do Vasco, em 1957, ao receber um
escudo de outro de seu clube; do América, em 1959, ao ser agraciado
com uma flâmula representativa dos dois grêmios; e, finalmente, do
Flamengo, em 1962, ocasião em que lhe deram belo quadro de seu
time.”
*
“Assim como os nazistas saudavam-se na Alemanha, de uma forma
toda peculiar ‘Heil Hitler’ , e os integralistas se cumprimentavam
com o ‘Anauê’, na casa de Juarez Oliveira Silva há, também, um
modo próprio de saudação: ‘Viva o Bangu’. Tal como os assírios
adoravam o Touro Alado, os egípcios a Amon-Ra e Uhr e os antigos
gregos a Júpiter e Têmis, para Juarez o Bangu Atlético Clube é objeto
de divina veneração. (...) Visitá-lo em seu lar é pôr-se em contato
permanente com as coisas do Bangu: emblemas, bandeirolas,
fotografias, flâmulas, frases de exaltação ao clube, a imagem de São
Jorge sob o signo dos leões britânicos e, até, a pintura do apartamento,
toda de vermelho e branco. À semelhança do saudoso Carlos Melo, já
pediu fosse a sua bandeira do grêmio exposta no dia de sua morte. (...)
Pode ser, portanto, considerado um complexo de torcedores, sem
exclusão daqueles que, por atos e palavras, se avizinham do desatino.
Mas, quando age, fá-lo com absoluta convicção. (...) O retrato
espiritual de Juarez é mais ou menos este: pau-de-arara, destemido,
paciente, brigão, descocado, pacificador, inconveniente, desvelado,
intransigente, insólito; mas, na essência, é, apenas, ‘bangüense’. (...)
Torcedor incomum, eis o que ele é, tanto o caracterizam a um só
tempo os números plural e singular: cem homens contidos em um.”
116
.
116
Ibid, p. 209, 228, 284, 161-166, respectivamente.
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117
Paulista era o pseudônimo de Carlos Guilherme Krüger, filho de alemão
com índia, nascido em 1914, na cidade de Bebedouro, no interior de São Paulo.
Depois de uma carreira militar frustrada, radicou-se em Niterói, no ano de
1937, empregando-se como escriturário e almoxarife da Prolar, em Vigário
Geral, graças ao auxílio de Benício Ferreira Filho, benemérito e vice-presidente
de futebol do Fluminense, diretor da empresa, embora seu trabalho não
chegasse a dois salários mínimos. Com simpatia inicial pelo América, Paulista
acabou por inclinar-se pelo Fluminense, clube que à época possuía um plantel
com vários jogadores oriundos do estado de São Paulo. Em 1941, assistiu à
decisão do campeonato carioca, o lendário Fla-Flu da Lagoa, jogo que muito
impressionou Paulista, em razão da briga travada por ele e demais integrantes
da torcida tricolor contra a torcida rubro-negra, confusão estendida do campo
da Gávea até o hipódromo do Jockey Club. Em 1951, foi um dos responsáveis
pela vitória tricolor no “Concurso de Torcidas” do Jornal dos Sports ao entrar
em campo fantasiado de casaca, cartola e portando uma caixa de pó-de-arroz,
ladeado por Teresinha Del Panta, jovem tenista do clube. Além do futebol,
apreciava os festejos do carnaval carioca, onde participava do bloco Pierrôs da
Caverna. Sua ascendência na torcida do Fluminense perdurou até final dos anos
de 1960, quando passou a ser questionado por um companheiro da TOF, o
sineiro Bolinha, criador da Torcida Dissidente.
Dulce Rosalina era carioca, filha de um português do bairro da Saúde,
praticante do jogo do bicho e freqüentador assíduo dos ranchos carnavalescos
da localidade. A inclinação paterna pelo Vasco da Gama motivou sua adesão ao
clube e a presença constante nas arquibancadas a fez ser escolhida para a
direção da TOV na década de 1950, de onde saiu após vinte anos para fundar a
Renovascão em 1976. Casada com o atleta Ponce de Leon, dedicava-se em
tempo exclusivo à vida do Vasco, participando de maneira ativa da política
interna do clube e tomando partido nas eleições. Dizia-se introdutora da
tradição dos papéis picados entre as torcidas e acompanhava o time nos jogos
fora do Rio, razão pela qual foi vítima de um acidente de ônibus na via Dutra
em fins dos anos de 1960, o que provocou seu afastamento temporário dos
estádios. No início daquele mesmo decênio, contudo, já havia sido vencedora
do concurso de “melhor torcedora do Brasil” e costumava ser cognominada a
primeira dama das arquibancadas.
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118
Tarzan, codinome de Octacílio Baptista do Nascimento, nasceu em 1927,
em Grão-Mogol, interior de Minas Gerais. Percorreu várias cidades de Minas e
São Paulo antes de fixar pouso no Rio de Janeiro, para onde veio trabalhar
como pedreiro na construção do Hospital dos Servidores do Estado. Em Belo
Horizonte, integrou a torcida atleticana, que chegou a chefiar. A semelhança
das cores alvinegras fez despertar sua simpatia pelo Botafogo durante a década
de 1950, quando se radicou na cidade. A força muscular e o porte físico
avantajado valeram-lhe o apelido do lendário herói cinematográfico, sendo
conhecido nas arquibancadas por promover um ruidoso foguetório na entrada
de seu time. Após exercer atividades iniciais de vendedor ambulante, tornou-se
proprietário de uma loja de perucas em um sobrado no Centro do Rio.
Independente e polêmico, não poupava dirigentes nem jogadores, ficando
célebres suas críticas à falta de profissionalismo de Garrincha nos anos de
1960
117
.
Na torcida do Botafogo, Tarzã assumiu o lugar de Tolito, comandante da
charanga botafoguense entre 1944 e 1949. Em função dos constantes
aborrecimentos e das freqüentes brigas ocasionadas por torcedores que se
infiltravam no grupo com propósitos diversos ao do mero incentivo ao clube,
Tolito dissolveu a banda, cujo início foi marcado pela ajuda direta de Carlito
Rocha, presidente do clube, mediante a compra de painéis, bandeiras e
serpentinas. Depois de aderir ao grupo que o sucedeu, o jornaleiro Herlito
Machado Fonseca, vulgo Tolito, criaria ainda a torcida organizada Fogolito,
contração do nome do clube com o seu apelido. Mas ficaria mais conhecido nas
décadas seguintes por sua banca de jornal, onde tremulava uma bandeira
alvinegra no centro da cidade, na Rua Sete de Setembro, que se tornou
referência e ponto de aglutinação dos botafoguenses. Assim como os grandes
clubes, os times de porte médio e pequeno também possuíam seus torcedores-
símbolos: Elias Bauman, do América; Hamilton de Oliveira, do Bonsucesso;
Gama, do Campo Grande; Júlio, da Portuguesa; e Juarez, do Bangu
118
.
117
Os breves apontamentos biográficos apóiam-se também em três outros livros. Cf. PEPE, B. &
MIRANDA, L. F. C. de. Botafogo, o glorioso. Petrópolis, s.e., 1996, p. 123. Cf. também
CASTRO, R. Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 275 e 338. Cf. ainda Cf. também LEVER, J. A loucura do futebol. Prefácio de
Sandro Moreira. Rio de Janeiro: Record, 1983, p. 126 e 133.
118
Cf. CASTRO, K. de. “Paiol de emoção”. In: Futebol brasileiro, o gigante a despertar. Rio
de Janeiro: Revan, 1994, p. 148.
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119
Juarez Oliveira da Silva era natural de Acarape, interior do Ceará, onde
passou a infância, mudando-se para o Rio de Janeiro ainda adolescente. Aos
quinze anos, assistiu a uma partida do Bangu contra o Fluminense e mesmo
ante a goleada sofrida pelos banguenses tornou-se defensor contumaz do clube
de origem operária. Nos anos 50, criou o movimento de torcedores intitulado
“Eternamente Bangu” para o qual mobilizava toda a família e a casa. Com
quase dois metros de altura, bigodes negros, olhos claros e tez morena,
trabalhava como técnico em contabilidade e na chefia de produção em uma
empresa de seguros. Sócio do clube, Juarez participava da vida clubística como
membro do Conselho Deliberativo, além de exercer cargos nas federações
esportivas cariocas, por meio dos quais chegou a conhecer certa feita o
presidente Juscelino Kubitschek, que observou o uso indefectível de sua camisa
banguense. Dado a superstições e a rituais, tinha o hábito de ir aos sábados, na
véspera dos jogos, à capela de São Jorge, onde costumava rezar e solicitar a
vitória de seu time.
A despeito da variedade biográfica e das diferenças de temperamento
descritas por João Antero, que frisavam a extravagância e a exaltação – o
reverso da sobriedade e do equilíbrio atribuído a Jaime de Carvalho –, esses
quatro principais torcedores pertenciam à mesma linhagem amadora de chefes
de torcida, junto aos quais outros torcedores, tidos como pitorescos e
excêntricos pelo autor, também eram alinhados, dentre eles os vascaínos
Cartola e Domingos Ramalho, os botafoguenses Tolito e Salvador Peixoto, o
tricolor Bolinha e o americano Fontainha. A função de mando outorgada aos
chefes de torcida era diluída assim nas páginas do livro por uma tipificação
paralela: os exóticos torcedores-símbolos. Estes se distinguiam por portarem
instrumentos sonoros um sino, uma sirene, uma corneta, um apito e por
proporcionarem uma ambiência carnavalesca aos jogos.
A excentricidade, expressa também no linguajar e na vestimenta,
constituía um outro requisito crucial na definição desses indivíduos, aquilo que
os tornava ilustrativos, representativos e dignos de curiosidade para boa parte
da imprensa. Ao lado do despojamento, da origem humilde e do amadorismo, a
caricatura dos chefes de torcida esboçada por esses cronistas tinha como
ingrediente determinados aspectos anedóticos que propiciavam àquelas
personalidades um colorido especial no interior da massa indiferenciada e
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120
niveladora. A busca por uma singularidade no espetáculo do futebol pode ser
pensada também à luz do individualismo qualitativo a que se referia Georg
Simmel em seus estudos sociológicos sobre a emergência do indivíduo na
modernidade européia no limiar do século XX. Enquanto o termo remontava ao
romantismo alemão do século XIX, onde se acentuavam os aspectos singulares
de cada homem, o individualismo quantitativo tinha suas origens no liberalismo
inglês do século XVIII e enfatizava os elementos comuns entre os seres
humanos
119
.
Ainda no intuito de recordar e acentuar a imagem sui generis desses
torcedores de tempos passados, um veterano colunista do Jornal dos Sports,
Geraldo Romualdo da Silva, cuja presença na crônica esportiva quase se
confundia com a própria existência do periódico de Mário Filho, recorria às
suas memórias, às suas anotações e às suas antigas entrevistas a fim de
identificar quais seriam os pioneiros das arquibancadas na história do futebol
carioca desde a década de 1920, antes do advento do profissionalismo e da
criação das torcidas organizadas. Uma espécie de hagiografia anedótico-
popular emergia de suas recordações sobre as figuras mais proeminentes do
passado.
De acordo com seus apontamentos, Paradantas havia sido o primeiro, no
ano de 1922, um “desinibido”
120
caixa do Banco Ultramarino, responsável por
fabricar uma bandeira gigante, carregada por ele e sua “grei” aonde quer que o
Vasco fosse. O segundo líder vascaíno, Afonso Silva, o Polar, assim apelidado
em alusão a uma marca de sorvete por ele mesmo lançada, era um “mulato
sestroso e bem vestido”, que se postava à frente das cadeiras sociais de São
Januário, com sua bengala de junco empunhada à maneira dos jogos de rúgbi e
baseball norte-americanos, tal como exibiam as fitas das salas de cinema na
época. Esteve em tal condição até o concurso de Embaixador e de Embaixatriz
para a Copa do Mundo de 1938, quando perdeu a eleição na categoria
masculina para Oswaldo Menezes, do Flamengo, que não chegava a ser chefe
de torcida.
119
Cf. SIMMEL, G. On individuality and its social forms. Chicago: The University of Chicago
Press, 1971.
120
Cf. SILVA, G. R. da. “Torcidas Organizadas”. In: Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 06 de
maio de 1976, p. 5.
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121
A seguir, foi sucedido por João Ferreira da Silva, o Cartola, “o homem
que ri e acorda com o Vasco na boca...”
121
, um pobre alagoano indicado para a
Marinha pelo embaixador e ministro Oswaldo Aranha, fuzileiro naval que
viajara por trinta e três países do mundo; e por João de Lucca, um torcedor
“alto e de voz mansa”, que não teve a mesma projeção dos anteriores. Já
Domingos Ramalho, natural de Ilhéus, Bahia, mencionado também por João
Antero de Carvalho, chegou ao Rio de Janeiro em 1942 como estivador.
Pertencente ao sindicato da estiva, iria se notabilizar nos estádios do Rio de
Janeiro por seu rústico instrumento de sopro, feito de um talo de mamoeiro,
com um toque especial aprendido por imitação àquele ecoado nos quartéis. Este
produzia um som agudo e estridente que chamaria a atenção não só do
presidente do Vasco, Ciro Aranha, como de sucessivos presidentes da
República – Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart –, o que lhe
valeu um convite para apresentar-se na Rádio Marink Veiga.
No Fluminense, a personagem relembrada por Geraldo Romualdo da
Silva era Peitão, supracitado por Coelho Neto, um boxeur que pertencia à
Fuzilaria Naval da Armada e que em 1927 assumiu a chefia da torcida tricolor.
Dentre suas estratégias de incentivo, tinha por hábito entoar o coro “É Flu” e
aguardar a repetida resposta coletiva de seus comandados. Tentou obter o título
de sócio-contribuinte nas Laranjeiras, mas em razão de suas origens negras o
máximo que conseguiu de um clube então conhecido pelas restrições raciais e
sociais foi a carteira de sócio-atleta. Em 1948, apareceria Guilhermino dos
Santos, o Careca, que após vinte anos de freqüência às arquibancadas
começaria a se notabilizar por suas fantasias tricolores. Segundo o jornalista, o
Botafogo não teve chefe de torcida naquele tempo, mas um bloco do bairro o
Bloco da Bambina apesar de João Saldanha se referir na crônica “A arte de
argumentar”, de sua coluna Contra-ataque, a um lendário torcedor alvinegro,
que atendia pela alcunha de Marinheiro, entre os idos de 1945 a 1948, e era
reconhecido por uma voz metálica, semelhante à de locutores esportivos do
rádio da época, como Oduvaldo Cozzi. Já o Flamengo, antes de Jaime de
Carvalho, possuiu como torcedores característicos Baiano e Alfredo Pinto, o
vulgo Vai-na-Bola, assim chamado por se posicionar atrás do gol nos treinos e
121
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 25 de agosto de 1962.
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122
por pronunciar sempre essa mesma interjeição para os jogadores, com o auxílio
de dois pratos de metal
122
.
Ainda que intermitentes, essas matérias dedicadas à vida dos chefes de
torcida repetiam-se de tempos em tempos no Jornal dos Sports. Embora
variassem seus redatores, os textos costumavam enfocar os mesmos aspectos
a abnegação romântica, o tipo folclórico, as origens modestas, o ritual de
preparação para os clássicos , em um tom quase sempre laudatório. Em uma
reportagem de página inteira e de grande destaque publicada no ano de 1966,
intitulada “Amor dos chefes de torcida só não vale título que cartola usa”
123
, o
jornalista Élcio Castro biografava mais uma vez os seis principais
representantes das arquibancadas, discorrendo acerca de suas atividades
cotidianas extra-esportivas e incluindo entre os perfilados, além dos cinco
chefes já arrolados até aqui, Elias Bauman, um novato líder, vendedor do ramo
de tecidos e medicamentos, que então despontava na torcida do América. O
contraponto que agora se colocava não dizia respeito ao amadorismo dos
torcedores versus o profissionalismo dos jogadores, mas à tensa relação entre a
“promoção pessoal” e o “amor ao clube”, manifesta no contraste entre a
posição do chefe de torcida e a posição do dirigente esportivo, cada qual a
ocupar um dos extremos da hierarquia do futebol
124
.
Conhecido na linguagem esportiva sob a pecha de cartola, situado no
topo da escala do poder clubístico, o dirigente era aquele indivíduo que
segundo o repórter usufruía das regalias oferecidas pelo clube, enquanto os
“laboriosos” chefes de torcida apenas conseguiam, de quando em vez, aqui e
ali, parcos subsídios para o patrocínio de suas atividades. A ambigüidade da
imagem dos cartolas na sociedade e nos meios de comunicação, a simbolizar de
um modo mais geral a visão do político e da política no microcosmo
futebolístico, vinha sendo cultivada desde pelo menos a década de 1930,
quando a querela deflagrada entre amadoristas e defensores do futebol
profissionalizado evidenciou as práticas habituais de certos dirigentes que se
122
Cf. AQUINO, W.; CRUZ, C. Acima de tudo rubro-negro: o álbum de Jayme de Carvalho.
Rio de Janeiro: C. Cruz, 2007, p. 46.
123
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1966, p. 12.
124
Para usar a metáfora piramidal do historiador norte-americano Robert Darnton, poder-se-ia
dizer que o primeiro ocupava a “base” enquanto o segundo, o “vértice”. Cf. DARNTON, R. “O
alto iluminismo e os subliteratos”. In: Boemia literária e revolução: o submundo das letras no
Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 13.
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123
valiam de um inconstante regime de bichos gíria referente à gratificação
paternalista ofertada aos jogadores nas vitórias do time em detrimento de um
salário fixo para a manutenção das aparências do amadorismo no Brasil.
Em livro de memórias de um jogador, considerado o primeiro
depoimento escrito por um atleta na história do esporte brasileiro, publicado no
ano de 1933, marco zero da implantação do profissionalismo no futebol,
Floriano Peixoto Corrêa narrava a precariedade das condições de sobrevivência
em que se encontravam os desportistas no país, submetidos “a toda sorte de
desmandos impostos pelos dirigentes”
125
. Espécie de libelo contra a injustiça e
a ganância, a ilustração contida no frontispício de Grandezas e misérias do
nosso futebol traduzia de forma ainda mais taxativa a imagem caricatural do
cartola, visto sob um prisma maniqueísta e estereotipado: se no canto esquerdo
da capa via-se, apequenado, espoliado e alquebrado, o jogador ao final de sua
carreira, ao centro encontrava-se, em primeiro plano, um homem de riso cínico,
com seu charuto imponente, portando terno e gravata, locupletando-se com
vultosos sacos de dinheiro. Com apresentação do atleta Paulo Várzea, o
conteúdo da obra continha ainda um relato pormenorizado dos
constrangimentos por que tinham de passar os jogadores da periferia a fim de
se integrar aos clubes grã-finos da zona sul da cidade. Não à toa, o prólogo do
livro comparava a condição do jogador aos desatinos e às incompreensões
alucinadoras a que era levado, na obra literária clássica de Cervantes, o seu
personagem principal.
O emprego na fala corrente do pejorativo cartola para se referir a um
detalhe de indumentária, o esnobe chapéu usado não só pelos dirigentes de
clube como pelos presidentes de entidades desportivas, culminaria com sua
consignação em dicionário por parte de Leonam Penna, um colunista do Jornal
dos Sports que no ano de 1951, após uma pesquisa de sete anos, incorporou ao
léxico esportivo uma vasta quantidade de locuções futebolísticas, em um
empreendimento definido por Mário Filho como “o registro civil da gíria”
126
. O
autor de Dicionário popular de futebol: o ABC das arquibancadas creditava as
origens do termo cartola ao personagem homônimo que encarnava o torcedor
125
Um fac-símile da capa deste livro encontra-se na tese de Luiz Henrique de Toledo. Cf.
TOLEDO, L. H. de. Lógicas no futebol. São Paulo: Huicitec; Fapesp, 2000, p. 37.
126
Apud PENNA, L. Dicionário popular de futebol: o ABC das arquibancadas. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998, p. 21.
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124
do Fluminense, clube conhecido por suas marcas aristocráticas e elitistas. Anos
depois, a gíria depreciativa seria consignada e corroborada por Aurélio Buarque
de Holanda em seu dicionário da língua portuguesa: “dirigente de clube ou
entidade esportiva; indivíduo de posição elevada, desprezador das opiniões e
tendências populares; grã-fino.”
127
.
A criação do personagem Cartola foi uma autoria de Molas, chargista
argentino que havia sido contratado por Mário Filho para ilustrar seu periódico
nos anos 40, responsável pela introdução da linguagem das histórias em
quadrinhos, típica do universo infanto-juvenil, na representação dos clubes
128
.
Mas o Jornal dos Sports fornecia ainda outra versão autoral, que atribuía a
expressão ‘cartola’ a um jornalista do Correio da Manhã, Diocesano Ferreira
Gomes (Dão), criada para designar o dirigente “emproado” com função nos
clubes e no tapetão das ligas esportivas.
De todo modo, se esse estereótipo vinculado de início aos tricolores
circularia até o final da década de 1960, figuras púbicas que pertenciam tanto
ao futebol quanto à burocracia estatal e ao mundo empresarial passaram, de
maneira extensiva, a ser designados também como cartolas: Vargas Neto,
presidente da Federação Metropolitana de Futebol do Rio de Janeiro, sobrinho
de Getúlio Vargas; Rivadávia Correa Meyer, presidente do Botafogo e da
Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA); Luís Gallotti, ex-
presidente do Fluminense, presidente da Confederação Brasileira de Desportos
e ministro do Supremo Tribunal Federal; Lourival Fontes, chefe de delegação
da Seleção Brasileira da Copa do Mundo de 1934 e a seguir diretor do DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda) durante o Estado Novo; João Lyra
Filho, presidente do Conselho Nacional de Desportos, secretário de finanças do
Distrito Federal, diretor da Caixa Econômica Federal até 1949, chefe de
delegação na Copa de 1954, professor-catedrático e reitor da Universidade do
Estado da Guanabara (UEG); Arnaldo Guinle, proprietário de um valioso
patrimônio arquitetônico no Rio de Janeiro, no qual se incluía a sede do
Fluminense Football Club; e Jean-Marie Faustin Goddfrois D’Havelange, mais
127
Cf. FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, s.d., p. 290.
128
Um dos primeiros estudos críticos sobre as mensagens ideológicas contidas nas histórias em
quadrinhos da Walt Disney foi feito por dois autores chilenos. Cf. DORFMAN, A; MATTELART,
A. Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
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125
conhecido como João Havelange, presidente do Fluminense, da CBD e da
FIFA entre muitos outros, recebiam tal alcunha
129
.
Em São Paulo, durante a década de 1970, a caricatura do cartola teria não
só prosseguimento como encontraria um adversário contumaz entre os
redatores e jornalistas pertencentes ao semanário Placar, revista esportiva da
Editora Abril lançada naquele decênio. Enquanto no Jornal dos Sports do Rio
de Janeiro as grandes matérias sobre dirigentes esportivos costumavam ser
feitas por Geraldo Romualdo da Silva, em reportagens como “A política do
futebol”
130
e “O cartola”
131
, e se restringiam à abordagem pitoresca do perfil
dos presidentes de clube, sem questionamentos morais mais mordazes ou
incisivos, na Placar de São Paulo os cartolas eram alvos de sistemáticas e
contundentes críticas desde o surgimento do periódico.
Já na sua vigésima edição, em 1970, a revista dava início a uma série de
quatro reportagens sob o título geral de “A falência dos cartolas”. Assinada por
Michel Laurence e Narciso James, com fotos de Lemyr Martins e Sebastião
Marinho, a série abordava a atuação de Wadi Helu, presidente do Corinthians e
deputado estadual pela Arena; de Laudo Natel, presidente do São Paulo e
governador do estado; de José Ermírio de Moraes, presidente da Federação
Paulista de Futebol, vice-presidente da CBD, político e empresário que depois
se tornaria porta-voz da Fiesp; e de Athiê Jorge Cury, presidente do Santos.
Quanto ao Rio, mencionavam-se Castor de Andrade, suspeito dirigente do
Bangu; Xisto Toniato, vice-presidente do Botafogo, proprietário de frigoríficos;
e Gunnar Goranson, um sueco “bonachão”, diretor de futebol do Flamengo.
Segundo a revista, a cartolagem movia-se no interior do futebol com
vistas à obtenção de benefícios de toda ordem, do aparecimento em fotos de
jornais a amizades que gerassem dividendos. Em princípio bem-intencionados,
os cartolas eram dragados com o tempo pelos vícios das engrenagens
subterrâneas do aparato esportivo. Já o torcedor era situado no limbo entre os
jogadores cada vez mais profissionalizados e os dirigentes totalmente
amadores. Depois de traçado o diagnóstico, a última reportagem, veiculada no
129
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 28 e 30 de dezembro de 1975, p. 16 e 12,
respectivamente.
130
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de abril de 1979.
131
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1975, p. 12. Cf. também ibid. Rio de Janeiro, 07 de
fevereiro de 1976, p. 16.
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126
número vinte e três da revista, propunha uma alternativa à gestão dos clubes e
do campeonato nacional: àqueles cabia a sua transformação em sociedades
anônimas (S.A)., ao passo que a estes a adoção do modelo italiano, com a
regulamentação do governo e com uma indústria rentosa que pagasse melhor os
jogadores mais categorizados do mercado
132
. Passados alguns poucos meses, na
edição de número trinta e um, o periódico publicava matéria com sentido
triunfal e auto-reverente, intitulado “Exclusivo: vai mudar tudo no nosso
futebol”, onde era perceptível nas entrelinhas os efeitos existosos da campanha
movida pela revista para a redenção do futebol brasileiro, o que fazia os
dirigentes anunciarem um novo sistema competitivo para o campeonato
nacional de 1971.
Em 1978, outra investida ainda mais veemente da Placar era
desencadeada contra os cartolas. Entre as edições 429 e 432, o jornalista José
Maria de Aquino era responsável por assinar a matéria “Todos os homens do
presidente”, onde elegia o presidente da Confederação Brasileira de Futebol,
um político com origem no antigo PSD, o almirante Heleno Nunes, indicado
pelo Ministro da Educação para o cargo, como ponto de partida para um
conjunto de denúncias sobre a corrupção na administração dos dirigentes
brasileiros, onde figuravam nomes dos “velhos caciques”, dentre eles André
Richer, Rubens Hoffmeister, Raimundo Viana e Paulo Maracajá, numa bateria
de reportagens denominadas “Como estão matando o nosso futebol”. A
veemência das acusações pode ser avaliada nas seguintes chamadas, com
referências à “orgia do tangodólar” prevista para a Copa da Argentina:
“Heleno Nunes não é má pessoa. É, apenas, o cartola que está levando
o futebol brasileiro à ruína, por excesso de bondade. Ou haverá
motivos menos éticos para justificar a orgia de gastos com a Seleção,
para explicar a presença de 74 clubes no Brasileiro ?”
*
“De alto a baixo, da CDB aos clubes, um retrato fiel do nosso futebol:
um bando de cartolas incompetentes. Só no Brasil poderia existir um
campeonato deficitário, que endivida os clubes e engorda os cofres da
CBD. E, enquanto os clubes reclamam favores do governo, da Loteria,
do INPS, a CBD, generosa, se dá ao luxo de pagar a lua-de-mel de um
jogador da seleção.”
133
.
132
Cf. PLACAR. São Paulo, Editora Abril, 1970, n. 20-23, p. 38-39.
133
Cf. ibid, p. 4-10, n. 430.
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127
O peso de tal tradição e as conseqüências da tramitação dos cartolas pelas
esferas governamentais da política e do futebol são consideradas pelo
antropólogo Arlei Damo da seguinte maneira:
“... a disseminação dos esportes e, particularmente, a do futebol não se
deveu à revelia do suporte estatal, nem da noite para o dia. O trânsito
intenso de dirigentes esportivos pelos interstícios do Estado – seja do
aparato administrativo, legislativo ou judiciário – fez migrar não
apenas as ‘mentalidades de gestão’, com suas peculiaridades, mas
também muitas representações acerca da nação. Finalmente, parece
razoável crer que uma instituição englobante como o Estado,
concentrador de diferentes capitais, reproduza-se, ao menos em parte,
em outras instituições sociais, com tanto mais propriedade quanto
mais uso fizer delas, e este é o caso do futebol de espetáculo.”
134
.
Fixados como antípodas entre si pela linguagem do meio especializado, o
“humilde” chefe de torcida e o “poderoso” dirigente esportivo seriam
contrapostos e assim caracterizados durante décadas de 1940, 1950 e 1960 na
pena de muitos cronistas. Compartilhada com os jogadores, essa retórica da
humildade apregoada pelos jornalistas aos torcedores tidos como mais tenazes,
puros e renunciantes na demonstração da sua idolatria clubística guardava o
diferencial do ethos amadorístico no interior do mundo profissional, uma
estratégia discursiva de singularização de tal personalidade.
Com base no exposto até aqui, é possível concluir que a figura do
torcedor era plasmada em duas instâncias de produção intelectual. De um lado,
artistas e pensadores de projeção internacional, como Brecht e acólitos da
Escola de Frankfurt nos anos de 1960, que promoveriam um elevado debate em
nível teórico ao longo do século XX acerca do espectador, na qual se colocava
em pauta a centralidade do fenômeno da catarse, movidos pela discussão que
confrontava os planos da alienação e da consciência, da moderação e da
exaltação, da estabilidade e da instabilidade emocional no comportamento do
espectador moderno; de outro lado, uma gama de letrados pertencentes ao
campo específico da crônica esportiva, que recolocaria a questão em termos
menos conceituais e mais pragmáticos, porém não menos ideológicos, com o
reconhecimento da ascensão das massas no futebol profissional e com a
134
Cf. DAMO, A. “O ethos capitalista e o espírito das copas”. In: GUEDES, S. L.; GASTALDO,
E. L. (Orgs.) Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Rio de Janeiro:
Intertexto, 2006, p. 47 e 48.
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necessidade de imprimir-lhes uma diretriz pedagógica e comportamental. Esta
ascensão requeria dos especialistas, que volviam seus interesses para a criação
de uma demanda paralela em torno do consumo de periódicos, a construção de
uma sintonia lingüística e simbólica com o público mediante a atribuição de um
sentido interativo com ele no acompanhamento das partidas.
A liberação regulada das emoções catárticas de que tratava o paradigma
aristotélico, endossado nos estudos sociológicos sobre os esportes modernos
por um Norbert Elias, caminhava pari passu com a aplicação e a divulgação de
determinados padrões a um só tempo festivos e disciplinares de conduta
concebidos por jornalistas do meio. Estes procuravam internalizar no
espetáculo tanto propriedades imanentes ao campo de jogo, com a criação de
critérios de mensuração das formas de incentivo por meio da instituição da
“Competição de Torcidas”, em que se introduzia a pontuação, a emulação e o
espírito de concorrência, quanto elementos provenientes de atividades extra-
esportivas, com a absorção dos quesitos rítmicos e musicais próprios do
carnaval, extraídos por esses mesmos agentes dessa nova esfera ritualística da
vida carioca: os desfiles competitivos das escolas de samba. Arremedo criado
pelo cruzamento das normas de institucionalização na música popular e no
futebol profissional, as torcidas organizadas despontavam como um fenômeno
novo, de onde emergiam personalidades com funções sociais até então
desconhecidas.
O papel de autoridade e de mediação incumbido ao chefe de torcida, ator
inventado no espaço das arquibancadas como modelo a ser seguido pelos que
legitimavam sua liderança e acolhiam suas orientações, seria combinado à idéia
de simplicidade, de pureza e de um acentuado caráter de devoção religiosa,
discursos onde é possível identificar a presença de categorias clássicas do
pensamento antropológico desenvolvidas em outras circunstâncias por Marcel
Mauss e Louis Dumont
135
. Eles vinham expressos sobretudo nas imagens do
sacrifício e da renúncia, que alguns cronistas e escritores não deixariam de
observar e enaltecer nos torcedores. Através de uma contraposição esquemática
com a condição ocupada por outros personagens, jogadores e notadamente
135
Cf. MAUSS, M.; HUBERT, H. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. Cf.
também DOUMONT, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985, p. 37 e 189.
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dirigentes conhecidos como cartolas, era dada a assunção de uma identidade no
interior do futebol. Nela, uma tríplice dimensão – a da autoridade, a da
excentricidade e a da humildade –, seria fundamental na representação do
torcedor em geral e do chefe de torcida, em particular.
1.3 Autenticidade, ambição e o novo estigma do profissionalismo
O foco do capítulo até o momento esteve voltado para a demonstração
das abstrações encetadas por artistas e intelectuais com relação à passionalidade
dos espectadores, no que ela tem de ativa e passiva, de positiva e negativa, de
contendora e liberadora, de anímica e corporal, e para a exposição das
prescrições e das idealizações estipuladas pelos cronistas da área no tocante à
disciplina das massas e ao suposto intrínseco amadorismo dos torcedores. A
atenção agora se direciona, por seu turno, às transformações por que passou a
figura do chefe de torcida no curso das décadas de 1960, 1970 e 1980, quando
outros aspectos foram descritos, enfatizados e problematizados pelos
jornalistas, com a conseqüente reelaboração e reversão da imagem concebida
de início. A investigação se concentra no acompanhamento da descrição de um
sentimento de perda, de descaracterização e de “corrosão do caráter”
136
decorrente da mutação dos princípios fundadores de sua identidade, tal como
engendrada e cristalizada ao longo dos decênios de 1940, 1950 e 1960, que se
reflete na alteração do enfoque privilegiado por parcela significativa da crônica
esportiva. Ver-se-á de que maneira a representação fabricada pelos meios de
comunicação pode ser redefinida, complexificada ou mesmo reafirmada
quando se consideram as sucessivas gerações de chefes de torcida organizada
do Rio de Janeiro.
Com efeito, dentre as diversas transformações observadas no correr dos
anos, seria aquela mesma equação montada por determinados cronistas para
retratar a quase incompatibilidade de posicionamento entre dirigentes
esportivos e torcedores, como no caso da reportagem citada na seção anterior
de Élcio Castro, do decênio de 1960, que entraria em colapso ou sofreria
modificações substantivas. Se a percepção do dirigente como cartola passava
136
Cf. SENNETT, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 1999.
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130
por uma representação denegrida de seu métier em função do contato mais
direto com a esfera de poder do Estado, o que lhe valia uma dubiedade e uma
desconfiança de parte da imprensa favorável ao movimento da
profissionalização, quanto a suas práticas, a seus costumes e a suas reais
intenções no interior do clube, outras formas de entendimento desse mesmo
personagem não eram incongruentes com a inserção do chefe de torcida no
cenário desportivo.
Ao contrapor as origens nobres do primeiro e as origens plebéias do
segundo, a rigidez do par antitético seria convulsionada por um princípio de
realidade em que tais personagens não deixariam de entretecer relações
concretas no dia a dia do mundo clubístico – com os dirigentes, com os
jogadores, com a imprensa , mediante o estabelecimento de um gradiente de
interações capazes de produzir novas configurações, investidas de uma
dinâmica própria, distinta dos papéis prescritos a priori para cada ator, à luz
daquilo que os sociólogos norte-americanos Howard Becker e Erwin Goffman
chamaram de “interacionismo simbólico”
137
. É de largo conhecimento que a
abordagem interacionista nos Estados Unidos representou uma alternativa
sociológica ao funcionalismo fundamentado por Talcott Parsons e por Robert
Merton em torno de meados do século XX. Eles foram sucedidos por autores
que traziam como alicerces inovadores os conceitos interativos de ação, de
comunicação e de socialização. Seu esteio era por sua vez uma linguagem
extraída do teatro, em expressões como drama, papel, representação, entre
outras
138
.
Assim, a distância estrutural que separava o dirigente de clube e o
representante dos torcedores na arquibancada do ponto de vista da hierarquia
política, econômica ou social não impedia a percepção de um relacionamento
estreito e de uma cumplicidade, por assim dizer, umbilical entre um e outro. As
torcidas organizadas haviam nascido e se desenvolvido não apenas sob a
chancela dos meios de comunicação – é notória a versão segundo a qual a
Charanga de Jaime de Carvalho fora batizada com tal nome em um programa
de rádio do locutor esportivo Ari Barroso – mas igualmente sob o beneplácito
137
Cf. GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.
138
Cf. JOAS, H. “Interacionismo simbólico”. In: GIDDENS, A.; TURNER, J. (Orgs.). Teoria
social hoje. São Paulo: Editoria UNESP, 1999.
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de vários presidentes de clube e de vice-presidentes dos departamentos de
futebol, de quem costumavam receber subsídios consoante o grau de
proximidade. Sendo o clube uma entidade social e recreativa em princípio sem
fins lucrativos, seus presidentes eram em geral figuras antigas no meio, ex-
atletas, fundadores ou descendentes de famílias aristocráticas tradicionais cuja
vida era associada à agremiação e que permaneciam à sua frente muitas vezes
por laços dinásticos de afeição genealógica – os Carneiro de Mendonça no
Fluminense, os Bebiano no Botafogo, os Cardoso no Flamengo, as filiações de
origem portugesa no Vasco – como atestam exemplos históricos de inúmeras
empresas criadas por imigrantes, indústrias ou estabelecimentos comerciais de
pequeno ou médio porte no Brasil
139
.
O advento do profissionalismo nos anos de 1930 não romperia por
completo a hegemonia de um ethos amadorístico, de uma ambiência familiar ou
de um modo paternalista de administração do clube por parte dos dirigentes, de
sorte que ambos, diretor e torcedor, malgrado todas as diferenças hierárquicas,
continuariam a partilhar uma mentalidade amadora muito próxima entre si. A
questão voltaria à baila na década de 1960, quando várias transformações,
expressas no avanço de uma nova voga de profissionalização e das suas
vicissitudes no contexto nacional e local, recolocariam o problema do
distanciamento e da proximidade, da autonomia e da dependência, do altruísmo
e do favorecimento pessoal na abordagem dos dois atores. A formação de um
Campeonato Brasileiro e a criação de uma infra-estrutura de grandes estádios
agenciada pelo governo federal; a entrada da cobertura televisiva em escala
global e os recordes de público pagante; as formas inovadoras de obtenção de
lucro nos jogos, com os patrocínios e com o lançamento da loteria esportiva
nacional; a rapidez das viagens com o desenvolvimento dos meios de
transporte, em especial, de uma malha aeroviária que despontaria ante a malha
ferroviária e rodoviária – todos esses itens seriam fatores macro-estruturais que
exerceriam grande impacto sobre o futebol do país e sobre a vida clubística,
afetando o modus operandi administrativo do clube e, por conseguinte, o
relacionamento com seu associado e com seu torcedor.
139
Cf. FAUSTO, B. “Imigração: cortes e continuidades”. In: SCHWARCZ, L. M.; NOVAIS, F.
(Orgs.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol.4.
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132
O novo influxo do profissionalismo e o alargamento da simbologia
clubística, agora articulada à esfera da nação por meio de uma competição que
procurava integrar as diversas regiões do território, se refletiriam de maneira
provisória no afastamento das figuras do dirigente de torcida e do dirigente de
clube. O quadro teria repercussões também nas disputas por espaço e nas
maneiras de representação dos torcedores nas arquibancadas. Quanto mais as
torcidas requeriam uma estrutura de viagens para o acompanhamento
sistemático do time nos jogos fora do estado e um local para abrigar seu
material cada vez mais autônomo em relação ao clube, que crescia em termos
quantitativos com bandeiras, camisas e instrumentos musicais, menos a figura
exclusiva do chefe, como repositório moral e ícone do clube nos estádios,
tornava-se necessária. A unanimidade e o consenso em torno de um único
nome cedem terreno a uma fragmentação da representatividade que atende às
demandas competitivas e aos imperativos funcionais de existência da
coletividade.
O culto e a tradicional obediência à persona do chefe passam a sofrer
sucessivos questionamentos no seio das associações em fins da década de 1960,
movidas também pelo engrandecimento, pela racionalização e pela
burocratização por que atravessa o futebol profissional. Se a chefia da torcida
dependia muitas vezes do aval dos presidentes de clube, assim como das
emissoras de jornal e rádio, agora o vínculo de muitos dos auto-intitulados
chefes com esses dois pólos de poder esportivo deixa de ser imprescindível.
Impulsionadas por uma conjuntura de crescimento, fragmentação e
“despossessão”
140
, fissuras internas na unidade dos grupos promoveriam o
aparecimento de um sem-número de agrupamentos paralelos e de uma
heteronomia de comandantes de torcida dentro de um mesmo clube. Eles
passariam a conviver, a concorrer ou a se opor aos métodos usuais de apoio dos
primeiros líderes de arquibancada, e aos seus atributos de incontestável
liderança, onde um rearranjo e um agenciamento diferencial das relações – ora
aproximadas, ora distanciadas – se verificariam entre estes e as autoridades
clubísticas e esportivas.
140
Conforme já citado na Introdução, o termo é empregado por Pierre Bourdieu e pelo sociólogo
francês Patrick Mignon para indicar a perda de influência direta das torcidas sobre os clubes. Cf.
MIGNON, P. La passion du football. Paris: Odile Jacob, 1998.
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133
As metamorfoses no universo futebolístico e no âmago das torcidas
organizadas não se fariam perceber de início na abordagem jornalística, de
modo que as mudanças efetivadas pela profissionalização não pareciam alterar
em termos concretos os laços de proximidade constituído entre os diversos
agentes do futebol ao longo de décadas, sobretudo no que diz respeito à relação
entre os jornalistas e os torcedores. O Jornal dos Sports continuaria a dar a
abertura usual aos grupos durante o decênio de 1970, com fotos na primeira
página, com manchetes dotadas de um nítido teor de incentivo e com o
prestígio conferido às suas atividades durante a semana, nas estratégias
adotadas por cada líder para a obtenção da vitória nos Duelos patrocinados pelo
jornal. A relação dos chefes de torcida entre si e com os jornalistas em
específico mantinha ainda um curioso e antigo costume: a ida dos torcedores à
sede da redação dos periódicos. Naquele ambiente, as lideranças iam ao
encontro dos repórteres, em um clima de camaradagem e de informalidade, e
davam seus palpites e prognósticos para os jogos do fim de semana. A
provocação amistosa ao representante da torcida adversária e a entrega de
troféus à torcida vencedora, em matérias feitas por vezes em plena mesa de
trabalho dos jornalistas, faziam parte dessas visitas, que não raro eram
publicadas como notícia no dia seguinte
141
.
Veículo central aqui investigado, como se observará com mais nitidez no
próximo capítulo, o Jornal dos Sports acompanharia a progressiva alteração na
abordagem e na tematização das torcidas organizadas na década de 1980, com a
tendência da grande imprensa a salientar o fenômeno da violência. Entretanto,
o elo histórico com esses grupos lhes assegurava credibilidade na colocação do
assunto em discussão e na proposição do debate com as lideranças dos
torcedores, para além da mera condenação ou do simples registro factual dos
incidentes. Assim como matérias exclusivas de página inteira vinham sendo
feitas ao longo das décadas, o decênio de 1980 assistiria a destacadas
141
A título de exemplo, cite-se o mês de abril de 1973, quando uma grande competição entre
torcidas seria promovida pelo JS, acompanhada por um corpo de jurados constituído pelas mais
eminentes personalidades das rádios cariocas. Após uma semana de divulgação, a cerimônia de
entrega de troféus à torcida vencedora seria coberta na sede do jornal com várias fotos da
confraternização entre representantes das diversas associações. Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio
de Janeiro, 18 de abril de 1973, p. 5. No mesmo ano, o semanário esportivo Placar, da revista
Abril, realizaria em parceria com o Jornal dos Sports um concurso em nível nacional onde, por
meio de votação, os torcedores elegiam “o clube mais querido do Brasil”. Cf. PLACAR. São
Paulo: Ed. Abril, 03 de agosto de 1973, n. 177.
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reportagens com aqueles representantes, onde continuava a se evidenciar uma
preocupação recorrente com as origens sociais, com as formas de subsistência
econômica fora do esporte e com o grau de doação de que eram capazes.
Enquanto o citado repórter Élcio Castro expunha em 1966 a vida do chefe de
torcida com ênfase na modéstia de suas condições econômicas e na aclamação
de seu altruísmo, com a inclusão de dispêndios financeiros pessoais em
benefício do clube, o teor dos textos da década de 1980 se direcionava à
apresentação dos novos atores que emergiam nos grupos, à exposição das novas
questões por eles vivenciadas no relacionamento com as demais instâncias do
futebol e à explicitação dos modelos de conduta em que se viam moralmente
divididos.
Ao longo daquele decênio, em três oportunidades o jornal transcenderia
as notícias mais corriqueiras referentes às torcidas e cederia espaço à discussão
sobre a figura do líder e seu grupo, em matérias de página inteira e com grande
destaque. A dimensão conjuntural e seu caráter pontual não impedem que se
perceba a colocação em termos dramático-estruturais do questionamento em
torno da sua identidade. Os três momentos consistem, pois, em três etapas de
um processo maior de mudança da representação do chefe de torcida,
possibilidade entrevista já na primeira geração das décadas de 1940, 1950 e
1960, que vai se manifestar e cristalizar no discurso jornalístico dos anos de
1980 quando certos valores amadoristas se mesclam a valores profissionais,
fruto de igual modo da persistência de determinadas relações travadas com os
dirigentes. A contrapelo de um movimento rumo à profissionalização, o chefe
de torcida seria pouco a pouco identificado como um dos protagonistas
responsáveis pela continuidade com determinadas práticas rechaçadas por
significativa parcela do jornalismo esportivo, formadora daquilo que se
convencionou chamar a opinião pública
142
.
O primeiro momento se daria em agosto de 1982, quando uma reunião
dos chefes de torcida ocorrida em plena Associação Nacional dos Jornais, a
ANJ, criada em agosto de 1979
143
, espaço voltado para garantir a autonomia da
142
Cf. BECKER, J.-J. “A opinião pública”. In: RÉMOND, R. (Org.) Por uma história política.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ / Editora FGV, 1996. JABOR, A. A opinião pública. São Paulo:
Versátil Home DVD, 2006.
143
O órgão predecessor da ANJ foi o Sindicato dos Proprietários dos Jornais e Revistas do Estado
da Guanabara, da década de 1960, cuja sede ficava no décimo andar do prédio da Associação
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135
corporação dos jornalistas face ao poder dos empresários e donos de jornal,
ganharia repercussão ao pôr em foco a participação dos chefes de torcida nas
instâncias decisórias estaduais do futebol carioca, como o Conselho Arbitral da
FERJ, e a possibilidade de influência das lideranças de torcedores na
elaboração do calendário do campeonato, na criação das fórmulas de disputa e
na decisão do preço dos ingressos
144
. O objetivo maior das torcidas parecia ser
a conquista do direito à voz e voto na federação, tendo em vista o
conhecimento do dia a dia do futebol. A transitoriedade do dirigente nos cargos
era contraposta à permanência do torcedor nas arquibancadas, razão pela qual
havia sido criada no ano anterior a ASTORJ, a Associação de Torcidas
Organizadas do Rio de Janeiro, entidade com uma clara postura reivindicatória
que colocava os líderes de torcida como partícipes do evento
145
. A lista de
reivindicações era divulgada pelo jornal, com exigências e cobranças alternadas
ao oferecimento de contribuições, tais como a colaboração com a polícia nas
campanhas de pacificação dos estádios e a reabilitação dos concursos de
torcida, cuja última grande edição havia sido em 1973.
A abertura de um canal coletivo de representação das diversas
associações sinalizava para a tentativa de formação de uma corporação
autônoma que participasse em âmbito institucional e que negociasse com as
esferas de poder constituído. A elaboração de uma lista de reivindicações
permitia o entendimento das suas demandas e a sua inspiração, ainda que
remota, com organizações estruturadas em moldes sindicais, tal como
reclamada por uma nova geração de chefes ciente de seus direitos e deveres.
Presente ao debate, Dulce Rosalina era a única remanescente dos primeiros
líderes de torcida das décadas de 1940, 1950 e 1960. Ela estava então no
comando de um grupo pequeno, a Renovascão, criado por ela própria desde seu
afastamento da TOV, em virtude de divergências nas eleições para a
presidência do clube em 1976. De todo modo, graças a seu prestígio na
Brasileira de Imprensa. Cf. LUNA, C. M de A. A Associação Brasileira de Imprensa e a
ditadura militar (1964-1977). Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em História Social /
UFRJ, 2007, p. 48 e 85.
144
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 13 de agosto de 1982.
145
No contexto paulista, a Associação das Torcidas do Estado de São Paulo (ATOESP) já existia
desde o final da década de 1970. Ela era presidida por Flávio de la Selva, líder dos Gaviões da
Fiel. Como sucedia no Rio de Janeiro, elas se reuniam e deliberavam por greves. Cf. REVISTA
PLACAR. “Calendário ou greve”. São Paulo: Editora Abril, 1979, p. 48, n. 495.
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imprensa esportiva, a imagem de Dulce parecia mais adequada à de uma
torcedora-símbolo do que à de uma líder de grupo.
O falecimento de Jaime de Carvalho em maio de 1976 fez com que a
Charanga passasse a ser comandada por sua esposa, dona Laura, que não
participava das discussões, enquanto a saída de Paulista da torcida tricolor e de
Juarez da torcida banguense tivesse ocasionado a ascensão respectiva de Sérgio
Aiub e de Wilson Amorim na liderança de cada agremiação, ambos presentes
naquele encontro de 1982 promovido pelo Jornal dos Sports. Tarzan
continuava a comparecer aos jogos do Botafogo, mas em virtude de suas
viagens periódicas a Belo Horizonte, que se intensificaram entre 1974 e 1977,
perdeu a posição. Mesmo tentando reavê-la, o que gerou um pequeno litígio,
Tarzan acabou substituído na chefia da torcida por João Faria da Silva, o
popular Russão, ex-freqüentador da Geral, que ingressara na Torcida
Organizada do Botafogo a convite de Tolito e que a recriara em 1981 sob o
nome de Torcida Folgada.
Os novos chefes, dentre os dez presentes àquele encontro, eram
perfilados pelo Jornal dos Sports, que apresentava uma preocupação em situá-
los para o leitor a partir de seu trabalho, de sua atividade profissional extra-
esportiva e de suas formas de custeio da torcida. A descrição das ocupações
feita pelos repórteres tornava difícil o enquadramento preciso em um perfil
etário ou sócio-econômico determinado, dada a grande disparidade entre as
categorias profissionais listadas. Os tricolores faziam-se presentes com Helena
Lacerda, da Fiel Tricolor, mulher de um desembargador, mãe de três filhos,
sendo dois deles advogados; com Armando Giesta, presidente da Young-Flu e
idealizador da Astorj, pequeno industrial que se dizia vendedor nas horas
vagas, a fim de saldar os gastos contraídos na torcida; e com Sérgio Aiub, da
Organizada Jovem-Flu, autônomo, modelador e feirante, que ressaltava o fato
de ter sido rejeitado como sócio do Fluminense por suas competências
profissionais subalternas. Os torcedores banguenses eram compostos por
Antero, da Bancica, encarregado de compras de uma firma conceituada, que
pertencia ao sr. Olavo Monteiro de Carvalho, do Vasco; e por Amorim, do
Círculo de Amigos do Bangu, diretor e representante do clube nas federações
esportivas.
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137
Já os vascaínos figuravam com Eli Mendes, da Força Jovem, formado em
línguas neolatinas, professor que abandonou a carreira para poder acompanhar
o Vasco e que vivia do rendimento de suas propriedades; com Antônio Vicente,
também da Força Jovem, funcionário administrativo da Caixa Econômica
Federal, que chegou a cursar Educação Física, sem ter concluído a graduação; e
com a já mencionada Dulce Rosalina, filha de banqueiro do jogo do bicho,
proprietária e trabalhadora de uma firma comercial. O único representante dos
rubro-negros chamava-se José Francisco de Moura, mais conhecido como
Banha, presidente da Torcida Jovem do Flamengo, estudante universitário e
servidor público federal A apresentação era concluída com Nilo Sérgio, vice-
presidente da Torcida Organizada do América, que trabalhava com um diretor
do clube no cartório de Márcio Braga.
O entrosamento e o projeto comum das lideranças presentes não
impediam o debate e a preocupação com relação à imagem e ao poder recém-
conquistado pelos chefes de torcida. A profusão de torcidas organizadas era
decorrente, segundo a avaliação daquele segmento de torcedores, dos
benefícios vislumbrados em tal atividade. Havia indivíduos que se valiam da
ocupação ao entrever alguma forma de beneficiamento, seja do clube seja da
própria torcida, com sua atuação. A venda informal de produtos – camisas,
adesivos plásticos, chaveiros – proporcionava uma receita modesta, porém sua
administração e seus dividendos geravam polêmicas. Se por um lado a gestão
de tal rendimento era importante para o sustento do grupo na reposição das
peças de bateria, das bandeiras e de outros instrumentos, por outro ela dava
margem à aquisição de lucro por parte do chefe, o que criava suspeita de
vantagens e de destinos escusos. A clivagem moral entre os “torcedores
autênticos” e os “torcedores ambiciosos” aparece explícita no discurso das
lideranças, passando a ser uma questão importante na aferição da legitimidade e
da credibilidade dos chefes no interior dos grupos, com a delimitação entre
aqueles que se moviam pela ganância e aqueles que faziam jus à pureza dos
ideais clubísticos.
O segundo momento se daria em 1987. Transcorridos cinco anos daquele
debate, o mesmo Jornal dos Sports lançaria o “I Encontro JS das Torcidas”
146
,
146
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 29 de março de 1987.
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138
um fórum de discussão em que mais uma vez os chefes de torcida voltariam a
se posicionar e a expor suas opiniões para a solução dos problemas
considerados mais graves do futebol profissional carioca. O evento contaria
com seis lideranças torcedoras, das quais quatro tinham comparecido naquele
ano de 1982: Seu Armando, Banha, Amorim e Antero. Os dois novos
representantes eram Roseão, do Fluminense, que pertencia à Fiel Tricolor, e
Célio, do América, que falava em nome da Garra Rubra. O jornal anunciava
que três outros torcedores não haviam podido comparecer: Eli Mendes, da
Força Jovem do Vasco; Russão, da Torcida Folgada do Botafogo; e Amâncio
César, da Torcida Organizada do Vasco, este um professor de matemática da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Os tópicos desta feita eram distintos
do encontro anterior, já não versavam sobre a tentativa de coesão dos grupos
com a constituição de uma associação que defendesse os interesses dos
torcedores ou sobre a ocupação empregatícia dos mesmos; tampouco tratavam
do combate aos autoproclamados chefes que visavam o favorecimento pessoal
às expensas do clube, da torcida e dos dirigentes.
Os temas debatidos agora abordavam a ausência de público nos estádios,
o preço dos ingressos e um item em especial: a violência. A rivalidade entre as
torcidas organizadas parecia ter se acirrado e os esforços de apaziguamento por
parte dos líderes, com a iniciativa de promoção de torneios de futebol entre as
rivais, sob o patrocínio do Jornal dos Sports não tinham surtido efeito e haviam
terminado em briga. Ante as cobranças, os debatedores assumiam a tendência
natural de defesa do seu ponto de vista, com a transferência da responsabilidade
e com a indicação dos fatores externos que agravavam a situação de
descontrole. O baixo nível técnico dos jogos, o tratamento violento dispensado
pela polícia, a ausência de vistoria na entrada dos estádios pelos órgãos
competentes e a precariedade das instalações físicas, com arquibancadas sem
condições mínimas de conforto, eram os empecilhos listados que levavam à
degradação generalizada e à animosidade entre os integrantes das torcidas. O
cultivo de relações amistosas e tolerantes entre os líderes não impedia o
encaminhamento da discussão para uma progressiva perda de controle destes
no interior dos agrupamentos, com conjecturas a respeito do grau de conivência
e de cumplicidade dos chefes frente à intensificação dos confrontos físicos.
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O terceiro momento em que os chefes de torcida mais representativos
seriam chamados a responder ao jornal sobre suas atitudes ocorreria em um
breve intervalo de tempo, um ano e meio depois. O quadro alarmante
anunciado na manchete seria a evidência de uma guinada na abordagem
relativa às torcidas no final de 1988. O posicionamento do Jornal dos Sports
não se mostraria favorável aos líderes de torcida como até então se verificara, o
que vem expresso na reportagem exclusiva e de amplo destaque intitulada: “A
torcida organizada no banco dos réus”
147
. A imagem da autoridade carismática,
da contenção da passionalidade e da autêntica devoção ao clube creditada até
então ao chefe de torcida parecia transfigurada segundo o retrato composto por
aqueles que outrora salientavam as suas qualidades e virtudes amadoras.
Instados a encontrar soluções para as brigas que campeavam dentro e fora dos
estádios, tidos como cúmplices ou responsáveis em parte por tal quadro de
deterioração, os chefes de torcida eram submetidos a uma espécie de
julgamento sumário, predefinidos como líderes fracos, débeis, mercenários,
incapazes de coibir os seus violentos associados e de impedir a influência de
minorias radicais paralelas que desestabilizavam os grupos.
A esse agravante somava-se o fato de o chefe de torcida ter desenvolvido
relações ambíguas e obscuras com o controvertido cartola, no estabelecimento
de uma aliança em que se visava o lucro e a ascensão social no mundo
esportivo. A utilização do clube como trampolim político era uma mostra de
que as relações sociais no ambiente dos esportes estavam dominadas por
indivíduos cuja ambição e ganância haviam superado a pureza e a autenticidade
das paixões. O desgaste da imagem das torcidas junto aos meios de
comunicação derivava de uma suposta corrosão moral das suas respectivas
lideranças, que deixavam de exercer um papel educativo positivo e de
ascendência sobre o grupo. Ao invés da orientação equilibrada de seus
torcedores, muitos dos novos líderes eram não apenas complacentes como
sobretudo responsáveis pelo estímulo à provocação aos adversários. Por um
lado, os chefes admitiam a perda de controle, atribuída ao crescimento
147
Cf. Id. Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1988. Embora não haja conexão direta, curioso notar
como o título coincide com a tradução para o português de uma obra inglesa publicada no início da
década de 1990 acerca dos hooligans. Cf. DUNNING, E.; WILLIAMS, J.; MURPHY, P. O
futebol no banco dos réus. Oeiras: Celta Editora, 1994.
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desmesurado dos agrupamentos; por outro, voltavam a apresentar as mesmas
razões anteriores para se eximir das acusações.
O termo torcedor profissional, de nítido teor pejorativo, aparece
explicitado pela primeira vez no jornal, como tipificação do líder de torcida que
sobrevivia às custas do contato privilegiado com dirigentes e com políticos do
meio. Os seis chefes convocados para a reunião no jornal que resultou naquela
matéria ainda eram quase os mesmos – Banha, Armando Giesta, Eli Mendes,
Amâncio, Russão –, à exceção de Roberto Pinho Luiz, o Branco, de 24 anos,
casado, funcionário administrativo do Banco Real, então presidente da
ASTORJ e líder da Raça Rubro-Negra, agremiação que já dizia contar à época
com treze mil associados em todo o país. O jornal voltava a indagar pelo
trabalho de cada um e dentre eles era identificado um “torcedor profissional”,
Russão, que vivia do futebol e da assessoria ao vereador Carlos Imperial, ligado
à política e ao mundo esportivo. A criação de mecanismos para a dedicação
exclusiva ou semiprofissional ao futebol provinha de três fontes principais, das
quais as duas últimas pareciam duvidosas: a obtenção de patrocínios junto a
empresas particulares; as subvenções dadas pelo clube, com o oferecimento de
ônibus e de passagens; e os ingressos gratuitos oferecidos pela federação e pelo
governo do Estado, através do órgão executivo gestor do Maracanã, a SUDERJ.
Se a relação tradicional entre os chefes de torcida e os representantes dos
clubes e dos órgãos públicos parecia ser antiga, seria a irrupção do fenômeno
da violência e a sua cobertura pelos meios de comunicação que tornariam a
questão um problema de ordem moral a ser resolvido no final dos anos 80. Tais
práticas de proteção passam então a ser condenadas de maneira mais veemente
por boa parte dos comentaristas esportivos. A dimensão apresentada
extrapolava o ambiente interno dos esportes e daqueles que cultivavam uma
tradição de proximidade, fossem as rádios de pequeno porte, fossem os
periódicos especializados na temática esportiva, fossem mesmo os canais de
televisão em escala local que continuariam durante tempo considerável com
reportagens, com a cobertura de eventos e com os programas exclusivos
dedicados a esses personagens. Quanto a este ponto, ressalte-se que entre 1979
e 1981 a Rede Bandeirantes de Televisão levou ao ar o dominical Conversa de
Arquibancada, programa de baixo custo copiado e reeditado entre 1987 e 1989
pela TV Record sob o nome de Papo de Arquibancada. A estrutura do
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141
programa compreendia um palco em formato de arquibancada onde se
sentavam os principais chefes de torcidas organizadas, e um auditório onde
ficavam os integrantes das respectivas facções
148
.
A preocupação transbordava os tradicionais limites e passava agora a ser
encampada pela grande imprensa não-especializada em futebol e, por extensão,
pela sociedade de uma maneira mais ampla. Naquele mesmo ano de 1988, por
exemplo, a Revista de Domingo, suplemento dominical do Jornal do Brasil,
dedicava atenção especial ao assunto, que vinha estampado em sua capa sob o
título “Torcidas organizadas: as gangs da paixão”. Já no editorial, o redator
Joaquim Ferreira dos Santos expressava a visão do fenômeno e do papel do
chefe de torcida que subvertia sua vocação no mundo esportivo em nome de
atitudes suspeitas. O cronista apresenta a típica tendência à contraposição entre
um passado edulcorado – puro e pacífico – e um presente violento, corrompido
pela degradação dos costumes:
“Vai longe o tempo em que a arquibancada do Maracanã era um
grande e alegre baile animado pela charanga rubro-negra do Jaime ou
o talo de mamão do vascaíno Ramalho. Torcida organizada agora,
como tudo o mais que nos cerca, também é foco de violência. Os gols
são cada vez mais raros no gramado, e os torcedores aproveitam o
tanto tempo morto para se agredirem. Jogam morteiros nos jogadores,
fazem estripulias mais associadas às páginas policiais do que à crônica
do antes fidalgo esporte bretão. Eles dizem que embelezam o
espetáculo com suas bandeiras coloridas e gritos, que acompanham o
time nos estádios mais afastados e que se batem contra o aumento de
ingressos. As famílias, no entanto, querem distância desses ‘anjos’ – e
cada vez se afastam mais dos estádios. Jornalistas e diretores de clubes
acusam os chefes de torcida de profissionalismo e de se utilizarem do
cargo para a promoção pessoal. Foi esse roteiro tenso, de
arquibancadas onde a paixão precisa cada vez mais de cordões
policiais para civilizá-las, que os repórteres Mauro Ventura, Sidney
Garambone e Marcelo Gomes encontraram nos estádios cariocas e
trouxeram para a capa desta edição. Hoje tem Fla-Flu. Cuidado.”
149
.
Não demoraria para que no mesmo ano, ao final do mês de dezembro,
um colunista do periódico concorrente na cidade, O Globo, dedicasse
considerável espaço à reflexão sobre o assunto. Cláudio de Mello e Souza
148
O antropólogo argentino Daniel Salerno empreendeu um estudo acerca dos programas
televisivos consagrados em exclusividade aos hinchas. Cf. SALERNO, D. “Apología, estigma y
represión: los hinchas televisados del fútbol”. In: ALABARCES, P. (Org.). op. cit..
149
Cf. JORNAL DO BRASIL. Torcidas Organizadas: as gangues da paixão. Rio de Janeiro, 22
de maio de 1988, Suplemento Especial - Revista de Domingo, p. 11.
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142
observava com ira e ironia o total afastamento das associações de torcedores
dos valores esportivos, mormente os democráticos, encabeçados e insuflados
pelos mentores daqueles movimentos, como pode ser percebido na crônica “A
ditadura da torcida organizada”:
“O técnico Zanata aborreceu-se com a impaciência da torcida. Zanata
não parece que já foi jogador, não parece que conhece a torcida, nem
parece que sabe o que é ser técnico no Brasil. Se o Zanata ainda não
sabe e custa a crer que ele ainda não saiba , o Brasil é um país
formado com cerca de 145 milhões de torcedores e, portanto, de igual
número de técnicos. Descontemos desse numeroso total os velhos, os
inválidos, as crianças e os doentes sobretudo os doentes. Ficaremos
com 80 milhões de pessoas que supõem conhecer todos os segredos do
futebol, todos os requintes da técnica e todas as artimanhas da tática.
Haja oferta para tanto mercado! Quando me dizem, como se fosse
novidade, que um dos maiores males do futebol brasileiro são as
torcidas organizadas e que, mais nefastas que elas, são os chefes de
torcida, só me restam duas hipóteses: calar e consentir. Torcer é
impulso apaixonado, solitário e delirante. Em tudo isso reside a sua
verdade. Pode ser que, no máximo, esses sentimentos sejam somados
a sentimentos iguais e de igual intensidade, formando ‘aquela corrente
pra frente’ de saudosa memória. Se bem me lembro, essa corrente não
correspondeu a nenhuma ordem unida espiritual. Foi passando de um
para outro, pois que palavras de ordem não servem para sentimentos
em desordem. Organizar a paixão popular é mais ou menos querer pôr
em ordem o caos. Não dá. A não ser que os interessados nessa ação
absurda queiram dela tirar proveito subalterno. Pois é exatamente o
que um organizador de torcida me parece estar querendo tirar:
proveito pessoal, financeiro ou político. Ser chefe de torcida
organizada me faz lembrar a triste biografia de uma triste figura, a do
gordo e frascário Ernest Höehm, que municiou as violentas e patuscas
patrulhas do Partido Nazista, antes da SS. Eram as SA, brutalmente
exterminadas por ordem do próprio Hitler, na sangrenta noite das
“longas facas”. Se há uma ordem de violência, há uma infeliz
expressão individual dessa violência. Talvez seja por isso que, todas
as vezes que chego ao Maracanã, e percorro o melancólico caminho
que me leva do constrangedor portão 18 às incômodas tribunas de
imprensa (e me espanta o grande número de crianças jornalistas que
há, hoje em dia, no Rio) sou alvejado por copos de cerveja e outros
líquidos menos nobres. Hoje em dia, a violência não mais objetivo,
qualquer objetivo serve. Haveria algum, ainda que deplorável, se isso
fosse dirigido à torcida (digamos) adversária. Insisto, para que não
fique nenhuma dúvida: deplorável. No dia em que os dirigentes de
clube, sem exceção, tivessem a coragem moral de combater as torcidas
organizadas e as pessoas que as dirigem, os jogos de futebol
melhorariam muito. Se técnico já não entende, torcedor entende
menos ainda. Sei que o futebol não está submetido, democraticamente,
ao voto popular. Se assim fosse, Nabi Abi Chedid não teria a soberba
pretensão de aspirar à presidência da CBF. Mas voto é obra de
reflexão. Nada tem a ver com arrebatamento passional, com torcida.
As torcidas organizadas estão desorganizando o futebol brasileiro ou
contribuindo para desorganizá-lo. Não formam grupos democráticos,
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143
mas facções autocráticas. Se elas não têm mais o que fazer, que
consultem os dicionários para aprender o que autocrático quer
dizer.”
150
.
A contundência e o teor das críticas levantadas por parte de Cláudio de
Mello e Souza, tendo como alvos principais os chefes de torcida e os dirigentes
esportivos, suscitariam contestações de leitores por meio de correspondências.
Decorridos alguns dias da publicação, outra coluna era dedicada ao tópico, com
respostas e uma mea culpa, onde reconsiderava a generalização por ele feita
acerca das torcidas organizadas. O termo profissional vem novamente à baila:
“Torcedores, organizados ou profissionais”. A transcrição de uma carta
recebida fazia com que um torcedor organizado distinguisse entre as torcidas
verdadeiras e autênticas, de um lado, voltadas apenas ao incentivo, e as falsas e
inescrupulosas, de outro, empenhadas em vaiar o time com fins escusos:
“Há uma semana, mais ou menos, escrevi aqui sobre os malefícios que
as torcidas organizadas trazem ao espetáculo futebolístico, seja através
da violência física, seja através da violência verbal. Esse escrito me
valeu alguns telefonemas desaforados, duas ou três ameaças de
bordoadas e uma correspondência insultuosa. Não me intimidei nem
me surpreendi. Confesso mesmo que esperava chumbo mais grosso.
Não costumo reproduzir cartas de leitor, no todo ou em partes. É
expediente subalterno, recurso de quem não tem assunto. Não faz
minha cabeça. Até porque a grande maioria das cartas é um feio
monumento à ignorância e à brutalidade. É duro dizê-lo, mas é
verdade. Cartas há, porém, que me encantam pela profundidade com
que foram pensadas e pela direitura com que foram escritas. Por achar
que ela deve ser compartilhada pelo meu amável leitor, reproduzo-a na
íntegra: ‘Cláudio, tirante a sua paixão, cada vez menos correspondida,
pelo Botafogo, rarissimamente estamos em desacordo. Pelo menos em
gênero e número. Mas ontem fiquei triste e absolutamente
desacordado. Que mal pode haver em organizar-se a emoção ? E em
usar a emoção bem organizada para ajudar nosso time a vencer ? Você
mesmo é testemunha de que a torcida rubro-negra já venceu jogos
dificílimos, que o time perdia em campo. Você mesmo já sentiu o que
é a pressão da galera empurrando os jogadores, praticamente
forçando-os a ter vergonha e a corresponder, com garra, à emoção da
torcida. Seu engano é confundir torcida organizada com torcida
profissionalizada. Torcida organizada é, por exemplo, a Raça Rubro-
Negra, cujo grande orgulho é jamais vaiar o time, mesmo nos piores
momentos, ou um jogador, inclusive nas horas mais infelizes. Torcida
profissionalizada é aquela que recebe dinheiro para vestir a camisa que
deveria amar. É aquela que vende bandeira, que se vende. A diferença
entre umas e outras é enorme, dá na vista, mas como você freqüenta as
cadeiras e não as arquibancadas, talvez não perceba, a distância. A
150
Cf. O GLOBO. Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1988, p. 25.
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144
torcida organizada ama e organiza suas emoções, mas não impede a
emoção individual. Cada um torce como quer, como pode ou como
sabe, mas não torce contra. E, juntos, os torcedores organizados fazem
ouvir o coro que, muitas vezes, tem sido fundamental para a vitória
que nem mesmo os melhores cronistas podem prever. A torcida
profissionalizada torce segundo seus interesses nem sempre
confessáveis; torce contra. Veja-se, por exemplo, o caso do Vasco,
com uma torcida chamando Zanata de burro, para criar uma situação
que beneficie a oposição. A torcida organizada é a paixão a serviço da
camisa. A torcida profissionalizada é um Russão, que ajuda a
empurrar o seu Botafogo para baixo, a gritos irados, ameaças e
agressões. Desculpe mas, desta vez, você pisou na bola. Um grande
abraço do torcedor organizado, Luiz Lobo.”
151
.
Sabe-se que o tipo ambicioso, tema do debate da reportagem do Jornal
dos Sports em 1982, preocupação levantada pelos próprios chefes, era uma
caricatura comumente associada pela tradição jornalística à figura do dirigente
esportivo, em específico, à do tradicional cartola. O desenvolvimento de
relações entre ambos, todavia, parecia ter transferido essa realidade também
para a imagem do chefe de torcida, desde que uma legião deles começou a
aparecer no cenário esportivo e a vislumbrar alguma forma de beneficiamento.
Os subterfúgios, as peripécias e a ambivalência das formas de relacionamento
criadas no mundo do futebol davam origem assim, na implícita visão de mundo
liberal do jornalismo esportivo aqui examinado, quer ao desvirtuamento da real
aptidão do torcedor, o seu pendor amadorístico, quer ao impedimento efetivo
de relações profissionalizadas, em que as torcidas pudessem ser administradas
de maneira própria, com a criação de uma receita e com a gestão autônoma de
seus lucros e de suas despesas.
Os paradoxos do futebol profissional na década de 1980 colocariam em
xeque um modelo arquetípico de torcedor, idealizado, concebido e encarnado
na figura do humilde e pudico chefe de torcida dos anos anteriores. Em seu
lugar, duas tipificações seriam apresentadas, com o contraste entre uma
liderança consciente do exercício de um papel representativo na esfera de poder
esportivo e uma liderança vinculada aos interesses tradicionais e aos pruridos
de favorecimento pessoal. Divididos entre autênticos e ambiciosos, os chefes
de torcida personificariam um conjunto de imagens que remetiam a um antigo
conjunto de pressupostos sobre as mazelas, os entraves e a debilidade para a
151
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1988, p. 25.
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145
constituição de relações capitalistas no Brasil e de relações profissionais no
futebol. O discurso dos repórteres apresentava em linguagem corrente uma
versão explicativa simplificada e vulgarizada das diversas interpretações sobre
as origens da “ideologia do atraso brasileiro” frente aos modelos de
modernização e de civilização fornecidos pela Europa, conforme demonstrou o
sociólogo Jessé Souza
152
, sendo o círculo vicioso estabelecido entre chefes de
torcida e cartolas apenas mais um dos exemplos que podemos aditar como
sintoma do declínio então vivenciado no futebol e na sociedade.
Assim, longe de ser uma mudança repentina de fundo psicológico,
desprovida de fundamento histórico ou restrita à lógica interna das fronteiras do
futebol, a ênfase nos avatares da personalidade e do comportamento desse
torcedor pode ser articulada à introdução de uma série de elementos ligados à
vivência e à dinâmica social da cultura. A proposição de uma aproximação
entre as questões debatidas no universo futebolístico – em específico, os
valores associados à mudança perceptiva do personagem em pauta – e o debate
acadêmico promovido por uma tradição intelectual que se dedica à
“interpretação do Brasil” permite o aprofundamento de uma reflexão sobre os
impasses constitutivos da formação da sociedade brasileira e sobre os
significados assumidos pelo futebol em seu interior. As peculiaridades do
processo de modernização do país em suas diversas etapas ocuparam a atenção
de uma proeminente linhagem de pensadores desde as primeiras décadas do
século XX e suas análises se estenderam no sentido de estabelecer as conexões
entre os diversos grupos pertencentes ao tecido orgânico social e as dimensões
simbólicas totalizadoras da nação.
Como se sabe, as décadas de 1920 e 1930 foram marcadas por uma
preocupação crescente da intelectualidade brasileira com a definição da
identidade nacional. Para boa parte desses autores, o Estado, entidade
supraindividual dotada porém de uma “psicologia coletiva”
153
, se erigia tendo
como fulcro o homem comum brasileiro, o que permitia a compreensão de sua
152
Cf. SOUZA, J. A modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 2000.
153
Cf. QUEIROZ, M. I. P. de. “Identidade cultural, identidade nacional no Brasil”. In: Tempo
Social: Revista de Sociologia da USP. São Paulo: s.e., 1989, n. 1, p. 41.
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146
especificidade no “concerto das nações”
154
. A idéia de uma psicologia coletiva
dos povos vinha sendo postulada em ternos científicos por intelectuais
europeus, em sucessão às correntes filosófico-literárias de cunho romântico-
nacional, as primeiras postulantes de tais imagens, com Herder e Goethe à
frente em solo germânico. Durante a segunda metade do século XIX, o
pressuposto foi incorporado em termos científicos, passando pelo consenso e
pelo reconhecimento de que todas as nações eram detentoras de personalidades
com virtudes e defeitos peculiares a cada uma delas. O termo na Europa foi
cunhado em 1859 como “Völkerpsychologie”, na tradição alemã; “Folk
Psycology”, na tradição britânica; e “Psycologie des Peuples”, na tradição
francesa.
Tal modo de entendimento pontificou na obra dos mais diversos autores,
de Sílvio Romero a Manoel Bonfim, de Alberto Torres a Oliveira Viana, de
Euclides da Cunha a Paulo Prado, de Monteiro Lobato a Álvaro Vieira Pinto,
adquirindo relevo nos anos 30 com dois sociólogos, Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda, e seus respectivos livros Casa-Grande & senzala (1933) e
Raízes do Brasil (1936). Com um viés ensaístico e interpretativo, os autores
estimavam que o destino nacional dependia, em última instância, de um
posicionamento frente aos valores antigos mais arraigados, herdados da
tradição colonial ibérica e do legado patriarcal, escravocrata e monocultor, que
se situavam sobretudo no plano dos costumes, das paixões e dos afetos.
Em que pesem as divergências de encaminhamento e de trajetória
155
,
onde um acentuava a importância da ruptura com esses elementos passionais do
passado enquanto o outro postulava a sua continuidade, por meio de uma fusão
com o lado mais racional do processo modernizador, ambos concordavam que
os estudos culturais, centrados em hábitos e costumes reveladores da vida
íntima, privada e familiar, até então menosprezados por abordagens que
destacavam a primazia de aspectos mais formais da política e da economia, era
154
A fórmula é de Mário de Andrade em sua famosa conferência de 1942, onde faz um duro
balanço dos vinte anos da Semana de Arte Moderna e do movimento modernista visto em
retrospectiva.
155
O progressivo distanciamento de posições e de vinculação acadêmico-institucional entre
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque a partir dos anos 40 foi demonstrado com argúcia pelo
pesquisador Robert Wegner. Cf. WEGNER, R. “Da genialidade à poeira dos arquivos: Sérgio
Buarque de Holanda nos anos 1940”. In: SENTO-SÉ, J. T.; PAIVA, V. (Orgs.). Pensamento
social brasileiro. São Paulo: Cortez, 2005. Cf. também WEGNER, R. A conquista do oeste: a
fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
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147
uma via analítica fértil para o entendimento de certas persistências verificáveis
no comportamento e na mentalidade de diversos setores, classes e grupos
sociais no país. Embora de maneira não deliberada nem intencional, essas
interpretações originais seguiam ainda a tendência mais geral da historiografia
em âmbito internacional, seja com a obra solitária de Norbert Elias, seja com a
obra em bloco da Escola francesa dos Annales, que aliava o conhecimento
histórico, antropológico e sociológico para erigir categorias durkheimianas de
análise como formas mentais e representações coletivas.
A elaboração de sínteses decifradoras da realidade nacional se daria no
momento em que a nação aspirava à edificação de uma civilização em moldes
urbano-industriais, onde uns frisavam a necessidade de superação das amarras
que nos atavam ao passado e outros descobriam o valor da originalidade de
nossa formação étnica. Os desdobramentos deste debate se prolongariam no
correr dos anos com a sucessão de uma miríade de projetos para o país, não
sem o reconhecimento das dificuldades relativas à sua implantação e à
conjugação de componentes que pareciam tão díspares entre si. No plano
econômico, por exemplo, durante a década de 1950 intelectuais nacionalistas
aspiraram à edificação de vigas mestras institucionais capazes de equiparar o
Brasil ao patamar das grandes potências européias desenvolvidas. Em
contrapartida, os anos 60 e 70 assistiriam à emergência de estudiosos menos
otimistas, embasados em uma certa leitura marxista, que apontariam as ilusões
da autonomia almejada pelo desenvolvimentismo dos ideólogos pertencentes ao
ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros). A ligação estrutural entre
centro e periferia na geopolítica do capitalismo seria condição sine qua non
para a interdependência do Primeiro e do Terceiro Mundo.
No plano político, ainda no contexto de meados do século XX, textos
clássicos voltados à compreensão da realidade nacional deslocaram o eixo de
análise do desenvolvimento econômico e centraram atenção nos entraves para a
constituição da democracia no Brasil, com o diagnóstico da interferência
sistemática de grupos privados na regulação do poder. Embora se ativesse ao
mundo rural do Nordeste brasileiro, Victor Nunes Leal observava em
Coronelismo, enxada e voto (1949)
156
a extensão ao ambiente urbano de
156
Cf. LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 20.
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148
práticas derivadas de um sistema que superpunha o regime representativo
democrático a uma estrutura econômico-social inadequada. O estabelecimento
de uma rede de compromissos e lealdades entre chefes políticos locais,
detentores de um poder pessoal, e as demais instâncias decisórias da nação
gerava uma série de alianças que dava origem a relações clientelistas,
mandonistas e patrimonialistas. O patrimonalismo se agregava a outros
componentes incrustados na estrutura política – o compadrio, o corporativismo,
o populismo, o nepotismo, o clientelismo –, tornando-se vetor histórico da
centralização e da burocratização do Estado brasileiro. O atrelamento aos
costumes mais enraizados no quadro colonial e imperial português determinou
a criação de um estamento estatal no qual tradicionalmente os recursos públicos
eram submetidos à apropriação privada, tal como estudou Raimundo Faoro em
Os donos do poder (1958)
157
, uma releitura inovadora da história do Brasil à
luz de conceitos propostos por Max Weber.
Na década de 1970, o antropólogo Roberto DaMatta daria
prosseguimento à perspectiva weberiana refratária à discussão em estritos
termos estatísticos ou formais e voltaria a adotar o viés interpretativo-cultural
preconizado por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, agora informado por uma
produção científica antropológica que forneceria subsídios para o entendimento
do “dilema brasileiro” em condições menos impressionistas. Amparado em
dramatizações de ritos nacionais que seguiam o calendário civil, religioso e
militar, o autor poria em cena as contradições, as modulações e os matizes que
impediam a nítida delimitação entre os domínios do público e do privado, do
moderno e do tradicional no Brasil. A relação do homem brasileiro com o
cotidiano do trabalho e com a esfera do poder passava por um jogo facilmente
intercambiável entre igualdade e hierarquia, com a adaptação das regras, das
normas legais e dos papéis preestabelecidos ao sabor das conveniências
pessoais.
A ausência de separação entre o bem comum e o bem particular impedia
o desenvolvimento de uma sociedade calcada em modelos universais e
157
Cf. FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. São Paulo: Editora
Globo, 1991, 2 vols. Para uma exposição sumária do patrimonialismo como nó górdio que embasa
as interpretações sobre a formação social brasileira no século XX, sugere-se o livro do sociólogo
Bernardo Sorj. Cf. SORJ. B. A nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000.
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isonômicos de conduta, criando obstáculos para a sedimentação de uma
clássica racionalidade liberal, à moda anglo-saxã, uma vez que soluções
intermediárias eram acionadas a todo instante com a lógica do favor e com o
beneficiamento obtido graças às relações interpessoais. Estas eram
personificadas na figura do malandro – seja o hedonista que não se submete à
metódica ascese do trabalho, seja o homem público que se vale do cargo para
burlar a lei e para usurpar o Estado – e se traduziam em expressões coloquiais
correntes no dia a dia, com as acomodações do “jeitinho e com as
interpelações verticais do “você sabe com que está falando?”.
Assim, conforme sumarizava em texto de balanço a socióloga Lucia
Lippi Oliveira, as teses que perpassavam as idéias sobre a formação da nação
brasileira nas mais diversas tendências do pensamento social podiam ser
esquematizadas em seis binômios principais: ordem versus progresso; natureza
versus cultura; povo versus elite; cópia versus autenticidade; ressentimento
versus ufanismo; e americanismo versus iberismo
158
.
A história social do futebol brasileiro não ficaria imune a essa gama de
questões problematizadas em âmbito intelectual e vivenciadas em nível
nacional. A incidência de valores culturais, políticos e sociais ligados a uma
visão ora tradicional ora moderna, ora igualitária ora hierárquica, ora elitista
ora popular, ora democrática ora ditatorial da sociedade brasileira foi colocada
e recolocada em várias oportunidades. A sua singularidade no esporte se deu
mediante o emprego de uma linguagem particular e mediante uma leitura
específica da realidade. O “dilema” esportivo nacional foi expresso ao longo do
século XX por meio de uma antinomia que se tornou canônica na fala corrente
dos jornalistas: amadorismo/profissionalismo. Neste domínio, seu principal
mentor intelectual foi Mário Filho, um assumido entusiasta das teses freyreanas
de compreensão da realidade brasileira e de sua aplicação no mundo do futebol,
o que é comprovado não apenas pelo conteúdo das idéias defendidas em O
negro no futebol brasileiro, mas também pelos laços pessoais de amizade
estabelecidos com Gilberto Freyre, que resultaram no prefácio assinado pelo
então consagrado sociólogo à primeira edição do livro, em 1947. Mário Filho
apresentava nessa obra um repertório de crônicas romanceadas em que
158
Cf. OLIVEIRA, L. L. “Teses (equivocadas ?) sobre a questão nacional no Brasil”. In: SENTO-
SÉ, J. T.; PAIVA, V. (Orgs.). op. cit.
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procurava reconstituir de maneira pormenorizada a ambiência da vida
futebolística no Rio de Janeiro, através da narração de suas memórias pessoais
e de histórias de vida relatadas por seus próprios agentes, sobretudo os mais
antigos jogadores da fase amadora.
Segundo essa concepção, o profissionalismo brasileiro do decênio de
1930 foi consubstanciado com a entrada dos negros no futebol e correspondeu
ao divisor de águas mais importante da história esportiva. No limite, ele
possibilitou não só a emancipação do jogador de origem proletária como a
democratização do jogo e a impressão de um caráter autêntico perante as
formas de atuação padronizadas que vinham impingidas do modelo original
britânico. Ainda que de maneira sinuosa, sujeita a avanços e retrocessos, a idas
e vindas, com a evocação do argumento racista como fator explicativo para as
derrotas da Seleção Brasileira nas Copas de 1950 e 1954, a profissionalização
desse esporte permitiu ao negro um duplo triunfo: o rompimento com o
preconceito e com a segregação atávica que persistia desde o fim da escravidão
no Brasil e a conquista de um eminente espaço simbólico no imaginário da
sociedade brasileira, revestindo seus atletas de uma idolatria e de uma aura
heróica em eventos internacionais como as Copas do Mundo de 1938 e 1958,
quando Leônidas da Silva e Pelé foram, respectivamente, enaltecidos. Isto só
foi possível graças à criatividade e à invenção sui generis de um estilo nacional
que modificava os conspícuos princípios do esporte europeu mediante a
revalorização da esfera lúdica, amadora, do jogo. A versão nativa do homo
ludens equiparava o futebol à dança, à arte, à brincadeira, à malandragem e à
plasticidade corporal, sorvida das mais remotas tradições populares, mesmo
aquelas de origem agrária e rural. Agente de incorporação e de socialização, o
sincrético futebol brasileiro facultou às classes subalternas uma ascensão e uma
visibilidade social até então vedada em outras áreas da vida coletiva.
A trajetória dos jogadores de origem negra não seria a única a ser
tematizada no contexto do futebol como espetáculo. Em menor grau e sob outro
ângulo, a emergência do chefe de torcida, caso aqui examinado, não deixaria de
passar pelo crivo da narrativa de Mário Filho e de um conjunto de letrados que
se estabeleceram ao seu redor como colaboradores. Esses cronistas
contribuíram de maneira decisiva para o reconhecimento do novo personagem,
de origens sociais modestas, que, à maneira do atleta proletário, também era
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151
tipificado como um lídimo egresso das classes populares. Sendo, em certo
sentido, um produto paradoxal do profissionalismo, o chefe de torcida era
situado como ícone de algumas virtudes amadoristicas no futebol – com sua
paixão de fundo religioso ligada à doação, à devoção e à ascese – e como
repositório moral de educação, de orientação e de contenção esportiva das
massas na ocupação de seu tempo livre. A massificação deste esporte nos anos
de 1930, 1940 e 1950 contemplou o projeto original de fazer do chefe de
torcida o porta-voz do bom comportamento entre os torcedores nas
arquibancadas. Nos livros de Mário Filho, Jaime de Carvalho seria o exemplo
mais destacado para a exaltação das qualidades do torcedor, quintessência da
entrega e da fidelidade daquele que fazia do futebol um prazer livre e
desinteressado.
A vinculação do chefe de torcida a esse ideário perdurou durante as
décadas de 1940, 1950 e 1960. Embora já estivesse insinuada como
possibilidade latente desde seu nascedouro, a crise de tal modelo só começou a
ser prenunciada pelo jornalismo esportivo no final dos anos de 1960, em uma
segunda fase de implantação do profissionalismo no Brasil, e adquiriu uma
maior ressonância na segunda metade da década de 1980. À narrativa da
formação e da ascensão do chefe de torcida, correspondeu um discurso que
salientava seu ocaso, sua queda, sua débâcle. A nova configuração levaria ao
progressivo afastamento do chefe de torcida do campo moral das virtudes e a
uma rápida transferência para o pólo oposto, o dos vícios. Estes viriam a
ressaltar com mais ênfase os tradicionais valores prescritos pela moral cristã – a
cobiça, a ambição e a ganância –, já identificados pelos jornalistas esportivos
em uma caricatura histórica feita do dirigente esportivo, o cartola, e sua sanha
pelo poder. Tal imagem viria a macular a humilde pureza amadora do chefe de
torcida que, de modo subseqüente, passaria a ocupar um lugar de indefinição no
imaginário do amadorismo e do profissionalismo no Brasil.
A mesma ambigüidade na relação jogador-dirigente que atravessou a
década de 1930, permeada por subvenções e gratificações não-oficiais dadas de
um a outro, passa a ser detectada na relação torcedor-dirigente, colocando-se
como um problema a ser conjurado a partir dos anos de 1960. Esta ambígua
posição de semi-amadorismo e de semiprofissionalismo do chefe de torcida vai
dar ensejo à elaboração de um núcleo duro de explicações e justificativas dos
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152
cronistas que, sob diferentes códigos lingüísticos e sob outros termos de
comunicação, se valem de argumentos e de diagnósticos críticos similares aos
identificados por boa parte da tradição intelectual acima destacada. Os
obstáculos observáveis nas relações cotidianas e no comportamento do dia a dia
do brasileiro estariam entranhados na cultura política em nível local e seriam
revelados também na mentalidade e na atitude de diversos atores do meio
esportivo.
A inversão de significados apontada pelos jornalistas, ou, dito de outro
modo, a reinscrição transgressiva de um vocábulo por um grupo social
159
, se
refletiria em alterações no nível semântico manifestadas ainda por
modificações em âmbito lexical, com julgamentos que se tornam
majoritariamente negativos. O próprio epíteto chefe de torcida, por exemplo,
deu margem pouco a pouco a uma associação com um imaginário ditatorial –
lembre-se de seu surgimento no contexto do Estado Novo –, mediante a
absorção de traços daquilo que Adorno e seus colegas norte-americanos
chamaram na década de 50 de a personalidade autoritária. A transferência
também foi feita em relação a um imaginário primitivo e selvagem o chefe
da tribo sendo rechaçada tanto pela crônica esportiva quanto pelos próprios
torcedores no início dos anos de 1980, e substituída pelo emprego de outros
termos preferenciais, como líder ou presidente. Em meio a uma nova
conjuntura democrática que atravessava o país, a tentativa de tornar sua
acepção mais condizente com as expectativas de atuação deste personagem no
futebol e com os novos parâmetros de representação na sociedade poderia ser
entendida, em linguagem weberiana, como transição da dominação de tipo
tradicional ou carismático para uma dominação de tipo racional-legal.
Fenômeno não apenas nacional como também internacional, o termo
equivalente “jefe” ou “capo” na Argentina também seria questionado pelos
periódicos daquele país no mesmo momento. A antropóloga Mariana Conde
demonstra como a imagem do torcedor argentino forjada nos anos de 1950,
associada à bondade inata do “povo”, própria da era peronista, vai perder a
coloração do ethos nacional durante a década de 1980, no período subseqüente
à ditadura militar do general Jorge Rafael Videla (1976-1983), com a redução
159
Cf. BURKE, P. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2002, p. 137.
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153
do torcedor a um escala cada vez mais local e a uma apreciação negativa cada
vez mais tribal, na qual a identificação com a nação sobressai menos que o
vínculo territorial com o bairro. Máfia, naquele ambiente, se refere aos grupos
de pressão constituídos nas sociedades democráticas, cujos exemplos históricos
mais notórios remetiam às organizações sicilianas do sul da Itália e ao
gangsterismo nos Estados Unidos, consagrado no imaginário internacional-
popular dos anos 70 com o filme de Francis Ford Coppola, O poderoso chefão.
As relações clandestinas desenvolvidas entre o líder de torcida e o
dirigente esportivo se amparavam nas confabulações secretas da política interna
do clube
160
. O significante “jefe” passa a designar uma prática violenta e
assume uma conotação mafiosa. Embora para Juan José Sebreli o conotativo
mafioso não fosse recente na Argentina, existisse desde pelo menos 1967,
quando já havia “escuadrones rufianescos, brigadas bandoleras e quintos
malandrinos”, e não fosse, portanto, uma conseqüência da liberdade e da
democracia do início dos anos 80, a antropóloga assim sublinha a ênfase dos
periodistas portenhos daquele decênio:
“Mafiosa, porque constantemente se subraya, en las crónicas, su
vinculación con sectores de la dirigencia de los clubes: ‘mi impressión
es que las barras bravas tienen que ver con líderes, y esos líderes
tienen que ver con los intereses de los dirigentes, desde el punto de
vista electoral y por el impulso que ellas tienen’. (Crônica, 9/4/85). Su
condición de mafia es subrayada además por el uso de los apelativos
‘jefe’, ‘cabecilla’ y ‘capo’ para designar al líder. Se habla también de
‘infiltrados’, destacando su vinculación com lo político. Y en este
sesgo político, el desempeño de los ‘barrabravas’ resulta atentador
contra la naciente democracia.”
161
.
No quadro brasileiro há um outro ponto ainda a tratar, sob um prisma
damattiano, que diz respeito à experiência singular da presença feminina no
comando de tais agremiações. O que pode parecer um exemplo insólito e
destoante do sentido inicial projetado para essa figura não se afigura tampouco
uma curiosa exceção à regra ou um pitoresco fato isolado. Já entre a primeira
geração de chefes ela se fazia presente com tia Elisa do Corinthians e com
160
Como apontado na Introdução, o sociólogo Georg Simmel desenvolveu algumas considerações
ensaísticas em torno das sociedades secretas. Cf. SIMMEL, G. Secrets et sociétés secrètes.
Paris: Circé, 1991.
161
Cf. CONDE, M. op. cit., p. 31. Cf. também SEBRELI, J. J. “Las barras bravas”. In: La era
del fútbol. Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1998, p. 50 e 51.
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154
Filhinha, torcedora-símbolo do São Paulo, no caso das torcidas uniformizadas
paulistanas, sendo seguida também entre as torcidas organizadas do Rio de
Janeiro, com Dulce Rosalina e dona Laura, mulher de Jaime de Carvalho, o
que, em um meio marcado pela predominância do gênero masculino e juvenil,
remetia a um outro feixe de significados concernentes àquele novo lugar social.
As torcidas de futebol, vistas com freqüência no jargão ordinário como
nações – a nação rubro-negra, a nação vascaína, a nação tricolor –, onde todos
se enxergavam como iguais perante sua coletividade clubística, ao passo que as
torcidas organizadas em especial recebiam a designação nativa de famílias
162
,
eram núcleos integrados por uma diversidade de faixas etárias e de vínculos
sócio-econômicos, onde todos se conheciam e se relacionavam mutuamente. Os
elos comunitários e familiares eram expressos através dos apelidos e da alcunha
de tias para muitas dessas lideranças do futebol, forma de tratamento
empregado também em larga medida no universo da cultura popular, como o
samba e as religiões afro-brasileiras, duas manifestações cujo exemplo
simbiótico no Rio de Janeiro foi a baiana tia Ciata. Emblema de respeito e de
boa conduta, a deferência por figuras femininas e por pessoas mais velhas
revelava também os laços de afetividade e o abrandamento da posição de
autoridade representada em princípio pelo chefe de torcida, além da capacidade
de reelaboração de significados na experiência de cada grupo.
Na galeria de torcedores do futebol carioca, cumpre listar: tia Aida e tia
Adélia (da TOV), as tias Helenas (Helena Ferreira, da Torcida Jovem do
Flamengo, e Helena Lacerda, da Fiel Tricolor), tia Lea (da Pequenos
Vascaínos), tia Ruth (do América), tia Georgina e Vovó (da Força Jovem do
Vasco), tia Cora (do Botafogo), tia Camélia (da Jovem Unifogo), além de
Toninha (da Flamante) e de Verinha (da Flamor), entre outras mulheres que
comandaram torcidas organizadas. Jaime de Carvalho também era chamado
comumente de tio Jaime pelos integrantes da Charanga. Na segunda metade da
década de 1970, quando espocaria um sem-número de pequenas agremiações
torcedoras, majoritariamente vinculadas à vida associativa dos bairros, seria
instituída ainda uma específica tradição intergrupal. Era a cerimônia dos
“batizados”, solicitada pelas novas torcidas organizadas, que pediam o aval aos
162
A expressão é fartamente empregada na seção de cartas do JS. Cf. JORNAL DOS SPORTS.
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1977, p. 5.
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155
chefes das associações mais antigas, sejam as tias, transformadas em
“madrinhas”, sejam os tios, convertidos em “padrinhos”, o que evidencia, para
além da existência de rituais de passagem, a constituição de uma rede simbólica
de parentesco em um mosaico de subgrupos, para seguir termo cunhado por
Luiz Henrique de Toledo, formado por torcidas veteranas e neófitas,
descendentes e ascendentes, tradicionais e aspirantes.
O entendimento das torcidas organizadas podia passar, portanto, por uma
aproximação com a vivência da communitas, tal como tratada pelo clássico da
sociologia Ferdinand Tönnies em fins do século XIX, em contraponto ao
caráter mais impessoal descrito na composição da societas
163
. Em vez de um
par antitético, os termos compunham um duo complementar. Em consonância
ainda com a interpretação dualística de Roberto DaMatta aqui já salientada,
formulada no final dos anos de 1970 como recepção criativa à obra de Louis
Dumont, as particularidades e os dilemas relacionais da cultura brasileira se
exprimiam em alguns rituais de nossa sociedade, dentre eles, as paradas
militares, as procissões religiosas e o carnaval. Este último promovia uma série
de inversões dos papéis sexuais, sociais e de gênero do cotidiano, em que
relações igualitárias modernas e relações hierárquicas tradicionais se
contrapunham, se imiscuíam ou se permutavam ao sabor das circunstâncias.
Assim como o carnaval, as torcidas de futebol permitiam ilustrar, com base na
apropriação damattiana da distinção entre indivíduo e pessoa, desenvolvida por
Marcel Mauss, uma das ambíguas representações do público e do privado no
Brasil, com a presença dos apelidos e das tias em seu mundo ritualístico:
“... a troca de nomes sempre corresponde à mudança da apelação
inexpressiva (porque não tem história ou marca) pelo nome forte e
expressivo. De modo que a troca de nomes expressa a passagem do
anonimato à notoriedade e, freqüentemente, da condição de indivíduo
à condição de pessoa.
164
.
Em continuidade à linha interpretativa desenvolvida por Roberto
DaMatta, o antropólogo Luis Felipe Baeta Neves abordou o tema das torcidas
organizadas ao examinar, em um ensaio publicado no início dos anos 80, as
163
Cf. TÖNNIES, F. Community and society. New York: Dover Publications, 2002.
164
Cf. DaMATTA, R. Carnaval, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 320.
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mensagens ideológicas emitidas pelo futebol. Com seus enunciados, o futebol
fornecia pistas para a compreensão de inúmeras representações acerca da
sociedade brasileira, que se dividiam, grosso modo, em dois pólos não
unívocos: o primeiro ressaltava o predomínio de uma ideologia da
permanência no Brasil, com argumentos favoráveis à manutenção e à
reprodução da estrutura social; o segundo postulava a vigência de uma
ideologia da transformação, com elementos críticos à rigidez das mesmas
estruturas. Para o antropólogo, a torcida, em sua acepção mais lata, tenderia a
uma posição ambivalente: por um lado ela se aproxima do pólo da ruptura, com
a propensão para negar a maioria das regras, dos valores e dos símbolos
associados ao poder; por outro, ela se vincula ao pólo da continuidade, com a
sua identificação às emissões ideológicas relacionadas ao discurso do
nacionalismo, do populismo e do paternalismo.
A assimilação de mensagens perpetuadoras de um imaginário tradicional
da sociedade brasileira é exemplificada da seguinte maneira:
“Populista-paternalista, ainda, é a imagem que se cristaliza quando as
torcidas organizadas são patrocinadas pelos clubes: pagamentos a
chefes-de-torcida, fornecimento de bandeiras de instrumentos
musicais para a ‘charanga’ e de fogos, além da organização de
excursões que acompanham as equipes, são feitos abertamente pela
diretoria dos clubes ou por associados vivos e ativos na política
interna das agremiações esportivas”
165
.
Assim, em retrospectiva, foi possível perceber ao longo deste capítulo
como se deu a formação do espectador moderno no século XX e em que
medida o torcedor de futebol teve sua imagem construída no debate intelectual
com base em uma série de paralelos com o teatro, manifestação cultural da
Antigüidade capaz de suscitar polêmicas através dos tempos quanto a seus
efeitos dinâmicos e estáticos, ativos e passivos, alienantes e conscientizadores,
purgativos e regeneradores da mente e do corpo do público espectador.
Apresentada a discussão dual em torno de aspectos racionais e passionais do
torcedor, o capítulo se concentrou nos debates específicos do campo esportivo
letrado-jornalístico voltados para a construção de um personagem
representativo das arquibancadas, capaz de encarnar um conjunto de valores
165
Cf. NEVES, L. F. B. op. cit., p. 51.
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157
associados ao carisma, ao autocontrole e à devoção na manifestação de sua
paixão clubística, elemento necessário para dar um sentido pedagógico e uma
marca diferencial em meio ao anonimato constituído pelo público de massas. A
sobriedade, o altruísmo e a excentricidade – traços a um só tempo atribuídos ao
chefe de torcida – cedo passariam a coexistir com a contrapartida negativa das
paixões: o desregramento, a exaltação, a dependência.
A quebra de uma imagem unívoca para o chefe de torcida, presente no
jornalismo esportivo aqui examinado, se coloca em termos conjunturais de
decadência, de perda de controle e de corrosão do caráter à medida que se
estabelecem relações no ambiente esportivo e que o profissionalismo avança
em sua vertente pecuniária, mercantil e capitalista. A idealizada pureza e
integridade do torcedor é corrompida por um ambiente afetado por interesses e
subterfúgios pessoais e por estratégias de ascensão social, tudo construído e
representado em uma linguagem maniqueísta pelos meios de comunicação as
charges e as histórias em quadrinhos presentes nos periódicos esportivos são
fortes indicadores disto. Tal comportamento não seria intrínseco ao universo do
futebol e conteria inúmeras facetas da formação histórica brasileira. Ainda que
de modo não explícito, os jornais especializados em esportes, na pena de seus
cronistas, lançariam mão de um repertório de explicações e argumentos
elaborados em âmbito intelectual por determinados antropólogos, sociólogos e
historiadores, a fim de justificar as causas do atraso e do arcaísmo na vida
nacional, onde valores presentes na sociedade, na política e na cultura
brasileira, vivenciadas no cotidiano, se instilariam também no contexto do
futebol ao longo do século XX
166
.
Assim, a mediação dos jornalistas seria fundamental para a colocação do
assunto sob um viés moral, com a reificação em um primeiro momento de um
discurso que acentuava apenas o pólo das virtudes e com a transfiguração em
um momento posterior de uma narrativa que passa a situar também o torcedor
no denegrido e execrado pólo dos vícios.
166
Cf. GOMES, A. de C. “A política brasileira em busca da modernidade: na fronteira entre o
público e o privado”. In: SCHWARCZ, L. M (Org.). História da vida privada no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, vol.4.
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2
Microfísica do Poder Jovem
2.1 As formas simples do pragmatismo
“... o poder é sempre jovem,
quando é alguma coisa mais do que o poder.”
Carlos Drummond de Andrade
Na memória esportiva nacional, o segundo semestre do ano de 1966
ficaria marcado pela perda da Seleção Brasileira de futebol na Copa do Mundo
da Inglaterra. O abalo com a derrota e com o medíocre desempenho naquele
torneio internacional, que adiaria por mais quatro anos a conquista do inédito
tricampeonato para o país, seria seguido ainda pelo pesar com o
desaparecimento de uma das figuras mais atuantes e proeminentes do mundo
esportivo no Brasil: Mário Rodrigues Filho. Aos cinqüenta e oito anos de idade,
o falecimento do jornalista pernambucano representava o fim de uma vida que
se confundia com a própria história do futebol profissional e com a criação de
alguns dos maiores espetáculos de massa no país. Durante um período que se
estende por quatro décadas – dos anos de 1920 aos anos de 1960 –, Mário Filho
exerceu larga influência sobre a área do esporte, da cultura e da política. Na
cidade do Rio de Janeiro, foi reconhecido como introdutor de um novo modelo
narrativo de crônica esportiva e como promotor do Desfile das Escolas de
Samba na década de 1930.
Por ocasião de sua morte e de seu enterro, os superlativos atribuídos a
Mário Filho – “o homem fluvial”, “o inventor de multidões”
1
– não se
restringiram ao âmbito retórico e mobilizaram de igual maneira ações concretas
com o intuito de fixar uma imagem grandiosa e de criar um “lugar de
memória”
2
para o jornalista na posteridade. A sugestão do radialista Valdir
Amaral e do cronista Nelson Rodrigues, seu irmão mais novo, enviada à
Câmara de Vereadores da cidade, culminou com a mudança no nome do
1
Cf. RODRIGUES, N. “O homem fluvial”. In: RODRIGUES FILHO, M. O sapo de Arubinha:
os anos de sonho do futebol brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
2
Cf. NORA, P. “Entre memória e história – a problemática dos lugares”. In: Revista Projeto
História. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1993, n.º 10.
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159
Estádio Municipal do Rio de Janeiro, o Maracanã, para Estádio Mário Filho,
praça desportiva que ele tanto se empenhara em construir nos anos 50. Como
seria de se esperar, o Jornal dos Sports, de que fora diretor-proprietário durante
trinta anos (1936-1966), também lhe prestou uma série de homenagens
póstumas e desde então deixou de ser veiculado com o subtítulo “o matutino
esportivo de maior circulação na América do Sul” e passou a adotar
simplesmente o bordão “o jornal de Mário Filho”. O primeiro bordão, no
entanto, se tratava de uma adaptação e de uma ampliação do slogan do jornal A
Crítica, de propriedade do pai de Mário Filho, que em setembro de 1929
passou a circular com o dizer “o matutino de maior circulação do Brasil”
3
.
A transformação do Estádio Municipal do Rio de Janeiro em Estádio
Mário Filho pode ser entendida, na acepção do historiador francês Pierre Nora,
como parte do processo de construção da memória nacional. Ele passa por uma
articulação com a história e com a experiência temporal em três dimensões:
material, simbólica e funcional. Neste sentido, seria possível compreender de
que maneira o espaço físico das arenas e dos complexos esportivos modernos
recebe a designação oficial dos nomes de seus agentes tidos como mais
destacados no passado, de modo a estabelecer uma unidade e um continuum
com as gerações seguintes.
No caso do periódico, entretanto, o impacto da morte de seu principal
artífice acarretava mudanças internas significativas. De maneira análoga à
época do falecimento de seu pai, o também jornalista Mário Rodrigues, dono na
década de 1920 dos jornais sensacionalistas A Manhã (1925) e A Crítica
(1928), que viriam a ser empastelados pela Revolução de 30, a morte de Mário
Filho trazia para a família novos desafios na condução de sua empresa e no
prosseguimento de um projeto de imprensa esportiva que havia se tornado
hegemônico na antiga capital da República e no Brasil. Mais do que isso, a
morte de Mário Filho reavivou uma tragédia por que havia passado aquela
numerosa família que estruturou sua existência no campo do jornalismo. Ela
dizia respeito a um acontecimento fatal com um dos irmãos de Mário, o jovem
e talentoso artista plástico Roberto Rodrigues, assassinado em 1929 em
represália a uma notícia por ele veiculada em sua coluna de A Crítica, que
3
Cf. BARBOSA, M. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad
X, 2007, p. 61.
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160
tratava da vida íntima conjugal de uma personagem da alta sociedade carioca,
Sylvia Tibau, ferindo os brios da moça e precipitando a fatalidade.
Diante do isolamento e do ostracismo político, a astúcia do primogênito
na mudança de direção da atividade jornalística resultou em uma recomposição
exitosa para a família. O investimento de Mário Filho nos esportes amadores e
no futebol profissional propiciou um espaço promissor de atuação, de
crescimento e de reconversão de sua identidade no meio jornalístico nas
décadas seguintes, iniciada em O Globo e materializada com a aquisição do
Jornal dos Sports – periódico fundado em 1931 por Álvaro Nascimento e
Argemiro Bulcão, ambos até então donos do Rio Sportivo. Mário Filho
comprou o JS em outubro de 1936, graças ao apoio financeiro inicial dos
amigos Roberto Marinho, Arnaldo Guinle e José Bastos Padilha.
Mas o vácuo criado com seu enfarte em 1966, seguida da morte de outro
irmão no ano seguinte, Paulo Rodrigues, vítima trágica do desabamento do
prédio em que morava, levou novamente a uma situação de indeterminação e
de modificação dos destinos familiares. Em um primeiro momento, a mulher
Célia Rodrigues assumiu de maneira interina a chefia do jornal e procurou dar
continuidade ao sucesso do empreendimento iniciado pelo marido, até que um
súbito acontecimento transtornou mais uma vez a família. Transcorrido pouco
mais de um ano, em dezembro de 1967, a viúva de Mário Filho também vem a
falecer, com o cometimento de um suicídio. As especulações sobre as
insondáveis motivações de ordem psicológica que teriam provocado aquele ato
fatal não excluiriam por parte do cunhado, Nelson Rodrigues, em uma crônica
publicada pouco depois do incidente em O Globo, “Amor para além da vida e
da morte”, o dilaceramento diante da perda e da ausência do marido depois de
quarenta anos de união matrimonial
4
.
Coube enfim ao filho único, Mário Júlio Rodrigues, a tarefa de assumir
em 1967 a mais alta posição que havia pertencido a seu pai no jornal. A
sucessão, contudo, não constituiria nos anos seguintes uma mera transferência
de poder na manutenção e na administração de uma herança patrimonial. Assim
como havia sucedido entre o avô e o pai, quando este último vislumbrou nos
4
A crônica foi escrita em 23 de dezembro de 1967 e publicada em livro de antologia de crônicas
selecionadas por Ruy Castro. Cf. RODRIGUES, N. O óbvio ululante: primeiras confissões. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 61.
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esportes, segundo o antropólogo José Sérgio Leite Lopes
5
, um novo meio de
fazer política, o representante da terceira linhagem desta árvore genealógica
também iria imprimir uma marca específica na esfera do jornalismo esportivo,
no final da década de 1960. Embora sempre inspirado no exemplo paterno, é
possível perceber no sucessor um alargamento considerável no conceito de
jornalismo esportivo vigente até aquela altura, em consonância também com as
transformações por que passava a indústria gráfica e a indústria cultural desde o
decênio anterior. Além das alterações de conteúdo e de informação, o novo
estilo do jornal coadunava-se às reformas editoriais que vinham se processando
em outros periódicos, como as efetuadas, por exemplo, por Jânio de Freitas no
Jornal do Brasil, em fins de 1950.
A alteração era implementada com a compra de novos equipamentos
gráficos e com a viagem da condessa Pereira Carneiro – proprietária do JB
aos Estados Unidos, a fim de atualizar o jornal com as mudanças diagramáticas
em curso naquele país, também conhecidas como new journalism, que
incorporavam a objetividade do lead em suas reportagens com a regra dos
cinco W e um H (where, who, when, what, why e how). A reformulação do
jornal abrangeu ainda a criação de um Suplemento Dominical em 1956, do
Caderno B – voltado para teatro e cinema – e do Caderno C – específico para
classificados – em 1960, transição consolidada no ano seguinte com a entrada
de Alberto Dines na editoria do jornal.
6
.
A inflexão na política editorial do Jornal dos Sports seguiria tal
tendência, mas não se daria sem dificuldades, com a passagem por graves
dificuldades financeiras, que ao longo do tempo tentariam ser sanadas por
Mário Júlio Rodrigues. A alternativa inicial à delicada situação em que se
encontrava o periódico consistia na diversificação do público-alvo do Jornal
dos Sports e na ampliação do escopo temático de suas reportagens. Se o
noticiário esportivo continuava sendo a pedra angular do jornal, logo ele
passava a conviver com outra ordem de assuntos, que incluíam o jornalismo
estudantil e o jornalismo cultural. Embora Mário Filho já tivesse desenvolvido
5
Cf. LOPES, J. S. L. “A vitória do futebol que incorporou a pelada”. In: Revista USP. São
Paulo: s.e., 1994, nº 22, p. 78 e 79.
6
Cf. FERREIRA, M. de M..A reforma do Jornal do Brasil”. In: ABREU, A. A. de. (Org.). A
imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos Anos 50. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas Editora, 1996, p. 151-154.
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com maestria a união entre o futebol e a música popular desde a década de
1930, os esportes passavam agora a ser integrados em um contexto mais amplo,
que abrangia também temas relativos à cultura, à educação e à juventude.
É certo ainda que Mário Filho no início da década de 1960 já tinha
prenunciado essa mudança, com a criação da seção Segundo Tempo, onde
nomes como José Ramos Tinhorão faziam crítica de música e críticos como
Alex Viany escreviam sobre cinema brasileiro. A cena teatral também
comparecia com coberturas de peças como “Arena conta Zumbi”, concebida
por Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, com reportagens sobre os
famosos shows do Teatro Opinião, em Copacabana, onde despontavam Maria
Bethânia, João do Vale, Zé Kéti, entre outros músicos, e com o anúncio das
peças de uma estrela da dramaturgia nacional, Nélson Rodrigues, o caçula dos
irmãos, então em cartaz com o perseguido pela censura “Álbum de família”.
Em São Paulo, o mesmo fenômeno se dava com A Gazeta Esportiva, cuja
circulação diária incluía sessões extra-esportivas, destinadas aos interessados
em teatro, cinema, rádio e televisão. Embora se reconhecesse como um jornal
masculino, A Gazeta Esportiva chegava a conceder espaço de igual maneira
para assuntos tradicionalmente considerados femininos, com suplementos
devotados à moda, à culinária e aos “penteados da semana”.
7
Outra tradição radicalizada com a entrada de seu filho no comando do
jornal seria a criação de novos espetáculos de massa, agora em parceria com as
redes de televisão, a força comunicativa emergente no final da década de 1960.
Se Mário Filho caracterizaria o Jornal dos Sports não apenas por reportar a
notícia, como, sobretudo, por criá-la, ao instituir os Jogos da Primavera, os
Jogos Infantis, o Torneio Rio-São Paulo, o Torneio de Pelada, o Concurso de
Torcidas, entre outras atrações, Mário Júlio Rodrigues promoveria a realização
de concursos de música em conjunto com a TV Excelsior e com o Museu da
Imagem e do Som
8
. Este último, inaugurado em 1965 e dirigido por Ricardo
Cravo Albim, situado à Praça XV em um antigo pavilhão da Exposição
7
Cf. SILVA, E. M. da As torcidas organizadas de futebol: violência e espetáculo nos estádios.
São Paulo: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – PUC/SP, 1996, p. 101.
8
Cf. DIAS, C. C. de M. G. Um museu para a Guanabara: um estudo sobre o Museu da Imagem
e do Som e a identidade carioca (1960-1965). Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em
História Social / UFRJ, 2000.
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163
Internacional de 1922
9
, era um modelo ultramoderno de museu voltado para os
registros sonoro e visual, com apenas dois equivalentes no mundo, e que
permitia ainda a ativação de um cineclube com filmes da avant-garde nacional
e internacional, como Morangos silvestres, de Ingmar Bergman e O padre e a
moça, de Joaquim Pedro de Andrade, entre outros.
O Museu da Imagem e do Som estabelecia uma cooperação com o Jornal
dos Sports por meio da criação de um Conselho de Esportes. A função do
conselho era a promoção em parceria com os demais departamentos do museu
de uma variada série de entrevistas que abarcavam a área de esportes, de teatro,
de cinema, de política e de artes plásticas. A área de música, a cargo de
Almirante, contava com depoimentos de antigos compositores populares ainda
vivos, como Donga e João da Baiana. Já o futebol se valia de depoimentos de
jogadores dos primórdios do futebol, como Marcos Carneiro de Mendonça e
Domingos da Guia, além de uma seção exclusiva dedicada à evocação da
memória de Mário Filho. Para este acontecimento especial acorriam algumas
das mais afamadas personagens da vida esportiva, cultural e política nacional,
como João Havelange, Juscelino Kubitschek, Valdir Amaral, Nelson
Rodrigues, Antônio Olinto, Antônio Nássara, Abelar França, Carlos Heitor
Cony, entre outros.
No final de cada temporada esportiva, o MIS-RJ e o JS concediam na
Sala Cecília Meireles o Troféu Golfinho, uma cerimônia de premiação conjunta
aos melhores desportistas do ano, com a eleição de atletas e dirigentes, na qual
figuravam os nomes de Garrincha, João Havelange e Pelé, entre outras
personalidades. Outra festividade de cunho oficial cuja organização passava a
ficar sob responsabilidade das duas instituições era a Semana da Pátria, o que
aproximava ainda mais o jornal das esferas de poder do Estado da Guanabara.
Exemplo dessa proximidade era a festa comemorativa de aniversário do jornal,
que contava com a presença do ministro João Lyra Filho, antigo colaborador do
periódico, do presidente da Federação Carioca de Futebol, Otávio Pinto
Guimarães, dos presidentes de clube, como Fadel Fadel e Ciro Aranha, além do
envio de mensagens com as saudações do presidente da CBD. Assim, com o
jornal autoproclamando-se na capa “o órgão consultivo de esportes do estado
9
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1970, JS Escolar, p. 01.
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da Guanabara”, seus representantes, seja Célia Rodrigues seja Nelson
Rodrigues, eram vistos com freqüência nas solenidades em fotos ao lado do
então governador e ex-prefeito da cidade Negrão de Lima.
O público-leitor do Jornal dos Sports, antes circunscrito ao
acompanhamento diário dos jogos e dos treinos de suas equipes, adquiria um
perfil diferenciado ou tinha de se acostumar ao aparecimento de uma variedade
de acontecimentos e de suplementos, que encontravam grande ressonância na
sociedade ao extrapolar o ambiente dos desportos e do entretenimento mais
banal. De maneira concomitante, o jornal parecia adotar duas estratégias para a
superação da crise financeira e para a expansão de seu número de
consumidores. Por um lado, continuava a incitar a paixão dos torcedores por
seus times, fazendo com que as tiragens atingissem, nos dias seguintes à
disputa dos clássicos cariocas, em geral as segundas-feiras, uma venda de até
sessenta e cinco mil exemplares
10
, em um período em que o Maracanã
registrava as suas mais altas médias de público pagante. Por outro, na esteira de
reformas visuais adotadas por muitas revistas – O Cruzeiro, Manchete, Visão,
Realidade, entre outras – nos decênios seguintes à Segunda Guerra Mundial,
implementava novos padrões jornalísticos de redação, com a contratação de
profissionais de alto gabarito e com o lançamento de encartes que chamariam a
atenção do meio artístico nacional.
Tal qual o número de páginas, o quadro de colaboradores aumentava de
maneira considerável, com uma equipe de jornalismo formada por Zuenir
Ventura, Reinaldo Jardim e Ana Arruda Callado; com um novato grupo de
chargistas constituído, entre outros, por Ziraldo, Fortuna, Jaguar, Henfil, Daniel
Azulay, Miguel Paiva, Juarez Machado e Dedé Gadelha; ou com uma crítica de
música assinada pelo tropicalista Torquato Neto. Além de uma pequena
enciclopédia intitulada Anuário de Cultura, os principais suplementos que se
acoplavam ao periódico eram o Cultura JS, o Juventude JS, o Cartum JS, o JS
Escolar e, depois, O Sol, um projeto alternativo, espécie de caderno cultural
que servia de livre experimentação para aprendizes, estagiários e neófitos do
jornalismo, egressos das primeiras faculdades de jornalismo dedicadas àquela
formação, cuja obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão seria
10
Cf. MORAES, D. de. O rebelde do traço: a vida de Henfil. Rio de Janeiro: José Olympio,
1997, p. 85.
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165
instituída pela legislação autoritária de 1968. Lançado em setembro de 1967, o
inusitado e experimental tablóide O Sol circularia durante apenas dois meses
em conjunto com o Jornal dos Sports para, em seguida, adquirir autonomia.
Não obstante, já em janeiro de 1968, após a circulação de poucos
números, sua distribuição seria interrompida devido a novas crises financeiras
da família Rodrigues, sem recursos para arcar com as crescentes despesas
necessárias à inovação e à ousadia editorial. Isto não impediu que a iniciativa
do suplemento fosse elevada à condição de ícone de uma geração, ao ser
lembrada na música de Caetano Veloso, Alegria, alegria – que despontou no III
Festival de Música Popular da TV Record em 1967 com os versos “... o Sol nas
bancas de revista/ me enchem de alegria e preguiça...”, em uma letra composta
por retalhos de imagens extraídas das manchetes de jornal, bem ao gosto das
colagens modernistas e concretistas – e ao servir de estopim, em fins da década
de 1960, para a formação de uma imprensa alternativa no decênio seguinte,
dirigida por jornalistas de esquerda, dentre eles o humorístico Pasquim
11
.
Com efeito, a nova linha do editor Mário Júlio Rodrigues parecia em
princípio destoar do universo do futebol em seu dia a dia mais corriqueiro. O
terreno dos esportes não tinha, à primeira vista, uma vinculação maior com um
segmento voltado para a vida artística, cultural e intelectual da cidade. Isto
porque, consoante o relato do jornalista Juca Kfouri, durante todo o século XX
dirigir uma redação esportiva consistiu na maioria das vezes em lutar contra o
preconceito de que só os de menor poder aquisitivo poderiam tornar-se leitores
desse tipo de diário. O fato se agravava na medida em que, segundo o
raciocínio e a experiência do mesmo jornalista, o preconceito não era
infundado. O menor poder aquisitivo equivalia a um menor poder cultural, de
sorte que os periódicos esportivos não constavam da lista de prioridades e de
interesses mais tradicionais dos estratos letrados e intelectualizados da
sociedade
12
.
11
A tese de doutoramento do professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, Bernardo
Kucinski, é completa e exemplar na abordagem da imprensa alternativa nesse período histórico.
Cf. KUCINSKI, B. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. São
Paulo: Scritta Editorial, 1991. Cf. também MELLO, M. A. (Org.). 20 anos de resistência:
alternativas da cultura no regime militar. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1986.
12
Cf. KFOURI, J. “Introdução: entre torcer e distorcer”. In: Jornalismo Esportivo. Rio de
Janeiro: Imprensa da Cidade / Prefeitura do Rio, 2004, Série Estudos, n.º 11, p. 17.
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166
A despeito disto, o jornal partia de uma gama de questões do cotidiano
dos estudantes – que iam da anual preparação para o vestibular às grandes
reivindicações do movimento estudantil, como a polêmica reabertura do
restaurante Calabouço, a denúncia do acordo MEC-Usaid, a realização do
proibido 30º Congresso da UNE em Ibiúna ou as matérias de estrito interesse
do calendário acadêmico, como as eleições internas no CACO, o grêmio da
Faculdade Nacional de Direito, ou a exibição de filmes do Cineclube Nelson
Pereira dos Santos na Faculdade de Filosofia da UEG – para cunhar a sua nova
identidade jornalística junto a uma fração específica de leitores. À maneira de
suplementos literários de jornais como o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil
e O Estado de São Paulo, onde passavam a circular idéias nacionais e
estrangeiras formuladas por cientistas e pesquisadores universitários, o Jornal
dos Sports adotava preceitos similares.
Tais seções franqueavam espaço para discussões teóricas e conceituais
elevadas, de respaldo internacional, que podiam girar em torno do
estruturalismo e do acesso aos textos originais de seus maiores expoentes, por
meio da tradução de livros como O pensamento selvagem, de Claude Lévi-
Strauss, cujas passagens eram apreciadas por Carlos Henrique Escobar
13
, ou O
grau zero da escrita, de Roland Barthes. Em âmbito nacional, pontificavam
artigos da doutora Nise da Silveira sobre psiquiatria, na vanguarda de
movimentos junguianos no Brasil que descobriam as “imagens do
inconsciente”; publicavam-se ensaios do poeta concretista Ferreira Gullar sobre
arte e subdesenvolvimento; faziam-se análises cinematográficas de filmes
recém-lançados, como o perturbador Terra em transe (1967) de Glauber Rocha,
que desafiava o público acostumado às reconfortantes mensagens
hollywoodianas; ou ainda apresentavam-se as interpretações do crítico literário
Otto Maria Carpeaux sobre clássicos universais, como o contista russo Nicolai
Gogol, assinadas por esse intelectual austríaco radicado no Rio de Janeiro, que
se notabilizava por tomar parte nos protestos estudantis e por ter publicado uma
monumental História da literatura ocidental, em sete volumes, redigida em
português entre 1959 e 1965.
13
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1967, suplemento “O Sol”.
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167
A eclética variedade das edições de O Sol que circularam no Jornal dos
Sports poderia ser ainda ilustrada com uma miscelânea de reportagens, com um
pot-pourri de informações que incluíam a presença dos ciganos no Brasil
14
; o
trabalho do artista plástico Rubens Gerchman
15
; o uso de drogas como a
maconha
16
; a atuação do cientista Noel Nutels; a perseguição ao líder
revolucionário latino-americano Che Guevara, então escondido nas selvas da
Bolívia, que viria a ser assassinado um mês depois, a 08 de outubro de 1967
17
;
o sucesso dos Beatles e a internacionalização da sua música
18
; a inédita
concessão de um prêmio Nobel de Literatura ao guatemalteco Miguel Angel
Astúrias, outorgado pela vetusta academia sueca
19
; a publicação de um estudo
de Erza Pound dedicado a Henry James
20
; o show de Maria Bethânia, “Comigo
me desavim”, com referências literário-poéticas a Sá de Miranda, Capinam,
Brecht, Caetano Veloso, Rainer Maria Rilke e Fernando Pessoa
21
; a parceria do
jornal com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna, o MAM, com a
organização de uma retrospectiva em homenagem ao cineasta francês Robert
Bresson
22
; os filmes de arte da Geração Paissandu (1966-1968), como Made in
USA, de Jean-Luc Godard
23
; a inusitada visita do compositor Geraldo Vandré à
casa do ministro João Lyra Filho
24
; a divulgação dos poemas de Manuel
Bandeira e dos folhetins de Carlos Heitor Cony
25
; ou a cobertura da posse de
João Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, com a transcrição de
boa parte de seu discurso, que seria seguido poucos dias depois pelo anúncio de
seu falecimento
26
.
O perfil de público para o qual se dirigia o Jornal dos Sports sinalizava a
existência de uma aparente incongruência de gênero não apenas da parte do
habitual e comum leitor daquele periódico. Para expressiva parcela da
intelectualidade que se interessava por aspectos ligados à arte, à cultura e à
14
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de novembro de 1967, suplemento “O Sol”.
15
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de setembro de 1967.
16
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 25 de setembro de 1967, suplemento “O Sol”, p. 04.
17
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de setembro de 1967, suplemento “O Sol”.
18
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1967, suplemento “O Sol”.
19
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1967, suplemento “O Sol”, p. 06.
20
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de novembro de 1967, suplemento “O Sol”.
21
Cf.
ibid. Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1967, suplemento “O Sol”, p. 01.
22
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1967.
23
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de julho de 1973, JS Escolar, p. 01.
24
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de novembro de 1968.
25
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1967.
26
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17, 21 e 22 de novembro de 1967, suplemento “O Sol”, p. 06-B.
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168
política, o futebol não constituía índice satisfatório de refinamento, de
conscientização ou de envolvimento com os problemas de sua sociedade. Em
um período no qual as clivagens ideológicas tinham contornos nítidos, os
indivíduos que acreditavam no engajamento e na transformação de sua
realidade pareciam ser discerníveis com facilidade e, para a maioria deles, o
terreno esportivo não se afigurava o local mais apropriado. Malgrado o esforço
isolado do escritor Milton Pedrosa, que publicava naquele momento uma
antologia chamada Gol de letra, primeiro de uma série de livros sobre a
presença do futebol na literatura e na crônica brasileira – “Olho na bola”, “De
apito na boca”, “As 17 regras de futebol comentadas, com lançamento
anunciado e comentado pelo jornal e com prefácio do crítico de origem húngara
Paulo Ronai, que admitia sua completa ignorância na matéria futebolística, e do
escritor Macedo Miranda, que publicava pela Bloch Editores uma excêntrica
ficção sobre futebol intitulada O sol escuro, a disparidade de interesses entre
um meio e outro parecia ser insofismável
27
.
Isso podia ser notado ainda em um filme que o próprio Jornal dos Sports
anunciava como atração em sua seção Roteiro de Cinema, no ano de 1968.
Tratava-se da película Brasil Verdade, conjunto de quatro médias-metragens
com que a Caravana Farkas iniciou em 1964 o seu objetivo de retratar a vida
nacional naquele período. Em certo sentido, o projeto do fotógrafo húngaro
Thomas Farkas, dono da revista Fotóptica, que se estendeu até 1980 e que
perfez um total de trinta e nove documentários, introduzia uma série de
inovações técnicas do Cinema Verdade francês, como a captação do som-
direto, e constituía uma revisão das idéias otimistas apresentadas pelo Centro
Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes, no início da década de
1960, com a realização do filme Cinco vezes favela, co-dirigido por Joaquim
Pedro de Andrade, Leon Hirszman e Cacá Diegues, entre outros, e com a
organização da UNE-Volante, comitiva que se propunha à divulgação e ao
estímulo da arte popular em todos os quadrantes do país
28
.
27
Cf. PEDROSA, M. Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Prefácio de Paulo Ronai.
Rio de Janeiro: Editora Gol, 1967. Cf. também JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 14 de
novembro de 1967, p. 04.
28
Os depoimentos dos membros integrantes do CPC da UNE constam da obra organizada pela
jornalista Jalusa Barcelos. Cf. BARCELOS, J. CPC da UNE: uma história de paixão e
consciência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. Cf. também RIDENTI, M. Em busca do
povo brasileiro: do CPC à era da televisão. Rio de Janeiro: Record, 2000.
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169
Enquanto os jovens realizadores estudantis e universitários nutriam uma
concepção romântica de cultura popular e de folclore, calcada no ideário do
Partido Comunista Brasileiro, em aliança com as aspirações reformistas do
nacionalismo e do populismo do governo João Goulart, que resultariam em
movimentos como o Cinema Novo
29
, os quatro documentários pertencentes ao
filme Brasil Verdade chamavam-se: Subterrâneos do futebol, de Maurice
Capovilla; Memória do cangaço, de Paulo Gil Soares; Viramundo, de Geraldo
Sarno; e Nossa escola de samba, de Manuel Horácio Gimenez. Eles
correspondiam à fase ditatorial pós-64, em que se generalizara o desencanto de
vários intelectuais com as perspectivas concretas de transformação das
condições de vida do país e do povo brasileiro, muito embora a efervescência
contestatória cultural tenha permanecido notável durante o governo ditatorial
de Castelo Branco e de Costa e Silva até a declaração do Ato Institucional
número cinco, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968
30
.
A finalidade do documentário era a exibição das mazelas e da face cruel
de certos fenômenos característicos do país, como o êxodo rural, o banditismo
sertanejo e o fanatismo religioso, com a desmistificação de seus principais
fundamentos. O futebol também era enquadrado neste reino de mitos e ilusões,
pois consumia os jogadores de origem proletária, expelindo-os depois do
universo esportivo sem o oferecimento de qualquer infra-estrutura para
sobrevivência, e levava os torcedores à exacerbação de seus comportamentos
instintivos mais irracionais, manifestações típicas de frustrações oriundas da
miséria e do mundo do trabalho. De resto, a temática já fora explorada no teatro
nacional por Oduvaldo Viana Filho, em 1959, na peça Chapetuba futebol clube.
Neste diapasão, a cultura do povo, diferente da cultura popular, era “tosca,
desajeitada, atrasada, trivial, ingênua, lúdica, ornamental, sem dignidade
29
A ambigüidade dos cinemanovistas face à temática do futebol pode ser percebida em três filmes:
Rio quarenta graus (1958), de Nelson Pereira dos Santos; Garrincha, alegria do povo (1962), de
Joaquim Pedro de Andrade; e A falecida (1965), de Leon Hirszman, adaptação da peça homônima
de Nelson Rodrigues. Cf. ORICCHIO, L. Z. Fome de bola: cinema e futebol no Brasil. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2006, p. 99.
30
Cf. SCHWARZ, R. “Cultura e política no Brasil: 1964-1969”. In: O pai de família e outros
estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Cf. também RIDENTI, M. “Cultura e política: os
anos 1960-1970 e sua herança”. In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. (Orgs.). O Brasil
Republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, vol. 4.
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170
artística nem intelectual, conformista”
31
. Os subterrâneos do futebol, em cuja
equipe de realizadores trabalhara também o jornalista Vladimir Herzog,
inspirava-se no livro homônimo do cronista esportivo João Saldanha
32
, lançado
em 1963, título baseado por sua vez na obra do também comunista Jorge
Amado, Os subterrâneos da liberdade, uma biografia do líder do PCB no
Brasil, Luis Carlos Prestes.
A discrepância entre os diversos públicos leitores do Jornal dos Sports
talvez fosse apenas aparente, relativa ou se colocasse em outros termos,
distintos daquela demarcação ideológica preestabelecida. A incompatibilidade
de um diário esportivo orientado tanto para as classes populares quanto para as
classes médias intelectualizadas poderia ser vista também sob um outro ângulo.
A estratégia comercial do periódico voltava-se para o investimento em um
denominador comum aos diversos estratos sociais e às expressivas frações
etárias que o tinham como objeto de leitura cotidiana: os jovens. Se o esporte
constituía uma atividade profissional e recreativa em que a condição juvenil
afigurava-se como requisito indispensável, o balizamento em torno de
interesses procedentes dos meios estudantis e universitários apoiava-se nesse
mesmo público-alvo, constitutivo da faixa etária intermediária entre a infância
e a vida adulta, então majoritária na estrutura demográfica piramidal da
sociedade brasileira.
A aposta do novo editor em um jornal esportivo ao mesmo tempo
educativo e cultural, com ênfase no dinamismo do setor jovem da sociedade e
na amplitude temática de suas preferências, compreendia também uma escolha
e uma iniciativa em meio às mudanças jornalísticas que tinham se iniciado no
decênio anterior e que se tornavam mais candentes naquele momento. As
relações entre público, jornal e seu repertório temático em tal contexto são
assim situadas pelo cientista social Leonardo Lattman-Weltman em uma
alentada, porém necessária explicação:
“Um jornal que oferece um número maior e mais diversificado de
notícias pressupõe que seu público deve possuir um interesse
igualmente mais amplo e diversificado que o público de um jornal que
divide seu espaço por um número comparativamente menor ou menos
31
Cf. CHAUI, M. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1986, p. 108.
32
Cf. SALDANHA, J. Os subterrâneos do futebol. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
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171
diversificado de informações. Ou seja, o universo de interesses do
público seria, de certo modo, espelhado pelo jornal; assim, quanto
mais diversificado o noticiário desse jornal, mais ampla a imagem do
universo de interesses do público. É evidente, contudo, que também se
pode compreender a diversificação do noticiário como uma
‘estratégia’ de concorrência interna à imprensa, uma ‘estratégia’ de
atração de novos públicos, com interesses diversos. (...) Pode-se
pressupor que a diversidade de interesses exista no público
consumidor regular de um jornal ou que esteja dispersa no conjunto de
um mercado potencial a ser conquistado. Seja como for, o fato é que
tal pressuposição de maior diversidade de interesses aponta para a
percepção, mais ou menos elaborada, por parte da imprensa, de que o
universo de áreas de interesse do público está se expandindo, de que
esse público é e/ou pretende ser mais ‘bem informado’, e demanda
cada vez mais informação. (...) Assim, ao aumentar o número de
notícias e ao diversificar as temáticas do noticiário, a imprensa ao
mesmo tempo estaria fazendo uma concessão ao ritmo cada vez mais
vertiginoso de produção simbólica instaurado pela então nascente
indústria cultural e, com isso, reproduzindo-o.”
33
.
Em fins da década de 1960 e início da década de 1970, os editores do
Jornal dos Sports partilhavam o princípio de que “toda a nação deve construir o
esporte, capitalizando a força e o entusiasmo dos jovens”
34
. Assim, pressentiam
o potencial quantitativo e qualitativo da juventude, que parecia conquistar com
rapidez um espaço no mundo e na sociedade brasileira. A identidade dos jovens
como grupo social independente já havia sido reconhecida e a formação de uma
subcultura juvenil específica era cada vez mais destacada. A “cultura jovem”
tão propalada pelos meios de comunicação lograva visibilidade e magnitude
internacional ao projetar uma série de valores e padrões de sociabilidade auto-
referenciados. Diferenciando-se dos demais segmentos, ela procurava seus
elementos contrastivos com grande ênfase nos domínios da linguagem, do
comportamento e da música. A juventude também assumia uma posição de
vanguarda nos questionamentos em torno da estrutura familiar e nas polêmicas
comportamentais quanto à liberdade sexual e à adoção dos anticoncepcionais.
Este conjunto de características reivindicativas forjava um ethos e um estilo de
vida próprio, que se contrapunha em grande medida à geração anterior de seus
pais.
33
Cf. LATTMAN-WELTMAN, F. “Imprensa carioca nos anos 50: os ‘anos dourados’”. In:
ABREU, A. A. de. (Org.). A imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos Anos 50. Rio
de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996, p. 166 e 167.
34
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 13 de março de 1971, p. 04.
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172
O historiador inglês Eric Hobsbawm identificou nesse processo o
estabelecimento de um “abismo histórico” de gerações entre aqueles que
viveram sua mocidade na primeira metade do século XX e aqueles que a
conheceram na segunda metade
35
. E nesta mesma linha, o historiador espanhol
Ignácio Ramonet, radicado na França, abordou a crise de valores na segunda
metade do século XX com base no que chamou de agonia da cultura
36
. Tal
crise geracional podia ser detectada não apenas no seio da família como no
ambiente da educação, que atravessava um período de intensa massificação e
de enorme pressão por mudança. A busca por um ensino cada vez mais
qualificado em nível secundário e universitário atendia ao incessante fluxo de
mutações científicas e tecnológicas por que passava o mundo, com a demanda
cada vez maior do funcionalismo público, das profissões liberais e das camadas
médias por vagas para a sua formação escolar integral.
Enquanto na escola primária as políticas de Estado em um país
subdesenvolvido pautavam seus esforços na erradicação do analfabetismo, o
que havia levado no início da década de 1960 a soluções progressistas no Brasil
como o “método Paulo Freire” e sua pedagogia do oprimido voltada para a
alfabetização de crianças e adultos, nas instituições de ensino superior muitos
jovens almejavam o êxito individual e o sucesso profissional. Se até então as
universidades abrigavam um número pouco expressivo de alunos, integrada por
uma ínfima elite, que no Brasil atingia índices percentuais em escala ainda
decimal, a formação acadêmica tendia a atrair de maneira crescente os
contingentes juvenis em busca de projeção nas suas respectivas carreiras, o que
desencadeava reformulações no sistema educacional brasileiro. No Brasil,
segundo o censo de 1964, o número de secundaristas não ultrapassava a marca
dos dois milhões, ao passo que os universitários restringiam-se a menos de
cento e quarenta mil
37
.
35
Cf. HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p.322. Para uma apreciação hobsbawmniana dos anos 60 menos como historiador e
mais como testemunha ocular da história, ver as suas sempre lúcidas impressões de episódios
como a Guerra do Vietnã e a rebelião estudantil de 1968 na França em seu livro de memórias. Cf.
também Id. Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
36
Cf. RAMONET, I. “A agonia da cultura”. In: Geopolítica do caos. Petrópolis: Editora Vozes,
1998, p. 129 e 130. Cf. também PAES, M. H. S. A década de 60: rebeldia, contestação e
repressão política. São Paulo: Ática, 1993.
37
Cf. NOSSO SÉCULO. 1960/1980: sob as ordens de Brasília. São Paulo: Abril Cultural, 1980,
p. 153.
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173
Ao longo da década de 1960, a procura pelo emprego rentável e pela
qualificação profissional não constituía a única motivação estudantil. Para além
da dimensão utilitária individualista e pragmática, a escola e os campi
universitários permitiram a formação de um locus propício para a elaboração de
uma identidade social e coletiva. A ambiência escolar ensejava um meio de
aglutinação que com o tempo se expressaria de forma surpreendente para o
restante da sociedade. A politização dos estudantes, suas utopias grupais e
gregárias, consubstanciadas na prática da participação por meio de entidades
representativas, viria a suscitar um debate controvertido sobre o lugar e sobre a
função dos jovens no mundo contemporâneo
38
.
A oposição civil nos Estados Unidos à guerra do Vietnã, que teve início
na Universidade de Berkeley com Herbert Marcuse à frente, professor que se
tornava ícone de uma geração ao fundir marxismo e psicanálise na crítica ao
mundo capitalista; a insurreição juvenil contra a burocratização do regime
comunista na antiga Tchecoslováquia durante a conhecida “Primavera de
Praga”; e a repercussão das rebeliões estudantis na França, em maio de 1968,
sob a liderança de Daniel Cohn-Bendit
39
foram o clímax mais marcante de um
movimento vanguardista internacional que contagiou os dois continentes e se
irradiou por vários países do mundo. Este último fenômeno chamaria a atenção
de intelectuais como Hannah Arendt, impressionada com a sedução da
violência e o fascínio pela ação direta entre os jovens daquele tempo, o que a
faria dedicar um ensaio ao assunto quando já radicada nos EUA: Sobre a
violência. A atuação política dos estudantes extravasava o domínio escolar e
levava para as ruas uma série de manifestações que haviam surgido de início
como reivindicações pontuais contra as injustiças do sistema educacional,
rebentando sob a forma de protestos em diversas cidades do mundo, como
Hamburgo, Munique, Tel-Aviv, Moscou, Madri e Tóquio, entre outras citadas
pelo JS
40
.
38
Cf. TEIXEIRA, C. “Cultura e política dos jovens”. In: Revista USP. São Paulo: s.e., 1997, n.º
32.
39
Cf. MATOS, O. Paris, 1968: as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1989. Cf.
também FAURÉ, C. Mai 68: jour et nuit. Paris: Gallimard, 1998. Cf. ainda MATOS, O. (et. al).
Utopias & distopias: 30 anos de maio de 68. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria,
1999.
40
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1967, p. 12. Cf. também
NAPOLITANO, M. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo:
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174
Destarte, a cisão entre as gerações se tornava mais cristalina no quadro
familiar, mas também na incompatibilidade de valores nas escolas e nas
universidades. Ela constituía um meio de afloramento das diferenças morais e
existenciais que distanciavam pais e filhos, alunos e professores, estudantes e
reitores, empregados e patrões. Parte significativa das convenções sociais era
posta em xeque, o que desencadeava toda sorte de animosidades e conflitos
entre as autoridades escolares e os jovens freqüentadores do ensino público e
privado. O questionamento às formas tradicionais de poder era assumido pelos
estudantes como uma atitude de contestação e de irreverência sistemática a
todo e qualquer tipo de autoridade. Assim, a figura do diretor era muitas vezes
equiparada à figura do pai no âmbito da família e à do ditador no campo da
política.
A voga juvenil ultrapassaria as fronteiras das salas de aula e das cidades
universitárias não somente sob a forma de protestos, passeatas e manifestações
públicas. Logo ela seria apropriada e irradiada pela linguagem dos meios de
comunicação de massa. Em princípio uma forma de expressão alternativa ao
modo de vida capitalista, ainda que a vicejar em seu bojo, a “cultura jovem”
também seria alvo de rápida assimilação pela voragem da sociedade de
consumo e da indústria cultural, com sua capacidade de absorver e de dar
origem a identidades e a estilos de vida exportáveis para diversas latitudes do
mundo. Isto ocorria de maneira incipiente desde as primeiras décadas do século
XX, com a constituição de uma sociedade e de uma cultura de massas
alicerçada no jornal, no rádio e no cinema. O decênio de 1950 seria marcado
pela criação de símbolos cinematográficos do jovem rebelde, tipificado pelo
ator James Dean, pela criação de ritmos internacionais presentes em bandas
como os Beatles e os Rolling Stones ou em figuras como Elvis Presley. Seu
corolário nos anos de 1960 e 1970 seria a extraordinária obtenção de lucros por
parte da indústria fonográfica, com a música que atraiu multidões e que
galvanizou a juventude desde então, o rock-‘n’-roll
41
, cuja manifestação mais
Contexto, 2004. Cf. ainda HOLLANDA, H. B. de; GONÇALVES, M. A. Cultura e participação
nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1982.
41
Cf. ARIAS, J. R. Os movimentos pop. Rio de Janeiro: Salvat Editora, 1979. Cf. também
PASSERINI, L. “A juventude, metáfora da mudança social. Dois debates sobre jovens: a Itália
fascista e os Estados Unidos da década de 1950”. In: LEVI, G.; SCHMITT, C. História dos
jovens. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, vol. 2. Cf. ainda CARANDELL, J. M. A
contestação juvenil. Rio de Janeiro: Salvat Editora, 1979.
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175
extraordinária foi o concerto Woodstock, realizado para quinhentos mil jovens
norte-americanos em uma fazenda do interior de Nova York em 1969.
Conforme a informação da seção Roteiro de Cinema do Jornal dos
Sports, um filme sobre o famoso festival, dirigido por Michel Wadleg, seria
exibido em várias partes do mundo no ano seguinte. No Rio de Janeiro, ele
entraria em cartaz em novembro de 1970.
42
. No leque de alternativas abertas
pelos jovens, parecia haver assim um limite tênue entre a conscientização e a
alienação, entre a contestação e a conformação, entre a liberdade e a
dependência.
No Brasil, o impacto dessas transformações em escala global se
evidenciou de múltiplas formas, tornando-se mais visível com a introdução de
novos termos lingüísticos. O epíteto jovem passou a ser veiculado como uma
espécie de mote associado a tudo o que era considerado novo e moderno, com
sua impregnação nas mais diversas áreas da sociedade. Ele denotava menos a
condição biológica de uma faixa etária particular, definida de maneira arbitrária
entre quinze e vinte e cinco anos, e mais a manifestação de um espírito livre, de
um novo modo de ser e estar no mundo, sensação de poder expressa na
nomenclatura dos diversos movimentos socais nos Estados Unidos: o Flower
Power, o Young Power, o Panter Power e o Black Power. Este último em
especial se valia da maciça presença negra em esportes como o basquete, o
boxe e o atletismo para dramatizar a sua insatisfação quanto ao preconceito
racial da sociedade norte-americana nos XIX Jogos Olímpicos do México, em
1968, um grande evento esportivo internacional, quando despontaram para o
mundo com os punhos cerrados e as boinas pretas. Sobre a possibilidade de
apropriação política de eventos esportivos espetacularizados, assim se
pronuncia o antropólogo francês Christian Bromberger:
“D’une part, la mobilisation sportive n’opère pas à sens unique: elle
peut tout aussi bien endormir temporairement les consciences
politiques que catalyser des revendications contestataires. Qui ne se
rapelle Tommie Smith et John Carlos levant leur poing ganté de noir
(emblème du ‘Black Power’) sur le podium du stade de Mexico lors
des jeux Olympiques de 1968 ?”.
43
.
42
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 06 de novembro de 1970, p. 11.
43
Cf. BROMBERGER, C. “De quoi parlent les sports”. In: Terrain: Cahiers du Patrimoine
Ethnologique. Paris: s.e., 1995, nº 25, p. 06.
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176
A simbologia e o vocabulário juvenil próprio podiam ser percebidos de
maneira mais enfática na esfera cultural brasileira. No Rio de Janeiro, ele era
emblemático do Teatro Jovem, inaugurado em 1966 na Praia de Botafogo, que
defendia uma nova concepção de arte cênica, voltada para festivais nos quais se
oferecia abertura para grupos não-profissionais, sem oportunidade na
dramaturgia mais convencional. O Jornal dos Sports destacava a novidade com
o anúncio do Festival do Teatro Jovem do Estado do Rio de Janeiro, a contar
com a participação de catorze companhias inscritas
44
. Jovens diretores como
Ferreira Gullar e Dias Gomes despontavam na peça conjunta Dr. Getúlio, sua
vida, sua glória, no palco Teatro João Caetano e do Teatro Opinião, com trilha
sonora dos compositores de sambas-enredo Silas de Oliveira e Valter Rosa,
espetáculo para o qual comparecia o poeta chileno Pablo Neruda, então em
visita ao Brasil
45
. Embora em São Paulo não fosse utilizada tal nomenclatura
juvenil, a emergência concomitante de uma nova voga teatral se deu com a
criação dos Teatros de Rua e dos Teatros Universitários vinculados à USP e à
PUC-SP. Este último, o TUCA (Teatro da Universidade Católica), seria palco
de uma encenação histórica no mesmo ano de 1966: a peça de João Cabral de
Melo Netto, Morte e Vida Severina, montada com um elenco amador e com os
versos do poeta pernambucano musicados por Chico Buarque
46
.
O rótulo juvenil no Rio de Janeiro serviria de abrigo ainda para uma
plêiade de grupos musicais, como a polêmica Jovem Guarda, banda que
afrontava os padrões estéticos tidos como superiores e elevados pela Música
Popular Brasileira (MPB). O sucesso da banda emergente se associava à
popularidade e à divulgação de programas televisivos de auditório,
considerados cafonas pelo público intelectualizado e de classe média, como os
conduzidos por Chacrinha, o até então radialista José Abelardo Barbosa,
cognominado o “Papa Psicodélico”
47
, o que culminava com a presença do
grupo nas telas do cinema comercial em 1967 com Roberto Carlos em ritmo de
aventura, sob direção de Roberto Farias. A proposição de uma revisão do
conceito de “gosto popular” empreendida pela Jovem Guarda inspiraria ainda
os mentores da Tropicália, Gilberto Gil e Caetano Veloso, compositores
44
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1968, p. 14.
45
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1968, p. 14.
46
Cf. NOSSO SÉCULO. op. cit., p. 138-140.
47
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 01 de julho de 1969, p. 06.
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177
baianos empenhados em experimentações musicais que mesclassem ritmos e
estilos, fossem eles nacionais ou estrangeiros, bregas ou refinados, eruditos ou
populares, com a subversão de convenções e com a recuperação de um diálogo
com a tradição e a vanguarda literária brasileira, em particular, com a
antropofagia modernista proposta por Oswald de Andrade no final dos anos
1920
48
.
A “onda jovem” não passaria despercebida também na vertente do
jornalismo. Na imprensa carioca, o editor Samuel Wainer, um oposicionista
ligado à derrotada linhagem política de Getúlio Vargas e João Goulart,
retornaria ao Brasil após quatro anos de exílio em Paris e reassumiria o jornal
Última Hora com propostas de reformulação da linguagem de seu jornal. Uma
delas consistia no lançamento de uma coluna intitulada Poder Jovem, que
ficaria a cargo do jornalista Nelson Motta
49
, e um tablóide dominical chamado
Idéia Nova, para o qual contrataria jornalistas responsáveis pelas grandes
reportagens investigativas da então combativa revista Realidade, da Editora
Abril. A irreverência tributada à juventude seria expressa nessas seções pela
concessão de espaço a uma comunicação franca, direta e coloquial, produzida
por jovens sequiosos de falar a seus pares. Superava-se neste sentido a
abordagem didática e propedêutica, com a ênfase em temas distintos daqueles
que constavam nas coleções Tesouro da juventude, Vida juvenil e Jovens de
todo o mundo.
