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MARCO HELENO BARRETO
Símbolo e sabedoria prática
Carl Gustav Jung e o mal-estar da modernidade
UFMG/2006
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SÍMBOLO E SABEDORIA PRÁTICA
C.G. Jung e o Mal-estar da Modernidade
Aluno: Marco Heleno Barreto
Orientador: Prof. Dr. Fernando Rey Puente
Trabalho apresentado ao Departamento de Filosofia da
FAFICH/UFMG, como requisito parcial para a obtenção do
título de Doutor em Filosofia.
Área de Concentração: Filosofia
Linha de Pesquisa: História da Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais
2006
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100 Barreto, Marco Heleno
B273s Símbolo e sabedoria prática : Carl Gustav Jung e o mal-estar
2006 da modernidade / Marco Heleno Barreto . – 2006.
255 f. :il.
Orientador: Fernando Rey Puente.
Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Departamento de Filosofia.
.
1. Jung, C. G. (Carl Gustav), 1875-1961
2 . Psicologia- Teses
3. Psicanálise – Teses 4. Ética – Teses 5. Modernidade - Teses I.
Rey Puente, Fernando. Universidade Federal de Minas Gerais.
Departamento de Filosofia. III.Título
DEDICATÓRIA
O retrato não me responde,
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha idéia de família
viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade, Retrato de Família
Este trabalho, que traz cifrada a experiência de minha vida, é dedicado a todos
aqueles que a tornaram possível: meus parentes mortos e vivos, os que conheci e os que
não conheci. Mas, dentre todas as presenças que fluem no rio do sangue, algumas
reconfortantes na alegria do encontro, outras vibrantes na calidez da memória, outras
ainda silenciosas na continuidade do desconhecimento ou do olvido, dedico
especialmente este trabalho a meu irmão João Bosco, que nos anos difíceis e aflitos de
minha juventude emprestou-me os primeiros livros de Jung, nos quais eu viria a
encontrar a afinidade espiritual que aqui se transmuta em trabalho acadêmico.
Este trabalho, fruto de uma paixão perene, é também uma modesta homenagem
a Carl Gustav Jung, em quem meu sentimento e minha fantasia lúdica reconhecem o
meu mais imprevisto antepassado.
Áspero amor, violeta coroada de espinhos,
cipoal entre tantas paixões eriçado,
lança das dores, corola da cólera,
por que caminhos e como te dirigiste a minha alma?
Por que precipitaste teu fogo doloroso,
de repente, entre as folhas frias de meu caminho?
Quem te ensinou os passos que até mim te levaram?
Que flor, que pedra, que fumaça, mostraram minha morada?
O certo é que tremeu a noite pavorosa,
a aurora encheu as taças com seu vinho
e o sol estabeleceu sua presença celeste,
enquanto o cruel amor sem trégua me cercava,
até que lacerando-me com espadas e espinhos
abriu no coração um caminho queimante.
Pablo Neruda
Esplêndida razão, demônio claro
do cacho absoluto, do reto meio-dia,
aqui estamos, ao fim, sem solidão e sós,
longe do desvario da cidade selvagem.
Quando a linha pura rodeia sua pomba
e o fogo condecora a paz com seu sustento,
tu e eu erigimos este celeste efeito.
Razão e amor despidos vivem nesta casa.
Sonhos furiosos, rios de amarga certeza,
decisões mais duras que o sonho de um martelo
caíram na dúplice taça dos amantes.
Até que na balança se elevaram, gêmeos,
a razão e o amor como duas asas.
Assim se construiu a transparência.
Pablo Neruda
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Fernando Rey Puente, meu orientador, que demonstrou extraordinária
capacidade de dedicação e disponibilidade ímpar na orientação deste trabalho, desde o
momento da elaboração do projeto inicial.
Ao Prof. João A.A.A. MacDowell, reitor do ISI Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia, pelo apoio e incentivo durante o período do doutorado.
Aos professores Francisco Javier Herrero e Carlos Roberto Drawin, pelas valiosas
críticas e sugestões a meu trabalho no exame de qualificação.
Aos professores José Raimundo Maia Neto e Lívia Mara Guimarães, sob cuja
inspiração elaborei a visão acerca do ceticismo epistêmico de Jung.
A Rita de Cássia Lucena Velloso, pelo estímulo a ingressar no programa de
doutoramento.
RESUMO
Neste trabalho, concedendo-se que uma dimensão filosófica reconhecível no campo
da psicoterapia contemporânea, busca-se determinar a natureza desta dimensão como
análoga à phronesis ou sabedoria prática constitutiva da vida filosófica segundo as
escolas da Antiguidade. Para tanto, a psicologia analítica concebida por Carl Gustav
Jung é tomada como objeto de análise, demonstrando-se como em sua dimensão prática
ela pode ser adequadamente compreendida como uma forma de sabedoria prática,
nomeadamente como uma hermenêutica vivida das imagens simbólicas. Paralelamente a
essa demonstração, o sentido histórico, filosófico e cultural da psicologia analítica é
explicitado a partir de sua inserção na experiência da modernidade, como uma busca de
respostas para os sofrimentos anímicos engendrados por esta mesma experiência.
PALAVRAS-CHAVE
Psicoterapia, psicologia analítica, sabedoria prática, modernidade, símbolo, Carl Gustav
Jung.
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................... 1
Capítulo Primeiro - Sabedoria Prática e Modernidade ........................................... 27
1. Sabedoria Prática: linhas fundamentais da concepção de phronesis ..... 28
1.1 A propósito da noção de sabedoria .............................................. 28
1.2 Phronesis e Práxis .......................................................................... 32
1.3 Phronesis, Orexis e Phantasia ....................................................... 36
1.4 Phronesis e Empeiria ...................................................................... 39
2. Modernidade: definição e descrição .......................................................... 44
3. O ocaso da sabedoria prática clássica ...................................................... 49
4. Conseqüências ............................................................................................. 57
Capítulo Segundo – Em Busca do Sentido: o Resgate do Símbolo ........................ 64
1. O problema: niilismo, sentido e símbolo .................................................. 64
2. Raízes do Iconoclasmo Ocidental ............................................................. 73
3. A recuperação antropológica do símbolo na psicologia analítica .......... 84
4. Para além da redução antropológica ........................................................ 96
Capítulo Terceiro – Tradição, Modernidade, Experiência Simbólica .................. 110
1. Tradição e modernidade na perspectiva da fenomenologia do Ethos ....110
2.Tradição, modernidade e experiência simbólica na psicologia analítica 114
3.A crise da modernidade na experiência pessoal de Jung ........................ 123
4.A psyches therapeia de C.G.Jung: experiência simbólica como forma de
sabedoria prática ................................................................................ 128
Capítulo Quarto – Um Ceticismo de Alma Romântica .......................................... 162
1. O limite epistemológico: um ceticismo epistêmico mitigado .................. 167
2. Jung, o Romantismo e o Idealismo Alemão............................................. 184
3. Considerações finais................................................................................... 210
Conclusão ................................................................................................................... 215
Anexo I – Sobre a Divergência entre Freud e Jung ................................................ 237
Bibliografia ................................................................................................................. 242
INTRODUÇÃO
Em sua Einführung in die Philosophie, e mais precisamente ao tratar do tema da
orientação filosófica da vida, Karl Jaspers afirma a certa altura:
”Mas hoje em dia, no campo da psicoterapia, surgiu algo que não é da alçada da medicina no seu
âmbito de ciência médica: é filosófico e carece, portanto, de comprovação ética e metafísica, como todo o
intento filosófico.
1
Essa afirmação encerra, in nuce, o problema a partir do qual nascem as
interrogações que norteiam o presente trabalho: como compreender, de um ângulo
histórico-filosófico, essa emergência de “algo filosófico” no campo incerto de uma
disciplina relativamente recente, que não cessa de reivindicar sua cidadania no concerto
das ciências humanas? Como esse fenômeno da cultura moderna relaciona-se a uma
“orientação filosófica da vida”? Como compreender o estatuto desse “campo da
psicoterapia”, que em virtude dessa mesma emergência fica distendido confusamente a
meio caminho entre a ciência e a filosofia? Como realizar a tarefa prescrita por Jaspers,
de “comprovação ética e metafísica” vale dizer, de legitimação filosófica desse
campo, corroborando assim o ponto de vista do próprio Jaspers?
Estas questões deslocam o eixo da reflexão filosófica da discussão
freqüentemente infrutífera - acerca da problemática cientificidade reivindicada pela
psicologia, introduzindo a consideração da natureza, extensão e legitimidade da
inscrição de certas escolas psicológicas na tradição filosófica. Eis um problema
espinhoso, que encontra resistências tanto por parte da filosofia – ainda muito zelosa em
preservar a pureza de uma contemplação desinteressada, desencarnada - quanto por
parte da psicologia ainda muito pouco disposta a abrir mão de sua pretensão a se
constituir exclusivamente como ciência, no sentido moderno dessa noção, e gozar dos
privilégios inerentes a um tal status.
Acolhendo a percepção de Jaspers citada acima, propusemo-nos circunscrever
esse “algo filosófico” que surge no campo da psicoterapia contemporânea, afirmando
1
JASPERS, K. Iniciação Filosófica. Lisboa: Guimarães Editores, 1998, p. 128. Entenderemos aqui
psicologia e psicoterapia como noções que remetem essencialmente uma à outra, sendo assim
intercambiáveis, a psicologia representando o corpo de conhecimentos que instrui uma determinada
intervenção clínica – a psicoterapia -, que por sua vez é a fonte das experiências que são transpostas para
o plano da teoria, constituindo a psicologia. Evidentemente, estamos nos atendo, além disso,
exclusivamente ao setor da psicologia clínica.
que o que aqui está em jogo é o destino moderno da sabedoria prática e as novas
figuras por esta assumidas em virtude da reorganização dos saberes estabelecida na
modernidade. Em outros termos: o estatuto de parte significativa do campo da
psicologia deveria ser pensado não exclusivamente em termos de cientificidade, na
acepção moderna, mas por referência à sabedoria filosófica e, portanto, à Ética.
Essa perspectiva converge com a posição de Hans Georg-Gadamer, expressa em
Verdade e Método nos seguintes termos:
“(...) a noção de método que serve de base à ciência moderna veio substituir um conceito de ‘ciência’ que
se orientava justamente em direção a essa capacidade natural do ser humano [a hermenêutica, entendida
como “a faculdade prática de compreender, quer dizer, uma perspicácia sutil e intuitiva para conhecer aos
demais”].
Isto suscita a pergunta geral de se não continua havendo até hoje, dentro do sistema das ciências, um setor
que se inspira mais nas antigas tradições do conceito de ciência que no conceito metodológico da ciência
moderna. Cabe perguntar se isto não é válido ao menos para um âmbito concreto das chamadas ciências
do espírito (...)
Pois bem, há pelo menos um exemplo no âmbito da teoria da ciência que poderia dar uma certa
legitimidade a essa reorientação da reflexão metodológica das ciências do espírito, e tal é a ‘filosofia
prática’ fundada por Aristóteles.”
2
E mais adiante Gadamer reafirma sua intenção de “mostrar que a filosofia
prática de Aristóteles e não o conceito moderno de método e de ciência é o único
modelo viável para formarmos uma idéia adequada das ciências do espírito.”
3
Eis o
motivo pelo qual as ciências humanas, ao se constituírem como ciências hermenêuticas,
penetram necessariamente no campo da filosofia.
4
Retornando à tese que propusemos, falávamos de um destino
moderno da sabedoria prática, pois o problema que circunscrevemos deve a
sua gênese ao fosso escavado na aurora da modernidade pela separação
entre a sabedoria clássica, com seus fundamentos metafísicos, e a nova
ciência experimental que se firma com Galileu e Newton, e ao subseqüente
triunfo em todos os âmbitos da racionalidade tecnocientífica sobre a
sabedoria, resultando numa espécie de interdição e restrição dramática
desta, e por conseguinte deixando desamparada a capacidade humana de
dar sentido e orientação à própria existência. Tal situação será
precocemente percebida por Rabelais quando, ao expressar um
pressentimento destinado a se tornar profético e que era compartilhado por
toda a corrente humanista da Renascença, pronunciar a célebre sentença:
“Ciência sem consciência não é senão ruína da alma.”
2
GADAMER, H.-G. Verdad y todo- II. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1992, p.294 (A interpolação
elucidativa entre colchetes encontra-se à p. 293).
3
id., p.309.
4
Cf. VAZ, H.C.L. Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992, p.63.
Por seu turno, a razão filosófica desde Descartes, em sua vertente
hegemônica, será capturada pela
interlocução com a Ciência, tornando-se
obcecada pela problemática epistemológica e gnosiológica referida à nova
racionalidade, revelando-se, por fim, incapaz de suprir a consciência
reclamada na intuição rabelaisiana. A indigência espiritual do homem
moderno vem confirmar a ruína da alma pressentida por Rabelais,
engendrando um sofrimento cujo motor profundo é precisamente a busca
de sentido, de orientação, numa palavra: de sabedoria.
Privada de seu espaço institucional, progressivamente restringida no âmbito
filosófico em virtude da maciça polarização deste pela interlocução com a ciência, a
sabedoria vai experimentar um destino problemático e, ganhando novas valências em
função da reformulação radical de seus fundamentos a partir da metafísica da
subjetividade, será amputada de certos elementos incompatíveis com a nova
fundamentação, os quais reaparecerão em endereços inesperados. A lacuna instalada na
consciência moderna pelo desaparecimento virtual destes elementos da sabedoria
clássica vai se traduzir em sofrimento da alma que esta, ao que tudo indica, não
pode passar sem “uma terra real onde possa crescer, crer e embelezar”, e onde possa “se
enraizar e concretizar suas íntimas esperanças”
5
. E é assim que a carência de sabedoria
vai levar o homem moderno a demandar, literalmente, psyches therapeia, na esperança
e na necessidade de encontrar um sentido para sua existência, sentido seriamente
negado ou ameaçado em uma cultura que se precipita na paradoxal atmosfera niilista
que ela mesma engendra.
Histórica e concretamente, porção significativa de tal demanda vai se dirigir às
ciências médicas. Porém, dado que a sua motivação profunda escapa aos limites
epistemológicos e metodológicos das ciências da natureza, ela vai obrigar os médicos
pioneiros a exorbitar de tais limites e, indo em busca de sentido e cura para os
sofrimentos humanos que se lhes deparam, fundar o campo da psicologia médica, com
sua extensão na psicoterapia clínica. Assim, a própria razão histórica de ser da
psicoterapia faz com que de partida ela se constitua orientada para um conhecimento do
ser humano que não pertence ao estrito âmbito científico. Por outro lado, na medida
em que este conhecimento está indissoluvelmente ligado à tarefa prática da psicoterapia,
que em última análise almeja a uma reorientação da forma de viver e estar no mundo,
ele deságua no âmbito mais vasto da sabedoria prática.
5
Cf. DURAND, G. L’âme tigrée. Paris: Denöel, 1980, p. 14.
Surgida assim da experiência humana concreta, historicamente configurada, e a
ela devendo sempre se reportar, a psicoterapia contemporânea liga-se, portanto, à
família daquela antiga ciência do homem aludida por Gadamer, a qual tem como
finalidade fundar preceitos que rejam a conduta na vida, que sejam eficazes no
enfrentamento da presença do mal na existência humana, orientando-a para a realização
das aspirações legítimas que definem o ser humano. Por isso, ela pode ser vista como
integrando um capítulo original da história da sabedoria filosófica.
Resumidamente, seria esta a razão histórico-filosófica superficial pela qual no
campo da psicoterapia surge “algo filosófico”, obrigando muitas das escolas ou linhas
que o constituem a, em última análise, propor respostas à ruína da alma moderna.
6
Nesse campo, a escola que mais originalmente marcou tanto a compreensão do
ser humano quanto as propostas de intervenção psicoterapêutica na contemporaneidade
é aquela que, grosso modo, poderia ser designada como a da psicologia do inconsciente.
Nela, a psicanálise freudiana é seguramente a corrente que mais influência exerceu
sobre a cultura, inclusive sobre o meio acadêmico. Além disso, é aquela que mereceu
maior atenção por parte da reflexão filosófica.
Por outro lado, freqüentemente situada na periferia “herética” do
empreendimento freudiano, mas ainda dentro da novidade representada pela
(re)descoberta contemporânea do
inconsciente, a psicologia analítica de Carl Gustav
Jung, a despeito de sua inegável influência sobre a cultura do século XX
7
, não tem
merecido a mesma consideração por parte da filosofia. Exceção feita a Gaston
Bachelard, que se utiliza amplamente do pensamento de Jung em sua vertente noturna,
as referências a Jung no “primeiro escalão” da filosofia contemporânea são discretas,
6
Para uma visão panorâmica sobre o campo da psicoterapia, cf. JACKSON, S. Care of the Psyche. A
History of Psychological Healing. New Haven: Yale University Press, 1999; EHRENWALD, J. (ed.) The
History of Psychotherapy. Northvale: Jason Aronson Inc., 1991
2
; TALLIS, F. Changing Minds. The
History of Psychotherapy as an Answer to Human Suffering. London: Cassel, 1998; cf. também a
coletânea de artigos reunidos em ELLENBERGER, H. Médecines de l’Âme. Essais d’Histoire de la Folie
et des Guérisons Psychiques. Paris: Fayard, 1995.
7
Deixando de lado o campo originário da psicologia, a influência e/ou a convergência entre psicologia
analítica e cultura do século XX podem ser atestadas na teologia, na literatura, na antropologia, nas artes
figurativas, no cinema, no teatro, na dança, na história, na física, na arquitetura, na cultura popular, e
last but not least também na filosofia. Cf. CAROTENUTO, A. Jung e la cultura Del XX secolo.
Milano: R.C.S. Libri S.p.A., 1995. Cf. também BARNABY,K. e D’ACIERNO,P. C.G.Jung and the
Humanities. Toward a Hermeneutics of Culture. New Jersey: Princeton University Press, 1990;
ROCCI,G. C.G.Jung e il suo Daimon. Filosofia e Psicologia Analitica. Roma: Bulzoni, 1991; VVAA.
Presenza ed eredità culturale di Carl Gustav Jung. Milano: Raffaello Cortina Editore, 1987; cf. ainda o
número 46 dos Cahiers de l’Herne, dedicado a Jung (Paris: Éditions de l’Herne, 1984). Por esta razão,
uma radiografia filosófica da psicologia analítica forçosamente representa uma contribuição à Filosofia da
Cultura, bem como à compreensão das aspirações de fundo que em última análise participam
decisivamente dos rumos e das figuras que essa mesma cultura tomará.
marginais e muitas vezes veladas. Quando são explícitas, oscilam entre uma avaliação
positiva genérica e uma aversão declarada. Por exemplo: Henri Bergson, em 15 de
junho de 1922, escrevia a Adolf Keller: “Tenho grande respeito pelo trabalho de Jung,
que não é interessante somente para o psicólogo e o psicopatologista, mas também para
o filósofo! É aqui que a psicanálise encontrou a sua filosofia.”
8
Walter Benjamin
escreve a Gershom Scholem sobre Jung, em 2 de julho de 1937: “Desta vez desejo
apenas relatar que as semanas em San Remo estão totalmente reservadas ao estudo de
C.G. Jung. Pretendo sedimentar metodicamente certos fundamentos das ‘Passagens
Parisienses’ através de uma controvérsia em que me posiciono contra os ensinamentos
de Jung, sobretudo os referentes aos arquétipos e ao inconsciente coletivo. Além do
significado metodológico interno, isto teria também um significado público e político;
talvez tenha ouvido que Jung tomou partido recentemente, com uma terapia que
reservou somente à alma ariana. O estudo dos seus ensaios do começo desta década
alguns dos quais retrocedem à anterior me ensinou que essa assistência ao nacional-
socialismo veio sendo preparada muito tempo. Nessa ocasião, pretendo investigar a
figuração do niilismo médico na literatura –Benn, Céline, Jung.” E informa em 5 de
agosto do mesmo ano: En attendant, comecei a me aprofundar na psicologia de Jung
em San Remo, uma obra verdadeiramente diabólica, que se pode atacar com magia
branca.”
9
A originalidade da perspectiva inaugurada por Jung, e os mal-entendidos a que
ela se prestou, abrem um espaço ainda pouco explorado, e sob muitos aspectos
inexplorado, pela reflexão filosófica atual. Jung, dentre os psicólogos e psicanalistas
contemporâneos, é quem inegavelmente possui a maior envergadura intelectual, tendo
se formado em estreita convivência com o pensamento de pelo menos três dos nomes
representativos do universo filosófico moderno-contemporâneo Kant, Schopenhauer e
Nietzsche. Além disso, ao longo de sua vida manteve-se a par das direções tomadas pela
problemática filosófica contemporânea freqüentemente com uma atitude crítica ou de
franca resistência, embora muitas convergências com a fenomenologia, o
existencialismo e o personalismo possam ser indicadas. Ao contrário de Freud, em sua
autobiografia Jung reconhece explicitamente sua afinidade com os filósofos que
8
Citado em SHAMADASANI, S. Jung and the Making of Modern Psychology. The Dream of a Science.
Cambridge: C.U.P., 2003, p. 230.
9
BENJAMIN, W. e SCHOLEM, G. Correspondência. 1933-1940. São Paulo: Perspectiva, 1993 (pg. 268-
269 e pg. 276).
freqüentou, afinidade que deve ser estendida a Platão, ao Neoplatonismo como também
ao Romantismo Alemão, e que deixa suas marcas em toda a sua elaboração teórica.
A originalidade das concepções de Jung frente ao arcabouço teórico estabelecido
por Freud faz com que sejam mais do que uma simples derivação (ou deturpação) deste,
resgatando, afirmando e interpretando de outra forma dimensões da experiência humana
que são redutivamente tratadas na psicanálise, ou que então são simplesmente
ignoradas. As vias abertas por Jung como resposta ao dilema da modernidade que se
encarna no sofrimento psíquico do homem contemporâneo guardam uma originalidade
singular frente àquelas traçadas por Freud e seus herdeiros “legítimos”. Podemos
afirmar com segurança que, em Jung, encontramos verdadeiramente uma alternativa, no
sentido forte do termo, ao projeto antropológico e ético implicado na perspectiva
freudiana. A leitura freudocêntrica da psicologia analítica é equivocada, como bem o
demonstrou Sonu Shamdasani, historiador da psicologia e talvez o maior especialista na
abordagem histórica da psicologia junguiana, num trabalho que, situando precisamente
as idéias de Jung no ambiente cultural de onde elas se originaram, ajuda a desmontar a
“lenda junguiana” – e também, de passagem, a “lenda freudiana” -, que oferecem o mito
de uma originalidade e criatividade ex nihilo de “pais fundadores” geniais. Esse livro
Jung and the Making of Modern Psychology. The Dream of a Science (Cambridge:
C.U.P., 2003) - juntamente com a obra clássica de Henry Ellenberger, The Discovery of
the Unconscious.The History and Evolution of Dynamic Psychiatry (New York: Basic
Books, 1970), serviram-nos como ponto de apoio para a compreensão que aqui
apresentamos.
Jung percebia claramente a inserção de sua obra na história e cultura ocidental, e
na problemática gerada pela modernidade. Para ele, o sofrimento espiritual do homem
moderno resulta da derrocada dos “fundamentos de sua visão de mundo”
10
e da
destruição de seus referenciais éticos.
11
A inclusão do horizonte ampliado da história e
10
“A situação espiritual de uma época como a nossa, conturbada em alto grau pelas paixões políticas,
abalada pelo caos de revoluções de Estado e pela derrocada dos fundamentos de sua [visão de mundo],
afeta de tal maneira o processo psíquico do indivíduo que o médico não pode deixar de dedicar uma
atenção especial aos efeitos que provoca na psique individual. (...) [Ele] precisa descer à arena dos
acontecimentos do mundo e participar da luta das paixões e opiniões, pois do contrário conseguirá
perceber as inquietações do seu tempo de modo distante e impreciso, tornando-se incapaz de compreender
ou mesmo de ouvir o sofrimento de seus pacientes. Ele não saberá qual a linguagem mais adequada para
lidar com o paciente e retirá-lo do isolamento em que se encontra, que a sua incompreensão reforçará
ainda mais esse estado.” OC X-2, p.1.
11
Diz Jung: “a simples reflexão sobre a razão por que certas situações de vida ou certas experiências são
patogênicas nos faz descobrir que a maneira de ver as coisas muitas vezes tem um papel decisivo. (...)
Assim que a análise da situação psíquica de um paciente atinge o campo dos seus pressupostos espirituais,
da cultura na compreensão psicológica do sofrimento subjetivo leva Jung a entender a
psicologia como uma forma cultural que surge vinculada aos problemas gerados pela
configuração espiritual moderna. Se, sob o aspecto teórico, enquanto concebida como
uma espécie de antropologia fundamental, a psicologia levanta uma certa pretensão de
universalidade, em sua face prática a psicoterapia ela é explicitamente dirigida ao
indivíduo moderno, o que significa o reconhecimento consciente de uma restrição em
sua eficácia e aplicação concretas.
Vista sob outro ângulo, essa restrição significa que a psicologia moderna vem
lidar com certos problemas do ser humano que encontravam encaminhamentos diversos
em outras culturas, bem como em outros momentos da linha de evolução histórica da
cultura ocidental.
12
Assim, é possível traçar uma espécie de genealogia da psicologia,
que se enraíza no passado remoto do mundo moderno. Jung buscava estabelecer essa
filiação histórico-cultural de sua própria psicologia. Em uma carta a Erich Neumann,
seu discípulo e colaborador, ele afirma:
“A psicologia analítica (...) lança as suas raízes profundamente na Europa, na Idade
Média cristã, e por fim na filosofia grega.”
13
Por tais motivos, podemos dizer que em Jung, conscientemente e mais uma vez
contrariamente a Freud, não é a psicologia que se põe a explicar a cultura, mas é a
cultura que permite entender a psicologia e dar-lhe uma referência concreta quanto ao
encaminhamento prático da ação do psicoterapeuta. Assim sendo, a configuração da
psicologia analítica como forma de sabedoria prática não será acidental em Jung, mas
conscientemente articulada em uma meditação crítica e continuada sobre a condição
moderna, em seu impacto sobre o indivíduo, incluídas certas posições filosóficas
entra-se também no domínio das idéias gerais. O fato de tantas pessoas normais nunca criticarem seus
pressupostos espirituais – já pela simples razão de serem inconscientes – não prova que os mesmos sejam
válidos ou até inconscientes para todos os homens, e menos ainda que não possam tornar-se fontes de
gravíssimos conflitos de consciência [moral]. Muito pelo contrário, quantas vezes os preconceitos gerais
herdados, por um lado, e a desorientação na moral e na visão do mundo, por outro, são as causas mais
profundas de graves distúrbios do equilíbrio psíquico, sobretudo na nossa época de transformação
revolucionária.” OC XVI, § 22.
12
“O tratamento da alma, nos tempos que nos antecederam, visava as mesmas realidades fundamentais da
vida humana que a psicoterapia moderna.” OC XVI, § 216. A forma de tratamento, contudo, dependerá
das coordenadas culturais, sociais e históricas particulares em que essas “mesmas realidades
fundamentais” são vividas.
13
Cartas I, 22/12/1935, a Erich Neumann.
decisivas da modernidade, tendo como horizonte imediato a tarefa primeira de toda
psicoterapia.
14
Essa consciência que Jung tinha a respeito da natureza profunda da praxis
psicoterapêutica contemporânea pode ser comprovada. Em uma entrevista concedida a
Stephen Black, em julho de 1955, para o programa “Panorama”, da BBC Television,
indagado a respeito da terapia psicanalítica Jung afirma:
“A alma humana é muito complexa e, por vezes, consome-se metade da vida para chegar a algum ponto
concreto no desenvolvimento psicológico de um indivíduo. Nem sempre é, em absoluto, uma questão de
psicoterapia ou de tratamento de neurose. A psicologia também tem o aspecto de um método pedagógico
na mais ampla acepção da palavra. (...) É algo como a filosofia antiga. E não o que entendemos por uma
técnica. É algo que diz respeito à totalidade do homem e que a desafia no paciente ou em quem quer
que seja a parte que recebe, bem como no médico.”
15
Perguntado por Black sobre como esse tipo de tratamento se compara com a
religião, com a prática religiosa, Jung responde:
“Eu preferiria dizer: como se compara com a filosofia antiga? Você sabe, as nossas religiões são
conhecidas como credos, como confissões de fé. Ora, é claro, isso nada tem a ver com um credo. Tem
unicamente a ver com o processo de individuação natural, ou seja, o processo que, por assim dizer, se
inicia com o nascimento. Cada planta, cada árvore, cresce a partir de uma semente e torna-se, no final,
digamos um carvalho ou um pinheiro. E assim o homem torna-se o que está destinado a ser. Pelo menos,
ele deve chegar lá. Mas a maioria foi detida no caminho por condições externas desfavoráveis, toda a
espécie de obstáculos ou distorções patológicas, educação errada – uma quantidade interminável de
razões para não se atingir a meta a que cada pessoa está destinada, o nível final a que ela pertence.”
16
Dezenove anos antes, em Nova York, após um jantar de despedida, Jung
afirmara em um discurso de improviso a mesma idéia:
“Isso parece religião, mas não é. Estou falando apenas como um filósofo. As pessoas, por vezes, chamam-
me um líder religioso. Não sou. Não tenho mensagem nem missão. Procuro apenas compreender. Somos
14
O volume X das Obras Coligidas, intitulado “Civilização em Transição”, reúne textos de Jung que
tratam de vários aspectos da problemática da modernidade, embora as reflexões sobre a situação espiritual
do homem moderno estejam abundantemente presentes em todo o restante das suas obras, bem como nos
seminários e cartas. Dos ensaios reunidos no volume X, parecem-nos fundamentais “O Problema Psíquico
do Homem Moderno” e Presente e Futuro” (este, publicado em inglês como brochura sob o título “The
Undiscovered Self”, foi um dos escritos mais populares de Jung).
15
“As Entrevistas de Stephen Black”, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (coord.) C.G.Jung: Entrevistas
e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 231 (observe-se que nessa passagem Jung usa o termo
“psicoterapia” no sentido de um tratamento técnico de neuroses). Em 1912, numa apresentação da teoria
psicanalítica, Jung já formulara a mesma idéia sobre o sentido pedagógico da psicanálise: “Se por
educação entendermos um meio que pretende, através da poda e do cerceamento, transformar uma árvore
numa bela forma artificial, então a psicanálise não é um todo educativo. Mas os que m a concepção
mais elevada de educação hão de preferir aqueles métodos que entendem que, para se criar uma árvore, é
preciso que ela realize, da melhor forma possível, todas as condições de crescimento nela colocadas pela
natureza.” OC IV, § 442.
16
Ibid., p. 232.
filósofos na antiga acepção da palavra, amantes do saber. Isso evita a companhia por vezes discutível
daqueles que oferecem uma religião.
17
E a relação entre a prática psicoterapêutica e a filosofia (antiga) está igualmente
registrada em suas obras coligidas:
“Nós, os psicoterapeutas, deveríamos ser filósofos, ou médicos-filósofos não consigo deixar de pensar
assim. Aliás, o somos, em que pese admiti-lo, porque é grande demais a diferença entre o que nós
exercemos e aquilo que é ensinado como filosofia nas faculdades.”
18
O que ressalta dessas posições é a vinculação explícita que Jung faz entre a
praxis psicoterapêutica e a dimensão prática da filosofia antiga
19
– perdida pela filosofia
moderna-contemporânea em sua migração para o ambiente acadêmico universitário.
A opinião de Jung não representa mera posição inconseqüente de um não
especialista em matéria filosófica. Ela converge com toda uma linha de interpretação da
natureza da filosofia antiga, encabeçada por Pierre Hadot
20
, que insiste na unidade
profunda e indissolúvel entre especulação teórica e forma de vida prática como
característica distintiva da vida filosófica na Antigüidade.
Mas talvez o mais cabal referendo à posição de Jung se encontre em um
magistral estudo de Pedro Laín-Entralgo, La Curación por la Palabra en la Antigüedad
Clásica (Madrid: Revista de Occidente, 1958).
21
Através de um detalhado e rigoroso
17
“A Psicologia Analítica é uma Religião?”, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (coord.), C.G.Jung:
Entrevistas e Encontros, p. 103. O discurso de Jung foi reconstituído a partir de anotações dos presentes,
compiladas por Eleanor Bertine, Jane Pratt e Esther Harding, e revistas por Edward Edinger.
18
“Psicoterapia e Visão de Mundo”, in OC XVI-1, § 181. (O texto é de 1942, e na seqüência Jung
ameniza a recusa da analogia com a religião, dizendo: “Também poderíamos chamá-lo de ‘religio in statu
nascendi’, já que, na grande confusão que envolve tudo o que está nos primórdios da vida, não existe uma
separação que evidencie uma diferença entre filosofia e religião. E a dificuldade constante da situação
psicoterapêutica, com o mundo de impressões e perturbações emocionais, não nos condições de fazer
uma exposição precisa dos princípios básicos, extraídos da vida, que possa ser apresentada às faculdades
de filosofia ou de teologia. (...) Um sábio respeitar dos seus limites ainda não representa um manual de
filosofia, e uma jaculatória em hora de perigo de vida ainda não é um tratado de teologia. No entanto,
ambos jorram de uma atitude filosófico-religiosa, própria do dinamismo mais espontâneo da vida.” Ibid.,
§§ 181-182)
19
“O psicoterapeuta deve ser um filósofo no antigo sentido da palavra. A filosofia clássica era uma certa
visão do mundo bem como de conduta. Para as autoridades mais antigas da Igreja até mesmo o
Cristianismo era uma espécie de sistema filosófico com um código de conduta correspondente. Havia
sistemas filosóficos para um modo de vida satisfatório ou feliz. Também a psicoterapia significa algo
desse nero.” Cartas II, 21/4/1947, a R. Otto Preiswerk. Quanto à filosofia moderna, Jung achava que
“já não inclui uma forma correspondente de vida e por isso consiste de palavras.” Cartas II,
09/09/1953, a Carleton Smith.
20
Cf., dentre os muitos trabalhos de Hadot, O Que é a Filosofia Antiga? São Paulo: Loyola, 1999;
Exercices Spirituels et Philosophie Antique. Paris: Albin Michel, 2002
2
; La Philosophie comme Manière
de Vivre. Paris: Albin Michel, 2001.
21
É profundamente lamentável que este soberbo livro de Laín-Entralgo seja praticamente esquecido pela
filosofia acadêmica, e também pelas faculdades de psicologia que formam psicólogos clínicos: o aspirante
exame das fontes gregas, de Homero a Aristóteles, Laín-Entralgo demonstra como na
Grécia antiga, a partir das origens mágico-religiosas constatáveis no epos homérico,
passando pelos poetas e pelos primeiros filósofos, se gesta uma autêntica “psicoterapia
verbal científica”, isto é, uma doutrina acerca do emprego terapêutico da palavra
humana, esboçada claramente pelos sofistas, e formulada de modo genial em Platão.
O logos, em sua dupla acepção de palavra e razão, ocupa eminentemente o
centro do sistema simbólico na cultura grega. Por este motivo, a logoterapia é tão antiga
na medicina ocidental quanto a cultura ocidental mesma.
22
Os gregos tiveram a
cristalina percepção da eficácia terapêutica da palavra, bem como de suas limitações.
Contra Bía, a cega e surda violência dos homens, e contra Ananke, a invencível
necessidade dos movimentos naturais, a palavra humana nada pode.
23
Porém, quando se
trata do universo das coisas humanas (ta anthropina), que em certa medida desvincula-
se do determinismo da natureza (physis) para organizar-se segundo os modos da
convenção (nomos), abre-se uma dupla possibilidade: a de uma discórdia (stasis) entre
convenção e natureza, e a de uma intervenção terapêutica pela palavra que estabeleça a
concórdia (homonoia). Eis aí o fundamento grego da psyches therapeia.
Empédocles e Pitágoras situam-se ainda no limiar da transformação
experimentada pela mentalidade grega com o advento da razão filosófica a partir das
raízes mítico-religiosas. Assim, neles encontramos fundidas a consideração do aspecto
mágico ao aspecto racional da palavra e de seu uso terapêutico, prenunciando apenas
potencialmente a ruptura que se verificará no decorrer do século V.
24
Essa ruptura irá opor em uma relação complementar e, por vezes, antitética, a
palavra (epos, mythos, logos, glotta) à obra (ergon), determinando o espaço em que se
conceberá a ação da persuasão (peitho) pela palavra. A percepção do poder humano do
uso do logos estará nas raízes do movimento da sofística. Nesse contexto, Górgias
compara a ação da palavra à dos medicamentos, e reconhece claramente o poder das
a psicoterapeuta nele encontraria matéria para refletir em profundidade sobre as origens e a natureza do
campo de ação de sua escolha, o que talvez contribuiria para que exercesse sua profissão com mais
lucidez.
22
Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 53.
23
Cf. id., p. 129-131.
24
Avaliando a posição de Pitágoras e Empédocles com relação ao uso da palavra, diz Laín-Entralgo: na
pessoa de Empédocles, como na de Pitágoras, fundiram-se em unidade vital e histórica duas atitudes
mentais incompatíveis quando as traduzimos a nossos atuais modos de pensar, tão esquematizadores
do ‘racional’ e do ‘irracional’, e em definitivo tão afastados dos que tinham vigência na Sicília e na
Magna Grécia, durante a primeira metade do século V.” La Curación por la Palabra en la Antigüedad
Clásica, p. 121. Em Empédocles, “o saber cosmológico do filósofo e a doutrina catártica do ‘homem
divinizado’, do theios aner, não são senão dois modos distintos de uma mesma Sofia, o modo teorético e
o modo soteriológico.” Id., p. 122.
idéias e crenças, bem como a possível ação terapêutica da persuasão.
25
Suspendendo a
questão da verdade, ele reconhece que a persuasão é de certa forma “engano” (apate),
que pode contudo ser justificado quando se busca com ele o bem do persuadido.
Privilegiando o pólo do nomos, Górgias propõe uma terapêutica para a alma que
consiste em substituir, por meio da persuasão de que o sofista se faz mestre, um estado
habitual-convencional de opiniões e crenças, eventualmente desvantajoso para o
paciente, por um outro estado mais conveniente.
26
Antifonte desenvolve a posição de Górgias, privilegiando o pólo da natureza e
insistindo em que é preciso um conhecimento da causa (aitia) da aflição que acomete a
pessoa – e nisso ele se revela menos relativista que Protágoras e Górgias. Porém,
Antifonte tende a ver no nomos apenas a fonte de coacções perturbadoras da atitude
natural, e assim sua regra terapêutica será a fidelidade absoluta à physis – o que
entranha o risco de um individualismo desenfreado.
27
Demócrito avançara em relação a Antifonte, ao perceber que existem
“doenças do modo de viver” (nosos biou), decorrentes da incontornável destinação do
ser humano à vida social, regida pelo nomos, mas salientando que é a configuração pelo
nomos que torna os impulsos da natureza no homem verdadeiramente humanos. Por
isso, uma íntima correspondência entre natureza e educação
28
, cabendo a esta
discernir as diferentes necessidades naturais, para obedecer às que são imperiosas, e
escolher entre as demais aquelas que são convenientes, traduzindo-as e transpondo-as
em nomoi razoáveis, e combater as que são prejudiciais.
29
Platão, para Laín-Entralgo, será o fundador da psicoterapia verbal científica (isto
é, não-mágica), e diante dele Górgias e Antifonte aparecem como a “pré-história” dessa
25
Cabe ressaltar a íntima relação histórica que o movimento sofístico manteve com a medicina técnica”
ou “científica”, emergente no mesmo momento em que surge a razão filosófica, resultando numa mútua
influência que fará nascer a figura bifronte do médico-filósofo ou filósofo-médico, a que Jung se refere
como o antepassado cuja escola cumpre ao terapeuta moderno freqüentar (cf. OC XVI, § 190, citado
adiante, nota 56). Para uma excelente visão da medicina grega e de suas relações com o pensamento
filosófico, veja-se JAEGER, W. Paideia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes,
1979, p. 939-995. A medicina hipocrática, contudo, não aprofundou o uso propriamente terapêutico da
palavra, e com isso não elaborou uma psicoterapia verbal de caráter científico (cf. LAÍN-ENTRALGO,
La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 199-241).
26
Sobre Górgias, cf. id., p. 131-144.
27
Sobre Antifonte, cf. id., p. 144-150.
28
“A natureza e o ensinamento são coisas análogas; o ensinamento transforma os homens, mas por esta
transformação cria natureza (physiopoiei).” Demócrito, fragmento 33, citado por LAÍN-ENTRALGO, La
Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 151, que pondera: “É possível para a physis do
homem existir sem convenções, sem nomoi? Acaso o homem não é um ser física e constitutivamente
‘nômico’ ou ‘convencional’?” id., p. 150.
29
Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 151-152.
mesma psicoterapia.
30
Recolhendo e superando as contribuições de seus predecessores,
Platão proporá uma definição compreensiva da saúde humana, que Laín-Entralgo
resume assim:
“A saúde anímica de um homem, condição de sua saúde somática e necessário pressuposto para a reta
administração de qualquer medicamento, consiste, pois, na boa ordem das duas partes principais de sua
alma: aquela em que predomina o racional ou lógico, modificável pela ação da dialética, e aquela outra
em que prepondera o irracional ou acreditador, susceptível de educação ou psychagogia (Fedro, 261 a-
271 c) pelo encanto persuasivo da epode, o ‘belo discurso’ ou o ‘mito’. (...) Em todas as ordens da
existência, as racionais e as acreditadoras e afetivas, a perfeição humana consiste em homoiosis theo ou
‘assimilação do homem a Deus’ (Teeteto, 176 a-b).”
31
Quando a ordem harmoniosa das partes da alma é rompida, a psyches therapeia
consistirá na produção de temperança ou moderação (sophrosyne) que, descritivamente
considerada, consiste em “um conjunto de crenças, saberes, apetites e virtudes bela e
ordenadamente combinados entre si (kosmios) (Cármides, 159 b)”
32
, “de modo que ‘o
que por natureza é melhor prevaleça sobre o que é pior’ (República, IV, 430 e- 431
a).”
33
A doença psíquica é, pois, causada pela ausência de medida (ametria), pela
desordem dos desejos e dos atos. A sua cura é a “purificação da alma” (katharsis tes
psyches), a adequada reordenação verbal das crenças, saberes, sentimentos e impulsos
que constituem o conteúdo da alma humana.
34
Mas para ocorrer, a katharsis deve
atender a uma dupla exigência: a primeira, levantada por Górgias, é o conhecimento
30
Cf. id., p. 179 e 195.
31
Id., p. 174-175.
32
Id., p. 171. “A saúde do homem inteiro, o que cada homem chama, sem necessidade de outras
especificações, ‘minha saúde’, é algo mais que eukrasia somática. Requer que a alma possua um
ordenado sistema de ‘persuasões’ ou ‘convicções’ (peitho) e de ‘virtudes’ intelectuais e morais (aretai)
(Fedro, 270 b); requer, em suma, a sophrosyne que o ‘belo discurso’ de Sócrates deve produzir na alma
de Cármides.” Id., p. 177. Sobre toda essa temática envolvendo a concepção clássica de saúde, ver
também REALE, G. Corpo, Alma e Saúde. O Conceito de Homem de Homero a Platão. São Paulo:
Paulus, 2002.
33
Id., p. 195.
34
Cf. id., p. 192. A “desordem da alma” ou ametria pode ser aproximada dos efeitos produzidos pela
“unilateralidade da consciência”, na perspectiva de Jung. Os análogos em Jung da “perversidadee da
“ignorância” que acometem a alma enferma segundo Platão seriam a “unilateralidade” e a
“inconsciência”, com a “inflação do eu”. A analogia da terapia com o procedimento terapêutico-filosófico
possui, portanto, um fundamento real. Jung afirma que a psicoterapia não é um método simples e
evidente, mas “um tipo de procedimento dialético, isto é, de um diálogo ou discussão entre duas pessoas”,
em que uma interação entre ambas, e lembra que originalmente a dialética era a arte da conversação
entre os antigos filósofos, mas logo adquiriu o significado de método para produzir novas sínteses. (...)
Esta é talvez a maneira mais moderna de formular a relação psicoterapêutica médico-paciente” (cf. OC
XVI, § 1). Nossa posição converge inteiramente com a de Laín-Entralgo, que afirma que “é seguro que
um cultivo prático e conseqüente dos pontos de vista platônicos teria conduzido de imediato à edificação
de algo assim como uma ‘psicanálise grega’” (La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p.
232), o que surpreendentemente não aconteceu na medicina hipocrática, mas apenas nas escolas
filosóficas, sob formas diferenciadas. Inversamente, a analogia real existente entre a relação terapêutica
contemporânea e a relação dialógica filosófica reenvia a praxis psicoterapêutica à filosofia antiga, como
Jung lucidamente percebeu.
pelo terapeuta da índole e do estado da alma do paciente (que pressupõe um saber sobre
os “tipos” ou “aspectos” eide de que a alma humana é capaz), para que o logos
terapêutico, em seu conteúdo e forma, se adéqüe finamente à peculiaridade e à situação
individual
35
; a segunda exigência é a de que o paciente “entregue” a sua alma ao
terapeuta, comportando tal entrega dois aspectos: a confiança na eficácia do método
terapêutico e na idoneidade do terapeuta, e a expressão de si mesmo, que possibilita ao
terapeuta conhecer a peculiaridade e a situação da alma que lhe é “oferecida”.
36
Ressalve-se que os gregos se davam conta de que o conhecimento de si mesmo pelo
paciente, comunicado ao médico na anamnese, era insuficiente porque
constitutivamente limitado à opinião que pode ser falsa e enganadora -, donde a
necessidade por parte do médico de conhecer aquilo que o doente não pode dizer.
37
Analogamente, no contexto da formação filosófica apresentava-se a mesma situação – e
a maiêutica de Sócrates ilustra exemplarmente um dos modos mais famosos com que
procediam os filósofos-médicos.
Por fim: a ação do filósofo-terapeuta na visão platônica consiste em admoestar
persuasivamente o paciente com “belos discursos” (kaloi logoi) e argüir ou refutar com
eficácia o conjunto de crenças, saberes, sentimentos e impulsos, impondo evidências ou
infundando persuasões nocivas e falsas
38
, mas sabendo sempre que, “desde o ponto de
vista da ação terapêutica, o logos do médico será kalos quando seu conteúdo e sua
35
Cf. id., p. 175-176. O equivalente a essa exigência em Jung está, por um lado, na consideração dos
tipos psicológicos, e, por outro, na ênfase sobre o conhecimento do simbolismo universal que apresenta as
estruturas antropológicas do imaginário, correspondentes às configurações arquetípicas da alma humana.
36
Cf. id., p. 176.
37
Cf. LAÍN-ENTRALGO, p. 218-219.
38
Cf. id., p. 193-194. Sob esse aspecto, na situação psicoterapêutica contemporânea, em especial na
psicologia do inconsciente, e com mais força ainda em Jung, o papel do terapeuta está menos em argüir
intelectualmente e infundir persuasões salutares do que em sondar os “aspectos da alma” para agir em
conformidade com eles e com o kairos; o real fundamento da psicagogia não é o terapeuta, mas a
natureza individualizada tal como se manifesta nas múltiplas instâncias da psique do paciente. O terapeuta
será sempre um intérprete da natureza, e não um agente a serviço de qualquer norma, seja ideal ou social.
