objetivo, em última análise, é próprio daquela “psicologia do inconsciente” que Jung
elabora a partir da crise central de sua vida, vivida entre 1912 e 1918, e que Henri
Ellenberger compreende segundo a categoria da “doença criativa”.
332
Sob uma
perspectiva ético-histórica, podemos dizer que é então que, de forma consciente e
radical, Jung experimenta pessoal e dramaticamente em sua vida os efeitos do
desenraizamento produzido pela modernidade, o que empresta a sua experiência o
caráter de uma relativa exemplaridade.
333
O momento culminante dessa experiência dá-
se após o rompimento com Freud, e é relatado no capítulo “Confronto com o
Inconsciente” de Memórias, Sonhos, Reflexões.
334
Podemos referendar a interpretação
ético-histórica de sua crise através das indicações que se referem àquele período.
Em primeiro lugar, é preciso notar que o verdadeiro fascínio exercido sobre Jung
pelo Fausto de Goethe, ao longo de toda a sua vida, revela seu envolvimento pessoal
com o dilema tradição-modernidade.
335
Sob esse prisma, o espírito que move a vida e a
Só um grande idealista como FREUD pôde
consagrar a um trabalho tão sujo a atividade de toda uma
vida. (...) Portanto, nossa psicologia, isto é, o conhecimento de nossa psique, começa, sob todos os pontos
de vista, pelo lado mais repugnante, a saber, por tudo que não queremos ver.” OC X, §183 e 186.
332
Cf. ELLENBERGER, H. F. The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of Dynamic
Psychiatry. New York: Basic Books, 1970, p. 657-748. O próprio Jung atesta a vinculação entre sua crise
e sua psicologia: “Hoje posso dizer que nunca me afastei de minhas experiências iniciais. Todos os meus
trabalhos, tudo o que criei no plano do espírito provêm das fantasias e dos sonhos iniciais. Isso começou
em 1912, há cerca de cinqüenta anos. Tudo o que fiz posteriormente em minha vida está contido nessas
fantasias preliminares, ainda que sob a forma de emoções ou de imagens. (...) Minhas buscas científicas
foram o meio e a única possibilidade de arrancar-me a esse caos de imagens (...) Foram necessários
quarenta e cinco anos para elaborar e inscrever no quadro de minha obra científica os elementos que vivi
e anotei nessa época da minha vida.” In JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 170-176.
333
“Quando se ouve alguém falar de um problema cultural ou de um problema humano, nunca se deve
esquecer de perguntar quem está falando. Pois, quanto mais geral o problema, tanto mais [o sujeito]
‘introduzirá secretamente’ sua psicologia pessoal na descrição. Isto poderá levar a distorções
imperdoáveis e a falsas conclusões, com sérias conseqüências. Mas, por outro lado, o próprio fato de um
problema geral envolver e assumir a personalidade inteira é garantia de que quem fala dele também o
tenha vivenciado ou experimentado pessoalmente. Na segunda hipótese, ele nos apresenta o problema sob
um ponto de vista pessoal, mostrando-nos portanto uma verdade, ao passo que o primeiro manipula o
problema com tendências pessoais e o deforma, sob o pretexto de lhe dar uma forma objetiva. O resultado
será simplesmente uma imagem ilusória sem qualquer base verdadeira.” OC X, § 157.
334
E mais extensamente em um seminário realizado em 1925. Cf. MCGUIRE, W. (ed.). Analytical
Psychology. Notes of the Seminar given in 1925. C.G.Jung. Princeton: P.U.P., 1989.
335
“Quando li o Fausto não podia supor ainda quanto o estranho mito heróico de Goethe era coletivo, e
profetizava o destino da Alemanha. Era por isso que me sentia pessoalmente atingido, e quando Fausto,
em conseqüência de sua hybris e inflação, provoca a morte de Filemon e Baucis, acreditei ser culpado,
um pouco como se, em pensamento, tivesse participado do assassinato dos dois velhos. (...) Fausto fez
vibrar em mim uma corda e me atingiu de tal maneira que só podia compreendê-lo de um ponto de vista
pessoal. O problema dos contrários, do bem e do mal, do espírito e da matéria, do claro e do obscuro, foi
algo que me tocou profundamente. (...) Goethe, de alguma forma, havia esboçado um esquema de meus
próprios conflitos e soluções. A dicotomia Fausto-Mefisto confundia-se para mim num só homem, e esse
homem era eu! Em outras palavras, sentia-me atingido, desmascarado e, uma vez que era esse o meu
destino, todas as peripécias do drama me concerniam pessoalmente.” in JAFFÉ, A. C.G. Jung. Mémórias,
Sonhos, Reflexões, p. 209. A compreensão meramente pessoal da identificação ao problema faustiano vai
ser posteriormente superada: “Enquanto não é reconhecido como tal, um problema coletivo toma sempre
a forma pessoal e provoca, ocasionalmente, a ilusão de uma certa desordem no domínio da psique