Já o surgimento no Brasil de uma revista intitulada Pais & Filhos,
lançada no mercado pela Editora Bloch a partir de 1969, expunha casos
concretos do relacionamento entre os dois segmentos geracionais. Em um de
seus primeiros números, por exemplo, a revista publicava uma matéria onde o
historiador Sérgio Buarque de Holanda escrevia um testemunho sobre seu
novato filho que recém despontava no cenário musical brasileiro com A
banda
50
. Direcionada mais para os primeiros do que para os segundos, a revista
procurava restabelecer a ponte entre estes dois elementos da família nuclear
ocidental e podia ser um outro bom indício da crescente diferenciação interna
48
Cf. NAVES, S. C. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
49
Cf. MOTTA, N. Noites tropicais. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000, p. 166.
50
Com argúcia, Heloísa Starling comparou a obra do historiador Sérgio Buarque com a obra do
compositor Chico Buarque. Cf. STARLING, H. M. M. “Uma pátria paratodos Chico Buarque e
a imaginação social e política brasileira”. In: SENTO-SÉ, J. T.; PAIVA, V. op. cit.
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178
no seio familiar nacional, com sua respectiva apropriação mercantil pela
imprensa e pelos meios de comunicação. Mesmo em tais veículos
comunicativos, seus nomes denunciavam a associação, com a criação de
emissoras radiofônicas como a Jovem Pan, em São Paulo, voltadas para essa
faixa estrita de ouvintes.
A reestruturação do Jornal dos Sports não se mostrou infensa a essa
agitação social e a essa dinâmica comunicativa, em escala nacional e
internacional. Atento e sensível àquela conjuntura, Mário Júlio Rodrigues
procurou afinar-se ao espírito de uma época que convergia para a afirmação da
juventude como força hegemônica sob o ponto de vista cultural. Por um lado,
este reconhecimento vinha estampado em muitos de seus anúncios pedagógicos
e moralizantes, como aqueles da Fundação do Amparo ao Bem-Estar do Menor
(Funabem) – “seja amigo do seu filho”, “ame e ampare a criança”
51
– nos quais
era destacada a preocupação com a harmonia da vida da família no lar e era
frisada a importância das relações fraternais entre as gerações. Por outro, ele se
colocava também como o periódico que procurava granjear com maior
propriedade e autenticidade a índole juvenil e seu modus vivendi. Por ocasião
do lançamento de Sol – o Jornal do Poder Jovem, este diário esportivo chegava
a se colocar como o porta-voz e a autoconsciência de um fenômeno histórico
mundial singular:
“Gente jovem faz um jornal jovem. Toda força, todo poder inventivo,
todo espírito de luta da juventude está nas páginas do Sol. É uma visão
nova do mundo. É um conceito novo de jornal. Há centenas de anos
dizem que o Sol nasce para todos. Agora isso é realmente certo. Sol
nasce para todos. E Você verá que de fato há tudo de novo sob o
sol.”
52
.
*
“Em apenas um mês o SOL tornou-se o veículo do pensamento jovem
brasileiro. Afirmando com coragem, defendendo os interesses
nacionais, analisando os problemas com independência e isenção, a
jovem equipe de universitários conduzidos por experientes jornalistas
fez do SOL um novo padrão de jornalismo moderno. E agora, em
homenagem aos jovens que contribuem para levar o Brasil pra frente,
o SOL elegerá os 7 JOVENS de OURO, aqueles que mais se
destacaram nos campos: universitário, empresarial, técnico, científico,
artístico, econômico, político. SOL, uma visão jovem do mundo.”
53
.
51
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 11 de setembro e 12 de outubro de 1967.
52
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 18 de setembro de 1967, Anúncio de o SOL.
53
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1967, Suplemento SOL, p.10.
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179
*
“O poder cultural. O poder social. O poder político. Desde o fim da
última guerra o mundo passou a assistir, impotente, à rebelião da
juventude. Os elementos desencadeados pela própria guerra, os vinte
milhões de jovens sacrificados na carnificina foram suficientes para
que os jovens aspirassem, dali por diante, a hegemonia no processo do
desenvolvimento social. (...) A década de 60 se fixará na história como
os anos da revolução dos jovens.”
54
.
Depois de reconhecer que “o jovem é gregário” e que setenta por cento
de seus leitores pertenciam àquela faixa etária, em outra oportunidade, na seção
JS Escolar, o jornal voltava a dar ênfase às concepções de sua linha editorial,
na reportagem “Juventude toma o poder”:
“O Brasil é um país jovem. A frase é repetida por todos: pelo Ministro
do Exterior, pelo Presidente da República, pelo professor, pelo aluno,
pelo homem da esquina. O jovem está aqui, ali, acolá. Representa uma
parcela muito maior do que a metade da população. São 70 % dos 80
milhões de brasileiros. Apesar de representar uma força indiscutível,
na realidade estão relegados a um plano secundário.”
55
.
*
“Jornal dos Sports – O caminho do diálogo com o Poder Jovem.”
56
.
Com a evocação da obra do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, A
rebelião das massas, a mesma seção do JS Escolar exibia em sua primeira
página a reportagem “A Rebelião da Juventude”:
“Há períodos em que o mundo tende para o pensamento maduro e
outros em que prevalece a maneira jovem de encará-lo. Antigamente,
o menino era um homenzinho em miniatura. Sobretudo depois da
Segunda Guerra Mundial, houve uma decomposição do modelo
familiar e os jovens deixaram de ter o pai e a mãe como modelo.
Donde, a geração beat, os hippies e os jovens do movimento
estudantil.”
57
.
Ainda sob aquele agitado ambiente, o JS se pronunciava sem se eximir
da tomada de partido, como pode ser observado na matéria “O conflito no
Vietnam e no mundo”:
54
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de novembro de 1967, p. 5.
55
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de fevereiro de 1968, Seção JS Escolar, p. 01.
56
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1970, p. 07.
57
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1973, Seção JS Escolar, p. 01.
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180
“A poderosa classe média americana, geralmente indiferente às
manifestações políticas, sai da apatia para protestar contra a guerra
que lhe destrói os mais aptos membros. Enfrentam a polícia e o perigo
de agressão para tornar claro o repúdio à política de seu país. A
desobediência civil assume proporções assustadoras e o governo se
mune de legislação para reprimi-la. De todos os pontos do mundo,
vozes se levantam: ‘Faça o amor, não a guerra’ é o grito de protesto da
humanidade.”
58
.
Conquanto a avaliação dessa época estivesse sujeita à crítica de
sociólogos mais cáusticos – segundo Pierre Bourdieu, em sua análise
retrospectiva feita no início dos anos 80, “a juventude era apenas uma
palavra”
59
, um modismo destituído de fundamento histórico maior –, o
reconhecimento acadêmico da importância do fenômeno juvenil apareceria no
Brasil já na própria década de 1960. Ele ficaria marcado na historiografia pela
legitimidade da ascensão dos jovens ao lado de outros grupos, setores e
movimentos sociais que apresentavam demandas específicas no interior da
sociedade, sejam as mulheres, os negros, os pacifistas ou os ambientalistas. Na
senda da popularização dos estudos foucaultianos e deleuzianos dos anos 70, a
lista das minorias políticas e dos grupos excluídos se ampliaria para:
homossexuais, índios, loucos, deficientes físicos, imigrantes, entre outros. As
minorias sociais passavam a se colocar nas frinchas de um mundo então
dividido e ocupado pela onipresente Guerra Fria, reclamando autonomia e
espaço em meio à falta de alternativas, com a polarização ideológica entre o
bloco comunista e capitalista.
Em decorrência dessa visibilidade juvenil, já no ano de 1964 o tema da
participação dos jovens na sociedade começava a ser alvo de atenção em
âmbito acadêmico, com a defesa de uma tese de doutoramento em Sociologia
na USP sobre o assunto. Universidade de ponta naquele momento no que
concerne à criação dos cursos de pós-graduação no país na área de ciências
humanas e sociais, o trabalho recebia a orientação de Florestan Fernandes e
procurava seguir os padrões científicos europeus e norte-americanos de
pesquisa tidos como mais avançados. A extensa obra monográfica de Marialice
Mencarini Foracchi, Os estudantes e a transformação da sociedade
58
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de fevereiro de 1968, Seção JS Escolar, p. 01.
59
Cf. BOURDIEU, P. “A juventude é apenas uma palavra”. In: Questões de sociologia. Rio de
Janeiro: Marco Zero, 1983.
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181
brasileira
60
, abordava o papel do adolescente e do jovem à luz do
funcionalismo de Talcott Parsons, com foco em sua condição de
transitoriedade. A passagem da vinculação familiar para a entrada no mundo do
trabalho se dava, na leitura sociológica então empreendida, por meio de
categorias duais que compreendiam, de um lado, a dependência e a
emancipação familiar e, de outro, a manutenção e a transformação do status
quo.
Em fins da década de 1960, vinha a lume no Rio de Janeiro uma
coletânea de artigos internacionais com a abordagem centrada nas questões
geracionais. O lançamento de Sociologia da juventude I
61
, em pleno ano de
1968, constituía o primeiro de uma série de quatro tomos previstos para o
mesmo tópico de uma recém-inaugurada coleção da editora Jorge Zahar, com
textos básicos de Ciências Sociais aos cuidados de Moacir Palmeira e Otávio
Velho, antropólogos vinculados ao Museu Nacional, outra instituição pioneira
na implantação dos cursos de mestrado e doutorado em Antropologia Social no
Brasil.
Dividido em duas partes, uma consagrada à Europa e a outra à América
Latina, amparado nos resultados apresentados pela Primeira Conferência
Mundial sobre a Juventude, patrocinada pela Unesco em 1964, e alicerçado em
reflexões clássicas sobre o tópico empreendidas por Karl Mannheim, José
Ortega y Gasset e Jürgen Habermas, os artigos enfeixados no livro não
deixavam de discutir os dilemas contemporâneos em torno dos
condicionamentos sócio-econômicos da sociedade global e da juventude como
promessa e devir de uma sociedade utópica. A imagem da rebeldia juvenil
ainda era objeto de uma polêmica no final do livro entre dois autores
brasileiros. Otávio Ianni defendia a idéia do radicalismo dos jovens oriundos da
classe média e da burguesia como uma tomada de consciência frente à
incompatibilidade entre suas aspirações, seus projetos e seus anseios e os
entraves da estrutura social tal como colocados, enquanto Gláucio Soraes
postulava em “Ideologia e participação política estudantil” a projeção de uma
60
Cf. FORACCHI, M. Os estudantes e a transformação da sociedade brasileira. São Paulo:
Editora Nacional, 1977.
61
Cf. BRITO, S. (Org.). Sociologia da juventude I: da Europa de Marx à América Latina de
hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1968.
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182
quimera ilusionista daqueles que viam em uns poucos elementos radicais a
totalidade real dos estudantes.
Sob o ponto de vista da historiografia, em esfera internacional, seria
cabível mencionar ainda, a título de comparação e de compreensão da
emergência de uma identidade juvenil, a obra do historiador francês Philippe
Ariès e sua investigação no terreno da história das mentalidades. Ela seria
elaborada justamente entre 1960 e 1975 e elegia como eixo temático a invenção
de um “sentimento de infância” no seio da família burguesa a partir do século
XVIII. Se até o início dos tempos modernos, no século XVI, havia quase uma
indiferença por parte da aristocracia e da plebe na Europa quanto a essa faixa
etária no que se refere a cuidados específicos, com a junção indiscriminada
entre crianças e adultos no meio familiar, a ascensão da burguesia levaria ao
progressivo reconhecimento da infância como uma idade diferenciada e à parte,
passível, por exemplo, de escolarização, outro fenômeno correlato à formação
moral do universo infantil. No momento em que Philippe Ariès publicava seu
trabalho, processo análogo parecia suceder com a reivindicação da autonomia
de um “sentimento de juventude”, o que, entretanto, só mereceria atenção
historiográfica na década de 1990, com a obra coligida por um representante da
micro-história italiana, Giovanni Levi: História dos jovens
62
.
A discussão não ficaria restrita aos limites da vida intelectual e
acadêmica e alcançaria as páginas do Jornal dos Sports com livros de
jornalistas de esquerda que se engajavam na politização universitária dos
estudantes. Em julho de 1968, o anúncio do lançamento do livro do jornalista
José Arthur Poerner, Poder Jovem
63
, obra que abordava a história do
movimento estudantil no Brasil, ocupava uma página inteira do jornal e ia ao
encontro da calorosa atmosfera das passeatas no Rio de Janeiro, então em seu
clímax. Escrito por um jornalista que recém-lançara pela Editora Civilização
Brasileira seus relatos sobre o movimento anticolonial da Argélia, O caminho
da Independência
64
, na condição de enviado especial, Poerner dedicava seu
62
Cf. ARS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981. Cf.
também LEVI, G.; SCHMITT, C. História dos jovens. São Paulo: Companhia das Letras, 1996,
vol. 2.
63
Cf. POERNER, A. J. Poder Jovem. Prefácio de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
64
Cf. Id. Argélia: o caminho da Independência. Prefácio de Otto Maria Carpeaux. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
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estudo ao recenseamento de uma cronologia histórica das lutas da União
Nacional dos Estudantes, a UNE, que então completava trinta anos de
existência. Tendo sido criada como resistência à implantação de um governo
ditatorial no Brasil, o Estado Novo, a história da entidade era apresentada em
um sugestivo paralelo com a situação vivenciada naquele momento. Na seção
JS Escolar, a obra era subscrita com a resenha de Otto Maria Carpeaux e com
excertos da apresentação ao livro por parte do filólogo e diplomata Antônio
Houaiss
65
.
Aspecto despercebido a muitos estudiosos da imprensa e da história
contemporânea, em uma época bem explorada no que diz respeito aos assuntos
mais gerais da política, da economia e da cultura no período ditatorial,
eclipsado talvez por esses eventos de maior monta, a marca juvenil disseminada
por várias dimensões da vida cotidiana teve repercussões também nos esportes
e, sobretudo, em uma esfera de lazer muito importante no dia a dia nacional: o
futebol. É possível que tal desconsideração se deva à falta de prestígio dos
tablóides esportivos, tidos convencionalmente como de menor importância ou
de segunda classe. Tal recuperação segue a pista metodológica deixada pelo
historiador norte-americano Robert Darnton ao privilegiar as edições e os livros
proibidos ou os desprestigiados escritores e subliteratos iluministas do Ancien
Régime francês. Assim, sob tal inspiração, parte-se aqui do fato aparentemente
anódino e “esquecido” de que o biênio de 1967 e 1968 assistiu ao surgimento
no Rio de Janeiro de novos agrupamentos de torcedores que adotavam a
alcunha de Torcidas Jovens, coincidindo com a intensa circulação do bordão
poder jovem quer naquele diário esportivo quer na sociedade.
Tratava-se da Jovem Flu, criada por um grupo de artistas torcedores do
Fluminense, dentre os quais, o ator Hugo Carvana, o compositor Chico
Buarque e o jornalista Nelson Motta, que dizia contar àquela altura com cerca
de duzentos simpatizantes, como Ronaldo Bôscoli e Elis Regina
66
, esta última a
aparecer em foto na primeira página do jornal ao lado de Nara Leão e Wilson
Simonal, com seus palpites sobre o Fla-Flu
67
; tratava-se do Poder Jovem do
65
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 28 de julho de 1968, Seção JS Escolar, p. 06.
66
Não confundir a Jovem Flu com a atual torcida organizada do Fluminense, Young Flu, fundada
em outubro de 1970 por Paulo César Pedruco e os irmãos Cláudio e Armando Cavalcante, de que
trataremos adiante. Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 09 de abril de 1968, p. 5.
67
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de agosto de 1968, p. 01.
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Flamengo, composto por sócios dissidentes do clube e da tradicional Charanga
de Jaime de Carvalho; tratava-se do Poder Jovem do Botafogo, formado por
uma turma de amigos da rua Miguel Lemos, em Copacabana, que costumava
assistir aos jogos juntos no estádio. Já em jogos do Vasco, o Jornal dos Sports
fazia referência a uma anônima faixa com a frase: “A Torcida Psicodélica de
Niterói está sempre presente com o Vasco”, o que evidenciava a livre
circulação internacional de bordões de movimentos juvenis como a
contracultura
68
.
O entendimento do significado da presença desses grupos no futebol
requer a observação de que a imagem geral dos estádios é a de seu caráter
heterogêneo, plural e democrático. A construção do Maracanã para a Copa do
Mundo de 1950 acentuou esse viés público no Rio de Janeiro, capital da
República, com a transcendência da dimensão clubística local e com a assunção
de uma dimensão nacional, por iniciativa não apenas da prefeitura do então
Distrito Federal, mas do Estado brasileiro em sua instância federal. A partida
final daquele torneio internacional, em que compareceram mais de duzentas mil
pessoas, dez por cento da população carioca na ocasião, sublinha o sentido
simbólico de representação da população brasileira. Se, por um lado, a estrutura
elíptica e ascensional de estádios como o Maracanã simboliza o poder do
Estado e as formas de se representar tanto a integração quanto a separação das
classes sociais no Brasil, por outro não é possível dizer que haja uma recepção
inerte e passiva por parte do público espectador a essa imposição arquitetônica
sócio-espacial dos estádios.
69
.
Vista como microcosmo da sociedade, espécie de escorço da nação ou
“metáfora da dinâmica social”, como prefere o historiador Robert Levine
70
, a
praça de desportos costuma ser freqüentada por indivíduos de todas as classes
sociais, de diversas origens raciais e das mais variadas faixas etárias. Embora
uma consensual impressão atribua preponderância à presença masculina e
juvenil, reconhece-se o estádio como um lugar freqüentado igualmente por
68
A Força Jovem do Vasco seria formada em fins de 1969 e seria fundada em fevereiro de 1970,
no bairro do Méier. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de junho de 1968, p. 14.
69
Cf. MOURA, G. de A. O Rio corre para o Maracanã. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1998. Cf. também LOPES, J. S. L. “Le Maracanã, coeur du Brésil”. In: Sociétés et
représentations. Paris: s.e., 1998, n. 7.
70
Cf. FRANCO JÚNIOR, H. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 28.
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pessoas idosas, por mulheres e crianças. A hierarquia econômica que escalona
os espectadores de acordo com o preço de cada setor não impede a existência
de espaços de encontro e de congraçamento para as múltiplas procedências
sociais, as arquibancadas, que costumam servir de marca simbólica da
heterogeneidade e da popularidade das praças desportivas no Brasil, sendo uma
das diversões preferidas para o carioca e o brasileiro. Em âmbito acadêmico
antropológico, a dimensão sócio-espacial do Maracanã e sua relação com a
organização da sociedade, para além dos seus limites físicos arquitetônicos, foi
trabalhada de forma precursora por Luiz Felipe Baêta Neves Flores, com a
contraposição entre a massa componente das arquibancadas e os indivíduos
identificados nas tribunas de honra e nas cadeiras especiais.
71
.
É possível salientar como, no decorrer da segunda metade do século XX,
a freqüência, o comportamento e o perfil dos estádios foram sendo alterados de
maneira contínua e acompanharam também as transformações oriundas da
sociedade. No Rio de Janeiro, a emergência de grupos torcedores que se
autodenominavam jovens parece adequada a esta mutação. A dramatização em
âmbito nacional e internacional de uma “crise de gerações” manifestava-se não
apenas na unidade da família, da escola ou da universidade. Fenômeno menor,
em princípio sem maior relevância, que passava despercebido para muitos
investigadores, as Torcidas Jovens cariocas despontaram como um fato inédito,
como um novo núcleo de arregimentação juvenil, formado por novos atores
imbuídos do intuito de ocupar um papel distinto no universo esportivo. Em
âmbito geral, elas apareciam de maneira concomitante aos grandes
acontecimentos desencadeados pelos jovens no Brasil e no mundo; em âmbito
específico, sua postura contestadora passava por um questionamento das
Charangas e das Torcidas Organizadas que desde os anos de 1940, 1950 e 1960
já estavam estabelecidas nas arquibancadas e que já tinham seu lugar
reconhecido no cenário desportivo do Rio de Janeiro.
Esses tradicionais agrupamentos, criação dos clubes para o incentivo ao
time e para a animação da platéia nos dias de jogos, eram fomentados pelos
concursos de torcida promovidos pelo Jornal dos Sports desde a época de
Mário Filho. De forma unificada e homogênea, eles se fixaram nas
71
Cf. FLORES, L. F. B. N. op. cit.
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arquibancadas como representantes oficiais dos torcedores, sendo cada torcida
conduzida por um único líder. Os chefes de torcidas tornaram-se, no decorrer
das décadas, os principais interlocutores entre o público espectador e os demais
protagonistas do futebol, como dirigentes, repórteres e jogadores. Segundo o
entendimento de um colunista do jornal, José Castelo, a posição do chefe de
torcida deveria corresponder à de um diplomata ou à de um político, sempre
empenhado na arregimentação de torcedores indecisos
72
. A promoção da festa e
a subseqüente carnavalização das partidas, com a introdução de pequenas
orquestras musicais, somadas a faixas, bandeiras, balões, estandartes, foguetes,
confetes e serpentinas, dependia da atuação deles, em um espetáculo sonoro e
visual que atraía simpatizantes das mais diferentes origens econômicas, sociais
e geracionais.
Em 1967, Jaime de Carvalho era o torcedor mais tradicional e de maior
projeção na cidade. Ele então comemorava seu aniversário e os vinte e cinco
anos de existência da Charanga Rubro-Negra, com a realização de uma
cerimônia festiva do natalício da torcida na antiga sede do clube do Flamengo,
no Morro da Viúva. O Jubileu de Prata era concorrido e o Jornal dos Sports
fazia a cobertura do evento com as chamadas “Baile da Torcida Organizada”,
“25 anos de fidelidade” e “O mais amado” na coluna Diário do Flamengo. A
amiga Dulce Rosalina, que há onze anos liderava a Torcida Organizada do
Vasco, comparecia em nome do presidente do clube rival. Tarzã, durante dez
anos à frente da Torcida Organizada do Botafogo, também se fazia presente à
solenidade. Em felicitação à torcida co-irmã, o chefe botafoguense subia ao
palco, tecia algumas considerações sobre a extraordinária data ali celebrada e
por fim oferecia a Jaime de Carvalho uma estatueta que representava a figura
de um pescador. Em seu discurso, Tarzã justificava o troféu e explicava por que
o pescador simbolizava para ele o papel exercido por Jaime de Carvalho.
Segundo o relato do jornal:
“Tarzã compareceu à festa de Jaime de Carvalho com uma bandeira-
gigante do Botafogo e fez questão de subir ao palco da sede velha da
Praia do Flamengo para entregar ao seu compadre uma estatueta que
representava a figura de um pescador: ‘– Comparo um chefe de
torcida a um pescador, sempre pescando simpatias. Daí a idéia da
72
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 02 de junho de 1968, p. 04.
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187
estatueta – explicou Tarzã’. No palanque, Jaime de Carvalho fazia
alusão aos demais clubes representados por chefes de torcida, na
ocasião, quando lhe faltaram palavras para caracterizar o Botafogo.
Tarzã, prontamente, aduziu: ... É o mais amado... Dulce Rosalina,
dizendo representar na solenidade o Sr. João Silva, e Elias Bauman,
confirmando seu contra o continuísmo no América, além de Tarzã,
foram os chefes-de-torcida que compareceram. Jaime completou 25
anos de charanga e negou a intenção de se aposentar, ficando muito
satisfeito quando lhe desejaram mais 25 anos nas suas funções. Tem,
agora, 56 anos de idade.”
73
.
Em julho do ano seguinte, por ocasião do aniversário de setenta anos do
clube Vasco da Gama, no Cineac – sede da Federação Carioca de Futebol –, no
Centro do Rio, Dulce Rosalina voltou a fazer saudações e a entregar troféus a
Jaime de Carvalho. Este era eleito então o chefe dos chefes de torcida, o que
ratificava ainda mais a sua ascendência no conjunto das torcidas cariocas,
sendo sucessivas vezes convidado a assistir às partidas decisivas junto à
Torcida Organizada do Vasco, salvo é claro quando o Flamengo jogava
74
.
Naquela oportunidade também, Dulce prestava homenagem a outros dois dos
mais antigos líderes de torcida ainda em atividade: Paulista, do Fluminense e
Juarez, do Bangu. Neste mesmo evento ainda, os agraciados anunciavam uma
novidade, com o projeto de formação de uma inédita entidade desportiva: a
Associação de Torcedores do Futebol Carioca. Mediante sugestão de um
dirigente do América, Ícaro França, firmava-se ali um acordo para a criação da
ATFC, uma associação representativa dos interesses dos torcedores cujos
patronos seriam o presidente do Vasco, Reinaldo Reis, e o próprio Jornal dos
Sports, conforme assegurava seu diretor-secretário, o professor Ênio Sérvio
75
.
É bem provável que a anunciada fundação da ATFC, cuja existência
efetiva parece não ter se concretizado, significasse a materialização de um
esforço em prol do maior entrosamento entre as torcidas dos diferentes times do
Rio de Janeiro, na obtenção dos direitos que lhe eram comuns, fruto também
dos laços de amizade e cordialidade que os uniam. Outrossim, a legitimação de
uma nova instância de poder ocorria em momento concomitante ao
aparecimento das novas agremiações dissidentes denominadas Torcidas Jovens.
Embora não admitida nem explicitada, a intenção tácita do anúncio da ATFC
73
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 1967, p. 04.
74
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de junho de 1968, p. 04
75
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de julho de 1968, p. 12.
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188
parecia sinalizar também para a consciência da perda de hegemonia
representada pelo advento de uma ala de jovens torcedores. As torcidas oficiais
dos clubes tinham de passar a dividir espaço nas arquibancadas com outras
torcidas, fato antes inconcebível, pois até então apenas elas existiam.
Além da postulação de um perfil etário mais homogêneo, as Torcidas
Jovens se singularizavam das antigas torcidas pela incorporação de um
controvertido valor ao ato de torcer: o protesto. Se até então o incentivo parecia
constituir a essência do modo de ser do torcedor e a finalidade última destas
agremiações – a prova maior eram os exemplos de fidelidade e de lealdade do
chefe de torcida –, as Torcidas Jovens canalizavam a insatisfação dispersa entre
os torcedores nos períodos de crise de suas equipes, outorgando-se o livre
direito à pressão, ao apupo e à vaia dirigida à diretoria dos clubes, o que era
facilitado pela ausência de vínculos diretos pessoais com os dirigentes. A
justificativa maior para o surgimento delas se amparava nesse mesmo
argumento, com a reivindicação da manifestação organizada contrária ao
desempenho do clube e com a liberdade para críticas seja aos dirigentes, seja
aos jogadores, seja aos técnicos.
O princípio da adesão irrestrita ao time era posto em questão, bem como
o histórico elo entre o clube e a torcida. A dissidência se expressava de dois
modos: de um lado, pelo não reconhecimento da autoridade exclusiva dos
chefes oficiais de torcida; de outro, pela capacidade de interferir como uma
força externa, independente do clube, e pressioná-lo de fora para dentro, das
arquibancadas para o campo de jogo. Neste sentido, os meios de comunicação
configuravam igualmente um lugar privilegiado para a exposição da
insatisfação e para o exercício do novo tipo de influência participativa das
Torcidas Jovens sobre os clubes, o que parecia contar com o apoio do Jornal
dos Sports e com a linha editorial inaugurada pelo jornal que privilegiava e
alardeava entre seus leitores a importância do Poder Jovem no Brasil e no
mundo, na sociedade e no esporte.
Na conturbada conjuntura histórica do final da década de 1960, em
especial o ano de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, o Jornal
dos Sports concedia notável destaque para as maciças passeatas estudantis, com
a descrição dos enfrentamentos dos estudantes com a polícia e com o
acompanhamento das negociações entre as lideranças estudantis e os
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189
representantes do Ministério da Educação, dentre eles a audiência com o
próprio ministro Tarso Dutra, em atos coletivos no Palácio Gustavo Capanema,
que chegavam a reunir cinqüenta mil manifestantes no centro da cidade
76
.
Periódico crítico ao regime militar e favorável às reivindicações dos estudantes,
o Cor-de-Rosa
77
, como era popularmente conhecido o jornal – a adoção de uma
cor forte e aberrante como o rosa era outra flagrante estratégia jornalística de
diferenciação e de singularização com finalidades comerciais, embora fosse
tradição antiga, iniciada a 23 de março de 1936, sob inspiração do jornal
francês L’Auto
78
–, parecia mesmo colocar-se ao lado do Movimento
Estudantil.
O periódico chegava a constituir uma espécie de fórum do ME, ao pôr a
sociedade a par de suas informações mais pontuais, como reuniões, assembléias
e congressos, e ao abordar os bastidores das disputas internas entre as
lideranças cariocas da UME (União Metropolitana dos Estudantes), como
Vladimir Palmeira, Luiz Travassos, Franklin Martins, Daniel Aarão Reis,
Carlos Alberto Muniz, Jean Marc Von der Wied, entre outros. No confronto
com as forças repressivas, que havia tornado proibida a realização de passeatas
desde 26 de junho daquele ano, os estudantes podiam contar com espaços na
primeira página do jornal e com o traço sempre simpático das charges de Henfil
à sua causa. Se o motivo das manifestações consistia de início na resolução de
questões específicas, como o número crescente de excedentes nas
universidades, que derivavam dos pilares elitistas da educação, logo elas
assumiam um sentido maior de oposição ao regime discricionário e ditatorial
recém-instituído.
Ao completar três anos de existência, o JS-Escolar, criado no dia
primeiro de julho de 1967, asseverava que a linha editorial do jornal
“tencionava ficar ao lado dos estudantes em suas reivindicações justas e levar,
de maneira independente, as suas críticas às autoridades responsáveis”. Além
das matérias, o próprio periódico difundia o bordão em anúncios tais como
76
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de julho de 1968, p. 12.
77
Para uma abordagem filosófica centrada na fenomenologia das cores, e sua capacidade de
influência óptica, ver o ensaio do professor Mário Guerreiro. Cf. GUERREIRO, M. “Breve
introdução à fenomenologia das cores”. In: Revista do IFCS. Rio de Janeiro: s.e., 1981, n.º 1.
78
Esta informação foi encontrada em depoimento da jornalista Cristina Konder, que atualmente
trabalha como editora de conteúdo do mesmo jornal, a que chegou a convite de Christian Burgos e
Wellington Rocha. Cf. KONDER, C. “Um olhar feminino no JS”. In: Jornalismo Esportivo.
Rio de Janeiro: Imprensa da Cidade / Prefeitura do Rio, 2004, Série Estudos, n.º 11, p. 21.
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190
“Um jornal que freqüenta a faculdade”, onde se ressalta a afinidade com o
estudante por meio de espaço para informações sobre colégios, universidades e
cursos pré-vestibulares. Dentre as questões que caíam no vestibular, o jornal
reproduzia uma direcionada aos aspirantes ao curso de Ciências Sociais: “Por
que motivos, dentre outros, existe o conflito de gerações ?”
79
.
O apoio explícito do Jornal dos Sports aos estudantes parecia se estender
ao âmbito futebolístico, de forma mais incisiva, no respaldo às atividades de
contestação de agremiações recém-formadas de torcedores, com editoriais
intitulados “O poder da torcida”
80
, com colunas específicas chamadas “O jogo
da torcida”
81
, com fotos seguidas das legendas “Eles também jogam”
82
e com
dizeres conclusivos em sua primeira página: “... uma força indiscutível no
futebol brasileiro”
83
. A independência das Torcidas Jovens cariocas face à
direção dos seus respectivos clubes – motivação principal para o seu
surgimento – foi em alguns momentos, mais do que reportada, incitada e
propalada pelo próprio jornal. Isto ocorreu, por exemplo, no primeiro semestre
de 1968, quando o Jornal dos Sports fez ampla cobertura da oposição à
diretoria do Fluminense, capitaneada pelo movimento Jovem Flu, que ainda
não se constituía uma torcida organizada estruturada nas arquibancadas, mas
partia da mobilização de renomados torcedores que assistiam aos jogos nas
cadeiras especiais e instigavam os demais tricolores com as declarações
concedidas nos meios de comunicação.
Nos meses de março e de abril daquele ano, o Jovem Flu elegeu como
adversário e persona non grata o vice-presidente do Fluminense, Dílson
Guedes, responsável segundo os torcedores pelo pífio desempenho da equipe
no campeonato carioca. A campanha pela sua destituição do cargo levou a
várias formas de pressão para expressar o seu descontentamento e para pedir o
afastamento do dirigente, fato acompanhado com proximidade pelo jornal em
matérias sob o título de “Torcida provoca Dílson”
84
. O mais expressivo dos
atos era coro que se irradiava nas arquibancadas com o dizer “Abaixo, Dílson
Guedes!”, uma imitação do grito de guerra estudantil entoado nas passeatas
79
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 05 de julho de 1970, seção JS-Escolar, p. 01.
80
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1967, p. 03.
81
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de abril de 1968.
82
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de abril de 1967, p. 10.
83
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de abril de 1971, p. 01.
84
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de abril de 1968, p. 02.
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191
naquele mesmo período: “Abaixo a ditadura!”. O Jovem Flu valia-se ainda de
estratégias mais elaboradas, como os telefonemas anônimos ao vice-presidente
e até mesmo o cerco à casa do dirigente para os protestos, com as devidas
reportagens da imprensa.
No dia nove de abril do mesmo ano, o líder do movimento Jovem Flu
merecia uma reportagem de página inteira para explicitar as razões que
opunham os torcedores àquele membro do clube. O jornal, entretanto, ainda
dividia as atenções entre essa agitação dos torcedores do Fluminense e as
repercussões desencadeadas pelo assassinato do estudante Edson Luís no
restaurante Calabouço. Morto pela polícia que tentava impedir mais uma
passeata, esse estudante viria a se tornar um mártir da luta contra a ditadura
militar, com o comparecimento de mães e de religiosos à comovente missa de
sétimo dia na Candelária, o que não impediu ao final o prosseguimento dos
graves distúrbios e dos enfrentamentos entre os manifestantes e as forças
policiais à saída da igreja no Centro do Rio. O clima de acirramento era
reportado pelo jornal com a primeira página “Tanques ocupam cidade”
85
, com a
convocação do I Exército pelo governador do estado e com a justificativa do
fechamento do restaurante Calabouço pelo diretor do DOPS
86
.
Por outro lado, o acontecimento fatal levaria à sensibilização da
sociedade para a questão estudantil, com a adesão de expressiva fração da
opinião pública – o Jornal dos Sports colocava em sua primeira página
“Chacina enluta o Rio: vandalismo policial mata quatro e fere centenas”
87
,
alardeava em sua última página a frase com apelo sentimental “E podia ser seu
filho”
88
e divulgava em sua seção escolar “Igreja repudia a violência”
89
– e com
o já esperado apoio aos estudantes de setores como os intelectuais,
representados pelo psicanalista Hélio Pelegrino, os artistas, liderados pelo
teatrólogo Flávio Rangel, e os professores, na figura do filósofo José Américo
Pessanha. A partir de então, as reportagens tornam-se correntes e, na seção JS
Escolar, acompanham-se passo a passo os desdobramentos da contenda, com
85
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de abril de 1968, p. 01.
86
Cf. MAFRA, P. H. Uma escola contra a ditadura: a participação política do Cap-UFRJ
durante o regime militar brasileiro (1964-1968). Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em
História Social / UFRJ, 2006.
87
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 22 de junho de 1968, p. 01.
88
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de março de 1968.
89
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de abril de 1968, p. 10.
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matérias que alardeavam a invasão policial da Universidade de Brasília (UnB)
90
e com chamadas sempre retumbantes na primeira página: “Passeata e greve
contra a prisão de Vladimir”
91
. Em São Paulo, as fissuras ideológicas internas
entre os estudantes levavam a confrontos de rua e colocavam frente a frente os
alunos mais radicais à esquerda e à direita, com os primeiros aglutinados na
Faculdade de Filosofia da USP e os segundos, na Universidade Mackenzie.
Ainda assim, o jornal punha em suspeição a PM paulista e o Comando de Caça
aos Comunistas, virtuais responsáveis pela morte de estudantes progressistas
92
.
Mesmo com a diminuição do espaço do noticiário esportivo na sua capa,
a matéria intitulada “A voz da torcida” dava a palavra ao líder Hugo Carvana,
que denunciava a concepção retrógrada do, segundo ele, “ultraconservador”
Dílson Guedes na condução do futebol do clube e exige a sua imediata saída. O
presidente do Fluminense, Luiz Murgel, movimenta-se em defesa de seu aliado
e passa a acusar a nova torcida de tentativa de autopromoção às custas do
futebol. Com toques de emoção à disputa acompanhada dia a dia, a cobertura
jornalística continua favorável à posição dos torcedores, com uma implacável
campanha pela deposição do vice-presidente. Dois dias depois, a 11 de abril, o
Jornal dos Sports estampa em letras garrafais na manchete de sua primeira
página o aparente êxito dos torcedores: “Caiu Dílson Guedes”. Passados mais
três dias, durante uma partida disputada no Maracanã, o jornal cobriria mais
protestos com o enterro simbólico do presidente do clube feito por aqueles
torcedores.
Apesar do grande destaque dado pelo Jornal dos Sports ao Jovem Flu, é
válida a observação de que aquela torcida não era unânime entre os
colaboradores do periódico e no próprio meio esportivo e suscitava um amplo
debate em torno do direito à crítica
93
. Se a charge de Henfil acentuava os
“Torcedores contra a direção Fluminense!”
94
, Nelson Rodrigues, um tricolor
contumaz, autor de antológicas crônicas sobre a figura do torcedor em O Globo
e no jornal que agora pertencia a seu sobrinho, colocava-se contra o
movimento. Isto era compreensível, uma vez que dentre as suas publicações
90
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de setembro de 1968, Seção JS Escolar, p. 01.
91
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de agosto de 1968, Seção JS Escolar, p. 01.
92
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de outubro de 1968, p. 11.
93
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 12 de abril de 1968, p. 12.
94
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de março de 1968, p. 04.
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diárias destacavam-se as crônicas intituladas “A doce torcida”, “Tempestade de
bandeiras tricolores”, “O momento supremo da torcida”, “A caravana do
grande amor”
95
e “A renda mais lírica”. Nelas o cronista exaltava os aspectos
relativos à fidelidade, à abnegação irrestrita à equipe e à necessidade de
acompanhar o time seja a Conselheiro Galvão, no campo do Madureira, seja
aos caminhos ainda mais ínvios dos estádios do subúrbio carioca, como prova
dos valores que deveriam nortear o genuíno torcedor de futebol.
Dramaturgo conhecido no período por prodigalizar sentenças exortativas
– “torcida é delírio!”
96
– e por carnavalizar rabelasianamente a linguagem “a
multidão foi inventada pelo Fla-Flu”
97
mas também por suas flagrantes
posições ideológicas à direita, com a notória antipatia pelas rebeliões
estudantis
98
, Nelson Rodrigues não via de maneira positiva as atitudes da
Jovem Flu. O escritor caracterizava-a como uma torcida sempre “descontente,
amarga e furiosa”
99
, um caso excepcional, à parte do mundo do futebol, dando
azo para meditações sobre o caráter do torcedor que, em última instância, era
uma metonímia do comportamento típico do povo, capaz de oscilar
pendularmente de um extremo a outro: “Amigos, conforme os seus estímulos
emocionais, o brasileiro passa da euforia mais delirante para a depressão mais
profunda”
100
.
Para Nelson, tal transtorno psíquico era sintoma de um diagnóstico por
ele já traçado sobre o homem comum brasileiro, expresso na forma de uma
máxima cunhada em 1958, numa crônica para a revista Manchete Esportiva: o
“complexo de vira-latas”
101
. Se o cronista do JS e dirigente esportivo, João
Lyra Filho, já havia respaldado complexos semelhantes, ao atribuir aos
jogadores fraquezas de fundo psicológico nos momentos de decisão, como
afiançara em seu relatório sobre a derrota nacional na Copa do Mundo de 1954,
quando chefiou a delegação brasileira, esta condição instável, é possível
estender, atingia em cheio a caracterização do torcedor. As imprecações de
95
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1968, p. 04.
96
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de abril de 1968, p. 04.
97
Cf. RODRIGUES, N. “O ódio ao fato e à palavra”. In: O óbvio ululante: primeiras confissões.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 172.
98
Cf. Id. “Jovens imbecilizados pelos velhos”. In: op. cit.
99
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de abril de 1968, p. 04.
100
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de maio de 1973, p. 03.
101
Cf. RODRIGUES, N. “Complexo de vira-latas”. In: À sombra das chuteiras imortais:
crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Nelson contra o movimento Jovem Flu tinham como fundamento ainda a sua
assumida visão reacionária da sociedade, o que deixava ser entrevisto no tom
coloquial de suas crônicas esportivas antijuvenis: “Se me perguntassem qual a
mais feia impostura da nossa época, eu daria a seguinte e fulminante resposta: –
é a cínica promoção que se faz do jovem.”
102
.
Essa percepção era compartilhada por outros segmentos do futebol
retratados pelo jornal, como o técnico do Botafogo, Zagalo, para quem a função
da torcida era o incentivo e não as vaias, pois estas só aumentavam as
dificuldades no rendimento dos jogadores na partida
103
. A extensão da
polêmica fomentada pelo periódico podia ser aquilata em matérias específicas
para a polêmica em torno do apupo e do aplauso, com as impressões do técnico
do Fluminense, Telê Santana, e do principal chefe da torcida tricolor,
Paulista
104
. Em alusão ao “comportamento técnico, tático e emocional da
torcida”
105
, o exemplo nelsonrodrigueano invocava a cumplicidade entre o
torcedor e o jogador, com a atitude do primeiro refletindo-se na atuação do
segundo: “A torcida estava lá, firme, inarredável; e o jogador, reconhecendo a
sua dedicação inédita, está sempre disposto a dar uma alegria a essa gente
formidável”
106
. Depois de louvar a dignidade e a nobreza do choro de Paulista e
de Bolinha, tradicionais torcedores do Fluminense desde a década de 1930, o
escritor cunha o lema lapidar que deveria orientar o espírito de uma torcida: “ao
invés da ira, a apoteose”
107
. De todo modo, Nelson Rodrigues fazia
ponderações acerca das transformações estruturais do futebol, nos quais
reconhecia os recursos disponíveis à manifestação do torcedor:
“Amigos, o ‘Mário Filho’ veio acabar com um dos usos mais
consagrados do futebol antigo: – a invasão de campo. (...) Em nossos
dias o torcedor só tem uma arma, que é a vaia ou o aplauso.”
108
.
102
Cf. RODRIGUES, N. “Ama-se, trai-se, mata-se ‘Pra frente’”. In: op. cit., p.111.
103
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 05 de abril de 1968, p. 02.
104
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de abril de 1968, p. 05.
105
Cf. RODRIGUES, N. “O momento supremo da torcida”. In: Jornal dos Sports. Rio de
Janeiro, 10 de abril de 1967, p. 04.
106
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de abril de 1968, p. 04.
107
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de abril de 1968, p. 04.
108
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de janeiro de 1974, p. 02
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195
A crise da equipe do Flamengo no segundo semestre do ano de 1968
também seria responsável pelo desencadeamento de um acerbo confronto entre
a presidência do clube e um movimento de jovens torcedores nascido nas
arquibancadas do Maracanã. É necessário destacar de que maneira neste caso
também o Jornal dos Sports assumiria papel decisivo na deflagração do
incidente. Durante uma semana inteira no mês de setembro, o jornalista Marco
Aurélio Guimarães assinou um conjunto de sete reportagens exclusivas e
especiais, de página inteira, muito chamativas, intituladas “Os Coveiros do
Fla”. Nelas o jornalista focalizava os problemas concernentes à corrupção, à
inépcia administrativa e às deficiências estruturais que atravessava o clube
naquela suspeita gestão. Poucos dias depois, após sucessivos malogros da
equipe do Flamengo, o Jornal dos Sports voltava a abordar, com crasso teor
sensacionalista, as debilidades do time e a impaciência dos torcedores perante
seus cartolas. Desta feita, abria-se espaço à cobertura da revolta da Torcida
Jovem contra o presidente Veiga Brito, ex-deputado da Guanabara pela UDN
(União Democrática Nacional), às voltas com o processo de sua reeleição no
clube
109
.
As fotos e as manchetes do periódico davam um verniz ainda mais
dramático às contestações dos torcedores. Após um empate com o Bangu no
Maracanã, a revolta da torcida do Flamengo fazia o colunista Luiz Bayer
classificar os protestos como “sem precedentes”
110
na história do clube. A
reprodução dos títulos do jornal possibilita uma compreensão do teor das
matérias: “Torcida está contra tudo”
111
; “Rebelião na torcida do Mengo”,
“Torcida repudia Veiga”, “A maior crise da história do Flamengo”
112
.
Publicavam-se as cartas de apoio à matéria de Marco Aurélio: “Queremos as
cabeças”, “Ninguém é trouxa”. Transcreviam-se as palavras-de-ordem entoadas
no estádio, a primeira delas parodiando uma vinheta das transmissões
esportivas de rádio, com a justaposição de termos empregados no próprio jornal
(“coveiros”) para designar os cartolas do clube: “Ôlêê, ôláá / abaixo os coveiros
/ cadê nosso dinheiro ?”; “A torcida organizada / Derruba a cachorrada!”. Já o
109
Cf. MOTTA, M. da S. Saudades da Guanabara: o campo político da cidade do Rio de
Janeiro (1960-1975). Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000.
110
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1968, p. 04.
111
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de outubro de 1968, p. 04.
112
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1969, p. 10.
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segundo slogan era descrito pelo jornal como “um brado de guerra, com raízes
nas passeatas estudantis”
113
, em paródia a uma variação de dois lemas que
circulavam na época entre tendências esquerdistas e organizações clandestinas:
“O povo organizado / derruba a ditadura!”; “O povo armado / derruba a
ditadura!”
114
.
Emulados pelo jornal, os torcedores buscavam de diversas formas
expressar sua contrariedade com a situação crítica do time e com a obscura
administração do clube. Além dos cânticos, a reportagem jornalística mostrava
as formas espontâneas de demonstração da insatisfação da torcida frente à
presidência do clube. Elas iam de práticas violentas e contundentes, como o
apedrejamento de carros na garagem do estádio e o cerco à saída do presidente,
com ameaças a sua integridade física, até práticas mais pacíficas e ritualizadas,
como o enterro simbólico da maior figura de poder do clube, em caixões
mortuários que também eram comuns nas passeatas dos estudantes. Enquanto
Jaime de Carvalho não admitia os palavrões na torcida em função das mulheres
e das crianças pertencentes à Charanga, limitando-se a levar faixas de incentivo
aos jogadores como “Avante, César”
115
, os jovens torcedores dissidentes
percorriam todo o anel das arquibancadas com um improvisado esquife – como
também já havia feito a Jovem Flu no primeiro semestre daquele ano –, fato
que chamava grande atenção e que despertava a curiosidade de muitos
espectadores.
Outro dado crucial nesse contraste de atitudes era a explicitação de uma
espécie de “crise de representação” no interior da torcida rubro-negra, como
deixavam claros os extensos relatos do JS sobre os jogos:
“A torcida do Flamengo que habitualmente se posta atrás do gol
rebelou-se contra a má atuação do time e, na metade do segundo
tempo, formalizou o seu protesto: rumou, espontaneamente, até o local
onde se aglutina a torcida organizada do clube, sob o comando de
Jaime de Carvalho – lado esquerdo das tribunas – e passou a vaiar
com mais insistência o time. Jaime lançou o seu protesto de imediato,
pedindo que os torcedores da ala jovem fossem realizar manifestações
113
Na legenda da foto na primeira página: “Torcida do Flamengo gritou como os estudantes em
suas passeatas”. Cf. ibid, p. 01.
114
Cf. REIS FILHO, D. A.; FERREIRA DE SÁ, J. Imagens da revolução. Rio de Janeiro:
Marco Zero, 1985. Cf. também GARCIA, M. A.; VIEIRA, M. A. Rebeldes e contestadores:
1968 – Brasil / França / Alemanha. São Paulo: Perseu Abramo, 1999.
115
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 12 de abril de 1968, p. 03.
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197
em outro local e até um contingente da PM foi chamado para retirar
dali os que insistiam em abaixar suas bandeiras sobre o gradeado, a
meio pau, sinal de luto. Pacificamente os torcedores atenderam às
ordens do comando policial: deram a volta na arquibancada, exibindo
suas bandeiras e foram para a parte fronteira das cabines de rádio: ali,
sem que ninguém os molestasse, bem longe da torcida oficial, eles
continuaram vaiando e abaixaram as bandeiras sobre o gradeado.”
116
*
“Indignação”: “Gilberto, José Barbosa e Reginaldo lideram um grupo
dissidente. Não aderem à política de Jaime de Carvalho e exatamente
por isto colocam-se, em dias de jogos do Flamengo, atrás do gol à
esquerda da Tribuna de Honra do Estádio Mário Filho. – O Jaime de
Carvalho acha que nós fazemos muito barulho e por isto procuramos
um lugar distante de onde ele fica. Vocês já imaginaram uma torcida
sem fazer barulho ? Não existe. Gritar e cantar quando o time está na
frente do placar não é vantagem. Queremos ver fazer isto quando o
Mengo estiver perdendo. Aí é que é importante, pois o incentivo é a
única arma de que dispomos. (...) Todos a uma voz pediram que a
torcida dissidente, aquela que pretende um Flamengo novo, sem a
direção dos dirigentes atuais, fique atrás do gol à esquerda da tribuna
do estádio. – Vamos continuar a fazer barulho pelo bem do Flamengo.
Para podermos sobreviver, pois o Flamengo é vida. Faz parte de nossa
vida. É nossa segunda família.”
117
*
“Enterro corre a arquibancada”: “Outro fenômeno foi visto ontem no
Estádio: grande parte de torcedores que formam a torcida organizada
do clube, sob o comando do chefe, oficial, Jaime de Carvalho, aderiu
ao movimento de revolta da ala jovem da torcida chefiada por
Armando Márcio Zucarelli, Gilber, Viana e outros. À medida que o
time ia perdendo, jogando mal, os torcedores que ficam à esquerda das
tribunas iam-se juntando à torcida que fica atrás do gol.”
118
Os protestos protagonizados pelos jovens torcedores e seus embrionários
agrupamentos contra o presidente do clube, Veiga Brito, e contra seu vice-
presidente de futebol, o dirigente de origem sueca Gunnar Goransson,
proprietário da Facit, uma empresa multinacional de máquinas calculadoras
instalada no Brasil, à frente do cargo desde o início da década de 1960, durante
as duas gestões de Fadel Fadel (1961-1965), não ficariam restritos aos dias de
jogos e à geografia interna dos estádios. O descontentamento da nova torcida
tinha desdobramento nos dias seguintes, pois ele estava relacionado em grande
parte à veemência da abordagem do Jornal dos Sports na descrição da situação
do clube. Era possível entrever um vínculo direto entre o jornalismo esportivo,
116
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1968, p. 16.
117
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de outubro de 1968, p. 2.
118
Cf. ibid. Rio de Janeiro 07 de outubro de 1968, p. 03.
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198
que equiparava vários dirigentes cariocas à figura de ditadores
119
, e o caráter
oposicionista destes grupos. Ele podia ser percebido através de uma
reciprocidade de códigos, que atendiam aos interesses de ambos. De modo que,
após a série impactante de matérias sobre a decadência da administração do
Flamengo e o ensaio de revolta iniciado pela torcida no Maracanã, outras
formas de manifestação irromperiam nas semanas posteriores.
A oposição às diretrizes clubísticas ganhava agora o âmbito público das
ruas, sob a forma de semi-improvisadas passeatas, que se inspiravam nas
agitações protagonizadas naquele mesmo momento pelos estudantes no centro
da cidade. Um cortejo fúnebre, a velar de maneira simbólica a morte do
presidente rubro-negro Veiga Brito, cumpria um itinerário tão inusitado quanto
revelador: à saída do Maracanã, ao fim de mais um jogo perdido, a marcha ia a
cada uma das redações dos mais representativos periódicos e das mais
conhecidas emissoras de televisão da cidade. E, ao final, chegava à porta do
prédio em que ficava o Jornal dos Sports, na rua Tenente Possolo, local de
tradicional reunião dos torcedores e dos estudantes, onde costumava ocorrer a
divulgação dos resultados do vestibular.
Em meio ao refrão uníssono – “Jornal dos Sports / De grande expressão /
Jorge Veiga Brito / Depressa no caixão!” –, os líderes daquela vanguarda
torcedora foram convidados a subir à sede do jornal, sendo recepcionados por
sua direção, a fim de explicar as razões que motivavam o protesto. Já as
palavras de ordem mais ofensivas e de baixo-calão, dirigidas ao assessor de
futebol de Veiga Brito, Gunnar Goranson, não eram publicadas pelo periódico,
embora depois fossem glosadas e eufemizadas de maneira humorística nas
charges de Henfil: “Reco-reco-reco, pau na cacunda do sueco”
120
. Segundo o
dizer do próprio jornal, que estampava fotos da passeata e do encontro, a jovem
torcida rubro-negra fazia da visita uma maneira de congratulação ao JS e, com
destaque, ao seu repórter Marco Aurélio Guimarães, responsável pelo conjunto
de matérias que tanto concitou os jovens àquela espontânea sublevação contra
os dirigentes do clube:
119
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de outubro de 1968, p. 04.
120
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de maio de 1969, p. 03.
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199
“Gente que compõe a Torcida Jovem do Flamengo, aquela que
discorda de tudo que é feito no clube pelos Srs. Veiga Brito e Gunnar
Goransson, esteve no JS para cumprimentar o repórter Marco Aurélio
pela ‘brilhante série de reportagens que fez sobre os Coveiros do Fla’.
José Barbosa Viana, Reginaldo Mota e Gilberto Resende Correia, os
mais velhos e líderes de um grupo muito grande, fizeram questão de
esclarecer que, embora sócios do clube, ‘não mais irão enquanto o
Flamengo não lhes der as mesmas glórias de tempos passados. E
foram mais além: – Nós queremos a grandeza do Flamengo e não nos
importam quem são os homens que o dirigem. Do jeito que as coisas
estão, é difícil acreditar que o Gunnar e o Veiga Brito possam levantar
a moral do time. Vamos sofrer muito ainda mas o nosso dia chegará.
Essa diretoria é péssima e só pudemos aquilatar os erros cometidos
depois da série de reportagens Os Coveiros do Fla.”
121
.
A clara filiação entre a direção do jornal e as lideranças jovens não
impedia que se desse direito de defesa ao presidente do clube. Embora as
matérias sobre Veiga Brito não raro viessem eivadas de ironia, como as que
aludiam ao “Novo Pacto de Lisboa”, por ocasião do encontro do presidente
com um antigo desafeto e oposicionista do presidente do clube, onde
articulações internas tentavam amainar a onda de revoltas, o jornal procurava
ouvir as escusas do contestado dirigente. A alusão ao “Novo Pacto de Lisboa”
era uma referência ao restaurante em que ocorreu o encontro entre Veiga Brito
e Antônio Moreira Leite, candidato que havia desistido da concorrência à
presidência do Flamengo. O nome do restaurante era homônimo ao da capital
portuguesa, o que remetia à imagem do clube rival, o Vasco. Donde, a ironia
jornalística e a menção ao estranho e suspeito lugar escolhido para o “pacto”
122
.
Interpelado sobre a pressão da torcida, Veiga Brito menosprezava seus
detratores, apontava a sua imaturidade e relegava-os a uma condição menor,
infantilizada:
“ – Não é bem a torcida que faz pressão. São uns garotos que não
fazem mal a ninguém. No fundo, no fundo, o que eles querem mais
tarde é apertar a minha mão, me cumprimentar e depois dizer em casa:
‘Mamãe, apertei a mão do Deputado Veiga Brito! Saí tranqüilamente
do estádio domingo. Achei até graça dizer que o sr. Otávio Pinto
Guimarães me protegeu. Será que ele, com aquele físico, protege
alguém ?”
123
121
Cf. ibid, Rio de Janeiro, 02 de outubro de 1968, p. 02.
122
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1968, p. 09.
123
Cf. ibid. Rio de Janeiro 09 de outubro de 1968, p. 09.
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200
Dois dias depois dessa declaração ao jornalista Max Morier, no qual se
aludia a Otávio Pinto Guimarães, então presidente da Federação Carioca de
Futebol (FCF), que seria reeleito por cinco vezes sucessivas na entidade até
chegar em 1985 à presidência da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o
periódico assegurava em sua primeira página: “Veiga Brito amansou o
Dragão”. Esta era uma alusão ao movimento oposicionista interno do
Flamengo, conhecido nos anos de 1940 e 1950 como Dragão Negro, do qual
participaram Ary Barroso, José Lins do Rego e Gilberto Cardoso, e que agora
tentava uma nova rearticulação com base em remanescentes do grupo,
representados pelo candidato à presidência Antônio Moreira Leite. Malgrado as
negociações, no dia seguinte a surpreendente manchete do Jornal dos Sports
anunciava: “Torcida Jovem enterra Veiga Brito antes do Fla-Flu”
124
. A matéria
correspondente com os líderes da torcida no interior do periódico focalizava
seus objetivos: 1) “aniquilar a atual direção do clube”; 2) “vender plásticos para
comprar bateria, faixas e serpentinas”; 3) “apoiar a candidatura de Moreira
Leite à presidência do Flamengo”.
Como dissidentes da Charanga do Flamengo, eles enumeravam os
principais itens que constituíam o pomo da discórdia: 1) “Jaime não assiste
mais aos jogos”; 2) “não os deixa tocar bateria para incentivar os jogadores”; 3)
“faz do cargo um comércio”
125
. A despeito do alardeado enterro simbólico do
presidente, este consegue reunir-se antes com as lideranças da Torcida Jovem,
assim como o fizera com os representantes do Dragão Negro, e impede a
realização do ato. Transcorridos mais três dias da chamativa manchete, o jornal
se refere à “cooptação” lograda por Veiga Brito, que dissuade os líderes da
revolta, Márcio Zucarelli, Tadeu Mussi, Antônio de Carvalho e Cláudio
Mendonça, um grupo de jovens rapazes, todos moradores da Rua Mariz e
Barros, no bairro da Tijuca, nas adjacências do Maracanã, com o convite para o
comparecimento a um programa esportivo da TV Globo, emissora que, àquela
altura, já despontava com os maiores índices de audiência televisiva. A
concórdia alcançada entre o presidente e os grupos opositores irritaria um
cronista do periódico: “É um dragão de calças ajustadas, cabelos compridos e
124
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1968, p. 01.
125
Cf. ibid, p. 12.
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201
camisa psicodélica, que sabe dançar iê-iê-iê e tocar guitarra, mas não sabe
brigar”
126
.
Apaziguados momentaneamente os ânimos insurretos, é possível dizer
que de um modo geral a atuação das Torcidas Jovens não se restringia a um
exclusivo caráter de oposição e podia compreender também o apoio usual aos
jogadores, à equipe e aos dirigentes feito pelas torcidas oficiais. A Jovem Flu,
por exemplo, participava da recepção no aeroporto Santos Dumont ao atleta
contratado pelo Fluminense, Suingue. A notícia veiculada no jornal aparecia
com a foto de Hugo Carvana e Chico Buarque, responsáveis pela mobilização
de um grande número de torcedores que ovacionavam de maneira calorosa o
novo ídolo, contratado, como gostavam de frisar, por “imposição da torcida”
127
.
O incentivo ao clube também era uma marca do surgimento do Poder Jovem do
Botafogo, favorecido pela boa fase do clube alvinegro, então bicampeão
carioca (1967/1968), que referenciava no Maracanã seu ídolos e o próprio time
em faixas como: “Gérson, o Rei moderno” e “Avante Botafogo, o Poder Jovem
está contigo!”. A concorrência que se estabelecia entre os grupos juvenis pode
ser percebida em uma pequena nota do jornal, intitulada “Faixas no estádio”:
“O grande número de faixas que apareceram domingo no Estádio
Mário Filho serviu de muitos comentários. A torcida do Botafogo,
principalmente, estava eufórica: seu clube, de fato, venceu a guerra
das faixas, das quais duas mereceram destaque especial. A que
chamava Gérson de o Rei moderno e a que se referia ao Poder Jovem.
Quem não gostou desta última foi o Fluminense, pois, segundo seus
torcedores, a juventude é mesmo pó-de-arroz.”
128
.
No Flamengo, em paralelo aos protestos, as manifestações coletivas
também podiam assumir um viés positivo, como vem descrito em “Passeata
convoca torcida”:
“Um grupo de torcedores da ala jovem do Dragão Negro realizou
ontem à tarde uma passeata pelas ruas da Zona Sul, convocando o
povo e a torcida a incentivar o Flamengo na partida contra o Botafogo.
Os torcedores mirins, quase todos com bandeiras e camisa do
126
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1968, p. 06. Cf. também ibid. Rio de Janeiro, 14 de
outubro de 1968, p. 01.
127
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 13 e 16 de julho de 1968, p. 01.
128
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de julho de 1968, p. 04.
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202
Flamengo, paravam em cada bar de Ipanema ou Copacabana para os
apelos.”
129
.
O alongamento na descrição dos fatos acima registrados por um jornal no
turbulento segundo semestre do ano de 1968 se faz necessário na medida em
que ele dá cores mais vivas e proporciona a percepção da introdução de novos
elementos à vivência do futebol profissional no Rio de Janeiro. Ainda que
efêmeros, influenciados pelas circunstâncias históricas de contestação juvenil,
estes acontecimentos estimulavam o aparecimento de um novo tipo de torcedor,
que passa a se expressar coletivamente e que não se satisfazia mais com uma
situação de passividade nem tampouco se contentava com a caracterização
tradicional de “décimo segundo jogador”. Tal tipificação era respaldada pelos
clubes e pela própria equipe do Flamengo chegava a entrar em campo com uma
faixa de dez metros de comprimento com o dizer: “Nós somos onze mais
um”.
130
Os episódios até aqui descritos ilustravam um processo de formação de
um peculiar perfil que despontava nas arquibancadas. Eles mostravam de que
maneira articulava-se no espaço destinado à assistência uma espécie de
vanguarda esportiva, encabeçada por jovens que se sentiam capazes de assumir
também um papel ativo (ou reativo) e um engajamento, ainda que
circunstancial ou episódico, no futebol.
A importância de atribuição a esses grupos de um caráter de vanguarda
juvenil deve-se à atmosfera de proximidade evocada por seus métodos de ação
e de mobilização em relação a outros movimentos civis da sociedade. A
passeata, a reivindicação de direitos ou a desconfiança perante as autoridades
instituídas pareciam ser pontos de espelhamento entre os jovens torcedores e os
jovens estudantes, conquanto não seja possível aferir em que proporção
houvesse uma intercessão concreta entre ambos. Mesmo que não se verificasse
um vínculo direto entre os protagonistas e que se tratasse de fenômenos
paralelos, cuja comparação pudesse ficar apenas no nível da analogia, a
semelhança dos meios de expressão tornava possível a sugestão da sintonia e
do compartilhamento de uma mesma ambiência de revolta.
129
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de setembro de 1968, p. 07.
130
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1968, p. 03.
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203
É possível asseverar também que o futebol e as passeatas estudantis
daquele período constituíam os dois maiores eventos de massa da cidade do Rio
de Janeiro. O jornal reportava as confusões para a venda antecipada de
ingressos dos jogos, ocorridas nas bilheterias do Teatro Municipal, na
Cinelândia, com o tumulto decorrente das filas quilométricas que serpenteavam
o centro da cidade durante a semana, como mostravam as fotos panorâmicas do
jornal. O estádio do Maracanã chegava a comportar nas partidas decisivas mais
de cento e cinqüenta mil torcedores, enquanto as passeatas de estudantes
aglomeravam no Centro do Rio até – conforme ficou conhecida de modo
lendário uma de suas maiores – Cem Mil pessoas.
Havia também uma novidade comunicativa no segundo lustro da década
de 1960 que podia servir de referência e parâmetro às formas de atuação juvenil
nos estádios de futebol. Desde 1965, ele podia ser identificado na voga dos
concursos musicais televisados, os Festivais da Canção, realizados anualmente
e promovidos pelas cada vez mais influentes redes de televisão, como as TVs
Excelsior, Record, Tupi e Globo. Sob o patrocínio destas emissoras, que se
assumiam como um pólo cada vez mais determinante e unificador da vida
cultural brasileira, estes festivais revelavam jovens valores da música e os
projetavam por todo o cenário nacional. Tendo como sede teatros universitários
– o auditório do TUCA em São Paulo – e mesmo ginásios desportivos – o
Maracanãzinho no Rio de Janeiro –, as disputas eram tão concorridas que os
dias finais atingiam a superlotação de mais de vinte mil espectadores. Um dos
aspectos que saltava à vista como novidade nestes concursos era a capacidade
de intervenção e de participação da audiência sobre o processo decisório,
mediante uma estrutura dicotômica haurida das platéias esportivas:
aplauso/vaia.
Reagindo coletivamente ora com saudações efusivas àqueles que os
agradavam, ora com manifestações hostis àqueles que os entediavam, os jovens
freqüentadores dos festivais acabavam por interferir no resultado das
apresentações, dividindo-se como verdadeiras torcidas e tornando-se uma
atração à parte. Ao contrário da tradicional contenção das emoções requeridas
nos concertos musicais, a reprovação e a intolerância do público eram
expressas de maneira veemente, à maneira dos torcedores nos estádios, por
meio de xingamentos e de arremessos de objetos nos concorrentes, chegando a
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inviabilizar as apresentações, o que sucedeu com Caetano Veloso e Gilberto Gil
nas semifinais do III FIC de setembro de 1968. No mesmo ano, integrantes da
própria torcida Jovem Flu se faziam presentes durante as finais da Bienal do
Samba, a apoiar a música de Chico Buarque Bom tempo, cujo refrão em ritmo
de maxixe, “Satisfeito, / alegria batendo no peito, / o radinho contando direito /
a vitória do meu tricolor...” celebrava a predileção do compositor pelo seu
clube.
Por seu turno, à saída de um jogo, integrantes da Torcida Jovem do
Flamengo se dirigiam ao Maracanãzinho a fim de transmitir seu incentivo ao
cantor antilhano Francês Antoine que, segundo noticiava em primeira página o
Jornal dos Sports, prometia exaltar o clube rubro-negro em sua apresentação no
Festival Internacional da Canção realizado em outubro de 1968
131
. Ao mesmo
tempo, a introdução do tema do futebol no festival despertava a ira da esquerda
nacionalista musical pró-Geraldo Vandré, que considerava a canção de Chico
Buarque alienada e irresponsável, levando outro compositor, Sérgio Ricardo, a
quebrar seu violão em pleno palco do Teatro Paramount, em São Paulo, irritado
e contrariado por não conseguir interpretar uma música com tema futebolístico,
um samba-choro que tomara por inspiração a vida de Garrincha: Beto Bom de
Bola
132
.
A estrutura competitiva dos festivais, e sua subjacente polarização
ideológica com a divisão entre os defensores do nacionalismo e os do
internacionalismo na música brasileira, entre os adeptos da canção de protesto e
os do hedonismo musical, entre os politizados e os desvairados, entre outros
jargões clássicos do período, suscitava a existência de uma relação tensa entre o
palco e a platéia, entre o público e o proscênio. A cizânia levaria em 1967
inclusive à formação de uma Frente Única pela Música Popular Brasileira
(MPB) nome inspirado no acordo entre Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek
e João Goulart no ano anterior para unir forças contra o regime ditatorial
resultando em uma inusitada passeata contra as guitarras elétricas, símbolo
mais candente para muitos da invasão musical estrangeira.
Assim, a participação da audiência nos festivais, em sua extrema maioria
formada por jovens, era um ingrediente que fugia ao controle de seus
131
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 03 de outubro de 1968, p. 01.
132
Cf. MOTTA, N. op. cit., p. 178.
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organizadores e tornava-se ela própria um mecanismo inovador de atração do
evento, àquela altura já uma frenética e contagiante moda televisiva. O
compartilhamento de valores e papéis sociais era mais uma vez desafiado por
aqueles que em princípio ocupavam uma posição coadjuvante na composição
do espetáculo. Neste sentido, parece plausível uma outra aproximação entre o
comportamento verificado nestes festivais e aquele que ocorria nos estádios de
futebol na conjuntura de fins da década de 1960. Era possível a afirmação de
que ambos ao menos tangenciavam uma mesma discussão teórica que
perpassava o âmbito da renovação da moral e dos costumes. Segundo o
jornalista e memorialista Zuza Homem de Mello:
“Os festivais juntaram públicos diferentes, cada um com suas
preferências específicas. Daí nasceram as torcidas, que, se antes
limitavam-se a aplaudir suas canções prediletas, passaram a prejudicar
as ‘inimigas’, como uma torcida de futebol. Daí as vaias, os protestos
e pertubações que ficaram tão nítidas no ano de 1967. A platéia dos
festivais, formada em sua maioria pela juventude estudantil, estava
sintonizada com aquele movimento musical que falava da realidade
social brasileira. Tão sintonizada que, ao menor sinal, era capaz de
decodificar, nas letras e nas músicas, aquela realidade de insatisfação
com a ditadura militar e com a impossibilidade de expressar suas
idéias.”
133
A estrutura binária ator-espectador intermediada ainda por um terceiro
elemento, o júri, e a pressão que inelutavelmente sofria da ambiência ruidosa
das torcidas, equivalente à posição do juiz em campo estava sendo
interrogada não somente na esfera dos festivais de música e nos campeonatos
de futebol. A inversão de posição entre estes dois elos, cruciais na consolidação
da sociedade do espetáculo, articulada pelos mass media, possuía defensores
também no campo conceitual e prático das artes. Cada vez mais o teatro de
vanguarda internacional e as artes plásticas requeriam a participação do
espectador ou do transeunte na rua – as peças e as exposições saiam dos
recintos fechados das salas teatrais e das galerias – como procedia a polêmica
133
Cf. Sob o ponto de vista de riqueza de detalhes e informações, a obra mais completa em
período recente parece ser esta de Zuza Homem de Mello. MELLO, Z. H de. A era dos festivais:
uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 221 e 222. Cf. também NAPOLITANO, M. “Os
festivais da canção como eventos de oposição ao regime militar brasileiro (1966-1968)”. In: REIS,
D. A.; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, R. P. S. (Orgs.). O golpe e a ditadura militar quarenta
anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004.
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206
companhia britânica do Living Theatre
134
, que chegava a propor um antiteatro.
No Brasil, o método de interpelação agressiva e anárquica proposto por José
Celso Martinez Correia baseava-se na radicalização deste postulado. Mais do
que a inversão, seu projeto ambicionava a quase supressão da distinção
conceitual entre a figura do ator e a figura do espectador na cena dramática. A
polêmica em torno da encenação de duas de suas peças – O rei da vela, em
1967, de Oswald de Andrade e Roda-viva, em 1968, de Chico Buarque, está
última alvejada pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas) em uma
tentativa de atentado – mostrava o incômodo que elas levantavam em termos de
hábitos e convenções.
O objetivo do diretor e da corrente que nos anos 70 seria conhecida como
Teatro do Absurdo, tendo o cáustico francês Antonin Artaud à frente
135
, era
fustigar a passividade da platéia e forçá-la a uma reação violenta, fazendo-a
também se integrar ao mise-en-scène, em uma típica invocação da teatralidade
em seus moldes dionisíacos mais ancestrais. Em certo sentido, realçava-se a
dimensão interativa que o próprio legado histórico teatral fornecia. Conforme
esclarecimento do comunicólogo Muniz Sodré e do sociólogo Maurício Murad,
já referidos no primeiro capítulo, a etimologia da palavra ator, do grego
hypokrités, significa aquele que responde, isto é, aquele que responde ao
público
136
. E parecia que o dramaturgo paulista aspirava à retomada deste
diálogo interrompido pelo teatro burguês desde as repressões inculcadas entre a
Era Elisabetana e a Era Vitoriana. Em entrevista concedida ao jornalista Tite de
Lemos, no mês de julho de 1968, e publicada em caderno especial da revista
Civilização Brasileira sob o título “A guinada de José Celso”, assim se
expressa o diretor:
“Enfim, é uma relação de luta. Luta entre atores e público. Metade
deste, praticamente, não adere. Ou detesta. Ou não entende. A peça
agride intelectualmente, formalmente, sexualmente ou politicamente.
(...) Nossa forma de arte popular está na revista, no circo, na
134
Cf. MIRALLES, A. Novos rumos do teatro. Rio de Janeiro: Salvat, 1979.
135
Cf. LUCCHESI, M. (Org.) Artaud, a nostalgia do mais. Rio de Janeiro: Numem Editora /
Espaço Cultural, 1989.
136
Cf. MURAD, M. Dos pés à cabeça: elementos básicos de sociologia do futebol. Rio de
Janeiro: Irradiação Cultural, 1996, p. 169 e 170.
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chanchada da Atlântida, na verborragia do baiano, na violência de
tudo que reclamamos e está no nosso inconsciente.”
137
.
Seria possível ainda continuar a arrolar casos de outras áreas da vida
cultural brasileira em que as referências ao princípio de ação-contemplação
foram discutidas. Isto se deu nas artes plásticas com Lygia Clarck e Hélio
Oiticica, com suas instalações pop, que põem em questão o espectador-
participante. A revisão da tríade artista / obra / público incluía o rompimento
com o plano bidimensional e a inclusão da terceira dimensão, o espaço real,
fora do quadro da tela suspensa na parede. Facultando ao público o manuseio e
a apreciação sensorial tátil da obra, o espectador era entendido como agente
não apenas contemplador, mas igualmente como fruidor e interventor, criador
de sentido e co-realizador da obra artística. Segundo o historiador da cultura de
origem austríaca E. H. Gombrich, a expressão de ‘papel ou parte do espectador’
designa o conjunto dos atos perceptivos e psíquicos subjetivos pelos quais o
espectador faz existir a imagem
138
. No plano teórico-literário, o mesmo se daria
com a emergência da estética da recepção na Alemanha, cujos princípios
básicos expostos em uma conferência de 1975 por Hans Robert Jauss situavam
o aparecimento daquela corrente filosófico-hermenêutica no mesmo quadro dos
acontecimentos políticos e intelectuais dos anos 60, com o descentramento da
atenção do pólo autoral do escritor para o pólo ativo, criativo e interpretativo do
leitor, perfazendo aquilo que Wolfgang Iser chamou de “o jogo do texto”
139
.
Ao problematizar a posição meramente passiva e contemplativa do
espectador, o papel das vanguardas se expressaria na seara cinematográfica
brasileira com as inovações estéticas trazidas pelo Cinema Novo, em que seus
diretores defendiam o primado da retirada do “povo” dos assentos das salas de
exibição e a sua transposição simbólica para a própria tela, como sucedeu com
Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade. Ou, ademais, com
137
Apud. ARRABAL, J. “Anos 70: momentos decisivos da arrancada”. In: NOVAES, A. (Org.).
Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano / Editora Senac Rio, 2005, p. 231.
138
Cf. CATALANO, A. R. S. O lugar do espectador-participante na obra de Lygia Clark e
Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em História Social da Cultura / PUC-
Rio, 2004. Cf. também GOMBRICH, E. H. “A participação do observador”. In: Arte e ilusão:
um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
139
Cf. ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989,
p. 08. No Brasil, a introdução e a discussão teórica dos principais postulados da estética da
recepção foram feitas por Luiz Costa Lima em 1979. Cf. LIMA, L. C. (Org.). A literatura e o
leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. Cf. também. ISER, W.
“O jogo do texto”. In: LIMA, L. C. (Org.). op.cit..
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208
a possibilidade de o cinema questionar os limites da representação ficcional,
quando o ator, postando-se rente à câmara, indaga brechtianamente o
espectador, o que ocorreu em Deus e o diabo na terra do sol e em Terra em
transe, para ficar com a filmografia de Glauber Rocha.
Os exemplos elencados parecem por ora suficientes para mostrar o pano
de fundo de agitação e de transformação de uma série de valores então
dominantes no final da década de 1960. Nesse sentido, o intento até aqui foi a
demonstração do entroncamento entre o modo de surgimento das Torcidas
Jovens cariocas e outros acontecimentos de ordem histórica que se
desenrolaram no país e na cidade do Rio de Janeiro, de modo a explicitar
fundo, forma e figura, com a extrapolação dos significados desse fenômeno
juvenil ocorrido nas arquibancadas do Maracanã, comumente encerrado nas
lindes do mundo esportivo. Se é certo que ele possuía uma lógica interna
exclusiva que o ligava a um processo de transformação do futebol profissional
e a uma manifesta contestação das tradicionais formas coletivas de torcer
oriundas das décadas de 1940, 1950 e 1960, é lícita também a percepção de que
o advento das Torcidas Jovens exorbita as fronteiras futebolísticas e enquadra-
se em uma dimensão social e política, cultural e artística maior.
A contraposição aos símbolos do poder estabelecido no mundo do
futebol naquele ano de 1968 assinalava igualmente a aparição de outros,
relacionados em escala internacional às repercussões da invenção de um modo
de ser jovem no Ocidente, conhecida de igual maneira como contracultura.
Somado a isto, os jovens torcedores encontravam estímulo também no exemplo
de vários movimentos civis de massa e nos diversos eventos públicos
contestatórios que avultavam na cidade do Rio de Janeiro naquele momento.
Em âmbito local, a oposição desses grupos torcedores jovens à diretoria dos
seus clubes estava articulada ainda a um evidente incentivo por parte de
importantes meios de comunicação de massa, como o Jornal dos Sports, cuja
estratégia propagandística comercial e cuja política editorial tinham em mira o
apoio às iniciativas do público juvenil. Movimento análogo sucedia em São
Paulo com a ligação entre A Gazeta Esportiva e as novas agremiações
torcedoras, conforme pontua a socióloga Elisabeth Murilho:
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209
“Como aconteceu com as torcidas uniformizadas, a Gazeta Esportiva
deu total apoio ao surgimento das novas torcidas, oferecendo-lhe
campeonatos que só poderiam ser disputados por esses adeptos.”
140
.
A contextualização do fenômeno das Torcidas Jovens cariocas permite
assim uma compreensão de alguns dos fatores que levaram ao seu surgimento
em 1967 e 1968, tais como reportados e dramatizados pela imprensa aqui
selecionada. Ao mesmo tempo, ele mostra que algumas nuances de sua
particularidade histórica relacionavam-se a uma fase capital da vida política
nacional, e da cidade do Rio de Janeiro em específico, em que os meios de
expressão e de manifestação, embora reprimidos, ainda encontravam espaço de
reverberação na sociedade brasileira. De maneira que a peculiaridade da
emergência das novas torcidas do Rio de Janeiro, se comparadas, por exemplo,
à cidade de São Paulo, não se devia somente à inédita designação juvenil de
suas torcidas, tal qual vinha estampado em sua nomenclatura. Em que pese a
mesma tendência apontada pela socióloga acima citada, a experiência das
Torcidas Jovens cariocas adquiria originalidade, e podia ser precisada ainda
mais no tocante às torcidas paulistas, sobretudo pelas diferenças de contextos
históricos de aparecimento de cada uma delas – ainda que o intervalo fosse
mínimo e distasse de apenas um a dois anos.
Enquanto no Rio de Janeiro as primeiras Torcidas Jovens, como as do
Flamengo, do Fluminense e do Botafogo, despontavam no biênio de 1967-68,
sob uma atmosfera de ebulição política e de crescente questionamento às
formas usuais de autoridade, em São Paulo as novas torcidas
141
teriam
nascimento apenas após o ano de 1969, quando o Ato Institucional n.º 5 já
estava implantado e a liberdade de participação política e de expressão dos
meios de comunicação haviam sido cerceadas em sua quase totalidade. Embora
a fundação dos Gaviões da Fiel do Corinthians e da Torcida Jovem do Santos
em 1969, da Torcida Uniformizada do Palmeiras (TUP) em 1970 e da Torcida
Independente do São Paulo em 1972 dramatizassem questões muito
semelhantes às congêneres cariocas – oposição e autonomia frente à direção
140
Cf. SILVA, E. M. da. op. cit., p. 114.
141
Segundo informação do JS, a Torcida Jovem do Santos, fundada em 1969, teve seu nome
diretamente inspirado na Torcida Jovem do Flamengo, com base nas relações de amizade que o
santista Jorge Luís Cavalcanti manteve com Tia Helena (Helena Ferreira), líder da agremiação
rubro-negra em seus primeiros anos de existência (1970-1977). Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio
de Janeiro, 24 de novembro de 1970, p. 07.
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210
autoritária dos clubes e insubordinação às lideranças tradicionais dos chefes de
torcida – procurar-se-á mostrar a seguir como a fase ditatorial subseqüente à
implantação do AI-5 vai colocar outros parâmetros às torcidas organizadas de
futebol para além do universo esportivo.
Não sem razão, é na década de 1970 que elas passam a serem associadas
a outras formas de expressão e a outras experiências históricas, com a exclusão
paulatina e progressiva de seu horizonte das passeatas estudantis e do
engajamento juvenil. Passa-se então à incorporação de outros elementos
identitários dentro daquilo que se entende por um ethos jovem. É sobre essa
nova realidade cultural, esportiva e social – e ainda à luz dessas representações
tais como filtradas por um determinado veículo da imprensa esportiva –, que
será observado a partir de agora o desenvolvimento das torcidas organizadas, e
das Torcidas Jovens aqui aludidas em particular, na década de 1970.
2.2 O paradigma geracional e as vicissitudes da ruptura
A promulgação do quinto Ato Institucional do governo militar na noite
de 13 de dezembro de 1968, anunciada em cadeia nacional de rádio e televisão
pelo Ministro da Justiça, Luis Antônio da Gama e Silva, teria um alcance maior
do que a sua motivação inicial – responder ao inflamado discurso de um
deputado de oposição do MDB fluminense, Márcio Moreira Alves, no qual este
conclamara a realização de um boicote popular às comemorações oficiais do
Sete de Setembro em represália à ocupação militar da Universidade de Brasília
– e teria maiores conseqüências do que a sua decisão imediata – decretar o
recesso do Congresso Nacional por tempo ilimitado. Um de seus efeitos quase
automáticos no dia a dia nacional foi a supressão das marchas, dos atos
públicos e das reivindicações nos grandes centros urbanos do país. O apogeu
das agitações promovidas pelos estudantes nas ruas durante o ano de 1968 seria
estancado de maneira abrupta no cotidiano do Rio de Janeiro, notadamente do
Centro da cidade, depois de o marcar de maneira tão intensa e efervescente ao
longo daquele ano. A repentina suspensão das manifestações, catalisadoras até
então da simpatia de parte expressiva da população e de outros segmentos
sociais organizados, mas geradoras também de fissuras internas bem
demarcadas, ocasionou o esvaziamento de um movimento de vanguarda que, a
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211
partir de um certo momento, havia ganhado foros de um movimento de
massa
142
.
A interrupção das passeatas e do diálogo com as autoridades
governamentais levou a maioria das lideranças estudantis a seguir o caminho da
radicalização e do isolamento social, que consistia na opção pelo exílio ou pela
clandestinidade, à primeira vista as únicas estratégias e as únicas alternativas
para a esquerda e para os opositores do regime, cujo ônus maior era o
distanciamento da sociedade civil e da opinião pública
143
. O enrijecimento das
medidas decretadas pelo AI-5, simbolizado com a saída de cena de Costa e
Silva (1967-1969) e com a ascensão ao poder do general Emílio Garrastazu
Médici (1969-1974), incidiria de modo frontal também sobre a posição adotada
por parcela considerável dos meios de comunicação de massa no que concerne
ao governo autoritário. A prática de censura prévia se amplificaria e se
intensificaria nas redações dos jornais, com a alteração do conteúdo dos textos,
com a proibição da publicação de matérias suspeitas, com a interdição da sua
distribuição ou com a apreensão de seus exemplares. Tal quadro precipitaria a
falência de um antigo e tradicional periódico oposicionista como o Correio da
Manhã, fechado em julho de 1974, cuja proprietária, Niomar Muniz Sodré
Bittencourt
144
, seria seqüestrada e presa pelos agentes repressores em uma
época marcada pela ausência do direito ao habeas corpus, sob a alegação de
crimes contra a “segurança nacional”
145
.
142
Cf. COSTA, J. F. “Sobre a geração AI-5: violência e narcisismo”. In: Violência e psicanálise.
Rio de Janeiro: Graal, 1986.
143
Cf. REIS FILHO, D. A. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2000. Cf. também GASPARI, E. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002. Cf. ainda REIS FILHO, D. A.; RIDENTI, M.; MOTTA, R. P. S. (Orgs.). O
golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004. Sobre a
experiência do exílio, ver a dissertação de Tatiana Paiva. Cf. PAIVA, T. M. C. Herdeiros do
exílio: memórias de filhos brasileiros da ditadura militar. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado
em História Social da Cultura / PUC-Rio, 2006.
144
Antes, em fins da década de 1960, a proprietária do Correio da Manhã havia dado cobertura a
Geraldo Vandré, desde que este passou a ser procurado pelos setores mais radicais da repressão,
refugiando-se inclusive no apartamento de Guimarães Rosa, em Copacabana. Cf. MELLO, Z. H.
de. op. cit., p. 301. A correspondência passiva e ativa de Niomar Bittencourt a Roberto Marinho e
Nascimento Brito, trocadas nos anos de 1973 e 1974, encontram-se nos arquivos do CPDOC, da
Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro.
145
Cf. CAPELATO, M. H. R. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1994, p.
55 e 63. Cf. também BORGES, N. “A Doutrina da Segurança Nacional e os governos militares”.
In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. (Orgs.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura – regime
militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,
vol. 4.
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212
Se já existem estudos em que se registram, rastreiam e documentam
informações a respeito da intervenção sistemática sofrida tanto pelos grandes
veículos da imprensa, jornais e revistas de circulação nacional, quanto pela
imprensa alternativa, também denominada “nanica” – Bondinho, Grilo, Ex
Pasquim, Movimento, Opinião, entre outros tablóides –, por parte dos órgãos
censores
146
, o mesmo não sucede com um periódico de interesse setorial como
o Jornal dos Sports. A ausência de dados concretos e de elementos substantivos
referentes à prática da censura e à intervenção nos bastidores de um periódico
esportivo específico não impede, todavia, que se infira da leitura serial de suas
edições uma nítida inflexão no teor e no enfoque de suas reportagens no
período pós-68, em especial no que concerne à vida estudantil e ao seu
majoritário público consumidor: os jovens. Não é possível averiguar se o tom
sensacionalista das manchetes consagradas às revoltas estudantis é elidido na
exata proporção em que o movimento é bruscamente interrompido; se a censura
simplesmente intervém e obsta uma cobertura que parecia tão direta, tão
simpática e tão íntima à causa dos estudantes, como ocorria até então; ou,
ainda, se o fim da emulação ao ativismo estudantil foi uma decisão consciente e
intencional da linha editorial do jornal, mediante a adoção de uma postura mais
cautelosa e de uma mudança de posição face aos acontecimentos da vida
coletiva extra-esportiva.
O fato é que aqueles engajados e novatos protagonistas, merecedores de
notável destaque meses antes na primeira página do jornal e nos seus
suplementos de cultura, foram subitamente retirados de seu noticiário. O
silêncio perante o paradeiro dos “sediciosos” e “subversivos” agitadores
estudantis, tal como qualificados pelo regime militar, se imporia dali em diante
sem maiores esclarecimentos e permaneceria uma incógnita aos que se
ativessem à fonte jornalística em exame. A marca da diversidade científica e
cultural, intelectual e acadêmica do Jornal dos Sports no biênio 67-68,
acentuada desde a chegada de Mário Júlio Rodrigues à direção do periódico,
também perderia o seu tônus e o seu viço original no decorrer da década de
1970, conquanto o enfraquecimento das seções de variedade fosse sendo dado
de maneira gradativa e sorrateira.
146
Cf. KUSCHNIR, B. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988.
São Paulo: Boitempo, 2004.
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213
O jornal continuaria a apregoar a sua dupla utilidade, qual seja, a de
constituir um diário a um só tempo esportivo e estudantil, mas esta última
função passava a ser de modo progressivo confinada aos conteúdos
pedagógicos das disciplinas lecionadas nas escolas e nas universidades. O
periódico procurava se ater cada vez mais ao estrito interesse instrutivo dos
estudantes em seus preparativos para um rito de passagem, o Vestibular, cujos
exames povoavam de candidatos e de suas respectivas pranchetas o grandioso
cenário das cadeiras e das arquibancadas do Maracanã, nos calorosos meses de
verão do Rio de Janeiro. Na seção JS Escolar, as mudanças no campo
educacional eram assim descritas no início dos anos 70: “A educação brasileira,
no decorrer dos últimos dez anos, sofreu uma escalada vertiginosa de reformas,
que acabaram por transformar radicalmente o sistema vigente.”
147
.
Criado em julho de 1967, o JS Escolar passava a englobar questões mais
instrumentais de interesse para o desenvolvimento tecnológico do país. A título
de ilustração, cite-se a matéria publicada em 1969, denominada “Já começou a
revolução da Química no Brasil”. Nela, um professor da PUC do Rio de
Janeiro, o padre Leopoldo Hainberger, S. J., tecia considerações sobre a
exploração de minérios e recursos naturais como o alumínio, o ferro e a
borracha, entre outras matérias-primas existentes em território nacional.
148
Em
paralelo, a atração em torno de outras áreas da vida coletiva fazia com que
aparecessem seções como o JS Turismo e o JS Transportes
149
.
A simbiótica fusão entre juventude e desportos perduraria ainda por
tempo considerável no discurso e na autopropalada identidade do periódico. No
entanto, tinha-se a impressão de que um período extraordinário da vida
nacional havia cessado e voltava-se à normalidade do dia a dia futebolístico,
com a predominância das informações e a exclusividade das atenções, a incidir
no desempenho dos atletas, no ambiente dos treinos e na situação dos clubes na
tabela do campeonato. O jornal tinha também de passar por outra voga de
reformulações, que se devia menos à sua adequação a injunções políticas
externas ou a uma renovação interna deliberada e mais a uma necessidade
forçada pelo período turbulento novamente atravessado pela numerosa família
147
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 24 de junho de 1973, seção JS Escolar.
148
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de maio de 1969, JS Escolar, p. 01.
149
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de julho de 1970, p. 03.
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Rodrigues, proprietária daquele matutino esportivo. Assolada de tempos em
tempos por mortes trágicas desde os anos 20, a família deparava-se com uma
nova onda de acontecimentos fatais. Ela levaria à premência por rearranjos e
por novas acomodações, que atingiriam mais uma vez o âmago do periódico no
início da década de 1970. Mário Júlio Rodrigues, diretor-proprietário do Jornal
dos Sports, vem a falecer a 15 de julho de 1972, aos quarenta e quatro anos de
idade, em virtude de crônicos problemas com o alcoolismo, que desde os
dezessete anos já tanto preocuparam seu pai, Mário Filho, como pontua o
biógrafo Rui Castro
150
.
Ao contrário da tradicional sucessão hereditária nas empresas
jornalísticas – os Mesquita em O Estado de São Paulo, os Marinho em O
Globo, os Bittencourt no Correio da Manhã, os Pereira Carneiro no Jornal do
Brasil –, em lugar de Mário Júlio não assumiria seu filho, Mário Rodrigues
Neto, tampouco nenhum outro membro da família. Esta se via acometida por
mais pesarosas perdas: a morte de dona Maria Esther Rodrigues, mãe de Mário
Filho e de Nelson Rodrigues, sendo que este último se afasta de maneira
temporária do jornal entre 1970 e 1973 e continua a colaborar apenas em O
Globo; e a morte do cineasta Milton Rodrigues, outro dos irmãos de Mário
Filho, diretor do cinejornal O esporte em marcha e de um longa-metragem
histórico sobre o Clube de Regatas do Flamengo, Corpo e Alma de uma Raça
(1938), que falece meses depois de seu sobrinho. A direção do jornal passa para
o comando de uma mulher até então desconhecida no meio esportivo, a Sra.
Cacilda Fernandes de Souza. Segunda esposa de Mário Júlio, depois da
separação do primeiro casamento com Dalila, ela recebia como herança,
consignada pelo marido em seu testamento, o Jornal dos Sports
151
.
A reestruturação do jornal provocaria a saída de Henfil do periódico no
ano seguinte à morte de Mário Júlio, depois de uma colaboração humorística
diária que se estenderia entre 1967 e 1973, sendo uma das marcas de suas
charges a interação constante com o torcedor, a divulgação das atividades das
torcidas organizadas e a substituição dos principais símbolos dos clubes, com a
popularização do urubu no lugar do marinheiro Popeye para o Flamengo e com
a disseminação do bacalhau no lugar do almirante português para o Vasco.
150
Cf. CASTRO, R. op. cit., p. 366.
151
Cf. ibid., p. 366.
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Henfil seria substituído por um cartunista de menor projeção, cujo pseudônimo
era Nani de Letra. Outra medida ocorrida na gestão da nova proprietária seria a
indicação do coronel Geraldo Magalhães para a superintendência e para a
diretoria do JS, o que o faz ocupar a vaga de Sérgio Cabral, então há cerca de
um ano na editoria central do periódico, jornalista que pertencia também ao
badalado, satírico e irreverente Pasquim
152
.
O destino de muitos dos articulistas e dos melhores repórteres do Jornal
dos Sports seria um concorrente em nível nacional que despontara no mês de
março de 1970. Era a revista semanal Placar, dirigida por Cláudio de Souza,
responsável por acolher parte considerável da equipe do JS, tal como Henfil e
seu popular personagem, o capitão Zeferino, que junto à Graúna e ao Bode
Orelana seriam criados pelo cartunista naquele semanário
153
; Maurício Azedo,
que se tornava editor do periódico; Fausto Neto, quadro tradicional do Cor-de-
Rosa; e Marco Aurélio Guimarães, o premiado jornalista que promovera a
polêmica reportagem Os coveiros do Fla, causador de grande reboliço em
1968. Na sucursal carioca da revista, um novato aparecia como chefe de
redação: Milton Temer. Depois de inúmeras tentativas da imprensa brasileira
de criar uma revista semanal voltada de maneira exclusiva para os esportes – tal
foi o caso da Manchete Esportiva, da Bloch Editora, que circulou entre 1955 e
1959 sob o comando de Mário Filho e da Revista do Esporte, que obteve
sucesso entre o final da década de 1950 e início da década de 1960, sem
sobreviver contudo às adversidades financeiras e à passagem do tempo – eis
que surgia um semanário promissor, com grande projeção no mercado editorial
e com a pujança da chancela Abril, editora que investia também em fascículos
de arte e cultura para o grande público.
Além de uma “História da música popular brasileira”, escrita por
especialistas mas voltada para leigos, em encartes acrescidos de LPs, estendia-
se o alvo inclusive para um nicho acadêmico, com a difusão da coleção
filosófica Os pensadores, do dicionário enciclopédico Conhecer e da série
ilustrada Arte nos séculos. A inclusão do esporte neste rol temático fazia o
fundador e dono da editora, Victor Civita, no depoimento ao primeiro número
152
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro. 25/10/1971, p. 01; 16/07/1972, p. 13; 13/10/1972,
p. 01; 10/11/1972, p. 04; 03/01/1973, p. 01; 17/01/1973, p. 03; 14/07/1973, p. 02.
153
Cf. PLACAR. São Paulo: Editora Abril, 15 de janeiro de 1988, p. 60, n.º 919.
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da Placar, consignado em sua Carta aos leitores, acentua que desde o
surgimento da empresa, em 1950, já havia o projeto de lançamento de uma
revista esportiva nos moldes daquela, mas o plano apenas amadureceu e se
tornou concretizável naqueles idos de 1970, entre outros fatores, porque:
“... temos hoje no País uma nova mentalidade no jornalismo esportivo:
a paixão clubística, as preocupações pessoais, os interesses menores
foram substituídos pela crítica construtiva, pela análise ponderada,
pela reportagem desassombrada e imparcial. E tudo isto faz parte da
filosofia de Placar.”
154
.
O sucesso parece ter sido quase imediato. Se, no momento de seu
aparecimento, circularam pelas bancas de jornal do país cerca de cento e oitenta
mil exemplares, a conquista do tricampeonato na Copa México elevou a
tiragem à ordem de quase duzentos e trinta mil revistas. Todavia, em período
de normalidade, a média de venda ao longo da década de 1970 variou entre
quarenta e cem mil números, o que a fez ainda assim emparelhar-se às maiores
vendagens da linha editorial da Abril, a saber, as revistas Veja e Capricho
155
.
Ao alcançar estes números, ultrapassou, por exemplo, Realidade, revista
mensal da Abril cujas edições iniciais chegaram a quatrocentos e cinqüenta mil
exemplares, mas que decaíram com o tempo, tendo duração limitada a dez anos
(1966-1976), enquanto Placar, mesmo com médias inferiores, permaneceu
lucrativa e se mostrou infensa às ameaças de fechamento. De toda forma, para
além das concorrências internas, é inegável o impacto que Placar exerceu sobre
a área esportiva e sobre o Jornal dos Sports em particular, ofuscado com a
concorrência de uma congênere mais potente no mercado, com sede em São
Paulo, centro industrial e empresarial do país.
Assim, a saída de bons jornalistas coincidiu com a entrada de nomes com
patente militar nos créditos principais do Jornal dos Sports, como o citado
coronel, o que pode soar estranho a uma primeira visada. Convém salientar,
contudo, que tal presença se tornara uma constante em várias instâncias
administrativas do mundo do futebol desde o golpe de 1964 no Brasil. Os
baixos escalões e mesmo os altos postos de direção das principais entidades
154
Cf. ibid, p. 38. n.º 01.
155
Cf. XAVIER, S. “Placar, a revista para quem gosta de esporte”. In: Jornalismo Esportivo.
Rio de Janeiro: Imprensa da Cidade / Prefeitura do Rio, 2004, Série Estudos, n.º 11.
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esportivas, como o Conselho Nacional de Desportos e a Confederação
Brasileira de Desportos – o primeiro vinculado de modo direto ao Ministério da
Educação e Cultura, então a cargo do ministro Jarbas Passarinho –, seriam
preenchidos por militares. Para o CND, por exemplo, fora nomeado como
presidente o general Elói Menezes, enquanto na CBD o major-brigadeiro
Jerônimo Bastos era nomeado por João Havelange como coordenador do Brasil
nas Olimpíadas do México em 1968 e chefe da delegação brasileira na Copa do
Mundo de 1970. Em 1974, quando João Havelange assume a presidência da
FIFA, em lugar do inglês Stanley Rous, graças aos votos dos países africanos,
asiáticos e latino-americanos, a CBD passa a ser dirigida pelo almirante Heleno
de Barros Nunes, presidente da Arena.
Como bem observa o antropólogo Arlei Damo, durante a ditadura os
militares “encamparam” a CBD
156
e, de fato, eles o fizeram por meio de nomes
como o do capitão Kléber Camerino, do major Roberto Guaranyr e do
almirante Carlos Alberto Lacoste. No COB, o Comitê Olímpico Brasileiro, o
comando passou às mãos do major Sílvio Padilha. As próprias Forças Armadas
tinham uma Divisão de Esportes, sob a direção do capitão Benedito José
Bonetti
157
, e após a conquista do tricampeonato, Jerônimo Bastos seria
homenageado em almoço pela ADESG, a Associação de Diplomados da Escola
Superior de Guerra
158
.
A ingerência de diversos integrantes da hierarquia militar na
administração do futebol brasileiro se tornou notória, pois atingiu de maneira
anedótica o mais alto cargo da República. Um dos conhecidos estratagemas
para a popularização do regime discricionário, elaborado pela AERP – a
Assessoria Especial de Relações Públicas, criada por Médici –, foi a associação
da imagem do presidente à figura do torcedor de futebol, o que propiciou o
compartilhamento de uma afinidade eletiva entre este e o homem comum
brasileiro. A figura de Médici se popularizava à medida que era capitaneada a
euforia futebolística, encarnada nos hábitos espontâneos, despojados e pouco
solenes de um assíduo freqüentador do Maracanã. Seu interesse se voltava não
156
Cf. DAMO, A. “O ethos capitalista e o espírito das copas”. In: GUEDES, S. L.; GASTALDO,
E. L. (Orgs.) Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Rio de Janeiro:
Intertexto, 2006, p. 47.
157
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 05 de fevereiro de 1969, p. 04.
158
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de julho de 1970, p. 08.
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apenas para os jogos da Seleção Brasileira e incluía também o âmbito
clubístico, com o reforço da condição de um vibrante torcedor do Flamengo,
equipe então com grande apelo popular no país. Dentre as idiossincrasias do
general Médici divulgadas pela imprensa destacava-se aquela em que era
flagrado nas tribunas de honra do estádio com um radinho de pilha colado ao
ouvido, tal qual um anônimo da arquibancada ou da geral. De maneira
premeditada ou não, a aproximação contribuía para dulcificar sua persona
pública e para acobertar um período de redobrado endurecimento ditatorial,
esteado na prática da tortura como política sistemática de Estado, cada vez mais
implacável e intolerante com respeito às vozes dissonantes
159
.
Outro lugar-comum consagrado na memória nacional com relação a esse
período foi a versão propagada pelos jornalistas, segundo a qual Médici
interferiu de maneira direta no afastamento do técnico da Seleção Brasileira, o
cronista esportivo João Saldanha, um simpatizante do partido comunista, do
comando da equipe, haja vista sua discordância com a não-escalação de um
atacante de sua preferência, Dadá Maravilha, e a indicação arbitrária de Zagalo
em lugar do malquisto treinador. A cautela na admissão dessa versão deve-se
ao fato de que, como adverte Jacques Le Goff, o poder dos relatos e dos
comentários presentes nos jornais são fatores de fixação de uma memória
coletiva, cujo caráter construtivo, não-natural, não-objetivo e não-positivo,
deve ser esclarecido e retificado pelo historiador
160
. Assim é mais prudente
afirmar que a presença militar no universo futebolístico pode ser constatada
menos neste nível de especulação acerca do grau de interferência
governamental no futebol e mais na presença concreta, por exemplo, de um
egresso da Escola Superior de Educação Física do Exército, o capitão Cláudio
Coutinho, na comissão técnica da seleção.
159
Para uma abordagem pormenorizada da construção do “otimismo” na vida nacional brasileira
do período, ver o trabalho do historiador Carlos Fico, em tese defendida no departamento de
história da USP, sob orientação de Carlos Guilherme Mota. Cf. FICO, C. Reinventando o
otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Prefácio de Carlos Guilherme
Mota. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997. Sobre a notória relação entre
futebol, tortura e política em tal contexto, ver a análise do historiador Francisco Carlos Teixeira da
Silva acerca do filme “Pra frente, Brasil”, de Roberto Farias (1983). Cf. TEIXEIRA DA SILVA,
F. C. “Futebol e política: Pra frente, Brasil”. In: MELO, V. A. de; PERES, F. de F. (Orgs.). O
esporte vai ao cinema. Rio de Janeiro: Editora Senac Nacional, 2005.
160
Cf. LE GOFF, J. “Memória”. In: História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
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219
Ao lado dos preparadores físicos Carlos Alberto Parreira e Admildo
Chirol, Cláudio Coutinho seria responsável pela introdução de uma nova
mentalidade de treinamento, com rígidos métodos disciplinares de
planejamento e de organização para aquele torneio internacional no México em
1970. O aprimoramento e a intensificação de tais métodos não surtiriam
resultado, no entanto, nas edições seguintes ocorridas na Alemanha em 1974 e
na Argentina em 1978
161
. Sob a vigência de padrões modernos e científicos de
condicionamento muscular dos jogadores, os sucessivos malogros acenderiam
um acalorado debate a respeito da mecanização do estilo de jogo da Seleção
Brasileira, que se prolongaria no decurso do regime militar no Brasil. A querela
em torno da perda da autenticidade decorreria, por sua vez, do abandono do
genuíno futebol-arte nacional e da adoção do futebol-força europeu, renovado
com a modernização, a fluidez e a rotatividade desenhadas pelo sistema tático
do carrossel holandês, proposto por Stephan Kovacs, técnico daquela seleção
nacional e do campeão europeu Ájax, que encantou e desmontou a um
tempo os estilos tradicionais de jogo praticados no Velho e no Novo Mundo,
com uma equipe sem posições fixas
162
.
A polêmica em torno de nomes, cargos e esquemas táticos nessa época
seria ladeada por outra ordem de debates, que tinha em mira a discussão sobre a
infra-estrutura conferida pelo Estado aos esportes. Uma das grandes
preocupações do regime militar em suas diversas áreas de atuação se voltou
para a ampliação da capacidade da rede física esportiva nas capitais brasileiras,
com a criação de espaços considerados indispensáveis à integração e ao
desenvolvimento do país, na articulação de todo o território nacional. Os
complexos desportivos eram implementados sob a mesma égide das edificações
monumentais projetadas pelo Ministro dos Transportes, Mário Andreazza, em
161
Cf. SOARES, A. J. G.; SALVADOR, M. A.; BARTHOLO, T. L. “Copa de 70: o planejamento
do México”. In: GUEDES, S. L.; GASTALDO, E. L. (Orgs.). Nações em campo: Copa do
Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006.
162
Cf. GIL, G. "O drama do ‘futebol-arte’: o debate sobre a seleção nos anos 70". Revista
Brasileira de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, n.º 25. Cf. também
KLINTOWITZ, J. “A implantação de um modelo alienígena exótico e outras sugestões
pertinentes: a seleção brasileira de futebol – 1978”. Encontros com a Civilização Brasileira. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, n.º 5. Cf. ainda SANTOS, J. R. dos. “Na CBD até
papagaio bate continência”. In: Revista Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978, nº 5.
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220
obras como a Rodovia Transamazônica, a Ponte Rio-Niterói, a Hidrelétrica de
Itaipu, entre outras obras vultuosas
163
.
A ação efetiva do Estado na vida desportiva se dava, pois, através do
maciço financiamento para a construção de ginásios e estádios. Além disso, o
ministro da educação Jarbas Passarinho sancionava a institucionalização da
Educação Física no ensino médio e nas universidades, à maneira do que havia
ocorrido com a disciplina de Moral e Cívica, bases precípuas, na perspectiva
dos militares, para a capacitação dos jovens e para a formação de uma pátria de
inconteste pujança mundial. Segundo o testemunho instigante de Sérgio Paulo
Rouanet, a mudança curricular na educação durante o regime militar invertia o
peso e a tradicional relação entre as disciplinas técnicas e as disciplinas
humanas, com o predomínio daquelas sobre estas
164
.
A construção de estádios em todas as regiões nacionais seguia uma
tradição arquitetônica no Brasil posterior às primeiras praças desportivas
patrocinadas pelos clubes. Estas eram simbolizadas em dois marcos históricos
no Rio de Janeiro: o Estádio das Laranjeiras, do Fluminense, edificado para
sediar o Campeonato Sul-Americano de futebol em 1919; e o Estádio de São
Januário em 1927, pertencente ao Vasco da Gama, soerguido graças à
mobilização da colônia portuguesa na cidade, que tencionava a inclusão do
time na liga principal do futebol amador carioca. Embora em momento
consecutivo Getúlio Vargas tenha se valido deste último como palco para suas
encenações públicas e para seus rituais cívicos de massa, o Estado Novo
assinalaria uma guinada, com a passagem de um modelo particular de estádio
baseado na iniciativa privada para um modelo público de praça desportiva
como ícone do poder do Estado brasileiro. Este último seria materializado com
a inauguração do Estádio Municipal do Pacaembu, em 1940, na cidade de São
Paulo. Passados dez anos, seria a vez da capital da República erigir o “maior
estádio do mundo” após a visita de Jules Rimet ao Rio de Janeiro –
recepcionado por Mário Filho – e a decisão da FIFA em um congresso em
Bruxelas para a realização no Brasil da Copa do Mundo de 1950, durante o
163
Cf. ARQUIVO NACIONAL. “1964-1980: tempos sombrios”. In: Arquivo Nacional, 150
anos: visão histórica. Rio de Janeiro: Editora Index, 1988.
164
Cf. ROUANET, S. P. “Reinventando as humanidades”. In: As razões do Iluminismo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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governo do presidente Eurico Gaspar Dutra e do prefeito Mendes de Moraes,
no interregno da Era Vargas.
A presença dos militares no poder nas décadas de 1960 e 1970 estenderia
o padrão arquetípico do Maracanã, com sua estrutura ciclópica, para a quase
totalidade dos estados do país, a fim de efetivar a integração desportiva, graças
também à instituição de um circuito competitivo em 1971, denominado
Campeonato Nacional. O carro-chefe de tal processo foi a inauguração a 09 de
setembro de 1965 do Estádio Magalhães Pinto, o Mineirão, pedra fundamental
de uma nova era de portentosos estádios estatais, com capacidade para abrigar
milhares de espectadores. A sua viabilidade tornava-se factível do ponto de
vista econômico-financeiro uma vez que, após sucessivas tramitações no
Congresso Nacional desde 1963, a Loteria Esportiva era finalmente sancionada
e implantada no país em 1970 – na Europa sua existência remontava à década
de 1930
165
–, com a geração de dividendos e de capitais para investimento
nesse novo filão da engenharia civil. A popularidade da loteria se devia à sua
promessa de ascensão social para milhares de brasileiros – ascensão monetária
homóloga à de seus heróis em campo – com base em um jogo de apostas que
combinava números e conhecimento do futebol próprio a seus experts.
O traço-de-união entre essas arenas era a conjugação de um nome oficial
concedido, quase sempre, a um político representante do poder local com uma
denominação informal que popularizava o estádio com um superlativo bem ao
gosto do período. Assim, a construção do estádio Vivaldo Lima, em Manaus,
era batizada sob o nome de Vivaldão; o estádio Lourival Batista, em Aracajú,
logo passava a receber a designação de Batistão (1969); o estádio Plácido
Castelo, em Fortaleza, virava rapidamente o Castelão (1973); o estádio Alberto
Silva, em Teresina, era alcunhado Albertão (1973); o estádio Rei Pelé, em
Maceió, tornava-se o Trapichão (1970); o estádio José Fragelli, em Cuiabá, ato
contínuo passava a se chamar Verdão (1974). A estes vinham se somar o
Mangueirão em Belém (1978), o Morenão em Campo Grande (1971), o
Amigão em Campina Grande (1975), o Pelezão em Brasília (1965) e o
Pinheirão em Curitiba, entre outros levantados em paralelo aos modernos
estádios particulares, como o Morumbi do São Paulo (1970), a remodelada
165
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 24 de abril de 1971, p. 06.
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222
Fonte Nova do Bahia (1971)
166
e o Beira-Rio do Internacional de Porto Alegre
(1969), este último inspirado no Estádio Olímpico de Roma
167
.
Em apenas três anos, de 1972 a 1975, trinta estádios de futebol haviam
sido construídos
168
. Espargiam-se de tal maneira que o país estava preparado
para abrigar um número exorbitante de equipes no Campeonato Brasileiro (42
em 1975; 74 em 1978; e 94 em 1979), dando margem ao famoso bordão da
época: “Onde a Arena vai mal, mais um clube no Nacional”. Em abono a este
espírito, Nelson Rodrigues exultava em sua coluna esportiva, asseverando que
o Campeonato Nacional era “a grande viagem para dentro do Brasil”, uma
paráfrase ao título da peça do dramaturgo Eugène O’Neill, A grande viagem
para dentro da noite.
169
. O extraordinário alcance do circuito de jogos
instituído em âmbito nacional era coetâneo, por seu turno, à instalação de uma
rede de telecomunicações por satélite no Brasil, cujos avanços se faziam sentir
desde aproximadamente o ano de 1965, com a fundação da Embratel e com a
instituição do Ministério das Comunicações. Tais transformações facultavam as
transmissões das partidas ao vivo e a cores ou dos vídeo-tapes dos jogos do
campeonato brasileiro, tornando possível o acompanhamento deste torneio que
ganhava nova envergadura no início da década de 1970 e possibilitava o
surgimento da figura do telespectador.
As diretrizes preconizadas em tais realizações vinham explicitadas em
um relatório final do governo Médici, redigido pelo Departamento de Educação
e Desportos, o DED, órgão vinculado ao MEC, e publicado em 1974. Os
documentos continham um balanço dos resultados obtidos em cada um dos
estados da federação ao longo daquela gestão. Mais do que um mapeamento
burocrático restrito à esfera interna, com a finalidade de informar a situação em
que se encontravam os ginásios olímpicos e os complexos desportivos no país,
os relatos se tornariam peça importante da propaganda do governo no que diz
respeito à sua ação no futebol profissional e nos esportes amadores. Do ponto
166
A reinauguração do estádio Otávio Mangabeira em março de 1971, com a presença do
presidente Médici para o jogo entre Bahia e Flamengo, terminaria em tragédia com o desabamento
de parte da estrutura de concentro das arquibancadas. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de março de
1971, p. 05.
167
Cf. PLACAR. São Paulo, Editora Abril, 14 de janeiro de 1983, n. 660, p. 76 e 77. Cf.
JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro. 06/04/1968; 04/10/1968; 15/01/1969; 06/06/1972;
10/09/1972; 09/09/1975, p. 10.
168
Cf. FRANCO JÚNIOR, H. op. cit., p. 145.
169
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 07 de setembro de 1976, p 14.
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223
de vista editorial, sua materialização culminava com a publicação da série
“Grandes Temas”, com a curadoria da agência jornalística Image, onde era
dada seqüência a um projeto gráfico inicial exposto no seu primeiro volume,
sob a rubrica Brasil Futebol Rei. Com texto de Araújo Neto, fotos de Jorge
Torok e desenhos de Aldemir Martins, esta primeira edição preparada para a
Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, obteve enorme sucesso, sendo saudada
por Carlos Drummond de Andrade e Tristão de Athayde como a mais bela obra
jamais realizada no Brasil sobre o assunto, encorajando assim a continuidade da
série
170
.
Sob os auspícios da CDB, o novo livro ilustrado e com capa dura
constituiria o quarto número da coleção e seria publicado com o título de
Milhões no esporte do Brasil
171
. As apresentações protocolares à obra por parte
do ministro Jarbas Passarinho, do coronel Erick Tinoco Marques, do brigadeiro
Jerônimo Baptista Bastos e do dirigente João Havelange, no ano em que este
seria eleito presidente da FIFA, ressaltavam de maneira unânime a eugenia
proporcionada pelos Esportes e a capacidade de revigoramento juvenil da
Nação, agora dotada de adequadas instalações físicas para cimentar um
presente vitorioso e para potencializar a consecução de um futuro ainda mais
magnânimo. Ao texto de Carlos Alberto Pinheiro e às fotografias de Orlando
Alli, Amiccuci Gallo, Domingos Cavalcanti e Luís Alexandre Sabóia Pinto,
eram adicionadas as versões simultâneas do livro em inglês, francês e alemão,
elaboradas por Paule Havelange e Willy Keller. Tais traduções sugerem que o
destino da edição atendia a um duplo alvo publicitário: por um lado, a prestação
de contas e o acesso a informações da ação governamental então empreendida
pela administração que chegava ao seu término; e, por outro, a propaganda e a
divulgação no exterior dos admiráveis feitos do governo militar na seara
esportiva.
O lançamento editorial da CBD seguia uma tendência de obras coletivas
sobre o tema, iniciada em 1969, com a iniciativa de uma editora paulista de
fazer uma História ilustrada do futebol brasileiro, dividia em quatro tomos. Na
apresentação do livro, os editores explicavam a empreitada levada a cabo por
uma equipe de especialistas, entre eles João Máximo:
170
Cf. REALIDADE. São Paulo, Editora Abril, junho de 1966, n. 3, s.p.
171
Cf. PINHEIRO, C. A. Milhões no esporte do Brasil. Rio de Janeiro: Image, 1974.
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“Partindo de um projeto ambicioso, a EDITORA DOCUMENTAÇÃO
BRASILEIRA traçou um programa de trabalho, reuniu uma equipe
especializada, estudou o futebol brasileiro de vários ângulos e lançou-
se à execução da obra. Durante longos meses, um grupo de
pesquisadores viajou pelo Brasil, de Manaus a Porto Alegre, chegando
mesmo a ultrapassar as nossas fronteiras, em busca de dados
informativos e material fotográfico. Uma biblioteca foi montada, um
arquivo foi criado, milhares de ilustrações (fotos, gravuras,
caricaturas) foram levantadas. Uma equipe de técnicos gráficos,
primeiro planejando e depois executando, funcionou simultaneamente
com o grupo de pesquisa e mais tarde com os responsáveis pelo texto.
Sobre o resultado, nada a dizer, a não ser estes quatro volumes que
aqui entregamos.”
172
.
Em meio à entrada do futebol no mercado editorial, os anúncios no
Jornal dos Sports das grandes inaugurações do governo federal no tocante às
suas realizações faraônicas em geral – como as obras do Metrô, a cruzada
alfabetizadora do Mobral, os conjuntos habitacionais do Banco Nacional de
Habitação (BNH), entre outras – e aos novos estádios de futebol em particular,
pareciam sugerir a idéia de que se vivia uma ocasião propícia às festas e às
cerimônias de congraçamento entre o Estado e a sociedade civil. Porquanto
estas obras se concretizavam e as ameaças de dissensões internas eram
aplacadas, debelando-se os “terroristas” responsáveis por dramáticos seqüestros
a embaixadores de Estado, por assaltos a bancos, pela luta armada urbana e por
guerrilhas rurais
173
, espalhava-se a sensação de que se vivia um momento novo,
harmônico e edificante. Tratava-se de sensação bem distinta à posterior
classificação do período, denominado pela historiografia de os Anos de
chumbo, alusão por seu turno ao título homônimo de um filme alemão dirigido
por Margareth Von Trotta
174
.
A mais perfeita tradução do otimismo naquele momento seria
caracterizada no mote milagre econômico, uma expressão que fazia convergir
as extraordinárias taxas de crescimento econômico – o país tornara-se em
172
Cf. HISTÓRIA ILUSTRADA DO FUTEBOL BRASILEIRO. São Paulo: Editora
Documentação Brasileira, 1969, 4 vol., p. 07.
173
Cf. RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1993. Cf. também ALMEIDA, M. H. Tavares de; WEIS, L. “Carro-zero e pau-
de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In: SCHWARCZ, L. M.
(Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, vol.4.
174
Cf. HABERT, N. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo:
Ática, 1992, p. 11. Cf. também. D’ARAÚJO, M. C.; SOARES, G. A. D.; CASTRO, C (Orgs.). Os
anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
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pouquíssimo tempo a oitava potência entre as economias capitalistas mundiais
–, o clima altamente favorável à ascensão da classe média, a receptividade à
instalação de empresas multinacionais no Brasil, a facilidade no consumo de
produtos alimentícios e no acesso a bens eletroeletrônicos para vários setores
da população, dentro dos vórtices daquilo que mais tarde os sociólogos
chamariam de modernização autoritária ou modernização conservadora
175
.
O coroamento dessa ambiência contagiante de prosperidade financeira
ocorreria no plano da ufania esportiva com a conquista do tricampeonato
mundial no México em 1970, quando as ruas voltariam a ser ocupadas pelas
multidões, agora tomadas de exclusiva alegria em face da inquestionável
superioridade demonstrada por seus atletas dentro de campo. Nos meses
seguintes ao êxito, as telas de cinema contribuíam para manter a sensação
positiva do triunfo, com a exibição do filme Brasil Bom de Bola, produzido
pelo Canal 100 e dirigido Carlos Niemayer, experiência cinematográfica
original, conhecida por desviar o foco da câmara para o público torcedor. As
recém filmadas as imagens da copa eram levadas para o circuito de cinema
nacional. Conforme noticiava a seção Roteiro de Cinema do Jornal dos Sports,
a película era uma das grandes atrações para as férias do verão carioca de
1971
176
.
O filme receberia a chancela federal no Festival de Brasília do mesmo
ano, uma vez que ele seria escolhido para substituir o proibido documentário de
Vladimir Carvalho, País de São Saruê, com candentes denúncias às condições
de vida da população nordestina
177
. A projeção oficial de Brasil Bom de Bola
faria com que a filmografia de Niemayer tivesse ainda continuidade quatro
anos mais tarde com Futebol Total, exibidos nos cinemas cariocas também no
verão de 1975, com os registros da Copa do Mundo de 1974, na Alemanha
178
.
Assim, a cena esportiva brasileira daquela década era completada por uma
idolatria áudio-visual que, além de Pelé no futebol, vangloriava Emerson
Fittipaldi na Fórmula 1 e Eder Joffre no boxe.
175
Cf. PRADO, L. C. D.; EARP, F. S. “O ‘milagre’ brasileiro: crescimento acelerado, integração
internacional e concentração de renda (1967-1973)”. In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. (Orgs.).
O Brasil Republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do
século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, vol. 4.
176
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 08 de janeiro de 1971, p. 08.
177
Cf. ORICCHIO, L. Z. op. cit., p. 139.
178
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1975, p. 12.
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226
Todo esse cenário festivo verde-amarelo contribuiria para transfigurar a
tônica belicosa do ano anterior, com as coberturas empreendidas pelo Jornal
dos Sports a respeito da participação dos estudantes por meio de passeatas na
cidade. A substituição de foco dos protestos estudantis em favor das notícias
centradas nos jogos ou nas celebrações efusivas nas ruas por parte da população
após a conquista do tricampeonato parecia apontar para um rápido
esquecimento dos conflitos até então ocorridos em praça pública. O potencial
contestatório juvenil parecia ser dragado pela contagiante ufania, ilustrada com
a corrente pra frente do jingle de Miguel Gustavo composto para a copa, cuja
melodia se tornou bastante famosa, e com o sucesso da marcha musical da
dupla Dom e Ravel, “eu te amo, meu Brasil... / ninguém segura a juventude do
Brasil”
179
, a canção popular cafona
180
que em roupagem kitsch melhor traduzia
as mensagens ideológicas oficiais atribuídas ao novo papel dos jovens naquele
contexto nacional. Embora o slogan Poder Jovem ainda repontasse aqui e ali no
jornal, o critério de seleção dos fatos dignos de “espetaculosidade”
181
sofria
alterações, com a saída de cena ou com o deslocamento de sua presença no
conjunto de assuntos privilegiados pelos repórteres, dentro do espectro temático
do jornal.
De modo diverso ao que aconteceu com as reportagens estudantis, o
movimento de dissidência de torcidas organizadas e das revoltas dos torcedores
e das suas proto-associações nos estádios não sofreu uma quebra drástica nos
meses que se sucederam ao decreto institucional do governo federal. Impelido
pela dinâmica clubística interna, as torcidas não seriam afetadas de maneira tão
direta com o fim das passeatas e com as transformações políticas assinaladas,
sem implicar em um imediato desaparecimento da sua cobertura nas páginas do
Jornal dos Sports. Embora as passeatas estudantis – um importante referencial
contestatório no ano anterior – houvessem sucumbido, algumas práticas
inspiradas naqueles acontecimentos recém-vividos na cidade teriam um certo
179
Cf. HABERT, N. op. cit., p. 08.
180
Em sua opulenta dissertação de mestrado em Memória Social defendida na UNI-Rio, depois
transformada em best-seller editorial, Paulo César de Araújo contradiz a visão segundo a qual as
letras dos irmãos Dom e Ravel, entre outros cantores considerados bregas, emitiriam apenas
mensagens de exaltação à ideologia governamental. Ao contrário, de acordo com o historiador, a
maioria delas traz embutida a denúncia do autoritarismo e da segregação social das classes
populares no cotidiano brasileiro. Cf. ARAÚJO, P. C. de. Eu não sou cachorro, não: música
popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 16.
181
Cf. CAPELATO, M. H. R. op. cit., p. 15.
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grau de prosseguimento no futebol. Não resta dúvida, entretanto, de que o
espírito de revolta e o poder catalisador de contestação foram sendo
pulverizados pouco a pouco com a introdução de uma série de novos elementos
à identidade dessas recém-formadas agremiações. Do ponto de vista das
reportagens jornalísticas, mudanças mais sutis concernentes a novos parâmetros
constitutivos de um modo de “ser jovem”, tal como veiculado pelo jornal, vão
se tornando perceptíveis com o passar dos anos.
A visibilidade dos protestos ainda era possível, em parte, graças à
notoriedade midiática de alguns componentes dessas Torcidas Jovens. Já nos
primeiros dias de janeiro de 1969, as eleições no Fluminense movimentavam as
atividades da Jovem-Flu, que lançava um manifesto de apoio ao candidato
Francisco Laport à presidência do clube. Embora advogassem o não-
envolvimento com as questões internas do clube e a não-participação em sua
direção, os membros do grupo empenhavam-se na eleição de um candidato que
recuperasse o prestígio do time e que operasse uma mudança estrutural na
postura amadorística da equipe. Também chamados de ‘jovem-guarda tricolor’,
eram representados na primeira página do jornal com a foto de Elis Regina,
espécie de garota-propaganda do grupo, uniformizada com a camisa tricolor, a
apoiar o candidato de sua preferência.
Na matéria consagrada ao Jovem-Flu no interior do periódico, os nomes
de Chico Buarque, Hugo Carvana, Dori Caymi, Nelson Mota e Nei Bianchi
chancelavam a campanha. A fim de dar mostras da força do movimento, uma
lista de simpatizantes era endossada com os seguintes artistas-torcedores:
Ronaldo Bôscoli, Paulo César Saraceni, Mário Carneiro, Joaquim Pedro de
Andrade, Júlio Bressane, Paulo César de Oliveira, Carlos Leonam, João Luis
Albuquerque, Raul Fernandes Sobrinho, Sílvio César, Francisco Gaya, Paulo
Bertazzi, Nina Chaves, Pitigliani e Wilson Figueiredo
182
. Além das matérias
coletivas, reportagens individuais eram feitas com seus membros. Em “Sonho é
um grande time”, o compositor Ronaldo Bôscoli mencionava o vínculo filial
que o unia ao clube – seu pai era um antigo quadro dirigente – e salientava as
diretrizes necessárias para a renovação do time
183
.
182
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 05 de janeiro de 1969, p. 01 e 05.
183
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de janeiro de 1969, p. 04.
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Ao longo do ano de 1969, mesmo com a vitória do candidato de sua
simpatia, o Jovem-Flu se rearticularia todas as vezes que alguma mudança
significativa na equipe tricolor ia de encontro ao seu posicionamento e às suas
aspirações. Em julho de 1969, o jornal anunciava: “Torcida promete guerra se
Flávio sair”. O possível afastamento de um jogador levava-os à mobilização,
com a formação de um movimento também denominado Reação. Hugo
Carvana voltava a dar depoimentos ao jornal contra a venda do atleta e para isto
previa a realização de passeatas, fazia ameaças de pichação à sede das
Laranjeiras e concedia sucessivas entrevistas à imprensa
184
. Em contrapartida,
Nelson Rodrigues, que ainda não se retirara da colaboração do jornal, escrevia
uma crônica onde traçava o perfil do mentor daquelas idéias conspiratórias:
“Um homem chamado Hugo Carvana”
185
. No mês seguinte, um dos integrantes
do grupo, Carlos Leonam, fazia uso de sua coluna dominical “Guerra é guerra”
para aludir a um excêntrico encontro do Jovem-Flu, a ocorrer de modo
inusitado em Roma, Itália, onde então vivia exilado Chico Buarque, “a fim de
traçar os novos rumos políticos da torcida.”
186
.
Outro ponto a se notar no início de 1969 se relaciona a uma certa
continuidade lograda pelas revoltas das torcidas juvenis de Fluminense e
Flamengo do biênio 67-68. Elas acarretariam uma espécie de efeito em cascata
sobre as torcidas dos demais clubes, a servir de exemplo para o questionamento
dos chefes de outras tradicionais agremiações e dos presidentes de clube em
seus pleitos eleitorais. Enquanto a torcida do Flamengo ensaiava novos
protestos ‘queremistas’ após uma derrota para o Olaria, com os gritos de “–
Queremos um time! Queremos um time!”
187
, as torcidas do América, do Bangu
e do Vasco criavam suas dissidências internas com o aparecimento da Jovem
América, da Torcida Jovem do Bangu e dos Leões Vascaínos. A cobertura do
JS acompanharia os torcedores cruzmaltinos com a matéria “Torcida faz
revolução para salvar o Vasco”, na qual abordava a insatisfação dos dissidentes
depois de uma derrota para o Flamengo no Maracanã, com gritos de guerra de
cerca de cem torcedores liderados por Abílio, “um português de sotaque
184
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 e 08 de julho de 1969, p. 03 e 08.
185
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de janeiro de 1969, p. 04.
186
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de agosto de 1969, p. 17.
187
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de abril de 1969, p. 10.
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229
carregado”
188
. Segundo tal liderança, a razão de ser da agremiação se devia não
somente à discordância com a direção do clube mas à divergência com as
posturas de Dulce Rosalina na condução da Torcida Organizada do Vasco.
Há onze anos sem título, e após sucessivos fracassos naquela temporada,
a torcida oficial e a torcida dissidente poderiam contudo se irmanar em
determinadas ocasiões. A oposição comum ao presidente Reinaldo Reis, com
quem não obstante Dulce Rosalina nutria boas relações pessoais, propiciava a
união conjuntural entre os Leões Vascaínos e a TOV, com a invocação retórica
da solidariedade e do sacrifício mútuo dos torcedores em seu “amor pelo
clube”. Quanto mais escassas se tornavam as vitórias no ano de 1969, mais a
pressão contra os dirigentes aumentava. Estes eram esperados à saída dos
vestiários e faziam-se ameaças de enterros simbólicos dos mesmos, à maneira
das torcidas do Flamengo e do Fluminense no ano anterior.
Depois da renúncia do técnico Paulinho, o jornal noticiava as agitações
na sede de São Januário com trezentos torcedores que pediam o afastamento do
presidente do clube. “Cassação de Reinaldo está por pouco”, aduzia em
manchete o jornal. Além da renúncia de Reinaldo Reis, os torcedores entoavam
os gritos de “Viva Ciro / abaixo Reinaldo”, “Queremos Ciro / queremos Ciro”,
invocando o nome do ex-presidente cruzmaltino, Ciro Aranha. Premido pelas
cobranças dos torcedores, Reinaldo Reis se defendia no jornal com uma
declaração que colocava sob suspeição a legitimidade dos grupos representados
por Abílio Valente e Dulce Rosalina: “São faixas manipuladas. A torcida do
Vasco não vai, às 8hs, estar em São Januário e de faixas. A torcida do Vasco
tem carteira do Ministério do Trabalho.”
189
.
Os resultados e a performance da equipe em campo, a política interna dos
clubes e o exemplo das torcidas dissidentes nos anos anteriores parecem
constituir os fatores-chave na gênese e na precipitação de novos grupos
torcedores em fins da década de 1960. A recém-criada Torcida Jovem do
América também se via estimulada a promover enterros simbólicos do
presidente do clube, Volnei Braune. Eles se davam em um momento preciso, às
vésperas do desencadeamento do processo eleitoral que daria permanência ou
fim à gestão de Volnei no clube. Em protesto contra as derrotas, a Torcida
188
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de maio de 1969, p. 04.
189
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 14 de maio de 1969, p. 14.
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230
Jovem americana adotava o mesmo procedimento das facções juvenis dos
outros clubes nos anos anteriores. Afora a simulação de cortejos fúnebres,
havia pichação sobre a fachada do clube e faixas de intimidação com os
seguintes dizeres estendidos nos dias de jogo: “A luta continua, Braune no olho
da rua.”
190
.
Com a inspiração do ano precedente, em que as contestações dos
estudantes e das torcidas haviam atingido uma notável repercussão, as crises e
os escores negativos pareciam ainda, sob aquela nova ambiência política,
fornecer motivos suficientes para canalizar as insatisfações e dar continuidade
aos protestos entre os torcedores. Sob o ângulo jornalístico, porém, pouco a
pouco o apelo das torcidas organizadas neste sentido perdia a exclusividade,
sendo reportadas com menos ênfase nas manchetes, em artigos especiais ou em
matérias centrais para concentrar-se no espaço de origem destinado aos
torcedores: a seção de leitores, intitulada Bate-Bola. De modo progressivo e
diferenciado, seria possível detectar uma sensível quebra no encorajamento do
periódico em relação às manifestações daqueles agrupamentos contra os
dirigentes de clube, embora tal transformação ocorresse de modo paulatino e
decrescente, com a discreta migração do plano das manchetes e das reportagens
exclusivas para a seção estrita a que se destinavam as cartas dos leitores. Nas
grandes chamadas, as efemérides mais corriqueiras do cotidiano dos treinos,
dos jogos e do campeonato voltavam a imperar sem concorrentes paralelos.
O enquadramento a que eram submetidos os torcedores no padrão das
edições jornalísticas fazia com que essa modificação de formato não impedisse
o prolongamento das polêmicas travadas pelas novas torcidas em relação aos
dirigentes de clube e às antigas lideranças de torcedores. Em vez da mediação
do debate pelos jornalistas na elaboração de suas matérias especiais, os temas
eram redigidos e desenvolvidos pelos próprios torcedores através de cartas
publicadas no pequeno porém livre espaço de opinião do Bate-Bola. Em
princípio voltada ao torcedor de uma maneira indiscriminada, aquela pequena
tribuna opinativa era apropriada pelas Torcidas Jovens então florescentes para
fins de comunicação, propaganda e divulgação de suas programações. Ali se
discutia, se convidava, se provocava, se informava e, sobretudo, se afirmava a
190
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 e 15 de junho de 1969, p. 07.
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231
identidade de cada grupo. Os novos chefes estabeleciam um diálogo por escrito
com seus simpatizantes, com a orientação das suas atividades a seus
seguidores. Estes, por seu turno, pareciam dialogar entre si e com seus rivais,
mediante o intercâmbio de cartas que no dia a dia ia compondo um painel
comunicativo contínuo, em contraposição às intermitentes matérias de cunho
mais chamativo, sempre incertas e imprevisíveis, ao sabor no mais vezes de
veleidades dos cronistas e jornalistas.
A alternância no peso de abordagem das torcidas organizadas, a
intercalar as manchetes de impacto, com sentenças curtas, exclamativas e
epigramáticas, em caixa alta e com foto na primeira página, e a discreta seção
Bate-Bola, com suas linhas curtas em formato de breves notas e com seu
interesse reservado ao segundo plano na escala de preferência do jornal, oferece
indícios para uma consideração teórica preliminar a respeito dos efeitos
causados em cada um dos níveis discursivos sobre a massa de leitores. Em seu
ensaio acerca do declínio da arte narrativa, Walter Benjamin identificava o
advento da tipografia no século XVI e a difusão do livro no período seguinte
como responsáveis por uma clivagem na relação entre a comunicação oral e a
comunicação escrita no mundo moderno, cujo corolário no século XIX era o
jornal e o romance burguês. Em sua visão, a imprensa e sua narrativa
jornalística constituíam uma das formas de comunicação do alto capitalismo
que, por sua necessidade industrial de produzir novidades incessantes sempre
sensacionais, para fins de aumento da vendagem, haviam bloqueado a troca
entre os indivíduos baseada na experiência direta, no contato físico e na
sabedoria interpessoal.
A técnica da informação consistia na capacidade do jornalista de
transformar os acontecimentos imediatos do domínio público em eventos
extraordinários e de choque, consumidos em uma velocidade e em uma
voragem tal que eles não possibilitavam uma assimilação passível de integração
a uma cadeia de transmissão, consagrada pela tradição de pessoa a pessoa, de
geração a geração. A arte de contar histórias havia se manifestado desde a
Antiguidade através da forma épica da poesia oral e preponderara durante a
Europa pré-industrial por meio de seu caráter artesanal, integrador da palavra e
dos gestos, em uma totalidade performática cujo estudo apenas insinuado por
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232
Benjamim seria empreendido em profundidade pelo medievalista suíço Paul
Zumthor, na obra A letra e a voz
191
.
Para Benjamin, de um lado, a concretude das relações pessoais e a
capacidade de aconselhar davam lugar ao isolamento do escritor burguês que,
ante o vazio deixado pelo declínio dos antigos narradores e da sua “moral da
história”, buscava encontrar um “sentido da vida” por meio de uma
introspecção psicológica em seu solilóquio romanesco; de outro, o contato
direto entre emissor e receptor era cindido em prol da instantaneidade da
técnica informativa, incapaz porém de se sedimentar em um solo comum da
memória coletiva. A quantidade de informações diárias despejadas pelos
jornais embotava o indivíduo de mensagens na sincronia do presente,
soterrando-o de aquis e agoras. De modo que era preciso, segundo a assertiva
de uma das enigmáticas e messiânicas teses benjaminianas, o advento de um
anjo da história para forjar resistências contra a dominação e para livrar o
passado do esquecimento
192
.
O fim da “faculdade de intercambiar experiências” ou a “a pobreza em
experiências comunicáveis”
193
divisada de modo niilista por Benjamin no
limiar da modernidade européia não impedem o reconhecimento de outras
modalidades de interação que podiam ser construídas nos interstícios dos meios
de comunicação de massa. Se o alarde promovido pelas notícias principais
visava chocar e despertar a atenção do leitor quanto a fatos excepcionais, logo
sucedidos por outros ainda mais espetaculares, as cartas publicadas pelos
leitores em um espaço de menor apelo, dramaticidade e destaque no interior do
jornal possibilitavam a observação de uma espécie de conversa escrita, tecida
em um tom coloquial à maneira das crônicas em geral e das crônicas esportivas,
em particular
194
. A liberdade de expressão proporcionada por aquela coluna
reservada aos torcedores consubstanciava-se na discussão em torno das mais
diversas situações relatadas por estes indivíduos a partir das circunstâncias do
jogo ou do pertencimento clubístico. Uma infindável gama de relatos, opiniões,
191
Cf. ZUMTHOR, P. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
192
BENJAMIN, W. “Sobre o conceito da História”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasilense, 1994, vol.1.
193
Cf. id. “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolau Leskov” ; “Experiência e pobreza”.
In: op. cit., p. 198.
194
Para um estudo do gênero epistolar, ver trabalho organizado por Walnice Nogueira Galvão e
Nádia Battella Gotlib. Cf. GALVÃO, W. N.; GOTLIB, N. B. (Orgs.) Prezado senhor, prezada
senhora: estudos sobre cartas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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discursos, panegíricos, sugestões, recados, anúncios, convocações, dúvidas,
arrazoados, maledicências, qüiproquós e circunlóquios de toda espécie vinha à
tona na seção, com direito a desafios, respostas, ameaças, réplicas e tréplicas
por parte daqueles escrevinhadores diários, que não raro faziam descambar tais
cartas para um tom de informalidade, de coloquialidade, de licenciosidade ou
de agressividade.
Dentre os vários planos da vida social, os prosaicos, banais e ordinários
assuntos presentes nas missivas dos torcedores podem colocar em dúvida a
relevância de se proceder à leitura e à interpretação dessa micro-região do
jornal, haja vista a crença arraigada no contraste entre a objetividade dos
acontecimentos relatados pelos jornalistas e a subjetividade das opiniões
descritas nas cartas dos leitores. Ao invés de focar a atenção nas linhas mestras
que nortearam o período – a conquista da Copa do Mundo, a inauguração dos
grandes estádios, a presença militar no comando das entidades esportivas – tal
escolha possibilita a apreensão de novos pontos de vista atinentes à vivência
nacional naquele momento. É a especialista em história da imprensa, a
professora Marialva Barbosa, quem endossa a escolha de fontes que
circunscrevam uma relação do público com a mídia. Ao salientar os vestígios
de uma época, isto é, “os sinais significantes que cheguem até nós sob a forma
escrita”, a historiadora inclui “correspondências que os próprios leitores
encaminharam às publicações”
195
.
Seria conveniente ainda a ponderação prévia de que o valor dado a
aspectos à primeira vista anódinos no conjunto de um periódico ou de uma
época pode permitir uma reconsideração dos elementos mais visíveis e com
maior destaque, como frisaram expoentes da terceira geração dos Annales, da
historiografia inglesa dos anos 50 e 60 e da micro-história italiana nas décadas
de 1970 e 1980, sendo as obras de Thompson, Ginzburg e Darnton as que
alcançaram mais visibilidade na proposição de uma história social da cultura
vista “de ponta-cabeça” ou “de baixo para cima”
196
. A título de exemplo no
195
Cf. BARBOSA, M. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2007, p. 14.
196
Para uma visão de conjunto, ver a análise de Hobsbawm que põe em consideração a obra de
George Rudé sobre a multidão na história e a ascensão das massas como sujeito histórico no
contexto das revoluções industrial e francesa. Cf. HOBSBAWM, E. “A história de baixo para
cima”. In: Sobre história: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Cf. também.
BURKE, P. O que é história cultural ? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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plano nacional, no que se refere à reconstituição de períodos históricos
baseados em jornais, cabe lembrar uma obra precursora da historiografia
brasileira dos anos de 1930. Trata-se do livro Sobrados e Mucambos, de
Gilberto Freyre, apoiado em uma pesquisa documental junto a diminutos
anúncios publicados nos classificados dos jornais brasileiros durante o período
imperial oitocentista relativos à venda e à compra de escravos, o que lhe
permitiu uma ampla recomposição da época sob um prisma heurístico
insuspeitado. A mesma estratégia é utilizada por Lilia Moritz Shwarcz em sua
dissertação de mestrado defendida na Unicamp nos anos 80, Retrato em branco
e negro, na qual a historiadora analisa a imagem dos negros expressa pela
imprensa paulistana nas últimas décadas do século XIX
197
.
É válida ademais a observação de que as mudanças na forma determinam
as transformações de significado. A diagramação do jornal, e de todos os
aspectos formais escandidos em sua dimensão visual, não deve ser percebida
como a combinação de imagens e de letras per se, mas como um artefato
industrial previamente definido pelo editor do periódico e condicionado por
seus anunciantes, onde está implícito o caráter construtivo, eletivo, seletivo da
notícia. A história editorial feita por Roger Chartier acerca das modificações
tipográficas nas sucessivas impressões de livros clássicos e de peças teatrais
parece bem adequada também para as práticas de leitura dos jornais diários:
“Ao estudar as variações na impressão das peças de William Congreve
nos séculos XVII e XVIII, D. F. MacKenzie pôde mostrar de que
modo transformações aparentemente pequenas e limitadas (mudança
de formato, de in-quarto para in-octavo, uso de ornamentos para
separar as cenas, enumeração dos episódios com algarismos romanos,
relação dos nomes dos personagens no início de cada cena, menção de
quem entra e quem sai, indicação do nome de quem fala)
influenciaram decisivamente o status conferido à obra ou a maneira de
lê-la, e até mesmo o modo como o próprio autor passou a considerá-la.
Uma nova legibilidade foi criada pelo formato, que tornou o livro
mais fácil de carregar, e pelo layout, que resgatou alguma coisa do
dramático senso de movimento e tempo na impressão. Uma nova
inteligibilidade, mas também um novo horizonte de recepção, pois as
formas usadas na edição in-octavo de 1710 tinham, aparentemente,
‘classicizado’ o texto o que talvez tenha motivado Congreve a
depurar sua escrita aqui e ali, com o objetivo de fazê-la ajustar-se à
nova legitimidade do texto.”
*
197
Cf. SHWARCZ, L. M. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo
no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
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“Um processo semelhante ocorre com os indicadores puramente
formais ou materiais o formato e a imagem, por exemplo. Do in-
folio aos formatos menores, existe uma hierarquia que estabelece uma
ligação entre o formato do livro, o gênero do texto e o momento e o
modo de ler. Lorde Chesterfield prestou testemunho desse fato no
século XVIII: ‘Os sólidos in-folio
são os homens de negócios com os
quais converso de manhã. Os in-quartos são as pessoas mais afáveis e
variadas com as quais me sento depois do jantar, e passo minhas
noites em bate-papos amenos e geralmente frívolos com os pequenos
in-oitavos e in-doze’. Essa hierarquia é, além do mais, diretamente
herdada dos tempos em que os livros eram copiados à mão. Essa
hierarquia distinguia o livro, para ser lido, precisava ser colocado em
posição horizontal; o livro humanista, mais manuseável em seu
formato médio e mais apropriado tanto aos textos clássicos quanto aos
mais recentes; e o livro portátil, o libellus, um livro de bolso e de
cabeceira com múltiplos usos e leitores mais numerosos. A imagem do
frontispício ou página de rosto, ao longo da margem ou na última
página, também classificava o texto e sugeria uma forma de leitura.
Estabelecia a convenção de leitura, o índice de identificação.”
198
.
Assim, a análise tanto sociológica quanto semiológica do design gráfico,
do layout e da disposição espacial das informações no corpo do periódico
fundamenta-se na premissa de que o formato jornalístico, onde se inclui a
materialidade do suporte, o caráter sugestivo das fotos e a persuasão retórica
das palavras, é indissociável dos jogos de forças e das relações de poder
presentes no jornal e, por extensão, na sociedade. A análise contemporânea de
Pierre Bourdieu sobre os ditames e os condicionamentos impostos pela
televisão à liberdade de pensamento e aos questionamentos críticos pode ser
útil à compreensão geral dessas relações entre meios de comunicação e poder.
Em abono às suas considerações sempre intempestivas:
“A foto não é nada sem a legenda que diz o que é preciso ler –
legendum –, isto é, com muita freqüência, lendas, que fazem ver
qualquer coisa. Nomear, como se sabe, é fazer ver, é criar, levar à
existência.”
199
.
Por outro lado, a consciência dessas determinações e dessas prerrogativas
verticais não deve levar-nos de volta à visão apocalíptica ou integrada sugerida
pela perspectiva que se inaugurou com os frankfurtianos. A atenção dedicada à
coluna do Jornal dos Sports permite, pois, a observação da maneira pela qual
198
Cf. CHARTIER, R. “Textos, impressões, leituras”. In: HUNT, L (Org.). A nova história
cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 221, 228 e 229.
199
Cf. BOURDIEU, P. Sobre a televisão (seguido de A influência do jornalismo e Os Jogos
Olímpicos). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 26.
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era urdida uma relação dialógica entre jornalistas e torcedores, e destes entre si,
em um espaço aparentemente de somenos importância, com pouco capital
simbólico, para utilizar o termo de Bourdieu, na escala de crenças da
veracidade informativa do jornal, dramatizadora, em um outro contexto, da
antiga querela científica entre a épisteme (conhecimento verdadeiro) e a doxa
(opinião). Por fim, indo de encontro a Benjamin, é possível lembrar ainda a
perspectiva de Mikhail Bakhtin na defesa do caráter polifônico do romance
moderno. Ela pode ser utilizada como argumento extensível também para a
consideração da polifonia do jornal, como locus não-reducionista nem
unilateral, com brechas hermenêuticas que põem em evidência as inter-relações
e as interfaces dos atores sociais no espaço público dos jornais
200
.
O reconhecimento da passagem de uma massa indiscriminada de leitores
para uma comunidade específica de torcedores-escritores, que interagiam com
base naquele pequeno universo de opiniões e impressões relativas à vivência
esportiva, é necessário ainda para uma outra colocação de ordem metodológica.
Frente à perda de um ideal narrativo no mundo moderno, a tentativa de forjar
algum tipo de intercâmbio de experiências no espaço do jornal, tido como
uniformizador e solapador de diferenças pelos primeiros teóricos da
comunicação
201
, mostrava-se vívida e calorosa naquela seção. Ao encontro
dessa perspectiva, é possível mencionar ainda a obra de um autor filiado às
questões da Escola de Frankfurt, Jünger Habermas, e seu trabalho do início dos
anos 80, a Teoria da ação comunicativa
202
. Sem o descarte do pólo racional,
sua elaboração teórica procurava defender a positividade da condição moderna
e dar sustentação à vigência do ideal iluminista, tendo em vista a incompletude
do projeto da modernidade na cena contemporânea. Na ótica habermasiana, a
razão não se restringiria à instrumentalidade da dicotomia sujeito-objeto, mas à
racionalidade comunicativa que, com base em argumentos e contra-
argumentos, visa produzir o consenso e o entendimento mútuo na esfera
pública. Os interlocutores agem por meio da linguagem mediatizada, pondo em
200
Cf. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1981.
201
Para uma exposição sumária dos principais argumentos marxistas implicados na apreciação da
cultura de massas, ver o trabalho de Alan Swingewood. Cf. SWINGEWOOD, A. O mito da
cultura de massa. Rio de Janeiro: Interciência, 1978.
202
O alentado ensaio de Sérgio Paulo Rouanet sobre a obra de Jünger Habermas fornece subsídios
para tais afirmações. Cf. ROUANET, S. P. “Poder e comunicação”. In: op. cit..
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consideração a objetividade dos fatos, a adequação de suas ações a um ideal de
justiça e a veracidade de suas emoções.
A exposição dessa breve démarche visa justificar a maneira pela qual a
escolha da seção Bate-Bola se impôs na pesquisa na proporção em que a leitura
serial do jornal avançou. Ela revelou a existência de uma comunidade
lingüística, com uma fonte escrita privilegiada para a observação e para a
apreensão das tensões esportivas que constituem a gênese das torcidas
organizadas no período. Ela possibilitou, por exemplo, entender o horizonte
argumentativo a respeito da legitimidade dos principais chefes de torcida. Esta
discussão se encontraria no dia a dia do jornal, tal como iniciada no biênio
1967-1968, e modularia o discurso sobre a eclosão das Torcidas Jovens. A
autoridade dos líderes seria um dos pontos mais explorados no cotidiano da
seção de leitores do jornal naquela conjuntura de fins dos anos 60 e início dos
anos 70. É certo que tal questão era suscitada pela sua divulgação sucessiva do
periódico com matérias e manchetes acerca da ausência dessas lideranças nos
estádios nos dias de jogos. Uma série de incidentes em cadeia provocava o
afastamento dos chefes de torcida de Flamengo, Vasco, Fluminense e
Botafogo. Estes alegavam enfermidades, acidentes e toda sorte de
compromissos pessoais o que dificultava a presença no comando de suas
torcidas.
Jaime de Carvalho, por exemplo, via-se com freqüência impedido de ir às
partidas do Flamengo, “afastado por recomendação médica”
203
. A sua situação
gerava uma mobilização na cidade, dada a projeção e a importância assumida
por esse torcedor, que não podia comparecer à Copa do Mundo do México, em
seu tradicional posto de chefe da torcida brasileira, conquanto tenha estado
presente em Assunção, no Paraguai, no ano de 1969, para uma partida decisiva
da fase eliminatória. Desde março de 1970, circulavam informações sobre sua
internação e em maio daquele ano a matéria intitulada “Torcida dá apoio à
campanha por Jaime” expunha a razão de sua ausência, retratando o
reconhecimento que este possuía entre seus pares e as entidades oficiais do
futebol mediante uma subvenção financeira:
203
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1971, Segundo Tempo, p. 08.
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“Em virtude da doença de Jaime de Carvalho, o Jornal dos Sports e a
Federação Carioca de Futebol tomam a iniciativa de dar uma pensão
ao chefe dos chefes das torcidas. Vários chefes de torcida ressaltam as
qualidades de Jaime de Carvalho, como o pioneirismo na criação das
torcidas organizadas, o fascínio que exerce sobre os jogadores e os
ensinamentos legados aos demais chefes de torcida. Tarzã do
Botafogo, Juarez do Bangu, Elias do América e Sérgio do Fluminense
consideram justas as benesses recebidas por um homem que tanto
contribuiu com o futebol brasileiro e ainda esperam que seja
concedida uma bolsa de estudos ao filho Tadeu.”
204
.
A notícia despertava a preocupação dos torcedores da cidade, após o
anúncio das rádios e inclusive da TV Globo acerca do agravamento de seu
estado de saúde. O jornal A Luta Democrática chegou a veicular na sua
primeira página, em abril de 1970, o falecimento de Jaime: “Mengo de luto”
205
.
Mesmo adeptos de torcidas organizadas adversárias manifestavam inquietação
com os rumores em torno da situação do líder da Charanga Rubro-Negra:
“... desejo lamentar o boato que correu pela cidade na noite de sábado
de que o Jaime de Carvalho havia morrido. Felizmente, ele ainda está
bem vivo, e se Deus quiser assim continuará ainda por muitos anos.
(‘Brilho do Vasco’, Ricardo, Força Jovem do Vasco)”
206
.