Obviamente, a eficácia terapêutica da interpretação depende de sua capacidade persuasiva ela deve
“tocar” o paciente, ser reconhecida e aceita por ele. Mas, pelo menos em princípio, a interpretação
pretende ser a expressão da verdade no indivíduo e é esta que cura o paciente, pois corresponde à sua
“natureza” ou, em outros termos, à sua individualidade pessoal. A complexidade infinita das
configurações individuais e das situações contingentes exclui categoricamente a possibilidade de uma
norma terapêutica geral de conteúdo definido e prescritivo o que é remédio para um, é veneno mortal
para outro, e tudo depende da ocasião propícia (kairos) que, como lembra o adágio antigo, é “fugitiva”,
razão pela qual a tão necessária experiência (empeiria) pode ser, segundo o mesmo adágio,
“enganadora”.
forma se achem retamente ordenados à peculiaridade e à situação da alma do
paciente.”
39
Aristóteles, apesar de não haver nenhuma alusão em seus escritos a uma
psicoterapia verbal em sentido estrito, vai receber o ensinamento platônico e estabelecer
com precisão o estatuto da palavra persuasiva, usando para tanto o saber médico como
um dos principais analogados.
40
Laín-Entralgo, desenvolvendo e interpretando com
sobriedade e rigor as posições de Aristóteles, propõe um quarto gênero da palavra
persuasiva retórica: o gênero terapêutico ou curativo.
41
Desse modo, ele descobre
convincentemente em Aristóteles um teórico “larvar” da psicoterapia verbal e,
inversamente, afirma que “o psicoterapeuta faz retórica aristotélica sem o saber”,
acrescentando que isso seria demonstrado mediante uma análise retórica de qualquer
dos casos clínicos de Freud.
42
O encontro psicoterapêutico pode ser melhor esclarecido quando visto a partir da
lição aristotélica sobre o encontro retórico, em que se põem em conexão mútua dois
39
LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 176. Portanto, a tradição
platônica não deve ser considerada como uma ingênua e ineficaz doutrinação intelectual que
desconsidera as variáveis presentes na relação terapêutica. Como lembra Laín-Entralgo, “de modo algum
pensa Platão que a ação ‘encantadora’ de um belo discurso ou de um mito seja por completo inteligível
mediante as razões discursivas da mente humana; que seja uma idéia ‘clara e distinta’, como séculos mais
tarde se dirá. (...) A epode filosoficamente aceitável pertence, em suma, ao ‘daimônico’, isto é, ao que põe
em mútua relação os homens e os deuses.” (La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p.
173) De todo modo, em face da objetividade absoluta da Idéia do Bem em Platão, será Aristóteles quem,
mostrando a inevitável relativização do bem humano objetivo segundo a variabilidade ilimitada das
situações práticas, insistirá sobre a contingência que envolve o agir ético, do qual a intervenção
psicoterapêutica é uma modalidade.
40
Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 243-244. “Discípulo
de Platão, Aristóteles sabe bem que a palavra humana pode persuadir, além de convencer. Junto ao logos
dialético há, complementarmente, um logos retórico, o logos que a arte retórica nos ensina a exercitar.
Haverá também, por conseguinte, um ‘silogismo retórico’, o ‘entimema’, cujo simples nome (en e
thymos, ‘no ânimo’) já indica que a sua operação psicológica é mais ‘cordial’ que ‘cerebral’, se orienta
mais para a afetividade que para a inteligência. Simétrica do Organon, a Retórica de Aristóteles cume
do caminho que durante um século foram balizando Córax e Tísias, Górgias e o Fedro platônico é o
tratado técnico da palavra persuasiva.” (op. cit., p. 245) “O logos dialético e o logos retórico têm, por fim,
um mesmo sujeito, e entre a dialética e a retórica não oposição, mas correlação e complemento
([Retórica] I, 1, 1354, a 1). Frente a Platão, ‘Aristóteles aceita em definitivo diz certeiramente A. Tovar
que a retórica não persegue apenas deloun (fazer ver), senão que lhe é lícito também psychagogein
(conduzir as almas), para o que há que estudar o caráter e as paixões. E com isso consegue, ao aperfeiçoar
a dialética e ao mesmo tempo transigir com as posições sofísticas tradicionais na retórica, uma verdadeira
síntese em que sofística e platonismo se confundem.’ “ (op. cit., p. 249)
41
“Se o estado de doença é em alguma medida modificável por persuasão, poderá negar-se a existência
de um gênero terapêutico ou curativo no corpo da retórica?” (La Curación por la Palabra en la
Antigüedad Clásica, p. 250) Laín-Entralgo aproxima e deriva a persuasão terapêutica da persuasão
deliberativa ou política – esta, obviamente, tratada por Aristóteles.
42
Cf. La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 257. Na verdade, James Hillman faz um
ensaio nessa direção em “The Fiction of Case History. A Round with Freud”, in Healing Fiction.
Barrytown: Station Hill Press, 1983, p. 1-49. E também, num sentido mais amplo, em “Sobre a
Necessidade de uma Psicologia do Comportamento Anormal: Ananke e Atena”, in HILLMAN, J. (org.)
Encarando os Deuses. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992, p. 9-54.
caracteres (ethe), o de quem fala e o de quem escuta.
43
Esse encontro propicia uma
transformação, via persuasão, no domínio das paixões, as quais exercem uma influência
determinante sobre o modo de ver e julgar as coisas, ou seja, sobre as opiniões e crenças
do sujeito. Assim, crenças antigas se modificam, surgem novas crenças, ou reaparecem
crenças adormecidas, sendo decisivo o esclarecimento a respeito de si mesma que a
alma de quem ouve ganha através da palavra do orador.
44
O encontro retórico ou psicoterapêutico possui uma dimensão específica no
que diz respeito à transformação das paixões, e aqui o recurso à compreensão
aristotélica da katharsis trágica complementa a analogia retórica com a relação
psicoterapêutica.
45
Ao contrário do logos persuasivo, que implicitamente se acha
referido à psicoterapia verbal em Aristóteles, o logos catártico é expressa e
essencialmente relacionado por ele à medicina. A purificação das paixões desmedidas
era ingrediente fundamental no tratamento médico, na educação do cidadão, na vida
filosófica e na instituição eminentemente grega da tragédia ática.
Analisando globalmente a ação catártica da tragédia, Aristóteles mostra como o
estado de ânimo do espectador da ação trágica, e de seu personagem, a quem aquele se
identifica pelo sentimento de philanthropon (comunidade e solidariedade com a
desgraça do herói), é modificado pela katharsis: a confusão e ignorância iniciais
(poderíamos dizer: tumulto afetivo e inconsciência) transmutam-se em ordem
dolorosa ou feliz, conforme o desenlace da ação trágica e esclarecimento ou
conhecimento. Portanto, a katharsis não se reduz a mera purgação de paixões: inclui um
elemento cognitivo, que Aristóteles designa com o termo anagnorisis ou
43
Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 257-258. O célebre
dictum psicanalítico –“não se interpreta a transferência, interpreta-se na transferência” – confirma a
aproximação entre a relação psicoterapêutica e o encontro retórico (além disso, é também possível
esclarecer a ação da interpretação e seus efeitos pretendidos mediante a analogia teatral, o que nos
remete à Poética de Aristóteles).
44
Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 258-259. “A palavra
do orador, com efeito, conduz o ouvinte a ver a realidade e a ver-se a si mesmo de um modo inédito, e às
vezes descobre-lhe zonas de sua própria vida de cuja existência não suspeitava antes.” ibid. Laín-Entralgo
compara, em total consonância com a opinião de Jung: “Também no encontro psicoterapêutico se produz
um choque mais ou menos harmonioso entre o caráter do médico e o do paciente; também no caráter
deste e em sua disposição que agora recebe o nome de enfermidade predominam com tal motivo tais
ou quais paixões; também o psicoterapeuta procura modificá-las, conforme aos fins que em cada sessão
se proponha; também o tratamento médico vai suscitando no doente opiniões e crenças novas, ao mesmo
tempo em que o esclarece e ilumina a respeito de si mesmo; também, enfim, é a felicidade agora sob a
forma de saúde, uma das partes da eudaimonia ([Retórica] I, 5, 1361, b 3-7) o fim a que a cura se
ordena. A adição de um quartum genus ao corpo da Retórica de Aristóteles não parece ser ocorrência
gratuita e infundada.” Op. cit., p. 259-260.
45
Laín-Entralgo, reconhecendo a diversidade de interpretações acerca da concepção aristotélica da
katharsis trágica, agrupa-as em três modalidades: estética, moral e médica, desenvolvendo seus
argumentos a partir desta última (cf. La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 265-266).
reconhecimento.
46
O logos é o fundamento tanto da ordenação das paixões, pela
contemplação (theoria) imitativa da ação trágica encadeada segundo um texto ordenado,
quanto do reconhecimento que ela produz, um conhecimento pela força da dor, segundo
a fórmula de Ésquilo (pathei mathos: “pela dor ao conhecimento”). Por isso mesmo, a
katharsis, como afirma Menéndez-Pelayo
47
, coincide com o restabelecimento da
sophrosyne nos diálogos socráticos de Platão e deságua em um tipo específico de
prazer, que Laín-Entralgo compreende assim:
“A catarse trágica foi prazerosa porque convinha a toda a natureza do homem. (...) Prazer, repetirei uma
vez mais, é a perfeição de uma atividade natural não estorvada (...) A atividade a que outorga prazer e
coroamento a hedone trágica é um trânsito existencial dianoético, afetivo e corporal a um tempo
desde a confusão e a desordem ao bem ordenado esclarecimento. (...) Passando, pois, da ordem das
aparências à ordem das essências, o prazer trágico seria o pertinente à humana atividade de conhecer-se
melhor a si mesmo e dispor mais flexível e conscientemente do próprio destino.”
48
A analogia teatral oferece uma forma valiosa de compreender a situação
psicoterapêutica, e em especial o método junguiano da imaginação ativa, em que se
consubstancia o espírito original da abordagem terapêutica da psique por Jung.
Fundamentalmente, tenta-se perceber a confusão afetiva dilacerante como encenação
imaginária, levando-se o paciente à posição de espectador ativo de si mesmo com o
que se cria uma certa distância entre o sujeito e a realidade imediata de suas pulsões,
pela mediação das imagens. Segundo Aristóteles, a imagem é sempre uma imitação
(mimesis) de algo dos desejos e pulsões, por exemplo, dado o íntimo enraizamento da
phantasia no desejo (orexis) , e a imitação permite aprender, prazer e
simultaneamente afasta e aproxima do real, sendo por natureza purificação.
49
Não é
difícil correlacionar a doutrina do De Anima com os temas da anagnorisis, da hedone e
da katharsis da Poética. Sem a luz da phantasia e da inteligência prática o desejo é
força dionisíaca cega e potencialmente dilacerante, fragmentadora, gerando aquela
“situação de surpreendente e confuso desconhecimento”
50
, carregada de sofrimento e
aflição, que enreda o sujeito tenazmente e prepara o caminho para a anagnorisis ou
reconhecimento, a qual advém justamente pela intervenção da imaginação e da
46
“Ao estado trágico do ânimo e à catarse em que se resolve pertence em segundo lugar um momento
dianoético ou lógico. O conhecimento de que se falou não é uma iluminação inefável; é sobretudo um
processo psicológico de expressão verbal.” LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la
Antigüedad Clásica, p. 325. Cf. Ainda p. 311, 314, 315, 322.
47
Citado por Laín-Entralgo, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p.331.
48
La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 329-330.
49
Cf. FRÈRE, J. Les Grecs et le Désir de l’Être. Des Préplatoniciens à Aristote. Paris: Les Belles Lettres,
1981, p. 369-375.
50
Cf. LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 316.
inteligência prática. Pela experiência pessoal e pelo conhecimento dela advindo, o
analista desempenha uma função similar à do coro na tragédia grega. Este representa “o
círculo humano que mais diretamente compartilha com o herói as terríveis vicissitudes
de seu destino. Seus membros são, entre outras coisas, uma espécie de espectadores
mais próximos da ação trágica e mais imediatamente afetados por seus maravilhosos
eventos; e tão singular situação os faz ser ao mesmo tempo intermediários do efeito
trágico e orientadores da concreta expressão deste na alma do espectador.”
51
Assim
como o coro na peça trágica, a intervenção do psicoterapeuta costuma ser parcimoniosa,
medida e atenta ao momento propício (kairos). No ato particular da interpretação
convergem o modo retórico e o modo trágico do logos: sua intenção é produzir um
reconhecimento (ou “tomada de consciência”) e uma mudança de posição do sujeito
vale dizer, das crenças e opiniões que estruturam inconscientemente seu conflito.
Com a elaboração de Aristóteles a especulação grega original acerca da
psicagogia verbal atinge o seu ápice. As escolas do período helenístico, bem como seus
prolongamentos e derivações da época imperial, mesmo se concedêssemos a Laín-
Entralgo que não tenham criado inovações dignas de nota no tocante à compreensão
teórica do assunto, confirmam na prática o uso filosófico da palavra terapêutica. Uma
vez que a tônica da filosofia pós-aristotélica recai na dimensão ética, as três grandes
escolas helenísticas - epicurismo, estoicismo e ceticismo – ilustram à perfeição a tese de
Pierre Hadot quando define a filosofia antiga como modo de vida ou exercício
espiritual. A vida filosófica consistirá em uma forma de psyches therapeia sustentada no
logos, tendo como alvo a eudaimonia, que supõe a maestria sobre os desejos. Em uma
excelente apresentação da filosofia helenística sob o ângulo privilegiado da dimensão
prática e existencial, Martha Nussbaum a caracteriza exatamente como uma “terapia do
desejo”.
52
O filósofo é então concebido como um “médico compassivo cujas artes
curariam muitos tipos difundidos de sofrimento humano.”
53
51
LAÍN-ENTRALGO, La Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica, p. 320.
52
Cf. NUSSBAUM, M. The Therapy of Desire. Theory and Practice in Hellenistic Ethics. Princeton:
P.U.P., 1994. Ver também VOELKE, A.-J. La Philosophie comme Thérapie de l’Âme. Études de
Philosophie Hellénistique. Paris: Éditions du Cerf, 1993; DOMANSKI, J. La Philosophie, Théorie ou
Manière de Vivre? Les Controverses de l’Antiquité à la Renaissance. Paris: Éditions du Cerf, 1996.
Quanto à aplicação prática do pensamento filosófico, existem bons motivos que levam alguns intérpretes
por exemplo, Michel Foucault (A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 21-22)
e Simone Weil (La Source Grecque. Paris: Gallimard, 1953, p. 77) a considerarem Aristóteles como
uma exceção à tese de Pierre Hadot sobre a união indissolúvel de especulação teórica e vida prática nos
“exercícios espirituais” das escolas antigas, nele vendo apenas um teórico “puro” (devemos esta
observação ao professor Fernando Rey Puente). Nessa perspectiva, o Estagirita seria também menos um
filósofo-médico, como certamente o foram os filósofos do período helenístico, do que um professor em
Se a filosofia grega como um todo elaborou e praticou uma fina concepção da
psyches therapeia, que em última análise coincidia com a própria vida filosófica, então
a phronesis ou sabedoria prática assume uma relevância indubitável na compreensão de
ambas, na medida em que ela cumpre uma função decisiva na realização humana e na
busca da eudaimonia, meta comum a todas as escolas filosóficas da Antigüidade. Nesse
sentido, a analogia entre a praxis psicoterapêutica e a filosofia antiga, reivindicada por
Jung e que aqui referendamos por meio das reflexões de Pedro Laín-Entralgo, autoriza
uma leitura da psicologia analítica a partir da noção de sabedoria prática. Tal é o foco
fundamental da tese que apresentamos neste trabalho.
Retornando a Jung, vimos que para ele a psicoterapia, entendida em seu sentido
mais profundo, deve auxiliar o homem a “tornar-se o que está destinado a ser”, a
realizar sua meta e aqui ecoa a máxima sapiencial de Píndaro, que orientou a vida
filosófica na Antigüidade: “Torna-te o que és”. Disso resulta que uma compreensão
adequada do empreendimento junguiano pode ser feita em perspectiva ética, e portanto
filosófica, conforme a sugestão de Gadamer mencionada anteriormente.
Neste trabalho não privilegiamos a discussão acerca da legitimidade
problemática, discutível dos conceitos e categorias formulados por Jung, a começar
pela noção central de seu pensamento: a de arquétipo. Também não nos propusemos,
em primeiro plano, discutir a questão conexa da validade dos métodos por ele
empregados, e em especial o método comparativo, forte sustentáculo para a tese da
existência dos arquétipos contra o qual no início do século XX Franz Boas
sentido convencional. Mesmo se concordássemos com esta posição, ela não obsta a que a reflexão teórica
de Aristóteles sobre o logos terapêutico, e sobre o agir ético em geral, sirva-nos para compreender tanto a
vida filosófica concreta da Antigüidade como a praxis psicoterapêutica contemporânea.
53
NUSSBAUM, The Therapy of Desire, p. 3. Epicuristas, céticos e estóicos “praticavam a filosofia não
como uma técnica intelectual neutra dedicada à exibição de astúcia mas como uma arte engajada e
mundana de atracar-se com os tormentos humanos. Eles concentravam sua atenção, por conseguinte, em
problemas de significação humana diária e urgente o medo da morte, amor e sexualidade, raiva e
agressão – problemas que são às vezes evitados como embaraçosamente confusos e pessoais pelas
variedades mais neutras de filosofia. Eles confrontavam esses problemas como surgiam nas vidas
humanas comuns, com uma aguçada atenção às vicissitudes dessas vidas, e àquilo que seria necessário e
suficiente para melhorá-las. Por um lado, esses filósofos ainda eram plenamente filósofos dedicados à
cuidadosa argumentação, à explicitação, à compreensividade, e ao rigor que normalmente foram buscados
pela filosofia, na tradição da reflexão ética que se inicia (pelo menos no Ocidente) com Sócrates. (Eles se
opunham, com isso, aos métodos característicos da religião popular e da magia.) Por outro lado, seu
intenso foco sobre o estado de desejo e pensamento no discípulo fez com que buscassem uma
compreensão renovadamente complexa da psicologia humana, e levou-os a adotar estratégias complexas
interativas, retóricas, literárias destinadas a capacitá-los a se envolverem com o que haviam
compreendido.” Ibid., p. 3-4. A caracterização por Martha Nussbaum da tradição platônica como menos
imersa no mundo, e portanto menos atenta às peculiaridades que envolvem a situação terapêutica, parece-
nos unilateral e discutível.
levantava sérias objeções a partir do campo da antropologia. Tais questões não podem
ser contornadas quando se trata de estabelecer aquilo que hoje pode ser mantido da
contribuição original de Jung, distinguindo essa parte “viva” daquela outra “morta”, que
não resiste à prova do referendo intelectual, e que por isso deve ser deixada de lado
como proposta de compreensão legítima e reconhecida no estado atual do conhecimento
sobre o ser humano. Não é nosso propósito aqui enveredar por um tal tipo de
“junguianismo crítico”, depurando o legado de Jung daqueles elementos que, à luz da
crítica filosófica contemporânea (em especial a partir do paradigma da linguagem),
aparecem como obsoletos, superados, ingênuos ou inconsistentes de um ponto de vista
racional.
54
Também não propomos aqui uma retomada de todo o contexto a partir do
qual emerge a psicologia de Jung. Esse contexto nos reenvia à complexa rede de idéias e
doutrinas que constitui o panorama intelectual diversificado do século XIX e inícios do
século XX, englobando campos do saber que freqüentemente fecundavam-se
reciprocamente, como a filosofia, a medicina, a psicologia, a psiquiatria, a antropologia,
a biologia, a fisiologia, a sociologia, em suas várias derivações e ramificações, as quais
por vezes convergiam, por vezes se opunham radicalmente. Essa tarefa foi realizada
brilhantemente por Sonu Shamdasani, na obra mencionada anteriormente.
Assim sendo, ao escolhermos a psicologia de Jung como objeto de nossa
reflexão filosófica interessa-nos antes de mais nada compreender seu sentido histórico e
cultural, e para tanto assumimos um duplo objetivo: em primeiro lugar, desenvolver e
comprovar a posição de Jung, exposta discreta mas persistentemente, acerca da analogia
entre a praxis psicoterapêutica que ele propõe e a filosofia antiga em sua dimensão
prática; e em segundo lugar, compreender tal posição em sua significação no interior da
experiência mais ampla da modernidade. Em outros termos: tomados como uma
expressão de uma dada cultura, em um momento histórico específico, pretendemos
compreender a experiência de Jung e o pensamento dela resultante em sua natureza
essencial e à luz daquilo a que ele pretendia dar uma resposta, e que designamos como
sendo o dilema da modernidade. O que Jung estava fazendo, qual o sentido de sua
proposta, e o que fazem ainda hoje todos aqueles que, assumindo ou defendendo a
validade da mesma, de formas diversas vivem e trabalham tomando como referência a
compreensão de ser humano e mundo que Jung forjou e/ou assumiu?
54
Para isso veja-se TREVI, M. Per uno Junghismo Critico. Roma: Giovanni Fioriti Editore, 2000
2
. O
mais radical crítico de Jung dentro da própria tradição junguiana é, na atualidade, Wolfgang Giegerich. A
leitura de seus trabalhos sempre desafiantes forneceu-nos valioso material para reflexão.
Nosso trabalho é uma tentativa de responder a essa indagação, desenvolvendo a
compreensão que Jung tinha a respeito da dimensão prática de sua psicologia, a qual
coincide integralmente com a intuição de Jaspers a que nos referimos no início.
55
Para
tanto, e apoiados no que expusemos até aqui, construímos nossa análise do pensamento
de Jung tomando como eixos referenciais duas noções: a de modernidade e a de
sabedoria prática. A tese que avançamos em nosso trabalho, e que justifica o título que
lhe demos, é a de que a psyches therapeia
56
proposta por Jung representa uma tentativa
de opor ao mal-estar espiritual engendrado pela modernidade uma forma contemporânea
de sabedoria prática, que se especifica como uma hermenêutica vivida das imagens
simbólicas. Com esta expressão pretendemos enfatizar a noção que nos parece ser a
chave-mestra que franqueia e condiciona o acesso ao pensamento de Jung: a noção de
símbolo.
57
É pela contribuição que ao campo dos estudos sobre o simbolismo que
Jung se inscreve na corrente mais ampla do pensamento hermenêutico contemporâneo, e
se alinha com os nomes de Henry Corbin, Mircea Eliade, Gaston Bachelard, Paul
Ricoeur, Ernst Cassirer, para citar apenas alguns dos que compartilham a mesma atitude
para com a relevância antropológica do símbolo. Cabe lembrar que Jung está na origem
55
Registre-se, contudo, que Jaspers desenvolveu uma arraigada antipatia pelo tipo de psicologia do
inconsciente correspondente à posição de Jung, e a criticava intransigentemente. Para uma exposição da
perspectiva de Jaspers e uma crítica consistente da mesma, veja-se HILLMAN, J. “The Pandaemonium of
Images: Jung’s Contribution to Know Thyself’”, in Healing Fiction. Barrytown: Station Hill Press, 1983,
p. 51-81.
56
Ao usarmos preferencialmente a expressão grega psyches therapeia para nos referirmos à dimensão
prática da psicologia elaborada por C.G. Jung, nós o fazemos não por quaisquer veleidades de uma
erudição que não possuímos, mas para indicar que, como o próprio Jung afirma, aquilo que está em jogo
na situação psicoterapêutica ultrapassa o âmbito estritamente médico, o tratamento de neuroses
classificáveis, para abarcar o sofrimento espiritual mais amplo proveniente do horizonte histórico-cultural
moderno, o qual vem r em questão a auto-realização humana e, por isso, reclama um tipo de
conhecimento e apresenta um tipo de meta que não pertencem às especialidades científicas, mas, como
Jung percebia, aponta na direção da filosofia antiga: o conhecimento de si mesmo e a meta de tornar-se o
que se é, que definem a natureza do “cuidado da alma” pelo menos desde Sócrates. Essa dimensão passa
despercebida quando usamos o termo “psicoterapia”, que está associado coloquialmente a uma forma de
“técnica” de solução de problemas psicológicos. Nesse sentido, Jung dizia: “O nosso ensino moderno da
medicina, bem como o da psicologia e filosofia acadêmicas, não dão ao médico a formação necessária,
nem lhe fornecem os meios indispensáveis para enfrentar as exigências, tantas vezes prementes, da
prática psicoterapêutica, de um modo eficaz e compreensivo. Sem nos envergonharmos das insuficiências
do nosso diletantismo histórico, vamos ter que freqüentar mais um pouco a escola dos filósofos-médicos
daquele passado longínquo, do tempo em que o corpo e a alma ainda não tinham sido retalhados em
diversas faculdades. Apesar de sermos especialistas, por excelência, nossa especialidade, curiosamente,
nos compele ao universalismo, à profunda superação da especialização, para que a integração de corpo e
alma não seja apenas conversa fiada.” OC XVI, § 190.
57
Por negligenciar a centralidade da noção de símbolo para a compreensão da psicologia de Jung, vários
autores se equivocam ao tomá-la como uma “religião secular” (cf. RIEFF, P. O Triunfo da Terapêutica.
São Paulo: Brasiliense, 1990) ou como um mero “culto carismático” (cf. NOLL, R. O Culto de Jung.
Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Ática, 1996). Mesmo um historiador sóbrio e
imparcial como Sonu Shamdasani erra o alvo nesse ponto, quando descobre em Jung um “projeto para
uma psicologia mediúnica” (cf. SHAMDASANI, S. “Automatic Writing and the Discovery of the
Unconscious”, in Spring, vol. 54, 1993, p. 100-131).
da fundação do círculo de estudos de Eranos, que se reunia anualmente em Ascona,
Suíça, congregando especialistas dos mais diversos campos do saber e produzindo um
pensamento valioso, à margem das modas intelectuais de proveniência francesa,
pensamento genuinamente interdisciplinar que tem como pano de fundo a retomada do
simbolismo.
58
Contudo, nossa tese encontra uma dificuldade de fundo a ser superada. Na
verdade, Jung sempre reivindicou o estatuto de ciência para a psicologia analítica, sendo
esse o motivo pelo qual, em várias ocasiões, ele se injuriava quando a interpretavam
como filosofia, protestando que ele era um “empirista”, que não tinha um “sistema” nem
“doutrinas”, limitando-se a analisar os “fatos empíricos” – como se isso estivesse
excluído da própria filosofia... O que estava em jogo em sua reivindicação era a procura
de legitimidade e reconhecimento para a psicologia analítica, e, no contexto em que ele
desenvolveu seu pensamento, a legitimação pela cientificidade impunha-se
obrigatoriamente.
Sonu Shamdasani afirma que a psicologia de Jung tinha dois lados: “um que era
inteiramente prático, e um outro que era inteiramente teórico. Por um lado, ela
constituía um método de tratamento ou educação, e por outro, era uma teoria científica,
relacionada a outras ciências. Essa divisão foi mantida [por Jung] durante sua carreira
subseqüente. O que ele ainda tinha que fazer era estabelecer como essas partes se
relacionavam.”
59
De acordo com nossa linha de interpretação, Jung necessariamente
deveria esbarrar em dificuldades consideráveis – e mesmo insuperáveis - ao tentar
estabelecer a relação ou unidade orgânica do aspecto prático e do aspecto teórico, pois
ele reconhecia a natureza filosófica da praxis psicoterapêutica, conforme mostramos
anteriormente, mas propunha um modelo teórico que se apresentava como uma certa
forma de cientificidade, não filosófica, e que pretendia enraizar-se epistemologicamente
na Crítica da Razão Pura de Kant.
58
Para um enquadramento do sentido histórico e civilizacional dessa retomada, veja-se DURAND, G.
“Situação Atual do Símbolo e do Imaginário”, in A do Sapateiro. Brasília: Editora da UNB, 1995, p.
25-54. Em nosso segundo capítulo faremos uma apresentação sucinta do destino do pensamento
simbólico no Ocidente, mostrando a inserção de Jung nesse autêntico movimento espiritual cuja história,
segundo Gilbert Durand, corresponderia a uma “anti-história da mentalidade ocidental”, na qual
encontrar-se-iam “poetas como Dante, místicos como Eckhart, Tauler ou Ruysbroeck, teósofos como
Gilles de Viterbo, filósofos como Nicolau de Cusa, miste Pléthon, Marsilio Ficino, alquimistas como
Arnaud de Villeneuve, Flamel e Paracelso, sábios visionários como Swedenborg” (DURAND, op. cit., p.
30), todos expoentes da “ressurgência das imagens”, e aos quais acrescentaríamos, com o próprio Durand,
Jung e todo o círculo de Eranos.
59
Jung and the Making of Modern Psychology, p. 74.
Por outro lado, a unidade orgânica entre praxis e episteme é uma exigência,
posta pela razão, que condiciona a legitimação intelectual e ética do saber psicológico.
Não basta reconhecer, com Jung, que “logo que a psicologia se torna de certo modo útil
e prática como, por exemplo, na psicoterapia, deve necessariamente ser filosófica”.
60
É
preciso dar as razões desse fato, que não são óbvias. Por exemplo: por que a física, ao se
tornar “útil e prática”, nem por isso se torna “filosófica”? A possibilidade de “tornar-se
filosófica” deve estar necessariamente implicada na constituição mesma da forma
teórica caso contrário assistiríamos a uma misteriosa e inexplicável (ou ilegítima)
metamorfose de uma ciência em filosofia. Em outras palavras: se a praxis
psicoterapêutica é afirmada como sendo de natureza filosófica, a teorização psicológica
deve, ainda que apenas implicitamente, ser congruente com uma forma filosófica para
que a coerência entre episteme e praxis possa ser pensada.
Ora, a autocompreensão que Jung tinha de sua psicologia como teoria científica
é problemática justamente na medida em que o nculo com a sua aplicação prática
perde a sua inteligibilidade. Tal problema revela-se insolúvel se nos ativermos aos
termos da autocompreensão de Jung: “Pratico a psicologia em primeiro lugar como
[uma] ciência. Em segundo lugar, ela me serve como [instrumento de] psicoterapia.”
61
Desta forma, é preciso enfrentar o problema posto pela suposta cientificidade da
psicologia analítica, pois com nosso paradigma de leitura filosófica pretendemos
formular não uma interpretação exterior ao pensamento de Jung, que funcione como
uma espécie de cama de Procusto à qual o obrigamos a se ajustar, mas propor uma
forma de captação da sua essência mesma, que se sustenta e justifica a partir de um
exame crítico de seus fundamentos práticos e teóricos. Por isso é necessário ir além da
cisão epistêmica entre as duas dimensões da psicologia analítica, para explicitar a sua
unidade fundamental, o que significa que nossa tese deve incluir uma tarefa ulterior:
trazer à tona o pano de fundo filosófico da teorização de Jung.
Para tanto nos apoiamos, por um lado, no testemunho de Jung em suas
Memórias. Parece-nos que a unidade de teoria e prática radica-se na experiência vivida
por Jung, de que ambas são reflexo e elaboração consciente.
62
Por outro lado, conforme
mostraremos a seu devido tempo, o próprio Jung reconheceu ainda que de forma
60
Cartas I, 5/01/1931, a Charles R. Aldrich.
61
Cartas II, 25/04/1952, a Vera van Lier-Schmidt Ernsthausen.
62
A melhor elucidação do princípio que governa a psicologia de Jung a partir de suas raízes em sua
experiência fundante encontra-se em GIEGERICH,W. The Soul’s Logical Life: Towards a Rigorous
Notion of Psychology. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1998, especialmente p.55-78.
relutante a afinidade de suas concepções teóricas ao Romantismo e ao Idealismo
alemão, o que significa admitir afinal que o seu “empirismo” não era absolutamente
“não filosófico”, e que sua teorização psicológica não poderia ser também
absolutamente “científica”. Por isso não seguimos Shamdasani ao designar o lado
prático da psicologia de Jung como “psicologia analítica” e o lado teórico como
“psicologia complexa”, preferindo considerar essa unidade fundamental de ambas as
vertentes e nos referir ao pensamento de Jung pela denominação mais consagrada de
“psicologia analítica”, dando prioridade à sua raiz prática e existencial e interpretando a
sua dimensão teórica como sendo, em última instância, organizada em torno de algumas
concepções filosóficas de índole claramente romântica.
Desta forma, ao termo da discussão sucinta da problemática epistemológica e da
exposição do perfil filosófico que caracteriza a psicologia analítica a interpretação da
psyches therapeia junguiana como forma de sabedoria prática estará plenamente
legitimada, na medida em que assim a via para a comprovação metafísica prescrita por
Jaspers fica desobstruída, apesar de não nos propormos aqui enveredar por tal via,
desenvolvendo esse aprofundamento específico do pensamento de Jung.
63
Quanto ao marco teórico que adotamos, acreditamos encontrar no pensamento de
Henrique Cláudio de Lima Vaz um referencial adequado para nossa tarefa. Ele está
presente, explícita ou implicitamente, ao longo de toda a nossa reflexão neste
trabalho. Nossa escolha se justifica não só pela inquestionável qualidade filosófica
do pensamento vaziano, original, rigoroso, claro e de uma amplitude admirável, mas
também por ele ter sido construído a partir de uma interrogação fundamental que
acompanha permanentemente todo o esforço especulativo de Lima Vaz: justamente a
interrogação sobre a modernidade, em sua gênese, natureza e destino.
64
A presença
constante desse problema, por sua vez, vai determinar o sentido do desenvolvimento
dos grandes complexos temáticos que caracterizam seu pensamento: a ética, a
antropologia filosófica e a filosofia da cultura. Por isso, a reflexão ética em Henrique
Vaz, assentada nos alicerces da filosofia antiga – e em especial em Aristóteles –,
enquadra-se segundo uma consideração atenta das novas condições de exercício da
razão no regime mental moderno, e volta-se para os problemas que delas derivam.
Portanto, este marco teórico atende ao duplo objetivo que assumimos em nossa
tarefa, permitindo a interpretação ético-filosófica da psicologia de Jung segundo a
categoria da sabedoria prática, que remete à filosofia antiga, em termos da situação
espiritual moderna.
63
Um exemplo bem-sucedido de tal aprofundamento pode ser encontrado na obra supra-citada de
Wolfgang Giegerich.
64
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia VII Raízes da Modernidade, p.7. O pensamento de Henrique Vaz
constitui o eixo de referência central de nosso marco teórico, o que não significa que não tenhamos
lançado mão de outras referências quando o tema o exigia, como poderá ser constatado ao longo de nosso
trabalho.
Além disso, toda a reflexão de Henrique Vaz apoia-se numa rigorosa
Erinnerung dos momentos cruciais da história da filosofia nos quais
tomaram forma as grandes respostas aos problemas postos desde a origem a
uma civilização da razão. Essa rememoração, que visa encontrar o centro
das experiências epocais do espírito que decidiram o rumo tomado por esta
mesma civilização, constitui-se necessariamente como interpretação e,
como tal, coloca-nos em situação de autêntica interpelação perante a
experiência interpretada, o que vem conferir densidade e profundidade à
tarefa de respondermos aos problemas e interrogações que nos desafiam no
presente.
Finalmente, a leitura vaziana da modernidade, que manifestamente privilegia o
destino da metafísica ocidental como ângulo de interpretação, parece-nos
excepcionalmente fecunda para elucidar em profundidade o problema da sabedoria
prática no regime mental moderno, na medida em que intenta compreender o sentido da
revolução operada pela metafísica moderna da subjetividade nos fundamentos da práxis,
e suas conseqüências sobre o âmbito da ética, e por extensão sobre a questão da
sabedoria aqui enfocada. Nessa medida, ela nos parece capaz de fundamentar uma
avaliação justa e pertinente sobre os problemas que se apresentam na resposta de Jung
aos desafios do niilismo moderno.
65
Para cumprir a tarefa que nos propusemos, dividimos nossa reflexão em quatro
capítulos: no primeiro, estabelecemos o enquadramento histórico do problema da
sabedoria prática, apresentando em termos gerais as coordenadas que permitem
formular nossa tese da correspondência entre sabedoria prática e psicoterapia
contemporânea; no segundo, retomamos o enquadramento histórico, mas desta feita
concentrando-nos sobre a situação do pensamento simbólico na marcha histórica da
civilização ocidental, para entender a proposta junguiana de um resgate da
sensibilidade simbólica em toda a sua extensão; em seguida, complementamos no
terceiro capítulo a abordagem do segundo, tratando do significado da recuperação de
uma sensibilidade simbólica quando compreendida à luz da relação entre
modernidade e tradição, e daí passamos à demonstração de que a psicologia analítica
preenche os requisitos exigidos para que seja interpretada como uma forma de
sabedoria prática; finalmente, no último capítulo, ao fazermos a avaliação da
sabedoria prática junguiana sob um ponto de vista sistemático, mostramos a
dificuldade representada pela opção epistemológica feita por Jung, que então
recenseamos em suas linhas fundamentais, para expor o seu caráter problemático, e
65
Talvez valha a pena mencionar que não encontramos nenhuma referência a Jung no pensamento de
Henrique Vaz, que, ao que parece, considerava o psicólogo suíço como representante de um certo
“irracionalismo”, não condizente com seu temperamento intelectual. Porém, encontramos um “lapso”
junguiano em uma passagem de seus escritos de filosofia, quando, ao tratar da figura do sábio, expressão
concreta da racionalidade prática e paradigma da conduta ética, Vaz afirma que ele “aparece sob os mais
variados perfis e muitas vezes revestido dos véus da legenda, em praticamente todas as tradições
culturais”, e é “de resto, um dos mais poderosos arquétipos do inconsciente coletivo e veículo
provavelmente insubstituível da transmissão do ethos”. Escritos de Filosofia IV, p. 52.
ao mesmo tempo para revelar a inconfundível têmpera filosófica romântica da
psicologia analítica, que assinala a direção do passo teórico que Jung não deu, e que
comprometeu a unidade orgânica entre praxis e episteme em sua psicologia. Isso nos
permitirá uma visão mais ampla sobre as relações da psicologia analítica com o
niilismo moderno, que apresentaremos em nossa conclusão.
CAPÍTULO PRIMEIRO
SABEDORIA PRÁTICA E MODERNIDADE
Talvez não seja exagerado afirmar que, em meio a todas as transformações
fatídicas que determinaram os rumos da humanidade do domínio do fogo à invenção
da roda, do advento da agricultura ao surgimento das grandes religiões mundiais - , cabe
um lugar de destaque àquelas mudanças que acompanharam e constituiram essa
experiência decisiva que costumamos designar pela palavra modernidade. De fato,
pode-se constatar facilmente o profundo e radical impacto exercido pelas linhas de força
da modernidade sobre todo o arco das configurações humanas em escala planetária,
sejam elas sociais, econômicas, políticas, subjetivas ou culturais. A instalação humana
no mundo viu-se indelevelmente modificada, em formas e graus variados, pela
expansão do espírito moderno em sua investida dominadora sobre todas as culturas e
sociedades, mesmo aquelas mais avessas ao perfil específico que define tal espírito.
Observada a partir de sua hora avançada, na qual nos cabe viver, a experiência
moderna, com todas as suas conseqüências e efeitos aparentemente irreversíveis,
desperta assombro e angústia, e por isso mesmo se oferece como genuíno objeto para a
reflexão filosófica, que assume assim a tarefa de estabelecer as estruturas fundamentais
que definem a própria modernidade. Ao termo dessa tarefa, o que era objeto revela-se
por sua vez horizonte de compreensão para a interrogação filosófica que se debruce
sobre qualquer aspecto da realidade conformada segundo as coordenadas modernas.
O problema de que nos ocupamos neste trabalho pertence legitimamente ao
campo delimitado pela experiência moderna. Trata-se, em resumo, dos destinos da
sabedoria prática (phronesis) dentro do espaço humano configurado pela modernidade.
Nosso objetivo neste primeiro capítulo é examinar as causas da exclusão da sabedoria
prática do sistema de razões próprio do novo regime mental, para em seguida apontar as
conseqüências de tal exclusão, criando assim um ponto de apoio que permitirá
compreender um fato cultural específico: o nascimento da psicoterapia contemporânea.
A tese aqui defendida é a de que esse evento significa uma tentativa de recuperação do
espaço próprio da sabedoria prática, o que implica traçar uma linha de filiação de certas
escolas da psicologia contemporânea à tradição filosófica. Inversamente, o conjunto de
exigências e necessidades humanas que pressionaram no sentido da criação da
psicoterapia contemporânea atesta, em sendo válida a tese proposta, que o abandono dos
fundamentos da sabedoria prática clássica vem causar uma espécie de “mal-estar na
cultura”. Esse mal-estar, concretizado em sofrimento psíquico no indivíduo formado na
cultura moderna, estampa a indigência espiritual de um mundo que voltou as costas às
raízes de sua sabedoria.
A fim de cumprir o objetivo indicado acima, é preciso em primeiro lugar expor
sinteticamente as linhas estruturais da concepção clássica de sabedoria prática,
mostrando sobre quais fundamentos ela se apoia. A seguir, dada a imprecisão semântica
que afeta a própria noção de modernidade, é necessário definir o sentido e o uso que
faremos dessa categoria, descrevendo seus traços principais, para assim poder examinar
as transformações operadas pela experiência moderna sobre os fundamentos clássicos
da phronesis, com o que estaremos em condições de compreender a situação – ou a não-
situação da sabedoria prática na modernidade. Este é o roteiro seguido na
apresentação de nosso argumento.
1. Sabedoria prática: linhas fundamentais da concepção de phronesis
1.1 A propósito da noção de sabedoria
Tomada em sua acepção mais genérica – e portanto mais vaga -, sabedoria significa o
âmbito do conhecimento experiencial e reflexivo do homem, que tem como
finalidade permitir-lhe ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, situar-se melhor no
ser, e orientar a realização de suas aspirações em todas as dimensões de sua vida. A
amplitude dessa definição permite que ela abarque as mais variadas formas
historicamente nomeadas como sabedoria, indo da habilidade técnica, passando pela
sagacidade nas relações humanas, pelo saber acumulado na experiência, à
contemplação ou conhecimento dos princípios últimos da realidade.
Uma importante distinção a ser feita dentro dessa categoria ampla e ambígua de
sabedoria diz respeito à sua legitimação. Nesse sentido, podemos falar da sabedoria
própria dos saberes éticos, que se legitimam exclusivamente pela referência seja à
experiência recolhida nas tradições das diversas culturas, seja à revelação formulada na
experiência religiosa, e de sabedorias filosóficas (no plural), que, mesmo tomando como
ponto de partida os saberes éticos, aspiram à legitimação racional, discursiva.
Se restringirmos o nosso foco às concepções de sabedoria representativas da tradição
filosófica grega antiga, veremos que elas emergem de um fundo originário em que
dois termos, destinados a ocupar uma posição central no discurso ético, ainda não
estão precisamente diferenciados do ponto de vista semântico e conceptual: sophia e
phronesis. Assim, sophia significa em Homero a habilidade para praticar uma
operação determinada; posteriormente passa a indicar qualquer “arte”; já em Teógnis
refere-se claramente à inteligência prática, oscilando a partir de Heródoto entre um
sentido teórico e um sentido prático; a distinção entre os dois sentidos, apenas
eventualmente esboçada em Platão, vai ser categoricamente estabelecida por
Aristóteles, que reserva para a sophia o sentido exclusivamente teórico; finalmente, a
partir das escolas helenísticas, observa-se a tendência a uma atenuação da linha
demarcatória traçada por Aristóteles, prevalecendo o ideal de uma fusão do aspecto
teórico com o prático.
Analogamente, a amplitude do espectro semântico original de phronesis permitia que
se designasse com tal termo praticamente toda atividade mental. Acompanhando a
linha evolutiva da noção de sophia, phronesis permanece freqüentemente indistinta
da sabedoria teórica
66
, para ganhar em Aristóteles o perfil exclusivamente prático de
sabedoria como guia do homem no mundo (ao mesmo tempo em que se diferencia
também claramente de outra noção vizinha, a de techne). Se nas escolas pós-
aristotélicas os dois sentidos voltam a se reunir, esta união contudo se faz doravante
portando a marca da distinção feita pelo Estagirita, sob a forma da dupla
determinação da sabedoria como virtude prática e como conhecimento teórico.
Empenhando-se em verter essa distinção para a língua latina, Cícero fixará os termos
que acompanharão o uso filosófico das noções de sophia e phronesis: sapientia e
prudentia, respectivamente.
Na verdade, mesmo em sua forma mais categórica, como a apresentada por
Aristóteles, a distinção entre as esferas teórica e prática não deve ser tomada como
uma separação radical quando temos em vista o spiritus rector que animava a
filosofia antiga. Como afirma decididamente Pierre Hadot em seus trabalhos
67
, a vida
filosófica antiga era indissolúvel e simultaneamente teórica e prática, traduzindo-se
como maneira de viver ou, segundo sua expressão, como “exercício espiritual”,
determinando assim muito concretamente a forma de existência em todas as
situações práticas
68
. Além disso, cabe lembrar que o saber teórico por excelência, a
66
Cf., por exemplo, Heráclito, fr. B 112; Platão, rmides, 166d-167a, e Protágoras, 332a ss.
67
Cf. HADOT,P. Exercices Spirituels et Philosophie Antique. Paris: Albin Michel, 2002; O Que é a
Filosofia Antiga? São Paulo: Loyola, 1999; ver também La Philosophie comme Manière de Vivre. Paris:
Albin Michel, 2001.
68
“A filosofia era o exercício efetivo, concreto, vivido, a prática da lógica, da ética e da física. A
verdadeira gica não é a teoria pura da lógica, mas a lógica vivida, o ato de pensar de uma maneira
correta, de exercer seu pensamento de uma maneira correta na vida de todos os dias. pois uma lógica
vivida, que consiste, dizem os estóicos, em criticar as representações, isto é, as imagens que vêm do
mundo exterior, em não se precipitar para dizer que tal coisa que acontece é um mal ou um bem, mas
refletir, criticar a representação. Isso é evidentemente verdadeiro também para a ética. A verdadeira ética
não é a teoria da ética, mas a ética vivida na vida com os outros homens. Ocorre o mesmo com a sica. A
verdadeira física não é a teoria da física, mas a física vivida, quer dizer uma certa atitude a respeito do
cosmos. Esta física vivida consiste de partida em ver as coisas tais como elas são, não de um ponto de
metafísica, surgiu como um esforço intelectual visando a orientação no mundo
mediante um saber que conduzisse à sabedoria e à felicidade, estando pois articulado
à ética.
69
Aliás, poderíamos dizer que, mesmo em uma atmosfera intelectual adversa
ao pensamento metafísico, como aquela em que vivemos, ainda é possível
legitimamente tomar posição em favor da remissão do ético ao metafísico.
70
A diversidade das formas clássicas de articulação do plano teórico ao plano ético e as
diferentes propostas de sabedoria prática filosófica que daí resultam podem ser
reconduzidas a um denominador comum, a saber: sua referência, explícita ou não, a
duas máximas sapienciais veneráveis: “Conhece-te a ti mesmo” e “Torna-te o que
és”. Tais máximas encerram um pressuposto – que poderíamos traduzir como o
inacabamento fundamental do homem -, o qual dá sentido ao imperativo da
realização de si mesmo mediada por uma forma específica de conhecimento – o
conhecimento de si mesmo, de que depende a determinação dos fins especificamente
humanos que norteiam a auto-realização. E, de Sócrates até nossos dias, as
modalidades filosóficas de sabedoria prática distinguir-se-ão segundo a originalidade
quanto à forma de interpretar e dar cumprimento a essas máximas, bem como quanto
às estratégias de legitimação racional de seus preceitos – que implicam a questão da
fundamentação metafísica ou ontológica que lhes dá sustentação.
Por outro lado, apontando a remissão mútua entre cosmologia, antropologia e ética,
Rémi Brague nos lembra que a sabedoria prática antiga era predominantemente uma
“sabedoria do mundo”, correspondendo assim a uma “cosmologia vivida”, na medida
em que, mais do que simplesmente situar o ser humano por relação ao universo
físico, tomando-o como um dado básico, ela supunha a interrogação sobre o que é o
homem e sobre o que ele deve ser, a partir de considerações relacionadas à estrutura
do universo. Em outros termos: a cosmologia, implicando uma antropologia que
englobava uma reflexão sobre a forma pela qual o homem pode ser o que ele
verdadeiramente é, ou seja, uma reflexão ética, compunha o quadro de referência
mais amplo que permitia definir a atitude mediante a qual o homem poderia realizar
plenamente sua humanidade – atitude que coincide com a sabedoria prática.
71
vista antropomórfico e egoísta, mas na perspectiva do cosmos e da natureza.” HADOT, La Philosophie
comme Manière de Vivre, p. 154-155.
69
Cf. CONILL,J. El Crepúsculo de la Metafísica. Barcelona: Anthropos, 1988, p. 15. Cf. também
VAZ,H.C.L. “Platão Revisitado. Ética e Metafísica nas Origens Platônicas”, in Kriterion, v. XXXIV, n.
87, 1993, p. 9-30.
70
Es gibt keine Ethik ohne Metaphysik: essa afirmação de Robert Spaemann sendo, na verdade, o nosso
ponto de chegada nessa exposição, desvenda a significação profunda de nosso ponto de partida. Ela
exprime lapidarmente um implícito até aqui não enunciado mas que exprime afinal nossa convicção
profunda: a de que o itinerário de uma Ética viável nas terras da razão moderna deve recuar aquém das
suas fronteiras e reencontrar a trilha platônico-aristotélica, para tentar prolongá-la na floresta de
racionalidades que cobre a cultura desse fim de milênio. Não estará aqui uma alternativa possível para o
desconcerto ético do nosso tempo?” VAZ, “Ética e Razão Moderna”, in Síntese Nova Fase, v. 22, n. 68,
jan.-mar./1995, p.78.
71
Cf. BRAGUE, R. La Sagesse du Monde. Histoire de l’Expérience Humaine de l’Univers. Paris: Fayard,
1999 (aqui p. 12, 15 e 21). Rémi Brague assinala, igualmente, as formas de sabedoria antiga que não
consideravam a cosmologia como um saber importante para a determinação da situação prática
notadamente certas linhas da sofística, o cinismo e os cirenaicos. Além disso, epicuristas e pirrônicos
consideravam a física em vista da ataraxia, não buscando um modelo cósmico para a conduta humana, e
assim, propriamente falando, a sabedoria que propunham não era uma sabedoria do mundo, no sentido
que Brague a esta expressão. Cf. La Sagesse du Monde, p. 49. Mas, no sentido de Pierre Hadot (cf.
retro, nota 3), mesmo as especulações físicas dos epicuristas, ao se articularem à questão prática, também
poderiam constituir uma “física vivida”, sem o estatuto da imitação stricto sensu do modelo cósmico,
Essa forma de “sabedoria do mundo” que articulava cosmologia, antropologia e
ética marcou a tradição de pensamento dominante durante um longo período, que se
estende da Antigüidade à Idade Média.
72
Para os nossos objetivos, não é necessário
fazer um inventário das diversas concepções de sabedoria prática segundo as várias
escolas e períodos do pensamento antigo e medieval. Basta tão-somente delimitar uma
estrutura conceptual essencialmente representativa daquelas concepções, sem entrar nas
divergências, por vezes drásticas, que contrapõem uma escola ou estilo de vida
filosófico a outro, e que possa servir como ponto de leitura razoavelmente aplicável e
seguro para a distinção entre o espírito da ética antiga e o universo ético moderno.
Pelo exposto anteriormente, parece-nos legítimo tomar tal estrutura em sua
formulação aristotélica, visto que a mesma marcaprofundamente a tradição filosófica
ocidental, constituindo-se em verdadeiro ponto de referência para todo o pensamento
ético até o advento da modernidade. Além disso, é em Aristóteles que a noção de
phronesis apresenta sua forma mais rica, abarcando a maior diversidade de aspectos. As
formas posteriores de sabedoria prática serão construídas como reação ao modelo
aristotélico, ou então como uma recuperação de um ou vários de seus aspectos, mas
nenhuma delas apresentará “a diversidade contraditória do arquétipo perdido”.
73
1.2 Phronesis e Praxis
A decidida distinção feita por Aristóteles entre razão teórica e razão prática
estabelece o espaço do ethos como o campo de atuação próprio a esta última
74
. Esse
campo, no qual se situa a praxis, atividade prática da psyche que é regida pelo logos
75
,
guardando porém a intenção de uma harmonização com o Todo pela inserção ordenada no mesmo, que
Hadot designa como “consciência cósmica”.
72
Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 12. Nesta obra encontra-se uma boa visão panorâmica,
enfocando a questão sob o ângulo da correlação entre sabedoria e natureza nas escolas mais
representativas do pensamento antigo e medieval.
73
Cf. CANTO-SPERBER, M. (org.) Dicionário de Ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2003, verbete “Prudência” (assinado por Pierre Pellegrin).
74
Para o que se segue, apoiamo-nos fundamentalmente em VAZ, Escritos de Filosofia II Ética e
Cultura, especialmente p. 80-134, e desenvolvemos certos pontos a partir das fontes indicadas em nota ao
texto. Observe-se aqui que a leitura vaziana da ética aristotélica atém-se deliberadamente às suas grandes
linhas, remetendo as questões mais especializadas ao seu tratamento em sede própria, através de rica
indicação bibliográfica. Henrique Vaz não se propõe a dar uma contribuição original aos estudos sobre
Aristóteles, mas sim a utilizá-los na interpelação aos graves problemas suscitados pela modernidade.
Como nosso trabalho versa sobre um desses problemas, a opção pelo tratamento vaziano da ética
aristotélica fica justificada.
75
Onde encontramos, portanto, um logos da psyche, que corresponderia a uma “psicologia” em versão
antiga. Como toda concepção ética pressupõe uma determinada antropologia, assim a leitura da Ética a
Nicômaco pode ser feita em contraponto com a antropologia do De Anima. Para a comprovação da tese
organiza-se em torno a dois focos: o das “coisas humanas” (ta anthropina) e o da
“virtude” (arete). Assim, o saber imanente à praxis, o qual é um tipo de conhecimento
intelectual específico, possuindo um método e um gênero de certeza próprios, orienta as
escolhas que se apresentam nas situações contingentes características das “coisas
humanas” no sentido dos modelos de realização propostos nas virtudes éticas. A
excelência nessa orientação constitui a virtude intelectual da phronesis ou sabedoria
prática, que assume pois o centro de gravidade da teoria aristotélica da praxis. No tipo
modelar que encarna essa excelência, o phronimos ou sábio
76
, encontramos a medida
para a realização concreta da virtude, medida que se define em relação tanto ao agente
quanto aos componentes de sua ação (ou seja, o objeto, o tempo, as circunstâncias, os
destinatários, o fim e o modo)
77
.
Instalada em meio às “coisas humanas” e sempre a elas referida, a sabedoria prática
é definida por Aristóteles como uma “disposição prática, acompanhada de uma regra
verdadeira, concernente ao que é bom e mau para o homem”.
78
Por sua própria
definição, vê-se como a phronesis supõe a determinação do bem humano e, na medida
em que há uma hierarquia de bens segundo uma ordem determinada, a definição do bem
absoluto ou último para o homem, que Aristóteles demonstra ser a eudaimonia ou
felicidade.
79
Esta, por sua vez, consiste em uma atividade (energeia) que é feita de
ações propriamente humanas (praxeis), que têm o seu fim em si mesmas. Aqui radica-se
a distinção também clara feita por Aristóteles entre praxis e poiesis (produção): a
que sustentamos basta, pois, demonstrar a correspondência estrutural entre essa “psicologia” antiga (na
sua face de sabedoria prática) e a psicologia junguiana, o que faremos no capítulo terceiro.
76
A tradução de phronimos por “sábio” é problemática, se levarmos em conta que usualmente esse termo
é aplicado a sophos, enquanto phronimos costuma ser traduzido por “prudente”, no âmbito dos estudos
especializados de ética antiga. Contudo, dada a inflexão que atinge a noção de prudência na modernidade,
e que a torna bastante diversa da phronesis clássica, a utilização de seu derivado parece-nos ainda mais
problemática e inconveniente. Por outro lado, no âmbito coloquial “sábio” designa alguém experiente na
arte de viver ainda que freqüentemente sem referência ao elemento racional constitutivo da phronesis.
O enfraquecimento dos termos “sabedoria” e “prudência”, que se observa desde Descartes, atinge também
seus derivados. Por isso, e mais uma vez considerando que o conceito fundamental para nossa tese é o de
modernidade, optamos pela utilização de “sábio”, mais satisfatória para traduzir as facetas do phronimos
antigo para a sensibilidade moderna em sua compreensão não especializada. Uma outra justificativa para
esta opção é o fato de ela também ser adotada em várias passagens dos escritos de Henrique Vaz, quando
trata da problemática ética.
77
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 108 e nota 123.
78
Ética a Nicômaco, VI, 5, 1140 b 5.
79
Na verdade, a tradução de eudaimonia por “felicidade é insatisfatória. “Felicidade”, com as
conotações de sentimento subjetivo que o sentido moderno lhe atribui preferencialmente, não consegue
expressar a riqueza semântica do grego eudaimonia, que significa a excelência do indivíduo na
humanidade e sua auto-realização nessa excelência (Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 52 e nota 67). A
inadequação dos termos permite entrever a diferença entre o eudaimonismo antigo, fundado na
objetividade do bem, e o eudaimonismo moderno, fundado no sentimento subjetivo de felicidade (cf.
VAZ, Escritos de Filosofia IV, p. 91 nota 21).
operação técnico-produtiva não é uma energeia mas uma kinesis (movimento) que tem
o seu fim fora de si mesma, na obra produzida. A praxis visa a perfeição do agente; a
poiesis visa a perfeição da obra externa. A forma de saber correspondente à primeira é a
sabedoria prática, ao passo que a correspondente à poiesis é a techne.
80
A phronesis é a virtude ou excelência da parte calculadora, opinativa ou deliberativa
da alma racional, e promove a articulação dos fins (“o que é bom para o homem”) aos
meios capazes de os realizar. Ela não deve, contudo, ser entendida como o instrumento
de um empirismo hedonista nem segundo um pragmatismo rasteiro, reduzido às
decisões quotidianas ordinárias. Por um lado, é preciso salientar a centralidade da
vinculação estrutural entre phronesis e praxis
81
, e enfatizar a natureza própria desta
última, que se refere à ação que aperfeiçoa o agente, sendo pois especificamente
humana e humanizadora. A praxis, por outro lado, está suspensa à definição dos fins
especificamente humanos, e estes fundamentam-se em uma determinada concepção
antropológica
82
. A realização plena da forma humana, tal como definida na concepção
antropológica de base, coincide com o fim último a ser captado pela phronesis, que
assim orienta a praxis segundo a referência da eudaimonia. Na obra concreta da
sabedoria prática, a deliberação em torno a qualquer situação particular deve pois estar
referida ao fim último da auto-realização humana segundo a sua essência. Esta
referência pressupõe, como lembra Julia Annas em The Morality of Happiness
83
, a
consideração da vida humana em sua totalidade: para Aristóteles, o fim último deve ser
pensado e realizado “na vida completa”. Eis a razão de um certo utilitarismo de vistas
curtas ser inteiramente estranho à concepção de sabedoria prática tal como a filosofia
antiga a entendia.
Nos quadros da formulação aristotélica, cabe à ontologia da forma dar sustentação e
fundamento à teoria da praxis. A ordem e finalidade em cada indivíduo tem o seu
princípio intrínseco na essência, sendo a forma o ato da essência. No caso do ser
80
Sobre a distinção praxis-poiesis e a sua fundamentação metafísica na distinção entre energeia e kinesis,
ver NATALI, C. “A Base Metafísica da Teoria Aristotélica da Ação”, in Analytica, vol. 1, 3, 1996, p.
101-125. Cf. também, na mesma revista, o artigo de Bernard BESNIER, “A Distinção entre Praxis e
Poiesis em Aristóteles”, p. 127-163.
81
Vinculação que fica estampada na tradução de phronesis por “sabedoria prática”, razão pela qual
adotamos sem restrições essa expressão em nosso trabalho.
82
“A noção aristotélica de ação [praxis] é um conceito complexo, estritamente ligado à antropologia de
Aristóteles – antropologia que põe o homem como um ente intermediário entre a esfera puramente natural
e a esfera do divino. A teoria da ação é fruto coerente de tal ponto de vista e bem representa, sobre o
plano dinâmico, a sua ambígua complexidade.” NATALI, C. “A Base Metafísica da Teoria Aristotélica
da Ação”, p.123.
83
Cf. ANNAS,J. The Morality of Happiness. Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 27-46.
humano, a forma, que Henrique Vaz identifica ao núcleo ontológico da ipseidade
pessoal
84
, é denominada por Aristóteles psyche, especificando-se pela presença da
inteligência (nous). Aristóteles assenta o uso mensurante e normativo do nous tanto no
domínio da physis (uma vez que o agir ético supõe a boa disposição natural, physike
arete) quanto no domínio do ethos (já que a virtude ética propriamente dita, ethike
arete, desenvolve-se por educação como hábito).
Se o ethos, espaço da realização humana, se eleva sobre a physis, rompendo o
círculo da necessidade natural pela autodeterminação instauradora constitutiva da
praxis, nele no entanto conserva-se a razão profunda da própria physis, manifestada no
finalismo do bem inscrito na forma (eidos) de todos os seres como tendência imanente à
atualização plena. Isso significa afirmar a presença normativa da physis no próprio
ethos, que se constitui assim como uma “segunda natureza” referida à “natureza
humana” gravada no eidos. A passagem da virtude natural à virtude ética, feita pela
intervenção da razão prática, reatualiza no plano da praxis concreta a mesma
suprassunção originária que marca a elevação do ethos sobre a physis.
85
A praxis, cujo momento crucial é a decisão racional ou escolha deliberada
(prohairesis), implica uma passagem da potência ao ato tanto do objeto da faculdade
apetitiva quanto daquele da faculdade do discernimento, que se unificam assim na
própria ação. A atividade virtuosa significa, portanto, a realização pelo agente de suas
possibilidades propriamente humanas. Sendo os conceitos de ato e potência, que regem
tanto a metafísica quanto a antropologia aristotélicas, igualmente fundamentais para a
reflexão ética
86
, a phronesis assenta-se necessariamente sobre esta base metafísica.
Nas situações humanas em que intervém, a sabedoria prática comporta-se como
regra em relação às virtudes éticas e como condição em relação à sabedoria teórica
(sophia). De fato, sendo a virtude ética uma mediania (mesotes), ela se define por
84
Cf. Escritos de Filosofia V, p. 17-18.
85
Para a afirmação do papel fundamental da abordagem naturalista para a filosofia moral aristotélica,
veja-se ENGBERG-PEDERSEN, T. Aristotle’s Theory of Moral Insight. Oxford: Clarendon Press, 1983,
p. 261. No contexto mais amplo da mentalidade antiga, a busca bem sucedida pelo metron, capital para a
eupraxia, traduz-se como harmonização com o cosmos, preservação da correspondência bem ordenada
entre a esfera humana e o cosmos. O microcosmos encontra seu modelo normativo no macrocosmos, uma
vez que ambos são regidos pelas mesmas leis, e estas são de natureza moral (como fica estampado nas
idéias de justiça, isonomia, temperança, amizade, aplicadas a ambas as esferas, sustentadoras da ordem –
kosmos como um bem objetivo, não instituído pelo homem, e que deve ser respeitado). Cf. BRAGUE,
La Sagesse du Monde, p. 41.
86
Cf. PERINE, M. “Ato e Potência: Implicações Éticas de uma Doutrina Metafísica”, in Kriterion, n. 94,
dez./1996, p. 7-23. “Toda decisão racional impõe uma passagem da potência ao ato. É nesse ponto que a
ética se enxerta na metafísica, e esse cruzamento é decisivo para a compreensão da antropologia de
Aristóteles, porque é na sua metafísica que se encontra a chave da sua antropologia.” Op. cit., p. 19.
referência ao sábio (phronimos), modelo exemplar de uso da reta razão (orthos logos)
que determina exatamente o justo meio pelo qual ele se pauta, e a reta razão é aquela
que se conforma à sabedoria prática (phronesis). Por outro lado, se a sabedoria prática
não institui os fins, propriamente falando, ela no entanto os capta e promove a sua
articulação com os meios capazes de realizá-los. Segue-se que, sem a sabedoria prática,
a consecução de quaisquer fins humanos seria ou impossível ou resultado do acaso, e
nesta última hipótese não haveria mérito nem virtude verdadeira, desaparecendo toda a
problemática ética.
Já no tocante à virtude intelectual suprema (sophia), a sabedoria prática comporta-se
como condição não no sentido de submetê-la aos seus princípios, ditando-lhe ordens,
mas sim no de refletir sobre como alcançá-la, o que significa que a phronesis opera em
vista de sophia
87
. A realização da vida contemplativa depende das circunstâncias
exteriores, requerendo portanto um domínio prévio das situações vigentes no âmbito das
coisas humanas, e tal domínio é orquestrado pela sabedoria prática. Sendo assim, é
lícito afirmar que, mesmo sendo hierarquicamente inferior à sophia, a sabedoria prática
é imprescindível à realização do ideal contemplativo do sophos.
É precisamente essa dupla referência às virtudes éticas, por um lado, e à sabedoria
teórica, por outro, que faz a sabedoria prática ocupar o centro de toda a vida ética na
concepção aristotélica.
1.3 Phronesis, Orexis e Phantasia
Sob o ponto de vista da psicologia do ato moral, a sabedoria prática orienta
teleologicamente o campo da escolha (prohairesis), na medida em que esta sempre
implica uma forma de raciocínio e reflexão relativos às coisas humanas, sendo portanto
escolha deliberada. Referida ao desejo que expressa o fim intencionado de forma não-
racional, a sabedoria prática torna-o um desejo refletido (orexis dianoetike), que assim
move o processo de decisão. Desse modo, na decisão unificam-se a faculdade apetitiva
e a faculdade intelectiva como intelecto desejante ou desejo razoável. O que torna
possível essa unificação é a capacidade natural das tendências e impulsos que pertencem
87
Cf. PERINE, M. “Phronesis: Um Conceito Inoportuno?”, in Kriterion, v. XXXIV, n. 87, 1993, p. 31-
55, aqui p. 45-46. Sendo a natureza da relação entre phronesis e sophia em Aristóteles objeto de
discussão polêmica entre os especialistas, adotamos aqui uma das posições defendidas nesse debate sem
retomá-lo a fundo, o que estaria além de nossa competência e dos objetivos desse trabalho.
à alma sensitiva e concupiscível, sendo por si não racionais e desmedidos, de
participarem de certo modo da razão ao se adequarem ao seu domínio
88
.
O desejo (orexis) na concepção aristotélica cobre um amplo arco e surge em
diferentes níveis, indo da epithymia não racional à prohairesis e à boulesis racionais.
89
Enquanto princípio motor único da psyche, o desejo goza de um certo primado face ao
intelecto prático, já que o intelecto não pode mover sem o desejo.
90
Ontologicamente, o
nível do desejo é anterior ao do nous, o que implica em que o intelecto deve apoiar-se
no desejo para realizar sua atividade própria. Por outro lado, se o desejo guia o intelecto
prático, este por seu turno fornece-lhe uma regra que permite superar a conflitividade
potencial existente entre os vários tipos de desejo: o bem prático, objeto do desejo e
causa final do agir ético, é da ordem daquilo que pode ser diferente do que é, o que
significa que pode ser um bem verdadeiro (to agathon) ou somente um bem aparente (to
phainomenon agathon) abrindo-se desse modo a possibilidade para o desejo ser reto
ou não, donde a necessidade do intelecto para retificá-lo ou torná-lo justo.
91
Ademais,
dada a ambivalência característica dos desejos, que permeiam a totalidade do composto
humano, podendo ser alógicos ou gicos, é preciso lembrar que o desejo alógico pode
mover contra o raciocínio e prevalecer sobre a deliberação (boulesis), ou então a
deliberação pode esclarecer e refrear o desejo alógico, orientando-o para o fim
verdadeiro conforme suas diretrizes racionais.
Cabe observar que o desejo, encerrado no presente mas aberto ao futuro sob
influência da razão, é fundamentalmente temporal
92
, podendo ser desejo da
imediatidade ou do prazer iminente como seria o caso da epithymia entregue a si
mesma - ou então ordenar-se a uma satisfação planejada por motivos refletidos caso
em que prevalece o comando de boulesis e prohairesis e a respectiva instrução racional.
Aristóteles afirma que só em seres que possuem a percepção do tempo ocorre a presença
de tendências desiderativas contrárias em um mesmo indivíduo, “pois neles a razão leva
em consideração o futuro, onde se encontra o bem a que aspiram, mas o desejo [alógico]
percebe apenas o prazer iminente.”
93
A oposição entre desejo e razão instala a
88
Cf. Ética a Nicômaco, I 13, 1102 b 23-31.
89
A esse respeito, cf. FRÈRE,J. Les Grecs et le Désir de l’Être. Des Préplatoniciens à Aristote. Paris: Les
Belles Lettres, 1981, p. 321-365.
90
Cf. De Anima 433 a, 22-23.
91
Cf. De Anima 433 a, 26-30. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 361-362.
92
Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 362. Cf. também De Anima 433 b, 5-10.
93
PUENTE, F.R. Os Sentidos do Tempo em Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2001, p.326.
fragmentação no ser humano; a sua unificação representa a forma ideal da auto-
realização.
Percebe-se como o desejo, sendo uma potência (dynamis) da alma, desempenha na
concepção aristotélica uma função eticamente essencial. Jean Frère chega mesmo a
afirmar que a inteligência prática é o mais alto grau do desejo
94
, na medida em que, ao
aspirar a uma meta, ela deseja ordenar meios em vista de um fim, determinando assim a
praxis. Contudo, parece necessário enfatizar a distinção entre inteligência prática e
desejo, mesmo reconhecendo o entrelaçamento profundo entre ambos, pois afinal a
sabedoria prática é uma virtude intelectual, que repita-se fornece a regra
indispensável ao desejo, ao passo que o resultado exemplar obtido mediante essa
submissão do desejo à razão, estampada na mediania (mesotes), encarna-se nas diversas
virtudes éticas.
Na verdade, toda a reflexão ética grega encaminha-se no sentido de se constituir
como uma ciência da medida que tem como referência analógica a medicina. Aristóteles
encontrava na arte médica o modelo para desenvolver o método adequado ao objeto da
ética. A analogia terapêutica faz da sabedoria prática uma genuína forma de terapia,
construída em torno da noção de medida (metron) e orientada para a cura dos excessos
do desejo.
95
Nesse sentido, sendo o desejo uma das forças fundamentais da psyche,
podemos afirmar que a phronesis é constitutivamente uma forma de psyches therapeia.
Além da referência recíproca entre inteligência prática e desejo, também uma
interação mútua entre desejo e imaginação (phantasia), assinalada pelo parentesco
profundo entre a espontaneidade de ambos
96
, e é assim que desejo, imaginação e
inteligência prática encontram-se entrelaçados indissoluvelmente.
97
Se, como assinalado
anteriormente, o desejo é o princípio motor único da psyche, deve-se observar que sem
imaginação não desejo
98
, pois é a phantasia que representa o bem para o qual o
desejo tende, constituindo por isso o aspecto cognitivo presente no próprio desejo. A
imaginação, por seu turno, pode ser perceptiva (aisthetike) ou deliberativa (logistike), a
primeira modalidade sendo encontrada em outros animais, e a segunda sendo
94
Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 357.
95
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 45-46. Ver também as obras de Pedro Laín-Entralgo e Martha
Nussbaum que mencionamos em nossa introdução.
96
Cf. De Anima 427 b,14 – 429 a, 9. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 353.
97
Cf. De Anima 433 a, 13-21. Cf. FRÈRE, Les Grecs et le Désir de l’Être, p. 361.
98
Cf. De Anima 433 b, 27-29. Cf. sobre esse tema ENGBERG-PEDERSEN, Aristotle’s Theory of Moral
Insight, p. 134-136.
prerrogativa humana, segundo Aristóteles
99
. A distinção faz eco àquela entre desejos
alógicos e desejos lógicos, e põe em evidência a comunicação das faculdades não
racionais com o nous.
Assim, no ato da deliberação confluem e encadeiam-se desejo, imaginação e
inteligência, que participam portanto da obra de phronesis. Ao implantar a sabedoria
prática tanto na inteligência (nous) quanto no desejo (orexis)
100
, Aristóteles a estabelece
como a mediadora privilegiada da auto-realização humana, que fornece o melhor
sentido para o grego “eudaimonia”. A própria definição aristotélica do ser humano pelo
princípio da decisão racional (prohairesis), na medida em que esta é simultaneamente
intelecto desejante (orektikos nous) e desejo refletido (orexis dianoetike), permite
entrever um aspecto da unidade antropológica fundamental a partir da qual a sabedoria
prática realiza sua atividade.
1.4 Phronesis e Empeiria
Tendo sido apresentada até aqui em sua face interna ou subjetiva, por assim dizer, é
necessário agora voltarmo-nos para a outra face da sabedoria prática, que diz respeito às
circunstâncias e condições objetivas de seu exercício. As situações humanas, que
compete à sabedoria prática apreciar e julgar, caracterizam-se por uma indeterminação
essencial que pode ser resumida numa palavra: contingência
101
. Aristóteles apresenta o
domínio em que se exerce a sabedoria prática como o daquilo que pode ser diferente do
que é, ou seja, aquilo que não é necessário e que não pode, por isso, tornar-se objeto de
ciência (episteme). O contingente está submetido à temporalidade, e assim pode-se
compreender que a concepção da sabedoria prática é solidária de uma concepção do
tempo ou, como diz Pierre Aubenque, de uma ontologia da contingência.
102
Disso resulta que uma condição fundamental para a possibilidade concreta da
sabedoria prática é a pressuposição de algum tipo de inteligibilidade do contingente. De
fato, se o contingente não possui a inteligibilidade mais “forte” que caracteriza o
necessário, objeto da theoria e de sua episteme, nem por isso ele é ininteligível,
99
Cf. De Anima 433 b, 29-30 e 434 a, 5-10.
100
A razão é a causa formal, o desejo a causa eficiente e o bem a causa final do agir ético. Cf. VAZ,
Escritos de Filosofia II, p. 120-123.
101
Para um exame mais preciso das noções diferenciadas de contingência e indeterminação em
Aristóteles, ver ZINGANO, M. “Particularismo e Universalismo na Ética Aristotélica”, in Analytica, vol.
1, nº 3, 1996, p. 75-100.
102
Cf. AUBENQUE,P. A Prudência em Aristóteles. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 110 ss.
podendo portanto ser objeto do conhecimento próprio à doxa e à phronesis. É esta
inteligibilidade mais “fraca” (daquilo que se verifica não sempre, tou aei, mas muitas
vezes, tou pollakis) que atravessa o campo ético, constituindo a racionalidade da praxis
e assinalando a presença do logos regulador e ordenador no domínio contingente das
coisas humanas.
O que “enfraquece” a inteligibilidade das coisas humanas não é uma ausência de lei,
que significaria simplesmente anulação de qualquer inteligibilidade, mas a distância
insuprimível entre a lei em sua generalidade e a realização da mesma na complexidade
infinita de relações particulares. Dito de outra forma: a determinação do particular pela
lei geral se sempre pela interveniência de múltiplos fatores variáveis que conformam
a diversidade das circunstâncias. Contudo, no fundo de toda a variabilidade das
situações e circunstâncias ainda persiste a determinação pelo bem como fim, entendido
como telos imanente. A relativização deste pela contingência não implica na sua
pulverização, como acontece em um relativismo que simplesmente nega a objetividade
do finalismo do bem, a qual é consubstancial à abordagem naturalista e metafísica em
Aristóteles. A “boa ação” (eupraxia) constitui a felicidade (eudaimonia), que é o fim
(telos) absoluto do ser humano, ou, em outros termos, o seu bem supremo. Desse
modo, o bem, que assume infinitas faces de acordo com as circunstâncias, continua
sendo, na teoria aristotélica da praxis, o pólo objetivo que sustenta a inteligibilidade das
coisas humanas, iluminando todo o campo da decisão e suportando a racionalidade da
praxis.
103
A sabedoria prática refere-se a essa inteligibilidade do contingente pela mediação
decisiva da experiência (empeiria). Na verdade, a articulação à empeiria é
absolutamente crucial para se compreender a operação da phronesis. Entendida como a
memória atual de muitos casos particulares semelhantes, é a experiência que permite à
sabedoria prática avaliar a situação particular em vista da decisão. Por sua vez, o que
torna semelhantes os casos particulares é a forma de universalidade implícita, imanente
ao dinamismo do bem, que é captada na e pela experiência, e formulada no âmbito da
razão pela sabedoria prática.
103
Aristóteles alinha-se à tradição ontológica antiga que afirma a identidade entre o ser e o bem (ens et
bonum convertuntur, segundo a fórmula escolástica medieval). No interior dessa tradição, o dever-ser,
relativizado pelas circunstâncias, inscreve-se no horizonte maior do ser e estampa, ao mesmo tempo, a
não coincidência do imperfeito com o bem e sua tendência – implantada na forma como sua causa final
à atualização plena no ser. Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 135-137.
A correspondência entre experiência e memória põe a claro a necessária vinculação
entre empeiria e o tempo. Não é outra a razão de Aristóteles insistir em que não se pode
ser sábio quando se é jovem, pois a experiência, componente fundamental da sabedoria
prática, desenrola-se no tempo, sendo-lhe correlativa. No entanto, deve-se observar que
a temporalidade própria à empeiria é eminentemente qualitativa, uma vez que supõe o
reconhecimento e a distinção de diferenças e semelhanças nas configurações que
compõem as circunstâncias vividas, registradas na memória e comparativamente
organizadas na construção da própria experiência. Em outros termos, não aristotélicos: a
experiência não se adquire por mero acúmulo de eventos experimentados na seqüência
cronológica de um tempo físico quantitativo, mas pela organização desses eventos em
unidades significativas do tempo vivido, nas quais as relações ou o entrelaçamento entre
os diversos elementos que compõem uma dada configuração empírica, única e ao
mesmo tempo comparável por semelhança a outras, desempenham um papel essencial.
Além disso, como sustenta o dinamarquês Troels Engberg-Pedersen, as virtudes éticas,
adquiridas por habituação, incluem experiência, e o próprio processo de habituação é
um modo de se adquirir empeiria (ao mesmo tempo em que o desejo está sendo
conformado à medida dos valores próprios do ethos).
104
O tempo próprio à experiência e à ação que nela se apoia é o kairos dos antigos,
precisamente o tempo entendido em sua dimensão qualitativa, o “bem no tempo” (en
chrono).
105
É ele que participa da deliberação presente comandada pela sabedoria
prática, sob a forma da ocasião apropriada ou momento oportuno para a realização de
um ato com vistas a determinado fim, constituindo-se pois em um ingrediente
fundamental das circunstâncias contingentes a serem consideradas pelo phronimos na
determinação de sua ação.
106
Em um outro sentido, mais amplo, kairos indica não
apenas uma circunstância temporal estrita, mas “a circunstância em todo o seu
104
Cf. ENGBERG-PEDERSEN, Aristotle’s Theory of Moral Insight, p. 218. A propósito da analogia
entre o hábito e a experiência, ver PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 311.
105
Cf. Ética a Nicômaco 1096 a 26, e o comentário em PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles,
p. 319.
106
Após avaliar a natureza de um dado kairós, o sábio deve decidir “se é recomendável proceder
imediatamente à sua fruição ou antes se é desejável buscar ulteriormente outras ocasiões (ou melhor: uma
ocasião única) mais proveitosas ainda, situadas em um futuro direta ou indiretamente determinável.” E.
MOUTSOPOULOS, “La fonction du kairos selon Aristote”, in Revue Philosophique, 1985, n. 2, p. 224-
225. Segundo Moutsopoulos, para Aristóteles a temporalidade seria “reestruturável segundo um critério
determinável e determinado, a saber o kairos, zona simultaneamente modal e nodal, que colore,
axiologicamente, por sua própria nuance, a realidade objetiva, como também a realidade dos vividos”,
exibindo assim a “aplicabilidade funcional (...) do intencional ao objetivo, nos limites do campo de
atividade da consciência”. Op. cit., p. 226. Tal aplicabilidade será fundante do “espaço hermenêutico”
antigo. Ver adiante, capítulo segundo.
complexo de variáveis temporais, locais, relacionais e finais”
107
, assinalando em uma
situação concreta “a totalidade, a plenitude implícita a cada momento de uma ação”
108
,
o que torna explícita a significação axiológica da temporalidade.
A correspondência entre a ação humana e o tempo propício vem relativizar o bem
humano, fazendo com que ele possa ser concretamente determinado no contexto
complexo de uma situação particular. Dessa correspondência nasce para a sabedoria
prática a sua tarefa específica, que consiste no difícil problema de adaptação recíproca
entre os meios disponíveis no momento presente e os fins prescritos pelo eidos humano
e apresentados nas virtudes éticas
109
.
A contingência temporal implica, assim, o sacrifício inevitável de uma parte do bem
integral em favor de outra, introduzindo um mal menor, como agudamente observa
Pierre Aubenque
110
. A indeterminação do mundo, sendo por um lado, a “forma
propriamente aristotélica do mal”
111
, abre por outro lado o espaço especificamente
humano da deliberação e da ação. Se a praxis é necessariamente relativizada pelo bem
humano, e se este por seu turno se relativiza pelas circunstâncias, então a virtude da
sabedoria prática pode ser pensada como uma imersão num mundo afetado por uma
espécie de inacabamento ou de indefinição, que representa um convite à ação humana
no sentido de determiná-lo e conduzi-lo à meta da perfeição segundo o orthos logos.
Vê-se assim que a sabedoria prática observa tanto a indefinição ou desmedida das
paixões e desejos quanto a indeterminação do mundo para realizar sua obra própria. Em
face da contingência que afeta a esfera das “coisas humanas” incluindo os elementos
constitutivos da situação, a phronesis ordena-se pela sophia, contempladora da ordem
racional reinante na parte celeste do cosmos, para então implementar no tempo o ideal
moral, que consiste numa espécie de imitação concretizada daquela ordem cósmica
onde impera a razão
112
. A indeterminação das circunstâncias, que favorece a
107
PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 321.
108
Ibid., p. 322.
109
“A ação será virtuosa quando ela ocorrer no momento oportuno (kairos), ou seja, não podemos afirmar
para muitos tipos de ação que elas são em sentido absoluto (aplos) virtuosas ou não, sem analisá-las em
sua facticidade constitutiva.” PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 320.
110
Cf. AUBENQUE, A Prudência em Aristóteles, p. 159.
111
AUBENQUE, A Prudência em Aristóteles, p. 144. Cf. Metafísica, Θ, 9, 1051 a 17-21. Cabe notar,
contudo, que o mal definido negativamente como privação de determinação é, por outro lado, carência
que aspira à determinação pela forma, o que significa aspiração ao ser pleno, e portanto ao bem. A
prioridade ontológica da forma sobre a matéria exclui por princípio qualquer modalidade de dualismo
metafísico que pretendesse ver na matéria um princípio positivo do mal.
112
Aristóteles à idéia de contemplação (theoria) sua forma clássica, mas deixa sua doutrina inacabada
ou mesmo indefinida, o que abre espaço para a controvérsia das interpretações. Se a contemplação é
inequivocamente apresentada como o modo de vida mais elevado (Cf. Ética a Nicômaco, X), seu objeto
determinação pelo acaso (tyche), é também o fundamento da ocasião propícia (kairos)
que se abre à deliberação humana para a determinação pela razão
113
.
Em resumo: a sabedoria prática, sendo uma virtude intelectual, pressupõe contudo
tanto o desejo e a imaginação quanto a experiência, que são não-racionais, em sentido
técnico aristotélico, apesar de não serem irracionais (o que tornaria o desejo
impermeável à razão prática, a imaginação um estorvo a mais para a repressão dos
desejos, e a experiência desprovida de uma forma de conhecimento racionalmente
formulável). A realização do fim absoluto do ser humano a eudaimonia
formalmente determinado pelo eidos efetiva-se pela interpenetração das faculdades
anímicas que misturam profundamente suas raízes na psyche. Do jogo entre a
determinação eidética e a contingência da situação, mediado pela ação conjunta de
razão, desejo, imaginação e experiência, resulta a diversidade de formas humanas de
auto-realização, que têm em comum a razoabilidade que pode lhes conferir a presença
da sabedoria prática. E, finalmente, toda a compreensão aristotélica do agir humano
inscreve-se no marco do objetivismo antigo, que se caracteriza pela lei da mútua
reflexão entre kosmos e psyche, a qual rege por extensão a operação da phronesis.
pode ser o deus da Metafísica, ou o próprio intelecto humano entendido com “deus interior” (cf. Ética a
Eudemo, VIII, 3, 1249 b16), ou ainda o kosmos em sua ordem divina (Cf. BRAGUE, La Sagesse du
Monde, p. 143-144). A opção interpretativa que considera o kosmos como objeto de contemplação tem
como conseqüência alinhar o pensamento aristotélico com as correntes dominantes na Antigüidade sobre
esse ponto: a cosmologia tem uma dimensão ética, e, reciprocamente, a tarefa de conformar as situações
humanas segundo o modelo cósmico, que estampa visivelmente a realidade do bem, confere à ética uma
dimensão cosmológica. Rémi Brague diverge de Aubenque quanto a esse ponto. De fato, na concepção
aristotélica de phronesis não seria apropriado falarmos de uma imitação do cosmos no sentido restrito que
Brague dá a essa expressão: diante da infinita diversidade das situações contingentes que circunscrevem o
espaço da vida moral, a constância das revoluções celestes não poderia fornecer regras satisfatórias para
as decisões particulares no âmbito das coisas humanas. Porém, parece-nos exagerado dizer que as
escolhas da sabedoria prática “não repousam em nada sobre a estrutura do universo físico” (BRAGUE, La
Sagesse du Monde, p. 177 e nota 146). Pois a articulação entre antropologia, ontologia e ética em
Aristóteles parece-nos evidente, e a consideração dos fins humanos, referidos à essência, na determinação
da ação, inscreve-se num cenário maior de afirmação da ordem objetiva que sustenta a concepção
orgânica de natureza e de kosmos própria do espírito grego, ao qual evidentemente Aristóteles não faz
exceção (lembremos, de passagem, que a antropologia do De anima é um capítulo integrante da física do
Estagirita, sendo pressuposta em toda sua reflexão ética). É por não perceber ou não concordar que a
“natureza humana”, elucidada pela ontologia do humano” ou antropologia filosófica, é verdadeiramente
natureza, embora com sua conformação única, que Brague não afirma que “realizar concretamente a
perfeição da humanidade do homem por uma praxis que torna possível o desdobramento dessa essência” (
La Sagesse du Monde, p. 136) significa no fundo uma imitação do cosmos entendido como ordem. Isso o
levaria a ampliar a sua noção de “sabedoria do mundo” na direção da “consciência smica” de Pierre
Hadot.
113
Aubenque observa como aqui uma reabilitação antropológica do tempo, em face da sua
desvalorização sica como degradação da eternidade”: a estrutura contingente do kairos torna-o um
“auxiliar benevolente” da ação humana. Cf. A Prudência em Aristóteles, p. 170. Cf. Ética a Nicômaco, I,
7,1098b 24. No mesmo sentido, ver PUENTE, Os Sentidos do Tempo em Aristóteles, p. 327.
2. Modernidade: definição e descrição
114
Pelo exposto, pode-se perceber como a noção de sabedoria prática guarda vínculos
profundos e estruturais com o universo espiritual clássico. A reorganização radical desse
universo, da qual surge a modernidade, atinge em cheio o domínio das “coisas
humanas”, provocando uma reformulação drástica da teoria do agir humano, ao termo
da qual a razão prática será desenhada em perspectiva distinta daquela que levou
Aristóteles a estabelecer a estrutura conceptual da ética antiga. Os fundamentos do
campo da racionalidade da praxis serão revolvidos, e quando seus novos contornos
surgirem não haverá o mesmo lugar nem a mesma função para a sabedoria prática,
que será então definida de modo significativamente distinto da sua versão antiga.
Estando o destino e as perspectivas da phronesis ligados a essa experiência radical, é
preciso equacionar a sua situação por referência ao espírito que inaugura o novo regime
mental que é designado pelo termo “modernidade”.
A literatura que tenta abarcar o fenômeno da modernidade é vastíssima e sobretudo
complexa, como o próprio objeto sobre o qual ela versa. Muitas são as formas de se
abordar esse tema, e o seu exame compreensivo torna-se cada vez mais amplo, exigindo
um esforço necessariamente interdisciplinar. Por outro lado, o uso indiscriminado da
noção de modernidade traz consigo um desgaste da mesma, a qual tende assim à
imprecisão e ao esvaziamento que marcam o destino dos conceitos que se tornam
chavões dentro de um jargão vulgarizado. Assim, de partida é conveniente e necessário
delimitar o uso específico que faremos da noção de modernidade.
Tomada em sua acepção propriamente filosófica, que é a que nos interessa aqui,
“modernidade” é uma categoria que exprime uma forma típica de leitura do tempo pela
razão. O exame da etimologia do termo nos fornece um ponto de partida valioso para a
captação dessa forma. Substantivo abstrato, “modernidade” deriva do adjetivo
“moderno”, que por sua vez remonta ao advérbio latino modo”, que significa “há
pouco” ou recentemente”. Assim, etimologicamente, “moderno” exprime a qualidade
daquilo que aconteceu no tempo recente, enquanto “modernidade” refere-se ao caráter
114
Baseamo-nos nessa seção nos seguintes textos de H.C.L.Vaz: “Ética e Razão Moderna”, in Síntese
Nova Fase, v.22, n. 68, 1995, p. 53-84; “Fenomenologia e axiologia da modernidade”, in Escritos de
Filosofia VII – Raízes da Modernidade, p. 11-30; e Escritos de Filosofia III – Filosofia e Cultura, p. 225-
230.
ou essência que determina tudo o que se diz “moderno”, por contraposição àquilo que
determina o que se diz “antigo”, ou então “tradicional”. Portanto, o que o exame
preliminar da etimologia de “modernidade” nos revela é a pressuposição de uma
diferença ao mesmo tempo qualitativa e essencial na representação do tempo.
Essa diferença corresponde a um certo privilégio conferido à experiência presente,
no sentido de que o tempo presente liberta-se da primazia do “antigo” ou “tradicional”.
O passado deixa de ser uma instância normativa auto-legitimadora para submeter-se a
uma outra estrutura axiológica, inaugurada pela novidade qualitativa atribuída ao tempo
presente, diante da qual a tradição precisa ser ou justificada, ou desqualificada
criticamente, vale dizer: racionalmente. Desta forma, percebe-se como existe uma
vinculação intrínseca entre modernidade e razão crítica. A normatividade desloca-se da
tradição para a razão: para uma consciência moderna, a manutenção da normatividade
tradicional pode ser entendida como recuperação reflexiva, assim como a sua
desqualificação só pode legitimar-se como superação crítica.
Neste sentido fundamental e abrangente, pode-se dizer que uma equivalência
conceptual entre modernidade e filosofia, o que explica a razão de a experiência
moderna ser genuinamente ocidental, pois somente a cultura ocidental, a partir da
experiência grega, colocou a razão no centro de seu universo simbólico, definindo-se
como civilização da razão. Assim, podemos acolher a definição proposta por Henrique
Vaz: modernidade significa a reestruturação modal na representação do tempo, em que
este passa a ser representado como uma sucessão de modos ou de atualidades,
constituindo segmentos temporais privilegiados pela forma de Razão que neles se
exerce.”
115
Dado que a razão crítico-filosófica pode assumir várias formas, segue-se que haverá
tantas formas de modernidade quantas forem as formas de razão que historicamente
ocuparem o centro do sistema simbólico-cultural. Em outras palavras: as variações e
modalidades distintas de razão crítica obrigam-nos a falar de modernidades, no plural,
para depois qualificarmos a modernidade de que tratamos segundo a forma hegemônica
de razão que a especifica. A história da razão filosófica pode ser encarada, pois, como
uma sucessão de modernidades distintas.
A modernidade que nos interessa, aquela que virá excluir a forma clássica de
sabedoria prática de seu sistema de razões, é a que recebe de Descartes a sua certidão de
115
VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 229.
nascimento, podendo ser chamada de modernidade moderna ou pós-renascentista (em
que o qualificativo refere-se a uma cronologia histórica ou a um movimento da cultura)
ou então de modernidade pós-cristã (qualificada pela referência à substituição de um
universo ético fundamental). A partir de agora, salvo indicação em contrário, referir-
nos-emos à modernidade moderna, por comodidade, simplesmente como
“modernidade”.
116
Segundo a definição apresentada, uma fenomenologia da modernidade deve expor
os traços distintivos da forma específica de Razão por referência à qual se organiza o
universo da cultura moderna. O evento especulativo que a chave de acesso e
compreensão a toda a modernidade pode ser enunciado de forma concisa: no centro do
novo sistema de razões instala-se o Eu legislador. A metafísica da subjetividade assim
inaugurada, substituindo a metafísica clássica do ser, dará o tom fundamental de toda a
nova mentalidade que se constituirá por aluviões sucessivos a partir da Renascença.
Na antevéspera dessa revolução encontramos a crise institucional que sacode a
Universidade de Paris no último quartel do século XIII, selando o fim do projeto de
conciliação entre razão e que define toda a cultura teológica medieval.
117
Por um
paradoxo que a visão histórica pode apreender, a dissolução desse projeto será feita
em perspectiva teológica e com a finalidade precípua de salvaguardar o espaço da
diante da ameaça pressentida no impropriamente chamado “averroísmo latino”. A
possibilidade de uma restauração do naturalismo necessitarista antigo, em concorrência
e mesmo em oposição ao modo de vida cristão, determina a condenação de 1277. Após
esse ato de autoridade, todo o pensamento teológico move-se no sentido de uma crítica
ao auxílio que a razão filosófica poderia prestar à compreensão da fé. Ao termo desse
processo, deflagrado em nome da defesa da fé, abre-se um espaço para um saber natural
não mais regido pelo programa da fides quaerens intellectum, saber que portanto fica
entregue a si mesmo e a objetivos que não dizem respeito à vida na fé.
Como foi assinalado por Étienne Gilson
118
, não é casual o fato de justamente nos
meios onde se realiza a dissociação entre razão e surgirem as primeiras descobertas e
116
Essa questão aparentemente terminológica oculta uma outra, polêmica, a respeito de avaliações críticas
da modernidade moderna, que não podem ser desqualificadas meramente como uma defesa regressiva e
restauradora de uma atitude “pré”-moderna. Esse tipo de desqualificação supõe uma espécie de
univocidade histórica da experiência moderna, que é recusada na própria definição de modernidade
aqui utilizada.
117
A esse respeito, ver as magistrais análises de Henrique Vaz em Escritos de Filosofia VII Raízes da
Modernidade.
118
Cf. GILSON, E. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 795.
fórmulas de uma nova forma de saber, que prenuncia o advento da moderna ciência
experimental, destinada a substituir a visão de mundo antiga, solidária da cosmologia e
ontologia aristotélicas, pela concepção mecanicista do universo infinito e homogêneo. A
destruição crítica dos pilares da metafísica aristotélica, levada a cabo principalmente nos
meios ockhamistas-nominalistas, prepara o terreno para a implantação moderna da
metafísica da subjetividade. Na verdade, no final do século XIII o conceito unívoco
de ser, formulado por Duns Escoto, aliado ao primado do esse objectivum, igualmente
de proveniência escotista, abre o caminho para a reorganização da ontologia em torno
ao pólo da representação e do Sujeito.