Coincidência ou não, o líder da torcida tricolor, Paulista, também tinha
de se ausentar dos estádios, pois padecia de igual maneira de problemas de
saúde, conforme sentenciava na coluna O jogo da torcida o repórter Marco
Aurélio Guimarães: “Ausência do Batuta calou a multidão”
207
. Se Paulista
enfrentava desavenças internas com Bolinha, outro torcedor marcante do clube
que havia criado desde maio de 1967 a Torcida Dissidente, o enfermo chefe
designava um outro suplente para seus momentos de ausência na torcida, com a
indicação de Sérgio Aiub como seu sucessor. Este assumia o comando do
grupo não apenas no Maracanã mas também nas caravanas a outros estados
208
.
Quanto a Dulce Rosalina, seu afastamento do futebol era mais grave e chegava
a envolver risco de vida. Um acidente na estrada durante uma de suas viagens a
São Paulo para acompanhar um jogo do Vasco havia forçado sua retirada
temporária dos estádios. O desastre ocorrido no final de novembro de 1968 na
204
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de março de 1970 e 04 de maio de 1970, p. 06 e p. 07.
205
Cf. AQUINO, W.; CRUZ, C. op. cit., p. 59.
206
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 30 de abril de 1970, Seção Bate Bola, p. 06.
207
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de maio de 1968.
208
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de agosto e 17 de setembro de 1968, p. 04 e p. 03, respectivamente.
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Via Dutra deixou quinze feridos e mereceu notável destaque na primeira página
do jornal, com foto da líder hospitalizada e com o acompanhamento nos dias
subseqüentes do “drama dos torcedores” acidentados
209
.
Já no caso de Tarzã a sua saída devia-se mais a questões profissionais do
que médicas. Desde março de 1968, a mudança de cidade, com a transferência
para Minas Gerais, era uma possibilidade especulada no jornal, com a
cogitação inclusive de que Tarzã assumiria a chefia da torcida do Atlético
Mineiro
210
. O torcedor desenvolvera negócios em Minas Gerais, o que limitava
sua participação nos jogos no Maracanã. Em reportagem para o Jornal dos
Sports, o alvinegro declarava: “Minhas viagens constantes Rio-Belo Horizonte
não têm permitido empregar mais tempo para o Botafogo. Enquanto não
aparece outro líder, eu vou ficando por aqui”
211
. Sua ausência podia justificar-
se também em função de seu temperamento exaltado. O envolvimento de Tarzã
em costumeiras confusões com outros torcedores e com a própria polícia o
impedia por vezes de assistir às partidas. Na reportagem “Tarzã vê o tri de
dentro do xadrez”, o Jornal dos Sports referia-se a um incidente que culminara
no encarceramento do torcedor:
“Tarzã é preso pela polícia ao querer postar a sua torcida no centro do
estádio, o que gerou confusão com a torcida do Vasco. Tarzã não quis
atender o pedido do policial, o capitão Adalberto, de remanejar seu
grupo e foi preso. O presidente do Botafogo, Altemar Dutra de
Castilho, que também é secretário de finanças da Guanabara,
intercedeu a seu favor: Quando Tarzã foi solto, rumou logo para o
meio da torcida do Botafogo, que o esperava na saída do estádio,
fazendo um tremendo carnaval com cantos de ‘Botafogo já é tri, agora
vamos para o tetra’ e agitando as bandeiras de todas as formas’.”
212
.
As razões manifestas dos agentes, ou seja, a enumeração das doenças e
das questões de ordem privada que impossibilitavam a condução das torcidas
organizadas por parte dos tradicionais chefes, tinham significativas reações na
seção de cartas do jornal. Os fatos estimulavam o endereçamento de inúmeras
missivas ao Jornal dos Sports, nas que se colocava em pauta a urgência na
substituição dessas lideranças. Tal constatação era decorrência das dificuldades
209
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 e 22 de novembro de 1968, p. 01 e 03, respectivamente.
210
“Tarzã vai chefiar a torcida do Atlético”. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de março de 1968, p. 10.
211
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de julho de 1968, p. 06.
212
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de maio de 1969, p. 10.
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240
atravessadas por aquelas figuras emblemáticas, mas ela também se devia ao
aparecimento de novos grupos de torcedores que concorriam entre si e
almejavam a sua auto-afirmação no meio. Uma polêmica entre os missivistas
era logo instaurada, com a separação entre os que combatiam e os que
defendiam a presença dos antigos líderes à frente dos grupos. Os chefes da
torcidas do Vasco e do Botafogo constituíam os principais alvos da discussão.
Com relação à líder vascaína, a seção Bate-Bola publicava cartas que a
interpelavam e a desafiavam: “Como é, Dona Dulce ?”, “Dulce na berlinda”,
“Gracinha”. As alegações para a exclusão da sua liderança eram as mais
diversas e compreendiam interesses pessoais, relações políticas no clube,
declarações inapropriadas na televisão, concessão de espaço às novas gerações
e até preconceitos contra a sua condição feminina. O teor das mensagens pode
ser percebido nas seguintes transcrições:
“Por que não lutamos para tirar a Sra. Dulce Rosalina da chefia da
imensa torcida vascaína ? Não podemos admitir que ela fique apenas
apoiando o sr. Reinaldo Reis, como no caso de Fontana. Queremos um
chefe de torcida que lute pelo tradicional e tão querido Vasco da
Gama” (Murilo de Andrade Cavalcanti, Avenida Automóvel Clube,
1535-A, ap. 102, Guanabara).”
213
.
*
“Graças a Deus, o Vasco vai indo bem. Só precisa, agora, de mais
empolgação da torcida. Quando forem ao Mário Filho, notem que a
única parte animada é a localizada atrás do gol, composta na maioria
por jovens, que gostam mesmo de torcer pelo time. A parte chefiada
por Dulce Rosalina só sabe fazer barulho, mesmo assim desordenado,
quando o time está ganhando. Por esse motivo, nós vascaínos
‘mesmo’, não consideramos mais a Dulce como chefe da torcida
organizada, porque de organizada ela só tem o nome.” (Luciano
Vicenzo, Guanabara).
214
*
“Onde já se viu torcida comandada por mulher. Ela devia estar em
casa, cuidando dos filhos.”
215
.
As cartas em resposta às acusações e à desautorização da chefia vascaína
não tardavam a aparecer. A própria torcedora era portadora de missivas como
“Apelo de Dulce”, onde conclamava todos os vascaínos a assistir aos jogos na
Torcida Organizada do Vasco, que em 1969, em virtude da recuperação de sua
saúde, ficava sob o comando interino de Eli Mendes. Segundo as palavras da
213
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 1969, p. 04.
214
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de fevereiro de 1969, p. 04.
215
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de março de 1970, p. 06.
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241
líder vascaína: “Num jogo assim, a meu ver muito equilibrado, a torcida exerce
papel importante (..). Se a torcida leva um time à frente, esta é a hora de
mostrar que a do Vasco não pode contrariar a regra.”
216
. O apoio à líder era
assim manifestado:
“Sou torcedor do Vasco há quarenta anos e me orgulho de ter a dona
Dulce Rosalina como chefe desta gigantesca torcida. Desde já, Dona
Dulce: aquele abraço de todos os vascaínos do Méier.”
217
.
*
“União: Sou torcedor doente do Vasco e sócio do clube há 25 anos.
Quero deixar registrado no Bate-Bola que desde que foi criada a
torcida dissidente – depois Leões Vascaínos – o Vasco só deu azar. A
torcida do Vasco é uma só, que eu conheci durante todos esses anos,
porque o Vasco é um só. Nós, vascaínos de verdade, vamos pedir a
Deus a volta da nossa querida chefe de torcida, Dona Dulce Rosalina,
que está afastada por motivos de saúde. (Paulo Luís, representando o
grupo de Madureira.)”
218
.
No caso do Botafogo, a controvertida figura de Tarzã era objeto de
celeumas ainda maiores. Para uns, o chefe da torcida merecia críticas pois não
organizava as caravanas da torcida, preterindo-as em benefício de suas viagens
particulares a trabalho para Minas; para outros, Tarzã era um “pândego”, um
“debochado”, uma liderança cheia de “soberba”, “desmoralizada” e “destituída
de mentalidade social”. De oposicionista em gestões anteriores, ele agora se
mostrava mancomunado por conveniência com o presidente do clube, o senhor
Xisto Toniato
219
. Provocador e responsável por badernas, para muitos, o
torcedor se valia de sua posição de destaque para a auto-exibição em programas
televisivos, saindo da obscuridade às vésperas dos jogos, para maldizer dos
atletas alvinegros. As cartas indignadas traziam o título “Contra Tarzã”, “Dever
de Tarzã”, “Fora Tarzã”, “Trabalho destrutivo” e “Politicagem”, entre outras
expressões pouco amistosas, que já seriam por si só suficientes para dar uma
idéia das críticas à sua atuação. Elas podem ser ainda ilustradas com os
seguintes trechos:
216
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de maio de 1969, p. 10.
217
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de setembro de 1969, p. 06.
218
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de outubro de 1969, p. 06
219
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04/07/1969; 24/09/1969; 06/12/1970. Cf. também ibid. Rio de
Janeiro, 24 de abril de 1976, p. 02.
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242
“Chega de passivismo (...) Apareça, Tarzã, e venha nos conduzir.”
220
*
“É de dar pena a Torcida Organizada do Botafogo e esse que se diz
seu chefe. Ao invés de tratar do que lhe cabe, ataca a situação já que é
pago por um oposicionista. Siga o exemplo da Torcida Jovem, uma
garotada sadia que não se mete em politicagem.”
221
.
*
“Separação”: “Explico à formidável massa botafoguense por que parte
de nossa torcida está separando-se da outra e indo para trás do gol. É
por causa de certas arbitrariedades do Tarzã, principalmente as
cometidas na viagem da torcida a São Paulo, para assistir ao jogo
contra o Palmeiras. Agora o Tarzã quer derrubar o Poder Jovem,
pedindo a sala que seria do Botafogo só para a torcida dele. Peço ao
presidente da ADEG que ceda uma sala ao Poder Jovem, para que
possamos guardar nossos instrumentos.”
222
.
*
“Nem tão organizadas assim”: “Quero ver todo mundo atrás do gol,
onde a vibração é a tônica, ou seja, nas Torcidas Jovens. Esse negócio
de Organizada já era.”
223
.
Em vez da reverência tradicional, assistia-se ao desprezo e à deterioração
da imagem dos líderes. Os constantes ataques aos líderes de torcida serviam
ainda como leitmotiv para a subseqüente afirmação das Torcidas Jovens no
cenário das arquibancadas, depois da visibilidade obtida com os protestos nos
anos anteriores. A seção Bate-Bola era objeto assim das mais variadas
apropriações dos torcedores e possibilitava a autopropaganda de cada grupo.
Lado a lado com as discussões, os litígios e as esgrimas verbais, o setor
também permitia o congraçamento e a comunicação entre os membros das
novas associações expresso em elogios, comentários simpáticos e trocas de
informações. Faziam-se pedidos de esclarecimento ao periódico sobre a forma
de adesão às torcidas, de sorte que o Jornal dos Sports constituía uma espécie
de ponto de encontro, com a orientação de muitos jovens simpatizantes,
desejosos de ingressar nas torcidas juvenis de cada clube:
“Levei algum tempo para me decidir a torcer por algum clube.
Entretanto, agora descobri que sempre fui amante das cores rubro-
negras e, como jovem, gostaria que o JS me desse o nome e o
endereço do chefe da torcida rubro-negra juvenil para que eu também
220
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de fevereiro de 1970, p. 06.
221
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1972, p. 06.
222
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1969, p. 06.
223
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de outubro de 1971, p. 06
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243
fizesse parte dela”. (Nilvado S. M., rua Adolfo Bergamini, 137, ap.
201, Rio, GB) JS responde: “Nivaldo, espere um jogo do Flamengo no
Estádio Mário Filho e procure a Torcida Jovem à esquerda da Tribuna
de Honra, no ângulo do campo.”
224
.
*
“Torcida sensacional”: “O Poder Jovem do Botafogo machuca os
corações das meninas que são em grande número no Maracanã do lado
direito da Tribuna.”
225
.
*
“Torcida Jovem”: “É espetacular o número de universitários que
estão prestigiando o Flamengo em todos os seus jogos, desde o
advento da Torcida Jovem, que incentiva e prestigia o nosso querido
Mengo em qualquer situação. Queremos difundir e intelectualizar
ainda mais a nossa Torcida Jovem, e por isso apelamos a todos os
estudantes universitários rubro-negros que compareçam aos jogos do
Mengo, para que possamos provar que a nossa é a mais intelectual das
torcidas”. (Jomir Pereira da Cruz, vestibulando de Economia,
Guanabara).
226
*
“Jovem”: “Tim, sai do Mengo, por favor. Penso falar em nome de
toda a torcida rubro-negra. Desejo também saber como proceder para
juntar-me à Torcida Jovem do Flamengo”. (Kátia Rejane da Silva, rua
Bento Lisboa, 34, ap. 2, Catete, GB). JS responde: “Acompanhe o
Bate Bola que logo a Torcida Jovem do Flamengo mandará recado
para você.”
227
.
*
“O Jovem Fla”: “... fiquei impressionada com a torcida do Flamengo.
São jovens e quase todos com a camisa do clube.”
228
.
*
“A união”: “Esta carta visa esclarecer aos torcedores que domingo
compareceram ao Mário Filho, pois muitos não compreenderam o
porquê da Torcida dos Leões Vascaínos terem ido até à torcida do
Flamengo. Nós não fomos brigar, e sim retribuir a gentileza que foi
prestada aos nossos juvenis, que receberam da torcida organizada do
Flamengo uma corbelha de flores, pelo título conquistado. Isso nos
tocou no coração e resolvemos retribuir, mas fomos mal interpretados
por alguns torcedores e policiais fanáticos. Mas felizmente a torcida
organizada nos entendeu, nos aplaudiu, e depois foi à nossa torcida,
onde gritaram e cantaram sem problemas. É disso que o futebol
precisa: união. Para terminar pedimos à força do Jovem Fla que nos
responda, concordando ou não com o que escrevemos. (Torcida
Organizada Leões Vascaínos, GB).”
229
.
224
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1969, p. 04.
225
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de julho de 1969, p .04.
226
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de novembro de 1969, p. 06.
227
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1969, p. 06.
228
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1970, p. 06.
229
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de fevereiro de 1970, p. 06. Dias depois, a 01 de março de 1970,
era publicada a carta-resposta dos torcedores do Flamengo à torcida Leões Vascaínos.
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244
*
“Lugar para a torcida”: “Solicito à Torcida Jovem do Flamengo que
consiga permissão da diretoria do clube para fazer da sede velha – que
vive completamente abandonada – o lugar de suas reuniões. Naquele
local, a torcida poderá prestar homenagens a atletas, dirigentes,
imprensa e torcedores ilustres, além de recepcionar caravanas de
jovens que desejam participar desse grupo que já ganhou o respeito de
todos os flamenguistas. (José de Castro Sundim).”
230
.
A seção também servia para que os fundadores de torcida evocassem em
série a memória do grupo, sem deixar de fazer menção aos sacrifícios inscritos
em seus mitos de origem, numa estrutura muito assemelhada à verificada na
história contada dos primórdios dos clubes, segundo a versão quer dos
jornalistas quer de seus fundadores. Eis as palavras do então chefe da Torcida
Jovem do Botafogo, para quem a diretoria do grupo era constituída por “jovens
estudantes de boa família”:
“História I: Fundação. A Torcida Jovem do Botafogo foi fundada há
três anos. No começo era apenas um grupo de rapazes, moradores da
rua Miguel Lemos, mas com o passar do tempo, com a saída de vários
elementos da Torcida Organizada, a torcida que se chamava Miguel
Lemos passou a chamar-se Torcida Jovem. No princípio, as
dificuldades foram inúmeras, mas com o passar do tempo a Torcida
Jovem passou a tornar-se forte e segura, com estrutura, conseguindo
um valioso patrimônio. (Flávio Grilo)”
231
.
Se o ano de 1969 representaria uma transição no perfil dos emergentes
agrupamentos, marcado por resquícios das revoltas contra os dirigentes dos
clubes e dos tradicionais chefes, os primeiros anos da década de 1970
propiciariam novos atrativos para a filiação aos grupos, cuja memória também
era acionada pelos jornalistas. Passada a comoção coletiva com a Copa do
Mundo do México, uma série de três reportagens de página inteira, assinada
pelo jornalista Altair Baffa e publicada em novembro de 1970, colocaria em
destaque a formação da Torcida Jovem do Flamengo. O subtítulo da série,
“Estes jovens que torcem feito gente grande”, dá uma idéia do espírito que
norteava a reportagem. A primeira matéria, “O amor nasceu na derrota”,
sucedida por “Uma goleada. Muitas alegrias” e completada com “A longa
230
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de maior de 1970, p. 08.
231
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de novembro de 1971, p. 06. A série de quatro cartas era
complementada com: “O patrimônio”, “A organização” e “A participação nos jogos amadores”.
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viagem da tristeza”, dava enfoque ao contexto de surgimento da torcida, com as
mesmas conotações antropológicas dos mitos de origem e dos mitos
sacrifíciais, que tinha como marco zero a insurgência e a espontânea revolta
contra um período de adversidades no desempenho da equipe. À fase de
insurreição, seguir-se-ia, pois, uma outra de institucionalização.
Segundo o relato dos fundadores, uma reunião iniciada nos degraus da
velha arquibancada do estádio da Gávea, após mais uma derrota, se estenderia
por mais de duas horas na mesa de um bar e levaria à fundação oficial da
torcida em um sábado, a seis de dezembro de 1969. Lavrada em ata escrita à
mão, “no mais belo estilo”, depois transposta para um livro de capa preta com
cem páginas, consignava-se a finalidade do grupo – “incentivar e estimular o
clube com todo o entusiasmo” – e seu lema altruístico, revelador do tipo de
relação preconizado com a direção do clube: “Nada do Flamengo, tudo para o
Flamengo”. A ausência de ligação com o clube correspondia ao mote da
independência, conforme salientava um dos mentores do grupo: “ Nós só
aceitamos os filhos dos diretores. O filho do dr. Ivã Drumonnd pertence à
Torcida Jovem, bem como os do sr. George Helal.”.
Interessado em esmiuçar um pouco mais as origens do grêmio, o
jornalista indagava ao presidente em exercício João Guimarães, o Tio Guima:
“Mas por que criar uma outra torcida, se já existia a briosa e velha de guerra
Charanga de Jaime de Carvalho ?”:
“... a juventude é que está com a força e a ela deve ser entregue todo o
poder (...). Jaime adoeceu e a Charanga parou. Nós, velhos,
estamos ultrapassados. A juventude agora é quem manda, e
como sou velho de mentalidade jovem, estou com os jovens.”
232
.
A matéria abordava a condição um tanto bizarra e pitoresca de dois
senhores que haviam aderido ao movimento juvenil e se transferido da
Charanga para a Torcida Jovem do Flamengo: Tio Guima, de sessenta e sete
anos, e Tia Helena, de cinqüenta e nove. Seguidores do clube desde antes da
conquista do seu primeiro tricampeonato (1942/1943/1944), a ascendência
moral dos dois fazia com que a pureza da marca juvenil do grupo fosse posta
232
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1970, p. 08.
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246
sob interrogação. Mais do que componentes, a liderança de ambos soava
paradoxal mas era ratificada pelo fato de a residência do provecto casal na
Praça Serzedelo Correia, em Copacabana, funcionar como sede provisória da
torcida, seu verdadeiro QG, onde se picava papel, guardavam-se as bandeiras e
de onde partiam as caravanas. Todavia, destoando do perfil dos “tios” da
torcida, cujo apadrinhamento e cujo amadrinhamento no interior do grupo
constituíam variantes dos modelos puros de torcida juvenil – o que punha em
evidência outros conotativos para o termo jovem, para além de uma restrita
acepção etária ou biológica (mais do que novo, a expressão conotava novidade)
– com a rápida reconversão dos laços simbólicos familiares análogos aos
abordados no final do primeiro capítulo. A trajetória do fundador do grupo,
Pedro Paulo Rosa Bebiano, trazia novos ingredientes à sua caracterização e era
por isto alvo de curiosidade para Altair Baffa:
“Pedro Paulo pertenceu à Charanga do Jaime de Carvalho até 67, mas
seu espírito não aceitava a maneira como ela se conduzia diante da má
fase do Flamengo na Taça de Prata, especialmente quando Jaime
adoeceu. Aí se desligou, partiu para a formação do Poder Jovem do
Flamengo e, em dezembro do ano passado, reuniu a turma para fundar
a Torcida Jovem.”.
*
“– Escolhi o Flamengo, em princípio, porque sou do contra e não
gosto de pressão para tomar decisão. O Flamengo é um tradicional
adversário do Botafogo de minha família e assim eu gosto.”.
Pedro Paulo Bebiano pertencia a uma antiga família de sócios e
dirigentes do Botafogo, que já tivera como presidente Ademar Bebiano. A
reportagem procurava pontuar a índole rebelde do torcedor, seja na adoção de
clube distinto da tradição familiar seja na criação de uma torcida independente
da Charanga. Com vinte e um anos, Pedro Paulo era estudante do primeiro ano
de engenharia da Universidade Gama Filho, funcionário da bolsa de valores do
Rio de Janeiro, além de acionista da fábrica de tecidos Nova América e da
White Martins. De condição bem aquinhoada, viajara também ao México para
assistir à Copa do Mundo de 1970 e costumava ir de avião para os jogos do
Flamengo fora do Rio, nas partidas válidas pela Taça de Prata.
Outro fundador da torcida era Paulo Afonso Almeida, de vinte e dois
anos, funcionário de uma empresa de material ferroviário. A matéria acentuava
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247
a organização do grupo, que já contava com duzentos e noventa e dois
membros registrados, mediante pagamento de uma mensalidade simbólica. A
torcida tinha estatuto, papel timbrado e, quando do triunfo da seleção brasileira
no México, havia enviado um oficio de congratulação a João Havelange, como
atestado de sua organização e seriedade: “– o negócio já está ficando
organizado até demais, correndo o risco de ficar igual à Escola de Samba”,
complementava Tio Guima. Com pouco mais de um ano de fundação, os
rudimentos de uma divisão interna da torcida já se apresentavam esboçados,
com presidente, diretor-administrativo, diretor social, tesoureiro, secretário,
diretor de bateria e chefe de animação.
Poucos dias depois da grande reportagem, cartas na seção Bate-Bola
solicitavam ao jornalista a realização do mesmo com as demais torcidas, entre
as quais se destacava a Força Jovem do Vasco, que segundo uma leitora
também encarnava os atributos de “amor, abnegação e coragem
233
para com
seu clube. A febre e a novidade constituídas pelas emergentes agremiações
faziam outros colunistas do jornal reconhecerem a existência de um fenômeno
diferente nas arquibancadas, como destacava Fernando Horácio em “A Torcida
Jovem”:
“A Torcida Jovem do Flamengo está se tornando um espetáculo
indispensável nos jogos de seu time e um exemplo para as demais
torcidas. Colocada atrás do gol que fica à esquerda dos túneis, destaca-
se pelo grande número de torcedores uniformizados – rapazes com
pinta de estudantes e muitas garotas bonitas, todo mundo na ‘onda’ –,
batucando num ritmo quente e, nos momentos certos, cantando o hino
do Flamengo.”
234
Embora a mesma Torcida Jovem continuasse eventualmente envolvendo-
se em campanhas de oposição à direção do clube, ao treinador ou a um ou outro
jogador em má fase, como a sucedida em maio 1971, quando a manchete de
primeira página do Jornal dos Sports estampava “Iustrich cai no grito da
torcida”, uma referência à demissão do técnico rubro-negro pelo presidente do
clube ante a pressão da imprensa e da torcida, a ênfase oposicionista deixava de
ser a marca sobressalente e exclusiva dos grupos juvenis
235
. Uma mostra disto
podia ser aferida em grande matéria empreendida pelo mesmo Altair Baffa no
233
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1970, p. 07.
234
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1970, p. 05.
235
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1971, p. 01 e 03.
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248
ano de 1972. Destinada, ao que tudo indica, a produzir reações imediatas entre
os segmentos de torcedores, a matéria reproduzia o espírito bombástico da série
de denúncias contra Jorge Veiga Brito, feita em 1968 por Marco Aurélio
Guimarães em sua premiada reportagem investigativa “Os Coveiros do Fla”.
Em verdade, não se trata de um fortuito paralelo, pois Altair Baffa, que
iniciara carreira no Jornal do Brasil em 1967
236
, substituiu Marco Aurélio no
jornal, quando de sua transferência para a Placar, passando a desempenhar a
mesma função, qual seja, a de elo do JS com o universo dos torcedores, sendo
de sua incumbência elaborar matérias referentes às torcidas organizadas.
Assim, do mesmo modo, a série de Altair Baffa, surgida em um novo contexto
de reeleição no clube, tinha em mira detonar transações suspeitas do então
presidente do Flamengo, André Richer, que por sinal mais tarde seguiria sua
carreira como dirigente em várias entidades esportivas nacionais. A cada dia,
uma matéria com título mais eloqüente ampliava a gravidade das ações de
Richer, cuja administração clubística lembrava, segundo Altair Baffa, a forma
de governar dos políticos do extinto PSD mineiro: I. “Um remador vascaíno
está afundando o Flamengo”. II. “Uma aula de manobra política”. III. “Uma
falsa política financeira”. IV. “O Estádio de futebol por um supermercado”. V.
“Êxito do futebol não é mérito de André Richer”
237
.
A despeito da eloqüência das denúncias reveladas durante a semana, o
impacto da série pode ser considerado inócuo se comparado à eficácia das
reportagens de Marco Aurélio em 1968. Da parte das torcidas organizadas,
nenhuma manifestação ou atitude de repúdio se verificaria, ao menos as
mobilizações não seriam reportadas pelo JS nem tampouco estimuladas pelos
meios de comunicação como da vez anterior. Conforme foi visto no primeiro
item deste capítulo, a indignação perante as atitudes do presidente do clube
havia sido a centelha para a revolta de torcedores no Maracanã e nas ruas, razão
motivadora para a aglutinação e para o surgimento das Torcidas Jovens
enquanto identidade diferenciada das Torcidas Organizadas oficiais. Agora, os
eventuais protestos ficavam no âmbito das cartas, com atritos e algumas tensas
236
Altair Baffa (1944-2007) especializou-se no noticiário esportivo durante sua passagem pelo JS,
trabalhando em seguida em O Estado de São Paulo, na Rádio Record e no departamento de
esportes da TV Globo. Cf. O GLOBO. Rio de Janeiro, 18 de novembro de 2007.
237
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de dezembro de 1972. Depois de ocupar a presidência do
Flamengo, o dirigente passaria a assumir cargos nas entidades desportivas do país, como a CBF no
início dos anos 1980.
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249
e renhidas trocas de acusações com os presidentes de clube, restritas ao âmbito
verbal, como a subscrita pelo vice-presidente da Torcida Jovem do Botafogo:
“Ameaça aos cartolas”: “A Torcida Jovem do Botafogo, em resposta
às constantes acusações de diretores do clube, comunica que não
pichou os muros de General Severiano, e isenta seu presidente.
Provamos: como todos sabem, na Torcida Jovem do Botafogo só tem
cara de curso superior e estudante universitário. Segundo dizem, os
botafoguenses que picharam os muros cometeram erros de português
em diversas palavras. No dia em que a Torcida Jovem do Botafogo
resolver agir, pobre da Diretoria do Botafogo. Pois não picharemos os
muros e, sim, a cara deles. Por enquanto tá legal. Mas não percam o
segundo turno, senão pobre de vocês. Informamos que já estamos
vendendo as camisas da Torcida Jovem. Pode procurar, quem quiser.
(Eduardo Vilela, vice-presidente da Torcida Jovem do Botafogo).”
238
.
Junto às rixas e às disputas entre torcedores e diretores, a descoberta de
uma “arte de torcer”
239
oferecia outra ordem de atrativos e concorria para
mobilizar as Torcidas Jovens, como a venda de camisas citada pelo missivista e
o seu incipiente comércio informal de material esportivo com a insígnia e os
dísticos da torcida por eles mesmo criados. Pela primeira vez, especulava-se a
possibilidade de bordar a inscrição “Torcida Jovem” nas bandeiras, como
forma de promoção do nome do grupo
240
. A presença nos esportes amadores do
clube, em eventos promovidos pelo Jornal dos Sports, como os Jogos da
Primavera e os Jogos Infantis
241
, era outro exemplo da integração ao calendário
esportivo da cidade e da criação de novos espaços de visibilidade. Desde então,
o estímulo para instituição de torcidas organizadas dissidentes se mostraria
prolífica e a cada momento mais associações juvenis surgiam nas
arquibancadas dos estádios. Amparado no exemplo das Torcidas Jovens, o
surgimento de outras facções era anunciado com freqüência na seção Bate-
Bola. Talvez em virtude do declínio do slogan no jornal, o próprio Poder
Jovem do Flamengo, surgido de maneira espontânea em 1967, seria recriado e
instituído oficialmente em dezembro de 1969, como mostrava a matéria de
Altair Baffa, sob o nome de Torcida Jovem. Desta, logo um outro subgrupo se
238
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 18 de maio de 1972, p. 06.
239
Título de uma carta publicada na seção Bate-Bola. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 14 de outubro de
1971, p. 06.
240
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de fevereiro de 1972, p. 06.
241
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de maio de 1971, p. 06. Cf. também ibid. Rio de Janeiro, 22 de
agosto de 1971, p. 11.
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250
desgarraria por desentendimentos internos e dava origem à Flamante em março
de 1970.
E assim, de maneira sucessiva, os desmembramentos pareciam pulular e
se multiplicar. A mesma lógica se repetiria com o Poder Jovem do Botafogo,
que em pouco tempo se tornaria simplesmente Torcida Jovem. Os efêmeros
Leões Vascaínos, nascidos sob o signo do protesto contra diretores, seriam
sucedidos pela Força Jovem do Vasco, nucleada em fins de 1969 e fundada em
fevereiro de 1970, cuja sede no Méier, situada à rua Cônego Tobias, 80, era
divulgada no jornal por seu líder. Este endossava de igual modo a importância
intervenção das torcidas organizadas na política do clube, como evidenciava a
reportagem “Torcida perde paciência após 11 anos sem título”
242
:
“A Torcida Jovem escreveu uma carta ao presidente Agatirno da Silva
Gomes, pleiteando uma entrevista de representantes seus com o
Presidente, o técnico Tim e um jogador do clube (...) A Torcida Jovem
terá uma reunião quinta-feira, na rua Cônego Tobias, no Méier, e para
elas está convidando sócios e torcedores do Vasco.”
243
.
As diferenças entre os Leões Vascaínos e a Força Jovem logo
apareceriam nas cartas do jornal. Mais uma vez, a discussão em torno do tipo
de relação e do grau de conivência com a direção do clube era o tema principal,
com acusações de ambas as partes. O fundador da Força Jovem, Manuel dos
Santos da Cunha, em resposta às ironias contra seu grupo e aos comentários dos
“cordeiros” dos Leões Vascaínos, assim contra-atacava:
“Achamos ter o direito de criticar os erros dentro do clube que tanto
amamos, e isso se deve ao fato de sermos uma torcida independente,
sem quaisquer ligações com o clube, o que outras facções não podem
afirmar, pois estariam mentindo.”
244
.
A leitura da seção Bate-Bola sugere que a partir de 1970 um boom de
associações torcedoras se verificaria no Maracanã e, com isto, mesmo as
Torcidas Jovens perdiam a exclusividade, o monopólio e o status único de
dissidentes. O fracionamento de um núcleo original de torcedores acarretava
uma constelação de pequenos grupos, poder-se-ia chamar grupúsculos, com
242
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de março de 1970, p. 06.
243
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de abril de 1970, p. 07.
244
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de abril de 1970, p. 06.
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251
suas respectivas inovações e nomenclaturas. Estes por sua vez traziam
embutidos novos atrativos e novos atributos ao ato de torcer em grupo. A
continuidade das altas médias de público naqueles anos e a vitória da seleção
brasileira na Copa do Mundo de 1970 também podem ser considerados fatores
favoráveis à impulsão para o aparecimento de mais grêmios. No Fluminense,
por exemplo, o vácuo deixado pela desarticulação ou pelo declínio das
atividades da célebre Jovem Flu, ausente ao menos das reportagens do Jornal
dos Sports de 1969 em diante, dava ensejo ao anúncio de novos setores
organizados da torcida tricolor.
Durante o segundo semestre de 1970, a seção Bate-Bola fazia menção a
três novas torcidas organizadas: a Força-Flu, a Young-Flu e a Fluminina, esta
última uma inusitada associação a congregar exclusivamente mulheres, também
conhecida como Torcida Jovem Feminina. Embora a presença de núcleos
exclusivos de moças gerasse algumas controvérsias por parte dos leitores
245
,
pouco depois um processo em cadeia levaria à criação da Femifogo – depois
Fogatas – entre as botafoguenses, e da Torcida Feminina do Vasco, entre as
vascaínas, composta de início por cinqüenta garotas. Em 1971, outra novidade
despontava com a fundação de uma torcida voltada para a reunião de
moradores de um bairro ou de um município específico, que se somava àquela
profusão de subgrupos. Criavam-se neologismos, com a interposição de
prefixos e sufixos aos nomes dos clubes: era a Flunitor, contração dos
substantivos: Fluminense-Niterói-Torcida; era a Flatuante, do Flamengo,
oriundo também de torcedores residentes na capital do Estado do Rio, situada
no outro lado da Baía de Guanabara.
No ano de 1972, o falecimento de um dos fundadores de uma torcida
organizada do Fluminense dava origem a uma grande reportagem à terceira
página do jornal, “Young Flu fica sem chefe com morte de Paulo César”. O
impacto e a comoção com a notícia chegariam à seção Bate-Bola, com a
publicação da carta “A nossa admiração”: “Paulo César Pedruco desaparece
dos estádios, deixando-nos em seu lugar uma bonita obra, a Torcida Young-
Flu. Bastaria isso para o recomendar à nossa admiração.”
246
. O desastre
automobilístico que resultou na morte precoce do líder da torcida servia de
245
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1972, seção BB, “Contra a Femifogo”.
246
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1972, p. 06.
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252
pretexto ainda para a descrição jornalística da fundação da torcida, em um
modelo mítico-narrativo muito aparentado ao da Torcida Jovem do Flamengo,
tal como apresentara Altair Baffa em ocasião anterior:
“Num Fla-Flu de 70, Paulo César, Cláudio e Armando assistiram a um
frango de Jairo e resolveram fundar uma torcida de jovens para
reclamar sobre falhas como essas. O nome veio na hora: Young Flu.
As peças de bateria vieram aos poucos. A sede ficou sendo na casa de
Paulo, na Rua General Labatour, 40, no Riachuelo. Três meses depois
de fundada, a Young Flu ganhou mais dois diretores: Matilde
Figueiredo e Sérgio Cruz. Com eles vieram mais adeptos e mais peças
de bateria. Paulo César acompanhava o time a todos os lugares do
Brasil. Era estudante de Direito e funcionário da GEO – Distribuidora
Nacional de Valores. Mas sua real profissão, segundo Matilde, era ser
tricolor. Pedro Paulo Pedruco nem mesmo chegou a completar 21
anos.”
247
.
Em que pesem as contingências fatais um torneio de futebol entre
torcidas organizadas seria criado no mesmo ano sob o nome de Taça Paulo
César Pedruco, no clube ASA em Botafogo, como homenagem póstuma ao
rapaz
248
, a torcida do Fluminense crescia e no início daquele ano já tinha
quatro agremiações torcedoras. Enquanto isto, segundo a constatação perplexa
de leitores rubro-negros, o Flamengo contava com seis associações: a
Charanga, de Jaime de Carvalho; a Torcida Jovem, de Pedro Paulo Bebiano; a
Flamante, de Ricardo Muci; a Flatuante, de Niterói; a Torcida do Coração
Rubro-Negro, de Arildo Bernacchi; e a Força Rubro-Negra, de Mauro César
249
.
Em vista disto, a “imaginação letrada” de um torcedor-leitor valia-se do
seguinte raciocínio para ilustrar, a seu modo, a “comunidade política
imaginada” de que falava Benedict Anderson: se o clube era a personificação
de uma Nação, as torcidas organizadas configuravam seus Estados e estas, em
conjunto, representavam a metáfora de uma União Federativa...
250
. Ainda sob a
ótica dos leitores, a fundação de torcidas organizadas era vista como a
realização de um “sonho”, a partir de uma “idéia de amigos” que tinha como
propósito maior o estímulo à equipe. A sua concretização era materializada
com a confecção da faixa e com a escolha de uma madrinha para a torcida
251
.
247
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de maio de 1972, p. 03.
248
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1972, p. 06.
249
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de abril de 1970, p. 06.
250
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 25 de maio de 1971, p. 05.
251
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 18 de maio de 1975, p. 02.
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253
Isto posto, a diversidade de grupos estimulava a competição interna na busca
por adeptos e pela prevalência numérica sobre as concorrentes.
O apoio às torcidas por parte do jornal era imediato e Henfil atendia às
solicitações dos torcedores que lhe pediam a divulgação de suas atividades: “A
torcida Flatuante vai entregar um medalhão de ouro na despedida do Murilo,
domingo, no Mário Filho! Torcida tem memória, companheiros!”
252
. Assim, tal
qual o caráter híbrido das crônicas, um gênero plástico e polimórfico, para falar
com a historiadora Margarida de Souza Neves
253
, a coluna Bate-Bola se situava
a meio caminho entre o gênero epistolar interpessoal mais clássico e a seção de
classificados dos jornais tradicionais. Ela servia de espaço não apenas para o
anúncio de novas agremiações torcedoras como também para a divulgação dos
produtos criados pelas torcidas, com a solicitação de encomendas das camisas
bordadas, cujos modelos, únicos, recebiam o destaque de originalidade face à
camisa do clube e às demais torcidas. Sem deixar de haver alusão à beleza das
bandeiras e à destreza das baterias musicais, havia também anúncios de venda e
compra de adesivos plásticos com a sua descrição:
“Flamor”: “Quero comunicar a todos que já estão à venda os plásticos
da torcida FLAMOR. Quem estiver interessado em adquiri-los é só
procurar o Jair. O escudo tem o formato oficial do Flamengo, em
fundo vermelho e listras horizontais pretas, tendo, acima da primeira
listra escrita em branco a palavra FLAMOR. (Jair, Méier, GB).”
254
.
A filiação à torcida era igualmente fomentada por seus líderes e
membros, através da exposição das facilidades para a obtenção da carteirinha
mediante apresentação de duas fotos três por quatro e o pagamento de
mensalidades a preços módicos para tornar-se sócio. O linguajar, as gírias e as
expressões veiculadas nas cartas davam a impressão de que o ingresso nas
torcidas organizadas se tratava de uma moda, de uma “onda”, de uma novidade
atraente para jovens tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino.
Naqueles primeiros anos da década de 1970, as cartas pareciam fazer crer que
uma atração e um lazer diferente, somados a um estilo de vida “jovem”, se
252
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 1972, p. 02.
253
Cf. NEVES, M. de. S. “História da crônica. Crônica da história”. In: RESENDE, B. (Org.).
Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994, p. 17.
254
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 19 de abril de 1974. Cf. também ibid. Rio de
Janeiro, 16 e 21 de abril de 1971.
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254
somavam às formas de se vivenciar o futebol na cidade. Na seção Bate-Bola,
Antônio Alberto Pires, um quadro dirigente da Força Jovem do Vasco, saudava
em nome da torcida a passagem do aniversário do cantor Roberto Carlos, por
seu grupo considerado o maior ídolo da juventude brasileira
255
. “Entrem numa
boa”, “A Young Flu te espera”, “Jovem é massa”, “Torcida, samba, curtição”,
“Fervilhante” eram algumas das inúmeras cartas-convite endereçadas aos
leitores do JS por uma “moçada boa, simpática e incansável”
256
:
“Receita de tricolor”: “Sou Fluminense e pertenço à mais bela torcida
do mundo: Young Flu. Além disso, gosto do Arpoador, São Conrado e
Ipanema. Me ligo no som de Jimmi Hendrix e Carole King e no
colégio João Alfredo. Agradeço aos componentes da Young Flu,
Robson, Careca e Armando, pela alegria de ser Fluminense. (Haroldo
de Almeida, São Francisco Xavier, GB).”
257
.
*
“Fina flor”: “Atenção, menininhas ligadas numa de futebol: a torcida
do Botafogo, formada em sua maioria por assíduos freqüentadores do
‘píer’ (Ipanema) e arredores, está convidando todas as minas para
curtir uma diferente atrás do gol da direita das cabines de rádio, nos
jogos do Botafogo. Para quem não sabe, a Organizada não tá com
nada. Quem nasceu para Riachuelo, nunca chega a Ipanema. Essa ralé
da Organizada tem mais é que saltar fora do Estádio e dar lugar à fina
flor da nossa sociedade”. (Dorival Veloso Acatavassu – Ipanema,
GB)
258
.
*
“Firme e forte”: “Além de você assistir ao jogo, estará também
assistindo ao som nota 10 da Flamante, tinindo com alguns reforços da
famosa bateria do Salgueiro. (Jomir Pereira)”
259
.
*
“É isso aí gente, é a Força Flu da rapaziada simpática, das garotas
bonitas, da incrementação total, do show da bateria, das bandeiras
desfraldadas.”
260
.
*
“A Brigada Rubra”: “Estamos fazendo uma nova torcida do América:
a Brigada Rubra. Somos jovens, rapazes e moças do Grajaú e
Copacabana.”
261
.
*
“Flamor entra em ação”: “... porque a Flamor é uma brasa e vai botar
pra quebrar.”
262
.
255
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de maio de 1971, p. 06.
256
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de maio de 1970, p. 06.
257
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 13 de setembro de 1972, p. 06.
258
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1972.
259
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de novembro de 1972, p. 02.
260
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1972, p. 02.
261
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 13 de setembro de 1973, p. 02.
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255
*
“O novo sócio da Young”: “Meu negócio é entrar para o quadro de
sócios da torcida Young-Flu. No jogo contra o Corinthians, me
amarrei na empolgação de seus componentes. Não foi por falta de
apoio da galera, mas, naquele dia, as coisas não estavam mesmo para
o Fluminense.”
263
.
*
“Piabanha em caravana”: “... vai ser, sim, um grande barato.”
264
.
*
“Incrementação”: “Vocês, que são torcedores do nosso clube, que se
ligam num samba gostoso e em muitas menininhas charmosas, não
podem deixar de fazer parte da mais incrementada torcida do
Brasil.”
265
.
*
“Nova torcida”: “Atenção! Todos os flamenguistas de até 18 anos, de
ambos os sexos, que queiram curtir uma de torcida organizada de
carteirinha e tudo mais, me procurem. Vamos deixar de lado os caretas
e formar, nós mesmos, a nossa torcida. (Sônia Cristina Rodrigues –
Tijuca).”
266
.
*
“Novos ventos”: “Vibrei ao ver a adesão da Força Jovem ao nosso
movimento. A sua tomada de posição contra a estagnação em que
estava o nosso clube. Sempre confiei nesses rapazes que deram nova
dimensão à nossa torcida e novo colorido ao Mário Filho. (Moacir
Spinelli Vaz).”
267
.
*
“Exorci-Vasco”: “Você, que gosta de curtir uma boa, tomando sua
cerveja nos intervalos de jogos e vibrando sob a bateria incrementada
daqueles que sabem das coisas, venha fazer parte da Exorci-Vasco, a
nova torcida, que terá o comando de Valfrido, que vai sacudir o Mário
Filho em dias de jogos do Vascão, segurando a ferradura do estádio e
levando a alegria a todos.”
268
.
As propagandas pareciam surtir efeito e no final do ano de 1973 o
número de adeptos tinha aumentado de maneira considerável. Enquanto as
torcidas de pequeno porte declaravam ter cerca de cinqüenta associados, as
medianas diziam possuir trezentos sócios e as maiores já se referiam a três mil
simpatizantes, com direito a sede, a boletins mensais, a estatuto e a registro de
pessoa jurídica lavrados em cartório. Este era o caso da Força Flu que, segundo
262
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de setembro de 1973.
263
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de novembro de 1973, p. 02.
264
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1973, p. 02.
265
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1973, p. 02.
266
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de outubro de 1974, p. 02.
267
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de junho de 1974, p. 02.
268
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 16 de janeiro de 1975, p. 02.
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256
carta enviada por seu líder, havia sido fundada em 25 de novembro de 1970
como “Órgão oficial da torcida do Fluminense Futebol Clube e registrada sob o
número 268.793 do livro A/08 do 4. Ofício do Registro Civil das Pessoas
Jurídicas”
269
. A concorrência se estabelecia não apenas no que tange à
quantidade de adesões em cada associação, mas ao número de torcidas por
clube. Em 1974 os rubro-negros computavam oito torcidas organizadas, ao
passo que os tricolores anunciavam quatro agremiações e os botafoguenses,
três. A tendência à proliferação parecia ser irreversível, conquanto ela trouxesse
aspectos tão positivos quão negativos, conforme constatava um leitor-torcedor
na carta “A força dos grupos”:
“Um fato impressionante, no Estádio Mário Filho, é a amizade entre
as várias torcidas do Mengão: Charanga, Torcida Jovem, Flamante,
Flatuante (Niterói), Coração Rubro-Negro, Serra Mengo (Petrópolis) e
outros grupos. Saíram todos irmanados, cantando o hino do Mais
Querido após a conquista do bicampeonato do Torneio de Verão. Tal
exemplo deveria ser seguido pelas torcidas menores, que vivem em
dissidência e aos bofetões por não concordarem com a criação de
novos grupos mais jovens. (Arildo Bernacchi, Copacabana).”
270
.
Com o transcurso dos anos, a propensão ao surgimento de pequenas
torcidas locais e de bairro não apenas se insinuava como se confirmava, a tal
ponto que cartas eram enviadas ao jornal com solicitações explícitas para frear
as iniciativas individuais de criação aleatória de torcidas:
“Apelo rubro-negro”: “Existe atualmente no Mario Filho uma grande
epidemia de torcidas organizadas, epidemia esta que provocou o
enfraquecimento de grandes torcidas. No caso do Flamengo, por
exemplo, a coisa chegou a tal ponto que não existe mais espaço vago
para se colocar nada. Você que é torcedor do Flamengo e por acaso
pretende fundar uma torcida, não o faça. Junte-se aos grandes grupos
existentes como Flamante, Jovem e Flamor, que são atualmente as
forças que empurram para a vitória, e afinal de contas eu acho que este
é o objetivo”. (Carlos Alberto Magalhães, Grajaú).”
271
.
Mesmo fora do Rio de Janeiro e no exterior, o conhecimento das mesmas
se propagava. Em abril de 1971, um componente da Torcida Jovem do
Flamengo, Vitório Tamburini, se comunicava de Michigan, nos Estados
269
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1973, p. 02.
270
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de fevereiro de 1972.
271
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de junho de 1975, p. 02.
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257
Unidos, com a seção Bate-Bola, onde fazia elogios à liderança de Tia
Helena
272
. Já no segundo semestre de 1972, um botafoguense escrevia de Goiás
para a coluna de torcedores do Jornal dos Sports:
“Aqui a Torcida Jovem do Botafogo predomina em todas as
faculdades, pré-universitários e colégios. É uma torcida classe A...”
(Irineu Bueno, Goiânia)
273
.
Os contatos eram estabelecidos também de localidades mais próximas.
Em 1973, um componente de uma torcida organizada do Palmeiras se
correspondia de São Paulo:
“Falou, gente boa”: “Aqui quem fala é a torcida Força Verde
Palmeirense e queremos parabenizar a grandiosa torcida do Flamengo
pelo maravilhoso gesto de amizade com que recebeu a galera do
Palmeiras aí no Mário Filho, dia 07/10/73. (César, Força Verde, São
Paulo, SP)”
274
.
É provável que tal repercussão fosse conseqüência da circulação do
Jornal dos Sports em boa parte do território nacional, segundo uma tradicional
e desafiadora propaganda: “o matutino esportivo de maior circulação da
América do Sul”. Por outro lado, como é possível aduzir da última carta
transcrita, cabe a ponderação especulativa de que o conhecimento das torcidas
organizadas cariocas fora do Rio de Janeiro podia ser fruto de um hábito
iniciado pelos torcedores desde o advento da Taça de Prata em 1967 e
consolidado com a implantação do Campeonato Nacional em 1971: as
caravanas. Se as viagens de acompanhamento aos clubes existiam de maneira
esporádica nos anos 50, com a instituição do Torneio Rio-São Paulo (1950-
1954), denominado em seguida Torneio Roberto Gomes Pedrosa (1954-1967) –
homenagem ao ex-presidente da Federação Paulista de Futebol –, quando
ocasionais deslocamentos de trem através da Estrada de Ferro Central do
Brasil, ponto de ligação do eixo Rio-São Paulo, eram feitos pela Charanga de
Jaime e por outras levas espontâneas de torcedores, a instituição de uma disputa
ampliada entre times integrantes de diversos estados da federação tornava o ato
272
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de abril de 1971, p. 13.
273
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de agosto, 1972, p. 06.
274
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de outubro de 1973, p. 02.
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258
de viajar um recurso sistemático e mais uma prática diferencial reivindicada
pelas novas associações. É bem plausível que tais caravanas facultassem
contatos e interações com torcedores de outras regiões. De todo modo, as
viagens requeriam uma estrutura de locomoção de ônibus e uma mobilização
constante de associados que faziam extrapolar a identidade das torcidas para
além dos jogos e dos estádios, com a criação de laços de sociabilidade extra-
esportivos e com o fortalecimento dos vínculos internos de sua organização.
O Jornal dos Sports cumpria mais uma vez com exemplaridade a sua
função mediadora, lugar de intercâmbio para a orientação dos torcedores
quanto às formas de obtenção de passagens e quanto às condições de viagem,
com a divulgação de seus locais de concentração, de seus dias e de seus
horários de saída e de retorno. Ali se retratava a ambiência descontraída das
“animadíssimas” caravanas, com a eleição da rainha da torcida ou com a
escolha do “torcedor mais bonito”. Cartas como “Fofocas no Flu” referiam-se
às “paqueras” que ocorriam nas excursões da Força-Flu, a caravana
considerada “uma das mais incrementadas dos últimos tempos” pelos
tricolores. A caravana da Flamante procurava não ficar para trás: “Além de
você assistir ao jogo, estará também curtindo o som nota 10 da Flamante,
tinindo com alguns reforços da bateria do Salgueiro.”
275
. A promoção dessas
atrações estimulava de maneira indireta o ingresso na torcida. Além de aludir
ao ambiente convidativo para rapazes e moças, a coluna servia também fins
estritos de convocação e de informação da venda dos bilhetes de viagem:
“Torcida Forte”: “Se você é mesmo Flamengo, vá a São Paulo no dia
Sete de Setembro prestigiar a estréia do ‘Mais Querido’ no Robertão,
contra a Portuguesa de Desportos. A caravana da Torcida Jovem
partirá à meia-noite de sábado, dia 6 de setembro, em ônibus especiais
e automóveis particulares diretamente da porta do Teatro Municipal.
Se você tem automóvel, encontre-se conosco, na porta do Teatro, na
hora marcada, para que possamos seguir juntos. Não se esqueça de
levar a sua bandeira e a camisa do Flamengo. Vamos mostrar aos
paulistas a força da torcida rubro-negra que é, sem dúvida, a maior do
mundo. (Lorimar Macedo – Tijuca).
276
”.
*
275
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 01 de novembro de 1972, p. 02.
276
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1969, p. 04.
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259
“Botafogo em Minas”: “A Torcida Jovem do Botafogo está
organizando uma caravana para o jogo contra o Atlético Mineiro. Os
ônibus seguirão da Praça Serzedelo Corrêa, dia 11, às 23 horas. Preço
da passagem: Cr$ 31,00. A venda está sendo feita no Botafogo e na
Loteria Esportiva da rua Siqueira Campos, n. 210. (Carlos Alberto
França, Siqueira Campos, Copacabana, Guanabara).”
277
*
“Vasco Jovem”: “Depois do sucesso de domingo passado, quando
levamos nove ônibus a Curitiba para incentivar o ‘Mais Amado’,
Vasco, organizamos mais uma caravana para ir a Belo Horizonte. São
30 ônibus, que sairão do Edifício Cineac, às 22 horas de sexta-feira.
Preço de ida e volta: Cr$ 15,00. Vendas de passagens: Sr. Costa, Praça
Santos Dumont, Posto Esso – Praça da Bandeira, n. 189, casa 10, e
Edifício Cineac, 9º andar, das 9h às 20h, com Eli Mendes e Luís
Andrade. (Antônio Pires, Tôni, Rua Barão de Ubá, 60).”
*
“Com o Flu em São Paulo”: “A torcida Young-Flu, que pode não ser a
maior mas é a melhor, está organizando a sua caravana para incentivar
o time campeão na partida do dia 23 contra o São Paulo, no Morumbi.
O negócio é dar força ao Flu em qualquer campo que ele vá. Essa é a
missão da nossa torcida.”
278
.
Se já foi observado que as excursões não foram uma invenção das
Torcidas Jovens e suas congêneres nos idos de 1970, existindo de maneira
eventual nas décadas precedentes, vale acentuar o deliberado incentivo da parte
do Jornal dos Sports a tal tipo de viagem. Já no ano de 1968, Nelson Rodrigues
discorria sobre o assunto em uma crônica, com um sentido informativo bem
preciso, que poderia servir de modelo aos missivistas da seção Bate-Bola, além
de pôr em evidência as relações pessoais amistosas do cronista com o chefe da
torcida tricolor:
“A torcida tricolor em São Paulo”: “Depois de jogar no Paraná, o
Fluminense vai atuar em São Paulo contra o Santos. Sintoma do
entusiasmo da massa pó-de-arroz com o time está no seguinte fato:
prepara-se uma caravana tricolor de incentivo. A torcida quer estar
presente em São Paulo na hora em que o nosso time enfrentar o
Santos. Ontem, um pó-de-arroz batia o telefone para mim: ‘Quero ir
na caravana. Que devo fazer ?’ Sérgio Aiub, chefe da torcida (Paulista
está doente), veio me visitar, ontem. Convoca todos os torcedores. E
dá informações úteis: vendas de passagem, diariamente, das 8 às 19
horas na Avenida Rio Branco. Edifício Avenida Central, banca de
277
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de setembro de 1971, p. 06.
278
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 14 de setembro de 1973, p. 02.
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260
jornais que desfralda a bandeira tricolor. Cinco ônibus já estão
lotados.”
279
.
Outro tipo de estímulo do jornal às excursões dos torcedores vinha
expresso através da iniciativa de patrocinar caravanas em associação com
empresas, o que naquele contexto se deu nos preparativos para os jogos da
Copa do Mundo de 1970, por exemplo. A tradição mais longínqua remontava
ao final dos anos de 1930, com concursos promovidos para torcedores que
constituiriam os “embaixadores” do Brasil no exterior, quando dois deles,
escolhidos pela população carioca, foram enviados à Copa do Mundo de 1938.
Depois da realização da copa no Brasil em 1950, a Copa do Mundo na Suíça e
o Campeonato Sul-Americano na Argentina, em 1954, assinalariam a
subvenção de Mário Filho e de comerciantes da cidade a Jaime de Carvalho
como representante brasileiro em torneios internacionais. Desde então sorteios
episódicos selecionavam torcedores interessados em assistir aos jogos da
seleção brasileira fora do país. Para a partida eliminatória da Copa do Mundo
do México, o JS lançava a promoção “Vista a Camisa 12”, em parceria com a
empresa automobilística Exprinter, com a concessão de dois ônibus a
transportar os torcedores cariocas a Assunção, no Paraguai. Já para a Copa no
ano seguinte, a parceria do jornal ocorreria com uma empresa aérea, a
Chanteclair, cuja caravana era composta inclusive por membros de torcidas
organizadas, como o presidente da Torcida Jovem do Flamengo, Pedro Paulo
Bebiano, a posar em foto para o jornal
280
.
A intensificação das viagens como uma moda das novas torcidas era um
fato que chamava a atenção no meio. Em virtude do apelo crescente, no final do
ano de 1973 um dos chefes de redação do Jornal dos Sports, José Antônio
Genheim, jornalista também pertencente aos quadros do jornalismo esportivo
da Rede Globo de Televisão, dava espaço e fazia a cobertura das excursões. Em
matéria de página dupla e inteira, intitulada “Paixão: com ela não limite nem
distância que uma caravana não supere”
281
, Genheim não somente abordava o
assunto como relatava a experiência pessoal de quem, para falar da temática
com conhecimento de causa, se integrara a uma dessas viagens. Ao tecer
279
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1968, p. 03.
280
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de agosto de 1969 e 19 de maio de 1969.
281
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1973, Segundo Tempo, p. 05 e 06.
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261
considerações iniciais, o jornalista informava se tratar de um fenômeno recente
no Brasil, onde destacava até então a maior caravana realizada no país: a da
torcida do Botafogo durante a Taça de Prata de 1967, quando Tarzã foi a Belo
Horizonte conduzindo trinta e oito ônibus. Se a partida contra o Atlético
Mineiro mobilizara o maior contingente de torcedores, segundo o jornalista a
partida seguinte contra o Internacional de Porto Alegre constituía a viagem
mais longa e distante protagonizada por uma torcida até então, em um total de
três dias de peregrinação, do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul.
De acordo com a observação de Genheim, o deslocamento envolvia um
ritual de preparação relativamente regular e comum entre as torcidas: a) a
divulgação e o anúncio nos meios de comunicação; b) a eventual obtenção de
apoio logístico junto ao clube; e c) a disputa interna entre os grupos para saber
qual deles era capaz de arregimentar mais adeptos. Para obter tais informações,
o jornalista tomara parte na viagem de uma torcida organizada do Botafogo, a
Unifogo, fundada há menos de um ano, a São Paulo, para uma partida contra o
Corinthians. A partir dela, descrevia o clima licencioso e permissivo das
viagens que partiam de madrugada, na véspera dos jogos, depois da
concentração marcada em frente ao Maracanã: uma incontida animação e
diversão tomava conta das excursões, com direito a bebidas, mulheres e
música.
A média de idade dos tripulantes girava em torno de vinte anos e os
excessos nas manifestações não eram raros dentro dos ônibus, com barulho,
bagunça, farra, palavrões, estribilhos chulos e ditos pornográficos. Fora deles,
nas paradas de estrada, o desafio transgressor dos torcedores consistia em levar
souvenires dos bares, isto é, adquirir alimentos e toda sorte de produtos das
lanchonetes sem pagá-los. A recepção em São Paulo não era descrita como a
das mais amistosas, com pedras arremessadas pelos Gaviões da Fiel quando do
estacionamento dos ônibus nas dependências do estádio. Já a volta ao Rio era
marcada pelo silêncio, com os passageiros vencidos pelo cansaço e pelo sono
da viagem e do jogo. Decorridos poucos dias da publicação da matéria, o
presidente da Unifogo, Fernando Mesquita, publicava na seção Bate-Bola a
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262
carta “Apoio às caravanas”, onde cumprimentava o jornalista José Antônio
Genheim pelo destaque às “peripécias incríveis” feitas por eles nas viagens
282
.
A realização das viagens para outras cidades do país não era o único fator
integrador que favorecia a coesão interna e a divulgação externa dos grupos. As
Torcidas Jovens e suas derivantes pareciam descobrir e se incorporar de
maneira rápida a um dos rituais mais populares da cidade: o carnaval. Os
festejos carnavalescos nos primeiros meses do ano seriam acompanhados com
proximidade por algumas torcidas organizadas, segundo noticiava o Jornal dos
Sports. Aliás, a música popular era uma das tradições cariocas mais caras a este
matutino esportivo, desde os tempos de sua fundação nos anos de 1930.
“Inventor de tradições”
283
, Mário Filho fora o responsável pela instituição do
concurso das Escolas de Samba, o que teria continuidade durante os anos 60,
com cada vez mais destaque no periódico, além da cobertura da Bienal do
Samba, dentro da ambiência dos festivais de música que perdurariam no país
até 1972, quando Jorge Benjor encerrou o último Festival Internacional da
Canção com uma composição para o jogador Fio Maravilha, uma verdadeira
ode em som pop ao excêntrico centroavante rubro-negro.
Figuras e personalidades do mundo sambístico, como Delegado da
Mangueira, eram focalizadas pelo jornal; Martinho da Vila podia ser visto às
vésperas da Copa do Mundo de 1970 ao lado de Pelé na primeira página do
periódico, levando descontração para os jogadores da seleção brasileira antes
do embarque para o México. Desde o mês de janeiro de cada ano, pululavam
informações no Jornal dos Sports sobre a preparação para o concurso nas
quadras das escolas, com a publicação das letras e com a divulgação dos
sambas-enredo vencedores nas prévias internas de cada agremiação, a fim de
criar uma atmosfera crescente de expectativa para o ritual do desfile. Junto ao
tradicional apoio jornalístico, cabe dizer que no início dos anos 70 algumas
transformações substantivas contribuíam para fortalecer e expandir o mundo do
samba na cidade e no país. Um dos seus elementos centrais referia-se à
associação entre as escolas de samba e a indústria cultural. Com a expansão das
grandes gravadoras brasileiras, que em fins daquele decênio se tornaria o sexto
282
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1973, p. 02.
283
Cf. HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
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mercado fonográfico no mundo, a disseminação das letras dos sambas-enredos
atingia uma escala exponencial, em função de sua massificação industrial,
possibilitada pela gravação e pela comercialização dos long-plays com a
coletânea de faixas exclusivas de cada ano.
Dentre os sambas-enredos que faziam sucesso, um dos marcos desta
nova era foi “Festa para um rei negro”, do Salgueiro, que se sagraria campeão
do carnaval de 1971. Popularizado como “Pega no ganzê”, o samba composto
por Zuzuca era conhecido por seu refrão forte, destinado à fácil
memorização
284
. Em meados dos anos 70, tais transformações seriam
aprofundadas com o desfile promovido pelo carnavalesco Joãozinho Trinta e
seu samba-enredo “Sonhar com rei dá leão”, da Beija-Flor, onde introduz uma
série de mudanças que passa a privilegiar a dimensão artística, coreográfica e
visual em sobreposição ao despojado “samba no pé”. Com isto, os LPs se
valiam do poder e da visibilidade muito maior lograda por este universo,
contribuindo para fazê-lo reverberar em outros domínios da vida social, como
os próprios estádios de futebol, além de se estender pelo restante do ano, sem
ficar restrito ao período carnavalesco.
Em reação ao avanço dos mass media no carnaval e à ameaça de
“descaracterização”, típica da postura romântico-nacional, onde impera a
retórica da perda, de que tratou em nível institucional o antropólogo Reginaldo
Gonçalves
285
, antigos componentes das escolas e alguns produtores, entre
jornalistas e intelectuais oriundos da classe média e simpáticos ao mundo do
samba, como Sérgio Cabral, Paulinho da Viola e Élton Medeiros, optavam pelo
afastamento e pelo cultivo de um ideal nostálgico dos carnavais antigos, com a
criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra Quilombo, uma escola de samba
concebida por Candeia para desfilar na avenida sem no entanto concorrer a
qualquer título. Enquanto já na década de 1960 tal postura reativa gerava o
alheamento e a procura por outros espaços de encontro e convívio musical,
como o restaurante Zicartola no centro do Rio, nos anos de 1970 isto seria
traduzido na explosão dos blocos de rua, que seriam fundados nos decênios
284
Cf. BAHIANA, A. M. Almanaque anos 70: lembranças e curiosidades de uma década muito
doida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 59.
285
Cf. GONÇALVES, J. R. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil.
Rio de Janeiro: UFRJ / IPHAN, 1996.
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264
anteriores, em momento consecutivo ao fim da era dos corsos e dos bondes no
carnaval.
Em 1973, o Jornal dos Sports registrava a existência de quatorze bandas
e blocos que, graças à sua própria equipe de repórteres, simpáticas e envolvidas
com aquele universo, recebiam o incentivo do jornal. Com a aproximação do
calendário carnavalesco, Altair Baffa consagrava matérias especiais em moldes
assemelhados aos que dedicava às torcidas de futebol. A Banda de Ipanema,
criada por Albino Pinheiro em 1964, o Bafo da Onça e o Cacique de Ramos,
surgidas respectivamente em 1956 e 1960, eram exaltados como forma de
união entre subúrbio e zona sul. A aclamação de uma revivescência do carnaval
de rua, tradicional e popular “Bafo da Onça nasceu numa conversa de bar”
286
era o título de uma reportagem , opunha-se ao carnaval oficial das Escolas de
Samba, cada vez mais apropriado pela máquina estatal como “artigo de
consumo nacional”
287
. A valorização das marchinhas ocorria em detrimento dos
sambas-enredo, que se integrava ao longo da década de 1970 ao discurso do
nacionalismo oficial do governo brasileiro, produto de exportação situado, por
sua vez, na contrafação dos estilos musicais importados dos EUA e da Europa,
como o rock, o funk e o soul, difundidos nas rádios e nas recém-criadas
discotecas, canalizadores da preferência sonora de uma fração expressiva da
juventude brasileira.
Favorecidas por sua disseminação industrial sonora, as músicas eleitas
pelas novas torcidas organizadas davam preferência rítmica aos instrumentos
de percussão, em detrimento dos instrumentos de sopro que caracterizavam até
então a Charanga e as demais torcidas oficiais dos clubes. Se “Pega no ganzê”
seria considerado um estouro no ano de 1971, um “samba de embalo”
paradigmático das mudanças temáticas – a década de 1960 assiste à entrada dos
temas de exaltação à figura do negro e ao sincretismo da cultura popular
tradicional e religiosa de origem africana em sobreposição à galeria de heróis
da história oficial, como bandeirantes, generais e presidentes – e das
transformações melódicas implicadas pelas novas demandas de consumo
musical do mercado fonográfico, desde 1968 o samba-enredo do Salgueiro, o
286
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1971, p. 11.
287
Cf. AUTRAN, M. “Samba, artigo de consumo nacional”. In: NOVAES, A. (Org.). Anos 70:
ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano / Editora Senac Rio, 2005.
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265
vitorioso “Bahia de todos os deuses”, seria parodiado pelas torcidas
organizadas do Flamengo e entoado por boa parte do Maracanã. Assim, a vida
comunitária local aproximava as escolas de samba de muitas torcidas de bairro,
de forma que a Flamante, constituída por moradores da Tijuca, era reconhecida
pelo “ritmo espetacular” e pela “cadência marcante”
288
de sua bateria, fruto da
ligação de seus componentes com o Salgueiro, tradicional agremiação
tijucana
289
.
Com a retomada do carnaval de rua na cidade, o Jornal dos Sports dava
destaque à formação em 1971 da Banda do Machado, um bloco de jornalistas
cuja novidade era a presença e a participação da Torcida Jovem do Flamengo.
Ela juntava-se aos dois mil foliões que se concentravam e saíam do tradicional
bar Lamas, em Laranjeiras, no mês de fevereiro, envergando um lema típico
das inversões carnavalescas a que se referia Roberto DaMatta, na esteira dos
estudos bakhtianianos
290
: “Todo mundo manda e ninguém obedece”. A torcida
comparecia com sua faixa, com seus instrumentos de bateria e com muitos de
seus integrantes. Nos primeiros anos de 1970, o bloco, a vincular de maneira
inédita, segundo o jornal, carnaval e futebol, era divulgado por Henfil e por
jornalistas específicos, através de fotos e de reportagens exclusivas. Em 1973, a
Charanga de Jaime de Carvalho e a Flamante de Ricardo Muci também se
mobilizariam com a criação conjunta de um bloco rubro-negro no Largo de São
Francisco, centro do Rio
291
. Tal participação se verificaria até fins dos anos 70
e início dos anos 80, quando as torcidas organizadas do Flamengo anunciavam
presença na badalada Banda de Ipanema, junto com o então presidente do
clube, Márcio Braga
292
. Via de mão dupla, o calendário carnavalesco levava as
torcidas organizadas para fora dos estádios, na mesma proporção em que os
sambas-enredo penetravam com mais intensidade no futebol, concorrendo com
288
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1972, p. 06.
289
Seção Bate-Bola: “Flamante & Salgueiro”. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1972,
p. 02.
290
Em observação posterior à publicação de Carnaval, malandros e heróis, DaMatta assegura que
suas interpretações dos rituais carnavalescos precederam o acesso à obra de Mikhail Bakhtin, o
que atesta a seu ver mais uma convergência de perspectivas do que uma filiação interpretativa. Cf.
DaMATTA. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1987.
291
Cf. “Mengão no carnaval”. Ibid. Rio de Janeiro, 03 de março de 1973, p. 02.
292
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1978, p. 02.
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266
as marchinhas e com os jingles radiofônicos na predileção musical dos
torcedores nas arquibancadas.
Ao alinhavar e indicar esses novos ingredientes identitários, que serão
mais explorados no próximo capítulo, é possível detectar algumas mudanças no
perfil das torcidas organizadas no primeiro qüinqüênio da década de 1970,
quando cotejadas com o processo desencadeador de seu surgimento nos últimos
anos do decênio de 1960. O surgimento repentino das torcidas sob o nome de
Poder Jovem tinha como motivação principal o agrupamento de jovens
insatisfeitos com a direção dos clubes e com a liderança dos chefes de torcida.
Quanto a esta última, a contraposição se manifestava sob um crivo geracional e
se expressava na forma das dissidências aos grupos tradicionais com a
demarcação física e simbólica de um novo ponto de acomodação nas
arquibancadas. No tocante ao clube, o enfrentamento se dava de várias
maneiras, sendo as de maior notoriedade os atos e os protestos à primeira vista
“espasmódicos”, para falar com E. P. Thompson
293
, ocorridos dentro e fora dos
estádios.
Longe de se restringir apenas à neutralidade na reportagem das notícias,
no usual entendimento da linguagem do jornal como “categoria abstrata”
294
, em
sua suposta opacidade na representação do real, o jornalismo esportivo aqui
analisado ocupava uma clara posição diretiva e interventiva, na medida em que
ele era responsável por matérias investigativas sobre os desmandos
administrativos do clube e era ele quem concedia um espaço privilegiado de
fala aos porta-vozes dos novos movimentos juvenis. Era possível perceber que
a divulgação dos acontecimentos era tanto antecedida quanto sucedida pelo
incitamento aos protestos. O clima contestatório que grassava no biênio 67-68
no país, com as manifestações estudantis e operárias em várias cidades
brasileiras, também contribuiria para exercer algum grau de influência sobre
tais grupos, sendo o papel dos meios de comunicação ativo na irrupção do
fenômeno.
293
Cf. THOMPSON, E. P. “A economia moral da multidão inglesa no século XVIII”. In:
Costumes em comum: estudos sobre cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das
Letras, p. 150.
294
Cf. CAPELATO, M. H. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista 1920-1945. São Paulo:
Brasiliense, 1988, p. 12.
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Tal quadro de embates não cairia por terra de maneira automática nem se
dissiparia totalmente nos primeiros anos da década de 1970, sob o novo
contexto do regime militar em que estudantes e oposicionistas haviam sido
defenestrados do país. O referencial da política clubística continuaria sendo um
termômetro que acarretaria formas assemelhadas de expressão da insatisfação
para as torcidas organizadas dos demais clubes. A continuidade das
contestações se devia ao fato também de que elas variavam em consonância
imediata com o estado das equipes dentro do campo, uma reação momentânea
às derrotas e às fases críticas. Às vaias e aos apupos, seriam acrescidas ainda
novas formas de reprovação aos dirigentes e ao time, como as pichações à sede
dos clubes e demais modos veementes de agressão simbólica ao seu
patrimônio.
Outro aspecto variante em relação ao elo clube-torcida seria a “retórica
da ruptura” instaurada no discurso e na prática das torcidas juvenis. A virtual e
propalada independência dos agrupamentos se mostraria sempre relativa e
oscilaria ao sabor dos personagens integrantes da direção dos clubes e da
direção da torcida. O grau de inserção na administração interna clubística seria
um coeficiente decisivo para a compreensão do envolvimento e da posição de
uma determinada torcida no apoio ou na oposição a uma específica gestão, com
todas as implicações de lealdade pessoal, de dependência econômica e de
aliança política que isto requeria, como é possível perceber nas tensas cartas
endereçadas à seção Bate-Bola do jornal
295
.
O primeiro lustro dos anos de 1970 assinalaria ainda uma nova
configuração juvenil no ethos desses grupos, com o advento de outras formas
de engajamento que não a exclusiva participação com um caráter mais ou
menos politizado. A propósito, sabe-se que a propalada alternativa do desvario,
do descompromisso underground ou do desbunde da beat-generation marcou o
comportamento de um segmento juvenil das camadas médias urbanas da
época
296
. Rotulada também como contracultura
297
, a evasão e a alienação dos
295
Ver a série de acusações entre a Torcida Organizada do Botafogo e a Torcida Jovem do
Botafogo: “Bang-Bang I, II, III, IV” e “Sofrimento Opus I e II”. Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio
de Janeiro, 26 e 27 de setembro de 1972, p. 06.
296
O estudo acadêmico pioneiro sobre as classes médias e sua relação com o consumo de drogas
foi empreendido pelo antropólogo Gilberto Velho em sua tese de doutorado defendida na USP no
início dos anos 70. Cf. VELHO, G. Nobres & anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.
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jovens e dos setores da esquerda ante o “vazio cultural”
298
e a repressão em
nível macropolítico levaram à intensificação de experiências subjetivas ou
lisérgicas com as drogas, por exemplo. Ainda que de maneira diluída e
rarefeita, é possível perceber como ela se refletiu em algum grau sobre outros
grupos com menor visibilidade no contexto nacional e, em específico aqui, no
seio das associações torcedoras, através do que se poderia chamar de esparsos
rudimentos contraculturais. Em um momento menos propício à politização da
juventude, as viagens, a música e a diversão proporcionada pela vivência
interna das torcidas pareciam constituir os principais elementos de estímulo
para a sua comunhão e para a sua caracterização. À imagem da ação direta e da
tomada de consciência, da pressão sobre os dirigentes e da fiscalização dos
rumos administrativos do clube, somar-se-iam outras atrações incitativas para o
ingresso na torcida.
O discurso do ascetismo requerido na fidelidade ao clube em viagens
fora do estado do Rio era curiosamente amalgamado ao hedonismo descrito nas
cartas, com as referências ao prazer de viajar e de se divertir durante as
excursões. A filiação a uma torcida passava pelo compartilhamento de uma
linguagem considerada “jovem”, própria a estudantes, colegiais, vestibulandos
ou universitários. O pertencimento ao grupo se situava para além dos dias de
jogo e se identificava em um estilo de vida expresso nas marcas de identidade
fornecidas pela camisa e por outros símbolos visuais de apelo estético para o
auto-reconhecimento de cada agremiação. O resultado disto seria a
disseminação de uma série de novas torcidas que se desgarravam umas das
outras ou surgiam de maneira autônoma para veicular uma identidade cada vez
menor, cada vez mais particular. Se a primeira imagem de uma torcida remetia
a um genérico agregado familiar – a Charanga –, de onde se originava um
segmento juvenil – as Torcidas Jovens –, na década de 1970 a vinculação a um
território – as torcidas de rua, de bairro ou de município – a uma faixa etária – a
torcida Pequenos Vascaínos, fundada em 1975 por e para adolescentes – ou
mesmo a um gênero – as torcidas femininas – passava a respaldar e a ser a
297
Cf. PEREIRA, C. A. M. Em busca do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Notrya, 1993.
298
Cf. ARAÚJO, M. P. N. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
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razão da existência das minorias, de várias torcidas organizadas de pequeno
porte, em um duplo processo de autonomia e de heteronomia.
A competição intragrupos ou intergrupos constituiria a conseqüência
necessária dessa escalada de pequenas entidades nucleares e a busca por formas
diferenciadas de representação da fidelidade clubística. Tal concorrência poria
em cena os valores requisitados como distintivos de cada grupo, nos quais não
faltavam os ideais altruísticos do amor, da abnegação e do sofrimento, nem
tampouco os ideais agonísticos da força, da virilidade e da juventude inspirados
no desempenho dos jogadores dentro de campo. Os apontamentos publicados
no jornal por seus membros descreviam as emergentes associações torcedoras
como portadoras de uma moral auto-referenciada nos estádios, traduzida por
uma disputa que se colocava em termos de uma série de binômios
reciprocamente combinados: superioridade/inferioridade, grandeza/pequenez,
força/fraqueza, originalidade/imitação, entre outras. Em suma, tal é a equação
que pode ser depreendida da leitura serial da seção de leitores do Jornal dos
Sports, a coluna Bate-Bola, onde a recorrência destes pares saltava aos olhos e
se revestia de diversas maneiras em cada uma das inúmeras cartas consagradas
ao tema. A visão de mundo a um só tempo criativa, hierárquica e grandiosa das
torcidas traduzia-se em âmbito escrito e verbal na defesa de uma supremacia
qualitativa (“a melhor”, “a mais bonita”, “a mais animada”), e de uma
supremacia quantitativa (“a maior”, “a de maior número de adeptos”, “a de
maior número de bandeiras”, “a de maior número de peças de bateria”).
A consideração desse padrão competitivo e de seus respectivos quesitos
hierarquizáveis não pode ser isolada da zona de influência e do raio de ação
exercido pelos meios de comunicação. A tradição dos grandes concursos entre
torcidas volta a ser promovida em 1973 pelo Jornal dos Sports, o que evidencia
a presença modal deste órgão na propagação dos valores comparativos e
concorrenciais mimetizados no espaço das arquibancadas. Em abril de 1973, a
preparação para o clássico Botafogo e Flamengo produzia a reportagem: “JS dá
prêmio à maior e à melhor torcida”. Nela, o periódico publicava no início da
semana o regulamento para a conquista dos três troféus em disputa. O primeiro,
a Taça Mário Filho, era destinado ao clube de torcida “mais vibrante”,
enquanto o segundo e o terceiro, as Taças Jornal dos Sports, iam para a torcida
organizada de cada clube que superasse a outra pela vibração. Os critérios para
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270
a mensuração do entusiasmo e as normas para a concessão dos prêmios também
eram prévia e rigidamente discriminados: 1) “o maior número de maiores
bandeiras”; 2) “o maior número de bandeiras normais”; 3) “a maior bandeira
presente ao estádio; 4) “o maior número de charangas”; 5) “as charangas mais
vibrantes”; 6) “a que mais e por mais tempo incentivar o seu time”; 7) “a maior
faixa, tanto esteticamente como com os dizeres mais bem elaborados”
299
. A
matéria referente ao concurso complementava:
“Se no campo haverá uma decisão, nas arquibancadas não será
diferente: o Vasco quer mostrar que tem maior torcida que o
Flamengo e o Flamengo quer confirmar que tem a maior torcida da
cidade.”
300
A formalidade do julgamento podia ser percebida no número de
examinadores acionados no concurso. Além de cinco repórteres do próprio JS,
eram escalados mais oito membros do júri, o que mostrava a relação da torcida
não apenas com o jornal, mas igualmente com as emissoras de rádio e os canais
de televisão: Valdir Amaral (Rádio Globo), João Saldanha (TV Globo), Doalcei
Camargo (Rádio Tupi), Orlando Batista (Rádio Mauá), Luís Mendes (TV Rio),
Wagner Luís (Rádio Continental), Almir Ribeiro (Rádio Metropolitana) e
Oduvaldo Cozzi (Rádio Continental). A cobertura do concurso se estendia por
toda a semana do clássico, com a reportagem dos preparativos e com a
sondagem das surpresas preparadas por cada torcida, e terminava somente na
semana seguinte, com a festa e a solenidade de entrega dos troféus na sede do
jornal, devidamente registrada em fotos e matérias, aonde compareciam vice-
presidentes de futebol dos clubes e onde se mostravam irmanadas as torcidas
adversárias.
O borbulhar de minúsculas torcidas nesse contexto vai dar origem a
novos padrões de rivalidade e a novas maneiras de convivência, estabelecidas
por meio de anúncios de churrascos, confraternizações, coquetéis, bailes,
serestas, piqueniques, rodas de samba, “batizados”, comemoração de
aniversário dos grupos, torneios de futebol de salão entre duas torcidas
organizadas do mesmo bairro ou mesmo um campeonato de pelada no Aterro
299
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 e 18 de abril de 1973.
300
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de maio de 1973, p. 03.
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271
do Flamengo patrocinado pelo JS
301
. Mas a capacidade de produzir coesão e
amizade vai ser encompassada pela produção concomitante de conflito e
inimizade. O início dos anos 70 inauguraria um processo sujeito a sucessivos
arranjos combinatórios entre as torcidas, com incessantes fusões e separações,
aproximações e distanciamentos, uniões e dissídios, onde não podem ser
descartadas as contingências políticas, sociais e culturais que preponderavam
em termos locais, nacionais e internacionais. O acompanhamento das torcidas
organizadas na segunda metade dos anos 70 e na virada da década de 1970 para
1980 propicia a observação dos desdobramentos desse fenômeno, com a
percepção de uma encruzilhada delineada pela rede de sociabilidade instaurada
pelas torcidas no início do decênio de 80: uma vertente aponta para o consenso
e para a integração como força corporativa por meio do diálogo e da relação
amistosa intertorcidas; a outra caminha no sentido do dissenso e dos
enfrentamentos cada vez mais constantes entre os grupos, por meio do descenso
de uma competição figurada e simulada a uma competição física, direta.
Para fins expositivos, a demonstração do argumento terá por foco agora
apenas a primeira vertente, a consensual e corporativa, e deixará a segunda para
o próximo capítulo. A abordagem se concentrará nos primeiros anos da década
de 1980, quando as torcidas se uniram em torno de uma associação e
protagonizaram um fenômeno histórico inédito: a realização de protestos,
boicotes e greves contra o aumento dos ingressos. O desenrolar de tais fatos
será observado, doravante, com base em três instâncias de interação social: a
primeira diz respeito à relação entre as torcidas e a direção dos clubes; a
segunda abrange as torcidas e as entidades administrativas do futebol, aí
incluídas a Federação de Futebol, a Polícia Militar e a Suderj, órgão do estado
responsável pela gestão dos estádios; a terceira compreende a evolução e a
lógica do relacionamento das torcidas entre si. A dramaticidade e os dilemas
engendrados em tais intercessões, sob uma nova conjuntura nacional,
continuam passíveis de reconstituição com base nos vestígios deixados por um
dos mais importantes canais de divulgação e de referência para as torcidas
organizadas: o Jornal dos Sports.
301
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1975, p. 02.
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272
2.3 O Estado e os estádios – e as multidões se organizaram ?
O falecimento de Nélson Rodrigues no final de dezembro de 1980 pode
ser considerado o réquiem, o epílogo, o canto de cisne da participação dos
irmãos Rodrigues naquele periódico esportivo carioca. Embora Mário
Rodrigues Neto – filho de Mário Júlio e neto de Mário Filho, ao lado do qual
aparecia outrora na primeira página do JS, ainda criança, em fotos dos Jogos
Infantis realizados nas Laranjeiras, nos quais tomava parte como competidor
mirim, para orgulho e júbilo do avô – continuasse a timbrar a assinatura
familiar no jornal, com a colaboração diária em uma coluna exclusiva, apenas
parcialmente ou por força residual da tradição aquilo que havia sido idealizado
pelos Rodrigues até então ainda tinha lugar no periódico. A morte do
dramaturgo constituía um marco simbólico da guinada nos rumos que a política
editorial do jornal já vinha sinalizando desde o início dos anos de 1970 e que se
consolidaria em definitivo ao longo da década seguinte. Com efeito, o
desaparecimento de Nelson se afiguraria uma perda irreparável não apenas nos
limites da discussão sobre a propriedade e os destinos do jornal ou nos
domínios do mundo desportivo de uma maneira geral, mas açambarcaria boa
parte do universo da cultura brasileira, consternando o meio teatral, literário,
jornalístico, cinematográfico ou onde quer que sua obra tenha alcançado
repercussão
302
.
Nelson faleceria às vésperas do Natal, no mesmo mês da conquista de
mais um campeonato carioca pelo seu clube do coração. Este seria um título
especial para os torcedores do Fluminense, atribuído por muitos a “desígnios
divinos”, aliás bem condizentes com a visão dramático-mística
nelsonrodrigueana do futebol. A vitória de 1980 tivera por coincidência
benfazeja a visita do Papa João Paulo II ao Brasil
303
entre os dias 30 de junho
e 12 de julho e a sua passagem pelas terras cariocas meses antes do triunfo,
com a realização de uma missa campal no principal templo esportivo da cidade,
o Maracanã, o que valeria a posterior consagração na memória coletiva de um
302
É digno de nota que, desde sua morte, seria apenas no início da década de 1990, graças ao
empreendimento editorial da Companhia das Letras e de Rui Castro, autor de uma alentada e
atilada biografia, bem como de uma recompilação de uma série antológica de crônicas, dentre elas
as esportivas, que a obra de Nélson Rodrigues voltaria à baila, redespertando o interesse sobre seu
trabalho não-dramatúrgico.
303
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 e 02 de julho de 1980, p. 01.
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273
cântico da torcida tricolor em homenagem ao pontífice, tal como tematizava o
jornal: “Canto a João de Deus, um empurrão com força superior”
304
. Pouco
depois de escrever crônicas sobre o movimentado pleito eleitoral para as
presidências do Fluminense e do Flamengo
305
– símbolo dos ares democráticos
que então pairavam no cenário nacional –, a morte de Nelson uniria
representantes expressivos da política, da intelectualidade e do jornalismo do
país em seu enterro. Afora a presença de centenas de anônimos e curiosos, seu
velório, a princípio previsto para o Teatro Municipal mas por fim realizado no
cemitério São João Baptista em Botafogo, reuniria diversos nomes da vida
pública nacional, como o ex-presidente Emílio Garrastazu Médici e o
dramaturgo Guilherme Figueiredo – irmão do então general-presidente João
Baptista Figueiredo – as atrizes Dina Sfat e Fernanda Montenegro, o imortal
acadêmico Austregésilo de Athayde e o jornalista Barbosa Lima Sobrinho, o
escritor Carlos Heitor Cony e o caricaturista Alvarus, os dirigentes esportivos
Giulitte Coutinho e João Havelange, além do secretário de cultura do Estado do
Rio, Arnaldo Niskier
306
.
Mas a relativa parcimônia e economia nas informações prestadas por
parte do Jornal dos Sports pareciam querer minorar a importância do
acontecimento. A notícia do falecimento se restringia ao seu anúncio na
primeira página e à cobertura do funeral em sua terceira página, sem qualquer
acréscimo de ilustração ou sem qualquer retrospectiva da trajetória biográfica e
profissional do autor nos dias subseqüentes, a dar ênfase a seu relevo no futebol
e na constituição da memória do próprio periódico, como sói acontecer nas
ocasiões em que figuras afamadas saem de cena
307
. Tal dado configurava por si
só um indício da progressiva distância assumida entre a família e o periódico.
Conquanto continuasse a circular nas décadas seguintes com o bordão “o jornal
de Mário Filho”, com vistas talvez a amealhar o prestigio deste vulto que
emprestava e emoldurava também seu nome à entrada do Maracanã, esta
304
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de novembro e 02 de dezembro de 1980, p. 12.
305
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de abril de 1979, p. 12.
306
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 1980, p. 03. A informação da presença de Arnaldo
Niskier no enterro, fornecida pelo Jornal dos Sports, contrasta com a de Ruy Castro, para quem o
secretário de cultura esteve ausente do funeral, pois se encontrava fora da cidade, fator que
impediu a realização do velório no Teatro Municipal. Cf. CASTRO, R. op. cit., p. 420.
307
A referência à memória do cronista só ocorreria três anos depois, com a rememoração feita pelo
colega Geraldo Romualdo da Silva: “Três anos sem Nelson Rodrigues”. Cf. ibid. Rio de Janeiro,
20 de dezembro de 1983, p. 07.
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274
separação se acentuava ainda mais naquele ano de 1980, quando o JS deixara
de pertencer à viúva de Mário Júlio Rodrigues, a sra. Cacilda Fernandes de
Souza.
A crise econômico-financeira do segundo qüinqüênio dos anos de 1970
levara muitos dos grandes jornais da cidade à bancarrota, como o Correio da
Manhã, O Jornal e o Diário de Notícias, e retirava de circulação muitas
revistas de renome nacional, como a Cruzeiro, pertencente aos Diários
Associados de Assis Chateaubriand, fundada no final dos anos 20. Em meio a
várias desaparições, a exceção seria a IstoÉ, que surgiria em 1978 e passaria a
disputar espaço em território nacional com a Veja. As mesmas dificuldades
financeiras pesavam sobre o JS e, a fim de salvaguardá-lo e de impedir sua
decadência ou seu fechamento, a dona do periódico passava-o às mãos da
família Velloso. Sob novos acionistas, o Jornal dos Sports se reestruturaria e
sobreviveria graças sobretudo ao patrocínio de Arthur Sendas, proprietário de
uma poderosa rede de supermercados na cidade, as Casas da Banha, ele próprio
também vinculado a partir de então à direção e à condução do mundo esportivo
carioca.
O empresário se tornaria no mesmo período vice-presidente do Clube de
Regatas Vasco da Gama, na chapa de Antônio Soares Calçada, em oposição à
gestão de Agathirno da Silva Gomes, depois de este ter passado dez anos no
comando do clube. No mesmo período ainda, outro opositor, o então diretor
Eurico Miranda, com cargo no clube desde 1975, despontaria ao assumir a
pasta da vice-presidência de futebol do Vasco
308
. Climério Pereira Velloso
ficaria à testa do jornal no início daquele novo decênio e teria como auxiliares
na diretoria executiva do jornal os parentes Waldemar Pereira Velloso e
Venâncio Pereira Velloso. Estes comporiam uma rede clãnica familiar inscrita
nas relações de poder da cidade, que tinha como braço-direito na Assembléia
Legislativa do Estado o deputado Napoleão Velloso, do PMDB, cujo mandato,
não por coincidência, receberia assídua cobertura no JS.
As transformações gráficas, editoriais e de conteúdo do Jornal dos Sports
poderiam passar despercebidas ao leitor incauto, posto que a base do jornal
ainda se sustinha sob muitos aspectos em suas vigas-mestras – a predominância
308
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 08 de agosto de 1979, p. 05.
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275
do Esporte seguida de complementos subsidiários em Educação, Política e
Carnaval. As suas metamorfoses eram operadas de maneira sutil e pouco
perceptível no interior desses domínios tradicionais. A exceção à tendência
dizia respeito ao surgimento de cadernos inusitados como o Suplemento
Espiritualista do JS, sub-intitulado O Mundo Azul, destinado à difusão entre os
leitores das idéias de Alan Kardeck. A seção apareceria no periódico já em
1974, junto ao suplemento JS Turismo & Transportes, páginas bem destoantes
à primeira vista da tradição informativa do Cor-de-Rosa. Outro setor
aparentemente estranho com nascimento nesta época era o Recursos Humanos,
também chamado Mercado de Trabalho JS, com a clara finalidade de atrair e
de auxiliar o cidadão em busca de emprego, atendendo suas demandas através
de manchetes como: “BNDES mostra programa de concurso”
309
. De resto, o
temário principal de notícias permanecia inalterado, com a mudança de enfoque
restrita ao interior de cada uma das sub-áreas.
Na área educacional, a rearticulação do Movimento Estudantil no Rio de
Janeiro era noticiada desde o final da década de 1970, efeito e influência da
reorganização do ME no plano nacional. As tentativas malogradas dos
estudantes de organização de um encontro nacional em Belo Horizonte e depois
em São Paulo adquiriam ressonância nacional em 1977, quando a PUC-SP foi
invadida pela polícia, com um saldo de dois mil presos, numa represália à
ocupação e aos protestos lá desencadeados pelos universitários que contavam
com o aval de muitos professores da casa, como o sociólogo Octávio Ianni. No
âmbito carioca, o jornal noticiava a reformulação da AMES, a reivindicação de
uma sede para a UNE e a reorganização dos diretórios de estudantes em cada
uma das universidades
310
. Não obstante, tratava-se de informações sucintas e
pontuais, bem diferentes da sistematicidade, da recorrência e do engajamento
do final dos anos de 1960, quando o próprio jornal parecia ombreado à causa
estudantil. Como já foi assinalado no item anterior, o acento desde o início do
decênio de 1970 se concentrava nas questões mais instrumentais da vida prática
do estudante, como a preparação para as provas e a obtenção dos gabaritos do
Vestibular. Se antes deste era possível encontrar uma série de matérias
309
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de março de 1984, p. 12.
310
“Política estudantil: nascem as novas lideranças dos anos 80”. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23, 29
e 30 de maio de 1982, p. 12 e 20.
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ilustradas de página inteira sobre a Revolução Francesa, por exemplo, depois
do concurso os resultados eram fornecidos em manchetes como: “Listão
nominal dos novos calouros”
311
.
Ainda que o jornal veiculasse matérias sobre o dia a dia das
universidades públicas – tais como a inauguração do Fundão, imenso espaço na
Ilha do Governador, um novo centro projetado pelos militares em meados da
década de 1970 para abrigar os institutos e as escolas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, e a conversão da UEG (Universidade do Estado da
Guanabara) em UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) –, a novidade
da diretriz editorial se voltava para o estabelecimento de acordos com as
emergentes faculdades particulares. Isto se dava por meio de parcerias com
Gama Filho, dono de uma rede de ensino universitário que se firmava na
cidade, e com a Fundação Cesgranrio (Centro de Seleção de Candidatos do
Ensino Superior), uma cadeia de doze faculdades privadas que também
ganhava destaque no noticiário do periódico mediante a aplicação unificada dos
exames para os aspirantes aos cursos de terceiro grau. A Cesgranrio, sob a
direção do professor Carlos Alberto Serpa de Oliveira, vice-diretor
administrativo da PUC-Rio, transformava o formato das provas: de vestibular
isolado, com questões discursivas, passava a um exame unificado, com provas
de múltipla escolha
312
. O advento, a força e a expansão das faculdades
particulares nesse momento constituíam um dos legados do regime de exceção
que findava, quando o número de universitários no país multiplicou-se de cem
mil em 1970 para quase um milhão em 1980, sem destituir a universidade,
todavia, de sua feição elitista
313
.
Na esfera política, mudanças sensíveis, análogas às empreendidas na
educação, se processavam na cidade, com reverberação no interior do jornal.
Sem desaparecer por completo, parte considerável de seu interesse, por assim
dizer cosmopolita, esmaecia. A seção perdia de maneira crescente a dimensão
nacional, quiçá internacional, e apenas excepcionalmente fazia-se menção à
viagem do presidente João Figueiredo à África, com sua visita a países como
Nigéria e Senegal, um marco do ponto de vista das relações internacionais e da
311
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de abril de 1979, p. 12; 15 de janeiro de 1981, p. 01.
312
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 18 de março de 1984, p. 17.
313
Cf. NOSSO SÉCULO. op. cit., p. 245.
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277
diplomacia brasileira, desde o reconhecimento por parte de Ernesto Geisel da
autonomia de Angola e Moçambique, no momento em que o continente
africano completava seus movimentos de independência
314
. O jornal limitava-
se sobretudo à abordagem mais provinciana da política estadual fluminense,
desde que a fusão ocorrida em 1975 restabelecia a unidade rompida em 1960
entre o Estado do Rio e o Estado da Guanabara, quando a capital federal é
transferida para Brasília. É possível que a regionalização do jornal atendesse às
limitações comerciais da distribuição e da vendagem do periódico, com a
retração imposta pela crise financeira e a subseqüente perda do caráter
nacional; é certo, porém, que atendia à nova geopolítica e à variação dos
interesses locais entre o interior e a capital, com o enfoque nas coalizões de
poder entre os partidos nascentes que se estruturavam após 1978, ocasião na
qual o pluripartidarismo sobrepujou o bipartidarismo de Arena e MDB, extintos
por decreto do governo federal.
Além dos prefeitos nomeados, como Jamil Haddad e Marcelo Alencar, e
dos governadores eleitos pela via indireta, como Faria Lima e Chagas Freitas, a
cobertura jornalística acompanhava no início dos anos 80 a surpreendente
vitória nas primeiras eleições diretas dos últimos vinte anos no país, mediante o
voto popular, do oposicionista Leonel Brizola – segundo o historiador da USP,
Hilário Franco Júnior, “o adversário mais temido pela ditadura”
315
–, um dos
quatro mil beneficiados pela a Lei da Anistia no Brasil, medida sancionada por
Figueiredo que permitia o retorno do exílio a partir de 1979 dos expatriados
pelo regime discricionário. Dos vinte e três governadores eleitos nas eleições de
1982, Brizola era o único que não pertencia nem ao PMDB, antigo MDB, nem
ao PDS, ex-Arena. Mesmo com a perda da legenda do antigo PTB para Ivete
Vargas, partido depositário das bandeiras do governo João Goulart, ao qual ele
se filiara e contra o qual os militares haviam se rebelado em 1964, Brizola
fundara o PDT e se elegera de maneira inesperada para a maioria dos analistas
políticos, ao superar a candidata favorita ao pleito, Sandra Cavalcanti, do PTB,
ex-secretária de habitação do governo Carlos Lacerda, conhecida na década de
1960 pela política de remoção de favelas da zona sul da cidade.
314
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1983.
315
Cf. FRANCO JÚNIOR, H. op. cit., p. 152.
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O programa consistiu na transferência de moradores de doze favelas da
cidade para locais distantes, tais como as recém-criadas Vila Kennedy, em
Senador Camará, Vila Esperança, em Vigário Geral, Vila Aliança, em Bangu, e
o conjunto habitacional da Cidade de Deus, em Jacarepaguá. Segundo
informação de Paulo César de Araújo, o famoso samba Opinião de Zé Kéti era
um protesto contra o Programa de Remoção: “Podem me prender, podem me
bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião/ daqui do
morro eu não saio, não.”. No decorrer do decênio a música seria apropriada
pela esquerda e ganharia a conotação de oposição à ditadura militar
316
.
Na área musical, as modificações eram perceptíveis mais em função de
uma mudança de tratamento, dir-se-ia mais audaciosa, e menos em virtude da
continuidade no privilégio concedido ao tradicional universo dos sambas-
enredo e das quadras das escolas de samba. No final da década de 1970, os
desfiles das grandes escolas de samba dividiam o seu destaque e peso com a
cobertura concedida a outras atrações festivas, como os concursos de fantasias,
o carnaval de rua e os blocos espalhados pela cidade, em especial no Centro,
onde desfilavam o Cacique de Ramos, o Cordão do Bola Preta e outras
agremiações tradicionais. Uma tradição revigorada naquele período e
estimulada pelo periódico eram os bailes carnavalescos que ocorriam nas sedes
dos clubes recreativos e esportivos da cidade, como o Baile do Diabo, no
América; o Baile do Vermelho-e-Preto, no Flamengo; o Baile do Almirante,
patrocinado pelo Vasco da Gama, no salão do clube Monte Líbano; o baile do
Vert, Rouge et Blanc, do Fluminense; e o Black and White, do Botafogo,
realizado no ginásio do Mourisco, sede náutica do clube, na Praia de
Botafogo
317
.
Com o fito comercial de aumentar a vendagem, o jornal valia-se do fato
de que muitos deles tornavam-se conhecidos na cidade pela sensualidade e pela
lascívia. As chamativas imagens dos bailes, em específico a exposição
sugestiva de uma série de corpos femininos seminus, eram agora divulgadas
pelas equipes de reportagem do jornal, responsáveis por matérias relativas ao
carnaval no período de celebração momesca em que a rotina do futebol se
316
Cf. BURGOS, M. B. “Dos parques proletários ao Favela-Bairro”. In: ZALUAR, A; ALVITO,
M. (Orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. Cf.
também ARAÚJO, P. C. op. cit., p. 238.
317
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1980, p. 02.
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interrompia e em que as notícias esportivas rareavam. A despeito da presença
de jogadores famosos, de técnicos e de dirigentes dos clubes realizadores do
bailes, acompanhados das respectivas namoradas e consortes, o interesse dos
jornalistas recaía mais nas “mulheres bonitas com pouquíssima roupa”
318
que
dançavam e se comprimiam nos camarotes, onde as brigas e os excessos de
toda ordem eram descritos como “inevitáveis” pelo jornal, em virtude do calor,
do consumo de bebidas alcoólicas e da superlotação.
Assim, fotos e poses ousadas, com um explícito cunho erótico, eram
agora expostas sem hesitação na primeira página do jornal
319
. Este encontrava
um novo meio de atração de leitores e passava, com isto, a se articular a um
contexto maior, nivelando-se em tal época às revistas masculinas disseminadas
de maneira mais intensa nas bancas de jornal do país no decurso da década de
1970. Na esteira da revolução sexual deflagrada em fins dos anos de 1960,
assistia-se então à fase da apropriação mercantil do sexo pela indústria cultural,
expressa através do aparecimento de revistas como a Playboy (1975)
homônima da norte-americana criada em 1953 –, pertencente à editora Abril,
além da Ele Ela, de propriedade da Editora Bloch, que por sua vez ensaiava
também em 1977 o retorno da Manchete Esportiva – semanário famoso nos
anos 50 sob o comando do mesmo Mário Filho todavia sem lograr continuidade
– e suas congêneres nacionais, Status (1974), Fatos & fotos, Revista do
Homem, sem contar outras impróprias a menores de dezoito anos, de assumido
teor pornográfico.
Em certo sentido, esses novos hábitos e costumes flagrados em
determinados bailes podem ser contrapostos à decadência da imagem de
austeridade e de severidade preconizada pelo regime militar então agonizante.
Tal contraste era apenas uma das facetas do complexo ritual de inversão
carnavalesco analisado no mesmo momento por Roberto DaMatta, em especial
no livro consecutivo a Carnaval, malandros e heróis, no qual consolida sua
passagem da antropologia indígena aos estudos de antropologia urbana do
início dos anos 80: Universo do carnaval – imagens e reflexões
320
. Se se quiser,
a remissão da questão pode ser endereçada até uma das matrizes do pensamento
318
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de março de 1984, p. 02.
319
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 20 e 24 de fevereiro de 1982, p. 01 e 12.
320
Cf. DAMATTA, R. Universo do carnaval. Rio de Janeiro: Edições Pinakoteque, 1981, p. 70-
73.
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social brasileiro, pois esta deita raízes na discussão clássica sobre o ethos
nacional, em específico se nos ativermos à senda temática inaugurada por Paulo
Prado. No final da década de 1920, o escritor de Retrato do Brasil: ensaio
sobre a tristeza brasileira referia-se ao vício e ao desregramento sexual dos
colonizadores portugueses movidos por dois instintos básicos: a cobiça do ouro
e a luxúria da carne. Tais motivações teriam implicações na definição do
caráter nacional, resultando em uma conduta orientada pelas paixões, cujo traço
principal, na ótica deste filho da aristocracia paulista, seria a melancolia que se
segue à consumação do ato sexual. O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre
iria ao seu encontro poucos anos depois, em 1933, mediante uma análise da
nossa formação colonial e étnica, onde não faltavam aspectos como a
poligamia, a concupiscência, os excessos tropicais e o primado da
sexualidade
321
.
A par do lastro histórico e contemporâneo identificado nos elementos
orgiásticos do carnaval, DaMatta filiava-se a essa linhagem de escritores e
expunha em seu livro fotos de tais bailes, tiradas pelo co-autor da obra, o
fotógrafo João Poppe, e as perscrutava à luz de seu instrumental analítico.
Disposto a romper as barreiras entre a iconografia e o pensamento teórico, entre
a plataforma estética e as ciências sociais, inspirado livremente neste sentido
pela obra clássica de Erwin Panofsky, Significado das artes visuais: a
perspectiva como forma simbólica (1920), o autor valia-se dessas imagens
visuais para entender aquilo que denominava pelo neologismo “carnavagem”, a
fusão coletiva indiscernível de corpos masculinos e femininos em espaço
público, algo diverso da pornografia entre os anglo-saxãos, para os quais a
privacidade e o caráter secreto do ato sexual são suas pré-condições
indispensáveis. Algumas especificidades da relação entre sexo e papéis sociais
no Brasil de então seriam aprofundadas também por DaMatta no texto “Para
uma teoria da sacanagem”, em sua origem uma apresentação ao livro de
histórias em quadrinhos A arte sacana de Carlos Zéfiro
322
. O antropólogo
retornaria ao assunto no decorrer da década em uma interpretação consagrada
321
Cf. ARAÚJO, R. B. de. Guerra e paz: Casa-Grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos
anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34,1994.
322
Cf. DAMATTA, R. “Para uma teoria da sacanagem: uma reflexão sobre a obra de Carlos
Zéfiro”. In: MARINHO, J. J. (Org.). A arte sacana de Carlos Zéfiro. Rio de Janeiro: Editora
Marco Zero, 1983.
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ao romance relacional Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, obra
popularizada de maneira extraordinária na década de 1970, devido em grande
parte ao sucesso do homônimo cinematográfico dirigido pelo jovem Bruno
Barreto.
Mais do que um dado episódico ou extemporâneo, circunscrito ao ciclo
de maior ou menor grau de libertinagem do carnaval, captado pelas câmaras
fotográficas após uma década conhecida pela liberação sexual, as fotos de
mulheres nuas e em posições sensuais tornavam-se moeda corrente nas colunas
diárias do Jornal dos Sports. Tudo leva a crer que se tratava de uma
deliberação de sua linha editorial, na qual se procurava fazer a associação
futebol/erotismo, ambos objeto de consumo e de atração imagética, seguindo
uma tendência já adotada pelo semanário esportivo nacional Placar. Não é
difícil inferir que a exploração fetichista por tal interesse apelativo ocorria em
um jornal consumido de forma predominante por leitores adolescentes, jovens e
adultos do sexo masculino. A liberdade de veiculação das imagens femininas
mais ou menos vulgares, mais ou menos obscenas naquele jornal esportivo
pode ser entendida em um período em que paralelamente a censura prévia
vinha sendo suspensa nos grandes jornais de modo gradual. Em 1975, o
governo começou a liberar a inspeção das matérias de cunho político no
Estadão e, a cada ano, a liberdade de opinião e de expressão foi sendo
franqueada aos demais órgãos da imprensa e a outras áreas da vida social.
A expansão de um setor da indústria do cinema no país, responsável por
uma produção em série que criaria um subgênero específico, a pornochanchada,
pode ser outro fator agregado a tal dado. O gênero, afamado em São Paulo pelo
baixo custo das produções da Boca do Lixo, resultava da exploração de
narrativas ficcionais prosaicas e domésticas com enredos que tinham por base o
erotismo. Este, por sua vez, era combinado à fórmula exitosa da tradição
popular do teatro de revista e das chanchadas da Atlântida, sendo alguns desses
filmes inclusive a adaptação para as telas das peças e dos textos do próprio
Nelson Rodrigues, como A dama do lotação, Bonitinha mas ordinária e Os sete
gatinhos. Em plena fase de distensão política e de menor repressão, marcada
pelo patrocínio e pelo incentivo estatal ao meio cinematográfico e cultural,
através da instituição de empresas como a Embrafilme em 1975, substituta do
INCE getulista (o Instituto Nacional de Cinema Educativo), dentro do novo
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282
Plano Nacional de Cultura anunciado pelo ministro da educação Ney Braga, a
sobrevalorização dos apelos libidinosos e sexuais do povo brasileiro tornava-se
uma marca de incontestável êxito de bilheteria, com repercussões na formação
da imagem e do imaginário nacional no exterior. Enfim, conforme observava
com ironia em texto de época o crítico José Carlos Avellar, a pornochanchada
havia sido paradoxalmente “uma invenção da Censura”
323
.
Enquanto os jornais, as revistas e as salas de cinema eram alvo
progressivo de menor vigilância e inspeção – a exibição de Laranja mecânica
no Rio de Janeiro, filme realizado em 1971 por Stanley Kubrick, seria
autorizada com cortes em 1978
324
–, o mesmo não sucedia com as emissoras de
televisão, cujos programas ainda eram submetidos à ingerência ostensiva do
Estado, porquanto elas ganhavam forte impulso na vida cotidiana brasileira.
Dentre as novas estações, a Rede Globo de Televisão despontava com mais
força na segunda metade dos anos de 1970, o que se expressava também no
carnaval, com a primeira transmissão de eventos momescos em cores, e se
fortaleceria no decênio seguinte com a construção de um espaço específico para
os desfiles, a Passarela do Samba, concebida pelo arquiteto Oscar Niemayer e
pelo vice-governador do estado, o antropólogo Darcy Ribeiro, tradição iniciada
no carnaval de 1984 quando saiu vitoriosa a popular Estação Primeira de
Mangueira
325
.
O poder da imagem televisiva e a popularização da emissora na
sociedade brasileira se manifestavam sobretudo nos altos índices de audiência
obtidos em seus programas, com a enorme capacidade de criar hábitos e de
reinventar o cotidiano, mediante o sucesso da sua teledramaturgia e a
hegemonia dos seus telejornais
326
. O primeiro gênero destacava-se por uma
certa recuperação da imaginação melodramática latino-americana, assim como
da tradição folhetinesca dos jornais oitocentistas – forma literária francesa
publicada com fragmentação seqüenciada da narrativa –, reforçando um
323
Cf. AVELLAR, J. C.A teoria da relatividade”. In: NOVAES, A. (Org.). Anos 70: ainda sob
a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano / Editora Senac Rio, 2005, p. 340.
324
Cf. ibid, p. 337.
325
Na primeira página, sob o título “Passarela inaugurada”, o Jornal dos Sports exibia fotos de
Brizola e Darcy no dia da inauguração na Praça Marquês de Sapucaí. Cf. JORNAL DOS SPORTS.
Rio de Janeiro, 03 de março de 1984.
326
Cf. HAMBURGER, E. “Diluindo fronteiras: a televisão e as telenovelas no cotidiano”. In:
SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998, vol.4.
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283
vínculo diário com o público telespectador
327
, ao passo que o segundo, sob
direção-geral de Armando Nogueira, substituía a informação tradicional típica
de um informativo como o Repórter Esso dos anos 50. Em seu lugar, passava-
se a juntar as notícias ordinárias do dia a dia ao extraordinário dos faits-divers
o crime passional, as anomalias sociais, as catástrofes naturais
328
– elegendo
assim o show, o espetáculo e o elemento fantástico como novo paradigma em
sua abordagem dos acontecimentos diários noticiáveis
329
.
As análises sobre a estrutura dos programas de notícias iniciadas na
França por Roland Barthes encontrariam eco contemporâneo no já citado
opúsculo de Pierre Bourdieu a respeito da televisão:
“Os jornalistas, grosso modo, interessam-se pelo excepcional, pelo
que é excepcional para eles. O que pode ser banal para outros poderá
ser extraordinário para eles ou ao contrário. Eles se interessam pelo
extraordinário, pelo que rompe com o ordinário, pelo que não é
cotidiano – os jornais cotidianos devem oferecer cotidianamente o
extra-cotidiano, não é fácil... Daí o lugar que conferem ao
extraordinário ordinário, isto é, previsto pelas expectativas ordinárias,
incêndios, inundações, assassinatos, variedades. Mas o extra-ordinário
é também e sobretudo o que não é ordinário com relação aos outros
jornais.”
330
.
Outro dado surpreendente do poderio global era demonstrado pelo
potencial da emissora na cooptação ao seu elenco de artistas, intelectuais e
escritores simpatizantes do Partido Comunista ou tradicionalmente vinculados à
esquerda, saídos em sua maioria do teatro e do cinema. Isto sucedia, entre
outros, com Dias Gomes, em suas peças convertidas em novelas, como O bem-
amado; com Jorge Amado, notório stalinista cujos romances também eram
adaptados para a televisão; com Vianninha e Paulo Pontes, dramaturgos
idealizadores do programa humorístico A grande família; com Mário Lago,
integrante do clandestino “Partidão” e protagonista principal de várias novelas;
com Paulo Gil Soares, Walter Lima Júnior e com Eduardo Coutinho, este
último ex-ativista do CPC da UNE, cineasta do inacabado Cabra marcado para
327
Cf. KEHL, M. R. “Um só povo, uma só cabeça, uma só nação”. In: NOVAES, A. (Org.). op.
cit.
328
Cf. NAVES, S. C.; BOTELHO, I. “Show, a coreografia do milagre”. In: NOVAES, A. (Org.).
op. cit., p. 465.
329
Cf . CARVALHO, E. “Telejornalismo: a década do jornal da tranqüilidade”. In: NOVAES, A.
(Org.). op. cit.
330
Cf. BOURDIEU, P. op. cit., p. 26 e 27.
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284
morrer, interrompido com o golpe em 1964, filme sobre as Ligas Camponesas,
então realizador de matérias sobre o nordeste brasileiro para o Globo Repórter,
em especial a reportagem Teodorico, imperador do sertão.
Mesmo um cineasta que se considerava não-cooptado e cada vez mais às
turras com seus colegas e ex-colegas do PC, como Glauber Rocha, adere à
televisão no final dos anos 70, comandando na condição de entrevistador o
programa Abertura, da TV Tupi, a convite do produtor Fernando Barbosa
Lima. A polêmica em torno da adesão ou da resistência a este novo poderio
empresarial seria estendida aos outros canais de televisão, como a TV
Bandeirantes e a TV Cultura, sendo que esta última tinha no telejornalismo
Vladimir Herzog, também conhecido como um jornalista à esquerda. A
celeuma renderia acalorados debates entre os intelectuais, sem o descarte da
possibilidade de se pensar a ocupação de tais postos à luz do conceito
gramsciano de hegemonia e de guerra de posições, questão acadêmica então
muito badalada nos círculos marxistas, a partir da obra Os intelectuais e a
organização da cultura
331
.
Não à toa, é por essa ocasião, em agosto de 1978, que Cacá Diégues,
diretor de Bye bye Brasil – filme que retrata com acento melancólico o fim de
uma era, a da arte mambembe nos pequenos vilarejos do país desfigurada pelas
antenas de televisão –, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, cunha a
expressão “patrulhas ideológicas”. O termo consistia em uma referência às
cobranças de setores de esquerda sobre a classe artística por suas declarações
ou por suas relações ambíguas com órgãos, instituições e figuras públicas
associados de alguma maneira ao regime ditatorial
332
.
Assim, as dificuldades financeiras atravessadas pelos periódicos e a
crescente supremacia da televisão no dia a dia nacional acarretavam a perda de
espaço e de poder dos meios de comunicação impressos. O rebaixamento de
nível do Jornal dos Sports e a reformulação dos seus eixos temáticos
tradicionais adquiriam sentido dentro de tal contexto, com a adoção de uma
nova estratégia comercial. As diretrizes agora tinham em mira a adequação ao
novo momento de contenções econômicas e a exploração de uma distinta faixa
331
Cf. GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Círculo do Livro,
1985.
332
Cf. ARAÚJO, P. C. op. cit., p. 271
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285
de interesses do seu público consumidor, já influenciado sobremaneira pela
programação da pequena tela domiciliar. As colunas sociais do JS, como a
assinada pela famosa repórter e radialista Cidinha Campos e em seguida pelo
cronista Eli Halfoun, revelavam ainda uma certa ambivalência, qual seja, a de
oscilar entre o nivelamento a revistas de segunda categoria consagradas às
fofocas televisivas – como as emergentes páginas coloridas da revista Amiga,
pertencente à editora Bloch, e sua série especial As casas dos artistas
333
; a
equiparação a jornais populares como O Dia, conhecido nos anos 80 pelo
exacerbado sensacionalismo quanto a tópicos como violência urbana; e a
tentativa, dir-se-ia canhestra, de igualar certas colunas aos padrões jornalísticos
tidos como mais elevados, tal qual o produzido pelo jornal O Globo, apenas um
dos tentáculos do Sistema Globo de Comunicações, periódico cuja força se
expressava em uma tiragem que atingia em torno de quase trezentos mil leitores
diários na cidade do Rio.
Esses colunistas faziam a crônica política local e devassavam a vida
íntima de atores, atrizes e estrelas da TV, em moldes caricaturais assemelhados
aos dos jornais de grande circulação na cidade. A título de comparação, citem-
se as conhecidas colunas do folclórico Ibraim Sued no Segundo Caderno de O
Globo e a de Zózimo Barroso do Amaral, no Caderno B do Jornal do Brasil,
que serviam de modelo para as demais. Com a falência de tradicionais
concorrentes, o jornal de Roberto Marinho era emparelhado naquele momento
apenas pelo JB de Nascimento Brito em nível estadual, conhecido também pela
circunspecta Coluna do Castelo, reservada aos comentários políticos. Neste
bojo, o próprio editorial do Jornal dos Sports sucumbia no início da década de
1980 para dar lugar na segunda página a seções mais vistosas e atraentes. Era o
caso do Bola Social, coluna que intercalava fotos e notas curtas e voltava-se
para um novo tipo de notícias. O privilégio incidia nos bastidores da vida
esportiva, com informações concernentes à intimidade dos jogadores e à
atuação das autoridades esportivas. Estas últimas eram transformadas em
vedetes e seu interesse passava a residir na exposição do circuito de relações
sociais entretido com o universo estelar da high-society, dos políticos e dos
mass media.
333
Cf. KEHL, M. R. “Um só povo, uma só cabeça, uma só nação”. In: NOVAES, A. (Org.).
Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano / Editora Senac Rio, 2005, p. 407.
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Entrementes, Nelson Rodrigues não seria a única personalidade da
crônica esportiva cujo desaparecimento abalaria o cenário nacional, recebendo
enfoque do jornal. Com ele, outros nomes de ponta passavam a desfalcar
também o meio, como o cronista esportivo paulista Thomaz Mazzoni, o
speaker Gagliano Neto e os colunistas do Jornal dos Sports Luiz Bayer e
Everardo Lopes
334
. Entre os torcedores, quatro anos antes, em maio de 1976, a
mais conhecida liderança de torcida da cidade, Jaime de Carvalho, veterano
líder da Charanga Rubro-Negra, viria a falecer, sendo objeto de grande pesar
por parte da crônica especializada. Ao contrário da pouco compreensível
escassez de notícias referentes ao dramaturgo, a morte daquele humilde
funcionário público, agente de portaria do Ministério da Justiça, chefe da
torcida do Flamengo, suscitaria várias e comovidas matérias de diversos
jornalistas, como Rui Porto, Zé de São Januário e Geraldo Romualdo da Silva.
Destes, o destaque ia para o último, um antigo cronista dotado de um cabedal
de histórias, de anedotas e de uma memorialística esportiva só equiparável a
Mário Filho, que evocava e recordava em uma série de três reportagens
especiais, de página inteira, a vida e a memória daquele e de outros torcedores
dos primeiros tempos do futebol carioca
335
.
A diligência de Jaime de Carvalho, mesmo nas ocasiões em que estivera
enfermo e hospitalizado no Hospital dos Servidores do Estado do Rio, era
mencionada pelos cronistas e corroborada pela atuação do próprio torcedor. O
chefe da torcida rubro-negra enviava cartas à coluna Bate-Bola, com instruções
sobre as passeatas de incentivo e outras atividades a serem realizadas pela
facção organizada do Flamengo, cujo comando interino havia sido delegado à
sua mulher, Laura de Carvalho. Do leito do hospital, o torcedor escrevia a carta
“Passeata do Mengão”, com explicações sobre seu estado de saúde e com
orientações aos adeptos da torcida:
“Dia primeiro de fevereiro, às 11 horas, as kombis e os caminhões da
Charanga do Flamengo sairão da Rua José Bonifácio, 866, no Méier.
Jaime de Carvalho pede a todos os torcedores que tenham a camisa da
Charanga e do Flamengo que cheguem mais cedo para ajudar a
enfeitar o caminhão. Quem tiver carro poderá se juntar a caravana,
levando suas bandeiras. Ao chegar lá, os torcedores devem se
334
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 01 de março de 1980, p. 14.
335
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06, 07 e 08 de maio de 1976, p. 05 e 16.
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apresentar aos que me substituem na Charanga: Ernesto Escovino e
João Chaves (Relações Públicas). Domingo, dia 2, no Estádio Mário
Filho, no jogo amistoso contra o Internacional, por ocasião da entrega
das faixas, serei representado por meu filho Jaime Tadeu, que receberá
minha faixa de Chefe de Torcida, tendo como madrinha minha esposa,
Laura. Na arquibancada, estarão como meus representantes: Ernesto
Escovino, João Chaves, Laura e Jaime Tadeu. O motivo de minha
ausência em duas solenidades tão importantes para mim é que estou
internado no Hospital dos Servidores do Estado, desde o dia 15 de
janeiro. No momento, preparo-me para ser operado e estou passando
muito bem. O hospital é muito bom e nada falta aos doentes. Há
asseio, tratamento atencioso por parte dos médicos e enfermeiras e até
mesmo dos mais humildes funcionários. Sou tratado com muito
carinho e todos conversam comigo sobre futebol. A maioria é
Flamengo e quem não é também me trata com a mesma atenção. Serei
operado pelo Dr. Fernando Vieira (Flamengo), e tratado pelos
doutores Peçanha (Flamengo), Rios (América), Moisés (Vasco) e
Valter Paiva (Vasco). Agradeço a todos o que têm feito por mim
(Jaime de Carvalho HSE 6. andar, enfermaria 650, leito 5).”
336
.
Os lamentos subseqüentes à morte do líder da Charanga, ocorrida no ano
seguinte à publicação da carta, seriam divulgados em profusão na seção BB, em
cartas remetidas por dirigentes
337
, por torcedores dos demais clubes e inclusive
por membros de torcidas organizadas dos times adversários, uma mostra da
reputação, da simpatia e do respeito por ele angariado desde os anos de 1940.
Antes mesmo, nos dias que antecederam a seu falecimento, o missivista Régio
Henrique, da Força Jovem do Vasco, informava ter doado sangue a Jaime e
fazia votos para seu pronto restabelecimento
338
.
Em 1980, no mesmo ano fatal para Nelson Rodrigues, o Jornal dos
Sports abordaria também a morte de Elis Regina, cantora que algumas vezes
ilustrara a capa do periódico, na condição de torcedora do Fluminense e de
símbolo feminino da torcida Jovem Flu. Pouco depois, no final do ano seguinte,
a manchete do jornal estampava: “Morreu Coutinho”. Seria a vez do treinador
Cláudio Coutinho, vitimado por uma fatalidade ocorrida em alto-mar, quando
usufruía em férias nos Estados Unidos do hobby de sua predileção, a caça
submarina, que costumara praticar na praia do Arpoador, no Rio
339
. Técnico do
time rubro-negro desde 1976, ex-técnico da Seleção Brasileira derrotada em
336
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1975, p. 03.
337
Em 1977, depois de eleito presidente do Flamengo, Márcio Braga, envia carta à seção Bate-
Bola, onde tecia loas à figura de Jaime e aos trinta e cinco anos de existência da Charanga. Cf.
ibid. Rio de Janeiro, 08 de outubro de 1977, p. 02.
338
Cf. ibid., p. 02.
339
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de novembro de 1981, p. 01.
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288
1978 na Copa da Argentina, o capitão Coutinho, formado na Academia Militar
das Agulhas Negras, pertencente ao Exército, encontrava-se no ápice de sua
carreira como treinador, prestes a assistir à conquista do Campeonato Mundial
de clubes pelo Flamengo, equipe que comandara e que se encontrava na
iminência de uma vitória histórica em Tóquio no mês de dezembro de 1981 –
competição até então somente arrebatada por um único clube brasileiro, o
Santos de Pelé, vinte anos antes –, façanha obtida dias depois de sua trágica
morte marítima.
Logo depois da obtenção do título de campeão do mundo interclubes, a
comoção e a consternação com sua súbita morte provocariam o aparecimento
de uma torcida organizada do Flamengo em sua homenagem, a Fla-Coutinho,
que durante alguns anos estenderia uma faixa com seu nome nos estádios do
Rio. Já a 21 de janeiro de 1983, a perda de um grande jogador seria noticiada
também com estardalhaço pelo jornal
340
: “Morre Mané Garrincha!”. O
falecimento de um dos maiores nomes da história do futebol brasileiro, ídolo do
Botafogo e da Seleção Brasileira, cuja morte comovente – alcoolismo somado à
depressão – pararia boa parte da cidade, faria sua imagem ressurgir do
esquecimento e do ostracismo, como demonstrou em ensaio de reconstituição
etnográfica, baseado em documentos jornalísticos da época, o antropólogo José
Sérgio Leite Lopes
341
. Em fins daquele mesmo ano, a morte de Janete Clair,
famosa escritora das telenovelas de estrondoso apelo popular na Globo durante
a década de 1970, como Irmãos coragem, Pai herói e Selva de pedra, também
seria ventilada com grande destaque nas colunas sociais do JS. É forçoso
observar que o espaço concedido ao falecimento da novelista contrastaria, por
sua vez, com a diminuta repercussão da missa de sétimo dia do almirante
Heleno Nunes, divulgada no jornal em 1984, graças apenas a um pequeno
anúncio pago pelo Clube de Regatas Vasco da Gama, em cuja sede seria velado
o corpo do ex-comandante da CBD
342
.
A enumeração das perdas repercutidas pelo Jornal dos Sports e a
explicitação dos critérios tácitos que preteriam no mais das vezes os atores do
mundo dos esportes àqueles do star-system televisivo pode passar a idéia de
340
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1983, p. 01.
341
Cf. LOPES, J. S. L. “A morte da Alegria do Povo”. In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992, n.º 20.
342
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 14 de março de 1983, p. 03.
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289
que se tratava de um período exclusivamente negativo e de uma seqüência de
desencantamentos pesarosos na esfera esportiva, artística e cultural. De fato,
por um lado, é ponto pacífico que a cidade sofria a influência e o impacto das
transformações em escala local – para muitos pesquisadores, como o
economista Carlos Lessa, o declínio da cidade remontava ao esvaziamento
econômico com a transferência da capital federal para Brasília em 1960
343
–, e
é óbvio que elas seguiam também alterações em nível nacional, em especial as
ocasionadas pela crise do regime militar. As mudanças pressentidas refletiam
muitos dos problemas derivados da política-econômica adotada ao longo dos
anos de 1970 – os primeiros sinais dos efeitos explosivos do êxodo rural e de
uma industrialização maciça sobre uma concentração urbana caótica, cujo
corolário ganhava a forma da violência urbana e do incipiente tráfico de drogas
nas áreas carentes da cidade
344
–, tornando-se mais evidentes no momento em
que Ernesto Geisel (1974-1979) e João Figueiredo (1979-1984) estiveram no
poder.
Somada às questões locais e nacionais, a conjuntura internacional
também se mostrava pouco auspiciosa. Ela podia ser verificada com a crise do
petróleo, desde a criação da OPEP (Organização dos Países Exportadores de
Petróleo) em 1973, e o respectivo aumento no preço do barril daquele produto,
o que comprometeu o abastecimento mundial de energia. O recrudescimento
dos conflitos históricos entre árabes e israelenses no Oriente Médio acirraria
ainda mais a situação, com sua tensão repercutida em âmbito esportivo no
clima de terrorismo vivenciado durante as Olimpíadas de Munique em 1972,
quando onze atletas israelenses foram assassinados. Como é sabido, o locus
olímpico se relevaria um campo fecundo para dramatizações de conflitos
histórico-políticos, haja vista as vicissitudes da Guerra Fria expressa nos
boicotes da delegação norte-americana às Olimpíadas de Moscou (1980) e da
delegação soviética às Olimpíadas de Los Angeles (1984).
Malgrado as tentativas de suprir a carência de reservas petrolíferas com
fontes alternativas, como o programa do Próalcool e as Usinas Nucleares
instaladas em Angra dos Reis, fruto de um convênio brasileiro com a Alemanha
343
Cf. LESSA, C. O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca de auto-estima. Rio de
Janeiro: Record, 2000.
344
Cf. DAVIDOVICH, F. “Transformações do quadro urbano brasileiro: período 1970-1980”. In:
Revista Geográfica. Rio de Janeiro: s.e., 1987, n.º 105.
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Ocidental que em muito desagradou o governo norte-americano, as dificuldades
governamentais não seriam sanadas. A crise se aguçaria ainda mais em 1979
com a Revolução Islâmica do aiatolá Khomeini e com a Guerra Irã-Iraque
(1980-1988), o que contribuía para a reversão do otimismo desmesurado até
então preponderante entre as hostes do governo. O panorama de ascensão
vislumbrado pelo milagre econômico nos primeiros anos da década de 1970 era
golpeado e tinha de lidar em meados da década com quesitos internos e
externos que detinham o avanço previsto, criando obstáculos na marcha rumo
ao progresso do decantado Brasil Potência.
A percepção dos embaraços vividos de maneira mais aguda pelo regime
militar expunha suas fragilidades em nível parlamentar e institucional, com a
imprevista derrota da Arena para o MDB nas eleições municipais de 1974,
baque eleitoral que seria repetido nos pleitos de 1976 e 1979. As suas
divergências intestinas também apareciam no momento em que o governo
acenou com o projeto de abertura política “lenta, gradual e restrita”, elaborada
pelo general Golbery do Couto e Silva, chefe da casa militar do presidente
Geisel
345
. A divisão interna da corporação militar, com a existência de duas
linhas principais – uma favorável ao endurecimento (os linhas-duras) e outra,
mais moderada, simpática ao restabelecimento paulatino e controlado da ordem
democrática (os castelistas) – tornava mais explícito o embate e a indefinição
existente no seio decisório da alta cúpula governamental quanto ao caminho a
ser seguido pelo país.
A ausência de controle e a indeterminação de rumos se evidenciavam nos
atentados a bomba em manifestações civis, como a ocorrida no centro de
convenções do RioCentro no Rio de Janeiro em 1981, quando ali se
comemorava o feriado do Primeiro de Maio, Dia do Trabalhador, e nos casos
de torturas perpetradas por setores do Exército e da PM. Muitas destas
violações passavam a ser feitas sem o consenso e sem o consentimento dos
escalões mais altos do governo, o que resultou, anteriormente, em mortes
suspeitas nas dependências do DOI-CODI, como sucedeu com o jornalista
Vladimir Herzog e com o operário Manuel Fiel Filho, membro do Partido
345
Cf. GASPARI, E. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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291
Comunista Brasileiro
346
. Sob um ponto de vista histórico, é possível dizer que,
com o avanço do militarismo no Brasil, as forças policiais levaram para o
cotidiano das populações pobres as suas próprias formas brutais e cruéis de
perseguição e penalização, com o surgimento nos anos 60 de grupos como o
Esquadrão da Morte.
O acontecimento fatal que resultou na morte de Vlado, como era
conhecido pelos colegas o chefe do departamento de jornalismo da TV Cultura,
provocou a indignação de setores expressivos da população, com a realização
de cultos ecumênicos capazes de reunir novamente multidões ao redor das
praças públicas e das igrejas. O novo quadro dava ensejo à participação mais
incisiva de organizações civis como a CNBB (Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), a SBPC
(Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e a OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil), esta última presidida em 1977 por Raymundo Faoro,
jurista e intelectual que passava a exercer pressão cada vez maior sobre o
governo para o restabelecimento do sistema democrático. As entidades
recebiam um importante respaldo internacional, uma vez que o presidente
norte-americano Jimmy Carter, depois de os Estados Unidos haverem
patrocinado golpes e várias ditaduras no continente, começava a exercer
pressão externa contra a violação dos direitos humanos na América Latina. No
xadrez político posterior à Guerra do Vietnã, a hegemonia americana passava a
acenar para a abertura e para o restabelecimento da ordem democrática como
esteio universal dos valores morais e éticos dos EUA, contrapartida retórica do
jogo da Guerra Fria, tendo em vista que a União Soviética se caracterizava pelo
autoritarismo do partido único e pela forte burocracia estatal
347
.
Destarte, os condicionantes externos e internos estimulavam a retomada
de grupos organizados desde o AI-5 – suspenso por Geisel em 31 de dezembro
de 1978 – e encorajavam o reinício de uma onda de contestações e de protestos,
com uma progressiva e crescente revitalização dos diversos movimentos civis e
346
Cf. PINHEIRO, P. S. “Autoritarismo e transição”. In: Revista USP – Dossiê Violência. São
Paulo: s. e., 1991, n.º 9.
347
Cf. TEIXEIRA DA SILVA, F. C. “Crise da ditadura militar e o processo de abertura política
no Brasil, 1974-1985”. In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. (Orgs.). O Brasil Republicano: o
tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003, vol. 4, p. 251.
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292
sociais, cujo apogeu seria a campanha nacional pelas Diretas Já em 1984
348
. A
atuação dos estudantes se somava às iniciativas progressistas de correntes da
Igreja, como a Teologia da Libertação e as comunidades eclesiais de base (as
CEBs), à congregação comunitária nas associações de bairro e à eclosão de
uma nova vanguarda do sindicalismo brasileiro, cuja novidade histórica
anunciada era se mostrar livre das peias tutelares do Estado. Tal movimento
irrompia através das greves operárias protagonizadas pelos metalúrgicos das
fábricas e das montadoras de empresas automobilísticas multinacionais do
ABC paulista Scania, Ford, Mercedes-Benz, Volkswagen, Chrysler de onde
emergiria a figura do líder sindical Lula. Em convergência com setores
universitários e religiosos, estes sindicalistas lançariam os pilares da construção
de um partido político de esquerda, dito não-stalinista e não-populista, o
Partido dos Trabalhadores. Seu equivalente em nível internacional era Lech
Walesa, ativista operário e líder sindical polonês que se colocou à frente de
várias greves em seu país, católico oriundo da esquerda, porém um crasso
anticomunista, mentor do sindicato independente Solidariedade, liderança com
quem Lula se encontraria em 1981, na Itália
349
.
Uma vez abalada a unidade e a hierarquia militar das Forças Armadas e
comprometida a prosperidade nacional, os problemas acumulados em tal
conjuntura se tornavam cada vez mais visíveis: a queda dos índices
econômicos, a perda do poder aquisitivo, o arrocho salarial, a recessão, a
intensificação dos casos de criminalidade e violência urbana, a ausência de
controle sobre o crescimento da inflação, o aumento da dívida externa, entre
outros fatores. Outrossim, os dados relativos à preocupante realidade vinham
entremeados e contrabalançados com as expectativas e as promessas nutridas
por parcelas da sociedade face aos acenos de liberdade e de democracia que
pareciam se avizinhar em um futuro próximo. Embora nada disso aparecesse
noticiado nem constasse da pauta diária do Jornal dos Sports, como o fora de
maneira tão enfática na convulsão política em fins dos anos de 1960, tal
atmosfera alcançava de maneira indireta a seara esportiva, que via seu porvir
igualmente renovado e franqueado pelo novo panorama institucional.
348
Interessante registrar como, nas edições da Placar e do Jornal dos Sports em que aparecem
fotos do comício pelas Diretas Já na Candelária, é possível identificar bandeiras da torcida Young-
Flu em meio às bandeiras de partidos políticos e de movimentos sociais presentes à campanha.
349
Cf. NOSSO SÉCULO. op. cit., p. 286.
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No que toca à classe dirigente desportiva, ocorria de igual maneira um
processo de transição política, com a saída de cena paulatina dos militares,
desde 1964 assenhoreados da maioria das instituições. Após a conquista do
tricampeonato no México, a derrota sofrida na Copa do Mundo da Alemanha
em 1974 era complementada por um fracasso consecutivo quatro anos depois,
com a eliminação da Seleção Brasileira na Copa do Mundo da Argentina em
1978, quando coube a título de consolação para o país o epíteto eufemista de
“campeão moral”. A seqüência de reveses nas quatro linhas punha em questão
de forma extensiva a capacidade de comando, de organização e de disciplina
extracampo – a eficiência e a austeridade tão preconizadas pelos militares. A
despeito das críticas, a permanência do Almirante Heleno Nunes no cargo da
CBD era confirmada para mais uma temporada de três anos, com sua reeleição
na entidade homologada em janeiro de 1979
350
.
Entretanto, alguns meses depois, em meio a boatos, especulações e
quedas de braço entre as federações desportivas de cada estado, o empresário
Giulitte Coutinho, vice-presidente do CND, anuncia a criação da Confederação
Brasileira de Futebol, a CBF, nova instância autárquica que desmembraria o
futebol das demais modalidades esportivas vinculadas à CBD. Por meio deste
artifício, Heleno Nunes perderia a ingerência plenipotenciária sobre o meio
futebolístico, através de uma entidade que seria dirigida pelo próprio Giulitte
Coutinho em 1980
351
. A saída dos militares seria precipitada também em razão
da desconfiança e do descrédito sobre o conjunto das instituições esportivas
naquele momento, quando vem à tona em 1982 o desvendamento de um
esquema de influência sobre o resultado dos jogos, destinado a interferir na
premiação da Loteria Esportiva, orquestração em curso desde fins dos anos 70.
Embora a denúncia e a comprovação feitas pelo repórter investigativo da
Placar, Sérgio F. Martins, acerca desse episódio também conhecido como
“escândalo da loteca”
352
, a apuração de irregularidades pertencia a uma
linhagem de matérias típica da política editorial da revista desde sua fundação
, tenham identificado não apenas dirigentes, como também o exorbitante
350
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1979, p. 01.
351
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1979, p. 03. Em lugar de Giulitte Coutinho, contudo,
a vice-presidência do CND seria assumida pelo coronel Antônio Brocchi, um quadro dirigente do
Clube de Regatas do Flamengo.
352
Na capa da revista vinha a inscrição bombástica: “Exclusivo: desvendamos a máfia da loteria
esportiva”. Cf. PLACAR. São Paulo: Abril, 22 de outubro de 1982, n. 643.
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número de cento e vinte e cinco cúmplices e comparsas, entre árbitros,
jogadores, treinadores e radialistas envolvidos na máfia, era sobre os antigos
cartolas de uma maneira geral que acabava por pesar a mácula dos arranjos
escusos e das negociações suspeitas. Assim, em meio a tal atmosfera, em que
parte considerável da imprensa esportiva assestava suas baterias contra os
tradicionais dirigentes, alvos de sucessivas desmoralizações, a pressão pela
renovação institucional era ainda mais acalentada pela opinião pública.
No afã de se diferenciar ou mesmo de se contrapor a esses dirigentes
esportivos, partiria dos atletas, no mesmo momento, em final de 1979, a
mobilização em torno da formação do Sindicato dos Jogadores Profissionais do
Rio de Janeiro, reconhecido pelo Ministro do Trabalho, Murilo Macedo. O
aparecimento dessa nova categoria corporativa pode ser considerado um dos
exemplos no domínio esportivo da ambiência favorável à emergência de
associações civis e de organizações populares. A criação do sindicato era um
desdobramento das discussões iniciadas em torno da Lei do Passe em 1976,
quando se pôs em debate a urgência na reformulação das relações de trabalho
no universo futebolístico, a fim de livrar os jogadores do jugo histórico imposto
pelos clubes, o que não havia sido contemplado desde a implantação do
primeiro profissionalismo nos anos de 1930, nem sequer com a instituição do
CND getulista em 1941, quando deixou de haver também a extensão homóloga
dos direitos trabalhistas verificada junto às categorias profissionais mais
tradicionais. A iniciativa de um sindicato partia da mobilização e do não-
conformismo de atletas tidos como problemáticos e questionadores, que
adotavam posturas críticas face à administração e ao modo de relacionamento
hierárquico e patrimonial com os cartolas.
O surgimento do sindicato não passaria despercebido e saudado pelos
leitores-torcedores do JS, encorajando-os a escrever para a coluna Bate-Bola:
“Sindicato dos Jogadores Profissionais”: “Venho a esta coluna, pela
primeira vez, para parabenizar os jogadores Zé Mário, Zico e Paulo
César Carpegiani pela conquista dos direitos profissionais dos
jogadores. Parabéns, também, ao Sr. Ministro do Trabalho, Murilo
Macedo, que se empenhou em atender às reivindicações dos atletas
brasileiros. Finalmente, os jogadores terão seu Sindicato. (Carlos
Mafra, Rio).”
353
.
353
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1979, p. 02.
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295
A entidade, presidida por Zé Mário, aglutinava atletas conhecidos por
certo nível de conscientização e por certa rebeldia política, como o caso
emblemático de Afonsinho, embora o destaque maior na época fosse para
aquele tipo de jogador que ganhava notoriedade pela irreverência do ponto de
vista comportamental, como Paulo César Caju. Ao longo da década de 1970,
fundiam-se às vezes ambos os tipos, o contestador e o irreverente, expressos
seja com os cabelos longos à moda hippie do argentino Doval
354
, que recebia o
apoio de leitores-torcedores do Flamengo através de cartas para o JS, mas que
tanto contrariavam o técnico disciplinador Iustrich; seja com a barba do mesmo
Afonsinho; seja com o cabelo black-power de Jairzinho; seja com a
comemoração do gol com o punho-cerrado de Reinaldo, artilheiro do Atlético
Mineiro que erguia apenas um dos braços para render tributo aos panteras
negras norte-americanos; seja ainda com a vestimenta em cores visuais e
extravagantes do mesmo Paulo César Caju. A tentativa de unificação da classe
e de edificação de uma entidade interessada na defesa dos direitos políticos e
econômicos dos “trabalhadores da bola” se dava através da concretização deste
sindicato
355
. Para tal intento, os jogadores sindicalizados contariam com a
assessoria jurídica de Alexander Macedo, ex-atleta e advogado do meio
esportivo que em 1983, durante a gestão do secretário de esportes do estado,
Jorge Roberto Silveira, seria nomeado também presidente da Suderj em lugar
de Robson Gracie.
Em São Paulo, a expressão paralela dessa tendência geral da sociedade e
do meio esportivo à agregação e à construção de vínculos associativos ocorreria
no seio de um dos clubes mais populares do país: o Corinthians. A participação
dos jogadores nas decisões dos clubes estaria no cerne da Democracia
Corintiana, instaurada em 1981, experiência pioneira levada a cabo por
Sócrates, Casa-Grande e Wladimir. Os representantes do elenco do time
354
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de maio de 1970, p. 06. No final dos anos 60, em primeira página,
uma foto com legenda do jornal também informava que Fio Maravilha havia aderido à onda
hippie. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de maio de 1968, p. 01.
355
Para sua tese de mestrado, o antropólogo Ricardo Benzaquen entrevistou oito jogadores que
organizavam no final dos anos de 1970 o sindicato de atletas profissionais do Rio de Janeiro,
examinando as categorias explicitadas pelos entrevistados em relação aos valores individuais
como o dom e o esforço pessoal – necessários ao sucesso na carreira futebolística. Cf. ARAÚJO,
R. B. de. Os gênios da pelota: um estudo do futebol como profissão. Rio de Janeiro: Dissertação
de Mestrado em Antropologia Social / Museu Nacional – UFRJ, 1980.
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pleiteavam uma nova forma de relação com os dirigentes, interação
historicamente marcada pelo paternalismo e pela hierarquia. Sob o comando à
época do empresário Waldemar Pires, na presidência do clube, e do sociólogo
Adilson Monteiro Alves, na vice-presidência de futebol, as decisões no
Corinthians eram deliberadas em consonância com um fórum em que os
jogadores participavam e onde podiam emitir suas opiniões referentes à
concentração e à compra e venda de atletas, bem como à escolha do técnico
356
.
Às vésperas das eleições diretas para governadores de estado, os jogadores
corintianos entravam em campo empunhando a faixa: “Ganhar ou perder, mas
sempre com democracia”
357
.
Ainda no contexto dos anos 80, a iniciativa dos jogadores corintianos
levaria a filósofa Marilena Chauí a extrair en passant significados sociológicos
maiores do fato:
“Contra a militarização patriótica do futebol insurgiram-se os
jogadores do clube mais popular do Estado de São Paulo o
Corinthians Paulista criando a democracia corinthiana. Os
jogadores passaram a interferir nos treinamentos (contestando os
‘técnicos’, quando necessário), recusaram a chamada ‘concentração’
(recolhimento das equipes ao isolamento absoluto durante as épocas
de campeonatos), elegeram representantes para discutir e negociar
seus interesses com a direção do clube e sobretudo promoveram
eleições diretas da nova diretoria, com voto de todos os associados.
Ao vencer um campeonato estadual e um nacional, a democracia
corinthiana tornou-se um dos símbolos da reivindicação e da luta
contra a ditadura no país.”
358
Em que pesem as ressalvas às generalizações automáticas e às
correlações mecanicistas, com ilações maiores do que elas foram percebidas de
maneira efetiva por seus agentes, a via funcional-dedutiva parece oportuna por
ora para a explicação e para a descrição contextual de um fenômeno que se
deseja aqui explorar. As coordenadas contidas no espectro de informações
preliminares, acima expostas, possibilitam em parte a compreensão da
emergência e da experiência de uma pouquíssimo comentada entidade
associativa entre os torcedores de futebol carioca: a Associação de Torcidas
356
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de abril de 1983.
357
Uma reportagem do Jornal dos Sports dava destaque a Sócrates, principal mentor da
participação do jogador como um trabalhador do futebol. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de abril de
1983.
358
Cf. CHAUÍ, M. op. cit., p. 103-104.
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297
Organizadas de Futebol do Rio de Janeiro, a ASTORJ. À semelhança do
sindicato dos jogadores, a agremiação já se insinuava como possibilidade e
projeto desde o final da década de 1970, tal qual se irá mostrar mais adiante
com as cartas veiculadas no JS. Grosso modo, seu ideário era, em consonância
com a plataforma de demandas e de participação dos atletas, a congregação dos
interesses comuns dos torcedores em geral e das torcidas organizadas, em
particular, sob o lema geral estampado no símbolo de sua camisa: “Congregar,
Congraçar, Unir”.
Latente e difusa durante certo tempo entre os torcedores, a idéia seria
materializada e concretizada em 1981, por iniciativa de Armando Giesta, então
líder de uma facção da torcida do Fluminense, a Young-Flu. Ao todo, a
associação contaria com cerca de quinze anos de existência. Seu primeiro
presidente seria o próprio idealizador, que ficaria à sua frente entre 1981 e
1983. Em seguida, ela seria comandada por Wilson Amorim, da Bancica, uma
torcida organizada do Bangu, indo de 1984 a 1986. Dentro da rotatividade
prevista para as lideranças segundo a diversidade de torcidas de cada clube, o
presidente seguinte foi Roberto Branco, da Raça Rubro-Negra, que presidiu a
ASTORJ entre 1987 e 1989. Sem passar pelas lideranças de torcida de Vasco e
Botafogo, que viam com reservas a entidade, o comando retornou a Armando
Giesta e durou até meados da década de 1990, quando a entidade foi dissolvida
em meio à falta de representatividade e à incapacidade de sanar o principal
estigma que acometia e pesava sobre as torcidas organizadas: as rixas, as
brigas, os confrontos, numa palavra, a violência.
Vale dizer que uma associação similar existiu em São Paulo, tendo sido
lançada cinco anos antes que no Rio de Janeiro. A instituição da ATOESP
remonta suas origens ao final da década de 1970. Ela foi presidida de início por
Flávio de La Selva, fundador dos Gaviões da Fiel, embora pouco se saiba
acerca de seu real funcionamento e haja poucas informações disponíveis sobre
sua trajetória posterior. No caso das torcidas cariocas, o propósito e a
justificativa imediata para a sua criação foram a reivindicação de um assento e
do direito a voto no Conselho Arbitral da Federação de Futebol do Estado do
Rio (a FERJ), então sob gestão de Otávio Pinto Guimarães, a fim de influenciar
no processo decisório sobre uma polêmica questão e muito concreta na época: o
preço dos ingressos.
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Há mais de uma década no posto, desde quando o órgão ainda era
conhecido como Federação Carioca de Futebol (FCF), o tradicional dirigente e
futuro presidente da CBF na década de 1980, Otávio Pinto Guimarães, tinha
como vice-presidente então o campista Eduardo Viana, mais tarde conhecido
de forma pejorativa como Caixa D’Água, que apareceria no cenário esportivo
carioca em 1979
359
. Este já se insinuava na sucessão do cargo e ganhava
respaldo na medida em que era sacramentada em 1975 a aprovação do voto
unitário em detrimento do voto plural dos clubes, com a alteração da correlação
de forças no interior da entidade. A passagem do voto proporcional ao voto
majoritário implicava em transformações relativas à configuração de poder na
organização do Campeonato Carioca. Este passava a equiparar o peso dos
interesses dos clubes de pequeno porte e dos clubes do interior do estado ao dos
grandes clubes da capital, o que dava aos primeiros maioria no jogo político
local.
A despeito do novo quadro, a luta da ASTORJ continuava a incidir na
questão dos lucros auferidos pelos dirigentes dos grandes clubes à custa do
dinheiro dos torcedores e na mobilização desencadeada pela oposição às
propostas de aumento sucessivo das entradas, por meio de protestos à primeira
vista espontâneos e de inéditas greves. Salvo a participação no Conselho
Arbitral e sua influência nas negociações sobre o valor dos ingressos, graças ao
diálogo e às boas relações estabelecidas pelos torcedores com Otávio Pinto
Guimarães, a pauta da ASTORJ abrangia ainda o controle sobre a distribuição
das credenciais aos chefes de torcida, até então concedida diretamente a cada
líder, para a entrada gratuita nos jogos, e a solicitação de uma sala para a
entidade nas dependências do complexo do estádio do Maracanã – além das
salas já existentes, restritas a uma por clube –, medidas cuja autorização
competia por seu turno à SUDERJ e, portanto, ao governo do Estado. Enfim,
tratava-se da tentativa de constituição de uma instância com espírito
corporativo que reclamava e assegurava os direitos considerados legítimos
pelos torcedores.
O ambiente favorável ao estabelecimento de um elo institucional de
representatividade entre as torcidas e o meio esportivo possuía discretos e às
359
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 05 de janeiro de 1979, p. 01.
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vezes quase imperceptíveis fatores de ordem conjuntural que concorreram para
o entendimento da criação e da legitimidade da ASTORJ. Eram as “miudezas
fundamentais” de que fala Carlos Fico ao abordar as múltiplas conexões entre
história social e vida cotidiana, entre crônica política e história política
360
, na
esteira da visão consagrada pela micro-história italiana, segundo a qual de um
ponto de vista metodológico deve-se dar atenção aos detalhes que possibilitam
o descortinar de uma nova decifração e apreensão da totalidade. Neste sentido,
é possível conjecturar, a presença da televisão no cotidiano do brasileiro
também impregnou a vida futebolística e contribuiu para moldar de maneira
indireta e sub-reptícia o comportamento das torcidas, com as transmissões das
partidas conferindo ainda mais visibilidade aos agrupamentos de torcedores,
mediante a propagação televisiva de suas faixas, de suas bandeiras e de seus
cânticos.
Uma das decorrências midiáticas desse processo se daria no ano de 1979,
quando as torcidas passam a ser alvo de um programa de televisão exclusivo,
em esfera local, intitulado Conversa de Arquibancada, que a TV Bandeirantes
levaria ao ar durante alguns anos. Se até então os chefes de torcida eram
convidados a assistir ou a participar de maneira esporádica ou informal nas
mesas-redondas e nos debates esportivos promovidos por emissoras de rádio e
televisão, um programa semanal único era realizado aos domingos no horário
de almoço que antecedia aos jogos, entre 13:00hs e 14:00hs, conforme
noticiava o Jornal dos Sports em boxe de um anúncio pago pelo canal 7
361
.
Como fomento à preparação e à expectativa para as partidas dominicais, criava-
se um espaço onde os chefes de torcida eram os atores principais. Este consistia
em um momento destacado de visibilidade, propício à livre-expressão e à
opinião dos torcedores que participavam uniformizados e contribuíam ainda
mais para dar notoriedade às torcidas. Com a mesma estrutura dos programas
de auditório, o animador Hamilton Bastos comandava a programação, na qual
as diferentes torcidas organizadas cariocas ocupavam tanto a platéia quanto o
palco: as lideranças ficavam neste, que tinha o formato arquitetônico de uma
arquibancada, enquanto sua claque de seguidores naquele.