119
Seguindo esta linha de evolução, aberta com a inflexão que a condenação de 1277
impõe ao pensamento teológico tardo-medieval, as diversas racionalidades ou figuras da
Razão moderna encontrarão seu denominador comum na peculiar relação que se
estabelece gradualmente, num itinerário que conduz de Descartes a Hegel, entre os
pólos de inteligibilidade do Ser e do Sujeito. Ao passo que a Razão clássica inscrevia as
raízes do Cogito no Ser, distinguindo rigorosamente o domínio gico do metafísico e
subordinando aquele a este, a Razão moderna opera uma inversão em que o Ser passa a
ser absorvido pelo Cogito, resultando na logicização do Ser que caracteriza a metafísica
da subjetividade e que estará consumada na Ciência da Lógica hegeliana.
120
Essa inversão radical, por sua vez, sustenta-se sobre a primazia atribuída à
racionalidade gico-matemática, que se converte assim em racionalidade-matriz para
todo o universo da Razão moderna, segundo a qual se decide sobre a legitimidade
racional de qualquer saber que aspire a ser reconhecido como conhecimento válido. Em
face desse novo critério, adianta-se a racionalidade empírico-formal própria das ciências
da natureza assentadas sobre a originalidade do método experimental de fundamento
cartesiano-galileano. Assim, a inversão metafísica que está na base do sistema de razões
moderno faz com que se multipliquem e se ordenem as formas de racionalidade
119
Sobre esse ponto, cf. Escritos de Filosofia VII, p. 186-189; cf. ainda Escritos de Filosofia III, p. 156-
166. Para as antecipações medievais de linhas de desenvolvimento do pensamento filosófico posterior
(contemporâneo), veja-se também MURALT, A. de L`Enjeu de la Philosophie Médiévale: Études
Thomistes, Scotistes, Occamiennes et Grégoriennes. Leiden: E.J.Brill, 1991.
120
A linha de evolução da metafísica da subjetividade recapitula, em sentido inverso e evidentemente em
contexto hermenêutico distinto, a dialética da medida que conduzira, na Grécia clássica, da crise
instaurada pela sofística com a submissão das coisas à medida do homem (representada pela célebre
sentença de Protágoras) à submissão platônica do homem e das suas coisas a Deus (cf. Leis, IV, 716 c) e à
submissão aristotélica do cognoscente à medida da verdade das coisas (cf. Metafísica X, 1, 1053 a 30-b
3). Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p.38-39 nota 8. Cf. também Escritos de Filosofia III, p. 156-166.
segundo os procedimentos metódicos fundamentais da experimentação e da construção
lógico-matemática.
121
Como conseqüência dessa inversão, a Razão moderna será estruturalmente
operacional, unindo indissoluvelmente theoria e poiesis, e tornando-se potente
instrumento para a dominação seja da natureza, seja da sociedade e dos indivíduos.
Arrastada pela irresistível atração exercida pela racionalidade tecnocientífica, atração
exponenciada pelo fulgurante sucesso na dominação efetiva da natureza, a racionalidade
filosófica será como que aprisionada à interlocução privilegiada com a Nova Ciência,
com a qual ela compartilha a mesma base metafísica.
Correlativamente, a cosmologia que se apoiava sobre a ontologia clássica das
essências cede lugar a uma nova imagem de mundo, construída principalmente a partir
da revolução científica. A noção eminentemente grega de um kosmos qualitativamente
diferenciado, intrinsecamente regido por um finalismo universal, estampando
visivelmente o domínio da ordem, da razão, da beleza e da proporção
122
, é substituída
pela imagem do universo infinito e homogêneo, concebido segundo o modelo de uma
máquina, funcionando mecanicamente sem qualquer sentido imanente, limitando-se a
simplesmente existir. A idéia de natureza subjacente a esta imagem é traçada
exclusivamente de acordo com a racionalidade matemática. A nova concepção da
natureza, objeto de dominação e exploração com vistas à satisfação das necessidades
vitais humanas, não guarda nem remotamente qualquer traço de ligação com a antiga
e venerável physis, que na imutabilidade de sua ordem oferecia-se à theoria como o
fundamento de um nomos objetivo ao qual a praxis humana deveria referir-se.
123
A
cosmologia moderna vem assim neutralizar o mundo, tornando-o eticamente
indiferente.
121
Cf. VAZ, “Ética e Razão Moderna”, in Síntese Nova Fase, vol. 22, n. 68, 1995, p. 65.
122
A respeito da formação da idéia de kosmos na Grécia Antiga e a consolidação definitiva do seu sentido
de “mundo” no Timeu, veja-se BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 29-38.
123
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 163. Barbara Cassin ressalva que “a predominância da idéia de
natureza não poderia de modo algum caracterizar de maneira global a Antiguidade”, relembrando a crítica
ao conceito de natureza desenvolvida no movimento da sofística (Cf. CASSIN, B. Aristóteles e o Logos.
Contos da Fenomenologia Comum. São Paulo: Loyola, 1999, p. 124-127.) Ainda assim, é inegável a
existência dessa predominância ou, pelo menos, de uma função de destaque concedida ao conceito de
natureza na maior parte das escolas representativas da filosofia antiga, mesmo que com articulações e
sentidos diversos, atestando um preceito comum: não fazer violência à natureza e deixar-se guiar por ela.
E, como quer que seja, é no naturalismo grego antigo que os meios teológicos do século XIII vão
identificar o perigo a que se expõe a no ensino dos averroistae, estando pois historicamente ligado o
processo que abre caminho à modernidade com uma concepção de natureza de feitio antigo.
3. O ocaso da sabedoria prática clássica
A nova forma de razão moderna delimita um campo de inteligibilidade que não
compreende essências, nem passagem da potência ao ato. Sendo intrinsecamente
operacional, e atendo-se por isso ao modelo das relações lógico-matemáticas, ela se
aplicará adequadamente aos meios. A justificação racional dos fins, por outro lado,
enfrentará dificuldades consideráveis
124
após o abandono das estruturas constitutivas da
ética antiga e medieval. Em todo caso, a reformulação do sistema de razões segundo um
novo espírito vem redesenhar o cenário da teoria da praxis, exigindo uma redescrição de
sua racionalidade própria.
O projeto cartesiano de uma moral racional definitiva, construída segundo as regras
unívocas do método, expressa o fascínio dominador exercido por esse novo espírito
instaurador da modernidade, o mesmo que, animado pela intenção de uma objetividade
inexpugnável e imune às incertezas oriundas da intromissão indesejável da experiência
vivida, faz da matematização do real a chave-mestra para a obtenção de um novo saber.
O mundo que se descortina com este gesto instaurador corresponde àquele reino da
quantidade” do qual estão proscritas quaisquer formas de saber que se refiram a
qualidades, significados, correspondências, e, principalmente, finalidades: a teleologia
correlativa à noção antiga de physis é deixada para trás, junto com o seu fundamento
ontológico.
125
O universo e a natureza assim representados de nada servem ao homem em sua
tarefa de traçar o roteiro e captar a regra de sua auto-realização
126
. A ruptura dos laços
que enfeixavam homem e cosmos segundo a universalidade nomotética de um mesmo
logos faz com que a situação do ser humano no mundo sofra uma verdadeira revolução:
entre o homem antigo, espelho da ordem cósmica, que contempla o céu estrelado
perscrutando o modelo objetivo segundo o qual determinar sua conduta, e o homem
124
Alasdair MacIntyre chega a afirmar que o projeto iluminista de justificar a moralidade estava
necessariamente fadado ao fracasso. Cf. Depois da Virtude. Bauru: EDUSC, 2001, p. 73-114.
125
Por outro lado, a “morale par provision” cartesiana, tributária das correntes céticas anteriores e
contemporâneas a Descartes, atesta uma recuperação da relação eu-mundo que devolve ao cogito a
empiricidade que ele perdera, mesmo às custas do sacrifício da ciência e da metafísica. Cf. VIEGAS,
S.M. “De Descartes a Hegel: Destino da Moral Provisória”, in Síntese Política Econômica Social, n. 10,
1977, p. 45-60.
126
É bem verdade que, como lembra Henrique Vaz, “a persistência da imagem da grande Natureza
prolonga-se bem dentro dos tempos modernos basta lembrar Goethe e o romantismo alemão e assume
prevalentemente a forma moralizante do estoicismo.” (Escritos de Filosofia VI Ontologia e História, p.
175 nota 31.) Mas, em definitivo, a linha hegemônica de evolução da nova idade de cultura segue em
outra direção: a do “itinerário para a antropologia”(cf. ibid.) ou, mais precisamente, a da antroponomia.
moderno, construtor do universo científico, que se arrepia diante da indiferença dos
espaços infinitos à presença humana, cava-se um abismo de conseqüências decisivas,
indo do desenraizamento à náusea sartreana.
127
A eudaimonia antiga coincidia, de
alguma forma, com a harmonização com o cosmos, sendo portanto uma noção
constitutivamente afim à forma cosmocêntrica do pensamento antigo; a felicidade
moderna implica a dominação de uma natureza que não é vivida como matriz originária
do espaço humano, mas apenas como matéria a ser moldada na execução do projeto
baconiano de uma sociedade do bem-estar, inscrevendo-se assim na forma
antropocêntrica da mentalidade moderna.
128
No âmbito das “coisas humanas”, a centralidade que cabia anteriormente à sabedoria
prática será reivindicada pelo Eu construtor manejando a razão operacional, e a reunião
da praxis com a poiesis sob a primazia desta última significará a submissão do agir ético
às regras da produção da obra ad extra, desaparecendo assim a distinção clássica entre
praxis e techne. O aperfeiçoamento do agente segundo sua essência própria, finalidade
central da praxis antiga, é substituído pelo ideal do sucesso na realização de obras que
consolidem e confirmem o poder de dominação do Eu construtor. Desaparece, portanto,
a noção de energeia que, como fim imanente, coroava a perfeição da praxis: a própria
127
“Da física aristotélico-escolástica da ‘forma’ e da ‘tendência’ à física galileano-newtoniana da massa
inercial’ e da ‘força’, não é a evolução de um estilo de descrição dos fenômenos a outro que tem lugar.
São as linhas de uma visão do ‘mundo’, na qual o homem antigo se movia com segurança e familiaridade,
que se desfazem e, no novo espaço que então se abre, o homem moderno sente antes de tudo seu
desamparo como em G. Bruno, o estremecimento e a vertigem heróica ante o infinito da extensão
matemática.” VAZ, Escritos de Filosofia VI, p. 111. No capítulo XII (“O fim de um mundo”) de La
Sagesse du Monde, Rémi Brague apresenta uma descrição sucinta da nova sensibilidade moderna para a
situação humana dentro da nova imagem de mundo oferecida pela cosmografia científica. O aforismo 125
d’A Gaia Ciência expressa à excelência tal sensibilidade na fala do insensato, onde a nova situação – ou a
falta de lugar – do homem no mundo aparece associada ao tema conexo da morte de Deus.
128
“Para que a moral pudesse se desligar da cosmonomia e tentar se conceber exclusivamente como
‘autonomia’, era preciso que o cosmos tivesse perdido sua função constitutiva com relação ao sujeito
humano, e que ele não aparecesse mais senão como cenário indiferente onde se desdobra uma atividade
humana que lhe é, no fundo, estranha e que não lhe deve nada daquilo que a faz aceder a sua humanidade.
Ora, é exatamente o que aconteceu ao conceito de natureza com os Tempos modernos. A idéia de uma
imitação moral da natureza tornou-se impossível porque nosso conceito de natureza se modificou. O
mundo não pode mais nos ajudar a nos tornarmos humanos.” (BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 247.)
A sensibilidade que caracteriza várias das manifestações do movimento ecológico contemporâneo
expressa uma inconfundível nostalgia das formas de relação com a natureza perdidas com o advento da
modernidade. Sobre o tema das relações transformadas do homem contemporâneo com a natureza, em
sua incidência ética, conferir Hans JONAS. Le Principe Responsabilité: une Éthique pour la Civilisation
Technologique. Paris: Cerf, 1992, p. 17-30. A proposição de uma “consciência cósmica” por Pierre
Hadot, baseada em sua experiência pessoal e apontada na filosofia antiga (mas também em certos
momentos da modernidade), inscreve-se nessa mesma linha: “Não se trata aliás somente de uma
contemplação puramente estética, que tem sem vida um valor capital, mas de um exercício destinado a
nos fazer ultrapassar, uma vez mais, nosso ponto de vista parcial e unilateral, para nos fazer ver as coisas
e nossa existência pessoal em uma perspectiva cósmica e universal, de nos recolocar assim no
acontecimento imenso do universo, mas também, poder-se-ia dizer, no mistério insondável da existência.
É isso o que chamo consciência cósmica.” HADOT, La Philosophie comme Manière de Vivre, p. 158.
noção de auto-realização experimenta um deslocamento de sentido com a implantação
do regime mental moderno. De fim imanente visado pela atividade prática e coincidente
com a “vida feliz” (eudaimonia) ou o “bem viver” (eu zen), ela passa a significar o
sucesso conquistado pelo agente no domínio das circunstâncias da vida, coincidindo
com a perfeição de uma obra exterior ao próprio agente, índice seguro da assimilação da
atividade prática à atividade técnica ou poiética.
129
Isto significa nada menos que o esvaziamento da noção de virtude (arete) entendida
como perfeição e medida qualitativa da ação humana. A auto-suficiência do indivíduo
moderno, expressa filosoficamente no Cogito cartesiano e definitivamente
apresentada na autonomia do sujeito transcendental kantiano, difere profundamente da
autarqueia aristotélica, correlativa da praxis virtuosa do phronimos que se reporta à
norma imanente de seu agir. Um institui a partir de si mesmo os seus próprios fins; o
outro os lê na forma imanente da physis transposta para o registro do ethos para esculpi-
los em sua existência concreta como vida virtuosa.
Assim, a transposição da praxis para o domínio da poiesis e sua sujeição aos
imperativos desta resulta numa redefinição radical da própria noção de praxis, “que
passa a ser pensada segundo a categoria básica da igualdade aritmética que reflui sobre
os agentes, tornando-os iguais e diferenciados apenas pelo simples número com que são
contados na seqüência de uma sucessão numérica.”
130
Eis a premissa fundamental
para o nascimento do homem de massa da sociedade contemporânea, resultado
simultaneamente lógico e histórico da transferência do conhecimento normativo da ação
para o terreno do saber técnico.
Por outro lado, desfeito o seu vínculo à universalidade nomotética objetiva
fundamentada na physis, a praxis passa a referir-se tão-somente ao Eu legislador-
construtor, que se absolutiza como princípio gerador de valor e torna-se igualmente
instância axiológica universal, única capaz de legitimar os valores por ela mesma
criados. A conseqüência dessa mudança será o surgimento de um pragmatismo
generalizado
131
, dentro do qual a manutenção da referência à “prudência” (tradução
129
A técnica exercida em uma cultura cuja forma mental é cosmocêntrica restringia-se ao aspecto parcial
da comodidade e utilidade; a tecnologia que desponta na forma mental antropocêntrica moderna converte-
se em projeto fundamental de humanidade, enunciado na célebre passagem do Discurso do Método como
a determinação a “tornarmo-nos mestres e senhores da natureza”. A tecnologia moderna assume assim
uma função ética que não lhe cabia no mundo antigo e medieval. É essa mudança de estatuto que permite
compreender a absorção da praxis pela poiesis e a redefinição, não exclusivamente marxista, da praxis
como transformação técnica da natureza. Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 240-242.
130
VAZ. Escritos de Filosofia II, p. 111.
131
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 147.
latina correspondente à phronesis) escamoteará a diferença radical que a separa da
sabedoria prática clássica. Na verdade, a prudência moderna perde a dimensão ética que
definia a phronesis e assim passa a significar a mera astúcia ou habilidade empírica.
132
O triunfo da poiesis e a potência impressionante do novo conhecimento científico
dão à humanidade moderna os poderes de um “deus de prótese”, remodelando o mundo
objetivo como mundo das formas produzidas pela tecnociência, segundo o critério da
utilidade para a satisfação de suas necessidades. No novo mundo, a imagem de homem
correspondente traz as marcas do novo fundamento de inteligibilidade. A cosmonomia
antiga sancionava o modelo antropológico do microcosmos; a teonomia medieval,
suprassumindo-a, definia o ser humano pela relação de criaturalidade segundo a
fórmula da imago Dei; a antroponomia moderna exalta o homo faber, cuja expressão
emblemática pode ser encontrada na figura literária de Fausto. Genuíno mito da
modernidade, o solitário demiurgo de si mesmo deixa para trás Deus e a Natureza para
realizar seu projeto final de uma dominação ilimitada, capaz de criar um mundo
inteiramente construído por objetos técnicos, no qual ele se enclausura para finalmente
não divisar senão os muitos reflexos de si mesmo.
133
O confronto com o sujeito kantiano da razão prática pura, tão comum quanto
problemático
134
, é, não obstante, ilustrativo da distância que separa o universo ético do
phronimos daquele de seu sucessor moderno. Para determinar a decisão em uma
situação concreta, o sujeito moral kantiano despreza solenemente as circunstâncias
contingentes e orienta-se exclusivamente pela pureza do imperativo categórico, que lhe
indica com clareza a posição do dever, entendido como obediência à universalidade de
uma razão que não relativiza sua autonomia absoluta em favor da consideração das
condições que enredam os imperativos hipotéticos nas contingências da experiência.
o phronimos é por excelência o representante da ação enraizada no conhecimento da
experiência, e por isso situar-se-ia justamente no plano dos imperativos hipotéticos
(configurados como “regras de habilidade” ou “conselhos de prudência”), cuja
normatividade na dimensão propriamente moral é recusada por Kant.
132
Sobre o enfraquecimento dos termos “prudência” e “sabedoria” na modernidade, vejam-se os verbetes
“Prudência” e “Sabedoria e Temperança” in CANTO-SPERBER, M. Dicionário de Ética e Filosofia
Moral. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003 (assinados respectivamente por Pierre Pellegrin e Jean-
Louis Labarrière).
133
Para a correlação entre Fausto e o espírito da modernidade, veja-se BERMAN, M. Tudo o que é Sólido
Desmancha no Ar. A Aventura da Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 37-84.
134
A respeito dos problemas consideráveis nas aproximações Aristóteles-Kant, veja-se CASSIN,
“Aristóteles com e contra Kant: sobre a idéia de natureza humana”, in Aristóteles e o Logos, p. 87-127.
A incerteza que cerca a deliberação instruída pela sabedoria prática desaparece, em
tese, da decisão moral regida pelo dever puramente racional ditado pelo imperativo
categórico. Substituída pela austeridade da lei moral kantiana, a virtude perde seu lugar
central no novo universo da moral puramente racional sonhada por Descartes e
apresentada por Kant, no qual a sabedoria prática, verdadeira artífice da virtude, fica
exilada e mesmo rejeitada nas margens subjetivas do conhecimento prático
135
.
A vinculação estrutural da razão prática à experiência em sua pretensão de
determinar a vontade é criticada em Kant. A universalidade dos princípios morais
não conhece condições nem exceções ditadas pela experiência, e sua validade
soberana eleva-se por sobre a contingência das “coisas humanas”. A busca da
felicidade, posta como fim último para o agir ético na concepção antiga, vem, na
visão kantiana, conspurcar a pureza e a autonomia da vontade. O agente moral
kantiano representa a contrapartida prática do cientista-filósofo: este deixa para trás a
imagem antiga de um cosmos qualitativamente ordenado, aquele faz ruir os
fundamentos da ética grega, enraizada na experiência e constitutivamente
eudaimonista.
136
A universalidade categórica da razão prática kantiana, sendo no fundo homóloga à
da racionalidade-matriz de corte lógico-matemático, é essencialmente ideal e formal:
não apela à experiência, não se refere aos desejos humanos, não visa à felicidade (ainda
que a mereça), eleva-se por sobre as circunstâncias contingentes sendo rigorosamente
incondicional, tem validade absoluta para todos os seres racionais. Ao passo que o
phronimos antigo age como um genuíno articulador que visa a melhor conciliação
135
Kant reconhece, é bem verdade, que a “prudência” não é negligenciável, atribuindo-lhe um estatuto
“pragmático”, vale dizer, empírico. Contudo, na medida em que recusa a noção de auto-realização
segundo uma essência que determina os fins para o homem empírico, Kant recusa também a função
própria da sabedoria prática, que assim decai de sua dignidade clássica para a condição reduzida de mero
instrumento a serviço da utilidade “pragmática”. Definitivamente, perde-se a eminência moral que
caracterizava a phronesis antiga. Por isso, parece-nos equivocada a posição expressa por Pierre Pellegrin,
segundo a qual “em certo sentido, toda a ética aristotélica poderia ser anexada por Kant à sua própria
moral, com a condição de alojar esta ética na esfera pragmática, no sentido kantiano do termo.” (apud
CANTO-SPERBER, M. (org.) Dicionário de Ética e Filosofia Moral, verbete “prudência”). Pellegrin
deixa de considerar o fator decisivo para a ética de Aristóteles que é seu enraizamento na metafísica das
essências, totalmente alheia à filosofia kantiana, o que parece suficiente para impugnar a possibilidade de
anexação de toda a ética aristotélica pelo modelo kantiano. Para o tema da “prudência” em Kant, cf.
AUBENQUE, A Prudência em Aristóteles, p. 297-342.
136
“A cosmonomia não se deixa alinhar nem de um lado nem de outro da distinção tornada popular, e
emprestada a Kant, entre ‘autonomia’ e ‘heteronomia’. Ela escapa à alternativa assim posta – como aliás a
maior parte das morais concretas. É com efeito a inserção no cosmos que permite ao sujeito moral ser
autenticamente ele mesmo, ser verdadeiramente um autos. Essa conformidade não consiste portanto em
se dobrar a uma lei exterior, outra (heteros). Para o homem antigo e medieval, o kosmos não é justamente
uma instância exterior à qual tratar-se-ia de obedecer. Ou ele o é tanto quanto a lei moral kantiana. Para o
homem antigo, ‘o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim’ não se distinguem por nada de
essencial. Para nós, seres finitos, explica Kant, a lei moral deve aparecer como uma pressão exterior, quer
dizer, como dever, porque nós temos um lado ‘patológico’. Do mesmo modo, segundo o homem antigo, a
ordem do kosmos nos aparece como algo de exterior, porque nossa situação terrestre não nos permite um
ponto de vista favorável. É apenas a inserção no kosmos onde ele é mais plenamente ele mesmo
como, em estilo kantiano, a obediência à lei moral que nos confere uma autêntica liberdade.”
BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 178.
possível entre os vários e heterogêneos ingredientes que determinam a situação prática,
o sujeito moral kantiano comporta-se despoticamente ao desprezar o teor da situação e
de seus ingredientes para determinar sua ação exclusivamente segundo os princípios
universais e imutáveis da razão pura. O phronimos está imerso no mundo e no tempo; o
sujeito moral kantiano, em última análise, acedeu à atemporalidade própria do
imperativo categórico
137
.
Incidentalmente, o confronto com o modelo moral kantiano nos introduz em um
outro tema capital para a compreensão da mentalidade moderna: o da relação do homem
com o tempo, a qual é igualmente afetada pela “virada antropocêntrica” que abre a
modernidade. Na verdade, a nova representação moderna de tempo tem uma premissa
decisiva na substituição da concepção antiga do tempo cíclico da repetição pela
concepção bíblico-cristã de um tempo finito e histórico de estrutura linear e
evolutiva.
138
Contudo, a estrutura teleológica teonomicamente orientada da visão de
mundo cristã-medieval preservava essencialmente as valências qualitativas do tempo
que definiam o kairos e sua captação na experiência, apenas dotando-o de novos
referenciais de interpretação. Com a supressão daquela estrutura teleológica, a premissa
dava um inesperado fruto na forma da representação de um tempo histórico de estrutura
linear
139
, aberto à ação construtora humana mas desprovido de um fundamento
transcendente que lhe fornecesse as coordenadas para seu encaminhamento. Mais uma
vez, o Eu construtor chama a si a função de definidor do sentido da história, e acalenta a
idéia de um progresso regido pela razão esclarecida em sua maturidade, idéia que viria
desabar na época contemporânea diante do desmentido brutal da barbárie crescente que
revelou a sombra catastrófica e inextirpável do projeto iluminista.
140
137
Um cotejo com o modelo ético empirista também revelaria o fosso escavado entre o universo espiritual
moderno e o clássico no tocante à concepção do agir moral. Basta suprimir a referência ao eidos e à
energeia para tornar incomensuráveis a ação do phronimos e a do indivíduo moderno na concepção
empirista, em seus prolongamentos utilitaristas e emotivistas. Cf. a esse respeito MACINTYRE, Depois
da Virtude, p. 115-140.
138
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 139.
139
Ver “Cristianismo e Consciência Histórica”, in VAZ, Escritos de Filosofia VI, p. 165-217. O otimismo
da correspondência entre consciência histórica cristã e consciência histórica moderna, estabelecida
naquele texto de 1960, vai ser depois reavaliado como “unilateral” por Henrique Vaz. Cf. Escritos de
Filosofia I, p. 67, nota 82, e Escritos de Filosofia VII, p. 139-145. A inversão levada a cabo pelo processo
de imanentização do teológico no histórico, que investe o Eu construtor com as prerrogativas do Deus
Criador, aparecerá então em toda a sua significação, dando o sentido à pergunta que motiva a reflexão
vaziana: “pode o estudioso que se professa cristão permanecer dentro desse universo da tradição
filosófica ou deve, por honestidade intelectual, emigrar para o campo do fideísmo dogmático, de uma
praxeologia voluntarista, da evasão mística ou, simplesmente do sentimento religioso puramente
subjetivo?” Escritos de Filosofia VII, p. 7.
140
Para uma crítica das pretensões triunfalistas da razão iluminista, veja-se ADORNO, T. e
HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. Sobre a noção de
Por outro lado, essa nova modalidade de experiência do tempo é correlativa ao
processo de absorção da praxis pela esfera da poiesis e ao conseqüente desaparecimento
da noção de energeia. Isso significa que toda ação humana passa a ser definida em
termos de movimento (kinesis), tendo o seu fim posto fora de si mesma e projetado no
tempo futuro em que a obra se consuma. A perfeição da energeia, que coincidia com a
própria ação virtuosa no momento mesmo de sua execução, por ter seu fim próprio
imanente, fica suprimida e é substituída pela estrutura própria da poiesis, que implica o
encadeamento de movimentos parciais e fragmentários ao longo de um período de
tempo indeterminado, cobrando seu sentido ao termo da cadeia total de movimentos.
Se o desejo humano é eminentemente temporal, a nova situação de experiência do
tempo vem transpor a sua realização para um momento incerto localizado no futuro,
além de eliminar a normatividade axiológica do passado.
141
Perde-se com isso a
possibilidade de fruir no presente a eudaimonia que coroava a eupraxia.
142
A condição
moderna implica, portanto, uma insatisfação e uma inquietação que não encontram
resposta no tempo presente,
143
estando a origem e o sentido da atração exercida pelas
várias utopias modernas sobre a nova consciência.
Também no âmbito da representação do tempo físico manifestar-se-á a influência da
mesma linha de força que conduz à valorização da idéia de progresso, sob a forma da
tradução da “natureza” em termos de “história”, e do “tempo” em termos de
“evolução”
144
.O idealismo alemão tentará, especialmente com a majestosa construção
do Sistema hegeliano, recuperar o sentido do próprio tempo físico, subordinando-o à
dialética da manifestação do Espírito. O materialismo posterior, notadamente com o
evolucionismo darwiniano, recusará a solução hegeliana e definirá a evolução no tempo
em termos puramente mecânicos, atribuindo-a às forças de seleção e adaptação. E, por
fim, o triunfo da tecnociência como forma modeladora do universo social assinalará a
“progresso” em sentido antigo e moderno, vejam-se DODDS, E.R. The Ancient Concept of Progress and
Other Essays on Greek Literature and Belief. Oxford: Clarendon Press, 1973, e ROSSI, P. Naufrágios
sem Espectador. A Idéia de Progresso. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
141
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 16-21.
142
“O movimento é em si mesmo sempre incompleto (ateles), podendo ser dito completo de modo
parcial e não absoluto, pois ele só o será em vista de um limite (peras) que lhe é fixado externamente.” Já
“a natureza de uma atividade [energeia] é ser completa a cada instante. Nela não pode ocorrer um
movimento, pois este pressupõe grandeza e tempo (...) Sendo assim, é preciso que as atividades ocorram
instantaneamente como um todo. Elas não possuem uma estrutura extensa e diacrônica na qual início e
fim são necessariamente diversos entre si, como no caso dos movimentos, mas inextensa e sincrônica, ou
seja, uma estrutura na qual início e fim coincidem sem, contudo, contradizer-se.” PUENTE, Os Sentidos
do Tempo em Aristóteles, p. 317-318.
143
Mais uma vez, a personagem de Fausto expressa à perfeição a natureza do anseio moderno. Ver as
reflexões de Pierre Hadot em La Philosophie comme Manière de Vivre, p. 254-261.
144
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia VI, p. 175.
perda de referência visível de uma concepção qualitativa do tempo. O ocaso das grandes
utopias modernas anuncia então o fim da história.
4. Conseqüências
Se a sabedoria prática que caracteriza o phronimos corresponde a uma compreensão
antropocêntrica do mundo, mais antiga e mais profunda que a ciência, como assinalou
Éric Weil
145
, deve-se todavia observar que esse antropocentrismo difere radicalmente
daquele que se verifica na “virada antropocêntrica” moderna, na medida em que a
compreensão do mesmo centro e de tudo que se organiza a partir dele é profundamente
diversa nos dois casos. No primeiro, a relação originária do homem ao mundo se faz
segundo as categorias da pertença e do enraizamento, e assim a condução dos assuntos
humanos busca sempre uma conciliação com a totalidade que a razão interpreta e na
qual ela se inclui. No segundo caso, a relação do homem ao mundo se faz segundo as
categorias do estranhamento e da dominação, e é somente o arbítrio da vontade livre
que define os rumos da ação humana na modelação do mundo. A sabedoria prática no
primeiro caso é a laboriosa operária da sempre incerta e precária auto-realização
humana. A prudência no segundo é a conselheira de um Eu soberano enredado no
projeto de extensão ilimitada de seu próprio poder. Sua distinção, segundo uma
perspectiva clássica, corresponderia à oposição que separa o metron da hybris.
A efetivação concreta do projeto moderno de dominação da natureza atinge o
momento decisivo com a revolução industrial, responsável pela transformação
revolucionária das condições de vida do mundo moderno, que ingressa a partir de então
na forma capitalista de organização social. Urbanização em escala jamais vista, aumento
explosivo da densidade demográfica, das forças de produção, do volume de transações
comerciais, dos meios de comunicação e transporte, reconfiguração das relações de
trabalho, surgimento da sociedade de massas com todos os seus problemas,
artificialização crescente da vida: eis os aspectos visíveis da mudança radical que afeta a
face do mundo, num processo que se inicia na segunda metade do século XVIII, se
estende pelo século XIX, e atinge a sua consumação em nossa época. A racionalidade
matriz da modernidade mostra a que veio e exibe os frutos de sua potência espantosa.
145
Éric Weil, citado em PERINE, “Phrónesis: um conceito inoportuno?”, art. cit., p. 52.
No novo mundo por ela conformado, a tradição é atropelada pelo ímpeto irresistível das
novas forças históricas
146
, a função de doação de sentido exercida pela religião é posta
em xeque, a ciência se adianta como saber paradigmático que atrai para si a crença
anteriormente depositada em outros endereços. Privado das suas raízes tradicionais, ao
indivíduo não resta outra alternativa a não ser envolver-se e viver sob as novas
condições.
O antropocentrismo moderno, que guarda em si a chave de decifração de toda essa
revolução, promove uma cisão fatal entre o Eu transcendental, subjetividade universal
que constitui o verdadeiro centro do sistema de razões, e o indivíduo empírico, que se
vê capturado pela rede dos grandes sistemas do saber, da praxis e da técnica construídos
a partir daquele centro impessoal. Da perspectiva do eu empírico, a cisão se traduz num
dramático dilema: ou sacrificar sua pessoalidade para adequar-se àqueles sistemas que
configuram seu mundo
147
, ou preservar sua identidade pessoal sob a condição de criar
um espaço para realizá-la mas é então que sente todo o doloroso desamparo que lhe
cabe como herança e desafio por ter nascido neste mundo, e nesta época. Nenhum dos
sistemas objetivos próprios da subjetividade universal pode auxiliá-lo na tentativa de
recuperar o espaço da auto-realização, e a cisão se manifesta como inadequação entre o
sujeito empírico e o mundo objetivamente constituído pelas racionalidades
predominantes.
Assim, é tal cisão entre o Eu transcendental e o Eu empírico, agravada pela marcha
inexorável da modernidade, e a despeito do esforço especulativo hegeliano, que vai dar
origem àquele mal-estar referido na abertura deste capítulo. Como assinala Gilbert
Durand, o dilaceramento da consciência moderna resulta do divórcio entre uma
objetividade desumanizante e uma consciência desesperada entregue à derrelição,
sofrendo a aniqüilação das esperanças subjetivas, tanto individuais como coletivas.
148
Incapaz de compreender-se a si mesmo, frustrado em sua aspiração fundamental – a ser
verdade, como quer a ética antiga, que a “auto-realização segundo a sua essência”
corresponde a um impulso natural consubstancial à humanidade -, o indivíduo vê-se
146
Novamente, Goethe expressa esse conflito no destino trágico de Gretchen e na chacina de Filemon e
Báucis: o ímpeto insaciável que move Fausto destrói a tradição social, moral e religiosa à qual ele não
mais pertence.
147
“Na verdade, nunca como no espaço da modernidade o ser humano é permanentemente intimado a
tornar-se outro a partir de sua própria identidade penosamente conquistada, a arrancar-se de si mesmo, a
alienar-se, em suma, a tornar-se social.” VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 15-16.
148
Cf. DURAND, G. L’Âme Tigrée. Paris: Denöel, 1980, p. 13-14.
entregue a um sofrimento que jorra de uma cisão que ele igualmente não consegue
compreender, tornando-se um enigma para si mesmo.
Aqui, em definitivo, situa-se a função intransferível da filosofia: é a mirada
filosófica que permite articular teoricamente a compreensão em profundidade da
situação espiritual decorrente do regime mental moderno. Por outro lado, no entanto, a
própria atmosfera intelectual da modernidade faz com que seja perdida gradualmente a
concepção antiga de filosofia como modo de vida, como terapêutica, bem como seus
aspectos pessoais e comunitários,
149
concepção que se expressava em formas literárias
filosóficas como a consolação, o diálogo e a correspondência (epístola), que
atravessaram a Idade Média e atingiram a Renascença e mesmo a modernidade
nascente, para então serem descartadas em face do privilégio crescente dos tratados
sistemáticos. Esse movimento é correlativo à progressiva formalização e
institucionalização da filosofia, resultando simultaneamente na perda de contato com o
mundo da vida e na sua paradoxal transformação em um ofício altamente especializado
encerrado nos muros acadêmicos, em que a construção ou a análise de edifícios
conceituais se tornam fins em si mesmos. A relação dialógica, pessoal e comunitária,
essencial à concepção de filosofia como modo de vida, cede o lugar a um ensino que,
como acentua Pierre Hadot, ao se dirigir a todos não se dirige a ninguém.
150
Essa transformação da filosofia, em sua absorção pelo espírito universitário
adequado a uma sociedade industrial de massas, reflete-se no abandono pela reflexão
ética da questão prática fundamental: “Como devo viver?
151
, considerando-se a
149
Esta é a posição defendida por Pierre Hadot. Cf., por exemplo, La Philosophie comme Manière de
Vivre, p. 98-100. Poderíamos assinalar a importante exceção representada pelo desenvolvimento, após a
consumação do empreendimento hegeliano, da corrente existencialista que, de Kierkegaard a Heidegger,
tenta recuperar no plano propriamente filosófico a dimensão da filosofia como modo de vida. Igualmente
notável nesse sentido é o pensamento ímpar de Nietzsche que, significativamente, proclamava-se um
“psicólogo do futuro”. Também o romantismo alemão poderia ser arrolado como integrante desse
movimento, e a psicoterapia que nasce a partir do século XIX compartilha de muitas das aspirações
espirituais e intuições presentes nesse mesmo movimento, as quais reagem às carências produzidas pela
mentalidade formadora do mundo moderno.
150
Cf. La Philosophie comme Manière de Vivre, p. 99. Também Henrique Vaz assinala essa metamorfose
da filosofia: “Platão propõe um paradigma da vida filosófica que permaneceu elevado por longos séculos
sobre toda a tradição intelectual do Ocidente. No limiar da modernidade, nós o vemos ainda inspirar um
Descartes, um Spinoza, um Leibniz. Ele começa a desvanecer-se apenas quando a filosofia deixa de ser
vocação para tornar-se profissão e é obrigada a integrar-se nos enormes mecanismos burocráticos da
sociedade da produção e do consumo, dentro dos quais somos hoje forçados a praticá-la.” Escritos de
Filosofia III, p. 26.
151
É o que Julia Annas reconhece quando diz: “como a filosofia pode ajudar aqui? Se a questão surge de
tipos de pensar cotidianos sobre a própria vida e da insatisfação com a mesma, como poderemos ser
favorecidos encontrando a resposta pelos tipos muito abstratos de reflexão que a filosofia nos oferece? E
assim nós nos afastamos da expectativa de que a filosofia responda à questão, ‘Como deveria ser minha
vida?’ Uma grande parte da literatura moderna e da psicologia origina-se e gira em torno ao modo como
totalidade da existência humana ou a “vida completa”, questão que traduz o cerne de
todo o problema da auto-realização. Ora, é precisamente para responder a essa questão e
a esse problema que a sabedoria prática antiga se empenhava. Assim, não é de causar
surpresa o fato de, entre as tentativas de dar alívio ao sofrimento humano gerado pela
cisão entre subjetividade transcendental e subjetividade empírica, ressurgir, mesmo que
de forma camuflada, confusa e fragmentária, a figura desterrada da antiga phronesis. O
“recalcado da modernidade”, retornando para fazer-se ouvir sob a forma de sofrimento,
solicita novamente o socorro da sabedoria prática.
Decisiva para os rumos desse processo histórico é a crítica de Schelling ao Eu
transcendental de Fichte, e a ênfase sobre o inconsciente como fundamento básico da
existência do mundo e da consciência. A Naturphilosophie de Schelling, estabelecendo
a identidade absoluta do Espírito em nós e da Natureza fora de nós, promove
simultaneamente uma historicização da natureza e uma naturalização da história, o que
tem por conseqüência a restituição da significação filosófica da medicina e da atitude
terapêutica. Se as dificuldades da história apresentam-se como dificuldades da natureza,
então elas podem ser tratadas como doenças, e é isso o que será proposto pela medicina
influenciada pelo pensamento de Schelling, em suas intercessões com o Romantismo
alemão.
152
O conceito romântico de natureza, diferentemente do conceito científico e
positivista, presta-se a um uso ético-político em que ecoam alguns harmônicos
longínquos da visão de mundo em que se enraizava a sabedoria prática antiga,
as pessoas refletem sobre suas vidas e sobre se elas são como deveriam ser, mas o pensamento sobre a
própria vida não mais é visto como central à filosofia ética, pelo menos à teoria ética.” The Morality of
Happiness, p. 27. Posição que concorda notavelmente com a seguinte observação de C.G.Jung: “Também
existem clientes e não são poucos que, embora não sofram de uma neurose formulada clinicamente,
vão procurar o médico, devido a um conflito psíquico ou qualquer situação de vida difícil, e lhe falam de
problemas cuja resposta está diretamente ligada à discussão de questões de princípio. Tais pessoas, muitas
vezes, sabem perfeitamente bem – e isso o neurótico raramente ou nunca sabe que os seus conflitos são
provenientes do problema fundamental da atitude perante a vida, e que esta depende de certos princípios
ou idéias gerais, ou seja, de certas convicções religiosas, éticas ou filosóficas. Esses casos levam a
psicoterapia muito além do quadro da medicina somática ou da psiquiatria e a fazem penetrar em campos
que, no passado, eram reservados aos sacerdotes e aos filósofos. Hoje em dia, na medida em que estes
não cumprem com o seu papel, ou o público não mais confia em sua capacidade, as lacunas que o
psicoterapeuta eventualmente tem que preencher vão se tornando visíveis. Em outras palavras, vai ficando
cada vez mais claro o quanto a cura da alma [pelos sacerdotes], por um lado, e a filosofia, do outro, se
distanciaram da realidade da vida. A crítica que se faz ao sacerdote é que já se sabe de antemão o que ele
vai dizer, e ao filósofo, que o que diz não tem utilidade prática alguma. Por estranho que pareça, ambos
salvo raríssimas exceções têm uma solene antipatia pela psicologia de que estamos falando aqui.” OC
XVI, § 250.
152
Esta é a tese de Odo Marquard, exposta em Transzendentaler Idealismus, Romantische
Naturphilosophie, Psychoanalyse (Cologne: Verlag für Philosophie Jürgen Dinter, 1987), referida em
SHAMDASANI, S. Jung and the Making of Modern Psychology. The Dream of a Science. Cambridge:
C.U.P., 2003, p. 171-174.
modulados segundo a sensibilidade histórica moderna.
153
A Naturphilosophie romântica
retoma, mesmo quando sob a polarização “titânica” do espírito moderno, a intenção
originária que fez nascer a metafísica e à qual se referia, de vários modos, a sabedoria
prática: propor uma “inteligibilidade de conjunto que assegure a inserção harmoniosa do
homem no universo.”
154
Por isso, não é casual o fato de nos círculos de influência da
Naturphilosophie romântica encontrarmos antecipações de vários temas e conceitos que
ressurgirão na Tiefenpsychologie do século XX, pois em ambos os casos encontramos
tentativas de responder e superar um mesmo problema: as cisões e dilaceramentos
próprios da mentalidade moderna e do mal-estar na cultura que ela engendra.
155
Mesmo quando a influência romântica manifesta sobre a medicina desaparecer,
cedendo o lugar à ascendência do espírito positivista e à crença cientificista nas
promessas de progresso pressentidas no potencial da ciência, a demanda por alívio dos
sofrimentos concretos dos indivíduos continuará endereçada aos médicos, que este
153
Comenta Shamdasani: “Assim, não é acidental o fato de que muitos dos filósofos da natureza eram
médicos ou tinham relações explícitas com a medicina, nem que fisiologistas como Karl Friedrich
Burdach e Johannes Müller se engajavam com a filosofia da natureza. O desencantamento do conceito de
natureza da filosofia transcendental conferiu valor filosófico à atitude terapêutica, um desenvolvimento
que culminou na concepção de Friedrich Nietzsche do filósofo como um médico da cultura.” Jung and
the Making of Modern Psychology, p. 174.
154
GUSDORF, G. “Apologie pour la Naturphilosophie”, in Les Sciences Humaines et la Pensée
Occidentale, vol. 12: Le Savoir Romantique de La Nature. Paris: Payot, 1985, p. 330. Gusdorf defende o
projeto fundamental da Naturphilosophie contra sua desqualificação positivista e cientificista no século
XIX: “A questão não é somente a de saber se essa visão de mundo é contraditada por tal fato, tal
experiência sobre tal ponto particular. Antes, seria preciso se interrogar sobre a questão de saber se a
simples acumulação de verdades científicas devidamente controladas assegura ao ser humano uma base
suficiente no seio do universo.” (ibid.) Lembrando que a ciência “não nos ensina grande coisa sobre
nossas opções primeiras e últimas, nossas razões de ser e de sentir”, já que “a maior parte da existência
escapa às luzes do entendimento racional” por “obedecer a influências não justificáveis, a pulsões
pessoais ou sociais, a preconceitos sem fundamento”, Gusdorf declara: “Se a verdade científica não é
compatível com a existência dos homens, o único recurso é pôr-se em busca de uma verdade humana,
estranha às requisições de um saber inumano.” (ibid., p. 331) Tal recurso conduz em linha direta à
sabedoria prática, e é esta exigência que, no fundo, faz nascer a psicoterapia contemporânea.
155
“O caráter sintomal dos aspectos constitutivos da visão romântica recobre o largo espectro dos
fenômenos que indicam a mudança das estruturas da sociedade pré-industrial: a separação da arte quer do
artesanato quer do modo de produção industrial que se iniciava, o começo da dependência dos produtos
literários e artísticos às leis concorrenciais do mercado, a justificativa ideológica da religião como
instrumento legitimador do poder e da ordem – que denuncia o arrefecimento do sagrado -, o nivelamento
dos valores morais à regra benthamiana do maior interesse e da melhor utilidade, a marginalização social
de toda atividade improdutiva, o princípio fiduciário da moralidade burguesa, as relações possessivas da
moral doméstica e do casamento, a separação entre as esferas sexual e sentimental do amor, o filisteísmo
como atitude da maioria dominante em relação às letras e às artes desde então confinadas ao plano da
neutralizante respeitabilidade que constitui a cultura estética e, por fim, a mecanização e a
racionalização da vida, posteriormente as relações comunitárias dentro de uma civilização cada vez
menos rural e cada vez mais urbana. A estrutura social emergente dessas mudanças não oferecerá ao
processo de individualização condutos abertos para a vida coletiva. Tornada menos móvel e mais
estranha, como um mecanismo alheio à consciência, atrofiando a individualização à falta de
reajustamentos internos, a vida coletiva contribuirá para a alienação, a introjeção, a subjetividade e a
introversão das energias sublimadoras’ (K. Manheim).” NUNES, B. “A Visão Romântica”, in
GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1985
2
, p. 55.
sempre foi o compromisso básico da medicina, desde a Antigüidade. Por tal motivo,
também não é de se estranhar que parcela significativa desse “mal-estar da cultura”,
privado de resposta adequada no domínio da filosofia e da medicina institucionalizadas,
e reforçado pela defasagem e insuficiências da resposta religiosa em uma sociedade pós-
tradicional laicizada, insistir em bater às portas dos consultórios médicos na segunda
metade do século XIX, desconcertando o saber oficial de uma medicina então
plenamente conformada segundo os cânones metodológicos e epistemológicos das
ciências naturais. Do descompasso entre o compromisso de uma vocação, atenta às
necessidades de uma situação concreta, e os limites de um saber científico nascerá a
psicoterapia contemporânea, obrigada a forjar um discurso novo que traduza as
experiências de uma situação clínica peculiar, à qual não se aplicam as exigências do
método experimental nem os critérios de inteligibilidade da razão instrumental.
156
Esse
discurso a Psicologia padecerá assim, desde o início, da suspeita de ilegitimidade
epistemológica, que acirra a desconfortável dificuldade de definir a sua identidade
própria.
Se pusermos entre parênteses as retomadas exclusivamente teóricas no campo da
filosofia acadêmica, o destino concreto da phronesis, em meio à derrelição de um
mundo sem physis, sem Deus, organizado segundo uma racionalidade estritamente
operacional, será o de exilar-se junto a saberes não mais reconhecidos, por terem sua
legitimação racional indeferida segundo o critério da racionalidade-matriz. A sabedoria
prática deverá ser procurada, portanto, também ali para onde o anátema do “não-
científico” ou do “irracional” fizer confluir tudo o que não se adéqüe às regras do
Método. É nessa região obscura que plantará algumas de suas raízes mais fortes a
psicoterapia nascente. É dela também que extrairá sua seiva vital a psicologia analítica
de Carl Gustav Jung.
156
A obra clássica de Henri Ellenberger (The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of
Dynamic Psychiatry. Nova York: Basic Books, 1970) apresenta uma excelente reconstituição e
contextualização ampla das origens da psicoterapia contemporânea. Comentando sobre a forma de
organização peculiar da “psiquiatria dinâmica moderna”, que destoa da organização própria das ciências
naturais (enquanto corpo de conhecimentos relativamente unificado quanto ao objeto e ao método) e se
assemelha à forma própria das correntes filosóficas da Antigüidade, com sua divisão “em uma variedade
de ‘escolas’, cada uma com sua própria doutrina, seu próprio ensinamento, seu próprio treinamento”,
Ellenberger pergunta: “Tudo isso significa que a psicoterapia dinâmica é uma regressão na direção do
passado, ou, antes, que a abordagem científica se mostrou insuficiente para cobrir a inteira personalidade
do homem e deve ser suplementada por outras abordagens?(op. cit., p. 48) Ao termo de seu livro ele
sugere mais uma vez a analogia da psicoterapia com a filosofia (cf. op. cit., p. 895-897) e vislumbra uma
cooperação entre psicólogos e filósofos que permitiria “alcançar uma síntese superior e planejar um
enquadramento conceptual que faria justiça às rigorosas exigências da psicologia experimental e às
realidades psíquicas experimentadas pelos exploradores do inconsciente.” (op. cit., p. 897.)