360
Cf. FICO, C. “Espionagem, polícia política, censura e propaganda: os pilares básicos da
repressão”. In: FERREIRA, J.; DELGADO, L. (Orgs.). op. cit., p. 173.
361
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 03 de março de 1980, p. 06.
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300
Outro elemento que contribuiu para a fundação da ASTORJ foi, como
exposto no item anterior, a efervescência proporcionada pela onda associativa
das torcidas. Antes da abordagem do ponto central desta seção, as
reivindicações que resultaram em uma série de revoltas protagonizadas pelas
torcidas e pela Astorj no início da década de 1980, é necessário um pouco mais
de atenção em relação a este ponto. Isto porque, além de sua importância em si
própria, o associativismo era objeto de debates acalorados com notável
repercussão na coluna Bate-Bola.
Desde a instauração das dissidências juvenis em fins de 1960, o número
de torcidas organizadas nos estádios mostrou uma escalada crescente, por vezes
vertiginosa, a cada jogo, a cada mês e a cada ano durante a década de 1970, o
que acendeu uma grande discussão, com opiniões as mais díspares nos jornais
especializados. Enquanto no primeiro quinqüênio dos anos 70 as torcidas
variavam entre quatro e oito associações, na segunda parte do mesmo decênio
os números chegavam à escala das dezenas. A tendência à representação
territorial das torcidas, divididas de acordo com cada bairro no interior do
estádio, só se dilatou no decurso daqueles anos e na virada para o decênio de
1980. Um de seus efeitos foi tomar a forma de uma competição paralela na
seção Bate-Bola do JS, onde os torcedores de cada clube alardeavam a
superioridade numérica sobre as demais. A comprovação era dada por uma
listagem em que se arrolavam as torcidas de cada clube. Em 1976, um vascaíno
escrevia para a coluna do Jornal dos Sports e publicava uma lista das faixas por
ele identificadas nos estádios, em um total de vinte e três torcidas organizadas
do Vasco:
Força Jovem, Adeptos de Petrópolis, Torcida Organizada (TOV),
Vascante, Vascancela, Olavascos, Vascooper, Píer-Vasco,
Vascarepaguá, Vascambi, Vascaxias, Vascachaça, Vasreal, Vascalhau,
Laravasco, Exorci-Vasco, Alfivascos, Vasco da Penha, Buda-Vasco,
Com o Vasco onde o Vasco estiver, Camisa 12, Elite Vascaína,
Pequenos Vascaínos.”
362
.
No ano seguinte, o número de torcidas vascaínas saltava de vinte e três
para quarenta, na contagem de outro correspondente cruzmaltino. Ato-
contínuo, leitores rubro-negros respondiam ao desafio numérico. Se em março
362
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 1976, p. 02.
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301
de 1977 uma lista fazia menção a vinte e nove facções, dois meses depois o
número pulava para oitenta! Não contentes, em outubro do mesmo ano, os
flamenguistas chegavam aos pináculos da obsessão contabilística, com uma
lista de nada menos que improváveis cem agremiações. As cartas referiam-se
também aos desentendimentos gerados nos estádios, em virtude do número
excessivo de faixas, incompatíveis com o espaço limitado dos alambrados que
se destinavam à sua colocação. A fluidez e a volatilidade dos grupos, com seus
repentinos aparecimentos em um jogo e sumiços nas partidas seguintes,
explicavam o fato de que dois anos depois fossem catalogadas por um
missivista do Flamengo setenta e uma torcidas, cerca de trinta a menos da vez
anterior. Os botafoguenses pouco se manifestavam sobre o assunto, ao passo
que os escritores-tricolores não queriam ficar para trás de rubro-negros e
vascaínos e, em 1978, diziam constar também de uma centena de facções de
torcida do Fluminense.
Em meio ao jogo competitivo do ponto de vista numérico-verbal, no
mesmo ano de 1978, voltava a haver um clamor entre leitores ditos mais
cautelosos para a unificação dos grupos. Eles apelavam para a sensatez e para o
cerceamento à “ridícula” atitude de se criar uma torcida por partida. A
experiência de um freqüentador de estádios estimulava-o a fazer um balanço
reflexivo das torcidas e a necessidade imperiosa de restringi-las a um número
menor, que se assentassem em bases mais sólidas:
“Torcidas organizadas do Flu”: “No jogo entre Fluminense e Botafogo
tive a alegria de assistir a uma verdadeira demonstração de força e
poderio das Torcidas Organizadas do Fluminense. Deram um
verdadeiro show de incentivo, cobrindo o Mário Filho (Ah, Mário
Filho, se você estivesse lá!) com seus gritos, bandeiras, faixas e o mais
importante: sem soltar foguetes.
Dentre as torcidas, três se destacaram mais, arrastando a massa
tricolor ao delírio, sendo que duas já se tornaram um hábito, as
poderosas Young Flu e a Jovem Flu. A terceira ressurgindo das cinzas,
refiro-me à Força Flu.
Aproveito a oportunidade para fazer um apelo e dar um conselho
amigo aos torcedores. Se você gosta de torcidas organizadas, não faça
a besteira de criar outra delas. Você estará gastando o seu dinheiro;
estará enriquecendo as fábricas de malhas (únicas beneficiadas). Não
fique no Mário Filho igual a barata tonta, torcida organizada exige
tempo, dinheiro, gabarito, conhecimento e acima de tudo crédito.
Entre para uma verdadeira torcida organizada. Existem torcidas que
têm verdadeiros líderes como Gino e Armando da Young Flu, Sérgio
da Jovem Flu e o esforçado Ricardo da Força Flu.
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302
Não seja bobo pois nos últimos dez anos conheci mais de cinqüenta
torcidas organizadas e só estas três sobreviveram. Veja que não minto,
vá ao Mário Filho. O Fluminense será melhor se as torcidas, ao invés
de se dividirem, somarem. (Bráulio Mesquita, Rio de Janeiro).”
363
.
Na mesma linha de raciocínio, um rubro-negro ponderado fazia reflexão
semelhante no que se refere às torcidas do Flamengo, divididas por ele em três
categorias: grandes, médias e pequenas. O missivista sabia de antemão que
seria ilusório juntá-las, com a sua dissolução e a posterior reintegração delas
em uma só. Embora não explicitado, sua utopia unitária sugeria a intenção de
uma espécie de regresso às origens, ao tempo em que as torcidas de cada clube
eram apenas uma, como nas décadas de 1940 e 1950. Em virtude da
fragmentação, ao menos, o leitor pedia às torcidas medianas a sua integração às
maiores e solicitava às pequenas o bom-senso da auto-extinção, uma vez que
não representavam em verdade nada nem ninguém, menosprezando-as e
mandando-as às favas. Eis seu longo balanço:
“Vaidade de torcedor”: “Em 7/12, nossa coluna publicou abaixo da
carta intitulada ‘Nós votamos na Flario’ e entre ‘Os 10 mais do
futebol’ uma correspondência de um excelente rubro-negro que
conclamava bonito gesto para que o torcedor do Flamengo se unisse e
esquecesse a vaidade de conclamar esta ou aquela facção, unindo a
torcida em uma só! Elo forte. Seria o ideal, todavia, querido leitor, eu,
embora não pertença ainda a nenhuma facção e, como rubro-negro
atuante, tenho algum relacionamento com alguns presidentes de
torcida do Flamengo e, sinceramente, os torcedores avulsos só
comparecem quando querem ou em clássicos no Maracanã. As
torcidas organizadas (facções) têm que ser enaltecidas, entenda a
função da torcida palmeirense com uma centena de ônibus e outra
centena de carros particulares. Outrossim, enquanto a Flaponte e
Jovem uniram-se em determinado setor e a Raça Rubro-Negra ao seu
estilo incetiva nosso time, vemos a Charanga lutando para manter a
tradição do maior rubro-negro da história do Flamengo (Jaime de
Carvalho). Outrossim, Dragões, Flamor, Flatuante, Flamilha,
Flachope, Fla 12, Flapovo, Flaraó, Garrafla, Flanorte, São Gonfla e
etc., mantêm-se em nível equilibrado (estacionados), vejo a Flario
crescendo e tentando unir em seu setor as facções que adotem seus
uniformes com fundo branco, a exemplo já conseguiu as adesões da
Fladureira, Flacoelho e Dó-Ré-Mi-Fla, e tristemente vejo algumas em
extinção, como Irafla, Flaxiense, Flacoelho, Flás de Pina, Flabicão
etc... e não poderia deixar de registrar as ridículas Flacoad, Noel Fla,
Fla Gol, Flajabour etc, que possuem somente um componente. Por tais
razões, entre outras, é que sou a favor que as facções mais fortes
façam sempre suas promoções, que as intermediárias unam-se para
363
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1978, p. 02.
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303
maior fortalecimento com as potentes e as em extinção terminem
definitivamente, desobstruindo o caminho e seus componentes
poderiam reforçar as consideradas grandes. Aproveito para pedir que
todo torcedor rubro-negro que freqüenta os estádios que associe-se à
torcida organizada que melhor lhe convier, é interessante e agradável
em todos os sentidos. Finalizo para pedir ao conselho diretor maior
critério de seletividade para conceder aprovação a novas facções do
Flamengo, pois estamos chegando ao ridículo de inaugurar uma em
cada jogo, com alguns poucos componentes, que somente
comparecem em clássicos no Maracanã, e extinguindo-se uma após
outra, melancolicamente. Sugiro que somente as fortes e atuantes
tenham direito a expor faixas e outras regalias nos estádios e que as
em extinção retirem e arquivem seus materiais, aumentando espaço
para as que possuem estrutura e acompanhem sempre o Flamengo.
Abraço a todos os rubro-negros e em especial ao Manoel Nequinho,
vice-presidente da Flario (Luiz Gonzaga de Freitas – Niterói, RJ).”
364
.
Em paralelo à campanha para se estancar a fundação de novos grupos e
ao menosprezo às torcidas de menor porte, a fim de fortalecer os núcleos
maiores ou já estabelecidos, o recrutamento de mais membros era tarefa
imperativa para cada uma das agremiações já existentes que almejavam crescer
e estas não pareciam dispostas a abrir mão deste direito. Os líderes das
agremiações menores escreviam tão-somente para desmentir boatos acerca de
seu desaparecimento dos estádios:
“Exorci outra vez”: “Amigos, conforme já foi publicado no BATE-
BOLA, volto a dizer que falam por aí que nossa querida e fiel torcida
Exorci-Vasco não existe mais. Estão muito enganados os que pensam
assim, pois estamos mais vivos que nunca e com muita disposição
para a temporada que se inicia. Não estamos escrevendo para criticar
ou lamentar, mas sim para esclarecer aos prováveis inimigos que ainda
estamos com vida, pois há um ditado muito certo que diz “Quem viver
verá”. Aguardem, pois este ano estamos firmes e fortes como nunca.
Aproveito a oportunidade para lembrar a nossos adeptos que continua
a venda de nossas camisas exorcizantes por Cr$ 20,00 e dos
badaladíssimos plásticos considerados pela imprensa os mais bem
bolados dos últimos tempos pelo preço de apenas Cr$ 2,00. Não
posso terminar sem agradecer a força que o JS está nos dando nem
destacar a ajuda inestimável da nossa querida madrinha, a Torcida
Organizada, comandada pela sensacional Tia Dulce Rosalina. (Luís
Carlos Comando Exorci-Vasco Méier – RJ).”
365
Ainda que a maioria delas tivesse origem em bairros determinados,
destinados a congregar moradores de uma mesma região, o convite à filiação
364
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1979, p. 02.
365
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1976, p. 02.
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304
era indiscriminado, sem prescrições de procedência e de local de moradia. Sob
tal égide, a coluna do JS parecia continuar a constituir um veículo de
intermediação, ideal para os anúncios:
“Os Falcões da Flaponte, torcida organizada do Mengo de São
Gonçalo, solicita a você, flamenguista, que vai ao Maracanã e fica
isolado ou com pequeno grupo, para juntar-se a nós. Somos da
Flaponte e ficaríamos muito contentes com sua presença. Não seja um
torcedor solitário, não fique só, torça em conjunto, torça com os
Falcões pelo Mengo. A Flaponte conta com a sua ajuda. Leve sua
bandeira. Vá com a camisa do Flamengo, a camisa dos Falcões da
Flaponte ou a camisa da sua facção. Grite. Incentive. (Célia Madureira
e Licéia Jardim – Relações Públicas).”
366
.
*
“Você que é do tipo torcedor solitário, siga um conselho: procure
imediatamente a torcida Garrafla e estaremos de braços abertos para
qualquer tipo de solicitação. (Elisabeth Cravo Diretora de
Divulgação).”
367
.
Essas cartas que visavam angariar adeptos podiam ser escritas tanto por
anônimos simpatizantes quanto pelo próprio presidente da torcida. Ponto de
encontro virtual, a coluna agregava com o tempo um sentido comunitário, ao
agrupar simpatizantes de um mesmo clube. O estreitamento de laços levava os
leitores à proposição da ASCOVA, a Associação de Correspondentes
Vascaínos, uma forma de intercâmbio de informações regulares entre os
cruzmaltinos leitores do jornal, com direito inclusive a um presidente formal:
Francisco das Chagas
368
. Dentro da embrionária e incipiente divisão de
atividades no interior de uma torcida organizada, a sistemática freqüência na
comunicação com essa seção do jornal fazia emergir uma pessoa específica,
entendida como “relações públicas”. Eram em sua maioria de jovens do sexo
feminino, designadas para cumprir a função de uma espécie de secretária ou de
comunicadora social da torcida. A publicidade de tal posição pode ser
observada na seguinte missiva, na qual fica explícita ainda a usual visão do
lugar da mulher nesse meio, extensão parcial de sua representação tradicional
na sociedade, submissa aos quesitos estéticos e aos critérios de beleza
requeridos pelos anunciantes:
366
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de janeiro de 1978, p. 02; Cf. também ibid. Rio de Janeiro, 11 de
abril de 1980, p. 02.
367
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de janeiro de 1978, p. 02.
368
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de abril de 1978, p. 02.
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305
“Relações Públicas”: “A Torcida Flamante está selecionando a mais
bela garota para preencher o nosso lugar de Relações Públicas. Se
você é linda, quer ficar conhecida pela crônica esportiva carioca,
venha trabalhar conosco. Telefone para 243-4251, com os srs. Celso
ou Paulo César, após as 20 horas, ou venha à Rua do Riachuelo,
252/108, com o Sr. Tupyara.”
369
.
A presença de moças e mulheres na coluna animava a correspondência,
com a geração de todo o tipo de sondagem e até flertes às “gatinhas da
coluna”
370
. Em dias intercalados, um mesmo leitor publicava cartas cujos
títulos davam uma idéia dos assuntos versados: “Fofocas da galera”, “Fofocas
n. II” e “Fofocas 3”
371
. Em meio às especulações sobre a vida e sobre as
segundas intenções dos missivistas, uma torcedora testemunhava como havia
sido o processo de aproximação e o respectivo ingresso em sua torcida, onde
fizera várias amizades
372
. A ocupação feminina do cargo de Relações Públicas
não era, contudo, uma regra fixa. Situações menos formais podiam alçar um
indivíduo àquela posição no interior da torcida, como no extenso caso de um
botafoguense relatado a seguir. Nele se consegue flagrar de igual maneira os
arranjos e rearranjos que estão na base das fusões e das dissensões, dos
movimentos centrípetos e centrífugos entre as facções de um mesmo clube,
fagocitando-se e absorvendo-se umas às outras, com o livre-trânsito dos
torcedores de uma torcida a outra. O contraste de tamanho entre a sucinta carta
anterior e a caudalosa que se segue é reveladora da diversidade de formato e do
caráter proteiforme das correspondências enviadas à seção BB. A própria
coluna pode estar na raiz do surgimento da figura do “relações públicas”, como
é lícito especular também com base no que é sugerido abaixo:
“Uma explicação”: “Comecei a freqüentar o Maracanã, com maior
intensidade, a partir do ano de 1978. Neste ano já existiam a Torcida
Organizada do Botafogo, a Jovem Unifogo e a Copafogo. Mas a TOB
é quem mandava: tinha um maior número de componentes. A
Unifogo, ao passar do tempo, começou a entrar em decadência e a
Copafogo, por mais que tentasse, não poderia encarar a TOB como
igual. Surgiram as torcidas Águias Alvinegras e Fogo Livre. A
primeira foi um sucesso na estréia. Depois, foi ficando cada vez
menor. Já a Fogo Livre, de meu amigo Alex, era muito pequena.
369
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de fevereiro de 1977, p. 02.
370
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de março de 1980, p. 02.
371
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de julho de 1980; 03 de agosto de 1980; e 05 de agosto de 1980, p.
02.
372
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de agosto de 1980, p. 02.
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306
Chegou o final do ano de 1980. E todas as torcidas acima, com
exceção da TOB, fundiram-se para dar lugar à Torcida Jovem do
Botafogo, que, hoje, ocupa o lugar, nas arquibancadas, da extinta
Jovem Unifogo, de Fernando Mesquita. A princípio fui contra essa
fusão, pois, como vocês devem saber, o Botafogo é o único dos quatro
grandes do Rio que tem menos torcidas organizadas. Saíram quatro
para entrar uma. Valeu a pena ? Digo que sim, pois é melhor se ter
uma torcida grande e valente, do que quatro pequenas e fracas. A
Jovem foi cada vez crescendo mais e eu, cada vez mais, passei a
elogiá-la aqui, nesta coluna. Não sou puxa-saco de ninguém ou, pelo
menos, não preciso ser. Sempre admirei a TOB. Mas a partir do
momento do surgimento da Jovem minha admiração foi mudando. Até
que mudei totalmente: os componentes da TOB, em sua maioria,
foram para a Folgada, que não gosto muito, mesmo sendo comandada
por Russão, um torcedor fanático, conhecido e experiente. Portanto,
nada mais justo do que elogiar a Jovem – uma torcida cada vez
melhor. E, fazendo assim, fui convidado para ser relações públicas
dessa torcida, junto com Vinícius da Silva. E aceitei com o maior
prazer. Não é uma torcida grande como a Raça Rubro-Negra, mas
procura estar lá. Seus componentes são rapazes de classe média e que,
às vezes, nem podem ir a Campos por falta de dinheiro. Mas lutam
contra tudo e contra todos para acompanharem o Botafogo. E, por ser
uma torcida decidida a ir para frente, tem o meu apoio. (João
Fernando Kassa).”
373
.
Se a maior parte das torcidas emergentes tinha vida efêmera nos estádios,
haja vista seu espontaneismo e seu voluntarismo, com a falta de infra-estrutura
e de regularidade para a sua manutenção no acompanhamento do clube, havia,
entretanto, facções cujo planejamento parecia ser efetuado com antecedência e
método. A preparação podia ser percebida na importância dada à elaboração do
nome da torcida, que deixava os neologismos e a toponímia geográfica – alguns
com toscos trocadilhos, diga-se de passagem para buscar vincular-se como
marca a uma determinada tradição do clube ou como lema de uma qualidade
moral considerada indispensável ao time em campo. As cartas publicadas no JS
permitem a observação de como se dava a anunciação e a estruturação prévia
do grupo antes de seu aparecimento nas arquibancadas. Tal seria o caso de uma
torcida organizada criada em abril de 1977, a Raça Rubro-Negra, mencionada
na carta anterior como uma torcida de grande porte, cujos mentores
conceberam de maneira metódica o seu surgimento. A idéia de sua fundação foi
lançada meses antes, entre outras formas, através da coluna de leitores do
Jornal dos Sports, como vem de ser dito a seguir:
373
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1981, p. 02.
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307
“Ressurreição com Raça Rubro-Negra”: “Há algum tempo a torcida
do Flamengo precisa reviver os tempos áureos de maior e melhor
torcida do Brasil, tempos em que a torcida ganhava jogo. Sabedores
dessa necessidade é que os organizadores da Raça Rubro-Negra – o
maior movimento de torcidas do Brasil – vêm fazendo um trabalho no
sentido de reativar esse vulcão chamado torcida do Flamengo. A idéia
está lançada e dentro em breve estará nas arquibancadas,
demonstrando a todos que este gigante não morreu, está apenas
adormecido, prestes a despertar e empurrar o seu Flamengo para as
grandes vitórias. Empurre também o Flamengo para a vitória, vá à
banca do Falcão, na pracinha do Maracanã, situada entre as ruas São
Francisco Xavier e a Avenida 28 de Setembro, a partir das 8 horas,
levando Cr$ 30,00, dois retratos 3 x 4, com nome, endereço e junte-se
à Raça Rubro-Negra, fazendo do seu grito um canto, hino que consiga
elevar, levantar o nome rubro-negro aos mais altos pedestais, lugar
esse que lhe é de fato e de direito. Vem aí a Raça Rubro-Negra, o
maior movimento de torcidas do Brasil. (Lúcio da Cruz – RJ)”
374
.
A criação de um grupo com um slogan grandiloqüente “o maior
movimento de torcidas do Brasil” se justificava com base em uma
glorificação do passado da torcida do Flamengo. Uma saga pregressa era
combinada a uma avaliação que diagnosticava um presente de estagnação, para
o qual urgia uma ação. Esta era uma razão legitimadora para o lançamento e
para a emergência de um grêmio que iria redimir e fazer jus à sua história. Com
conhecimento dos anos de ouro do clube, o idealizador do grupo exaltava os
ex-presidentes do Flamengo das décadas de 1949 e 1950, Dario Melo Pinto,
Orsini Coriolano e Gilberto Cardoso, este último responsável pelo
tricampeonato do time de futebol de 53/54/55, e invocava os nomes dos ex-
jogadores Biguá, Tomires e Pavão, encarnação da fibra dentro de campo, todos
símbolos de inspiração e atributos a serem seguidos pela nova torcida.
375
.
O princípio ativo da disposição em campo vinha expresso e melhor
traduzido em uma sigla, em um emblema, em um slogan legendário, que no
caso possuía um sentido polissêmico: “Raça Rubro-Negra”. Se a fonte de
inspiração do grupo provinha dos valores dos jogadores em campo, a sua força,
em compensação, ancorava-se na crença de que a presença dos torcedores na
arquibancada tornava-se uma influência decisiva e contribuía sobremaneira no
rendimento dos atletas dentro das quatro linhas. Assim, ao lado das torcidas
amparadas na identidade territorial, assistia-se à fundação de grupos que
374
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1977, p. 02.
375
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1976, p. 02.
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308
denotavam atributos morais, significações sobrenaturais ou qualidades
coletivas, pinçados internamente, mas também externamente, ao universo
esportivo. Assim, a tripla caracterização das torcidas no período espontâneas,
bairristas e juvenis apontada pela socióloga Elisabeth Murilho em sua
dissertação de mestrado
376
, conquanto pertinente, adequada e válida em sua
integralidade, comportaria ainda outros matizes e outros vieses igualmente
importantes.
A liberalidade na invenção de novos grupos no final dos anos 70 teria,
contudo, limites. Duas novas torcidas organizadas seriam recebidas com
acrimônia e muita reserva no noticiário esportivo. O caso, para muitos bizarro,
anedótico e pouco crível, consistiu no surgimento de duas torcidas no Rio de
Janeiro formada por homossexuais: a Fla-Gay e a Fo-Gay. Sendo a primeira
idealizada pelo carnavalesco Clóvis Bornay e a segunda por Carlos Imperial,
ambas se inspiravam na Coligay, torcida organizada do Grêmio fundada a nove
de abril de 1977, que teria quatro anos de existência, cujo nome era uma
contração da boate Coliseu de Porto Alegre, freqüentada por aqueles
torcedores
377
. No Rio, esse gênero de torcida seria rechaçado com muito mais
veemência do que o foram, por exemplo, as torcidas femininas na época de seu
aparecimento, no início da década de 1970. A questão veio à tona no Jornal dos
Sports no mês de outubro de 1979, em manchete taxativa de primeira página:
“Márcio Braga veta a Fla-Gay”
378
. No dia seguinte a uma derrota para o Bangu,
o presidente rubro-negro voltava a se indispor contra a torcida: “Foi praga da
Fla-Gay”. Antípodas dos princípios viris evocados pela maioria das torcidas,
esses grupos geravam uma resistência não apenas dos dirigentes, mas sobretudo
dos torcedores organizados nas arquibancadas. Depois de desqualificar a Fo-
Gay, o chefe da torcida alvinegra, Russão, definia aquele movimento como
uma “palhaçada pederasta”
379
.
Nessa ocasião também, dois agrupamentos menos polêmicos tentavam
evocar e reviver experiências antigas. O primeiro era a Organizada Jovem-Flu,
novo nome adotado pela Torcida Organizada do Fluminense (TOF),
376
Cf. SILVA, E. M. da. As torcidas organizadas de futebol: violência e espetáculo nos
estádios. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais – PUC/SP, 1996, p. 113.
377
Cf. PLACAR. São Paulo: Abril, 26 de janeiro de 1987, n. 869, p. 80.
378
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1979, p. 01 e 12.
379
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1979, p. 07.
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comandada por Sérgio Aiub, nomenclatura que remetia à aura da famosa Jovem
Flu de Hugo Carvana, Chico Buarque e Nelson Mota, de fins dos anos 60. O
segundo grupo denominava-se Dragões Rubro-Negros, fundado em 1977 por
José Vaz e Ernesto Escovino, na condição de dissidência da tradicional
Charanga. Logo após a morte de Jaime de Carvalho, um desentendimento com
dona Laura, viúva do torcedor, acarretava o desligamento dos dois
componentes que, com o nome da nova torcida, pretendiam homenagear o
ancestral Dragão Negro, grupo de notáveis da política interna do Flamengo
durante os anos 50, tais como José Maria Scassa, Ary Barroso e José Lins do
Rego. A condição germinal dada a uma denominação era salientada nas cartas
como forma de identificação, de aglutinação e de diferenciação:
“Falange – um novo jeito de ser”: “Tudo aconteceu há dois anos atrás
quando um grupo de alunos do Colégio São Vicente resolveu fundar
uma nova facção de torcida do Flamengo. Selecionados alguns
simpatizantes do ‘mais querido’, a primeira coisa a fazer seria a
escolha do nome. Era preciso um nome bem original, que fugisse do
comum, do corriqueiro. Depois de muita discussão, o grupo optou por
FALANGE. Afinal, na antiguidade, significava o corpo de infantaria
da Macedônia reputado por sua união e harmonia em combate; é a
demonstração de cada um dos ossos que compõem os dedos, ou ainda
grupo de pessoas preparadas para determinado fim, tendo o urubu
como símbolo. (Roberto).”
380
.
O sucesso e a afirmação de uma torcida passavam, pois, por três
considerações retóricas: 1) uma justificativa que legitimasse sua razão de ser
naquele momento; 2) a adoção de um mote, de um símbolo, de uma palavra
catalisadora, capaz de chamar a atenção e de atrair simpatizantes; e 3) uma
estratégia publicitária, onde a repetição e a propaganda nos meios de
comunicação fossem constantes e surtissem efeito expansivo para o grupo. Se
antes da criação da Raça eram publicadas cartas onde se dizia “Ela realmente
está chegando. 77 será o ano D. Vem aí a Raça Rubro-Negra (O maior
movimento de torcidas do Brasil). Aguardem.”
381
, alguns meses depois os
mesmos idealizadores da agremiação, os irmãos César e Cláudio Cruz, junto
aos demais componentes e quadros da torcida, continuavam a escrever de
maneira quase ininterrupta para a seção Bate-Bola. Lá eles podiam anunciar,
380
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de março de 1983, p. 05.
381
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1976, p. 02.
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310
como no início de 1978, o aparecimento de um boletim da torcida, chamado “O
Raçudo”, informativo mimeografado e distribuído nos estádios, com o objetivo
de “abalar as estruturas do Maracanã” e de inaugurar “um novo ciclo dentro da
galera rubro-negra”
382
.
A originalidade de sua camisa, de um vermelho forte e chamativo,
assemelhado à tonalidade dos bombeiros, era outra estratégia de propaganda do
grupo presente nas cartas que a comentavam, a elogiavam e a badalavam
383
.
Em um ambiente onde pouco se cultivava a modéstia, bem mais afeito à
aclamação encomiástica, o desempenho da Raça na arquibancada era descrito
como “uma atuação impecável”
384
, como um “show à parte”
385
. Em sentido
figurado, a Raça era a “capital da Nação Rubro-Negra”
386
, capaz de concorrer
com o interesse maior do espetáculo em campo. O complemento à atuação no
estádio era, pois, dado no decorrer da semana com a sua reiteração nos
comentários aclamativos tecidos na correspondência. Elas revelavam um
sentido edificador na formação da torcida, resultado do esforço, da vontade e
do trabalho de divulgação de cada membro. Um integrante da torcida,
Joãozinho, destacava os atributos dos jogadores exigidos pelos torcedores
“sangue, coragem, garra e raça”
387
, acentuando a força ao talento, a vontade
ao dom. O faro propagandístico levava a uma busca por novas formas de
expressão nas arquibancadas, com a criação de um veículo impresso próprio e
com a assiduidade nas mensagens ao referido periódico:
“Raçamania”: “Raçamania é o mais recente assunto dos torcedores
rubro-negros em suas conversas antes, durante e após os jogos. Só se
fala em Raça Rubro-Negra nos estádios por onde o Flamengo joga. No
Fla x Flu da cidade de Juiz de Fora nós, os organizadores do Maior
Movimento de Torcidas do Brasil, ficamos pasmados com a grande
repercussão do nosso trabalho. Sendo junto com a torcida Flamante as
únicas duas torcidas presentes à estréia de Cláudio Adão. Com a ajuda
dessa coluna, a Raça Rubro-Negra tem atravessado fronteiras e o
nosso Dir. de Divulgação tem recebido um número exagerado de
cartas de todos os Estados do Brasil. É muito importante para nós da
Raça sabermos que estamos cumprindo as nossas promessas. Participe
da Caravana à cidade do Aço (Volta Redonda), junte-se à Raça Rubro-
382
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de março de 1978, p. 02.
383
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1979, p. 02.
384
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de dezembro de 1978, p. 02.
385
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 1979, p. 02.
386
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1978, p. 02.
387
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de abril de 1978, p. 02.
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Negra e empurre-o para mais uma grande vitória. Escreva para a Rua
Paula Brito 71/302 – Andaraí – 2C – 11 – RJ. Raça Rubro-Negra – o
maior movimento de torcidas do Brasil. (Lúcio da Cruz –
responsável).”
388
.
A continuidade nesse empreendimento se refletia no crescimento da
torcida com a passagem dos anos e acarretava o reconhecimento, o aval e a
simpatia dos próprios cronistas do jornal. Estes se igualavam ao discurso
exortativo dos torcedores e procuravam enaltecer as características genuínas e
inovadoras de cada agremiação. Transcorridos dois anos de sua fundação, os
colunistas faziam eco às novidades introduzidas pela Raça no decurso desse
tempo:
“A torcida rubro-negra, no todo e em suas diversas facções, é uma
alegria e um entusiasmo só. Mas, justiça seja feita, há uma facção que
vem tomando conta das arquibancadas. Trata-se da Raça Rubro-
Negra. Chega a ser impressionante o seu comportamento durante os
90 minutos. Fora de campo ela foi o grande destaque do jogo de
ontem. Uma torcida que grita, que briga, que sorri, mas que, acima de
tudo, ama o Flamengo em todos os momentos. Uma facção que está
dando novas dimensões ao comportamento do torcedor. São 90
minutos de apoio ao time. Quando as demais se calam, a Raça grita.
Quando as outras se sentam, a Raça permanece de pé. Um grupo de
jovens que estão ensinando a muita gente velha o que é amar e torcer
nos campos de futebol. Parabéns à Raça Rubro-Negra. Assim como a
Organizada e a Flachopp, ela já se inscreveu entre as principais
torcidas do Brasil. Taí uma torcida que justifica o nome: Raça.”
389
.
A comemoração do terceiro ano de existência da torcida mereceria a
atenção de outro colunista do JS, Oscar Eurico, em crônica intitulada “Raça
Rubro-Negra, a torcida diferente”. Fruto do contato direto entretido pelo
cronista com membros do grupo, pelo que é possível deduzir da leitura, o
jornalista contava a origem e os feitos inéditos da torcida, tecendo loas a
respeito de seu comportamento contagiante no estádio. Da mesma maneira que
a função dos mitos estudados pelos antropólogos desde Bronislaw Malinowski,
a estrutura narrativa do texto ressaltava as colorações míticas, religiosas e
fabulatórias de um passado nem tão distante da torcida “as histórias que os
nativos contam sobre si mesmos”, diria Clifford Gertz de suas observações de
campo em Bali , onde não faltava a descrição de uma fase inicial de penúrias.
388
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1977, p. 02.
389
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de julho de 1979, p. 05.
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312
Com a superação de todo tipo de provas e adversidades, a ultrapassagem das
dificuldades teria como corolário uma espécie de bonança e prodigalidade
cristã, com a expansão da torcida materializada em filiais existentes em boa
parte do país:
“A genialidade de Zico; a criatividade de Carpegiani; a tranqüilidade
de Raul; a garra de Rondineli; a disposição de Toninho; a eficiência de
Júnior; os dribles desconcertantes de Júlio César e os gols de Nunes
não são tudo nos jogos do Flamengo. Sem dúvida, a Raça Rubro-
Negra é uma atração à parte. Uma festa constante durante os noventa
minutos de jogo. Não interessa o resultado ou o adversário, apenas o
Flamengo. Três detalhes marcam e diferenciam a Raça Rubro-Negra
de outras facções de torcida do Flamengo. Os jogos são assistidos em
pé. Antes das partidas eles cantam em côro o nome de todos os
jogadores e membros da Comissão Técnica. E, finalmente, para
pertencer à Raça é preciso acima de tudo entusiasmo, pois não vale
ficar calado e deixar gritar durante os noventa minutos.
Espontaneidade talvez seja o termo mais certo para caracterizar a
Raça. Afinal, seus dirigentes, em tempo algum admitem a organização
a nível de organização. Tudo isso por entender que o homem,
torcedor, é por natureza um animal livre e só assim pode se realizar.
Com teorias filosóficas, a Raça acredita que o importante é manter a
individualidade dos seus componentes. Daí o sucesso, a força e o
entusiasmo que a caracterizam nas arquibancadas. E como toda torcida
teve dificuldades para ser criada. Saiu de um grupo dissidente da
FLAMOR, torcida liderada pela simpatissíssima Verinha e, dia 26,
completará seu terceiro aniversário. Edu e Joãozinho, de Niterói,
também deixaram a Torcida Jovem para se incorporar à Raça Rubro-
Negra. Inaldo largou a Flanática e também se incorporou ao grupo.
Hoje, a Raça tem aproximadamente 4.500 torcedores. Mas Cláudio e
César, seus presidentes; Antônio Carlos, Inaldo e Alberto, os
coordenadores; Urubu, Cadoca, Cristina, Beto e Sérgio Esperto
lembram que todo o material do grupo foi comprado a prazo. E na
época, explica Cristina, os bambus das bandeiras, por exclusiva falta
de dinheiro, eram levados para o Maracanã a pé, desde a Rua
Camarista Méier, no Engenho de Dentro. Mas os tempos passaram e a
Raça cresceu. Hoje, além da mais animada, é uma das maiores facções
de torcida do Flamengo. Tem filiais espalhadas em todo o Brasil e até
mesmo na argentina. Em São Paulo, Roberto Xavier é o responsável
pela Raça Rubro-Negra. Na Bahia, Raimundo Albuquerque; em Santa
Catarina, José Carlos e Roberto lideram o grupo. Em Brasília, Eraldo
comanda a Raça. Na Argentina, Juan Domingo comanda a facção.
Sem dúvida, um grupo importante. Entre seus sócios e colaboradores
são vistos médicos, advogados e muita gente jovem com disposição de
gritar os noventa minutos, característica principal da Raça Rubro-
Negra. E ainda tem um escritor, Luís Alan, que escreveu o livro
‘Rondineli, o Deus da Raça’. E se você já notou a Raça Rubro-Negra
nos jogos do Flamengo, não precisa acompanhá-la de longe. Pode e
deve se juntar ao grupo. No próximo domingo, por exemplo, eles
estarão em São Paulo numa caravana monstro para incentivar o
Flamengo contra o Palmeiras. As passagens custam Cr$ 400,00 e
podem ser adquiridas com Cláudio ou César, na Rua General
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313
Belegard, n. 99, ou ainda com a relações públicas, Cristina, pelo
telefone 258-2834. E para ser sócio da Raça também não é difícil.
Basta procurar seus líderes durante os jogos do Flamengo. E mesmo
sem ser sócio da Raça, você pode e deve cantar com ela durante o jogo
inteiro. Afinal, alegria e entusiasmo são com a Raça mesmo. O que
cantar ? Também não é problema. Aqui, vai a letra da música que
contagia o Estádio Mário Filho inteiro. Recorte e cante junto com a
Raça Rubro-Negra: ‘Ó meu Mengão, eu gosto de você. Quero cantar
ao mundo inteiro a alegria de ser rubro-negro. Conte comigo, Mengão,
acima de tudo Rubro-Negro. Conte comigo, Mengão, acima de tudo
rubro-negro.”
390
.
A transcrição desses comentários emitidos aqui e ali pelo staff do
periódico corrobora a percepção de que havia uma continuidade à deliberada
política editorial do Jornal dos Sports, com vistas a cobrir e a apoiar as torcidas
organizadas. Ela era manifestada não apenas por intermédio do espaço de
divulgação de suas propagandas travestidas em formato de cartas, mas através
também de reportagens especiais assinadas pela equipe de redação ou por seus
colunistas principais. Se em fins da década de 1960 o repórter destacado para
servir de contato com o universo dos torcedores era Marco Aurélio Guimarães,
seguido logo depois, no início dos anos 70, por Altair Baffa, então convocado
para o cumprimento da mesma função, como substituto do colega que se
transferia para a Placar, o período em questão agora encontrava como
mediador Dálton Crispim. O novo detentor do posto dava prosseguimento à
interlocução e à aproximação com as diversas lideranças das torcidas. A sua
tarefa consistia na realização de matérias de página inteira não apenas de
interesse dos torcedores em geral de forma eventual, podia entrevistar um
sambista de sucesso, como Martinho da Vila, e fazê-lo comentar sua predileção
clubística, expressa na composição “Calango vascaíno”
391
, mas na
elaboração regular de reportagens em que os líderes de torcida eram elevados à
condição de personagens do futebol. Nelas, as posições do chefe de torcida
ocupavam o centro das atenções, pois se mostravam autorizadas e
representativas em princípio da totalidade dos torcedores de seu clube.
Na matéria intitulada “Torcidas em pé de guerra”, Crispim chamava ao
debate essas lideranças, com a proposição de questões controversas como os
palavrões nas arquibancadas, a politicagem dos cartolas nos bastidores
390
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1980, p. 03.
391
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de maio de 1977, p. 03.
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314
esportivos e o preço inflacionado dos ingressos. Estabelecia uma certa
regularidade no diálogo com eles e configurava uma espécie de fórum de
discussão sob sua direção
392
. Em certa oportunidade, o jornalista fazia uma
reportagem exclusiva com foco em apenas uma torcida, como a Força
Jovem
393
, prestes a completar dez anos de existência, enquanto em outras
ocasiões entrevistava e enfocava um personagem específico, como o
botafoguense Russão
394
. Na semana de um clássico, colocava frente a frente
dois chefes de torcida para saber os prognósticos de cada um, uma conhecida
estratégia de motivação para a peleja, como se pode ler na chamada:
“Guerrinha das torcidas já começou com Russão e Verinha”
395
. Em outra
ocasião, a elevação de tom na conserva resultava do debate promovido pelo
jornalista entre o mesmo Russão, da TOB, e Dídimo César, chefe da Flatuante,
publicados na primeira página do jornal do dia seguinte, sem deixar de fazer
referência ao tom áspero que por vezes resultava desses encontros, onde o
primeiro torcedor desafiava:
Velho, você é advogado. Pelo menos diz que é. Eu não. Sou
apenas torcedor. Moro e nado lá em Ramos. Meu barraco é um barato.
Vim da Geral. Em 65 eu já tinha uma torcida ali embaixo. Ela se
chamava Fogo-Duro. Depois o Tolito, aquele da banca de jornal, me
levou para a arquibancada. Conheci o Celso. O Tarzã, que me deu
camisa e carteira. Eu sou assim. Vim do nada. Hoje, sou o Russo.
Todo mundo me conhece. E você ? Quem é ? Diz aí.”
396
.
O discurso de Russão parecia ir ao encontro da postura do repórter, que
realçava nas entrelinhas uma visão oprimida, compensadora e em certo sentido
vitimizadora do torcedor. Crispim explicitava a importância de dar voz a quem
não a tinha e de dar espaço a quem sofria, amava e se doava por um clube, mas,
no entanto, via-se como pólo mais fraco alijado da participação nas decisões
397
.
Em situações menos suscetíveis a tensões, Dálton Crispim podia receber
representantes de torcida na própria redação do jornal, em comemorações de
392
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de março de 1977, p. 10.
393
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de abril de 1977, p. 05.
394
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de setembro de 1978, p. 05.
395
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de maio de 1979, p. 02.
396
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1977, p. 05.
397
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1979, p. 03.
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315
aniversário: “Camisa 12, do Vasco, faz festa no JS”
398
. Em 1979, o jornalista
promoveu também um encontro entre a Força Jovem do Vasco e a Raça Rubro-
Negra
399
, em situações a princípio bem informais e descontraídas, tornando os
bastidores do jornal no próprio palco da notícia. Isto estabelecia um elevado
grau de camaradagem com aquele jornalista, a ponto de as torcidas oferecerem-
lhe um troféu pela amizade e pelos serviços prestados na divulgação dos
grupos
400
. Tratava-se em verdade de um gesto de retribuição dir-se-ia, com
Mauss, uma “expressão obrigatória dos sentimentos”
401
em face das várias
premiações oferecidas não só por ele, mas pelos demais repórteres do JS às
torcidas ao longo do tempo.
De maneira concomitante às matérias especiais e à relação personalizada
entre jornalistas e torcedores, as relações amistosas eram estendidas às
lideranças torcedoras no setor de correspondência do jornal. Enquanto, sem
motivos aparentes, Régio Henrique, da Força Jovem do Vasco, escrevia de
forma carinhosa à Verinha, da Flamor
402
, uma integrante da Raça Rubro-Negra,
Cristina, endereçava texto à seção Bate-Bola parabenizando Eli Mendes pelo
aniversário da Força Jovem
403
. Do mesmo modo, enquanto uma carta inusitada
e cordial, assinada por componentes da Young-Flu, cumprimentava a torcida do
Flamengo pela conquista de mais um campeonato
404
, a passagem de aniversário
de uma líder tricolor era motivo para felicitações e amabilidades de outra líder
flamenguista:
“Parabéns, Helena”: “Hoje é aniversário da Helena, da Torcida Fiel
Tricolor. E a data foi lembrada pelos rubro-negros da Flamante, que
aproveitam o Bate-Bola para parabenizar a ilustre torcedora do
Fluminense. Helena, que está descansando em Muriqui, merece todos
os votos de felicidade da Flamante por tudo o que representa para os
torcedores cariocas e pela dedicação ao clube que escolheu para
torcer. Parabéns, Helena. (Toninha, da Flamante – Rio).”
405
.
398
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de maio de 1980, p. 07.
399
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de julho de 1977, p. 14.
400
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de junho de 1979, p. 04 e 05.
401
Cf. MAUSS, M. “A expressão obrigatória dos sentimentos: relações jocosas e de parentesco”.
In: OLIVEIRA, R. C. de. (Org.). Marcel Mauss. São Paulo: Ática, 1980.
402
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 16 de março de 1979, p. 02.
403
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de julho de 1979, p. 02.
404
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de maio de 1979, p. 02.
405
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1984, p. 02.
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316
Não obstante, a tendência à auto-exaltação dos grupos pelos
componentes de menor projeção, vangloriando-se em detrimento das
associações concorrentes, continuava a gerar muitos atritos e rivalidades por
parte dos colaboradores do JS, de modo que muitos representantes de torcida
tentavam apaziguar os ânimos e contornar as discussões. Em cartas reflexivas,
eles procuravam levar à consciência dos leitores o real propósito a que se
destinava uma coluna de utilidade pública para eles e os benefícios a serem
extraídos dela pelas torcidas organizadas. O estabelecimento de convergências
e a abertura de canais úteis para a comunidade de torcedores que ali
intercambiavam mensagens eram notórios:
“Divulgação”: “Nota-se dia a dia um movimento crescente em relação
às agressões verbais por parte de diversos leitores, que utilizando
dessa coluna desvirtuam o objetivo de sua criação: preencher um
grande vazio que nós, chefes de torcida, sentíamos para divulgar notas
de interesse de componentes ou torcedores de seu clube e tudo isso
gratuitamente. Bonito é ver a Flachopp dar um aviso aos componentes
e mais amigos do novo local utilizado por ela para seus jogos de
futebol de salão; a Flaguel convocando todos para assistir ao ensaio da
Mocidade Independente na sede nova do Flamengo. Vejam bem: lazer
e samba, onde você faz higiene mental. Não há agressões nas notas
desses dois. Esquecem-se de lembrar que no dia 29 o atletinha estava
na Europa, participando do II Campeonato Mundial de Atletismo para
Veteranos, representando o Brasil e o Flamengo. Lembrem-se que
Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo são patrimônios que estão
sendo usados por pessoas que não lhes dão o sentido de grandeza por
eles possuídos. Quando quiserem se agredir usem o endereço próprio,
usem o BB, sim, para eventos de utilidade pública e não para disse-
me-disse que não conduz a nada. Que comece o campeonato. Aos
meus amigos Rui, Alcir e Zé (Charanga), João (Flaponte), Vera
(Flamor), Dídimo (Flatuante), a minha Tia Helena, aos amigos das
torcidas Flaxiense, Faroflafla, Flantástica, Beija Fla, Flabar, e demais
torcidas organizadas o meu abraço e que a paralisação do campeonato
não tenha afastado de nós o desejo de ver um Flamengo melhor.
(Luciano, chefe da Fla Rio).”
406
.
Embora fosse muito comum a afirmação da identidade de cada torcida
frente às demais, com todo tipo de animosidades, a seção Bate-Bola oferecia
espaço também para o entendimento mútuo, com a partilha de temas de
interesse comum às torcidas de diferentes clubes. O estímulo mais direto e
evidente era a vinculação territorial, onde o bairro propiciava o estreitamento
406
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de julho de 1977, p. 02.
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317
de elos comunitários, vicinais e carnavalescos entre torcidas que pertenciam a
times rivais, como se depreende do aviso:
“As torcidas estão unidas”: “As torcidas organizadas Vascachaça,
Flaroflafla e Flubino do Engenho de Dentro vão abordar vários
assuntos no dia 24 durante reunião de seus chefes. O mais importante
será decidir o modelo das fantasias para as alas que integrarão o Bloco
Carnavalesco Rei Sol. (Delmar, Luís, Alexandre RJ).”
407
.
Um ritual instituído pelas torcidas em seu processo de reconhecimento
recíproco chamava-se batizado. Era uma cerimônia que ocorria antes dos jogos ou
em ocasião especial, onde uma torcida veterana apadrinhava uma neófita,
legitimando-a no conjunto das associações de um mesmo time. Esta modalidade
ritualística contribuía para a união dos laços entre as facções, que passavam a se
considerar coirmãs termo por sua vez extraído do universo carnavalesco das
escolas de samba e pareceu ser relativamente costumeiro nessa época. Se entre
os rubro-negros anunciava-se o surgimento da Fla-Rio, a ser batizada pela
Flachopp no Rio Comprido, com os vascaínos a mesma prática era observada:
“Vasguel”: “Em primeiro lugar quero agradecer à Seção Bate-Bola
por ter publicado a nossa mensagem no dia 06-06-1976. Foi a maior
curtição. Mais uma vez convocamos a todos os vascaínos para o
batizado da TORCIDA VASGUEL DE PADRE MIGUEL, no dia 13-
06-76, às 11h, em frente ao estádio do Bangu A. C. Pedimos às
Torcidas Organizadas como a Vascachaça, Alfivasco, Olavasco,
Torcida Feminina Camisa 12, Pequenos Vascaínos e todas as demais
torcidas que venham nos prestigiar dando aquela força com a sua
presença. Não se esqueçam, as camisas continuam à venda com o Rui
na Padaria Nossa Casa em Padre Miguel. Alô Roberto, continue
fazendo a galera vibrar com os seus gols maravilhosos. Um abraço do
pequeno Alexandre. (Alexandre, Guido e Rui Vasguel – Padre
Miguel).”
408
.
Assim, as discussões e os entreveros não eram a única decorrência da
profusão de torcidas. Esta trazia como saldo positivo a especulação em torno de
formas associativas e congregadoras de seus interesses. Antes mesmo da
criação da ASTORJ, uma carta informava, em dezembro de 1976, o I Grande
Encontro de Torcidas Organizadas do Flamengo, a reunir na quadra da escola
de samba Unidos de Padre Miguel: a Flacinante, a Flaxiense, a Flanática, a
407
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 1976, p. 02.
408
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 13 de junho de 1976, p. 02.
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318
Flasil, a Flacoad, a Flaquitino e a Flantástica
409
. Por volta da mesma época, já
circulava na coluna do JS a idéia de uma associação em âmbito nacional que
reunisse todas as torcidas:
“Força Jovem”: “A Força Jovem comunica a todos os torcedores
vascaínos que fomos convidados a integrar a ‘Organização Nacional
de Torcidas Reunidas’ como representantes de toda a galera vascaína.
Os contratos serão assinados esta semana, esperamos que já no
campeonato carioca todos os associados e admiradores desta torcida
assim como todos os torcedores do Vasco possam tomar
conhecimento deste grande empreendimento feito pelos líderes da O.
N.T.R., Força Jovem e demais torcidas. Não fugiremos às nossas
tradições, de sempre servir ao Vasco e nunca ser servido por ele, não
visaremos lucros nem tampouco promoções particulares. Esta
organização englobará todas as maiores torcidas do Rio de Janeiro e
bem como (futuramente) do Brasil. Nós da Força Jovem fomos a favor
da idéia devido aos itens abaixo relacionados: a) O torcedor vascaíno
passa o ano indo aos estádios, vendo o Vasco jogar (de março a
dezembro) e fica, no período de férias dos jogadores, longe das
pessoas que ele convive nos estádios: o porquê de ele não ter uma
associação onde pudesse se divertir, onde pudesse encontrar uma vasta
programação social, cultural e esportiva, etc. b) Facilitar o trabalho
das autoridades policiais em dias de jogos, pois devido à imensa
facilidade (para muitos) de se formar uma torcida existe hoje no
Maracanã um número infinito de torcidas fantasmas que muitas vezes
chegam a brigar para colocar uma faixa no alambrado. Existem muitas
torcidas, mas poucas têm uma diretoria responsável para responder
pela sua facção, pois na hora h seus responsáveis desaparecem, assim
como todo o restante. Em suma, acabar com as brigas no Maracanã. c)
Colaborar com o governo federal, que desde o ano passado tenta
acabar com os palavrões em conjunto nos estádios. Embora já tenha
virado rotina nós pensarmos em acabar com este tipo de palavras, a
longo prazo. Para colocar em prática todos estes planos, contamos
com a ajuda de empresas de grande porte. Do que foi explanado,
gostaríamos de ouvir sua opinião, hoje no Maracanã, se você puder
entrar em contato com algum membro diretor de nossa torcida e dar
sua opinião seria bom para nós e bom para você. Pois a Organização
será criada em seu benefício. Hoje tem Maracanã, Vascão 77 x Frente
Retraída. O Vasco jogará com seus novos contratados, Orlando,
Geraldo, Ramon e Dirceu, enquanto a frente ampla anuncia, anuncia
mas só traz ferro velho para jogar mais um ano. Será que o Paulo
César (Inter) virá jogar, ou quem sabe o Cláudio Adão, veremos na
hora. Hoje no Maracanã como é de tradição a Torcida Força Jovem
entregará a Dirceu uma placa comemorativa a sua estréia com a
camisa do Vasco, para tal já conseguimos autorização da Federação
Carioca de Futebol. Você sabe por que a cada ano que passa nós
ficamos maiores ? Pois enquanto houver um coração infantil o Vasco
será imortal e a Força Jovem a maior, a melhor e a mais atuante
409
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1976, p. 02.
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319
torcida do Rio de Janeiro. Doa a quem doer. (Luiz, Departamento de
Relações Públicas – RJ).”
410
.
Os múltiplos arranjos oscilavam não apenas ao sabor da dinâmica e da
lógica intrínseca às torcidas. Eles se valiam também da capacidade e do modo
de relacionamento com os dirigentes de futebol. As eleições no clube eram
momentos propícios às alianças e à constituição de laços entre as torcidas, que
podiam deliberar o apoio conjunto a uma mesma chapa. Se a organização
nacional de torcidas, supracitada na carta, não foi concretizada, verificou-se,
isto sim, o surgimento das associações de torcidas de um mesmo clube, como a
ATORFLA
411
, o MUT (Movimento Unido Tricolor), a ASTOVA e a ASTOB,
base para a posterior criação da ASTORJ. O lançamento do “Manifesto das
Torcidas do Flamengo”
412
em 1979 foi o embrião para o surgimento da
ATORFLA, logo depois que um movimento conhecido como FAF (Frente
Ampla Flamengo) logrou êxito e elegeu Márcio Braga e Walter Clark à
presidência e a vice-presidência do clube, respectivamente. Com a eleição de
um jovem advogado oriundo do STJD (Superior Tribunal de Justiça
Desportiva) e de um poderoso diretor-geral da TV Globo, respaldados por
Carlos Niemayer do Canal 100, que assumiria a vice-presidência de futebol,
entre outros nomes históricos do clube, a renovação interna levou o time a um
ciclo de vitórias nacionais e internacionais, favorecendo a sintonia entre a
torcida e a direção.
A associação dos tricolores também se originou no contexto vitorioso da
administração do presidente Francisco Horta, em meados da década de 1970,
quando o time do Fluminense se tornou conhecido na cidade como A máquina.
A aproximação das principais lideranças de torcida estimulou a sua
participação nos pleitos eleitorais subseqüentes, com a escolha e o apoio a
determinadas candidaturas, ora da oposição ora da situação, conforme releva a
carta:
“As principais torcidas organizadas do Fluminense, abaixo
mencionadas e reportadas por seus principais chefes, vêm através
410
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 13 de fevereiro de 1977, p. 02.
411
A fundação da Atorfla é de agosto de 1981 e a do MUT, de julho de 1982. Cf. ibid. Rio de
Janeiro, 28 de agosto de 1981,p. 02. Cf. ibid. Rio de Janeiro, 12 de julho de 1982.
412
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de março de 1979, p. 02.
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320
desta esclarecer aos torcedores e associados, que não estão apoiando o
sr. Carlos Villela e que suas declarações não têm nosso aval e nem
apoio de nossas facções. Estamos todos com Sílvio Vasconcelos e
Preguinho, nossos verdadeiros líderes e amigos, para quem pedimos
os votos dos tricolores que realmente amam o nosso Fluminense.
(Torcida Tricolor – Young Flu – Fluturo – Força Flu – Influente –
Bel-Flu – Flu Rei – Copa Flu).”
413
.
No Flamengo, a campanha para a reeleição da FAF no pleito de 1979
geraria uma grande mobilização das torcidas rubro-negras, que se reuniriam e
emitiriam à imprensa seu posicionamento perante a política interna do clube.
As torcidas chegariam a implantar também a sua própria frente, com a
indicação de Ricardo Muci, chefe da Flamante, como representante das torcidas
na chapa favorita. Conforme noticiava o Jornal dos Sports, em uma breve nota
ilustrada com foto:
“Márcio e Helal, lá em cima, com a galera, em vibração”: “As torcidas
organizadas do Mengo formalizaram, ontem, na arquibancada, o apoio
aos dois candidatos da Situação, com manifesto e tudo.
414
”.
A descrição prévia dessa atmosfera participativa das torcidas, em
consonância com a conjuntura associativa vivenciada no plano nacional,
permite a exploração dos fatos principais aqui em destaque. Pois, se as torcidas
vivenciavam incontáveis formas de interação entre si, com virtuais esboços de
união com o clube, as relações baseadas em cooperação também poderiam
revelar a sua contraface sob a forma de conflito, o que dependia sempre de
situações e de interesses concretos. Assim, à participação mais orgânica na vida
decisória do clube e ao apoio deliberado a determinadas candidaturas,
verificados em fins dos anos 70, as torcidas assumiriam no início da década de
80 um caráter oposicionista mais explícito. Em especial nos anos de 1981 e
1982, quando a contraposição entre torcedores e diretores chegaria ao seu
clímax, por meio de protestos e boicotes os mais variados, que poderiam ser
equiparados à onda de agitações espontâneas ocorridas no biênio de 67-68,
conforme a descrição feita no primeiro item deste capítulo. Em respaldo aos
acontecimentos, os meios de comunicação especializados voltariam a dar a
essas manifestações um caráter dramático, em manchetes de primeira página e
413
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de janeiro de 1978, p. 02.
414
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de abril de 1979, p. 12.
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321
em reportagens especiais. Além do desempenho das equipes em campo, as
revoltas tinham como força motriz uma controvertida e inédita discussão em
torno do aumento do preço dos ingressos. A narração jornalística desse embate
possibilitou a percepção de uma unidade entre as torcidas, ainda que esta se
tenha se afigurado temporária e circunstancial, restrita à superfície da curta
duração, para empregar o primeiro dos cortes temporais propostos pelo
historiador francês Fernand Braudel, em sua classificação da duração do tempo
histórico
415
.
Tais elementos forneceram o substrato, entre outros fenômenos, para a
emergência da ASTORJ, entidade que assumiu naquele momento uma postura
por assim dizer sindical, com um sentido corporativo mais evidente, seja
através da absorção da linguagem inspirada nos termos dos sindicatos, seja por
meio da realização de greves propriamente ditas. O acompanhamento mais
próximo da administração e da vida do clube, com a atenção crescente
dispensada à atuação dos seus cartolas, onde tanto a oposição quanto a
composição podem ser observadas, contribuiu para a concretização de tais atos.
Em nível nacional, o horizonte de abertura política, a revitalização das
organizações sindicais e a crescente inflação influenciaram, ainda que de
maneira indireta, a eclosão de acontecimentos dramáticos, estranhos à rotina e à
normalidade do futebol, desenrolados nos estádios nesse período.
Com efeito, as manifestações coletivas de descontentamento eram
relatadas sob as mais diversas formas pelo Jornal dos Sports. Uma delas
ganhava destaque já em fins dos anos 70, na pena do jornalista Dalton Crispim.
Em página de notícias relativas à equipe botafoguense, o repórter assinava a
surpreendente matéria “Torcida do Botafogo não vai ao estádio”, com direito a
uma pequena foto do mentor daquela decisão:
“Pela primeira vez na história do Botafogo, a sua Torcida Organizada
não prestigiará o time. Isto acontecerá logo mais, à noite, no Estádio
Mário Filho, quando o alvinegro enfrentará o Fluminense em um jogo
cujas perspectivas de renda são as piores possíveis. São 37 bandeiras a
menos. São 47 peças de bateria que permanecerão em silêncio,
trancadas numa sala do estádio. Mais do que isso, será a ausência do
torcedor alvinegro (a exemplo do que está acontecendo com os
tricolores), fato profundamente lamentável. Russão, chefe da Torcida
415
Cf. BRAUDEL, F. “História e sociologia”. In: Escritos sobre a história. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
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322
Organizada, não aceita que se fale em greve. ‘Isso não é coisa do
futebol’. O que existe mesmo desabafa é uma profunda tristeza
aqui dentro. O que o nosso Presidente tem que entender é que nós
estamos machucados. Arrasados. Chega de tanta humilhação nos
estádios e nas ruas. A torcida do Botafogo está acostumada a gozar e
não a ser gozada. Imediatamente depois da derrota para o Vasco, a
Torcida Organizada do Botafogo reuniu-se (ainda no Estádio Mário
Filho) para definir sua posição no momento. Russo dá as explicações:
Não teve nada disso de corredor polonês ou de tentar apelar sobre A
ou B. Na verdade, a torcida do Botafogo, se tivesse que apelar, ia
apelar contra todo mundo. A nossa reunião foi em alto nível, apesar de
feita, é claro, de cabeça quente. E o que foi ficou decidido ? Pra
falar a verdade, eu não posso nem dizer o que pensamos em fazer.
Cada um deu a sua sugestão. Numa boa. Mas o bom senso prevaleceu
e o nosso protesto será este, inicialmente. Pela primeira vez na história
do Botafogo a Torcida Organizada não irá a um jogo. Russo garante
que nos seus 20 anos de presença constante em meio à torcida do
Botafogo, jamais viu tanta tristeza como agora. Eu comecei na
Geral, criando a Fogoduro. Aí o Tarzã me levou para a arquibancada.
Já estou nessa há vinte anos e nunca vi a situação tão russa como
atualmente. Afinal, o que é que a torcida do Botafogo quer ? A
resposta está na cara: nós queremos time. Isso que está aí não é o
Botafogo que aprendemos a amar. E é bom deixar claro que não
estamos preocupados com política, fazendo campanha contra ou a
favor de ninguém. Nós achamos que o Presidente Charles Borer
cumpriu a primeira parte de sua promessa. Está faltando a segunda.
Como assim ? No seu primeiro período, o Presidente falou em
cuidar das coisas internas. E fez. Agora, no segundo, a promessa era o
futebol. Cadê presidente ? Com essa baba que está aí não dá. No
momento em que anuncia que não irá ao Mário Filho, logo mais,
Russo não consegue esconder os olhos vermelhos e brilhando muito.
Não vou, mesmo. Não adianta porque não vou. Nem eu e nem a
torcida que me acompanha. A chave da sala está comigo e nenhum
dos meus companheiros pensou em mudar a minha decisão.
Formamos uma torcida independente. Podemos tomar as nossas
posições à vontade. E para o futuro ? Enquanto não sentirmos que
alguma coisa está sendo feita para melhorar a situação, vamos ficar
assim. Afastados dos estádios.”
416
.
A ausência de títulos e a escassez de vitórias geravam os sentimentos de
desonra e de humilhação narrados na voz do chefe da principal torcida
botafoguense, que encontrava como única solução a adoção daquela medida
inusitada. A decisão voltaria a ser tomada em setembro do ano seguinte, em
1980, após a derrota de quatro a zero para o Fluminense. Em matéria ilustrada
com fotografia, Dalton Crispim dava mais uma vez espaço a Russão, que
anunciava o sinal de protesto encontrado por seu grupo. Mais do que a pura e
simples ausência, a torcida permaneceria agora do lado de fora do estádio no
416
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de abril de 1979, p. 07.
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323
próximo jogo do Botafogo. Por um lado, o esclarecimento do líder alvinegro,
segundo o qual aquela atitude não representava um alinhamento ao movimento
de Oposição existente no clube, revelava a importância das coalizões políticas
internas e a possibilidade de envolvimento das torcidas em tal processo. Por
outro, a negativa de Russão à idéia de que o ato poderia significar uma greve
indiciava também que esta existia ao menos como uma virtualidade no
momento.
As contestações da torcida do Botafogo voltariam a acontecer, de tempos
em tempos, sempre em conformidade com o resultado dos jogos. Em julho de
1982 uma reportagem registrava: “Torcida vaia, joga pedra, mas acaba
aplaudindo os jogadores”
417
. Na matéria informativa, o jornalista permitia-se
ainda uma licença poética, citando um verso do poeta Augusto dos Anjos, “A
mão que afaga é a mesma que apedreja”, a fim de ilustrar a condição pendular
do torcedor e a sua passionalidade sempre instável, contraditória. Em janeiro do
ano seguinte, a primeira página do periódico alardearia como informação
principal: “Torcida em pé de guerra exige venda de Mendonça”. A reação da
torcida à venda e à compra de jogadores seria outro fator que mobilizaria
grande parte das atenções das lideranças de torcedores, despertando a vigilância
destes perante quaisquer atos dos dirigentes que interferissem na formação da
equipe.
Já no Fluminense, os momentos de derrota e as decisões tomadas pela
diretoria do clube desencadeariam manifestações ainda mais intensas e
contundentes do que as verificadas entre os botafoguenses, segundo a cobertura
do Jornal dos Sports. Em 1979, a vitória do Volta Redonda sobre o Fluminense
chegaria à primeira página do jornal, com anúncio e foto da “rebelião”
418
.
Transcorridos exatos um ano daquele incidente, uma manchete bem chamativa
do jornal informaria: “Galera pichou o muro do Fluminense”. No interior do
periódico, os dizeres da pichação eram descritos: “Onde está o dinheiro da
venda de Rivelino, Marinho, Pintinho, Nunes e Fumanchu?”; “Queremos
time”; “Ladrões”; “Vergonha até quando ?”; “Diretoria omissa”. Método
iniciado nos primeiros anos da década de 1970, as depredações físicas e
simbólicas ao clube seriam utilizadas com freqüência para expressar a
417
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de julho de 1982, p. 05.
418
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de julho de 1979, p. 01.
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contrariedade dos torcedores diante dos resultados adversos e das medidas
adotadas pelos representantes do clube.
Os anos de 1981 e de 1982 assistiriam a uma intensificação ainda maior
do confronto entre as torcidas organizadas do Fluminense e a diretoria do
clube. Em junho de 1981, as contestações voltariam a ocorrer com novas
pichações à sede do clube. De acordo com o jornal, as explicações oferecidas
na sua terceira página, sob o título de “Torcida protesta pichando dirigentes nos
muros”, seriam as seguintes:
“E os muros das ruas Álvaro Chaves e Pinheiro Machado apareceram
de novo pichados. Em cal e mal escrito, a torcida do Fluminense não
poupou Dílson Guedes, representante do clube na federação de futebol
do Estado do Rio de Janeiro, e o Vice-Presidente de futebol Rafael de
Almeida Magalhães. ‘Muito salário e pouco futebol’; ‘Dílson Guedes
museu’; ‘Fora PMDB’ o vice-presidente de futebol é membro do
partido ; ‘Fora salto alto’, ‘vice no clube e não em Brasília’, eram as
frases que ocupavam o muro vermelho da sede do clube. E dessa vez
todas as torcidas resolveram aderir aos protestos. Até mesmo a
Young-Flu, sempre longe desse tipo de manifestação, dessa vez
participou. Do protesto da torcida, Rafael de Almeida Magalhães não
falou nada, embora fosse o alvo das maiores críticas. Os líderes das
torcidas organizadas do clube consideram a política do vice-presidente
de futebol a maior responsável pela crise, pelo fracasso da equipe na
Taça Guanabara: Não é possível ser vice-presidente do PMDB, ir a
Brasília toda a semana, catar votos no Estado e dirigir o Fluminense.
O futebol, na verdade, está entregue ao Nilson Matos, apenas diretor
comentou um representante da Young-Flu que esteve ontem à tarde no
clube, quando os muros já estavam sem as pichações, retiradas bem
cedo a pedido do presidente Sílvio Kelly dos Santos. Os líderes das
torcidas, principalmente da Força-Flu, da Young-Flu, Influente e
Organizada consideram a política adotada pelo clube como a grande
responsável pela péssima campanha da equipe na Taça Guanabara.
A política dos salários muito altos, de não pagamento de gratificações,
leva os jogadores a se acomodar. Isso tem de acabar comentou o
representante da Força. Apesar das críticas à atual direção de futebol
no clube, as diversas facções de torcida manterão apoio ao time. Todas
formarão caravanas a Volta Redonda para a partida de domingo, com
exceção da Força-Flu, que cancelou a viagem como protesto.”
419
.
O alvo desta vez era o antigo dirigente Dílson Guedes, contra o qual o
Jovem Flu havia se insurgido em fins de 1960, e o vice-presidente de futebol,
Rafael de Almeida Magalhães, um político do PMDB, que já havia sido vice-
governador do estado, na época de Carlos Lacerda. Segundo os torcedores, este
último dirigente estava sempre em Brasília, onde cuidava de seus interesses
419
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 20 de junho de 1981, p. 03.
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eleitorais e relegava o Fluminense ao segundo plano. No mês seguinte, em
julho, a rixa prosseguia com a resposta das torcidas organizadas às acusações
que recebiam dos dirigentes. A divulgação de “A nota das torcidas”
420
servia
para refutar a pecha de “fascistóides” a eles atribuídos pelos dirigentes,
incluindo no rol das críticas o dirigente João Havelange, presidente da FIFA e
ex-presidente do Fluminense. Ainda em julho daquele ano, uma reunião entre
as lideranças de torcida e a direção do clube era realizada, a fim de acalmar os
ânimos exaltados e de chegar a um consenso entre ambas as partes. A tentativa
vinha descrita em cores vivas no jornal, com foto de destaque e com manchete
estampada em primeira página
421
.
Os esforços em prol do entendimento não avançariam e logo no início do
mês de setembro o JS estampava: “Torcida vai hostilizar time em Bariri”. As
ameaças de depredação do estádio do Olaria se davam por meio de telefonemas
anônimos e acarretavam um clima tenso. A revolta contra o clube tinha em
mira tanto os jogadores, contra os quais se anunciava o arremesso de tintas e
morteiros, quanto os dirigentes, como Rafael de Almeida Magalhães, além do
técnico João Carlos Gomes, considerado “incompetente e covarde”. A
indignação era declarada pelos três líderes da Força-Flu, Antônio Gonzáles,
Cássio Gordo e Adriano Gomes, entrevistados pelo jornal. No dia seguinte à
matéria, a dois de setembro de 1981, nova manchete revelava que, ante a
pressão, o vice-presidente de futebol licenciava-se do cargo por três meses.
Ainda em setembro, no entanto, o afastamento de Rafael de Almeida
Magalhães não havia se mostrado suficiente para serenar os ânimos. O
dirigente continuava sendo admoestado pelas torcidas do Fluminense, desta vez
pelos membros da Young-Flu, como no depoimento de uma de suas lideranças
ao jornalista do periódico, em sua quarta página:
Enquanto persistir a ameaça do retorno do Rafael, nós colocaremos
a faixa pelo avesso num sinal de protesto. Não o queremos mais no
clube, pois só fez mal ao futebol do Fluminense a presença desse
político. Ele ficou aborrecido conosco porque convocou a torcida para
entrar na conversa dele, mas nós repelimos. Não adianta ele nos
chamar de ‘fascitoidezinhos’ ou do que bem entender, porque nós
sabemos muito bem a razão pela qual usa esse tipo de linguagem.
420
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de julho de 1981, p. 12.
421
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de julho de 1981, p. 01.
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Pode chamar a gente do que quiser, mas nós não descansaremos
enquanto ele não se afastar do clube definitivamente.”
422
.
Além do dirigente, o técnico João Carlos também seria afastado a
dezenove de setembro, em função da pressão e das investidas da torcida
tricolor, que só se contentaria com a nomeação de um novo treinador, Luiz
Henrique. De início, o atendimento das reivindicações parecia ter surtido
resultado e os torcedores se acalmariam durante o final daquele ano de 1981, o
que se pode inferir da ausência de notícias por parte do jornal durante certo
intervalo de tempo. Não obstante, em maio do ano seguinte, os protestos
recrudesciam novamente, motivados agora por transações que envolviam a ida
de ídolos da torcida ao estrangeiro, conforme destacava em primeira página o
Jornal dos Sports: “Galera revoltada com a venda de Edinho”. Um dia depois
da manchete, a ira da torcida atingia mais uma vez a fachada do estádio das
Laranjeiras, com a seguinte pichação de seus muros: “O picadeiro saiu, mas os
palhaços ficaram”. Rafael de Almeida Magalhães, de volta ao clube,
justificava: “– Torcida é assim mesmo. Eu não me impressiono mais com este
tipo de reação. O torcedor normalmente age sempre com paixão e deixa a razão
de lado, sem ver ou sentir os problemas do clube.”
423
.
Passados poucos dias da pichação, a primeira página do jornal voltava a
enfocar a discórdia da torcida ante a venda de mais quatro jogadores, em
sentença evocativa, “Torcida vai enterrar os coveiros do clube”
424
, que
lembrava os enterros simbólicos dos dirigentes no final dos anos 60. Além do
aviso de boicote aos jogos e de faixas com tarjas pretas, o cortejo fúnebre do
presidente do clube, Sílvio Kelly, era anunciado mediante a descrição de um
roteiro que sairia com o caixão do Maracanã e prosseguiria com destino às
Laranjeiras. A repercussão jornalística não tardaria: “Torcida invade o
Fluminense”
425
. Um dia depois, nova manchete: “Dino se demite e torcida
carrega Horta”, em alusão à demissão de mais um técnico do Fluminense e à
exaltação do ex-presidente do clube, Francisco Horta. O amplo espaço de
cobertura dada pelo JS aos torcedores irritava Rafael de Almeida Magalhães,
também chamado nas reportagens de “a saúva tricolor”, o que fazia o deputado
422
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1981, p. 04.
423
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de maio de 1982, p. 03.
424
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de maio de 1982, p. 01.
425
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de maio de 1982, p. 01.
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ameaçar abrir um processo na justiça contra o periódico. O Cor-de-Rosa
parecia mover de maneira efetiva campanha contra o diretor, um político que,
segundo o jornal, sem espaço em Brasília havia migrado para o mundo dos
esportes. No final de maio de 1982, mais confrontos do presidente do clube
com os torcedores recebiam menção: “Kelly, ameaçado, quis brigar com a
torcida após empate do Flu” e “Kelly é perseguido na saída”
426
.
Dois meses depois, as facções do Fluminense lançavam as bases de um
movimento, o MUT, Movimento Unido Tricolor, segundo elas uma espécie de
queremismo em prol do Fluminense: “1) queremos time; 2) queremos ver
futebol; 3) queremos campos para treinos; 4) não queremos cabeças de bagre”.
O não-atendimento desses itens faria a torcida continuar a se indispor com o
presidente, o que vinha expresso em uma faixa nas arquibancadas fotografada
pelo periódico: “Pai, afasta de mim esse Kelly”, glosa de uma canção do
compositor tricolor Chico Buarque. Somente nos últimos dias de dezembro de
1982, o Jornal dos Sports viria a dar espaço a Sílvio Kelly, já ao final de seu
mandato, por meio de uma entrevista de página inteira onde discorria sobre o
papel da torcida, que segundo ele se afastava de seu princípio básico o apoio
incondicional ao clube e se dedicava a prejudicá-lo com seus boicotes
ostensivos e ofensivos
427
.
Não é possível averiguar de que maneira esse processo insurgente se
iniciava precisamente, mas pode-se notar como ele desatava efeitos em cadeia,
passando de uma torcida a outra, de um clube a outro, insuflando e contagiando
as demais. No primeiro semestre de 1982, integrantes de torcidas organizadas
do Vasco protagonizariam manifestações semelhantes às de Botafogo e
Fluminense, incensadas pelo resultado dos jogos. A cobertura do jogo entre
Vasco e Grêmio não deixava dúvidas quanto ao foco das atenções: “Vasco
empata e torcida provoca tumulto”; “Nem o ônibus escapou à fúria dos
agressores”. A Astova, Associação de Torcidas do Vasco, integrada por dez
facções, sob a liderança da TOV e da Força Jovem, as duas maiores, realizava
em maio daquele ano um boicote aos jogos, com o impedimento da entrada da
torcida cruzmaltina. A atitude gerava polêmica entre os torcedores vascaínos,
que reclamavam no jornal o direito de assistir à partida da arquibancada. Os
426
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de maio de 1982, p. 01 e 14.
427
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1982, p. 08.
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reclames não demoviam as lideranças da idéia do protesto e o boicote era
ampliado ao longo do mês: faixas e bandeiras eram colocadas na arquibancada
e, em seguida, as torcidas rumavam para a Geral
428
.
Já nos primeiros meses de 1983, a associação de torcidas do Flamengo, a
Atorfla, reagiria à ameaça de troca do jogador Tita por Baltazar. Se a gestão de
Márcio Braga havia sido marcada pelo clima de concórdia do presidente com as
facções rubro-negras, o mesmo não parecia acontecer com seu sucessor
Dunshee de Abrantes, chamado de “ditador” pelos torcedores, depois que este
impediu a entrada de chefes de torcida no clube. A medida, tomada no final de
janeiro, era por sua vez uma resposta às ofensas recebidas pelo técnico da
equipe, Carpegiani, relatadas no Jornal dos Sports com a chamada: “Torcida
protesta e ofende Carpegiani”
429
. As manchetes dos primeiros dias de fevereiro
narravam os enfrentamentos diários de ambas as partes. Se em um dia
estampava-se “Carpegiani desafia a torcida do Mengo”
430
, no outro, vinha a
contrapartida em primeira página, “Fúria da galera assusta o Mengo”, seguida
de “Torcida invade campo e impede treino do Fla”
431
.
As torcidas vivenciavam assim, de maneira particular, a sua relação com
o clube, que girava em torno de discordâncias internas quanto a determinados
atos dos dirigentes ou à performance da equipe em campo. Os métodos de ação
pichações, enterros simbólicos, agressões físicas, insultos verbais, não-
entrada no estádio, toda sorte de pressões, depredações e protestos é que se
assemelhavam, inspirados menos no futebol e mais em movimentos
reivindicatórios existentes na sociedade. Entre 1981 e 1982, porém, uma
questão mais abrangente iria unir de maneira inédita as torcidas dos grandes
clubes do Rio de Janeiro. A união se daria em função de decisões tomadas
pelos dirigentes e implementadas pelo presidente da Federação de Futebol do
Estado, Otávio Pinto Guimarães, e pelo administrador da Suderj, Gildo Borges.
Elas diziam respeito ao aumento do valor cobrado pela entrada nos estádios. Se
desde 1979, pelo menos, já eram registradas em cartas ao JS reclamações dos
torcedores em virtude da majoração das entradas e da decadência das condições
físicas dos estádios, além dos assaltos à saída do estádio, que chegaria a vitimar
428
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 14 e 20 de maio de 1982, p. 05.
429
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1983, p. 04.
430
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de fevereiro de 1983, p. 01.
431
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de fevereiro de 1983, p. 01 e 04.
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inclusive uma integrante da Raça Rubro-Negra, a partir de maio de 1981 a luta
contra os reajustes dos preços congregaria as diversas facções em prol desse
objetivo comum. A vinte sete de maio, o JS colocava como chamada principal
do periódico: “Boicote da galera apavora os dirigentes”
432
. A matéria
correspondente à manchete procurava ouvir as impressões dos cartolas ante a
intenção dos torcedores. O vice-presidente de futebol do América
contemporizava a questão e a restringia a uma situação passageira:
Não acredito que a torcida faça boicote. É uma reação natural no
princípio, mas depois o torcedor vai se acostumar, como nós nos
acostumamos com o preço da gasolina. A torcida do América, por
exemplo, eufórica com a vitória sobre o Vasco, vai esquecer logo o
preço dos ingressos.”
433
.
Passados dois dias, nova manchete dava continuidade à discussão, dessa
vez abordando os resultados da reunião dos representantes dos clubes com a
Suderj: “Clubes não reduzem o preço dos ingressos”
434
. Lesadas com a decisão,
as torcidas não demorariam a agir, com a programação de um boicote para a
partida do mesmo dia no Maracanã: “Inconformada, torcida mantém boicote
ainda hoje”.
“A torcida do Flamengo continua protestando contra o aumento do
preço dos ingressos do Mário Filho e garante que o boicote não se
resumiu ao jogo contra o Madureira. Hoje, por ocasião da partida com
o Bangu, vários torcedores tentarão mostrar mais uma vez aos
dirigentes que foi um erro a majoração dos ingressos, deixando de
comparecer ao estádio ou assistindo ao jogo da geral, único setor que
não sofreu aumento. Nemésio Miguez, da Torcida Jovem, e Marcelino
Andrade, da Fla-12, estão liderando o movimento às outras facções e
pede ajuda até mesmo dos chefes de torcida de outros clubes, pois
sentem que os dirigentes a cada dia dificultam o comparecimento do
torcedor aos estádio, com medidas que o prejudicam diretamente.
435
Além das matérias que tratavam do assunto, fotos ilustravam o
descontentamento dos torcedores nos estádios. No mesmo dia vinte e nove de
maio, uma faixa de indignação na Geral era fotografada e publicada no jornal:
“Cr$ 300 é roubo!”. Tratava-se da iniciativa de uma torcida organizada do
432
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1981, p. 01.
433
Cf. ibid, p. 03.
434
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de maio de 1981, p. 01.
435
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de maio de 1981, p. 03.
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Flamengo, a Fla-Jabour, que decidira comparecer ao jogo no setor do estádio
mais barato, ao invés do lugar tradicional na arquibancada. Dois dias depois,
outra foto mostrava a adesão de outras facções, expressa na faixa em tom de
ameaça condicional: “Abaixe o preço ou continuamos na Geral”
436
. De maneira
automática, o debate sobre o aumento dos ingressos e a correlata queda de
público se refletia na seção Bate-Bola, onde os torcedores de vários clubes
opinavam contra a posição dos dirigentes em cartas, como a de uma vascaína,
intitulada “Cartolas de bola murcha”:
“É lamentável a decisão dos cartolas em não reduzir os preços
(absurdos, por sinal) dos ingressos. Persistindo nos Cr$ 300,00 as
rendas serão razoáveis, mas o público pagante muito pequeno, como
aconteceu no jogo Flamengo x Madureira. A torcida que já vinha
prometendo boicote teve ainda a colaboração da chuva e o público
registrado no Maracanã foi de apenas 3.489. É incrível como só no
nosso Rio de Janeiro ocorre essa inflação, já que nos outros estados o
preço de uma arquibancada custa Cr$ 150,00. No mais, quero desejar
à torcida Força Independente, do meu amigo Toninho Lucena, muitos
êxitos em sua estréia (Elisabeth Cravo Méier Rio).”
437
.
As atitudes das torcidas rubro-negras coincidiam com a movimentação
das facções tricolores. No dia três de junho, o jornal informava na página
dedicada ao Fluminense: “Uma torcida vai boicotar a Young-Flu”.
“Pelo menos uma facção do Fluminense está se movimentando e não
deverá comparecer domingo em Bangu, para mais um jogo pela Taça
Guanabara. A Young-Flu está praticamente decidida a boicotar o jogo
do Fluminense em sinal de protesto pelo aumento dos ingressos.
Como o Estádio Guilherme da Silveira não possui gerais a torcida se
recusa a ir de arquibancada a 300 cruzeiros. Os chefes estão se
reunindo e até amanhã deverão decidir a posição final, que em
princípio é o boicote. Os dirigentes estão cientes do movimento e
ontem o Vice-Presidente de Futebol comentou a decisão. Acho que
é uma forma de pressão legítima, não tenho nada a criticar, desde que
seja um ato consciente. Acho que a torcida pode fazer o que quiser,
desde que não caia em contradição. Se não querem ir a campo também
não venham querer um grande time. Isso será uma incoerência disse
Rafael.”
438
.
436
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de junho de 1981, p. 05.
437
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de junho de 1981, p. 02.
438
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de junho de 1981, p. 03.
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Nesse ínterim, a manutenção do preço considerado alto pelas torcidas e a
permanência do boicote acarretavam um fato inusitado que comprometia as
rendas do Maracanã: em uma partida, o setor da arquibancada e da geral
computava um mesmo número de público pagante, dividindo-se meio a meio.
O impasse levava à nova reunião entre a FERJ, os vice-presidentes dos clubes e
a SUDERJ. Após muita discussão, a manchete triunfal do Jornal dos Sports
anunciava na manhã seguinte: “Galera venceu. Futebol mais barato”
439
. De
acordo com a matéria, a pressão da torcida e da crônica especializada haviam
sido decisivas para a redução dos preços, embora a entrada do governo do
Estado na questão, por intermédio da Suderj, também fosse destacada como de
suma importância. O fato incomodou o presidente do Flamengo, Dunshee de
Abranches, para quem a medida era uma “demagogia”, sendo respaldado por
seu vice-presidente de futebol, Michel Assef, conforme esclarecia Milton
Salles, na coluna “Bola no chão”:
“Um fato que precisa ficar esclarecido nesta questão da venda de
ingressos é a posição adotada pelo Presidente Otávio Pinto Guimarães,
que desde o primeiro instante condenou a volúpia altista de alguns
dirigentes. Otávio se bateu pelo respeito ao torcedor de baixa renda,
que estava enfrentando dificuldades mas, assim mesmo, freqüentava
religiosamente as arquibancadas dos estádios, em especial as do Mário
Filho. E na reunião em que os preços foram aumentados o Vice-
Presidente Rafael de Almeida Magalhães, do Fluminense, prefere
dizer reajustados o Presidente da FERJ fez um apelo ao bom-senso
dos dirigentes e sugeriu que eles aprovassem a seguinte tabela para os
ingressos de arquibancada: jogos entre pequenos Cr$ 150,00; entre
os grandes e pequenos Cr$ 200,00; e clássicos, isto é, jogos grandes
Cr$ 250,00. e acentuou: Acho que isto é justo. Precisamos pensar
no povo. Foi quando o dirigente Michel Assef, aproveitando-se do
fato de a reunião ser secreta, mandou esta: Otávio, quem tem que
resolver o problema do povo é o Governo. Quem tem que resolver os
problemas do futebol somos nós.”
440
Estabelecia-se assim, de um lado, uma relação de oposição entre os
torcedores e os dirigentes, e de outro, uma relação de composição entre os
torcedores e os representantes do Estado na área esportiva. Com a queda dos
preços as revoltas foram interrompidas, mas um de seus frutos foi materializado
no segundo semestre de 1981: a instituição da ASTORJ. Ela permitiu uma
439
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de junho de 1981, p. 01.
440
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de junho de 1981, p. 05.
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aproximação ainda maior das torcidas com a SUDERJ uma sala no
Maracanãzinho foi oferecida à entidade e com o próprio Jornal dos Sports.
Além da tradicional seção Bate-Bola, o JS ofereceu à Astorj uma coluna
especial na página três, intitulada A voz da galera, onde as torcidas podiam dar
seus informes, como a convocação para suas reuniões semanais, às 19:00 hs, na
sua sala, com entrada pelo portão dezoito do estádio. E após um ano de
existência, a entidade já dizia contar com sessenta associações de torcedores
dos clubes da cidade.
Tal fato contribuiu para que, no ano seguinte à onda de protestos, uma
nova movimentação ocorresse nos meses de julho e agosto de 1982, com o
respaldo e a representatividade da associação. Falava-se agora não em boicote,
mas em Greve Geral, como na manchete de primeira página e na matéria
correspondente do JS: “Torcidas decretam greve”
441
. As informações relatavam
os resultados de uma reunião da Astorj, com dezesseis torcidas organizadas,
onde, por quinze votos contra um, a entidade deliberava a greve contra o
aumento dos ingressos. Segundo o presidente da ASTORJ, Armando Giesta, a
decisão se dava em função da “inadmissível desonestidade e falta de palavra
dos dirigentes”, que haviam acordado na última reunião do Conselho Arbitral a
não-alteração do valor das entradas. A fiscalização das torcidas, sob a forma
orgânica da Astorj, permitia-lhes um maior acompanhamento das posturas dos
dirigentes, captando e questionando suas incoerências.
Mas no dia seguinte, a vinte e nove de julho, as dificuldades internas da
Astorj também eram apresentadas pelo jornal com a chamada: “Galera dividida
esvazia greve”
442
. Nela, abordava-se a não-adesão de Russão do Botafogo e das
facções do Vasco à medida deliberada pela ASTORJ. De modo que os clubes
mantinham o preço antes estipulado e aguardavam a sua ratificação na nova
reunião marcada para o Conselho Arbitral. Enquanto isto, um editorial do
Jornal dos Sports, “Ingresso caro, salário baixo”
443
, deixava explícita a posição
do periódico no apoio irrestrito ao torcedor em geral e à greve da Astorj, em
particular. Não é possível saber em que medida esta matéria exerceu algum
grau de influência, mas o fato é que, transcorridos poucos dias, o jornal
441
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de julho de 1982, p. 01.
442
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de julho de 1982, p. 01.
443
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de julho de 1982, p. 02
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anunciava o resultado da reunião do Conselho Arbitral. Presidida por Otávio
Pinto Guimarães, com a participação da Astorj, novamente os torcedores
venciam a queda de braço com os dirigentes, convencendo e sensibilizando o
presidente da FERJ, tal como vinha estampado no JS: “Ingressos voltam a
custar Cr$ 300,00”
444
. Mais uma vez, atendidas as reivindicações através de
uma inédita Greve Geral, a ASTORJ cessaria a revolta e voltaria a suas
atividades cotidianas.
A exposição dessa seqüência de acontecimentos permite o fechamento do
capítulo com uma reflexão e uma tentativa de entendimento. À guisa de
conclusão, a obra do historiador britânico E. P. Thompson parece bem
apropriada, pois ela auxilia na elucidação de alguns episódios acima relatados,
descritos e reconstituídos em suas cores narrativas jornalísticas. Ao debruçar-se
sobre a experiência histórica de formação da classe trabalhadora inglesa nos
séculos XVIII e XIX, Thompson relativizou as visões estanques e tradicionais
de circunscrição do proletariado, operadas no interior do marxismo, visto como
subproduto inexorável da era do desenvolvimento técnico das forças produtivas
e das relações de produção. Em vez de reificações e de abstrações estruturais, o
autor deu ênfase ao processo ativo de elaboração da identidade de inúmeras
categorias profissionais que antecederam e sucederam a irrupção da Revolução
Industrial na Inglaterra. A concretude dos personagens e das relações sociais
evidencia seu caráter construtivo e indeterminado, nunca pronto e acabado, e
que o historiador deve captar em seu modus faciendi, ao invés de aceder ao
passado imbuído de postulados teleológicos, obtidos a posteriori.
“A classe acontece quando alguns homens, como resultado de
experiências comuns (herdadas ou partilhadas) sentem e articulam a
identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos
interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus.”
445
.
A recuperação de experiências concretas e reais de determinados
trabalhadores anônimos tecelões, mineiros, artesãos dentro de um preciso
tempo e espaço, em contraste com o desempenho apriorístico de papéis sociais
ad hoc, tal como entendido pela tradição funcionalista da sociologia
444
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de agosto de 1982, p. 01.
445
Cf. THOMPSON, E. P. A formação da classe trabalhadora na Inglaterra. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, vol. 1, P. 10..
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parsoniana, mostra o fazer-se da classe operária em meio às disputas referentes
aos salários e às condições de trabalho. Para Thompson, a arena destas lutas e
reivindicações é o único lugar efetivo de onde é possível se erigir uma
consciência de classe. O par ação-consciência é assim redimensionado, sem sair
contudo do horizonte materialista. O mesmo raciocínio relativo à classe
operária pode ser estendido às considerações do autor sobre a cultura popular
tradicional, empreendidas em artigos posteriores à sua obra clássica de 1963,
reunidos no livro Costumes em comum. Ao invés de focar a atenção, como a
tradição marxista estava acostumada, na vanguarda proletária revolucionária, o
historiador inglês preferiu aprofundar suas pesquisas nas ações e nas reações
ambíguas de uma cultura plebéia particular que, em meio às transformações
capitalistas em curso na Inglaterra, reclamou a manutenção de seus costumes e
de seus direitos arraigados desde tempos imemoriais, ao longo de várias
gerações.
A oposição popular à mudança da lei de preços fixada secularmente pelo
direito consuetudinário e estabelecida pelo modelo paternalista de relação entre
o senhor de terras e o camponês, como desvenda o ensaio “A economia moral
da multidão inglesa no século XVIII”, publicado na revista Past and Present
em 1971, foi apenas um dos casos geradores de uma cultura conservadora a um
só tempo tradicional e rebelde. Esta era dramatizadora da antiga querela
gramsciana entre o conformismo e a resistência, presente de maneira potencial
nas expressões da cultura popular. Já a cultura tradicional thompsiana tendia à
insurgência contra a usurpação de seus “usos costumeiros”, tornando-se
refratária a todo e qualquer processo de racionalização, de inovação e de
modernização econômica. Ao contrário da interpretação corrente acerca do
comportamento da multidão expresso por meio de motins tidos como
instintivos, irracionais e residuais , Thompson procurou transcender quer a
classificação pejorativa embutida no termo turba quer a visão economicista
redutora presente em muitos autores marxistas. Alicerçado na história inglesa
pré-industrial e nos ensinamentos da moderna antropologia social acerca da
reciprocidade das normas e das sansões, procurou decodificar a práxis dos
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trabalhadores, bem como suas expressões simbólicas, à luz da noção geral de
legitimidade e da “noção sancionadora do direito”
446
.
Esse resumo condensado das idéias do autor e da corrente historiográfica
a que pertence Hobsbawm publicou na mesma época duas obras em torno do
tema, Bandidos e Rebeldes primitivos contribuem para a compreensão das
formas de resistência elaboradas e protagonizadas pelas torcidas organizadas no
contexto aqui analisado, movidos por análogo sentimento de subtração e de
usurpação de seus direitos. Conforme apresenta o historiador Marco Antônio
Pamplona, a historiografia do protesto popular, desde a obra do inglês George
Rudé, A multidão na história, costumou circunscrever este tipo de ação coletiva
urbana a greves, rebeliões, revoltas, insurreições e revoluções encerradas no
mundo do trabalho e, logo, no plano político-econômico. Isto não nos impede
de propor a ampliação desse espectro da multidão às competições esportivas
que, ao lado de ocasiões cerimoniais e religiosas, foram alijadas do processo de
reflexão do marxismo, haja vista seu sentido tradicional passivo, supostamente
não-revolucionário. Foi preciso recorrer, de início, a outra linhagem de
pensamento que tematizasse ao menos o fenômeno. Assim, a proposição não
esteve ausente da classificação do psicólogo social e sociólogo norte-americano
Herbert Blumer, um prosseguidor das questões da antiga Escola de Chicago e
ele próprio responsável por cunhar o termo “interacionismo simbólico”
447
, que
subdividiu as ações coletivas da multidão em três ordens: a) as casuais, dentre
as quais integra as torcidas de futebol; b) as convencionais, onde inclui o
público dos grandes shows musicais; e c) as expressivas, em que se desenrolam
as manifestações político-partidárias
448
.
A casualidade admitida por Blumer no que se refere à generalidade dos
torcedores reunidos em um estádio tampouco contempla os graus de
agrupamento e de coesão específicos das torcidas organizadas e suas eventuais
formas de participação no futebol. A divisão impede a percepção da capacidade
demonstrada pelas torcidas na absorção e na agregação de comportamentos
verificados no contexto social em que estão inseridos, com sua capacidade de
446
Cf. PAMPLONA, M. A. “A historiografia sobre o protesto popular: uma contribuição para o
estudo das revoltas urbanas”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1996, n.º 17.
447
Cf. JOAS, H. op. cit., p. 157.
448
Cf. COSTA, C. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Editora Moderna,
1997.
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336
se apropriar, por meio de bricolagens, de outras ordens tipológicas da multidão.
É neste sentido que é possível perceber, ainda dentro do cânone marxista, a
efetivação de uma certa práxis e a obtenção em determinados momentos de
uma consciência corporativa no seio desses grupos, como sucedeu em
episódicos porém contundentes protestos, greves e boicotes contra o aumento
dos ingressos, protagonizados pelas torcidas cariocas no início da década de
1980. Tal como demonstrava Thompson em suas incursões à mentalité
tradicional camponesa, as ações das lideranças e vanguardas torcedoras no
ambiente do final do século XX orientavam-se de igual forma por uma noção
de direito e de legitimidade que lhes estava sendo subtraída em um conjunto de
transformações esportivas, com a até certo ponto trágica consciência de que
estas passavam cada vez mais ao largo de seu controle.
Nesse ponto, a perspectiva conservadora e insurgente da cultura popular
thompsiana pode ser relacionada às experiências acima descritas pelas torcidas
de futebol. O enfoque se coaduna com a categoria despossessão, elaborada por
muitos estudiosos europeus de torcidas organizadas para explicar a passagem
do amadorismo ao profissionalismo ou, dito em outros termos, para fazer
menção à perda de proximidade dos torcedores com o seu clube, uma vez que
desde fins da década de 1960 verificou-se a tendência crescente à
burocratização do universo clubístico. A administração do futebol passa a se
submeter mais e mais à modernização comercial e à racionalização
profissional, à maneira prevista pela interpretação weberiana do mundo
ocidental. No caso da vivência das torcidas do Rio de Janeiro, a reação a
mudanças concretas seja a majoração das entradas seja a venda de jogadores
à Europa e a insubordinação frente às sucessivas derrotas ou à fase crítica no
desempenho de um time, identificada na má administração de suas autoridades
esportivas, levavam ou a negociações conciliatórias com os diretores de clube
ou a rompantes contra os mesmos nas formas aqui descritas.
O imediatismo das ações grupais e os confrontos físicos diretos
estabelecidos remetiam a vivência dos torcedores de futebol a remotas
experiências coletivas presentes no mundo da sociedade, do trabalho e da
política. A tradição das insurreições populares na Europa identificava situações
análogas estudadas nas sociedades pré-capitalista ou recém-industrializada,
como o protesto contra o aumento dos alimentos ou a destruição das máquinas
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337
nas fábricas, o primeiro praticado pelos camponeses e o segundo pelos
luddistas. No contexto brasileiro de então, a ação direta era a tônica de muitos
movimentos sociais. Desde a década de 1970, a violência mais primária se
apresentara sob a forma de tumultos e quebra-quebra nos trens do subúrbio de
São Paulo e do Rio de Janeiro
449
. Como aponta Marly Rodrigues:
“Outra forma assumida pelos movimentos sociais urbanos durante os
anos 80 foi a ação direta. Ela abrange os saques, invasões de terrenos e
de conjuntos habitacionais e os quebra-quebras. Os quebra-quebras
orientam-se mais diretamente para as condições do transporte urbano,
trem e ônibus, cuja manutenção e qualidade de serviço são, quase
sempre, insatisfatórias. Em sua maioria originam-se dos atrasos e da
superlotação dos trens e acabam com a destruição de vagões e
estações ferroviárias com pedradas e incêndios. De 1980 a 1987 nas
capitais brasileiras sucederam-se quebra-quebras cujo saldo de feridos
e presos não deixa dúvidas quanto à carga de agressividade dos
manifestantes e das tropas que tentam controlar o acontecimento.”
450
O sociólogo Sérgio Miceli, em texto de época, agrega algumas
considerações sobre conflitos sociais e seus reflexos no futebol:
“Seria ilusório admitir que o mundo do trabalho detém o privilégio de
monopolizar os espaços em que as lutas sociais se manifestam. Na
Inglaterra do século XVIII, os camponeses expulsos de suas terras
revidaram envenenando tanques de peixe, matando ovelhas,
derrubando cercas e cometendo toda sorte de atrocidades contra os
nobres na calada da noite. Hoje o futebol poderia estar fazendo as
vezes da arena em cujo âmbito as questões sociais e o embate político
encontram linguagens dissimuladas para vir à tona. Não custa lembrar
que nem sempre o conflito irrompe onde a história européia nos ensina
a situá-lo.”
451
.
Mais afeitas ao instantâneo e ao furor momentâneo, porém não menos
informadas por uma moral que encontrava paralelo em outros padrões
associativos civis, as torcidas organizadas apenas insinuariam através da
ASTORJ seus bosquejos associacionistas e sua tentativa de constituir uma
entidade em moldes sindicais ou uma sociabilidade inspirada no modelo das
449
Cf. MOISÉS, J. A.; MARTINEZ-ALIER, V. “A revolta dos suburbanos ou ‘Patrão, o trem
atrasou’. In: MOISÉS, J. A. (et.al). Contradições urbanas e movimentos sociais. Rio de Janeiro:
CEDEC/ Paz e Terra, 1978.
450
Cf. RODRIGUES, M. A década de 80: Brasil, quando a multidão voltou às praças. São Paulo:
Ática, 1994, p. 62.
451
Cf. MICELI, S. “Corinthians. E o pão ?” In: Isto É. São Paulo: Editora Abril, 1977, n.º 42, p.
16.
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338
escolas de samba, em época histórica propícia ao engajamento e favorável ao
aparecimento de diversos movimentos sociais. O enquadramento sociológico
das torcidas em uma situação concreta e em uma moldura histórica particular
algo análogo às frames de Erwin Goffman , vivenciada na cidade do Rio de
Janeiro e no país, bem como a apreensão e a representação midiática do
fenômeno, foi um dos objetivos centrais deste capítulo, o que a todo instante se
tentou ressaltar e pontuar, em um diapasão que se estendeu da descrição do
contexto de fins da década de 1960 e se prolongou até a narração da vida
nacional no alvorecer dos anos 80.
Os obstáculos e as resistências para a construção de um projeto inter-
torcidas mais duradouro, apenas insinuados com a criação da ASTORJ, serão
analisados no próximo capitulo. À capacidade de produzir o entendimento e a
concórdia, contraponteia-se uma abordagem que emerge com base em uma
realidade paralela, simultânea, movida pela rivalidade e pelo confronto. O alvo
a partir de agora passa a ser os valores que permeiam a moral interna dos
grupos, em torno dos quais o reconhecimento do adversário entendido na
condição de torcedor do clube oponente ou de torcida organizada diferente é
preterido por sua contrapartida hostil, desqualificadora e desumanizadora do
outro.
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3
Genealogia da moral torcedora
3.1 Arqueologias da violência
“Da guerra dos opostos nasce todo vir-a-ser...”
Friedrich Nietzsche
A publicação em 1966 do livro de Michel Foucault, As palavras e as
coisas: uma arqueologia das ciências humanas, lançaria um desafio
epistemológico no cenário intelectual internacional não apenas para disciplinas
científicas como a Biologia, a Economia Política e a Lingüística. Ao lado das
ciências da vida, do trabalho e da linguagem, as ciências do tempo o
historiscismo, a historiografia de cunho positivista e os historiadores tout court
viram-se da mesma forma interrogados por uma crítica a suas categorias
apriorísticas, a seus procedimentos usuais, a seus critérios de validação interna
e a suas fontes tradicionais mais arraigadas. Embora ainda imerso naquele
momento nas questões de fundo do estruturalismo, sob o impacto da obra de
Lévi-Strauss na antropologia, de Lacan na psicanálise e de Barthes na
semiologia, o filósofo francês começava a esgueirar-se dos termos
estruturalistas habituais que dividiram antropólogos e historiadores das décadas
de 1940, 1950 e 1960, com as polarizações entre evento e estrutura, diacronia e
sincronia, continuidade e ruptura, cadeias de causalidade e cadeias de
significado.
A proposição de uma nova classe de palavras, inspirada em conotações
espaciais e na sugestiva metáfora arqueológica, o que seria aprofundado em sua
obra seguinte, A arqueologia do saber (1969)
1
, fez Foucault preterir o
continuum da história das idéias, seus “efeitos de superfície”
2
na epistémê da
cultura ocidental, e concentrar sua análise em indagações de inspiração
kantiana sobre os a priori históricos e sobre as condições de possibilidade do
entendimento e do conhecimento do homem, seja o sujeito transcendental seja
1
Cf. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986.
2
Cf. Id. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 1987, p. 12.
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340
o sujeito empírico. À busca pelos estratos e substratos mais recônditos das
camadas do saber a analogia do arqueólogo que reconstitui a vida cultural de
um povo a partir de seus traços materiais
3
, correspondeu a identificação do
momento em que, para o autor, a ruptura operada pelo Renascimento
transforma o ser humano em sujeito e objeto da ordenação dos discursos. A
demonstração se tornou possível quer através da invenção da positividade da
antropologia no século XVI, quer através do desvelamento da “ilusão das
origens”, tão cara a certos historiadores.
Com efeito, ao invés da definição de uma origem, que implicava nas
noções de linearidade e de causalidade, a escrita de Foucault se iniciava com a
prospecção de um começo, feito segundo ele de “surpresas” e “solavancos”,
mais do que de “regularidades” e “monotonias”, e culminava com o
reconhecimento das diferenças (o outro) em sobreposição às semelhanças (o
mesmo)
4
; em vez de uma história total, em que tudo pode ser remetido a um
centro originário, a um princípio regulador, a um núcleo gerador, o filósofo
propunha uma história geral, capaz de captar as “configurações descontínuas
do saber científico ocidental”
5
, com suas interações, dispersões, linhas de fuga
e correlações entre os fenômenos mais díspares e variegados. Ao contrário da
acepção comum dos historiadores quanto à idéia de arquivo, entendido como
lugar onde se encontram alojados, organizados e indexados os documentos, a
arché foucaultiana definia-o como o “sistema geral das formações e
transformações dos enunciados”
6
, no qual é possível perceber as condições de
possibilidade dos discursos inscritos em uma cultura, que depois vão se
converter também em práticas discursivas, em regimes de exclusão, em
tecnologias de poder, como no-lo mostram os estudos do autor sobre a loucura,
a clínica e a prisão.
Em ensaio sobre os fundamentos de Les mots et les choses, intitulado
“Arqueologia da arqueologia”, publicado por ocasião do lançamento do livro
no final dos anos 60, o filósofo brasileiro Benedito Nunes propunha a idéia de
3
Para uma diferenciação entre o passado tangível (arqueologia), o passado lembrado (memória) e
o passado registrado (história), ver a obra de David Lowenthal. Cf. LOWENTHAL, D. The past is
a foreign country. Cambridge: University Press, 1985.
4
Cf. OBRIEN, P.A história da cultura de Michel Foucault. In: HUNT, L. A nova história
cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 49.
5
Cf. NUNES, B. “Michel Foucault: genealogia do saber”. In: Filosofia contemporânea. Belém:
EDUPA, 2004, p. 183.
6
Cf. ibid., p. 186.
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341
que a ontologia de Heidegger era o verdadeiro paradigma da concepção de
Foucault. Nas palavras do crítico paraense, eis o lugar da História no
pensamento foucaultiano:
“Michel Foucault atribui à História posição singular entre as ciências
humanas. Ela é um ‘milieu d’accueil’ relativamente às outras
disciplinas. Estendendo a sua perspectiva às culturas e às sociedades, à
linguagem e ao trabalho, a História revela a condição do sujeito
humano, já situado num horizonte temporal. Sob esse aspecto, a
realidade histórica depende da abertura do tempo, dentro do qual o
sujeito e o objeto, levados pela mesma correnteza em que ambos
flutuam, jamais podem coincidir numa forma definida de
conhecimento. A qualquer momento, o conhecimento histórico pende
do ajuste precário entre o que sucedeu antes e o que se passa agora,
ajuste que se modifica pelo que vem depois. Pressupondo a sucessão
dos acontecimentos, a gestação das coisas umas pelas outras e do
homem por si mesmo, o conhecimento inclui o impensado. Em suma,
a História ‘montre que tout ce qui est pensé le sera encore par une
pensée qui n’a pas encore vu le jour’”
7
.
Ante a apresentação dessas aporias, não seria surpresa esperar uma
reação negativa de muitos historiadores franceses à obra Les mots et les choses
e aos questionamentos que punham em xeque os princípios metodológicos e os
paradigmas epistemológicos mais centrais daquele ofício, como ocorreu, por
exemplo, com as observações críticas de Pierre Vilar
8
. A tais ataques, o
conjunto da historiografia francesa da época, constituído tanto pelo marxismo
quanto pela escola dos Annales, reagiria de três maneiras principais: a
indiferença, a aceitação moderada e a confrontação
9
. A ignorância inicial em
torno de sua obra nos anos 60, que incluiu o seu não-reconhecimento como um
historiador avant la lettre, foi admitida pelo próprio autor, para quem sua obra
fora recebida “com um grande silêncio por parte da esquerda intelectual
francesa”
10
. Ao silêncio porém sucedeu, de um lado, uma assimilação de
determinados aspectos de seu trabalho e, de outro, uma rejeição integral a seus
7
Cf. NUNES, B. O dorso do tigre: ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 59, 67 e 76.
8
Cf. VILAR, P. “A memória viva dos historiadores – testemunho”. In: BOUTIER, J.; JULIA, D.
(Orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora UFRJ;
Editora FGV, 1998, p. 283-285.
9
Apud. O’BRIEN, P. op. cit., p. 37.
10
Cf. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Apresentação de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 1979, p. 02.
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342
postulados, com a alegação de uma ausência de método, de um menosprezo
pelos dados e de uma obscuridade irracionalista
11
.
Não obstante, a posição marginal do pensamento de Foucault no campo
historiográfico deve ser relativizada, uma vez que já em sua obra de estréia,
História da loucura (1961), o autor recebera elogios de Robert Mandrou e de
Fernand Braudel. Segundo este último, o caráter inovador do trabalho se referia
a uma tentativa de remontar aos “misteriosos caminhos das estruturas mentais
da civilização”
12
. Em abono a tal avaliação, Jacques Revel também apreciava a
obra de Foucault de maneira positiva, considerando-a a mais marcante para os
historiadores franceses desde a década de 1960, ao passo que Roger Chartier
reconhecia a influência recebida do autor para a sua investigação das práticas e
das representações culturais
13
.
Destarte, a existência de historiadores ora indiferentes ora céticos ora
entusiastas das proposições de Foucault fez com que suas idéias fossem alvo
tanto de resistências quanto de apropriações ao longo do tempo. Já nos anos
concomitantes à publicação de seus livros, em que pese a acentuada reserva
entre os profissionais da área, notadamente entre aqueles adeptos dos métodos
quantitativos e aqueles que chamaríamos de historiadores stricto sensu, é
possível observar ao menos a incorporação paulatina e parcial de sua
terminologia e de seu vocabulário nos domínios da História e das Ciências
Sociais. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a utilização da palavra
arqueologia.
De antemão, é necessário esclarecer que não se trata aqui de uma história
dos conceitos à maneira postulada por Reinhart Koselleck. Elaborada no
contexto intelectual alemão, a história dos conceitos, desenvolvida após a
publicação da tese de Koselleck, Crítica e crise em 1959, quando começaram a
ser levantados os aspectos práticos, teóricos e metodológicos desse novo campo
historiográfico, o que resultou em um Dicionário dos conceitos (1972), situava
o trabalho do historiador para além da hermenêutica ou da análise dos
11
Nesta linha de raciocínio, seria o caso de especular se, obsedado pelo “elogio da loucura” de
Erasmo de Roterdã, o autor não mais discernia entre uma “loucura sábia” e uma “loucura louca”.
Cf. MERQUIOR, J. G. “Erasmo, pensador iluminista”. In: As razões do Iluminismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
12
Cf. ibid. p. 45.
13
Apud. HUNT, L. “História, cultura e texto”. In: HUNT, L. (Org.). A nova história cultural.
São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 9 e 10.
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343
discursos. Ela propunha-se a indagar, amparada no tratamento seletivo das
fontes lexicográficas, o momento em que determinadas palavras ultrapassam o
sentido pragmático do instrumental cotidiano e assumem a forma de conceitos
como Estado, Revolução, História, Economia, Sociedade, Classe, Ordem, etc.
Estes são resultados de um processo de teorização e de reflexão em que fatos
lingüísticos possibilitam a inteligibilidade de realidades históricas, não obstante
a existência de variações semânticas e conotativas acionadas pelas forças
diacrônicas. Assim, o que se procura fazer a seguir é tão-somente um
acompanhamento das peripécias da recepção do termo no meio intelectual
francês
14
.
Disposto a imprimir um conteúdo particular à arqueologia foucaultiana
no terreno da historiografia, Michel de Certeau publica em 1975 o livro A
escrita da história, pela mesma editora Gallimard, que publicara a obra de
Foucault. Com uma narrativa fragmentada e avessa às totalizações, igualmente
pródiga em expressões de cunho metafórico, o historiador francês, de formação
religiosa, examinava a fabricação e a emergência do texto historiográfico à luz
da clivagem estabelecida por Foucault no que tange à formação do mundo
moderno. Se a verdade do texto até então estava assegurada pela autoridade
religiosa, através da interpretação das palavras sagradas, o corte agora se dava
por meio de um progressivo descolamento entre a realidade e a linguagem,
entre o sacro e o profano, entre o presente e o passado, entre a escrita e a
oralidade naquele que foi o grande período de transição medievo-renascentista.
Propenso a acolher, como o filósofo, as questões contemporâneas de sua
época, em especial a psicanálise leia-se o inconsciente , e a etnografia
leia-se a alteridade , Certeau analisava a maneira pela qual o discurso
historiográfico moderno, dissociando-se do mito e da religião e associando-se à
escrita científica durante os últimos quatro séculos do Ocidente, engendrava
práticas significantes capazes de preencher o vazio dos lugares franqueados
pela repartição dos saberes e articulava a veracidade da letra à eficácia de um
novo poder emergente:
14
Cf. KOSELLECK, R. “Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos”. In: Revista
Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1992, n.º 10.
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“A arqueologia foi para mim o modo através do qual tentei
particularizar o retorno de um ‘reprimido’, um sistema de Escritas do
qual a modernidade fez um ausente, sem poder, entretanto, eliminá-lo.
Esta ‘análise’ permitia, ao mesmo tempo, reconhecer no trabalho
presente um ‘trabalho passado, acumulado’ e ainda determinante. (...)
Esta lacuna, que assinala o lugar no texto e questiona o lugar pelo
texto, remete, finalmente, àquilo que a arqueologia designa sem o
poder dizer: a relação do logos com uma arché, um ‘princípio’ ou
‘começo’ que é seu outro. Este outro, sobre o qual se apóia e que a
torna possível, a historiografia sempre pode colocá-lo ‘antes’, levá-lo
cada vez mais para trás, ou ainda, designá-lo através daquilo que, do
real, autoriza a representação, mas não lhe é idêntico. A arché não é
nada daquilo que pode ser dito. Ela só se insinua no texto pelo
trabalho da divisão ou com a evocação da morte. (...) A ‘razão’
científica está indissoluvelmente casada com a realidade que retoma,
como sua sombra e seu outro, no momento em que a exclui. Essa
mobilização da historiografia nos limites que especificam e
relativizam seu discurso se reconhece, ainda, sob a forma mais
epistemológica dos trabalhos consagrados aos modos de diferenciação
entre ciências. Também, nesse caso, Foucault tem valor de signo.”
15
.
À maneira do método arqueológico, Michel de Certeau estabelecia as
conexões entre a produção do discurso historiográfico e a autonomia da política
frente à esfera religiosa, o que podia ser percebido em obras como O príncipe,
de Machiavel. As próprias origens dos arquivos modernos constituíam, para o
autor, uma combinação particular de grupos de eruditos, de novos espaços (as
bibliotecas) e de novas práticas (a classificação, a impressão e a reprodução). A
emergência no Ocidente das coleções e dos colecionadores, que teve lugar na
Itália com o patrocínio dos grandes mecenas, atendia à criação e à produção de
novos objetos, em que o passado se tornava também uma “ficção do
presente”
16
, satisfazendo por sua vez a necessidade de apropriação da história
por parte de grupos familiares e de elites políticas. O autor assim discorria
sobre os critérios operacionais da racionalização de um saber que passava a
avalizar os elementos do passado dignos de lembrança e aqueles, ao contrário,
destinados ao esquecimento, não-representados, não-classificados, soterrados
como dejetos pela tradição ocidental.
Dentre esses elementos do passado pouco prestigiosos, ignorados ou
rechaçados pelo controle da razão instrumental dominadora, um deles, o
sentimento do medo, seria estudado por um colega de Foucault do Collège de
15
Cf. CERTEAU, M. de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p.
25 e 50.
16
Cf. ibid., p. 21.
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345
France, Jean Delumeau, em livro publicado em 1978 sob o título de História
do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. O historiador francês,
com formação escolar religiosa como Certeau, aluno de um colégio interno
salestiano, investigava as causas do silêncio da tradição em relação à paixão
aristotélica menos prestigiada na escala de valores do Ocidente, como observou
Renato Janine Ribeiro. Em busca deste sentimento de insegurança, descrevia-se
o contexto histórico em que, da Peste Negra às guerras religiosas, se deu a
insidiosa escalada do medo na Europa, em meio à “aurora dos tempos
modernos”
17
. Se os valores enaltecidos pela nobreza e pela burguesia
ascendente na Renascença eram os mesmos da tradição clássica a honra, a
coragem, a valentia , o autor destacava as possibilidades de enfocar o seu
avesso, aquilo que poderia ser os negativos da História.
A operação de camuflagem do medo e de suas sombras os temores, as
covardias, as fraquezas deu-se através do vasto caudal da literatura épica e
dos romances cavalheirescos medievais, que apraziam tanto a fidalguia quanto
a plebe. Enquanto Foucault situava seu exame nos subterrâneos do dito e do
dizível dos enunciados científicos, com uma análise preliminar do sujeito no
quadro de Velásquez, Las meninas, uma “representação da representação
clássica”, em que o autor decifra uma miríade de olhares do pintor, do
espectador, dos personagens , Delumeau por seu turno penetrava nos “móveis
ocultos de uma civilização”
18
, valendo-se das mesmas fontes iconográficas,
com alusão à fobia coletiva contida numa tela de Goya, O pânico, onde uma
multidão amedrontada se dispersava em polvorosa, sem rumo, sob um céu
sombrio. Aqui, a rigor, a incidência de Foucault na eleição de temáticas não-
canônicas entre historiadores como Delumeau deve ser vista de maneira apenas
indireta, ou oblíqua, uma vez que naquele momento a história das mentalidades
já apresentava um considerável avanço e a historiografia dos Annales seguia
firme com seus “novos objetos”, “novos temas” e “novos problemas”
19
.
Em outras ocasiões, o legado de Foucault no repertório de temas dos
historiadores se confundia explicitamente com a fortuna do termo arqueologia,
17
Cf. DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 18.
18
Cf. ibid., p. 22.
19
Cf. NORA, P.; LE GOFF, J. (Orgs.). História: novos temas, novos problemas, novos objetos.
Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1988, 3 vols.
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346
podendo ser localizada em algumas outras notáveis obras historiográficas no
final da década de 1970. Ainda a título de exemplo, a tese de doutoramento de
François Hartog, defendida em 1979 e publicada em livro no ano seguinte com
o título de O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro,
conteria, embora de maneira livre e incidental, duas alusões ao termo. Em uma
passagem, depois de considerar a importância da visão como o sentido
fundador da historiografia em seu alvorecer, o ato de ver – hístor – sendo a
fonte privilegiada no fornecimento dos indícios que permitiriam ao historiador
ao mesmo tempo testemunhar as guerras e distinguir o visto do ouvido, isto é,
diferenciá-lo do ato de ouvir típico das histórias decantadas pelas musas na
tradição homérica e hesiódica, o autor qualificava sua abordagem como “uma
arqueologia do olhar” do historiador grego
20
. Em outro momento da narrativa,
Hartog teceria explícitos elogios à obra O nascimento da clínica, segundo ele
uma extraordinária “arqueologia do olhar médico” empreendida por Foucault,
em que este põe em interrogação não apenas o estatuto do visível como as
próprias condições de visibilidade
21
.
A influência do filósofo na França não se restringiria à Historiografia e se
estenderia também ao âmbito da Antropologia. É pelo menos o que sugere a
leitura do longo ensaio de Pierre Clastres, A arqueologia da violência: a guerra
nas sociedades primitivas (1977), publicado na revista francesa Libre e reunido
em coletânea póstuma com tradução homônima no Brasil
22
. Conquanto seja
pouco plausível a filiação de Clastres ao âmago das questões foucaultianas,
improbabilidade endossada pela ausência de qualquer menção ao autor no
decurso do ensaio, o etnógrafo, que por seu turno foi aluno de Deleuze,
conheceu Foucault no Brasil em 1965 e participou com Guattari das agitações
estudantis de 68
23
, tinha o propósito de compreender a dimensão antropológica
e filosófica do poder, com base na sua experiência com povos ditos primitivos.
Em específico, sua atenção repousava na natureza da chefia indígena e no
fundamento dos confrontos nas sociedades selvagens, após anos de pesquisas
20
Cf. HARTOG, F. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 39.
21
Cf. ibid., p. 279.
22
Cf. CLASTRES, P. Arqueologia da violência. Prefácio de Bento Prado Jr. São Paulo: Cosac &
Naify, 2004.
23
Estas informações são dadas pelo filósofo Bento Prado Jr., em entrevista que consta da
apresentação ao volume. Cf. ibid., p. 24 e 26.
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de campo feitas com aborígines da América do Sul, notadamente com os índios
Guarani, Yanomani e Guayaki. Como Foucault, o autor de A sociedade contra
o Estado (1974) desviava-se na década de 1970 das formas elementares do
estruturalismo troca, comunicação e reciprocidade , a fim de melhor
entender os mecanismos políticos de funcionamento das sociedades regidas por
visões de mundo não-ocidentais.
Se não é possível precisar o sentido exato do termo arqueologia tal como
empregado no ensaio de Clastres, percebe-se ao longo do texto o intuito do
autor de refutar, um a um, os enunciados e as representações mais
generalizadas acerca dos grupos indígenas no que concerne ao ímpeto
guerreiro. O interesse pela “forma ao mesmo tempo mais brutal e mais coletiva
da violência”, a guerra, fazia o antropólogo debruçar-se sobre as três principais
teorias vigentes no campo da etnologia a respeito da função do comportamento
agressivo nas sociedades primitivas, a saber: a naturalista, a economicista e a
estruturalista.
Grosso modo, a primeira, apresentada por Leroi-Gourhan, concebia o ato
de guerrear como uma motivação e uma finalidade inerentes à espécie humana
no provimento de seus meios de subsistência. Análoga à caça por alimentos na
natureza, o uso da violência seria a técnica codificada da agressividade
instintiva do homem, reveladora da sua condição animal. Já a segunda
concepção, a economicista, formulada no século XIX por vários autores
evolucionistas em suas variantes popular, erudita ou marxista, explicava a
guerra nas sociedades primitivas com base na pressuposição da escassez de
bens materiais decorrentes da incipiência das forças produtivas e do modo de
produção doméstico. O conflito armado seria decorrência da necessidade de
aquisição de produtos entre comunidades fragmentadas concorrentes, que se
encontravam em estágios civilizatórios inferiores. A terceira função para a
guerra entre os selvagens, elaborada por Lévi-Strauss em pequeno opúsculo dos
anos 40, via os embates como resultado de interações entre povos cujo sistema
de trocas não havia alcançado sucesso. Segundo a concepção estruturalista do
ser primitivo, as trocas comerciais constituiriam guerras potenciais pacificadas
e a guerra, desvios acidentais no sistema ideal de permutas materiais e
simbólicas.
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348
Dentre as teorias descritas, estranha apenas a ausência da explicação
funcionalista, que no Brasil seria representada pela tese de doutorado do
sociólogo Florestan Fernandes, A função social da guerra na sociedade
tupinambá (1951). Talvez em um deslize eurocêntrico, o antropólogo francês
tenha deixado de considerar esta volumosa obra que passa da repercussão da
guerra na estrutura psíquica para a análise das conexões com a estrutura social.
Ao tratar do canibalismo como um “fato social total”, Florestan ressaltava que,
em uma sociedade de guerreiros, a existência do inimigo era condição essencial
para a produção e para a reprodução da vida social interna. Sem descurar de
uma explicação geral para a teoria sociológica da guerra, seja Maquiavel, Karl
Von Clausewitz ou William James, o sociólogo procedeu a uma meticulosa
análise comparativa dos relatos legados pelos cronistas europeus que haviam
entrado em contato direto com os tupinambá no litoral brasileiro ao longo do
século XVI. Conforme sintetiza Roque de Barros Laraia no prefácio:
“Ao descrever a guerra tupinambá, o Autor fez uma minuciosa
etnografia da cultura material bélica, da organização dos grupos
guerreiros, do papel das lideranças, bem como das táticas utilizadas.
Analisou detalhadamente a importância da vingança como principal
elemento causal. Destacou a importância do ritual antropofágico como
elemento central do processo de ‘destruição’ do inimigo e da
satisfação ao espírito de quem está sendo vingado. Fez uma
interessante comparação do ritual funerário com o ritual de execução,
mostrando que enquanto o primeiro pretende ‘assegurar que a alma do
morto atinja a região dos ancestrais’, o segundo pretende exatamente o
contrário com a destruição da alma do executado por meio do
esmagamento de seu crânio’.”
24
.
Apesar da ausência da vertente funcionalista, o fundamento econômico
que subjaz a cada uma das explicações alinhavadas é o ponto de partida para a
crítica de Pierre Clastres. O deslocamento do argumento da esfera econômica
para o plano político leva Clastres a reconhecer a quase universalidade e
onipresença da violência na vida social selvagem. O autor estabelece aqui
também uma antinomia entre a arqueologia da violência primitiva e as teorias
modernas do Estado, sobretudo a vertente contratualista hobbesiana, que vê a
guerra como um fenômeno negativo, um mal desagregador que impede a
coexistência dos homens em sociedade. De modo inverso, para Clastres, a
24
Cf. FERNANDES, F. A função social da guerra na sociedade tupinambá. Prefácio de
Roque de Barros Laraia. São Paulo: Editora Globo, 2006, p. 13.
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imanência da violência entre os primitivos não é um sinal da guerra de todos
contra todos que justificaria a edificação de um ente tão mítico quanto
fantasmagórico imaginado por Hobbes, o Leviatã, mas a satisfação de um
desejo de autonomia frente ao estrangeiro. A realidade etnográfica tampouco
constatava qualquer tipo de monopólio da força física, à Weber ou à Elias, por
parte de um segmento diferenciado do corpo da sociedade, já que entre os
índios o chefe da tribo é um representante destituído de atribuições de mando.
A ausência de gradações hierárquicas e a indistinção entre comando e
obediência implicariam no reconhecimento da positividade do ato de guerrear.
Este se assentaria na manutenção de um ideal autárquico, expressão da vontade
de preservação da soberania sempre ameaçada pela ingerência de vizinhos ou
terceiros.
A vitalidade do modo de ser ameríndio, potencializada pela permanência
das práticas guerreiras, mobilizaria um sistema de alianças feito de amigos e de
inimigos, que teria por fim último não a troca, como queria Lévi-Strauss, mas a
conservação da liberdade e da integridade. Neste sentido a paz não era nem
esperada nem almejada, situando-se fora do horizonte de expectativas do
selvagem. Se o índio quer a guerra é porque preza a liberdade, eis o silogismo
clastriano. A ótica de Pierre Clastres veria tais ensinamentos em função da
seguinte contraposição: quanto mais se atribuía ao Ocidente a beligerância
motivada pela estratificação social, pela divisão econômica em classes e pela
dominação política desde a descoberta do Novo Mundo, mais o antropólogo
parecia admirar a realidade etnográfica da guerra entre os índios, que
combateriam não para dominar outrem, mas para manter sua sociedade livre,
indivisa e independente. Em suma, a exaltação da finalidade para a qual entrava
em ação o espírito combatente indígena caminhava pari passu com seu duplo
negativo, isto é, com o objetivo nada exemplar a que se consagrava a guerra no
Ocidente. Hobbes quer súditos, enquanto Clastres, soberanos.
Assim, a alteridade especular de Clastres só poderia encontrar o outro
fora dos domínios da civilização ocidental. Mas, quanto aos valores agonísticos
e à sua relação entre meios e fins, pode-se citar estudiosos na França que,
aproximando história e antropologia, se voltariam de igual maneira para a
sondagem dos conflitos mais arquetípicos presentes nas mais antigas
civilizações indo-européias. Esta seria de igual modo uma forma de encontrar
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experiências distintas nas concepções de confronto, embora dentro dos quadros
da formação do Estado no Ocidente. À margem do influxo da arqueologia,
valendo-se mesmo desse termo em sua acepção mais tradicional e descartando
portanto qualquer sentido heterodoxo, como o proposto pelos micropoderes de
Foucault, uma floração de antropólogos helenistas do final dos anos 60 se
dedicava a estudar o significado da guerra nas sociedades gregas com um viés
histórico e estrutural. Em 1968, sob a direção de Jean-Pierre Vernant, vinha a
lume a coletânea de pesquisas Problèmes de la guerre en Grèce ancienne, para
a qual colaborava uma equipe de estudiosos ingleses, norte-americanos e
franceses como Moses Finley, Marcel Detienne, Pierre Vidal-Naquet, entre
outros, inspirados nos estudos clássicos do sociólogo Louis Gernet sobre o
mundo antigo
25
.
Embora bem mais afeito do que Clastres à voga lévi-straussiana, Vernant
dedicava boa parte de sua atenção à questão da guerra na Grécia tendo como
fulcro analítico as suas implicações na esfera política. Conquanto não excluísse
a dimensão do comércio, da religião e do parentesco, a antropologia histórica
de Vernant, indagadora das formas mentais e simbólicas do homem antigo, era
congruente com a perspectiva de Clastres na medida em que a guerra não era
percebida pelos gregos como uma anomia disruptiva, como um domínio à
parte, mas como um dado constitutivo da realidade cotidiana, tal qual o
nascimento e a morte. A guerra se apresentava às cidades-Estado como uma
possibilidade sempre iminente. Igualmente orgulhosas de sua independência, as
pequenas cidades gregas da época clássica viam a guerra como um fenômeno
natural. A supremacia a que aspiravam os cidadãos de cada uma das polis não
visava, segundo o autor, a uma dominação e a uma submissão da cidade
circunvizinha, ao menos até o período em que Atenas, frente à guerra contra os
persas, tentou impor sua hegemonia sobre os espartanos e os demais cidadãos
gregos. Estes vivenciaram então uma experiência histórica singular frente à
guerra durante período considerável de tempo.
Discorrendo sobre essa realidade, Vernant e seu grupo procuravam
apresentar as mudanças nos tipos de enfrentamento que se sucederam do
25
Cf. VERNANT, J.-P. (Org.) Problèmes de la guerre en Grèce ancienne. Paris: Mouton,
1968. A respeito da obra de Vernant, ver a dissertação de mestrado de Felipe Brandi. Cf.
BRANDI, F. Entre o mito e a história: sobre o estruturalismo de Jean-Pierre Vernant. Rio de
Janeiro: Dissertação de Mestrado em História Social da Cultura / PUC-Rio, 2001.
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período considerado pré-político à época helênica clássica. A multiplicidade
dos aspectos assumidos pelas formas de combates variava em conformidade
com seu lugar, com sua função e com sua significação na sociedade. Na
apresentação ao trabalho, Vernant extraía desta variedade dois momentos
cruciais que equivaliam, por sua vez, a dois esquemas modelares contrapostos
entre si, como será visto a seguir.
O primeiro momento, anterior ao século VI a.C., corresponde ao das
epopéias de Homero, denominado também de pré-história política da Grécia.
Ele era sublinhado como o período em que se presenciou uma ausência de
fronteira entre a vingança privada e a guerra propriamente dita. Com o
desconhecimento de organização judiciária baseada no princípio da Dikê
(justiça), que na iconografia grega se confundiria ainda com a figura de
Nêmesis (vingança)
26
, as represálias eram situadas na esfera das relações
comerciais inter-familiares e levavam à animosidade particular de umas perante
as outras. O reconhecimento dos inimigos no comércio, sobretudo os
estrangeiros, associava-se no vocabulário grego ao termo xenos, donde a
palavra xenofobia. Uma sucessão de crimes, raptos de mulheres, expedições
guerreiras e vendetas se seguia à deflagração das hostilidades, graças às quais
se erigia aos poucos um sistema de oposições e de alianças familiares. Os
sistemas de troca e a vivência da guerra tornavam a violência latente na
sociedade, uma possibilidade constante, de modo que era difícil dissociar aos
olhos dos gregos as forças do conflito e as forças da união. Neste sentido,
mesmo a guerra e a paz não eram vistas como pares antitéticos.
Com base em Platão, estabelecia-se uma diferença entre a discórdia e a
guerra como dois tipos de confronto principais: a primeira era aquela que dizia
respeito às famílias em sua dimensão interna intragrupal e a segunda, aquela
que punha em consideração as famílias em âmbito externo, inter-grupos
27
. O
casamento entre membros de famílias opostas era uma das maneiras
encontradas para arrefecer os ânimos combatentes ou ao menos para contornar
a exacerbação de tais enfrentamentos de caráter privado entre parentelas rivais.
As festas também possuíam eficácia integradora. Além disto, os ritos de
26
Cf. HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva,
1971, p. 107.
27
Cf. VERNANT, J.-P. op. cit., p. 11.
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iniciação masculina, com suas ambivalências entre o lúdico e o agônico, eram
ainda outro recurso eficaz. Destinadas aos adolescentes, os efebos, as práticas
rituais estavam inscritas no ciclo de socialização dos jovens na comunidade,
pondo-os à prova e o situando-os na fímbria entre o jogo e a guerra:
“Des pratiques culturelles, qui se maintiendront à travers toute
l’histoire grecque, témoignent de cette intime solidarité entre
affrontement et association. Les rites dits de combats fictifs
comportent souvent une signification guerrière, mais il en est qui
débordent le domaine proprement militaire et dont la portée plus
générale: dans le moment même où le groupe, rassemblé à l’occasion
de la fête, affirme son unité, les luttes rituelles traduisent les tensions
sur lequelles repose son équilibre, la confrontation entre les élements
divers dont il est constitué. La fête grecque n’implique pas seulement,
entre participants, des attitudes de communion; la lutte est une de ses
composantes sociales et psychologiques essentielles (...). Ces batailles,
qui ne sont pas toujours purement fictives – elles exigent parfois que
le sang coule , utilisent d’autres armes que celles de la guerre, le plus
souvent des pierres et des batons (...). Mais dans tous les cas et quelle
que soit son orientation, le rite possède une vertu d’intégration et de
cohésion sociales. C’est à travers les luttes et compétitions que le
groupe fait l’éxperience de sa solidarité comme si, en lui, les liens
sociaux se nouaient suivant les mêmes lignes que dessine le jeu des
rivalités.”
28
.
O segundo momento, entre os séculos VI e V a. C., compreendia o
âmbito da formação do espaço público da polis. Nele, para Vernant, a guerra é
destituída de sua feição familiar, deixa de ser complementar às trocas
matrimoniais inter-cidades e passa a ser atributo exclusivo dos diferentes
Estados. De igual maneira, o ethos heróico presente nas poesias homéricas vê
cessar a força inquietante da hybris mitológica, a função demiúrgica do
guerreiro micênico se esvai, e a guerra se enraíza nas práticas institucionais da
cidade. No lugar dos semideuses gregos, sobrevêm os hoplitas, soldados da
infantaria pesada, que alargam a sua base na sociedade. Em substituição à elite
formada por cerca de uma centena de nobres guerreiros, alinham-se milhares de
camponeses em defesa da cidade, hostes que chegam a constituir um terço dos
cidadãos e homens-livres da polis. A coragem e o furor dos heróis acedem à
virtude dos hoplitas, que se caracteriza pelo autocontrole e pelo sangue-frio. A
28
Cf. ibid, p. 12 e 13.
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capacidade de refrear os impulsos entre os novos guerreiros faz-se mediante a
disciplina e a intensidade dos treinamentos
29
.
As ligações políticas encerram uma natureza distinta dos antigos elos
familiares no seio daquelas comunidades, o que traz implicações também para
o tipo de interação com as demais cidades. O Estado, como é sabido, é
antinômico à família, ele não se soergue na Grécia através de um somatório de
círculos familiares concêntricos presentes em uma mesma localidade mas, ao
contrário, a despeito delas. Tornando-se coisa pública, sob a responsabilidade
exclusiva do Estado, a guerra deixa de se estabelecer na esfera dos indivíduos
ou das rixas de grupos particulares. Diferente de Clastres, não se observa na
antropologia histórica de Vernant uma mesma obsessão, por assim dizer, anti-
estatal, uma vez que nesse momento não há separação entre o Estado e os
habitantes das cidades. Ou seja, não se verifica um corpo militar especializado
e preparado para a guerra, como o fora antes, quando o ethos guerreiro tinha o
seu tônus especial, carregado de heroísmo. Na democracia ateniense, todos
eram responsáveis pela defesa e pela proteção do território frente às ameaças
externas.
Assim, ao invés de uma ruptura, há um prolongamento, uma homologia
entre o Estado e o cidadão, da mesma maneira que o há entre o Estado e a
guerra. Ser um soldado equivale a ser um cidadão, o que na Grécia de então
significa ser aristocrata ou proprietário de terras recém-chegado do campo. A
guerra é uma tomada de decisão coletiva, fruto de um debate público feito em
Assembléia pelo conjunto dos membros do mundo cívico. Ela obedece,
portanto, a regras preestabelecidas, que não prevêem estratégias secretas para
surpreender o oponente no campo de batalhas. As táticas militares são ainda
desconhecidas nesse período e somente passarão a ter importância com a
formação das cavalarias. Salta à vista assim essa obediência civil nos conflitos
a preceitos bem determinados, norteados por uma ética muito específica,
símbolo das virtudes e das lealdades que devem presidir a arte do combate. Em
29
As etapas da guerra na sociedade grega são expostas com cunho panorâmico e introdutório pelo
historiador Marcos Alvito. Cf. ALVITO, M. A guerra na Grécia antiga. São Paulo: Ática, 1990,
p. 25.
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definição sumária, Vernant propõe que a guerra é a continuação por outros
meios do jogo político dos Estados
30
.
A luta entre as cidades-Estado que pontilham a bacia do mar Egeu
compreende um sistema auto-referenciado, que exclui por exemplo os bárbaros
desse tipo de enfrentamento. Estes últimos que, como assinalava Niklas
Luhman, seriam relegados no Ocidente à condição de “emblema da
inferioridade cósmica”
31
. O ideal agonístico do homem grego não tem por fim
o aniquilamento do adversário, mas simplesmente a afirmação da supremacia,
com seus atributos honoríficos de prestígio, poder e status, de uma polis ante a
rival. Assim ocorria entre Argos e Esparta, entre Atenas e Egina, entre Calcis e
Eretria. Em virtude disto, a paidéia grega passa a incluir a aprendizagem da
ginástica, sendo os exercícios físicos elementos indispensáveis à conformação
do espírito e à pujança do corpo do cidadão-guerreiro
32
. Nos ginásios, tem
origem tanto a figura do hoplita quanto a do flautista. O primeiro começa a
aprender as evoluções coletivas e coordenadas em preparação para o combate,
ao passo que o segundo, o tocador de flauta, é aquele indivíduo cujo som tem a
incumbência de insuflar o ânimo dos combatentes, por meio do ritmo, da
coesão e do estímulo à marcha nas batalhas.
Esse modelo esquemático proposto estará sujeito, como o autor mesmo
admite, às nuances, às transformações e ao próprio devir histórico. No século
IV a. C., o recrudescimento do mecenato guerreiro, a complexificação das
falanges e a multiplicação das lógicas de violência empregadas pelas armadas
navais, com suas demandas financeiras e com suas requisições por táticas mais
sofisticadas, levam Vernant a afirmar que a guerra perde, desde então, a
plenitude de seu sentido “político”
33
. Não que as cidades sucumbam. A
mudança de escala e a entrada de novos atores provocam a eliminação das
regras tradicionais do jogo, com a supressão da competição organizada em prol
de uma competição generalizada, sobretudo em seguida à Guerra do
Peloponeso narrada por Tucídides. A função guerreira volta a ser delimitada
30
Cf. ibid., p. 18.
31
Apud SLOTERDJIK, P. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade
moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 40.
32
Sobre a Paidéia, ver a opulenta e completa obra do helenista alemão Werner Wilhelm Jaeger.
Cf. JAEGER, W. W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989. A
respeito da ginástica, ver o ensaio do cientista político Pierre Chambat. Cf. CHAMBAT, P. “La
gymnastique, sport de la république ?”. In: Revue Esprit. Paris: s.e., 1987, n.º 125.
33
Cf. VERNANT, J.-P. op. cit., p. 20.
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como um fenômeno à parte, constituída por confrarias militares especializadas
e por elites combatentes.
A similitude com o tipo de rivalidade característica dos Jogos Olímpicos
pan-helênicos em torno da qual Roger Caillois teorizou sobre a âgon grega
não tem mais o seu vigor metafórico. Sobre as Olimpíadas, assim se referia o
historiador Paul Veyne: “Aux jeux Olympiques, seuls les Grecs participaient
aux concurs atlhétiques; les Barbares pouvaint y assister mais les femmes et les
esclaves étaient exclus du public”
34
. Em lugar da lógica integrativa olímpica, a
conquista da hegemonia, o afã pela destruição do outro até a morte – tal qual
faziam os hebreus, os romanos, os hititas e o desejo de dominação a qualquer
custo do inimigo tornam-se imperantes. O cenário não mais arbitrado sob a
invocação dos mesmos deuses afeta até mesmo a unidade da Hélade. Neste
aspecto pelo menos, poder-se-ia dizer que as abordagens de Vernant e Clastres
parecem convergir entre si, com a identificação de uma espécie de mito de
nascimento da dominação imperial no Ocidente.
Independente de tais vicissitudes, o quadro esquematizado por Vernant é
importante na medida em que ele apresenta, neste ponto, uma impressionante
afinidade com outra obra a ser aqui enfocada, na qual volta a despontar a
relação triangular entre a guerra, o jogo e a política. Os breves apontamentos
sobre a guerra entre os gregos conduzem-nos à obra de Norbert Elias, autor que
desenvolve para outro contexto histórico uma explicação muito aproximada do
tipo de violência aqui exposto, seja em relação à Grécia antiga seja em relação
à formação do Estado moderno no Ocidente.
Sociólogo de origem judia, aluno-assistente de Karl Mannheim na
London School of Economics, Elias foi responsável por uma obra iniciada nos
anos 30 na Alemanha, mas ofuscada pela segunda guerra mundial e pelo
nazismo, que o obrigou a emigrar do solo alemão. Depois de passar por Paris e
de tentar se radicar na capital inglesa, fixa-se em uma universidade de menor
importância em Leicester na Inglaterra. Lá, vem a desenvolver uma série de
reflexões sobre esporte e violência, amparado em seu sólido conhecimento
acerca da cultura e da filosofia grega. Em específico, Elias analisa o ethos
guerreiro e a virtude combatente conhecida como arete busca da excelência
34
Cf. VEYNE, P. “Olympie dans l’Antiquité”. In: Revue Esprit. Paris: s.e., 1987, n.º 125, p. 08.
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, que extrai do livro A política de Aristóteles, assim como sorvera da poética
aristotélica os conceitos de mimesis e de catharsis.
Apesar da coincidência na abordagem da figura do guerreiro aristocrata,
arquétipo caro também à análise de Nietzsche sobre a constituição moral do
homem ocidental, a ausência do sociólogo nas reflexões dos pesquisadores do
Centre de Recherches Comparées sur les Sociétés Anciennes pode ser
explicada, entre outros fatores, pelo longo período em que seus livros ficaram
sem tradução na França, o que ocasionou o desconhecimento de seu trabalho no
cenário acadêmico francês até meados da década de 1980
35
. Em contrapartida,
é intrigante a ausência do livro organizado por Vernant na obra de Elias, visto
que este se vale de fontes francófonas sobre a Grécia antiga, como por exemplo
Pierre Ducrey, da École Française d’Athènes, cujo livro Le traitement des
prisonniers de guerre dans la Grèce antique data justamente de 1968, mesmo
ano do volume de Vernant.
36
.
A essa altura já sobejamente conhecida, a trajetória de Elias se inicia em
1933 com a publicação de um estudo sobre a sociedade de corte na França, no
qual empreende uma espécie de etnografia da realeza no palácio de Versalhes.
A obra tem prosseguimento em um duplo volume, publicado pela primeira vez
em 1939 na Basiléia, com a exposição da teoria do processo civilizador, em
que o autor divisa um sentido específico para o conjunto de transformações
observadas nos costumes e na moral entre os séculos XVI e XVIII. Com a
diferenciação do percurso assumido pelo conceito de kultur na Alemanha e
pelo conceito de civilisation na França, Elias põe em evidência as progressivas
alterações no plano das sensibilidades e dos afetos, que dizem respeito à adoção
de uma série de hábitos de etiqueta, ao autocontrole de impulsos instintivos e à
internalização da repulsa a condutas agressivas. Essas lentas mutações de
ordem comportamental eram não apenas veleidades idiossincráticas de
determinados grupos sociais em busca de distinção; elas variavam em
35
Em ensaio biobibliográfico, o antropólogo José Sérgio Leite Lopes acompanha o itinerário
intelectual de Norbert Elias, com base nas traduções francesas de sua obra. Cf. LOPES, J. S. L.
“Esporte, emoção e conflito social”. In: Revista Mana: Estudos de Antropologia Social. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1995, vol.1, n.º 1.
36
Cf. ELIAS, N.; DUNNING, E. Sport et civilisation: la violence maîtrisée. Avant-propos de
Roger Chartier. Paris: Fayard, 1994, p. 198.
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conformidade com a “ordem subjacente às mudanças históricas”
37
, que
cunhavam um vetor, uma direção para o Ocidente, embora esse sentido não
fosse planejado de antemão. A especificidade de tal processo era descortinada
pelo autor em filigranas até então desconhecidas.
A proposta de Elias consistiu na articulação entre a psicogênese da vida
afetiva em seu foro mais íntimo o medo, a vergonha, a delicadeza e a
sociogênese do controle das emoções por parte do Estado moderno. Em
contraposição à teoria sociológica de seu contemporâneo Talcott Parsons, que
concebia a sociedade em equilíbrio homeostático, no qual a mudança era vista
como uma anormalidade, a sociologia figuracional via o desenvolvimento
social em termos sempre dinâmicos. Elias punha em foco o laço indissociável
entre a esfera individual e a esfera social, com a interpenetração das estruturas
da personalidade nas estruturas da sociedade, e vice-versa. Neste sentido, o
autor revelou como, à medida que a classe de guerreiros feudais e de cavaleiros
medievais foi se pacificando internamente na Europa, o Estado absolutista
passou a assumir uma diretriz cada vez mais normativa e reguladora do direito
exclusivo à violência.
Coube a Elias, em seqüência à definição weberiana do Estado como a
organização dotada do monopólio da força física, a descrição esmiuçada das
ligações factuais e das explicações estruturais que tornavam possíveis o
entendimento daquela centralização do poder. Avesso a abstrações axiomáticas,
o sociólogo recorria à experiência visceral do controle das emoções, tal como
vivenciada pelos indivíduos, e à concretude histórica da formação dos Estados,
tal como engendrada no longo prazo, para a demonstração das particularidades
de cada processo social.
Em seguida à análise do caso francês e alemão, o sociólogo se
concentrou na singularidade da matriz civilizadora inglesa, onde as monarquias
absolutistas haviam mais rapidamente se unificado e promovido a consolidação
das suas instituições. O exame do curso das desavenças seculares por parte de
famílias aristocráticas que se opunham em lutas fratricidas pelo poder na
Inglaterra foi seguido pela demonstração da pacificação das relações políticas,
graças sobretudo à instituição do Parlamento, locus mediador das diferenças
37
Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1990, vol.1, p. 17.
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entre os grupos partidários em litígio. De maneira gradual, a arte da palavra se
sobrepôs ao uso da força entre os Whigs e os Tories, de sorte que a aceitação da
alternância de poder permitiu-lhes a obtenção de certa estabilidade e a fixação
de regras de convívio mútuo. Como soia acontecer nas demonstrações
eliasianas, as mudanças no plano político-institucional tinham necessariamente
de passar por exemplos empíricos, no caso, por correlatos afetivo-sentimentais
que tornavam aquelas transformações formais inteligíveis no plano psíquico
individual.
Enquanto na sociedade de corte francesa o cortesão era a personalidade
que assumia o lugar do guerreiro, graças ao refinamento de atitudes próprias do
gentilhomme, na vida britânica eram os sportmen os mesmos representantes das
classes de proprietários rurais que levavam a estrutura do parlamento à
concórdia. Responsáveis por práticas de fruição do lazer no campo através da
invenção de uma série de atividades valorizadoras da performance corporal,
que levavam os praticantes a uma tensão agradável, a uma excitação seguida
pelo relaxamento controlado de suas emoções, os senhores de terra eram os
primeiros a legislar sobre formas menos brutais de convivência com os
oponentes. A orientação do tempo livre para as cavalgadas e as caças abolia nos
passatempos esportivos a brutalidade dos confrontos físicos observados nos
jogos populares medievais e obedecia à imposição de limites mais precisos nos
sistemas de disputa, cada vez mais codificados.
A crescente codificação da civilidade permitia ao autor surpreender o
nexo entre o que ocorria no mundo da política e o que sucedia no mundo do
esporte. Segundo seu neologismo, havia uma “esportificação” do primeiro na
mesma proporção em que uma “parlamentarização” do segundo. Esta cadeia de
interdependências entre a política e a sociedade se estenderia ao meio urbano
durante o século XIX, ultrapassando as fronteiras dos habitus de classe típicos
da gentry rural aristocrática. A sociedade como um todo passava a ser regida
pelo princípio da competição entre concorrentes em igualdade de direito e pela
abdicação do emprego da força bruta na superação do adversário, como
exemplificavam as regras dos esportes modernos inventados pelos jovens filhos
da burguesia nas public schools das cidades britânicas. Ao universalizar e
unificar suas leis após um acordo entre ligas compostas por clubes sociais e por
círculos acadêmicos, as normas do jogo se tornavam passíveis de difusão não
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apenas para o restante da Grã-Bretanha como para toda a Europa continental e
também para as possessões coloniais britânicas em diversas partes do mundo.
Assim, depois do modelo de guerra descrito por Vernant no caso da polis
na Grécia, com os primeiros rudimentos de um Estado centralizado e de uma
consciência humana auto-referenciada, Elias identificava a Inglaterra como o
país moderno em que a prática dos jogos lograva conter a violência e assimilar
o espírito das leis políticas, constituindo-se em um simulacro da guerra. A
associação entre jogo, guerra e poder era mais uma vez acionada. Graças a ela,
a supremacia podia ser conquistada pelo mérito e sublimada pela vitória sobre o
adversário, tornando-se a pedra angular da concepção moderna de esporte, em
concomitância com o período de constituição das bases do Estado-nação na era
industrial. O antropólogo Christian Bromberger assim se refere aos dois locais
de nascedouro dos esportes modernos: “... il est profondément symptomatique
que le sport se soit développé à deux moments de l’histoire où se levent les
principes d’égalité et de démocratie, dans la Grèce antique et dans l’Angleterre
des XVIII
e
et XIX
e
siècles.”
38
A aproximação de Norbert Elias com a questão dos esportes se deu ao
longo das décadas de 1950, 1960 e 1970, quando na Universidade de Leicester
orientou monografias sobre a história social do rugby, do cricket e do football.
Sabe-se que o trabalho de orientação dessas teses no programa de Mestrado em
Artes rendeu-lhe bons frutos nos estudos sociológicos ingleses, com a
publicação da pesquisa The established and the outsiders (1976), em parceria
com o aluno John L. Scotson. No caso dos esportes, em que pesem as
resistências iniciais ao tema como objeto de pesquisa numa cadeira de artes, a
inscrição do assunto na longa duração do processo civilizador britânico levou
Elias a ensaios escritos no período de 1966 a 1972. Eles formaram a base para a
coletânea de artigos compilados em Quest for excitement: sport and leisure in
the Civilizing Process (1986) publicado junto com seu orientando mais
próximo, Eric Dunning
39
. Na esteira do tardio reconhecimento de Elias, após o
seu falecimento em 1990, a tradução sucessiva do livro se deu entre várias
línguas de origem latina, primeiro em espanhol, Deporte y ocio en el processo
38
Cf. BROMBERGER, C. “De quoi parlent les sports”. In: Terrain: Cahiers du Patrimoine
Ethnologique. Paris: s.e., 1995, n.º 25, p. 06.
39
Cf. GEBARA, A. Conversas sobre Norbert Elias: depoimentos para uma história do
pensamento sociológico. Apresentação de Eric Dunning. Piracicaba: Biscalchin Editor, 2005.
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360
de la civilización (1992), a seguir em português, A busca da excitação (1992), e
por último em francês, Sport et civilisation: la violence maîtrisée (1994)
40
.
Após conferência proferida na École des Hautes Études en Sciences
Sociales em 1983, a recepção de Elias na historiografia francesa mostrar-se-ia
cada vez mais acolhedora. Ela foi empreendida com sistematicidade por Roger
Chartier, responsável por um cuidadoso avant-propos não só a Sport et
civilisation, como a La Société de cour (1985), a La Société des individus
(1991) e a Qu’est-ce que la sociologie? (1991). Na apresentação do livro, o
historiador demarcava o ponto que lhe parecia crucial no trabalho sociológico
de Elias. Em contraste com a maioria dos cientistas sociais, este fora capaz de
captar o socius de forma dinâmica, sempre em função de seu lugar de inscrição
nas configurações históricas particulares. Elias se mostrava refratário às
generalizações e aos anacronismos comparativos verificados não somente entre
sociólogos como também entre os próprios historiadores.
No tocante à sociologia do esporte, o autor apontava uma radical
autonomização deste face aos jogos tradicionais, constituindo-se um fim em si
mesmo, à parte dos ciclos agrários ou do calendário religioso das festividades
rurais, o que inexistia em trabalhos anteriores publicados na Europa a respeito
do assunto. Nos anos 30, o historiador batavo Johan Huizinga, que consagrou a
expressão latinizada hommo ludens, respaldava uma concepção essencialista do
homem, de verniz hegeliano, com a atribuição de um sentido histórico-
filosófico à esfera lúdica no Ocidente, que entrava em declínio com o advento
da industrialização e com a emergência da seriedade no profissionalismo
esportivo. Fundado em uma dialética ilusória e incapaz de perceber os reais
fatores de mudança dos jogos nos diferentes tempos da humanidade, este
historiador não entendia a profunda fissura operada pelo esporte moderno em
relação a seu homônimo arcaico. Nos anos 50, o sociólogo Roger Caillois,
crítico de Huizinga, incorria no mesmo erro com a criação de categorias
universais, independentes da vinculação jogo a um estágio sócio-histórico
determinado.
Dos ensaios de Elias, o artigo “La genèse du sport en tant que problème
sociologique”, conhecido na França como “Sport et violence” em virtude de
40
Não foi possível identificar a existência de tradução para o italiano, que muito provavelmente
deve existir.
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361
sua publicação com este título em 1976 na revista Actes de la Recherche en
Sciences Sociales, dirigida por Bourdieu, era aquele que melhor respondia à
questão. Ali, ele se dedicava à contestação das genealogias simplificadoras e da
“ilusão das origens” nos estudiosos do esporte. O autor mostrava em que
medida a representação dos esportes amadores do final do século XIX,
associados a uma espécie de renascimento dos Jogos Olímpicos grego-
romanos, constituía um processo de “invenção das tradições”
41
por parte de
seus idealizadores, corroborados nos estudos acadêmicos.
Ao lado do futebol profissional que se propagava como espetáculo da
Inglaterra, o aristocrata francês Pierre de Coubertin concebia uma forma de
competição entre nações civilizadas inspiradas no ideal olímpico de
congraçamento entre os povos de diferentes Estados. A contrapelo da
concorrência entre as potências imperiais, cada vez mais acirrada na Europa da
virada do século XIX para o XX, a competição se colocava como uma
alternativa que sublimava a possibilidade da guerra. Para tal, de acordo com
Elias, a reivindicação de uma herança da Antiguidade criava a illusio de uma
unidade que mascarava tanto o que haviam sido aqueles torneios aclamados por
Píndaro quanto os jogos que eram os recriados por Coubertin em 1896. Para
isto, estabelecia-se um hiato que elidia o longo período da Idade Média, quando
era atribuído aos jogos populares um caráter brutal.
Se no momento em que são organizados os Jogos Olímpicos modernos
imperava na sociedade a noção da clivagem entre comportamentos
considerados civilizados e aqueles considerados bárbaros, Elias sublinhava o
quanto o seu conceito de processo civilizador distava desses critérios de
julgamentos etnocêntricos que atribuíam à civilização européia parâmetros de
superioridade e relegavam os demais povos a uma condição de inferioridade.
Embora pensasse a sociedade em contínuo movimento, leitor de pensadores do
século XIX como Comte, Spencer e Marx, Elias defendia uma teoria do
desenvolvimento à luz de dois critérios de civilização, que não eram
classificações transcendentes nem escalonáveis, mas intrínsecas a cada
sociedade: o primeiro mensurava o grau de autocontrole de cada indivíduo no
uso da violência física; o segundo, interligado, avaliava o estágio de
41
Cf. HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
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organização da sociedade, notadamente o grau de centralização do poder do
Estado. Assim, Elias, convergente com Clastres, observava nas sociedades
tribais um elevado de controle da violência em âmbito interno, reservando-se as
ações violentas quase exclusivamente ao ambiente externo.
Quanto às Olimpíadas gregas, Elias se empenhava em mostrar como a
imagem edulcorada da Grécia antiga, em cujos vestígios escultóricos viam-se a
representação do equilíbrio, da temperança e da harmonia, não era condizente
com a realidade. A despeito da integração proporcionada pelos jogos entre as
diferentes cidades-Estados, havia modalidades esportivas como o pancrácio,
equivalente à luta livre contemporânea, que toleravam um alto nível de
confrontação física direta, suscetível não raro de agressões e de ferimentos
graves, sem exclusão até mesmo da morte.
Enquanto na modernidade os esportes estavam sujeitos a regras muito
mais precisas, limitadoras dos contatos inter-pessoais, nos esportes antigos
mantinha-se uma grande ambigüidade com a guerra, posto que os atletas eram
os mesmos jovens enviados aos campos de batalha. Em confluência com
Vernant, Elias situava como as armadas de cidadãos assistiram à ascensão e ao
declínio de códigos de lealdade, em momento que antecedeu a emergência dos
soldados profissionais nas legiões romanas. No caso do boxe, por exemplo, os
lutadores compartilhavam uma ética do combate mais próxima da aristocracia
guerreira do que da moral agonística dos competidores antigos. De acordo com
o critério de bravura de então, a perda em uma luta era menos ultrajante do que
a desistência dela. Prova de resistência física e de capacidade muscular, o
sentido heróico da competição podia levar a morte aos paroxismos da glória.
Deste modo, jogo e guerra se imiscuíam com reforços mútuos: o primeiro era
uma preparação para o segundo, na mesma medida em que este era um
exercício para aquele.
Ainda em tal contexto, o sociólogo destacava o boxe como a luta mais
emblemática do treinamento agonístico grego, pois ele derivava do caráter
original da guerra marítima inventada na Grécia antiga, que Elias estudara para
um artigo sobre a gênese da profissão naval, publicada em 1950 no British
Journal of Sociology. Segundo o autor, sob vários aspectos, a guerra travada no
mar se contrapunha aos códigos de honra forjados na guerra terrestre.
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363
O escrutínio de uma vasta gama de aspectos atinentes à constituição da
violência no jogo, no esporte e na vida coletiva mais abrangente fazia Elias
encaminhar uma difícil questão aos seus alunos na confrontação do sentido do
processo civilizador no futebol: a escalada de violência entre os torcedores.
Após a realização da Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, o fenômeno do
hooliganismo avultou como um grave problema social nas décadas de 70 e 80.
A visibilidade adquirida pelos hooligans se mostraria um fator de inquietação
nacional, com crescentes brigas e desordens provocadas por eles nas tribunas
de futebol, nas imediações dos estádios, nos pubs ou nos meios de transporte.
Vistos pela sociedade como arruaceiros, bárbaros e vândalos, que descontavam
suas frustrações pessoais cotidianas em dias de jogos, os valores apregoados
por esses grupos pareciam colidir com todos os princípios racionais dos
desportos desde a sua instituição na modernidade. Os públicos esportivos
haviam sido forjados de maneira correlata à invenção dos espetáculos de massa,
mas a busca da excitação – força motriz do ato de torcer – acabava por se
sobrepor ao controle das emoções. A apresentação de uma justificativa para o
caso propiciou aos alunos de Elias o esclarecimento de vários pontos ainda
duvidosos acerca da teoria, uma vez que ela demonstrava a não-linearidade de
seu conceito e a idéia da possibilidade de recorrência de movimentos em
sentido contrário, processos de descivilização, em momentos e em épocas
históricas precisas.
A equipe de pesquisadores incumbida de entender o assunto vai ter à
frente o sociólogo Eric Dunning, primeiro orientando de Elias, leitor de Über
den Prozess der Zivilisation, em um raro exemplar no original alemão, visto
que o livro somente seria vertido em língua inglesa no ano de 1978. Este
estudante propusera ao orientador, ainda nos anos 50, um estudo histórico-
social do esporte e do lazer à luz da teoria do processo civilizador. Ele mesmo
jogador universitário de rúgbi, Dunning já era àquela altura o respeitado diretor
do Centre for Football Research da Universidade de Leicester e começava a
trilhar um percurso intelectual próprio com a organização e com a publicação
de seus próprios livros na década de 1970: The sociology of sport: a selection
of readings (1971) e Barbarians, gentlemen and players: a sociological study
of the development of rugby football (1979), este último em parceria com
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364
Kenneth Sheard. Como resposta ao desafio de decifrar o aparente fracasso da
aplicação do controle das emoções às torcidas britânicas, Dunning assinava em
co-autoria com John Williams e Patrick Murphy, outros dois discípulos de
Elias, o penúltimo texto do livro, que se dedicava de maneira exclusiva ao
tópico: La violence des spectateurs lors des matchs de football vers une
explication sociologique.
Esse artigo se baseava numa conferência de Dunning de 1984,
apresentada na Royal Free Hospital de Londres, que por sua vez era uma
síntese dos argumentos apresentados em maior extensão ao longo da década de
1980 na forma de um tríptico: Hooligans abroad the behavior and control of
English fans in continental Europe (1984); The roots of football hooliganism
an historical and sociological study (1988); e Football on trial: spectator
violence and development in the football world (1989). Em verdade, a trilogia
de Dunning, Williams e Murphy, que teria sucessivas reedições na década de
90, era fruto de uma longa pesquisa, incluindo trabalho de campo, desenvolvida
entre 1979 e 1982, e guardava algumas especificidades importantes. Feita sob
encomenda oficial, ela se constituía de relatórios entregues ao deputado
Norman Cherster, encarregado pelo Parlamento britânico e pela Liga inglesa de
encontrar soluções para os distúrbios envolvendo os hooligans em toda a
Europa. Sob os auspícios do Social Science Research Council, pertencente ao
Department of Environment, e do Football Trust, as informações tinham por
finalidade fornecer as bases para a compreensão do fenômeno e, logo em
seguida, para a edificação de um programa de ação por parte do poder público e
das autoridades esportivas competentes.
Em um parêntesis necessário, vale dizer que o primeiro desse tipo de
relatos acerca das condições de segurança foi o rapport Harrington, publicado
em Bristol com o título de Soccer Holliganism, no ano de 1968. Após a
tragédia no estádio de Hillsborough, em abril de 1989, quando morreram
esmagados noventa e cinco torcedores em virtude da superlotação, e do
subseqüente relatório desta vez redigido pelo lorde Taylor sobre os estádios
ingleses, as praças de desporto na Europa iriam passar por profundas reformas
estruturais, correspondentes por sua vez às expectativas por um novo tipo de
público, que resultaram no remodelamento arquitetônico das arenas. Mas isto
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365
não apenas em função da obra de arquitetos e engenheiros
42
. O recrutamento de
quadros universitários oriundos das Ciências Humanas e Sociais para a
proposição de políticas preventivas se disseminaria por todo o continente, com
o apoio financeiro muitas vezes da União Européia e da UEFA.
A reunião de sociólogos, psicólogos, criminólogos
43
, juízes e policiais
em colóquios internacionais teria certa freqüência e culminaria em projetos
conjuntos com o objetivo de erradicar ou ao menos de minimizar os danos
provocados por esses torcedores conhecidos pela agressividade de suas
condutas. Na França, passados dez anos da tragédia de maio de 1985, ocorrida
no estádio belga de Heysel, inúmeros estudiosos dos mais diferentes países se
reuniriam para apresentar em seminário suas pesquisas, desdobradas no dossiê
Football, ombres au spectacle, com o patrocínio dos Cahiers de la Sécurité
Intérieure de la France. A mesma data fatídica seria lembrada em Bruxelas,
local do incidente que vitimou quarenta torcedores italianos, com a publicação
da obra Quels supporters pour l’an 2000 ?, dirigida por Manuel Comenron,
psicólogo social e professor de criminologia da Universidade de Liège
44
.
No Brasil, o sociólogo Maurício Murad, professor da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, representaria essa vertente que defende o
estabelecimento de parcerias universitárias com as demais instituições da
sociedade, reiterando o ponto de vista em seu mais recente livro sobre a
violência e o futebol
45
. A fundação do Núcleo de Sociologia do Futebol da
UERJ na década de 1990 daria início às atividades do Departamento, que teve
como marco zero justamente uma pesquisa sobre torcidas organizadas. Nela, o
professor preconizaria o cumprimento da prerrogativa institucional que atribui
à universidade seu papel de extensão, consolidando o vínculo institucional com
a sociedade, fundamento para o desenvolvimento de ações conjuntas com o
governo do Estado do Rio de Janeiro, com a Polícia Militar e com o órgão
gestor do Maracanã, a SUDERJ. No intuito de buscar saídas efetivas para a
42
Cf. MIGNON, P. “Liverpool ou ‘le Kop va disparaître’”. In: Revue Esprit. Paris: s.e., 1994,
n.º 202.
43
Cf. LIMBERGEN, K. V. “Aspects sociopsychologiques du hooliganisme: une vision
criminologique”. In: Pouvoirs – Revue Française d’Études Constitutionelles et Politiques. Paris:
s.e., 1992, n. º 61.
44
Cf. COMERON, M. (Org.). Quels supporters pour l’an 2000 ? Bruxelles: Éditions Labor,
1997.
45
Cf. MURAD, M. A violência e o futebol: dos estudos clássicos aos dias de hoje. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 175.
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questão a curto, médio e longo prazo , propunha-se uma combinação de
medidas, de ações repressivas imediatas a intervenções sócio-pedagógicas num
horizonte cultural mais ampliado.
De volta ao ponto, vale a ressalva de que a realização de estudos por
parte do grupo de pesquisadores de Leicester acerca da violência entre os
torcedores não era pioneira nem na Inglaterra nem fora dela. Embora esta
produção seja a mais renomada na historiografia sobre o assunto, entre outros
motivos, pela maior influência dos estudos ingleses entre nós, pelo fato de a
Inglaterra ser conhecida como o epicentro de origem do futebol e pelo recente
reconhecimento da obra de Norbert Elias no meio acadêmico, deve-se
mencionar que no mesmo momento outros trabalhos também vinham sendo
realizados. Era o caso da série de estudos coordenada pelo sociólogo alemão
Gunter A. Pilz sobre o tema, que desenvolvia uma pesquisa concebida
igualmente em três partes: Sport et violence (1981), Représentation de la
violence dans le sport (1987) e Les supporters: leur culture, leur comportment
(1988)
46
.
Já na Inglaterra, ao longo da década de 1970, à medida que a questão
ganhou magnitude, foram sendo realizadas investigações por outras escolas
britânicas, como a de Birmingham e a de Oxford. Em razão deste motivo, antes
da abordagem do que para eles eram as raízes profundas do hooliganismo o
sentimento de prazer vivenciado nas brigas, o modelo encorajador de tal tipo de
comportamento encontrado no meio de origem e o futebol como lugar
privilegiado para essas manifestações os alunos de Elias iniciavam seu
ensaio com a exposição das explicações a seu ver mais superficiais consagradas
ao fenômeno, dentre as quais se encontravam o consumo de álcool e a violência
emanada do campo de jogo. Em seguida, os autores passavam em revista as
teorias existentes sobre os hooligans no meio universitário, para logo depois
demarcar as diferenças perante as mesmas, não sem mostrar as deficiências e as
inconsistências teóricas que subjaziam a cada uma delas.
46
Cf. PILZ, G. “Sociologia do esporte na Alemanha”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1999, n.º 23. Cf. também Id. “The transformation of the spectator
behaviour in professional football: necessities, possibilities and limits of social reaction”. In:
Revista Esporte e Sociedade <http//:www.esportesociedade.com/>. Rio de Janeiro: n.º 4. Acesso
em: 05 de dezembro de 2006.
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A primeira corrente, fiduciária do marxismo, era personificada por três
autores: Ian Taylor, John Clarke e Stuart Hall. O primeiro, autor do artigo
Soccer consciousness and soccer holiganism (1971), explicava a violência
torcedora como uma espécie de revolta da classe trabalhadora contra o
progressivo caráter burguês e internacional que o jogo assumia no final dos
anos 60. Tratava-se de um movimento de resistência às mudanças em curso no
futebol e, mais especificamente, uma reação à descaracterização do sentido de
comunidade dos clubes ingleses. O segundo, responsável pelo texto Football
and working-class fans: tradition and change (1978), também tributava o
hooliganismo às transformações operadas pelo profissionalismo e pelo seu
processo de espetacularização, a que adicionava a desagregação dos laços
comunitários locais verificados entre os trabalhadores ingleses. Após a eclosão
da segunda guerra mundial, as diferentes gerações proletárias deixaram de
freqüentar os estádios juntas, como estavam acostumadas, o que propiciou o
estabelecimento de um fosso cultural no seio das famílias operárias, separando
jovens e adultos, pais e filhos. O terceiro, autor do ensaio The treatment of
‘football hooliganism’ in the press (1978), correlacionava o papel da mídia na
criação de uma situação de “pânico moral” nos estádios ao aumento da
inquietude nacional decorrente da deterioração econômica vivenciada pela Grã-
Bretanha.
A segunda corrente, influenciada pela etologia e sobretudo por Desmond
Morris, autor de The soccer tribe (1981), para quem tal esporte nada mais
significava do que uma “caçada ritual”, era representada por Peter Marsh, E.
Rosser e R. Harré, organizadores do livro The rules of disorder (1978). O grupo
de Oxford tinha por mérito, ao contrário da primeira corrente explicativa que se
atinha ao holliganismo de uma maneira muito genérica e de uma contraposição
apenas inter-classes, compreender o sentido dos conflitos em sua dimensão
intra-grupal. A impressão de anarquia e de desordem descrita pelos meios de
comunicação acerca do comportamento dos fãs não era procedente e com isto a
mídia acabava por ser uma espécie de caixa de ressonância, responsável pela
amplificação dos distúrbios nos estádios. À parte a relação com os demais
atores sociais envolvidos, tratava-se de saber por que os torcedores criavam o
seu próprio conjunto de regras de enfrentamento, com a recorrência para isto a
ritos nos quais a violência era um símbolo, uma metonímia. Dentre as
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insuficiências apontadas pelos estudiosos de Leicester no modelo dos autores
de Oxford, incluía-se a crítica a esta última consideração, que tendia a
subestimar a possibilidade concreta de confrontos físicos diretos em função dos
procedimentos de ritualização. Menos que pólos distantes, violência e ritual
eram entendidos por Dunning, Murphy e Williams como manifestações
separadas por um fio tênue.
A questão essencial para os seguidores de Elias era o entendimento das
razões pelas quais jovens e adolescentes do sexo masculino pertencentes aos
estratos sócio-econômicos mais baixos da sociedade, notadamente os saídos da
classe operária, sentiam prazer em se bater. Da mesma maneira, era importante
saber em que medida a formação de um estilo de vida nesse meio dependia do
respectivo encorajamento ao comportamento agressivo em seu meio de origem.
Por fim, era mister elucidar o significado do futebol como o espaço escolhido
para a exibição de tais condutas. A fim de responder a essas indagações axiais,
Dunning e seus colegas recorriam a um sociólogo descendente da escola de
Chicago, Gerald Suttles, autor de The social order of the slum (1968) e The
social construction of communities (1972), cujos trabalhos abordavam as
especificidades das camadas inferiores da classe operária, de onde eram
egressos os jovens que formavam as subculturas violentas e que pautavam seus
valores em padrões viris de afirmação da masculinidade.
Ainda que a Escola de Chicago remonte à década de 1920 e à recepção
da sociologia alemã de Tönnies, Simmel e Weber nos Estados Unidos, as obras
inaugurais de Robert Park, The city (1925), e de F. Thrasher, The gang (1927),
exerceram até pelo menos a década de 1970 considerável influência nos
estudos sobre o fenômeno urbano nos EUA e, em conseqüência, em vários
países do mundo como o Brasil
47
. Neste sentido, além de Suttles, é possível
mencionar Martín Sánchez-Jankowski e seu ensaio “As gangues e a estrutura
da sociedade norte-americana”
48
. Na origem uma conferência proferida na
ANPOCS, depois publicada na revista da mesma associação, este texto
demonstra a aparente similitude de termos como grupos juvenis, galeras,
bandos e gangues. A indistinção se funda em preconceitos que impedem a
47
Cf. PARK, R. E. “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio
urbano”. In: VELHO, O. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967.
48
Cf. SÁNCHEZ-JANKOWSKI, M. “As gangues e a estrutura da sociedade norte-americana” In:
Revista Brasileira de Ciências Sociais. 1997, vol. 12, n.º 34.
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percepção de diferenças, questionamento também feito pelo antropólogo José
Guilherme Cantor Magnani, ao criticar a metáfora das tribos urbanas na
linguagem científica dos “pós-modernos”. Segundo Sánchez-Jankowski,
enquanto a definição tradicional conceitua as gangues como associações pouco
estruturadas de indivíduos que praticam atos ilegais e que apresentam um
comportamento territorialista, o novo conceito por ele matizado considerava-as
como grupos com estratégias específicas que visam à acumulação de recursos,
não importa se lícitos ou ilícitos, de caráter quase privado, quase secreto e sem
burocracia
49
.
Os representantes de Leicester extraíam de Gerald Suttles a expressão
“segmentação ordenada”, que em muitos aspectos se assemelha ao “sistema de
linhagens” descrito por antropólogos sociais britânicos como Evans-Pritchard.
Em seu estudo sobre as comunidades de Chicago, Suttles sublinhava de que
maneira as unidades territoriais costumavam articular suas identidades
particulares com a atribuição de um peso considerável à idade, ao gênero e à
etnia. Estas por seu turno se imbricavam com a estrutura maior da sociedade e
com o jogo de construção das identidades contrastivas inter-comunitárias. O
referido esquema de sociabilidade poderia obedecer à variação de escalas em
nível local, regional ou nacional, com a tendência ao estabelecimento de
associações bilaterais entre grupos que ora se opunham ora se aliavam. Tal
modelo divisório-complementar de moradores de um bairro contíguo adjacente,
que poderia se estender até mesmo a ordens de grandeza maiores, com
polarizações entre cidades, regiões e países, dava origem a grupos vicinais de
jovens do sexo masculino, formados na socialização em espaços públicos como
a rua. Os laços de moradia adquiriam assim sentido e coesão à medida que se
contrapunham aos demais grupos e à ameaça representada por rivais externos.
Ao lado das rivalidades criadas no convívio com seus pares em espaços
públicos como a rua, a casa também constituía um lugar de destaque para a
construção de um modelo entre os jovens adolescentes, espelhados nas
condutas arbitrárias e violentas dos pais. O estereótipo do chefe de família da
49
De fato, as torcidas organizadas brasileiras parecem situar-se na atualidade em um certo limbo,
que as faz pender ora para a marginalização ora para a institucionalização: por um lado,
apresentam um discurso pautado em projetos e programas assistenciais que ambicionam o
reconhecimento e a legitimidade perante os demais membros da sociedade; por outro, vivenciam
uma prática na qual os confrontos são estimulados e incentivados pelos próprios líderes.
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classe operária mais baixa algo aproximado à personalidade autoritária de
Adorno , é o daquele que exerce um severo controle sobre seus
consangüíneos com base na força bruta e na separação bem clara entre os
papéis masculinos e femininos. Este tipo é aqui evocado para explicar a
sociogênese da “masculinidade agressiva”. Ao contrário dos círculos sociais,
inclusive dos operários em melhor condição econômica, em que a violência
causa repulsa e é condenada, esses jovens proletários encontravam uma emoção
agradável na intimidação e no confronto com seus inimigos, sem gerar qualquer
sensação interna de culpa. Como corolário, aquele que sobressaía nas lutas
tornava-se respeitado, adquiria prestígio com seus colegas e ganhava status no
meio de origem. Essa reputação crescia em importância porquanto ela se
tornava a forma principal de visibilidade social. Por um mecanismo de
estigmatização no trabalho e na escola, o trabalhador das classes subalternas é
aquele que se sente alijado da sociedade envolvente e não divisa qualquer
possibilidade de ascensão educacional ou profissional.
Destarte, a variação na freqüência dos distúrbios e das brigas provocadas
nos campos de futebol dependia em parte do grau de incorporação da classe
trabalhadora na vida social britânica. Isto não implicava que a pobreza, o
desemprego e a falta de perspectivas econômicas se refletissem de maneira
imediata na produção e na reprodução das práticas de violência pois, no
universo eliasiano, as causas e os efeitos variam sempre de acordo com
interações complexas, nunca automáticas. Outrossim, a relação variável entre
os hooligans e o grau de inserção social de frações da classe operária no
processo civilizador podia ser constatada pelos autores na pesquisa
empreendida junto aos arquivos da Football Association e dos jornais ingleses.
Além da observação de que a figura do hooligan estava longe de ser nova, a
coleta de informações nos periódicos e nos acervos oficiais mostrou a oscilação
do comportamento violento nos estádios ao longo da formação do
profissionalismo esportivo na Inglaterra. Com base nesse registro estatístico
colhido nos documentos da imprensa, envolvendo incidentes entre grupos de
torcedores, e à luz da interdependência entre sociedade e futebol, foi proposta
uma explicação hipotética para os ciclos de violência nos estádios.
A reflexão sobre o material levantado revelou a existência de um
movimento curvilíneo, em formato de um U, durante três tempos principais
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esquadrinhados na longa duração do futebol inglês. Grosso modo, a violência
apresentou no início da história do futebol profissional índices altos. Em
seguida, houve um declínio e uma estabilização em patamares baixos,
considerados toleráveis. Por fim, ela voltou a crescer em uma escalada
ascendente. Longe de ser aleatória, a linha gráfica encontrava correspondência
no nível de integração social e no estágio do processo civilizador que, como
reiterava Elias, era uma mensuração mais técnica do que hierárquico-judicativa.
O primeiro momento se situava no último quartel do século XIX e no início do
século XX até a Primeira Guerra Mundial. Nesta fase, os periódicos registraram
um número freqüente de brigas e charivaris. Segundo os autores, com a
profissionalização do futebol em 1880, a entrada da classe operária nas tribunas
dos estádios imprimiu um cunho emocional mais vibrante, aberto e infrene no
acompanhamento do futebol, se comparado ao comedido público aristocrático
de até então.
A segunda conjuntura correspondia ao entreguerras e aos anos
posteriores à Segunda Guerra Mundial. Nesta ocasião, há uma queda
significativa no registro dos confrontos físicos nas partidas, resultante de uma
série de transformações nas relações sociais, com a incorporação no pós-45 dos
benefícios da política do Welfare State para boa parte da população da
Inglaterra. Era uma época de “inclusão” da classe operária, o que ocorreu
graças à organização dos sindicatos, com a conquista de várias melhorias nas
condições de trabalho, e graças às ações do governo que, por sua vez, concedeu
garantias trabalhistas, com a extensão de vários direitos civis às mulheres. Essa
fase, também denominada pela imprensa como idade de ouro, tem início nos
anos 20 e ficou marcada pela criação do mito do torcedor inglês como
gentleman, quando o ethos aristocrático transforma-se em ethos nacional. O
torcedor civilizado, protótipo da sobriedade inglesa, é forjado em contraposição
ao torcedor de origem latina, do sul da Europa, mais conhecido por seu modo
espontâneo e caloroso.
A passagem da segunda para a terceira conjuntura, na virada da década
de 50 para 60, corresponde à mudança na configuração do público esportivo.
Neste momento, assiste-se ao recrudescimento da violência nos estádios, em
certos momentos de forma vertiginosa. Os kops, ends ou terraces, como eram
chamados os locais mais baratos e mais vibrantes dos estádios, situados atrás
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do gol, tornaram-se alvo de uma “topofilia”, para falar com o geógrafo inglês
John Bale, entre jovens torcedores londrinos, que criaram ali torcidas como a
Inter City Firm, do West Ham United. Junto a essa cultura juvenil em gestação,
subgrupos urbanos já existentes, como os mods, os rockers, os teddy boys e os
skinheads, transferem suas próprias lógicas de rivalidade para o futebol. Além
da “segmentação ordenada”, a justificativa dos autores para a intensificação da
violência compreendia a incidência desigual das taxas de incorporação social,
aferidas mediante a educação escolar e o mercado de trabalho. Com isto, o
contingente saído das frações mais baixas da sociedade volta a se expandir e a
provocar tumultos. Em meados da década de 60, o núcleo duro do proletariado
se apropria dos campos esportivos não apenas como lugar de sociabilidade, mas
também como forma de enfrentamento com os pares rivais e como forma de
manifestação do descontentamento perante a sociedade abrangente.
O fecho do ensaio contém indicações sugestivas que propiciam um
gancho para a passagem rumo às questões da nossa pesquisa. O recurso à
imprensa não se limita ao registro das informações fornecidas pela mesma. A
suposição de uma transparência da realidade nos fatos relatados é descartada e
a indagação recai no papel dos meios de comunicação na construção da
imagem do hooligan e na fabricação do problema. Em primeiro lugar, os
exemplos arrolados sobre conflitos descritos na imprensa, desde o limiar do
século XX, permitiam dirimir qualquer idéia de ineditismo ao assunto. Em
seguida, o acompanhamento retrospectivo das abordagens dos jornalistas
esportivos acerca dos hooligans evidenciava o quanto o fenômeno ganhou
repercussão nacional em razão do tratamento dado pela imprensa. A análise
específica de tablóides esportivos populares como o The Sun, conhecido pela
produção de matérias de teor sensacionalista, foi a base para a sustentação do
argumento.
Na década de 1960, quando o jornalismo inglês de uma maneira geral
passava por reformulações editoriais e estruturais, a concorrência entre
tablóides pelo aumento de vendas se intensificou e, em muitos casos, o
sensacionalismo fez parte de uma estratégia comercial para o crescimento da
vendagem. A percepção de que as brigas entre os hooligans cativavam o
público leitor desses diários esportivos levou os jornais à ampliação da
cobertura relativa ao assunto. Às vésperas da realização da Copa do Mundo de
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373
1966, os jornalistas alardearam um temor quanto ao comportamento dos
torcedores ingleses e a visibilidade deles ganhou uma dimensão ainda maior. A
generalização de um “pânico moral” na sociedade proporcionou um sentimento
de decadência dos valores e este foi atribuído a um mal cuja responsabilidade
era dos fãs de futebol. O jornal The Sun, a 8 de novembro de 1965, referia-se à
situação da seguinte forma: “Soccer is sick at the moment. Or better, its crowds
seem to have contracted some disease that causes them to break out it fury.”
50
.
A questão até então pontual tomou uma proporção nacional e extrapolou
o cenário esportivo. A mobilização da polícia a fim de impedir os confrontos
encontrou como solução paliativa a divisão territorial das torcidas nos estádios.
Sem surtir efeito, a demarcação de territórios contribuiu tão-somente para a
potencialização do conflito, na visão dos autores. A crise propagou-se também
para fora do país e a imagem do torcedor inglês foi fixada no exterior através
do estereótipo hooligan: um jovem pobre, mal inserido na sociedade,
delinqüente na vida ordinária e consumidor excessivo de álcool.
Ao final do ensaio, os autores chegam à conclusão de que, embora o
jornalismo esportivo não tivesse sido o fator decisivo para a emergência do
fenômeno, a cobertura dos meios de comunicação havia desempenhado um
papel ativo na construção da imagem do hooligan e na sua difusão em termos
sensacionalistas. O trabalho da equipe de Leicester, com uma abordagem
diacrônica da violência torcedora na imprensa, contribuiu para relativizar uma
série de preconceitos que seus contemporâneos tinham acerca da questão. A
proposição de uma escala temporal e de uma variação de suas configurações no
decorrer do século XX permitiu uma nova perspectiva e um conhecimento mais
apropriado do tema. A reconstituição do problema levou à utilização do jornal
como fonte na busca por informações sobre o comportamento das platéias
esportivas. Tal recurso mostrou, por um lado, as potencialidades da pesquisa
em periódicos; por outro, deixou clara as suas limitações, que derivavam do
caráter seletivo, tendencioso e moralizante de muitas das notícias.
Do ponto de vista da presente tese, esse último ponto é de suma
importância. A questão dos critérios que norteiam o discurso da imprensa
50
Apud. DUNNING, E.; MURPHY, P.; WILLIAMS, J. “Soccer crowd disorder and the press:
some processes of amplification and de-amplification in historical perspective”. In: Football on
trial: spectator violence and development in the football world. New York: Routledge, 1999, p.
120.
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necessita, pois, de um exame acurado. Ele consiste de início na relativização da
armadilha tal como posta pela antinomia pós-moderna, que se coloca da
seguinte maneira: ou bem os meios de comunicação refletem a realidade,
espelhando-a tal qual se supõe que ela é; ou bem a induzem, a engendram, a
forjam de forma até certo ponto artificiosa. A complexa relação entre realidade
e representação é um ponto nodal na historiografia contemporânea
51
e a
abordagem das matérias sobre violência entre torcedores requer um
procedimento cauteloso. Deve-se salientar antes de tudo a diferença, como bem
observa o sociólogo francês Patrick Mignon, entre aqueles que criam o
problema e aqueles que definem a situação como problemática
52
. Se nos
ativermos ao segundo pólo, observa-se como o estudo iniciado pela escola de
Leicester teria considerável aceitação em âmbito internacional, com a
realização de pesquisas que se valem do material jornalístico ora como via de
acesso às informações ora como análise de discurso na construção do objeto.
Na Argentina, a socióloga Mariana Conde publicou o artigo La invéncion
del hincha en la prensa periódica. Vinculada ao grupo de pesquisadores da
Universidade de Buenos Aires (UBA), a autora empreendeu uma análise serial
da representação do torcedor argentino desde o final do século XIX através de
dois importantes periódicos esportivos argentinos: a revista semanal El Gráfico
e o diário Crítica
53
. Através deles, ela mostrou as formulações dos jornalistas
sobre a imagem hincha e suas variações no contexto histórico nacional e na
evolução do futebol argentino. Nos anos 50, em plena era peronista, a exaltação
do torcedor ligava-se uma concepção de bondade intrínseca ao povo; já nos
anos 80, o surgimento dos barra-bravas fazia com que tal pureza se esfumasse
e, em seu lugar, sobreviesse a execração dos torcedores, desordeiros por
excelência. No Brasil, a mesma linha metodológica foi seguida pela socióloga
Elisabeth Murilho, professora da PUC-SP, que defendeu uma dissertação de
mestrado publicada em forma de artigo com o título A violência no futebol e a
imprensa esportiva. Nela, a autora circunscreve as notícias publicadas no jornal
51
Cf. FALCON, F. “História e representação”. In: Revista de História das Idéias. Coimbra:
Faculdade de Letras, 2000, vol. 21.
52
Cf. MIGNON, P. La société du samedi: supporters, ultras et hooligans – étude comparée de la
Grande-Bretagne et de la France. Paris: Institut des Hautes Études de la Sécurité, 1993, p. 42.
53
Cf. CONDE, M. op. cit.
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375
A Gazeta Esportiva dos anos 20 aos anos 90, com a observação das alterações
da imagem do torcedor no decurso desse tempo
54
.
A pesquisa que realizamos nos arquivos do Jornal dos Sports não nos
permitiu a mesma apreensão panorâmica das reportagens jornalísticas, nem
tampouco a realização de gráficos com variáveis sobre o comportamento do
torcedor. Isto se deveu, em parte, à ausência de emprego de métodos
quantitativos, que necessitariam tempo e estrutura maior; em parte também ao
quadro histórico mais restrito, que se concentrou no acompanhamento do
período final dos anos 60 até o início anos dos 80 embora tenham sido
examinados vários outros momentos, anteriores e posteriores a este, como será
visto a seguir; e em parte, ainda, devido ao alvo principal da tese, que diz
respeito menos a casos genéricos de distúrbios no futebol e mais à formação de
agrupamentos de torcidas organizadas no Rio de Janeiro.
O Jornal dos Sports, alvo da nossa pesquisa, foi fundado em 1931 por
Argemiro Bucão e Álvaro do Nascimento, e comprado em 1936 por Mário
Filho. O jornal pertenceu a este último por trinta anos e, durante esse tempo, a
sua diretriz pareceu de um modo geral sempre enaltecedora da figura do
torcedor. Mário Filho, militante em favor da profissionalização do esporte e da
transformação do futebol em um espetáculo de massas, incentivou desde o
início a formação de torcidas multicoloridas nas arquibancadas e estimulou a
interlocução do jornalista esportivo com o torcedor, visto como seu potencial
consumidor. Sob sua direção, o periódico esportivo teve grande projeção no
país, não apenas por sua sede se encontrar na capital da República, o Rio de
Janeiro, mas também porque muitos de seus cronistas esportivos eram também
expoentes das letras nacionais, como Nelson Rodrigues, José Lins do Rego,
Antônio Olinto, entre muitos outros. A condição de destaque no cenário
nacional torna possível equiparar o Jornal dos Sports no Brasil ao El Gráfico
na Argentina, ao L’Équipe na França e à Gazeta dello Sport na Itália.
O falecimento de Mário Filho em 1966 não provocou alterações
imediatas no Jornal dos Sports, uma vez que este continuou sob a posse da
família Rodrigues, primeiro com a viúva do jornalista, depois com o filho
único. A situação permaneceu dessa maneira até o ano de 1972, quando a morte
54
Cf. SILVA, E. M. da. op. cit.
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de Mário Júlio Rodrigues retirou os direitos de propriedade do periódico da
família. Este por sua vez passou às mãos da segunda mulher de Mário Júlio,
Cacilda Fernandes de Souza, que recebeu o jornal como herança lavrada em
testamento. Nos oito anos em que esteve sob a guarda da Sra. Cacilda, de 1972
a 1980, o JS assistiu a algumas transformações na sua concepção editorial e na
composição de sua equipe de jornalistas, sem no entanto modificar de forma
substantiva o tipo de relação cultivado com o leitor-torcedor. No início do
decênio de 1980, o Cor-de-Rosa foi arrendado pela família Veloso, que por seu
turno era ligada a uma rede de supermercados da cidade. De um lado, os
Veloso deram continuidade a determinadas tradições criadas por Mario Filho;
de outro, imprimiram mudanças bem nítidas no perfil do jornal. As alterações
incluíam não somente a diagramação visual, mas sobretudo o leitor-alvo, o que
consubstanciava a nova linha editorial assumida.
Nesse sentido, no correr dos anos 80, o Jornal dos Sports pareceu ganhar
feições semelhantes, ao menos em parte, aos tablóides esportivos e aos jornais
populares de que falava Eric Dunning em seu artigo, tal como o The Sun, com
uma abordagem em certa medida sensacionalista. Verificou-se a perda do
alcance nacional em prol de uma dimensão local mais provinciana, da mesma
maneira que o universo multifacetado de variedades jornalísticas decresceu de
forma sensível. Contudo, pode-se afirmar que o tradicional apoio e a marca de
incentivo do periódico às atividades promovidas pelas torcidas continuaram em
destaque. O canal de comunicação mais direto com os leitores-torcedores, a
seção de cartas intitulada Bate-Bola, permaneceu em atividade. A política
editorial que pautou o relacionamento do Jornal dos Sports com seu público,
entendido de forma majoritária como o torcedor de futebol aficionado por seu
clube e também como o seu principal cliente, continuou à primeira vista sem
alteração.
Destarte, a figura positiva do torcedor foi uma constante na história desse
periódico esportivo, independente das contingências de apropriação ou de
destinação comercial do jornal. A caracterização geral desse personagem do
universo esportivo realçou desde cedo a sua fidelidade clubística, a sua
simplicidade e a sua abnegação de fundo religioso no acompanhamento dos
jogos. No entanto, ao lado do torcedor considerado de maneira singular e
isolada, é possível dizer que coexistiu também na história do futebol e da
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imprensa esportiva a sua contrapartida negativa, o seu revés imagético. Isto
quer dizer que a representação coletiva do torcedor circunscreveu também a
imagem de um corpo compacto de indivíduos indistinguíveis entre si na
paisagem dos estádios, uma massa fechada, conforme definiria Elias Canetti,
com fronteiras definidas a despeito de sua arena a céu aberto
55
.
Essa massa freqüentadora das arquibancadas, conhecida pela
denominação genérica de torcida, adquiriu acepções nem sempre favoráveis
com o desenvolvimento do futebol. Se em âmbito individual era possível
perceber uma visão simpática do jornalista que acentuava as características
altruísticas do torcedor, o mesmo não se dá quando se considera a dimensão da
coletividade. A reunião de torcedores em um estádio, para além do sentido de
festa e de confraternização, foi vista com freqüência na imaginação dos
periodistas de diversas latitudes sob o signo mais amplo daquilo que os
europeus chamavam de “pânico moral”. A psicologia das multidões era
expressa sob a forma do temido e enigmático comportamento das massas no
futebol.
Na Europa, o tema se colocou desde o aparecimento sedicioso do “povo”
na historiografia, após a eclosão das eras revolucionárias, descritas pelo
historiador francês George Lefebvre em O grande medo de 1789
56
e pelo
historiador inglês George Rudé em A multidão na história
57
. Os receios à
inopinada entrada da turba na cena pública levaram muitos escritores a refletir
sobre o fenômeno. A linhagem mais clássica sobre o assunto tem início com
Gabriel Tarde (1843-1904) em A opinião e as massas e com Gustave Le Bon
(1841-1937) em A psicologia das multidões, esta última traduzida para dezenas
de línguas e publicada em centenas de milhares de exemplares. A tradição
prossegue no século XX com as obras de Sigmund Freud, José Ortega y Gasset,
Wilheim Reich, Elias Canetti e Serge Moscovici. Em um esquema
simplificado, é possível identificar duas linhas-mestras presentes nas
ponderações desses autores. A primeira é a da imitação, segundo a qual o
indivíduo imerso na massa age por contágio e propagação. O hommo vulgus
55
Cf. CANETTI, E. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 15.
56
Cf. LEFEBVRE, G. O grande medo de 1789: os camponeses e a Revolução Francesa.
Prefácio de Francisco Falcon. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
57
Cf. JULIA, D. “A violência das multidões: é possível elucidar o desumano ?”. In: BOUTIER,
J.; JULIA, D. (Orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ; Editora FGV, 1998.
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difere do hommo sapiens porquanto se deixa levar pela torrente volitiva, pelo
torvelinho das paixões ou, como dizia Tarde, pela “cenestesia social”
58
. A
segunda suposição é a da regressão, de Le Bon. Para este, o indivíduo regride à
medida que se vê envolto entre seus pares. Em grupo ou no anonimato ele
comporta-se de uma maneira; a sós, de outra. De modo irracional, inconsciente
ou infantil, suas condutas são irreconhecíveis quando comparadas àquelas do
cotidiano.
O advento da modernidade no limiar do século XX coincidiu com a
conformação do futebol como espetáculo de massa e com o temor ante a perda
de controle nas metrópoles européias, que assistiam naquela altura à ebulição
de partidos políticos, sindicatos e movimentos revolucionários, sejam
anarquistas, comunistas ou socialistas. O potencial disruptivo das grandes
aglomerações urbanas foi desde então tido como uma ameaça constante, capaz
de preocupar os governos instituídos e os seus respectivos técnicos, dentre
engenheiros, arquitetos, magistrados, médicos, higienistas e muitos outros
homens de ciência.
As platéias esportivas também vivenciariam esse estado iminente de
convulsão social. De acordo com o historiador francês Alfred Wahl, a imagem
amedrontadora das classes perigosas teoria formulada por Louis Chevalier
em 1978 a fim de descrever a vida social, política e literária da Paris fin-de-
siècle
59
se fazia presente desde os primórdios do futebol na Inglaterra, na
segunda metade do século XIX: “Le jeu ne devait devenir ni travail ni
exhibition devant un public formé des classes ‘dangereuses’”
60
. Já o estudioso
escocês Herbert Moorhouse mostrava a ancestralidade do torcedor desordeiro,
com base na legião de freqüentadores de estádios na Escócia, como o Celtic
Park ou o Hampden Park, que em fins do século XIX já abrigava mais de
58
Cf. TARDE, G. A opinião e as massas. Prefácio de Dominique Reynié. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. XXII.
59
Cf. ZALUAR, A. “Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e violência. In:
VIANNA, H. (org.). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 28. No caso do Brasil, o fenômeno das classes perigosas foi
estudado pelo historiador Sidney Chalhoub, com foco no Rio de Janeiro das primeiras décadas do
século XX. Cf. CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio
de Janeiro da bélle-époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.
60
Cf. WAHL, A. La balle au pied – histoire du football. Paris: Gallimard, 1990, p. 25. Segundo
o mesmo autor: “C’est en Belgique que sont nés, au cours des annés 1920, les premiers clubs des
supporters du continent. Ils gagneront ensuite le nord de la France”. Cf. ibid., p. 33.
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cinqüenta mil espectadores
61
. De igual maneira a Dunning, recorria-se ainda
aos jornais da década de 1890, como o respeitado The Times. Ao perquirir as
origens do termo, localizava-se o vocábulo houlihan, designador dos traços de
insociabilidade de uma família irlandesa que vivera na Londres Vitoriana
oitocentista, passando a designar atividades grupais juvenis, o que dava uma
coloração mítica à sua narrativa de origem. A 30 de outubro de 1890, era
possível colher a seguinte passagem no jornal londrino:
“O que temos a ver com o hooligan ? Quem ou o que é responsável
por seu crescimento ? Toda semana, algum incidente deixa claro que
determinadas zonas de Londres são mais perigosas para o transeunte
pacífico do que as recônditas regiões da Calábria, Sicília ou Grécia,
outrora clássicos refúgios de bandoleiros. Todo dia, em algum
tribunal, são narrados detalhes de atos de brutalidade, cujas vítimas
são homens e mulheres inocentes. Enquanto o hooligan maltratava
unicamente o hooligan – enquanto ouvíamos falar dos ataques e
contra-ataques de bandos, ainda que por vezes munidos de armas
mortais -, a questão era bem menos premente do que é agora... Não há
como olhar sem inquietação, contudo, para a insistente recorrência de
explosões de violência por parte de marginais, o sistemático
desrespeito à lei por parte de grupos de garotos e rapazes que
representam o terror da vizinhança em que habitam. Nossos hooligans
vão de mal a pior. Eles são uma degeneração no organismo político,
sendo a pior circunstância o fato de estarem se multiplicando e que as
juntas educacionais e a prisão, os magistrados da polícia e os
filantropos não parecem contribuir para regenerá-los. Outras grandes
cidades podem contribuir para se livrar de elementos mais perniciosos
ao Estado. Não obstante, o hooligan constitui uma odiosa excrescência
de nossa civilização.”
62
.
A penetração dessas idéias e desses temores no Brasil não tardaria,
encontrando uma especial pregnância nos apontamentos dos jornalistas
esportivos. Os cronistas do Jornal dos Sports, em que pese a tradição de
enaltecimento do torcedor, pareceram conviver com esse espectro nos mais
variados tempos e expuseram com freqüência suas preocupações a respeito.
Criado na década de 1930, como foi dito, o Jornal dos Sports surgiria no
momento em que o país alavancava as suas bases industriais e configurava com
mais nitidez a sua fisionomia urbana. No mesmo período, o futebol tornava-se
um esporte profissional e inscrevia seu lugar junto ao avanço dos meios de
61
Cf. MOORHOUSE, H. F. “Les foules de Glasgow”. In: Sociétés & Répresentations. Paris:
s.e., 1998, n. º 7, p. 193 e 194.
62
Cf. BUFORD, B. Entre os vândalos: a multidão e a sedução da violência. São Paulo:
Companhia das Letras, p. 20..
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comunicação de massa, notadamente os jornais, as revistas e o rádio. Os
estádios de futebol remodelavam sua infra-estrutura arquitetônica de modo a
abrigar cada vez mais contingentes de torcedores que afluíam aos campos. A
organização do evento requisitava um planejamento maior, o que acionava a
intervenção das autoridades esportivas e dos interessados na promoção do
evento. Os diários esportivos eram os mais destacados nesse sentido, com a
invenção de concursos e com a criação de atrativos para animar a participação
dos espectadores.
A acomodação da assistência cada vez mais volumosa nos estádios era
uma preocupação freqüente das crônicas esportivas e os organizadores
pareciam cientes da magnitude assumida pelo espetáculo. Assim, já no início
dos anos 40, durante a disputa da Liga Carioca, uma polêmica em torno da
estrutura das arenas esportivas seria enfocada pelo Jornal dos Sports
63
. Ela se
daria no mês de setembro de 1943, logo depois de um incidente trágico
ocorrido em um jogo do Flamengo no estádio do São Cristóvão, clube da zona
norte da cidade, situado à Rua Figueira de Melo. No dia do jogo, as
arquibancadas de madeira não resistiram à superlotação e cederam, o que
resultou na morte de oito torcedores. O desabamento gerou uma discussão
acerca dos estádios de pequeno porte, mais característicos dos clubes da zona
norte e do subúrbio. A propósito, desde a década de 1910, Mário Filho já
registrava problemas nos estádios suburbanos. Em suas remotas recordações, os
jogos dos times da zona sul em Bangu costumavam causar transtornos, em
virtude do deslocamento dos torcedores pela via férrea. O translado provocava
inúmeras brigas e apedrejamentos, em uma recepção pouco amistosa por parte
dos moradores da localidade.
Em face do acontecimento trágico, o presidente da Federação
Metropolitana de Futebol (FMF), Vargas Netto, sobrinho do presidente da
República e ele próprio cronista do JS, muito próximo de Mário Filho, decretou
a interdição dos estádios com arquibancada de madeira. O decreto autorizava
apenas as praças de esporte dotadas de infra-estrutura de cimento, com
argamassas mais resistentes, tais como existiam nas Laranjeiras, em São
Januário, em General Severiano e na Gávea. O incidente contribuiria ainda para
63
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 21, 23 e 30 de setembro de 1943.
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a idealização de uma solução a longo prazo, que consistiria na construção de
um estádio da prefeitura do Distrito Federal, o Estádio Municipal do Rio de
Janeiro. Isto ocorreria no final da década de 1940, quando foi construído o
Maracanã, marco de uma nova era de praças de esporte monumentais, capazes
de receber públicos da ordem de cento e cinqüenta mil torcedores.
A medida de Vargas Netto não impediu a continuidade no registro de
distúrbios em estádios pequenos. No início dos anos 50, mais um incidente
ocorreria, desta vez no campo do Olaria, na Rua Bariri. Conforme o relato do
jornal, “Tradição de violência é antiga em Bariri”, os fatos não pareciam ser
novos nem episódicos. Desta feita, o problema se referia menos às dimensões
do estádio e mais à conduta dos torcedores do Flamengo, insatisfeitos após a
inesperada derrota de seu time.
No final dos anos 60, as confusões transcorridas no campo do Olaria
ainda permaneciam vívidas na lembrança de um jornalista. Depois de relatar
em nota os distúrbios da torcida do América em um modesto jogo contra o
Campo Grande, as reminiscências de um cronista o enviavam à remota
partida
64
: “Em 51, o Flamengo foi a Bariri. Era uma festa a presença do mais
querido e muito sururu ocorreu nas arquibancadas. Valia tudo, ou quase tudo:
garrafadas, pedradas, cascas de laranja. Policiamento como sempre deficiente e
só depois de muito tempo os ânimos serenaram.”
65
. Esses incidentes causavam
indignação por parte dos editores do jornal, que se valiam de seu espaço
destacado para decretar campanhas pela moralização do esporte: “Guerra à
violência” era o título do editorial do JS, pouco depois das confusões descritas
pelo cronistas. A avaliação dos conflitos que “maculavam” o futebol
compreendia um diagnóstico, a impunidade, e uma solução, a penalização
exemplar
66
.
A identificação das causas daqueles acontecimentos não parecia ter
efeitos imediatos. A despeito dos apelos e dos alertas dos especialistas
esportivos, a situação se prolongaria até os anos 70, quando o governo militar
deu início a um ciclo de construção de estádios, sobretudo na região Nordeste
do país. Em 1971, a reinauguração do estádio do Bahia, a Fonte Nova em
64
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 07 de setembro de 1967.
65
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1967, p. 04.
66
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1967.
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Salvador, contou com a presença do presidente Médici e da equipe do
Flamengo na festa de abertura, levando uma multidão à partida. A superlotação
gerou inúmeros transtornos e acidentes, que culminariam com a interrrupção do
jogo. Os editores do periódico relataram os transtornos ocorridos nesse tom
metafórico:
“Multidão em pânico não raciocina, vê apenas o perigo que o medo
coletivo gera e dá dimensões irreais. Avança como uma boiada em
estouro para o precipício. Não pára um instante para analisar uma
ordem ou uma denúncia, simplesmente age em grupo, perdendo sua
individualidade.”
67
.
A sucessão de desastres não se limitaria ao âmbito regional nem aos
estádios brasileiros. A repercussão de tragédias em estádios de todo o mundo
era digna de nota nos jornais brasileiros. Qual uma catástrofe natural, os
acidentes nos estádios ecoavam como uma pungente metáfora a lembrar todo o
furor dos cataclismos da natureza, com sua “força estranha”
68
. Os incidentes
trágicos que ocorriam nas praças de esporte fora do país inquietavam
sobremaneira os jornalistas, temerosos de sua repetição no Brasil. O relato de
desabamentos seguidos de mortes ganhava destaque nas manchetes do Jornal
dos Sports e conformava uma cronologia de acidentes chocantes. Um dos mais
conhecidos foi a tragédia ocorrida na partida entre Peru e Inglaterra em 1964,
que resultou na morte de trezentos e vinte torcedores, seguido em 1968 por
outro incidente fatal na cidade de Buenos Aires. Em 1971, dois meses antes da
tragédia na Fonte Nova, o jornal informava na primeira página um grande
desastre no exterior, desta vez no estádio de Ibrox, na Escócia: “Estádio
superlotado desaba e mata 66”.
69
. A fatalidade ocorrera durante um jogo entre o
Celtic e o Rangers, com oitenta mil assistentes, quando a arquibancada de
concreto cedeu, o que resultou, além das mortes, em cem feridos.
As explicações para os acontecimentos trágicos no futebol a que se
referiam essas matérias não se resumiam à imagem avassaladora e indômita das
forças naturais. Elas derivavam também daquele comportamento típico do
homem imerso na multidão. As justificativas podiam ser encontradas em um
67
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de março de 1971, p. 05.
68
Cf. ARAÚJO, R. B. “Força estranha”. In: Ciência Hoje. Rio de Janeiro, s.e., 1982, n.º 1.
69
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 03 de janeiro de 1971, p. 01.
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passado longínquo e apareciam expressas em antigas matérias do jornal. No
início dos anos 50, o Jornal dos Sports seria responsável por uma série de
reportagens dedicadas ao assunto. Ela vinha assinada por um obscuro cronista
do jornal, que não parece ter tido uma carreira longa no periódico de Mário
Filho. A caudalosa matéria de Inezil Penna Marinho, publicada no ano 1953,
traduzia com fidedignidade a visão espectral das manifestações populares no
esporte. Nela, era possível perceber como a interpretação acerca da psicologia
das massas do início do século continuava na ordem do dia, penetrando os
domínios públicos dos estádios de futebol. Ao todo, quatro extensos artigos
punham em interrogação as multidões no esporte, seu vulto, suas
características, suas origens. Os textos assinados por Inezil vinham publicados
ao longo de toda a primeira semana de novembro daquele ano, embora sem
grandes projeções no corpo do jornal.
Sob a chamada geral de A Torcida Esse Gigante, a série vinha dividida
em quatro longos capítulos: “1 – Classificação das multidões”; “2 –
Características das multidões”; “3 – O comportamento da torcida”; “4.
Documentário”. A leitura mostra que não seria preciso nenhuma escavação
arqueológica dos discursos, nem tampouco qualquer dedução de teorias
científicas inscritas de forma sutil ou diluída nas narrativas jornalísticas. A
filiação teórica vinha estampada com todas as letras no texto do repórter.
Conquanto muito alentadas, as matérias são transcritas na íntegra a seguir, pois
reproduzem ipsis litteris a teoria vulgarizada por Gustave Le Bon e aplicada
desde então com freqüência ao torcedor de futebol. Como se pode aferir, a
concepção era subscrita e reiterada também por cronistas de esporte de meados
do século XX:
“A Torcida esse gigante”. “1 – Classificação das multidões”:
“Gustave Le Bon (‘Psychologie des foules’) classificou as multidões
em dois grupos: heterogêneas e homogêneas. As primeiras são as
anônimas – como as rueiras – e não anônimas – jurados, assembléias
parlamentares, etc e as últimas abrangem, na ordem de
complexidade crescente, as seitas políticas, religiosas, etc. as
castas militar, sacerdotal, etc e as classes, burguesa, por exemplo.
A torcida é uma multidão no sentido do grupo heterogêneo e anônimo:
os indivíduos que a compõem são suscetíveis de reações psicológicas
uniformes. A multidão se caracteriza, assim, pela perda da
individualidade da pessoa no grupo; é um ser provisório formado de
elementos heterogêneos que por um instante se unem, traídos pela
força irresistível de um sentimento ou interesse comum. A
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personalidade consciente se desvanece, os sentimentos e as idéias de
todas as unidades são orientadas em uma mesma direção. Forma-se
uma alma coletiva, transitória sem dúvida, mas que apresenta
caracteres muito definidos. Pouco aptas para o raciocínio, as multidões
são, ao contrário, muito aptas para a ação. As civilizações, assim o
afirma Gustave Le Bon, não tem sido criadas nem guiadas senão por
uma pequena aristocracia intelectual, nunca pelas multidões; estas não
têm poder para criar, mas somente para destruir. Raul Briquet
(‘Psicologia Social’) escreve: ‘Para que o grupo passe ao estado de
multidão, são precisas quatro condições: a) objetivo comum para o
comportamento de todos os indivíduos; b) – razões idênticas de ação;
c) – fator emotivo externo, representado por determinado grupo ou
indivíduo que o simboliza, e em relação ao qual a multidão alimenta
sentimento de medo, hostilidade ou vingança; d) – líder, que consolide
as aspirações da coletividade e lhe guie a ação. O líder não é
obrigatoriamente personificado. Na multidão formada em derredor da
vítima de um acidente, o sentimento geral de simpatia pelo sofrimento
alheio é a imagem que reativa a emoção’. Para Gustave Le Bon é fácil
comprovar o fato de que o indivíduo em multidão difere do indivíduo
isolado, mas bem difícil se torna descobrir as causas dessa diferença.
Eis as suas próprias palavras tentando explicá-las: ‘Diversas são as
causas que determinam os aparecimentos desses caracteres especiais
na multidão, e que os indivíduos isolados não possuem. A primeira é
que o indivíduo em multidão adquire pelo só fato do número, um
sentimento de poder invencível que o leva a ceder a instintos que só,
seguramente os teria refreado. Essa falta de freio se dará tanto mais
quanto o anonimato implica a irresponsabilidade: o temor, o
sentimento da responsabilidade, que retém o homem, desaparece
inteiramente. A segunda causa, o contágio, intervém igualmente para
determinar as multidões a manifestação de caracteres especiais e, ao
mesmo tempo, sua orientação. O contágio é um fenômeno fácil de
comprovar, mas não explicado, e que é preciso unir os fenômenos de
ordem hipnótica, que estudaremos a seguir. Numa multidão, todo o
sentimento, todo ato, é contagioso, e contagiosos até o ponto do
indivíduo sacrificar muito facilmente seu interesse pessoal ao interesse
coletivo. É esta uma atitude muito contrária a sua natureza, e da qual
não é quase capaz o homem senão quando toma parte de uma
multidão. Uma terceira causa, que é muito mais importante, determina
nos indivíduos em multidão caracteres especiais, às vezes
completamente contrários aos do indivíduo isolado. Quero falar da
sugestibilidade, na qual o contágio mais intenso é somente um efeito.
E conclui: ‘Desvanecimento da personalidade consciente, predomínio
da personalidade inconsciente, orientação por via da sugestão e
contágio dos sentimentos e das idéias num mesmo sentido, tendência a
transformar imediatamente em atos as idéias sugeridas: tais são, pois,
os principais caracteres do indivíduo em multidão. Não é o indivíduo
mesmo, é um autômato em quem a vontade não prepondera. Assim,
pelo só fato de formar parte de uma multidão organizada, o homem
desce muitos degraus na escala da civilização. Isolado, seria talvez um
indivíduo culto, em multidão, é um bárbaro, isto é um impulsivo. Tem
as espontaneidades, a violência, a ferocidade e também os entusiasmos
e os heroísmos dos seres primitivos.”
70
.
*
70
Cf. JORNAL DOS SPORTS, 05 de novembro de 1953, p. 05.
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385
“A Torcida esse gigante”. “2 – Características das multidões”: “O
que sempre domina na alma das multidões não é a ânsia de liberdade,
mas a de servilismo. E, se ampliarmos as proporções dessa
irreprimível necessidade de obediência, veremos muitos povos
renunciarem a sua própria liberdade e escolherem – ó ironia! – pelo
direito democrático de voto aquele que os há de tiranizar. A ânsia de
obediência é tal que as multidões instintivamente se colocam a serviço
de quem se lhes impõe, do mais hábil no mando, do mais audacioso na
escolha de seus objetivos, do menos escrupuloso na seleção dos meios
que levam aos fins colimados. Segundo Raul Briquet, três são as
características do comportamento da multidão: o predomínio do
inconsciente, definido pela hiperemotividade e raciocínio elementar; a
sugestibilidade e a irreprimibilidade do desejo e ação. O predomínio
do inconsciente se traduz com o transporte da multidão pelo
sentimento; ela se arrebata na excitação emotiva, mas não raciocina. O
indivíduo renuncia à própria personalidade e quer, sente e age com a
maioria. A segunda característica da multidão – sugestibilidade – se
identifica pela onda contagiosa que a tudo domina e a todos impede
raciocínio claro. E a ‘reação será tanto mais intensa quanto maior o
número de pessoas nas quais se verifica’. A irreprimibilidade de
desejo e ação leva a multidão a agir impetuosa e agressivamente,
exigindo a satisfação de seus desejos, sejam estes de que natureza
forem. A multidão apresenta sempre uma sangüissedência
inconsciente, que se traduz pelo desejo de fazer justiça com as
próprias mãos. Porto Carrero se refere a tal fato quando lembra
aqueles que julgam que só com muito sangue as coisas endireitam.
Martin conta certo caso verificado em cidade do sul dos Estados
Unidos, onde foi linchado o jurado cujo voto provocara a absolvição
de um réu negro; este escapara à punição, mas aquele pagara em seu
lugar. É interessante assinalar o aspecto psicológico da vingança, que
não é apenas individual, mas também coletiva e, aí, em grau muito
mais elevado. A indignação pública contra o réu nos primeiros
momentos que sucedem o crime é quase insopitável, o ódio ao
delinqüente se avoluma e o povo deseja que ele sofra, que pague
imediatamente pelo crime cometido. O linchamento é a manifestação
coletiva do desejo de vingança. Os caracteres gerais das multidões
denominadas criminosas são exatamente os observados em todas as
multidões: sugestibilidade, credulidade, mobilidade, exageração dos
sentimentos bons e maus, manifestações de certas formas de
moralidade, etc. É interessante assinalar que na multidão não existe
responsabilidade pessoal e é justamente disso que muitos indivíduos
se aproveitam para dar expansão a instintos recalcados pelas
contingências da vida social, pelo temor ao castigo correspondente a
tais ações. O indivíduo espera que na multidão não será reconhecido e
que ninguém se animará como responsável. Persuade-se de que seus
atos ficarão ocultos por não ser possível punir a todos os
participantes.”
71
.
*
“A Torcida esse gigante”. “3 – O comportamento da torcida”: “A
torcida nada mais representa que uma multidão em que cada um dos
indivíduos que a compõem perde a sua personalidade, a sua vontade
individual e adquire as características que identificam aquele grupo. O
torcedor é, em geral, um indivíduo habitualmente morigerado, que
71
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de novembro de 1963, p. 05.
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trabalha durante toda a semana, cumpre fielmente as suas obrigações,
obedece às ordens de seus superiores, é incapaz de ofender uma
pessoa a quem não conhece e nada lhe fez e muito menos de agredi-la:
afável, bem educado na acepção comum da expressão. Mas, quando
na multidão, como integrante da torcida, ele sofre transformação
radical. É capaz de dirigir os maiores insultos ao juiz ou aos jogadores
da equipe adversária, atirar-lhes garrafas ou pedras, agredi-los se tiver
oportunidades e estiver em boa situação; torna-se exaltado, perde
inteiramente o controle sobre si mesmo e não lhe será impossível
depredar o estádio, o ginásio ou a piscina, incendiá-los e até matar
aqueles que se opuserem aos seus intentos ou se tiverem se
transformado em alvo de sua ira. Só conhece uma justiça: aquela que
emana das suas mãos. O juiz é quase sempre a vítima escolhida, é o
alvo da sua ira, o motivo de sua vingança. Toda a tempestade de seus
sentimentos, todo o tumulto de seu interior tem por causa, geralmente,
a figura do juiz. Dificilmente poderá reconhecer que o mesmo agiu de
modo imparcial; julga sempre que prejudicou o seu clube
propositadamente, que é um ‘ladrão’, que estava ‘comprado’ e outras
coisas semelhantes. Não raciocina com lucidez e é vítima de grande
número de erros de percepção pela paixão que o domina, pelo
partidarismo que lhe impede analisar os fatos como são, perceber os
objetos da sensação sem lhes. Vê coisas que não existem, deturpa os
fatos, protege inconsciente, subconsciente ou conscientemente os
interesses de seu clube e dos jogadores que integram a equipe deste.
Raramente reconhece as faltas praticadas por tais jogadores, ainda
quando são flagrantes e incontestáveis. Como em toda a multidão,
também existem instintos sanguinários na torcida. Ela prefere o jogo
bruto, as intervenções violentas, as jogadas perigosas numa sede de
sensações, num desejo de fortes emoções. Não raro anima os
jogadores a que machuquem ou inutilizem os adversários. Frases
como estas são bastante comuns nos campos de football: ‘Dá-lhe
duro’, ‘Quero ver sangue!’, ‘Arrebente-lhe a canela!’, ‘Tira de campo,
inutiliza logo!’, ‘Aleija esse desgraçado’. E isso nos faz lembrar os
jogadores circenses tão do agrado dos romanos, em que o sangue era
elemento indispensável. E quanto mais sangue, maior o prazer
suscitado. As corridas dos aurigas, embora assaz emocionantes, foram
cedendo lugar aos combates entre os gladiadores, os quais terminavam
quase invariavelmente com a morte de um dos contendores. ‘Ave
César, imperator, morituri te salutant’ era a saudação dos que tinham
de matar para não morrer. E, se por acaso algum deles caía vencido,
desarmado, impotente, e clamava perdão a César, este indagava do
populacho a resolução, sempre assim expressa: ‘Mata! Mata!’. E o
imperador baixava o braço, gesto seguido do golpe de misericórdia do
vencedor daquele dia, que não estava livre de ser o vencido no
espetáculo seguinte. E os próprios combates entre os gladiadores
foram sendo substituídos por outros números mais extravagantes,
como lutas entre feras reconhecidamente inimigas, entre homens e
feras e, finalmente, pelos massacres aos cristãos acusados por Nero
como incendiários de Roma. Após a Revolução Francesa, as praças
onde se erguiam as guilhotinas viviam apinhadas de gente que ali ia
unicamente para ratificar a sangüissedência insopitável. Os melhores
lugares eram disputadíssimos e as mulheres que se ocupavam ali horas
a fio, fazendo crochê, enquanto o espetáculo não começava. E bem
ufanas se mostravam quando suas roupas ficavam salpicadas pelo
sangue dos condenados, ao rolarem suas cabeças nas cestas que as
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recolhiam. Cerremos por um instante os olhos e procuremos
reconstituir a cena de um espetáculo no Coliseu. Transportemo-nos
agora para qualquer de nossos estádios durante uma partida de
football. Que pouca diferença existe entre os espetáculos públicos que
vinte séculos de civilização separam! Os gladiadores substituídos por
jogadores, que ao invés de lançarem a rede sobre a antagonista como
os reciários, devem levar a bola ao ‘goal’ contrário; as arquibancadas
são as mesmas e a multidão de espectadores nada mudou. Apenas,
mais humanizada, disfarça talvez os seus instintos primitivos não
exigindo a morte dos vencidos; compraz-se com uma cena de pugilato
entre os jogadores, ou entre estes e o juiz, com a jogada violenta que
fratura a perna de um adversário ou lhe arrebenta o supercílio. E
quando tais cenas não são possíveis, a sua insatisfação é tanta, que não
raro os elementos que a compõem são obrigados, eles próprios, a se
transformarem em gladiadores romanos. Tais são as cenas que se nos
deparam, muitas vezes, nos campos de football. Como vemos, a
torcida não mudou muito nestes últimos dois mil anos.”
72
.
*
“A Torcida esse gigante”. “4. Documentário”: “Há que assinalar
os casos em que a ‘torcida’ não se conforma com a derrota da equipe
da sua predileção e procura desagradá-la com manifestações hostis aos
vencedores, que vão desde as vaias até as pedradas e outras formas de
agressão. Um telegrama de ASA Press, procedente de São Paulo, e
publicado no JORNAL DOS SPORTS, de 10 de abril de 1946,
noticiava o seguinte: ‘Já se encontra nesta capital, de regresso de sua
recente e vitoriosa temporada em Porto Alegre, a delegação do
Palmeiras. Todos os seus integrantes se mostram satisfeitos com a
execução e com o tratamento recebido por parte dos dirigentes
gaúchos. Contudo, não deixam de lamentar o ambiente sobremodo
carregado que cercou o ‘match’ de encerramento com o Internacional,
com cuja derrota não se conformou a ‘torcida’ local, tomando uma
atitude de tal modo hostil que, ao final, a polícia teve de entrar em
campo para proteger os jogadores alviverdes, sendo que Rodrigues e
Mantovani ficaram sem poder sair do gramado cerca de hora e meia’.
Julgamos interessante ilustrar com mais as seguintes notícias
escolhidas entre as dezenas que possuímos e que seriam suficientes
para constituir um grosso volume. ‘Na estrada Rio São Paulo, ao
regressarem em automóveis, do campo do Bangu onde venceram o
clube local, os jogadores do Vasco da Gama foram apedrejados por
torcedores exaltados que não se conformaram com o resultado da
partida. Foi atingido por uma das pedras o jogador do quadro de
aspirantes, o guarda civil Almir Nunes Ribeiro, de 25 anos, casado,
morador à Rua Getúlio, 209, o qual sofreu um sofrimento contuso no
supercílio direito, sendo socorrido pela Assistência do Méier
(Publicado no ‘Diário de Notícias’ de 14-9-1943). NOTÍCIAS
ARREPIANTES A RESPEITO DE UM ESPETÁCULO
DEPRIMENTE. Eis outra notícia publicada pelo mesmo jornal:
‘Ligeiras ocorrências foram assinaladas na tarde policial, domingo, em
Guaratinguetá Um morto e 14 feridos O juiz ameaçado
Impotente a polícia para manter a ordem, tendo perdido a vida um
inspetor Indignação em Taubaté. S. Paulo, 13 (Asapress) –
chegaram a esta capital notícias arrepiantes a respeito do espetáculo
72
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de novembro de 1953, p. 07.
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deprimente em que degenerou a disputa do clássico encontro realizado
em Guaratinguetá, entre as equipes da A. A. Guaratinguetá e do E. C.
Taubaté, na decisão do campeonato regional de football. RECEPÇÃO
MUITO ‘DURA’... Os excurcionistas (sic) taubateanos foram
recebidos a pedradas pelos aficionados do clube local, o que deu
origem a sérios incidentes que precederam outros conflitos mais
graves, ocorridos durante o desenrolar da partida, que foi muitas vezes
interrompida e truncada por ‘encrencas’ que envolveram mais de 500
pessoas. ‘OU APITA OU MORRE’... A polícia local foi impotente
para manter a ordem ou sequer controlar a situação que cada vez mais
se agravava. O juiz da peleja foi obrigado a levar o jogo a termo, pois
foi apedrejado quando tentou suspender a partida e ameaçado de
morte, caso se negasse a continuar apitando. 14 FERIDOS E UM
MORTO. Antes, durante e depois do jogo foram muitas as ocorrências
de ordem policial que deslustraram a tarde ‘esportiva’. Quase seria
mais razoável dizer que ‘ligeiras ocorrências esportivas foram
assinaladas naquela tarde policial’... Nesses acontecimentos,
verdadeiramente brutais, teve-se a registrar um balanço espantoso: 14
feridos e um morto. O morto no conflito é um inspetor de
Guaratinguetá. TIROS E OUTRAS COISAS. Durante os conflitos
foram disparados muitos tiros. Os automóveis de Taubaté foram
alvejados repetidas vezes. O diretor da Rádio Taubaté, que viajava
num deles foi ferido à bala. O carro de transporte coletivo da ‘Pássaro
Marrom’, que transportava os jogadores de Taubaté, foi baleado e
depredado. Em conseqüência desses tristes acontecimentos, o povo de
Taubaté está profundamente indignado, esperando-se que na primeira
oportunidade haja represálias mais graves. Os excursionistas
regressaram a Taubaté em automóveis, conduzindo pessoas feridas
que se apresentaram com as roupas em ‘frangalhos’. E para concluir
apenas esta inserta em O GLOBO de 11-6-1945, edição das 11 horas,
página 10: ‘ASSASSINARAM O JUIZ: Crime revoltante cometido
por jogadores e ‘torcedores’ de um team italiano. MILÃO, 11 (A.F.P.)
– ‘O juiz foi torturado e, em seguida, ao ‘match’ que esse clube
realizou com um team de football de uma cidade vizinha, realizado em
Oceilliano’. Esta foi a informação publicada pelo jornal ‘Corriere
Lombardo’, acrescentando que os assassinos do juiz assistiram a sua
agonia, lançando-o, em seguida, numa fossa do cemitério. O mesmo
jornal informa que seis jogadores da equipe convidada saíram
gravemente feridos, tendo sido aberto inquérito. Tais notícias
constituem uma pequena amostra dos desvarios a que o football pode
levar a ‘torcida’.
73
Os longos relatos acima evidenciam de maneira paradigmática a crença
arraigada nas versões deterministas de fundo arcaizante. Segundo o cronista, os
impulsos arcaístas do comportamento humano em grupo apresentavam toda a
sua cruel “sangüissedência”. Tão antigos quanto os relatos bíblicos, esses
impulsos podiam ser localizados quer no Velho Testamento quer nas tragédias
gregas quer até mesmo nesses textos correntes de jornais do século XX. Deste
73
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de novembro de 1953, p. 11.
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modo, por sua quase onipresença, essas narrativas receberam a atenção de
ciências humanas como a antropologia e a psicanálise, estando em alguns casos
presente em seu próprio discurso. O mimetismo instintivo e a natureza
mimética do desejo eram remontados por Freud em Totem e tabu (1913) ao
parricídio da “horda primitiva”, um termo extraído por sua vez da leitura
Darwin. Com elogios também a Le Bon, o pensamento freudiano interpretava
de um modo psicanalítico o material recolhido por etnógrafos e etnólogos, na
medida em que Freud tinha à disposição textos tais como O ramo de ouro de
James Frazer e o verbete sobre o tabu, do antropólogo Northcote W. Thomas,
publicado na Enciclopédia Britânica.
Já o ensaio “Psicologia das massas e análise do eu” (1921)
74
tinha como
fonte a alma coletiva de que tratou Gustave Le Bon no seu conhecido livro. A
remissão de Freud vai à crucificação do líder da multidão como mito da gênese
da cultura, como origem fundadora da civilização, revelando de que modo as
impurezas da sexualidade advinham de sua relação com atos violentos. A
função sacrificial consistia, pois, na “purificação”
75
da violência, na
identificação de um bode expiatório, no apaziguamento da explosão terrificante
em que vítimas e culpados criavam um sistema de rivalidades crescentes. A
religião primitiva, tema de Freud também em Moisés e o monoteísmo,
consagrava-se dessa maneira ao objetivo de impedir a reciprocidade e a
escalada da violência. O sacrifício impunha assim uma transferência coletiva
no seio da comunidade, mediante a canalização da agressividade em uma única
vítima, forma encontrada nas sociedades ditas sem classes e sem sistemas
judiciários para expiar as tensões internas.
Essas considerações eram assimiladas e redivivas com toda pujança no
meio esportivo, reverberando igualmente em âmbito nacional. Ventríloquos da
fobia coletiva, cronistas esportivos como Innezil nada mais faziam do que
atualizar, nos estádios de futebol do Brasil, os rituais de sacrifício e o
obscurantismo teorizado por diversos autores, nas especulações em torno da
iminência de um retorno ou de uma regressão ao barbarismo recalcado que
tanto atemorizou a Europa no último quarto do século XIX. À maneira das
74
Cf. FREUD, S. Psicología de las masas. Madri: Alianza Editorial, 2005.
75
Cf. GIRARD, R. A violência e o sagrado. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista,
1990, p. 53 e 76.
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aglomerações políticas, civis ou religiosas, a turba esportiva agia de modo
intempestivo, buscando a satisfação de suas vontades e extravasando seus
desejos reprimidos.
Por um lado, os acontecimentos em campo sugestionavam as ações dos
torcedores, que apresentavam um baixo grau de tolerância frente aos resultados
adversos. Concebida nos moldes olímpicos do fair-play, a prática do futebol
cedo era desvirtuada de sua característica original, de sua vocação primígena,
de sua força motriz. Na ótica daquele cronista, os lances em campo ativavam o
potencial convulsivo das massas nas arquibancadas. Os diversos atores do
futebol jogadores, juizes, técnicos e dirigentes também eram tidos em
certos momentos como co-responsáveis pelos incidentes, pois serviam de
centelha à irrupção da cólera do público. Assim, a postura violenta no gramado
contribuía, de forma mimética, para impelir a conduta inflamada dos
espectadores nas tribunas.
Em 1967, o noticiário relativo a um encontro entre equipes européias e
sul-americanas, válido pelo torneio intercontinental recém-criado, mostrava
como o caráter antidesportivo não era exclusivo aos torcedores e provinha do
exemplo dos excessos dos jogadores em campo. Isto contribuía para a
desconstrução da imagem cultivada pela imprensa brasileira acerca da
decantada sobriedade dos povos britânicos. Em “Fleugma e violência”, os
editores do Jornal dos Sports, arautos e guardiões dos princípios desportivos,
descreviam as arbitrariedades do jogo, emitindo opiniões sobre o significado do
encontro entre equipes internacionais:
“No jogo seis expulsos, cusparadas, socos, pontapés e uma
agressividade mútua que os comentaristas declaram jamais ter sido
visto no futebol internacional. Fora do campo, críticas severas,
principalmente por parte dos jornais ingleses e escoceses. Nos clubes,
penalidades sem exceção, com multas aplicadas aos jogadores dos
dois times. Foi nesse clima e é com essa repercussão que está
existindo uma página triste da história do futebol, protagonizada pelo
Racing, da Argentina, e o Celtic, da Escócia, ao decidirem o título
mundial de clubes em Montevidéu. Inicialmente, devemos lamentar
que o esporte ainda seja palco de fatos assim, estendendo o temor ao
que espera a Taça Mundial, tão comprometida pelos incidentes que,
ano após ano, se sucedeu em sua disputa. São contribuições negativas
para o futebol, já atingido por uma onda de violência que se generaliza
nos campos da Europa e da América do Sul. Mas o que aconteceu em
Montevidéu tem, para os brasileiros, outro significado. Prova que,
apenas de alguns arranhões logo combatidos com energia o
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futebol recebe no Brasil todo um tratamento ainda pautado na
disciplina esportiva, provando também que a fleugma britânica, que
tanto se horrorizou na Copa do Mundo com o procedimento sul-
americano, se transforma em fúria com muita facilidade. Dependendo
evidentemente das circunstâncias como, por exemplo, a de ganhar
um título a qualquer preço, mesmo o da violência. (Editorial JS –
Ênnio Sérvio e Paulo Ney Dória).”
76
.
As considerações gerais sobre desordens e tumultos traziam implícita a
concepção de uma teoria funcionalista do futebol e de sua correspondente
ameaça anômica. De tempos em tempos, o futebol parecia ser acometido por
crises, responsáveis pelo rompimento da estabilidade na vida esportiva. A
concepção geral era a de que havia forças ocultas que conspiravam contra os
ideais dos esportes. Tais forças retiravam as bases em que se sustinha o
equilíbrio precário dos esportes. As sanções pareciam ineficazes para impedir
as infrações ao sistema igualitário e meritocrático do futebol, epifenômeno das
leis da sociedade de mercado, tal qual analisada pelo austríaco Karl Polanyi
logo após a Segunda Guerra mundial, em A grande transformação
77
. Mas um
limite tênue pendulava entre a regulação e a desregulação dessas leis que
separavam então a civilização da barbárie, a regeneração da degeneração, a
cooperação do conflito, a igualdade da hierarquia, a estabilidade da
instabilidade. A possibilidade iminente de rompimento dessa cadeia que unia
diversos elementos contrários deixava os comentaristas sempre alertas para os
riscos da anomia. A função mais ancestral do jogo, a sublimação da guerra, era
lembrada com freqüência pelos jornalistas.
A dimensão primitiva sagrada dos torneios era evocada em um editorial
do final dos anos 60, intitulado “Esta guerra nem sempre santa”. Nele, os
editores delineavam a fronteira limítrofe entre o lúdico e o agônico, que os
contendores se encarregavam de representar em campo:
“Foi Ondino Vieira, o uruguaio que tanta contribuição deu ao futebol
brasileiro, quem classificou o campeonato de guerra. Na interpretação
elástica do termo, é exatamente uma guerra: de tática, de técnica, de
influência, de prestígio, de favoritismo e – especialmente – de nervos.
É a guerra do campeonato carioca que hoje vive as suas primeiras
batalhas. E, de todas as que foram até hoje deflagradas, é a única com
prazo fixo. Começa hoje e termina improrrogavelmente no dia
76
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1967, p. 04.
77
Cf. POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro:
Campus, 1980.
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marcado, caso não haja necessidade de um combate extra, mas de
pouca duração, uma semana, se muito. É a única também em que os
adversários, mesmo lutando entre si, têm valores diferentes. A guerra
do campeonato condensa as próprias paixões humanas. Tem emoção,
riso, choro, maldade. E o suborno, onde entra ? Muito mais no
folclore, certamente, do que na vida real. Guerra de pouco sangue,
embora suada e sofrida. Guerra sim mas sempre esporte, com suas
irradiações sadias e total penetração nas camadas mais jovens do
povo: até crianças dela já participam na torcida das arquibancadas e no
calor de suas vibrantes exibições nos campos. Vai começar a guerra. É
a guerra, amigos. Escolham seus soldados preferidos, empunhem as
sagradas bandeiras dos clubes e gritem à vontade pela vitória. Só um
pode ganhar, entre fortes e fracos. Ao fim da luta, entretanto, sobrará a
certeza de que nada no mundo se compara ao espetáculo do futebol.
(Equipe JS).”
78
.
A conceituação dos esportes como um “antagonismo em equilíbrio” – o
termo é de Gilberto Freire compreendia a enumeração dos fatores que
concorriam para as disfunções do sistema. Em seguida à exposição de seus
sintomas mais genéricos, cabia uma sondagem das causas específicas que
cumpria analisar e desbaratar. À parte a influência nociva emanada do campo, o
comportamento da torcida era analisado pelos jornalistas em função da sua
relação com a polícia. Estas consistiam sobretudo na contenção das
transgressões entre torcedores nos estádios. Em 1968, por exemplo, pouco
depois do editorial acima citado, o Jornal dos Sports discorria sobre medidas
mais rígidas na fiscalização feita pelo policiamento no Maracanã, com vistas a
contornar a antidesportividade crescente no estádio, tal como considerada na
matéria “Polícia não quer nem olé”
79
. As iniciativas não parecem ter surtido
efeito duradouro, pois o tema voltaria à baila um ano depois. Desta vez era o
cronista José Castelo, em sua coluna O jogo da torcida, quem abordava o
tópico: “O ódio não faz campeão”
80
. Na crônica, escrita em forma de libelo
contra a intolerância, a questão girava em torno da agressividade da torcida do
Flamengo que, mesmo com a vitória do time sobre o até então bicampeão
carioca, Botafogo, queimara bandeiras alvinegras ao final do jogo.
José Castelo endossava o colega Fernando Horácio, que em sua coluna
também discorria sobre a ação intolerante dos rubro-negros. Interpelado sobre a
queima de bandeiras, o conselheiro do Flamengo, Ivã Drummond, justificava-
78
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 09 de março de 1968, p. 06.
79
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de junho de 1968, p. 05.
80
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de junho de 1969, p. 02 e 04.
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393
se dizendo que em 1969 a “guerra” entre as torcidas havia assumido proporções
jamais alcançadas nos campeonatos anteriores. E concluía: “É palavrão em
coro, são agressões e tudo mais”
81
. No decorrer da década de 1970, tal
procedimento se intensificaria. Além da campanha contra a queima de
bandeiras, Luiz Bayer, em sua “Seção Câmara”, defendia o fim dos foguetes
nos estádios, após o incidente de um petardo que atingiu uma criança
82
. De
ornamento da festa, os fogos de artifício haviam se tornado para muitos
utensílios bélicos. Em 1974 o mesmo colunista voltava a tecer considerações
sobre a conduta torcedora, referindo-se aos “novos métodos de torcer” nos
estádios. À “ridícula cena de queima de bandeiras”
83
, somava-se a prática da
destruição das faixas das torcidas adversárias. A esta inovadora “metodologia”,
juntavam-se os “estribilhos chulos” que apareciam nesse momento também nas
arquibancadas, com vistas a detratar os torcedores do time adversário
84
.
A sucessão de avaliações críticas dos cronistas teria algumas exceções à
regra, que ficariam a cargo dos irmãos Rodrigues no Jornal dos Sports. Na
década de 1970, as antigas crônicas de Mário Filho sobre o aparecimento da
multidão nas praças esportivas eram reproduzidas. Em um delas, fazia-se a
descrição até certo ponto idílica das Laranjeiras em 1936, um estádio multicor
com a profusão de lencinhos abanados pelos torcedores, quando o jornalista
promoveu o primeiro concurso entre torcidas do Fluminense e do Flamengo.
Enquanto as crônicas saudosas de Mário Filho eram reeditadas no jornal
85
, a
fim também de fixar o seu nome como o de um vulto criador entre as novas
gerações, o seu irmão Nelson Rodrigues comentava jogos da atualidade cuja
magnitude ultrapassava a lembrança dos primeiros tempos do futebol no Rio de
Janeiro. Ao narrar a partida semifinal do Campeonato Brasileiro de 1976,
disputado entre Fluminense e Corinthians, o cronista tricolor dava foros épicos
à famosa invasão corintiana, com a presença das massas no futebol, segundo
ele, um fenômeno recente na história da humanidade
86
.
Se os torcedores eram, na maioria das vezes, os protagonistas da
violência que tanto repugnava os comentaristas, em determinadas ocasiões
81
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de junho de 1969, p. 05.
82
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de agosto de 1970, p. p. 04.
83
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1979, p. 04.
84
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1974, p. 04.
85
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1976, p. 03.
86
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 1976, p. 16.
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também eles podiam ser as vítimas, os alvos das agressões. No final dos anos
70, os jornalistas relatavam as queixas dos torcedores que eram assaltados com
freqüência à saída do Maracanã. A insuficiência do policiamento fazia das
imediações dos estádios um lugar de medo, mal-iluminado, abandonado e
rondado por “pivetes” que geravam um clima de insegurança entre muitos
espectadores
87
. Em maio de 1980, após mais uma rodada dupla no Maracanã,
com mais de cem mil espectadores, uma situação extrema: a torcedora Cristina
de Albuquerque Faria, de quinze anos, integrante da Raça Rubro-Negra, reagiu
a um assalto na saída do estádio e morreu esfaqueada. A morte teve grande
repercussão na imprensa, com pesares dos torcedores dos diversos times na
seção de cartas Bate-Bola e com matérias do Jornal dos Sports sobre o caso.
Na semana subseqüente ao incidente fatal, os repórteres do JS interrogavam as
autoridades competentes, o chefe do policiamento e o gestor do Maracanã, que
prometiam a implementação de um novo esquema de segurança no entorno do
estádio
88
.
Dois anos antes, em setembro de 1978, uma cobertura com destaque na
manchete do jornal abordaria a violência policial contra o chefe de uma torcida
organizada. A discussão fora levantada após as denúncias de agressão e de
intimidação sofrida pelo líder da Raça Rubro-Negra, Cláudio Cruz, que levou o
caso ao presidente do Flamengo, Márcio Braga. Este por sua vez divulgou a
acusação e convocou a imprensa na Gávea, onde os jornalistas entrevistaram e
fotografaram o torcedor. Após a matéria na primeira página do Jornal dos
Sports e a repercussão entre as emissoras de televisão da cidade, o inquérito
terminaria nos tribunais de Brasília, com o afastamento dos dois soldados do
sexto batalhão da Polícia Militar. Eles haviam espancado Cláudio e o colega
chamado Rogério, depois de achacá-los e pressioná-los a confeccionar as
camisas da torcida em uma malharia de sua preferência. Ante a resposta
negativa de Cláudio, os policiais o agrediram e o perseguiram. Além das
ameaças, os policiais passaram a instigar os torcedores não-uniformizados, que
assistiam às partidas sentados, a arremessar garrafas nos componentes da Raça.
87
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de maio de 1989, p. 07.
88
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de maio de 1980, p. 07.
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Isto porque estes tinham recém-iniciado a tradição de assistir aos jogos em pé,
o que gerava muita discórdia naquele setor das arquibancadas
89
.
Mas, longe de ser apenas vítimas, no início dos anos 80, os torcedores
eram também agressores e matérias sobre sua agressividade começariam a
proliferar da Europa para o Brasil. O foco principal era aquele personagem que
ficava conhecido em âmbito internacional como hooligan. Mesmo o
encomiástico Nelson Rodrigues, em sua coluna Bom Dia, ponderava já em
1978 sobre os arroubos de violência que campeavam na Inglaterra
90
. Com base
em fotos divulgadas pela agência de notícias AFP (Agence France Press) para
o todo mundo e também para o Brasil, o Jornal dos Sports reproduzia em
primeira página, no ano de 1981, imagens dos “temíveis” torcedores do
Glasgow, que haviam provocado uma série de distúrbios em estádios europeus,
no Camp Nou de Barcelona, na Wembley de Londres e no Parc des Princes de
Paris
91
.
No ano seguinte, às vésperas da Copa do Mundo de 1982, outra
manchete alarmante na segunda página dizia: “Violência em Londres
torcedor é morto a facadas”
92
. Na matéria, aventavam-se com receio possíveis
ações holligans na Espanha, por ocasião do torneio mundial, em um problema
que, de acordo com o periódico, se agravara nos últimos dez anos, quando
vários incidentes vinham sendo protagonizados pelas turmas do Totteham, do
Glasgow Rangers e do West Ham. No final de 1982, após a realização da Copa,
aquele comportamento não parecia ter sido controlado; ao contrário, ele parecia
ter-se alastrado por boa parte da Europa, como dizia um repórter no texto
intitulado “Violência dos torcedores deixa alemães apavorados”
93
. Na matéria,
o jornalista recorria ainda a um sociólogo para explicar a crescente “descarga
de tensões” de que o meio esportivo era palco
94
. No final da década de 1980,
após a tragédia no Hillsborough Stadium, o cronista Roberto Porto evocava no
JS uma experiência pessoal vivenciada em 1978, quando sozinho no interior de
um trem em Londres quase foi espancado pelos hooligans
95
.
89
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 20 e 22 de setembro de 1980, p. 03 e 01.
90
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de outubro de 1978, p. 14.
91
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1981, p. 01
92
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de maio de 1982, p. 02.
93
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 20 de outubro de 1982, p. 09.
94
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1982, p. 09.
95
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de maio de 1989, p. 02.
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A influência nefasta daquele tipo de torcedor não demoraria a alcançar
também os campos da América do Sul. Depois de acolher as informações
enviadas da Europa, o Jornal dos Sports absorvia também as notícias
provenientes dos periódicos esportivos da Argentina. Em 1984, a violência
parecia já ter extrapolado os níveis de tolerância dos jornalistas argentinos e
parcelas consideráveis dos torcedores portenhos eram vistos como um mal, um
problema a ser banido do futebol. A questão se ampliara de tal maneira que o
JS resolvia transcrever na íntegra as reportagens enviadas por El Gráfico. A
indignação dos periodistas argentinos e brasileiros voltava a enfocar o “pânico
moral” instaurado pelos nocivos torcedores. Ao menos, este era o tom principal
da matéria intitulada O auge da violência, com a seguinte apresentação
transcrita pelo JS:
“Isso é tudo o contrário daquilo que queremos e sentimos. É a anti-
história ou o antidesporto. Chega-nos como uma punhalada, como
uma traição, porém aconteceu. Nós, os homens que fazemos El
Gráfico, sentimos que a festa se transformou em drama e que contá-lo
e mostrá-lo é cumprir uma lei a primeira que ainda que nos doa é
inevitável. Quando você virar esta página, irá se encontrar com essa
verdade. Não a tema, ajude a exterminá-la.”
96
.
Se as manchetes, as reportagens especiais, os editoriais e as colunas
esportivas eram os lugares principais onde se expressava, em termos muitas
vezes eivados de juízo de valor, o discurso jornalístico sobre toda esta variada
gama de condutas violentas nos esportes, em especial aquelas promovidas pelos
torcedores, é possível encontrar no Jornal dos Sports um outro canal de
expressão e um outro ângulo de visão muito particular do assunto. Ele dizia
respeito à coluna de cartas dos leitores, a tradicional seção Bate-Bola do Jornal
dos Sports. Ao absorver o impacto das matérias veiculadas no dia a dia do
periódico e ao introjetar o respectivo crivo moralizante de muitos jornalistas, os
torcedores submetiam suas cartas à publicação pelos editores da coluna. Com
eventuais ressalvas e comentários dos responsáveis pela edição em
complemento às cartas, os leitores estabeleciam sob essas condições uma
maneira livre e espontânea de intercambiar mensagens. Um peculiar diálogo
entre eles era travado nas centenas de cartas publicadas a cada semana.
96
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1984, p. 05.
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Com efeito, podia-se observar a elaboração de narrativas sobre
acontecimentos variados, seja em seqüência a temas levantados pela imprensa,
seja em decorrência de episódios vivenciados pelos torcedores nos estádios.
Um acompanhamento das cartas publicadas entre o final da década de 1960 ao
início dos anos 80, das quais selecionamos um número ínfimo abaixo, revela o
desenvolvimento e a verbalização desses códigos de interlocução, em seus mais
diferentes matizes. Um gradiente de interações e tensões sob a forma de
comentários podia ser identificado. Havia cartas em que a influência dos temas
problematizados pelos cronistas podiam ser identificados com nitidez. A
queima de bandeiras, que tanto repúdio causou nos jornalistas do JS, é um
exemplo.
O tema foi abordado em uma carta de 1969 por um desavisado torcedor
do Flamengo que resolveu ir ao Maracanã. Trata-se do testemunho de um
alagoano que, em visita à cidade do Rio, foi assistir a uma partida entre seu
time e o Botafogo. No relato, o flamenguista ressalta as agressões sofridas à
saída do jogo por parte de um grupo de botafoguenses que havia tentado tirar à
força sua bandeira, como vem exposto na carta “Apanhei pra burro”:
“Estando de passagem pelo Rio, resolvi assistir ao jogo entre
Botafogo e Flamengo. Ao terminar a partida, eu e meu primo
resolvemos tomar um trem que nos levaria a Campo Grande. Mas qual
não foi a nossa surpresa, pois à nossa frente um grupo de alvinegros
resolveu tomar as nossas bandeiras. Como levamos cascudos,
pernadas e socos, sem que nossas bandeiras fossem danificadas. Estou
com os olhos que não vejo nada, por causa dos hematomas, e o corpo
todo moído de pancada, mas sigo para Alagoas com mais duas
bandeiras que me foram presenteadas por torcedores fanáticos, iguais
a mim. (Carlos André dos Santos, Alagoas).”
97
.
Em uma linha menos testemunhal, um leitor valia-se no mesmo ano da
coluna Bate-Bola como veículo para reflexões mais abstratas sobre a sua
percepção do fenômeno da violência nos estádios. Esta era vista no futebol
como sintoma de problemas globais mais graves e mais amplos da sociedade.
Já outro torcedor, por sua vez, preferia escrever para a coluna no intuito de
relatar a surpresa com os comportamentos agressivos observados pela primeira
vez em um estádio. Neste caso, a dicção de revolta nas observações do torcedor
97
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de junho de 1969, p. 04.
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acompanhava de forma bem próxima o timbre indignado dos comentaristas
esportivos. A invocação dos preceitos éticos dos desportos era sucedida pelo
ramerrão apelativo que clamava pelo fim da violência no futebol brasileiro.
Cada um destes aspectos pode ser observado respectivamente nas cartas
“Conservação da paz” e “Grotesco”:
“Há uma atmosfera carregada, respira-se, come-se, bebe-se violência.
É claro que as causas são complexas, têm reflexos sócio-econômicos,
biológicos, genéticos, ecológicos, etc. Mas quem sabe poderemos
evitar que viesse para o futebol ? Cabe aos líderes da torcida, aos mais
velhos, deterem os ‘vampiros’.”
98
.
*
“Foi revoltante e, sob todos os aspectos, condenável a atitude de
alguns torcedores do Flamengo no jogo com o Botafogo que, tomados
por uma explosão de cólera realmente demoníaca, queimaram
bandeiras alvinegras, atirando-as contra o desprotegido pessoal da
Geral, expondo-o a enorme perigo. Não é possível que num país onde
se joga o melhor futebol do mundo aconteçam cenas grotescas e
ridículas como essas. Revoltei-me a ponto de ir embora e não ver o
jogo. Como torcedor do Flamengo que sou, fiquei, confesso,
envergonhado com o que vi: cenas de pugilato, agressões
permanentes, palavrões em grande escala, num total desrespeito às
demais pessoas que, como eu, pagam ingresso para torcerem por seu
time predileto e não para serem agredidas de maneira pusilânime e
covarde como ocorreu. Atitudes verdadeiramente criminosas de
torcedores mal educados e que não possuem o menor vínculo com a
coletividade. Penso que deveria haver no Código Penal um artigo que
punisse com o maior rigor a torcedores que comprovadamente
queimassem a bandeira do rival. O que faz a grandeza do esporte é o
respeito às cores adversárias, o cavalheirismo recíproco, e não o que
se presenciou no Maracanã, um espetáculo torpe, degradante,
aterrador. Fica aqui o meu apelo às autoridades deste País para que
passem a observar rigorosa vigilância nos grandes jogos pois, do jeito
que a coisa anda, com o Mário Filho se transformando numa
verdadeira praça de guerra, receio que chegue o dia em que nós,
torcedores equilibrados, não possamos comparecer aos jogos sob pena
de não mais regressarmos aos nossos lares. (Eduardo Bonetti –
Piedade – GB).”
99
.
Além da indignação com o hábito de atear fogo em bandeiras de outros
times, atingindo um bem simbólico e material da torcida adversária, o costume
de demarcar território entre torcedores de diferentes clubes nos estádios dava
origem a inúmeros desentendimentos. A entrada de torcedores na arquibancada
portando camisas de time pelo setor distinto de sua torcida justificava práticas
98
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de abril de 1973, p. 02.
99
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1974, p. 02.
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de agressão. A delimitação dos espaços nas arquibancadas gerava não só
provocações mútuas como alianças circunstanciais entre grupos de torcedores
uns contra os outros, o que era favorecido pelas rodadas duplas, isto é, pelos
dois jogos disputados em uma mesma tarde no Maracanã. Os comentários na
coluna de cartas se apressavam em anunciar quem havia levado a melhor na
briga da rodada anterior. As cartas permitiam ainda perceber como os
linchamentos não ocorriam apenas nas dependências do estádio. Fora dele,
como davam a entender os leitores, o encontro de grupos de torcedores
adversários levava a atos de covardia considerados típicos de vândalos que
atacavam em bando. Essas questões podiam ser notadas, entre outras, nas cartas
intituladas “Violência”, “O mais popular” e “Vandalismo”:
“... quero focalizar os linchamentos que vêm acontecendo sob
comando das Torcidas Jovens contra aqueles que caem na infelicidade
de entrar na torcida errada. (Moacir Spinelli Vaz).”
100
.
*
“Como torcedor do clube mais popular, fico triste ao ver as demais
torcidas se unirem para torcer contra o meu Vasco. Em todas as
partidas, urubus, pós-de-arroz e cachorrada reúnem-se para formar um
complô contra o Almirante. Mas tudo tem limite e no jogo contra o
Palmeiras, a torcida vascaína colocou para correr alguns mesquinhos
pós-de-arroz, que chegavam a subir cinco degraus da arquibancada de
uma só vez. (Amâncio César).”
101
.
*
“Atitude das mais covardes a de um grupo de torcedores rubro-negros
(urubus), quando agrediram a pontapés e pedradas, à saída do Estádio
Mário Filho, o automóvel onde se encontravam a nossa colega Marly
Pedroso, sua filha e mais duas crianças. Até quando continuarão estas
cenas de vandalismo ? Sim, porque está virando rotina ao final de cada
jogo em que participe o Flamengo, a agressão física e moral aos
torcedores adversários. Gostaria que fossem tomadas providências,
pois senão saberemos revidar esse vandalismo. Existe aquele ditado:
quem com ferro fere, com ferro será ferido. (Régis Henrique).”
102
.
A troca de acusações entre os missivistas não era rara e ensejava
discussões acaloradas. Os atos covardes de linchamento eram denunciados com
constância na seção Bate-Bola. Em resposta, os torcedores do Flamengo se
mobilizavam para desagravar ou minorar o peso das acusações de vandalismo
que recebiam. Desta maneira, as citações nominais dos missivistas imprimiam
100
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de setembro de 1974, p. 02.
101
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de novembro de 1968, p. 04.
102
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1973, p. 02.
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400
um caráter inter-pessoal ao debate. A inveja e a covardia eram sentimentos
centrais em torno das quais giravam muitas das discórdias, seguidas sempre de
prolongadas réplicas e tréplicas. As contestações à torcida adversária eram
secundadas por versões próprias dos fatos. Na bruma de opiniões, onde era
difícil discernir a versão da realidade e esta da quimera, cada qual defendia o
seu ponto de vista como o mais verdadeiro e autêntico. Nas cartas “Muito
amor” e “Condeno a violência”, integrantes de diferentes torcidas organizadas
defendiam os colegas rubro-negros, ao passo que os vascaínos retrucavam os
argumentos dos flamenguistas, propondo a revanche em “Garrafas vazias”:
“As torcidas organizadas do Flamengo não são núcleos de maus
torcedores, mas de gente que tem muito amor ao seu clube e ao
esporte, principalmente ao futebol. Não concordamos com as
acusações que nos dirigem os invejosos de nossa força, grandeza e
organização. As torcidas organizadas não podem ser responsabilizadas
por atos de torcedores fanáticos e isolados, que os praticam por detrás
de nossas faixas ou dezenas de degraus abaixo do local onde nos
concentramos no estádio. A Flamor, por exemplo, é formada em sua
maioria por estudantes, todos com grandes amigos entre os
componentes das torcidas adversárias. (Jair da Silva, Méier).”
103
*
“...quero dizer a essa moçada da Barra da Tijuca (Marly Pedroso) que
condeno todo e qualquer ato de violência, venha de onde vier, e que
não é somente na Torcida Jovem do Flamengo que existem
bagunceiros. (Francisco Ferreira, Campinho).”
104
.
*
“Em que pese aos representantes de algumas facções da torcida do
Flamengo virem a público inocentar os seus adeptos, a verdade é que
as cenas de vandalismo continuam se repetindo a cada dia em que o
Flamengo atua no Mário Filho. Sabemos perfeitamente que esse tipo
de manifestação é própria de quem já começa a se ver ameaçado pela
força popular do adversário. E como o adversário é um Vasco
acordado, o medo torna-se maior ainda. Agora, fiquem sabendo os
mocinhos responsáveis pelos acontecimentos de domingo último no
encerramento do jogo Vasco-Fla, quando esses covardes que só
atacam em bando tentaram arrancar a bandeira das mãos de um
torcedor pertencente à Força Jovem do Vasco, além de agredi-lo a
socos e pontapés. Fiquem sabendo os rapazinhos que nós da Forjova
estamos apurando o fato e já que não existem mais garantias para se ir
ao estádio, vamos voltar à época da justiça pelas próprias mãos. Então
vamos ver quem tem garrafas vazias para vender... Guerra é guerra.
(Régio Henrique – Forjova – GB).”
105
103
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1974, p. 02.
104
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de setembro de 1973, p. 02.
105
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de dezembro de 1974, p. 02.
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401
A licenciosidade da seção Bate-Bola tornava a troca de ameaças
explícitas e fazia dessa coluna um lugar de reivindicação da autodefesa, bem
como da defesa da honra própria. Uma tribuna livre, para não dizer libérrima,
era aberta a vários tipos de confrontação e de modulação verbal. Se por um
lado podia-se verificar uma maioria de cartas que autoproclamavam a
superioridade do clube e da torcida, existiam contudo cartas menos arrogantes e
cheias de si. Torcedores de um mesmo time, mais tolerantes para com a
autocrítica, podiam tecer questionamentos a um membro de sua torcida, de
modo que rixas internas também ocorriam na seção. Muitos, por exemplo,
encaminhavam ao Jornal dos Sports severas críticas a determinados integrantes
de torcidas organizadas do clube, que promoviam a violência no seio do grupo
de maneira deliberada. Respaldado pela observação in loco feita na freqüência
e na vivência nos estádios, um jovem torcedor vascaíno publicava “A outra
forma de torcer”, onde discorria sobre problemas de comportamento na torcida
do Vasco, enquanto, de igual maneira, um botafoguense questionava o teor das
cartas de uma colega missivista do mesmo clube, indispondo-se com a postura
da leitora-torcedora do Botafogo, Áurea Maria, expressa na carta
sugestivamente intitulada “Ódio”:
“Venho fazer um protesto contra a Torcida Jovem do Vasco. Sou
vascaíno doente e venho notando certas coisas que só servem para
desmoralizar o clube. Por isso posso criticar alguns componentes da
Torcida Jovem, que vão ao estádio apenas para brigar ou fazer
confusão. Eu, particularmente, posso citar alguns nomes dos
torcedores que estão agindo dessa forma: Baiano (chefão), Valfrido,
Português e Lampião. O fato é que o Eli é boa pessoa mas não tem
pulso suficiente para comandar a Torcida Jovem do Vasco, que no
início era uma torcida bacana, mas que agora virou bagunça. Sei de
vários torcedores que não vão mais ao estádio inconformados com o
procedimento de alguns componentes da Torcida Jovem. Meu irmão é
um deles e jurou que não volta mais a prestigiar os jogos do clube
desde o dia que viu dois torcedores serem agredidos e terem suas
camisas rasgadas por este pessoal já citado. Parece que está claro,
estas pessoas agridem os próprios torcedores do Vasco e a Torcida
Jovem já não conta com a maioria das moças que tinha no início. Faço
um apelo para os vascaínos de coração para que não participem da
Torcida Jovem do Vasco porque o nosso clube merece coisa melhor.
(Renato, o vascaíno de Cascadura Rio – GB).
106
*
“Sou botafoguense, mas sou contra as cartas de Áurea Maria. Ela não
escreve nada de útil para o nosso clube, e só visa promover-se à custa
106
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1973, p. 02.
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do Botafogo. As cartas de Áurea Maria só falam em Flamengo, e é por
isso que os rubro-negros dizem que nós temos inveja da torcida deles.
Deixe os urubus em paz, Áurea, e trabalhe com eles pela grandeza de
nosso clube. O ódio nada constrói, só destrói. (Beth Winter, Catete,
GB).”
107
Amores, ódios e uma destrutividade em potencial estavam em jogo na
constelação de cartas do JS. As desavenças e as ameaças incitavam os
torcedores à marcação de encontros e de desafios através da própria coluna. Em
“Caçada humana”, um irado torcedor citava o nome daquele que estava à
procura:
“Estou contando os dias, horas e minutos para ver o jogo Fluminense
x Botafogo e cruzar com o Nelsinho, Valter Veloso e a bichonilda,
Paulo Rogério Araújo. Quero ver se ele cumpre o que prometeu. Não
adianta correr, nem se garantir com seus machos, pois irei até a sua
casa, em Niterói, lá onde você se esconde. (José Carlos Rodrigues
Barbosa). Comentário JS: “Isso é o que se chama violência velada.”
108
O complemento até certo ponto irônico do Jornal dos Sports ao final da
carta mostrava a necessidade de intervenção do periódico em alguns casos. Já
em dezembro de 1968 a apresentação da coluna era estampada com a
advertência intitulada “Sem bronca”: “Pedimos aos que nos escrevem que
evitem adjetivos ofensivos ao referirem-se a torcidas de clubes. Evitem-nos o
trabalho de censores.”
109
. Embora não seja possível averiguar se havia efetiva
censura ou corte em passagens de determinadas cartas, pode-se especular que
em certos momentos a total liberdade na coluna tornava-se problemática, como
no caso acima, em que se prometia “justiça pelas próprias mãos” ou uma versão
do preceito bíblico “olho por olho, dente por dente”. É bem provável que os
editores encarregados da seleção das cartas recebessem também
correspondências de baixo-calão, pouco convenientes à publicação em um
órgão de imprensa, haja vista a crescente elevação do tom e da troca de insultos
dos torcedores entre si.
Sem embargo, isso não impede a constatação também de que existiam
leitores menos irascíveis e temperamentais, que tentavam ao contrário
107
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de março de 1970, p. 06.
108
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1972, p. 02.
109
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 1968, p. 04.
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403
contornar as polêmicas, vendo a coluna de cartas do JS como o lugar ideal para
isto. Muitos propunham, por exemplo, o estabelecimento de um tratado de paz,
um “armistício” entre os torcedores adversários por intermédio da coluna, que
resultasse em um menor número de confrontos nas arquibancadas. Outros
utilizavam a coluna para marcar pontos de encontro entre torcidas nos bares das
imediações do estádio, a fim de chegar à concórdia por meio da conversa e do
diálogo, como faziam os vascaínos da TOV em relação aos rubro-negros da
Flamante e da Torcida Jovem, após uma confusão ocorrida no clássico da
semana anterior. Encontravam-se ainda missivistas que teciam considerações
mais genéricas sobre os confrontos físicos entre torcedores, recorrendo para
isso às experiências bem sucedidas de convívio em outros domínios populares,
como o das escolas de samba:
“Cada vez mais fico convicto de que essa coluna é o maior veículo de
integração nacional, devido à facilidade que dá aos leitores de todos os
rincões de publicar nossas opiniões, queixas, retificações, e
principalmente nossas convicções clubísticas, num diálogo franco e
honesto. (Hélio Emiliano Moreira, Belo Horizonte, Minas Gerais).”
110
.
*
“Tratado de paz”: “Venho pedir às torcidas do Flamengo e do
Botafogo para assinar um tratado de paz. Não é possível que as duas
maiores torcidas jovens se odeiem assim.”
111
.
*
“Conversação de paz”: “Quero comunicar à torcida do Flamengo que
o pessoal da torcida do Vasco, após o jogo de ambos os times, estará
no bar perto do portão 18 para conversar e fazer as pazes. Tudo isso
diz respeito à briga entre a Flamante e a Jovem, que bateram em certos
rapazes da Torcida Organizada do Vasco. (Rogério Peitinho).”
112
.
*
“Se, como ficou demonstrado, foi possível no samba a convivência
sadia de adversários, por que não levar essa coexistência pacífica para
as arquibancadas, tornando as torcidas menos agressivas em relação às
outras ? (Francisco das Chagas).”
113
.
Convém advertir que a pax torcedora estava longe de ser a tônica
preponderante da seção Bate-Bola. O lema latino Si vis pacem para bellum (se
quiser a paz, prepara-te para a guerra) parecia encontrar especial acolhida entre
os torcedores e, para lembrar um outro termo de origem latina com eco no
110
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 07 de novembro de 1967, p. 04.
111
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de junho de 1969, p. 04.
112
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de agosto de 1973, p. 02.
113
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de março de 1981, p. 02.
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imaginário das torcidas, provocare significa de maneira literal “chamar para
fora”
114
. Os apelos de pacificação eram pouco eficazes e, à medida que o tempo
passa, as cartas tornam-se cada vez mais provocativas, contundentes,
virulentas, quer de pessoa a pessoa, quer de grupo a grupo. De espontâneas,
variando ao calor da hora, as ameaças se intensificavam, tornando-se mais
precisas, premeditadas e direcionadas. Os ressentimentos e os rancores de umas
perante as outras pareciam assim se cristalizar. As ocasionais queimas de
bandeiras e de faixas, as episódicas brigas seguidas de linchamentos, as ofensas
morais que descambavam em agressões físicas assumiam um caráter menos
aleatório. As torcidas se identificam como inimigas, anunciam ataques e
justificam contra-ataques. A inimizade gerada por brincadeiras, pilhérias ou
injúrias ganha a proporção de ódio pessoal, mais freqüente e sistemático. Isto
vem expresso em missivas enviadas pelo Departamento de Relações Públicas
de cada torcida, com as denúncias da depredação dos materiais e dos símbolos
por parte das torcidas rivais.
Nesse sentido, uma longa carta do representante do departamento de
comunicação da Força Jovem do Vasco abordava a danificação daquilo que no
jargão da torcida é denominado “patrimônio” do grupo. Deixando subentendida
a autoria e a responsabilidade do ato vândalo a destruição dos instrumentos
de percussão da torcida , as acusações se entrecruzavam com uma variedade
de outras informações:
“Força Jovem”: “Muitos estão calando as suas bocas, mas ainda vejo
pessoas ligadas à imprensa deste Estado que, insatisfeitos com as
sucessivas vitórias do time da Cruz de Cristo, ao invés de analisarem
mais uma vitória do Vasco, ficam preocupados em achar justificativas
para a derrota do time Y, concluindo sempre que o Vasco não jogou
bem e sim o time Y jogou mal. Mas os números mostram a atual
campanha do Vasco: defesa menos vazada, ataque mais positivo, líder
isolado do campeonato (sem dados numéricos, afirmo) com maior
renda neste campeonato, pois é esmagadora a supremacia de sua
torcida sobre as adversárias. Sexta-feira passada, quando preparados
para reparar nossa bateria no maior estádio do mundo, levamos um
susto, uma tristeza enorme invadiu nossos corações, pois o que
tentaram fazer foi ‘calar a força jovem do Vasco’... ‘Um grupo de
pessoas penetrou em propriedade Estadual (Mário Filho) e se
apoderou de toda nossa bateria que se encontrava no estádio,
insatisfeitos atearam fogo no restante do material’... só se esqueceram
114
Cf. MARTINS, L. R. “A atividade do espectador”. In: NOVAES, A. (Org.). O olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 393.
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que nós da Força Jovem temos um patrimônio neste setor, muito
invejado, até por Escolas de Samba, o que esses vândalos conseguiram
foi nos dar ao trabalho de voltar a São Januário e reparar nossa bateria
naquele estádio e transportá-la para o Mário Filho, além de ter sido um
aviso para o policiamento constante que é designado para o Mário
Filho. Lamentamos profundamente este ato infeliz de pessoas
infaustas que dentro em breve poderão receber sanções impostas pela
justiça. Infelizes... se por vandalismo, ódio, despeito ou inveja....
tentaram nos calar. Não nos afetou em nada, muito pelo contrário, pois
atos como este só nos dão uma vontade interior de continuar lutando
nas arquibancadas pela Cruz de Cristo, como fizemos, pois este é o
objetivo de nossa facção, ‘Entusiasmo, disciplina e respeito, isto é a
Força Jovem do Vasco’ (título de uma recente reportagem de um
jornal deste Estado). Quem espera consegue, muitos estão aguardando,
muitos reclamam, cadê minha camisa da Força Jovem ? – calma,
calma... já chegou nova remessa de nossas camisas e estão à venda – o
preço é Cr$ 50,00 (barato ‘pacas’). Você já tem o hino do Vasco em
disco ? Se não tiver aproveite a oportunidade, pois a Força Jovem
estará vendendo este disco, domingo, para você aprender a letra toda,
pois após o jogo contra o Botafogo (última rodada do campeonato),
vamos homenagear este clube, que muitas alegrias nos dá, cantando
seu hino e disparando sua nova buzina... bi... bi...bi.... (Depto.
Relações Públicas Força Jovem).”
115
.
O tom velado das denúncias deixava no ar o destinatário principal a que a
mensagem era endereçada. No mesmo diapasão, o relato dos líderes da Torcida
Jovem do Botafogo externava sua indignação, mas não explicitavam quem era
os “covardes” e os “invejosos”, igualmente autores dos atos de vandalismo,
desta vez perpetrados contra sua agremiação. Em 1983, uma alentada carta de
três comandantes da torcida alvinegra, João Fernando Kassa, Arnaldo Costa
Filho e Márcio Maciel, intitulada “Revolta”, referia-se à invasão de sua sala no
Maracanã. A alusão sempre indireta aos responsáveis, por meio da terceira
pessoa do plural, um “eles” enigmático, faziam os enraivecidos missivistas
dizerem que não era a primeira vez que a sede da torcida era arrombada e
depredada. O cenário encontrado eram bandeiras rasgadas, peças de bateria
furadas, material de exposição arrancado e faixas roubadas. Até o próprio
mimeógrafo da torcida, com o qual se rodavam os informativos, tinha sido
destruído. Tal como o departamento de comunicação da Força Jovem do
Vasco, ao invés da reação esperada, a retórica dos botafoguenses não cogitava,
ao menos em público, qualquer retruque ou resposta “na mesma moeda”. Ao
contrário, como forma de realçar o poderio, anunciava a contrapartida imediata
115
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de maio de 1977, p. 02.
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de confeccionar duzentas novas bandeiras, o dobro do número que até então
tinham
116
.
Não seria, porém, muito difícil descobrir quem eram os responsáveis
pelos ataques à sala dos botafoguenses ou a quem se referia o missivista oficial
da Força Jovem do Vasco. O acompanhamento seriado e retrospectivo da
coluna mostra como, em 1981, dois anos antes da invasão e da depredação, o
torcedor João Fernando Kassa, o primeiro dos rapazes alvinegros citados
acima, comentava os freqüentes arrivismos e as constantes provocações que
partiam dos rubro-negros:
“Fatos sobre o jogo”: “Fui ao Maracanã neste sábado à noite e vibrei
com a vitória do Botafogo, que, mesmo sem cinco titulares, poderia
ganhar de mais. Nossa torcida estava menor do que salário mínimo
(pequenérrima). Mas, mesmo assim, muito gritou. Fiquei atrás do gol,
à direita das Tribunas, com a rapaziada da Jovem. Resultado: saí do
estádio sem voz e com as mãos doloridas. Desta vez, palmas à
‘Folgada’, que agitou bastante. Estava no mesmo plano da Jovem. Não
sei qual é a de uns torcedores do Flamengo. Neste sábado, mais uma
vez, saíram de seus lugares e foram comprar briga com a Jovem. E se
deram mal. Aliás, gostaria de fazer um protesto: prenderam Luís
Cláudio, irmão do Luciano, um dos líderes da Jovem, só porque foi
defender o espaço pertencido à torcida do Bota. Isso me fez lembrar
de brigas no Mineirão, há anos atrás, entre cruzeirenses e atleticanos.
Os guardas chegavam e batiam nos cruzeirenses, pois eram
atleticanos, assim como quase toda a Belo Horizonte. Neste jogo,
deveriam prender alguém do Flamengo, se é que não prenderam, e não
do alvinegro. (João Fernando Kassa).”
117
.
Os aspectos que sobressaem da transcrição das cartas e dos comentários
dos jornalistas um número mínino de uma infinidade deles, que se repetiam
ad nauseam no periódico permitem o fechamento dessa seção com duas
considerações de ordem teórica. Uma se relaciona à destruição dos bens
materiais e simbólicos das torcidas, desencadeadora de uma série de rixas e
vendetas entre os grupos, e a relação que é possível fazer a partir dela com
algumas proposições conceituais de Elias Canetti acerca do homem na multidão
e da massa como lugar de desaparecimento das diferenças. A outra diz respeito
à questão dos valores e à sua aplicação no campo da violência esportiva, o que
116
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de março e 01 de abril de 1983, p. 02.
117
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 30 de setembro de 1981, p. 02.
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nos reenvia ao autor do início do capítulo, Michel Foucault, e às suas reflexões
sobre o método genealógico extraído da leitura de Nietzsche.
Na opulenta obra Massa e poder (1960), que antecedeu o romance Auto-
de-fé, vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 1981, o escritor de origem
búlgara Elias Canetti se dedicava à análise minuciosa das propriedades e das
características fundamentais do conceito de massa. Nos exórdios do livro, o
autor reconhecia a existência de uma ânsia da coletividade para atos
destrutivos. Ele acreditava na existência de uma inclinação inerente à massa
para a destruição de objetos, dado o seu caráter de “coisas quebradiças”,
capazes de produzir ruídos e sons cujo barulho é prazeroso, como o tinir dos
vidros e o espatifar-se das louças. De acordo com o escritor, as massas são
iconoclastas na medida em que a destruição de símbolos significa tanto a
explosão de suas descargas emocionais quanto a abolição de fronteiras
estabelecidas por portas, vidraças, grades, platibandas, muros: “aos olhos da
massa nua, tudo parece uma Bastilha”
118
. Essa tendência à destrutividade se
agrega ao seu recurso mais impressionante: o fogo. Atear fogo em objetos é a
ação e o símbolo mais vigoroso existente para a massa, seja pela atração
envolvente que exerce – “anel de rostos fascinados” ante a chama e suas
labaredas
119
–, seja pela capacidade aniquiladora que tem, como comprova a
experiência do incêndio. Assim como a massa, depois da erupção e da
devastação de tudo que lhe é hostil, o fogo tende a dissolver-se em sua
autoconsumação.
Conquanto muito universalizantes e preliminares, essas postulações de
Canetti sobre o fenômeno da massa nos parecem apropriadas para pensar as
características mencionadas de forma recorrente entre as torcidas, tais como
vistas acima pela ótica do Jornal dos Sports. Uma mesma sanha pela destruição
de objetos e pela ultrapassagem de fronteiras pode ser observada nas crônicas
dos jornalistas e nas cartas dos torcedores, o que serve como justificativa para
inúmeras controvérsias e brigas. Nos relatos, os atos destrutivos tinham como
alvo preferencial as bandeiras, as camisas, as faixas, as sedes, os instrumentos
musicais, enfim, todos os objetos que compõem a identidade simbólica,
material e territorial das torcidas organizadas. O exemplo das salas incendiadas,
118
Cf. CANETTI, E. op. cit., p. 19.
119
Cf. ibid. p. 27.
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das bandeiras enxameadas e do território invadido no espaço livre das
arquibancadas a que se fez referência nas páginas precedentes parece se
coadunar com o sentido primordial da simbologia e da potência ígnea na
definição conceitual de Canetti. Conforme observou, o fogo representa o
elemento mais forte, mais exuberante e mais antigo na economia psíquica das
massas, aspecto que não passou despercebido também ao filósofo Bachelard
nos devaneios de sua psicanálise do fogo
120
.
Ao lado da destrutividade e da combustão das massas em Canetti, a breve
amostragem das cartas acima nos remete também à questão dos valores em
Nietzsche e à genealogia do poder em Foucault. Recapitulando, os leitores-
torcedores do Jornal dos Sports criavam através dessas cartas um sistema
recíproco de ameaças e revides, de agressões e defesas, de covardias e
vinganças, de honras e humilhações. Este sistema passa a compor o mosaico de
relações entre facções de torcida, como no-lo permitem ver as últimas cartas
transcritas. Do mesmo modo que a dialética do senhor e do escravo postulada
por Nietzsche em sua apropriação de Hegel, as cartas dos leitores configuravam
uma espécie de genealogia da moral torcedora, cujo ponto de origem era
obscuro, cuja reconstituição no tempo era difícil precisar. O fato é que o
discurso dos fortes, dos superiores, dos vencedores do mundo esportivo parecia
querer subjugar, sem compaixão, os fracos, os inferiores, os derrotados do
imaginário torcedor. Parece-nos oportuno lembrar a aristocrática vontade de
poder e sua congruência com a cosmovisão das torcidas organizadas, porquanto
estas apresentam os mesmos “afetos ativadores da vida”: ódio, orgulho,
agressividade, crueldade, força, dominação, coragem
121
. A contrapelo dos
ideais ascéticos típicos da moral cristã, os valores destes grupos preconizavam
o mais aguerrido, o mais valente, o mais destemido.
Ainda a título de ilustração, vale observar como essa postura de auto-
suficiência pode ser percebida no tom direto, cruel e provocativo das invectivas
fulminantes de um rubro-negro não-identificado, que assinava em nome de sua
torcida organizada. Em “O superior”, o anônimo torcedor mencionava um
120
Cf. BACHELARD, G. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
121
Cf. VIEIRA, M. C. A. O desafio da grande saúde em Nietzsche. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2000, p. 24. Cf. também PIMENTA, O. “Lendo Nietzsche à luz do futebol”. In: Mediação. Belo
Horizonte: Universidade FUMEC / FCH, 2004, n.º 4.
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conjunto de superlativos atribuídos ao seu clube e a correspondente inveja
suscitada entre os torcedores oponentes:
“Esta carta é endereçada a vocês que, quando vêem e sentem na carne
o peso da derrota, ficam vermelhos e transfigurados. A vocês que
mordem os lábios de inveja ao verem milhares de bandeiras rubro-
negras saudarem o Mengão. A vocês que roem as unhas quando a rede
de seu clube é estufada e uma explosão é ouvida. A vocês que
colocam as mãos na cabeça, em desespero, quando o maior passa da
defesa ao ataque. A vocês que são capazes de apostar fortunas num
clube que não é o seu, só porque jogam contra o Fla. A vocês, pobres
ignorantes, que nunca souberam respeitar o seu superior, no caso, o
Mengão. (Torcida Flamante, GB).”
122
.
Um veículo público tornava-se assim palco para difamações, infâmias,
reparações, idolatrias e exaltações de toda espécie. Em tal espaço, nasciam os
códigos de rivalidade, que ganhavam sentido nos embates estabelecidos através
das cartas ou dos jogos, acirrando-os e potencializando-os. A seção Bate-Bola
possibilitava uma comunicação codificada de um subgrupo específico de
leitores-torcedores, que davam vazão a toda sorte de sentimentos como inveja,
soberba, arrogância, ojeriza, desonra e desdita. Sem constrangimentos, ali se
ofendia e se defendia o orgulho próprio; sem pudores ou pudicícias, ali se
gozava e se menosprezava o adversário; vítimas ali se queixavam, algozes não
se intimidavam, combatentes se entrincheiravam, brigas se seguiam ao
transbordamento de ódios mútuos. Ao entabular conversas por escrito, as cartas
apresentavam uma agressividade verbal que podia anteceder ou suceder os
enfrentamentos físicos. Em várias oportunidades, o torcedor-leitor parecia
pouco disposto a um sistema de parentesco jocoso, à maneira proposta por
Radcliff-Brown, que se mantivesse em níveis de camaradagem amistosa
tolerável. O escárnio, o deboche, a zombaria e o sarcasmo logo se prolongavam
no menoscabo do outro sob a forma de xingamentos e impropérios. Salvo
exceções, a troca não visava o reconhecimento nem sequer o consenso; ela era
o estopim para a sede de vingança anunciada.
Quanto a Foucault, autor com que este capítulo foi aberto, se deve
ressaltar aqui a inflexão do método arqueológico para o genealógico,
inspirando-se desta feita na terminologia de Nietzsche. A mudança
122
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 04 de julho de 1970, p. 06.
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metodológica é operada no conjunto de sua obra a partir dos anos 70, quando o
autor se distancia em definitivo do estruturalismo e passa inclusive a
considerar-se a si próprio um “anti-estruturalista” por excelência, porquanto se
diferencia dos antropólogos de sua época, que haviam banido o acontecimento
das estruturas do pensável e do inteligível
123
. Em verdade, a guinada já estava
prenunciada em 1969, com a publicação de Arqueologia do saber, e pode ser
atribuída também às transformações culturais por que passa a França desde o
impacto de maio de 68, quando as lutas cotidianas passam a revelar as “malhas
mais finas da rede do poder”
124
, para além do ramerrão estrutural-marxista
althusseriano em torno da ideologia, da repressão e da dominação. Ao método
arqueológico privilegiado até então, que se propunha a desvendar como os
saberes apareciam e se transformavam, sucede o método genealógico, que
estabelecia como ponto de partida o porquê de seu aparecimento e de sua
transformação. Conforme sugere o professor Roberto Machado, trata-se de
situar o surgimento e a mudança dos saberes nas relações de poder e de incluí-
los na genealogia da política, compreendida além e aquém do Estado.
A transversalidade entre saber e poder torna-se o ponto decisivo para
Foucault, materializado em estudos específicos como Vigiar e punir (1975) e A
vontade de saber (1976), primeiro volume de sua trilogia sobre a história da
sexualidade. O modo de apreensão do poder em Foucault tem diferenças
radicais com relação à Ciência Política, em particular aos autores
contratualistas ingleses e franceses dos séculos XVII e XVIII. Isto porque sua
genealogia não compreendia uma teoria sistêmica geral e porque o poder estava
longe de ser para ele um objeto natural, palpável, uma coisa, sendo antes de
tudo uma prática social, constituída historicamente. Sua divergência face aos
cientistas políticos radica também no fato de que estes entendem o poder e o
Estado como uma sinonímia indissoluta. O interesse foucaultiano desvia a
mecânica do poder da centralidade do aparelho estatal e o realoca na
multiplicidade dos micro-poderes locais e no seu exercício específico,
fragmentário, molecular, circunscrito a pequenos halos de ação. O Foucault
pós-moderno dos anos 70 rechaça o método dedutivo que vê o Estado como
123
Cf. FOUCAULT, M. A microfísica do poder. Apresentação de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 1979, p. 05.
124
Cf. ibid, p. 06.
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órgão único repressivo, onipresente no corpo social, cujos tentáculos se
desdobram do centro à periferia, do macro ao micro.
A questão se situava, pois, ao largo do esquema tradicional que via a
progressiva concentração de poder no Ocidente, das monarquias absolutas à
emergência dos Estados-nacionais. O autor mostra a ausência de um ponto
localizado de poder nas sociedades contemporâneas. A mobilidade de suas
redes torna-o capaz de produzir-se e de reproduzir-se a si mesmo nas malhas
mais invisíveis, nos gestos e nos comportamentos mais sutis, nas atitudes e nos
hábitos mais inusitados, nos discursos mais inauditos. Refuta-se assim a
reificação do poder e sua derivação formal abstraída da ciência do direito e das
formas jurídicas, em prol de uma concepção que o acentua como práxis, como
dinâmica dos confrontos ou como relação de múltiplas forças, dispersas na
sociedade.
O poder em Foucault detém-se menos no modelo da economia política e
mais no modelo da guerra. Ora, poder é luta, é afrontamento, requer empenho,
força e estratégia. É violência que, em um aforismo, Heráclito dizia ser “pai e
rei de todas as coisas...”. Ele não consiste, pois, em um contrato, em um acordo
tácito entre suas partes consensuais, em um lugar vacante a ser ocupado por
dois respeitosos concorrentes, mas em um exercício contínuo, em uma disputa
ferrenha e permanente que se institui graças a um modo de ação. Enfim, é
menos um conceito e mais uma prática. Deste modo, eis por que a gênese do
saber, amparada nas relações de poder, converte-se em uma genealogia da
política em Foucault, autor de um pensamento de cunho filosófico que terá
desdobramentos na sociologia francesa das décadas de 70, 80 e 90 com a obra
de Pierre Bourdieu.
Assim, a possibilidade de se fazer aqui uma genealogia ou uma
arqueologia da violência entre torcedores de futebol nos leva à busca por uma
via alternativa a Norbert Elias e às formulações da Escola de Leicester sobre as
brigas entre os hooligans ingleses. Não se trata de justificá-la, como fazem os
eliasianos, em termos de uma falha descivilizadora na introjeção da repulsa à
agressividade nos estratos mais baixos da sociedade britânica. Em outras
palavras, não se trata de uma incapacidade temporária do Estado na
concentração do poder de reprimir e de irradiar a dominação por todo o corpo
social. Nas lentes moleculares de Foucault, o poder é gerado como prática,
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como força intrínseca de quem o instaura; logo, ele existe na dispersão, na
invisibilidade, na distribuição potencial e na sua súbita canalização por
segmentos da sociedade. Assim como não cabe identificar um núcleo central de
irradiação, não cabe apontar uma origem, um marco zero para o fenômeno da
violência, no caso aqui em questão, para o comportamento agressivo dos
torcedores organizados.
Em que pesem as boas intenções didáticas do professor Yves Michaud, a
violência não seria explicável por uma decomposição etimológica:
“Violência vem do latim violentia, que significa violência, caráter
violento ou bravio, força. O verbo violare significa tratar com
violência, profanar, transgredir. Tais termos devem ser referidos a vis,
que quer dizer força, vigor, potência, violência, emprego de força
física, mas também quantidade, abundância, essência ou caráter
essencial de uma coisa. Mais profundamente, a palavra vis significa a
força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e portanto
a potência, o valor, a força vital.”
125
O Nietzsche de Foucault é aquele que contrapõe a genealogia em
gênero, número e grau à idéia de uma origem, remota, localizável na
ancestralidade do tempo histórico:
“A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda
do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário,
ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das
indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da ‘origem’. (...) O que
se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda
preservada da origem é a discórdia entre as coisas, é o disparate. A
história nos ensina também a rir das solenidades da origem. A alta
origem é o ‘exagero metafísico que reaparece na concepção de que no
começo de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso e de
mais essencial’: gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se
encontravam em estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das
mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã. (...) Fazer
a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento
não será, portanto, partir em busca de sua ‘origem’, negligenciando
como inacessíveis todos os episódios da história; será, ao contrário, se
demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma
atenção escrupulosa à sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir,
máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; não ter pudor de ir
procurá-las lá onde elas estão, escavando os bas-fond; deixar-lhes o
tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve
jamais sob sua guarda. O genealogista necessita da história para
125
Cf. MICHAUD, Y. A violência. São Paulo: Ática, 1986, p. 08.
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conjurar a quimera da origem, um pouco como o bom filósofo
necessita do médico para conjurar a sombra da alma.”
126
As palavras nietzscheanas de Foucault nos encorajam a dizer que seria vã
a tentativa de buscar as origens da violência nas reportagens do Jornal dos
Sports ou em qualquer outro meio. Por mais que se recenseasse e se recuasse
no tempo, seria inútil tentar descobrir “quem atirou a primeira pedra” entre os
torcedores de futebol, ou seja, quem incitou a rivalidade e a antipatia entre
adeptos de clubes diferentes, tornando-a uma briga feroz, renhida, uma
inimizade por assim dizer mortal... Não obstante, a leitura das cartas dos
leitores-torcedores do JS permite trilhar um caminho em que a violência
adquire visibilidade ao mesmo tempo como um modo de ação e como uma
prática discursiva. Isto porque, quando Foucault investiga a gênese dos
discursos que se convertem em saberes, ele não diferencia ciência de ideologia,
opinião de verdade, conhecimento douto de conhecimento vulgar. O saber
emerge tal qual o poder, a partir de pontos centrífugos não localizáveis em um
espaço-tempo previamente conhecido. Desta forma, a violência entre os
torcedores de futebol compreende uma junção de discursos e atos, de espaços e
tempos que se retro-alimentam. A seção de cartas do Jornal dos Sports é
apenas uma das vias de acesso, aquela escolhida aqui para descortinar esta
genealogia.
Enquanto os jornalistas se preocupavam em estampar sua revolta e sua
indignação ante as incognoscíveis, as inexplicáveis atitudes bárbaras e
beligerantes dos torcedores nos estádios, em surtos aparentemente
espasmódicos e irracionais destes últimos, a cristalina coerência, racionalidade
e motivação para o combate pareciam se desenrolar ali, sob as vistas dos
cronistas, debaixo de seus olhos, nos espaços criados pelos próprios editores do
jornal através daquelas cartas assinadas todos os dias pelos seus leitores.
Àqueles que porventura considerassem tal espaço de menor importância, uma
mixórdia de idéias disparatadas, um festival de truísmos tétricos, um imbróglio
de narrativas taquigrafadas, uma babel de línguas desencontradas,
surpreenderia, em uma rápida visada, a quantidade, a seriedade e a variedade
126
Cf. FOUCAULT, M.Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Microfísica do poder.
Apresentação de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 16, 18 e 19.
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dos temas e dos valores que entravam em jogo naquele lugar público, centro
por excelência da vox populi. O caos opinativo parecia guardar paradoxalmente
uma lógica, uma ordem, um sentido apreensível na dinâmica comunicativa de
interpelação e resposta dos missivistas. Os torcedores estabeleciam uma
conversa por escrito que parecia ter conseqüências práticas, concretas,
desdobradas quer no âmbito discursivo quer no âmbito da vivência das
emoções nos estádios.
A seção não se restringia, em vista disso, a um mero dispositivo retórico
em que cada torcedor queria sobressair tripudiando verbalmente o outro. A
genealogia da moral entre os torcedores, tal como o poder em Foucault, nada
mais era do que efeitos de uma relação de força violenta, acionada e
verbalizada, teorizada e concretizada, cuja gênese podia ser encontrada ali
também, naquele anódino espaço, ante-sala dos encontros nos estádios, no
contexto específico de um meio de comunicação de massas, com um perfil,
com uma história, com um conjunto de características muito particulares.
3.2 Da aventura: caravanas e narrativas de viagem
A concepção dualista que enfatiza as experiências da rotina e da aventura
na vida coletiva apareceu esboçada no pensamento social brasileiro em um dos
primeiros capítulos da obra de estréia de Sérgio Buarque de Holanda. Em 1936,
o ensaio Raízes do Brasil surgia no cenário intelectual com a proposição de
uma interpretação do passado como fundamento para a compreensão do destino
histórico nacional e como desvendamento das “sobrevivências arcaicas”
presentes na nossa sociedade. Para isto, o autor buscava decifrar as
características mais marcantes da cultura brasileira, por meio da investigação
das especificidades dos seus antepassados ibéricos e da sua formação colonial.
Ao contrário de Gilberto Freyre, autor em 1933 de Casa-Grande & Senzala,
que tivera sua formação intelectual no ambiente anglo-saxônico, Sérgio
Buarque passara em 1929 uma temporada de trabalho e estudo na Alemanha e
o contato com aquele meio universitário ensejou ao autor a idéia de escrever
um livro de cunho ensaístico sobre “o corpo e a alma do Brasil”. A vivência
dos últimos anos da República de Weimar, grande pólo de efervescência
cultural, literária e boêmia da Europa central, a que fora enviado como
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415
correspondente de O Jornal por Assis Chateaubriand, proprietário da cadeia
Diários Associados, facultou ao jovem jornalista e talentoso crítico literário
assistir aos cursos de história na Universidade de Berlim, onde assistiu às aulas
de Friedrich Meinecke, um marco na sua maturação acadêmica
127
.
Depois de entrevistar o romancista Thomas Mann; depois de assistir ao
filme O anjo azul, do diretor Joseph Von Sternberg, onde estrelava a atriz
Marlene Dietrich; depois de colaborar para a revista Duco; depois de traduzir as
legendas para o português da película expressionista Berlin, sinfonia de uma
metrópole (1926), de Walter Ruttmann; e depois de ler pensadores germânicos
ligados aos círculos do poeta Stefan George, como Ernest Kantorowicz, Sérgio
Buarque entraria em contato com o trabalho de um dos mais notáveis egressos
do neokantismo, fundador da Sociedade Alemã de Sociologia: Max Weber. O
pensamento weberiano, em especial seu critério tipológico das formas de
dominação e sua abordagem original do papel da religião na sociedade, com
estudos originais sobre as teodicéias na história do protestantismo, do judaísmo
e do budismo, estabelecia uma série de categorias abstratas que exacerbavam
alguns aspectos da realidade a fim de tornar comparáveis e compreensíveis
certos tipos de ação social e de psicologia social.
A par da experiência da viagem à Europa, que havia permitido a Sérgio,
segundo suas recordações do surgimento do livro
128
, uma percepção mais
distanciada do Brasil, uma compreensão do país em sua totalidade, os tipos-
ideais de Weber haviam-lhe fornecido um instrumental analítico capaz de
pensar a história, a sociedade e a psicologia social brasileira através de pares de
opostos, tais como elencava Antônio Cândido: trabalho e aventura; método e
capricho; rural e urbano, burocracia e caudilhismo; norma impessoal e impulso
afetivo
129
. Sem maniqueísmo, ao contrário, com agudo senso de refinamento, o
autor mostrava como as formae mentis da Europa mediterrânea católica eram
ordenadas em contraposição às da Europa nórdica protestante, da mesma
maneira que a unidade da península Ibérica se decompunha em sutis oposições
127
Cf. BARBOSA, F. de A. (Org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro:
Rocco, 1989. Cf. também DIAS, M. O. L. da. S. (Org.) rgio Buarque de Holanda: historiador.
São Paulo: Ática, 1985. Cf. ainda RICHARD, L. A República de Weimar (1919-1933). São
Paulo: Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1988.
128
Cf. PRADO, A. A. “No roteiro de Raízes”. In: HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
129
Cf. CÂNDIDO, A. “O significado de Raízes do Brasil”. In: HOLANDA, S. B. de. Raízes do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 240.
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entre portugueses e castelhanos, observadas em seus antecedentes históricos e
na colonização da América.
O segundo capítulo do livro, Trabalho & aventura, onde o autor citava
nominalmente Weber, apresenta os traços nacionais baseados em um cotejo
entre dois modelos de ação antitéticos abstraídos do mundo das idéias, que
conduzem e orientam sua percepção da realidade. O tipo do trabalhador
adquiria valor na sociedade moderna com o advento da moral puritana nos
países da Europa setentrional, cujas bases precípuas eram a rotina, o esforço
metódico e a disciplina ascética. Avesso ao trabalho regular e à atividade
utilitária, o tipo do aventureiro caracterizava-se pela errância, pela ausência de
estabilidade, pela conquista de riqueza auferida com um mínimo de dispêndio
de energia. No reino da aventura, o espírito do colono não visava a aquisição
dos meios necessários à configuração de uma ordem sistêmica e estável, que
lhe garantisse o provimento de compensações futuras; inclinava-se mais à
satisfação imediata de seus primeiros fins. Este último tipo havia modulado em
grande parte a dinâmica da colonização portuguesa no Brasil, caracterizada por
certo desleixo e abandono. Talvez por isto o adventício tenha se valido menos
da imposição de sua própria ordem econômica e mais da apropriação de
técnicas nativas rudimentares, tais como elas se davam entre os ameríndios,
seja no cultivo da terra, seja nas incursões dos bandeirantes pelo interior.
Se a ciência compreensiva de Max Weber é a referência capital, não se
deve esquecer, na composição de tal tipologia, o legado, direto ou indireto, de
uma vasta gama de outros autores oriundos da mesma filosofia neokantiana.
Embora Sérgio Buarque, em momento posterior a Raízes do Brasil, vá se
afastar da sociologia e do ensaísmo, dedicando-se com mais exclusividade à
monografia e ao métier de historiador, como mostra Robert Wegner
130
e como
comprova o longo estudo de 1974 dedicado a Leopold Von Ranke
131
, pai do
positivismo historiográfico, para quem a história é a ciência do único e a
130
Remeto ao texto já citado no segundo capítulo. Cf. WEGNER, R. “Da genialidade à poeira dos
arquivos: Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1940”. In: SENTO-SÉ, J. T.; PAIVA, V. (Orgs.).
Pensamento social brasileiro. São Paulo: Cortez, 2005. Na inversão de trajetórias demonstradas
por Wegner, vale acrescentar que é Gilberto Freyre quem se aproxima da idéia de aventura na
década de 1950, durante a sua viagem à África portuguesa, como é possível aferir em seu caderno
de notas, espécie de diário de bordo publicado em forma de livro com o nome de Aventura e
rotina.
131
Cf. HOLANDA, S. B. de. “O atual e o inatual na obra de Leopold Von Ranke”. In: O livro dos
prefácios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 175 e 176.
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filosofia, o universo das leis genéricas e abstratas, seria o caso de lembrar o
nome de Georg Simmel, de quem Weber foi amigo e leitor, com quem Sérgio
Buarque pode-se dizer que teria certas afinidades eletivas do ponto de vista
temático e estilístico.
Mais conhecido como sociólogo, graças à sua recepção nos Estados
Unidos, Simmel é em última instância um filósofo, como é possível ver na
seqüência de publicações Filosofia do dinheiro (1900), Kant e Goethe (1906),
Schopenhauer e Nietzsche (1907), Problemas fundamentais da filosofia (1910)
e Rembrandt: ensaio de filosofia da arte (1916), de onde advém sua abordagem
formalista da sociologia, concebida à maneira de uma “geometria social”
132
.
Professor na Universidade de Berlim durante quinze anos, entre 1885 e 1900,
onde Sérgio estudaria algumas décadas depois, Simmel era reconhecido por
seus alunos como um virtuose da palavra, um exímio orador, conquanto pouco
sistemático para as exigências acadêmicas. Coube a ele dar à filosofia um
caráter menos de tratado e mais de ensaio.
Pensador da modernidade, Simmel procurou alargar os “âmbitos
cósmicos e anímicos” relegados pela metafísica tradicional e romper com seus
dogmas absolutos, sem perder o rigor, a unidade e a profundidade do
pensamento. Assim, podia-se interrogar a respeito de questões relativas à moda,
à cultura feminina e ao sexo na mesma proporção em que continuava a indagar-
se sobre a arte e a ciência, a moral e a religião. O denso ensaio A aventura,
matriz do tipo-ideal aqui enfocado, é emblemático do quilate das reflexões de
Simmel e do manancial de temas que palpitam em sua curiosidade
intelectual
133
. A forma simmeliana, chamada por Leopoldo Waizbort seu
“panteísmo estético”
134
, define a aventura como uma vivência que se desprende
do contexto e da totalidade do fluxo vital. Suspensa dele, o afastamento de
determinados conteúdos do encadeamento e dos círculos homogêneos da vida
proporciona a sensação de uma posição à margem do continuum da existência.
A dimensão onírica da aventura, para Simmel, é proporcional ao estranhamento
132
Ainda no mestrado, tive a oportunidade de assistir aos seminários do curso ministrado pelo
professor Luiz Costa Lima, consagrado à análise das reflexões filosóficas de Simmel, com a leitura
integral do primeiro e do quarto livro acima citados. Cf. SIMMEL, G. Rembrandt: ensayo de
filosofía del arte. Buenos Aires: Editorial Nova, 1950.
133
Cf. Id. Sobre la aventura: ensayos filosóficos. Epílogo de Jünger Habermas. Barcelona:
Ediciones Península, 1988.
134
Cf. WAIZBORT, L. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 75.
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e à recordação distanciada que se tem dela na centralidade do processo vital.
Dada sua condição insular, o aventureiro é aquele que responde em estado puro
à distância da firmeza e ao alheamento da estabilidade por assim dizer
continental.
A ligação seqüenciada entre os acontecimentos do dia a dia perde com a
aventura a sua função, adquirindo um sentido em si próprio, com valor apenas
no presente, autônomo e independente dos nexos causais mais ordinários que
atam o indivíduo ao ontem e ao amanhã, ao passado e ao futuro. Por outro lado,
não bastam para Simmel, na caracterização da aventura, a acidentalidade e a
excentricidade frente ao curso da vida. Ela consiste em uma dupla
configuração, pois se a aventura foge à lógica cotidiana e às relações racionais
entre causas e fins, ela guarda também um elo transcendente e misterioso com
essa mesma necessidade vital. O autor utiliza o paralelo do caráter aleatório das
apostas em um jogo de azar, cuja ausência de sentido em si é suprida pela
espirituosidade do jogador, que reveste os lances de uma oculta coerência
interna. Por extensão, o caráter acidental da aventura só adquire significado
pleno para o aventureiro na medida em que as experiências excepcionais
comunicam algo à essência da vida. Um envolvimento peculiar se opera assim
do acidental-exterior ao necessário-interior.
As grandes categorias vitais articulam-se, em Simmel, através desses
dois componentes que se enlaçam de maneira ora fragmentária ora total. A
aventura da vida e a vida aventureira se interpenetram de maneira assemelhada
à criação nas obras de arte, com sua abrupta delimitação entre um começo e um
fim; à paixão nos sonhos, com sua corrente de sensações fugazes destinadas ao
esquecimento; e ao azar nos jogos, com seu sistema de apostas que podem
levar, num átimo, a ganância do indivíduo do pedestal à ruína. A síntese desses
elementos deixa perceptível a tensão constitutiva das duas partes antinômicas.
O trabalhador estabelece uma relação orgânica com o mundo, empregando sua
energia na produção de artefatos humanos, enquanto o aventureiro funda uma
relação inorgânica com ele, expressa mediante o gesto conquistador e a astúcia
no aproveitamento das oportunidades que vêm e vão. O primeiro produz a
sensação de maior proteção contra os perigos, ao passo que o segundo faz da
conquista um ato triunfal decorrente de suas próprias forças. Tal procedimento
torna extremos no âmago da vida os sentimentos de atividade e de passividade,
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de dado e de conquistado, de fortuna e de virtude. O estilo aventureiro se fia,
pois, na força e na sorte como dois élans diante das incertezas do triunfo, das
obscuridades do destino e dos riscos da morte.
Se a aventura é um estilo de vida que pode ser associado a uma variedade
de conteúdos vitais, o principal deles na ótica de Simmel é a dimensão erótica,
são as configurações do amor. A conquista e a gratuidade, a auto-suficiência e a
dependência do outro estão presentes nos relacionamentos amorosos. A força
conquistadora depende das faculdades e iniciativas individuais, mas a sorte,
com a intervenção de elementos externos não controláveis, imponderáveis à
vontade do indivíduo, é requisito para a consumação do amor. Ainda que o
homem e a mulher enamorados, o rapaz e a moça apaixonados lidem com esses
dois pólos de maneira distinta, um se posicionando de modo mais ativo e o
outro de modo mais passivo, em um amplo leque de intercessões
combinatórias, os dois fatores atuam conjugados forçosamente na vida
amorosa. O amor é aventura para Simmel porquanto ele é capaz de ultrapassar
a corrente homogênea da vida e assim penetrar nos instintos mais secretos do
homem.
A ventura amorosa estabelece dessa maneira uma relação específica com
o tempo, em uma dupla perspectiva: tangencial e central. Por um lado, ela
apresenta a sua faceta arrebatadora, com o entusiasmo e a fulguração de um
momento, a irrupção luminosa de um instante, um encontro inesperado e
intenso, passível porém de um desencantamento súbito; por outro, aquela
iluminação fugidia pode se revelar também perene, estável, madura, como um
dom de eternidade e de ubiqüidade, de onde deriva a crença da predestinação
mística entre duas pessoas ou entre duas almas.