CAPÍTULO SEGUNDO
EM BUSCA DO SENTIDO: O RESGATE DO SÍMBOLO
1. O problema: niilismo, sentido e símbolo
Uma das figuras mais originais produzida pela civilização moderna, e que ao
mesmo tempo estampa o paradoxo radical da modernidade, é o fenômeno do niilismo,
que se difunde insidiosamente por todas as esferas da cultura, participando dessa
atmosfera inconfundível para a qual foi cunhada a expressão “pós-modernidade”.
Fenômeno essencialmente destrutivo, segundo a perspectiva que se adote, o niilismo
afeta radicalmente a situação humana no mundo, minando as possibilidades de se
afirmar um sentido para a vida. O triunfo do absurdo, gerador da “consciência cínica”,
representa o mais temível desafio posto à definição da própria humanidade na cultura
contemporânea. Diante da arrasadora vaga do niilismo, a pergunta crucial que se coloca
para o homem do século XXI refere-se às razões de viver, vale dizer, ao sentido
possível, se não da vida, pelo menos para a vida.
Tomado em sua acepção existencial, o termo “sentido” indica um conteúdo
significado, exprimindo “a inteligibilidade do objeto de acordo com o vetor teleológico
no qual ele se situará na compreensão e na linguagem do sujeito”. Nesta acepção, o
sentido não se limita ao campo neutro da acepção lógico-linguística, que “cinge-se à
estrutura semântica da linguagem na sua qualidade de lugar das significações e, por
conseguinte, de lugar da elaboração do sentido”, mas a ultrapassa “para penetrar no
terreno da existência do sujeito, essencialmente orientada para os fins que ele se propõe
ou para os quais é naturalmente movido.”
157
Portanto, a possibilidade de um sentido, na
acepção existencial, supõe a realidade do conteúdo significado no interior da relação
com um sujeito que a intenciona a partir de suas necessidades existenciais.
É a interrogação acerca do sentido que anima a reflexão filosófica em suas
origens gregas, tendo como objeto o ser, como conteúdo significado pela linguagem,
sob a forma do cosmos, do ser humano, da vida, do divino. A orientação no mundo, a
partir da analogia metafórica com a orientação ou direção no espaço, articulando-se com
157
VAZ, H.C.L. Escritos de Filosofia III, p. 154.
a busca da vida melhor e, conseqüentemente, com a temática da arete e da eudaimonia,
converte-se na razão de ser da metafísica grega. Com a experiência socrática, a pergunta
pelo ser revela-se explicitamente pergunta pelo sentido,
158
integrando o momento
teórico ao momento prático da vida filosófica.
Sob o ângulo gnosiológico, o problema do sentido em sua acepção existencial
apresenta-se como o problema da representação do ser na inteligência, que desponta no
movimento da sofística e recebe da tradição platônico-aristotélica as formulações que
prevalecerão no período antigo e medieval. Sob o ângulo ético, ele desemboca no
problema da dialética do mensurante e do mensurado, que opunha Platão a
Protágoras, e que, a partir da refutação platônico-aristotélica do relativismo sofístico,
impor-se-á como um denominador comum no itinerário da ontologia clássica.
A transformação nominalista das coordenadas do universo mental do homem
ocidental, anunciando a passagem dos tempos medievais para os tempos modernos,
incide diretamente sobre os termos em que se formulava o problema do sentido,
impondo ao mesmo um novo sistema de referências intelectuais.
159
A subordinação da
representação subjetiva (entendida como o sinal formal que mediatiza a relação de
identidade intencional do ato cognoscitivo com o objeto extramental) ao ser (entendido
como face objetiva do objeto conhecido) é então invertida, e a representação (agora
entendida como norma ou medida da cognoscibilidade do objeto) passa a assumir o
centro do universo mental, triunfando sobre o ser. De Duns Escoto, com o primado do
esse objectivum (ou ser representado), a Descartes, com a centralidade fundacional do
Cogito, pode ser traçada a linha de evolução que conduz à modernidade e que redefine
os termos do problema do sentido.
160
Na dimensão ética, a primazia da representação sobre o ser, transformando o
modo como o homem pensa e interpreta a realidade, termina por fazer do sujeito a
origem exclusiva dos princípios axiológicos segundo os quais ele determina normas,
valores e fins, para atender às suas necessidades naturais ou artificiais. O espectro de
Protágoras reaparece encarnado na direção matricial da modernidade. Finalmente,
158
Cf. Escritos de Filosofia III , p. 155.
159
Cf. Escritos de Filosofia III, p. 156.
160
Henrique Vaz sustenta que essa linha de evolução atravessa a filosofia moderna até
atingir G. Frege e Edmund Husserl, alcançando “finalmente um estatuto quase canônico
no pensamento contemporâneo.” (Cf. Escritos de Filosofia III, p. 161.) Subentende-se
aqui a referência à “reviravolta linguística”, que parece ditar as condições de
legitimidade para o exercício da razão filosófica na contemporaneidade.
desqualificado o ser como raiz objetiva para a determinação da ação humana virtuosa,
resta à ética moderna a aposta de encontrar na imanência do sujeito seu novo
fundamento. O destino de tal aposta estampa-se na crise do sentido que acompanha a
irrupção do niilismo moderno.
161
Henrique Vaz, reconhecendo a face humana da
produção do sentido existencial na liberdade, não hesita contudo em atribuir o niilismo
contemporâneo, com suas manifestações mais explícitas na experiência da morte e da
violência, à lógica moderna da liberdade antropocêntrica:
“Mas a liberdade pode tornar-se, igualmente, o lugar da gênese do não-sentido quando o
movimento dialético que se estabelece entre ela e a razão inverte a direção do seu
movimento, e este passa a desenrolar-se totalmente na imanência do sujeito. Então, a
razão contemplativa do ser é substituída pela razão fabricadora do aparecer. Eis o
que está em jogo na virada antropocêntrica da cultura moderna. Nela, o modelo poiético
se dotado de função normativa não apenas para o conhecimento da natureza mas
também para o exercício da liberdade. Então o homem experimenta, de fato, uma
contradição vivida entre seu ser finito e situado e a pretensão ontológica, de alcance
infinito, de ser o criador absoluto do sentido. Essa contradição está instalada no cerne
do projeto da civilização moderna, e é ela que determina o seu destino. Esse destino se
torna hoje visível no projeto de uma civilização que dispõe de todos os instrumentos e
recursos materiais para assegurar a sua sobrevivência e seu progresso tecnológico, mas
assiste inquieta a uma crise profunda do seu universo simbólico e das suas próprias
161
Observada a partir da perspectiva platônico-aristotélica, a edificação da razão
moderna tendo como horizonte último o mundo dos fenômenos corresponde
necessariamente ao abandono do sentido, que tem o ser por referência, pelo não-
sentido, que tem por referência última a aparência ou seus homólogos modernos: a
representação e o fenômeno. A ruptura do vínculo com o ser tem como conseqüência
lógica, nessa perspectiva, o niilismo, que etimologicamente associa-se à imagem “de um
fio que se rompe, de um ser cujos vínculos se desfazem e que, por isso, se acha ou livre
ou à deriva”. (CANTO-SPERBER, Dicionário de Ética e Filosofia Moral, verbete
“niilismo”, assinado por Bertrand Saint-Sernin) Para um aprofundamento da noção de
niilismo, consultamos a seguinte bibliografia: SOUCHE-DAGUES, D. Nihilismes.
Paris: PUF, 1996; VOLPI, F. O Niilismo. São Paulo: Loyola, 1999; OTTONELLO, P.P.
Struttura e Forme del Nichilismo Europeo. I- Saggi Introduttivi. Roma: Japadre Editore,
1987; POSSENTI, V. Il Nichilismo Teoretico e la Morte della Metafisica”. Roma:
Armando Editore, 1995; MOLINARO, A. (Org.) Interpretazione del Nichilismo. Roma:
Herder/Università Lateranense, 1986; D’AGOSTINI, F. Lógica do Niilismo. Dialética,
Diferença, Recursividade. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002; PERINE, M.
“Niilismo ético e filosofia”, in Id. (org.) Diálogos com a Cultura Contemporânea.
Homenagem ao Padre Henrique C. de Lima Vaz, SJ. São Paulo: Loyola, 2003;
PERINE, M. “Violência e niilismo. O segredo e a tarefa da filosofia”, in Kriterion, vol.
XLIII, n. 106, p. 108-126, jul/dez 2002; BANNOUR,W. “Le Nihilisme”, in JACOB, A.
(org.) Encyclopèdie Philosophique Universelle. Tome I: L’Univers Philosophique.
Paris: PUF, 2000, p. 207-213; DESCHAMPS, J. “Nihilisme”, in AURROUX, S. (org.)
Encyclopèdie Philosophique Universelle. Tome II: Les Notions Philosophiques. Paris:
PUF, 2002, p. 1748-1750.
razões de ser. (...) O espetáculo que nos oferece a modernidade ao mesmo tempo
triunfante e em profunda crise, se a considerarmos desde o ponto de vista desse dever
ético fundamental que é, para o homem, a instauração do sentido na sua vida o dever
de realizar a verdade da sua existência -, é o desencadear-se aparentemente
incontrolável do não-sentido da violência e da morte: violência brutal das armas e dos
meios de destruição de massa, violência sutil da propaganda e da manipulação da
informação, violência cega do terrorismo, violência silenciosa e universal da injustiça
nas relações políticas, sociais e econômicas entre indivíduos, grupos e nações: e ao
termo desses e de outros caminhos da violência, o esgar insensato da ‘morte moderna’.
162
E, conseqüentemente, Henrique Vaz também aponta para a condição
fundamental posta para a superação dessa crise civilizacional:
“Muitas saídas são apontadas e algumas efetivamente tentadas para a crise da
modernidade. É permitido, porém, pensar que nela permaneceremos ou dela não
sairemos enquanto não se universalizar a experiência da inanidade do não-sentido do
humanismo antropocêntrico. Somente essa experiência poderá dirigir as energias
espirituais da civilização para o reencontro da fonte transcendente do sentido ou para
descobrir uma nova estrutura da experiência do Transcendente que se torne princípio
inspirador de uma realização mais autenticamente humana dos grandes ideais da
modernidade.”
163
Eis a senha que nos remete ao objeto de nossa análise: a psyches therapeia de
Carl Jung.
No centro das preocupações de Jung encontra-se justamente o problema do
sentido. Na verdade, é permitido afirmar que todo o seu pensamento organiza-se em
torno desse centro. Tal afirmação encontra referendo autorizado em Aniela Jaffé,
discípula, colaboradora e secretária de Jung, que em seu livro Der Mythus vom Sinn
sustenta que a busca de sentido foi o principal empenho do psicólogo suiço daí sua
tese de que o mito de Jung e, por extensão, da psicologia analítica, foi o mito do
sentido.
164
162
Escritos de Filosofia III, p. 172-174.
163
Escritos de Filosofia III, p. 174-175.
164
Cf. JAFFÉ, A. O Mito do Significado. São Paulo: Cultrix, 1989. Também James Hillman, ex-diretor de
estudos do Instituto C.G.Jung de Zurique e fundador da corrente pós-junguiana da Psicologia Arquetípica,
confirma a preeminência da questão do sentido no pensamento de Jung questão, aliás, de que Hillman
se desinteressa. Cf. HILLMAN, J. On Paranoia. Dallas: Spring Publications, 1988, p.33; cf. também
HILLMAN, J. Entre Vistas. São Paulo: Summus Editorial, 1989, p.66-67.
Muito cedo Jung deu-se conta de que o sofrimento psíquico de boa parte de seus
clientes não poderia ser classificado segundo as categorias nosológicas próprias da
psicopatologia psiquiátrica:
“Aproximadamente um terço dos meus clientes nem chega a sofrer de
neuroses clinicamente definidas. Estão doentes devido à falta de sentido e
conteúdo de suas vidas. Não me oponho a que se chame essa doença de
neurose contemporânea generalizada.” “o podemos esquecer que não se
trata de pessoas que ainda não tiveram oportunidade de provar sua utilidade
social, e sim, de pessoas que já não conseguem encontrar sua razão de ser
na utilidade social, e que se defrontam com a questão mais profunda e mais
perigosa do sentido da sua vida individual.
165
Reconhecendo que os conflitos dessas pessoas são “provenientes do problema
fundamental da atitude perante a vida”, implicando “convicções religiosas, éticas ou
filosóficas”, Jung percebe que “esses casos levam a psicoterapia muito além do quadro
da medicina somática ou da psiquiatria e a fazem penetrar em campos que, no passado,
eram reservados aos sacerdotes e aos filósofos.”
166
Assim, cabe à mentalidade da época
(Zeitgeist) e à visão de mundo (Weltanschauung) um papel decisivo na determinação do
equilíbrio psíquico, “sobretudo na nossa época de transformação revolucionária”, na
qual as causas mais profundas do sofrimento devem ser buscadas nos preconceitos
gerais herdados” e na “desorientação na moral e na visão de mundo”.
167
Em suma, para
Jung “a falta de sentido na vida é uma doença da alma cuja extensão completa e plenas
conseqüências nosso tempo até agora não começou a compreender.”
168
Jung compreendia a situação espiritual contemporânea à luz dos
desenvolvimentos históricos que forjaram a consciência moderna.
169
Concedia papel de
destaque às transformações decorrentes do cisma protestante, em sua incidência sobre a
forma da vida religiosa. Vale a pena citar uma passagem onde ele reflete longamente
sobre os efeitos dessas transformações:
“A iconoclastia da Reforma abriu literalmente uma fenda na muralha protetora das
imagens sagradas e desde então elas vêm desmoronando umas após as outras. (...) A
história da evolução do protestantismo é uma iconoclastia crônica. (...) O homem
165
OC XVI, § 83 e 103.
166
OC XVI, § 250.
167
OC XVI, § 22.
168
OC VIII, § 815.
169
Justa ou injustamente, ele censurava a Freud a falta de “perspectiva histórica”.
protestante foi relegado a uma falta de proteção de tal ordem que faria tremer o homem
natural. A consciência esclarecida nega-se a reconhecer tal fato, mas procura em
silêncio em outro lugar o que foi perdido na Europa. Buscam-se imagens efetivas,
formas de pensamento que tranqüilizem inquietações do coração e da mente e os
tesouros do Oriente são encontrados. (...) Hoje seria isto um problema? Será que
podemos vestir como uma roupa nova símbolos feitos, crescidos em solo exótico,
embebidos de sangue estrangeiro, falados em línguas estranhas, nutridos por uma
cultura estranha, evoluídos no contexto de uma história estranha? (...) Estou convencido
de que o depauperamento crescente dos símbolos tem um sentido. O desenvolvimento
dos símbolos tem uma conseqüência interior. (...) Tentar cobrir a nudez com suntuosas
vestes orientais, tal como fazem os teósofos, seria cometer uma infidelidade para com a
nossa história. Não caímos no estado de mendicância para depois posar como um rei
indiano de teatro. Mais vale, na minha opinião, reconhecer abertamente nossa pobreza
espiritual pela falta de mbolos, do que fingir possuir algo, de que decididamente não
somos os herdeiros legítimos. Certamente somos os herdeiros de direito da simbólica
cristã, mas de algum modo desperdiçamos essa herança. Deixamos cair em ruínas a casa
construída por nosso pai, e agora tentamos invadir palácios orientais que nossos pais
jamais conheceram. Aquele que perdeu os símbolos históricos e não pode contentar-se
com um substitutivo, encontra-se hoje em situação difícil: diante dele o nada bocejante,
do qual ele se aparta atemorizado. Pior: o vácuo é preenchido com absurdas idéias
político-sociais e todas elas se caracterizam por sua desolação espiritual. (...) Da mesma
forma que os votos de pobreza material, no cristianismo, afastavam a mente dos bens do
mundo, a pobreza espiritual renuncia às falsas riquezas do espírito, a fim de fugir não só
dos míseros resquícios de um grande passado, a “Igreja” protestante, mas também de
todas as seduções do perfume exótico, a fim de voltar a si mesma, onde à fria luz da
consciência, a desolação do mundo se expande até as estrelas. (...) Já herdamos essa
pobreza de nossos pais.”
170
aqui claramente, embora não nomeadamente, o reconhecimento da situação
espiritual típica do niilismo, e a aposta em um sentido – paradoxal - do mesmo.
171
Também à ciência cabe, na percepção de Jung, um papel importante na
conformação da peculiar situação do homem moderno, alienado do mundo por
intermédio de um desencantamento (Entzauberung) que essa mesma ciência vem
consumar:
“Por causa da mentalidade científica, nosso mundo se desumanizou. O homem está
isolado no cosmos. Já não está envolvido na natureza e perdeu sua participação
emocional nos acontecimentos naturais que até então tinham um sentido simbólico para
ele. O trovão não é a voz de Deus nem o raio seu projétil vingador. Nenhum rio
170
OC IX-1, §§ 22-30. Como Jung bem percebeu, a psicologia contemporânea está enraizada na história
dos desdobramentos da experiência protestante.
171
Em sua correspondência, Jung afirma em uma passagem não haver sido tocado pessoalmente pelo
niilismo: “Devo confessar que o niilismo nunca foi problema para mim. [Tive] bastante, e mais do que o
bastante, com o que existe na realidade.” (Cartas II, 26/12/1953, ao pastor Willi Bremi) O que não o
impede de se defrontar, inequivocamente como na passagem citada, com o niilismo contemporâneo, que
pode ser entendido como o dilema espiritual próprio da “consciência esclarecida” típica do humanismo
antropocêntrico moderno.
contém qualquer espírito, nenhuma árvore significa uma vida humana, nenhuma cobra
incorpora a sabedoria e nenhuma montanha é ainda habitada por um grande demônio.
Também as coisas não falam conosco, nem nós com elas, como as pedras, fontes,
plantas e animais. não temos uma alma do mato que nos identifica com algum animal
selvagem. Nossa comunicação direta com a natureza desapareceu no inconsciente, junto
com a fantástica energia emocional a ela ligada.”
172
Temos aqui traçado o itinerário moderno do “Conhece-te a ti mesmo” em sua
dimensão terapêutica, segundo Jung. O inconsciente, “que contém justamente aquilo
que mais importa conhecer”
173
, organiza-se em função das configurações históricas da
cultura, e assim é nele que se encontram as possibilidades de compensação da
consciência moderna. A alienação, o desencantamento, o vazio niilista e o
desenraizamento são sintomas que convocam a compensação inconsciente, movida pelo
impulso natural para a totalidade e manifesta na atividade produtora de símbolos
espontânea da psique, especialmente nos sonhos. Nessa compensação Jung acredita
encontrar-se a via de recuperação daquela comunicação perdida com a natureza e da
energia emocional correspondente
174
, bem como a revitalização da experiência religiosa
deteriorada ao longo das vicissitudes do cristianismo moderno
175
. Resumidamente: o
confronto com o inconsciente é visto por Jung como a chave para o resgate do sentido
da vida e a conseqüente superação do niilismo e da desolação espiritual que afeta o
mundo moderno.
176
À centralidade do problema do sentido da vida corresponde, no quadro de
conceitos da psicologia analítica, a noção de símbolo. Como vimos pouco, em sua
avaliação sobre o iconoclasmo da Reforma Protestante, entendida como um dos fios
172
OC XVIII, § 585.
173
OC VII, prefácio (p. XIV).
174
Cf. OC XVIII, § 586.
175
Vários cristãos, incluindo sacerdotes e pastores, dão testemunho favorável a respeito do efeito positivo
da experiência psicoterapêutica em molde junguiano para as suas vidas religiosas. Talvez o exemplo
mais forte e também o mais doloroso tenha sido o do padre dominicano Victor White, que confessa
ter experimentado a revitalização de sua mediante a análise com Jung, mas que terminou por se afastar
dele em virtude de discordâncias a respeito do problema do mal. A história da relação Jung-White pode
ser acompanhada parcialmente na correspondência entre ambos. Cf. Cartas, passim. Jung recebeu uma
benção apostólica de Pio XII pelo efeito benéfico do tratamento que ele conduzira em uma católica cujo
confessor trabalhava no Vaticano.
176
“Se ainda existem em nós certos vestígios primitivos e certamente existem pode-se imaginar
quanta coisa existe em nós, pessoas civilizadas, que não acompanha nossa pressa desenfreada na vida
diária, produzindo aos poucos uma divisão e uma contravontade que às vezes pode assumir a forma de
uma tendência destrutiva da cultura. Os acontecimentos das últimas décadas mostram claramente que é
este o caso.” OC XVIII, § 1289. Note-se, portanto, que Jung não atribui ao inconsciente e suas tendências
compensatórias por vezes destrutivas - a solução do dilema espiritual moderno, mas ao confronto entre
a consciência e inconsciente, que possibilita a transformação do antagonismo e da cisão cultural e
subjetiva. Tal transformação, por sua vez, torna-se possível graças à “função transcendente” que produz
os símbolos. Ver adiante.
condutores da modernidade, é o “depauperamento dos símbolos” ou a “perda dos
símbolos históricos” que conduz em linha direta àquela “pobreza espiritual” que se
defronta com o horror do vazio niilista, com a desolação do mundo, e que busca
desesperadamente uma alternativa a essa situação insuportável na procissão de pseudo-
absolutos que a história contemporânea conhece bem, ou então em espiritualidades
exóticas, que podem mitigar paliativamente a sede de símbolos, mas deixam irresolvido
o problema fundamental da modernidade faustiana que gerou essa mesma sede.
Significativamente, o último texto escrito por Jung (“Símbolos e a Interpretação
de Sonhos”, posteriormente intitulado “Chegando ao Inconsciente”), concluído pouco
tempo antes de sua morte, destinava-se a integrar uma obra conjunta, sob sua
coordenação, a qual se transformou numa espécie de best seller de introdução ao
pensamento junguiano. O título dessa obra - O Homem e seus Símbolos resume todo o
interesse e o sentido da psicologia analítica: fornecer uma compreensão
simultaneamente teórica e prática do ser humano a partir do fato central da própria
humanidade, a saber, a auto-expressão por meio da atividade simbólica da psique.
Sob um ponto de vista histórico-cultural, Jung afirmava que a intenção
fundamental de seu pensamento era recuperar para uma consciência moderna a
capacidade de compreensão simbólica.
177
Mas ele percebe lucidamente que essa
compreensão, própria de uma sensibilidade ou atitude simbólica da consciência,
depende em grande medida da Weltanschauung cultural que legitima e suporta, ou não,
tal modalidade de consciência. Para Jung, a atitude simbólica justifica-se parcialmente
pelo “comportamento das coisas”
178
, mas de outra parte
“é resultado de certa [visão de mundo] que atribui um sentido a todo evento, por maior
ou menor que seja, e que dá a este sentido um valor mais elevado do que à pura
realidade. A esta concepção se contrapõe outra que sempre coloca o acento na crua
realidade e subordina o sentido aos fatos. Para esta atitude não existe símbolo algum,
quando o simbolismo depende exclusivamente do modo de observar.”
179
177
“Existe a mesma dificuldade entre uma fé concreta ou histórica e uma compreensão simbólica. Pode-se
dizer que é um problema de nosso tempo se nossa mente é capaz de um desenvolvimento tal que possa
entender o ponto de vista simbólico ou não. (…) tento insinuar o ponto de vista simbólico numa atitude
racionalista.” (Cartas II, 23/02/1955, a E.V.Tenney,).
178
Trataremos desse aspecto adiante, na seção 4 deste capítulo.
179
OC VI, § 908. Na seqüência, Jung afirma que mesmo para essa atitude “realista” existem símbolos:
“precisamente aqueles que levam o observador à suposição de um sentido oculto. A imagem de um deus
com cabeça de touro pode ser explicada como sendo um ser humano com cabeça de touro. Esta
explicação, porém, mal pode sustentar-se diante da interpretação simbólica, pois o símbolo é por demais
evidente para ser ignorado.”
O problema do sentido simbólico, ao referir-se intrinsecamente à atitude da
consciência, formula-se em Jung segundo dois registros: o primeiro que não
desenvolveremos aqui pode ser chamado estrutural e é contemplado na teoria dos
tipos psicológicos
180
. O segundo – que nos interessa refere-se ao fenômeno cultural da
Weltanschauung, sendo portanto de índole histórica. Relembremos que Jung equaciona
a crise espiritual moderna vinculando-a à “desorientação na moral e na visão de mundo”
que caracteriza nossa época “de transformação revolucionária”.
Assim, a intenção declarada de restituir à consciência moderna a sensibilidade
simbólica perdida só faz sentido a partir da constatação prévia dessa perda histórica e da
transformação da visão de mundo que está em sua base. Reciprocamente, a restituição
da atitude simbólica implica, ou mesmo pressupõe, uma transformação concomitante da
visão de mundo. Ao longo de toda a sua obra, Jung identifica a consciência moderna
iconoclasta à “atitude racionalista”
181
que exclui a sensibilidade simbólica e que ele
180
Apenas a título de indicação, a atitude simbólica, em jargão junguiano, é própria da função “intuitiva”,
especialmente em sua modalidade introvertida”. Por outro lado, constata-se facilmente que o realismo
perceptivo que define o tipo “sensação extrovertida” sente-se pouco à vontade com a linguagem dos
símbolos.
181
A crítica constante ao “racionalismo” gerou o equívoco, freqüente tanto em críticos
quanto em seguidores da psicologia analítica, de que Jung seria no fundo um
“irracionalista”, descartando ou menosprezando a função da razão em favor do
“sentimento”. Nada mais descabido! Isso faria gerar um outro desequilíbrio o
sentimentalismo, também criticado por Jung. O que ele pretende é despertar a razão
esclarecida moderna de uma forma de “sono dogmático” a presunção de soberania
absoluta e da conseqüente auto-fundamentação. Assim, ele afirma: “Longe de mim
desvalorizar o dom divino da razão, esta suprema faculdade humana. Mas como senhora
absoluta ela não tem sentido, tal como não tem sentido a luz num mundo em que está
ausente seu oposto, a obscuridade.”(OC IX-1, § 174); “[Para encontrar o caminho para
si mesmo] é necessária a relativização do racionalismo, mas de modo algum uma
renúncia à razão, pois o razoável para nós é o direcionamento para a pessoa interior e
para suas necessidades vitais.” (Cartas III, 8/1/1956, a Eugen Böhler); “é preciso
precaver-nos contra uma valorização excessiva do inconsciente. Do contrário, existiria o
perigo de subestimar o consciente, o que nos levaria, finalmente, a concepções
totalmente mecanicistas. Mas isso contraria o nosso instinto, que coloca a consciência
como arbiter mundi’. Mas como os racionalistas atribuem uma importância excessiva
ao consciente, considero sadio dar ao inconsciente também o valor que lhe é devido; no
entanto, não se deveria valorizá-lo mais que o consciente.” (OC XVI, § 51) Na medida
em que a própria noção de símbolo exige necessariamente a presença de uma
compreensão, a razão hermenêutica tem uma função central na psicologia analítica. Mas
na medida em que o símbolo é um produto espontâneo da imaginação, mergulhando
suas raízes profundamente nas estruturas não racionais do ser humano, o projeto de
Jung implica uma relativização da pretensão tipicamente moderna de uma soberania
absoluta da razão. À razão cabe a tarefa de interpretar, mas essa tarefa supõe o conteúdo
“transracional” que é apresentado pelo símbolo, e por ele e o mbolo não é o
tenta contrabalançar com o cultivo das imagens simbólicas, sendo essa afinal a forma
própria de sua psyches therapeia e a significação essencialmente moderna da mesma.
Como vimos, Jung localiza historicamente a inflexão que conduz à perda do
sentido simbólico na Reforma Protestante e na ciência moderna. Na verdade, em seu
livro Aion. Estudos sobre o Simbolismo do Si-Mesmo
182
, ele identifica no século XI
os sinais da inversão espiritual que aponta para a modernidade. Uma vez que a sua
proposta para a superação da crise espiritual da modernidade consiste no resgate do
símbolo, a pergunta que se impõe é: como e por que a mentalidade moderna se
constituiu excluindo a sensibilidade simbólica? Quais os fundamentos desse
iconoclasmo que gera aquela situação espiritual à qual vem responder a modalidade de
psicoterapia proposta por Jung? É o que veremos sinteticamente a seguir.
2. Raízes do Iconoclasmo Ocidental
Para compreendermos em profundidade o que esem jogo na “demanda pelo
símbolo”, é conveniente remontarmos à transformação introduzida no âmbito das
relações entre o homem e o mundo, e em especial no espaço de significação que a
presença humana abre para si no mundo, com o advento da forma mental moderna.
Henrique Vaz propõe a expressão “espaço hermenêutico” para designar o espaço
de significação próprio da forma mental antiga e medieval, e que se caracteriza pela
possibilidade de manifestação de um sentido e pelo desenvolvimento de um saber
regido pela lei da correspondência entre realidades fundadoras (ou arquetípicas) e a
linguagem que fixa a imagem dessas realidades na forma de escritura típica das
chamadas civilizações do livro” aquelas que se formaram sob o signo do primeiro
tempo-eixo, produzindo obras espirituais que testemunham a experiência fundamental
do mesmo: a experiência da transcendência. Como forma da relação significativa com o
mundo, o “espaço hermenêutico” possibilita o estabelecimento de uma leitura
produto de uma atividade reflexiva consciente e racional, segundo Jung, mas antes a
auto-expressão espontânea da própria psique. Para Jung, indiscutivelmente “o símbolo
a pensar”, e as “categorias existenciais” que Paul Ricoeur reclamava ao fim de La
Symbolique du Mal podem ser encontradas ao longo de toda a reflexão junguiana,
eminentemente voltada para a existência, de onde ela toma sua motivação e para onde
ela sempre retorna.
182
OC IX-2.
propriamente simbólica da realidade. Tal possibilidade assenta-se sobre uma
determinada concepção da verdade, entendida como revelação, e sobre uma
correspondente concepção de linguagem, entendida como estrutura heurística capaz de
desvelar a verdade captada no “espaço hermenêutico”.
183
Ao universo de significações fundamentais próprias do “espaço hermenêutico”
corresponde uma imagem de mundo bem definida, exemplarmente representada na
concepção grega do mundo como cosmos, bem como uma imagem antropológica
igualmente característica a do ser humano como microcosmos ou então como
criatura. A mesma lei de correspondência que estrutura o “espaço hermenêutico”
determina a relação entre o humano e o mundo, permitindo que este seja o suporte
objetivo de um sentido que o homem deve “ler” para encontrar a sua posição e o seu
sentido particular no cosmos: eis o fundamento para a clássica imagem do universo
como um grande livro que, atravessando todo o medioevo, chegará até Descartes.
184
Henrique Vaz adota uma definição ampla da noção de símbolo em sua reflexão
sobre o “espaço hermenêutico”
185
. Porém, a definição restrita como a utilizada por
Henri de Lubac
186
, e que aqui adotamos parece-nos mais apta para indicar um nível
ainda mais profundo das conseqüências resultantes da transformação mental implicada
no advento da modernidade. Parece-nos que a opção de Vaz é perfeita para definir os
contornos mais gerais da diferença entre o regime mental antigo-medieval e o moderno,
mas ao preço de perder de vista uma importante transformação interna ao espaço de
significações fundamentais da cristandade latina medieval, transformação que prepara a
supremacia da positividade do conceito sobre o poder de evocação do símbolo como
183
Cf. Escritos de Filosofia I, p. 172.
184
“Pode-se recolocar nesse contexto todo um complexo de idéias que constitui um traço fundamental da
visão medieval de mundo, a saber aquilo que se chama simbolismo. Já se escreveu muito sobre esse
assunto, e em vários estilos, tanto expondo as listas de correspondências quanto estudando a sensibilidade
que lhe é subjacente. A idéia de base é a de que o mundo está ligado ao homem pela presença em ambos
de um mesmo sistema de significação. O mundo é pleno de sentido, e de um sentido que o homem é
capaz de decifrar e de aplicar a si. A sabedoria será sabedoria do mundo ao consistir em interpretar
corretamente as mensagens das coisas. Para os cristãos, essa mensagem se refere antes de tudo a Deus,
que deixou sua marca sobre o criado e que nele transparece. Mas, através do mundo, Deus nos propõe
também modelos do que nós devemos fazer.” BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 141-142.
185
“Considerado do ponto de vista da sua estrutura semiótica, o universo da ciência antiga era o universo
de um simbolismo ontológico, segundo a acepção original da palavra sym-bolon. Nele, as coisas eram
aproximadas imediatamente uma da outra no campo de visão (ou de leitura) do sujeito, segundo uma rede
de correspondências em que tudo significava e era significado: a res se desdobrava imediatamente em
signum. O discurso tornava-se, então, a universal significatio ou o lugar de manifestação formal das
coisas-sinais.” Escritos de Filosofia I, p. 194-195. No espaço dessa concepção ampliada, “também a
verdade clássica é ‘simbólica’: adaequatio intellectus et rei, é o ‘símbolo fundamental que permite
estabelecer a correspondência entre o intelecto e a coisa.” (ibid., nota 195)
186
Cf. DE LUBAC, H. Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge. Paris: Aubier, 1949
2
.
forma racionalmente legitimada de conhecimento. É a este vel que deve ser referido o
esforço de Jung em recuperar para a consciência moderna uma sensibilidade simbólica
que começa a ser banida ou interditada em nome de uma positividade do mundo físico
que só pode ser captada legitimamente pela razão, e que, na acepção restrita, não possui
qualquer sentido simbólico.
Encarado sob esse ângulo, o verdadeiro lance inaugural da transformação que
conduz à modernidade encontra-se na recepção de Aristóteles ocorrida na cristandade
latina do século XIII. É então que uma concepção positiva de natureza, típica da física
aristotélica, vem substituir-se à concepção simbólica oferecida pela matriz neoplatônica
dominante na Alta Idade Média.
187
Avaliando as conseqüências desse evento para a
consciência moderna sob o ponto de vista da necessidade vital do símbolo ou
“pensamento indireto”, Gilbert Durand considera-o como uma das fontes da “catástrofe
metafísica” ocidental, a qual consolida o iconoclasmo que interdita o acesso simbólico
ao real e à transcendência.
A tese de Durand, tomada de empréstimo a Henry Corbin, parece-nos unilateral
por sustentar uma equiparação entre a recepção de Aristóteles e o pensamento do
Estagirita, e por desconsiderar as possibilidades de desenvolvimento presentes no
interior deste. A prudência parece exigir um pouco mais de cautela no tocante a
referendar sem mais a posição esposada por Durand. Se, de fato, em suas grandes linhas
a gnosiologia do Estagirita não se interessa pelo problema do símbolo, e se a sua física
igualmente não se conforma às exigências do simbolismo ontológico stricto sensu,
parece-nos contudo equivocado tomar inadvertidamente o aristotelismo como uma
espécie de “proto-positivismo” racionalista. A despeito da manifesta e por vezes cômica
incapacidade de Aristóteles para apreender o simbolismo dos mitos platônicos, por
exemplo, em seu nível hermenêutico próprio, a gnosiologia do Estagirita não proíbe
necessariamente uma captação simbólica da verdade apenas não a tematiza
detalhadamente. Lembremos que Aristóteles admite formas de captação da verdade
superiores àquela “normalmente” seguida pela razão humana - como nos casos do
êxtase, do entusiasmo e da melancolia, em que a inspiração divina ou a força da
natureza prevalece sobre o procedimento racional discursivo ordinário. Nesses casos, ao
ser comandada por um princípio superior à razão discursiva (logos), a imaginação
187
Cf. DURAND, G. A Imaginação Simbólica. Sâo Paulo: EDUSP/Cultrix, 1988; id. Science de l’Homme
et Tradition. Le Nouvel Esprit Anthropologique. Paris: Berg, 1979; DE LUBAC, H., Corpus Mysticum:
l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p.248-277. Sob uma ótica diferente, Henrique Vaz reconhece no
século XIII as mais profundas “raízes da modernidade”: cf. Escritos de Filosofia VII.
revela-se genuinamente simbólica. Por outro lado, a excepcionalidade desses casos não
implica em uma ruptura, transgressão ou insuficiência dos esteios da ontologia
aristotélica.
188
Em face desse ângulo de abordagem, parece-nos que seria possível
desenvolver, dentro dos princípios legítimos e próprios do pensamento aristotélico, uma
doutrina do simbolismo ao mesmo tempo distinta da versão neoplatônica, que oferece
uma fundamentação ontológica específica, e da versão moderna, que impõe uma
redução antropológica crítica. Assim sendo, o foco da “catástrofe”, em sua raiz
medieval, estaria menos no campo da metafísica ou ontologia do que na adoção de um
método unilateral: de fato, é sob a indução de uma forma de racionalismo assentada em
bases aristotélicas que o abandono do pensamento simbólico tem início na cristandade
latina.
Isso pode ser comprovado, bem antes do auge da escolástica no século XIII,
nas disputas teológicas sobre a Eucaristia no século XI. O surgimento da corrente dos
dialéticos, representada por Anselmo de Besate e Berengário de Tours, vem pôr em
questão a forma de inteligência do simbolismo ontológico, sintetizada pelos Padres da
Igreja a partir de esquemas neoplatônicos corrigidos pelo criacionismo e transmitida à
cultura medieval.
189
O racionalismo dos dialéticos do século XI anuncia a ruptura
irreversível do equilíbrio que a mentalidade patrística estabelecera entre inteligência e
mistério na forma do pensamento simbólico.
De fato, para Agostinho, por exemplo, entre razão e mistério não se verificava
qualquer oposição, encontrando-se antes ambas unidas sob a forma da mystica ratio ou
“razão misteriosa”
190
. Com a fundação do “racionalismo cristão” medieval por Anselmo
e Abelardo, a inteligência dos mistérios muda de registro, e já não pode mais ser
188
Para as devidas referências em Aristóteles, cf. Ética a Eudemo, 1225 a 27 ss.; 1248 a 26- b 1; 1248 a
33; 1248 a 39-41; cf. Ética a Nicômaco, 1150 b 25 ss; 1152 a 28-29; cf. De Memoria et Reminiscentia,
453 a 10; 451 a. Cf. também os comentários de Jackie PIGEAUD, in ARISTÓTELES. La Verité des
Songes. De la Divination dans le Sommeil (Parva Naturalia 462 b- 464 b). Paris: Payot & Rivages, 1995.
189
Cf. DE LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p. 253.
190
Apenas a título de exemplo dessa união, citemos uma passagem onde transparece cristalinamente a
estrutura racional que fundamenta o simbolismo e prescreve uma forma de vida correspondente: “Na
verdade, a criatura racional nutre-se desse Verbo como de seu melhor alimento. Ora, a alma humana é
racional. Está, porém, retida por castigo de seu pecado em liames mortais. Ela é reduzida, assim, a um
estado de grande debilidade. Deve esforçar-se para perceber as realidades invisíveis, por conjecturas,
através das realidades visíveis. É porque o alimento da criatura racional tornou-se visível. Sem nada
mudar em sua natureza, revestiu-se da nossa, a fim de levar a Ele, que é invisível, aqueles que
procuram as coisas visíveis. Desse modo, Aquele que a alma por seu orgulho abandonara, em seu interior,
ela reencontra-o fora dela, na humildade. E será imitando essa humildade visível que voltará à sua
elevação invisível.” AGOSTINHO, O Livre-Arbítrio, II, 10, 30 (conforme a tradução brasileira de Nair de
Assis de Oliveira: São Paulo: Paulus, 1995, p. 185.)
expressa a não ser de forma demonstrativa.
191
A partir de então observa-se um fosso
crescente “entre a teologia ‘racionalista’ de um Anselmo ou de um Abelardo e a
teologia ‘simbolista’ ou mística de um Rupert e de um Hugo [de São Vítor]”.
192
Pode-se
dizer que a razão hermenêutica agostiniana, que era idêntica à contemplação religiosa
dos mistérios, cede lugar a partir do século XI à razão demonstrativa anselmiana. O
coração do procedimento simbólico é atingido por essa mudança de método da
inteligência, que culmina com a elaboração da quaestio, método por excelência do
procedimento da razão teológica na Escolástica medieval.
O racionalismo cristão origem a uma “reação mística”, que contudo não faz
senão reforçar a clivagem entre inteligência e mistério que a corrente combatida havia
engendrado. Por isso, o simbolismo no qual a cristã se expressa e que oferece no
século XII alguns de seus frutos mais amadurecidos se inclina na direção do
alegorismo. A batalha entre “racionalistas” e “místicos” no século XII se trava sobre um
campo que é definido por uma nova mentalidade, um novo modo de pensar, com
novas categorias e nova ordem de problemas.
193
Um dos resultados decisivos dessa
transformação de mentalidade é a desvalorização do símbolo, cujo alcance noético será
progressivamente recusado, substituído ou reduzido ao estatuto de alegoria ou
comparação.
Se de fato, como afirma Durand, o triunfo do conceptualismo de proveniência
aristotélica na escolástica do século XIII, sob a forma de uma preferência crescente pelo
conceito em detrimento do símbolo, assinala um momento decisivo na interdição
epistêmica do simbolismo na civilização ocidental, as fontes medievais dessa interdição
não se esgotam no plano gnosiológico, sendo secundadas por uma revolução no plano
ontológico, a qual por sua vez ainda não se consuma integralmente no próprio século
XIII. Com efeito, a metafísica tomasiana do actus essendi, que tem na noção
neoplatônica de participação um dos seus eixos de sustentação (sendo o outro a
doutrina da analogia do ser, síntese de aristotelismo e neoplatonismo), ainda preservava
o espaço ontológico necessário para a legitimação do pensamento simbólico, que tem
em comum com a concepção da adaequatio rei et intellectus a exigência de uma
distinção entre ser e representação com primazia para o esse, o que igualmente é
contemplado na metafísica tomasiana. Em outros termos: o que é posto de lado no plano
191
Cf. DE LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p. 267.
192
Cf. DE LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p. 265.
193
Cf. DE LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p. 256.
gnosiológico poderia ainda ser recuperado no plano ontológico. E, de fato, é a forma
deste plano ontológico que em última análise torna possível, mesmo sob a dominância
da metodologia demonstrativa do racionalismo escolástico, a integração dos temas da
revelação bíblica por uma teologia posta sob o signo do lema anselmiano da fides
quaerens intellectum.
194
Durand reconhece implicitamente essa situação, ao notar que
em Tomás de Aquino uma separação cuidadosa entre a função humana de
conhecimento e a Revelação, lembrando que o uso e a interpretação desta fica contudo
reservado ao clero.
195
Tal observação correta atinge tão-somente o aspecto
sociológico da questão, deixando de examinar o desenvolvimento de uma compreensão
racional das condições da Revelação enquanto forma específica de conhecimento em
Tomás.
196
A crise institucional na Universidade de Paris, deflagrada pela corrente do
aristotelismo heterodoxo (ou “averroísmo latino”) dominante na Faculdade de Artes,
marca o início do abandono do projeto medieval de conciliação entre razão e fé. A
repercussão dessa crise atingirá o reduto ontológico do simbolismo. A mudança
metafísica em curso se estampa já em Duns Escoto que, ao proscrever a analogia
tomasiana de derivação neoplatônica pela concepção da univocidade do ser, e
principalmente ao inverter as relações entre ser e representação, abre caminho para a
destruição da legitimidade ontológica do pensamento simbólico, ou mais exatamente
para a redução antropológica moderna do simbolismo.
Episódio decisivo na consolidação da proscrição do pensamento simbólico no
Ocidente é a Reforma Protestante. Apesar da tendência alegorizante notada por Henri de
Lubac a partir do século XI, o magistério da Igreja Católica manteve-se, pelo menos
até o Concílio Vaticano II, como uma espécie de conservatório de imagens simbólicas
que, mesmo sendo privadas gradualmente de sua seiva vital por exegeses cada vez mais
enrijecidas em face das transformações históricas da modernidade, ainda conseguiam
194
A análise de Henri de Lubac corrige a generalidade dessa afirmação, ao endossar a posição de J. de
Ghellinck em L’essor de la littérature latine au XII
e
siècle , segundo a qual mesmo no âmbito da
revelação o simbolismo se torna cada vez mais um alegorismo, no sentido moderno da palavra, “com suas
leis de interpretação, suas ‘chaves’ de explicação e sua teoria dos nomes, que acentuam sua rigidez”.(Cf.
De LUBAC, Corpus Mysticum: l’Église et l’Eucharistie au Moyen Âge, p.256).
195
Science de l’homme et Tradition, p.21.
196
Uma estimulante reflexão sobre o tema da revelação em conexão com a problemática antropológica e
psicológica do simbolismo, a partir de um referencial teórico aristotélico-tomista, pode ser encontrada em
Victor WHITE. God and the Unconscious. Chicago: Henry Regnery Company, 1953 (vejam-se
especialmente os capítulos VI, “Aristotle, Aquinas and Man”, e VII, “Revelation and the Unconscious”).
cumprir a função própria de veiculação do sentido simbólico. A Reforma vem acirrar o
Bildverbot ocidental moderno, deixando desamparada a necessidade anímica de
imagens.
197
E na medida em que o espírito protestante representa uma das linhas de
força que constroem a modernidade, esta recebe, em sua constituição mesma, esse
radicalizado interdito religioso ao pensamento simbólico.
198
Na verdade, o iconoclasmo promovido pela Reforma não atinge a totalidade do
pensamento simbólico, mas principalmente a sua dimensão visual, que ganhara
importância crescente nos séculos que antecederam Lutero. A polêmica protestante visa
a estética das imagens, estátuas e quadros, e se estende ao culto dos santos. Contudo,
assim como no judaísmo e no islamismo, o iconoclasmo protestante é compensado pelo
culto às Escrituras e à música e a obra de Bach testemunha a profundidade atingida
pela estética protestante em sua pureza iconoclasta.
199
A despeito disso, o espírito
protestante alia-se por fim à interdição das imagens simbólicas, que transfiguram as
imagens sensíveis para evocar um sentido transcendente, mas que justamente por isso
promovem um certo laço entre o transcendente e o sensível.
Este aspecto pode ser melhor compreendido a partir da redução do estatuto do
“céu” na teologia luterana.
200
Na tradição blica, tanto “céu” quanto “terra” recebem
sentidos diversos. Essa multiplicidade semântica poderia encontrar um denominador
comum: “com a expressão ‘céu’ é designada a parte da criação aberta para Deus
201
, e
assim o “céu” teologicamente considerado significa, para a “terra”, “o reino das
possibilidades criadoras de Deus”, sendo portanto uma transcendência relativa da
“terra”, assim como esta representa uma imanência relativa do céu.
202
Em outros
termos: pelo “céu”, a “terra” é como que arrancada de sua mera positividade física e
transformada num cenário de teofanias. Karl Barth afirma existir uma analogia ou
correspondência entre a relação de “céu” e “terra” e a relação entre o Criador e sua
criatura.
203
A assimilação patrística da doutrina platônica das Idéias permitiu
197
Jung, como se viu, percebeu agudamente esse aspecto do espírito protestante, nele vendo uma
deficiência em relação ao imaginário católico tradicional.
198
Afirmação que, de Lutero a Bultmann, pode ser facilmente comprovada.
199
Cf. DURAND, G. O Imaginário. Ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro:
DIFEL, 1998, p. 16-27.
200
Para o que se segue, veja-se MOLTMANN, J. Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação.
Petrópolis: Vozes, 1992, p. 235-270.