Para além de todo e qualquer conteúdo aventureiro, a sedução primordial
da aventura consiste em ser ela uma forma de experimentar, que põe os
instintos vitais em tensão com as forças externas extremas, de um lado, e com
as fontes íntimas de energia do homem, de outro. Para Simmel, os jovens, com
seu estilo próprio, auto-referenciado, são aqueles que experimentam a vida em
um ritmo, em uma intensidade e em uma paixão tal que a forma acaba por
sobressair ao conteúdo, ao contrário dos velhos, cuja aproximação com a
aventura se dá de maneira apenas acidental e conteudística. Os idosos, quando
muito, entram em contato com o espírito aventureiro de maneira limitada,
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epidérmica e parcial, não sendo a aventura adequada à idade avançada e ao seu
modo de vida, que tende ao recolhimento, à estabilidade e à autoproteção de
seus próprios limites, já sobremaneira conhecidos e traçados. A oposição entre
jovialidade e velhice remete o autor à diferenciação entre o que chama de
espírito romântico e de espírito histórico.
O romantismo contém essa demanda juvenil que clama pelos excessos e
pelo extravasamento do fluxo contínuo da vida, tornando-os mais visíveis, mais
latentes, mais palpitantes. A inquietude da subjetividade romântica revela a
premência pelo aproveitamento mais imediato da vida, sendo esta
experimentada como um presente incondicional, como um aqui e agora
inexorável. Já o ânimo histórico é capaz de ver as coisas sob um prisma
objetivo, reflexivo e retrospectivo. Ele se plasma de maneira mais cabal durante
a velhice, quando a história se transforma muitas vezes em visão de mundo e
passa a governar as ações humanas com sobriedade e ponderação. Em
compensação, o ânimo romântico dos jovens do Sturm und Drang quer usufruir
os acontecimentos da vida em sua dotação máxima, em sua natureza mais
frenética. “Argonautas da humanidade”
135
, os jovens não se cingem nem ao
passado nem ao futuro, porquanto não visam à fruição moderada da physis,
matéria da vida, mas à disposição para testar os limites que a fazem vibrar com
mais vigor.
Em que pesem as distâncias de idade entre diferentes segmentos da
sociedade, a aventura tratada por Simmel, mais do que uma condição etária, é
uma condição humana. Sua filosofia da vida, segundo Heidegger um termo
tautológico
136
, afirma que todos os indivíduos estão aptos a alcançar o “umbral
da aventura”
137
, se se considera a sua característica mais importante, qual seja,
a de ser um desprendimento extraordinário do contexto global da vida, um
fragmento da existência cuja excepcionalidade não é mero acidente ocasional
mas algo dotado de significação para a mesma fonte vital de onde emana. A
aventura torna-se assim um modo de vivenciar uma dualidade inerente ao
homem, que pende entre a determinação e a liberdade, entre o cálculo e o
135
“Os jovens são os argonautas da humanidade.”. Cf. LEÃO, E. C. “Juventude e tóxico”. In:
Aprendendo a pensar. Petrópolis: Vozes, 1991, vol. 1, p. 42.
136
Cf. MORAES FILHO, E. de (Org.). Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
137
Cf. SIMMEL, G. Sobre la aventura: ensayos filosóficos. Epílogo de Jünger Habermas.
Barcelona: Ediciones Península, 1988, p. 24.
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acaso, entre o forçado e o fortuito. A lição simmeliana da aventura consiste,
pois, em apontar esta experiência como reveladora da posição do homem no
mundo:
“Somos los aventureros de la tierra; nuestra vida está penetrada de un
extremo a otro por las tensiones que caracterizan la aventura. Sólo
cuando éstas se hacen tan poderosas que dominan la materia en cuyo
seno se desenvuelven, se produce la ‘aventura’. Pues ésta no consiste
en los contenidos que se ganan o se pierden, se gozan o se sufren con
ella: todo esto nos es accesible en otras formas de vida. Lo que hace
de una simple vivencia una aventura es otra cosa, a saber: la
radicalidad que se siente como ténsion de la vida misma, como
exponente del processo vital, con independencia de su materia y de
sus diferencias; que el volumen de estas tensiones sea lo bastante
grande como para hacer que la vida se remonte más allá de esa
materia.”
138
De forma sumária, poder-se-ia concluir esse ponto dizendo que o
pensamento de Simmel se situa na interseção entre a dimensão religiosa, que
confere ao cosmo um sentido previa e plenamente estabelecido, e a dimensão
laica da modernidade, que percebe o homem e a experiência mundana em meio
ao esboroamento de significados atribuídos a esse mesmo universo. Em outras
palavras, o esvaziamento do telos põe o homem moderno diante de sua própria
tragicidade, capaz de produzir uma série de impasses e de trompe-l’oeils na
visão universal do processo de racionalização e de secularização do mundo
ocidental. Sua concepção da vida pode ser resumida ainda em consonância com
uma frase lapidar de Weber, no encerramento de sua aula inaugural na
universidade de Heidelberg, em 1908, muito conhecida por seu título, A
política como vocação: “Ciertamente, toda la experiencia histórica confirma la
verdad: que el hombre no hubiese logrado lo possible si no hubiese luchado una
y outra vez por lo impossible.”
139
.
As digressões do pensamento filosófico de Simmel orientar-se-iam
sempre pelo dualismo forma-matéria, por um viés de fundo psicológico que
pode de ser observado acima através da díade vida-aventura. Suas linhas-
mestras se desdobrariam como imperativos categóricos de sua sociologia e
teriam como ponto de partida algumas indagações inspiradas em Kant: como é
138
Cf. ibid, p. 26.
139
Cf. WEBER, M. Ensayos de sociología contemporánea. Apresentação de Wright Mills.
Barcelona: Ediciones Martínez Roca, 1972, p. 159.
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possível a sociedade ? Quais os a priori lógicos para a coexistência na vida
social ? O que a separação entre a subjetividade e a objetividade revela a
respeito da “tragédia da cultura moderna” ? Essas interrogações seriam
desenvolvidas naquela que, ao lado das mais de quinhentas páginas de Filosofia
do dinheiro, é sua obra maior, Sociologia (1908), composta de dez capítulos e
treze excursos.
A ciência da sociedade seria pensável para Simmel como uma resultante
das ações e das reações entre os indivíduos, como um fruto das interações
humanas, como um processo que denomina sociação. Esta última categoria
inclui a dimensão da competição e do conflito, vista por ele como uma forma
pura, cuja função não é nem patológica nem nociva para a vida em grupo, mas
positiva para qualquer coletividade, condição necessária e indispensável a
mudanças que visem à obtenção do próprio consenso. Algo semelhante à
percepção de Durkheim acerca do enfoque relacional e comparativo do crime
no contexto da sociedade francesa do final do século XIX. Em vez de uma
pesquisa histórica em torno das origens da violência, da busca por um ato
violento original, o funcionalismo durkheimniano perseguia a relação da
criminalidade com a norma, associando as necessidades de penalização e
sanção dessa prática à auto-regulação da sociedade
140
.
Se a sociologia simmeliana encontraria acolhida nas universidades norte-
americanas desde a década de 1920, sua filosofia teria uma relação sinuosa,
ziguezagueante, com a tradição germânica ao longo do século XX, em
particular com alguns autores ligados à Escola de Frankfurt, malgrado o
inegável prestígio que o gênero do ensaio teve entre eles como forma de
expressão lítero-filosófica. Isto pode ser observado nos comentários que
acompanham as edições posteriores das obras de Simmel, como a coletânea
Filosofia do amor
141
, em cujo posfácio Gyorgy Lukács reputava-o como um
“homem inteligente e bem dotado”
142
, embora em outras ocasiões o crítico
húngaro, mais afeito à matriz hegeliano-marxista, observasse em termos
negativos seu vitalismo irracionalista à Schopenhauer e à Nietzsche. Vale notar
que, em sua juventude, o autor de História e consciência de classe e Assalto à
140
Cf. DAMATTA, R. “Os discursos da violência no Brasil”. In: Conta de mentiroso: sete
ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 176 e 177.
141
Cf. Id. Filosofia do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
142
Cf. MORAES FILHO, E. op. cit., p. 12.
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razão: trajetória do irracionalismo de Schelling até Hitler fora aluno de
Simmel e freqüentara os colóquios privados realizados na casa do seu então
professor, em companhia de Ernest Bloch, outro discípulo cético. Theodor
Adorno também se revelaria ambíguo em relação ao autor, ora considerando a
obviedade do idealismo psicológico de seus ensaios ora tratando o ensaísmo
simmeliano como precursor na introdução de novos objetos para a abordagem
filosófica.
Dada a ausência do texto em português, a consulta à versão espanhola da
coletânea aqui explorada, Sobre la aventura, levou-nos ao epílogo “Simmel
como intérprete de la época”, assinado por Jünger Habermas, em que este
empreende um balanço retrospectivo acerca da relação conturbada do autor
com o pensamento crítico frankfurtiano. Este entende Simmel como um
pensador cujas premissas não são mais válidas, mas cujas análises têm
conseqüências ainda vigentes na modernidade. Trata-se de uma figura típica do
fin de siècle, anterior ao trauma da Primeira Guerra mundial, partícipe dos
conceitos básicos da cultura neokantiana, dividida entre ética e estética, entre
liberdade e necessidade, entre espírito e natureza, entre forma e matéria:
“Simmel, de este modo, se sitúa del lado de acá del abismo que se va a
abrir entre Rodin y Barlach, entre Segantini y Kandinsky, entre Lask y
Lukács, Cassirer y Heidegger. Escribe sobre la moda de manera
diferente a Benjamin. Y sin embargo es él quien establece la conexión
entre moda y modernidad, quien impacta al joven Lukács hasta en la
elección de sus títulos, quien inspira a Benjamin observaciones acerca
del ámbito de experiencias rebosante de sugestión, rico en contactos y
de acelerado movimiento que es la grand ciudad, es él quien altera los
modos de percepción, los temas, el estilo de escritura de toda
generácion de intelectuales. ¿ Cómo se explica el potencial de
incitación mostrado en la época de Weimar por parte de un hombre
tan profundamente arraigado en el históricamente ilustrado siglo XIX
? Pienso que Simmel debe su sorprendente, aunque muchas veces
anónima, influencia al diagnóstico de base filosófico-cultural de la
época, que desarrolló por vez primera en el capítulo final de la
Filosofía del dinero (1900). En el ensayo sobre “Concepto y tragedia
de la cultura” prosiguió la elaboración de esta teroía de la época
contemporánea y en su tardía exposición acerca del “Conflicto de la
cultura moderna” la subordinó a una cuestionable metafísica de la
vida.”
143
.
143
Cf. SIMMEL, G. Sobre la aventura: ensayos filosóficos. Epílogo de Jünger Habermas.
Barcelona: Ediciones Península, 1988, p. 277 e 278.
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Ao assinalar as influências de Simmel sobre Walter Benjamin, Habermas
deixa de pontuar, no entanto, aquelas que dizem respeito à concepção de rotina
e de aventura. A tipologia do aventureiro se faz presente no ensaio de Benjamin
de 1936, intitulado O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai
Leskov
144
. Enquanto Simmel analisava a relação entre vida e aventura,
Benjamin concentra-se na ligação entre vida e palavra. Ambos por sua vez se
fundam em um mesmo pressuposto, que é a transmissão da experiência no solo
da cultura. A vivência no seio de uma comunidade tradicional repousa em uma
mesma analogia: a forma da narração equivale à forma do trabalho típica da era
pré-capitalista. A arte de contar e de ouvir histórias acerca dos acontecimentos
vividos é uma prática integradora. Para além da voz do narrador, ela
compreende uma totalidade perceptiva que articula mão, alma e olho. Ela é
análoga à tradição do trabalho artesanal, em que o sentido da obra não está
alienado de quem produz os artefatos. A narração é uma forma de “artesanato
da palavra”, uma vez que confere unidade à partilha de experiências entre
diferentes gerações.
Ao qualificar sua época como o período de declínio no intercâmbio de
experiências, efeito entre outros das ações traumáticas da guerra de trincheiras
na Europa, às vésperas da eclosão de um genocídio ainda mais devastador, o
Sohoah Holocausto , este pensador, de origem judia como Simmel,
identificava dois tipos principais de narrativa que acompanharam o homem ao
longo da história. Ambos tinham por base a oralidade e se amparavam na
autoridade da velhice, segundo ele, estágio-mor, ápice da vida. O acúmulo de
experiências dava ao ancião a capacidade de aconselhar os mais jovens, em um
ciclo de ensino-aprendizagem que se perpetuava de geração a geração, de
pessoa a pessoa. O primeiro tipo era o da tradição, próprio daquele indivíduo
que contraiu um vasto repertório de histórias contadas a partir da sua própria
vivência no torrão natal. O segundo era o da aventura, típico do viajante que
conheceu terras e mares, povos e paisagens distantes, cujas estórias ele narra a
seus conterrâneos quando de seu regresso. O reino narrativo teria esses dois
representantes arcaicos, esses dois narradores anônimos encarnados na figura
144
Cf. BENJAMIN, W. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie
Gagnebin. São Paulo: Brasilense, 1994, vol.1.
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do camponês sedentário e do marinheiro comerciante. A aventura seria uma
forma de conhecimento, posto que o navegante é portador de um saber vindo de
longe, capaz não apenas de aprender como também de ensinar.
A genuína narrativa para Benjamin é quase sempre acompanhada de um
senso prático, de uma dimensão utilitária. Neste sentido, Nicolai Leskov é uma
exceção na galeria de escritores do século XIX. Contador de histórias à moda
antiga, seus contos são fruto de uma sabedoria contraída em viagens comerciais
empreendidas pelo interior da Rússia, onde encontrou no florilégio das lendas
folclóricas e das tradições populares a forma ideal para transmitir seus
conselhos e suas lições de vida: “a moral da história abraça um acontecimento,
como a hera abraça um muro.”
145
. As sentenças instrutivas e morais dos
episódios narrados por Leskov têm, contudo, uma característica mais
importante. Elas não são explicações cerradas nem informações acabadas; seu
inacabamento essencial dá, ao contrário, um amplo espaço de liberdade para a
interpretação do leitor/ouvinte. O caráter sugestivo de uma história se realiza
em sua abertura interpretativa. Somente ao receptor da obra cabe fazê-la;
somente a este é dado completá-la. Se aconselhar é “menos responder a uma
pergunta do que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma estória que
está sendo narrada”
146
, então Leskov pertence a uma estirpe de narradores cujo
primeiro expoente foi Heródoto.
As Histórias de Heródoto ele próprio viajante, cronista, homem de
“inexaurível curiosidade” são a matriz de uma diferença substantiva entre
explicação e narração, entre verificação e sugestão:
“Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica é necessário
investigar a relação entre essa forma e a historiografia. Podemos ir
mais longe e perguntar se a historiografia não representa uma zona de
indiferenciação criadora com relação a todas as formas épicas. Nesse
caso, a história escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz
branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as
formas épicas a crônica é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da
história escrita é mais incontestável. E, no amplo espectro da crônica,
todas as maneiras com que uma história pode ser narrada se
estratificam como se fossem variações da mesma cor. O cronista é o
narrador da história. Pense-se no trecho de Hebel, citado acima, cujo
tom é claramente o da crônica, e notar-se-á facilmente a diferença
entre quem escreve a história, o historiador, e quem a narra, o cronista.
145
Cf. ibid, p. 221.
146
Cf. ibid, p. 199.
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426
O historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os
episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em
representá-los como modelos da história do mundo. É exatamente o
que faz o cronista, especialmente através de seus representantes
cronistas medievais, precursores da historiografia moderna. Na base
de sua historiografia está plano da salvação, de origem divina,
indevassável em seus desígnios, e com isso desde o início se
libertaram do ônus da explicação verificável. Ela é substituída pela
exegese, que não se preocupa com o encadeamento exato de fatos
determinados, mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável
das coisas.”
147
As artes benjaminianas da memória “a memória é a mais épica das
faculdades” provêm da naturalidade e da simplicidade do narrador, que as
conta e as reconta de maneira sucessiva, tal qual Scherazade em As mil e uma
noites, dando origem a uma série sempre renovada de versões e de
interpretações. Ao lado das histórias de Heródoto, os contos de fada também
representam um dos primeiros esforços da humanidade na libertação das forças
opressivas do mito, cujas narrativas sempre amedrontaram o homem. Sabe-se
que o tempo na mitologia se manifesta como uma divindade ambígua,
igualmente aterrorizadora: pai dos homens, provedora de suas necessidades,
inevitável destruidora de seus próprios filhos. Segundo Panofsky, em seus
estudos de iconologia, Kronos é um voraz tirano, um deus monstruoso provido
de três cabeças (passado, presente, futuro), quatro asas (as estações do ano) e
doze plumas (os meses)
148
. Já de acordo com Benjamin, a estratégia humana
para a superação desse medo da mitologia originária se desdobrou em dois
aspectos da coragem: a astúcia e a arrogância. Aventura e relato se encontram,
pois, na bravura, nesse processo de encorajamento do homem, da mesma
maneira que história e crônica convergem para a reminiscência, cuja deusa
Mnemosyne é fundadora da cadeia da tradição.
O papel da narração e o entendimento da história como uma “obra
aberta” seriam questões da obra de Benjamin que receberiam especial atenção
por parte de uma crítica de origem francesa, Jeanne Marie Gagnebin, radicada
no Brasil e professora de filosofia da PUC-SP. Se naquele ensaio Benjamin se
atinha a Heródoto para pensar a temática do narrador no Ocidente, sua exegeta
iria explorar em um artigo a dimensão da viagem e dos seus respectivos relatos
147
Cf. ibid, p. 209.
148
Cf. NUNES, B. “Tempo e história: introdução à crise”. In: Crivo de papel. São Paulo: Ática,
1998, p. 131.
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na poesia épica de Homero: “A memória dos mortais notas para uma
definição de cultura a partir de uma leitura da Odisséia
149
. Para tal, a filósofa
aponta de início Adorno e Horkheimer como autores responsáveis por uma
renovação da interpretação da viagem de Ulisses frente à visão corrente que
vigiu até o início do século XX. Ao invés da descrição de um itinerário
geográfico preciso e objetivo, a viagem descrita por Homero ganha nas novas
pesquisas um sentido subjetivo com a alegoria de uma trajetória que se inicia
com a perda de rumo e a desorientação do navegante e culmina com a retomada
do sentido, por meio do retorno à pátria, à ordem familiar e política. A leitura
dos autores de Dialética do esclarecimento sublinhava na Odisséia a
construção exemplar do sujeito racional, que requeria um domínio progressivo
da natureza externa e interna do homem, uma soberania do “self” face às
tentações e às ameaças do mito.
A despeito da importância dessa apreciação dramática feita pelos
filósofos de Frankfurt, a autora opta pela abordagem apresentada pela escola
francesa, segundo ela mais antropológica, histórica e humanista, composta por
autores como Pierre Vidal-Naquet, François Hartog e Tzvetan Todorov, da
mesma maneira renovadores da fortuna crítica de Homero. A condição humana
aparece nas peripécias de Ulisses sempre em tensão com o inumano e com o
mítico, territórios tão aterrorizantes quanto sedutores, por cuja provação tem de
passar o herói a fim de alcançar a sua própria humanidade. O errante
personagem que aspira reencontrar Penélope em sua terra natal tem de
atravessar ilhas fabulosas, onde são desconhecidos os mortais e para onde ele é
arrastado à sua revelia. Nessas misteriosas paragens, a luta principal travada
por Ulisses é pela manutenção da memória contra a grande sedução do
esquecimento do regresso, sua “feliz embriaguez” no rio Letes
150
, que ocorre
também com a ingestão da flor de lótus, droga “doce como mel”. Esquecer
significa aqui deixar de cantar e de contar histórias, significa deixar de ser
humano, olvidando-se do presente e do futuro, qual um animal ou um ente
atemporal divino.
149
Cf. GAGNEBIN, J. M. “A memória dos mortais: notas para uma definição de cultura a partir
de uma leitura da Odisséia”. In: PAIVA, M.; MOREIRA, M. E. (Orgs.). Cultura, substantivo
plural. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; São Paulo: Ed. 34, 1996.
150
Cf. WEINRICH, H. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p. 36.
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Ao seguir o primeiro dos helenistas citados, Vidal-Naquet, a autora
define a condição humana através de três características básicas: a agricultura,
o ritual do sacrifício e a hospitalidade. As sociedades monstruosas são aquelas
em que não há leis, não há themis (direito entre famílias de uma tribo), como a
terra dos Ciclopes em que não se verifica o cultivo de grãos, o culto a
divindades ou a construção de navios instrumento primordial de
comunicação para os gregos, a partir dos quais se pode receber e ser recebido.
A consumação da troca se dá por meio de oferecimento de presentes aos
hóspedes, como instrui Ulisses a um monstro: “Zeus é o vingador dos
suplicantes e dos hóspedes, é o deus da hospitalidade, que acompanha os
estrangeiros e quer que os respeitem.”
151
. Sem qualquer receio, porém, os
ciclopes afirmam sua ausência de reverência aos deuses, expressa por meio da
recepção hostil ao estrangeiro, do desrespeito às regras mínimas de
hospitalidade e do não reconhecimento do xenos como um amigo com quem se
estabelecem relações de troca. Os desembarques relatados por Ulisses requerem
sempre, portanto, o procedimento cauteloso de assuntar se se trata de lugar
cujos seres são violentos (hybristai) ou hospitaleiros (philoixeinoi).
O realismo homérico, cuja perfeição narrativa é destacada por Auerbach
ao acentuar o detalhe da cicatriz percebida por Ulisses em sua ama quando de
sua volta a casa em Ítaca
152
, não deixa de apresentar, em várias oportunidades,
a associação entre o temor aos deuses e o respeito pelo estrangeiro como pré-
requisitos para definição da humanidade. O ser humano é aquele que tem a
capacidade de entrar em comunicação com o outro, com aquele que vem de
fora, com aquele que aparenta uma estranheza radical, o que encerra sempre
uma relação ambígua com a alteridade, conforme acentua Gagnebin. Ela
recorre, para isto, ao étimo latino descrito por um lingüista de origem francesa:
“De acordo com Benveniste, o xenos corresponde ao futuro radical latim de
hostis, que dará tanto a palavra hóspes, hóspede, amigo, como também hóstis,
inimigo, marcando bem a ambigüidade dessa relação que pode ser o início de
151
Cf. GAGNEBIN, J. M. op. cit., p. 111.
152
Cf. AUERBACH, E. “A cicatriz de Ulisses”. In: Mimesis a representação da realidade na
literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2001. Vale dizer que a obra Mimesis, de 1946, fora
escrita por Auerbach, autor de origem judia, em seu exílio na Turquia. Cf. GUMBRECH, H. U.
“Pathos da travessia terrena: o cotidiano de Erich Auerbach”. In: SALOMÃO, J. (Org.). Quinto
colóquio UERJ: Erich Auerbach. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
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uma aliança duradoura ou, então, de uma guerra.”
153
. O autor citado faz alusão
por seu turno ao Essai sur le don de Marcel Mauss, que descreve, por sobre a
aparente gratuidade e espontaneidade dos presentes, a codificação da troca em
um sistema de recíprocas obrigações de dar e receber, manifestações
obrigatórias dos sentimentos.
A narração dos lugares da Odisséia em que Ulisses foi bem recebido faz
a filósofa se deter na análise da maneira específica pela qual o personagem
retribuía os presentes ofertados por seus anfitriões, durante os banquetes
seguidos aos rituais de sacrifício. Aos belos presentes correspondiam belas
histórias, que se valiam da narração em ritmo envolvente e em uma sucessão de
aventuras na viagem ao Reino dos Mortos. Elas revelavam o personagem
principal não apenas como um contador de casos, inventados ou vividos, mas
como um aedo completo, mestre conhecedor das regras de estilo, da
mnemotécnica e das conveniências do vocabulário. A autora frisa por fim a
íntima ligação entre o herói Ulisses, cuja experiência deriva da superação de
várias provas, e o narrador Ulisses, cuja sabedoria consiste não somente em
saber viajar, mas em saber relatar as suas viagens. Contar histórias seria o belo
presente do viajante a seus anfitriões, uma recompensa aos inúmeros desvios de
rota pelas ilhas do mito e da ficção, permitindo-lhe um honroso regresso a
Ítaca. Assim, a importância do canto poético é equivalente à grandiosidade do
feito do herói.
Seguindo as lições de Vernant, a autora finaliza o ensaio com a
observação de que a jornada de Ulisses representa o reconhecimento, na cultura
grega, da mortalidade como condição humana fundamental. Por serem mortais,
caberia aos vivos manter sempre viva a chama da lembrança e das ações
gloriosas dos mortos.
Assim, após uma rápida incursão ao significado da vida e da aventura na
filosofia simmeliana da modernidade; após uma abordagem resumida da
aventura e da arte narrativa de Benjamin no tocante à era pré-capitalista; e após
breves considerações sobre o caráter heróico da humanidade no alvorecer da
poesia épica antiga com a associação entre a hospitalidade e a arte de contar
histórias , poder-se-ia avançar a discussão com a análise do conceito de
153
Cf. GAGNEBIN, J. M. op. cit., p. 114.
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viagem no período moderno, momento que assinala uma mudança radical face
à herança cristã-medieval.
A mudança compreende a passagem da viagem sob a égide da
peregrinação cristã e dos seus modelos de cruzada agostiniana, paulina ou
franciscana
154
para a viagem regida pelo espírito da exploração científica,
pelo prisma do “desvelamento do indivíduo”, pelo reconhecimento da
subjetividade e da alteridade no Ocidente. Longe de ser uma demarcação clara
e rígida, haja vista a imaginação dos navegantes modernos, absorta na leitura
dos diários fantasiosos dos cronistas medievais desde a Alta Idade Média, como
comprovam as influências do Livro das Maravilhas, de Marco Pólo, sobre o
genovês Colombo e da Viagem de Ultramar, de John Mandeville, sobre o
português Vasco da Gama, uma ruptura crucial na mentalidade do missionário
e do conquistador vai ocorrer entre o final do século XV e o início do século
XVI
155
.
A esse propósito, o filósofo Gerd Bornheim dedicou um instigante ensaio
intitulado A descoberta do homem e do mundo
156
, onde analisa toda a latitude
do conceito de descobrimento na história ocidental, tendo como ponto de
partida a diferença entre o que considera a concepção de viagem na era
moderna e na era pré-moderna. Cumpre dizer que, embora omitido pelo autor,
o título do texto é extraído de um capítulo do livro do historiador suíço Jacob
Burkhardt, professor e amigo de Nietzsche na Basiléia durante a década de
1860. O livro clássico chama-se A cultura do Renascimento na Itália
157
, que
trata, grosso modo, das especificidades histórico-culturais da emergência das
cidades-Estado naquele ponto singular do mediterrâneo, onde floresceram as
repúblicas de Veneza, Florença e Milão, fornecedoras de um novo ideal de
homem para a Europa.
154
Cf. COSTA, M. T. da. Caminhando rumo ao céu – viagens na vida e vida como viagem:
peregrinações de Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em História
Social da Cultura / PUC - Rio, 1997.
155
Cf. TODOROV, T. “Viajantes e indígenas”. In: GARIN, E. (Org.). O homem renascentista.
Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 231 e 232. Cf. Id. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a
diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, vol. 1. Cf. ainda HOLANDA, S. B.
de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1992.
156
Cf. BORNHEIM, G. “A descoberta do homem e do mundo”. In: NOVAES, A. (Org). A
descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
157
Cf. BURKHARDT, J. A cultura do Renascimento na Itália. Apresentação de Peter Burke.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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Em certa passagem da obra, Burkhardt aborda a figura do cosmopolita
como a do indivíduo exilado, protótipo do desterrado que, por força das
circunstâncias de ordem política, é obrigado a migrar e a se adaptar em outros
lugares e entre outras gentes, tal qual o exemplo emblemático, já no século
XIV, do poeta toscano Dante Alighieri. Banido de sua terra natal por
partidários dos guelfos, partido inimigo, o guibelino segue o rumo da cidade de
Florença, onde decanta na Divina comédia as peripécias de seu próprio exílio,
que o faz vaguear pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso, com a
invocação e a companhia de sua fonte latina de inspiração, Virgílio
158
. Em
outra passagem, o historiador suíço refere-se a um outro extremo da
experiência da viagem. As navegações de Américo Vespúcio, um outro
protótipo do hommo viator, expressam a retomada do ideal clássico de ser
humano, cuja viagem não se destina ao enriquecimento nem à sanha argentária,
mas à conquista da glória do próprio nome, à maneira dos homens da
Antiguidade greco-romana. Como observa Burkhardt, o navegador veneziano
logra seu intento de imortalidade gloriosa, apressando-se em batizar um imenso
continente com sua própria alcunha, pouco depois da repercussão da obra
Mundus novus na Europa.
Gerd Bornheim, por sua vez, se concentra no exame do impacto na
Europa dos feitos dos grandes descobrimentos e, sobretudo, na transformação
do sentido ontológico da viagem nos tempos modernos, com base na
experiência das navegações ultramarinas do século XVI. Se no período
medieval o ato de viajar era norteado sob a égide cristã da busca do mesmo e
do igual, previamente conhecido na via crucis ascendente e purificadora do fiel
peregrino, na era moderna o navegador europeu passa a cultivar as maravilhas e
os espantos da descoberta do outro. Inaugura-se então na história moderna do
Ocidente o estatuto ontológico da alteridade, que se estenderia até o período
contemporâneo. O contraste entre a parte singular de uma cultura com uma
totalidade mais abrangente acentua o sentido de pertencimento a uma unidade
com dimensões jamais vistas, com proporções jamais imaginadas. A nova
universalidade coloca em jogo as relações entre identidade e diferença, entre o
eu e o outro, entre o Velho Mundo e o Novo Mundo, entre a cultura ocidental e
158
Cf. AUERBACH, E. “Farinata e Cavalcante”. In: op. cit..
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a cultura não-ocidental, sendo a viagem o modo pelo qual o homem moderno
experimenta a curiosidade e o fascínio da alteridade.
Se, por um lado, a antropologia científica ultrapassou a miríade de
exotismos diluída no canibal de Montaigne, retemperada no bom-selvagem
de Rousseau, sempre acionada nas expedições de viajantes como os calvinistas
franceses Jean de Lery, André Thevet, Auguste de Saint-Hilaire ou como os
bávaros alemães Hans Staden, Spix e Martius, Alexandre Von Humboldt , por
outro, essa mesma antropologia ficou atrelada durante muito tempo ao viés
etnocêntrico do racialismo de Gobineau, do evolucionismo de Darwin ou do
primitivismo mágico de Lucien Lévy-Bruhl
159
. Talvez em virtude disso, o
antropólogo Claude Lévi-Strauss, no pórtico de Tristes trópicos, espécie de
longo relato de memórias de sua expedição ao Brasil central durante a década
de 1930, quando acompanha com pesar a desintegração de sociedades
indígenas como os Caduveo e os Tupi-Kawahib, os Bororo e os Nambikwara,
expressa na primeira linha de sua primeira frase a irada sentença: “Odeio as
viagens e os exploradores.”
160
De toda forma, os primeiros bosquejos da disciplina na segunda metade
do século XIX, em sua busca por uma alteridade radical, constituíram um
auspicioso indicativo do embrionário reconhecimento desse conjunto de
diferenças que se opõem entre os julgamentos universais e os relativos, dessa
pluralidade de povos que faz repensar a unidade e a indivisibilidade humana,
desse jogo de relatividades que se compõem e se decompõem em identidades
culturais particulares. Ainda de acordo com os insigths e com as observações
espirituosas de Gerd Bornheim, em decorrência da magnitude do processo dos
grandes descobrimentos na história do Ocidente, o navegador moderno
encontraria sua culminância numa caricatura do século XX. Esta apresentaria,
como corolário do modelo de navegante moderno, duas figuras a um só tempo
emblemáticas e caricatas da contemporaneidade: o turista e o astronauta.
As digressões em torno da diferença semântica entre a viagem pré-
moderna e a viagem moderna e suas respectivas concepções temporais e
159
Cf. GOLDMAN, M. Razão e diferença: afetividade, racionalidade e relativismo no
pensamento de Lévy-Bruhl. Rio de Janeiro: Grypho, 1994.
160
Cf. LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 11.
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espaciais salientam os traços religiosos de devoção que até então integravam o
espírito cristão. Uma vida votiva e fiel saltava à vista quando se abordava o
tema das cruzadas evangelizadoras de conversão do outro o pagão sem fé,
sem lei nem rei ao mesmo, ao igual, ao filho de Deus. As experiências de
viagem cristã estavam atreladas, de certa maneira com mais propriedade, à
vivência coletiva que buscava não a alteridade, mas o encontro do igual em
suas mais diversas rotas de peregrinação pela terra, através das romarias e das
caravanas. À tarefa de fundo altruístico que norteia a ação desses peregrinos,
associavam-se viagens e narrativas cujos princípios eram a busca do ordinário,
não do extraordinário, a busca do mesmo, não do diferente, como acontecia na
aventura e nos atos de heroísmo. Ir ao encontro do já conhecido, reencontrar o
já esperado, eram pois incumbências das missões cristãs. Deste processo, é
claro, não se excluem o sofrimento e a abdicação. A ideologia missionária do
sofrimento, nessa perspectiva, estava relacionada também à idéia militante de
combate cristão.
Esse ponto é definido nos seguintes termos pelo antropólogo Luís Felipe
Baeta Neves, em sua interpretação dos sermões do padre Antônio Vieira:
“Como os sofrimentos podem ser bons sofrimentos e a morte pode
ser boa morte, está franqueada uma ideologia missionária
destemida, combativa, que sabe que o que importa é a fiel
perseguição de bons fins porque são estes os seus próprios juízes
derradeiros.”
161
.
As reflexões do antropólogo neerlandês Johannes Fabian também vão ao
encontro das idéias de Gerd Bornheim. O livro Time and the Other: how
anthropology makes its objects
162
estabelece uma cadeia de oposições entre
identidade e alteridade, entre origem e destino, entre experiência religiosa e
experiência científica de viagem. O antropólogo amplia o horizonte da
discussão, contrapondo as peregrinações, as cruzadas e as missões cristãs à
viagem filosófica dos iluministas e ao processo de secularização do Tempo
161
Cf. NEVES, L. F. B. “Palavra, mito e história no sermão dos sermões do padre Antônio
Vieira”. In: RIEDEL, D. C. (Org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1988,
p. 183.
162
Cf. FABIAN, J. Time and the Other: how anthropology makes its objects. New York:
Columbia University, 1983, p. 6.
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instaurada pela burguesia do século XVIII. Os philosophes do Iluminismo
questionam a plenitude temporal outrora absoluta e, em seu lugar, preenchem o
vazio deixado com uma tripartição cronológica em que se abre passado,
presente e futuro
163
. À luz do cristianismo, a viagem é vista como uma
expansão contínua da evangelização, uma escalada incessante de incorporação
dos infiéis às primícias do tempo e do espaço litúrgicos, desde sempre
conhecidos pelo missionário. Já sob a ótica burguesa, a viagem é o meio de
expansão dos sentidos através da ampliação de experiências e de percepções
sensoriais na vida terrena. Elas possibilitam o encontro de um outro tempo e de
um outro espaço, algo radicalmente novo na sua história. Os rudimentos de
uma relatividade histórica, geográfica e, por conseguinte, cultural, estão aí
presentes.
Enquanto o antropólogo Johannes Fabian contrapõe a perspectiva
religiosa da viagem à perspectiva científica, a historiadora Melissa Calaresu faz
um outro oportuno contraponto em seu ensaio Looking for Virgil’s tomb: the
end of the Grand Tour and the cosmopolitan ideal in Europe
164
. Tendo como
fonte de pesquisa uma série de guias de viagem que proliferaram no mundo
europeu do Setecentos, junto à fermentação de uma rede de edições, de
tipografias e de livros, muitos deles clandestinos e à margem do circuito oficial,
conforme desvendara Darnton em O Iluminismo como negócio, a historiadora
estabelece alguns matizes para a distinção da idéia de viagem na Europa.
Grosso modo, ela parte das nuances entre um ethos aristocrático de viagem e
um outro que se poderia chamar de burguês. O Grand Tour é o modelo de
viagem que deriva de uma prática ilustrada, institucionalizado em diversas
cortes européias, com vistas à educação e à formação cultural dos filhos das
elites. Ele é implementado com a finalidade de alargar os horizontes dos jovens
aristocratas através de visitas a lugares considerados centrais da cultura
européia, tal como Nápoles, onde se encontrava o túmulo do poeta Virgílio.
Em paralelo ao crescimento do interesse pelas viagens, desenvolve-se um
sistema codificado de orientação para as atividades turísticas, os guidebooks,
163
Cf. FALCON, J. F. C. Iluminismo. São Paulo: Ática, 2004.
164
Cf. CALARESU, M. “Looking for Virgil’s tomb: the end of the Grand Tour and the
cosmopolitan ideal in Europe”. In: ELSNER, J.; RUBIÉS, J.-P. (Orgs.). Voyages and visions:
towards a cultural history of travel. New York: Reaktion Books, s.d.
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tais como o Historical and critical description of Italy, de 1766, assinado por
Jerome Richard, e o Voyage of a Frenchman in Italy, de 1769, escrito por
Joseph-Jérôme de Lalande, membro da Academia de Ciências francesa. Os
livros continham referências acerca dos lugares mais aprazíveis, das melhores
rotas, dos mais belos sítios e das conveniências mais importantes para o
périplo. O registro das viagens era feito pelos próprios peregrinos por meio do
hábito de escrever cartas e diários no decorrer do translado, facultando a
membros da juventude inglesa, francesa e alemã a passagem de temporadas de
inverno em Roma, em Nápoles ou na Sicília. As capitais do mundo antigo eram
as preferidas dos guias de viagem, acompanhados de mapas e de ilustrações a
fim de orientar o grand tourist. Impregnado por essas leituras, o viajante ia ao
encontro do que lia nos livros, preparando-se para contemplar a paisagem
natural e os monumentos da arquitetura clássica, seja o Vesúvio sejam as
colunas de Pompéia.
O modelo do Grand Tour surge ainda na Renascença, quando se
desenvolve o gosto pela leitura dos textos gregos e latinos, com a disseminação
de livros gerada também pelo advento da imprensa, que extrapola o círculo de
autores avalizados pela escolástica. Esse momento passa a preconizar também
as peregrinações, não mais a locais onde jaziam tumbas de pontífices, santos ou
quaisquer representantes da hagiografia cristã, mas a esses centros de referência
da sensibilidade humanística da Europa, como as cidades que celebravam as
grandes obras humanas e a memória dos grandes poetas, dentre os quais o já
citado Dante. O século XVIII, com o Iluminismo e com os seus déspotas
esclarecidos, impulsiona ainda mais esse tipo de viagem, a tal ponto que ele
transforma o próprio sentido inicial conferido pela aristocracia e passa a
abranger os valores do cosmopolitismo ilustrado da época, estendendo-se à
Bildung dos românticos, como Goethe em sua Viagem à Itália.
A transformação ocorre não apenas em razão do desenvolvimento das
vias de acesso, da facilitação dos meios de locomoção, da multiplicação de
guias de viagem e da diminuição das fronteiras nacionais, ainda bem
demarcadas pelos limites das fortificações feudais durante o Renascimento. A
mudança ganha impulso de igual maneira graças a alguns princípios iluministas
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que começam a ser implementados, tais como a busca da tolerância perante o
outro, a ampliação dos hábitos corteses e a diluição do provincianismo.
Mas os roteiros fixados nos guias ocasionavam também tensões para a
definição de um sentido iluminista das viagens. Algumas antigas certezas
morais ainda condicionavam os juízos de valor e as visões de mundo
cosmopolitas. As teorias já consolidadas eram postas à prova, com as
observações feitas pelos viajantes nesses deslocamentos territoriais. A
exacerbação das diferenças vinha estampada nos próprios estereótipos
presentes nos guias de viagem e em muitas representações feitas acerca do sul
da Europa, em especial a imagem dos italianos. Em vários relatos partilhava-se
a crença de que o caráter de uma cultura derivava de determinismos climáticos.
A relação entre as variações do meio geográfico e as inclinações raciais era
vista como decisiva para a avaliação da essência e do temperamento de uma
comunidade. Por isto, muitos apontamentos de viagem reforçavam os
estereótipos já existentes sobre os povos mediterrâneos, em particular os
napolitanos: indolentes, inconstantes, desocupados, ignorantes. Na ótica dos
viajantes, Nápoles, a terceira maior cidade da época, atrás apenas de Londres e
Paris, tinha uma população composta por uma multidão de pobres, por uma
massa de indigentes, por uma “escória” de lazarentos.
A relação triangular entre clima, têmpera e povo, presente já em antigos
como Hipócrates, era popularizada na época pela obra de Montesquieu, O
espírito das leis (1748), que justificava as diferenças nacionais através de
distinções relativas a questões de ordem climática. Assim, os povos que
habitavam as regiões frias e temperadas do norte da Europa eram industriosos e
ordeiros, enquanto os das regiões quentes do sul do continente eram caóticos e
passionais. Norteado por critérios aristotélicos de fisiologia-moral, os viajantes
faziam um observações de cunho “etnográfico” sobre as características das
cidades da Europa meridional todas, em última instância, condicionadas pelo
clima , com ênfase nos contrastes que saltavam à vista entre o modo de vida
da maioria da população miserável e o da pequena elite local. À indolência dos
pobres correspondia a indiferença dos ricos, com seus requintes de distinção
nas óperas e nos teatros.
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Nesse sentido, Calaresu mostra os embaraços dos intelectuais de Nápoles
do século XVIII. Divididos entre a identidade napolitana e o desejo de ser
cosmopolita, igualando-se aos visitantes cultos da cidade, tinham de conviver
com a pobreza, a indigência e o provincianismo ao seu redor. Essa
autoconsciência leva-os a refletir sobre a urgência de reformas políticas, a fim
de melhorar a imagem do reinado frente aos estrangeiros vindos do norte da
Europa. Através de viagens, esses intelectuais buscavam inspiração nos
modelos de reforma política implementada no restante da Europa, como as
realizadas por Maria Teresa d’Áustria. Por outro lado, os intelectuais
napolitanos nutriam um sentimento insurgente face aos relatos dos viajantes e
não se contentavam em acatar as representações dos guias de viagem franceses
e ingleses. A tradução de obras e a discussão de seu conteúdo faziam estes
europeus da periferia manifestar também sua discordância e sua indignação
face àqueles que pretendiam estigmatizá-los. Eles contestavam para isto o
estereótipo de Nápoles como uma cidade bárbara, não civilizada, espécie de
outro orientalizado no interior da Europa. Imagem e auto-imagem entravam em
jogo assim nesse processo de discussão especular sobre a identidade daquela
região.
O mérito de Calaresu em seu artigo consistiu na ênfase não apenas no
olhar forasteiro sobre a Itália, mas no olhar interno de seus intelectuais,
representantes de um iluminismo excêntrico que queria ao mesmo tempo se
ajustar e se diferenciar do iluminismo parisiense e londrino. A discussão tinha
por base a postura cosmopolita de seus membros, eles próprios viajantes,
representantes da Academia Real de Nápoles, que iam a Londres e eram
capazes de elaborar respostas fundamentadas aos estereótipos veiculados nos
guias de viagem acerca da sua terra.
Era o caso de Michele Torcia, que depois de passar alguns anos na capital
inglesa, escreveu o livro Appendix containing a brief defense of our nation
against the accusation of several foreign writers. O mesmo sucedia com Pietro-
Napoli Signorelli, autor de Culture of the two Sicilies, após passar uma
temporada em Madri e de traduzir textos de Voltaire para o italiano. Já o
escritor Carlo Vespasiano retrucava as críticas acerca da indolência italiana
como fruto do clima de Nápoles, considerando a arrogância intolerante dos
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viajantes franceses. Galanti, um outro ilustrado napolitano, autor de New
historical and geographical descriptions of the two Siciles, empenhava-se em
mostrar as falhas, as incoerências e os lugares-comuns não apenas dos
guidebooks como também dos verbetes da própria Encyclopédie, além de
acusar Montesquieu de plagiar trechos da Ciência nova, do italiano
Giambattista Vico.
As dificuldades, pois, de implementação do ideal cosmopolita do
Renascimento e do Iluminismo eram evidenciadas em situações concretas no
encontro entre povos com histórias distintas. A viagem mostrava quão difícil
era a viabilização desse projeto de tolerância universal e de respeito às
diferenças. A “paz perpétua” acalentada por Kant parecia esbarrar nesses
pequenos incidentes, nessas diminutas diatribes, nesses desentendimentos
menores de comunicação, que geravam desconfianças, estigmas e em muitos
casos ressentimentos mútuos. A experiência dos deslocamentos tornava
perceptíveis os critérios dos viajantes para a representação do outro, ora
elegendo determinados aspectos em detrimento de outros, ora tomando a parte
pelo todo, ora realçando apenas os estereótipos negativos de uma mesma
coletividade.
Essa questão sempre delicada e problemática teria continuidade ao longo
dos séculos subseqüentes, mesmo com a superação das teorias deterministas e
fisiológico-climáticas. No que diz respeito ao período pós-Iluminista, a
temática da alteridade voltaria a receber atenção, dessa vez por parte de um
estudioso de origem palestina, Edward Said, em livro intitulado Orientalismo:
o Oriente como invenção do Ocidente. Publicada no final dos anos 70, a
pesquisa realizada na Universidade de Stanford, Califórnia, se propunha a
analisar a maneira pela qual se formou a representação de um grande outro no
mundo ocidental, localizado vagamente no hemisfério situado ao leste do
globo. Essa representação funcionou sobretudo como fonte legitimadora para o
discurso colonialista da França e da Inglaterra, vigente tanto na Ásia quanto na
África. A respeito deste último continente, o exemplo mais pungente era a obra
literária de Joseph Conrad, Heart of darkness, com os relatos ficcionais deste
escritor inglês acerca das situações-limite de experimentação da alteridade,
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obra que iria marcar inclusive o estilo, a narrativa e o trabalho de campo do
antropólogo polonês Malinowski
165
.
Apoiado em uma série de outros escritores, de outras narrativas e de
outros fatos, Said concentrava-se nos empreendimentos coloniais e imperiais
franceses e ingleses durante o período que ia do final do século XVIII, com a
invasão napoleônica do Egito, atravessava o século XIX, com os apontamentos
do ministro vitoriano Disraeli, e se estendia até a contemporaneidade, após a
Segunda Guerra mundial, quando os norte-americanos passaram a dominar com
mais força a região. Said mostra, amparado na noção de discurso de Foucault e
de hegemonia de Gramsci, de que modo esse longo processo de construção de
uma imagem do Oriente verdadeiro jogo de olhares a que se consagrou
também o estudioso norte-americano Richard Morse em O espelho de
Próspero, abordagem das relações especulares entre a América do Norte e a
América Latina
166
passava ante de mais nada pela própria definição
contrastiva com a identidade ocidental. O nós europeu se definia em oposição
com o eles não-europeu, dizendo muito mais sobre o primeiro do que sobre o
segundo.
O contraponto básico para isto era a superioridade da Europa frente à
inferioridade constitutiva do oriental. Graças a esse dispositivo retórico, o
orientalismo era pensado como um fato político, uma dominação cultural, “um
modo de resolver o Oriente que está baseado no lugar especial ocupado pelo
Oriente na experiência ocidental européia.”
167
. A aparente homogeneidade
daquele espaço ante os olhos europeus se esfacelava em uma disparidade de
áreas geográficas – o Oriente Próximo, o Extremo Oriente, a Índia, etc. –, em
uma complexidade de matrizes civilizatórias árabes, hindus, chineses,
japoneses e em uma variedade de discursos históricos – os textos bíblicos e
islâmicos, os relatos do comércio das especiarias, os diários de viajantes, as
atas burocráticas da administração colonial, as seitas, a filosofia e a sabedoria
da tradição oriental recontadas pelos europeus, entre outros.
165
Cf. LIMA, L. C. O redemunho do horror: as margens do Ocidente. São Paulo: Planeta, 2003.
Sobre a relação entre Conrad e Malinowski, ver James Clifford. Cf. CLIFFORD, J. A experiência
etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
166
Cf. MORSE, R. M. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. Apresentação de
Antônio Cândido. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
167
Cf. SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990, p. 13.
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A ênfase no Oriente como um constructo da imaginação ocidental, como
uma fronteira estabelecida pelo Ocidente, a partir de um campo de estudos
eruditos que se formou nas universidades da Europa desde o século XIV
Oxford, Paris, Bolonha, Avinhon , não nega a existência de uma realidade
concreta, palpável, nem a efetiva correspondência entre a idéia e o real, entre a
teoria e a prática, entre a cultura e a política, entre a ação e a representação.
Said queria mostrar o papel desempenhado pelas idéias filosóficas e literárias,
pelos livros e pelas instituições orientalistas nesse processo, pondo à mostra
quem era o emissor daquele discurso, quem era o responsável por aquela
elaboração, o que sugeria na epígrafe do livro com a passagem extraída de
Marx em O dezoito brumário de Luís Bonaparte: “não podem representar a si
mesmos; devem ser representados”. Articulando história, sociedade e
textualidade, Said afirmava que o conjunto de textos dos orientalistas modernos
formava uma base de análise para o entendimento daquela representação
uniforme. Inspirado ainda na sociologia da cultura de Raymond Williams, Said
sustentava a premissa de que Chateaubriand, Renan, Flaubert, entre outros,
eram autores cujas obras individuais e cujos horizontes imaginativos se
situavam no interior das circunstâncias históricas forjadas pela tradição dos três
grandes impérios: o britânico, o francês e o americano.
A exposição feita acima permite a identificação de macro-questões, com
alcance antropológico, histórico e sociológico. Elas constituem pontos-chaves
para a circunscrição de um debate que pode ser estendido aos significados
assumidos pela prática e pela representação dos esportes no século XX. Os
ângulos até agora trabalhados podem ser resumidos em três: a experiência da
viagem; a sua dimensão narrativa; e a questão da alteridade associada à
tolerância.
A análise da história do futebol profissional permite observar como, à sua
maneira, o universo esportivo reflete, incorpora e vivencia esses aspectos
presentes na história da sociedade ocidental. Concebido em termos
aristocráticos e burgueses, o futebol se desenvolveu e se popularizou como uma
rede autônoma de associações desportivas, como um sistema auto-referenciado
de ligas, federações e confederações, em princípio formadas apenas por
grêmios e por clubes sociais distintos na segunda metade do século XIX. O
desenvolvimento dessa modalidade de competição levou à ampliação da escala
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de confrontos, tornando o futebol um espetáculo articulado à sua difusão pelos
meios de comunicação de massa. Seu evento mais popular e magnânimo é a
Copa do Mundo, epifenômeno da integração política, econômica e cultural no
século XX, torneio que reúne os selecionados nacionais representantes, por sua
vez, da diversidade de países do globo.
O ideal olímpico do futebol tem sua perfeição simbólica expressa na
forma de um círculo, de uma esfera, cuja materialidade pode ser a bola ou a
taça, ícones da esfericidade da Terra. Seu discurso se sustenta portanto na
invenção de formas competitivas e de formas meritocráticas de superação e de
auto-superação humanas, obtidas através de um sistema abstrato de pontuação,
proporcionando sucessivos desafios que põem frente a frente homens, equipes e
povos distintos. A instituição de campeonatos em escala local, nacional e
internacional pôs em pauta a conquista de títulos como expressão da
superioridade de uma nação sobre a outra. Em decorrência disto, a definição do
espaço, do domínio territorial, do lugar de realização desses embates, se tornou
decisiva. A composição de arenas não-neutras, expressão formal, geométrica e
arquitetônica da magnitude nacional, determinou não só os deslocamentos
espaciais como também a necessidade de excursões dos times ao estrangeiro,
constituindo delegações e “embaixadas”.
A criação de campeonatos internacionais resultou em um sistema dotado
de circularidade. Ele compreende partidas de ida e de volta, chaves com turno e
com returno. As alternâncias de sentido, com jogos realizados “em casa” e com
jogos realizados “fora de casa”, implicam na pressuposição de uma específica
metáfora espacial. O jogo “em casa” traz em seu bojo a imagem da residência e
do lar, que desempenha na economia psíquica do jogo um lugar de
centralidade, espécie de habitat natural, morada de um time, enquanto o jogo
“na casa do adversário” associa-se à imagem do estrangeiro, do distante, do
estranho. Ambas as imagens constituem no futebol, para utilizar as palavras de
Bachelard, uma poética do espaço, responsável por construir e por acionar a
imaginação em torno de uma interioridade e de uma exterioridade, de um
dentro e de um fora, de um familiar e de um estranho, de um nós e de um eles.
O cosmopolitismo e o provincianismo não tardariam a aparecer como
pólos constitutivos da dinâmica futebolística, com as obrigações recíprocas de
receber e de ser recebido, com as regras de hospitalidade e de cordialidade. Ao
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lado dos domínios da reciprocidade hospitaleira, constituída por visitantes e
anfitriões, o significado do deslocamento territorial assinala um aspecto
importante da vivência dessa alteridade. Ela abrange o contato com um outro
em termos espacial, temporal e antropológico. Em tal processo, um fenômeno
novo se somou à vida esportiva: os relatos e as histórias de viagem, referentes
não só aos jogos “fora de casa” como às circunstâncias da recepção. Conforme
sugere Simoni Guedes, seguindo autores como Lévi-Strauss e Benedict
Anderson, esses relatos transformaram o esporte em um dos significantes mais
eloqüentes da identidade: “...é característica inerente ao futebol a transformação
dos inúmeros eventos que produz em eventos narrativos, cujo sentido nunca
está dado. O processo semântico desencadeado pelo jogo constrói-se em um
campo de debates no qual diversas posições se confrontam.”
168
Se o surgimento de uma imprensa esportiva especializada é correlato à
conversão do futebol em espetáculo de massas, como demonstra Leite Lopes,
então não é difícil saber a quem coube a primazia na constituição dessas
narrativas e desse campo de representações. A divisão social do trabalho no
futebol profissional atribuiu desde cedo aos jornalistas na tarefa de imprimir
uma narratividade a esses eventos. Como correspondentes e enviados especiais,
os repórteres esportivos dos meios de comunicação de massa, junto a um
complexo formado por fotógrafos e por demais assistentes técnicos, receberam
a incumbência de informar o público seguidor de um clube ou de uma seleção
sobre os acontecimentos de uma partida de futebol. As fotos das primeiras
décadas do início do século XX mostram as imensas aglomerações humanas
em frente às sedes dos jornais a fim de obter informações através dos
telegramas que chegavam às redações sobre as partidas de times nacionais no
estrangeiro. O papel, desempenhado de início pela equipe dos jornais, passaria
em seguida às estações de rádio e por último às emissoras de televisão.
A apreciação geral da variada gama de narrativas permite a observação
de uma oscilação estrutural entre os cronistas no crivo de suas reportagens
esportivas. Por um lado, eles cumprem as prerrogativas morais de seu ofício na
elocução e na narração do futebol, obedecendo a pelo menos quatro preceitos
168
Cf. GUEDES, S. “De criollos e capoeiras: notas sobre futebol e identidade na Argentina e no
Brasil”. In: GUEDES, S.; GESTALDO, E. (Orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e
identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006, p. 128.
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fundamentais: a imparcialidade; a afirmação do espírito olímpico; o discurso
cosmopolita da comunhão amistosa entre os povos, fórmula retórica do respeito
às diferenças nacionais; e a idéia da honra ao mérito traduzida no amadorismo
diletante do fair play. Por outro lado, a exacerbação do desejo de vitória,
apanágio da afirmação nacionalista, levou à adoção de uma posição de
parcialidade incorporada na prática por muitos jornalistas, desviando-os da
mera função descritiva e aproximando-os da função judicativa. A mítica da
neutralidade cai por terra e o “instinto de nacionalidade” dos jornalistas passa a
sobressair. Seu papel se confunde então com o dos jogadores em campo e com
o dos torcedores nas arquibancadas. O espírito provinciano mostrou-se poroso
entre os comentaristas esportivos e fez com que as equipes adversárias fossem
muitas vezes denegridas, as rixas, várias vezes justificadas e as rivalidades,
com freqüência emuladas.
O material relativo a essa tensão constitutiva do discurso dos
especialistas esportivos ora paladinos da ética esportiva ora porta-vozes do
ufanismo é amplo e de difícil mensuração. Se nos ativermos à história do
futebol no Brasil, vamos encontrar exemplos de atritos nos mais variados
períodos e nas mais diversas situações. Eles podem ser verificados em diversas
escalas de confrontos que envolvem relações vicinais: o bairrismo dos derbys
locais, como os jogos entre Flamengo e Fluminense; o regionalismo dos
selecionados dos estados, como as antigas disputas entre cariocas e paulistas;
ou o nacionalismo de países vizinhos, como as partidas entre as seleções
brasileiras e argentinas. A respeito deste último, a construção de estereótipos
acerca dos dois países pode ser encontrada nas partidas válidas pelo
campeonato sul-americano desde os idos da década de 1910. Os arroubos
bairristas de ambas as partes da imprensa, a brasileira e a platina, já se
verificavam à época, com o afloramento do “narcisismo das pequenas
diferenças”, que seria ampliado e consolidado no decorrer do século. O relato
dos distúrbios protagonizados por jogadores e por torcedores dos dois países é
cristalizado nas versões dos cronistas, em suas apreciações dos acontecimentos.
Assim, a rivalidade é tanto reportada quanto cultivada como um ingrediente
atrativo pela própria imprensa esportiva.
O sociólogo Ronaldo Helal vem se dedicando nos últimos anos à análise
da construção de tipificações sociais associadas a estilos nacionais de praticar o
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futebol, com base na leitura de documentos extraídos dos meios de
comunicação de massa. Em seu projeto de pós-doutorado, “Futebol, mídia e
nação: as narrativas sobre a seleção brasileira de futebol na imprensa
argentina”, realizado na Universidade de Buenos Aires, procurou captar por
meio de estudos comparativos a tensa relação de alteridade entre Brasil e
Argentina a partir justamente dos veículos midiáticos esportivos. Estes se
afiguram centrais na elaboração da identidade de ambos os selecionados na
contemporaneidade.
No artigo “Jogo bonito versus fútbol criollo: imprensa e ‘olhar’ argentino
sobre nosso futebol”
169
, o pesquisador trata em específico das mutações da
imagem do selecionado brasileiro nos periódicos portenhos, com o recorte do
período que vai da Copa de 1970 à Copa de 2002, valendo-se de diários como
El Clarín, El Gráfico, La Nación e Olé. Eivados de essencialismo
homogeneizador, os atributos imputados aos brasileiros iam do fascínio pelo
futebol-arte da seleção brasileira tricampeã no México, quintessência da
individualidade, da beleza e da malandragem, à provocação e ao deboches
feitos à campanha dos brasileiros no campeonato mundial de 2002, adotado por
linhas editoriais de jornais de corte sensacionalista como Olé. A despeito da
rivalidade contemporânea, o discurso da imprensa revelaria a ambigüidade de
uma dependência recíproca entre brasileiros e argentinos, força-motriz de toda
e qualquer sociabilidade, conforme pontuava de há muito Simmel, em que se
mesclam sentimentos como admiração e inveja, repulsa e atração, amor e ódio.
Esses sentimentos ambíguos nada têm, entretanto, de exclusivos e
hodiernos. A antiga tensão pode ser remontada à eclosão da modernidade no
início do século XX, quando o discurso esportivo correlacionou a questão
nacional à questão racial, através de um conjunto de pressupostos sobre a
eugenia, a mestiçagem e a formação étnica dos povos latinos transplantados
para a América. O orgulho nacional seria o sentimento mais forte a extravasar,
por exemplo, quando da visita do selecionado argentino ao Rio de Janeiro em
1908, para uma série de três partidas amistosas
170
. Já a polêmica em torno da
169
Cf. HELAL, R. “Jogo bonito versus fútbol criollo: imprensa e ‘olhar’ argentino sobre nosso
futebol”. In: GUEDES, S.; GESTALDO, E. (Orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e
identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006.
170
Cf. PEREIRA, L. A. de M. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro
(1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 103.
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questão racial apareceria na terceira edição do Campeonato Sul-Americano,
realizado em 1920 no Chile. A passagem da delegação brasileira por Buenos
Aires fez um vespertino argentino referir-se aos brasileiros como
macaquitos
171
, o que despertou reações de indignação da imprensa brasileira,
com o estremecimento inclusive das relações diplomáticas entre os dois países.
O episódio teria conseqüências no gramado, seguido de brigas entre os
jogadores, e na arquibancada, com bandeiras brasileiras queimadas. Na época,
os incidentes levariam um escritor como Lima Barreto a fundar a “Liga contra
o Football”, insurgindo-se contra uma prática que a seus olhos embrutecia o
intelecto e acirrava toda sorte de paixões, rancores e preconceitos.
Assim, a lealdade, princípio basilar na pena de vários homens do esporte,
de Pierre de Coubertin a Jules Rimet, e que o jornalismo esportivo repetiria à
exaustão, cedo teria de conviver com outra ordem de sentimentos, como o
prazer em infligir a derrota ao adversário, a satisfação em desqualificar o
perdedor e o regozijo com o sofrimento do rival. A experiência estética do
esporte, que Gumbrecht associa ao prazer desinteressado pelo belo, presente na
terceira crítica de Kant
172
, dificilmente seria encontrada em sua forma pura na
vivência de significativa parcela dos espectadores de futebol. Esse tipo de
comportamento que valoriza a beleza intrínseca de uma jogada por meio do
aplauso é encontrável com mais freqüência em uma comedida platéia de tênis,
enquanto os torcedores de futebol costumam fruir o jogo exaltando as virtudes
nacionais e as moralidades masculinas raça, virilidade, garra, força, etc. ,
conforme sustenta com propriedade o antropólogo argentino Eduardo
Archetti
173
. Valores burgueses como o respeito, a igualdade e a eficiência
teriam de coexistir com valores aristocrático-populares como a vitória, a
superioridade e a dominação simbólica do outro.
Não é difícil perceber que esse conjunto de características nacionais,
raciais e morais encontraria grande ressonância entre as torcidas de futebol.
Pode-se dizer que a bricolagem desses três elementos é a sua base fundamental.
A experiência da viagem acionaria ainda mais a identidade contrastiva com
171
Cf. FRANZINI, F. Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol
brasileiro (1919-1938). Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 42.
172
Cf. GUMBRECHT, H. U. “La beauté”. In : Éloge du sport. Paris: Maren Sell Éditeurs, 2005.
173
Cf. ARCHETTI, E. P. Masculinidades: fútbol, tango y pólo en la Argentina. Buenos Aires:
Editorial Antropofagia, 2003, p. 221.
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torcedores rivais, seja de clubes seja de seleções. É sabido que já na final da
Copa do Mundo de 1930, realizada em Montevidéu, milhares de torcedores
argentinos descolaram-se por mar e por terra para assistir à partida decisiva de
sua equipe contra os bicampeões olímpicos uruguaios, o que desatou inúmeros
distúrbios com os torcedores locais. As viagens se intensificariam e se
tornariam mais sistemáticas na Europa e na América do Sul à medida que os
torneios interclubes se desenvolveram, como os organizados pela UEFA e pela
FIFA.
O ato de acompanhar um clube em uma partida fora de seu território,
quer em outro estado, quer em outro país, quer em outro continente, se tornaria
uma das mais importantes atividades em grupos de torcedores. O elemento
identitário seria ainda mais acentuado nesse processo. Isto nos permite sugerir
uma aproximação do sentido dessas práticas de acompanhamento com o
modelo da experiência religiosa da viagem ressaltada em páginas precedentes.
Mais do que a busca da diferença, estaria em jogo o encontro do mesmo, do
igual, do objet de croyance que é um clube de futebol
174
. Mas o sacrifício
expresso no sentido missionário não se constituiria em estado puro. Aquém de
toda e qualquer experiência de ascese, transcendência ou elevação espiritual, o
potencial religioso das torcidas de futebol se articula de igual maneira à idéia
da aventura e do hedonismo proporcionado pelas viagens em grupo. Esta
curiosa combinação entre fidelidade clubístico-religiosa e prazer epicuro-
hedonista está presente no acompanhamento do clube a uma região distante,
muitas vezes inóspita no que se refere à recepção dos torcedores locais,
tornando-se ainda assim uma das marcas maiores da identidade dessas
associações.
À inusitada combinação entre a ascese e o hedonismo, entre o ordinário e
o extraordinário, se interpõe uma contraposição de sentidos. Quanto mais a
experiência coletiva e popular da viagem torcedora pode ser assemelhada à
descrição dos sacrifícios da missão peregrina cristã, mais ela pode, ao inverso,
ser contraposta à experiência da viagem vivenciada por jovens aristocratas e
burgueses na Europa dos séculos XVIII e XIX, a que se fez referência também
acima. A formação do indivíduo, o aprimoramento da personalidade e o
174
Cf. FAURE, J.-M.; SUAUD, C.Le club comme objet de croyane. In: Sociétés et
représentations. Paris: CREHESS, 1998, n.º 7.
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respeito à alteridade – virtudes precípuas ressaltadas nas viagens do Grand
Tour parecem encontrar seus antípodas nos relatos de viagem dos torcedores
durante o século XX. A década de 1970, em especial, assiste à consolidação
dessa “cultura juvenil” de viagens em grupo e à intensificação desse tipo de
descrição nos periódicos esportivos. Passa-se a acentuar os distúrbios, os casos
de intolerância e os excessos protagonizados por torcedores em trens e em
ônibus durante as excursões pelo interior da Europa. Na Inglaterra, berço do
futebol, alcoolismo, vandalismo e degradação compunham a tônica dessas
viagens.
A narrativa dos jornalistas, responsáveis pelas reportagens acerca das
circunstâncias dos jogos no exterior, seria a mesma autorizada a transpor para o
imaginário da sociedade o ambiente das viagens entre os torcedores. A
licenciosidade e a extravagância dos hooligans no exterior seria um dos
aspectos mais frisados pelos jornalistas esportivos, que se aventuravam nas
viagens a fim de testemunhar a selvageria das ações antidesportivas nos meios
de transporte e nos deslocamentos fora da Grã-Bretanha.
Os estudiosos da Escola de Leicester encontrariam nos escritos dos
jornalistas esportivos algumas chaves para a compreensão da lógica da viagem
instituída entre os torcedores de futebol na década de 1970. Dunning, Murphy e
Williams se baseavam em trechos da entrevista concedida por um hooligan do
Cardiff City ao jornalista Paul Harrison, publicada em 1974 no artigo intitulado
Soccer’s Tribe War, para a revista New Society. Os eliasianos se apropriavam
de uma expressão cunhada pelo entrevistador para captar a forma como os
grupos de torcedores rivais se relacionavam uns com os outros nesses
encontros. A síndrome de Beduíno era o mote tribal que caracterizava o
esquema silogístico das alianças e das associações, desviando a questão dos
domínios da sociologia para o terreno da antropologia. As amizades e as
inimizades entre torcidas visitantes e anfitriãs na Europa eram compostas com
base em uma equação que parece primária: o amigo de um amigo é um amigo;
o inimigo de um inimigo é um amigo; o amigo de um inimigo é um inimigo; e
o inimigo de um amigo é um inimigo
175
.
175
Cf. DUNNING, E.; MURPHY, P.; WILLIAMS, J. “La violence des spectateurs lors des
matchs de football: vers une explication sociologique”. In: ELIAS, N; DUNNING, E. Sport et
civilization: la violence maîtrisée. Avant-propos de Roger Chartier. Paris: Fayard, 1994, p. 350.
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O primeiro livro publicado por esses três autores, Hooligans abroad
(1984), abdicava do relato de jornalistas e procurava aprofundar por si próprios
a vivência direta dos pesquisadores nas viagens com torcedores. John Williams
seria responsável por um trabalho de campo durante todo o ano de 1982,
quando acompanharia os deslocamentos dos hooligans em pelo menos três
oportunidades: a final da copa européia de clubes, disputada entre o Aston Villa
e o Bayern de Munique, na cidade de Roterdã; a partida decisiva pelo
campeonato europeu de seleções entre Dinamarca e Inglaterra, disputada em
Copenhague; e os jogos da seleção inglesa durante a Copa do Mundo realizada
na Espanha. Àquela altura, os antecedentes dos hooligans já haviam feito
espraiar sua fama pelo continente, compondo uma espécie de coleção de
transtornos e horrores no exterior, desde pelo menos 1965, quando o
Manchester United foi jogar na Alemanha Ocidental, passando por meados da
década de 1970, quando o mesmo Manchester jogou no estádio do Feyenoord,
na Holanda, até o início dos anos 80, quando foram registrados sucessivos
incidentes em Luxemburgo, Copenhague, Turim e Oslo.
Os moradores das cidades onde ocorriam as partidas vivenciavam assim
um clima de expectativa e apreensão, à espera da chegada dos “mindless
English thugs”
176
, de modo que Williams tinha de lidar com essa condenação
prévia e taxativa aos torcedores com os quais se envolvia. O pânico moral
tendência a responsabilizar um grupo social pelos problemas por que passa toda
uma sociedade parecia bem apropriado à situação. Para a observação
participante, John Williams travestia-se de um torcedor comum do Aston Villa,
viajando à Holanda no intuito de vivenciar aquela experiência de modo direto,
a fim de melhor compreender as reais intenções daqueles hooligans, para além
dos estigmas atribuídos de antemão. As conversas informais permitiam-lhe
ainda a obtenção de informações referentes à idade, à ocupação e à orientação
política daqueles torcedores. Esta última era a questão capital que se impunha
na época, pois no início da década de 1980 sondava-se a suspeita de
envolvimentos de torcedores com partidos de extrema direita inglesa. Segundo
a constatação do sociólogo, muitos dos viajantes eram desempregados,
176
Cf. Id. Hooligans abroad: the behavior and control of English fans in continental Europe.
London; New York: Routledge, 1984, p. XVII.
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pertenciam aos estratos mais baixos da sociedade e alguns deles tinham
antecedentes criminais.
A etnografia de John Williams constituía parte de uma pesquisa
sociológica voltada para o auxilio da polícia na elaboração de um programa de
prevenção no curto e no longo prazo. Os eliasianos de Leicester buscavam uma
alternativa para o impasse entre as ações das autoridades policiais, que se
valiam apenas da repressão como forma de contornar as desordens, e os
representantes dos meios universitários, que minimizavam a violência entre os
torcedores, tornando-a secundária. Assim, nos ônibus e nos trens, o pesquisador
inteirava-se das motivações dos torcedores para os jogos do clube fora do país,
interrogava-se sobre as manifestações de hostilidade aos estrangeiros e ficava a
par da importância das recordações de antigas viagens. Este último ponto era
crucial: a lembrança das viagens passadas, espécie de ritual de iniciação e de
provação nas excursões, proporcionava o compartilhamento de uma memória
coletiva, com os relatos de histórias que compunham o imaginário e que
punham à prova os padrões de “masculinidade agressiva”. Além das viagens, o
pesquisador descrevia os incidentes fora dos estádios durante a Copa do Mundo
de 1982, com confrontos que se davam entre os ingleses, a polícia e os hostis
anfitriões espanhóis. Nestas ocasiões, o fervor nacionalista e a xenofobia se
exacerbavam, discurso que facilmente poderia resultar em torcedores feridos,
hospitalizados e presos.
O método de infiltração entre os hooligans adotado por John Williams na
pesquisa inspiraria vários jornalistas. Eles adotariam a mesma estratégia no
desvendamento daquele universo semi-secreto de confrontos, de transgressões
e de viagens por diversos países da Europa. O relato mais notório do gênero,
que se tornaria um best-seller editorial no mundo, graças à sua tradução em
várias línguas, chama-se Among the thugs, de autoria de Bill Buford. Publicado
em 1990, o livro descreve as impressões de um jornalista de origem norte-
americana que conviveu durante seis anos com torcedores britânicos do
Manchester United, seguindo-os em pubs, em trens, em estádios e em viagens
por cidades européias tais como Cardiff, Cambridge, Sunderland, Turim,
Düsseldorf e Sardenha. O jornalista dedicava-se a relatar, com filigranas
literárias, os requintes de crueldade e os atos de selvageria de que eram capazes
aqueles indivíduos, em nome da suposta paixão pelo seu clube de futebol.
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450
A recepção, a curiosidade e o interesse despertado no grande público pela
obra podem ser avaliados através da sua recepção internacional, Já em 1991, o
livro era traduzido para o italiano, com o nome de I furiosi della
domenica: viaggio al centro della violenza ultra. Em 1992, o livro aparece
também em português, com o título de Entre os vândalos – a multidão e a
sedução da violência, em edição que ficaria a cargo da editora Companhia das
Letras. Dois anos depois, ele apareceria ainda em francês, com o título de
Parmi les hooligans, além de uma versão em espanhol a que não tivemos
acesso
177
.
Em verdade, o expoente dessa modalidade de jornalismo etnográfico
nada tinha de especialista em esportes. Nascido em 1954 na Louisiana, Estados
Unidos, Bill Buford vivera em Los Angeles até se radicar-se na Inglaterra em
1977, graças à obtenção de uma bolsa de pesquisa que lhe permitiu desenvolver
pesquisas literárias em Cambridge, escrever para jornais ingleses e se tornar
diretor da revista literária Granta. Em seu testemunho, como um típico norte-
americano, o futebol era algo estranho à sua vida e nunca havia comparecido a
um estádio até 1983. O fenômeno hooligan apareceu-lhe em uma situação
cotidiana casual, quando regressava de Gales a sua casa, numa estação de trem
de uma pequena cidade próxima a Cardiff. Naquela ocasião, Buford ficou
impressionado com a chegada de um trem abarrotado de ruidosos torcedores.
Tão logo o trem estacionou na gare, os torcedores protagonizariam uma série
de depredações e de atrocidades que muito o impactaram. Em sua justificativa
da obra, aquele incidente fora decisivo e desde então resolveu seguir e se
infiltrar entre os fanáticos torcedores. Na primavera de 1984, autor partiu em
viagem para assistir à semifinal da Recopa, disputada em Turim, em um jogo
entre Juventus e Manchester.
Já naquela primeira oportunidade, o autor tomaria parte em um vôo e
descreveria o ambiente da excursão cunhando a expressão “turista-escória”
para designar aqueles tipos humanos aficionados pelo futebol:
177
Cf. BUFORD, B. I furiosi della domenica: viaggio al centro della violenza ultra. Milano:
Longanesi, 1991. Cf. Id. Entre os vândalos: a multidão e a sedução da violência. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992. Cf. Id. Parmi les hooligans. Préface de Bernard Comment. Paris.
Christian Bourgois Éditeurs, 1994.
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“Duzentos e cinqüenta e sete torcedores do Manchester United
chegaram na manhã de quarta-feira, por obra e graça de Bobby Boss, a
fim de voar até Turim para um jogo ao qual estavam proibidos de
comparecer. A maioria dos torcedores do avião se conhecia; era uma
excursão de clube. Ninguém sabia onde íamos nos hospedar; ninguém
possuía ingressos para o jogo. Mas todos estavam com uma disposição
de férias; todos orgulhosos de fazer parte de um grupos de turistas-
escória. Havia um bocado de fotos a tirar. Havia a foto de registro de
chagada para o vôo, da garrafa comprada no free shop semivazia. E,
embora eu admita que parecesse um pouco estranho ver tanta gente
consumindo garrafas de um litro de vodca às 10 da manhã, nosso vôo
para Turim foi bastante tranqüilo – barulhento, bem-humorado, mas,
afinal de contas, sem divergir o mínimo daquilo que eu imaginava que
outras excursões inglesas deveriam ser. O grupo, no conjunto, parecia
inofensivo e divertido, e descobri que tudo aquilo – meu esforço para
levantar cedo, o desconforto de viajar de Londres para Manchester
com um garoto que não podia se permitir comprar um lenço, a súbita
exposição a tanta gente extravagante – estavam começando a terminar.
Honestamente, eu estava me divertindo. O fato, no entanto, era o
seguinte: o turista-escória estava a caminho para devastar o país que
iria visitar. Por ora, ele chegava a Turim.”
178
.
A coletânea de histórias se estende de 1984 até 1988, quando Buford
acompanhou a Eurocopa realizada na Alemanha, junto aos briguentos fãs que
foram à cidade de Dusseldorf, mesmo proibidos de participar de competições
internacionais após a tragédia de Heysel. Dublê de etnógrafo, com uma escrita
em dicção romanesca, Buford teria sua derradeira experiência com os
hooligans em 1990, ocasião em que se dirigiu a Sardenha, cidade italiana, para
acompanhar a Copa do Mundo. A minuciosa narrativa estruturada em três
partes e narrada em primeira pessoa, com toques chocantes centrados naqueles
tipos humanos para os quais não se poupavam juízos de valor – extravagantes,
repugnantes, grosseiros , parecia expor entretanto mais as sensações íntimas e
as inquietações pessoais daquele jornalista do que o universo investigado em si.
Se a motivação inicial revelada pelo autor era saciar as suas curiosidades sobre
aqueles “abomináveis fanáticos” “eu queria conhecer melhor aquilo”, “ser
um deles” ao fim e ao cabo de seu relato sobressaía mais o frisson
vivenciado pelo autor e menos o conhecimento da persona dos vândalos. Os
requintes de prazer nos pormenores das brigas e nas inúmeras situações de risco
descritas por Buford faziam crer que seu objetivo último era hipostasiar as
cenas, chocando o leitor com as sensações de perigo e medo por ele
heroicamente vividas.
178
Cf. BUFORD, B. op. cit., p. 29 e 30.
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O livro não obstante era revestido de credibilidade acadêmica na
Inglaterra, uma vez que se tratava de um jornalista com formação literária e
intelectual, dotado de uma considerável bagagem de leituras no assunto, seja o
livro de Geoffrey Pearson Hooligans: a history of respectable fears (1983)
seja a obra de Eric Dunning, John Williams e Patrick Murphy The roots of
football hooliganism: an historical and sociological study (1988) seja o
clássico de Georges Rudé – The crowd in history. Além disso, como se
depreende dos agradecimentos do livro, o sociólogo John Williams havia lido
os originais antes da publicação e havia feito sugestões ao trabalho, o que dava
uma legitimidade universitária à obra. Ademais, Buford parecia ter feito uma
sólida pesquisa prévia, com a demonstração inconteste de um largo
conhecimento dos grandes teóricos da psicologia das massas, antes de
enquadrar os torcedores no rol paradigmático das pulsões destrutivas.
Para além do sensacionalismo, a contribuição sociológica apresentada
pelo jornalista era a crítica ao pressuposto corrente de que os hooligans eram
jovens proletários sem perspectiva, provenientes das classes subalternas, frutos
de uma juventude desfavorecida e frustrada. Ao refutar a explicação
economicista, em certa medida defendida pelos eliasianos, Buford empenhava-
se em mostrar a normalidade dos papéis sociais desempenhados por aqueles
torcedores no cotidiano, que ocupavam as mais diversas e heterogêneas áreas
do ponto de vista profissional: bancários, funcionários públicos, comerciantes,
pais de família, etc. Em contrapartida, este dado levava o autor a reforçar as
explicações etológicas e patológicas avalizadas pelos psicólogos das massas
para entender a dupla personalidade daqueles indivíduos. Mesmo integrados no
dia a dia da sociedade inglesa, os aficionados do futebol eram capazes de
extravasar em grupo o ódio e a frustração, com manifestações racistas,
nacionalistas, xenófobas, pautadas em toda uma mitologia da virilidade. Ao
descrever na segunda parte do livro as festas do National Front a que
compareciam os hooligans, Buford comprovava, com a autoridade de seu
testemunho, as estreitas ligações ideológicas dos fãs de futebol com as
diretrizes políticas dos movimentos de extrema direita, conhecidos à época
pelos inegáveis traços neonazistas.
O sucesso do voyeurismo esportivo de Buford resultou em um boom
editorial no mercado inglês com vários tipos de relatos do gênero, de livros de
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memória e autobiografias a ficções e filmes. O escritor contemporâneo John
King aventurou-se no romance Football factory, livro de quase quatrocentas
páginas sobre o universo de um jovem torcedor do Chelsea e de seu grupo de
amigos torcedores, versão ficcional que seria transposta também para as salas
do cinema
179
. Nick Hornby, roteirista de Alta fidelidade, aficionado pelo
Arsenal, publicou Febre de bola: a vida de um torcedor, que teria acolhida
internacional, sendo também adaptado para o cinema. Escrito em forma de
diário de bordo, o livro relatava suas memórias de adolescência e juventude nos
estádios ingleses, divididos em três tempos: 1968-1975; 1976-1986; 1986-
1992
180
. Esse conjunto de trabalhos passou a ser valorizado tão logo o
hooliganismo se tornou um fenômeno sob maior controle na Inglaterra,
desencadeando por outro lado polêmicas em torno da glamourização das brigas
naquelas obras autobiográficas, literárias e cinematográficas. Elas contribuíram
assim para a consolidação de um imaginário acerca dos hooligans na Europa e
em boa parte do mundo.
Afora a explosão midiática internacional da obra de Bill Buford e suas
congêneres, é preciso destacar o extenso livro do jornalista francês Philippe
Broussard, publicado em 1990, com o título Génération supporter: enquête sur
les ultras du football
181
. Sem tradução e sem repercussão fora da França, o
criterioso trabalho era resultado de uma pesquisa de cinco anos, de 1986 a
1990, com o acompanhamento de inúmeras torcidas ao longo do continente
europeu. Depois de viver com pelo menos uma dezena de associações de
torcedores, o autor fornecia um verdadeiro mapa continental com a enumeração
de centenas delas: os Boixos Nois do Barcelona, os Ultras Sur do Real Madrid,
o Kop of Boulogne do Paris Saint-Germain, o Commando Ultra do Marselha, a
Brigate Rossonere do Milan e os Panther Boys da Internazionale, em uma
listagem com muitos outros. O viajante-jornalista percorreria de Marselha a
Bruxelas, de Roma a Madri, de Atenas a Manchester, de Milão a Amsterdã,
entre outras cidades, com o objetivo jornalístico de “dévoiler cette face cachée
du football, donner la parole à des anonymmes, vivre avec eux leur passion,
parfois leur violence”. A idéia era, pois, devassar essas micro-sociedades
179
Cf. KING, J. Football factory. Paris: Éditions de l’Olivier, 2004.
180
Cf. HORNBY, N. Febre de bola: a vida de um torcedor. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
181
Cf. BROUSSARD, P. Génération supporter: enquête sur les ultras du football. Paris: Robert
Laffont, 1990.
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constituídas por jovens e adolescentes entre 15 e 25 anos, possuidoras de
hierarquias, de ritos e de regras próprias, simuladoras de um jogo de guerra
com a polícia e com os adversários.
O jornalista do Le Monde não negava a multiplicação de grupos
extremistas de torcedores na Europa, mas considerava a incapacidade policial
de controlá-los uma conseqüência do desconhecimento da sua visão de mundo.
Em consonância com as explicações sociológicas, Broussard postulava os
hooligans e os ultras como sintomas de um fenômeno cuja amplitude
extravasava os domínios do futebol, revelando algo mais que um desvio de
conduta esportiva. Diante do “vazio ideológico” a que se referia o autor, algo
aproximado à era do vazio do filósofo Lipovetsky, a ausência de perspectivas e
a panacéia consumista da época contemporânea faziam do futebol um lugar
privilegiado para ver e para ser visto na sociedade do espetáculo. Assim,
recorria-se a mais uma ambigüidade constitutiva das torcidas organizadas e da
juventude na contemporaneidade: por um lado, os jovens ansiavam em
explicitar o seu descontentamento com os valores vigentes na sociedade; por
outro, expressavam de maneira indireta o seu desejo de integração e
visibilidade social.
Esses breves alcances de ordem sociológica não impediam o autor de se
concentrar na descrição jornalística das experiências contraídas nas viagens. Ao
ampliar o escopo da Inglaterra para a Europa, a sua série narrativa de
reportagens captava algumas variantes nacionais e apresentava uma realidade
mais heterogênea do ponto de vista da formação interna dos grupos, o que por
seu turno resultava na recusa à univocidade dos estereótipos tributados aos
hooligans, tão caros à narrativa de Bill Buford. A ampliação do horizonte
investigativo fez o jornalista considerar a existência de uma outra matriz de
torcidas, originária do sul da Europa, o modelo italiano, em paralelo e em
oposição ao modelo inglês.
Esse ponto, apenas apontado e descrito por Broussard, ia ao encontro por
sua vez de uma pesquisa iniciada em 1986 pelo antropólogo francês Christian
Bromberger, sendo sistematizada e publicada em livro no ano de 1995 com o
nome de Le match de football: ethnologie d’une passion partisane à Marseille,
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Naples et Turin
182
. Ao se afastar de uma visão reducionista e ao encampar as
premissas do relativismo histórico-cultural, o autor realizava um estudo
etnográfico comparativo entre de torcidas italianas e francesas, o que lhe
permitiu erigir uma tipologia das torcidas européias com base em nuances
existentes nas diferenças internas de conformação da história e da identidade
continental. O primeiro aspecto, entretanto, era o afastamento de qualquer
hipótese regressiva, tribalista ou arcaísta para a compreensão daquele universo.
Conforme frisava Bromberger:
“Sous l’écume d’une emblémathique archaïsante, transparaissent, en
fait, des attitudes profondément modernes, voire avant-gardistes: sens
aigu de la spectacularité et de la médiatisation, organisation
managériale, volonté d’être acteur de son propre destin, etc.”
183
.
Segundo o antropólogo, o primeiro tipo de organização torcedora se
irradiou a partir da Inglaterra, em fins da década de 1960, e estendeu seu arco
de influência sobre a Europa setentrional, em especial sobre a Alemanha, além
de ter atingido o norte da França. Sua formação social é homogênea, sua coesão
interna é bem acentuada e associa-se com maior intensidade aos contingentes
juvenis do proletariado. Seus membros são de difícil localização no cotidiano e
avultam apenas nos dias de jogos, a fim de impedir sua identificação pela
polícia. Já o segundo tipo foi difundido na Itália durante a década de 1970 e sua
propagação se deu em maior grau na Europa meridional, com destaque para a
Espanha e para o sul da França. Com um tecido social menos uniforme e com
uma composição mais híbrida, as torcidas latinas procuraram se congregar
através da institucionalização. A distribuição espacial em subgrupos, a fixação
territorial em sedes, a veiculação de revistas próprias – os fanzines – e a
ritualização de certas práticas e performances permitiram-lhes uma maior
integração na sociedade.
Os contrastes acentuados pelo autor possibilitam ainda a observação da
maneira pela qual se reproduzem as grandes clivagens históricas da formação
182
Cf. BROMBERGER, C. Le match de football: ethnologie d’une passion partisane à Marseille,
Naples et Turin. Paris: Éd. de la Maison des sciences de l’homme, 1995.
183
Cf. Id. “Formes et sens de la passion partisane chez les ultras du football”. In: COMERON, M.
(Org.). op. cit., p. 18.
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cultural do Mediterrâneo e do Norte da Europa. As contraposições faziam-se
presentes e influenciavam à sua maneira a definição de estilos de vida e de
formas de atuação por parte de determinados grupos sociais, bem como suas
passions ordinaires
184
.
Ao largo das reflexões acadêmicas, as fórmulas fáceis destinadas tão-
somente a impressionar o leitor campeariam na Europa, muitas vezes por meio
de um consórcio entre jornalistas esportivos e os próprios torcedores em busca
de notoriedade. Seria oportuno citar aqui o caso do jornalista português Felipe
Bastos e seu recente livro O líder: Fernando Madureira. Baseado em inúmeras
entrevistas gravadas com o chefe da maior torcida organizada do Porto, a
claque dos Super Dragões, o jornalista traçou um perfil daquele torcedor,
colocando-se na condição de seu porta-voz, de seu escrivão. O jornalista trouxe
à luz assim uma série de depoimentos repletos de brigas, de transgressões e de
casos escandalosos protagonizados com orgulho pelo torcedor. Em subtítulos
indicadores do teor das histórias – “De Setúbal ao Porto em 14 horas”,
“Dragões em Manchester”, “Turbulência em Turim”, “O assalto à área de
serviço de Santarém”, “Inferno de Marselha deu o mote”, “Os Super em
Yokohama”, “Viagem a Milão recheada de peripécias” e “Inimizade sobre
rodas” – a apresentação do jornalista à obra explicitava as intenções do
realismo narrativo da obra, em que a crueza dos relatos e a simplicidade da
linguagem decorriam da honestidade do jornalista e da sinceridade do
depoente, com a transposição integral, sem cortes e sem edições, dos causos do
biografado:
“Quando combinei com o Fernando Madureira (Macaco) escrever esta
obra, disse-lhe claramente: ‘Ao leitor só interessará um livro onde
contes as histórias reais, vividas pelos Super Dragões, nos precisos
termos em que elas aconteceram, usando, igualmente, a vossa
linguagem própria. Se assim não for, não vejo nenhum interesse
público para a edição do livro...’. O Macaco aceitou a idéia e foi
debitando para o gravador as histórias com tal realidade que, confesso,
as fui vivendo como se tivesse feito parte integrante delas! Estou certo
que o leitor, ao ler o livro, vai sentir a mesma sensação... a de estar
nos locais e nos momentos dos acontecimentos, de tão reais que são as
histórias. Reais, com vocabulário próprio, porventura, demasiado
184
Cf. Id. (Org.). Passions ordinaires: du match de football au concours de dictée. Paris:
Bayard Éditions, 1998. Cf. também. Id. “Du public et des supporters”. In: Football: la bagatelle
la plus sérieuse du monde. Paris: Bayard Éditions, 1998.
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pormenorizadas. Desse modo, o leitor vai, com toda a certeza,
envolver-se na obra. Vai sentir-se no centro dos acontecimentos,
independentemente de estar ou não de acordo com o que é aqui
narrado. O Macaco foi autêntico. Directo. Objectivo. Claro. Firme.
Honesto. Abriu a sua alma até o limite. Aliás, desculpem lá, mas são
assim, na maioria, as pessoas que nasceram na Ribeira. Talvez seja o
Douro que lhes molde o carácter. Talvez seja das dificuldades que a
vida geralmente propicia a quem lá nasce. Talvez seja dos becos, das
vielas, das escadas íngremes do Barredo, das ruas feitas de calçadas
gastas pelo tempo e húmidas pelas viagens que, de vez em quando, o
Douro faz ao seu interior. Talvez seja da falta de condições de
habitabilidade ou da necessidade precoce de substituir pelos seus
próprios meios. Talvez... talvez... Mas, a verdade, crua, porventura
ousada em alguns pormenores, que o Macaco aqui conta, é um
contributo extremamente válido para o complemento do estudo do
fenómeno futebol. A obra, apresentada de forma simples, sem
qualquer pretensiosismo cultural rococó, é igualmente uma janela de
oportunidade para sociólogos no estudo dos comportamentos e,
simultaneamente, uma mostra aos apaixonados do futebol de uma de
suas vertentes que hoje já ninguém pode olvidar. Deixe, pois, leitor
amigo, que eu o guie nesta viagem ao interior da maior claque do
futebol português, os Super Dragões, contada na pessoa do líder
incontestado. E, como nós, viva-a apaixonadamente.”
185
.
No Brasil, embora sem o êxito ou a expressão editorial verificada no
ambiente europeu, os relatos referentes às caravanas de viagem das torcidas
organizadas também constituiriam uma importante forma de imersão naquele
universo, não apenas por parte dos jornalistas como também por parte dos
estudiosos universitários. Conforme já mencionado na Introdução, o sociólogo
Sérgio Miceli assinou no ano de 1978 o artigo “O Grêmio Gaviões da Fiel:
torcida organizada do Corinthians”
186
, fruto de uma reportagem escrita a pedido
do Jornal do Brasil para as finais do Campeonato Brasileiro de 1976, disputada
em Porto Alegre. A meio caminho entre o jornalismo, a etnografia e a
sociologia, Miceli viajara ao Sul com a caravana dos Gaviões, o que forneceria
as bases para as suas breves considerações ensaísticas. O texto se iniciava
curiosamente com a advertência contida no folheto Lembrete aos corintianos,
distribuído antes da viagem: “Não corra, não mate e não morra”. Na viagem,
acompanhado de um fotógrafo e de um repórter, sem disfarces portanto de
identidade, o sociólogo fazia as vezes de observador participante, integrando-se
em um dos vinte e cinco ônibus da caravana, que partia com cerca de mil
185
Cf. BASTOS, F. O líder: Fernando Madureira. Porto: O Gaiense, 1995.
186
Cf. MICELI, S. “O Grêmio Gaviões da Fiel: torcida organizada do Corinthians”. In: Revista
de Administração de Empresas. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 1978, abril/junho.
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componentes dos Gaviões da Fiel rumo ao Rio Grande do Sul, a fim de assistir
à partida decisiva contra o Internacional.
O relato jornalístico-etnográfico de Miceli escalonava de forma sumária
as cinco etapas principais do itinerário da excursão: a concentração em frente à
sede da torcida e a saída da cidade de origem; o ambiente licencioso dentro dos
ônibus e as paradas para as refeições na estrada; a chegada à cidade de destino e
a entrada no estádio; o clímax, a razão última daquela viagem, isto é, a partida;
e, por fim, seu anticlímax, o regresso para São Paulo.
Na primeira etapa, a concentração, o autor descrevia o clima de euforia
dos corintianos com a classificação para a final e com a possibilidade concreta
da conquista de um título após vinte anos de espera. Ao otimismo do
reencontro em frente à sede, sucedia toda sorte de agitações e gritos após a
partida dos ônibus e a passagem pelas principais autopistas de São Paulo, com a
alternância de saudações e xingamentos aos transeuntes. O clima de grande
descontração e de informalidade marcava o interior do ônibus, expresso com as
bebidas, as conversas em tom alto, as cantorias obscenas e as piadas
pornográficas. Na segunda etapa do percurso, as paradas para almoço na beira
de estrada, já na altura de Curitiba, o Miceli registrava alguns incidentes que
ocorriam em função de saques por parte de alguns membros da torcida aos
produtos das lanchonetes. O caso gerou transtornos, pois a polícia rodoviária
foi acionada e interceptou a caravana no meio da estrada, o que demandou um
grande esforço de negociação das lideranças da torcida com os policiais para
contornar o problema. Na terceira etapa, a chegada à cidade e a entrada no
estádio, o sociólogo destacava a coesão ainda maior dos corintianos que saíam
eufóricos dos ônibus e entoavam ainda mais alto o uníssono “– Curíntia,
Curíntia!!!”.
Sem completar todas as etapas, o autor interrompe a descrição e dedica o
restante do texto a interpretações, em linguagem bourdiana, acerca dos padrões
internos de honorabilidade do grupo, e a apontamentos, em linguagem
weberiana, sobre a ética e a visão de mundo dos torcedores organizados. A
importância das viagens para a memória coletiva da torcida é assim
considerada:
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“Pertencer à torcida organizada implica forçosamente tomar parte das
excursões – o tempo forte da prática corintiana, na medida em que as
viagens constituem os marcos centrais de uma história comum e, em
torno delas, alinham suas experiências enquanto torcedores
qualificados e conscientes de sua contribuição ao grupo.”
187
.
À exceção desse ensaio, poucos estudos relativos às torcidas organizadas
no Brasil contemplariam esse “tempo forte” da identidade torcedora, com o
acompanhamento e com o relato do ciclo integral das viagens. A dissertação de
mestrado de Luiz Henrique de Toledo, realizada no início da década de 1990,
seria uma dessas exceções e conteria uma passagem em que se explora a
experiência da viagem com a elaboração de um mínimo roteiro descritivo das
etapas. O autor tomara parte em uma excursão das torcidas organizadas do São
Paulo Independente, Dragões da Real, TUSP ao Rio de Janeiro, para
assistir a uma partida contra o Vasco da Gama em São Januário. As fases
principais relatadas por Toledo não diferiam muito das apontadas por Miceli,
salientando apenas alguns pormenores relativos à distribuição dos viajantes e
algumas especificidades atinentes a cada um dos ônibus fretados. Toledo
mostrava como existia toda uma diferenciação interna dos ocupantes, não
apenas referente a uma hierarquia das relações de poder dentro da torcida, mas
também à idade dos torcedores e à disposição para a agitação já previamente
demarcada na escolha dos ônibus. Havia portanto os ônibus reservados aos
comandantes da torcida, componentes mais antigos no grupo; e aqueles
destinados à “molecada”, aos integrantes mais moços e mais propensos ao
barulho e à farra no interior do ônibus.
Ao longo da viagem, o autor descrevia os rituais de iniciação dentro do
veículo. No ônibus, o “batizado” uma série de socos, cascudos, pontapés e
tapas desferidos contra os neófitos do grupo era um divertido passatempo
para os veteranos e uma dolorosa iniciação para os novatos. Já a chegada na
manhã de sábado no Rio de Janeiro revelava um dado importante. Antes do
jogo em São Januário, os ônibus se concentravam em frente à sede do
Flamengo, na Gávea, com a autorização aos são-paulinos para a livre-
circulação dentro do clube rubro-negro. A recente aliança dos torcedores do
São Paulo com as torcidas organizadas do Flamengo permitia tal situação, com
187
Cf. MICELI, S. “Os Gaviões da Fiel: torcida organizada do Corinthians”. In: Revista de
Administração de Empresas. Rio de Janeiro: s.e., 1978, abril / junho, p. 44.
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o reforço de componentes da Torcida Jovem à caravana ao estádio do Vasco. A
partida da zona sul rumo à zona norte do Rio a fim de ver o jogo constituía um
dos pontos mais tensos da viagem, com a possibilidade de represálias e de
ataques de torcedores cruzmaltinos ao longo do trajeto. As desavenças entre as
torcidas do Vasco e do São Paulo haviam se intensificado desde 1989, quando
os dois clubes disputaram o título nacional, o que resultou em inúmeras brigas
antes e depois da conquista do campeonato no Morumbi pelo time carioca.
Os vários confrontos haviam ficado na lembrança de ambas as torcidas e
o receio para aquele jogo no ano seguinte era grande. A expectativa se
ampliava uma vez que o acesso a São Januário era tortuoso, com ruas estreitas,
e a caravana podia facilmente ser alvejada no caminho. Em um dos ônibus, o
antropólogo relatava todo aquele misto de apreensão e ansiedade vivenciado
pelos torcedores. A partida já transcorria enquanto os ônibus ainda tentavam
entrar em São Januário, sob a precária proteção da polícia. À medida que se
aproximaram do estádio, eles eram, como já previsto, recepcionados por paus e
pedras arremessadas de dentro para fora do estádio. Na busca por proteção e
abrigo, os torcedores saíam em disparada dos ônibus, dispersando-se no
tumulto e perdendo-se uns dos outros na confusão. O mesmo sucedeu com o
pesquisador que, um tanto assustado, somente depois de um bom tempo
recobraria a calma e reencontraria os seus colegas de viagem. Enquanto o
antropólogo não escondia seu temor diante dos riscos da situação, os são-
paulinos que ele reencontrava, inclusive duas senhoras que viajaram em seu
ônibus, pareciam achar tudo aquilo normal, algo até certo ponto divertido.
Depois da confusão, os tricolores paulistas conseguiram finalmente adentrar
nas arquibancadas de São Januário, quando já transcorria o segundo tempo da
partida.
Os relatos de Toledo datam de um período em que as caravanas já se
encontravam instituídas e as torcidas se relacionavam em um sistema de
enfrentamentos mais duradouro. Um eixo nacional de alianças se estruturava,
com o envolvimento de associações na região Sul, Sudeste e Nordeste do país.
Tal quadro era, contudo, desdobramento de uma situação que começara a se
esboçar e desenvolver ao longo da década de 1970, entre as primeiras gerações
que se iniciaram nas viagens.
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A busca por novos dados relativos ao surgimento das excursões em
grupo, destinadas ao acompanhamento de um clube, foi um dos objetivos de
nossa pesquisa. A procura por tais informações junto à imprensa esportiva
norteou o recorte temporal do trabalho entre o final da década de 1960 e o
início dos anos 80, quando os casos de distúrbios começam a ser notificados
com mais veemência nos periódicos. Este enquadramento segue uma
periodização que atende ao desenvolvimento de torneios em escala nacional,
cuja rede torna sistemática a necessidade da viagem entre os torcedores para
acompanhar os jogos de seus times. O ano de 1967 foi o escolhido para o
começo das leituras do Jornal dos Sports na medida em que a data coincide
com a instituição de um campeonato envolvendo os cinco maiores estados do
Brasil, em substituição ao tradicional torneio Rio São Paulo, disputado desde
1950. Em 1971, a malha clubística se amplia ainda mais, com a incorporação
de novos estados e com a instituição do Campeonato Brasileiro, que seria
conquistado, em sua primeira edição, pelo Atlético Mineiro.
Longe de ser um marco zero, o ano de 1967 foi apenas uma data
balizadora de uma mudança maior que se implementa pouco a pouco. Dada a
condição de periódico especializado, o acompanhamento seqüenciado do
Jornal dos Sports foi a forma mais eficaz na procura por informações
concernentes aos deslocamentos de torcedores. As manchetes de primeira
página, as coberturas diárias, as colunas dos cronistas, as reportagens especiais
e a seção de carta dos leitores foram os distintos setores do jornal averiguados
em tal levantamento. O destaque do Jornal dos Sports à memória de seu mito
fundador, Mário Filho, não deixaria de render-lhe tributo de tempos em tempos,
em todas as áreas de atuação dos esportes. No âmbito da criação de atrações
para os espectadores, além da invenção do Duelo de Torcidas, coube a ele a
concepção da figura do torcedor como um “embaixador”. Espécie de relações
internacionais, o chefe de torcida foi idealizado na década de 1930 como o
representante do torcedor brasileiro no exterior. Conforme já mencionado no
primeiro capítulo, a idéia foi iniciada já na Copa do Mundo de 1938, na França,
quando uma votação popular criada pelo jornal escolheu um embaixador e uma
embaixatriz para a ocupação do honorífico e metafórico posto destinado à
representação da torcida brasileira na Europa, promoção que se repetiu algumas
vezes nas edições seguintes das copas.
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Quanto às viagens em grupo organizadas pelos próprios torcedores,
informações esparsas são encontradas no Jornal dos Sports a partir do final da
década de 1960. As matérias relativas a Jaime de Carvalho narravam alguns
desses périplos aventureiros, em viagens de trem pela via férrea que ligava o
Rio a São Paulo. Os cronistas mais antigos do jornal havia alguns que
estavam lá desde os idos de 1930 eram depositários das lembranças desses
eventos e desses acontecimentos extraordinários. Zé de São Januário, por
exemplo, pseudônimo de Álvaro do Nascimento, tinha sido fundador do
periódico, vendera-o a Mário Filho em 1936 e permanecera escrevendo no
jornal mesmo depois da morte do proprietário em 1966. Era, portanto, voz
autorizada na formação de uma memória dos esportes e na elaboração do
próprio passado do periódico, embora o apelido evidenciasse sua filiação
clubística ao Vasco. Vale notar que isto não chegava a ser uma novidade nem
um empecilho. Segundo Milton Pedrosa, nos primórdios do futebol, por volta
dos anos de 1910, os cronistas esportivos, ainda não especializados, espécies de
coringas do jornalismo – eventualmente recrutados para a tarefa , costumavam
assumir sua preferência esportiva e usavam os distintivos do clube à lapela
188
.
No final da década de 1970, Zé de São Januário ainda se encontrava em
ativa colaboração diária para o jornal e era responsável pela coluna chamada
“Uma pedrinha na chuteira”. No ano de 1978, ele dava a conhecer a muitos
leitores e a seus próprios colegas as origens mais remotas das excursões de
torcedores. Sua revelação parecia surpreendente: as caravanas de torcidas
haviam nascido antes do que se supunha, sendo anteriores mesmo ao futebol.
Elas remontavam às regatas, com o deslocamento dos apreciadores de remo
para assistir às competições em Niterói e em outras paragens mais distantes da
Baía de Guanabara. O contraste de comportamentos entre aqueles primeiros
excursionistas e os da época em que Zé de São Januário escrevia era flagrante,
com a reificação de um ontem e de um hoje em quase tudo incompatíveis entre
si:
“As caravanas de torcidas organizadas foram idealizadas pelos clubes
de regatas de Santa Luzia. Essas caravanas participaram não só das
regatas realizadas na enseada de Botafogo, como formavam excursões
188
Cf. PEDROSA, M. “A crônica esportiva e o cronista de futebol”. In: Olho na bola. Rio de
Janeiro: Editora Gol, 1968.
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às ilhas da Baía de Guanabara para comemoração dos grandes feitos
náuticos. As primeiras caravanas de torcedores de futebol foram
organizadas pelo Vasco da Gama, com o aluguel das grandes
composições dos trens da Central do Brasil, para jogos em São Paulo,
Belo Horizonte, Juiz de Fora e Petrópolis. As torcidas organizadas, na
época, exigiam dos torcedores o uso de gravata e colarinho e roupas
de passeio. Possuo uma fotografia, tirada há 40 anos passados, no
campo do Flamengo, onde todos os componentes da “Caravana de
torcedores vascaínos” aparecem com centenas de adeptos, todos
elegantemente vestidos. Essa mesma caravana, em nossos dias, usaria
calças desbotadas, camisas de carnaval e chinelo ‘cara-de-gato’. Há 40
anos passados, não era qualquer companhia que alugava ônibus para
clubes desportivos. Há 40 anos passados, o torcedor trajava-se com
esmero, pois não desejava rasgar a roupa de ninguém, ou sujá-la,
arremessando garrafas, latas e outros detritos. Quando em 1939, os
vascaínos alugaram seis ônibus para conduzir a sua torcida
organizada, foi um acontecimento na cidade. O aluguel de seus
ônibus, na época, representava mais que alugar 10 aviões em nossos
dias. A ‘A Caravana da Torcida Vascaína’, no mesmo ano, levou a
Bangu 10 ônibus. O entusiasmo dos vascaínos deu grande eficiência à
torcida organizada, que aos poucos foi aumentando. Os pioneiros das
torcidas organizadas foram os saudosos Polar, um dos maiores
reclamistas do Rio de Janeiro, João de Luca e Olímpio Pio (falecidos).
O tesoureiro da Caravana foi João Amorim. As antigas caravanas de
torcedores vascaínos tinham o propósito da confraternização em todos
os locais para onde se dirigiam. Agora a coisa mudou. Quando os
jogos acabam, começa a luta de garrafas e latas de refrigerantes.
Assisti ao desfile da ‘II Copa Arizona’ composta de centenas de
clubes, no campo do Bonsucesso. Trata-se de certame amadorista de
caráter nacional. Milhares de desportistas estiveram reunidos, sem se
verificar o menor incidente. Não houve batalhas entre lateiros e
garrafeiros. As bebidas eram servidas ao público em copos de plástico.
Os torcedores não recebiam garrafas nem copos de vidro. O exemplo
verificado no campo do Bonsucesso deve ser imitado pelos demais
clubes. Dar bebidas em garrafas e latas aos torcedores é incentivar
elementos desordeiros e malfeitores a atos criminosos. No campo do
Bonsucesso, não houve uma só garrafa ou latada. Os clubes devem
seguir o exemplo do Bonsucesso para salvar a integridade física dos
jogadores, árbitros e do próprio público. O resto contarei depois.
Devagar e sempre chegarei lá.”
189
Além das recordações de tempos pretéritos, a organização da Taça de
Prata no ano de 1967 permitiria aos cronistas do jornal a percepção do
alargamento desse fenômeno no seu presente. As excursões agora não eram a
Bangu, a Madureira ou a outros campos do subúrbio. Se as viagens a São Paulo
também não eram inéditas, começava ao menos a se desenvolver de modo mais
regular a partir de então. Os jogos fora do Rio estimulavam as viagens entre os
torcedores, que travavam conhecimento com os adeptos de outros clubes e,
189
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1978, p. 04.
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desse contato, algum tipo de relação acabava por se estabelecer. A ida do
campeão carioca, o Botafogo, a Belo Horizonte em outubro de 1967 para uma
partida decisiva no Mineirão contra o Atlético Mineiro ocasionava encontros
inusitados e situações atípicas. De acordo com o relato de uma matéria do
Jornal dos Sports, a espontânea adesão de torcedores do América Mineiro e do
Cruzeiro à equipe do Botafogo se verificava nas arquibancadas do estádio
através de bandeiras e camisas verdes e azuis. A partida do clube carioca contra
o rival local resultava na adesão circunstancial dos adversários do Atlético aos
botafoguenses. A lógica das “rodadas duplas” se estendia da escala local à
escala nacional e acarretava uma dupla tarefa: torcer a favor de seu time e
contra seu oponente interno maior. Laços de simpatia entre cruzeirenses,
americanos e botafoguenses se davam em virtude do adversário comum. Em
contrapartida, da mesma maneira, alvinegros do Rio e de Minas poderiam
desenvolver antipatias mútuas devido àquele confronto direto.
Os dois times voltariam a se encontrar poucos dias depois daquele jogo,
para uma partida ainda mais importante. Em novembro de 1967, Botafogo e
Atlético Mineiro disputariam uma seqüência de jogos válidos para uma vaga às
finais da Taça de Prata. Após um primeiro embate em Minas, o segundo
enfrentamento foi no Rio de Janeiro, mas a disputa permaneceu empatada,
forçando um terceiro jogo em Belo Horizonte. A tensão da última partida
decisiva acirrava os ânimos de todos: dirigentes, técnicos, jogadores e
torcedores. Estes últimos resolveram organizar uma grande excursão e dezenas
de ônibus foram alugados para ir a Minas. Desta vez, no entanto, além da
derrota, os torcedores cariocas teriam uma recepção altamente hostil. A
beligerância dos torcedores do Atlético resultaria na depredação dos veículos e
no amedrontamento de seus passageiros. Ante a falta de informação sobre o
caso, as razões poderiam ser apenas especuladas: talvez os atleticanos se
sentissem desafiados desde o primeiro jogo na capital mineira, quando a torcida
do Botafogo ganhou a adesão dos adversários do Atlético; talvez os atleticanos
tivessem sofrido uma inamistosa recepção dos cariocas no jogo de volta no
Maracanã; talvez ainda apenas no terceiro jogo, mais extremo e decisivo,
aquilo efetivamente tivesse detonado. O fato é que parte da torcida atleticana
resolveu manifestar daquela maneira seu descontentamento com a presença do
Botafogo em sua cidade e em seu estádio.
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Passados alguns dias, os incidentes seriam abordados pelo cronista
Nelson Rodrigues. Este decidira escrever uma crônica sobre o assunto após
haver recebido a visita de torcedores alvinegros que participaram da caravana.
Assustados com os acontecimentos, eles queriam alertar os jornalistas do Rio
de Janeiro acerca das agressões sofridas e da falta de desportividade
manifestada pela torcida do Atlético. Com sua verve habitual, imaginativa e
exuberante, Nelson assinava sem pestanejar a inflamada crônica “Página de
terror”:
1. Amigos, eis que apareceram, na redação do JORNAL DOS
SPORTS, três torcedores que estiveram em Belo Horizonte. São eles:
Flávio Moreira Pinto (advogado), Antônio Henrique A. de Noronha
(estudante) e Brás Francisco Pepe (professor). Foram a Belo
Horizonte numa caravana de 25 ônibus. Era uma massa de torcedores
de vários clubes – Botafogo, Fluminense, Flamengo, Vasco, etc., etc.
2. Por aí se vê que foi, realmente, um belo movimento. É rara essa
cálida união de torcidas. Geralmente o que prevalece é o feroz
egoísmo clubístico. Mas o Botafogo ia jogar em Belo Horizonte e o
povo dos outros clubes se juntou aos alvinegros, com espontânea e
generosa solidariedade. Mas o que jamais passou pela cabeça da
caravana é que existisse, na capital mineira, um ambiente de guerra de
secessão. 3. Os torcedores citados fazem questão de dizer que nem
todos em Belo Horizonte se mobilizaram na guerra aos cariocas.
Torcedores do Cruzeiro e do América, de lá, foram exemplares de
simpatia, de hospitalidade, de confraternização. Já a legião atleticana
recebeu os visitantes com paus e pedras. O ambiente era tão explosivo
que a polícia teve que proteger os 25 ônibus. 4. Diz o advogado Flávio
Moreira Pinto: ‘Toda imprensa carioca fala do que houve em
campo. Sim, foi um espetáculo inédito de selvageria. Ninguém fala,
porém, do tratamento que nós, os torcedores daqui, recebemos. No
jogo, o pênalti para apaziguar um pouco a fúria anticarioca. O jogador
do Botafogo apanhou a bola, a mão ambas, e estou certo de que tal
gesto, longe de ser suicida, foi salvador. Mas fora do estádio, depois
do jogo, aconteceu o diabo’. 5. Simplesmente, os ônibus foram
atacados a pau e pedra. Vidros quebrados. Ameaças horripilantes.
Qualquer automóvel com a infamante placa de GB era cercado e
apedrejado. Um pobre fusca foi virado e, lá ficou, de rodas para o ar.
O terror instalou-se na pobre caravana. Lembro-me de uma senhora,
carioca, cujo vestido foi estraçalhado. 6. ‘Imagine a nossa ingenuidade
lancinante. Fomos a Belo Horizonte na esperança de uma maravilhosa
festa de futebol. Entramos na cidade cantando ‘Ó Minas Gerais’. Mas
nosso riso morreu, e nosso canto parou, quando topamos com uma
hostilidade feroz. Nunca se viu nada parecido na história do futebol
brasileiro. Foi uma noite de puro terror’. 7. Aí está a palavra
assombrada de três cariocas que se incorporaram a uma caravana que
deveria ser da cordialidade. Por tudo que aconteceu dentro e fora do
campo, uma coisa parece indiscutível: o terceiro jogo não poderia
ser na capital mineira. Ao mesmo tempo criou-se para o Botafogo uma
situação trágica – ele está ameaçado de perder até o campeonato
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carioca. O time voltou de Belo Horizonte marcado, física e
psicologicamente.”
190
No ano posterior a esses agravantes relatos, em setembro de 1968, os
torcedores do Rio de Janeiro não pareciam ter esquecido o que ocorrera em
Belo Horizonte. A recepção hostil aos torcedores do Atlético ocorreria em uma
partida no Maracanã, contra o Vasco da Gama, válida também pela Taça de
Prata. O numeroso deslocamento dos atleticanos ao Rio seria objeto de charges
de Henfil, ele próprio um mineiro simpatizante do clube de sua terra, com a
chamada: “A torcida do Atlético veio em 20 ônibus”
191
. Na matéria com título
dúbio, “Galo cantou no estádio”, um repórter falava da presença marcante da
massa atleticana e a reação pouco hospitaleira de setores da torcida cruzmaltina
à sua presença. Os vascaínos tentavam intimidar e ameaçar nas arquibancadas
os torcedores adversários, com ações antidesportivas que repugnavam aquele
repórter.
Os revides podiam assim ser observados nos encontros e nos reencontros,
o que acirrava as indisposições entre os torcedores visitantes e os anfitriões.
Rompiam-se os limites da rivalidade em patamares toleráveis e baldavam-se os
esforços de persuadir os torcedores com o discurso acerca dos princípios da
cordialidade desportiva. Se através das reportagens convencionais do jornal não
se conseguia saber o que de concreto havia acontecido, maiores informações
sobre os tipos de ameaça e de intimidação sofridas pelos atleticanos podiam ser
obtidas aqui e acolá, de maneira um tanto fragmentada e rasa no restante do
periódico. Para completar esse puzzle, a seção Bate-Bola parecia mais uma vez
um lugar privilegiado. Ela auxiliava na elucidação de fatos cujos elementos e
relatos eram esparsos, fugidios, insatisfatórios, obscuros. Mas a coluna
contribuía porque não eram apenas os leitores do Rio de Janeiro que remetiam
cartas e se comunicavam por intermédio dela. Torcedores de São Paulo, de
Minas Gerais, do Nordeste e de outros estados tinham acesso àquela seção e de
igual maneira expressavam suas idéias, seus sentimentos e também seus
ressentimentos.
Destarte, embora se continue sem saber o que aconteceu mais amiúde no
encontro entre atleticanos e vascaínos naquela tarde de setembro de 1968, nem
190
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de novembro de 1967, p. 10.
191
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 e 23 de setembro de 1968, p. 04.
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tampouco entre atleticanos e botafoguenses no final de 1967, é possível ter uma
idéia da gravidade dos confrontos por meio da carta de um correspondente
mineiro intitulada “Nem choro nem vela”, na qual articula com clareza
memória e ressentimento:
“Estamos esperando a torcida do Vasco para o jogo contra o Cruzeiro
aqui no Mineirão no próximo dia 27. Saibam os torcedores do Vasco
que nós não nos esquecemos do que aconteceu aí no Estádio Mário
Filho naquele jogo em que o Atlético perdeu. Fomos vítimas de uma
verdadeira selvageria e estamos aguardando o troco para o próximo
dia 27. Atenção torcedores do Vasco: venham quentes porque a
torcida mais famosa e potente do Brasil – a do Atlético Mineiro – está
à espera de vocês. Vocês ainda se lembram do que aconteceu naqueles
jogos contra o Botafogo ? Pois é, vocês começam e depois não
queremos choro nem vela. Vamos ver se os vascaínos são bons
cabritos e não berram”. (Rômulo Brandão Torsequi, BH, MG).”
192
.
Enquanto torcedores de equipes de estados diferentes desenvolviam essa
indisposição inicial e elevavam-na a um alto grau de intolerância, a ponto de
relembrá-la no ano seguinte, com uma seqüência de retaliações e de represálias
que parecia cada vez mais se agravar, outras torcidas, ao revés, nutriam respeito
e se consideravam umas às outras a cada jogo e a cada torneio anual em que
voltavam a se encontrar. A criação de um sistema de apoios e de alianças
mútuas dependia de um princípio evocador da síndrome de Beduíno de que
falavam os jornalistas e estudiosos europeus: para ter um aliado num estado da
federação era forçoso ter como oponente a torcida do clube rival da região a
que se comparecia. Assim, por exemplo, se torcedores atleticanos recebiam mal
os botafoguenses, poderiam a seguir receber bem os flamenguistas, e vice-
versa. Em retribuição a um bom acolhimento no Mineirão, se seguia uma
calorosa recepção rubro-negra aos atleticanos no Maracanã na partida seguinte.
Os torcedores do Flamengo, por seu turno, pareciam eleger de modo quase
automático os cruzeirenses como adversários, ao passo que estes por sua vez
iam acolher os vascaínos como parceiros fraternais.
A simpatia também poderia ser contraída por processos denotativos de
identificação. Por exemplo: Flamengo e Atlético identificavam-se como “times
do povo”, times da massa, enquanto Vasco e Cruzeiro filiavam-se como clubes
oriundos de colônias, portuguesa e italiana, respectivamente. É claro que isto
192
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 24 de novembro de 1968, p. 04.
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não era obrigatório, nem determinante para as alianças, mas em algum
momento esse aspecto da identidade clubística poderia vir a ser ressaltado. A
implementação desta lógica pode ser observada em duas cartas publicadas no
Jornal dos Sports datadas 1969. Elas expunham as justificativas legitimadoras
de tais atitudes no raciocínio e na versão dos torcedores. Alinhavadas essas
cartas, podia-se chegar à gênese das filiações e dos desentendimentos:
“Solidariedade da massa”: “Em nome de toda a massa rubro-negra,
agradeço ao chefe da charanga atleticana, o Júlio, que muito nos
ajudou quando lá estivemos para o jogo Flamengo e Cruzeiro. A
torcida atleticana provou que as massas são também grandes na
educação e na gentileza. Mas a nota triste foi para dada pela torcida do
Cruzeiro, à saída do Mineirão: fomos por ela apedrejados e não
sofremos mais graças à intervenção de terceiros. Muito obrigado ao
Júlio e toda a torcida do Galo. Isso serviu para que os poucos
cruzeirenses que havia na torcida rubro-negra se tornassem fãs do
Galo. (Mauro César, Copacabana, Rio, GB)”
193
.
*
“Forra”: “Quero dizer ao colega Mauro César que ele não foi o único
atingido pela torcida cruzeirense. Por ocasião do jogo Fluminense e
Cruzeiro, aqui no Rio, eu e um colega fomos covardemente agredidos,
mas a massa tricolor, irritada com a derrota de 3 a 0, baixou o pau
neles. Depois dessa confusão, um torcedor do Cruzeiro gritou que ia
baixar o pau nos rubro-negros lá no Mineirão. Por isso a torcida do
Flamengo foi agredida em Minas. Mas isso não vai ficar assim, a
massa rubro-negra vai à forra. (Leonardo Loppi, Copacabana, GB)”
194
.
Em 1969, o apoio dos rubro-negros aos atleticanos no Maracanã em uma
partida contra o Botafogo, na qual se avistavam quatro bandeiras do Flamengo,
era taxado por um missiva como “Conluio”
195
, cindindo a união dos cariocas na
Taça Brasil, o que para outros poderia ser “Dor de cotovelo”
196
. Muitos
correspondentes preferiam, ao invés de reclamar, convocar torcedores para as
caravanas: “Vamos lá”
197
, “Presença na adversidade”
198
. Viagens mais
distantes, como ao Rio Grande do Sul, podiam eventualmente trazer dissabores.
Na carta “Guerra”, uma torcedora cruzmaltina se queixava da maneira pela qual
havia sido tratada no Beira-Rio pela torcida do Internacional, com ofensas,
193
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 25 de outubro de 1969, p. 06.
194
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de novembro de 1969, p. 06.
195
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 31 de outubro de 1969, p. 06.
196
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 28 de março de 1973, p. 06.
197
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1969, p. 06.
198
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de setembro de 1969, p. 06.
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pilhérias e desacatos. A leitora sugeria para Porto Alegre o que já havia sido
adotado para o Maracanã: a separação das torcidas pela polícia, com a divisão
de territórios que impedisse o contato entre os torcedores adversários
199
.
Enquanto as cartas forneciam grandes subsídios, eram raras as manchetes
de primeira página referentes ao deslocamento de torcedores. Mas elas
ocorriam, de quando em vez, em razão de algum acontecimento extraordinário
ou desastroso. A 21 de novembro de 1968, por exemplo, uma grande manchete
seguida de foto estampava: “Tragédia abala o Vasco: acidente com torcedores
tramatizou todo o time.”
200
. A reportagem informava sobre o desastre sofrido
por um ônibus da Torcida Organizada do Vasco, no regresso de São Paulo ao
Rio, após o jogo em que a equipe perdera de 2 a 1 para o Corinthians. Durante
a noite, na Via Presidente Dutra, na altura da cidade de Cruzeiro, o ônibus com
os torcedores desviou-se da auto-estrada e tombou na ribanceira, ferindo quinze
passageiros, três deles em estado grave, inclusive a chefe da torcida, bem
conhecida no meio esportivo e na cidade, Dulce Rosalina. No dia seguinte,
nova matéria voltava a abordar o caso e a relatar a situação dos acidentados em
“O drama dos torcedores”
201
. Na terceira página do jornal, acompanhava-se
com mais atenção o sofrimento da líder cruzmaltina, hospitalizada, internada na
Santa Casa de Cruzeiro, o que provocou seu afastamento dos estádios por
vários meses.
Assim, já nos primeiros anos de realização da Taça de Prata, os
torcedores de clubes do Rio de Janeiro criavam o hábito de se dirigir aos
estados mais representativos da força econômica, política e futebolística
nacional – São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul – a fim de assistir aos
jogos de suas equipes. Tais viagens ensejavam contatos pessoais de torcedor a
torcedor, de torcida a torcida, de liderança a liderança. O estabelecimento de
relações cordiais e de civilidade, com a alternância entre receber bem e ser
recebido cordatamente, era uma precondição para jogadores, jornalistas e
dirigentes, modelo que em princípio tentava ser estendido aos torcedores. Não
obstante, ao contrário da maior estabilidade na recepção entre os principais
personagens esportivos, o universo dos torcedores desde o início parecia
199
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 14 de novembro de 1968, p. 06.
200
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1968, p. 01.
201
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1968, p. 03.
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vivenciar essa relação de maneira mais tensa e intensa. Como exposto acima, o
acolhimento de torcidas adversárias era alvo de incidentes já no final da década
de 1960. As parcas informações, que apenas salpicavam dos relatos
jornalísticos, sem maiores esclarecimentos, permitiam com isto tão-somente
uma idéia vaga das causas atuantes, dos fatores intervenientes, daquilo que
concretamente ocorria nas viagens, dentro e fora dos estádios.
No intuito de dirimir essas dúvidas e de descrever a novidade daquele
fenômeno, saciando a curiosidade de muitos leitores, um jornalista do Jornal
dos Sports, Altair Baffa, consagraria uma grande reportagem acerca das
caravanas. Para isto, ele se aventurara em uma excursão organizada por um
recém-fundado grupo de torcedores do Flamengo, a Torcida Jovem. Em
novembro de 1970, o jornalista publicava em matéria de página inteira a sua
experiência de viajar com os componentes da Torcida Jovem do Flamengo para
um jogo contra o Cruzeiro em Belo Horizonte. O título da matéria, “A longa
viagem da tristeza”, aludia à melancolia e ao cansaço dos torcedores no retorno
ao Rio, em razão da derrota do clube no Mineirão. O jornalista contrapunha
dessa maneira o ambiente festivo da saída da caravana ao clima sorumbático da
volta. Se sua estratégia narrativa era começar o artigo pelo desenlace final do
jogo, para só depois começar a narração da história da viagem dos torcedores, o
jornalista descrevia passo a passo o périplo, em formato de um diário. Além
disso, o jornalista cronometrava a passagem do tempo em cada uma das suas
etapas fundamentais – basicamente as mesmas a que se referiam Miceli e
Todelo e dava destaque especial às cenas curiosas, às anedotas pícaras e
pitorescas que despontavam daquela jornada.
Talvez por não se tratar de partida decisiva, nenhum conflito mais grave
com a torcida do Cruzeiro era registrado:
“Tostão entra pela área do Flamengo, dá uma ginga de corpo e tira
Washington e Reyes da jogada. Leva a bola para a perna direita e
chuta com violência, sem chance para Ubirajara. Cruzeiro 3 a 1. O
Flamengo perde um jogo que começou ganhando e a invejável
invencibilidade na Taça de Prata. As dezenas de bandeiras que a
Torcida Jovem levou do Rio a Belo Horizonte arriam bruscamente. Os
surdos param de tocar. Muitos torcedores não escondem as lágrimas.
Termina ali uma alegria que durou 15h30m de uma viagem de ônibus
e uma espera de 8h na cidade, nas quais não se come e não se dorme,
embora não faltem foguetes e batucada. As faixas colocadas no
alambrado da arquibancada no Mineirão são retiradas. As bandeiras
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saem do bambu e são enroladas. Os surdos deixam os ombros da
meninada por determinação do Diretor de Bateria Antônio Rodrigues
Nascimento e silenciam de vez. Os papéis picados de cinco sacos de
60 kg jogados à entrada do time estão coalhando o chão e compõem o
quadro de tristeza que toma conta daquela arquibancada distante mais
de 500 km do Mário Filho. Chove muito. A Torcida Jovem vai saindo
aos pouquinhos, cabisbaixa, à procura dos ônibus que estão
estacionados fora do Mineirão. Todo mundo molhado, ensopado
mesmo. Vai começar a longa viagem de volta. Não pelo tempo, que
foi inferior em três horas ao de ida. Mas pelo clima de tristeza
existente. Todos alegam um cansaço que não teriam se o Flamengo
vencesse e dormem. Há um pouco de alegria apenas quando um dos
homens enguiça 30 km de distância do Rio. Tia Helena é a própria
imagem que domina a torcida: estou apaixonada, estou apaixonada.
A espera. Desde as 13h há gente chegando na Praça Serzedelo
Correia, em Copacabana. É um sábado de tempo nublado, previsão de
chuva. A saída da caravana da Torcida Jovem está prevista para as 15
h. As imensas bandeiras são estendidas ao longo dos bancos do
jardim, enrolando as árvores, cobrindo o chão. Os sacos com papel
picado num canto, ao lado de grandes caixas de papelão com morteiro.
Os torcedores vão chegando, camisa rubro-negro bordada com
Torcida Jovem no peito. Os quatro ônibus demoram e os grupinhos se
formam para comentar a importância do jogo com o Cruzeiro. Só às16
h20m, depois de serem divididos os torcedores pelos quatro ônibus, a
caravana sai. O primeiro carro denomina-se ‘Xepa’; o segundo ‘Ki-
Zumba’; o terceiro ‘Bagaço’; o último, ‘Museu’, onde estão os jovens-
velhos da torcida. O coro marca a saída da caravana e é acompanhado
de foguetes e das buzinas de quatro ônibus. Minutos depois uma
grande frustração: não poder soltar fogos em frente à sede do
Botafogo, porque ao lado tem o Hospital Estadual Rocha Maia. Um
pouco mais à frente, porém, grande euforia: a caravana passa em
frente à sede nova do Flamengo e não se poupam foguetes. Frustração
e alegria seriam substituídas, às 17h10m, por muita irritação: na
entrada da Rio – Petrópolis, um dos ônibus dá defeito e fica-se
esperando até às 18h55m que ele volte ou venha outro. Vem outro.
Enquanto isso, a torcida, camisa do Flamengo e tudo, vai jogar uma
‘pelada’ num gramado em frente. A caravana está parada em frente à
Sociedade dos Emaús do Brasil. Muitos dos que vivem ali internados
vêm para o lado dos torcedores e pedem informações sobre o
Flamengo. Um dos internos, Joel Guerra Lonato, conquista a todos ao
cantar uma marchinha que fez em 1955, quando o Flamengo ganhou o
tricampeonato carioca de futebol. O título é Flamengo do meu
coração: ‘Quando eu morrer quero ser enterrado/ com as cores do
meu pavilhão/ com veludo preto e encarnado/ Flamengo do meu
coração’.
Polícia Rodoviária: Mengô. Noite fechada e fria, às 20h15m, a
caravana passa pelo posto da Polícia Rodoviária em Petrópolis. Os três
guardas de plantão, depois de rápida inspeção, gritam ‘Mengô’ e
vibram quando alguns foguetes explodem. O jantar foi em Areal às
20h50m. Na verdade, a expressão jantar é força de expressão. Alguns,
ou muito poucos, jantam. O sanduíche e a média são o prato mais
votado. Continua-se a viagem, velocidade máxima de... 70 km
horários e a Três Rios, a próxima parada, chega-se às 10h50m. Juiz de
Fora é lugar de um lanche reforçado, e a cidade acorda bruscamente,
porque alguns foguetes explodem no ar. Paras-se no bar que parece o
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da ‘onda’ em Juiz de Fora. É o bar do posto Elefantinho, e os rapazes
da cidade, todos motorizados e bem vestidos, ficam atônitos com a
manifestação: ‘Uma vez Flamengo, sempre Flamengo...’ O hino do
clube acorda, definitivamente, quem não estivesse. A saída para
Conselheiro Lafaiete só ocorre às 24h40m e este trecho é coberto em
2h50m. Aí há uma pequena confusão: dois ônibus – ‘Xepa’ e ‘Museu’
– param num bar da Mantiqueira, enquanto os outros dois vão mesmo
para Lafaiete. Por causa disso, a saída para a última parada – Belo
Horizonte – só acontece às 5h35m. Ficou-se sabendo que o atraso se
deu porque a turma do ‘Museu’ foi descansar para agüentar a virada.
Tio Guima, porém, explica que a viagem é feita assim para que a
caravana entre em Belo Horizonte dia claro, a fim de acabar de
acordar os mineiros. E, às 7h20m, os ônibus entram na Avenida
Afonso Pena. Papel picado, foguetes, bandeiras tremulando, o coro
sonoro: ‘Mengô’, ‘Mengô’...
A ocupação da Praça. A delegação rubro-negra está hospedada no
luxuoso Hotel Excelsior. É para lá que a caravana se dirige. Quando
chega, acorda os jogadores com o foguetório que solta. Os ônibus
ainda não estão totalmente vazios, e eis que um dos mastros da sacada
do hotel recebe uma bandeira rubro-negra. A ‘ocupação’ é completada
com a colaboração de uma faixa na grade da lanchonete, de frente para
a Rua Caetés: ‘Flamengo até morrer’, escrito em branco, em cinco
metros de comprimento. Os jogadores custam a descer e não são todos
os que descem. Há grande expectativa, especialmente por parte das
meninas para ver seus ídolos. Arílson, Caldeira e Ubirajara estavam
no saguão, conversando com alguns torcedores, quando chega
Iustrich, num táxi-mirim, e os chama para cima. – Vamos gente,
porque o jogo é duro. Os jogadores sobem, os torcedores dispersam.
Vão para o outro lado da rua. Pegam as bandeiras e a bateria. Fazem
um verdadeiro carnaval: ‘Uma vez Flamengo, sempre Flamengo...’. O
povo passa, ainda mal acordado, e fica atônito. A vibração aumenta a
cada carro particular, placa da Guanabara, que chega com torcedores e
bandeiras rubro-negras.
Comer, dormir, prá quê. Uma viagem de 15h30m, quando
normalmente é feita em 9h. Uma viagem em que a única preocupação
é cantar. Comer e dormir, pra quê? Este é o ponto de vista de César
Roberto Pereira da Silva – o Betão –, um rapaz moreno e magro, 22
anos, que na metade do caminho não tem voz nem para pedir um
cigarro. – O negócio é gritar o nome do Mengão do Rio a Belo
Horizonte. Esse negócio de comer e dormir fica para quando a gente
voltar para casa. Funcionário do Ministério do Exército (Fábrica do
Andaraí). Betão – como gosta de ser chamado – ganha Cr$ 198.00
mensais e diz que ‘isso não dá nem para as viagens nem as
arquibancadas para ver o Mengão jogar’. Isso se passa com quase toda
a delegação, especialmente com a rapaziada da bateria e do ônibus
‘Xêpa’. Nas paradas para jantar ou lanche, a turma se preocupa em
cantar o hino rubro-negro, muito pouco em comer. Muitos vão sem
dinheiro, como o caso de Frigideira, um crioulo magro e simpático,
que não se separa de uma frigideira para ajudar no ritmo da bateria.
É hora de ir ao estádio. Quando a caravana chega em frente ao Hotel
Excelsior, todos são avisados de que os ônibus sairão ao Mineirão às
13h, sem falta. Quem tiver vontade ou dinheiro para comer, que o faça
até esta hora. Quem tiver sono, que durma. Mas muito poucos fazem
isto. Na hora marcada saem os ônibus para o Mineirão. Mais foguetes,
mais papel picado, todas as bandeiras nas janelas. O estádio é bonito
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com o estádio bem tratado. A Torcida Jovem chega e vai logo para o
lugar onde normalmente fica a torcida do Atlético: no meio do campo.
Os atleticanos estão juntos. Afinal, o jogo é contra o Cruzeiro. Várias
faixas são estendidas no alambrado da arquibancada, as bandeiras são
agitadas, a bateria esquenta e toca samba com cadência e vibração. O
coro é alucinante: ‘Mengô, Mengô...’. A torcida organizada do
Cruzeiro é menor que a do Flamengo. Os mineiros só têm uma faixa
no alambrado da arquibancada: ‘Avante Cruzeiro’ – e nem uma
dúzia de bandeiras. Bandeiras a Torcida Jovem tem mais de cinqüenta,
que são agitadas desde o momento em que o alto-falante anuncia a
escalação da equipe. Quando Paulo Henrique aparece na boca do
túnel, a chuva de papel picado dificulta a visão do gramado. O jogo
começa e o Flamengo marca primeiro com Nei. Pois na rede de Raul e
uma vibração de arrepiar. Sentados, lado a lado, dona Maria dos
Santos, 60 anos, madrinha de José Ramon, um menininho membro da
bateria; dona Helena Przewodovski, mãe de Vânia (Rainha do Mengô-
70), e dona Terezinha Jardim. Elas não se contêm e gritam. Dona
Helena chega a chorar de emoção: ‘Mengô, Mengô’. O Cruzeiro logo
empata, com Dirceu Lopes, mas o que se ouve não é a comemoração
da torcida mineira, mas o grito de incentivo da Torcida Jovem:
‘Mengô, Mengô’. Mas o Flamengo, melhor em campo, chega aos 3 a
1 e derruba o Flamengo. A tristeza impressiona qualquer um. Vai
começar o longo caminho da volta.
Rainha triste. Vânia Przewodovski, 18 anos, Rainha do Mengô-70
com todos os méritos fica com o olhar parado no campo, enquanto o
juiz acaba o fogo e Brito se desentende com Iustrich. – O Flamengo é
a paixão de quase 90 milhões de brasileiros e nessa hora há muita
tristeza no Brasil. Sua mãe, dona Helena, vem com os olhos cheios de
lágrimas, abraça Vânia e começa a tirar-lhe a camisa rubro-negra. As
duas têm os olhos fixos no campo, e lentamente vão saindo em direção
aos ônibus. Vânia fala baixo: Puxa, o time jogou bem. O azar foi o
Cruzeiro empatar logo em cima. Se o Flamengo virasse com 1 a 0,
tenho certeza que agüentaria o placar. E, quando o Cruzeiro vencia por
2 a 1, o Raul fez duas defesas milagrosas.
Time do povo. Os 14 anos de Paulo Ferraz são de muita inteligência e
vivacidade. De cabeça baixa, sem querer falar muito ele vai saindo do
Mineirão, camisa da Torcida Jovem: Sou Flamengo por causa de
tudo. O Flamengo não é o time do povo? Por isso sou Flamengo. Um
pouco atrás vem Mônica Chaves, uma linda morena, tipo caboclo, 14
anos de idade. Está acompanhada do pai, um ‘coroa’ simpático e
brincalhão, eu parece muito com Vinícius de Moraes: Não
merecíamos este placar. Jogamos bem e tivemos mais oportunidades
do que o Cruzeiro. Monique, porém, mostra-se otimista e acredita
demais no time: Perdemos a invencibilidade mas não perdemos a
Taça. Vamos partir para cima do Santos com toda força. Este aliás é o
pensamento de Eni de Paiva, uma lourinha que sai da Ilha do
Governador com qualquer tempo e em qualquer lugar para ver o
Flamengo jogar: O Flamengo está dentro de mim desde quando eu
ouvi a gatinha do Ari Barroso numa irradiação de um jogo dele. Eu
acabara de regressar dos Estados Unidos, onde havia morado e não
mais esqueci daquele nome: Flamengo. Eni corre da chuva forte que
cai ao término da partida e, ao entrar no ônibus, molhada, cansada e
tristonha, desabafa: Acabei de chorar por causa dessa derrota mas
tenho certeza que vou chorar muito mais para comemorar bonitas
vitórias e a conquista da Taça de Prata.
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Silêncio, os ônibus estão voltando. Pouco depois das 18h a caravana
deixa o Mineirão direto ao Rio. Não há motivo para parar no centro de
Belo Horizonte. Não há foguetes, nem papel picado nem bandeiras do
lado de fora das janelas. Há, isto sim, muita gozação de alguns poucos
cruzeirenses: Cadê o Mengão?... Os vidros dos ônibus estão
fechados e ninguém responde. No ‘Bagaço’, um dos ônibus mais
animados, não se ouve uma só voz. Antônio Carlos ‘Palavrão’, que foi
o tempo todo falando ao som do microfone do cicerone do ônibus de
turismo, está recostado na poltrona ao lado do motorista Andrada e,
em dado momento, grita: Eu quero dormir, pô. Vê se não faz
barulho aí atrás. Quando o ônibus arrancando, aparece Frigideira, um
mulato magrinho da bateria, a ‘velha’ frigideira debaixo do braço,
pedindo uma carona. Ele tinha ido a Belo Horizonte num ônibus da
carreira, porque não tinha os Cr$ 32,00 da passagem de ida-e-volta.
Foi com Cr$ da passagem mais Cr$ 6,00 da arquibancada e Cr$ 3,00
para o resto. Está molhado feito um pinto. Numa cadeira do canto,
Jomir Pereira da Cruz guarda com carinho um livro com todos os
feitos do Flamengo em 70, desde o início das atividades da Torcida
Jovem. Jomir queria registrar mais ‘uma grande vitória do Mengão’.
Eu quero dormir, pô. Vê se não faz barulho. Uma rápida parada na
saída de Belo Horizonte, para abastecimento, e rumo a Conselheiro
Lafaiete, onde se chega às 21h05m. E mais da metade da torcida, a
esta altura, já está sem a camisa rubro-negra. E mais da metade, sem
dinheiro e chateada, prefere ficar dormindo no ônibus porque não há
razão especial que a faça sair na chuva. Não é preciso ficar em
Lafaiete por isso mesmo. A caravana sai em direção a Juiz de Fora e
não há parada para lanche. O sono alimenta e como todos estão
dormindo, ninguém tem fome. Este parece ser o raciocínio dos quatro
motoristas. Pé na tábua, vai a caravana, silenciosa, comendo a estrada
rumo ao Rio. Só há uma parada antes da chegada ao ponto de partida.
Uma parada forçada, porque o motorista Andrada, do ‘Bagaço’, na
ânsia de comer – ele não disse por qual time torce – esqueceu de
abastecer o ônibus. O enguiço ocorre a uns 30 km de distância do Rio.
Eram 4h10 da manhã. Andrada parece não saber que seu engano vai
proporcionar um pouco de alegria àquele grupo triste. O ônibus para e
aos poucos vão acordando todos, menos Eni e Augusto que estão
ferradas. Antônio Carlos ‘Palavrão’ volta aos seus melhores
momentos, auxiliado por Onça. Paulo Afonso Almeida, encarregado
do ônibus, fica num canto rindo sem parar das diabruras dos dois que
soltam foguetes àquela hora e naquele local, espantando muitos
roceiros. Com o barulho acorda também Elmo, um moreninho magro
muito engraçado, que fica na estrada para parar os carros e pedir
auxílio. Consegue seu intento várias vezes, mas o motorista diz que é
melhor esperar um ônibus da caravana. Toca de esperar. O primeiro
ônibus da caravana a aparecer foi o ‘Museu’, às 4h50m. Foi feita uma
sangria de um para outro tanque e a viagem prossegue, às 15h15m.
Andrada acelera com vontade, abastece mais adiante, e entra na
Avenida Brasil às 6h10m. A esta altura todo mundo já estava
acordado e procurando brincar para esquecer o que havia acontecido
no dia anterior, tão longe. Antônio Carlos ‘Palavrão’ se encarrega das
piadas, ao lado de Onça: Perdemos, sim, mas fomos lá. A Torcida
Jovem não deixa o Flamengo desprotegido em nenhum lugar.
Perdemos, mas fomos lá, ouviram? Antônio Carlos ‘Palavrão” dirigia-
se com raiva ao povo que, comprimido nos ônibus suburbanos, ia
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trabalhar, enquanto ele voltava de uma quase louca viagem de 28h
para torcer, vibrar e acabar se entristecendo com o Mengão.
Um grande exemplo. Em suas ‘Histórias do Flamengo’, Mário Filho
tem uma frase sábia: Escolhe-se um clube como se escolhe uma
mulher. Para toda a vida ou até que Deus separe. É mais difícil deixar
de amar a um clube do que a uma mulher. Mas não basta apenas
escolher um clube e ficar a adorá-lo platonicamente ou através de um
cupido. Deve-se escolhê-lo e amá-lo participando de seus problemas e
procurando resolvê-los. Por isso é grande o exemplo que dá a Torcida
Jovem do Flamengo. Não que ela seja mais fanática que as outras,
não. O torcedor, o seu fanatismo, é talvez mais importante que o
jogador, o treinador ou o dirigente. Estes passam e se renovam. O
torcedor, não. Continua na sua paixão a embelezar os estádios, a
chorar de tristeza e alegria, a carregar bandeiras e a ficar na chuva para
ver seu time ganhar e perder. O exemplo que dá a Torcida Jovem do
Flamengo é que ela surgiu num dia em que somente se pensa em ir
para casa, dormir e esquecer o ‘pesadelo da derrota’. A Torcida Jovem
existe, como frisam seus responsáveis, não apenas para dizer ‘amém’
a todos os dirigentes, jogadores e treinadores. O apoio é irrestrito mas
desde que se esteja trabalhando pelo engrandecimento do Flamengo.
Seu lema diz tudo: NADA DO FLAMENGO, TUDO PARA O
FLAMENGO. Veja-se, por exemplo, a situação da torcida do Vasco.
Este ano, quando vinha bem e conquistou o campeonato perseguido há
doze anos, ela só se fez presente com a força da sua força no último
jogo. Na partida decisiva, contra o Botafogo, a renda não foi
compatível com as tradições da torcida vascaína. Pouco mais de Cr$
250,00 mil, quando na final do ano passado o Fla-Flu rendeu.... Cr$
697,00 mil e quebrados. A torcida do Vasco precisa reviver os grandes
dias de sua presença nos estádios. O futebol carioca, o futebol
brasileiro tricampeão do mundo, enfim, não pode sentir a falta da
força do Vasco nas arquibancadas. Que apareçam os jovens vascaínos
para mostrar seu amor ao Vasco como fizeram os jovens rubro-negros.
O amor ao clube está acima de tudo, seja na derrota, seja na
vitória.”
202
.
Em realidade, esse alentado relato era a terceira parte de uma reportagem
especial dedicada à Torcida Jovem do Flamengo. Na primeira matéria, ao
abordar aspectos da fundação do grupo, o jornalista pontuava algumas
informações colhidas com a líder, Tia Helena. Esta senhora prestara várias das
informações que constavam nas três grandes reportagens especiais. Sendo
caracterizada por Altair Baffa como “exigente, severa e dedicada”, Tia Helena
discorria na primeira matéria sobre a idéia de ter representantes da Torcida
Jovem em cada um dos estados da federação, a fim de desenvolver um trabalho
de “boa vizinhança” com as demais torcidas. Em São Paulo, graças às viagens,
estabelecera contato com Jorge Luís, um santista que em 1969, sob influência
202
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1970, p. 08.
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de Tia Helena, resolveu fundar a Torcida Jovem do Santos. No Rio Grande do
Sul, apesar da distância territorial, o que intensificava a troca de cartas
particulares entre eles, as relações eram com José Ferrari, do Internacional. Já
em Belo Horizonte, o contato se dava com Júlio, o tradicional chefe da
charanga do Atlético, torcedor que fazia questão de recepcionar e de saudar as
caravanas da torcida do Flamengo.
A criação desse ambiente de amizades entre lideranças de torcida e o
reconhecimento das caravanas como uma prática regular, não apenas
espontânea e ocasional, repercutiam nas reportagens do próprio Jornal dos
Sports. Pouco tempo depois da matéria especial de Altair Baffa, as excursões
de torcedores chegavam à primeira página do jornal com um enfoque que
salientava sobretudo seus aspectos festivos. A quatro e a cinco de dezembro de
1970, o JS dava cobertura em suas manchetes não ao jogo entre Flamengo e
Corinthians, mas aos preparativos dos torcedores rubro-negros que viajariam a
São Paulo: “Mengão prepara invasão: torcida vai em peso ao campo
inimigo”
203
e “Avante Mengão: torcida carioca dá o grito de guerra em pleno
Pacaembu”
204
. Na matéria correspondente, Tio Guima e Tia Helena previam
cerca de quinze mil torcedores do Flamengo no jogo, que se deslocariam de
diversas maneiras: ônibus fretados, ônibus de linha, carros particulares e até
trens que sairiam da Estrada de Ferro Central do Brasil. As charges de Henfil
completavam a cobertura do jornal, com o favorecimento de um clima de festa
para a ida a São Paulo.
Se a campanha para a classificação do Flamengo às finais da Taça de
Prata faria o jornal dar destaque à peregrinação dos torcedores rubro-negros
para a capital paulista, seriam todavia os torcedores do Fluminense que
assistiriam sua equipe chegar à disputa decisiva. Em meados de dezembro de
1970, o Jornal dos Sports, embora sem a chamada na primeira página,
publicaria a movimentação dos tricolores para a final: “Torcida vai com o Flu”.
Sérgio Aiub, um dos responsáveis pela caravana dos tricolores, cuja liderança
era agora dividida com chefes de torcida de grupos que acabavam de surgir,
como a Força-Flu e a Young-Flu, fazia a seguinte provocação aos cruzeirenses,
no dizer do jornal: “A torcida do Fluminense vai fazer Belo Horizonte
203
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1970, p. 01.
204
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 1970, p. 01.
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explodir”
205
. Ao final, com uma vitória de dois a zero sobre a equipe local, na
noite de 16 de dezembro, uma quarta-feira, o Fluminense conquistaria a Taça.
Dois dias depois, em sua última página, o JS, que não abordara a ida a Minas
Gerais, daria ênfase à alegria do regresso dos ônibus tricolores ao Rio de
Janeiro. Na manhã do dia 17, os ônibus de tricolores atravessavam a Avenida
Rio Branco, com buzinas, bandeiras desfraldadas e uma chuva de papel picado
atirada dos prédios da avenida, em um desembarque festivo das torcidas
organizadas do Fluminense, que se prolongaria na Cinelândia durante aquela
manhã
206
.
Apesar da descrição do ambiente de festividade das caravanas, as
expressões cunhadas pelo Jornal dos Sports eram reveladoras do imaginário
bélico que se adejava ao discurso esportivo. Elas podiam ser aferidas em uma
classe de palavras específicas: “invasão”, “campo inimigo”, “explosão” e “grito
de guerra”, apresentado pelo periódico na manchete de sua primeira página.
Embora não seja possível afirmar que esses termos eram de autoria dos
repórteres do Jornal do Sports, pois pertenciam a um vocabulário esportivo
mais amplo e mais antigo, pode-se especular o quanto essas metáforas eram
apropriadas pelos torcedores em sua leitura das viagens. Segundo o psicólogo
social norte-americano Anselm Strauss, a linguagem, a identidade e o ato de
nomear compõem uma totalidade significativa, tríade da qual as palavras e as
coisas não podem se desvencilhar. O significado de um termo sugestivo como
“invasão”, o simples ato da sua nomeação, que se arraigaria na representação
da viagem a uma outra região e a um outro estádio para torcer por um time, tem
implicações cruciais na idéia de alteridade e de ocupação de um território
alheio. Toda a sua força expressiva passa a se associar ao vocabulário das
caravanas, não apenas por iniciativa dos jornalistas esportivos como também
dos próprios viajantes que a adotam com rapidez.
Assim, no ano de 1971, quando o Campeonato Nacional de futebol no
Brasil foi instituído, essas expressões se tornariam correntes. Elas passariam a
descrever o deslocamento das torcidas, em especial nos momentos decisivos e
nas partidas eliminatórias. Se até então as narrativas falavam da ida dos
torcedores cariocas a São Paulo ou a Minas Gerais, desta feita invertia-se a
205
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1970, p. 07.
206
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1970, p. 14.
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direção: falava-se agora da vinda dos torcedores desses estados ao Rio. A final
do campeonato daquele ano teve por cenário o Maracanã, para a decisão entre
Botafogo e Atlético Mineiro. A vitória do time mineiro, com um gol de Dario
Pereira, o popular Dadá Maravilha, daria o primeiro título nacional ao Atlético.
Na cobertura das comemorações, era a vez de descrever a presença atleticana
na cidade, que não se restringia à ida ao estádio. Desde o alvorecer daquele
domingo de 19 de dezembro de 1971, a caravana mineira movimentava, e em
alguns casos tumultuava, diversas partes do Rio de Janeiro, realçando o
contraste entre o moroso domingo de descanso dos moradores da cidade e a
incontida euforia dos viajantes.
A repórter Marina Alves dava sua versão, do ponto de vista “nativo”, na
matéria “Invasão da cidade começou de manhã”:
Galô, Galô, Galô... O grito tradicional da torcida do Atlético
Mineiro foi ouvido como nunca ontem, no Rio, desde as 6 horas da
manhã, quando começaram a chegar os torcedores que vieram dar o
incentivo ao seu time. Foi uma verdadeira invasão da Cidade, por 140
ônibus e milhares de carros particulares. Em todas as direções que se
olhava, eram bandeiras e mais bandeiras desfraldadas de ônibus,
carros particulares, táxis, além daquelas trazidas pelos torcedores que
vieram de avião, trem ou outro qualquer meio de transporte que os
trouxesse ao Mário Filho. Até o Sol deu sua colaboração, permitindo
que toda aquela massa fosse dar um mergulho na praia, e a mais
procurada foi Copacabana. Depois de um giro turístico, onde não
faltou nem o papel picado, todas as faixas e bandeiras foram
conduzidas para o Mário Filho porque o Atlético – toda a motivação
para eles – disputava o título de campeão brasileiro de clubes. Não
eram apenas torcedores de Belo Horizonte. Surgiram no trânsito do
Rio, ontem, veículos de diversas cidades do interior de Minas Gerais,
que se juntaram aos 140 ônibus da Torcida Organizada, comandada
por Júlio, ‘O Mais Amigo’.”
207
A cena se repetia a cada final de temporada, que coincidia com o
calendário de encerramento do ano, às vésperas do Natal e do Ano Novo,
quando as partidas decisivas faziam as caravanas ganharem maior vulto. A
dimensão que algumas delas atingiam às vezes extravasava as fronteiras
futebolísticas, acionava boa parte da imprensa e alterava o cotidiano de parcela
considerável da população. A repercussão dos deslocamentos nos jornais, é
claro, dependia da colocação e da classificação dos clubes cariocas para as
207
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 1971, p. 05.
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479
finais. Em 1972, o Botafogo se classificaria para as finais contra o Palmeiras
após um empate contra o Corinthians no Maracanã na noite de 20 de dezembro,
uma quarta-feira à noite, quando nove ônibus dos Gaviões da Fiel se
deslocaram ao Rio. A conquista do título pelos palmeirenses no Pacaembu, no
domingo seguinte, impediu maiores destaques do Jornal dos Sports à caravana
dos cariocas torcedores do Botafogo. Em 1974, Vasco da Gama conseguiria a
inédita façanha de tornar-se Campeão Brasileiro, conquistado no Maracanã
contra o Cruzeiro. Título inédito entre os cariocas, a cobertura da conquista por
parte do jornal se restringiria a uma abordagem parcimoniosa da comemoração
na cidade. Tendo em vista que os jogos foram disputados “em casa”, nenhuma
grande notícia sobre caravanas para fora da cidade se verificou.
Mas, ao leitor incauto, as informações relativas ao fenômeno das viagens
poderiam passar despercebidas, se acaso não fossem vasculhadas todas as
demais seções do jornal. Isto porque as notícias podiam ser obtidas nos lugares
mais imprevistos do periódico. Em meados do ano de 1972, em um dos
cadernos especiais do jornal, em particular aquele destinado à preparação dos
estudantes para o Vestibular, qual não foi nossa surpresa ao encontrarmos uma
inusitada variação acerca do tema em tela. Dentre as perguntas formuladas para
o simulado preparatório de Francês, elaboradas pelo Curso Hélio Alberto,
achava-se uma curiosa questão sobre a “invenção social da viagem” no século
XX. Com base em um trecho do livro do escritor francês Pierre Daninos, Le
sang des hommes, localiza-se a passagem em que se correlaciona a ação das
viagens à sua necessidade intrínseca de narração:
“Le XXe siècle a même des inventions sociales: le voyage en groupe,
par exemple. C’était donc un brain de gens en groupe. Des gens qui
parlent. Des gens qui font. Des gens qui notent. Des gens qui notent ce
qu’il font. Parce qu’après il faut raconter. C’est très important de
raconter. On fait même le voyage pour ce qui ne peuvent pas le faire et
a qui on pourra raconter. Ils étaient tous, d’ailleurs, fort occupés. On
dit – Vacances – c’est une illusion. Un voyage en groupe, ça
represente bien du travail. Avec le guide, impossible d’oublier quelque
chose. Car lui saient tout, avec les dates et les histoires et il voit tout,
même ce qu’il n’y a l’air de rien et que vous n’auriez pas pensé à
soulever tout seul.”
208
.
208
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 21 de junho de 1972, p. 10.
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480
Em que pesem essas citações, que contribuíam para revestir com foros
literários certas apreciações das viagens em grupo, prática descrita como um
misto de trabalho e lazer, de prazer e devoção, a realidade das caravanas entre
torcidas organizadas parecia ser menos edulcorada na pena dos torcedores.
Estes continuavam a relatar com preocupação suas experiências pessoais fora
do Rio de Janeiro, em acompanhamento às partidas de seus clubes. As vendetas
iniciadas no final da década de 1960 tinham prosseguimento nos primeiros anos
da década de 1970, com uma série de queixas de torcedores acerca dos maus
tratos de parte de torcedores de outros estados, conforme vinha relatado na
seção cartas da coluna Bate-Bola.
Na primeira edição do campeonato nacional, em 1971, os tricolores
descreveriam sua excursão ao Parque Antártica na carta intitulada “Praça de
guerra”
209
, na qual se referiam ao tratamento hostil dispensado pelos
palmeirenses. Por alguma razão desconhecida, os jogos em Belo Horizonte
tinham uma especial recorrência. Na carta “Casório Fla x Galo”, em 1973,
leitor assegurava a continuidade das amizades entre as torcidas do Flamengo e
do Atlético
210
. Mas essa aliança e essa amizade pareciam ser a exceção, não a
regra. A capital mineira tinha a peculiaridade de ser a que mais problemas
trazia, segundo os missivistas. Estes apelavam para as autoridades locais e
solicitavam maior proteção e maior atenção. Fustigados pelos mineiros, os
torcedores dos principais clubes do Rio de Janeiro solidarizavam-se entre si
contra os ataques às caravanas cariocas, conforme se pode observar nas quatro
cartas transcritas abaixo:
“Escudo”: “Todo torcedor que faz excursão com a sua torcida deve ir
bem prevenido contra os ataques dos índios, especialmente, se o cara
sair do Brasil e for a Minas Gerais. O último caso valeu mais de dez
pontos com operação e tudo no supercílio do meu colega e se não
fosse o aviso de outro eu ia servir de escudo para uma pedrada que
arrebentou o vidro traseiro do ônibus. Pois é, Minas Gerais, quem te
conhece não volta jamais. (Rafael Côrtes Carvalho, Guanabara)”
211
.
*
“Olho por olho”: “A Torcida Flatuante está indignada com o
tratamento que recebeu na saída do Mineirão. Os mineiros (torcida do
Cruzeiro) começaram a dar pauladas e pedradas nos componentes da
torcida e a polícia demorou cerca de quinze minutos para tomar
209
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1971, p. 06.
210
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1973, p. 02.
211
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 1972, p. 02
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481
alguma providência. Mas de tudo nos resta um consolo: um dia o
Cruzeiro jogará no Mário Filho e a torcida do Mengo (Flatuante
principalmente) saberá pagar na mesma moeda. (Beto, Torcida
Flatuante, GB).”
212
.
*
“A revanche”: “Depois de ter assistido ao jogo entre Vasco e
Cruzeiro, tive o desprazer de ver aquilo que um torcedor brasileiro não
deve fazer nunca. No final da partida houve de tudo, meus caros. O
comportamento dos torcedores foi lamentável. Eu, como torcedor do
Vasco da Gama, estive em BH por duas vezes para assistir aos jogos
de classificação do Nacional e da Libertadores da América.
Infelizmente o que se passou foi uma lástima, pois eu mesmo tive que
vir de carona, pois meu ônibus foi completamente danificado. Isso
para não falar dos torcedores que ficaram em situação pior. Tudo isso,
onde se pratica o melhor futebol do mundo é vergonhoso, pois tanto lá
como aqui, o comportamento das torcidas foi lastimável. Gostaria de
fazer um apelo para que todos os torcedores do Brasil não se
comportem dessa maneira, pois, agindo assim, o nosso belíssimo
futebol cairá por completo. Temos que levar em conta que o
Campeonato Nacional já está breve. E como será Vasco x Cruzeiro
aqui ? Espero que a CBD tome uma solução no sentido de coibir essas
bobagens pois, caso contrário, este clima de guerra vai continuar igual
lá o do Oriente Médio, onde não há vencedor nem vencido. Quero
também esclarecer a profunda alegria e grata satisfação que tive
quanto à volta de Dé, pois sou fã desse garoto. Portanto, não escondo
a alegria em vê-lo de volta ao Vasco. Um forte abraço desse torcedor
que tanto ama o maior futebol do mundo que é logicamente o do nosso
Brasil. (Admar Colodette, Bonsucesso, Rio de Janeiro)”
213
.
*
“O repúdio”: “A torcida Unifogo vem por meio desta repudiar
violentamente os atos de violência praticados contra a torcida vascaína
no último domingo. Já está se tornando rotina entre nós torcedores
cariocas e de outros Estados sermos apedrejados e surrados por alguns
torcedores mineiros. Fazemos um apelo aos Srs. Governador, Prefeito
e Secretário de Segurança de Minas Gerais para que enérgicas
medidas sejam tomadas. Não importa se estes times tenham ganho ou
perdido, a história é sempre a mesma, pedradas e garrafadas são
usadas contra os torcedores visitantes. O nosso intuito não é o de
prolongar essa onda de violência que já atingiu proporções
calamitosas, mas sim de alertar as autoridades desportistas e membros
dos órgãos de segurança do nosso país para o que se passa antes,
durante e depois de um jogo no Mineirão. Confiamos nas autoridades
do nosso país, para que esses lamentáveis incidentes nunca mais
voltem a ocorrer em nenhum lugar do Brasil. (Fernando Mesquita –
RJ)”
214
.
A publicação dessas cartas tornava pública uma série de incidentes que
se desenrolavam antes e depois dos jogos interestaduais, sem receber a devida
atenção das autoridades e de parte da imprensa, à exceção desse pequeno fórum
212
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 1972, p. 02.
213
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de abril de 1975, p. 02.
214
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 03 de outubro de 1976, p. 02.
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de opiniões do Jornal dos Sports. Desta maneira, o JS cumpria um papel até
certo ponto ambivalente. Por um lado, ele contribuía, embora de modo indireto,
para a disseminação de um conjunto de termos com conotações bélicas,
estimulando a assimilação desse tipo de representação entre os torcedores. A
palavra invasão, por exemplo, seria irradiada pelo periódico desde pelo menos
dezembro de 1970, quando aparecia na primeira página do jornal para
caracterizar a caravana da torcida do Flamengo a São Paulo. A mesma
expressão se repetia no final do ano seguinte, quando o periódico mencionava a
vinda de 140 ônibus dos torcedores atleticanos ao Rio de Janeiro. Em vista
disso, no mês de dezembro de 1976, quando ocorreu a propalada invasão
corinthiana ao Maracanã para as semifinais contra o Fluminense, o sentido do
termo já parecia familiar e corriqueiro na linguagem do jornalismo esportivo
havia pelo menos seis anos. Os jornalistas favoreceram assim a construção de
um imaginário épico em torno da presença da torcida do Corinthians no Rio de
Janeiro, que “tomava de assalto” as praias, as avenidas e o próprio estádio.
Por outro lado, o Jornal dos Sports poderia ser visto não apenas como
agente incitador, como fator estimulante e contribuinte para as rixas e para a
agressividade entre os torcedores. A belicosidade da linguagem esportiva não
era nem exclusiva às torcidas nem única a este jornal. O JS apoiava as
iniciativas das torcidas organizadas e propiciava o acompanhamento dos
bastidores dessas associações, através de informações que outros periódicos
nem sequer cogitavam em fornecer. A coluna Bate-Bola, por exemplo, permitia
a livre opinião dos leitores e, com isto, mesmo sem o saber ou querer, ela dava
a conhecer inúmeras situações, tais como os conflitos relatados nas cartas
acima entre as torcidas de diferentes estados. Esses fatos, que de outro modo
permaneceriam encerrados em uma inimizade pessoal, em uma rivalidade
particular, de grupo a grupo, ganhavam um caráter público com a divulgação
do jornal.
A cobertura das caravanas é exemplar nesse sentido, pois ela revelava os
conflitos internos às facções. Em dezembro de 1973, uma série de cartas
abordava as caravanas da Young-Flu. Segundo o relato de uma passageira, na
carta “Um caso de polícia”, os líderes da Young eram jovens imaturos e
despreparados, não tinham responsabilidade para conduzir uma excursão
daquele porte. Uma semana depois, em “Polêmica barata”, voltava-se ao
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assunto com a descrição dos chefes da torcida, tidos como irresponsáveis. Pela
mesma época, a questão do financiamento das viagens era assunto também
problemático para os vascaínos e missivas eram enviadas ao jornal com
denúncias de torcedores que viajavam de graça, às custas do clube. Outros
minoravam o problema com licenças poéticas, como em “Dá-lhe Vascão”, onde
Moacir Vaz escrevia: “Eli e Dulce guiando as grandes caravanas da esperança,
correndo pelas estradas dos sonhos adormecidos... no cordão puxado pela Força
Jovem (o grande surgimento nestes últimos dez anos)”
215
.
Todos esses novos ingredientes que se agregavam às viagens faziam
outro repórter voltar a abordar o assunto. Passados três anos da matéria
assinada por Altair Baffa, “A longa viagem da tristeza”, um repórter importante
do jornal dava acentuado destaque ao tema. Em outubro de 1973, José Antônio
Genheim, publicava a grande reportagem intitulada “Paixão: com ela não há
limite nem distância que uma caravana não separe”, conforme já mencionado
no segundo capítulo. Desta vez, não era uma, eram duas páginas inteiras
consagradas a narrar uma caravana de viagem junto aos torcedores
botafoguenses. Se os “tempos fortes” da viagem eram os mesmos das etapas
descritas pelo colega Baffa, algumas diferenças relativas ao comportamento dos
torcedores podiam ser já notadas naquele breve intervalo de tempo. Uma maior
licenciosidade no interior dos ônibus, alguns incidentes mais graves nas
paradas de estrada e conflitos com a torcida adversária eram narrados por
Genheim.
De sua narrativa, pode-se dizer que é cuidadosa na observação dos
acontecimentos, preocupando-se em ressaltar os aspectos históricos das viagens
entre os torcedores, em documentar com fotos a caravana e em sublinhar as
principais características observadas na excursão, de forma ainda mais
meticulosa que Baffa. A sua transcrição, conquanto longa, é sobremaneira
importante para o dimensionamento da questão e para a apreensão do discurso
dos jornalistas:
“O torcedor de verdade, aquele que faz das partidas de seu clube o
programa insubstituível dos fins de semana; que aguarda o próximo
jogo lendo os jornais, discutindo as suas chances e participando
intensamente dos bate-papos nas esquinas, botequins e nas rodas dos
215
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de julho de 1974, p. 02.
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amigos, preparando-se, assim, para extravasar no estádio toda a sua
paixão clubística, viu-se de repente desafiado por um problema trazido
pela disputa do Campeonato Nacional: as grandes partidas que sua
equipe predileta tem de disputar em outros campos, em outros
Estados, priva-o, às vezes, durante quase um mês, de ver seus ídolos e
do convívio quente e próximo que só encontra nas arquibancadas de
futebol. Como encontrar uma solução? Sua imaginação começou logo
a funcionar. E não foi difícil achar a solução. Ao contrário, além de
fácil, ela foi até agradável. Basta juntar os amigos, formar o seu grupo,
alugar um ônibus e sair por aí, levando toda a sua paixão, para
explodir por esse Brasil afora. Se um ônibus não bastava, alugava-se
outro, ou quantos fossem necessários. No fim, estava formada a
caravana, fenômeno relativamente novo no Brasil, que vem se
acentuando a cada ano de disputa do Campeonato Nacional. É só
pegar as bandeiras, os tambores e tamborins, e partir cantando e
curtindo a viagem, sonhando com as emoções que o esperam no
campo distante. Sem esquecer, é lógico, da garrafa de batida. E a
torcida do Botafogo.
Um pouco de história – Quando se fala em caravana, o torcedor do
Botafogo se lembra logo, com orgulho, da maior delas já formada até
agora no Rio, embora ela lhe traga também recordações amargas. Foi
por ocasião do jogo contra o Atlético Mineiro, em Belo Horizonte,
pela Taça Brasil, realizado no dia primeiro de novembro de 1967. O
Botafogo havia vencido a primeira partida no Rio, dia 12 de outubro
(3 a 2), com um ‘olé’ comandado por Gérson, que com suas
declarações provocou muita revolta à torcida mineira, que prometera
forra em Belo Horizonte. Mas a torcida do Botafogo, comandada por
Tarzã – ainda não havia as atuais facções – não se intimidou com as
ameaças e passou a se preparar para ir apoiar o time no Mineirão, já
que bastava o empate para assegurar a classificação. Na véspera do
jogo, 38 ônibus lotados e embandeirados de torcedores alvinegros,
com toda espécie de instrumento musical e muita esperança de uma
vitória. Mas a vitória não veio e, o que foi pior, os mineiros
cumpriram a promessa. Belo Horizonte viveu, naquela noite, um
verdadeiro clima de guerra: um ônibus foi incendiado e alguns
torcedores cariocas foram parar em hospitais. A vitória foi triste, mas
a idéia, lançada pela primeira e maior de todas as caravanas já
formadas, estava formada. E a partir de então se expandiu e está
disseminada por esse imenso Brasil, pois para quem ama um clube, a
distância não é obstáculo. É verdade que hoje não há jogo, em
qualquer parte, em que não se veja na porta do estádio um ônibus pelo
menos conduzindo torcedores do clube visitante. Apesar da triste
experiência a torcida do Botafogo tomou novamente a iniciativa e foi
a primeira a levar seu grito, suas bandeiras, seus instrumentos e sua
paixão para bem longe do eixo central do país (Rio – Belo Horizonte –
São Paulo). Ela foi a Porto Alegre, ver de perto a primeira partida do
Botafogo pela Taça de Prata de 1969, contra o Internacional lá no
Beira-Rio, partindo com três dias de antecedência. O jogo foi no dia 7
de setembro e na noite do dia 4m, três ônibus saíam da porta do clube,
numa longa viagem que durou 32 horas enfrentando o frio e a chuva
do sul. Mas tudo foi vencido em busca da alegria de estar perto de seu
time.
Preparativos – A história de uma caravana começa bem antes. Muitas
vezes quando as tabelas são divulgadas o torcedor começa a se
movimentar para não ficar muito afastado de seu clube. Antes de
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entrar no ônibus, há muita coisa a ser feita. O primeiro passo é
divulgar a caravana pelos jornais, rádios e pela televisão, e para isso
são escolhidos um ou dois componentes da torcida. Diariamente, eles
se dirigem aos repórteres que cobrem o clube, vão às redações, às
estações, com o maior entusiasmo, pois para eles essa é uma missão
sagrada. Feito isso, eles permanecem o dia inteiro nos postos de
venda, procuram os dirigentes em busca de todo o tipo de ajuda,
inclusive financeira, o que não é difícil de obter. Paralelamente, os
líderes de diversas alas se reúnem, marcam um ponto comum para a
saída, esquecendo suas diferenças e unidos em torno do mesmo ideal:
o clube para o qual torcem. É bem verdade que até a hora da saída,
cada líder disputa com o outro o privilégio de ser o que mais ônibus
lotou. Mas isso faz parte somente do que denominam ‘disputa
interna’, já que contra as outras torcidas, todas se unem. Com os
pedidos de reserva de passagens, já se pode então fazer uma previsão
de quantos estão dispostos a integrar a caravana. É aí que os líderes se
reúnem, vão a uma empresa e alugam os ônibus necessários, sem
jamais se esquecerem de deixar pelos menos mais um de reserva, já
que na hora do embarque chegam os que deixam tudo para a última
hora. E a pior coisa é deixar um torcedor, geralmente com a bandeira
do time, frustrado por não poder viajar. Em pé não se pode viajar, já
que as empresas não permitem. Chega a hora de polir os instrumentos,
verificar os arreios, recolher as bandeiras, que a viagem já está
marcada. Começa, então, toda uma nova emoção, que só quem vive
sua intensidade pode sentir. E eu senti quando, comprando por Cr$
47,00 uma passagem reservei um lugar num dos ônibus da Torcida
Unifogo – a ala mais recente – e continuei acompanhando o trabalho
de seu líder na formação da caravana. O destino, São Paulo, para o
jogo com o Corinthians.
A Saída – Muito antes da hora marcada para a saída – meia-noite de
sábado, dia 6 de outubro, em frente ao portão principal do Mário Filho
(o da estátua do Belini), muitos torcedores do Botafogo, com seus
bumbos e bandeiras, já estavam lá em sua febril atividade. Nem
davam a maior importância para os torcedores do Fluminense que
chegavam para ver seu time jogar com o Esporte de Recife. Às 23
horas chegaram os ônibus alugados pela ‘Unifogo’ e pela ‘Força
Fogo’ que se uniram também para a viagem, enquanto os ônibus da
Torcida Jovem e da Organizada estavam em frente ao Portão 18.
Manuel, líder da ‘Unifogo’, e Jorge Mau Mau, da ‘Força Fogo’,
colocavam as bandeiras e instrumentos nos ônibus, distribuíam os
lugares, que embora previamente marcados, sempre acabavam
servindo para discussões, já que sempre há um que quer ir ao lado do
outro. Mas no fim, depois de muito bate-boca, de muita agitação, tudo
se ajeita, todos estão em seus lugares, aguardando ansiosamente a hora
de sair. Até mesmo um garoto que, por não encontrar lugar em mais
nenhum ônibus, conseguiu se esconder no vão que separa um banco
do outro. Ficou ali, todo encolhido, com a cabeça entre as pernas de
um outro rapaz que o encobria com um casaco, para que o motorista,
atento a qualquer tentativa de um excesso na lotação, não pudesse vê-
lo. Apesar do incômodo, do enorme calor, ele não reclamou e
aguardou paciente e ansiosamente a partida. Finalmente, com um
pequeno atraso, os seis outros ônibus se juntaram ao nosso, com todos
cantando o hino do Botafogo, ‘Cidade Maravilhosa’ e agitando suas
bandeiras fora das janelas. O meu companheiro de banco era um
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rapaz, estudante de Direito (3. ano), inteligente e educado, de nome
Luís Cláudio.
Na Estrada – Dos 37 que estavam no ônibus (uma mais que a lotação
normal), a maioria era de jovens, com uma média de idade em torno
de 20 anos. Também haviam alguns com mais idade, duas garotas,
duas senhoras acompanhando seus maridos, uma delas totalmente
integrada no ambiente, mal se importando com alguns excessos de
manifestações. A outra, mostrava-se completamente desconcertada
com um ou outro palavrão que escapou e acabou criando um caso.
Aos poucos todos já se conheciam. As garrafas de batida, conhaque e
cachaça começavam a rolar de boca em boca, os sambas enredos eram
cantados, piadas, enfim, a alegria era geral. Mas de vez em quando o
samba era interrompido, dando lugar ao grito de guerra: Fogo! Fogo!
Fogo! Atrás, no último banco, ia Flávio, um ‘veterano’ em caravanas,
fanático e conhecido torcedor do Botafogo. Como ele mesmo diz, nas
horas vagas é um advogado. Ele não para um instante de incentivar o
grupo, de se manifestar, de criticar alguma coisa – geralmente alguma
figura conhecida, quando não o técnico Paraguaio: Paraguaio não
entende nada de futebol. Ele já perdeu vários títulos. Ele é quem
escala o Ferreti. Ferreti, queremos Ferreti – gritava. Mas o samba
voltava e abafava sua voz, enquanto ‘Vaquinha’, um rapaz gordo
escorregava no corredor e reclamava por não ter lugar para sentar, ao
que outro respondeu: ‘Não tem porque você não para. Mas pode ir
sentando no meu colo (o que provocou uma risada geral e um
empurrão de outro fazendo com que Vaquinha de fato se sentasse no
colo de quem gritou).
Drama – Em Itatiaia foi a primeira parada. Giovani, um rapaz que
aparentava uns 35 anos, viveu um verdadeiro drama, causado pela
presença de sua esposa, que estava totalmente fora de si, nervosa,
querendo retornar a todo custo. Chegou a ameaçar pegar um ônibus
que se dirigia de São Paulo a Juiz de Fora. Giovani, meio sem jeito,
explicava no balcão do bar, os motivos do nervosismo de sua mulher:
Ela ficou desconfiada de que eu pudesse vir com outra mulher.
Tentei convencê-la a não vir mas foi em vão. Ela fez pé firme e tive de
trazê-la. Como não está acostumada com os palavrões, com a bagunça
e o barulho tão comum nas caravanas, descontrolou-se. Por isso eu
peço a vocês que maneirem um pouco, que evitassem as pornografias.
Jorge Mau Mau, mostrando que era líder, concordou em pedir um
pouco de compreensão ao pessoal. O balanço da parada no bar de
Itatiaia era impressionante: uma incrível variedade de doces, frutas,
garrafas de bebidas, chocolates, biscoitos, enfim tudo que se vende
nesses locais era exibido como troféus, ou como dizia Flávio,
souvenirs. Logicamente ninguém comprou ficha no caixa para obtê-
los.
São Paulo – O dia já clareava quando se avistou a cinzenta São Paulo.
Um pálido sol tentava vencer a barreira de nuvens e fumaça, mas seus
raios chegavam timidamente, quase desapercebidos. Na entrada da
cidade, mais uma breve parada, a fim de esperar os demais ônibus.
Assim, a caravana entraria unida. Todos desceram dos ônibus,
empunharam as bandeiras, pegaram os tambores e tamborins,
iniciaram o samba, cantado a uma só voz e despertaram logo a
curiosidade nos paulistas que passavam. Se torcedores do Corinthians,
faziam sinal com o polegar para baixo; se torcedores do Palmeiras ou
do São Paulo, apontavam para cima, em sinal de apoio e incentivo.
Finalmente os ônibus se encontraram e partiram rumo ao centro de
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São Paulo, direto ao Pacaembu. Eram 9 horas da manhã quando
chegaram ao estádio, onde torcedores do Corinthians já se
movimentavam, em busca de estacionamento, um dos maiores
problemas para quem quer assistir a um jogo lá.
Passeata – Os motoristas não aceitaram a idéia de levarem os
torcedores pelas ruas de São Paulo, até o Hotel Normandie, na
Avenida Ipiranga, onde a delegação do Botafogo estava hospedada. O
motivo era mais que justo: cansaço. Mas o pessoal não desanimou e
saiu mesmo a pé, dirigindo-se para o local, como se fosse o desfile de
uma escola de samba. E, durante o percurso – não era tão longe assim
– muitos paulistas não resistiram ao ritmo e à alegria da charanga e
engrossaram a passeata. Ao chegarem ao hotel, despertaram os
jogadores com a batucada (apenas Galdino estava acordado, no hall).
Estava feito o contato com seus ídolos, que chegaram à janela, sendo
saudados pela ‘massa’, que gritava o nome de cada um. Galdino
chegou à calçada e não se conteve: Acho muito bacana a torcida vir
até nós, nos acompanhar. Mas será que eles não podiam ir fazer esse
barulho, a essa hora da manhã, em frente à concentração do
Corinthians? Afinal quem deve ser perturbado é o inimigo.
No Estádio – Aquele que parecia um número bem grande de
torcedores, tal a sua agitação e a sua algazarra, tornou-se pequeno
demais, nas arquibancadas do Pacaembu, ante a imensidão da torcida
do Corinthians. Mas não se intimidou em momento algum, apesar do
cerco. Quem viu todos eles gastarem a voz e a energia durante a
viagem e durante toda a manhã, pelas ruas de São Paulo, custava
acreditar que ainda tivessem pulmão suficiente para enfrentar uma
torcida como a do Corinthians e gritar por seu Botafogo. Mas eles
tinham reservas e não pararam um instante de incentivar o time, nem
mesmo quando Roberto fez o gol paulista, faltando apenas 11 minutos
para o jogo terminar. E a prova de que não estavam ‘mortos’ deram no
momento em que Ferreti, no último minuto, empatou: aquela pequena
torcida foi ouvida em todo o estádio com seus gritos: Fogo, Fogo,
Ferreti, Ferreti. Num verdadeiro carnaval, ao ritmo do samba da
Portela, saíram do estádio, numa alegria que contrastava com a tristeza
e a frieza da torcida paulista. E aquele polegar para baixo, recebido na
chegada, agora era explicado: uma chuva de pedras foi lançada pelos
componentes da chamada ‘Gaviões da Fiel’, ao samba e à alegria bem
carioca dos torcedores do Botafogo. Mas evidente que houve a
resposta.
A volta – Até a saída de São Paulo eles gritaram, cantaram,
demonstravam sua alegria pelo resultado do time (o empate foi mesmo
uma vitória, nas circunstâncias em que foi disputada a partida).
Cantavam outra vez o hino do Botafogo, a ‘Cidade Maravilhosa’. Mas
foi só o ônibus atingir a estrada, para que todos se deixassem
finalmente dobrar pelo sono e pelo cansaço. O silêncio desejado pela
mulher de Giovani, que revolveu voltar de ônibus de carreira, resolveu
se impor. Um silêncio que permanecerá somente até a próxima
caravana para ir torcer pelo Botafogo em outro campo do Brasil,
enfrentar outra guerra, conhecer (para muitos) novas cidades, novos
times, novas torcidas. E levar por esse imenso país afora o grito
apaixonado da torcida que mais cresce no Brasil, a do Botafogo,
demonstrando aos seus inimigos que o Botafogo não é uma ilusão,
mas uma gostosa realidade, bem carioca, bem brasileira.”
216
.
216
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1973, Caderno Segundo Tempo, p. 04 e 05.
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A evidente simpatia do relato do jornalista às cenas descritas não impede
a observação de uma série de pequenas transgressões nas caravanas que se
somavam à ambiência de descontração e brincadeira imperante, seja o garoto
que se escondia para viajar em um ônibus lotado, seja a crise nervosa da moça
que tomara parte na excursão desavisada dos palavrões, seja o orgulho dos
tripulantes com o surrupio dos lanches na beira de estrada. À medida que a
narrativa se desenrola, o jornalista mais e mais se aproxima daquele universo
juvenil de devoção e hedonismo clubista. Como Altair Baffa, o encerramento
da matéria continha uma moral da história, “Um grande exemplo”, sem dúvida
edificante, conforme obserava Benjamin entre os narradores tradicionais. O
saldo era, no fim das contas, positivo. Aquele ambiente de alegria, que só
terminava no retorno da viagem em plena alta-estrada, após horas ininterruptas
de farra e animação, era melhor representado de acordo com Genheim pela
síntese que a torcida do Botafogo lograva fazer entre duas “paixões nacionais”:
a música e o futebol.
Talvez por esse grau de camaradagem saído da pena do cronista, cinco
dias depois da reportagem um dirigente da Unifogo escrevia em felicitação ao
repórter:
“Apoio às caravanas: “A Torcida Unifogo quer, através do Bate-Bola,
agradecer ao repórter do Jornal dos Sports, José Antônio Genheim,
que focalizou as caravanas das torcidas (em especial a do Botafogo),
tornando pública uma coisa sensacional, que pouca gente conhece em
seus detalhes. Como ele mesmo disse em sua reportagem, não há
distância que uma caravana não supere. Não há doença ou qualquer
outra coisa que impeça um torcedor de levar o seu incentivo ao seu
clube do coração. Todos os adeptos da Torcida Unifogo ficaram
sensibilizados com a reportagem feita pelo José Antônio, e ainda pelo
fato de ele ter escolhido a Unifogo para viajar e colher material.
Queremos agradecer mais uma vez ao Genheim e ao Jornal dos Sports
por nos ter enviado um repórter de sensibilidade e, principalmente, por
ter sido o primeiro jornal a publicar as peripécias (são muitas e
incríveis) de uma caravana de torcidas em suas viagens aos outros
Estados (Fernando Eduardo Mesquita – Diretor da Torcida
Unifogo).”
217
.
217
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1973, p. 02.
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489
A saudação do torcedor não passaria despercebida pelo jornal e seria
respondida por membros da redação:
“Fernando Eduardo, sua carta nos enche de alegria porque sentimos,
através dela, que nosso objetivo foi inteiramente alcançado e
entendido pelos torcedores. É por isso que vamos superando as
dificuldades do dia a dia para oferecer sempre um jornal que seja do
inteiro agrado dos leitores. O Zé Antônio também agradece e promete
outras ‘bombas’ para o futuro.”
218
.
A coluna assim não tinha por efeito apenas a provocação da discórdia e
do dissídio inter-torcidas, mas a comunhão e o diálogo entre torcedores e
jornalistas. Se muitas reclamações eram feitas e se muitas brigas eram
registradas, a ida a outros estados ocasionava boas experiências de torcida a
torcida, simpatia que se estendia à população da região como um todo. As
promessas de retribuição eram imediatas e mesmo ressentimentos passados
poderiam ser esquecidos após a retratação dos rivais:
“Agradecimento”: “A torcida Força Jovem do Vasco tem o prazer de
agradecer ao simpático povo curitibano e em particular à torcida do
Coritiba – MUC – pela maneira simpática e carinhosa como recebeu
os integrantes da caravana da ‘Forja’, uma verdadeira lição de
desportividade e hospitalidade. Daqui, só podemos dizer aos colegas
de Curitiba que não vamos esquecer o carinho de vocês e apenas
aguardaremos a oportunidade para retribuirmos. O mesmo aconteceu
em BH, na quarta-feira, quando a Torcida Jovem do Cruzeiro apagou
toda aquela mancha deixada por uma minoria irresponsável, na última
vez em que estivemos em Belo Horizonte. (Torcida Força Jovem,
Rio)”
219
.
Alguns leitores da seção de cartas poderiam ainda inspirar-se nas
reportagens especiais dos jornalistas do periódico, como Baffa e Genheim, para
descrever à sua maneira os pormenores da experiência de uma caravana, o que
ocorreu também em função da ampliação do raio de distâncias das próprias
viagens. No final da década em 1978 e 1979 em especial – o Campeonato
Nacional atingiu números nunca d’antes vistos, com quase uma centena de
equipes disputando o torneio. Isto era decorrência de inúmeros interesses
políticos por parte da confederação de desportos, cujas razões não cabe aqui
218
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1973, p. 02.
219
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1975, p. 02
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490
tratar. Para além do eixo futebolístico mais tradicional, inúmeros clubes de
regiões distantes e sem tradição em âmbito nacional foram incorporados à
competição. Por via de conseqüência, as viagens mais prolongadas se
impuseram aos torcedores e passaram muitas vezes a ser encaradas como
excursões turísticas, uma vez que obrigavam os torcedores a ficar alguns dias
na cidade e não apenas assistir ao jogo e ir embora.
Quanto maior a viagem, maior a sua narrativa, maior a proporção tomada
pelas cartas. Isto fazia com que os editores dividissem-na eventualmente em
duas partes, uma em cada dia, a fim de caber nos limites da coluna e de dar
espaço para todos. O ‘relações públicas’ da Torcida Organizada do Vasco
narraria uma viagem ao extremo sul do Brasil, que se estenderia por dois jogos
consecutivos, em dois estados diferentes da federação. Se no ano anterior
tinham ido à região central do Brasil – “Goiânia: a TOV te ama” – e também à
região sul, na cidade de Londrina, Paraná, desta vez era a cidade de Caxias do
Sul que os vascaínos tinham prazer de visitar:
“TOV Tour I”: “Vou procurar descrever o que foi a ida da TOV a São
Paulo e Caxias do Sul acompanhando o Vasco. Saindo de São
Januário no sábado com destino a São Paulo, começou aí mais uma
das viagens da TOV. Sobre São Paulo nós não tivemos muito o que
falar, pois chegamos lá às 9:00hs de domingo e tivemos pouco tempo
para passear, fomos almoçar e voltamos para preparar nosso material e
entrar no estádio onde fomos bem recebidos pelos Gaviões da Fiel e
demais facções da Torcida do Corinthians. A Torcida do Vasco
merece o apoio que recebe do Clube, porque caiu uma chuva
torrencial em São Paulo antes do jogo e nenhum Vascaíno arredou pé
das arquibancadas, ficando ali gritando o nome do Vasco até o final do
jogo que infelizmente não pudemos vencer, não por culpa do time e
sim por culpa do juiz que nos prejudicou durante o jogo, anulando 2
gols legalíssimos do Vasco. Foi isso que aconteceu em São Paulo e
agora vou tratar o que foi o maravilhoso passeio a Caxias do Sul onde
a TOV se fez presente em dois ônibus. Saímos direto de São Paulo
para Caxias do Sul viajando mais de 19hs. Chegamos a Caxias do Sul
na Segunda-Feira às 18:00hs e ficamos hospedados no Hotel Senador.
Após o banho todos descemos e fomos conhecer a linda Cidade de
Caxias, passeamos e voltamos para o hotel para jantarmos e assistir
TV no salão do hotel enquanto outros componentes jogavam cartas.
Terça-Feira após o café da manhã fomos bem recebidos pelo
funcionário do Estádio Centenário e tiramos fotografias do estádio.
Voltamos e após o almoço fomos visitar uma fazenda onde nós vimos
desde cedo a uva cair da parreira e se transformar em vinho; à noite
fomos procurados no hotel pelo chefe da TOSCA (Torcida Organizada
Ser Caxias) que foi cordialíssimo conosco convidando-nos para que
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no dia seguinte voltássemos ao estádio para visitarmos a sala da
TOSCA e assim foi feito no dia seguinte, voltamos ao estádio.”
220
*
“TOV Tour II”: “Onde ele nos ofereceu várias flâmulas e adesivos do
Caxias e mostrou o lugar mais adequado para nós ficarmos, inclusive
colocando bambus para a colocação de nossa faixa. Depois o chefe da
TOSCA nos levou ao melhor restaurante de Caxias onde saboreamos
o melhor churrasco do Sul. Saímos do hotel às 14h e fomos visitar o
Castelo Chateau Lacave onde se fabrica um dos melhores vinhos do
Brasil, todos bebemos a valer o gostoso vinho Chateau, de lá seguimos
pro estádio onde tudo já estava preparado para a nossa chegada, foi
tudo facilitado pela torcida local, nos deram autorização para
colocarmos os dois ônibus dentro do estádio e que seis componentes
entrassem com o material e arrumassem tudo dentro do estádio, tudo
isso foi feito antes dos portões serem abertos. Agora vou falar o que
nos tocou todos no fundo do coração. Antes do início do jogo a
charanga da TOSCA foi no seio da TOV e deu uma demonstração de
sua bateria que de repente parou e sua banda começou a tocar o hino
do Rio de Janeiro, Cidade Maravilhosa, foi realmente uma coisa
emocionante que deixou todos os vascaínos sem saber o que fazer para
agradecer este povo de Caxias que foi de uma gentileza fora do
comum com o povo Carioca. Sobre o jogo o Vasco demonstrou mais
uma vez que é um time forte, demonstrando um excelente futebol que
culminou com a goleada de 5 a 1 sobre o time local. Com esta vitória
as 25 horas de volta ao Rio foram suaves e quase não sentimos. Bem,
foi isto de mais importante que eu tinha que falar sobre a ida da
família TOV a São Paulo e a Caxias do Sul. A TOV está com o Vasco
e não abre. A TOV é fiel ao Vasco e a TOV é TOUR (Paulo de Castro
– Relações Públicas).”
221
.
No final da década de 1970 e início de 1980, o panorama não parecia à
primeira vista mudar na seção de cartas do Jornal dos Sports. De um lado, havia
missivas que acentuavam os bons tratos: “Obrigado, Macaca”, referência à
recepção da torcida da Ponte Preta aos vascaínos em Campinas
222
;
“Cordialidade”
223
, considerações do presidente da Unifogo à bela recepção
cruzeirense; além de cartas como “Prudência e aventura”
224
. De outro, o inverso
do civismo, como a carta “Animais irracionais”, sobre os incidentes desenrolados
na ida do Flamengo ao interior de São Paulo para um jogo contra o XV de
Piracicaba
225
; “Violência policial”, desta feita com a abordagem da truculência da
220
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1978, p. 02.
221
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 24 de fevereiro de 1978, p. 02.
222
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de dezembro de 1977, p. 02
223
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1978, p. 02.
224
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de março de 1978, p. 02
225
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 26 de maio de 1978, p. 02.
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polícia contra torcedores na viagem a Campinas
226
; “Venham que a gente
garante”, na qual os gremistas prometiam proteção aos vascaínos para o jogo
contra o Internacional no Rio Grande do Sul
227
. A tônica principal da coluna Bate-
Bola era ainda a utilização de seu espaço como local de anúncio, de divulgação e
de convocação para o jogo.
A recém-fundada Raça Rubro-Negra falava de “invasão” a Volta Redonda
na carta Raça locomotiva; em Garra Rubro-Negra, a Torcida Jovem do Flamengo
mencionava a “caravana-monstro” rumo a São Paulo; já a TOV tomava agora o
rumo do Nordeste em sua excursão, para um jogo contra o Bahia. A busca pela
cooptação de mais adeptos fazia os líderes das torcidas concorrerem entre si na
coluna, com o recurso à criatividade na convocação. Em linguagem descontraída,
o presidente da Young-Flu convocava os tricolores para o interior do Estado do
Rio:
“No caminho do Bi”: “Alô, moçada, a Young vai lá, por que não
fazes o mesmo, mostrando que és tricolor e quem fica em casa é
caracol. Vamos lá, malandro, sabes onde ? A Campos, é claro. Vamos
invadir Campos e provar que amamos de fato o nosso querido Flusão.
As passagens já se encontram à venda em nossa banca de jornais da
av. Presidente Vargas com Rio Branco ou no Fluminense com o Zezé.
O preço ? Rá, rá, vale a pena desembolsar esta grana e se amarrar
numa linda gatinha, passear, ver o Flusão a caminho do Bi e gastar
apenas 1.100,00, garanto que você não se arrependerá. A saída, é bom
você anotar para não cair do galho e perder esta grande oportunidade.
A caravana do bi sairá às 24 horas de sábado da porta do Edifício
Central, com regresso logo após a nossa grande vitória. Vamos lá,
galera. A hora é esta e quem viver verá. (Armando Giesta).”
228
.
O ano de 1980 assinalaria pelo menos três episódios significativos que
apontariam para algumas transformações e reestruturações nas viagens na
década seguinte: o redimensionamento da sua escala; a reordenação da lógica
das alianças entre torcidas de diferentes estados; e a intensificação da
hostilidade. Curioso é que isso não se deveria apenas à iniciativa das torcidas,
mas também às ações dos dirigentes esportivos.
Em abril daquele ano o presidente do Flamengo, Márcio Braga, declara
ao Jornal dos Sports apoio à equipe do Corinthians nos jogos no Rio de
226
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de fevereiro de 1981, p. 02.
227
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1980, p. 02.
228
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1981, p. 02
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Janeiro, graças entre outros fatos à sua amizade com o presidente corintiano
Vicente Matheus. Isto é consolidado no mês seguinte, quando Márcio Braga
anuncia a “Fla-Fiel” para o jogo da rodada dupla entre Flamengo versus Bangu
e Vasco versus Corinthians, quando ambos os presidentes vão juntos às
arquibancadas e selam o pacto: “Uma vez Flamengo, sempre Corinthians. Uma
vez Corinthians, sempre Flamengo”
229
. Tratava-se em verdade de uma
estratégia de Márcio Braga a fim de ofuscar a atenção da imprensa quanto ao
regresso do ídolo cruzmaltino Roberto Dinamite, que passara uma temporada
no Barcelona. Com isso, num domingo chuvoso, o Maracanã era dividido
novamente quase ao meio pelas torcidas, dentre os mais de cem mil cariocas e
paulistas que presenciaram a partida, como ocorrera na invasão corintiana de
1976, quando se verificou a adesão espontânea ao Corinthians dos torcedores
do Flamengo. A vitória acachapante do Vasco foi o destaque da partida, mas a
amizade entre as torcidas do Flamengo e do Corinthians se solidificaria a partir
daí.
Se no final da década de 1960 os rubro-negros tinham boas relações com
os santistas – vide a amizade entre Tia Helena e Jorge Luís, respectivos líderes
das Torcidas Jovens de cada clube , e se no início da década de 1970 a torcida
do Flamengo nutria relações de simpatia com a do Palmeiras, desde 1976 o
quadro foi modificado. O argumento da solidariedade entre as “massas” ganhou
força, com a retórica da aliança entre clubes populares como Flamengo e
Corinthians. Ato-contínuo, em abril de 1980, uma carta no Bate-Bola começava
a abordar os contatos iniciais entre a torcida do Vasco e a do Palmeiras. A
excursão da TOV a São Paulo para um jogo contra o Corinthians teria a
recepção de Arnaldo, presidente da TUP (Torcida Uniformizada do
Palmeiras)
230
. Em contrapartida à retórica das “massas”, pode-se evocar o
argumento da união de torcidas de clubes formados por imigrantes, lusitanos e
italianos. A aliança se estreitaria em 1983, quando surge a torcida organizada
Mancha Verde.
De parte da torcida do Flamengo e do Corinthians, a aproximação era
maior entre duas torcidas organizadas: a Torcida Jovem do Flamengo e os
Gaviões da Fiel. A amizade começara em 1978, quando o novo presidente da
229
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 05 de maio de 1980, p. 05.
230
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 11 de abril de 1980, p. 02.
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Torcida Jovem, João Carlos da Silva, que substituíra a veterana Tia Helena,
afastada dos estádios, passa a ressaltar a aliança com os Gaviões, sendo
recepcionado com churrascos em São Paulo, na sede da torcida. Desde então,
os jogos em São Paulo e no Rio não deixariam de permitir o contato entre elas,
de modo que num jogo do Corinthians contra o Bangu no Maracanã em 1982,
os jornais referiam-se às bandeiras do Flamengo que tremulavam junto às dos
corintianos. Os gritos de “Mengô” e “Timão” sobressaíam até mesmo frente à
sonoridade da pequena charanga banguense, contratada pelo patrono do clube,
Castor de Andrade, que voltava ao clube depois de presidi-lo na década de
1960. A aliança se prolongaria até 1988, quando um desentendimento entre as
novas lideranças leva a Torcida Jovem do Flamengo à aliança com a Torcida
Independente do São Paulo.
Outra correlação de forças que se alteraria naquele ano de 1980 dizia
respeito ao eixo Rio-Belo Horizonte. Tudo faz crer que o fim da amizade entre
as torcidas do Flamengo e do Atlético torcidas do “povo”, que se
relacionavam desde pelo menos 1969 se deva à partida decisiva disputada em
maio/junho de 1980 pelo Campeonato Brasileiro. Se em janeiro de 1978 ainda
se verificavam cartas na coluna da seção Bate-Bola onde se pontuavam as
relações entre a charanga atleticana comandada por Júlio e Tia Helena, chefe da
Torcida Jovem, o afastamento desta torcedora pode ter comprometido as
simpatias mútuas entre as novas gerações. Sabe-se também que o contexto das
partidas finais tenderia a acirrar os ânimos e a potencializar o confronto inter-
torcidas, o que ocorreu primeiro no Mineirão e depois no Maracanã.
No jogo de ida, um clima de terror foi descrito, com torcedores nos
hospitais e nas prisões de Belo Horizonte, inclusive o presidente da Torcida
Jovem, João Carlos. Segundo os torcedores do Flamengo, os atleticanos
apedrejaram os ônibus, enquanto os policiais mineiros jogaram os cavalos em
cima dos torcedores do Flamengo. No jogo de volta, não seria difícil presumir o
cenário. Mesmo o esquema de segurança montado pelo Tenente Siqueira,
responsável pelo policiamento e pela proteção à torcida do Atlético, não se
mostrou eficaz, com inúmeros distúrbios verificados antes, durante e depois da
dramática partida vencida pelo Flamengo por 3 a 2. De maneira sintomática, já
no ano seguinte, em março de 1981, os correspondentes rubro-negros
escreviam ao Jornal dos Sports com agradecimentos à recepção amistosa e
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civilizada dos cruzeirenses no Mineirão, em cartas tal como “Flamengo e
Cruzeiro unidos”
231
. A iniciativa da hospitalidade era citada nominalmente,
com menções especiais a Adaílton, da Raça Azul; a Jorge, da Torcida Jovem
Cruz Belo; e a Loy, da Força Atuante Celeste
232
.
As vitórias nas finais disputadas pelo Flamengo durante a década de
1980 seriam marcadas por extensas caravanas, cuja alegria pelo título não
afastaria entretanto o relato dos incidentes e das brigas. Em 1982, o Flamengo
venceu o Guarani nas semifinais e naquela oportunidade somente a Raça
Rubro-Negra levou mil e duzentos integrantes a Campinas, conforme
informava o jornal que cobria a concentração do grupo na Praça Mauá. Nas
finais, os sucessivos jogos com o Grêmio no estádio Olímpico, em uma
“melhor de três” partidas, com a terceira vencida pelo Flamengo, em jogo
marcado pela dramaticidade, forçou a caravana de torcedores do Flamengo a
ficar cerca de uma semana na cidade de Porto Alegre. O fato gerou inúmeros
transtornos na cidade, haja vista a falta de dinheiro de muitos integrantes,
incidentes que chegaram a ser alvo de reportagens televisivas.
Em 1983, o Flamengo se sagraria tricampeão brasileiro contra o Santos.
Para a partida de ida, no Morumbi, as torcidas organizadas levaram mais de
150 ônibus, com o registro de inúmeros confrontos dentro do estádio. O JS
relatava que, das arquibancadas, morteiros eram atirados pelos torcedores do
Santos contra o setor da torcida do Flamengo, reforçada com o apoio dos
corintianos. Por fim, a emocionante vitória de 3 a 2 obtida contra o Atlético
Mineiro no Mineirão, na semifinal do Campeonato Brasileiro de 1987,
registraria igualmente intensos distúrbios dentro e fora do estádio, numa
narrativa jornalística impressionante, a computar inúmeros feridos. Em
decorrência das pedradas arremessadas pela torcida do Atlético, os torcedores
do Flamengo, cada vez mais imprensados e desesperados, tentavam pular das
arquibancadas para as cadeiras especiais do Mineirão. Segundo denunciava o
jornal carioca, as pedradas lançadas da torcida do Atlético tinham a
complacência da polícia mineira
233
.
231
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 08 de março de 1981, p. 02.
232
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 01 de março de 1981, p. 02.
233
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1987, p. 02.
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As caravanas assim começavam a ser cada vez mais conhecidas pelo
signo da periculosidade, com a intensificação e a sistematização das brigas. O
seu crescimento fazia com que qualquer indivíduo tomasse parte dela, mesmo
sem a filiação à torcida organizada. O crescimento do clima de medo, mais e
mais imperante, teria um desfecho trágico numa excursão no ano de 1981. Em
uma grande caravana para uma partida decisiva no Morumbi, promovida pelas
torcidas organizadas do Botafogo, em um total de 50 ônibus, quatro assaltantes
disfarçados de torcedores embarcaram para a capital paulista com a caravana da
TOB, no ônibus de número 5. Na altura de Japeri, um daqueles homens
anunciou um assalto. O torcedor de nome José Rodrigues da Costa, conhecido
pelo apelido de Xexéu, tentou reagir ao assalto e levou um tiro, morrendo
pouco depois, enquanto os assaltantes conseguiram fugir do ônibus e escapar da
perseguição
234
. A morte trágica teria repercussão nacional, sendo reportado não
apenas pelo Jornal dos Sports como também pela revista esportiva Placar.
Se os incidentes nas caravanas se agravavam, a obtenção dos títulos
nacionais pelo Flamengo possibilitou à sua torcida a elevação da escala das
viagens a um âmbito internacional. A classificação à Taça Libertadores da
América pôs em confronto o Flamengo com os clubes vizinhos sul-americanos
e a necessidade de acompanhá-los nos jogos tornou-se um novo desafio às
torcidas. No mês de agosto de 1981, durante a primeira fase classificatória, não
foram verificadas viagens organizadas por torcidas para jogos contra equipes de
países como o Paraguai, em uma chave com o Atlético Mineiro, o Cerro
Portenho e o Olímpia, este último campeão da Taça em 1979. Na fase
subseqüente, em jogos disputados na Bolívia, também não se registraram
caravanas organizadas, o que somente veio a ocorrer nas partidas decisivas no
Chile, quando o clube disputou o segundo jogo contra o Cobreloa. A vitória do
Flamengo no Maracanã foi sucedida pela derrota no norte do Chile, resultando
uma terceira partida, poucos dias depois, em campo neutro, em Montevidéu.
Sem dinheiro, cerca de metade da caravana que excursionou ao Chile voltou
para o Rio de Janeiro, enquanto os demais prosseguiram a viagem à capital
uruguaia. Do Rio, porém, um vôo da Varig anunciava a ida de sessenta
torcedores ao Uruguai.
234
Cf. ibid. Rio de Janeiro, 27 de abril de 1981, p. 12.
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Em novembro de 1981, um total de quinhentos rubro-negros
compareceria ao estádio nacional do Uruguai e assistiria à conquista inédita de
um torneio internacional por seu clube. Alguns inveterados torcedores ainda
teriam dinheiro e tempo para o périplo mais demorado, com destino ao Japão
no mês seguinte, quando o time sagrou-se campeão intercontinental de clubes
em Tóquio, ao bater o Liverpool por 3 a 0. À medida que esses títulos foram
alcançados, os diversos jornais da cidade passavam a se interessar na cobertura
dos sacrifícios de que eram capazes esses torcedores nas longas jornadas.
Mesmo um grande jornal de circulação da cidade, O Globo, no mês de outubro
de 1981, faria uma reportagem com três integrantes da Raça Rubro-Negra que
percorreriam as terras da Bolívia durante a disputa da Taça Libertadores da
América. A matéria “Após cinco dias de uma viagem fantástica, uma faixa
estendida na raça” é emblemática de uma narrativa extraordinária que acentua
as agruras e as situações pitorescas:
“A idéia nasceu no Paraguai, quando o Flamengo esteve em
Assunção para enfrentar o Olímpia e o Cerro Porteño. Empolgados
com a iniciativa pioneira (acompanhar o clube, mesmo fora do
Brasil, em caravanas) Cláudio César, César Lúcio e Francisco
Moraes, todos da Raça Rubro-Negra, decidiram que, a partir
daquela data, assistiriam aos jogos do Flamengo em qualquer lugar.
Promessa feita, promessa cumprida. Após cinco dias de uma
viagem fantástica – vieram por terra, de ônibus, na boléia de
caminhões de açúcar e, em vários lugares, até de balsa – os três
chegaram segunda-feira passada a Cochabamba mais mortos do que
vivos, mas nem por isso menos animados. ‘– Foi duro, muito duro,
mas valeu a pena. Não nos arrependemos nem um pouco e só
esperamos agora como recompensa por isso uma vitória do
Flamengo’. Camisa rubro-negra no peito, sorriso de satisfação a
cada encontro com os jogadores, Cláudio (24 anos, funcionário
público), seu irmão César (26 anos, bancário) e Francisco (26 anos,
funcionário da Embrafilme), contavam ontem à tarde no hall do
Hotel Cochabamba, onde se hospedou a delegação do Flamengo, as
muitas peripécias da viagem: ‘ Viajamos na quarta-feira da
semana passada, tão logo terminou o jogo Flamengo e Olaria.
Saímos do Maracanã direto para a rodoviária. Dela para São Paulo
– onde chegamos no dia seguinte às 7 da manhã. E daí para Campo
Grande, no Mato Grosso do Sul, onde desembarcamos às 22 horas
para pernoitar de quinta para sexta na casa de um amigo.’. Aí, na
realidade, começava a aventura. De campo grande os três seguiram
para Corumbá, em um ônibus ‘de condições precárias’ e ‘pelo meio
do pantanal’: ‘ Que loucura, meu irmão. Era crocodilo, cobra, o
diabo, passando ao lado, a menos de um metro. E os mosquitos?
Ah, os mosquitos, pareciam até passarinhos de tão grandes. Cada
picada era uma autêntica era uma autêntica sugada de vampiro. Que
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horror!’. Neste trecho, a viagem teve que ser feita também por
balsa. E, arrepiados, Cláudio, César e Francisco chegaram a sentir o
sangue gelar nas veias quando um enorme pássaro, todo vermelho e
preto, cantou no ar e se lançou contra a balsa. ‘ Pensamos que ele
viria sobre nós. Mas, para alívio geral, mergulhou na água metros
adiante e depois levantou, gritando, com uma enorme cobra presa
nas garras. Um espetáculo incrível, destes que só se vê naquele
programa da TV, Mundo Animal’. Passado o susto, sobrou a
alegria: ‘ Acho até que não nos atacou por causa de nossas
camisas vermelho e preto. Acredito que ele também era Flamengo.’
Depois de um pernoite no hotel (‘hotel?’, riem os três) Santa Maria,
um novo susto. Já estavam em Kijaro, na Bolívia quando César se
deu conta de que esquecera a bolsa em um táxi, ainda em Corumbá.
Quase um dia inteiro perdido no retorno, mas felizmente, o
motorista – boliviano – foi encontrado e a bolsa – com dinheiro,
documentos e tudo mais – devolvida. Novamente em Kijaro,
reiniciava a maratona. E que maratona: ‘ Pegamos um trem de
fazer inveja aos antigos da Central. Oh, coisinha terrível. Um cheiro
insuportável, bancos de madeira e uma multidão a se espremer nos
vagões. Isso sem falar nas batidas policiais a cada departamento,
que é a divisão territorial deles. Um pesadelo mesmo.’. Pesadelo
que durou 18 horas, nas quais, como diversão, só o som fraco e
oscilante de um radinho de pilha: ‘ Nem para comer dava, pois o
cheiro, o ambiente e a própria comida eram de lascar. O jeito foi
ouvir, com enorme dificuldade, o jogo do Flamengo com o
Madureira (Jorge Curi, locutor da Rádio Globo) ia e vinha, sumia
às vezes por vários minutos, mas, de vez em quando, conseguíamos
ou vir quanto estava a partida. E comemoramos aos gritos, a vitória
e a goleada sobre o Madureira.’. Chegando a Santa Cruz de la
Sierra no incrível trem, Cláudio, César e Francisco partiram para a
etapa final da viagem. Uma etapa também inesquecível: ‘ Não
havia outro jeito: para chegar a tempo de assistir ao jogo, só
pegando Cochabamba. E carona paga. Cem pesos (cerca de Cr$
400) por cabeça. E tome de sacolejão, fome e, principalmente, frio.
Chegamos a estar a 3.600 metros de altitude. Passamos por dentro
de uma nuvem de chuva durante uns vinte minutos. Não havia
agasalho que desse jeito’. Vinte e quatro horas a bordo do caminhão
açucareiro e, finalmente, a chegada. Sem glória, sem grandes
festejos, mas também sem arrependimentos: ‘ Gastamos, os três
juntos, cerca de Cr$ 80 mil. Mas o que compensou não foi a
economia, mas a aventura e a paixão pelo Flamengo. Valeu muito,
por exemplo, passar no meio do mato boliviano, parar em uma
casinha para pedir água e ouvir o filhinho do camponês perguntar:
Zico? Vocês são do time do Zico?’. ‘ Isso não tem preço. Essa
paixão vale qualquer sacrifício – comentava Cláudio. Como
reconhecimento, além do afeto dos jogadores, Cláudio, César e
Francisco receberam, do dirigente Paulo Dantas, cadeiras para
assistir ao jogo de ontem. E uma promessa que só hoje pela manhã
se saberá se poderá ser cumprida: ‘ Nos disseram que talvez
‘pintem’ umas passagens no vôo de volta. Seria excelente, pois já
estamos meio cansados. Se não der, porém, tudo bem. Botamos as
mochilas nas costas e voltamos exatamente por onde viemos.
Dizendo para todo mundo que o Flamengo é o maior. E que se ele
for à final do Mundial, em Tóquio, ainda não sabemos como, mas
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daremos um jeito de chegar até lá para estender a faixa da Raça
Rubro-Negra.”
235
Como se depreende da leitura, a reportagem fora feita por um repórter
que conhecera os três torcedores no saguão do hotel no qual estava hospedada a
delegação do Flamengo na Bolívia. Visivelmente encantado com a história e
com a fidelidade dos torcedores, o jornalista publicou a matéria dando destaque
para as situações anedóticas. Elas frisavam a ultrapassagem de uma série de
adversidades por parte dos líderes da Raça em seus sacrifícios quase
incompreensíveis para assistir à partida do Flamengo. A narrativa ressaltava a
distância, o exotismo do mundo selvagem do interior do Brasil e a precariedade
das condições de viagem para se chegar à fronteira com a Bolívia. Vale dizer
que um dos três viajantes, Francisco Moraes, cumpriria a promessa final
mencionada no artigo e levaria a faixa da Raça para Tóquio. No ano seguinte,
em 1982, aquela saga dos três torcedores do Flamengo inspiraria o jornalista
Carlos Eduardo Novaes a escrever o livro Mengo: uma Odisséia no Oriente. O
livro era uma ficção em tom humorado, com ilustrações caricatas de Vilmar
Rodrigues, e apareceria publicado originalmente no Jornal do Brasil, em
formato de folhetim, escrito em dez capítulos
236
.
A reportagem acima, que descreve a viagem dos torcedores como um
conjunto de provas e superações por que têm de passar os aficionados de
futebol, permite o encerramento dessa seção com algumas reflexões sobre as
caravanas aqui enfocadas. Se já sugerimos uma certa proximidade da narrativa
jornalística de Baffa e de Genheim com a idéia do narrador tradicional em
Benjamin o viajante aventureiro que conta suas impressões de terras distantes
, essa última reportagem transcrita de O Globo nos remete a uma outra
possibilidade de aproximação com a teoria literária. Embora em outro contexto
e em outro nível de abordagem discursiva, Mikhail Bakhtin trata da tipologia
romanesca de grandes escritores do Bildungsroman europeu, com a
circunscrição de quatro tipos principais: o romance de viagens, o romance de
235
Cf. O GLOBO. Rio de Janeiro, 14 de julho de 1981.
236
Cf. NOVAES, C. E. Mengo: uma Odisséia no Oriente. Ilustrações de Vilmar Rodrigues. Rio
de Janeiro: Nórdica, 1982.
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provas, o romance biográfico e o romance de aprendizagem
237
. No ensaio “Por
uma tipologia histórica do Romance”, publicado no livro Estética da criação
verbal, o autor associa os dois primeiros tipos ao herói cujo telos – meta – só é
cumprido com a superação das etapas correspondentes à sua trama. O mesmo
também havia assinalado por Jeanne Marie Gagnebin, no tocante à narrativa da
Odisséia e à transposição de inúmeras provas e tentações por Ulisses no
transcurso da viagem de retorno a Ítaca.
Com Simmel, sabe-se que a aventura é “a liberação de qualquer ponto
definido no espaço”
238
, o descolamento da vida ordinária e o desregramento do
tempo cotidiano, a submissão do homem ao teste de seus próprios limites em
situações excepcionais e extremas. Com Bakhtin, sabe-se que toda viagem
compreende uma cronotopia, ou seja, a articulação de um espaço a um tempo
na conformação da experiência subjetiva. De forma diluída, rasteira e
estereotipada, o repórter de O Globo assimilava alguns traços das grandes
narrativas de viagem com a descrição de toda sorte de limitações enfrentadas
pelos viajantes em sua peregrinação a um país da América do Sul, superando
obstáculos físicos e naturais. A bricolagem pode ser estendida às ‘micro-
narrativas’ dos torcedores, existentes nas cartas publicadas no JS. Elas
acentuavam de modo recorrente a renúncia e o sacrifício, marcas das
peregrinações cristãs. Outra dinâmica que se pode apreender dos deslocamentos
por eles relatados é a oposição entre hostis e hospis, entre hostilidade e
hospitalidade. O reconhecimento da alteridade nas viagens dependia dos
julgamentos prévios de valor e da alternância entre o movimento de
aproximação e de distanciamento frente à outra torcida.
Tal dualidade levou muitos estudiosos europeus à identificação de uma
síndrome de Beduíno a aliança regida pela lógica do amigo e do inimigo ,
com base na classificação fornecida pelo jornalista inglês Paul Harrison em
meados da década de 1970, no artigo Soccer’s Tribal Wars.
Para escapar a essa definição primitivista, pode-se lançar mão da
antinomia amigo-inimigo verificada entre os Estados nacionais modernos, tal
como propôs o jurista alemão Carl Schmitt em 1932, no seu livro O conceito do
237
Cf. FREITAG, B. O indivíduo em formação: diálogos interdisciplinares sobre educação. São
Paulo: Cortez, 1994, p. 68.
238
Cf. MORAES FILHO, E. de (Org.). Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 182.
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político. Em obra que ficaria no ostracismo durante algumas décadas em função
da vinculação direta do autor com o nazismo, o livro seria revisto pela geração
estudantil de maio de 68 na Europa e vem recebendo nova atenção nas últimas
décadas no pensamento político contemporâneo, à direita e à esquerda, entre
conservadores e marxistas
239
. Sem essencialismos, a esfera da política para
Schimtt designa o campo geral das intensidades de luta que resultam das
associações e das dissociações entre grupos humanos. Se o inimigo não pode
ser definido a priori, a inimizade política é aquela que se refere ao momento no
qual existe uma possibilidade concreta de enfretamento com um oponente,
pensada pelo autor no campo das relações internacionais. Uma das
características principais desse confronto é o fato de ele ser público e direto. O
inimigo não é o inimicus privado, particular, mas aquele identificado como
hostis de maneira clara por todos. Em princípio difusa na sociedade, a política é
o ponto de cristalização em que o conflito assume uma condição explícita,
ampla e geral
240
.
A publicidade das cartas veiculadas pelo Jornal dos Sports tornou
perceptível a forma pela qual se estabeleciam amizades e inimizades entre
torcedores cariocas na visita a estados vizinhos. Se de início o caráter amistoso
no relacionamento com uma torcida de outro território era configurado por
processos de entendimentos situados na esfera pessoal, muitas vezes por parte
das lideranças de torcida, as amizades e as inimizades saíam do terreno
particular, de pessoa a pessoa, e adquiriam uma abrangência mais genérica, de
torcida a torcida, à medida que as relações se intensificavam. Conforme sugeriu
o pensamento schmittiano, não há uma natureza intrínseca e universal à
política, porquanto ela só se concretiza na vivência entre grupos humanos que
se reconhecem em algum grau como distintos. Da mesma maneira, como
pudemos acompanhar nas partidas decisivas nos campeonatos nacionais das
décadas de 1960, 1970 e 1980, foram esses momentos limítrofes que
confrontaram as torcidas de cada time e as tornaram mais antagônicas, a ponto
239
Cf. BORON, Atílio A.; GONZÁLEZ, Sabrina. “Resgatar o inimigo ? Carl Schmitt e os debates
contemporâneos da Teoria do Estado e da Democracia”. In: BORON, Atílio A. (Org.). Filosofia
política contemporânea: controvérsias sobre civilização, império e cidadania. Buenos Aires/
CLACSO; São Paulo/USP, 2006.
240
Cf. FERREIRA, B. “Teoria amigo-inimigo”. In: TEIXEIRA DA SILVA, F. C; MEDEIROS,
S. E.; VIANNA, A. M. (Orgs.). Dicionário crítico do pensamento da direita: idéias,
instituições, personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ; Mauad, 2000, p. 434.
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de conformar-se uma oposição pública entre as mesmas. Nessas ocasiões, a
tendência a receber de maneira hostil as torcidas adversárias se potencializou e
acabou por inviabilizar algum de tipo de aliança ou alguma experiência mínima
de cordialidade, como recomendava o discurso esportivo oficial.
O alargamento sucessivo da escala das viagens do âmbito local ao
nacional e, deste, ao internacional permite ainda uma breve consideração
sobre a questão da identidade entre as torcidas e a delimitação de suas
fronteiras. Esse ponto nos leva à obra do antropólogo norueguês Fredrik Barth:
Ethnic groups and boundaries (1969)
241
. Ao defender o caráter dinâmico da
etnicidade, o autor mostra como as identidades coletivas se operam através da
interação de um conjunto de grupos sociais, que se incluem e se excluem entre
si. A identificação dos limites entre um “nós” e um “eles”, entre um “eu” e um
“outro”, que hoje pode parecer evidente para muitos, um bêabá das primeiras
lições de antropologia cultural, ganhou naquele estudo clássico a sua conotação
precursora, definida como algo não essencial nem estático. Assim, os processos
de distinção entre os grupos não são estanques nem imutáveis na conformação
dos “traços culturais diferenciadores”. Mais do que reproduzida em nível
interno e circunscrita a uma unidade lingüística e cultural, a identidade é
produzida sempre em relação com um “outro” bem específico, ainda que este
seja, conforme estudou Edward Said, um genérico e lato Oriente.
O peso no significado dos valores atribuídos a cada grupo está sempre
sujeito às mudanças do processo histórico. Essa condição mutável, flutuante,
das fronteiras entre os grupos pode ser percebida também entre os torcedores
no acompanhamento das cartas e das narrativas de viagem. A dinamicidade das
alianças se deve a diversos fatores em jogo na conformação de uma diferença e
de uma identidade. Alguns dos critérios expostos pelas torcidas foram aqui
aludidos, embora outros, aquém dos discursos publicados nos jornais, poderiam
ser também captados, caso fossem consultadas outras fontes. Com base em
nosso escopo de observação, procurou-se salientar como, à ampliação de cada
escala, novas interações se dão, com a constituição de inéditas combinações
entre torcidas que antes pouco se conheciam ou que, por algum fator
aparentemente idiossincrático, antipatizavam entre si. Uma abordagem
241
Cf. POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1998.
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diacrônica possibilitou ainda a constatação de que as relações nada têm de
perenes e podem ser modificadas no decorrer do tempo. Contextos e
circunstâncias específicas vivenciadas pelos clubes ou pelas torcidas favorecem
a aproximação de grupos em detrimento de outros, de modo que as amizades e
as inimizades são alteradas em um fluxo contínuo, ininterrupto, ao sabor dos
interesses particulares das sucessivas gerações. As lideranças emergentes
representam uma possibilidade concreta de distintas configurações, com a
alternância entre continuidade e ruptura nas alianças já estabelecidas, o que
evidencia o traço sempre provisório, instável, semovente, das coligações e dos
parentescos inter-torcidas.
3.3 A lira e o bumbo
(Canto coletivo, cultura de massa e paródia)
O profissionalismo é um fenômeno até certo ponto recente na história do
futebol, expressão da dinâmica das relações fetichistas e monetaristas do
capitalismo moderno. Em suas imagens mais arquetípicas, porém, o futebol
costuma ser remontado pelos especialistas esportivos à atmosfera da Grécia
antiga. Ao bel-prazer da erudição e das associações livres, os cronistas
elegeram ao longo do século XX uma série de elementos míticos e ritualísticos
do mundo greco-romano para caracterizar a função dos esportes na sociedade
contemporânea. Além da catharsis na tragédia grega e o seu paralelo com as
sensações provocadas por um gol tensão seguida de uma descarga coletiva de
energia humana que gera alívio e prazer , o imaginário futebolístico aponta
para outros rituais da mitologia, em especial os referentes ao culto a Dionísio.
A obra do jovem Nietzsche foi em parte responsável pela valorização das festas
dionisíacas na tradição ocidental, forma de celebração por meio do canto e da
dança das forças instintivas originárias anteriores ao aprisionamento racional-
idealista do homem platônico. Sob o signo da embriaguez, esse ente divino
vindo da Trácia infunde alegria, orgia e êxtase por onde passa até encontrar
equivalente em Roma na figura de Baco. Ambos protagonizam festins noturnos
consagrados ao vinho, “bebida úmida e aveludada”
242
, cujos efeitos são os
242
Cf. MEUNIER, M. Nova mitologia clássica: a legenda dourada. Rio de Janeiro: IBRASA,
1976, p. 105.
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excessos típicos de um culto orgiástico que compreende “cantos âmbicos” de
zombaria e escárnio, de crueldade e promiscuidade
243
.
O caráter festivo dos rituais de sacrifício do mundo antigo apresenta a
sua contrapartida violenta, ambivalência constitutiva da maioria dos mitos
gregos. O tema recebeu, décadas atrás, a atenção do antropólogo francês René
Girard no livro A violência e o sagrado (1972). Este autor parte de uma crítica
à perspectiva da psicossociologia contemporânea, que reduz a ação ritual à
imagem do “relaxamento das tensões” nas religiões primitivas, uma maneira de
expiar a culpa interior da coletividade através de um pharmakós (veneno e
remédio a uma vítima sacrificial) e de reencontrar o equilíbrio social. Fórmula
a seu ver vazia, alheia ao cerne do rito original, Girard opta por uma
interpretação do “jogo da violência” presente nas festas e nas encenações das
crises sacrificiais descritas por Sófocles em Édipo Rei e por Eurípides em As
Bacantes. Se as festas báquicas constituem a supressão geral das diferenças
hierárquicas, momento especial do desacato à autoridade e às diversas formas
de obediência familiar e social, o autor observa que elas são apenas o estágio
preparatório inicial para os paroxismos do sacrifício. Nele, delírio e dor, vida e
martírio, festa e guerra vêm conjugados em um mesmo espaço de exaltações.
Nesse momento, o desaparecimento das diferenças, ou a exposição de sua
arbitrariedade, se manifesta através de uma tripla indiferenciação: entre homens
e mulheres, entre homens e animais, entre homens e deuses.
A despeito dos reparos de um antropólogo mais atento e acurado, é
forçoso restringir-nos aqui à imagem usual de Dionísio tal como assimilada por
uma determinada vertente do campo jornalístico. No final da década de 1940, a
obra magna do jornalismo esportivo, O negro no futebol brasileiro, de Mário
Filho, apresentava uma definição do estilo nacional de jogo com base em um
contraponto entre Apolo e Dionísio. O primeiro era encarnado na forma
racional de jogar de um atleta como Domingos da Guia, zagueiro “álgido”,
esguio e autocontrolado, que desarmava o adversário na grande área e conduzia
a bola na defesa com a cabeça e a postura eretas, à maneira solar de Apolo. O
segundo era representado por um jogador como Leônidas da Silva, irracional e
explosivo, primitivo e surpreendente, capaz de inventar o ‘gol de bicicleta’,
243
Cf. ROSENFELD, A. “O futebol no Brasil”. In: Revista Argumento. São Paulo: Paz e Terra,
1974, n.º 4, p. .
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entre outros floreios acrobáticos que aproximavam o jogo de futebol à dança de
Dioniso. Esse duo caracterizador do estilo nacional, que também poderia ser
relacionado ao binômio literário ‘clássicos versus românticos’ ou ainda à
taxonomia aristotélica ‘sangüíneo versus colérico’ , fora estabelecido por
Mário Filho em sua leitura de Gilberto Freyre. Este, por sua vez, ao prefaciar a
obra de 1947, colhera a divisão em Nietzsche, o que tornava compreensível o
emprego daquele termo de comparação oriundo da mitologia antiga.
Sem entrar no mérito das imprecisões conceituais e do caráter de livre
apropriação de Gilberto Freyre, importa assinalar que o futebol assumiu com
rapidez essa dimensão festiva no discurso esportivo. Aos olhos dos cronistas, a
similitude do futebol com a dança e com a música deu esse contorno singular a
um produto civilizador importado da Inglaterra. Graças à herança rural e
colonial, o legado sincrético africano e indígena no Brasil permanecia vivo nas
manifestações urbanas contemporâneas, atenuando o peso disciplinador e
modernizador da pedagogia esportiva européia, com a sua reinvenção na esfera
da cultura popular. Ao dar um colorido especial à prática dos esportes em solo
tropical, a mestiçagem atuava como componente transfigurador capaz de
preservar o sentido lúdico-mágico em um ambiente de progressiva seriedade,
racionalização e utilitarismo. O profissionalismo continha assim uma faceta
intrigante, apenas a princípio paradoxal, uma vez que ele permitia a entrada das
classes populares no futebol, mas seu valor-trabalho era redimensionado. Estes
jogadores proletários de origem negra, mesmo tornados mercadorias,
imprimiram um cunho lúdico e genial ao jogo da bola, dispensando treino e
exercício metódico em função de uma tradição local e de uma ‘técnica
corporal’ que remontava à malandragem presente no samba, na capoeira e no
carnaval.
O caráter festivo-carnavalesco não advinha somente do discurso em
torno da criatividade e da genialidade dos jogadores mestiços. Sua atmosfera se
devia em grande parte à ambiência proporcionada pelas torcidas nos estádios,
outra promoção da imprensa esportiva na década de 1930. A carnavalização das
torcidas era promovida pelos jornalistas esportivos, porquanto ela contribuía
para a conversão do futebol em um espetáculo de massas, congruente com a
estrutura do carnaval, organizada também naqueles moldes. A introdução da
música nos estádios apresentava a mesma ambigüidade metafórica das forças
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libertadoras e controladoras da vida do homem em sociedade, associadas por
alguns cronistas a Dionísio e a Apolo. Por um lado, a música era introduzida
com vistas à liberação da energia psíquica dos torcedores, por intermédio da
drenagem das tensões compartilhadas no acompanhamento dos jogos; por
outro, a admissão das orquestras musicais tinha por finalidade regrar de algum
modo a conduta verbal dos fãs nos estádios, com a instituição de uma cadência
rítmica coletiva que abafava os gritos, os palavrões e os comentários
considerados inapropriados e deselegantes de alguns torcedores.
O futebol assistiu assim a um processo de transferência para as suas
arenas do tipo de institucionalização dos concursos de carnaval no Rio de
Janeiro, patrocinado pelos mesmos jornalistas e mediado por sambistas como
Paulo da Portela, conhecido como “Príncipe Negro”. Entre 1935 e 1951, a
Praça Onze se tornaria o primeiro reduto oficial dos desfiles, local onde as
classes subalternas costumavam celebrar o carnaval, sob o incentivo do prefeito
Pedro Ernesto e sob a chancela do Conselho de Turismo da cidade
244
. O
cronista Vargas Netto, presidente da Federação Metropolitana de Futebol e
braço-direito de Mário Filho no Jornal dos Sports, refletia sobre o assunto nos
primeiros anos de surgimento das charangas nos estádios:
“A Charanga”: “O carioca é o cidadão mais engraçado do Brasil,
quando quer ser engraçado, quando faz ironia, quando põe apelidos,
quando cria ditados, quando inventa slogans!... E esse cidadão, quer
viva no arranha-céu, na vila elegante, no palacete ou no barraco, quer
seja da praia ou do morro, entra no mesmo ritmo espiritual, no mesmo
clima de alma, quando escarnece ou se distrai! Dizem que o samba
nasce no morro, mas desce para a cidade, onde cresce e morre, onde se
faz notável ou insignificante, como parcela, porque o todo é a massa
musical, é o grande coro das desditas e das tristezas, das profundas
mágoas que os homens das favelas aprenderam a cantar, a chorar por
música... O carioca recebe, como indivíduo, dentro da grande alma
coletiva, o fluido nostálgico do morro, pela emanação musical dos
seus sambas. Três fatores são constantes no panorama geral das
predileções: o carnaval, o football e o samba. O carnaval já se
amalgamou com o samba de tal maneira que é difícil distingui-los.
Agora o samba foi levado para as torcidas de football. O football com
torcida de bloco e com o samba já é uma espécie de carnaval, que faria
corar qualquer súdito de Sua Majestade Britânica... É preciso
distinguir, no arranjo sonoro das charangas, a intenção real das suas
influências no setor esportivo. Pode ser um elemento de perturbação
sonoro das charangas no panorama do match, confundindo o apito do
juiz, servindo de ‘chave’ para o team da charanga, como aviso ou voz
244
Cf. SOUZA, T. de. (et al). Brasil musical. Rio de Janeiro: Art Bureau, 1988, p. 148.
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de comando. Isso só o juiz da partida poderá saber. Mas também
poderá ser, apenas, uma demonstração interessante da alma lírica do
povo.”
245
Ao tematizar a sonoridade das orquestras musicais como “perturbação
da ordem do jogo ou como reflexo da “alma lírica” do povo, esse cronista
tentava encontrar um ponto de convergência entre as forças de controle e as de
liberação necessárias ao equilíbrio da ambiência festiva do futebol. Em A alma
encantadora das ruas, o cronista João do Rio comentava sobre o carnaval
nestes termos: “A ordem na desordem ? – É um lema nacional.”
246
A ordem,
entretanto, seria pouco enfatizada pelos cronistas posteriores ao tratar desse
período de eliminação temporária das hierarquias, fazendo com que muitos
estudiosos celebrassem a entrada do carnaval na vida esportiva pela imagem
anárquica do puro desregramento da festa popular pagã. Enraizados na vida
coletiva brasileira desde pelo menos meados do século XIX, com os entrudos,
os maxixes e os corsos, os folguedos populares seriam marcados pela desordem
carnavalesca, embalada pelo estrondoso e enorme bumbo do zé-pereira, e só
iriam adquirir uma forma mais organizada com o aparecimento dos ranchos e
dos cordões, que por sua vez se inspiravam no modelo das procissões
religiosas. Este processo de legitimação e de enquadramento à ordem não se
faria sem a repressão policial ao batuque africano e, depois, a um instrumento
popular como o violão.
O rancho e seu formato de passeata estariam na raiz de gêneros musicais
urbanos que se bifurcariam no século XX em marcha e em samba. A primeira
apareceria com Ó abre alas (1899), da maestrina Chiquinha Gonzaga, e o
segundo com Pelo telefone, em letra com menção à repressão da polícia à
jogatina. Gravado pela primeira vez em 1916, este samba seria o início de uma
linhagem, decantada pelo pensamento nacional-popular, constituída por
Donga, João da Bahia, Sinhô, Heitor dos Prazeres, Assis Valente, Monsueto,
entre muitos outros, e antecederia a era das escolas de samba, de onde deriva
por sua vez a estirpe de Cartola, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Candeia,
Babaú da Mangueira e outros compositores de morro. Estes seriam igualmente
245
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1945.
246
Apud AUGRAS, M. “A ordem na desordem: a regulamentação do desfile das escolas de
samba e a exigência de motivos nacionais”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1993.
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admirados por jornalistas e intelectuais nacionalistas, detentores de uma
memória musical cujo fio condutor também poderia ser alinhavado na longa
listagem: Almirante, Jota Efegê, Lúcio Rangel, Eneida, Edgar de Alencar,
Tinhorão, Lena Frias, Sérgio Cabral, João Máximo, Zuza Homem de Melo,
Nelson Mota, Tárik de Souza, Nei Lopes, entre outros.
247
.
Assim, somente na década de 1930, por iniciativa de Mário Filho, cujo
ecumenismo inter-classista é ressaltado por Leite Lopes, as escolas de samba
tomariam a forma mais regrada dos desfiles carnavalescos, deixando a estrutura
informal de blocos, com vista grossa da polícia que discriminava a arraia-miúda
da sociedade carioca, e adquirindo um status mais elevado, como a própria
conotação pedagógica de ‘escola’ e de ‘academia’ do samba subentendia.
Formalizavam-se então concursos com pontuação baseada em critérios
estéticos, performáticos e esportivos, que estavam na origem do samba de
enredo – letra escrita com a imposição de um tema histórico-nacional. As
competições de originalidade de fantasia, de coordenação coreográfica e de
musicalidade apresentariam um cenário já mais delimitado e afeito aos padrões
de um espetáculo urbano produzido nas ruas para ser não apenas vivido como
visto. Nas palavras de José Ramos Tinhorão, os desfiles das escolas de samba
consistiam em uma espécie de “ópera-balé ambulante”
248
.
Se em 1936 Mário Filho tivera a idéia de lançar o Duelo de Torcidas no
estádio das Laranjeiras, passados quinze anos, em 1951, o Jornal dos Sports
renovaria a idéia, realizando um concurso no Maracanã em um Fla-Flu.
Segundo o mesmo cronista Vargas Netto, àquela altura, o futebol e o carnaval
já pareciam associados de maneira definitiva:
“Dez mil bandeiras drapejaram no setor do Fluminense! Flâmulas em
braços penduradas, faixas com frases alusivas à contenda, blusas,
lenços, distintivos, toda uma série de papéis e de tecidos, para todos os
lados agitados, faziam uma policromia em salões de noite de
carnaval.”
249
.
247
Em período recente, a linhagem de estudos universitários também vem sendo abordada. Cf.
NAVES, S. C.; COELHO, F. de O.; BACAL, T.; MEDEIROS, T. “Levantamento e comentários
críticos de estudos acadêmicos sobre música popular no Brasil”. In: BIB – Revista Brasileira de
Informações Bibliográficas em Ciências Sociais. São Paulo: EDUCS, 2001, n.º 51.
248
Cf. TINHORÃO, J. R. Pequena história da música popular. São Paulo: Círculo do Livro,
s.d., p. 173. A maioria das informações sobre as escolas de samba descritas a seguir foi colhida
nesse livro.
249
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1951, p. 05.
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O princípio ruidoso e policrômico do carnaval conteria ainda, para
muitos, características similares às festas dionisíacas ou mesmo às lupercais,
às antigas saturnálias e aos bacanais romanos , com o caos gerado pela
inversão dos papéis sociais, com a abolição de fronteiras hierárquicas e com a
total transgressão à ordem fixada no cotidiano. Isto faria nos anos 80 um
antropólogo como Roberto DaMatta, seguidor em parte do viés culturalista
freyreano, derivar parcialmente o futebol do carnaval, situando o primeiro em
uma zona de confluência híbrida entre o espetáculo erudito e a festa popular
tradicional. A praça pública esportiva estaria a meio caminho também da dança
e do teatro, sendo responsável por recriar um espaço de indistinção entre atores
e espectadores nos estádios. Tal grau de fusão carnavalesca os cultos a
Dionísio antecederam a divisão entre palco e platéia na tragédia grega , teve
como efeito dar um sentido ativo à idéia de torcida, com a imagem daquele que
não apenas assiste ao jogo, mas também participa dele de maneira envolvente e
calorosa
250
.
Em linha de abordagem análoga, Nicolau Sevcenko faria uma reflexão
sobre o papel da música na comunicação ritualizada primitiva. Na conferência
intitulada “No princípio era o ritmo: raízes xamânicas da narrativa”
251
, o
historiador sublinha a importância mnemônica dos cânticos coletivos na
história da humanidade. O autor investiga a função social da narrativa na pré-
história, centrando sua reflexão sobre a figura do xamã, em um estudo cuja
heterodoxia chegou a causar um certo incômodo ao historiador Francisco
Iglesias, em seus comentários críticos ao final da palestra
252
. Deve-se ressaltar
também o caráter pioneiro desta conferência, que antecedeu em alguns anos a
pesquisa do historiador italiano Carlo Ginzburg sobre o xamanismo e sobre as
práticas de feitiçaria na Europa pré-moderna, em seu livro História noturna.
Nicolau Sevcenko sustenta a idéia de que a comunicação pelo coro precedeu a
comunicação pela fala, de que a música é anterior à conversa, de que o rumor
da palavra nasce subordinado à dança, à cadência e ao ritmo. Canto e conto
confundem-se neste mesmo processo em que se irmanam mito, canção e
250
Cf. DAMATTA, R. “Antropologia do óbvio – notas em torno do significado social do futebol
brasileiro”. In: Revista USP. São Paulo: s.e., 1994. n. 22, p. 15.
251
Cf. SEVCENKO, N. “No princípio era o ritmo: origens xamânicas da narrativa”. In: RIEDEL,
D. C. (Org). Narrativa: ficção & história. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1988.
252
Cf. Ibid.
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510
narrativa. No desenvolvimento do seu argumento, o historiador procura pensar
em algumas características do xamanismo, como a excitação das emoções
coletivas e a produção dos estados de transe.
Ao situar as origens sombrias do canto na pré-história, algo não muito
distante do transe dionisíaco, deve-se acrescentar que a música seria
redimensionada a posteriori pela tradição órfica e platônica, quando se passa a
atribuir ao canto o poder de produzir luz e harmonia, tal como evidenciava a
escala e a linguagem matemática das notas musicais
253
. Mas, à medida que seu
interesse pontual se voltava aos cânticos gregários e percussivos, Sevcenko
frisava a possibilidade de estabelecer paralelos entre o xamanismo e as diversas
religiões de possessão ao longo da história.
Ao estender essa análise à cultura brasileira e à sua disseminação em
diversas esferas da religiosidade das classes populares, o autor reconhecia a
insuficiência de estudos, conquanto não seja-nos difícil lembrar as pesquisas
sobre dança dramática de um Mário de Andrade ou sobre música negra
religiosa de um Roger Bastide. Nesta linha de raciocínio, observa-se a sua
pertinência ao próprio futebol e aos grupos aqui enfocados. Embora situadas
comumente nos antípodas da cultura popular e do folclore, as torcidas têm no
ruído e no som um elemento primordial de articulação de sua comunidade.
Conforme assinala Nicolau Sevcenko, “a canção narrativa catalisa as energias
do grupo” e este ponto parece condizente com o fenômeno das torcidas de
futebol nos espetáculos esportivos modernos e contemporâneos. Embora
assimilando seu repertório da cultura de massas, as torcidas organizadas
operam com a mesma estrutura de funcionamento da cultura popular e adaptam
toda sorte de estribilhos e refrões parodísticos, de hinos e marchas de carnaval,
de jingles radiofônicos e pontos musicais os mais variados. Calcados na
oralidade, os torcedores apropriam-se do repertório que integra seu universo
cultural, em um sistema de adaptação e improviso. Assim, é possível notar de
que maneira as músicas massificadas nos estádios seguem também mecanismos
semelhantes de reprodução extraídos da música popular.
A relação entre música, religião e coesão social foi alvo de atenção de
uma obra clássica do pensamento sociológico, escrita por Émile Durkheim em
253
Cf. BOSI, A. (Org.). Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 2003, p. 122.
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1912: As formas elementares da vida religiosa. Ao marcar diferença frente aos
estudos de etnografia e história, que atribuíam um caráter falso e supersticioso
a diversas religiões primitivas, Durkheim buscou nestas um denominador
comum, uma célula mater da estrutura religiosa humana, subjacente a todos os
discursos sobre explicações sagradas, independente das suas colorações
específicas e do seu estágio de desenvolvimento particular. De maneira mais
nítida que as religiões das sociedades complexas, o sistema totêmico
australiano punha a nu o fundamental da religiosidade, apartando-se do
acessório, bem como do sistema interpretativo das origens mitológicas e
teológicas. Aferrado a seu método sociológico de investigação, que atribuía aos
fenômenos sociais o estatuto de coisas, Durkheim tratava as manifestações
religiosas como representações coletivas que reificavam uma realidade social
objetiva.
Nesse sentido, os ritos constituíam parte integrante dos cultos,
informando maneiras de agir no mundo e contribuindo para reforçar os estados
mentais de uma coletividade. Grosso modo, as cerimônias eram os meios pelos
quais os grupos se reafirmavam de tempos em tempos. Mais do que uma
integração cósmica, os rituais facultavam o estreitamento dos laços sociais
intramundanos. Embora à primeira vista apontasse para o transcendente, a
religião tratada por Durkheim não desconsiderava um importante aspecto: a sua
dimensão recreativa e estética. Esta era vivenciada porquanto a estrutura ritual
se aproximava das representações dramáticas, com a adoção dos mesmos
procedimentos e com o objetivo similar de fazer os homens se esquecerem
temporariamente do mundo real. Destituídos de fins utilitários, os ritos
representativos e as representações dramáticas abriam-se igualmente à
recreação, à distração e à compensação. Se as principais formas de arte e de
jogo descendiam da religião, então não estranha o paralelo feito pelo sociólogo
entre o caráter efervescente dos ritos comemorativos e a concepção mais geral
de festa:
“... a idéia mesma de uma cerimônia religiosa de certa importância
desperta naturalmente a idéia de festa. Inversamente, toda festa,
mesmo que puramente leiga por suas origens, tem certos traços de
cerimônia religiosa, pois sempre tem por efeito aproximar os
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indivíduos, pôr em movimento as massas e suscitar, assim, um estado
de efervescência, às vezes até de delírio, que não deixa de ter
parentesco com o estado religioso. O homem é transportado fora de si,
distraído de suas ocupações e preocupações ordinárias. Por isso,
observam-se em ambos os casos as mesmas manifestações: gritos,
cantos, música, movimentos violentos, danças, buscas estimulantes
que elevem o nível vital, etc. Foi assinalado com freqüência que as
festas populares levam aos excessos, fazem perder de vista o limite
que separa o lícito do ilícito; também há cerimônias religiosas que
determinam como que uma necessidade de violar as regras,
ordinariamente as mais respeitadas.”
254
Já a tradição carnavalesca, inscrita originalmente no calendário religioso
da Europa medieval, recebeu atenção mais aprofundada por parte da
historiografia no final da década de 1970, com a obra de Mikhail Bakhtin: A
cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Nela, a obra literária de
François Rabelais foi tratada sob um prisma distinto do cânone moderno, que
segundo Bakhtin não se atinha às especificidades histórico-culturais do autor. O
trabalho possibilitou ao estudioso russo penetrar nos meandros da formação da
cultura popular daquela época, opondo suas formas cômicas à solenidade da
cultura oficial da Igreja e do Estado, durante o período medievo-renascentista.
Com base na riqueza vocabular de um expoente literário da Renascença,
Bakhtin identificou a chave da cultura popular na comicidade, em oposição à
seriedade das cerimônias litúrgicas e religiosas. A revelação do avesso ritual da
ordem estabelecida, em contraposição àquilo que no cotidiano era vivido como
grave, solene e distanciado, punha em foco o que ocorria nas praças, nas feiras,
nas ruas e nas festividades públicas, dando a conhecer os mecanismos
concretos de vivência do folclore e da cultura popular. O riso, o lúdico, o
jocoso, o grotesco, o ridículo, o satírico, o escatológico e todos os aspectos
relacionados à irreverência típica do carnaval obedeciam aos ritos de inversão,
à transformação cíclica da estrutura social.
O estabelecimento de um regime de classes contribuiu para aguçar uma
dualidade do mundo entre a cultura popular e a cultura oficial, regida por
sentimentos e cosmovisões em tudo antagônicas, segundo Bakhtin, que no
entanto não deixava de ressaltar a circularidade cultural. Os festejos
carnavalescos tinham apenas parcialmente relação com o teatro popular
254
Cf. DURKHEIM, É. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico da
Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 417 e 418.
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medieval, uma vez que naquele carnaval não havia representação e, portanto,
não se conhecia separação entre atores e espectadores. Articulada aos “fins
supremos” da vida os ciclos de renovação e ressurreição da existência
humana , a festa da carne celebrava a abolição provisória das relações de
hierarquia e de privilégio vigentes no regime feudal, chegando a perdurar
naquele período durante três meses ao ano. A supressão temporária das
barreiras permitia também a criação de um local de integração e de
congraçamento na praça pública, o que favoreceu o desenvolvimento de um
tipo particular de comunicação, franco e aberto, sem as convenções e as
etiquetas do cotidiano, a colocar a paródia e a sátira no centro do universo
lingüístico carnavalesco. A liberdade da linguagem na praça pública ensejou
com isso o uso de expressões grosseiras e insultuosas, de palavrões e
obscenidades, enfim, de todo um “reservatório verbal” com inúmeros aspectos
proscritos pela comunicação oficial.
A predominância de imagens materiais no povo, com ênfase na bebida, na
comida, nas satisfações fisiológicas e na vida sexual, faz Bakhtin caracterizar o
universo de Rabelais como realismo grotesco. Seu traço característico seria o
rebaixamento cósmico e corporal, em uma topografia que se desloca de alto a
baixo, quer seja do céu a terra, quer seja do rosto aos órgãos genitais. Essa
degradação topográfica, da parte superior à parte inferior do cosmo e do corpo,
encerra uma ambivalência simbólica, pois possibilita de igual modo a imagem
de uma regeneração e de um recomeço do ciclo vital. Uma concepção do tempo
cíclico biológico na cultura popular é salientada, com as metáforas do princípio
e do fim, do antigo e do novo, do nascimento e da morte. Em contraposição ao
classicismo artístico renascentista, o realismo grotesco exalta a imperfeição do
corpo humano, seu inacabamento estético, constituindo-se na “quintessência da
incompletude”
255
. O corpo grotesco não é uno nem indiviso, transpõe suas
próprias fronteiras e comunica-se com o mundo por meio de seus orifícios e
protuberâncias. Nele se imiscuem, por conseguinte, as formas animais, vegetais
e humanas.
255
Cf. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo; Huicitec: Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993, p. 23.
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De acordo com Bakhtin, a plenitude de sentido da cultura popular
encontra-se diluída na época moderna. A situação começa a se modificar na
segunda metade do século XVII, quando ocorre uma “estatização” e uma
“formalização” da vida festiva. A visão de mundo cômica, seu caráter
regenerador, fragmenta-se em simples humor; o riso deixa de ser jocoso e
alegre para se transformar em ironia, sarcasmo e recreação. A cosmovisão
carnavalesca perde o horizonte utópico que o enviava à idade de ouro de
Saturno. A ousadia perante o ponto de vista dominante já não apresenta a
mesma capacidade contestatória e corrosiva. O corpo burguês se mostra
individualizado, com contornos precisos, sem relação com a heterogênea
corporeidade popular. As grosserias típicas do realismo grotesco dissolvem seu
caráter positivo e se conservam como sobrevivências apenas negativas. Eis que
vida e morte, dia e noite não se encontram mais integrados dialeticamente,
superpostos como outrora. A feiúra acede à beleza e o sublime relega o homem
rabelaisiano à categoria de horrendo, monstruoso e disforme.
Mesmo com a conservação de alguns traços burlescos e bufônicos na
literatura do Romantismo – vejam-se as observações de Goethe sobre o
carnaval romano em sua Viagem à Itália , vários aspectos da cultura popular
medieval e renascentista são nela desfigurados. A representação da loucura é
indicativa disso – vide também a sátira renascentista de Erasmo de Roterdã, O
elogio da loucura , pois o louco festivo subtrai sua condição de alegria e
inconseqüência para contrair um significado sombrio, obscuro, estranho. A
despeito das mutações da representação do grotesco no período romântico e
moderno, o riso popular é concebido nos seguintes termos universalistas por
Bakhtin:
“... a função do grotesco é liberar o homem das formas de necessidade
inumana em que se baseiam as idéias dominantes sobre o mundo. O
grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter relativo e
limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento
como algo sério, incondicional e peremptório. Mas historicamente as
idéias de necessidade são sempre relativas e versáteis. O riso e a visão
carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem a
seriedade unilateral e as pretensões de significação incondicional e
intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a imaginação
humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de
novas possibilidades. Daí que uma certa ‘carnavalização’ da
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consciência precede e prepara sempre as grandes transformações,
mesmo no domínio científico.”
256
.
Em face do que foi exposto, a questão a saber é a seguinte: até que ponto
o modelo das festas dionisíacas, da religião primitiva ou do carnaval medieval,
passadas em revista acima, pode ser utilizado para se pensar o comportamento
musical e lingüístico das torcidas de futebol ? Seriam essas conexões apenas
tours de force a que costumava recorrer um jornalista do naipe de Nelson
Rodrigues, carnavalizador por excelência da polifonia esportiva (a forma de
escrita sendo coetânea à forma de espetáculo
257
) ? Se não, em que medida o
futebol, como espetáculo de massas, pode ser lido na chave da fusão
carnavalesca que abole, ao menos de modo figurativo, atores e espectadores ?
Em que grau é possível identificar na fidelidade torcedora um ambiente de
efervescência nos estádios, à maneira da coesão religiosa descrita por
Durkheim? Em que medida a praça pública esportiva pode ser o lugar
privilegiado para exprimir a licenciosidade grotesca e a riqueza vocabular da
linguagem do povo, tal qual abordada por Bakhtin no contexto histórico
europeu ?
O reconhecimento de uma carnavalização do futebol não implica a
aceitação de uma imagem apenas anárquica, sem conseqüências ou
condicionamentos histórico-políticos. Embora o próprio Gilberto Freyre
ressaltasse o caráter institucional do futebol, que foi capaz de não enveredar
para o gansterismo, para a capoeiragem ou para a malandragem puramente
negativa, os cronistas e os estudiosos tributários do viés freyreano se mostraram
seduzidos pela visão dionisíaca desse esporte, para muitos profano, desordeiro,
vulgar. O desideratum jornalístico carnavalizar o futebol acabou por toldar
ou fazer esquecer a importância do lado apolíneo do jogo. O valor conferido à
organização da festa por Mário Filho, com o estabelecimento de critérios
explícitos na definição de uma competição sonora e coreográfica entre os
torcedores, foi decisivo na busca de tal equilíbrio. Assim como Bakhtin
identificava uma “formalização” e uma “estatização” do carnaval após o
256
Cf. ibid., p. 43.
257
Cf. LOPES, J. S. L.A vitória do futebol que incorporou a pelada”. In: Revista USP. São
Paulo: s.e., 1994, n.º 22, p. 82.
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Renascimento, as décadas de 1930 e 1940 no Brasil assinalam mudanças
estruturais na forma de celebração momesca. Isto vinha expresso não apenas na
espetacularidade dos desfiles, mas também nas transformações dos meios de
difusão tecnológicos que possibilitaram a propagação da música popular, com
advento do rádio na Era Vargas.
A elocução radiofônica de um Ary Barroso, cuja duplicidade de atuação
na música e no futebol parece categórica dessa intercessão, na qual o próprio
locutor se fundia à figura do torcedor, marcava essa época de inovação técnica
e de configuração de uma sociedade de massas. Foi no programa de rádio Trem
da Alegria que Lamartine Babo renovou a tradição do hinário clubístico, com a
popularização dos hinos nos estádios. Ainda que não perca de todo o tom épico,
os hinos populares carnavalizaram o caráter até então parnasiano, sublime e
marcial das letras compostas nos distintos saraus dos sócios dos clubes
esportivos de início do século. As estações de rádio dos anos 30 e 40 foram
também responsáveis pela organização das primeiras “torcidas” ou claques em
torno de cantoras. O crescimento dos admiradores das grandes intérpretes
musicais, transformadas com rapidez em estrelas nacionais, acabava por dividir
os auditórios em uma crescente rivalidade e idolatria, tal como sucedia nas
frenéticas platéias que assistiam às disputas entre Marlene e Emilinha, entre
Dalva de Oliveira e Ângela Maria, na Rádio Nacional, onde os programas eram
comandados por Almirante, estudioso de música popular. Os fãs-clubes das
“Rainhas do Rádio” seriam o vestíbulo de um movimento maior em torno da
MPB que despontaria nos anos 60, com o aparecimento de torcidas musicais
nos Festivais Internacionais da Canção, organizados pelas emissoras de
televisão.
Para a melhor compreensão da relação entre a indústria cultural e a
criatividade popular, convém recorrer a um pequeno porém percuciente ensaio
do professor José Miguel Wisnik: “Algumas questões de música e política no
Brasil”
258
. Sem decalcar o contexto político do texto musical, e vice-versa,
Wisnik aborda as sutis maneiras pelas quais se inscrevem o papel e o lugar
social da música na história brasileira. Ao lembrar que a harmonia musical foi
muitas vezes utilizada como metáfora da ordem e da engenharia social, o autor
258
Cf. WISNIK, J. M. “Algumas questões de música e política no Brasil”. In: BOSI, A. (Org.).
Cultura brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 2003.
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remete sua análise para além das letras e das composições, procurando
surpreender os sentidos políticos na métrica, no ritmo e na melodia das canções
nacionais. Tendo o Rio de Janeiro como epicentro para o qual convergem
várias manifestações musicais, ele mostra de que modo, na virada do século
XIX para o século XX, o contraste entre a música oficial e a música popular era
evidenciado por meio de clivagens melódicas e harmoniosas que atribuíam à
primeira o bom gosto e a elevação, e à segunda a degradação bárbara e ruidosa.
A metáfora do alto e do baixo, do som e do ruído, servia de base para uma
separação entre a música da elite e a música do povo, distância que parecia em
princípio incontornável.
A situação se modifica com a industrialização do som através do disco e
do rádio, no momento em que os processos de gravação e de reprodução
mecânicas convertem a música em mercadoria, levando a meditações
filosóficas niilistas de um Adorno sobre a reificação musical na modernidade.
Conquanto não abrande as contradições, a massificação da música introduz
uma série de cruzamentos entre essas fontes matriciais que possibilitam sínteses
antes impensáveis. As combinações entre a tradição e a vanguarda, o rural e o
urbano, o erudito e o popular, o nacional e o estrangeiro, entre outros pares
dicotômicos, estariam na base de movimentos culturais no Brasil da segunda
metade do século XX, como a Bossa-Nova e a Tropicália. Mas a sutileza da
análise não se restringe ao reconhecimento dessas intercessões inovadoras. A
pulsão sonora vem associada a uma rede de significações políticas, tais como
Wisnik verifica no cotejo dos permutáveis significantes musicais do Hino
Nacional e do samba Com que roupa ?, de Noel Rosa.
Se cada uma das músicas possuía uma configuração pulsional própria, a
primeira a marcar o ritmo cívico do hino, a segunda a marcar a síncopa
deslizante do samba, o autor mostrava como a alteração do acento melódico
teria efeito em ambas, alterando a sua totalidade de sentido. Deste modo, os
significados de uma e de outra poderiam ser intercambiados consoante a
acentuação rítmica que se lhes imprimisse. Como no ethos grego
259
, o caráter
da música sulcava uma qualidade mimética e uma potencialidade ética. Assim,
259
Cf. ARAÚJO, R. B. de. “O mundo como moinho: prudência e tragédia na obra de Paulinho da
Viola”. In: CAVALCANTI, B.; STARLING, H.; EISENBERG, J. (Orgs.). Decantando a
República: inventário histórico-político da canção popular moderna brasileira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira / Ed. Fundação Perseu Abramo / Faperj, 2004, vol. 1.
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ele era definido mais por sua melodia e por seu estilo do que por seu conteúdo,
de tal maneira que a composição de Noel Rosa poderia ser codificada como
cívica e o hino pátrio, como samba. As incongruências entre letra e música no
Brasil eram evidenciadas pelo autor no período do Estado Novo, sobretudo
quando se tratava de abordar as relações entre trabalho e malandragem. As
composições de Wilson Batista eram emblemáticas neste sentido, pois
mostravam de que modo a exaltação oficial do trabalho (“O bonde de São
Januário”) convivia com o elogio da figura do malandro na obra do mesmo
compositor, capaz de expressar a sinuosidade da malandragem tanto na letra
quanto no ritmo sincopado: “eu passo gingando/ provoco e desafio/eu tenho
orgulho em ser tão vadio”
260
.
À luz dos apontamentos de Wisnik, que se ampara nos domínios da
teoria musical em Platão e Aristóteles
261
, pretende-se aqui um
acompanhamento mínimo e uma tentativa de reflexão sobre o fenômeno
ruidoso e polifônico dos estádios. A atenção inicial vai para as torcidas de
futebol dos anos 40 e 50, sobre as quais se pode dizer que apresentam dos dois
estilos sonoros principais: o ethos épico e o pathos carnavalesco. Embora a
Charanga de Jaime de Carvalho, por exemplo, vá associar sua dimensão
simbólica a um instrumento apolíneo a lira , bordada como escudo na
camisa da torcida, posicionada acima mesmo do dístico do clube, sua tradição
musical descende da hínica dos esportes, da épica portanto, expressa no refrão
melódico composto em 1920 por Paulo Magalhães, bacharel e ex-atleta do
clube: “Flamengo, Flamengo/ tua glória é lutar/ Flamengo, Flamengo/ campeão
de terra e mar”, em letra pomposa que dizia ainda: “Lutemos com valor
infindo/ Ardentemente com denodo e fé/ Que seu futuro ainda será mais lindo/
Que o seu presente, que tão lindo é.”. Entoado com instrumentos de sopro, de
metal e de percussão, este estribilho, que enfatizaria a dimensão agonística, a
glorificação da luta e da conquista nas modalidades esportivas marítimas e
terrestres, seria repetido ritualisticamente pela torcida durante décadas na
260
Cf. VASCONCELLOS, G. F. SUZUKI JR., M. “A malandragem e a formação da música
popular brasileira”. In: FAUSTO, B. História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel,
1986, tomo 3, vol. 4.
261
Cf. WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
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entrada da equipe em campo, no transcorrer da partida e após a comemoração
do gol.
À exceção desse hino, pode-se dizer, no entanto, que são escassas as
fontes indicativas do repertório musical das charangas, como de resto o são
todas aquelas informações referentes à linguagem dos torcedores nos estádios.
A pouca importância creditada à cultura oral fez com que apenas umas raras
expressões da fala torcedora, passadas de geração a geração, fossem
incorporadas à tradição. Se a praça pública esportiva do século XX não teve o
seu Rabelais, teve ao menos alguns cronistas sensíveis e talentosos que aqui e
ali, de quando em vez, se dedicaram a registrar algumas dessas manifestações
lingüísticas e sonoras. Um Mário Filho no Rio de Janeiro e um Thomaz
Mazzoni em São Paulo são figuras consensuais da construção de uma memória
coletiva na identidade do futebol em cada um desses estados.
Enquanto o primeiro sublinhava a interjeição de apoio observada no
estádio do Fluminense no decênio de 1910, o estrangeirado hip-hip-hurrah!
262
,
o segundo narrava o surgimento do primeiro hino de guerra entre os torcedores
do Paulistano. O cronista ítalo-paulista referia-se ao ale-guá-guá, um
abrasileiramento onomatopaico do grito francês allez-gohack, que significava
“para frente, avante”. Pouco se sabe de que maneira a interjeição foi aclimatada
no Brasil, embora seu traço de paródia e de onomatopéia fique evidente. De
todo modo, segundo Mazzoni, o grito surgira entre os torcedores em um treino
do clube no Velódromo, onde então se realizavam as partidas. Naquela tarde,
conforme o cronista, chovia a cântaros e, após uma repentina estiagem, Olavo
de Barros e Renato, dois assistentes, desceram da arquibancada em direção à
linha divisória do campo e pronunciaram esse dizer que logo seria seguido
pelos demais espectadores lá presentes
263
.
Marco de fundação do “comportamento verbal” dos torcedores, para
utilizar a expressão de Luiz Henrique de Toledo
264
, esse brado é considerado o
estopim de um processo de comunicação coletiva direcionado das
arquibancadas para o campo de jogo, que subverteria o aplauso contido e as
262
Cf. RODRIGUES FILHO, M. O negro no futebol brasileiro. Prefácio de Gilberto Freyre.
Rio de Janeiro: Mauad, 2003, p. 59.
263
Cf. MAZZONI, T. História do futebol brasileiro (1894-1950). São Paulo: Editora Leia,
1950, p. 26.
264
Cf. TOLEDO, Luiz Henrique de. “Por que xingam os torcedores de futebol ?”. In: Cadernos
de Campo. São Paulo: s.e., 1993, n.º 3, p. 20.
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regras de etiqueta incorporadas pelas platéias artísticas, como observa Elias.
Sem um caráter ainda, por assim dizer, musical, a brevidade daquele uníssono
lancinante aponta para uma característica que se verificaria ao longo do tempo
entre os slogans e as palavras de ordem criadas, glosadas ou parodiadas nas
praças de esporte do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Esse traço rudimentar da fala torcedora nos endereça às variações pré-
literárias de que trata o teórico alemão André Jolles, em seu livro clássico de
1930: As formas simples
265
. Se a ciência da literatura até o começo do século
XX tinha se restrita quer a identificar os principais gêneros literários, o
romance e a epopéia, o drama e a comédia, a elegia e a ode, quer a estipular
uma galeria de grandes poetas, cuja idéia de genialidade se iniciara no
romantismo inglês e culminara no Sturm und Drang alemão, quer a abordar a
fenomenologia da Gestalt nas criações do espírito, pouca atenção havia sido
dada à morfologia de sistemas poéticos menores a legenda, a saga, o mito, a
advinha, o ditado, o caso, o memorável, o conto, o chiste , tidos como
subgêneros de somenos importância para a crítica científica. Ao situar sua
investigação aquém da estilística, da retórica e da poética tradicionais, Jolles se
debruça sobre os aspectos morfológicos provenientes de uma linguagem que
não se consolidou em formas literárias acabadas, anteriores portanto à
elaboração artística de um poeta erudito.
Se esse campo de estudos foi negligenciado pela crítica estético-literária,
o autor procura examinar esse terreno até então destinado pela tradição à
etnografia e ao folclore. Simples e breves, os ditados e as canções de gesta, as
máximas e os provérbios eram exemplos de gestos verbais cuja forma
fundamental o estudo da linguagem e da língua podia decompor.
A ênfase na idéia de gesto verbal pode ser aproximada, ainda que de
modo tangencial, do conceito de performance de Paul Zumthor, espécie de
evento comunicativo, notadamente o desempenho relacionado à poesia oral
européia, de origem medieval. Esta tradição literária destaca a importância da
corporeidade presente em todo ato de ler em público, com a articulação entre a
dimensão escrita e a dimensão falada na literatura popular. O traço-de-união
entre o gesto e a fala na recitação das poesias, no qual desponta o sentido
265
Cf. JOLLES, A. As formas simples: legenda, saga, mito, advinha, ditado, caso, memorável,
conto, chiste. São Paulo: Cultrix, 1976.
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cênico e teatral da cultura popular, recuperaria a questão da totalidade da
percepção sensorial, reunindo aspectos antes isolados, fragmentados e tratados
à parte pela metafísica, com considerações exclusivas que se atinham ao
conteúdo ou ao texto gráfico em si. Para o estudioso suíço da Idade Média, o
caráter indissociável entre “a letra e a voz”, entre o corpo e a fala, entre a
vocalidade da palavra e a poética vocal no Ocidente, tal como estabelecida
antes da invenção da imprensa por Gutemberg e antes da inauguração da
modernidade que hipostasiou a dimensão grafocêntrica da literatura. Em
Zumthor, o lugar de uma obra extrapola os limites do registro textual e passa a
salientar “a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstâncias, o
ambiente cultural e, em profundidade, as relações intersubjetivas, as relações
entre a representação e o vivido”
266
.
Conquanto não seja possível, a rigor, adequar nenhum dos nove
subgêneros analisados por André Jolles ao caso das expressões vocabulares dos
torcedores, os hurrahs e os aleguais eram espécies de formas simples que
primeiro despontariam nos estádios do início do século e que depois seriam
estilizadas em lemas, em ditados morais das torcidas, mimetizadas por sua vez
das palavras de ordem dos clubes. A título de exemplo provisório, lembre-se a
inscrição da faixa da Charanga, dependurada nas arquibancadas durante várias
décadas: Avante, Flamengo. Por ora, cabe dizer que tais expressões verbais
seriam parcialmente ofuscadas com o advento das orquestras musicais nos
estádios. O repertório musical concorreria com os gritos e com as falas dos
torcedores que visavam por um lado orientar e incentivar os jogadores do seu
time, e por outro, atrapalhar, vaiar e ofender os atletas do da equipe adversária.
Se já foi dito que, dos dois estilos principais das charangas, o ethos épico se
filiava diretamente à tradição bélica de onde se originavam as sublimações
esportivas, o pathos carnavalesco curiosamente também tinha uma vinculação
militar na história musical carioca.
Isso porque a maioria das bandas militares, fonte de inspiração para as
torcidas organizadas, havia sido um grande local para a formação musical de
negros das camadas pobres no Brasil
267
. O baiano Hilário Jovino, junto à Tia
266
Cf. ZUMTHOR, P. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 18.
267
Cf. SANTIAGO, J. J. P. Liras e bandas de música entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Dissertação de Mestrado em História Social da Cultura / PUC-Rio, 1992.
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Ciata um dos personagens mais lendários da história do carnaval, responsável
por animar e por paganizar os primeiros ranchos, pertenceu à Guarda Nacional.
Foi no Exército e na Marinha que se formaram vários músicos populares, como
os pertencentes à Banda Marcial dos Fuzileiros Navais e à Banda do Corpo de
Bombeiros. É sabido que, para a composição da Charanga, Jaime de Carvalho
recrutou Gama, um soldado da PM que tocava clarim e que, por sua vez, trouxe
para o grupo mais dois clarinistas, um trompetista e um pistonista do quartel
268
.
O sentido explícito de ordem dessas corporações se traduzia na nomenclatura
dos grupos de torcedores, intitulados Torcidas Organizadas no Rio de Janeiro e
Torcidas Uniformizadas em São Paulo.
Se o projeto de Mário Filho era transpor o paradigma dos desfiles
carnavalescos para as torcidas de futebol, mediante critérios plásticos e rítmicos
extraídos das escolas de samba da Praça Onze, cumpre assinalar que nas
décadas de 1940 e 1950 não seria o gênero sambístico o adotado pelas
charangas. Dos dois estilos musicais legados pelo carnaval carioca, a marcha e
o samba, seria o primeiro o mais executado na fase inicial das torcidas
organizadas no Rio de Janeiro. De início, a marchinha carnavalesca se
incorporaria ao futebol com mais facilidade que a letra de samba-enredo,
gênero, no dizer de José Miguel Wisnik, cuja origem estava justamente na
junção entre a tradição da malandragem e o pastiche do discurso cívico, o que
levaria o humorista Sérgio Porto a ironizar as complicadas letras compostas por
sambistas semi-analfabetos. Em 1968, Stanislaw Ponte, pseudônimo de Sérgio
Porto, lançava O samba do crioulo doido, no qual zombava do embaralhamento
das informações históricas de compositores que buscavam informações nas
cartilhas dos livros de História ginasial. Na letra, a atônita princesa Isabel
acabava por proclamar a escravidão.
Feita a digressão quanto à canhestra pomposidade dos sambas-enredo,
cumpre dizer que nas décadas de 1940, 1950 e 1960, quando não se ouvia o
hino original ou o hino popular do clube, o repertório das charangas era
embalado por machinhas, mais simples e acessíveis, que possuíam à época
maior divulgação radiofônica. Entre as tocadas pelas torcidas, pode-se citar a
premiada “Cidade Maravilhosa” (1934), de André Filho, que mais tarde se
268
Cf. AQUINO, W; CRUZ, C. Acima de tudo rubro-negro: o álbum de Jayme de Carvalho.
Rio de Janeiro: C. Cruz, 2007, p. 34.
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tornaria Hino Oficial do Estado da Guanabara, e “O teu cabelo não nega”
(1931), de Lamartine Babo, entre outras
269
.
A escassez de informações nos periódicos impede um aprofundamento
dos modos de assimilação e de escolha das canções naqueles grupos. A
visibilidade da figura de Jaime de Carvalho fez com que as rarefeitas
informações se voltassem para a sua Charanga, haja vista também as várias
páginas dedicadas a ele por Mário Filho no livro Histórias do Flamengo
(1945). Além das “armas carnavalescas” – o confete, a serpentina e os porta-
estandartes , era frisada a tradição das passeatas, dos corsos e dos festejos
carnavalizados nos bondes para a comemoração dos títulos, como sucedeu no
tricampeonato de 42/43/44. Sua orquestra apresentava um repertório que podia
incluir uma música clássica como “Cisne Branco”, um “Hino a Gilberto
Cardoso”, criado pelo próprio grupo para evocar a memória do ex-presidente
do Flamengo, ou ainda a famosa marcha “Tá chegando a hora”. Para a sua
execução, uniam-se instrumentos de sopro e de metal – clarins, sirenes,
cornetas, pratos e sinos – com instrumentos de percussão: tambores, cuícas,
taróis e bumbos.
Os periódicos também informam que, após a construção do Maracanã, os
alto-falantes do estádio passaram a fazer as vezes de animadores do público,
amplificando músicas como o baião “Paraíba”, de Alberto Ribeiro e João de
Barros
270
. Este último compositor, conhecido popularmente como Braguinha,
ficou cravado na memória jornalística pela anedota segundo a qual ele se
encontrava na semifinal da Copa do Mundo de 1950, quando no Maracanã a
seleção brasileira derrotou de maneira acachapante a seleção da Espanha, à
época conhecida como fúria espanhola. O elástico placar de seis a um fez, de
modo espontâneo, a torcida brasileira lembrar a marchinha dos mesmos João de
Barros e Alberto Ribeiro, “Touradas em Madri” (1937) – um tributo ao país
acometido pela Guerra Civil. Diz-se que Braguinha, ao ouvir as duzentas mil
vozes entoando sua composição, chorou copiosamente ante aquele cenário de
júbilo.
269
Cf. LAPICCIRELLA, R. As marchinas de carnaval: antologia musical popular brasileira.
São Paulo: Musa Editora, 1996, p. 24 e 58.
270
Cf. JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 01 de março de 1992, p. 20.
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A relação entre a marcha de carnaval e o samba-de-enredo iria se inverter
na década de 1960, com a prevalência do segundo entre as torcidas de futebol.
O movimento das torcidas dissidentes, também chamadas Torcidas Jovens, no
final dos anos 60, teria como efeito uma diferente acentuação rítmica nas
arquibancadas, com o aumento do peso dos instrumentos percussivos sobre os
instrumentos metálicos e de sopro típicos das Charangas. Tal modificação se
condicionava de igual forma pelo destaque conferido pelas rádios a cada um
dos gêneros e pelas transformações ocorridas no interior da indústria
fonográfica. Se mudanças nas escolas de samba já se verificavam com a
passagem dos desfiles da Praça Onze para a Avenida Rio Branco e, desta, para
a Avenida Presidente Vargas, o pesquisador Roberto Moura identifica duas
novidades carnavalescas no ano 1967: a aproximação das classes médias com
as escolas de samba, dando um perfil novo aos freqüentadores de ensaios nas
quadras, e o fato inédito do sucesso de um samba-de-enredo nos salões dos
bailes: O mundo encantado de Monteiro Lobato, da Estação Primeira de
Mangueira, cantado na voz de Jamelão.
Esse samba era o segundo de uma série que desbastava o verniz pesado
de exaltação pedagógico-patriótica dos desfiles e incorporava uma diversidade
temática, a começar por enredos baseados em obras da literatura brasileira.
Antes do samba consagrado ao mestre do romance infanto-juvenil, Monteiro
Lobato, o compositor Paulinho da Viola compusera em 1966 para a Portela um
samba cujo tema era o romance clássico de Manuel Antônio de Almeida:
Memórias de um sargento de milícias. Já a Mocidade Independente de Padre
Miguel adaptaria a obra literária de José Mauro de Vasconcelos, Meu pé de
laranja lima, em enredo que terminava com a cantiga de roda: “Ai eu entrei na
roda/ Ai eu entrei na dança”. Mário de Andrade, Jorge de Lima, Euclides da
Cunha e muitos outros literatos seriam agraciados na década de 1970. Em 1968,
porém, a gravação de um primeiro elepê exclusivo com sambas-enredo foi
outra inovação decisiva que impulsionou a popularização dos sambas-enredo e
tal fato possibilitou ao público conhecer as letras antes de chegar à Candelária
para o desfile
271
.
271
Cf. MOURA, R. “As escolas de samba”. In: SOUZA, T. de. (et al). Brasil musical. Rio de
Janeiro: Art Bureau, 1988, p. 153.
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Enquanto Roberto Moura registra a entrada do samba-enredo nos salões
carnavalescos, a leitura do Jornal dos Sports a partir de 1967 possibilita
semelhantes conclusões acerca do ingresso desse gênero musical nos estádios
de futebol. O periódico de Mário Filho, por razões evidentes, sempre dera
destaque ao carnaval e em específico aos desfiles carnavalescos. Entre o final e
o início de cada ano, a cobertura se intensificava em colunas como “O Rio é
Carnaval”, em matérias de página inteira sobre os preparativos nas quadras das
escolas e em seções que punham à disposição do público leitor as letras dos
sambas que seriam cantados na Presidente Vargas. As arquibancadas refletiam,
à sua maneira, esse ambiente em que se envolvia a cidade. Em outubro de
1967, em mais uma de suas rodadas duplas, um repórter descrevia o cenário
carnavalizado do Maracanã, graças à torcida de um pequeno clube que se
organizava para o incentivo ao time. Em uma descrição que parece apontar para
uma transição do estilo das charangas ao das torcidas dissidentes, dizia a
reportagem:
“Torcida vai agitar com ‘Avante, Bonsuça’”: “Cerca de sessenta
sambistas empunhando trinta bandeiras com as cores do Bonsucesso e
duas faixas uma delas com os dizeres Avante Bonsuça estarão
hoje à noite no estádio Mário Filho para incentivar os jogadores do
seu clube no jogo contra o líder Botafogo. Hamilton de Oliveira, que
comanda a torcida uniformizada do Bonsucesso, decidiu que ficará
instalado junto com a torcida do América, à esquerda das cabines de
rádio. (...) A bateria comandada por Hamilton consta de três bumbos,
três taróis, sinos e outros instrumentos musicais para ritmar o
‘verdadeiro samba carioca’. O velho Hamilton não se esqueceu de
mandar confeccionar papel picado que será jogado do alto da
arquibancada, quando o time entrar em campo. Nesse momento, as
trinta bandeiras se agitarão e a bateria entrará em ação, tocando
músicas do repertório especialmente preparado para essa festa.”
272
.
A divulgação prévia das letras dos sambas nas rádios, nos discos e nos
jornais permitia que ele fosse apropriado de antemão pelas torcidas. Estas não
se restringiam a repetir o enredo tal qual ele havia sido composto, mas a alterar
a letra e a adaptá-la ao sabor da preferência clubística. A paródia seria assim
consagrada como sua apropriação preferencial. Se o ano de 1968 é
representativo do aparecimento do primeiro LP dedicado aos sambas-de-
272
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1976, p. 10.
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enredo, o ano posterior assistiria à gravação das letras que ecoariam com mais
força nas arquibancadas do Maracanã, ao menos pelo que é possível depreender
da leitura do JS. Entre as composições que se destacavam naquele ano, a
Mocidade Independente de Padre Miguel limitava-se a seguir a temática
ufanista habitual das escolas, enaltecendo pessoas, datas e acontecimentos
pátrios oficiais Guararapes, Inconfidência, Abolição e Independência eram
temas considerados batidos , com um samba dedicado ao historiador
Francisco Adolfo Varnhagen, o Visconde de Ouro Preto.
Já a Vila Isabel consolidava a inovação de temas dedicados à negritude,
tradição iniciada pelo Salgueiro em 1963 com o vitorioso “Chica da Silva”, do
compositor Anescarzinho, e cantava o samba do jovem Martinho da Vila, “Iaiá
do Cais Dourado”, que inovara desde 1967, com “Carnaval de ilusões”, letra na
qual adaptava estribilhos de música folclórica: “Ciranda, cirandinha/ Vamos
todos cirandar.”. O Império Serrano, por seu turno, apresentava o samba
“Heróis da Liberdade”, letra antológica que começava com um solfejo e
terminava com um lamento. Segundo os jornalistas, a letra de autoria de Silas
de Oliveira e Mano Décio da Viola dois ases na composição de sambas-
enredo enfrentaria problemas com a censura no pós-AI-5, já que além de
parodiar um trecho do Hino da Independência ato proibido por lei a música
referia-se a “alunos e professores”, uma alusão às passeatas estudantis do final
do ano anterior. O grande vencedor do desfile de 1969 seria o samba-de-enredo
do Salgueiro, que contagiaria o universo do futebol no início de 1969, com uma
música fiel à temática a um só tempo regional, negra e religiosa: “Bahia de
Todos os Deuses”, composta pelo engraxate João Nicolau, mais conhecido pelo
apelido de Bala.
O sucesso se devia a dois fatores principais. Por um lado, ele adotava a
estratégia de Martinho da Vila, com a incorporação de rimas oriundas do
folclore nacional. Assim, em vez de sambas com melodias épicas complicadas,
os versos finais dele terminavam com uma quadrinha dos capoeiras baianos:
“Zum, zum, zum/ capoeira mata um”. Por outro, ele se valia da sua difusão em
disco, o que contribuía para o seu conhecimento prévio. Deste modo, o samba
seria adotado e parodiado pela torcida do Flamengo de maneira a repercutir ao
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longo de todo o ano. De acordo com a informação do JS, em junho de 1969, a
torcida ainda cantava o samba do Salgueiro nos estádios
273
. Assim, em vez de
se restringir apenas aos primeiros meses que antecediam o carnaval, como
antes, a letra perduraria na memória das torcidas nas arquibancadas do
Maracanã por meses a fio. O cotejo do original com a versão anônima dos
torcedores permite acompanhar o processo parodístico:
Bahia/ os meus olhos estão brilhando/
Meu coração palpitando/
De tanta felicidade/
És a rainha da beleza universal/
Minha querida Bahia/
Muito antes do Império/
Foste a primeira capital.
Preto Velho Benedito já dizia/
Felicidade também mora na Bahia/
Tua história, tua glória/
Teu nome é tradição/
Bahia do velho mercado/
Subida da Conceição./
És tão rica em minerais/
Tens cacau, tens carnaúba/
Famoso jacarandá/
Terra abençoada pelos deuses/
E o petróleo a jorrar/
Nega baiana/
Tabuleiro de quindim/
Todo dia ela está /
Na igreja do Bonfim, oi/
Na ladeira tem, tem capoeira/
Zum, zum/ zum, zum, zum/
Capoeira mata um!
Flamengo/ os meus olhos estão brilhando/
Meu coração palpitando/
De tanta felicidade/
És uma garra com uma força sem igual/
Ó meu querido Flamengo/
Cada jogo uma vitória/
Cada vitória um carnaval./
Preto Velho já dizia meninada/
Existe um time que sacode a arquibancada
Sua história, sua glória/
O seu nome é tradição/
A minha maior alegria/
É ver o Mengo campeão/
Sou urubu, mas não faz mal/
Sou do time mais querido/
Daquele que faz vibrar/
É o time consagrado pelo povo/
E a galera a cantar/
Bola pra frente/
Lá na Gávea é assim/
Na vitória ou na derrota/
Sou Flamengo até o fim/
Ó, ó, ó. Sou Flamengo sim/ Por toda vida/
Zum, zum/ zum, zum, zum/
A torcida quer mais um!
274
A transição, por suposto, não se dava de maneira tão abrupta e
automática como poderia parecer. Embora as gravadoras não investissem mais
nelas, as marchinhas continuavam vigorosas nos estádios. Em 1963, Antônio
Almeida e Oldemar Magalhães comporiam a “Marcha do Remador”, mais
conhecida como Se a canoa não virar. A torcida botafoguense, às vésperas da
273
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 02 de junho de 1969, p. 12.
274
Cf. AQUINO, W; CRUZ, C. op. cit., p. 56.
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comemoração do bicampeonato carioca do time, a levaria para as
arquibancadas: “Se a canoa não virar, ôlêê, ôlêê, ôláá, o Botafogo chega lá.”
275
,
em letra que nos anos seguintes teria várias versões de baixo-calão. Mesmo
marchas da década de 1950 permaneciam vivas nos cânticos adaptados com
ironia pelas torcidas. “Piada de Salão”, cantada por Blecaute em 1954, cantor
este que chegara a freqüentar a Charanga de Jaime de Carvalho, tinha a
seguinte adaptação da torcida do Vasco, em gozação à torcida do Flamengo: “É
ou não é/ piada de salão/ um time de urubu/ querer ser campeão”
276
. A torcida
vascaína se valia também de vinhetas e jingles típicos das emissoras de rádio:
“Ôlêê, ôláá/ o nosso Vasco/ tá botando pra quebrar!”
277
.
A alusão pejorativa ao “time de urubu”, com que se caracterizava a
torcida do Flamengo, reconhecida com timidez inicial pelos próprios rubro-
negros na adaptação do samba-enredo Bahia de Todos os Deuses (“Sou urubu,
mas não faz mal...”), referia-se a estereótipos recém-criados pelos torcedores
entre si. Antes do urubu, o mascote do Flamengo era o Popeye. Símbolo da
fibra e da energia, o marinheiro das revistas em quadrinho norte-americanas era
uma transposição do cartunista Molas, da equipe do Jornal dos Sports dos anos
de 1940, momento também em que foram transpostos outros personagens da
indústria cultural e do universo infanto-juvenil para o futebol carioca, como o
Pato Donald, atribuído ao Botafogo. Em fins dos anos 60, símbolos menos
ingênuos e mais provocativos surgiam como o sujo Urubu (Flamengo), o
zoomórfico Bacalhau (Vasco), o chato Cri-Cri (Botafogo), o afeminado Popó
(Fluminense) e o diabólico América. O cartunista Henfil era em parte
responsável por fixar essas figuras, ao adotá-los em suas charges do Jornal dos
Sports, e, por intermédio dessa nova simbologia, os torcedores dialogavam
entre si.
Isso acarretava prolongadas polêmicas na tradicional coluna de cartas do
JS. Ainda em 1968, um botafoguense escrevia à seção indignado com o termo
“cachorrada”, que era atribuído à sua torcida pelos rivais, sendo incorporado na
pena de Henfil. Com bom-humor, a redação do jornal respondia-lhe:
275
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 22 de abril de 1968, p.
276
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 03 de junho de 1968, p. 12.
277
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1968.
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“Meu caro Aquiles, o negócio é esportividade. E esta coluna reflete o
espírito do torcedor carioca que, a cada jogo, encontra sempre meios
de adjetivar a torcida contrária – prática iniciada justamente pela
torcida botafoguense, ao chamar de bacalhau a torcida vascaína.
Depois, foi a vez da torcida do Flamengo, que passou a ser chamada
de urubu. Finalmente, chegou a hora dos botafoguenses – que foram
batizados de cachorrada pelos vascaínos. Nós aqui procuramos
exprimir o sentir do povo. E porque julgamos que tudo não passe de
uma forma de rivalidade – altamente válida – entre as torcidas,
pegamos o carro andando. Veja meu caro Aquiles: o urubu, saneador
de cidades; o bacalhau, um dos peixes mais saborosos; o cachorro, o
maior amigo do homem.”
278
.
A atribuição de predicados desonrosos de um grupo a outro dava origem
a um processo em cadeia de invenções de estribilhos e de concorrências
sonoras inter-torcidas, de modo que era difícil precisar quem os criava e quem
os adaptava em formato de resposta. Ditados relativamente simples como “Um,
dois, três, o Vasco é freguês”
279
eram permutados de torcida a torcida. Tal fato
ensejava uma competição pela originalidade das adaptações, sendo que não
raro as trocas de acusação eram feitas na mesma coluna de cartas, em função da
imitação e da apropriação indébita. Em “Torcida invejosa”, um missivista
vascaíno acusava a prática da cópia pelas torcidas rivais não apenas em relação
às músicas, como também no que diz respeito aos dizeres estampados nas
faixas:
“Venho notando nos jogos realizados no Estádio Mário Filho a
pobreza de espírito e a falta de imaginação de certas torcidas, como a
do Botafogo e a do Fluminense, a imitarem a do meu Vasco.
Exemplo: a do Botafogo colocou uma faixa com os seguintes dizeres:
‘Felicidade mesmo é torcer pelo Botafogo’, quando o Vasco já tem, há
muito tempo, a sua, que diz assim: ‘Felicidade, teu nome é Vasco’.
Quanto ao Fluminense, vem cantando todo empolgado também nosso
estribilho: Olê, olá, toma cuidado pra canoa...’. Senhores invejosos:
mais imaginação e menos imitação porque bom mesmo, ficou
evidenciado, é torcer pelo Vasco. (Belarmino dos Santos, Rua
Catumbi).”
280
.
A disputa pela originalidade era noticiada no Jornal dos Sports, que se
transportava até o estado São Paulo para mencionar uma invenção curiosa na
“guerra das torcidas”. Na matéria, dizia-se que a torcida uniformizada do São
Paulo havia encontrado um modo original de provocar a do Corinthians, cuja
278
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 01 de novembro de 1968, p. 04.
279
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 22 de maio de 1969, p. 04.
280
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 04 de abril de 1969, p. 04..
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equipe havia anos não ganhava títulos. Durante o clássico paulistano, “num
coro infernal”, os são-paulinos gritavam os números de 1 até 8. Ao final da
contagem, cantavam um irônico “Parabéns pra você” direcionado aos
corintianos
281
. Acrescente-se que na década de 1980 a tradição seria exportada
para o Rio de Janeiro, com os botafoguenses encarnados pelos rivais devido às
duas décadas sem conquistas. Logo após a Copa do Mundo de 1970, cujo
televisionamento a cores teve conseqüências nas assimilações e nas adaptações
quanto às formas de torcer, um grito típico da torcida mexicana apareceria nos
estádios brasileiros. Era o tradicional “Ôléé”, maneira de reverenciar um drible
de um jogador da equipe da torcida contra o adversário
282
. O uníssono, por sua
vez, como é bem sabido, era oriundo das touradas espanholas, mais
precisamente, da capacidade do toureiro em sair ileso à investida do touro, no
tirocínio corporal de ludibriar o animal. A perícia levaria ao delírio a inflamada
platéia das touradas, em um frêmito coletivo cuja dimensão antropológica e
poética foi captada por Michel Leiris em seu ensaio sobre a tauromaquia
283
.
No ano de 1970, segundo relato de Tinhorão, em meio às transformações
por que passava o gênero do samba-enredo, uma equipe de estudantes da
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro publicaria um
estudo na Revista do Livro, pertencente ao Ministério da Educação e Cultura,
intitulado “A retórica do samba-enredo”. O grupo de estudiosos reunira dezoito
letras entre 1963 e 1970 e analisara as suas principais figuras de linguagem.
Elas eram basicamente quatro: a anástrofe (inversão da ordem natural das
palavras), o hipérbato (quebra da ligação imediata entre as palavras), a perífrase
(forma eufemística de referir-se ao fato citado) e a sinédoque (emprego do
abstrato pelo concreto, e vice-versa). Como também acontecia na literatura de
cordel, os letristas de escolas de samba seguiam regras de composição da
poesia clássica, com o longo encadeamento de versos que resultavam em
verdadeiros poemas épicos
284
. Se essa seria a marca das composições que
vigoraram até a década de 1960, as músicas do decênio seguinte seriam
analisadas pela pesquisadora Raquel Valença, na dissertação de mestrado
281
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1971.
282
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1971, p. 03.
283
Cf. LEIRIS, M. O espelho da tauromaquia. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
284
Cf. TINHORÃO, J. R. op. cit., p. 178-180.
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defendida na UFF com o título de Palavras de purpurina: estudo lingüístico do
samba-enredo 1972-1982.
No ano de 1970, a publicação da pesquisa precursora da UFRJ seria
representativa de um modelo de composição que parecera ter se esgotado. Após
aquele carnaval, quando a Portela se sagrou campeã com a letra “Lendas e
Mistérios do Amazonas” e a Imperatriz ganhou projeção com “Oropa, França e
Bahia”, o desfile do ano seguinte assistiria a um acontecimento decisivo no
estilo das composições. Em 1971, a escola vencedora, o Salgueiro, despontava
com a letra empolgante “Festa para um Rei Negro”, do capixaba Zuzuca, o que
evidencia em parte a continuidade com a temática racial da agremiação. Mas,
para recordarmos as observações de José Miguel Wisnik, os fatores
fundamentais da música não seriam nem o tema nem a letra. O traço marcante
da composição era o andamento musical, em um ritmo mais veloz que
terminava com um refrão forte e facilmente memorizável. O paradigmático
estribilho “Ôlêlê, ôlálá/ Pegá no ganzê/ Pegá no ganzá” se afiguraria um
estouro carnavalesco-comercial não somente ao longo daquele ano, como
durante toda aquela década. Antes extenso, o tamanho das letras encurtaria a
partir de 1971, sob o impacto da letra que tanto contagiara o público. O refrão
passa a modular aquilo que vem a ser chamado de “samba de empolgação” ou
“samba de embalo”, fórmula que teria grande adesão desde então, inclusive no
fortalecimento do pagode no final dos anos 70, vertente também conhecida à
época como sambão-jóia
285
.
Em realidade, era como se a letra de samba-de-enredo perdesse a sua
conotação cívica, caindo nas malhas das demandas da indústria fonográfica, por
um lado, e regressasse a um tipo de composição que lembrava a estrutura das
marchinhas, por outro lado, com o rudimentar tatibitate: “ôlêlê/ôlálá”. De fato,
o samba-enredo distanciava-se da feitura antiga com quarenta e até cinqüenta
versos – a letra era chamada de lençol – e se aproximava das rimas folclóricas e
das suas melodias mais redundantes. A segunda parte de Pega no ganzê, por
exemplo, era a transposição de uma marcha de Folia de Reis. O samba
vencedor da Portela em 1970 terminava desta forma: “Ô esquindô lá lá,/ Ô
285
Cf. VASCONCELLOS, G. F. Música popular: de olho na fresta. Prefácio de Silviano
Santiago. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
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esquindô lê lê/ Olha só quem vem lá/ É o saci pêrêrê”. Já a Mangueira rimava
parecido em No reino da mãe do ouro: “ôbêê/ ôbáôbábá/ é a mãe do ouro/ que
vem nos salvá”. Mas aqui também não se deve afirmar que a mudança
modernizadora empalidecia por completo a força da tradição, cujo símbolo nas
escolas de samba era o surdo de marcação introduzido por Bide em meados dos
anos 30. Sambas-enredos cadenciados ainda tinham destaque, como “O mundo
melhor de Pixinguinha”, da Portela (1974); “Os Sertões”, da Em Cima da Hora
(1976); “A criação do mundo na tradição Nagô”, da Beija-Flor (1978); “A
cigana”, da União da Ilha do Governador (1978); e “Bumbum baticumbum
purugundum”, do Império Serrano” (1982).
Escusado dizer, todavia, que os sambas de empolgação, também
chamados valentes, encontrariam alta receptividade entre as torcidas cariocas,
sendo adaptados de maneira quase imediata por elas e repercutindo por
decênios em seu estoque musical
286
.
Em seqüência ao filão aberto pelo Salgueiro, a Beija-Flor de Nilópolis,
no final dos anos 70, venceria o carnaval de 1976 com o samba-enredo
polêmico “Sonhar com Rei dá Leão”, um tributo ao universo do jogo do bicho,
atividade naquele momento associada à contravenção. Seu artífice seria o
carnavalesco Joãozinho Trinta que, sob as inovações ainda mais radicais, fora
recrutado junto à mesma escola salgueirense depois da conquista do
bicampeonato em 74/75. Autor da célebre frase segundo a qual pobre gostava
de luxo e intelectual, de pobreza, Joãozinho encarnava a espetacularidade e a
modernização coreográfica por que passava o universo dos desfiles, com o
afastamento de muitos sambistas tradicionais. Concebido como um espetáculo
despojado de demonstração da proeza e da habilidade do baixo corporal, isto é,
da rapidez do movimento dos pés em coordenação com a cintura – o meneio
dos corpos , o carnaval tornava-se peça de luxo, ornamentada e paramentada
pela dimensão grandiosa e ostensiva dos carros alegóricos e das fantasias
emplumadas.
286
O refrão de Pega no ganzê é cantado até hoje, a ponto de até mesmo torcidas organizadas da
Europa reproduzirem sua melodia.
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533
Em meio ao novo cenário, em 1977, a mesma Beija-Flor de Nilópolis,
subvencionada por Anísio Abraão David, desbancaria por uma contagem
mínima a menos poderosa e tradicional União da Ilha do Governador, que ao
apresentar o enredo “Domingo” empolgou muito mais o público presente. A
letra era uma homenagem explícita à figura do torcedor, com o objetivo direto e
intencional de que o samba fosse cantado nos estádios. Com efeito, gravado em
seguida na voz de Neguinho da Beija-Flor, ele se tornaria um grande hit na
cidade: “Domingo.../ Eu vou ao Maracanã/ Vou torcer pro time que sou fã/ Vou
levar foguetes e bandeiras/ Não vai ser de brincadeira/ Ele vai ser campeão/
Não quero cadeira numerada/ Vou sentar na arquibancada/ Pra sentir mais
emoção/ Porque meu time/Bota pra ferver/ E o nome deles são vocês que vão
dizer/ Ôôôô...”.
O estreitamento dos laços entre as escolas de samba e as torcidas
organizadas, iniciado em fins da década de 1960, se consolidava portanto no
final dos anos 70. Isto não significava apenas a assimilação do repertório
musical da primeira pela segunda. As torcidas vinham se estruturando também
fora dos estádios, em torno dos blocos e das atrações carnavalescas. Em 1971, a
bateria da Torcida Jovem do Flamengo tomava parte na Banda do Machado,
uma agremiação criada por jornalistas no Largo do Machado, o que se repetiria
nos anos seguintes. Em 1973, a seção Bate-Bola publicava a carta “Mengão no
Carnaval”, com informações sobre um bloco rubro-negro no Largo do São
Francisco, no centro do Rio organizado por Jaime de Carvalho e por Ricardo
Muci, da Flamante. Este bloco acompanhava a proliferação de bandas na
cidade – eram catorze criadas naquele ano – que se revigorava depois do
declínio dos carnavais de bonde
287
. Por outro lado, em 1974, o Jornal dos
Sports destacava a presença do Bafo da Onça em plena torcida do Flamengo, da
mesma maneira que os Boêmios do Irajá se encontravam no seio da bateria da
torcida do América.
A identificação com as escolas de samba também passava pela adoção,
embora parcial, da linguagem e da morfologia dos desfiles. Cada torcida
organizada passava a se autodenominar uma “ala” no conjunto de grupos de
torcedores de cada time. Em 1974, quando o Vasco conquistou o inédito
287
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 03 de março de 1973.
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Campeonato Nacional, uma torcida organizada, a Força Jovem, promoveu a
comemoração do título na quadra da Vila Isabel
288
. No mês seguinte ao título,
membros da torcida anunciavam por carta no jornal a ‘união’ da Força Jovem
com a escola de samba Unidos de Vila Isabel, através de um ‘batismo’ da Ala
“Jovem Vasco”, que participaria do desfile no ano seguinte.
289
. Enquanto
torcidas como a Jovem-Flu chegavam ao ponto de se integrar na passarela da
Presidente Vargas, fundindo a imagem da torcida do Fluminense com a escola
de samba da Portela, agremiações tricolores de menor porte, como a
Fluminante, de Madureira, desfilava em Vista Alegre, formando para isto uma
“ala gigantesca”, segundo seus promotores, com cerca de 450 pessoas.
Em 1975, um missivista informava a criação da escola de samba Arrastão
de Cascadura, que tinha as cores vermelha e preta. Em razão desta afinidade
pictórica, a torcida Flamor divulgava na seção Bate-Bola a constituição de uma
ala junto à escola novata
290
. No mesmo ano, por seu turno, a torcida
Vascachaça recebia a homenagem do Bloco Carnavalesco Feras do Rei Sol
291
.
Já Russão, novo líder da Torcida Organizada do Botafogo, ia em 1974 à sede
do Jornal dos Sports, acompanhado do botafoguense Tolito, solicitar o apoio
dos alvinegros à Mangueira no carnaval daquele ano
292
.
O próprio lema de congraçamento entre as escolas de samba era
incorporado pelas torcidas organizadas na década de 1970. Em carta
endereçada ao Jornal dos Sports, o líder da torcida Vasco Real aclamava seu
slogan, extraído do carnaval: “nem melhor nem pior que as suas coirmãs; é
apenas uma torcida diferente”
293
. Em que pese o preito de humildade enunciado
por aquela torcida, esta não parecia ser a tônica dos ditados dos torcedores. Em
uma torcida do mesmo clube, ao invés do reconhecimento do adversário,
sobressaía a auto-exaltação: “Vasco, na vitória te idolatramos; na derrota ainda
mais te amamos”, o que fazia lembrar as formas simples, de André Jolles.
Enquanto a torcida Fiel Tricolor falava em “Tradição e Evolução”
294
, a Força
Jovem do Vasco apresentava um dito mais elaborado: “Vibração, incentivo,
288
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1974, p. 02.
289
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1974, p. 02.
290
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1975, p. 02.
291
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 05 de setembro de 1975, p. 02.
292
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1974, p. 02.
293
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 01 de março de 1978, p. 02.
294
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 12 de março de 1978, p. 02.
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535
fidelidade e amor puramente vascaínos, eis alguns predicados que comporta a
consagrada Torcida Força Jovem”. Ou ainda: “Presente, passado, futuro. Força
Jovem é isso.”
295
.
De todo modo, as sentenças morais contidas nos dizeres publicados pelo
JS não deixariam de sublinhar repetidas vezes a superioridade e o sentimento
de desdém perante as demais. Vejam-se os lemas de cada torcida:
“Vasco é Vasco. O resto é resto.”
296
.
“Fogo é Fogo. O resto é cinzas.”
297
.
“Flamengo é Raça. O resto é fumaça.”
298
.
Havia vezes em que o lema da torcida era um pouco mais desenvolvido e
se convertia em cantiga. A Força Jovem, por exemplo, referia-se ao seu próprio
hino, cuja agressividade é patente na transcrição: “ Auê, auê, auê, / Se não der
pra mim, não vai dar pra você / Maracanã, eu quero ver / Quem é fraco se
arrebentar, eu não vou tremer / Sou batizado, vacinado, o que é que há / Eu sou
da Força Jovem, ninguém vai me segurar.”
299
. Este padrão mais agressivo, que
se acentua no início da década de 1980, vinha sendo notado por torcedores
desde o limiar dos anos 70. Em 1971, já existiam leitores queixosos na coluna
do Jornal dos Sports, com reclamações acerca dos palavrões e com apelos para
a sua abolição dos estádios
300
. O efeito parece ter sido irrisório, pois em 1973
um outro missivista mencionava as “músicas pornográficas”, com “rimas
degradantes”
301
, que imperavam nas arquibancadas. As ofensas se generalizam
por fim na segunda metade daquela década, quando se passa a escutar no
Maracanã os seguintes coros obscenos coletivos: “Eu, eu, eu, o Fluminense se
fudeu!”
302
; “Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos que o Flamengo vá pra
puta que o pariu!”; e “Ê, ê, ê... eu quero ver o Vasco se fuder!”.
295
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 24 de abril de 1977, p. 02.
296
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 07 de maio de 1973, p. 03.
297
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1977, p. 02
298
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 03 de maio de 1977, p. 02.
299
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1982, p. 02.
300
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 15 de outubro de 1971, p. 02.
301
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 07 de novembro de 1973, p. 02.
302
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 18 de abril de 1977, p. 02.
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O padrão ofensivo não era o único adotado no segundo lustro daquele
decênio e muitas torcidas se orgulhavam de criar formas de expressão
inovadoras. Os botafoguenses, por exemplo, inventavam a vaia ininterrupta ao
adversário, quando este estava com a posse da bola, a fim de atrapalhar o
concorrente e de ajudar o seu time. Os flamenguistas, por sua vez, arvoravam a
criação de uma “bossa”: cantar o nome dos jogadores, um a um, de modo a
reverenciá-los individualmente antes da entrada da equipe em campo. Em
contrariedade às normas oficiais, uma torcida organizada do Flamengo, a Raça
Rubro-Negra, parodiava o Hino da Semana da Pátria. Se na letra original
constava “Ó meu Brasil/ Eu gosto de você/ Quero cantar ao mundo inteiro/ A
alegria de ser brasileiro/ Conte comigo, Brasil/ Acima de tudo brasileiro”, o
ufanismo pátrio transfigurava suas cores em uma outra sorte de idolatria: “Ó
meu Mengão/ Eu gosto de você/ Quero cantar ao mundo inteiro/ A alegria de
ser rubro-negro/ Conte comigo, Mengão/ Acima de tudo rubro-negro.”
303
.
Os tricolores não ficavam atrás no quesito originalidade. Além de entoar
sem interrupção o sufixo do clube – “Nêêênse, Nêêênse, Nêêênse”
304
, eles
faziam uma paródia espirituosa do samba da União da Ilha em 1980, com
referência aos técnicos respectivos de Botafogo, Flamengo e Fluminense: “Não
tem Zagalo, não tem Coutinho/ O campeão é o time do Nelsinho”. Já o verso
“Recordar é viver/ Eu ontem sonhei com você”, do mesmo samba da União da
Ilha, convertia-se na glosa “Recordar é viver/ O Fluminense acabou com
você”
305
. Sem embargo, a maior surpresa reservada pelos tricolores do ponto de
vista da inovação musical seria a invocação ao Papa João Paulo II. A
coincidência entre a visita do sumo pontífice ao Rio de Janeiro – ao Maracanã
em particular e a conquista do campeonato carioca naquele ano faria os
torcedores do Fluminense reverenciá-lo com um cântico em sua homenagem.