201
MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 241.
202
Ibid.
203
Cf. MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 239. Vê-se aqui a presença
do esquema de feitio neoplatônico, tal como apresentado na segunda divisão da natureza, a “natureza que
cria e é criada”, no De Divisione Naturae de João Escoto Erígena (século IX).
originalmente a articulação racional-teológica do imaginário bíblico referente aos
símbolos de “céu” e “terra” segundo as exigências do criacionismo.
204
Ora, Lutero exclui as distinções medievais de caráter neoplatônico ao identificar
o “céu” com a presença de Deus ou, em outras palavras, ao divinizar o “céu”, retirando-
o assim da criação.
205
A conseqüência dessa elevação do “céu” à majestade não criada
de Deus é a supressão daquela transcendência interna relativa da criação, resultando na
concepção de um mundo “unitário, homogêneo, que é infinitamente transparente e
infinitamente sujeito à pessoa humana”, absorvido na total imanência.
206
Jürgen
Moltmann, teólogo protestante, sugere o exercício de se imaginar um mundo sem “céu”:
“seria um mundo que o estaria aberto ‘para cima’, para Deus, um mundo sem essa
transcendência qualitativa. Um tal mundo seria um sistema fechado que descansa sobre
si e que gira em torno de si. (...) E se um tal mundo sem céu quer ser pensado como
mundo que se transcende a si mesmo, então ele deve ser um universo sem fim. Em lugar
da infinitude qualitativa do céu, coloca-se a infinitude quantitativa da sua expansão.
Relacionada ao tempo, em lugar daquela abertura do mundo, que é simbolizada pelo céu
qualitativamente diferente, deveria ser colocada a abertura para o futuro, na qual o
mundo se supera constantemente a si mesmo. Também isso significaria a transformação
da infinitude qualitativa numa infinitude quantitativa.”
207
Não é difícil perceber como, na história da ortodoxia do protestantismo, à
restrição iconoclasta da expressão simbólica vem se aliar aqui a destituição do
fundamento ontológico-teológico do simbolismo, que, paralelamente, a nova imagem de
mundo gerada nos meios científicos impunha. Por outro lado, como observa Moltmann,
“a divinização luterana do céu foi um dos pressupostos para que a moderna ‘crítica do
céu’ conduzisse ao ateísmo: se Deus e o céu são identificados, então com o céu também
cai o próprio Deus.”
208
De Lutero a Feuerbach assistimos ao desdobramento interno de
uma problemática teológica que paradoxalmente tende a destruir o seu próprio
fundamento. O niilismo, resultado final de tal desdobramento, pode assim ser visto em
204
Cf. MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 246.
205
A partir de uma perspectiva erigeniana, poder-se-ia dizer que a opção teológica presente na
identificação luterana Deus = céu corresponde a suprimir a segunda divisão da natureza e deslocar o céu
para a quarta, a natureza que não cria e não é criada, ou seja, Deus entendido para além de sua
autodeterminação como Criador.
206
Cf. MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 254 e 256.
207
MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 242.
208
MOLTMANN, Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação, p. 256. Goethe sintetiza no Fausto
esse complexo movimento instaurador da modernidade fazendo a entrada de Mefistófeles no mundo e seu
encontro manifesto com Fausto se dar no momento em que este, repetindo o gesto de Lutero, traduz a
Bíblia para o alemão. “No princípio era a Ação”: eis aí a auto-expressão de Fausto como signo do espírito
moderno em seu ativismo “poiético”, voltado para a transformação da Terra e mirando sempre o futuro.
sua conexão com a história da recusa teológica do pensamento simbólico em toda a sua
amplitude.
Privado de sua fundamentação gnosiológica pela adoção do aristotelismo
escolástico, o simbolismo ainda encontrava a possibilidade de se legitimar
ontologicamente pela persistência de esquemas neoplatônicos, e teologicamente pela
distinção Deus-céu; Duns Escoto abre o caminho para a impugnação da legitimação
ontológica; Lutero impugna a legitimação teológica.
Somando-se aos desdobramentos ocorridos no terreno teológico, a nova forma
de ciência surgida com a revolução que se estende de Copérnico a Newton contribuirá
poderosamente para a proscrição do pensamento simbólico, desqualificado em face do
dogma maior da objetividade científica e da redução antropológica crítica que pretende
sancioná-la. O método instaurado por Galileu, ao reforçar “o grande mito da indiferença
e da separação do cosmos e do homem”
209
, ergue uma barreira que lança o descrédito
sobre a relação de correspondência que estruturava a visão antiga de cosmos e fundava
o alcance ontológico da hermenêutica antigo-medieval. Assim, o advento e posterior
triunfo do universo científico sufoca na raiz qualquer leitura simbólica da realidade, que
pressupõe justamente a adesão orgânica das partes de um todo qualitativamente
diferenciado, e em especial a correspondência entre a alma e o cosmos. Com o cosmos,
cai também o simbolismo.
O cartesianismo, que pretende fundamentar a Nova Ciência, instaura o reino do
algoritmo matemático, no qual o signo triunfa sobre o símbolo. Como assinala Gilbert
Durand
210
, sob o império do Método o símbolo evapora-se em signo, consolidando a
primazia da explicação cientificista, que culmina com a redução “semiológica” do ser
ao tecido de relações objetivas, liqüidando no significante “tudo aquilo que era sentido
figurado, toda recondução à profundidade vital do apelo ontológico.”
211
Na mesma
linha, Henrique Vaz salienta como o “espaço hermenêutico” da mentalidade antigo-
medieval, que possibilitava a evocação de um sentido transcendente na forma do
209
DURAND,G. Science de l’Homme et Tradition, p. 25.
210
Cf. DURAND, A Imaginação Simbólica, p. 25-27.
211
Id., p. 27. Durand observa que Descartes admite um único mbolo, o próprio “eu penso”, símbolo
último do ser; mas a consciência “à imagem e semelhança de Deus” da terceira Meditação é “um símbolo
deveras perigoso, que o pensamento e, portanto, o método (ou seja, o método matemático) se torna o
único mbolo do ser” (id., p. 25), na medida em que o método reivindica a prerrogativa de ser o método
universal. Por outro lado, se colocarmos entre parênteses a especificação da consciência pelo método
matemático, temos no “símbolo único” cartesiano a premissa moderna da redução antropológico-crítica
do simbolismo.
pensamento simbólico, registrado nos “livros sagrados”, será desestruturado pela
irrupção do novo espaço de significações próprio da civilização científico-tecnológica,
que se caracteriza pela circulação de informações destituídas de alcance simbólico
ontológico. Das “civilizações do Livro” à moderna “civilização do impresso” tem lugar
uma profunda reestruturação das condições do saber que impugna as leis de construção
do “espaço hermenêutico”, tornando aberrante a proposição de um simbolismo
ontológico.
212
Por fim, a supremacia da historicidade na compreensão do homem, que encontra
sua exacerbação no historicismo, também contribui decisivamente para a derrocada da
sensibilidade simbólica no regime mental moderno. A compreensão quantitativa de
tempo nela implicada, e a sua articulação com a verificabilidade empírica tomada como
critério de verdade, exclui de partida a leitura simbólica do tempo, eminentemente
qualitativa, que encontrava expressão acabada na concepção de história sagrada ou
história salvífica. A “História Sagrada” é fundamentalmente uma narrativa simbólica
carregada de sentido, e não se presta aos procedimentos de reconstituição arqueológica
prescritos pela verificabilidade empírica própria da “história profana”.
213
Apesar de sua
originalidade face a narrativas míticas mais simples consistir na inserção da revelação
na própria história, vindo dar a esta seu sentido e sua destinação, a “história sagrada”
enraiza-se em fatos históricos que são transfigurados pela própria intervenção divina
212
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia I, p. 159-189. Henrique Vaz designa o espaço de significações
moderno como “espaço da comunicação”, e observa que nele o livro é um meio informativo, ao passo que
no “espaço hermenêutico” ele é lugar do sentido (cf. id., p. 169, nota 29). Tal diferença resulta de uma
transformação mais fundamental: “as condições e a natureza do saber que aparece com seus traços
definidos na ciência galileana mostram que ele não obedece, na sua estrutura epistemológica, às leis de
construção do ‘espaço hermenêutico’. A concepção ‘especular’ da verdade, na qual o texto podia alçar-se
à condição de reflexo de uma realidade arquetipal, cede lugar a uma concepção ‘operacional’, onde o
texto, avaliado de acordo com os critérios de eficiência e economia de um simbolismo convencional, se
insere na tarefa de ‘modelagem’ da realidade segundo as exigências de uma razão que experimenta e
calcula. Na verdade, o grande livro do mundo está escrito em linguagem matemática. Mas esta linguagem
deve ser permanentemente inventada e testada, o que significa, afinal, que o livro do mundo está ainda
por escrever. A herança pitagórico-platônica de Galileu é traída por sua prática científica: essa se define já
num novo espaço de saber, e obedece a uma nova concepção da realidade.” (id., p. 175)
213
“Sendo o Livro mais uma narrativa de instauração do que história narrativa com pretensões objetivas,
impõe-se uma recusa do fio histórico e arqueológico em benefício do sentido escatológico.” “Afirmar
escandalosamente que o Cristo ressuscitou, inscrever essa ressurreição como o sentido condutor do ciclo
do ano litúrgico, é fazer explodir o determinismo da história, pois para a história existe o tempo
irreversível e entrópico, a morte sem ressurreição.” DURAND, G. A Fé do Sapateiro. Brasília: Editora da
UNB, 1995, p. 47 e 42. Encarada sob a perspectiva da distinção entre tempo sagrado e tempo profano, a
empreitada de desmitologização do Cristianismo levada a cabo por Bultmann, supostamente a serviço da
plausibilidade da fé, aparece como, no mínimo, temerária.
transcendente, e assim adquirem uma dimensão trans-histórica que os faz ultrapassar o
simples alcance de fatos históricos datáveis e localizáveis.
214
O tempo mensurável da “história profana”, encerrado na pura imanência do
devir histórico, não abriga qualquer espaço para um sentido que não seja o depositado
pelos atores humanos em seus embates e projetos na história.
215
A redenção cristã, que
se realiza na história com o evento da Encarnação, será substituída na modernidade pela
poderosa crença na salvação pela história. E é exatamente tal substituição que veta a
interpretação propriamente simbólica de um dado evento histórico, determinando a
primazia do arqueológico sobre o escatológico. O fato histórico reduzido a um
acontecimento empírico elimina a epifania de um mistério. O imperialismo da
historicidade positiva mata o símbolo, pois este, como observa Gilbert Durand, não se
refere ao momento cronológico de um acontecimento material qualquer, “mas sim a um
advento constitutivo das suas significações.”
216
Na verdade, a sensibilidade simbólica não desaparece totalmente nos tempos
modernos. Ela sobrevive, sob formas e graus variados, na Renascença, na Contra
Reforma, nos Exercitia Spiritualia de Inácio de Loyola, em Vico, no romantismo e em
certos momentos do Idealismo alemão.
217
Está igualmente no centro do Kampf um
Creuzers Symbolikno século XIX, estreitamente associada à disputa sobre o estatuto
do mito
218
, tendo como pano de fundo a retomada do neoplatonismo. Contudo, trata-se
de fato de uma sobrevivência, ou “resistência do imaginário”, que vem confirmar a
hegemonia e o primado do conceito, do signo e do fato na pedagogia oficial que molda
a mentalidade moderna. No cenário da nova ordem de razões da modernidade, o
214
Cf. GIRARD, M. Os Símbolos na Bíblia. Ensaio de Teologia Bíblica Enraizada na Experiência
Humana Universal. São Paulo: Paulus, 1997, p. 64-66. Sobre os fatos históricos/trans-históricos da
narrativa bíblica, Girard comenta: “O colete de tempo e do espaço no qual eles estavam encerrados
enquanto fatos históricos não é mais totalmente apropriado; ele salta, explode, e esses fatos singulares se
tornam acontecimentos de valor absolutamente universal, trans-temporal e trans-espacial”, com o que os
acontecimentos trans-históricos da história bíblica adquirem um alcance mítico. Cf. id., p. 65.
215
Assim, a hipóstase da história como explicação última, “fundada sobre um cristianismo mal assimilado
e sobre os ‘progressos’ da tecnologia e dos ‘meios de produção’ ”(cf. DURAND, G. “O Universo do
Símbolo”, in Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 87), comporta-se em relação ao
símbolo como uma forma moderna de evemerismo.
216
DURAND, G. “O Universo do Símbolo”, in Campos do Imaginário, p. 89.
217
Cf. DURAND, O Imaginário, p. 16-30.
218
Veja-se uma excelente exposição desse trajeto histórico da ciência do mito em JESI, F. O Mito.
Lisboa: Editorial Presença, 1977.
simbolismo ontológico passa a ser descartado como, parafraseando Henrique Vaz, a
persistência de “espécies raras de uma época que tramontou”
219
.
Dessa maneira, o resgate do símbolo, entendido no duplo sentido do genitivo
objetivo (o símbolo como algo a ser resgatado) e do genitivo subjetivo (o símbolo como
aquilo que vem resgatar algo ou alguém), aparece em toda a sua problematicidade
quando considerado à luz das raízes iconoclastas da história intelectual da modernidade.
Para receber o selo de legitimidade intelectual, ele deve de início passar pela prova de
atender às condições do campo epistemológico que irrompe com a modernidade. A
confluência das célebres interrogações de Kant na pergunta sobre o que é o homem
indica o caminho dessa prova. As “ciências hermenêuticas” modernas diferem da
hermenêutica antiga na medida em que, perdida a correspondência entre cosmos e alma
e questionado radicalmente o alcance ontológico do simbolismo, o sentido que elas
recolhem do símbolo deverá necessariamente ser pensado em chave antropológica e
crítica.
220
É precisamente nessa chave que a princípio se a recuperação da
sensibilidade simbólica proposta por Jung, como veremos a seguir.
3. A recuperação antropológica do símbolo na psicologia analítica
No século XX, quando, principalmente pelas vias da antropologia cultural e da
psicanálise, for recuperada a atualidade do pensamento simbólico lato sensu, de início a
primazia do modelo epistemológico antroponômico moderno, com a sua sanção
filosófica no criticismo kantiano, prescreverá o limite dentro do qual essa recuperação
será permitida: o limite interno à própria subjetividade. Em outras palavras, o mbolo
não mais estará fundado sobre a lei de correspondência entre micro e macrocosmos, mas
será encarado tão-somente como uma forma de auto-expressão do próprio homem, um
reflexo especular de si mesmo – mesmo quando distorcido ou “deformado”. Impugnado
o seu fundamento ontológico ampliado, o símbolo será inicialmente revalorizado em
chave antropológica. Mesmo o desenvolvimento das ciências hermenêuticas, com a sua
especificidade e diferenciação com respeito às ciências da natureza estabelecida por
219
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia I, p. 174.
220
Cabe observar de passagem que, no fundo, a crise que afeta a teologia na modernidade nasce das
mesmas raízes iconoclastas que determinam a interdição do pensamento simbólico. Reciprocamente, a
recuperação do símbolo no pensamento contemporâneo abre para a teologia a via de superação de sua
crise. Sobre esse tema, ver VAZ, Escritos de Filosofia I, p. 159-189 (capítulo VIII: “Fé e Linguagem”).
Wilhelm Dilthey, não logrará de início ultrapassar o círculo encantado da redução
antropológico-crítica.
221
A despeito de Freud ter se mantido alheio à problemática diltheyana, adotando
por toda sua vida uma concepção de ciência exclusivamente naturalista, é sabido como
o nascimento da psicanálise está ligado à questão hermenêutica.
222
O enigma
representado pelos sintomas histéricos, desafiando a explicação neurológica, bem como
a localização anátomo-patológica, será decifrado pelo jovem médico vienense mediante
a compreensão de seu significado oculto. Assim, a psicanálise nasce para fora da
medicina, e toda a terapêutica psicológica que ela desenvolve relaciona-se à explicitação
do significado do sintoma neurótico na ação fundamental do psicanalista: a
interpretação.
O lance verdadeiramente decisivo na fundação da psicanálise será a afirmação
da realidade da psique, com o conseqüente corolário de uma causalidade
especificamente psíquica. Freud conceberá tal causalidade segundo o modelo de um
rígido determinismo inconsciente, que comanda todo o acontecer psíquico. Ademais, o
próprio psiquismo será visto como uma espécie de “campo de batalha”, em que se
opõem sistemas e forças, e assim a conflitividade ineliminável marcará a concepção
antropológica freudiana. Todo o saber psicanalítico, incluindo a dimensão teórica dos
modelos do “aparelho psíquico”, seus princípios de funcionamento, as considerações
dinâmicas e econômicas, tudo enfim pode ser referido em última análise à questão do
conflito constitutivo do ser humano e de seu sentido transformado em sintoma, em face
da impossibilidade momentânea de uma expressão direta na consciência, segundo a
lógica da realização dos desejos que governa o psiquismo inconsciente.
No âmbito do campo teórico estabelecido por Freud, toda imagem, toda fantasia,
enfim, todo símbolo produzido pelo homem será invariavelmente reconduzido ou
reduzido à causalidade inconsciente que, para a psicanálise, refere-se ao conflito que se
instala, de uma forma ou de outra, em torno da sexualidade humana.
223
Por conseguinte,
para Freud a expressão simbólica é derivada de uma deformação ou disfarce produzido
221
O pensamento romântico do século XIX será uma das últimas expressões de um enfoque do símbolo
e notadamente do sonho que abarca dimensões que transcendem a subjetividade. A este respeito, ver o
belo livro de Albert Béguin, L’Âme Romantique et le Rêve. Essai sur le Romantisme Allemand et la
Poésie Française. Paris: Corti, 1991.
222
A bibliografia a respeito é extensa. Citamos, a título de referência, o trabalho de Carlos Roberto
DRAWIN. Angústia e Saber: Elementos para uma Leitura Filosófica da Psicanálise na Dialética da
Modernidade. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 1999.
223
Dados os objetivos e limites de nosso trabalho, deveremos nos contentar com simplificações, por vezes
grosseiras, que não fazem justiça à complexidade e riqueza da problemática psicanalítica.
pelo trabalho de elaboração inconsciente em face da censura, que se impõe na situação
do conflito consciente versus inconsciente, resultando que o símbolo é uma outra forma
de dizer ou alegoria que, desfeitas as vias da elaboração deformadora pelo trabalho
analítico da interpretação que percorre, portanto, o caminho inverso da deformação
produzida pela elaboração inconsciente -, aparece como um desejo ou pensamento
comum recalcado.
A redução psicanalítica, portanto, tem como conseqüência tomar o símbolo
como um efeito-signo, ou sintoma, por onde é postulada a igualdade lógica entre
simbolizante e simbolizado, que por sua vez permite a substituição de um pelo outro
segundo uma reversibilidade que fundamenta a interpretação semiótica promovida pela
psicanálise. Resulta daí a univocidade da explicação causal psicanalítica
224
: por mais
complexos e brilhantes que sejam seus movimentos, a hermenêutica psicanalítica será
incuravelmente redutora.
225
Será precisamente o caráter implacável e, para Freud,
inegociável dessa redução que fará Jung apartar-se da psicanálise e seguir seu
caminho próprio.
É comum indicar-se a diferença fundamental entre a psicanálise de Freud e a
psicologia analítica de Jung na proposição por este último de um “inconsciente
coletivo” estruturado a priori por “arquétipos”, distinto do “inconsciente pessoal”
constituído empiricamente pelo mecanismo de recalcamento, descrito pela psicanálise.
Tal visão é fomentada pelo próprio Jung.
226
Todavia, a aparente simplicidade dessa
distinção é enganosa e oculta uma complexidade que merece ser examinada
rapidamente.
224
Responsável pela queixa de Freud a Jung a respeito da “monotonia da análise”: cf. OC V, § 9.
225
Sobre esse aspecto, veja-se DURAND, A Imaginação Simbólica, capítulo II. Parece-nos sóbria a
avaliação de Umberto Galimberti a esse respeito: “Desconstruído o nosso modo habitual de pensar para
reconduzi-lo às suas origens arcaicas, onde desejos impedidos, desviados e convertidos custodiam aquele
núcleo de sentido que o Eu, enganando-se, representa como sua criação, Freud se propõe evidenciar o
engano do Eu mostrando que as suas criações culturais e religiosas outra coisa não são do que disfarces
simbólicos de desejos recalcados onde toda a nossa infância e o nosso arcaísmo exprimem, no sonho e na
neurose, a sua ineliminabilidade, pela qual o homem pensa ter uma história enquanto é simplesmente
executor de um destino. O Eu não é o autor de suas palavras, mas as suas palavras são embelezamento
que disfarça um discurso pronunciado por suas representações inconscientes em termos que, na sua
imediatidade, seriam improponíveis. A decodificação revela sempre a mesma trama, o símbolo reenvia
sempre ao mesmo texto. O texto narra a angústia da criança que vem ao mundo sem proteções e sem
defesas. A psicanálise nos persuadiu e ninguém, nem mesmo Jung, contesta esta arqueologia do mbolo,
este reenvio ao passado próximo da nossa infância e ao passado remoto da humanidade.” GALIMBERTI,
U. “Jung e la Filosofia dell’Occidente”, in CAROTENUTO, A.(dir.) Trattato di Psicologia Analitica.
Volume Primo: La Dimensione Culturale. Torino: UTET, 1992, p. 13. No mesmo lugar, Galimberti
afirma que “sobre o modo de ler o símbolo se consuma a separação entre Freud e Jung.”
226
Veja-se, por exemplo, o ensaio Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1978 (in OC VII).
Em primeiro lugar, é falsa a afirmação de que, para Freud, o inconsciente é
exclusivamente formado mediante o recalcamento “secundário” que é aquele a que
Jung se refere ao falar da formação do “inconsciente pessoal”. Já em 1908 Freud
afirmava claramente que nem tudo o que está no inconsciente provém do recalcamento
secundário.
227
A elaboração da noção enigmática de um “recalcamento primário” ou
“originário” (Urverdrangung) vem sustentar precisamente esse ponto. E por fim, ao
propor a sua “segunda pica” em O Ego e o Id (1923), Freud mais uma vez deixa clara
a não coincidência entre inconsciente e recalcado.
228
227
“As fantasias inconscientes podem ter sido sempre inconscientes e formadas no inconsciente; ou, o que
acontece com maior freqüência, foram inicialmente fantasias conscientes, devaneios [diurnos], desde
então deliberadamente esquecidas, tornando-se inconscientes através [do ‘recalcamento’].” (FREUD, S.
“Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade”, in Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 164, itálicos nossos)
Um tratamento excelente da noção de fantasia na psicanálise pode ser encontrado em LAPLANCHE, J. e
PONTALIS, J.-B. Fantasia Originária, Fantasias das Origens, Origens da Fantasia. Rio de Janeiro:
Zahar, 1988.
228
“Reconhecemos que o Ics. não coincide com o [recalcado]; é ainda verdade que tudo o que é
[recalcado] é Ics., mas nem tudo o que é Ics. é [recalcado].” (FREUD, S. “O Ego e o Id”, in Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIX. Rio de Janeiro:
Imago, 1976, p. 30, modificado.) No prefácio do mesmo ensaio podemos conjecturar uma alusão velada a
Jung quando Freud diz: “Nestas páginas são abordadas coisas que ainda não constituíram assunto da
consideração psicanalítica e não foi possível evitar invadir algumas teorias que foram apresentadas por
não analistas ou por ex-analistas, em sua retirada da análise. Por outro lado, sempre estive pronto a
reconhecer o que devo a outros pesquisadores; neste caso, porém, não me sinto onerado por tal débito de
gratidão. Se a psicanálise até aqui não demonstrou sua apreciação de certas coisas, isto nunca se deveu a
que ela desprezasse sua consecução ou procurasse negar sua importância, mas porque seguia um caminho
específico, que ainda não conduziu até tão longe. E, finalmente, quando as alcança, as coisas têm para ela
uma aparência diferente da que têm para outros.” (ibid., p. 23, itálicos nossos).
Em segundo lugar, e Jung o reconhece explicitamente
229
, Freud percebeu
precocemente a existência de “vestígios” ou “resíduos arcaicos” nos sonhos, não
adquiridos através da experiência individual, entre o material que é trabalhado pela
“elaboração onírica”. Daí provém a hipótese de uma “estrutura filogenética herdada” da
psique, que, apesar de não ser realçada no texto freudiano, será mantida até os seus
escritos tardios.
230
A noção freudiana de “protofantasias” (Urphantasien) responde à
mesma necessidade teórica de explicação dos fenômenos que levaram Freud a afirmar
aquela “estrutura herdada” da psique. Contudo, manifestamente Freud oscilou a respeito
do peso a ser dado à protofantasia ou à experiência individual na determinação dos
conteúdos do inconsciente.
231
E no entanto, apesar da homologia teórica plausível entre arquétipo e
protofantasias, e entre inconsciente coletivo e Id, Freud estava certo, como diz Umberto
229
Cf. JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981
4
, p. 150:
“Olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais
interessaram a Freud: o dos ‘resíduos arcaicos’ e o da sexualidade.” Cf. “Chegando ao Inconsciente”, in O
Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977, p. 67: “precisamos levar em conta o fato
(primeiramente observado e comentado por Freud) de que num sonho muitas vezes aparecem elementos
que não são individuais e nem podem fazer parte da experiência pessoal do sonhador. A estes elementos,
como já mencionei antes, Freud chamava resíduos arcaicos’ – formas mentais cuja presença não
encontra explicação alguma na vida do indivíduo e que parecem, antes, formas primitivas e inatas,
representando uma herança do espírito humano.” Além disso, Jung é forçado a reconhecer que mesmo o
“inconsciente pessoal” apoia-se, no fundo, em fatores “coletivos”: cf., por exemplo, o ensaio “O Conceito
de Inconsciente Coletivo” (in OC IX-1, § 91), onde Jung observa que as psicologias de Freud e Adler, que
insistem na natureza pessoal da psique, baseiam-se não obstante em certos “fatores biológicos universais”
nomeadamente, o instinto sexual e o impulso de auto-afirmação os quais não são de forma alguma
meramente peculiaridades pessoais, sendo dados a priori, distribuídos universalmente. São fatores
hereditários com um caráter dinâmico ou mobilizador, “que muitas vezes se encontram tão afastados do
limiar da consciência, que a moderna psicoterapia se diante da tarefa de ajudar o paciente a tomar
consciência dos mesmos.” (ibid.) As concepções de Freud e Adler, portanto, não negam os “instintos”,
que são “forças motrizes especificamente formadas”, e por isso mesmo “são analogias rigorosas dos
arquétipos, tão rigorosas que boas razões para supormos que os arquétipos sejam imagens
inconscientes dos próprios instintos; em outras palavras, representam o modelo básico do comportamento
instintivo.” (ibid.) Porém, ao passo que a psicanálise remete a diversidade de formações arquetípicas a um
único núcleo o “complexo de Édipo” -, Jung opta por explorar as diferenças daquelas mesmas
formações. Segundo Jung, o Édipo é um arquétipo, mas Freud considerou-o o arquétipo (cf. McGUIRE,
W. e HULL, R.F.C. C.G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 260).
230
Ver, por exemplo, Análise Terminável e Interminável, de 1937, onde Freud se refere à “herança
arcaica” e a sua “transmissão hereditária”, patente no “simbolismo” (in Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 273-274).
231
Exemplar dessa hesitação é o famoso caso clínico do “Homem dos Lobos”, onde vemos Freud oscilar
entre a originariedade da protofantasia da “cena primária” (Urszene) e a derivação empírica dessa
estrutura fantasmática. Segundo Jean Laplanche (Vida y Muerte em Psicoanálisis. Buenos Aires:
Amorrortu Editores, 1973, p. 49) tais oscilações sem fim demonstram “que Freud não tem definitivamente
em suas mãos a categoria da ‘realidade psíquica’.” É exatamente isso que Jung lembra a Freud na
correspondência sobre o problema do incesto como “símbolo”, e que Freud reconhece com indisfarçável
mau humor. Podemos dizer, à luz do comentário de Laplanche, que Jung àquela altura já agarrara
firmemente a noção de realidade psíquica em suas mãos e d extrai as conseqüências teóricas,
especialmente a de uma autonomia radical do inconsciente por relação às “provas reais” da experiência
individual, o que o levará à formulação da noção de inconsciente coletivo.
Galimberti
232
, em não conceder à reflexão psicológica de Jung o título de psicanálise,
pois esta, além de possuir seu “caminho específico”, quando alcança “coisas
apresentadas em teorias de ex-analistas em sua retirada da análise” o faz de uma forma
diferente
233
. Onde estaria, portanto, o cerne dessa diferença?
Na verdade, de um ponto de vista filosófico podemos seguramente localizar o
epicentro da divergência entre Freud e Jung nas distintas concepções que ambos têm a
respeito da natureza do símbolo, com as conseqüências práticas e teóricas que daí
decorrem. A dissidência de Jung vem à tona quando eclode a discordância a respeito do
significado do incesto, que Jung afirma ser um símbolo, e Freud insiste em se tratar de
um desejo sexual concreto.
234
Mas o que exatamente quer dizer Jung quando afirma que
o motivo do incesto é “simbólico”? E o que Freud recusa nessa proposição? O que, no
fundo, está em jogo e leva à dissensão dos dois?
Em 1916 – portanto no momento em que começava a emergir da crise que viveu
após a ruptura com Freud -, Jung publica Collected Papers on Analytical Psychology,
editados por Constance Long. Os dois prefácios que escreveu para esta obra, o segundo
para a edição de 1917, revelam que ele tinha plena compreensão filosófica daquilo
que o separara de Freud. No primeiro, a polêmica deflagrada em 1912 em torno ao
estatuto do incesto é retomada, e a diferença de abordagens é expressamente referida à
noção de símbolo:
“A escola de Viena adota um ponto de vista exclusivamente sexualista, ao passo que a
escola de Zurique assume uma concepção simbolista. A escola de Viena interpreta
semioticamente o símbolo psicológico, como um sinal de certos processos psicossexuais
primitivos. Seu método é analítico e causal. A escola de Zurique reconhece a
possibilidade científica dessa concepção, mas discute a validade exclusiva, pois
interpreta o mbolo psicológico não apenas semioticamente, mas também
simbolisticamente, isto é, atribui ao símbolo um valor positivo.
O valor do símbolo não depende apenas de causas históricas; sua importância maior está
no fato de ter um significado para o presente e para o futuro, em seus aspectos
psicológicos. Para a escola de Zurique o símbolo não é apenas um sinal de algo
reprimido ou dissimulado, mas é ao mesmo tempo uma tentativa de compreender e
mostrar o caminho do ulterior desenvolvimento psicológico do indivíduo. Assim
acrescentamos um significado prospectivo ao valor retrospectivo do símbolo.
Por isso, o método da escola de Zurique não é apenas analítico e causal, mas sintético e
prospectivo, reconhecendo o fato que a mente humana se caracteriza por fines (fins) e
por causae (causas).”
235
232
Cf. GALIMBERTI, Jung e la Filosofia dell’Occidente”, p. 13. “Que os símbolos sejam significantes
não é uma verdade mas uma possibilidade que não se pode verificar com os instrumentos da psicanálise,
que reportam à primeira infância, e nem mesmo com a teoria dos arquétipos, que, não se contentando com
a primeira infância, remonta à infância da humanidade, reforçando, neste retorno, não o perfil prospectivo
de Jung, mas o método reducionista da psicanálise de Freud.” (ibid., p.17)
233
Cf. retro, citação de Freud na nota 72.
234
A dissidência pode ser acompanhada na leitura da correspondência mantida por Freud e Jung. Dada a
importância decisiva desse assunto, julgamos oportuno recensear os momentos centrais da discordância e
apresentá-los em anexo. Cf. Anexo 1.
235
OC IV, § 673-675. Em Tipos Psicológicos a mesma posição é reafirmada: “Podemos dizer que a
fantasia deve ser entendida tanto causal quanto finalisticamente. À explicação causal ela aparece como
Como se vê, Jung não recusa a interpretação freudiana. Apenas afirma ser ela
unilateral por enfatizar exclusivamente o princípio mecanicista, sem reconhecer a
legitimidade e a necessidade do princípio teleológico. Poderíamos dizer que o
mecanicismo subjacente à perspectiva da psicanálise de Freud é mantido, integrado e
suprassumido na perspectiva da psicologia analítica de Jung.
Toda essa problemática é conscientemente entendida por Jung à luz da lição
kantiana, a que ele se refere textualmente no segundo prefácio:
“na minha opinião, a natureza da mente humana nos obriga a adotar o ponto de vista
finalista. Não se pode negar que vivemos e trabalhamos, em psicologia, diariamente,
tanto com o princípio da finalidade quanto com o princípio causal. (...) Temos que ter
sempre em mente que a causalidade é um ponto de vista. Ela afirma a relação inevitável
e imutável de uma série de eventos: a-b-c-z. (...) A finalidade também é um ponto de
vista e é empiricamente justificada pela existência de séries de eventos onde a conexão
causal é evidente mas o significado deles se torna compreensível em termos de
produtos-fins (efeitos finais). (...)
Se quisermos trabalhar de forma realmente psicológica, deveremos conhecer o
significado dos fenômenos psicológicos. (...) É impossível considerar a psique apenas
do ponto de vista causal; temos que considerá-la também do ponto de vista final. (...)
KANT mostrou claramente que os pontos de vista mecanicista e teleológico não são
princípios constitutivos (objetivos), isto é, qualidades do objeto, mas apenas princípios
regulativos (subjetivos) de nosso pensamento e, como tais, não se contradizem, pois
posso conceber, sem dificuldade, a seguinte tese e antítese. Tese: Todas as coisas
nasceram segundo leis mecanicistas. Antítese: Algumas coisas não nasceram de puras
leis mecanicistas. E. KANT acrescenta: A razão não consegue demonstrar nem um nem
outro desses princípios porque a possibilidade das coisas não nos pode dar a priori um
princípio determinante, seguindo apenas as leis empíricas da natureza.
(...)
Obviamente, considero como necessários ambos os pontos de vista, tanto o causal
quanto o final, mas gostaria de frisar que, desde KANT, sabemos que os dois enfoques
não se contradizem se forem considerados como princípios regulativos do pensamento e
não como princípios constitutivos do próprio processo da natureza.”
236
um sintoma de um estado fisiológico ou pessoal, resultado, por sua vez, de [eventos antecedentes]. À
explicação finalística, porém, a fantasia se apresenta como símbolo que procura, com ajuda de materiais
disponíveis, caracterizar ou apreender certo objetivo ou, melhor, certa linha de desenvolvimento
psicológico futuro.” (OC VI, § 808)
236
OC IV, § 687-690. A referência a Kant pode ser comprovada na segunda parte da Crítica da
Faculdade do Juízo (“Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”). Cf. a edição brasileira: KANT, I.
Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995 (tradução de Valério Rohden
e António Marques). Para a antinomia citada por Jung, ver o § 70 (op. cit., p. 228-229). Ainda sobre a
necessidade de ambos os princípios explicativos (mecanicista e teleológico), ensina Kant no § 78: “Na
verdade a razão (...) tem que proceder cuidadosamente e não procurar explicar como teleológica toda a
técnica da natureza (...) mas sim considerá-la sempre possível mecanicamente. que excluir
completamente, por essa razão, o princípio teleológico e querer perseguir o simples mecanismo onde a
conformidade a fins se mostra, sem qualquer vida, para a investigação racional da possibilidade das
formas da natureza, através das suas causas, em relação com uma outra espécie de causalidade, tem que
A passagem mostra a diferença do significado causal de um evento psíquico,
estabelecido pela interpretação “semiótica” freudiana, para o sentido prospectivo
estabelecido pela interpretação “simbólica” junguiana: o símbolo-sintoma da psicanálise
é compreendido em perspectiva causal-mecanicista; o símbolo na perspectiva junguiana
é compreendido em perspectiva teleológica.
237
Em outras palavras: o inconsciente
freudiano “só sabe desejar”, e esse desejo é a repetição disfarçada de um evento
passado, que ao mesmo tempo encobre e revela uma estrutura fixa, donde a
compreensão do símbolo se esgotar na decodificação que expõe a forma velada com que
ele realiza um desejo; Jung, além disso, a psique como um “sistema auto-
regulado” que manifesta uma tendência prospectiva à realização de todas as suas
potencialidades,
238
donde a compreensão do símbolo avançar para a captação das linhas
de força que dirigem o desenvolvimento psíquico.
levar a razão a divagar de modo fantasista no meio de impensáveis fantasmas de poderes da natureza,
assim como a tornava exaltada <schwärmerisch> uma simples forma de explicação teleológica que não
tome em consideração o mecanismo da natureza.” (op. cit., p. 252) E conclui mais adiante (op. cit., p.
256): “Mas o certo é que [o tipo de explicação mecânica] será sempre insuficiente para as coisas que
chegamos a reconhecer como fins naturais, por mais longe que o levemos. Por isso teremos que
subordinar todos aqueles princípios a um princípio teleológico de acordo com a constituição do nosso
entendimento.”
237
Em 1946, retornando ao problema do incesto no conteúdo específico do fenômeno da “transferência”,
Jung reafirma sua posição distinta com relação a Freud: “Como se sabe, o conteúdo de fantasia do
instinto pode ser interpretado redutivamente ou seja, semioticamente como uma auto-representação
concreta do instinto, ou então simbolicamente como o sentido espiritual do instinto natural.” OC XVI, §
362. E nas suas memórias, editadas por Aniela Jaffé, ele afirma a importância da sexualidade, em sua
psicologia, como uma das expressões da totalidade psíquica, comentando: “Minha preocupação essencial
era, no entanto, aprofundar a sexualidade, além de seu significado pessoal e seu alcance de função
biológica, explicando-lhe o lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia, assim, o que fascinara Freud,
sem que este o compreendesse.” JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 150.
238
Trata-se do impulso da individuação, que se enraíza na totalidade pessoal do Si-mesmo. Examinaremos
estas noções no próximo capítulo. A propósito, Zeljko Loparic observa como a psicanálise pós-freudiana ,
a partir da “experiência clínica adquirida durante décadas pelos melhores entre os psicanalistas”, “buscou
cada vez mais se distanciar das metáforas mecânicas e dinâmicas de cunho fisicalista introduzidas por
Freud na sua teoria das pulsões e, mais genericamente, do naturalismo freudiano.” LOPARIC, Z. “O
Conceito de Trieb na Psicanálise e na Filosofia”, in MACHADO, J.A.T. (org.) Filosofia e Psicanálise:
Um Diálogo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 133. Loparic dá como exemplo o psicanalista inglês
Donald W. Winnicott que se afasta do mecanicismo da teoria pulsional freudiana ao reconhecer algo
desconhecido por Freud e pela psicanálise tradicional: os chamados “processos maturacionais”, que
Winnicott define como uma “tendência inata para crescimento e evolução pessoal”, tendência
“integrativa” que caracteriza a própria “natureza humana” e que visa “atingir o status de unidade (de
indivíduo)” (Cf. LOPARIC, op. cit., p. 134 ss.). A aproximação com a noção junguiana de individuação é
evidente, e com isso seria de se esperar uma aproximação com a concepção do simbólico em Jung – e isso
de fato acontece, apesar de Winnicott não perceber ou não reconhecer: veja-se WINNICOTT, D.W. O
Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975, especialmente capítulos IV e V. Explorando a noção
de “fantasiar” em um texto de Freud de 1911, Winnicott encaminha-se (inadvertidamente?) na direção de
Jung, chegando mesmo, em uma intervenção clínica que ele mesmo narra, a reconhecer
(involuntariamente?) a realidade da anima (cf. op. cit., 103-120). Também a distinção winnicotiana entre
falso e verdadeiro self encontra precedentes paralelos na psicologia de Jung.
Uma vez que a noção de símbolo integra, como mostramos, a real originalidade
em psicologia da perspectiva de Jung, é conveniente passarmos em revista os seus
caracteres distintivos, a começar pela definição mesma dessa noção. Para Jung, símbolo
é definido como “a melhor formulação possível de algo relativamente desconhecido,
não podendo, por isso mesmo, ser mais clara ou característica”.
239
E ele acrescenta a
distinção entre “símbolo vivo” e “símbolo morto”: “Enquanto um símbolo for vivo, é a
melhor expressão de alguma coisa. E só é vivo enquanto cheio de significado. Mas, uma
vez brotado o sentido dele, isto é, encontrada aquela expressão que formula melhor a
coisa procurada, esperada ou pressentida do que o símbolo até então empregado, o
símbolo estará morto, isto é, só terá ainda significado histórico.”
240
Entendido como “síntese tensional” de opostos, o símbolo vivo caracteriza-se por sua
plurivocidade semântica inesgotável e por sua ambigüidade constitutiva, que vetam
qualquer formulação unívoca de sentido, bem como uma interpretação que venha
exaurir a sua potência de produção ilimitada de significados.
241
A natureza simbólica de algo depende em parte da atitude da consciência que
observa o fenômeno dado
242
, e em parte do “comportamento das coisas”. Jung
reconhece que processos que não têm sentido simbólico algum, sendo mera
conseqüência ou sintoma, e portanto devendo ser interpretados semioticamente; mas
também processos que não derivam simplesmente de algo, trazem em si um sentido
oculto e pressionam na direção de uma expressão simbólica, em sentido próprio. Donde
caber ao bom senso e ao espírito crítico o discernimento da natureza simbólica ou então
sintomática de alguma coisa.
243
239
OC VI, § 904.
240
OC VI, § 905.
241
Cf. OC IX-1, § 80. Cabe observar aqui que a inesgotabilidade de sentido está de certo modo
contemplada na semiótica freudiana a partir da proposição da “sobredeterminação” e da correspondente
“super-interpretação” dos produtos do inconsciente. A diferença está em que, pelo menos em tese, tudo o
que determina o mbolo-sintoma poderia ser reconduzido à univocidade de significado resultante da
interpretação psicanalítica, enquanto que na perspectiva simbólica junguiana, em tese, em si mesmo o
sentido do símbolo não poderia ser definitivamente interpretado, por transcender radicalmente isto é,
em sua raiz - a própria razão que interpreta e a expressão particular que assume em um dado contexto.
Percebe-se nesse ponto a têmpera iluminista de Freud, ao passo que Jung, nolens volens, inclina-se mais
fortemente na direção da tradição romântica, como mostraremos no último capítulo.
242
“Depende da atitude da consciência que observa se alguma coisa é símbolo ou não”.(OC VI, § 907)
“Para desvendar seu caráter simbólico [i.é., dos sonhos], é necessária uma disposição consciente bem
específica, a saber, a vontade de entender o conteúdo do sonho como simbólico.” (OC X, § 29).
“Portanto, o inconsciente terá para nós uma função criadora de símbolos se estivermos dispostos a
reconhecer nele um elemento simbólico. Os produtos do inconsciente são pura natureza. A natureza não é
por si um guia, pois não existe em função do homem. (...) Pode-se usar o inconsciente como fonte dos
símbolos, mas com a necessária correção consciente que, aliás, temos que aplicar a todo fenômeno
natural, para que possa servir aos nossos objetivos.” OC X, § 34.
243
Cf. OC VI, § 911. A esta característica do símbolo na concepção junguiana Paolo Francesco Pieri dá o
nome de “decisionalidade”, mas observa que “não se pode falar tout court de uma decisão racional de
Por outro lado, sendo um produto psíquico complexo composto de dados de
todas as funções psíquicas, tanto racionais quanto irracionais, o símbolo expressa
sempre, em alguma medida, um aspecto da totalidade psíquica
244
. Inversamente, na
medida em que essa totalidade escapa à apreensão direta, ela só pode se formular
simbolicamente. O símbolo, para Jung, reúne o superior e o inferior, nasce das mais
altas realizações espirituais do ser humano mas, por “conter as razões mais profundas de
seu ser”, provém também das suas “moções mais inferiores e mais primitivas”.
245
Assim, o símbolo aparece como uma coniunctio oppositorum, que supera
dialeticamente o estado de “desunião fortíssima consigo mesmo”, e nisso radica o seu
efeito terapêutico e “libertador”.
246
Desta forma, a divergência teórica em torno à questão do símbolo desemboca em
uma concepção terapêutica distinta da proposta pela psicanálise freudiana. Se o
“símbolo” é meramente sintoma de um desacordo interno, e como tal constitui-se como
disfarce que permite a expressão e realização da parte censurada ou recalcada, a sua
interpretação “semiótica” justifica-se plenamente como forma de trazer à consciência o
próprio conflito, levando o eu a se reconhecer em ambas as partes da oposição. Essa a
função do momento “redutivo” – seja freudiano, seja adleriano – que é assumido
positivamente na concepção ampliada da psyches therapeia junguiana. Contudo, esse
momento deixa sem solução aquela mesma oposição, que não pode ser ultrapassada por
qualquer artifício de técnica ou por um ato de vontade da consciência. Eis o que, por
outro lado, justifica o momento “construtivo” ou sintético próprio do “método
interpretar simbolicamente”, justamente porque a contrapartida da atitude simbólica da consciência
encontra-se na própria imagem, que legitima aquela decisão e aqui Pieri fala da “indicatividade” do
símbolo, concluindo: “no plano semântico, o símbolo nunca pode ser traduzido em um significado
circunscrito a não ser com a perda, no plano pragmático, da sua ação dirigida a suscitar significados.” Cf.
PIERI, P.F. Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus, 2002, verbete “símbolo”.
244
“O símbolo é sempre um produto de natureza altamente complexa, pois se compõe de dados de todas
as funções psíquicas. Portanto, não é de natureza racional e nem irracional. Possui um lado que fala à
razão e outro inacessível à razão, pois não se constitui apenas de dados racionais mas também de dados
irracionais fornecidos pela simples percepção interna e externa. A carga de pressentimento e de
significado contida no símbolo afeta tanto o pensamento quanto o sentimento, e a plasticidade que lhe é
peculiar, quando apresentada de modo perceptível aos sentidos, [provoca tanto a sensação como a
intuição].” OC VI, § 912.
245
Cf. OC VI, § 912.
246
Cf. OC VI, § 912: “Para que esta colaboração dos estados opostos seja possível, ambos têm que estar
conscientemente lado a lado em plena oposição. Este estado tem que ser uma desunião fortíssima consigo
mesmo, de tal forma que tese e antítese se neguem e que o eu tenha que reconhecer sua participação
absoluta em ambas. Se houver subordinação de uma das partes, o símbolo será principalmente produto da
outra parte e será, na mesma proporção, menos símbolo do que sintoma, isto é, sintoma de uma antítese
oprimida. Porém, na medida em que um símbolo é mero sintoma, também lhe falta o efeito libertador,
pois não exprime o pleno direito à existência de todas as partes da psique, mas lembra a opressão da
antítese, mesmo que a consciência não se dê conta disso.
hermenêutico” proposto por Jung, que acompanha o processo simbólico definido como
uma vivência na imagem e da imagem.
247
A capacidade “libertadora” do símbolo resulta de seu estatuto de mediação entre
opostos, possibilitando a transição de um determinado estado psíquico a outro. O
símbolo brota da natureza compensatória da auto-regulação da psique. Não sendo
uma invenção da consciência, ele se origina de um movimento inconsciente
compensatório à unilateralidade consciente.
248
A compensação simbolicamente
apresentada aponta, desse modo, para uma posição possível que consegue reconciliar
os opostos numa unidade superior que abarca o inconsciente e a consciência.
249
A
transformação propiciada pelo símbolo, ao mesmo tempo em que soluciona um
conflito, resulta numa ampliação da personalidade existente, sendo pois
construtiva.
250
Assim, o processo simbólico, vivido na dimensão temporal,
encadeando-se numa série de transformações sucessivas, ordena-se pela totalidade
pessoal. Se nem todo símbolo é imediatamente símbolo dessa totalidade, por outro
lado é permitido afirmar que no fundo do dinamismo simbólico ela rege todo
símbolo particular, na medida em que cada reconciliação simbólica de opostos é um
momento constitutivo da realização efetiva da totalidade pessoal.