Desta feita, a reverência não alteraria qualquer palavra da música sacrossanta,
limitando-se à sua aclamação numa cidade majoritariamente católica: “A
303
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 01 de dezembro de 1978, p. 02.
304
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1980, p. 03.
305
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 01 de dezembro de 1980, p. 12
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benção, João de Deus/ O nosso povo te abraça/ Tu vens em missão de paz/ Sê
bem-vindo!/ E abençoa/ Esse povo que te ama.”
306
.
Em linhas gerais, esse é o panorama acústico dos estádios de futebol do
Rio de Janeiro nas décadas de 1960, 1970 e 1980, quando se constituiu uma
comunicação através dos gritos e dos coros entre as torcidas espécie de coral
das arquibancadas, sem a parte solística , baseados em mecanismos coletivos
de invenção, adaptação e cópia diante das rivais. Se não foi possível uma
musicologia mais exaustiva das torcidas, à maneira das relações entre música e
sociedade contidas no ensaio etnomusical de Anthony Seeger
307
, o repertório
selecionado se restringe à exposição de um número mínimo de canções e
expressões vocabulares, que por sua vez são representativas do período. Da
mesma maneira que Seeger e Toledo, seria o caso de perguntar: por que cantam
os torcedores ? A que mana tributam seu canto ?
A nossa abordagem, mais histórica que antropológica, teve por
delimitação as fontes escritas, de onde extraímos esse material: as páginas
diárias do Jornal dos Sports. Por certo, as fontes orais aprofundariam a análise,
mas ao mesmo tempo elas introduziriam uma série de novas variáveis que
comprometeriam a estrutura e a metodologia geral adotada pelo trabalho. A
descrição feita parece-nos suficiente por ora para a observação de algumas
constantes do universo expressivo, performático e rítmico do torcedor de
futebol. Das cantigas e dos refrões selecionados, o denominador comum que
salta à vista é o seu canal de origem: os meios de comunicação de massa. Ao
sorver seu repertório musical das rádios e da indústria fonográfica, as torcidas
de futebol se valem das músicas que estão mais em voga no momento.
A facilidade de sua difusão torna mais viável a repetição e a repercussão
nos estádios, uma vez que já se encontra ativada no imaginário da maioria dos
torcedores em seu cotidiano. Se nos anos 40 as marchinhas carnavalescas
dominavam o cenário, nos anos 60 as canções privilegiadas passam a ser as
letras de samba-enredo. No final dos anos 80, o ritmo dos bailes funk chegaria
306
Cf. Ibid. Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1980, p. 02.
307
Cf. SEEGER, A. “Por que os índios Suyá cantam para as suas irmãs ?”. In: VELHO, G. (Org.)
Arte e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1977.
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aos estádios do Rio de Janeiro, o que acarretaria o fim da hegemonia dos
sambas-enredo. Um uníssono mais possante, o “ Uh! Têrêrê!”, onomatopéia
da batida norte-americana tocada nas rádios (“ Uh! That it is!”),
corresponderia às novas demandas de arregimentação das torcidas naquele
período. Tal fato poderia levar um pesquisador afeito à égide das teorias
críticas frankfurtianas a assinalar o caráter de manipulação e de ingerência dos
objetos culturais massificados sobre as manifestações populares. A afirmação
subestimaria a constatação de um processo criativo de escolha e de adaptação
das músicas, o que desconstrói a suposição do repertório musical como sendo
meramente impingido aos torcedores pelos mass media. Ao eleger o refrão que
lhe parece melhor, as torcidas estabelecem critérios que se afeiçoam ao ethos
épico e ao pathos carnavalesco do futebol. Aliás, embora a maioria varie ao
sabor das modas musicais, há cantigas duradouras no estoque de ritmos dos
grupos, que por alguma razão tão especial quanto aleatória acabam por se
incorporar à tradição e são reforçadas na memória coletiva de geração a
geração.
A bricolagem das paródias já constitui por si só uma mostra de
criatividade na tradição oral das torcidas, a compatibilizar estilos e tempos
distintos, aparentemente incompatíveis entre si. As disputas entre os grupos em
prol da originalidade são estabelecidas por intermédio da livre-apropriação,
típica do bricoleur que cola de maneira aleatória, ao contrário do engenheiro,
que constrói de modo metódico e programado, conforme comparava Lévi-
Strauss
308
. A contrapartida negativa da invenção é a imitação, que denota falta
de imaginação e atitude considerada pouco escrupulosa por parte da torcida
adversária. Destarte, nos concursos inter-grupos, valoriza-se o ativo e o
inventivo, mesmo que este derive do ato parodístico, por meio do qual se
filtram as músicas veiculadas pela indústria cultural.
308
Apud. NAVES, S. C. O violão azul: modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998.
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Conclusão
O intento geral deste trabalho foi enfeixar algumas linhas de força de um
objeto que pode ser considerado novo para a historiografia. Se a validade do
futebol como tema de investigação histórica é colocada ainda hoje sob suspeita,
conforme sucedeu outrora com fenômenos considerados triviais, tais como o
clima, o corpo e a cozinha, o que não dizer da inclusão de um epifenômeno da
atividade futebolística e do profissionalismo esportivo as torcidas
organizadas , no panorama de discussão do campo historiográfico ? Neste
sentido, a opção de pesquisa aqui adotada teve por vínculo um debate realizado
pelos historiadores franceses durante a década de 1970, em torno da eclosão
dos novos objetos na historiografia. Em 1974, Jacques Le Goff e Pierre Nora
davam a lume a obra serial em três tomos, Faire l’histoire, na qual um conjunto
heterogêneo de historiadores procurava fazer, não um balanço, tampouco um
painel, mas um diagnóstico da escrita da história no presente, com base em três
sintomas principais por eles identificados: os novos problemas, as novas
abordagens e os novos objetos
1
.
Ao colocar em interrogação a própria identidade da história como ciência
do passado, dedicada a elaborar sistemas explicativos da sociedade através do
tempo, os coordenadores do volume falavam de uma tomada de consciência
dos historiadores diante dos caminhos apontados pela pesquisa histórica
contemporânea. O exame subseqüente à “tomada de consciência” dos
historiadores dizia respeito à dilatação do campo epistemológico da história na
contemporaneidade. Tal dilatação, que acompanhava as mutações gerais das
ciências modernas e que, por sua vez, implicava na ameaça de diluição de suas
próprias fronteiras, consistia na anexação progressiva de distintos domínios e
na incorporação de diversas áreas particulares do conhecimento, haja vista a
exaustão das totalidades, seja a da história positivista seja a da filosofia da
história. A História Nova definia-se, pois, como uma ciência do
1
Cf. NORA, P; LE GOFF, J. (Orgs.). História: novos problemas, novas abordagens, novos
objetos. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1988, 3 vols.
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contemporâneo, da mudança e da fragmentação, e rechaçava aqueles que se
imbuíam do espírito de voz onisciente do passado e de autoconsciência do
tempo.
Se o volume dedicado aos novos objetos não fazia qualquer menção à
temática esportiva sabe-se que somente na década de 1980 Roger Chartier
começaria a tratar dela de maneira concatenada a Bourdieu e a Elias , a série
dedicada aos novos problemas continha uma aguda e densa reflexão sobre a
narrativa histórica, traçada por um dos organizadores do livro. Seu
entendimento interessa aqui para a explicação do modo como foi construído “o
problema” de nosso estudo. O ensaio de Pierre Nora, “O retorno do fato”, havia
sido originalmente publicado em 1972 para a revista Communcations com o
sugestivo título de “L’evénement monstre”. Ele se desdobraria num mosaico de
seminários lecionados entre 1978 e 1981 na EHESS, e resultaria no vasto
compêndio intitulado Les lieux des memoires. Sob sua direção, a opulenta obra
destrinchava os “lugares de memória” mais importantes na fabricação de
eventos relacionados à República e à Revolução Francesas, num inventário que
compreendia festas, emblemas e monumentos; comemorações, dicionários e
museus
2
.
Entretanto, nos limites daquele texto ensaístico de início da década de
1970, o autor tratava de uma questão à primeira vista inconcebível para aqueles
que já tinham dado uma pá de cal no positivismo: a importância reassumida
pelo acontecimento na vida cotidiana, política e social. É certo que tal
ressurgimento, após o intermezzo da história estrutural, não se dava nos
mesmos moldes, como simples exumação ou redescoberta de uma tradição
científica, mas sob o influxo das novas condições de produção, com um
estatuto radicalmente distinto do que haviam postulado os positivistas do século
XIX. Enquanto o paradigma rankeano se propunha a elevar o historiador à
alçada de árbitro supremo do passado, “pigmalião do acontecimento”,
mostrando o sucedido tal como ele efetivamente havia acontecido, por meio de
um distanciamento temporal que lhe permitia captar a ordem coerente e o nexo
de sentido subjacente ao emaranhado dos dados, o fato agora, passados três
quartos de século XX, era produzido em íntima conexão com o presente, com o
2
Cf. NORA, P. “Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux”. In: NORA, P. (Org.).
Les lieux des mémoire: la Republique. Paris: Éditions Gallimard, 1984.
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vivido e com o instantâneo. A relação do fato com o tempo atual passava a ser
condicionada por seu atrelamento aos mass media, ou seja, à sua associação
inextricável com a reprodução mecânico-midiática do registro escrito, sonoro e
visual.
Do affaire Dreyfus do final do século XIX ao escândalo do Watergate de
meados da década de 1970, passando pelo Maio de 68, pelo funeral de Charles
de Gaule e pelo suicídio de Marilyn Monroe, operava-se uma factualidade
nova, que se impunha de maneira sorrateira à atividade do historiador
tradicional. À medida que a democracia e a sociedade de massas avançavam
rumo à “mundialização”, a voz autorizada, altiva e distanciada da História ia
perdendo terreno e autonomia. A extraordinária capacidade dos meios de
comunicação na confecção de eventos, sob a forma de processos, escândalos e
casos, transformava incidentes locais particulares em grandes acontecimentos
históricos. A imprensa, o rádio e a televisão não eram apenas veículos de
irradiação das notícias, mas sua própria condição de existência, forma pública
de sua produção e de seu reconhecimento: “O fato de terem acontecido não os
torna históricos. Para que haja acontecimento é necessário que seja
conhecido.”
3
.
A perda de autoridade sobre o fato, antes encerrado na redoma oficial do
passado, fazia o historiador se curvar ante o estreito entrosamento do real e do
cotidiano com sua forma mediatizada e espetacularizada de expressão. O
repórter, a figura emergente que presencia e transmite o acontecimento
moderno, isto é, a testemunha ocular do “maravilhoso das sociedades
democráticas”, tornava-se aquele indivíduo capaz de dar o tom espetacular aos
eventos, cujo exemplo mais fantástico para Nora era representado pela
transmissão direta da alunissagem, ou seja, da chegada do homem à lua no final
da década de 1960. Se antes, então, o acontecimento era isolável e passível de
decomposição em unidades claras, agora a metamorfose operada pelo estatuto
do acontecimento-informação nas sociedades industriais passava por um estado
de “superinformação perpétua” e, ao mesmo tempo, de “subinformação
crônica”, característica do “exibicionismo factual” da publicidade das
sociedades de massa.
3
Cf. NORA, P.O retorno do fato. In: NORA, P; LE GOFF, J. (Orgs.). História: novos
problemas. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1988, p. 181.
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Assim, embora em outra chave de leitura e em outro contexto histórico,
pois Pierre Nora absorvia em parte as teses de Marshall MacLuhan sobre a
explosão da “galáxia de Gutenberg” e as proposições de Guy Debord sobre a
sociedade de espetáculo, a “monstruosidade evenementielle de que tratava
aquele expoente da História Nova parecia ter um interlocutor nos anos 30. Até
certo ponto, suas idéias pareciam não distar muito do diagnóstico de Walter
Benjamin sobre o papel da imprensa na corrosão da narrativa na vida
comunitária e na alteração do campo de experiências do homem moderno, tal
como apresentado nos capítulos deste trabalho. Enquanto, para Nora, a tirania
do acontecimento era o sintoma de um sistema civilizatório de dominação que
convertera o próprio tempo em objeto de consumo, para Benjamin, o choque de
informações veiculadas diariamente pelos meios de comunicação produzia um
soterramento de aquis e agoras no presente, de modo a impedir a tarefa do
historiador: retirar o passado do esquecimento.
Mas se ambos, por um lado, apresentavam diagnósticos em certa medida
convergentes, por outro eles propunham soluções e encaminhamentos bem
discrepantes entre si. Em tom messiânico, o filósofo alemão convocava no
ensaio “Sobre o conceito da História” a figura alegórica de um “anjo da
história” para salvaguardar os despojos e os detritos do passado, a fim de salvar
e de redimir a memória dos espoliados pela classe dominante que era, em
última instância, quem forjava a historiografia. Já o historiador francês, por seu
turno, atinha-se ao projeto racional da ciência, não fazendo da história
contemporânea um cavalo de batalha. Para ele, não cabia regredir a um passado
natimorto nem cabia prognosticar sobre um futuro incerto; ao historiador
cumpria ao contrário a tarefa de se concentrar na revelação das ambigüidades
do “acontecimento-monstro” e na exposição da maneira pela qual a avalanche
de novidades se degradava rapidamente na contemporaneidade.
As considerações de Walter Benjamin sobre os efeitos da imprensa de
massa na conformação da subjetividade moderna e as ponderações de Pierre
Nora sobre a produção, a metamorfose e os paradoxos de um “retorno do fato”
no último quarto do século XX foram muito importantes para o levantamento
da problemática geral do presente trabalho. A circunscrição da questão da tese
não poderia deixar de passar pela análise da produção fenomênica mediatizada
da informação, uma vez que a própria aproximação com o objeto fora feita
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através dela. Afora o acompanhamento das torcidas organizadas nos estádios,
em seu dia a dia ordinário, era sob a forma trágica de uma notícia catastrófica e
espetacular que elas apareciam, não só para mim como para a maioria das
pessoas. Sob o registro imagético da televisão, em nível internacional, a
“tragédia de Heysel” (1985) era o acontecimento mais impactante, ao passo
que, em nível nacional, a “batalha campal” do Pacaembu (1995) ocupara o
lugar de destaque como o incidente trágico mais marcante. Alertado quanto às
prováveis armadilhas e ciladas contidas nos estereótipos e nas representações
das torcidas de futebol nos meios de comunicação, que conduziriam a respostas
previsíveis, sem lidar diretamente com a riqueza de um objeto antropológico
multiforme e multifacetado, escolhi ainda assim o trabalho com as fontes da
imprensa escrita.
Ao ter de passar por um tema provavelmente reificado, o desafio era
justamente enfrentar tal reificação, de modo a decompô-la e a fazer uma
exegese do seu processo de construção. Inspirei-me largamente para isso em
dois ensaios seminais de José Sérgio Leite Lopes: o primeiro consagrava-se à
figura de Garrincha, o segundo à de Mário Filho. Publicado pela primeira vez
em 1989, “A morte da Alegria do Povo” tinha como fio narrativo o
acompanhamento da morte de Garrincha através da imprensa – “uma canção de
gesta mediática” , para em seguida abordar a sua trajetória fulminante de
ascensão e queda no futebol, de cujo esquecimento ele apenas escapa quando
do “falecimento-acontecimento” em 1983.
Ao mostrar as ambivalências da pessoa e do indivíduo no futebol, com a
oscilação na carreira de jogadores que, transformados em heróis esportivos
nacionais, caíam repentinamente no anonimato, o autor mostrava como essa
idolatria dependia de uma narrativa jornalística que lhe atribuía a estereotipia
da pureza e da ingenuidade próprias de um homem do campo, quando na
verdade se tratava de um atleta paradigmático do mundo das fábricas têxteis,
um típico representante do “jogador-operário” no Brasil. O segundo artigo,
publicado três anos depois, enfocava o projeto jornalístico de Mário Filho, com
a sua capacidade de produzir eventos e de reconfigurar a própria linguagem do
futebol, aspectos que seriam decisivos tanto na passagem do amadorismo para
o profissionalismo quanto na invenção de um estilo de jogo nacional.
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A inspiração concernia de modo mais direto às questões suscitadas pelo
segundo ensaio, “A vitória do futebol que incorporou a pelada”, embora ambos
pertencessem a um projeto coeso e integrado. Em “A morte da Alegria do
Povo”, José Sérgio lançava o primeiro de uma série dedicada a estudar as
diferentes facetas da história do futebol brasileiro pela ação inovadora
produzida por seus diversos personagens. Nas notas explicativas do texto sobre
Mário Filho, o autor afirmava que, após os perfis biográficos de um jogador e
de um jornalista, a idéia deveria ser completada pela análise de outros atores do
“enquadramento moral” do esporte: um presidente de clube, um treinador de
futebol e um representante de torcida.
Motivado por essa última sugestão, circunscrevi para o Capítulo 1 desta
tese “O chefe de torcida: entre vícios e virtudes” uma linha de discussão
que se desdobrava daquela idéia original. Concentrei-me para isto na figura do
torcedor de futebol e, em particular, no representante dos torcedores. Isto
porque ele se afiguraria de fato um dos principais vetores do “enquadramento
moral” do periódico esportivo de Mário Filho: o Jornal dos Sports. Após uma
discussão preliminar acerca do conceito de espectador nas artes, notadamente a
sua posição no teatro tal como fixada na tradição ocidental, dediquei-me ao
exame da representação do torcedor nos periódicos esportivos, com especial
atenção para a emergência de um tipo particular na linguagem esportiva: o
chefe de torcida. Conhecido na década de 1930 através da metáfora diplomática
do “embaixador”, enviado inclusive à Copa do Mundo da França, o
representante da torcida passou a ser designado como “chefe” na década de
1940, nomenclatura que mimetizava a autoridade moral presente em outras
esferas da sociedade. Da primeira geração de chefes de torcida que apareceu no
cenário futebolístico carioca, a personagem mais citada pelos cronistas do
Jornal dos Sports, em especial por Mário Filho, era Jaime de Carvalho, criador
da Charanga do Flamengo, que seria elevado à condição de chefe da torcida da
Seleção Brasileira em torneios internacionais no país e no estrangeiro.
Oriundos em sua maioria das classes populares, os chefes de torcida
daquela época, bem como vários outros torcedores conhecidos pelos trajes
pitorescos e extravagantes nos estádios, seriam alvo de uma exortação por parte
de muitos cronistas do JS, vistos como expressões autênticas e puras da
passionalidade clubística, encarnando as virtudes cristãs da doação, da paixão e
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do sacrifício. O sermo humilis – discurso humilde da tradição literária do
cristianismo, tratada por Erich Auerbach em Literary language and its public,
parecia redivivo na pena de cronistas esportivos que perfilavam torcedores cujo
altruísmo parecia-lhes tocante. Os chefes de torcida cumpriam assim uma dupla
missão no campo da reinvenção das moralidades no futebol: uma era
pedagógica, pela cooperação com a polícia no sentido da organização das
massas no espaço público das arquibancadas; a outra era a de ser a
quintessência da pureza amadora no futebol, de que somente o torcedor era
capaz naquele universo cada vez mais utilitarista e profissionalizado.
Embora a expressão “chefe de torcida” vá perdurar até a década de 1980,
a visão romantizada do cronista esportivo vai sofrer um grande revés a partir de
então, transformando-se em fonte de indignação. À medida que as lideranças
torcedoras vão se multiplicando em cada clube, com a quebra da autoridade
única e tradicional do chefe dos anos 40 e 50, novas práticas são introduzidas.
Aos olhos dos especialistas, elas se chocam com o ethos amador, considerado
até então intrínseco à condição do torcedor. A autenticidade e a pureza cedem
lugar à ambição desmedida, porquanto os chefes estabelecem muitas vezes uma
interação ambígua com os dirigentes esportivos, de quem muitas vezes extraem
benefícios políticos e econômicos. Assiste-se assim a uma espécie de “corrosão
do caráter” daquela figura, outrora simples, ingênua e amadora, que com o
tempo é corrompida pelo avanço das relações profissionais e monetárias no
futebol.
Longe de ser um fenômeno cerrado nas fileiras do futebol, sem conexões
com a vida social, procurou-se mostrar de que maneira esse debate moral deita
raízes em uma discussão acerca do caráter do homem brasileiro, bem como do
Estado nacional. Em especial, o debate tangencia um discurso weberiano, como
mostra Jessé Souza, diagnosticador do ‘atraso’ ibérico-latino, face ao mundo
nórdico anglo-saxão. Este caráter arcaico resultaria de uma “química
perversa”
4
, fruto da combinação entre uma via autoritária de desenvolvimento
do capitalismo e um modelo cultural hierárquico. Assim, se a hierarquia entre
superiores e inferiores fora a viga mestra justificadora da ordenação do mundo
colonial e imperial brasileiro, ele não desaparecera de todo com a introdução
4
Cf. SOARES, L. E. “Uma interpretação do Brasil para contextualizar a violência”. In:
PEREIRA, C. A. M. (et. al). Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 34.
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das relações capitalistas e republicanas. No campo, ele daria origem às relações
de compadrio entre o coronel e o camponês. Na cidade, a lógica do favor se
evidenciava não somente em nível institucional jurídico-político, mas também
no âmbito dos costumes mais comezinhos do cotidiano.
Entronizado pelo senso-comum e pelo diagnóstico dos jornalistas, a
análise histórico-antropológica detectava o beneficiamento pessoal em
detrimento do público como um dos entraves para o desenvolvimento do país,
consubstanciado na relação ambígua, dependente e obscura entre o dirigente de
clube e o chefe de torcida. Embora não explicitassem ou não soubessem de
modo consciente, os jornalistas seguiam a mesma linha de raciocínio dos
‘intérpretes do Brasil’ para justificar a suposta defasagem nacional ante o
modelo gerencial esportivo europeu, ao falar da incapacidade de uma
implementação integral do profissionalismo no futebol brasileiro, que era uma
outra forma de abordar as dificuldades de adoção de uma ética e de um espírito
capitalista no país.
Já no Capítulo 2 – “Microfísica do Poder Jovem , o texto de José
Sérgio Leite Lopes possibilitou-nos a abordagem do tema na chave da
continuação da ‘intriga’ por ele descrita a respeito da família de Mário Filho. A
trama girava em torno do desdobramento das tragédias e dos dramas familiares
vivenciado pelos Rodrigues, responsáveis não apenas por reportar a notícia,
mas também por criá-la e, ao mesmo tempo, por ser tragicamente alvo dela,
como sucedeu no assassinato de Roberto Rodrigues na redação do jornal do
pai, após uma reportagem sensacionalista veiculada pelo jornal. O espectro
delimitado por Leite Lopes compreendia a biografia de Mário Filho e a sua
capacidade de reabilitar socialmente a família através da valorização da
imprensa esportiva, em uma análise que vai até o falecimento do jornalista em
1966. Em seqüência, a baliza temporal aqui adotada, por sua vez, procurou dar
prosseguimento à trama, estendendo a narrativa no correr das décadas de 1960,
1970 e 1980. Por meio da leitura serial do Jornal dos Sports, a continuidade
dada pelo filho único de Mário Filho ao projeto comercial do pai no periódico
tornou possível o acompanhamento da invenção de uma série de novos eventos
por parte de Mário Júlio. Este, embora seguisse a linha, o espírito e a tradição
por assim dizer ecumenista do pai, teve de se adequar às contingências
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econômicas e às circunstâncias histórico-políticas impostas a partir do final da
década de 1960.
O Duelo de Torcidas, invenção de Mário Filho quando este ainda
trabalhava na seção de esportes de O Globo, foi uma das tradições a que Mário
Júlio deu prosseguimento nas páginas do Cor-de-Rosa, embora o tenha
adequado às novas configurações das platéias de esporte no decênio de 1960.
Mesmo após novos trágicos incidentes familiares, como o suicídio da viúva de
Mário Filho e o alcoolismo de Mário Júlio, o apoio às atividades das torcidas
organizadas na década de 1970 e 1980 continuaria como uma sólida marca de
um jornal que se construíra historicamente em aproximação estreita com elas.
Se o caráter inter-classista do futebol profissional preconizado por Mário Filho
abrangia também o caráter inter-geracional do público freqüentador dos
estádios e leitor dos periódicos esportivos – as decantadas famílias de que
sempre falam os ‘jornalistas-pedagogos’ , a predominância dos estratos
juvenis era uma realidade cada vez mais perceptível na sociedade e na
paisagem futebolística da segunda metade do século XX.
Mário Júlio cedo incorporaria ao discurso editorial e à estratégia
comercial do jornal o mote do fenômeno juvenil, da ‘onda jovem’ que então
parecia contagiante. Para isto, no final dos anos 60, o JS era autoproclamado “o
jornal do Poder Jovem”, na medida em que ele procurava colocar-se ao lado
dos estudantes e dos setores juvenis da sociedade, seja em termos de linguagem
seja em termos de projeto comum. Tal articulação era feita por intermédio de
uma diversidade de matérias e críticas na área cultural – música, teatro, cinema,
ciência, televisão, artes plásticas , que ultrapassava a rubrica tradicional dos
Esportes, fazendo do jornal um veículo plural e de livre-experimentação para
novos articulistas. Fora assim que surgira nas páginas do Cor-de-Rosa o encarte
mensal O SOL, um dos emblemas juvenis da geração de 1968, depois dos
versos de Caetano Veloso terem-no “enchido de alegria e preguiça”, diante de
“tanta notícia”. Outrossim, mais do que notícias, o periódico fazia circular
também muitas idéias, com a difusão de livros e de pensamentos elaborados
por intelectuais brasileiros e estrangeiros, assim como com a circulação das
diversas demandas e bandeiras então reivindicadas pelas entidades
representativas do movimento estudantil.
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Esse processo dinâmico-interativo proporcionar-nos-ia a percepção, de
maneira indiciária ginzburgiana, de uma ligação entre o jornal e o fenômeno
das torcidas organizadas. É no final dos anos 60 que surgem as torcidas
dissidentes no Rio de Janeiro, as Torcidas Jovens, com o rompimento do
monopólio das Charangas tradicionais. Sob inspiração do slogan internacional
Poder Jovem, que se tornara bordão do próprio Jornal dos Sports, estes
embrionários agrupamentos de torcedores seriam favorecidos pela cobertura
positiva privilegiada dada pelo JS às Torcidas Jovens. Em virtude disto, muitas
delas que nasciam sob o signo do protesto e da inconformidade, quer no que diz
respeito à gerência dos clubes e ao desempenho insatisfatório das equipes, quer
em relação aos chefes de torcida do mesmo time. Tal clivagem nos parece
capital, um divisor de águas na formação da identidade das torcidas
organizadas, que iriam se multiplicar na década de 1970, sob a forma de
dezenas e até centenas de torcidas de bairro. Sempre com o apoio do Jornal dos
Sports, que continuaria a promoção dos concursos e das premiações, essas
associações desenvolveriam tanto canais de diálogo que as aproximariam entre
si quanto conflitos e rixas que as distanciariam.
Em paralelo à intensificação das brigas, as torcidas criariam no final da
década de 1970 e início de 1980 uma associação de torcedores, a ASTORJ, que
também teria a simpatia do jornal, com a obtenção inclusive de uma coluna
especial para a informação da agenda de atividades da entidade. A iniciativa de
criação da ASTORJ, embora com uma adesão limitada em razão das crescentes
inimizades, resultaria em uma onda de greves dos torcedores, motivadas por
uma questão de ordem bem polêmica desde o final dos anos 60: a majoração do
preço dos ingressos. Também aqui o Jornal dos Sports não se eximiria de dar o
seu aval às ações das torcidas organizadas, com a cobertura das manifestações
dos torcedores na Geral do Maracanã ou em frente à sede social dos clubes, sob
a forma de revolta, de cobrança e de pressão pela redução do valor das
entradas, o que ganhava matérias, fotos e se tornava até mesmo manchete do
periódico. Embora não se tenha desejado aqui fazer uma redução simplista dos
acontecimentos verificados no mundo do futebol com o pano de fundo histórico
nacional e internacional, é lícito reconhecer a estreita sintonia entre o
movimento desencadeado pelas torcidas e o contexto político da época,
sobretudo por essa atmosfera de crescente contestação que se coadunava ao
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“tempo das aberturas”, não apenas nos partidos e nos sindicatos, nas igrejas e
nos bairros, mas também nas escolas de samba e no futebol.
A estratégia assumida no segundo capítulo então foi seguir a pista que
erigia como “problema” da tese a estreita vinculação entre a construção da
notícia e a construção do fato social na contemporaneidade. As principais
prerrogativas na abordagem do objeto foram levadas em conta: que se tratava
de um jornal especializado e representativo do público leitor-torcedor; que se
tratava de um periódico tradicionalmente propício e aberto às torcidas de
futebol, pautado na interatividade; que o jornal não era apenas um veículo de
reportagem, mas condição sine qua non para o reconhecimento de um
acontecimento, tal como falava Nora. Assim, se a História Nova se aproximava
de algumas formulações caras ao campo teórico da comunicação, coube a nós a
proposição de uma convergência de idéias entre o ensaio de Pierre Nora nos
anos 70 e o de Walter Benjamin nos anos 30. Conforme já salientado, o
paralelo acerca da presença decisiva dos meios de comunicação na realidade
social do século XX ficava apenas no âmbito do diagnóstico, posto que os
prognósticos foram bem diversos entre os dois autores. De fato, nos domínios
da razão, não parecia haver saída para um autor da Escola de Frankfurt, escola
que nos anos 60 e 70 desdobrar-se-ia no discurso da nova esquerda, a principal
base para a Teoria Crítica do Esporte, segundo a qual havia um assujeitamento
cada vez maior do homem às tecnologias da performance esportiva.
Ante a tirania do acontecimento, a passividade, a reificação e a ausência
de saída no mundo contemporâneo não seriam os únicos efeitos dessa
dominação. Do nosso ponto de vista, a força instauradora do acontecimento
mediatizado, que percebíamos nas “narrativas de choque” do Jornal dos Sports
com suas abordagens das torcidas organizadas, não era a única existente. Ao
lado das manchetes bombásticas, das notícias sensacionais e das reportagens
inflamadas, pudemos acompanhar, por intermédio de uma pequena seção
opinativa do periódico, a “prática discursiva” dos torcedores e das torcidas
organizadas no seu dia a dia. Como concessão do jornal à opinião do leitor, a
seção Bate-Bola demonstrava como a troca e a interlocução eram possíveis
mesmo nos meios dominados pela alta tecnologia. Destarte, mais do que mero
efeito reificador, as torcidas organizadas eram agentes de uma realidade que se
construía não apenas nas arquibancadas, mas também na linguagem, na
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comunicação e no espaço concedido no interior de um veículo de informação
de massa. Forjar uma conversa e possibilitar um meio de expressão das
identidades clubísticas, eis o papel que, talvez mesmo sem o saber ou querer,
aquela coluna cumpria. Os anúncios, as promoções, as confraternizações, as
idéias, as rivalidades, enfim, todo um canal de diálogo era aberto pelos
torcedores entre si e pelos torcedores com os especialistas esportivos, de forma
até certo ponto imprevista.
A polifonia dos estádios era reproduzida de certa maneira naquele
microcosmo do Jornal dos Sports, que contradizia os teóricos da vida totalitária
e unidimensional do mundo tecnicizado. Esse caráter polifônico levou-nos, no
Capítulo 3 “Genealogia da moral torcedora” , à observação do modo pelo
qual os torcedores reconstruíam à sua maneira o mundo dos valores existentes
no futebol e na sociedade. Após dissertarmos sobre algumas teorias relativas ao
fenômeno da violência, esteados no modelo genealógico nietzscheano que
Foucault abraçava para rechaçar a idéia de origem dos historiadores
tradicionais, teve-se de enfrentar a principal via teórica de explicação do
comportamento do homem em grupo, imerso na multidão: a genérica e lata
psicologia das massas.
Isso porque, conforme sintetizava o filósofo contemporâneo Sloterdjik, a
multidão “se orienta constantemente por noções morais, imagens e sensações,
em ‘imaginationes’, assim como por manifestações como avidez, ira, inveja e
anseio por honra, e não por idéias racionais.”
5
. A fim de contrastar com o peso
do irracionalismo presente nos argumentos da psicologia das massas, nossa
genealogia da moral torcedora acompanhou a longa série de cartas da coluna
Bate-Bola do Jornal dos Sports. As identidades clubísticas, fonte dos afetos e
das paixões morais do universo das torcidas, eram produzidas não apenas nos
estádios, mas no dia a dia das cartas publicadas nos periódicos esportivos. Ao
lado da verbalização, os torcedores-escrevinhadores racionalizavam e
justificavam à sua maneira as simpatias e as antipatias, as brigas e as amizades
com as torcidas adversárias, de sorte que aquele fórum criava uma dinâmica
particular de acusações, ameaças e congraçamentos, cuja conseqüência poderia
ser verificada nos dias de jogos.
5
Cf. SLOTERDJIK, P. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade
moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 52 e 53.
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Ao lado da violência, os apontamentos filosóficos de Simmel acerca da
aventura foram o ponto de partida para a abordagem de uma segunda dimensão
crucial na vida das torcidas organizadas: as caravanas de viagem. Através das
reportagens especiais feitas pelos jornalistas, evidenciou-se a narrativa
sublinhada por estes últimos nos primeiros deslocamentos coletivos de
torcedores no início da década de 1970 no Brasil. Sendo o ato de viajar em
grupo ainda uma novidade à época, decorrente da criação de um campeonato
nacional que integrava os diversos estados do país, mostrou-se como a
ampliação da escala e do circuito de enfrentamento entre os clubes implicou em
uma maior estruturação das torcidas, a fim de acompanhá-los nas demais
regiões do país. Tal missão peregrina, que tinha um aspecto altruístico e outro
hedonístico, ensejava a interação com outros grupos de torcedores, acionando
uma nova configuração das alteridades clubísticas e das relações inter-torcidas.
As alianças entre as torcidas começaram a ser constituídas em um dualismo
amizade-inimizade que variava ao sabor das recepções, se hospitaleiras ou
hostis, bem como das circunstâncias da rivalidade entre os clubes ou ainda dos
contatos pessoais entre as lideranças de cada torcida.
A leitura das cartas do Jornal dos Sports foi fundamental para a captação
de tal quadro, com a apreensão tanto da lógica dos relacionamentos quanto do
encaminhamento das queixas ou das saudações, mais tarde transformadas ora
em litígio ora em aliança.
Quanto ao terceiro aspecto, o universo lingüístico e musical, a
bricolagem pareceu ser o expediente mais freqüente na elaboração do repertório
e do vocabulário das torcidas organizadas. A extração de uma série de cânticos
e de palavras de ordem provinha de duas fontes básicas: por um lado, o ethos
épico oriundo da tradição dos hinos marciais dos clubes; por outro, o pathos
carnavalesco absorvido pela cultura de massas no Brasil do século XX, por
outro, sejam as marchinhas sejam os sambas-enredos. Se as relações entre os
jogadores no campo eram regidas pelas regras universais e por um sistema de
controle colocado acima dos mesmos, as relações entre os torcedores nas
arquibancadas eram erigidas de maneira até certo ponto autônoma, fruto de
uma cultura local e de uma moral comunicativa própria, perceptível nas cartas
publicadas no Jornal dos Sports. A mimetização dos esquemas táticos e o
emprego de suas respectivas categorias nativas – a garra, a raça, a força – eram
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absorvidos em consonância com as propriedades existentes no jogo, em
especial a dimensão agonística da virilidade masculina, que se transladava para
a linguagem e para a ação nas arquibancadas, configurando estilos próprios de
torcer. Assim, ao reportar as brigas, as viagens e as músicas de sua predileção
por meio daquela coluna, foi possível apreender parte das categorias mais
valorizadas e o sentido identitário estabelecido pelos integrantes e pelas
lideranças de torcidas organizadas entre si.
Ao chegarmos ao final dessa jornada, em que se procurou explorar o
máximo possível uma série de mensagens jornalísticas acerca do futebol,
notadamente de um fenômeno que lhe é correlato, as torcidas organizadas, é
necessário dizer que a descrição da massa bruta de informações coletadas
talvez tenha avolumado em demasia o conjunto do trabalho, sendo preciso
escoimá-lo, burilá-lo, desbastá-lo em outra oportunidade. Em contrapartida,
fica a sensação do quanto faltou acrescentar, do quanto existe ainda por fazer,
de quantas formas distintas se poderia enfocar esse objeto, a quantas fontes
diversas se poderia ainda recorrer para analisá-lo. “Demasiado humana”, a
impressão de inacabamento é, todavia, uma condição não só da história como
de todo labor científico. Conforme advertia Marc Bloch, esse apólogo da
história, em uma de suas obras paradoxalmente mais alentadas e completas, A
sociedade feudal: “... nunca permitir que o leitor se esqueça de que a história
conserva todo o encanto de uma pesquisa inacabada”
6
.
Ou, com licença poética, essa sensação de incompletude na ciência
poderia ser expressa na poesia por meio de um verso do curitibano Paulo
Leminski: “não fosse isso/ e era menos/ não fosse tanto/ e era quase”
7
...
6
Cf. BLOCH, M. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1998, p. 10. Citado por Paul Chaus
na apresentação ao livro.
7
Cf. LEMINSKI, P. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 2004.
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2. Cláudio Cruz, fundador da Raça Rubro-Negra (28/05/2005).
3. Ricardo Muci, ex-presidente da Flamante (19/07/2005).
4. Aida de Almeida, fundadora da Torcida Organizada do Vasco - TOV
(26/07/2005).
5. Armando Márcio Zucareli, ex-integrante da Charanga, do Poder Jovem do
Flamengo e da Flamante (03/12/2005).
6. João Venâncio Cysne, fundador da Força-Flu (11/12/2005).
7. José Francisco de Moura, ex-presidente da Torcida Jovem do Flamengo
(12/12/2005).
8. Sérgio Aiub, fundador da Organizada Jovem-Flu (28/12/2005).
9. Roberto Monteiro, ex-presidente da Força Jovem do Vasco (11/01/2006).
10. Leonardo Ribeiro, ex-presidente da Torcida Jovem do Flamengo
(20/08/2006).
11. Claude Mullois, líder da Titti-Fosi, do Paris Saint-Germain (01/07/2006).
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Apêndice
(Depoimentos e apontamentos biográficos)
1. Jaime de Carvalho, criador da Charanga
1
2
1
Este breve perfil biográfico foi elaborado com base em informações jornalísticas coligidas na
pesquisa empreendida no acervo impresso e fotográfico do Arquivo Histórico do Jornal dos
Sports. As duas principais fontes foram os cronistas Geraldo Romualdo da Silva e Max Morier.
Durante o período de doutoramento, foi publicado em duas versões nas seguintes oportunidades:
Cf. REVISTA DE HISTÓRIA. “A Charanga do Jaime”. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca
Nacional, ano 1, n. 11, agosto de 2006. Cf. também REVISTA ESPORTE & SOCIEDADE. “No
tempo da Charanga”. In: <http//:www.esportesociedade.com/>. Rio de Janeiro: nº 4. Acesso em:
07 de novembro de 2006.
2
Folheto de divulgação interna para sócios do Clube de Regatas do Flamengo, em edição
comemorativa de mais um aniversário de Jaime de Carvalho, ilustrado na capa. Fonte: Patrimônio
Histórico do Clube de Regatas do Flamengo.
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“– Flamengo, Flamengo/ Tua glória é lutar/ Flamengo, Flamengo/
Campeão de terra e mar.”. Com esse refrão adaptado do hino oficial do clube,
a Charanga saudou por quase cinqüenta anos ininterruptos a entrada de seu
time em campo. Seja nos famosos alçapões do subúrbio, com suas precárias
arquibancadas de madeira, seja no maior estádio do mundo, o Maracanã, com
sua engenhosa armação de concreto, a pequena orquestra musical fez-se
presente com seus instrumentos de percussão, de metal e de sopro, movida
pela devoção ao clube, mas também pelos dez contos de réis e pela caninha
oferecida a seus componentes nos intervalos dos jogos. À sua frente, Jaime
Rodrigues de Carvalho, um anônimo funcionário público de baixo-escalão,
que no decorrer das décadas iria adquirir projeção nacional e internacional
como chefe de torcida do Flamengo e da Seleção Brasileira.
Natural de Salvador, nascido a nove de dezembro de 1911, Jaime de
Carvalho desembarcou de um ita no Rio de Janeiro, capital da República, no
ano de 1927 e na mesma semana foi assistir a uma partida de futebol nas
Laranjeiras. Sua simpatia inicial pelo Fluminense foi frustrada na semana
seguinte quando, ao término de um treino, foi à sede social do clube conhecer
as dependências da antiga propriedade da família Guinle, com seus vitrais
imponentes e com seu estilo art nouveau, encontrando no entanto os portões
fechados. Impedido de entrar, deu meia-volta e se dirigiu logo em frente, à rua
Paissandu, onde então se localizava o campo do Flamengo. Como os
jogadores treinavam em uma área aberta ao público, a proximidade dos atletas
com a legião de curiosos que se aglomerava ao redor do gramado para ver a
preparação dos ídolos Benigno, Hélcio e Moderato, acabou por conquistar o
fervor de Jaime.
Cinco anos depois de instalado no Rio, período em que teve de pular o
muro, pedir dinheiro ou simplesmente carregar a chuteira dos atletas para não
ficar de fora dos jogos, Jaime de Carvalho conseguiu um emprego modesto,
porém estável, como servidor público no Ministério da Justiça, o que lhe
permitiria casar-se com uma portuguesa, dona Laura, e ao longo da vida ter
uma freqüência assídua às partidas. Tal ocupação possibilitou também que se
tornasse sócio-contribuinte do clube em 1936, época na qual o Flamengo, ao
transferir-se para o bairro da Gávea, realizou uma intensa campanha para
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expandir seu número de associados – de setecentos para dez mil – e contratou
grandes craques, como Fausto, Domingos da Guia e Leônidas da Silva, que
deram visibilidade nacional ao time, em disputas transmitidas pelas rádios do
Distrito Federal para boa parte do território brasileiro. Jaime iniciou aí uma
estreita amizade com os diretores do clube, passou a viver com intensidade
seu cotidiano e, apreciador das regatas, chegou a ser remador até 1947,
quando assumiu a condição de sócio-proprietário.
A idéia de criar a Charanga ocorreu na véspera da partida decisiva do
Campeonato Carioca de 1942. Naquele sábado anterior à final, Jaime e o
amigo Manuel Jesus da Silva esperaram até de noite para conseguir a única
bandeira do Flamengo existente na cidade, hasteada no mastro da sede do
clube. Depois, ficaram até de madrugada tingindo um morim de vermelho e
preto com a inscrição: “Avante, Flamengo!”
3
. Na manhã seguinte, no dia onze
de outubro, Jaime chegou cedo ao estádio da rua Álvaro Chaves para a disputa
contra o Fluminense em companhia de cerca de quinze músicos, portando um
pistom, um trombone, dois clarins e mais dez instrumentos rítmicos. A
presença daquele grupo ruidoso instalado nas arquibancadas causou espanto,
pois até aquele momento a música só fazia parte das comemorações fora do
estádio, com a improvisação de corsos, com a invasão de bondes e com a
realização de passeatas a percorrer vários pontos da cidade.
A estréia do grupo foi considerada um sucesso, com a obtenção do
almejado título pelo clube. No ano seguinte, Jaime levou adiante a idéia
inédita e a banda passou a acompanhar o time com regularidade aonde quer
que ele fosse. Mas no início a presença do grupo pareceu tão bizarra que Ari
Barroso declarou em seu programa na Rádio Tupi: “– Me desculpem, mas isso
não é banda nem aqui nem no caixa-prego”. A duvidosa qualidade sonora do
grupo deu origem ao apelido gaiato de charanga, cunhado pelo excêntrico
locutor esportivo e por seu colega Everardo Lopes. Apesar da crítica irônica, a
declaração de Ari Barroso acabou por divulgar a existência da orquestra, que
se tornou conhecida na cidade e fez o nome pejorativo ser adotado como
oficial.
3
Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1972, p. 14.
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Ainda naquele ano de 1943, a Charanga enfrentaria resistências por
parte do meio esportivo. Isto porque a tal desafinação do grupo revelou-se um
recurso estratégico não só para prestar apoio ao Flamengo como sobretudo
para atrapalhar a concentração dos adversários. À exceção de São Januário, os
estádios da época eram todos de pequeno ou médio porte e a área destinada ao
público ficava muito próxima do gramado, a chamada Geral, o que ensejava a
comunicação entre torcedores e jogadores, sendo constantes até as invasões de
campo. Por isto, a Charanga colocou-se atrás do gol onde atacava o clube e as
marchinhas executadas acabavam por distrair e irritar o goleiro da equipe
rival. Em um jogo contra o São Cristóvão, no momento em que o Flamengo
meteu o seu quarto gol, o arqueiro do modesto time da zona norte perdeu a
paciência e foi reclamar com o juiz acerca da presença inoportuna da torcida
naquele lugar. O árbitro ordenou que a polícia a retirasse imediatamente do
local e o caso terminou na justiça desportiva, com dirigentes tentando
impugnar a partida e banir a orquestra em definitivo. Para os adversários,
aquela bossa de grupos musicais nos estádios do Rio “era a maior chatice
descoberta pelo homem”.
O desejo de parte dos cartolas, dos juízes e dos jogadores não foi
atendido pelo presidente da Federação Metropolitana de Futebol. Vargas Neto
considerava a música um fenômeno novo que surgia nas praças de esporte e
devia ser vista em seus aspectos positivos. Ela contribuía para atenuar as
brigas entre os torcedores e para abafar as palavras de baixo-calão ouvidas
com cada vez mais constância durante as partidas. Sobrinho de Getúlio
Vargas, a autoridade-mor da liga carioca era também cronista do Jornal dos
Sports e partilhava dos mesmos princípios de seu diretor Mário Filho,
jornalista que se dedicava desde a década de 1930 a promover as escolas de
samba e o futebol profissional na cidade como verdadeiros espetáculos de
massa. Para eventos de tal monta, era necessária a constituição de um público
participante que assistisse às competições de maneira festiva e animada, sem
arroubos ou excessos de conduta. A presença de um chefe de torcida que
auxiliasse o trabalho do chefe de polícia era assim bem-vinda.
Considerada à primeira vista uma atração pitoresca, a introdução da
música nos estádios cumpria a função de canalizar toda a polifonia suscitada
por uma partida de futebol. Aplausos, gritos, vaias, palavras de ordem, coros –
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o hip-hip-hurrah! da belle-époque carioca eram agora contrabalançados pela
força coletiva de uma sonoridade específica. Marchinhas carnavalescas
intercalavam-se aos solenes hinos dos clubes. Estes por sua vez assimilavam a
ritualística e a tradição de corporações centenárias como a banda da Polícia
Militar, a banda dos Fuzileiros Navais e a banda do Corpo de Bombeiros. Elas
davam uma conotação épica e heróica às partidas, o que já parecia plenamente
incorporado pelo sentimento esportivo e pelo pertencimento clubístico. Os
esportes modernos reabilitavam o conceito de jogo, que desde a Grécia antiga
estava ligado à sublimação da guerra e ao enfrentamento simbólico dos povos
por meio de competições olímpicas.
A inovação sonora fazia-se acompanhar ainda da inovação visual. De
uso restrito aos atletas, as camisas dos clubes passam a ser confeccionadas
artesanalmente pela Charanga na década de 1940. Um grupo compacto
começa a destacar-se da massa informe. Em substituição às fitas e aos lenços
coloridos abanados pelo público durante os jogos, os uniformes
transformavam-se no elemento de identificação dos torcedores de cada clube.
Se a indumentária dos espectadores de futebol não se distinguia da vestimenta
das elegantes platéias de teatro, cinema e ópera, com o habitual terno e
gravata, a camisa populariza a paisagem das arquibancadas e vem a despertar
a atenção pelos efeitos cromáticos a que dá vazão. Em um setor reservado e
separado dos demais por um cordão de isolamento, as torcidas uniformizadas
são convocadas a comparecer por rádios e jornais em número de às vezes mil
integrantes. Após a realização de ensaios no transcorrer da semana, elas
executam coreografias que se valem de painéis, cartões e sinalizadores
luminosos, ainda mais atraentes nas partidas noturnas.
O aparecimento da Charanga se inseria nesse contexto de expansão dos
esportes e de alteração do papel da assistência, que assumia de maneira
progressiva um sentido ativo nas disputas. Em meio a críticas e defesas, o
agrupamento de Jaime foi se afirmando naqueles três primeiros anos de
existência, graças também aos sucessivos triunfos do time no campeonato, que
se sagrou pela primeira vez tricampeão carioca. No ano de 1944, em uma final
na Gávea superlotada com vinte mil espectadores, Jaime levou uma bomba de
fabricação caseira para competir com a imensa quantidade de fogos
preparados pela torcida do Vasco da Gama. Os fogos de artifício eram uma
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recente invenção pirotécnica nos estádios e, naquele jogo, surpreenderam a
todos com uma cortina de fumaça que encobriu a visão do campo por alguns
minutos. Após o contestado gol de Valido nos minutos finais do jogo, Jaime
comandou a euforia da massa à saída, sob o improviso de um bloco que
atravessou diversos bairros e bares da cidade.
O advento do Maracanã marcaria uma nova fase na participação de
Jaime de Carvalho como torcedor. Já conhecido na cidade como principal
representante da torcida rubro-negra, sua liderança agora transcendia os
limites clubísticos e ganhava contornos nacionais. Ela seria decorrência da
realização da Copa do Mundo no Brasil, em 1950, e da sua escolha para
assumir a chefia da torcida da Seleção Brasileira no recém-inaugurado Estádio
Municipal. Após doze anos de intervalo do torneio, em virtude da Segunda
Guerra Mundial, o país seria eleito como sede de um encontro internacional
de grande repercussão e magnitude. A nação assumia a incumbência de
mostrar à Europa a sua capacidade de organização e a sua condição de país
moderno e civilizado, mediante um povo apto a mostrar seu elevado pendor
cívico-moral.
A preocupação em passar a imagem de um país pacífico e cordato fazia
com que as autoridades esportivas delegassem a Jaime de Carvalho boa parte
do encargo de orientação dos torcedores no estádio. Uma intensa campanha
desenvolvida pela imprensa ressaltava a inconveniência do arremesso de
objetos no gramado, do emprego de palavrões e recomendava a chegada
antecipada ao estádio, a fim de evitar tumultos na entrada. Com este intuito, os
meios de comunicação davam inteiro aval à Charanga, que contava ainda com
o patrocínio de uma loja de roupas a anunciar suas atividades, seus
preparativos e suas surpresas para os dias de jogo. Ao final da competição,
apesar da trágica derrota da seleção brasileira para o Uruguai, os torcedores
seriam agraciados com inúmeros elogios e exaltações, inclusive do presidente
da FIFA, Jules Rimet, pois haviam sabido perder com dignidade e patriotismo.
Antes disto, também, já tinha sido frisada a criatividade da torcida na partida
contra a Espanha, quando, em meio à goleada de seis a um, surge de forma
espontânea o clamor da massa entoando a marchinha “Touradas de Madri”,
composta por João de Barros, em uma alusão irônica à débâcle da fúria
espanhola naquela tarde. Presente ao jogo, o compositor foi às lágrimas ao
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escutar sua música cantada por uma multidão estimada em cento e cinqüenta
mil pessoas.
O êxito de Jaime de Carvalho na condução dos torcedores brasileiros se
revelaria frutífero dali em diante, com a inauguração de um ciclo de viagens
internacionais que se iniciaria na edição seguinte da Copa do Mundo, na
Suíça, em 1954. Depois de colocar-se novamente à frente da torcida na fase
eliminatória do mundial, partiria do jogador Didi e dos demais membros da
delegação o apelo coletivo que reivindicava a importância da presença do
líder da Charanga nas terras européias. Com o pedido atendido, uma
campanha desencadeada pelo Jornal dos Sports e por um outro
estabelecimento comercial angariou fundos para a viagem, concedendo a
Jaime não só a passagem como o status de embaixador da torcida brasileira no
exterior, ao lado da torcedora Sarah Amad, vencedora do concurso de
embaixatriz do jornal Última Hora. Jaime embarcou para a capital helvética
munido de vários apetrechos, dentre eles, dez couros para confeccionar
surdos, trezentas gaitinhas, duas sirenes e um par de pratos de banda de
música. Na estréia da seleção, entrou em campo junto com os radialistas
brasileiros e estendeu sobre o alambrado uma faixa verde e amarela com o
lema bordado em branco “Avante, Brasil!”, o que se afiguraria uma novidade
em âmbito internacional.
No mesmo ano de 1954, esse torcedor viria a participar do Campeonato
Sul-Americano, na Argentina. Sua mulher, Laura de Carvalho, se
responsabilizaria pela confecção da maior bandeira do Brasil feita até então,
com oito por dez metros, que seria desfraldada na entrada do time em campo.
Produção caseira, ela tinha sido tingida em latas velhas, em um fogão a lenha.
A utilização da imensa bandeira constituiria um mecanismo eficaz de
concentração e de aglutinação dos torcedores de um mesmo país no interior de
um estádio, fato inédito à época. A experiência das viagens se tornaria assim
recorrente ao longo das décadas e perduraria até o final de sua vida. Sua
participação se estenderia à Copa do Mundo do Chile, em 1962, quando o
Brasil obtém o bicampeonato; às partidas eliminatórias no Paraguai, válidas
para o Mundial do México, em 1970, quando o país torna-se tricampeão; e à
Copa do Mundo da Alemanha, em 1974. A ausência nas demais competições,
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a da Suécia em 1958 – quando recebeu o convite de Zagalo – e a da Inglaterra
em 1966, se deveria tão-somente a problemas de ordem familiar.
O prestígio obtido com a atuação nos jogos da Seleção Brasileira não
impediria a continuidade de sua vivência em nível local. Esta não se restringia
ao domínio do futebol profissional e aos embates do campeonato carioca. A
Charanga se integraria às mais diversas modalidades esportivas em que o
clube estivesse envolvido, como o remo, o vôlei e o basquete. Os esportes
amadores também seriam alvo de interesse da agremiação, que marcaria
presença também nos Jogos da Primavera e nos Jogos Infantis, eventos
tradicionais da cidade. Nos anos de 1960, Mário Filho reeditaria uma outra
atração lançada originalmente pelo seu jornal no ano de 1936 e que desde a
década de 1950 havia sido retomada: o Duelo de Torcidas. Tratava-se de levar
para a arquibancada o mesmo espírito esportivo vivenciado dentro de campo e
de transferir para os estádios a lógica competitiva dos desfiles das escolas de
samba. Um júri constituído pelo jornal avaliava a performance dos torcedores
nas arquibancadas com base em critérios estéticos que enfatizavam a
qualidade e a vibração das baterias, a originalidade e a criatividade das
fantasias, a quantidade e o tamanho das bandeiras, entre outros quesitos.
Esses estímulos da imprensa esportiva acabariam por impregnar os
jogos de uma ambiência carnavalesca. Os cronistas não mediriam esforços em
descrever por meio de metáforas a beleza proporcionada pela agitação de
sirenes, flâmulas, confetes, serpentinas, estandartes e balões multicores. Em
tom de grandiloqüência, Mário Filho referia-se ao “rumor oceânico da
multidão” e aos “abalos sísmicos” provocados pelo frenesi da torcida. Já
Vargas Neto salientava “as cachoeiras de papéis picados”, que produziam uma
“cascata de arco-íris”. Nélson Rodrigues, por sua vez, imprimia à
comemoração dos gols o timbre poético que lhe era característico: “no ar, por
muito tempo, o grito em flor”; “no mar, uma flora de bandeiras flamengas”.
Para a produção de semelhante espetáculo, chefes de torcida como
Jaime, Dulce Rosalina, Tarzã e Paulista mobilizavam-se durante a semana
inteira. Jaime arregimentava as crianças da vizinhança de sua residência em
Niterói para fazer as bandeirinhas, deslocava-se ao centro do Rio para
comprar tecidos nas lojas especializadas e buscava subvenção junto aos
dirigentes do clube para vencer os torneios entre as torcidas. No caso da
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Charanga, a preparação culminava na véspera da partida, quando dona Laura
passava a noite fazendo refeições para receber os trinta músicos que
compunham o grupo na manhã seguinte. Depois do lanche matutino, os
integrantes da banda encaminhavam-se para o Maracanã, a fim de demarcar o
território, distribuir as tarefas, desfraldar as bandeiras, amarrar as faixas e
afinar os instrumentos. Ainda que o jogo principal só começasse a tarde, a
Charanga costumava chegar ao estádio às dez horas da manhã.
Essa rotina de campeonatos seria comprometida no final da década de
1960, quando Jaime de Carvalho adoeceu e teve de enfrentar um quadro
clínico de pressão alta e diabete. O afastamento temporário de Jaime dos
estádios criou um vácuo na liderança da torcida do Flamengo, o que permitiu
a instauração de uma crise em seu interior. Um grupo de rapazes decidiu
abandonar a Charanga e criar uma torcida organizada própria, denominada
Poder Jovem, que mais tarde viria a se chamar Torcida Jovem do Flamengo.
Inspirada nos movimentos juvenis internacionais, esta facção inaugurava
novos métodos de participação nos estádios. Os membros desta nova geração
de torcedores lutavam pelo direito ao protesto e à contestação em fases críticas
da equipe, procedimento inconcebível para Jaime de Carvalho, que não
admitia vaias ou qualquer tipo de hostilidades aos jogadores. Com o
questionamento de sua autoridade, o ato de torcer adquiria outros significados
e gerava uma cisão na unidade da torcida existente desde a década de 1940.
Nesse período, entretanto, Jaime já possuía o reconhecimento na cidade
e se tornava um personagem célebre no meio esportivo, o que lhe renderia
inúmeras homenagens. O Jubileu de Prata da Charanga em 1967, quando
completou vinte e cinco anos de existência, foi comemorado com uma festa
no Morro da Viúva, com direito a discursos de dirigentes, a mensagens do
presidente do clube e a presentes como um moderno megafone importado dos
Estados Unidos para auxiliá-lo nas arquibancadas. Se já possuía o título de
torcedor número um do Rio, outorgado pelo capitão de policiamento do
Maracanã, no ano seguinte os representantes das torcidas co-irmãs, do Vasco,
do Botafogo, do Fluminense e do Bangu atribuiriam a Jaime a condição de
chefe dos chefes de torcida. Até as torcidas organizadas do Corinthians lhe
ofereceram uma medalha com a inscrição “ao fiel”. A homenagem principal
viria no ano de 1973, ocasião em que Jaime receberia o título de cidadão do
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estado da Guanabara pelos serviços prestados ao “clube mais querido do
Brasil”.
Jaime de Carvalho permaneceria no comando da Charanga até o seu
falecimento. Mesmo enfermo no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de
Janeiro, não deixaria de enviar cartas à seção de leitores do Jornal dos Sports
e continuaria a instruir os torcedores acerca de seu comportamento nos
estádios, até ser acometido por um câncer no dia quatro de maio de 1976.
A chefia da torcida seria então passada para sua mulher, dona Laura,
que manteve ativa a Charanga durante a década de 1980. Sua retirada dos
estádios ocorreu na década seguinte, quando as torcidas organizadas
começaram a usar outros ritmos, como a batida funk, para embalar seus cantos
e, com maior capacidade de mobilização, apropriaram-se do espaço ocupado
pela Charanga. Sem mais ecoar como outrora, a orquestra se deslocou para as
cadeiras comuns do anel inferior Maracanã e, pouco tempo depois, retirou-se
do estádio, limitando sua atuação às partidas amadoras e aos eventos sociais.
Ao longo de quase trinta e cinco anos, Jaime de Carvalho dividiu seu
tempo entre os compromissos com o funcionalismo público e as atividades
com sua agremiação torcedora. Sua vinculação a esta última parece ter lhe
dado um espaço na vida brasileira e carioca, em particular, que de outro modo
passaria despercebido. Precursor de um movimento de aproximação entre a
música e o futebol, Jaime foi um dos responsáveis por formar uma platéia
festiva e competitiva nos estádios do Rio de Janeiro durante as décadas de
1940, 1950 e 1960, tornando-se assim o protótipo da abnegação e da paixão
por um clube, figura emblemática de um cotidiano compartilhado por
milhares de torcedores Ao criar esta atmosfera, promoveu em torno de si a
integração dos mais diferentes estratos sociais, que iam de professores,
advogados, escriturários, magistrados, médicos, operários, militares, até
expoentes do rádio e da música popular, como o compositor Ari Barroso, a
cantora Ângela Maria e o cantor Blecaute. Embora não tenha participado do
grupo, seria entretanto Wilson Baptista o sambista que melhor retrataria o dia-
a-dia e a fidelidade do torcedor: “Pode chover,/ pode o sol me queimar/ que eu
vou pra ver/ a Charanga do Jaime tocar:/ – Flamengo, Flamengo!/ tua glória é
lutar,/ quando o Mengo perde/ eu não quero almoçar,/ eu não quero jantar.”.
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2. Sérgio Aiub, fundador da Organizada Jovem-Flu
4
Sérgio Aiub nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1941, no bairro de
Cascadura, em uma casa onde habitou durante toda a vida. É filho de
imigrantes árabes vindos da capital do Líbano, Beirute, que se conheceram no
Brasil como trabalhadores do comércio de tecidos. Cursou o ensino
fundamental e em seguida ingressou na Aeronáutica, onde iniciou em fins dos
anos de 1950 uma carreira militar que se estendeu até 1967, quando foi
dispensado da corporação. Seu emprego principal foi o de feirante, na venda
de roupas, o mesmo ofício de seus pais. Especializou-se durante a década de
1980 na confecção de fantasias para o desfile das Escolas de Samba, o que se
tornou desde então a sua principal fonte de renda. Participou de maneira ativa
da Portela, da fundação da Tradição e da Beija-Flor, onde criou uma ala para a
sua torcida. No momento em que concedeu o depoimento, estava aposentado,
com sessenta e quatro anos e enfrentava problemas de saúde recorrentes.
Em seu relato, a aproximação com o futebol e com o Fluminense deu-se
graças à sua única irmã. Na década de 1950, ela tinha um namorado que torcia
pelo clube tricolor e a mãe apenas autorizava a ida da moça ao Maracanã na
presença do irmão. Costumava freqüentar as arquibancadas no setor esquerdo
das tribunas do estádio, à exceção dos jogos contra o Flamengo, quando a
torcida tricolor se posicionava à direita. Sentava próximo à torcida organizada
oficial do clube, a única existente até então, e admirava o tremular das
bandeiras brancas, vermelhas e verdes, sob o comando de Carlos Guilherme
Krüger, o Paulista, à frente do grupo. Certa feita, ouviu as instruções deste
com o pedido para que os torcedores do Fluminense levassem papel picado
para o estádio. Autodefinindo-se como uma pessoa obediente e dedicada,
chegou no jogo seguinte com duas imensas sacolas, portando serpentina e o
material solicitado, atitude que chamou a atenção de Paulista. À medida que
se aproximou da TOF (Torcida Organizada do Fluminense), tornou-se
conhecido no grupo e ficou responsável pela fabricação de bandeiras, sendo
elevado à condição de auxiliar de Paulista. As camisas da torcida seguiam o
4
Ex-líder da Torcida Organizada do Fluminense (TOF) e fundador da Organizada Jovem-
Flu em 1976. Entrevista concedida no dia 28 de dezembro de 2005, em sua casa, na Rua
Francisco Vale, no bairro de Cascadura. Duas horas de gravação.
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padrão dos jogadores em campo, ao contrário de Jaime de Carvalho, do
Flamengo, que fizera um uniforme com um símbolo próprio para a Charanga,
bordando uma lira na altura do peito esquerdo, alçada acima do escudo do
clube.
Sérgio produzia bandeiras grandes, de quatro a cinco metros de
comprimento por três e meio de largura, com a inscrição: Torcida Organizada
do Fluminense Football Club. Possuía cerca de trinta bandeiras, guardadas na
casa de um amigo que morava da Favela do Esqueleto, nas imediações do
Maracanã, um conjunto habitacional derrubado nos anos de 1960, onde hoje
se situa a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ. Isto era
necessário, pois ainda não havia sala para abrigar o material de sua torcida nas
dependências do estádio, o que veio a ocorrer apenas nas décadas de 1970 e
1980. Ao seu lado recebia a colaboração de Bolinha, outro antigo torcedor,
que levava para os jogos um sino pesado e barulhento. Junto a Ramalho e
Dulce Rosalina do Vasco, Tarzã do Botafogo, Juarez do Bangu e Jaime do
Flamengo, os tricolores Paulista e Bolinha constituíam os dois primeiros de
chefes oficiais da torcida do Fluminense nas lembranças de Sérgio, que dizia
pertencer à segunda geração.
Nos decênios de 1950 e 1960, os chefes de torcida eram importantes e
possuíam força no futebol, uma vez que o grupo era unido e não havia facções
internas. Em razão disto, contudo, o progressivo crescimento das torcidas
proporcionou a circulação de uma série de boatos onde se dizia que eles eram
mercenários e recebiam dinheiro do clube. A sanha pelo poder se exacerbou
entre 1965 e 1970 e o primeiro clube onde se instaurou uma dissidência de
torcedores foi o Flamengo, com o surgimento da Torcida Jovem, liderada por
tio Guima e tia Helena. O movimento juvenil dissidente configurou-se um
sucesso, em suas palavras uma “revolução”, e as torcidas de outros clubes
seguiram o exemplo. Com isto, houve um esvaziamento repentino da
Charanga, conhecida a partir de então como “torcida de velhos”, o que causou
o descontentamento de Jaime, melindrado com o acontecimento, embora sua
figura continuasse respeitada e prestigiada pela maioria.
No Fluminense, com o adoecimento de Paulista, houve uma tentativa de
tirá-lo da liderança, mas Sérgio impediu e aos poucos ascendeu no comando
da torcida. A pressão interna por espaço na torcida resultou no aparecimento
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da Força-Flu e da Young-Flu, meses após a Copa do Mundo de 1970. Estas se
posicionavam atrás do gol, local de pior visibilidade no estádio, para se
contrapor à torcida oficial do clube e para concorrer com a Torcida Jovem do
Flamengo, que ficava do lado diametralmente oposto. A Força-Flu tinha seu
nome inspirado em um lema de incentivo da torcida italiana inscrito na
semelhante bandeira tricolor – “Forza, Itália” – observada durante a Copa do
México nas transmissões exibidas a cores e ao vivo pela primeira vez no
Brasil. Por consideração a Paulista, uma pessoa calma que durante trinta anos
colocou a faixa de sua torcida na arquibancada diz-se que havia inclusive
participado da construção do Maracanã, como funcionário da Prolar, empresa
de Benício Ferreira Filho, vice-presidente de futebol do Fluminense,
vencedora da licitação da obra – e por consideração à família daquele
torcedor, com quem continuou tendo boas relações, Sérgio não aderiu às
dissidências e continuou na liderança da TOF. No entanto, foi membro
fundador da Força-Flu e manteve um relacionamento de camaradagem com
Gebê, Valter e os demais líderes de tal facção, a quem chegava a emprestar
suas bandeiras.
A novidade da criação de torcidas desatou um processo em cadeia que
se estendeu aos outros clubes e, desde então, ante qualquer discordância, um
novo grupo era formado. Tal fato sucedeu no Vasco, com a tentativa de
destituição de Dulce Rosalina da liderança da TOV e a fundação logo em
seguida da Força Jovem do Vasco, assumida pelo dissidente Eli Mendes. A
Young-Flu não chegou a configurar uma dissidência, tendo surgido de
maneira autônoma e independente por iniciativa de um grupo de amigos que
costumava sentar junto na arquibancada. Como a Força-Flu ficava situada
atrás do gol, de início a Young agrupou-se na altura do córner e somente
depois o posicionamento entre elas foi invertido. A Young despontou com um
fenômeno inusitado, o patrocínio de uma agência de carros, a Flucar, que
pertencia ao Luisinho, um integrante da torcida. Desde o início seus
fundadores – Armandão, Marcelo, Rato, Zezé e Paulo César Pedruco –
despontaram com tais inovações e rivalizaram na disputa pela hegemonia da
torcida tricolor com a Força-Flu.
Assim, a participação de Sérgio na torcida abrangeu várias etapas. Ela
começou com a freqüência aos jogos a partir de 1959, quando ia na
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companhia de sua irmã; em seguida, por volta de 1963, quando ascendeu de
maneira espontânea à condição de auxiliar de Paulista, sendo incumbido da
confecção e do transporte de bandeiras; e de 1967 em diante, quando impediu
a retirada de Paulista da liderança por parte de outros componentes e passou a
se colocar à frente da torcida de modo mais direto. Este período coincidiu, no
entanto, com seu ingresso na vida militar. Aos dezoito anos, desejava não
somente prestar serviço, mas desenvolver uma carreira na hierarquia da
Aeronáutica. Segundo seu depoimento, foi uma conciliação tensa e difícil,
pois tinha às vezes de fugir do quartel para poder assistir aos jogos. Na época
já ocupava uma posição de destaque na torcida e não perdia os jogos, sendo
sua prioridade o acompanhamento do Fluminense, embora não deixasse de
cumprir as suas obrigações no quartel. A projeção na torcida fez com que
recebesse em sua casa emissoras de televisão, como a TV Continental, além
de revistas e jornais, sendo sua residência conhecida como o QG dos
torcedores. No intuito de promover a partida, reportagens e filmagens eram
feitas durante a semana que antecedia aos jogos clássicos e, em dias de
decisão, mobilizava a vizinhança para pintar os muros e enfeitar as ruas da
localidade.
A participação na torcida era vista com reserva e encontrava muita
resistência na Aeronáutica. Ao entrar para aquela instituição em 1960,
cumpriu tempo de serviço obrigatório e deu início a um curso para sargento,
que o obrigava a ir para Guaratinguetá, no estado de São Paulo. Tinha de
dormir no quartel na noite anterior para embarcar no Galeão, no avião que
levaria a sua unidade para o litoral paulista na manhã posterior. Certa vez
perdeu o vôo em uma quinta-feira, no dia seguinte a uma partida do
Fluminense, e por causa disto foi desclassificado do curso de sargento.
Mesmo assim, continuou a vida militar até 1967, período no qual Castelo
Branco ainda estava na presidência da República e iniciou uma reestruturação
na corporação, com uma portaria que resultou em uma dispensa maciça.
Embora a instauração da ditadura tivesse ocorrido em 1964, ressalta que sua
baixa não teve qualquer motivação de ordem ideológica.
A dificuldade na conciliação das duas atividades resulta em sua visão
do chefe de torcida como a de um trabalhador. Ainda que não haja
remuneração nem patrocínio, este faz tudo com grande empenho e dedicação.
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Recorda-se as vezes em que dormiu dentro do próprio Maracanã, escondido
sob as marquises, na véspera dos jogos importantes, a fim de poder preparar a
festa da torcida, com talco e papel picado. No período em que a ADEG
(Associação de Desportos do Estado da Guanabara), – nome da antiga
SUDERJ, órgão gestor do Maracanã –, era dirigida por Abelard França,
passou a receber três credenciais para entrar no estádio e arrumar seu material.
Às vezes, precisava de mais componentes da torcida e tinha de tirar dinheiro
do próprio bolso para que eles entrassem pelo portão 18. Tinha de subornar
“os caras”, mas tudo era feito sob a justificativa do trabalho: picar papel, tirar
as bandeiras, os bambus, o talco, o estandarte. O talco era comprado em uma
fábrica em Bonsucesso, em sacos de 50 quilos. Quando começou a freqüentar
a torcida do Fluminense, a tradição do pó-de-arroz, agora proibida, já existia.
Nos fins de semana, quando os jogos começavam às 17:00hs, desde a manhã
já estava mobilizado para o evento. Levava pão com mortadela para o estádio.
O hábito de chegar cedo não era apenas de sua torcida, todas funcionavam
assim.
Seu trabalho, no entanto, não se confundia com uma profissão, como as
rádios e a imprensa acusam atualmente, em uma associação dos chefes de
torcida a malandros, espertos e marginais. Para ele, envolvia tão-somente
paixão. Considera que era uma atividade muito mais difícil, pois ele pagava
para sofrer, ao passo que hoje tudo é ganho. Diz que não é possível fazer
julgamento, mas as torcidas na atualidade recebem ingressos gratuitamente, às
vezes em número de até mil e quinhentos ingressos, enquanto no seu tempo o
próprio clube renegava os chefes de torcida. A imagem da violência, da
mesma forma, contrasta o passado com o presente. Havia brigas, por certo,
mas elas eram momentâneas, restritas ao calor da hora, não passavam de
xingamentos. Ao contrário, sua lembrança remete ao período das
confraternizações, promovidas por Jaime de Carvalho, quando as torcidas
organizadas visitavam-se mutuamente nas arquibancadas antes do começo da
partida. Ainda que um ou outro torcedor isolado vaiasse ou hostilizasse, tinha-
se por hábito nos jogos entre Flamengo e Fluminense ir ao encontro da torcida
adversária em seu próprio território.
Na década de 1970, com a ebulição de torcidas organizadas, surgiram
diversas agremiações de pequeno porte, dentre elas a Casca-Flu, a Chachaça-
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Flu, a Influente, a Fiel Tricolor, a Flunitor de Niterói e uma de Campo
Grande, de cujo nome não se lembra. Todas se davam bem e guardavam seus
apetrechos em um mesmo local no Maracanã, na sala 323. Descreve sua sala
como muito organizada, com tudo separado, compartimentado, com locais
exclusivos para a bandeira para não ficar no chão. O mesmo ocorria depois
com a sala da Tia Helena, que era muito bonita. Com tamanha ramificação de
subgrupos, sua torcida, que chegara a contar mais de dois mil sócios com
carteirinha, composta inclusive por moças, senhoras e casais, decaiu muito. A
impressão que tinha era a de que ela havia estagnado no tempo, o que o fez
pensar em uma estratégia para revitalizá-la e voltar a atrair jovens, de modo a
competir com as grandes torcidas, como a Young.
O nome de sua torcida foi então modificado e passou a se chamar
Organizada Jovem Flu, uma homenagem a um famoso movimento de
torcedores do final dos anos de 1960, protagonizado por tricolores ilustres,
como Hugo Carvana, Chico Buarque, Nelson Mota, entre outras
personalidades. O histórico Jovem Flu foi um grupo que chegou a durar
alguns anos, constituído por artistas e notórios torcedores do Fluminense.
Estes costumavam assistir aos jogos nas cadeiras do Maracanã e, sem
pertencer aos quadros do clube, faziam oposição à diretoria, considerada
muito tradicional por aqueles jovens aficionados. Quando Sérgio decidiu
batizar sua torcida com o mesmo nome nos anos de 1970, muitos daqueles
componentes originais prestigiaram o acontecimento, o Hugo Carvana
inclusive, e adentraram com ele no gramado do Maracanã, desfraldando e
exibindo a faixa da nova torcida.
Nessa época foi procurado pelo bicheiro Natal da Portela, em um jogo
do Fluminense contra o Madureira em Conselheiro Galvão. Natal era um
polêmico personagem do mundo do samba carioca que acompanhava com
afinco os jogos do time tricolor. Naquela ocasião, Sérgio Aiub foi convidado a
ir à sede da Portelinha, em Oswaldo Cruz, para uma conversa em que Natal
propôs-lhe a montagem de uma ala da torcida do Fluminense na Portela. Aiub
hesitou, ponderou sua inexperiência, mas foi convencido por Natal, que o
levou ao carnavalesco da agremiação. Mesmo julgando sua atuação um
fracasso à frente da ala no primeiro ano em que participou, a Portela sagrou-se
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campeã do carnaval com o samba-enredo “Lendas e mistérios do Amazonas”
e Natal decidiu mantê-lo no desfile do ano seguinte.
Com a passagem dos anos ele se acostumou à atividade, adquiriu
confiança e chegou a registrar em cartório, com um ofício, o nome da ala
Jovem Flu naquela escola. Sua ala permanece até hoje integrada ao universo
do samba, o que constitui para ele um feito inovador, pois foi a primeira
torcida organizada a se integrar ao carnaval do Rio de Janeiro, com a entrada
oficializada em 1974, ano de “O mundo melhor de Pixinguinha”, um samba-
enredo antológico composto por Jair Amorim e Evaldo Gouveia. Na década
de 1990, a torcida do Flamengo tentou criar a escola de samba Nação Rubro-
Negra, idealizada por Cláudio Cruz, da Raça e pela Toninha, da Flamante,
mas o projeto não prosperou.
Pouco tempo depois de conhecer Natal, por volta de 1974 e 1975, o
bicheiro veio a falecer, mas mesmo assim Sérgio continuou na Portela até
1983. Foi quando ocorreu um movimento na escola de dissidência interna em
oposição à direção de Carlinhos Maracanã, que não ganhava títulos havia
anos, em favor de uma renovação. O resultado foi a expulsão dos oponentes,
ele inclusive, que se empenhou então na criação da Tradição, para onde levou
amigos de arquibancada, como o vascaíno Eli Mendes. Logo em seguida, em
1986, ano da Copa do Mundo do México, houve o samba-enredo de Joãozinho
Trinta, “O mundo é uma bola”, e ele foi chamado para a Beija-Flor. Viriato,
ex-carnavalesco da Portela, conhecia o trabalho de Sérgio, sabia da ligação
dele com o futebol e chamou-o para uma conversa. O carnavalesco por sua
vez levou-o para falar com Anísio Abraão Davi e com Joãozinho Trinta, que o
incumbiu de organizar o setor do Fluminense naquele desfile. Com o aval da
diretoria, Sérgio chamou Cláudio Cruz, da Raça Rubro-Negra, para coordenar
o setor do Flamengo; Acir, uma senhora botafoguense de Copacabana,
responsável pela organização dos alvinegros; e Eli Mendes, da Força Jovem
do Vasco, que vinha com ele da Tradição.
O ano do desfile da Beija-Flor foi o momento em que decidiu deixar o
comando da torcida. Em 1984, o Fluminense sagrara-se Campeão Brasileiro e
ele já queria encerrar sua participação. Cansado, acreditava que já tinha dado
todas as suas energias e achava-se em idade avançada, queria ir ao Maracanã
na condição de um torcedor comum, como um local apenas para o lazer, sem
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maiores obrigações ou estresses, embora seus companheiros resistissem à
idéia e pedissem para que não abandonasse o comando da torcida. A despeito
dos pedidos, delegou a liderança pouco tempo depois para os demais membros
da Jovem Flu, mas nenhum de seus três sucessores teve êxito e o agrupamento
desapareceu na década de 1980. Há cerca de três anos, um grupo de
dissidentes da Young-Flu procurou-o com a intenção de obter uma
autorização para a recriação da torcida. Ponderou sua amizade com os antigos
integrantes da Young, considerou que o ato poderia ser visto como uma
traição e resolveu não conceder a permissão. Mais tarde, porém, voltou a ser
procurado por outros rapazes que lhe solicitaram a retomada da torcida, pois
achavam Jovem Flu um nome forte, e ele resolveu enfim atender o pedido.
Em 1991 Sérgio sofreu uma grande decepção, com a perda de parte
significativa da memória de sua vivência futebolística. O aposento da casa
onde guardava as lembranças do futebol foi incendiado, com a destruição dos
troféus ganhos nos torneios promovidos pelo Jornal dos Sports, além das
capas de revistas em que aparecia fotografado. Mais de 40 taças, das quais
duas ou três obtidas no “Duelo de Torcidas”. Era o depósito de suas
recordações, com capas, fitas e a parede do quarto coberta de fotos, onde
ficavam as carteirinhas de sócio do início da torcida, inclusive a de número 1.
Possuía ainda um valioso registro áudio-visual, cerca de dez documentários,
com filmagens das festas de comemoração dos títulos e da época em que
Pinheiro jogava no juvenil e no infanto-juvenil do Fluminense, sendo sempre
campeão.
Sérgio mostra as fotos, dentre as poucas que se salvaram. Exibe uma de
1975, em que aparece com cabelo longo, no período em que curtia rock. Diz
que era ele cabeludo, ainda que não pareça, e afirma que “deu trabalho”,
embora hoje em dia “dê trabalho” apenas para os médicos. Guarda fotografia
do Pacaembu, em São Paulo, de um jogo em que ele entrega a faixa para
Rivelino, este no gramado e ele dependurado na grade da arquibancada, até
cair para o lado de dentro de campo. Aponta para a Tia Helena, da Fiel
Tricolor, que costumava entrar com ele em campo. Na foto seguinte, refere-se
à entrega de uma placa a Nélson Rodrigues, na noite de lançamento de seu
livro, no Salão Nobre do Fluminense, prêmio oferecido por ele e pela mesma
Tia Helena. Em outra imagem, mostra uma homenagem que fizeram ao Telê
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Santana, no Mineirão, quando o jogador deixou o Fluminense e se transferiu
para o Atlético-MG. Há fotos também referentes às caravanas que fazia pelo
Fluminense, onde aparecem os ônibus nas paradas da estrada para São Paulo.
As fotografias o fazem rememorar as viagens e assegura ter conhecido o
Brasil todo graças ao Fluminense. Uma das imagens mostra-o no estádio do
Coritiba, o Couto Pereira, onde entrou em campo com uma imensa bandeira
tricolor. Diz que não havia problemas com a torcida do “coxa-branca”, pois
seus integrantes eram legais. Em geral não tinha problemas nas viagens,
somente às vezes ocorriam pequenos incidentes, sem maiores gravidades.
Estima as viagens de antigamente muito melhores do que as de hoje, pois tudo
era feito com muito sacrifício. Ele vendia as passagens, que eram bilhetes
padronizados, em uma banca de jornal que se tornou um ponto de referência
dos tricolores na Avenida Rio Branco. Tudo era pretexto para as caravanas,
qualquer partida, até mesmo um jogo no estádio do Caio Martins, em Niterói,
ele mobilizava 10, 15, 20 ônibus. O jogo mais marcante foi contra o Cruzeiro
no Mineirão lotado, durante a disputa da Taça de Prata de 1970, com um gol
olímpico de Paulo César Caju, quase no final. Eles ganharam lá de 1 a 0 e sua
torcida, que tinha ido com 16 ônibus, teve de esperar até as 7 horas da manhã
para sair do estádio, tendo inclusive de esconder as mulheres para protegê-las
das pedras. No retorno para o Rio, todos os ônibus se concentraram na
Rodoviária e dali partiram para a Avenida Rio Branco, onde foram recebidos
com papéis picados pela população, um lindo acontecimento.
A maior parte das viagens era agradável, mas, para manter o comando
do grupo, tinha de delegar um responsável por cada ônibus, preestabelecendo
as paradas na estrada e subdividindo os torcedores a fim de evitar a
concentração e os furtos, que já existiam na época, com o costume freqüente
de pegar os produtos e não pagá-los nas lanchonetes de beira de estrada. A
maioria que viajava nos ônibus pagava passagem e pertencia à classe média,
de modo que para ele o roubo nas paradas não era uma necessidade financeira,
mas um hábito muito comum entre a garotada. A conseqüência era a
intervenção da polícia, que era acionada e interceptava o ônibus na estrada,
prendia ou fazia-os devolver as mercadorias. Seu recorde em termos de
caravana foram quarenta e cinco ônibus que conduziu para São Paulo, em uma
partida contra o Palmeiras, ganha por 3 a 0 no Morumbi. Algumas torcidas de
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outros estados os recebiam e os levavam para a sede deles. Naquele tempo os
Gaviões da Fiel ainda não possuíam a imensa quadra da escola de samba que
têm hoje, mas eles tinham uma sede menor no Brás e Sérgio ficava hospedado
lá com sua torcida. Não havia problema e o mesmo ocorria com os
palmeirenses, com que mantinha correspondência de cartas. As revistas dos
clubes, que circulavam nas bancas, possibilitavam o intercâmbio e através
delas se fazia amizade e se estabelecia contato.
Sua torcida tinha representantes em São Paulo e em Belo Horizonte.
Lembra-se da tia Elisa do Corinthians, uma “negona bonitona”. No fim da
vida ela não tinha mais liderança entre os corintianos, pois a predominância
era da Camisa 12 e da Gaviões, mas era respeitada e possuía um nome.
Recorda-se também de Danilo, da Torcida Independente do São Paulo, de
Ramalho, da Torcida Uniformizada do Palmeiras, e de Júlio, da Charanga do
Atlético-MG. O que mais temia nas viagens a São Paulo era o policiamento, o
pior de todos, pois a polícia paulista “baixava o cacete”. Às vezes as próprias
torcidas de lá saiam em defesa deles. A viagem mais longa e distante que fez
durou uma semana e passou por Salvador, Recife e Maceió. Foi um jogo no
domingo, outro na quarta e um terceiro no domingo da semana seguinte, mas
não se lembra de maneira exata quando foi e por qual campeonato valia.
Ele viajou para o sul do Brasil também, Curitiba, Florianópolis e Rio de
Grande do Sul, aonde foi várias vezes, e chegou a organizar uma caravana de
avião a Porto Alegre. Graças a uma agência de turismo, de cujo nome não se
lembra, que lhe deu três passagens em troca de propaganda, fez ainda viagens
internacionais, indo à Argentina e ao Paraguai. Lá assistiu às partidas
eliminatórias para a Copa do Mundo, quando a Seleção Brasileira venceu os
paraguaios em 1969, por 3 a 0 do Paraguai. Ele ia também com sua torcida
nos jogos do Brasil no Maracanã, onde tinham um local já tradicionalmente
delimitado, mas hoje em dia as faixas não são mais permitidas pela
administração do estádio.
Sua avaliação é a de que tudo era muito gostoso e não se arrepende de
nada do que fez, embora sua família não gostasse da atividade. Ela era contra
a sua dedicação exagerada, seus pais e sua irmã achavam que ele tinha de ter
um cargo. Sérgio contra-argumenta dizendo que nunca dependeu da torcida
nem do clube, pois sempre trabalhou, serviu ao quartel e hoje tem uma vida
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razoável, em que não está nem muito bem nem muito mal. Seguiu também a
tradição familiar na venda de roupa, como feirante, e hoje vive com a sua
aposentadoria. É conhecido por todos em Cascadura como “Sérgio Tricolor”,
como “Sérgio Fluminense”. Até hoje é chamado para enfeitar as ruas durante
as Copas do Mundo, mas não tem mais interesse, já fez muito. No tempo das
reportagens televisivas na sua casa, colocava 10, 15 pessoas para ajudá-lo e
sua mãe, que é Flamengo, fazia a comida para a filmagem da televisão.
A relação com a imprensa era muito boa, pois ela dava apoio às torcidas
nas cobranças e nos protestos contra a diretoria. A imprensa chegava a ligar
para sua casa para avisar o que estava acontecendo e pedia para que levasse
seu grupo e fizesse reportagens. Naquele tempo o Jornal dos Sports dava-lhes
muita abertura, noticiava qualquer pequeno incidente e, por isto, ele apareceu
diversas vezes na primeira página do jornal. Evoca a “invasão” que seu grupo
fez à sede do Jornal dos Sports, quando ganharam o prêmio do concurso de
melhor torcida. Os programas de rádio também davam cobertura e
divulgavam as caravanas em dias de clássico ou em partidas fora do estado.
Antigamente, a referência em termos radiofônicos era a estação Mauá, que
possuía força no futebol. O locutor Orlando Batista, e depois seu filho Luis
Orlando, ajudava muito as torcidas com a divulgação de suas reuniões no
local onde ficava o antigo Ministério do Trabalho.
Outra emissora de rádio que escutava e freqüentava era a Guanabara,
uma espécie de rádio Globo da época. Ficava no Centro do Rio, na Rua
Buenos Aires, e depois se instalou na Avenida Passos. Foi várias vezes
também ao programa “Conversa de Arquibancada”, da TV Bandeirantes, onde
dava entrevistas e participava de gincanas. Tinha, por exemplo, de conseguir a
foto do filho do radialista Washington Rodrigues, vestido com a camisa do
Flamengo. Ele ia lá e conseguia. Costumava aparecer também no Canal 100,
o programa de Carlos Niemayer que exibia imagens do Maracanã em trailers
nas salas de cinema. Várias pessoas lhe diziam que o haviam visto no cinema,
ele ainda cabeludão.
O relacionamento com o clube não foi bom. O presidente do
Fluminense que abriu a porta para ele chamava-se Francisco Laport,
antecessor do Francisco Horta na direção, durante os anos de 1970. Em razão
disto, foi feita uma festa para o Laport no salão nobre do clube e hoje no
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Fluminense há uma placa da torcida onde ele é homenageado. Antes, a
diretoria era hostil ao seu grupo e vetou a entrada de Sérgio como sócio. Os
diretores mais antigos chegavam a se opor à prática do futebol, que não era
vista com bons olhos. O pessoal da Força-Flu foi mais esperto do que o seu
grupo e conseguiu desenvolver um trabalho na política interna do clube. Hoje
possui mais membros no Conselho Deliberativo do clube do que a Young e
exerce influência ativa nas decisões.
Sua torcida promoveu muitos protestos e muitas cobranças, com
enterros simbólicos, passeatas e pichações na sede. Reuniam-se no Largo do
Machado, em número de 200, 300 pessoas e de lá partiam para o Fluminense
com um caixão e uma coroa. Mas não eram recebidos pela presidência do
clube. Rafael de Almeida Magalhães, por exemplo, que foi vice-presidente de
futebol no início da década de 1980, não os recebeu. Em compensação, como
forma de manifestar a insatisfação e a revolta, uma vez eles chegaram a
tumultuar um baile de aniversário no clube. Todos os convidados que
entravam eram vaiados e recebiam um lenço preto. Em outra ocasião,
chegaram a ponto de tirar a bandeira do Fluminense do mastro e hastear uma
outra, toda preta, em sinal de protesto.
O incidente ocorreu na época de Dílson Guedes, que considera a pior
administração do Fluminense, quando Otávio Pinto Guimarães ocupava a
presidência da federação estadual de futebol. Sérgio não tem boas recordações
também da administração de Sílvio Kelly, mas guarda impressões positivas de
Francisco Horta, que colocava a camisa da torcida, subia às arquibancadas e
empunhava a bandeira do clube ao lado deles. Diz que o dirigente teve erros e
acertos, mais acertos do que erros em seu modo de entender. Em termos de
torcida sua maior falha foi o envio de 50 mil ingressos para São Paulo, na tal
invasão corintiana de 1976. Não havia aquela necessidade, pois esses
ingressos nem chegaram a ser todos vendidos lá, não ultrapassaram a marca
dos 18 mil. A torcida do Vasco e do Flamengo é que foi ao jogo e deu apoio
para os corintianos. Como a torcida do Fluminense é muito acomodada e
chega tarde ao estádio, eles se aproveitaram disso, chegaram antes, ocuparam
os espaços, o que deu aquela impressão de estar tudo lotado no lado alvinegro.
Houve também um esquema para recebê-los mais cedo no estádio, pois já
tinha tido briga em Copacabana e em outros lugares entre tricolores e
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corintianos. A discriminação do Horta hoje no clube deriva disto: ele montou
a Máquina e a desfez também.
Ele a princípio foi contra a criação da ASTORJ, a Associação de
Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro, concebida por seu amigo Armando
Giesta, e admite que participou muito pouco da entidade. A sede funcionava
no Maracanãzinho, com reuniões às segundas-feiras à noite. A associação não
decidia nada, apenas deliberava quem teria direito às credenciais. Foi
centralizadora e, a seu ver, tirou força das pessoas efetivamente ligadas às
torcidas organizadas. As greves da torcidas contra o aumento dos ingressos
ocorreram, foi um movimento geral de união, mas não passaram de maneira
exclusiva pela ASTORJ. Quando tinha jogo do Fluminense, as facções
tricolores se reuniam e decidiam pela greve. Botavam as faixas de cabeça para
baixo no alambrado, uma tradição que começou nessa época em sinal de
protesto e que hoje todas as torcidas repetem. Eles avisavam nos jornais que
não compareceriam ao jogo e a afluência de público de fato caía muito. Às
vezes eles iam de Geral e, na maioria das ocasiões, atingiam o objetivo, com a
redução do preço do ingresso.
As torcidas não promoviam apenas brigas e protestos, elas faziam
festividades no Maracanãzinho, onde tem um pequeno ginásio, no espaço do
colégio Arthur Friedenreich. Em outros lugares, havia também
confraternizações, com festas e churrascos. Depois isto acabou, mas várias
torcidas fizeram. Às vezes os jogadores eram convidados e compareciam.
Lembra que levou o time do Fluminense todo na quadra da Portela. No
entanto, de um modo geral, a relação dos atletas com a torcida era de
distanciamento, como é até hoje, apenas um ou outro era mais ligado à
torcida, pois eles sabem que da mesma maneira que são aplaudidos, podem ser
vaiados, cobrados. A passagem do Rivelino foi curta no Fluminense, mas um
jogador que se dava bem com a torcida era o Samarone. O Assis e o
Washington foram ídolos, não tiveram um contato próximo. Ele recorda-se
que fez uma foto com o goleiro Félix no gramado do Maracanã para uma
revista ilustrada.
Já o relacionamento com o policiamento no estádio era bom, pois eles
eram sempre os mesmos. Sente saudades do sargento Maia. Os chefes de
torcida ficavam com os policiais no próprio batalhão, quando era dia de
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clássico e ajudavam na organização do esquema. Não eram muitas facções,
duas ou três, e não dava muito trabalho coordenar todas as torcidas. Não havia
ainda esse fenômeno de mortes, prisões, matanças. Sua rixa foi com a torcida
do Botafogo. Com o Tarzan, chefe de torcida, ele se dava bem, mas não
gostava dos botafoguenses, não. O Tarzan era fortão, foi motorista de táxi
uma época e depois ele foi morar em Belo Horizonte. Não sabe se ele morreu,
uns dizem que sim, outros que não. Ele teve algumas brigas no final com a
Torcida Jovem do Botafogo, uma torcida problemática, como o são todas as
que ficam atrás do gol. Lembra de Fernando Mesquita, líder da TJB, um
sujeito calmo. As brigas com o pessoal da TJB começaram por causa da
divisão do Maracanã, em um dia de rodada dupla. O Fluminense jogava na
preliminar e eles queriam ficar no canto, mas os botafoguenses não quiseram
deixar. Conta que teve amigos no Flamengo, o Banha, o Germano, a Verinha,
a Toninha, de quem é amicíssimo, e o falecido Niltinho, da Torcida Jovem do
Flamengo. Ele se dá até hoje com o pessoal antigo, o Homero da Charanga,
por exemplo. No Vasco, com o Eli e o Amâncio; no Botafogo, com o Russão.
A relação com as entidades representativas do futebol carioca é
considerada boa. Com a Associação de Desportos do Estado da Guanabara,
eles pediram cartão com autorização para a entrada no estádio e foi dada
permissão. A sala também foi concedida pela ADEG. Mas, da mesma forma
que eles deram, eles tomaram, quando se perdeu o controle da situação. No
início, eram poucas salas, uma para cada clube. Depois, todas as torcidas
receberam sala e virou uma bagunça, com invasão e arrombamento, além do
consumo de tóxico, que existia nas viagens também. Tentava-se controlar,
mas não se conseguia. Em relação à Federação do Estado do Rio de Janeiro,
diz que Eduardo Viana, o Caixa d’Água, tirou todos os benefícios dados pelo
Otávio Pinto Guimarães, quando este presidiu a federação. No período do
Otávio, todos os chefes de torcida eram beneméritos da FERJ e tinham uma
excelente relação com ele.
O primeiro grito de guerra de torcida no Maracanã foi dado pelos rubro-
negros: “Mengo!”. Em resposta, eles passaram a cantar: “Nense!”. Houve
quem dissesse que era feio, mas eles acabaram assumindo. Antes era: “– Iu,
rá, ré, Flu-mi-nen-se, tudo ou nada ?”, quando a equipe entrava em campo. Ele
usava o megafone, aquele de pilha grandão, e pronunciava este grito. Além
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disso, havia as marchinhas e as paródias, brincando com o time adversário.
Mandava-se o “urubu” tomar no cú, desde o tempo de Jaime de Carvalho isto
já existia. O pó-de-arroz característico dos tricolores fazia com que a torcida
do Flamengo chamasse-os de “veados”. Depois cada torcida começou a criar
gritos com sua própria marca, como os da Jovem e os da Young. Já em seu
tempo cantava-se o samba-enredo vencedor do carnaval no ano. O “Pega no
ganzê”, do Salgueiro, de 1970, foi muito badalado, “explodiu” no Maracanã,
foi o que ele mais cantou, sendo uma música inclusive adotada fora do Brasil,
internacionalmente, até mesmo na Argentina. Sua ligação com a Portela fez
com que a torcida do Fluminense cantasse muitos sambas da escola.
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3. Banha, ex-presidente da Torcida Jovem do Flamengo
5
José Francisco de Moura, o Banha, nasceu na Tijuca no ano de 1962 e
tem hoje quarenta e três anos de idade. É professor universitário, reside na
região dos Lagos e leciona História Antiga na Universidade Veiga de
Almeida, no município de Cabo Frio. Foi criado naquele bairro da zona norte
do Rio de Janeiro, onde passou a infância e a juventude. Começou a
freqüentar os jogos muito cedo, com sete anos de idade e, tendo crescido nas
imediações do Maracanã, costumava ir ao estádio a pé. A primeira partida
importante de que se lembra ocorreu no ano de 1969, a decisão do Fla x Flu
na final do Campeonato Carioca, quando o Maracanã recebeu mais de cento e
cinqüenta mil torcedores e o Fluminense sagrou-se campeão com uma vitória
de três a dois. Ele ia com o pai que o carregava nas costas em seu setor
preferido então, a Geral. Sua inclinação pelo Flamengo deveu-se igualmente à
influência paterna, um rubro-negro fanático que, em função de problemas de
saúde, parou de freqüentar os estádios e passou a assistir às partidas pela
televisão.
A freqüência aos jogos em companhia do pai se estendeu até 1977,
quando completou quinze anos e começou a ir sozinho ou junto a uns três ou
quatro amigos de colégio da Tijuca. Resolveu entrar em uma torcida
organizada por volta de 1978 e a primeira que escolheu foi a Fla-12, exemplo
seguido por seus amigos. Tratava-se de uma torcida do bairro da Tijuca, seu
“dono” era o proprietário da loja Havaí Esportes, o Vitório, e lá fez novas
amizades. A Fla-12 foi uma torcida de curta duração, começou grande mas em
seis meses de existência decresceu enormemente até ficar restrita a uma meia-
dúzia de pessoas. Com isto, integrou-se à Torcida Jovem do Flamengo, no
momento em que viu uma mobilização ao seu redor, com a reorganização do
grupo após um tempo em que ficou desativada. A recriação da Jovem fez com
que muitas pessoas pertencentes às demais torcidas, componentes da Garra-
Fla, da Fla-Povo, da Raça Rubro-Negra, da Fla-Ponte de São Gonçalo, entre
outras torcidas próximas à Fla-12, aderissem ao novo movimento. Após
muitas dificuldades, a torcida se reestruturou e voltou a crescer.
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Entrevista concedida no dia 12 de dezembro de 2005, no Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da UFRJ, no centro do Rio de Janeiro. Uma hora de gravação.
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Em sua recordação, a Jovem ficou parada durante a década de 1970,
talvez depois de 1972, 1973 e assim ficou até 1978. Todos os grandes clubes
possuíam uma torcida grande atrás do gol, mas o Flamengo, não. A Raça
Rubro-Negra, que era uma torcida forte, ficava na altura do córner. Então eles
pensaram na criação de uma torcida com força que ficasse atrás do gol. Como
todas as torcidas naquela posição eram chamadas de Jovem, eles
“recapturaram” a idéia, mantiveram o nome e deram continuidade. Antes
disso, sabe-se que a torcida era comandada pela tia Helena, mas pouco depois
ela se afastou. No período em que a torcida ficou parada, alguns integrantes da
Jovem continuavam a assistir ao jogo no mesmo local, mas iam sem camisa e
já não botavam a faixa. De modo que houve um estranhamento por parte dos
antigos membros, quando perceberam aquele alvoroço e aquela gente nova a
chegar e a comprar o novo modelo da camisa do grupo. O Niltinho, por
exemplo, que depois foi presidente da torcida, pertencia à Flatuante, uma
agremiação de Niterói, e quando viu o movimento ao redor da Jovem, também
aderiu.
Não foi fácil a reativação da torcida, houve muita dificuldade e lembra
que graças à doação financeira de uma senhora foram compradas oitenta
bandeiras. Era o mais difícil, pois elas custavam caro. Só então a torcida pode
se rearticular. No início da recomposição, a torcida possuía trezentos
componentes. Eles zeraram o cadastro antigo da torcida e entraram em contato
com aqueles que gostariam de fazer uma nova carteirinha de sócio. Quando
ele saiu da Jovem, a torcida tinha mais de seis mil integrantes. Mas a
freqüência assídua aos jogos ficava em torno de seiscentos e setecentos
integrantes e apenas dez por centro dos componentes participavam da rotina
da torcida de um modo mais constante e efetivo. A Torcida Jovem era a
menor dentre as grandes torcidas, compostas pela Força Jovem do Vasco, pela
Raça Rubro-Negra, pela Torcida Jovem do Botafogo e pela Young-Flu.
A Jovem possuía uma tradição e uma reputação no passado, mas na
época em que se integrou a ela já não era uma torcida considerada importante.
Seu auge foi o final da década de 1960 e o início da década de 1970, por causa
do Onça, um dos líderes da Torcida Jovem. A fama de um grupo agressivo
sempre existiu, mesmo nos idos de 70, até para os padrões antigos era vista
como violenta. Enquanto na torcida do Botafogo tinha o Tarzã, na Jovem do
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Flamengo existia o Onça. Qualquer briga, qualquer problema, era o Onça que
aparecia, com o pessoal da Jovem. Esse espírito combativo foi transmitido
para a geração dele, aprenderam a revidar, pois não admitiam “levar desaforo
para casa”. A Jovem cresceu com essa disposição para a briga, mas só quando
havia provocação da outra parte. Em razão disto, Banha costuma dizer que em
seu tempo eles iam ao estádio para ver o jogo e de vez em quando brigavam;
hoje em dia, eles vão para brigar e de vez em quando vêem o jogo. Inverteu-se
a lógica. O pessoal de briga era o Onça, o Pedro Paulo, o Fuinha, mas tinha
um pessoal de Niterói que era “enfezado” também. Ele se lembra que o Onça
tinha um cabelão e era muito forte.
É certo que havia também a tia Helena, uma líder pacífica, mas ela não
se metia quando o assunto eram as brigas, ela preferia se afastar. Pertenceu ao
momento inicial da torcida, não permaneceu por muito tempo, pouco a pouco
foi se desligando. Por duas razões principais: o perfil de briga dos mais jovens
e a idade avançada dela. Tornou-se uma figura lendária, era respeitada mas
não tinha liderança quando havia uma briga. Vinha de uma outra época, em
que as pessoas idosas eram mais respeitadas. No Fluminense também tinham
casos parecidos. Seu Armando, da Young-Flu, era um senhor, mas gostava de
ficar à frente dos jovens que curtiam briga também. Embora houvesse respeito
por sua figura no grupo, ele tinha problemas para segurar o ímpeto do
Armandão, do Rato e de outros brigões da torcida. A briga, contudo, era
pessoal, direta, na mão, e só ocorria dentro do estádio. Quando ela extravasava
para a rua, nas cercanias do estádio, não havia covardia de três baterem em
um, nada parecido com isso. Não se brigava com um torcedor comum, o
confronto “mano a mano” era com o cara da outra torcida organizada.
Ninguém encostava a mão no “povão”, que passava com a camisa do
Fluminense ou do Flamengo pela rua. Seguia-se a uma série de convenções,
que não eram escritas, mas obedecidas por todos. Aquele que ultrapassasse
esses limites era mal visto pelo conjunto dos torcedores. Era tido como
covarde. Havia convenções e regras preestabelecidas que foram perdidas com
o tempo.
O perfil majoritário da torcida na década de 1980 era composto por
jovens do sexo masculino, mas também do sexo feminino, que moravam tanto
na Zona Norte quanto na Zona Sul. Tinha uma garotada bonita das duas
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regiões e com isso as meninas iam para a torcida. Ele inclusive namorou uma
moça da torcida, a Márcia, que vem a ser mãe de seu filho hoje. A Raça
Rubro-Negra também era conhecida por mulheres bonitas, tinha modelos
como a Maristela e a Martha Esteves, que hoje é jornalista. No início, o foco
da TJF eram dois bairros: Copacabana e Tijuca. O Capitão Leo comandava o
pessoal de Copacabana e ele, o da Tijuca. Depois escolheram a Praça Saens
Peña como ponto de aglutinação das galeras, para irem juntos para o
Maracanã, pois a Jovem era forte ali também e todos os ônibus
desembocavam naquela praça. Isto foi por volta de 1986, 1987, quando a
torcida estava muito grande. Foi o Leo, uma “figuraça”, quem criou esse
ponto de encontro. Ele tem muita coisa para contar dessa fase seguinte. O Leo
se aproximou da torcida e assumiu o comando da torcida em fins dos anos 80,
no mesmo momento em que ele estava deixando Jovem. Desde meados da
década de 1980, criou-se a tradição de luta na torcida e a prática de artes
marciais em academia. Muitos garotos começaram a fazer boxe tailandês, o
Peu, o Hércules, o Hélio, o Severo, o Budi, que foram campeões na
modalidade. Até sua namorada lutava. Mas, após a fase da luta na mão, veio a
fase do tiro, das armas de fogo.
Em 1980, ele assumiu a presidência da torcida e foi eleito por dois anos.
Foi presidente até 1982 e permaneceu no grupo até 1988. Com o crescimento
da violência e o início de ameaças de morte e da escalada de assassinatos, ele
resolveu abandonar a torcida. Segundo Banha, na época em que presidiu a
Jovem, o Flamengo chegou a ter mais de cem torcidas organizadas. Elas
tinham até então um caráter festivo. Quando o jogo ocorria no domingo,
passava-se sexta e sábado fazendo bandeiras, preparava-se papel picado,
comprava-se papel higiênico, buscavam-se os bambus nas florestas, faziam
esse tipo de coisa. Com o tempo, tais hábitos acabaram e as torcidas se
profissionalizaram muito. No momento em que ele saiu da torcida, já não se
procedia da mesma maneira, havia um esquema previamente programado, os
instrumentos não eram fabricados por eles, mas comprados em loja, tudo era
entregue pronto. Ele vivenciou uma época amadora, romântica, ia-se para o
Maracanã e eles mesmos produziam os materiais, encontravam-se com o
pessoal das outras torcidas.
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A Jovem foi uma torcida engajada politicamente. Em âmbito interno,
faziam eleições para a escolha do presidente e não podia haver reeleição. Por
isto, depois dele veio Niltinho e tomou posse na torcida. Mas quase sempre
não eram necessárias as disputas, era candidatura única e consensual. Como a
torcida era pequena, não existiam facções internas. Depois do Niltinho, foi a
vez do Leo. Antes da presidência do Banha, tinha sido presidente o João
Carlos, que começou o processo de reunificação da torcida após o período
“lendário” ou “romântico” da Tia Helena.
Ele e vários componentes da torcida eram sócios do clube.
Participavam da vida clubística interna, chegaram a lançar um candidato à
presidência, Alberto Selento, o Betinho, que ficou em terceiro lugar dos
quatro que concorreram. Eles eram uma força. Hoje as torcidas não têm mais
influência no clube, estão ausentes das eleições. Como as torcidas têm poucos
sócios para ser uma voz política ativa no interior do clube, os dirigentes do
Flamengo e do Vasco atualmente usam os grupos. Banha associa a situação
crítica do futebol carioca à decadência das torcidas, notadamente com o fim
da antiga associação de torcidas organizadas, a Astorj. Considera que a Geral
do Maracanã dificilmente teria sido extinta se a Astorj ainda estivesse em
atividade. Em seu tempo, as torcidas organizadas iam para a Geral, onde
faziam protestos, iam às rádios “fazer barulho” e reclamar contra o aumento
dos ingressos. Promoviam greves e conseguiam várias vezes baixar o preço.
Isto ocorreu no início da década de 1980, por volta de 1982, 1983. As
reuniões da associação eram às segundas-feiras no Maracanã.
A politização e a conscientização maior da torcida ocorreu até 1985,
1987. Depois isto, pouco a pouco foi sendo perdida. Muitos integrantes da
Torcida Jovem eram filiados a partidos políticos, ao PT, ao PDT, havia
simpatia pelo Brizola. Ele mesmo foi filiado ao PDT. Lembra-se de quando o
Brizola venceu as eleições m 1982, boa parte do Maracanã cantou o nome do
governador eleito. Era um contexto de fim da ditadura, havia um interesse
novo pela política, que foi despertado. A administração pedetista de Jorge
Roberto da Silveira, Secretário de Esportes do governo Brizola, também
ajudou nessa aproximação da torcida com a política. Mas, com o passar do
tempo, o interesse pela política foi decaindo, diminuindo novamente. As
torcidas voltaram a perder prestígio com a violência crescente.
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Houve uma grande mudança nos dias de hoje. Os encontros entre as
torcidas atualmente resultam em briga, não há a mínima possibilidade de
entendimento, qualquer tipo de diálogo. E havia muito diálogo entre as
torcidas dos diferentes clubes no final da década de 1970 e início de 1980.
Mas depois desse ambiente favorável, houve uma deterioração geral. Ele
assistiu ao início do declínio da relação entre as torcidas, principalmente
quando os chefes mais famosos se afastaram, o Fernando Mesquita, da
Torcida Jovem do Botafogo, o Seu Armando da Young-Flu. O Eli Mendes, da
Força Jovem do Vasco e o Niltinho, seu sucessor na Torcida Jovem do
Flamengo, ambos faleceram. Aí veio uma “garotada” que assumiu o comando
e que já não media muito as conseqüências. O afastamento dessas figuras é
visto, portanto, como o fator da perda de controle sobre as torcidas. Ao
Fernando Mesquita, da TJB, sucedeu o Portela e um outro torcedor do
Botafogo que depois foi preso. Ali foi o início de um outro processo. A
comparação entre os chefes de torcida de hoje e os do seu tempo não deixa
dúvidas: hoje os eles nem se conhecem, enquanto no tempo de Niltinho fazia-
se festa na sua casa e todos os líderes eram chamados como convidados.
As brigas eram eventuais, não eram um fato desagregador, pois não
havia grandes covardias. Recorda-se de um jogo da Seleção Brasileira no
Maracanã, em que um integrante da Torcida Jovem do Flamengo arrancou
uma faixa da Força Jovem do Vasco e deu para ele, que era presidente da
torcida. Banha tirou sua camisa, foi até o lado da torcida adversária, no meio
da Força Jovem, sem que eles fizessem nada contra ele, e devolveu a faixa ao
Eli Mendes. E ainda pediu desculpas pelo que o garoto havia feito.
Semelhante situação hoje seria impensável. Para ele, aquela atitude do garoto
já era um sinal de que havia uma nova geração na Torcida Jovem que não
pensava mais como ele, não aceitava mais aqueles códigos de ética. Em
seguida, o pessoal da Torcida Jovem do Flamengo incendiou, em um ato de
covardia, a sala da Torcida Jovem do Botafogo. Considera um caso grave,
pois se lembra do Fernando Mesquita chorando na rádio, com seu material
destruído, suas bandeiras inclusive. Em contrapartida, eles tiveram de se
proteger também, pois começaram as ameaças de revide e de invasão da sala
deles. Tiveram de pagar um preço muito alto para botar uma porta de aço,
com duas grades. Mesmo assim o pessoal da Força Jovem um dia rendeu os
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seguranças, invadiu e queimou a sala. Era enfim uma guerra sem vencedores,
com prejuízos para os dois lados.
A fama de temido que Banha tinha em seu tempo parece-lhe exagerada
e injustificada. Ele cita o exemplo do Russão, que era conhecido como um
líder brigão, folclórico, fortão, tinha o corpo cheio de tatuagens do Botafogo.
Lembra-se em Marechal Hermes, com o Botafogo em crise, sem títulos,
Russão atirava todos os objetos imagináveis em campo. Certa feita ele
arremessou um latão de lixo e um pneu. Mas, apesar da aparência, ele
testemunha que nunca viu o Russão brigar com uma pessoa. Ele sabia disto
porque todos se encontravam no mesmo bar, as torcidas iam para o mesmo
lugar para beber e conversar. Era o tradicional Tip-Top nas imediações do
Maracanã. Hoje isso é inacreditável. A perda de prestígio de lideranças como
o Russão para a Torcida Jovem do Botafogo, do César da TOV, professor de
matemática da UERJ, para a Força Jovem do Vasco, foi a causa disto. A TOV
do César era uma torcida enorme, mas foi perdendo adeptos à medida que a
mentalidade das brigas e das confusões se intensificou. A TOV, um grupo
pacato, diminuiu drasticamente. Ao falar da TOV, lembra-se de outro furto de
uma faixa daquela torcida em sua sala e o fato de ele ter ido à casa do César
devolvê-la pessoalmente e pedir desculpas.
Quando ele entrou na Jovem, a maior rivalidade existente entre torcidas
era com a do Botafogo e a do Fluminense. A rivalidade com a Força Jovem do
Vasco veio depois. Mesmo com o Fernando Mesquita na TJB e com o
Niltinho na TJF, que eram pessoas calmas e pacíficas, havia brigas, pois eles
não tinham controle total sobre os associados. A seu ver, a idéia de que o
chefe detém o controle da torcida vem a ser uma lenda criada pela imprensa.
Dependendo do caso, se o chefe “fala grosso” no grupo, ele é destituído da
torcida, de forma às vezes covarde. Lembra-se do caso do Capitão Leo, que
foi agredido e tirado da torcida através da força física. Em período recente,
soube que um outro grupo de integrantes assumiu a torcida na “porrada”
também. A administração de uma torcida é algo muito difícil, pois há muita
gente diferente, há muito conflito. Segundo ele, a culpa não é dos chefes de
torcida. Compara os chefes de torcida aos líderes sindicais, como Chico
Mendes, que foi assassinado. Mesmo com sua morte, vêm outros e os
problemas continuam.
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O problema não é o líder. O Fernando Mesquita, por exemplo, era um
cara “de paz”, segundo é de seu conhecimento ele nunca brigou na vida com
ninguém. O Eli Mendes, outro caso exemplar, era um senhor, calmo, não tinha
como ele segurar aquele bando quando se aglomerava, era difícil. A imprensa
sempre cobrou muito dos chefes e a deterioração da imagem da torcida
perante os meios de comunicação se acentuou na década de 80, quando alguns
jornalistas conservadores incomodaram-se com o fato da torcida agir como
um sindicato, com intervenção na vida do clube. Eles achavam que torcedor
era só para torcer, tinha de se contentar em ser torcedor, apenas aplaudir e
pronto. Em contraposição, a Jovem tinha um slogan, que eles gostavam de
cantar no Maracanã: “Torcedor alienado é coisa do passado”.
Em virtude disso, a relação com a imprensa não era muito boa, pois
uma boa parte dela era conservadora. Tinha outra parte ainda que vinha da
ditadura e que não gostava muito do tipo de participação deles. Um crítico
severo das torcidas foi João Saldanha, embora fosse de esquerda. Ele dizia que
as torcidas não podiam esticar as bandeiras, pois o torcedor comum tinha o
direito de se sentar naquele local, se quisesse. Ele era muito crítico também da
atuação que a torcida tinha dentro dos clubes, achava que eram coisas
distintas, tinham de ser separadas. Eles sofriam uma grande oposição dos
meios de comunicação. Mas alguns jornalistas eram favoráveis, como o
Sandro Moreira, segundo o qual a torcida tinha o importante papel de
“desalienar” o torcedor. Tanto que às vezes o pessoal da Jovem escrevia cartas
para ele, pedindo esclarecimentos, sugestões, para ele “dar uma força” e
anunciar alguma idéia ou iniciativa que eles tinham tido.
A relação com os dirigentes também não foi boa e de um modo geral
era bem tensa. Ela ficou sobretudo muito estremecida na presidência de
Dunshee de Abrantes, quando o Zico foi vendido para o futebol italiano, em
1984. A pressão da torcida levou-o à renúncia, havia planos até de matá-lo. Na
semana seguinte à venda do Zico, o Flamengo foi humilhado pelo Botafogo
no Maracanã lotado, três ou quatro a zero. Na segunda ele renunciou. Depois
disso o Flamengo teve uma seqüência de presidentes horríveis, George Helal,
Gilberto Cardoso Filho e veio tendo até hoje, o que levou o clube para o fundo
do poço. Não há lideranças novas dentro do clube. Os nomes novos juntam-se
aos velhos. Hélio Ferraz se junta ao Márcio Braga, este se une com o Kleber
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Leite. Esses por sua vez têm relação com dirigentes antigos, como o Helal e o
Cardoso Filho, todos no fundo são do mesmo grupo. É como se o Flamengo
hoje fosse um feudo dessa gente.
Com o crescimento da violência e a perda de credibilidade, não foi
possível às torcidas a modificação de tal quadro. A desmoralização da torcida
se deu de maneira generalizada em toda a sociedade: perante os dirigentes, os
torcedores comuns, a polícia e a opinião pública de um modo geral. Mas o
entrosamento entre as torcidas com outros setores do futebol chegou a haver,
recorda-se de um campeonato de futebol disputado por elas dentro do 6º
Batalhão de Polícia Militar, com direito a troféu. Os policiais eram os juízes
das partidas e, ao final, saíam juntos e iam tomar cerveja. Às vezes, em uma
eventualidade, podiam até brigar, mas isto não gerava um ódio nos níveis
atuais. Um torneio como aquele seria inconcebível e inviável nos dias de hoje.
Ninguém ameaçava ninguém, não havia linchamento, se houvesse desavença,
era “na mão”. Lembra-se de um campeonato daqueles quando brigou com um
cara da Força Flu. Assistindo ficaram uns cem torcedores de um lado, uns cem
do outro e ninguém se meteu, viram os dois brigarem como uma disputa
pessoal. Isto jamais aconteceria hoje, seria uma pancadaria generalizada. Na
época, foi encarado como uma rivalidade pessoal entre ele e o tricolor. Depois
inclusive eles fizeram as pazes, tomaram cerveja e o rapaz pediu desculpas,
pois sabia que agira errado.
Banha cita exemplos de torcedores de diferentes times que tinham
amizade entre si. Nos jogos contra o América, o pessoal do Fluminense
assistia ao jogo com a Jovem do Flamengo. Dentre eles recorda-se do Lêlê da
Young-Flu, do Antônio Gonzáles da Força Flu, líder daquela torcida.
Chegavam a viajar em ônibus juntos com eles, não tinha problema nenhum.
As rodadas duplas é que geravam muitas brigas entre as torcidas nos jogos no
Maracanã. Quando se mudava de lado para assistir ao ataque do time no gol
contrário, havia disputa por espaço, pelo mando e pela ocupação do território,
o que levou ao encerramento desse evento tradicional que eram os dois jogos
na mesma tarde. Banha afirma ainda que todos os chefes de torcida conheciam
os policiais, eram todos do 6.º Batalhão, ali da Tijuca. De início era o Tenente
Siqueira, que depois virou capitão, depois veio o sargento Sérgio. Havia uma
camaradagem entre eles, ao contrário de hoje, quando não há proximidade, a
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polícia já chega dando bordoada em todo mundo. Não pegou o período de
criação do GEPE (Grupo Especial de Policiamento em Estádio), que surgiu
em 1991, no início do segundo governo Brizola. No período de sua liderança,
o relacionamento era com o 6º Batalhão, onde havia reuniões para a
combinação da chegada, da entrada e da saída das torcidas no estádio. E havia
obediência, eles seguiam as instruções. A polícia sabia o endereço da casa
onde moravam e tinha o telefone das lideranças principais, existia enfim mais
respeito mútuo.
Na atualidade, em virtude da televisão, é possível ver e acompanhar
muito mais os jogos do time do que antigamente. Tempos atrás, os jogos mais
distantes restringiam-se às transmissões de rádio, salvo alguns jogos em São
Paulo ou Minas Gerais. Banha diz que viajou muito. Fora do Brasil, foi ao
Chile, ao Uruguai e à Argentina, acompanhando o Flamengo na Copa
Libertadores da América, de 1981. A viagem ao Chile foi a segunda partida da
decisão da Libertadores entre Flamengo e Cobreloa, para onde ele foi de
avião. Em seguida, foram ao Uruguai assistir à terceira, última e decisiva
partida. Enquanto a maior parte do pessoal foi de ônibus direto do Chile para
Montevidéu, a maioria integrante da Raça Rubro-Negra e da Jovem, ele e um
grupo que tinha mais condição financeira resolveram ir novamente de avião.
No Brasil, foi várias vezes para Goiás e para o Rio Grande do Sul. A
São Paulo, que era perto, perdeu a conta do número de viagens e afirma
conhecer a capital paulista graças ao Flamengo. Em Belo Horizonte, esteve na
final contra o Atlético-MG, na decisão do Campeonato Brasileiro de 1980. No
Rio, ia a todos os jogos no Maracanã e regularmente às partidas no interior do
Estado. A lógica era a seguinte: até distância de 24hs eles iam a todos os
jogos, mais do que isso, não iam sempre, pois ficava caro, a ida dependia da
importância do jogo. Mas viajou muito pois a equipe do Flamengo no início
dos anos 80 também ajudava, era excelente, ganhava tudo. Hoje talvez não se
viaje mais, pois não há tanto estímulo de títulos e vitórias.
Nos jogos decisivos, eles contavam com o apoio financeiro dos
dirigentes para viajar. Em 1983, na primeira partida da final do Campeonato
Brasileiro, em que o Flamengo se sagrou tricampeão, Banha testemunhou a
sua maior caravana. Para o jogo contra o Santos no Morumbi as torcidas
organizadas do Flamengo levaram duzentos ônibus. Destes, pelo menos
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metade havia sido concedida pela diretoria do Flamengo. Ainda assim, não
deu vazão para a demanda, a procura foi muito grande e eles alugaram mais
cem ônibus. Só a Jovem levou sessenta e poucos ônibus. O controle nas
viagens costumava ser muito difícil. Havia muito quebra-quebra nos bares,
nas cercanias dos estádios. Era muita gente, ele estava no ônibus de número
quatro, havia confusão no ônibus de número oito, lá atrás, aconteciam
inúmeras brigas, ele não tinha como controlar tudo. As viagens eram muito
problemáticas, vários ônibus quebrados e depredados pelos torcedores de lá,
vinham pedradas de todos os lados. Em São Paulo, as caravanas sempre foram
complicadas, pois a polícia era extremamente violenta. Uma vez estava
parado, veio um policial e deu com a borracha nele. Chamou-o de “mendigo
do Rio” – alusão ao filme “Menino do Rio”, que passava na época –, e
ofendeu-o, chamando-o de “filho da puta”. Uma agressividade gratuita, à toa.
Por isso, quando houve a briga recente da torcida do River Plate com a
polícia paulista no Morumbi, nas partidas finais válidas pela Taça
Libertadores da América de 2006, em que os argentinos partiram para cima
dos policiais e esbordoaram eles, Banha vibrou, comemorou muito. Pois a PM
de São Paulo, acostumada a bater com cassetete nos torcedores brasileiros,
achou que podia fazer isto com os argentinos. O comportamento clássico da
polícia de São Paulo é assim: bate primeiro e vê o que aconteceu depois. Só
que a polícia paulista teve de lidar com um povo que sabe enfrentar, que não é
“frouxo” como o brasileiro e se deu mal. Lá na Argentina os torcedores são
homens feitos, ao contrário daqui, que são pirralhos. Lá o futebol é uma coisa
séria, tem a ver com os bairros, muito mais do que aqui. Não há torcidas
organizadas, há uma única torcida que fica atrás do gol, as chamadas “barra-
bravas”.
Segundo Banha, as viagens possibilitaram que eles chegassem a manter
um contato muito bom com os “barras-bravas” do Independiente, que eram
muito legais, e com o pessoal da torcida do Boca Juniores. Quando eles
viajaram a Buenos Aires, sabiam que a torcida do River Plate seria um
problema, pois estavam inteirados da relação que a Jovem tinha com a barra
do Boca. Relata o caso de um jogo contra o Estudiantes de La Plata, em que a
Jovem foi com um ônibus para a Argentina. Estavam em um bar nas
redondezas do estádio, quando de repente chegaram uns quinhentos
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torcedores, mal encarados, com barras de ferro, e perguntaram se eles do
Flamengo estavam ali para “la guerra ou para la paz”. Diante de tamanha
desvantagem, Banha e seus companheiros obviamente disseram que tinham
ido para “la paz”. Os argentinos então baixaram as armas e foram tomar vinho
junto com eles. Quando entraram no estádio, o jogo já tinha começado e já
tinham passado dez minutos de jogo.
A Torcida Jovem importou muitas músicas da Argentina e, da mesma
maneira, algumas os argentinos adaptaram deles. Segundo Banha, o funk hoje
é a batida predominante. Já no “seu tempo” era o samba. A Jovem alternava a
preferência do samba com o rock, pois muitos integrantes da torcida tinham
uma “outra cabeça”, diferente do samba. Eles freqüentavam o Circo Voador,
havia muitos metaleiros na torcida, lembra de ter ido ao Rock in Rio 1, em
1980, uns trezentos componentes da Jovem estiveram presentes. Mas outros
também gostavam de samba, iam para os ensaios das escolas de samba do
Salgueiro, da Mangueira. Hoje todos vão para os bailes funks. É uma outra
cultura que vem com as gangues dos morros, com o CV, com o Terceiro
Comando. Tudo isto entrou muito na torcida. Toda a cultura da violência, do
sexo, da vulgaridade, tomou conta da torcida também.
Em relação às amizades no Brasil, Banha aborda a relação espetacular
que a “velha-guarda” da torcida teve com os Gaviões da Fiel do Corinthians.
Isto começou a ser construído em 1976, quando a torcida do Corinthians veio
ao Rio contra o Fluminense, naquela famosa invasão e a torcida do Flamengo
foi em massa apoiar os corintianos. Naquele jogo, tinham muitas bandeiras
rubro-negras e ali começou uma relação entre torcidas que possuíam em
comum a grandeza e a popularidade de dois clubes como Flamengo e
Corinthians. Criou-se o slogan: “Corinthians lá, Flamengo aqui”. Quando
Banha assumiu a torcida em 1980, já havia relação de amizade entre
componentes dos Gaviões e da Jovem. O ex-presidente da torcida, o João
Carlos, já tinha namorado uma moça dos Gaviões, o que facilitou a simpatia e
a aproximação. Infelizmente isto hoje acabou e as torcidas são inimigas, o que
considera um absurdo.
Quando ele saiu da torcida, ele viu o começo da “arenga”. As novas
gerações passaram a não querer mais, começaram a rivalizar entre si, houve
incidentes isolados entre componentes que não queriam essa união e isto
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acabou passando para a maioria. Ele não concorda com o rumo que tomou,
pois Jovem e Gaviões chegaram a fazer atividades em conjunto, eram
campeonatos e churrascos. Iniciou-se, por outro lado, no mesmo momento
uma aproximação com a torcida do São Paulo, com a qual nunca tinha havido
briga, o que incomodava o pessoal dos Gaviões. A Jovem decidiu que não ia
brigar com a Torcida Independente do São Paulo por causa dos Gaviões. A
briga deles era com a Mancha Verde do Palmeiras e com a Sangue Jovem do
Santos, com as demais, não. A relação com a torcida do São Paulo se manteve
e perdura até hoje. Na capital paulista, a situação piorou muito entre as
torcidas, lá houve um processo mais grave com mortes e emboscadas
sistemáticas.
Em Minas Gerais, a amizade com a torcida do Cruzeiro foi construída a
partir da decisão do Campeonato Brasileiro de 1980, quando os cruzeirenses
apoiaram em massa os flamenguistas no Mineirão, na primeira partida das
finais. Mas infelizmente também esta relação hoje não existe mais. Banha diz
que a última vez em que esteve no Maracanã, viu um cara da Jovem
queimando uma camisa da Máfia Azul do Cruzeiro. Não conseguiu entender
por quê. Ele ficou chocado, pois para ele os cruzeirenses eram amigos, eram
“irmãos”. Com a torcida do Atlético Paranaense, com quem também tinham
amizade, embora não muito antiga, as torcidas do Flamengo brigaram
também, de modo que só ficou a do São Paulo mesmo. Não sobrou ninguém,
uma pena.
Isso aconteceu porque, a seu ver, a Torcida Jovem recebe muitas
pessoas “problemáticas”. Às vezes uma atitude isolada de dois ou três
componentes acaba por jogar um peso alto sobre toda a torcida, o que gera um
problema difícil de solucionar. Na década de 1990, a torcida começou a
receber pessoas como o Snoopy, que depois foi procurado pela polícia, como
traficante. No tempo dele, já existiam figuras marginais, mas um cara
daqueles não poderia “apitar”, comandar, poderia até ficar lá na torcida, torcer
junto, mas não podia mandar na organização, que tinha hierarquia, voto,
eleição. Quando ele foi um dos líderes da torcida, o cara não ia armado, não
falava alto, respeitava-o. À medida que a torcida foi se deteriorando, estes
caras passaram a assumir, não só no Flamengo, como no Vasco, no Botafogo,
todas as torcidas têm seus bandidos pelas favelas. Os “caras” chegaram com
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dinheiro, em um contexto de morte, com capacidade de organização. Por um
tempo chegaram a tomar conta da torcida.
Por isso, seus pais eram totalmente contrários à presença dele na
torcida. Achavam que era uma loucura, que era perigoso e acabaram
convencendo ele com o tempo. A impressão deles era a de que o filho deixava
a vida de lado. Para seus pais, aquilo era um atraso de vida, perdia-se muito
tempo e gastava-se muito dinheiro. De acordo com Banha, isto serve para a
desmistificação de outra lenda criada pela imprensa, segundo a qual os chefes
de torcida se davam bem, enriqueciam com a torcida, o que não ocorria na
realidade. As torcidas têm seus conselhos deliberativos, que controlam a
entrada e a saída de dinheiro. O ganho de dinheiro dava-se entre as torcidas de
pequeno porte, onde o chefe era a própria torcida e ele mesmo se valia da
venda das camisas. Já nas grandes torcidas, só há aborrecimento, o líder só
tem perdas financeiras.
É claro que isso não ocorre com todas as pequenas torcidas. A
Flamante, do Ricardo Muci, nunca chegou a ser uma grande torcida, em
função de sua localização no Maracanã, onde o sol incomodava muito, incidia
frontalmente. O perfil era o de pessoas mais velhas, embora tivesse uma
bateria muito boa. Depois do Muci, veio a Toninha, mas a torcida foi
perdendo integrantes e não soube foi renovar suas lideranças. Banha considera
que as torcidas têm de saber acompanhar os novos tempos, senão ficam
cafonas. Dá o exemplo de sucesso da Fúria Jovem do Botafogo. Dissidência
da Torcida Jovem do Botafogo, veio com novas posturas, com uma nova
política, com uma nova atitude, com novos cantos, com nomes novos e,
enfim, se impôs como uma grande torcida.
O momento de sua retirada da torcida ocorreu em 1988. A barra foi
ficando pesada e ele pensou que não queria matar ninguém, tampouco morrer
por causa disso. Uma vez, um pessoal da Força Jovem foi à sua casa e
quebrou o carro do seu pai. Em outra ocasião, assistiu a um colega da torcida
ser assassinado na porta da quadra da escola de samba do Salgueiro, na frente
de várias pessoas, por um cara da Força Jovem. Era policial, saiu andando,
ninguém fez nada. Ai ele parou para pensar e perguntar no que tinha virado
aquilo. Era uma geração nova que se aproveitou da amizade entre ele, o Eli
Mendes da Força Jovem e o Antônio Gonzáles da Força Flu para descobrir
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onde eles moravam e ameaçá-los em casa, coisas assim desse tipo. Resolveu
desligar-se da torcida e, graças a isso, não pegou a fase pior, quando começou
a morrer gente dos dois lados.
Foi muito difícil o afastamento, pois os amigos ligavam para ele,
chamavam-no de covarde, diziam que outro amigo tinha sido “pego”, se ele
não ia se vingar. Ele se recusou, mas chegou a passar por um período difícil
em razão disto, viveu um dilema existencial, teve crise de consciência de sua
decisão. Por outro lado, para ele, passada essa fase, sua vida pessoal e
profissional melhorou muito com sua saída da torcida, deu uma guinada para
melhor. Ele ficou de 1978 a 1988 na torcida, foram ao todo dez anos de
participação e dedicação. Nesse período ele era funcionário público federal e
estudava, passando a se dedicar com mais afinco aos estudos quando deixou a
torcida e iniciou o curso de História na UERJ. Fez graduação em Sociologia e
ingressou na Pós-Graduação da UFRJ, onde fez Mestrado e Doutorado em
História. Hoje é professor e pesquisador, especialista em História Antiga.
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Anexos
(Fotografias, periódicos e materiais de torcida)
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Jaime de Carvalho, acompanhado do filho Jaime Tadeu, nas arquibancadas do Maracanã. Foto
sem data, não publicada, provavelmente da década de 1960. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal
dos Sports.
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Protesto da torcida do Fluminense nas arquibancadas do Maracanã, na noite de 04 de abril de
1968, com caixão funerário em sinal de luto contra a diretoria do clube. Fonte: Arquivo Histórico
do Jornal dos Sports.
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Faixa de apoio da torcida do Botafogo no alambrado das arquibancadas do Maracanã. Menção ao
Poder Jovem, torcida dissidente que acabava de se formar. Foto de 29 de julho de 1968. Fonte:
Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Torcedores do Flamengo protestam com enterro simbólico do presidente do clube, Jorge Veiga
Brito. Segundo semestre de 1968. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Presença da torcida do Flamengo no Mineirão para o jogo contra o Cruzeiro, no dia 11 de
setembro de 1970. Junto às faixas da Torcida Jovem e da Flamante, note-se a bandeira do Atlético
Mineiro, com o tradicional símbolo do galo. Da caravana a Belo Horizonte tomaria parte o
jornalista Altair Baffa, responsável por grande reportagem sobre a Torcida Jovem do Flamengo.
Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Torcedores do Fluminense concentram-se em frente à entrada do Maracanã, para mais uma
caravana da torcida, no dia 18 de novembro de 1970. Dentre os organizadores, aparece Sérgio
Aiub, líder da Torcida Organizada do Fluminense. Vê-se também uma faixa da Força-Flu sendo
desenrolada. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Preparativos da Torcida Jovem do Flamengo para a excursão noturna a São Paulo, a fim de
assistir ao jogo válido pela Taça de Prata no dia 05 de dezembro de 1970, no Pacaembu, contra o
Corinthians. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Nas arquibancadas do Maracanã, faixa de protesto da torcida do Flamengo contra o técnico do
clube, o ex-goleiro Yustrich. A pressão da torcida contribuiria para a demissão do treinador
poucos dias depois. Foto do dia 20 de janeiro de 1971. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos
Sports.
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Foto da torcida corintiana nas arquibancadas do Maracanã, em dezembro de 1972, em partida
válida pelas semifinais do Campeonato Brasileiro. Os Gaviões da Fiel compareceram em nove
ônibus fretados. O empate em 1 a 1 com o Botafogo eliminou a equipe paulista. Fonte: Arquivo
Histórico do Jornal dos Sports.
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A 20 de janeiro de 1973, o atacante do Atlético Mineiro, Dario Pereira, o Dadá Maravilha, foi
transferido para o Flamengo. Em seu desembarque no aeroporto Galeão, foi ovacionado pelos fãs
rubro-negros. Tia Helena, líder da Torcida Jovem do Flamengo, aparece ao lado do jogador, que
veste a camisa da torcida. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Na sede do Jornal dos Sports, em abril de 1973, Jaime de Carvalho discursa após receber dos
organizadores do periódico a taça correspondente ao prêmio de Melhor Torcida, no clássico contra
o Botafogo. Ao seu lado, estão Ricardo Muci (braços cruzados), chefe da Flamante, Laura de
Carvalho, Onça 1, Jaime Tadeu Filho, Magali (braços cruzados), entre outros. Fonte: Arquivo
Histórico do Jornal dos Sports.
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Ricardo Muci, chefe da Flamante, na sala da torcida do Flamengo, no Maracanã, prepara os
instrumentos musicais antes do jogo. Foto de 1973. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos
Sports.
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Após a goleada histórica sobre o rival rubro-negro, botafoguenses fazem faixa com alusão ao
placar. Na sede da torcida, uma pequena sala dentro do Maracanã, vê-se Tarzã, líder da Torcida
Organizada do Botafogo a discursar. Foto de 13 de abril de 1973. Foto não-publicada. Fonte:
Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Concentração dos torcedores do Botafogo em frente à entrada do Maracanã. Em outubro de
1973, a caravana da Unifogo seria acompanhada pelo jornalista José Antônio Genheim,
responsável por uma grande reportagem sobre a caravana que foi a São Paulo para o jogo no
Pacaembu contra o Corinthians. As caravanas costumavam sair à meia-noite. Fonte: Arquivo
Histórico do Jornal dos Sports.
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Passados oito meses da goleada de 6 a 0 do Botafogo contra o Flamengo, a torcida alvinegra
ainda recordava com alegria o tento histórico sobre o rival. Na foto, não-publicada, tirada no dia
09 de dezembro de 1973, na sede do Jornal dos Sports, integrantes da Torcida Organizada do
Botafogo (TOB), dentre eles o ainda novato Russão, ironizam um torcedor do Flamengo. Fonte:
Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Em 08 de julho de 1979, a equipe do Botafogo foi a Petrópolis jogar contra o Serrano. Russão,
líder da Torcida Organizada do Botafogo desde 1977, substituto de Tarzã no comando do grupo, é
levado pela polícia após invadir o campo. Foto não-publicada. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal
dos Sports.
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A 7 de maio de 1982, as torcidas organizadas do Fluminense promovem o enterro simbólico do
presidente do clube, em frente à sede social. O líder da Jovem-Flu, Sérgio Aiub, aparece em
destaque, agachado. No dia anterior, o Jornal dos Sports já mencionava o protesto com a
manchete: “Torcida vai enterrar os coveiros”. No dia seguinte, o JS estamparia em primeira
página: “Torcida invade o Fluminense”. Foto não-publicada. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal
dos Sports.
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Após o jogo, torcida do Fluminense foi à Geral protestar com cartazes, faixas, bandeiras e um
féretro, símbolo do descontentamento com os dirigentes e o técnico do clube. Foto não-publicada,
maio de 1982. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Dois dias depois do anúncio de greve, a 30 de julho de 1982, líderes da ASTORJ se reuniriam
com o presidente da Federação, Otávio Pinto Guimarães, para a discussão sobre a redução do
preço dos ingressos. Dentre as lideranças é possível destacar na foto: Armando Giesta (Young-
Flu), Cláudio Cruz (Raça Rubro-Negra), Russão (Torcida Folgada), Eli Mendes (Força Jovem do
Vasco), Niltinho (Torcida Jovem do Flamengo), Wilson Amorim (Banluta), Verinha (Flamor),
entre outros. Foto não-publicada. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Na noite de 07 de setembro de 1982, o Movimento Unido Tricolor (MUT), reunião de torcidas
organizadas do Fluminense, faz manifestação pelas ruas da cidade contra a diretoria do
Fluminense. Foto não-publicada. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Faixa de protesto da torcida do Flamengo, com a exigência de reforços. Foto não-publicada, sem
data. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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No final da década de 1970, o arremesso de papel higiênico começou a ser utilizado como
saudação à entrada das equipes em campo. Foto não-publicada, do ano de 1983. Fonte: Arquivo
Histórico do Jornal dos Sports.
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A 07 de setembro de 1984, as torcidas organizadas do Flamengo se unem para promover uma
passeata antes do jogo, na Geral do Maracanã, com faixas que repudiam o aumento dos ingressos.
Foto não-publicada. Fonte: Arquivo Histórico do Jornal dos Sports.
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Reportagem de Élcio Castro sobre os seis principais chefes de torcida organizadas do Rio de
Janeiro na década de 1960. Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1966,
p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
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Como em várias reportagens do final dos anos 60, o Jornal dos Sports se refere em suas
chamadas ao slogan Poder Jovem. Cf. Id. Rio de Janeiro, 15 de julho de 1967, p. 12. Fonte:
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
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31
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 30 de setembro de 1967, p. 04. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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32
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 09 de novembro de 1967, p. 04. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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681
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 19 de março de 1968, p. 04. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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34
Cf. Id. Rio de Janeiro, 29 de março de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 02 de abril 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional –
Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 09 de abril de 1968, p. 05. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Manchete aponta a queda do vice-presidente de futebol do Fluminense, Dílson Guedes, sob a
pressão da torcida. Cf. Id. Rio de Janeiro, 11 de abril de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação
Biblioteca Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 28 de abril de 1968, p. 04. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 14 de junho de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 22 de junho de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 27 de junho de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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690
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 28 de julho de 1968, JS-Escolar, p. 06. Fonte: Acervo da Fundação
Biblioteca Nacional – Brasil.
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691
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Charge de Henfil e as reportagens mostram a proximidade do JS com o universo estudantil. Cf.
Id. Rio de Janeiro, 02 de agosto de 1968, p. 11. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional –
Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 04 de agosto de 1968, JS-Escolar, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação
Biblioteca Nacional – Brasil.
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693
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 11 de agosto 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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694
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 07 de setembro de 1968, p. 11. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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695
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1968, JS Escolar, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação
Biblioteca Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1968, p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1968, p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 21 de setembro de 1968, p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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699
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1968, p. 16. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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700
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 23 de setembro de 1968, p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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701
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1968, p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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702
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 25 de setembro de 1968, p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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703
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 26 de setembro de 1968, p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1968, p. 16. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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706
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 03 de outubro de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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707
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 04 de outubro de 1968, p. 12. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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708
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O editorial, a seção Bate-Bola e as charges ameaçadoras e sugestivas de Henfil povoavam a
segunda página do JS. Cf. Id. Rio de Janeiro, 05 de outubro de 1968, p. 02. Fonte: Acervo da
Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
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Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de Janeiro, 05 de outubro de 1968, p. 02. Fonte: Acervo da
Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
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710
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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711
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 07 de outubro de 1968, p. 03. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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712
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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A primeira página do Jornal dos Sports anuncia a decisão da Torcida Jovem do Flamengo de
velar simbolicamente a morte do presidente do clube no Maracanã. Chamada de Henfil também
alude de maneira irônica aos coveiros rubro-negros. Cf. Id. Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1968,
p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1968, p. 10. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1968, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1969, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 06 de maio de 1969, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 19 de maio de 1970, p. 09. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1970, p. 08. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1970, p. 08. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1970, p. 08. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 03 de dezembro de 1970, p. 02. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
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Cf. Id. Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1970, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
725
77
77
Cf. Id. Rio de Janeiro, 05 de dezembro de 1970, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
726
78
78
Cf. Id. Rio de Janeiro, 27 de maio de 1971, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
727
79
79
Cf. Id. Rio de Janeiro, 23 de maio de 1972, p. 03. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
728
80
80
Cf. Id. Rio de Janeiro, 03 de dezembro de 1972, p. 13. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
729
81
81
Cf. Id. Rio de Janeiro, 04 de dezembro de 1972, p. 07. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
730
82
82
Cf. Id. Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 1972, p. 14. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
731
83
83
Cf. Id. Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 1973, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
732
84
84
Cf. Id. Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1973. Segundo Tempo, p. 05. Fonte: Acervo da
Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
733
85
85
Cf. Id. Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1973. Segundo Tempo, p. 06. Fonte: Acervo da
Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
734
86
86
Cf. Id. Rio de Janeiro, 05 de maio de 1976, p. 03. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
735
87
87
Cf. Id. Rio de Janeiro, 06 de maio de 1976, p. 05. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
736
88
88
Cf. Id. Rio de Janeiro, 07 de maio de 1976, p. 16. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
737
89
89
Cf. Id. Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1978, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
738
90
90
Cf. Id. Rio de Janeiro, 22 de julho de 1979, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
739
91
91
Cf. Id. Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1979, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
740
92
92
Cf. Id. Rio de Janeiro, 08 de julho de 1980, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
741
93
93
Manchete do Jornal dos Sports mostra a tensão entre torcidas organizadas e dirigentes
esportivos em função do aumento do preço dos ingressos. Cf. JORNAL DOS SPORTS. Rio de
Janeiro, 27 de maio de 1981, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
742
94
94
Uma semana depois da manchete da página anterior, o jornal estampa anúncio da vitória das
torcidas com a revogação do preço dos ingressos. Cf. Id. Rio de Janeiro, 05 de junho de 1981, p.
01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
743
95
95
“Muito salário, pouca raça” é uma das pichões nos muros do Fluminense contra o
desempenho dos jogadores em campo. Cf. Id. Rio de Janeiro, 20 de junho de 1981, p. 01. Fonte:
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
744
96
96
Foto mostra reunião no gabinete da presidência do Fluminense com representantes de torcidas
organizadas do clube. Cf. Id. Rio de Janeiro, 17 de julho de 1981, p. 01. Fonte: Acervo da
Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
745
97
97
Coluna destinada às estrelas da TV aborda o falecimento de Elis Regina, cantora que ocupara a
primeira página do Jornal dos Sports no final da década de 1960. Cf. Id. Rio de Janeiro, 20 de
janeiro de 1982, p. 09. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
746
98
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Discordâncias quanto à atuação do juiz fazem dirigentes do Vasco incensar a torcida a protestar
contra o árbitro em São Januário, segundo relato do JS. Cf. Id. Rio de Janeiro, 29 de março de
1982, p. 06. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
747
99
99
Foto de Russão, líder da torcida botafoguense, indignado com a atuação dos jogadores do elenco
alvinegro. Cf. Id. Rio de Janeiro, 04 de janeiro de 1983, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação
Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
748
100
100
O falecimento de Garrincha no início dos anos 80 causou comoção nacional e ocupou várias
páginas do Jornal dos Sports. Cf. Id. Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1983, p. 01. Fonte: Acervo
da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
749
101
101
Após manchete do jornal dois dias antes, dizendo “Carpegiani desafia torcida do Mengo”,
torcida do Flamengo responde ao desafio, como pode ser visto na chamada do periódico. Cf. Id.
Rio de Janeiro, 03 de fevereiro de 1983, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional –
Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
750
102
102
Na década de 1980, o Jornal dos Sports cria seção específica para temas ligados à vida urbana
no Rio de Janeiro, em especial, notícias destinadas a questões corporativas, como greves de
sindicatos e servidores do Estado. Cf. Id. Rio de Janeiro, 27 de março de 1987, p. 01. Fonte:
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
751
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103
Com a chamada “Galera bombardeia rubro-negros”, matéria aborda uma prática que se tornaria
corrente entre algumas torcidas organizadas na década de 1980: perturbar as noites de sono dos
jogadores das equipes adversárias na véspera de partidas decisivas. Cf. Id. Rio de Janeiro, 28 de
março de 1987, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
752
104
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Matéria de página inteira dá destaque ao I Encontro JS das Torcidas, em que os representantes
das principais facções torcedoras participam de um debate a respeito dos maiores problemas
relativos aos torcedores de futebol. Chefes de torcida como Banha, Armando Giesta e Wilson
Amorim podem ser vistos na foto. Cf. Id. Rio de Janeiro, 29 de março de 1987, p. 12. Fonte:
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
753
105
105
Reportagem com grande destaque coloca as torcidas organizadas e os seus líderes no limbo.
Mais uma vez podem ser vistas fotos com Armando Giesta e Banha, representantes da Young-Flu
e da Torcida Jovem do Flamengo, respectivamente. Cf. Id. Rio de Janeiro, 20 de novembro de
1988, Caderno Segundo Tempo, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
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Fragmento da reportagem da página anterior trata do tema do controvertido profissionalismo
entre os chefes de torcida. Cf. Id. Rio de Janeiro, 20 de novembro de 1988, Caderno Segundo
Tempo, p. 01. Fonte: Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
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107
Símbolo da ASTORJ, a Associação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro, criada em
1981. Fonte: Acervo particular Armando Martins Giesta.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
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108
109
108
Modelo de carteirinha da Raça Rubro-Negra do início da década de 1990, assinada pelo
presidente da torcida, Evandro Bocão. Acervo particular – Leandro Teixeira Bastos.
109
Foto de uma das primeiras caravanas da Raça Rubro-Negra no final dos anos 70. Cf.
www.racarubronegra.com.br
. Acesso em: 15 de dezembro de 2003.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
757
110
111
110
Modelo de carteirinha da Torcida Jovem do Botafogo da década de 1980, assinada pelo
presidente da torcida, Fernando Mesquita. Acervo particular Felipe Giannini.
111
Modelo da primeira carteirinha da Torcida Jovem do Botafogo. A carteira é de número 136, foi
lavrada em 1970 pela diretoria da torcida a um adolescente de 14 anos de idade, de nome Renato
L. Jorge, morador da Rua Henry Ford, Tijuca. Cf. www.geocities/tjbfogo
. Acesso em: 10 de
dezembro de 2003.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
758
112
112
Matéria de capa da revista dominical do Jornal do Brasil trata das torcidas organizadas e dos
problemas relativos à violência. Fonte: JORNAL DO BRASIL. Revista de Domingo. Rio de
Janeiro, 22 de maio de 1988.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
759
113
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Panfleto distribuído no Maracanã, sem data, provavelmente do final dos anos de 1980. Fonte:
Acervo particular Jorge Medeiros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
760
114
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Formulário para sócio da Torcida Força Jovem do Vasco da Gama. Fonte: Acervo particular
Jorge Medeiros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
761
115
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Boletim informativo da torcida Young-Flu. Fonte: Acervo particular Armando Martins
Giesta.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
762
116
116
Boletim informativo da Torcida Jovem do Flamengo. Fonte: Acervo particular Jorge
Medeiros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
763
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117
Primeiro número do boletim informativo da Força Jovem do Vasco. Sem mês especificado, é
do ano de 1992. Fonte: Acervo particular Jorge Medeiros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
764
118
118
Segundo número do boletim informativo da Força Jovem do Vasco. Sem mês especificado, é
do ano de 1992. Fonte: Acervo particular Jorge Medeiros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
765
119
119
Terceiro número do boletim informativo da Força Jovem do Vasco. Sem mês especificado, é
do ano de 1992. Fonte: Acervo particular Jorge Medeiros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
766
120
120
Quinto número do boletim informativo da Força Jovem do Vasco. Sem mês especificado, é do
ano de 1992. Fonte: Acervo particular Jorge Medeiros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
767
121
121
Cf. Número especial da revista da Raça Rubro-Negra, vendida em bancas de jornal da cidade,
com histórias de viagem pelo Brasil e pelo exterior, em jogos do Flamengo e da Seleção
Brasileira, narradas por um ex-componente da torcida, José Francisco Moraes. Fonte: Acervo
particular do autor.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
768
122
122
Primeiro número da revista semestral da Torcida Jovem do Botafogo. O antigo técnico
botafoguense, João Saldanha ilustra a capa. A revista era vendida nas bancas de jornal da cidade.
Fonte: Acervo particular do autor.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
769
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Segundo número da revista semestral da Torcida Jovem do Botafogo, comemorativa da
conquista do Campeonato Carioca de 1997. A revista, que visivelmente procurava seguir o padrão
das revistas esportivas, também podia ser adquirida nas bancas de jornal da cidade. Fonte: Acervo
particular do autor.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
770
124
124
Terceiro número da revista semestral da Torcida Jovem do Botafogo, lançada no primeiro
semestre de 1998, com o símbolo principal da TJB, adotado nos anos 90. Fonte: Acervo particular
do autor.
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771
125
125
Quarto e último número da série de revistas semestrais da Torcida Jovem do Botafogo,
comemorativa dos 30 anos de criação da torcida (1969-1999). Fonte: Acervo particular do autor.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310346/CA
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