251
247
OC IX-1, § 82: “O processo simbólico é uma vivência na imagem e da imagem. (...) É óbvio que a
riqueza dos mbolos oscila extraordinariamente. Tudo, no entanto, é vivenciado numa forma imagética,
isto é, simbolicamente, não se tratando porém de perigos fictícios, mas de riscos muito reais, dos quais
pode depender todo um destino. O perigo principal é sucumbir à influência fascinante dos arquétipos, o
que pode acontecer mais facilmente quando as imagens arquetípicas não são conscientizadas.” O
processo simbólico encontra expressão original na técnica da “imaginação ativa”, desenvolvida por Jung
em seu confronto com o inconsciente na década de 1910 e que não tem qualquer correspondência na
psicanálise ortodoxa. Veremos em seguida como do enraizamento do mbolo no arquétipo resulta a sua
realidade-efetividade (Wirklichkeit).
248
“Não é possível inventar símbolos e, onde quer que apareçam, nunca são produzidos por intenção
consciente e por escolha da vontade. Se tivéssemos adotado tal procedimento, nada mais teriam sido do
que sinais e abreviações de pensamentos conscientes. Os mbolos [ocorrem a nós] espontaneamente,
como podemos ver em nossos sonhos, que não são [inventados] por nós, mas acontecem.” OC XVIII, §
432.
249
“Pela atividade do inconsciente emerge novo conteúdo, constelado igualmente pela
tese e antítese, e que se comporta compensatoriamente para com ambas. Uma vez que
este conteúdo apresenta uma relação tanto com a tese quanto com a antítese, forma uma
base intermédia onde os opostos podem unificar-se.” OC VI, § 914. Jung denomina
“função transcendente” a este processo simbólico, entendendo por “transcendente” a
capacidade própria do símbolo de criar uma passagem de uma posição ou atitude a
outra, integrando os opostos até então irreconciliados no conflito. Cf. OC VI, § 908; cf.
também OC VIII, §§ 131-193. Por isso, na visão de Jung o símbolo é o tertium datur
entre dois opostos. Gilbert Durand observa que a “síntese” dos opostos no símbolo
junguiano é mais um “sistema”, no sentido da lógica do físico Stéphane Lupasco, na
medida em que as polaridades antagonistas são mantidas intactas no símbolo, não
perdendo sua potencialidade de contradição. Cf. DURAND, A Imaginação Simbólica, p.
64 nota 20.
250
Não é casual o fato de o livro que sela a ruptura com Freud trazer em seu título a referência à
capacidade transformadora do símbolo: Wandlungen und Symbole der Libido, posteriormente revisto e
renomeado como Symbole der Wandlung. O novo conceito de “libido”, introduzido por Jung em 1912, já
trazia embutida a mudança de perspectiva que analisamos aqui: assim como o símbolo em Jung difere do
signo freudiano, a transformação que ele proporciona não pode ser reduzida à “sublimação” psicanalítica.
251
Ao contrário de muitos de seus entusiasmados seguidores, Jung sobriamente reconhece que essa
realização efetiva da totalidade humana é muito relativa, limitada pela condição mortal ou finitude do ser
Por fim, podemos afirmar que subjacente à concepção de símbolo em Jung
encontramos uma concepção antropológica que difere significativamente da concepção
implícita na psicanálise freudiana. Desse modo, aquela ruptura, que marcou a história da
psicanálise, expressa a oposição não conciliada de duas perspectivas sobre o ser
humano.
252
A diferença a respeito da noção de símbolo compreende-se, portanto, em
chave antropológica, o que significa dizer que, até aqui, o discurso sobre o símbolo e o
sentido poderia se inscrever adequadamente no interior do espaço teórico constituído
pela mentalidade moderna.
Contudo, a antropologia psicológica de Jung não se encerra nos horizontes
ampliados da subjetividade, dilatados pela experiência psicanalítica para acolher a
relação dialética entre consciência e inconsciente, e por isso o próprio estatuto do
simbolismo vai ultrapassar o círculo férreo do Cogito moderno, e assim apontar para as
antigas estruturas que sustentavam o “espaço hermenêutico”.
4. Para além da redução antropológica
O estudo comparativo de tradições simbólicas separadas no espaço e no tempo
comprova a existência de uma universalidade de temas e motivos, a qual não pode ser
explicada satisfatoriamente pela hipótese de uma transmissão ou difusão cultural de
humano. Cf. Cartas III, 11/05/1956, a Rudolf Jung. A mesma humana sobriedade transparece em uma
passagem de uma carta escrita aos 79 anos a Aniela Jaffé: “Eu me observo na tranqüilidade de Bollingen
e, com toda a minha experiência de quase oito décadas, devo admitir que não encontrei uma resposta
satisfatória para mim mesmo. Estou agora, como [antes], em dúvida sobre mim mesmo, e tanto mais
quando procuro dizer algo definitivo. É como se [a familiaridade consigo mesmo nos alienasse ainda mais
de nós mesmos].” Cartas II, 6/4/1954, a Aniela Jaffé.
252
Oposição que, encarada a partir da perspectiva de Jung, é antes uma suprassunção, que pode ser
verificada na sua posição a respeito do princípio de Eros, que desmente a suposta - e falsa
desvalorização e desconsideração da sexualidade na psicologia analítica: “[Eros] por um lado, pertence à
natureza primitiva e animal do homem e existirá enquanto o homem tiver um corpo animal. Por [outro]
lado, está ligado às mais altas formas do espírito. [Mas] floresce quando espírito e instinto estão em
[correta] harmonia. (...) O excesso de animalidade deforma o homem cultural; o excesso de cultura cria
animais doentes.” OC VII, § 32. Na mesma passagem Jung subscreve a posição de Platão a respeito de
Eros, citando o Banquete. Podemos referendar essa subscrição: “Eros tem uma importância fundamental
no pensamento de Platão, como sendo a única forma de experiência que conjuga as duas naturezas do
homem, o Eu divino e a fera enjaulada. Porque Eros está francamente enraizado naquilo que o homem
partilha com os animais, o impulso psicológico do sexo (um fato que infelizmente é obscurecido pelo
abuso moderno e persistente da expressão ‘amor platônico’); no entanto, Eros também substitui o impulso
dinâmico que conduz a alma em direção à procura de uma satisfação que transcenda a experiência
terrestre. Assim, abarca todo o âmbito da personalidade humana e constrói a ponte empírica entre o
homem tal como é e o homem como devia ser.” DODDS,E.R. Os Gregos e o Irracional. Lisboa: Gradiva,
1988, p. 235-236. À luz da divergência com Jung aqui examinada, a aproximação que Dodds sugere entre
a concepção platônica e “o princípio freudiano da libido e da sublimação(ibid.) mostra-se apressada e
equivocada.
uma sociedade a outra, sendo necessário radicá-la na regularidade e constância do
espírito humano, que vive sempre e em toda parte algumas situações fundamentais e as
expressa por meio de símbolos estruturalmente semelhantes.
Sob o prisma psicológico, Jung vai explicar essa universalidade do simbolismo,
corroborada na prática clínica, postulando a existência de estruturas invariantes da
imaginação inconsciente, a que ele dará o nome de arquétipos, que em seu conjunto
compõem o inconsciente coletivo. Estas duas noções correlatas tornaram-se uma espécie
de identificador da psicologia analítica para o público culto, tendo além disso
extrapolado o campo em que foram originariamente formuladas e se tornado patrimônio
da cultura do século XX.
Uma vez que os mbolos se enraizam nessas estruturas arquetípicas da psique
humana, é necessário examinar as conseqüências que advêm para o estatuto do
simbolismo da sua fundamentação nos “arquétipos do inconsciente coletivo”.
Em primeiro lugar, é preciso notar que os arquétipos são inferidos por Jung a
partir do exame dos símbolos. Isto significa que não existe uma experiência ou
conhecimento imediatos dos arquétipos, mas apenas uma experiência e conhecimento
através das imagens simbólicas pois, como dissemos anteriormente, o processo
simbólico é uma vivência na imagem e da imagem.
253
Logo, estabelece-se entre o
253
Convém observar, porém, que do ponto de vista psicológico as imagens não são inofensivas
representações mentais, meras “cópias da sensação”, mas fatores dinâmicos indissociáveis das forças
profundas que compõem a afetividade humana, as quais, como bem se sabe, podem destruir uma vida, ou,
no plano ampliado da escala social, levar milhões de pessoas, por exemplo, a marchar fascinadas por uma
suástica e promover carnificinas e monstruosidades que põem em xeque a por vezes orgulhosa definição
do homem como animal racional. Falando de sua crise pessoal, na qual esteve próximo da loucura, Jung
relembra o risco e o caráter dramático da “vivência na imagem e da imagem”: “Na medida em que
conseguia traduzir as emoções em imagens, isto é, ao encontrar as imagens que se ocultavam nas
emoções, eu readquiria a paz interior. Se tivesse permanecido no plano da emoção, possivelmente eu teria
sido dilacerado pelos conteúdos do inconsciente. Ou, talvez, se os tivesse reprimido, seria fatalmente
vítima de uma neurose e os conteúdos do inconsciente destruir-me-iam do mesmo modo. Minha
experiência ensinou-me o quanto é salutar, do ponto de vista terapêutico, tornar conscientes as imagens
que residem por detrás das emoções.” (JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 158.) A
propósito, cabe lembrar que, para Gilbert Durand, seguindo Jung e Cassirer, a “vivência na imagem e da
imagem” nos estados psicopatológicos corresponde a uma degradação e a uma mutilação da imagem,
provenientes de uma deficiência da função simbólica, “fazendo o princípio de individuação submergir de
duas maneiras: a primeira como nos ‘casosestudados pela psicanálise pela dominação dos impulsos
instintivos, que não conseguem mais ‘simbolizar’ conscientemente a energia que os anima, e então o
indivíduo, em vez de se personalizar, se isola do mundo real (autismo) e assume uma atitude anti-social,
impulsiva e compulsiva; a segunda, nos casos menos estudados, mas mais insidiosos, o equilíbrio é
rompido em favor da consciência clara, e então se assiste a um duplo processo de liqüidação muito
freqüente e até mesmo endêmico em nossas sociedades hiper-racionalistas – liqüidação do símbolo que se
estreita em signo, liqüidação da pessoa e da sua energia constitutiva metamorfoseada em um robô
mecânico animada apenas pelas ‘razões’ do consciente social estabelecido.” DURAND, A Imaginação
Simbólica, p. 62-63. Por onde se o alcance e o sentido social e cultural do projeto de recuperação da
sensibilidade simbólica constitutivo da psyches therapeia junguiana. Sobre essa dimensão sócio-cultural,
veja-se o ensaio Presente e Futuro, escrito em 1957, in OC X.
símbolo manifesto e o arquétipo inferido uma relação de representação (Vorstellung)
o símbolo representa ou “epifaniza” o arquétipo que, em si, permanece irrepresentável,
e portanto incognoscível.
254
Esta distinção entre o arquétipo em si e a imagem arquetípica repropõe,
refratado em âmbito psicológico, o esquema platônico do modelo-arquétipo supra-
sensível e de sua imagem sensível.
255
Ainda que redirecionada, a princípio, conforme a
antroponomia do regime mental moderno, essa distinção preserva uma inegável marca
metafísica, razão pela qual será questionada e abandonada em alguns meios pós-
junguianos críticos, mais alinhados com as tendências anti-metafísicas do pensamento
contemporâneo.
256
Jung reivindica a filiação kantiana para sua concepção dos arquétipos do
inconsciente coletivo, afirmando que eles estão para a imaginação simbólica assim
como as categorias de Kant estão para o entendimento.
257
Assim, ele pode afirmar que
“A rigor, o inconsciente coletivo nem existe, pois nada mais é do que uma
possibilidade, ou seja, aquela possibilidade que nos foi legada desde os tempos
254
“Não devemos confundir as representações arquetípicas que nos são transmitidas pelo inconsciente
com o arquétipo em si. Essas representações são estruturas amplamente variadas que nos remetem para
uma forma básica irrepresentável que se caracteriza por certos elementos formais e determinados
significados fundamentais, os quais, entretanto, podem ser apreendidos de maneira aproximativa. O
arquétipo em si é um fator psicóide que pertence, por assim dizer, à parte invisível e ultra-violeta do
espectro psíquico. Em si, parece que o arquétipo não é capaz de atingir a consciência.” OC VIII, § 417. A
respeito do uso por Jung e das dificuldades de tradução para o inglês dos termos Vorstellung e Idee, cf.
Cartas III, 15/08/1958, a Richard F.C. Hull (tradutor oficial das Collected Works de Jung).
255
Jung textualmente compara sua concepção de arquétipo à tradição filosófica platônica: “Platão confere
um valor extraordinariamente elevado aos arquétipos como idéias metafísicas, como paradeigmata, em
relação aos quais as coisas reais se comportam meramente como mimesis, como imitações, pias. Como
bem se sabe, a filosofia medieval desde Agostinho do qual tomei emprestado a idéia de arquétipo até
Malebranche e Bacon ainda se encontra em terreno platônico, sob este aspecto, embora na Escolástica
desponte a noção de que os arquétipos são imagens naturais gravadas no espírito humano, e com base nas
quais este forma os seus juízos.” OC VIII, § 275. A seguir, Jung aponta a redução antropológico-crítica
moderna dos arquétipos platônicos: “A partir de Descartes e Malebranche, porém, o valor metafísico da
idéia, do arquétipo, declina sensivelmente. Torna-se um ‘pensamento’, uma condição interna do
conhecimento, como o diz claramente Spinoza (...) Finalmente Kant reduz os arquétipos a um [limitado]
número de categorias da razão. Schopenhauer vai mais longe ainda no processo de simplificação, embora
ao mesmo tempo volte a conferir um valor quase platônico aos arquétipos.” Ibid., § 276.
256
Notadamente na “psicologia arquetípica” encabeçada por James Hillman, e no “junguianismo crítico
de Mario Trevi.
257
Por exemplo, em OC X, § 14: “Mas não se deve confundir fantasias mitológicas com idéias
hereditárias. Não se trata disso, mas sim de possibilidades inatas de idéias, condições a priori de produzir
fantasias, comparáveis talvez às categorias de KANT. As condições inatas não geram conteúdos mas
conferem determinadas configurações aos conteúdos adquiridos. Essas condições universais (...) são a
causa da semelhança dos símbolos e dos motivos mitológicos”. É isto que permite a Gilbert Durand, ao
termo de seu levantamento das “estruturas antropológicas do imaginário” que é um ensaio de
“arquetipologia geral” – propor o esboço de uma “fantástica transcendental”. Cf. DURAND, G. As
Estruturas Antropológicas do Imaginário. Introdução à Arquetipologia Geral. São Paulo: Martins
Fontes, 1997, p. 375-434.
primitivos na forma de imagens mnemônicas ou, falando em linguagem anatômica,
dentro da estrutura cerebral. Idéias inatas não existem; existem possibilidades inatas de
idéias que colocam determinados limites também às mais ousadas fantasias, colocam
categorias, por assim dizer, à capacidade de fantasiar, colocam certas [formas] a priori,
cuja existência não se pode afirmar sem a experiência. Elas aparecem na matéria
formada como princípios reguladores de sua formação”.
258
E no entanto, o kantismo, manifesto ou aparente, só contempla a dimensão
teórico-epistemológica da psicologia analítica de modo parcial e questionável. Pois, por
outro lado, não é casual nem destituído de conseqüências o fato de Jung empregar a
“linguagem anatômica” ao se referir aos arquétipos. Se, sob um ângulo epistemológico,
eles se comportam como formas vazias, destituídas de conteúdo
259
, dadas a priori como
condição de possibilidade de toda constelação simbólica, sendo portanto comparáveis
analogicamente às categorias kantianas, do ponto de vista empírico e dinâmico Jung vai
insistir em que eles são realidades vivas, enraizados na estrutura corporal humana,
homologáveis aos instintos, comportando-se como forças concretas em operação na
psique – e com isso a analogia com Kant já não se sustenta. Como nota Paolo Francesco
Pieri, esta oscilação do estatuto teórico do arquétipo em Jung confere-lhe uma
ambivalência que faz com que ele seja concebido, de um lado, como um “operador
simbólico”, e de outro como um “fundamento objetivo”.
260
É importante notar que o enraizamento corporal dos arquétipos estabelece uma
continuidade entre a psique humana e a natureza em sua materialidade. Tal continuidade
afetará, por conseguinte, o estatuto dos símbolos, que se fundamentam na base
arquetípica da mesma psique: a simbolização humana é inseparável da corporalidade.
Jung deixa bem claro esse ponto:
258
OC XV, § 126. (Aqui “idéias” traduz “Vorstellungen” e “forma” traduz “Idee”.)
259
“Devemos ressaltar mais uma vez que os arquétipos são determinados apenas quanto à forma e não
quanto ao conteúdo (...) Uma imagem primordial só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo no caso
de tornar-se consciente e portanto preenchida com o material da experiência consciente. (...) O arquétipo é
um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma
possibilidade [de representação que é] dada a priori.” OC IX-1, § 155.
260
Cf. PIERI, Dicionário Junguiano, verbete “arquétipo” (p. 46). Na verdade, Jung
amadurece gradualmente sua reflexão sobre a natureza do arquétipo até apresentar, no
encontro de Eranos em 1946, o resultado acabado de suas concepções na conferência
intitulada Der Geist der Psychologie, posteriormente publicada nas obras reunidas sob o
título Considerações Teóricas sobre a Natureza do Psíquico. Nesse ensaio fundamental,
as relações entre arquétipo e instinto são tratadas demoradamente. Trataremos mais
detalhadamente da relação entre a epistemologia de Jung e Kant no capítulo quarto.
“No campo da medicina, as fantasias são coisas reais (...) Em última análise, o corpo
humano também é constituído da matéria do mundo e é nela que as fantasias se tornam
manifestas; sim, sem ela as ‘fantasias’ não podem ser experienciadas. Sem matéria, elas
seriam mais ou menos como grades abstratas de cristal dentro de uma solução de lixívia
em que o processo de cristalização ainda não começou.
Os símbolos do si-mesmo surgem na profundeza do corpo e expressam a sua
materialidade tanto quanto a estrutura da consciência discriminadora. O símbolo é o
corpo vivo, corpus et anima (...) A singularidade da psique é uma grandeza em vias de
realização, nunca de um modo total, mas aproximativo, a qual é ao mesmo tempo o
fundamento imprescindível de toda consciência. As ‘camadas’ mais profundas da
psique vão perdendo com a escuridão e [profundidade] crescentes a singularidade
individual. Quanto mais ‘baixas’, isto é, com a aproximação dos sistemas funcionais
autônomos, tornam-se gradativamente mais coletivas, a fim de se universalizarem e ao
mesmo tempo se extingüirem na materialidade do corpo, isto é, nas substâncias
químicas. O carbono do corpo é simplesmente carbono. Em seu nível mais baixo’ a
psique é pois simplesmente ‘mundo’.”
261
Essa passagem, tomada fora de seu contexto, poderia ser lida como uma
expressão de um materialismo mecanicista inconfessado. No entanto, o que surpreende
nesse aparente materialismo é que ele tomará a direção inversa do materialismo
científico tradicional: ao invés de reduzir o psiquismo a um epifenômeno da matéria,
Jung percorre a continuidade psique-mundo para propor a hipótese de um fundamento
objetivo do sentido que é formulado nos símbolos humanos, vale dizer, um fundamento
que transcende a esfera da subjetividade.
262
Esta proposição arrojada representa o termo de uma evolução no pensamento de
Jung. Pois, dada a correlação psique-símbolo-sentido, poder-se-ia pensar que em Jung
encontramos apenas uma versão da concepção subjetivista do símbolo e do sentido,
inscrita no espaço teórico da redução antropológica moderna. E, de fato, é daí que ele
parte, com sua cautela crítica. Num texto de 1929, época em que Jung já meditava sobre
a possibilidade que conduziria à hipótese de um sentido objetivo, ele ainda se
perguntava:
261
OC IX-1, §§ 290-291. Esta é a base para a concepção da materialidade da imaginação criadora em
Gaston Bachelard, que se alimenta consideravelmente da psicologia de Jung. A este respeito, permitimo-
nos remeter ao nosso estudo A Imaginação Criadora na Poética de Gaston Bachelard (Belo Horizonte:
UFMG/FAFICH, 1994), onde demonstramos que a dimensão cosmológica da imaginação criadora
bachelardiana apoia-se na noção junguiana de inconsciente.
262
Observe-se, contudo, que Jung, a partir de seu ceticismo epistêmico, que explicitaremos no último
capítulo, toma suas distâncias tanto do materialismo quanto do espiritualismo, considerando ambos como
expressões de formas arquetípicas opostas da psique humana, valorizadas diferentemente conforme as
inflexões históricas do Zeitgeist. Cf. OC VIII, §§ 651-661. Para uma boa exposição acerca da posição de
Jung com relação ao materialismo, consulte-se PIERI, P.F. Dicionário Junguiano, verbete
“materialismo”. A crítica à ousadia metafísica da hipótese materialista, que reduz processos anímicos
complexos a processos físico-químicos (cf. OC IX-1, §§ 117-118), é fundamental na abertura do espaço
teórico para uma psicologia autônoma (isto é, distinta da biologia), que trabalha com a hipótese de que o
fator anímico é “uma realidade autônoma de caráter enigmático” (ibid.).
“Pode acontecer que uma coisa ou um fato tenha um significado em si? A única coisa
certa é que quem interpreta, ou quem dá o significado, é sempre o homem. Por ora,
isso é essencial à psicologia.”
263
Todavia, não é que a experiência de Jung se detém. Meditando sobre certos
fenômenos “relativamente raros”, em que se tornava patente a coincidência significativa
entre um evento subjetivo, psíquico, e um acontecimento externo, físico, sem que
qualquer conexão causal entre ambos pudesse ser indicada ou mesmo cogitada, Jung se
forçado a mirar para além da subjetividade, e propor a sua hipótese da
sincronicidade.
264
Ao tratar da causalidade, Jung atém-se ao sentido empírico dessa noção. Fiel ao
seu criticismo epistemológico, ele se abstém de considerar a causalidade em sentido
metafísico, pois esta não poderia ser estabelecida nem pela experiência nem pela
reflexão filosófica. Assim, a relação causal empiricamente entendida pressupõe
necessariamente as categorias de espaço e tempo.
265
É por contraponto a esta forma
empírica e mecanicista de causalidade que Jung propõe o princípio explicativo da
sincronicidade, que ele define como a “coincidência, no tempo, de dois ou vários
eventos, sem relação causal mas com o mesmo conteúdo significativo.”
266
Note-se que a
ênfase é posta na coincidência de sentido ou equivalência entre eventos psíquicos e
eventos físicos, com a condição ulterior de que uma conexão causal seria impensável.
Assim, a noção de sincronicidade pretende ser um princípio explicativo de certas
263
OC XVI, § 93.
264
Cf. o ensaio publicado em 1952, sob o título Synchronizität als ein Prinzip akausaler
Zusammenhänge, integrando posteriormente o volume VIII das Collected Works. Um excelente estudo
crítico sobre o tema, que mostra a sua vinculação à problemática filosófica da intuição intelectual,
encontra-se em BISHOP, P. Synchronicity and Intellectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung.
Lewiston: Edwin Mellen Press, 2000.
265
“A causalidade está ligada à existência do espaço e do tempo e às mudanças físicas do corpo, pois
consiste essencialmente em uma sucessão de causas e efeitos.” OC VIII, § 855.
266
OC VIII, § 849. Nessa mesma passagem Jung diferencia a sincronicidade do mero “sincronismo”, que
é apenas a ocorrência simultânea de dois fenômenos, sem que haja a coincidência de conteúdos
significativos.
conexões entre eventos, independente e complementar ao princípio da causalidade, e a
ele equivalente.
267
Jung insiste em que sua hipótese da sincronicidade não se baseia em
“pressupostos filosóficos”, mas sim “na experiência concreta e na experimentação”.
268
Aqui ele se refere, por um lado, aos “fenômenos relativamente raros” da precognição,
da clarividência, da telepatia, dos sonhos premonitórios, e por outro à experimentação
de J.B.Rhine sobre a “percepção extra-sensorial”.
Descrevendo os fenômenos sincronísticos de forma geral, Jung afirma que eles
se constituem de dois fatores: “1) uma imagem inconsciente alcança a consciência de
maneira direta (literalmente) ou indireta (simbolizada ou sugerida) sob a forma de um
sonho, associação ou premonição; 2) uma situação objetiva coincide com este
conteúdo.”
269
Do lado subjetivo ou psíquico, os eventos sincronísticos radicam-se
portanto no inconsciente. Além disso, Jung observa que, via de regra, eles estão ligados
à afetividade, a qual repousa sobre os instintos, que por sua vez têm os arquétipos como
“aspecto formal”, donde se conclui que a sincronicidade tem um fundamento
arquetípico.
270
267
Sobre a justificação para introduzir o princípio da sincronicidade, Jung diz: As coincidências
significativas são pensáveis como puro acaso. Mas, quanto mais elas se multiplicam, [quanto] maior e
mais exata é a [correspondência], tanto mais diminui sua probabilidade e mais aumenta sua
impensabilidade, [até que] não se pode mais considerá-las como mero acaso, mas, por não terem
explicação causal, devem ser [pensadas] como arranjos que m sentido. Sua ‘inexplicabilidade’, como
frisei, não é devida [ao fato de que sua causa é desconhecida], mas ao fato de que [uma causa nem sequer
é pensável em termos intelectuais]. Isto acontece necessariamente quando o espaço e o tempo perdem o
seu significado [ou] quando se tornam relativos, porque, em tais circunstâncias, a causalidade, que
pressupõe o espaço e o tempo, torna-se quase impossível de ser determinada ou é simplesmente
impensável.” OC VIII, § 957. Um dos instrumentos utilizados por Jung para desqualificar a explicação
por “puro acasoem situações onde uma relação causal se torna impensável é o cálculo estatístico, que
pode demonstrar a extrema improbabilidade de certos acasos e assim abrir caminho para a plausibilidade
de uma explicação pelo princípio da sincronicidade.
268
Cf. OC VIII, § 985.
269
OC VIII, § 858. Jung também compreende segundo a noção de sincronicidade a coincidência não
causalmente determinável entre estados psíquicos discretos (isto é, em pessoas diferentes). Cf., por
exemplo, OC XV, § 81.
270
Cf. OC VIII, § 846. “Os casos de coincidências significativas, que devemos
distinguir dos grupos casuais, parecem repousar sobre fundamentos arquetípicos. Pelo
menos os casos de minha experiência e são em grande número apresentam esta
característica.”(ibid.) As potências ativas (numinosas) do inconsciente são os
arquétipos. Na grande maioria dos fenômenos espontâneos de sincronicidade que eu
tive ocasião de observar e analisar percebia-se facilmente que havia uma ligação direta
com um arquétipo. Este, em si, é um fator psicóide irrepresentável do inconsciente
coletivo.” OC VIII, § 902. Em outra passagem, Jung explica o que deve entender-se
aqui por fundamento: “a expressão ‘estar na base de’, apesar de suas conotações
causalistas, não se refere a nada de causal, mas a uma qualidade existente que expressa
simplesmente aquilo que ela é, e não outra coisa, ou seja, uma contingência irredutível
Do lado objetivo ou físico, a hipótese da sincronicidade exige a indicação de
uma estrutura análoga à do fundamento arquetípico e a ele correspondente no sentido
da antiga teoria da correspondentia, que Jung explicitamente vincula a sua idéia,
dizendo que “a sincronicidade é uma diferenciação moderna dos conceitos obsoletos de
correspondência, simpatia e harmonia.”
271
Esse fundamento comum às duas ordens a
física e a psíquica – será, para Jung , o número:
“Desde épocas remotas, o homem serviu-se de números para determinar as
coincidências significativas, isto é, as coincidências que podem ser interpretadas. O
número é algo de especial poderíamos mesmo dizer misterioso. (...) Embora eu não
tenha a pretensão de dizer algo de esclarecedor sobre a relação íntima entre dois objetos
tão aparentemente incomensuráveis entre si como a sincronicidade e o número, contudo
não posso deixar de acentuar que eles não somente foram sempre relacionados entre si,
mas que ambos têm igualmente a numinosidade e o mistério como características
comuns. O número sempre foi usado para caracterizar qualquer objeto numinoso (...). O
número nos ajuda, antes e acima de tudo, a pôr ordem no caos das aparências. É o
instrumento indicado para criar a ordem ou para apreender uma certa regularidade
presente, mas ainda desconhecida, isto é, um certo ordenamento entre as coisas. É o
elemento ordenador mais primitivo do espírito humano (...). A hipótese de que o
número tem um fundo arquetípico não parte de mim, mas de certos matemáticos (...).
Por isso não é absolutamente uma conclusão tão ousada definirmos o número como um
arquétipo da ordem que se tornou consciente. Fato notável é que as imagens psíquicas
da totalidade, produzidas espontaneamente pelo inconsciente, ou os símbolos do Si-
mesmo, expressos em forma mandálica, possuem estrutura matemática. (...) Essas
estruturas não exprimem somente a ordem, como a criam também. (...) Daqui se deduz
incontestavelmente que o inconsciente emprega o número como fator ordenador.”
272
Em um parágrafo que consta da edição anglo-americana de suas obras, Jung
aponta para o lado objetivo do número. Vale a pena citá-lo na íntegra, dado o caráter
crucial desse ponto para a compreensão plena da hipótese da sincronicidade:
“Geralmente se crê que os números foram inventados ou pensados pelo homem, e
portanto não são nada mais que conceitos de quantidades, não contendo nada que não
tenha sido previamente neles colocado pelo intelecto humano. Mas é igualmente
possível que os números tenham sido encontrados ou descobertos. Nesse caso, eles não
são somente conceitos mas algo mais entidades autônomas que de alguma forma
em si mesma. A coincidência significativa ou equivalência de um estado psíquico [e um
estado físico] que não [têm] nenhuma relação causal recíproca significa, em termos
gerais, que é uma modalidade sem causa, uma organização acausal.” OC VIII, § 955.
271
OC VIII, § 985. Jung dedica uma seção de seu ensaio para arrolar os “precursores da idéia de
sincronicidade”, começando por Lao Tse e Chuang Tzu, passando por Hipócrates, Platão, Fílon de
Alexandria, Teofrasto, Plotino, Pico Della Mirandola, os alquimistas medievais, Paracelso, e chegando a
Kepler, Leibniz e Schopenhauer (a quem ele chama de “padrinho” de sua concepção, cf. § 828.)
272
OC VIII, § 870.
contêm mais do que apenas quantidades. Ao contrário dos conceitos, eles são baseados
não em quaisquer condições psíquicas mas na qualidade de serem eles mesmos, em um
ser-assim que não pode ser expresso por um conceito intelectual. Sob essas condições
eles podem facilmente ser dotados de qualidades que ainda têm de ser descobertas.
Devo confessar que me inclino para a visão de que os números foram tanto encontrados
quanto inventados, e que por conseguinte eles possuem uma autonomia relativa análoga
àquela dos arquétipos. Eles teriam então em comum com estes últimos a qualidade de
serem preexistentes à consciência, e portanto, ocasionalmente, de condicioná-la mais do
que por ela serem condicionados. Também os arquétipos, como formas a priori de
representação, são tanto encontrados quanto inventados: são encontrados na medida em
que não se sabia de sua existência autônoma inconsciente, e inventados na medida em
que sua presença foi inferida de estruturas representacionais análogas. Em consonância
a isso, pareceria que os números têm um caráter arquetípico. Se assim for, então não
apenas certos números e combinações de números teriam uma relação e um efeito sobre
certos arquétipos, mas também o inverso seria verdadeiro. O primeiro caso é
equivalente à magia dos números, mas o segundo é equivalente a investigar se os
números, em conjunção com as combinações de arquétipos encontradas na astrologia,
mostrariam uma tendência a se comportar de um modo especial.”
273
O que se pode perceber é que Jung sugere um possível fundamento matemático e
arquetípico para os fenômenos sincronísticos. Na verdade, ele discutiu essa
possibilidade com alguns matemáticos de sua época, e verificou que ela era defendida
por “certos matemáticos” – mas não por todos, evidentemente.
274
De qualquer forma, essa possível fundamentação implica uma retomada, em
pleno regime mental moderno, de estruturas próprias da matemática antiga, e em
especial da metafísica dos números ideais no platonismo, onde encontramos uma meta-
matemática.
275
Jung não se equivoca quando, tratando dos precursores da idéia de
sincronicidade, faz a Platão uma menção privilegiada: “A sincronicidade postula um
[sentido] [que é a priori em relação à] consciência humana e que parece existir fora do
homem. Semelhante hipótese ocorre sobretudo na filosofia de Platão, a qual admite a
273
CW VIII, § 871.
274
Sabemos que, após concluir seu ensaio sobre a sincronicidade, Jung esboçou uma continuação da
investigação sobre os arquétipos dos números naturais, que permitiria um passo ulterior na compreensão
da unidade de psique e matéria. Porém, dois anos antes de sua morte ele incumbiu sua discípula Marie-
Louise von Franz de levar a cabo essa tarefa. Von Franz apresentou os resultados de sua pesquisa em
1970, no melhor e mais brio livro sobre o tema: Zahl und Zeit: Psychologische Überlegungen zu einer
Annäherung von Tiefenpsychologie und Physik (tradução inglesa: Number and Time: Reflections Leading
Toward a Unification of Depth Psychology and Physics. Evanston: Northwestern University Press, 1974).
Este trabalho sério e competente leva em consideração o estado atual do conhecimento matemático e
físico, o que permite apreciar a hipótese da sincronicidade com o rigor exigido pelo pensamento racional.
Para uma apresentação mais condensada, ver também VON FRANZ, M.-L. Adivinhação e
Sincronicidade. A Psicologia da Probabilidade Significativa. São Paulo: Cultrix, 1991.
275
Para uma excelente exposição desse tópico em Platão, veja-se REALE, G. Para uma Nova
Interpretação de Platão. São Paulo: Loyola, 1997, p. 167-180. Também pertinente ao contexto do
problema aqui tratado são o capítulo décimo e o respectivo apêndice dessa obra, p. 195-238. À luz do
trabalho de Reale, parece-nos que Marie-Louise von Franz, em seu de resto excelente livro, não
conseguiu captar perfeitamente o sentido da doutrina dos números ideais em Platão.
existência de imagens ou modelos transcendentais das coisas empíricas, as chamadas
eide (formas, species), de que as coisas são cópias (eidola).”
276
E em nota a esta
passagem, Jung precisa melhor as conseqüências da aproximação ao platonismo: “Em
vista da possibilidade de que a sincronicidade seja não só um fenômeno psicofísico, mas
pode acontecer também sem a participação da psique humana, eu gostaria de mencionar
que, neste caso, o se deveria falar em [sentido], mas em equivalência ou
conformidade.”
277
Contudo, deve-se notar que se trata de uma aproximação ao platonismo, e não
de uma tentativa de confirmação do mesmo, pois o criticismo epistemológico de Jung
também aqui faz valer os seus direitos: a sincronicidade permanecerá sempre uma
hipótese explicativa, restringindo-se ao campo “da experiência concreta e da
experimentação”, e eximindo-se assim do ônus da demonstração racional que cabe à
metafísica.
278
276
OC VIII, § 932.
277
Ibid., nota 126.
278
A posição de Jung como uma “diferenciação moderna da teoria da correspondência”
fica bem clara em sua avaliação de Leibniz e nas distâncias que toma deste seu
“precursor”. Em Leibniz, com a doutrina da harmonia preestabelecida e do paralelismo
psicofísico, o princípio da sincronicidade “torna-se a regra absoluta em todos os casos
em que um acontecimento interior ocorre simultaneamente a outro exterior.” Jung
contesta que, pelo contrário, “devemos ter presente que os fenômenos sincronísticos que
podem ser verificados empiricamente, longe de constituirem uma regra, são tão raros,
que quase sempre se duvida de sua existência.”(itálicos nossos) Apegado ao seu
problemático empirismo, Jung não propõe uma explicação metafísica geral como
Leibniz, limitando-se a reconhecer os raros fenômenos que parecem corroborar tal
explicação, sem no entanto subscrevê-la ou seja, sem ceder à tentação de dar o passo
para além da fronteira epistemológica da psicologia empírica rumo à metafísica. Aliás,
contra Leibniz Jung insiste em que a desarmonia das coisas nos impressiona tanto
quanto a sua ocasional harmonia (cf. OC VIII, § 948). Apesar disso, ele conjectura que
esses eventos sincronísticos, na realidade, certamente ocorrem muito mais
freqüentemente do que se pensa e se pode provar, “mas ainda não sabemos se ocorrem
de modo tão freqüente e com tanta regularidade, que se possa dizer que são fatos que
obedecem a determinadas leis”, acrescentando uma observação importante em nota ao
texto: “Aqui devo acentuar mais uma vez a possibilidade de a relação entre o corpo e a
alma ser entendida como uma relação de sincronicidade. Se esta simples conjectura um
dia se confirmar, minha atual opinião de que a sincronicidade é um fenômeno
relativamente raro será corrigida.” (cf. OC VIII, § 928 e nota 125) Fica claro que,
também no tocante à questão metafísica da relação entre alma e corpo, Jung preserva
sua cautela crítica e suspende o juízo. A possível confirmação de sua conjectura é
evidentemente remetida à “experiência concreta” e à “experimentação”, e não à razão
metafísica. Mas essa esperança está fadada de antemão ao fracasso, pois não se pode
comprovar cientificamente essa conjectura, que por princípio ela cai fora dos limites
A opção epistemológica que adotou, e da qual jamais se apartou, não impede
Jung todavia de desenvolver, no plano das hipóteses e modelos sancionados por seu
empirismo crítico, as possibilidades metafísicas implicadas em suas noções empíricas.
Assim, na esteira da possível fundamentação da sincronicidade no número e nos
arquétipos, e da verossímil coincidência de ambos, Jung retoma a idéia antiga de um
mundo unitário ou Unus Mundus. A ontologia pressuposta em sua hipótese pode ser
encontrada fora do horizonte moderno. É uma ontologia dessa estirpe que ele encontra
na mentalidade chinesa antiga, estudada por seu amigo, o sinólogo Richard Wilhelm:
“A realidade, opina Wilhelm, é conceitualmente cognoscível porque,
segundo a concepção chinesa, há uma ‘racionalidade’ latente em todas as
coisas. Esta é a idéia fundamental que se acha na base da coincidência
significativa: esta é possível, porque os dois lados possuem o mesmo
sentido. Onde o sentido prevalece, aí resulta a ordem.
279
A “concepção chinesa” integra o amplo arco espiritual do “espaço
hermenêutico”, e se deposita, como é próprio das “civilizações do Livro” que
floresceram no assim chamado “tempo-eixo”, em vários livros sapienciais de alcance
revelatório, como por exemplo o Tao Te King e o I Ching. Sem prejuízo da diversidade
que especifica e distingue as várias concepções que se formularam nesse arco
civilizacional, podemos nele perceber a “unidade da experiência filosófica”, que permite
aproximações bem definidas entre o pensamento chinês e a filosofia grega antiga, no
que diz respeito ao postulado de uma racionalidade latente comum a todos os veis do
real, e que se estampa visivelmente na ordem vigente no cosmos. Esse postulado, como
vimos anteriormente, é o fundamento do “espaço hermenêutico”.
A hipótese da sincronicidade só pode se sustentar pressupondo a legitimidade de
tal postulado: a condição de possibilidade das coincidências significativas é que “os
dois lados” possuam o mesmo sentido. Mas, justamente porque afirma algo sobre esses
“dois lados”, essa condição de possibilidade não é meramente “transcendental”, no
sentido kantiano, mas ultrapassa a subjetividade na direção de um “conceito unitário do
ser”. Jung, atendo-se sempre ao seu proclamado empirismo, só pode formular a hipótese
e deixá-la nesse nível; a fundamentação da hipótese escapa à alçada da psicologia,
epistemológicos e metodológicos do conhecimento científico, tratando-se portanto de
um problema essencialmente metafísico.
279
OC VIII, § 912.
sendo tarefa eminentemente metafísica e, portanto, de uma outra ordem filosófica que
não a da sabedoria prática, se assentirmos às razões da divisão aristotélica dos saberes.
Mas Jung não se limita a olhar para trás e reconhecer as afinidades entre a
concepção empírica da sincronicidade e concepções metafísicas interditadas pela crítica
moderna. É no diálogo com a ciência contemporânea, e em especial com a microfísica,
que ele discute e testa a utilidade e a validade da postulação de um princípio da
sincronicidade e de seu corolário, de alcance metafísico, do Unus Mundus. Assim, ele
afirma:
“A sincronicidade não é uma teoria filosófica, mas um conceito empírico que postula
um princípio necessário ao conhecimento. Não se pode dizer que isto seja materialismo
ou metafísica. Nenhum pesquisador sério afirmaria que a natureza daquilo que pode ser
objeto de observação e daquilo que observa, isto é, a psique, sejam grandezas
conhecidas e reconhecidas. Se as conclusões mais recentes da Ciência se aproximam de
um conceito unitário do ser, caracterizado pelo tempo e pelo espaço, de um lado, e pela
causalidade [e pela sincronicidade], do outro, tal fato nada tem a ver com o
materialismo. Pelo contrário, parece que aqui se oferece a possibilidade de eliminar a
incomensurabilidade entre o observado e o observador. Se isto acontecesse, o resultado
seria uma unidade de ser que teria de se exprimir através de uma nova linguagem
conceitual, isto é, de uma ‘linguagem neutra’, como a chamou muito apropriadamente
W. Pauli.”
280
Portanto, Jung percebe claramente que a “possibilidade” aberta pela hipótese da
sincronicidade, que ele discute com representantes da ciência “dura”, aponta na direção
de um ultrapassamento da cisão instaurada pelo dualismo cartesiano, por um lado, e do
materialismo, por outro. Conseqüentemente, abre-se também uma alternativa às visões
de mundo associadas a essas duas posições metafísicas. A visão de mundo implicada na
hipótese da sincronicidade e em sua extensão na noção de Unus Mundus revela seu
parentesco ou semelhança com Weltanschauungen desaparecidas ou em declínio:
“Uma vez que a probabilidade da lei natural não nenhum ponto de apoio para se
pressupor que do acaso sozinho possam surgir sínteses mais elevadas como a psique,
por exemplo, precisamos da hipótese de um sentido latente para explicar não os
fenômenos sincronísticos, mas também as sínteses mais elevadas. [O sentido] sempre
280
OC VIII, § 950. Wolfgang Pauli, prêmio Nobel de Física, será um interlocutor privilegiado de Jung
nas especulações a respeito das convergências entre suas concepções psicológicas e as da física
contemporânea. Um registro valioso dessa interlocução é a correspondência que ambos mantiveram e que
está publicada em MEIER, C.A. (ed.) Atom and Archetype. The Pauli/Jung Letters, 1932-1958.
Princeton: P.U.P., 2001. A leitura do epistolário de Jung e Pauli é particularmente instrutiva para se ter
uma noção da seriedade intelectual com que Jung construiu e trabalhou a hipótese da sincronicidade, cujo
destino foi o de ser apropriada de modo anárquico e carente de um mínimo de rigor pelos corifeus da New
Age, sendo incorporada de forma desvirtuada e pouco séria ao conjunto dos dogmas desse movimento.
aparece como inconsciente em primeiro lugar e por isso pode ser [descoberto] post
hoc; por esta razão persiste também sempre o perigo de [o sentido] ser [colocado]
onde nada existe que a [ele] se assemelhe. Necessitamos das experiências sincronísticas
para fundamentar a hipótese de um sentido latente, independente da consciência.
Uma vez que a criação não tem sentido reconhecível sem a consciência reflexiva da
pessoa humana, a hipótese do sentido latente atribui ao ser humano um significado
cosmogônico, uma verdadeira raison d’être.”
281
Finalmente, relembremos que o diagnóstico de Jung a respeito da crise espiritual
do homem contemporâneo atribui ao fator “visão de mundo” uma importância decisiva.
Sendo assim, o significado terapêutico e cultural do resgate da sensibilidade simbólica
almejado por ele atinge o seu limite máximo quando, com a sua extensão ao campo dos
fenômenos sincronísticos, o simbolismo reclama uma visão de mundo compatível com a
experiência de que o sentido não pode ser pensado como produto exclusivo do arbítrio
humano, mas encontra um fundamento que transcende o próprio sujeito, um
fundamento que Jung não teria dificuldade em descrever como “cósmico”.
Mas convém observar que, também aqui, Jung permanece na atitude cética de
suspensão de juízo a esse respeito:
“O mundo no qual penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo, de
uma beleza divina. Achar que a vida tem ou não sentido é uma questão de
temperamento. Se o não-sentido prevalecesse de maneira absoluta, o aspecto racional da
vida desapareceria gradualmente, com a evolução. Não parece ser isto o que ocorre.
Como em toda questão metafísica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a
vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero
ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha.”
282
281
Cartas III, 10/03/1959, a Erich Neumann. A hipótese de Jung apresenta pontos de convergência com o
chamado “princípio antrópico” elaborado na cosmologia física contemporânea. Por outro lado, sabe-se
que, pouco antes de morrer, Jung lia “O Fenômeno Humano”, de Teilhard de Chardin, e considerava-o
um grande livro. Cf McGUIRE,W. e HULL,R.F.C. C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo:
Cultrix, 1982, p.406.
282
JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 310. Ao concluir seu ensaio
sobre “A alma e a morte” (OC VIII, § 815), Jung levanta a questão decisiva do sentido
da vida (portanto, ela emerge em conexão com a reflexão sobre a morte). Henrique Vaz
afirma que a morte “aparece ao homem, ser inteligente e livre mas ciente de que deve
morrer, como a contradição absoluta presente no coração da vida, ou como o não-
sentido absoluto irrompendo no universo humano do sentido.” (Escritos de Filosofia III,
p. 173) Jung, como psicólogo, suspende o juízo, e torce para que o sentido prevaleça.
Henrique Vaz, como filósofo, ousa prosseguir, trilhando o caminho da metafísica para
tentar afirmar a razoabilidade da prevalência do sentido.
Recapitulemos os passos de nosso argumento. Em primeira instância, após a
“catástrofe metafísica” que interdita o “simbolismo ontológico”, resta a sua recuperação
ou preservação possível em chave antropológica. A “metaforização das referências
cosmológicas”
283
, que assinala a irrupção do regime mental moderno, encontrará
versões psicológicas distintas em Freud e em Jung.
284
Mas a concepção junguiana de
sincronicidade retoma o fio interrompido e perdido das estruturas de significação que
fundamentavam o “simbolismo ontológico” no âmbito do “espaço hermenêutico” antigo
e medieval, transpondo-o segundo as exigências e direções do espaço epistemológico
traçado pelas ciências do homem, por um lado, e pela ciência contemporânea da
natureza, por outro. Resumindo: os fenômenos sincronísticos exigem a postulação de
uma autonomia do sentido relativamente independente da consciência humana, e mais,
de uma equivalência ou objetividade do sentido, “que não é apenas um produto
psíquico”
285
, reclamando como fundamento um “conceito unitário de ser”.
Para que a recuperação da concepção antropológica de microcosmos não fosse
apenas uma extravagância intelectual destituída de seriedade, ela precisaria se articular a
uma imagem de mundo que lhe desse suporte e que sancionasse a lei de
correspondência entre a esfera humana e a esfera do universo físico, exigência
incontornável para que a utilização do próprio termo “microcosmos” por Jung fosse
legítima e não equívoca. Esta exigência será atendida, na psicologia analítica,
justamente com a teoria da sincronicidade, pois, como vimos, nela encontramos uma
versão da relação de correspondência, versão moderna porque reivindica a convergência
estrutural entre a teorização psicológica e os desenvolvimentos recentes da física, em
particular da microfísica. Assim sendo, se a hipótese da sincronicidade é aceita, então
forçosamente se impõe uma mudança na imagem de mundo, no sentido de uma unidade
profunda entre os eventos psíquicos (ou espirituais) e os eventos físicos. Esta unidade
supera o dualismo moderno de uma forma que se distingue do materialismo. Por um
lado, ela apresenta analogias com concepções metafísicas passadas; por outro,
aproxima-se, em vários pontos, do idealismo alemão. As conseqüências dessa superação
não podem ser minimizadas: começando pela ruptura do “círculo encantado da
consciência reflexiva”, traçado na fundação do pensamento moderno com o Cogito
283
Cf. BRAGUE, La Sagesse du Monde, p. 242-244.
284
A compreensão dos mitos cosmogônicos como expressões simbólicas das “origens e história da
consciência” (Cf. NEUMANN, E. The Origins and History of Consciousness. Princeton: PUP, 1954 ),
tributária de Jung, é um bom exemplo dessa tendência (que, nota bene, tanto em Neumann quanto em
Jung evidentemente não exclui o “realismo do sentido” postulado na teoria da sincronicidade).
285
OC VIII, § 915. Cf. HILLMAN, J. On Paranoia. Dallas: Spring Publications, 1988, p. 33
cartesiano, afilia-se ao criticismo kantiano, mas também o supera para postular, com a
validez da correspondência sincronística, um fundamento objetivo para a ação
eminentemente humana de doação de sentido.
Se é justa a nossa compreensão, podemos dizer que o resgate da sensibilidade
simbólica no âmbito total da psicologia analítica representa uma tentativa de superação
“por dentro” da interdição ao “simbolismo ontológico” estabelecida na constituição
inaugural do espaço metafísico moderno, e uma recuperação de estruturas de
significação análogas às que legitimaram o “espaço hermenêutico” pré-moderno. Não se
trata, a nosso ver, de uma regressão, mas de uma reconstrução progressiva portanto
legítima, já que se faz respondendo às exigências do espírito moderno. Diante do
desafio e do problema representado pela insuficiência das estruturas de significação
próprias da modernidade, que deságuam naquela “inanidade do o-sentido do
antropocentrismo moderno” assinalada por Henrique Vaz, Jung aposta num movimento
para a frente, num sentido para a destruição iconoclasta dos símbolos ocidentais pela
tendência niilista que parece atravessar a experiência da modernidade. Nessa
perspectiva, o esgotamento dos símbolos culturais prepararia a destruição dos mesmos,
mas esta destruição, por sua vez, representaria o momento que prepara a renovação do
simbolismo pela ativação compensatória das fontes arquetípicas-instintivas, de onde
jorram as imagens simbólicas humanas e o sentido com que elas enlaçam o homem, o
mundo e a tradição.
CAPÍTULO TERCEIRO
TRADIÇÃO, MODERNIDADE, EXPERIÊNCIA
SIMBÓLICA
1. Tradição e modernidade na perspectiva da fenomenologia do Ethos
A relação com a tradição é constitutiva da definição ampliada de modernidade
que apresentamos no primeiro capítulo, e mais ainda da definição restrita
(“modernidade moderna” ou “pós-cristã”) que utilizamos neste trabalho. Neste caso, a
relação que se estabelece é principalmente negativa, no sentido de que as forças que
regem a modernidade voltam-se destrutivamente contra os esteios da tradição que a
gerou, configurando uma forma ímpar de sociedade, que sob esse aspecto se caracteriza
como pós-tradicional.
286
Na perspectiva da Ética, a tradição, ao suportar e garantir a permanência das
instituições de uma cultura, torna-se a estrutura fundamental do ethos na sua dimensão
histórica.
287
Portanto, a tradicionalidade, significando a capacidade de ser transmitido, é
um constitutivo essencial do ethos.
288
Reciprocamente, a tradição, manifestando a
íntima relação entre ethos e cultura, é sempre tradição ética. Como tal, ela ordena o
tempo pela reiteração das normas e valores do ethos, segundo uma circularidade
dialética em que o passado, “suprassumido na universalidade normativa e
paradigmática dos costumes”
289
, é simultaneamente terminus a quo e terminus ad quem
para o presente, e ambos passado e presente compõem o tempo qualitativo em que
se exerce a praxis. A ação propriamente humana, portanto, refere-se ao passado,
depositado na tradição, como a instância que funda e permite avaliar seu conteúdo
ético.
290
Na medida em que toda cultura está submetida à temporalidade, o desgaste do
patrimônio simbólico de uma dada tradição é inelutável, o que significa que as bases de
sua estruturação é afetada pela contingência que acompanha a historicidade própria do
ser humano. A totalidade de sentido que uma cultura oferece aos seus membros,
veiculada pelos símbolos coletivos que estampam a forma particular da organização
sócio-cultural, é posta à prova pelas alterações exteriores e interiores que incidem sobre
a instalação humana por ela promovida, e freqüentemente precisa ser renovada em
função das novas situações e desafios com que sempre se defrontam as sociedades
humanas.
Dessa forma, a tensão resultante da oposição dialética entre presente e passado
jamais é definitivamente superada, ressurgindo como desafio permanente no processo
educativo em que se formam os membros de uma comunidade ética. Pensada a partir da
286
Veja-se uma boa caracterização da forma pós-tradicional de sociedade, sob o ângulo sociológico, em
GIDDENS, A. “A vida em uma sociedade pós-tradicional”, in Em Defesa da Sociologia. São Paulo:
UNESP, 2002, p. 21-95.
287
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 17. O ethos é “a face da cultura que se volta para o horizonte do
dever-ser ou do bem.” Ibid., p. 19.
288
Cf. id., p. 19.
289
Id., p. 19-20. “Na estrutura do tempo histórico do ethos, o passado, portanto, se faz presente pela
tradição, e o presente retorna ao passado pelo reconhecimento de sua exemplaridade.” Id., p. 20.
290
Cf. id., p. 20.
relação dialética entre ethos e indivíduo, essa tensão aparece no momento da negação da
universalidade abstrata do ethos como costume pela liberdade que define a
particularidade da praxis como ato do indivíduo. Esse momento abre a possibilidade da
situação de conflito ético.
O conflito, entendido como conflito de valores e não como simples revolta do
indivíduo contra a lei, é um momento estrutural do dinamismo histórico do ethos.
291
Crises, conflitos, evoluções e mesmo revoluções pertencem à essência do ethos, cuja
tradicionalidade não significa oposição ao tempo nem à liberdade e autonomia do
agente ético que é o indivíduo.
292
Por este motivo, a transmissão de um conjunto
simbólico determinado ao sujeito empírico que se educa sob a tradição própria de uma
cultura é o pressuposto para a preservação desse patrimônio coletivo, como também
para a renovação do mesmo pelo indivíduo, alçado à condição de sujeito ético.
293
A
renovação pode ser tanto confirmação atualizada como recriação, conforme os limites
configurados pelo ethos sejam mantidos ou então transgredidos.
Em tese, a categoria de conflito ético permitiria compreender a relação entre
tradição e modernidade. Mas a tensão imanente ao dinamismo histórico do ethos é
fortemente exponenciada pela experiência particular da modernidade pós-cristã, e
finalmente se mostra refratária à suprassunção dialética, constituindo o paradoxo do
mundo moderno: não se trata aqui de um conflito regionalizado ou particular no interior
de uma tradição, mas da redefinição das estruturas fundantes do todo social segundo um
projeto que tende a extirpar as raízes que o tornaram possível. Pois, sob muitos
aspectos, a renovação embutida na experiência da modernidade revelou-se, afinal, não
uma recriação da tradição cultural do Ocidente, mas a manifestação inquietante da
tendência à sua destruição, que culmina no niilismo ético característico de nossa época.
Henrique Vaz aponta como causa fundamental do niilismo ético que acomete as
sociedades ocidentais modernas a ruptura da tradição, entendida como processo
dialético que suprassume a “oposição linear do presente e do passado na perenidade
normativa do ethos
294
. Na modernidade desarticula-se a relação essencial entre ethos e
tradição devido à primazia do tempo quantitativo, que transfere do passado para o futuro
291
Cf. id., p. 31.
292
Cf. id., p. 21.
293
Cf. id., p. 21-35.
294
Id., p. 21.
a normatividade do tempo, conferindo ao futuro “os predicados axiológicos que
asseguravam a exemplaridade do passado na formação do ethos tradicional.”
295
A prioridade da esfera econômica na sociedade da produção e do consumo,
extensão da primazia da poiesis ou do fazer técnico na concepção da ação humana que
singulariza a modernidade, também destrói o vínculo com a tradição, ao atingir o núcleo
do ethos.
296
Pois o próprio conceito de ethos implica a afirmação de uma finalidade
imanente à praxis: a auto-realização do indivíduo, à qual tudo o mais se subordina,
inclusive os bens exteriores materiais. O ethos se concretiza na praxis, que consolida o
hábito (hexis), e este preserva a vigência do ethos e da tradição ética. Uma vez invertida
essa relação na modernidade, pela absorção da praxis na esfera da poiesis
297
, ocorre a
exclusão e supressão da objetividade dos fins próprios do domínio ético, com o
conseqüente enfraquecimento do mesmo. Se a praxis desaparece na absorção pela
poiesis, perdendo a sua especificidade ética, então o hábito não diz respeito à
perfeição do agente segundo as normas e valores da tradição ética, mas à perfeição do
produto pela excelência do fazer técnico. Com isto, todo o domínio propriamente ético é
posto entre parênteses. E na medida em que a esfera econômica passa a reger o todo do
conjunto social, a suspensão converte-se em negação radical: o reducionismo
economicista deságua no niilismo ético. Henrique Vaz diagnostica e descreve essa
situação:
“Os tempos atuais assistem ao aparecimento de uma notável e inquietante dissimetria no equilíbrio e
sustentação do edifício da cultura – da morada do ser humano – provocada pelo crescimento vertiginoso e
pelo fortalecimento social da techne de um lado e, de outro, pelo definhar e pelo enfraquecimento do
ethos. Os efeitos dessa dissimetria tornam-se cada vez mais visíveis, sobretudo no comportamento das
jovens gerações, nas condutas anômicas e no desconcerto existencial que obscurecem qualquer
perspectiva de uma vida moralmente sensata, na qual normas e valores sejam reconhecidos e obedecidos
na sua significação especificamente ética.”
298
Em outras palavras, o niilismo atinge o enraizamento ético dos indivíduos, uma
vez que a referência a uma tradição ética desaparece dos horizontes da sociedade
contemporânea. Vaz observa que as resistências a essa situação originada pela primazia
da esfera da produção provêm da própria sociedade, tornando-se visíveis na esfera da
295
Id., p. 20.
296
Cf. id., p. 23-25.
297
A primazia da poiesis na concepção da ação é homóloga à primazia do futuro na concepção do tempo,
conforme assinalamos no primeiro capítulo. Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 21.
298
Escritos de Filosofia V, p. 219.
cultura, “onde o ethos se explicita formalmente na linguagem das normas e valores e se
constitui como tradição”
299
.
Como assinalamos ao termo do primeiro capítulo, o nascimento da psicoterapia
contemporânea pode ser compreendido como uma destas reações da cultura à força
avassaladora com que as novas e revolucionárias estruturas da sociedade industrial
reorganizam o espaço vital humano, deixando para trás as diretrizes fundamentais
custodiadas pela tradição. Em particular, a psyches therapeia proposta por Carl Gustav
Jung, que elegemos como objeto de análise, é conscientemente apresentada por seu
fundador em relação ao dilema modernidade versus tradição. Vejamos então o que a
psicologia analítica tem a dizer a respeito dos problemas psíquicos do sujeito moderno à
luz da noção de tradição.
Mas antes, para evitar mal entendidos, é preciso fazer uma ressalva.Toda a
compreensão explicativa sobre a questão ética que encontramos em Jung situa-se, do
ponto de vista de uma Ética filosófica sistemática como a de Henrique Vaz, no nível da
particularidade, que é seu nível próprio e legítimo. Portanto, ela se atém à consideração
fenomenológico-descritiva do problema, limitando-se a abordá-lo sob o ângulo das
condições biopsíquicas, sócio-culturais e históricas que determinam a situação concreta
em que se efetiva ou não - o exercício da razão prática e onde se joga o destino
histórico do indivíduo e de sua comunidade, bem como das soluções possíveis para seus
problemas.
2. Tradição, modernidade e experiência simbólica na psicologia analítica
Um dos temas fundamentais da compreensão de Jung acerca da situação
espiritual moderna é justamente o tema do desenraizamento (Entwurzelung), que ele
entende como sendo a ruptura da continuidade da tradição e uma alienação da
consciência com relação a sua “base instintiva”. Na verdade, a sua proposta de psyches
therapeia para o homem moderno pode ser entendida como uma tentativa de
reconciliação entre a tradição, que lhe parecia imprescindível para a saúde psíquica
300
, e
299
Escritos de Filosofia II, p. 25.
300
“É muito estranho que não se perceba o que uma educação sem humanidades pode fazer ao homem.
Ele perde a ligação com sua família, por assim dizer, com todo o tronco, a tribo a conexão com o
passado em que ele vive, em que o homem sempre viveu. O homem sempre viveu no mito, e pensamos
que somos capazes de nascer hoje e de viver sem mito, sem história. Isso é uma doença, absolutamente
a modernidade, que ele reconhecia irreversível na evolução histórica do espírito
ocidental.
Como vimos na seção inicial do capítulo anterior, Jung avalia a perda das raízes
na tradição como um acontecimento dramático de que se origina a condição moderna,
gerando o mal-estar espiritual que a caracteriza e que vem prenunciado no
“depauperamento dos símbolos”. Mas trata-se, em sua visão, de um dado histórico, que
como tal não pode ser negado. Por outro lado, ele percebe que de nada vale a nostalgia
regressiva que olha para trás e anseia pelo retorno a condições de existência passadas,
pois na história não caminho de volta.
301
A sua aposta-proposta para a saída desse
mal-estar a recuperação da sensibilidade simbólica representa, em sua perspectiva,
uma solução progressiva, na medida em que a formação dos símbolos a partir dos
arquétipos do inconsciente coletivo permitiria restaurar o vínculo perdido com a
tradição de forma renovada, e portanto em consonância com as necessidades e
problemas de um novo tempo.
302
anormal, porque o homem não nasce todos os dias. Ele nasceu uma vez, num contexto histórico
específico, com qualidades históricas específicas e, portanto, está completo quando tem uma relação
com essas coisas. Se crescermos sem relação alguma com o passado, é como se tivéssemos nascido sem
olhos nem ouvidos. Do ponto de vista da ciência natural, não necessitamos de ligação com o passado,
podemos varrê-lo, mas isso é uma mutilação do ser humano. Através da experiência prática, vi que essa
realização tem o mais extraordinário efeito terapêutico”. Entrevista a Richard I. Evans, em 1957, in
MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (coord.) C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p.
310.
301
Estou preocupado com o mundo [tal] como ele se apresenta hoje: sem Deus e espiritualmente
desorientado. Na história não [nunca] um caminho [de volta].” Cartas III, 8/02/1957, anônimo, p. 64.
“Mas o homem que é do presente seja qual for a razão não pode retornar ao passado, sem sofrer
uma irreparável perda. Não raro esse retorno se torna impossível, mesmo que se esteja disposto a
sacrifícios. O homem do presente deve trabalhar pelo futuro e deixar a outros a tarefa de conservar o
passado. Por isso, além de construtor, é também um destruidor.” OC X, § 239.
302
Esta exigência de atualização dos símbolos é crucial para uma correta compreensão da posição de Jung
com relação à questão tradição-modernidade. Assim, ele diz: “Esses acontecimentos do mundo
contemporâneo revelam, por sua singularidade, o seu pano de fundo psicológico. A demência destrutiva e
devastadora é a reação a esse afastamento da consciência em relação a sua posição de equilíbrio. Existe
de fato um equilíbrio entre o eu e o não-eu psíquico, uma religio, ou seja, um levar em conta
escrupulosamente a presença das forças inconscientes, que não podemos negligenciar sem correr perigo.
Essa virada, resultante da alteração do estado de consciência, vem sendo preparada séculos. (...) Será
que as religiões fizeram um esforço para se adaptarem a essa evolução secular? A sua verdade pode, sem
dúvida alguma, ser proclamada eterna com toda legitimidade, mas a roupa temporal que as reveste tem
que pagar o tributo do que é transitório: deveriam levar em conta a transformação psíquica. A verdade
eterna precisa da linguagem humana que se modifica de acordo com o espírito do tempo. As imagens
primordiais são suscetíveis de transformações infinitas, mas nem por isso deixam de ser sempre as
mesmas. No entanto serão compreendidas de novo se renovarem a forma de se apresentarem. Elas
requerem constantemente novas interpretações, se não quisermos que, devido a uma conceituação
obsoleta, elas percam seu poder de atração (...) O que significa ‘vinho novo em odres velhos’? Onde
buscar as respostas às misérias e desgraças de um tempo novo? Onde está o conhecimento da
problemática da alma, levantada pelo desenvolvimento da consciência moderna? Jamais em tempo algum
se viu uma tal hybris do querer e do poder desafiando assim a verdade ‘eterna’.” OC XVI, §§ 395-396.
“Da mesma forma que a serpente troca de pele, assim também o mito precisa de nova roupagem em cada
renovado éon, para não perder a sua força terapêutica.” OC IX-2, § 281.
Os arquétipos, enquanto matrizes antropologicamente universais das formas
culturais particulares, tendem a gerar mbolos estruturalmente análogos, os quais
correspondem a supostas necessidades vitais permanentes da espécie humana, que são
contempladas em formas e graus variados nas diversas tradições simbólicas que
estampam a face particular de cada cultura. Em outras palavras, a unidade antropológica
ou “natureza humana” implicada na noção de inconsciente coletivo tende a se efetivar
na particularidade das tradições e no processo simbólico.
Por outro lado, na medida em que o inconsciente é também organizado em
função das configurações históricas e de tudo aquilo que uma dada configuração
dominante deixa de lado ou exclui de sua constituição,
303
uma configuração particular
ultrapassada de uma tradição continua a levar, em certo sentido, uma existência
inconsciente na psique coletiva de uma sociedade, na forma de potencialidades
excluídas ou recalcadas pela nova configuração, o que pode ser detectado no exame de
suas representações imaginárias. Assim, a reativação do inconsciente tende a trazer à
tona essas potencialidades abandonadas que, no confronto com a consciência, podem
ser reintegradas em forma renovada, especialmente quando alguma necessidade humana
fundamental que elas contemplavam deixa de ser satisfeita na nova configuração,
deflagrando assim o movimento compensatório inconsciente.
A universalidade das estruturas arquetípicas da alma humana garantiria a
possibilidade de se restabelecer uma integridade perdida. Ao símbolo na concepção de
Jung, justamente por ser arquetipicamente conformado, e pela participação do arquétipo
na correspondência psique-mundo postulada com a hipótese da sincronicidade
304
,
aplica-se o que Georges Gusdorf diz do mito: ele intervém como um protótipo de
equilibração do universo, como um formulário de reintegração.”
305
303
“Também a questão da relação entre consciente e inconsciente não é uma questão especial e sim algo
que tem a ver intimamente com nossa história, com nosso tempo atual, com nossa [visão de mundo].
Muita coisa se torna inconsciente porque nossa concepção do mundo não lhe espaço, porque nossa
educação e formação jamais lhe deu estímulo e, se alguma vez apareceu no consciente como eventual
fantasia, foi imediatamente reprimida. Os limites entre consciente e inconsciente são em grande parte
determinados por nossa [visão de mundo]. Por isso devemos falar de problemas gerais se quisermos tratar
adequadamente do conceito de inconsciente. Se quisermos compreender a natureza do inconsciente, não
podemos ocupar-nos somente com os problemas atuais, mas também com a história do espírito humano
em geral.” OC X, § 47.
304
Ver o capítulo anterior.
305
GUSDORF, G. Mito e Metafísica. São Paulo: Convívio, 1979, p. 24.
Jung encara a Entwurzelung ou desenraizamento resultante da ruptura do vínculo
com a tradição como “um dos mais graves males psíquicos”
306
, que implica a perda dos
canais de expressão simbólica dos “instintos”. Assim, ele pondera:
“A dissolução de uma tradição, por mais necessária que seja em certas épocas, sempre é uma perda e um
perigo; um perigo para a alma, porque a vida instintiva – como o que há de mais conservador no homem –
se exprime justamente através dos hábitos tradicionais. As convicções e os costumes transmitidos pela
tradição estão profundamente arraigados nos instintos. Se são perdidos, a consciência separa-se do
instinto: em conseqüência, a consciência perde suas raízes, e o instinto, agora sem expressão, retomba no
inconsciente, cuja energia se reforça; esta, por sua vez, transborda para os respectivos conteúdos
conscientes, o que torna então a falta de raízes do consciente realmente perigosa. Essa secreta ‘vis a tergo
provoca um hibridismo na consciência, que se manifesta por uma supervalorização de si mesmo, ou por
um complexo de inferioridade. Em todo caso, ocorre um distúrbio do equilíbrio, que é o terreno mais
propício para os danos psíquicos.”
307
Como se pode ver, Jung pensa a tradição a partir de suas relações com o
contínuo arquétipo-instinto e, por extensão, com a noção de símbolo. As tradições
culturais diversificadas teriam um denominador comum no fato de todas estarem
“arraigadas nos instintos e, portanto, nos arquétipos, expressando-os mediante os
grandes mbolos coletivos que delimitam a identidade própria de cada cultura. Uma
determinada tradição corresponderia ao acervo de símbolos que organizam e dão
sentido à forma particular de existência social e individual que ela sustenta. Na
perspectiva da psicologia social, uma tradição representa a configuração particular das
relações entre consciência coletiva e inconsciente coletivo.
A “vida instintiva”, que se exprime nos hábitos tradicionais, é o representante do
elemento de natureza no ser humano, e abarca toda o campo da afetividade, que
apresenta uma relativa constância na espécie, bem como uma relativa maleabilidade,
suficiente para abrir a possibilidade de modificação pela educação.
308
O
306
OC XVI, § 216.
307
Ibid.
308
A teorização de Jung sobre os “instintos” acompanha aquela sobre os arquétipos e recebe sua
formulação final em 1946, no texto “Considerações Teóricas sobre a Natureza do Psíquico” (OC VIII). A
continuidade entre instinto e arquétipo significa um entrelaçamento entre a esfera instintiva e a esfera
espiritual: “O instinto não é coisa isolada, nem pode ser isolado na prática. Ele sempre traz consigo
conteúdos arquetípicos de caráter espiritual que, por um lado, o fundamentam e, por outro, o limitam. Em
outras palavras, o instinto se apresenta sempre e inevitavelmente junto com uma espécie de visão de
mundo, por mais arcaica, imprecisa e crepuscular que ela seja. O instinto nos dá o que pensar, e se não
pensarmos nele livremente, então surgirá um pensamento compulsório, pois os dois pólos da alma, o
fisiológico e o espiritual, estão ligados um ao outro indissoluvelmente. Por isso, não existe uma liberação
unilateral do instinto, da mesma forma que o espírito, desligado da esfera instintual, está condenado ao
ponto morto. Não se deve imaginar, contudo, que a sua ligação com a esfera instintual seja
necessariamente harmoniosa. Muito pelo contrário, ela é cheia de conflitos e significa sofrimento. Eis por
que o objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade,
mas sim possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento. A totalidade,
a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e alegria.” (OC XVI, § 185)
desenraizamento, simultaneamente perda do liame com os instintos e com a tradição,
representa para Jung uma patologia fundamental da modernidade, que ele atribui à
perda da unidade simbólica entre espírito e matéria, “disso resultando o homem
moderno, desenraizado e alienado numa natureza desprovida de alma.”
309
A solução para o problema do desenraizamento moderno estaria na
reconstituição daquela unidade simbólica perdida. Pois, como o símbolo “tem a grande
vantagem de conseguir unificar numa única imagem fatores heterogêneos ou até mesmo
incomensuráveis”
310
, seria somente através de uma experiência da realidade simbólica
que o homem, “buscando em vão sua ‘existência’ e fazendo dela uma filosofia”, poderia
encontrar seu caminho de volta a um mundo no qual ele não mais é um estranho.
311
Pela
experiência simbólica o homem moderno não poderia recuperar o lastro perdido com
a natureza, como também reintegrar-se à família humana, da qual o ímpeto faustiano da
modernidade o alienara. Portanto, o símbolo abriria a possibilidade de resolver o
conflito entre o “primitivo” ou “tradicional” e o moderno, ao integrar ou recuperar o
enraizamento mítico e cosmológico sem sacrificar os ganhos da consciência moderna.
312
Observe-se que Jung reconhece a imprecisão que cerca o uso da noção de “instinto”: “A noção de
instinto está longe de ter sido cientificamente esclarecida. Ela diz respeito a um fenômeno biológico de
[imensa] complexidade e representa, no fundo, um X, isto é, pura e simplesmente um conceito-limite,
cujo conteúdo é de imprecisão absoluta. (...) O instinto é reconhecido como sendo uma das condições do
psíquico, da mesma forma que o psíquico passou a ser considerado, e com razão, um dos
condicionamentos dos instintos.” OC XI, §§ 493 e 495. Jung afirma que, no ser humano, os instintos
aparecem “psiquificados”, e assim perdem a “inequivocidade”, ocasionalmente perdem também a
“compulsividade”, tornam-se “variáveis”, passíveis “de diferentes aplicações” em virtude da
“extraordinária capacidade de variação e transformação” de que é dotada a psique (cf. OC VIII, § 234-
235.) Disso resulta que a ppria utilização do termo “instinto” é equívoca, tendo valor não tanto de um
conceito, propriamente falando, mas muito mais de uma métáfora ou símbolo, indicativo da dimensão
natural e corpórea do ser humano, cobrindo toda a esfera das pulsões, afetos e desejos.
309
OC IX-1, § 197.
310
Ibid.
311
CW IX-1, § 198. A realidade simbólica, na medida em que se enraiza na “vida instintiva”, requer uma
nova relação com a natureza em sua dimensão corporal: “O fascínio da psique nada mais é que uma nova
auto-reflexão, uma reflexão que se volta sobre nossa natureza humana fundamental. Por que estranhar
então se esse corpo, por tanto tempo subestimado em relação ao espírito, tenha sido novamente
descoberto? Somos quase tentados a falar de uma vingança da carne contra o espírito. (...) O corpo exige
igualdade de direitos. Ele exerce o mesmo fascínio que a psique. Se ainda estivermos imbuídos da antiga
concepção de oposição entre espírito e matéria, isto significa um estado de divisão e de intolerável
contradição. Mas se, ao contrário, formos capazes de reconciliar-nos com o mistério de que o espírito é a
vida do corpo, vista de dentro, e o corpo é a revelação exterior da vida do espírito, se pudermos
compreender que formam uma unidade e não uma dualidade, também compreenderemos que a tentativa
de ultrapassar o atual grau de consciência, através do inconsciente, leva ao corpo e, inversamente, que o
reconhecimento do corpo não tolera uma filosofia que o negue em benefício de um espírito puro.” OC X,
§ 195.
312
Cf. SHAMDASANI, S. Jung and the Making of Modern Psychology. The Dream of a Science.
Cambridge: C.U.P., 2003, p. 328. “A marca distintiva do trabalho de Jung era a maneira como ele
concebia a incrustração do indivíduo na história cultural, ou antes, a inerência da história cultural no
indivíduo. Através da introspecção, um indivíduo poderia rever não somente sua história pessoal, mas sua
história cultural e ancestral, como também a da espécie humana. Ao mesmo tempo, através dessa visão a
Para Jung, o ethos, considerado sob a perspectiva psicológica, representa a
pessoa inteira e é uma faculdade criativa do ser humano, emanando empiricamente de
duas fontes: da consciência racional e do inconsciente irracional. Por isso mesmo, nessa
perspectiva o ethos é uma instância especial da chamada “função transcendente”
313
,
criadora de símbolos. Estes, como vimos no capítulo anterior, são para Jung uma
expressão conciliatória da totalidade humana em seus aspectos conflitivos. Fenômenos
essencialmente humanos, eles integram as polaridades antagônicas que caracterizam a
condição desse estranho animal dotado de espírito, ou, se se preferir, desse espírito
encarnado. Entendidos como a auto-expressão diversificada do mistério humano, os
símbolos constituem a matéria viva do ethos. Por isso, se o ethos se eleva sobre a physis
para recriar em sua ordem própria “a continuidade e a constância que se observam nos
fenômenos naturais”
314
, é no patrimônio simbólico que a tradição transmite de uma
geração à outra que se deve buscar a tentativa de conciliação entre as ordens instintiva e
espiritual que constitui o perfil humano e ético de uma cultura.
Jung percebe na cultura e no indivíduo modernos a ação dessa tendência
destruidora que gera o desenraizamento ao romper com a tradição, e a designa, em
algumas passagens, como “relativismo moderno”. Sua posição em face dela é dupla: por
um lado, ele saúda “o abalo sofrido pelas nossas ilusões e limitações ocidentais devido
ao esclarecimento”, considerando-o como “uma retificação histórica indispensável e de
alcance imprevisível”, que “introduz um relativismo filosófico”, no qual “uma
longínqua verdade do Oriente, cujos efeitos futuros, por ora, não podemos prever.
315
Como representante dessa tendência na psicologia ele indica Freud. Por outro lado,
afirmando que “todo relativismo tem uma ação destruidora quando se arvora em
história cultural aparecia sob uma nova luz. Interpretada de forma nova, ela deveria formar a base para
uma nova psicologia.” SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 182. A
historicidade do inconsciente segundo Jung, pensada freqüentemente a partir de uma fantasia
evolucionista, integra-se nas metáforas topológicas utilizadas para descrever as “camadas” do
inconsciente, que abrigaria portanto vários estratos correspondentes a níveis histórico-culturais
diferenciados. Assim, no inconsciente do homem moderno encontrar-se-iam desde os resíduos da
“mentalidade primitiva” até configurações análogas às formas culturais medievais. Todas essas
configurações históricas estariam enraizadas, por sua vez, na camada “natural” que constituiria o fundo
do inconsciente coletivo com seus arquétipos universais a-históricos. No inconsciente junguiano
encontramos, portanto, a imbricação mútua entre natureza e cultura, ou entre matéria e espírito, que evoca
imediatamente a Naturphilosophie romântica. Uma outra alternativa de interpretação e reconstrução
crítica do pensamento de Jung seria a utilização de um referencial teórico hegeliano, como o faz
Wolfgang Giegerich em seus numerosos trabalhos.
313
Cf. OC X, § 855.
314
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 17.
315
Cf. OC XVI, § 146.
princípio supremo e último”, Jung aponta para a tendência integradora que, nascendo da
mesma fonte “natural”, contrabalança o potencial destruidor do relativismo:
“O fundo da psique é natureza e natureza é vida criadora. É verdade que a própria natureza derruba o que
construiu, mas vai reconstruir de novo. Os valores que o relativismo moderno destrói no mundo visível, a
psique no-los restitui.”
316
Jung sustenta que a resistência contra a dissolução do que ainda subsiste do
universo ético tradicional no homem moderno brota da própria natureza humana, raiz
primeira de todo ethos, em sua atividade criadora de símbolos.
317
O sintoma ou
sofrimento psíquico, examinado em profundidade, em sua significação histórica e
espiritual, é simultaneamente indício de uma obstrução da função básica e vital de
enraizamento num ethos e pista para as vias de reconstrução adaptada e renovada
daquilo que se vê dissolvido.
Sob outra perspectiva e de modo complementar, encarado a partir da noção de
“cultura”, esse conflito entre relativismo e conservadorismo, ou entre modernidade e
tradição, é visto por Jung como correspondendo à “evolução histórica do espírito
ocidental”
318
, que ele reconstitui através da oposição entre representações simbólicas
dominantes e marginais, obtendo assim uma espécie de história cultural da dialética
consciente-inconsciente, em que se apoia a compreensão do significado da tarefa
psicoterapêutica:
“Os problemas que a integração do inconsciente traz ao médico e psicólogo moderno podem ser
resolvidos dentro da linha histórica que acabamos de traçar, e o resultado equivalerá a uma nova recepção
do mito transmitido, sendo porém pressuposta a continuidade da evolução. A tendência moderna à
destruição e perda de consciência de toda tradição poderá, entretanto, interromper o processo normal de
evolução durante vários séculos, e constituir um intervalo de barbárie. Isto acontece onde impera a
utopia marxista. Mas uma formação de sentido predominantemente técnico-científico, como a que
caracteriza os Estados Unidos, pode gerar um retrocesso da cultura espiritual, acarretando um aumento
considerável da dissociação psíquica. O homem não goza de saúde mediante a higiene e o bem-estar,
pois, se assim fosse, as pessoas mais ricas e esclarecidas também seriam as mais sadias. Mas não é isso o
que acontece, quando se trata das neuroses; muito pelo contrário. O desenraizamento e a ruptura com a
tradição neurotizam as massas e as preparam para a histeria coletiva. Esta última exige terapia coletiva,
316
OC X, § 187
b
. Lembremos, nesse contexto, as posições diametralmente opostas de Freud e Jung com
respeito ao fato religioso. Neurose coletiva a ser superada pela razão psicanalítica esclarecida, segundo
Freud, para Jung a religiosidade corresponde a uma necessidade natural do ser humano e as grandes
religiões são, por isso mesmo, “sistemas psicoterapêuticos” (cf., por exemplo, OC V, § 553; OC XVI, §§
20 e 249; OC XVIII, §§ 1231, 1494 e 1578.).
317
A utilização da noção de “natureza” em Jung é intencionalmente ambígua e remete ao Romantismo,
imediatamente, e à filosofia da natureza medieval e antiga. Inscrita nessa concepção encontra-se a
problemática dos “instintos”, que constituem o “fundo da psique” e que, devido ao seu caráter
conservador, restituem os valores tradicionais que o “relativismo” destrói. Ver o próximo capítulo.
318
OC IX-2, § 273.
que consiste na privação da liberdade e na implantação do terror. Por isso, onde impera o materialismo
racionalista, os Estados transformam-se gradativamente menos em prisões do que em asilos de loucos.”
319
Portanto, Jung pressente na situação contemporânea os indícios de um “intervalo
de barbárie”.
320
A interrupção do “processo normal de evolução” do espírito ocidental
consiste na ameaça que paira sobre o indivíduo na sociedade de massas contemporânea -
a ameaça da atomização e perda da própria individualidade. As formações de massa,
correspondentes aos grandes sistemas impessoais do saber, da praxis e da técnica,
suprimem a “diferenciação moral e espiritual do indivíduo” e a substituem pela
finalidade da satisfação das necessidades materiais:
“A decisão moral e a conduta de vida são, progressivamente, retiradas do indivíduo que, encarado como unidade social, passa a ser
administrado, nutrido, vestido, formado, alojado e divertido em alojamentos próprios, organizados segundo a satisfação da
massa.”
321
Jung considera o “racionalismo científico” que poderíamos traduzir por
racionalidade instrumental “um dos principais fatores da massificação”, responsável
por deitar por terra “os fundamentos e a dignidade da vida individual ao retirar do
homem a sua individualidade, transformando-o em unidade social e num número
abstrato da estatística de uma organização”.
322
Como antídoto ou “contrapeso” à massificação, Jung aponta a religião. Pois se é
o “racionalismo científico” que organiza o mundo e as consciências na sociedade de
massas, conforme os grandes sistemas objetivos a que se transfere a construção do
mundo humano atribuída à subjetividade transcendental
323
, então a reequilibração da
unilateralidade dessa forma de construção deve ser buscada naquilo que, por princípio,
ela exclui e a religião, tradicional portadora do ethos em todas as culturas
319
OC IX-2, § 282.
320
Também Henrique Vaz na situação que se manifesta na crise ética contemporânea uma ameaça aos
“próprios fundamentos da civilização tão longamente e tão penosamente edificada.” (Escritos de Filosofia
V, p. 219) O acirramento crescente e explosivo das tensões e contradições violentas, verificado nos
eventos cotidianos em escala planetária, não aconselha uma atitude otimista.
321
OC X, § 499. “O ‘fazer’ e o ‘produzir’ (contradistintos do ‘agir’ no sentido aristotélico) tornam-se fins
em si, submetendo todos os meios e rejeitando os fins propriamente éticos na esfera das convicções
subjetivas do indivíduo.” VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 261.
322
Cf. OC X, § 501. Em uma carta a E.L. Grant Watson, de 09/02/1956 (cf. Cartas III) Jung reitera que a
verdade estatística da ciência, ao desconsiderar o aspecto das exceções singulares sobre os quais o
artista e o poeta insistem -, perde o “sal da terra”, e destrói os valores indispensáveis à vida humana.
Trataremos no próximo capítulo da afinidade de Jung ao Romantismo que critica a concepção
iluminista de natureza e ciência nos mesmos termos, e oferece em contrapartida uma concepção que
insiste na individualidade orgânica da natureza, que suporta a individualidade pessoal do ser humano.
323
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 144-145.
conhecidas
324
, encontra-se entre os conteúdos do recalcado pela pedagogia positivista e
cientificista da racionalidade instrumental.
325
Para Jung, ao passo que os mecanismos da sociedade de massas aprisionam o
indivíduo numa cerrada rede de dependências às condições físicas e sociais do mundo, a
religião o confronta com a dependência e relação pessoal a um princípio transcendente
ao mundo.
326
Contrabalançando assim o peso do mundo externo, as religiões “propiciam
ao indivíduo a possibilidade de julgar e tomar suas decisões com liberdade.”
327
A
religião constrói, portanto,
“uma reserva, por assim dizer, contra a óbvia e inevitável força das circunstâncias à qual está exposto
todo aquele que vive somente no mundo externo e não tem nenhum outro fundamento sob seus pés a não
ser o chão. Se existe a realidade estatística, então ela é a única autoridade. Então somente uma
condição, e desde que nenhuma condição contrária existe, o juízo e a decisão são não só supérfluos como
impossíveis. Então o indivíduo está destinado a ser uma função da estatística e conseqüentemente uma
função do Estado, ou qualquer outro nome que se use para exprimir o princípio abstrato de
ordenamento.”
328
Nesse sentido, a religião representa uma espécie de proteção para a
individualidade pessoal, e por isso mesmo Jung considerava as grandes religiões como
sistemas psicoterapêuticos. Em última análise, a individualidade se opõe à massificação,
e tudo aquilo que a promova atua como uma forma de resistência às tendências que
pressionam o mundo ocidental moderno na direção do “intervalo de barbárie”, que
324
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 18.
325
Jung à noção de “religião” um significado generalíssimo: Religião é como diz o vocábulo latino
religere uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de
‘numinoso’, isto é, uma experiência ou um efeito dinâmico não causados por algum ato arbitrário da
vontade. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, mais sua vítima do que seu
criador”. OC XI, § 6. Assim, a experiência religiosa, como experiência “imediata” do sagrado,
desestabiliza a vida consciente. Se esta se encontra alienada de si mesma por adesão a qualquer
organização coletivista, compreende-se então como a experiência religiosa pode, por desestabilização,
devolver o indivíduo a si mesmo e opor-se à massificação. Note-se, de passagem, que nessa acepção a
experiência religiosa é totalmente diversa daquilo a que Freud se refere em sua crítica à religião um
meio de estabilização ilusória da vida consciente. Jung também reconhece esse aspecto da religião
institucionalizada e não o desqualifica como ilusão, reconhecendo a sua função de proteção e
manutenção do equilíbrio psíquico (cf. OC X, § 512) mas o diferencia da experiência imediata do
sagrado, que integra o processo de individuação.
326
Sob esse aspecto, Jung diferencia o “credoda “religião”: “[O credo] admite uma certa convicção
coletiva, ao passo que a religião exprime uma relação subjetiva com fatores metafísicos, ou seja,
extramundanos. [Um credo é uma confissão de fé voltada principalmente] para o mundo em geral,
constituindo, assim, uma questão intramundana. o sentido e a finalidade da religião consistem na
relação do indivíduo com Deus (cristianismo, judaísmo, islamismo) ou no caminho da redenção
(budismo). Esta é a base fundamental de suas respectivas éticas que, sem a responsabilidade individual
perante Deus, não passariam de [moralidade convencional].” OC X, § 507.
327
OC X, § 506.
328
CW X, § 506.
consiste na substituição do indivíduo, em sua qualidade de pessoa, pelo homem de
massa, “unidade substituível e infinitesimal” numa organização coletiva.
Ao atribuir sentido e uma função inestimável à religião na sociedade
contemporânea, Jung busca recuperar algo de essencial da tradição de que a
modernidade se separou. Porém, a condição para esta recuperação respeita as exigências
fundamentais da mentalidade moderna: trata-se de uma experiência individual, e não de
uma irrefletida adesão convencional tradicionalista.
329
E tal experiência requer novas
categorias de compreensão, compatíveis com o estado histórico da consciência
moderna. Jung acreditava que precisamente a noção de mbolo seria decisiva na
elaboração dessas categorias, e por conseguinte na restauração do vínculo rompido entre
modernidade e tradição. Por isso mesmo, a sensibilidade simbólica se lhe afigurava
como o único remédio capaz de fazer frente à ameaça do niilismo e do desenraizamento
modernos.
3. A crise da modernidade na experiência pessoal de Jung
O sentido cultural e histórico da psyches therapeia formulada por Jung
transparece na localização e função que ele dá à psicologia no interior da modernidade:
“Os esforços da moderna psicologia do inconsciente representam uma reação salutar da psique européia que procura recompor as
conexões perdidas com suas raízes através de uma conscientização do inconsciente.”
330
Esta “moderna psicologia do inconsciente”, que tem como objetivo mais amplo
recompor a continuidade com suas raízes, não é indiscriminadamente qualquer
psicologia do inconsciente. Pois não se pode dizer que Freud, “mestre da suspeita” de
paradoxal confissão positivista (enunciada sem rodeios em O Futuro de uma Ilusão),
reivindique tal objetivo para a sua psicanálise ainda que, na perspectiva de Jung, a
psicanálise freudiana constitua um momento inicial no cumprimento dessa meta.
331
Este
329
“Pertencer a [um credo], portanto, nem sempre implica uma questão de religiosidade mas, sobretudo,
uma questão social que nada pode acrescentar à estruturação do indivíduo.” OC X, § 509. “O homem
precisa da evidência transcendente de sua experiência interior, pois esta constitui a única possibilidade de
se proteger da massificação.” Id., § 511.
330
OC XVIII, § 1494.
331
“Do ponto de vista da psique, o mundo ocidental se encontra numa situação crítica, e o perigo será
ainda maior se preferirmos as ilusões de nossa beleza interior à verdade mais impiedosa. (...) Por isso não
é de admirar que a escavação de nossa própria psique seja antes de mais nada uma espécie de drenagem.
objetivo, em última análise, é próprio daquela “psicologia do inconsciente” que Jung
elabora a partir da crise central de sua vida, vivida entre 1912 e 1918, e que Henri
Ellenberger compreende segundo a categoria da “doença criativa”.
332
Sob uma
perspectiva ético-histórica, podemos dizer que é então que, de forma consciente e
radical, Jung experimenta pessoal e dramaticamente em sua vida os efeitos do
desenraizamento produzido pela modernidade, o que empresta a sua experiência o
caráter de uma relativa exemplaridade.
333
O momento culminante dessa experiência dá-
se após o rompimento com Freud, e é relatado no capítulo “Confronto com o
Inconsciente” de Memórias, Sonhos, Reflexões.
334
Podemos referendar a interpretação
ético-histórica de sua crise através das indicações que se referem àquele período.
Em primeiro lugar, é preciso notar que o verdadeiro fascínio exercido sobre Jung
pelo Fausto de Goethe, ao longo de toda a sua vida, revela seu envolvimento pessoal
com o dilema tradição-modernidade.
335
Sob esse prisma, o espírito que move a vida e a
um grande idealista como FREUD pôde
consagrar a um trabalho tão sujo a atividade de toda uma
vida. (...) Portanto, nossa psicologia, isto é, o conhecimento de nossa psique, começa, sob todos os pontos
de vista, pelo lado mais repugnante, a saber, por tudo que não queremos ver.” OC X, §183 e 186.
332
Cf. ELLENBERGER, H. F. The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of Dynamic
Psychiatry. New York: Basic Books, 1970, p. 657-748. O próprio Jung atesta a vinculação entre sua crise
e sua psicologia: “Hoje posso dizer que nunca me afastei de minhas experiências iniciais. Todos os meus
trabalhos, tudo o que criei no plano do espírito provêm das fantasias e dos sonhos iniciais. Isso começou
em 1912, cerca de cinqüenta anos. Tudo o que fiz posteriormente em minha vida está contido nessas
fantasias preliminares, ainda que sob a forma de emoções ou de imagens. (...) Minhas buscas científicas
foram o meio e a única possibilidade de arrancar-me a esse caos de imagens (...) Foram necessários
quarenta e cinco anos para elaborar e inscrever no quadro de minha obra científica os elementos que vivi
e anotei nessa época da minha vida.” In JAFFÉ, A. C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 170-176.
333
“Quando se ouve alguém falar de um problema cultural ou de um problema humano, nunca se deve
esquecer de perguntar quem está falando. Pois, quanto mais geral o problema, tanto mais [o sujeito]
‘introduzirá secretamente’ sua psicologia pessoal na descrição. Isto poderá levar a distorções
imperdoáveis e a falsas conclusões, com sérias conseqüências. Mas, por outro lado, o próprio fato de um
problema geral envolver e assumir a personalidade inteira é garantia de que quem fala dele também o
tenha vivenciado ou experimentado pessoalmente. Na segunda hipótese, ele nos apresenta o problema sob
um ponto de vista pessoal, mostrando-nos portanto uma verdade, ao passo que o primeiro manipula o
problema com tendências pessoais e o deforma, sob o pretexto de lhe dar uma forma objetiva. O resultado
será simplesmente uma imagem ilusória sem qualquer base verdadeira.” OC X, § 157.
334
E mais extensamente em um seminário realizado em 1925. Cf. MCGUIRE, W. (ed.). Analytical
Psychology. Notes of the Seminar given in 1925. C.G.Jung. Princeton: P.U.P., 1989.
335
“Quando li o Fausto não podia supor ainda quanto o estranho mito heróico de Goethe era coletivo, e
profetizava o destino da Alemanha. Era por isso que me sentia pessoalmente atingido, e quando Fausto,
em conseqüência de sua hybris e inflação, provoca a morte de Filemon e Baucis, acreditei ser culpado,
um pouco como se, em pensamento, tivesse participado do assassinato dos dois velhos. (...) Fausto fez
vibrar em mim uma corda e me atingiu de tal maneira que podia compreendê-lo de um ponto de vista
pessoal. O problema dos contrários, do bem e do mal, do espírito e da matéria, do claro e do obscuro, foi
algo que me tocou profundamente. (...) Goethe, de alguma forma, havia esboçado um esquema de meus
próprios conflitos e soluções. A dicotomia Fausto-Mefisto confundia-se para mim num homem, e esse
homem era eu! Em outras palavras, sentia-me atingido, desmascarado e, uma vez que era esse o meu
destino, todas as peripécias do drama me concerniam pessoalmente.” in JAFFÉ, A. C.G. Jung. Mémórias,
Sonhos, Reflexões, p. 209. A compreensão meramente pessoal da identificação ao problema faustiano vai
ser posteriormente superada: “Enquanto não é reconhecido como tal, um problema coletivo toma sempre
a forma pessoal e provoca, ocasionalmente, a ilusão de uma certa desordem no domínio da psique
obra de Jung expressa-se na inscrição que ele esculpiu em sua torre de Bollingen:
Philemonis Sacrum Fausti Poenitentia(Santuário de Filemon Arrependimento de
Fausto). O crime de Fausto contra Filemon e Báucis é a metáfora perfeita da destruição
da tradição pelo ímpeto dominador da consciência moderna. Reciprocamente, a
identificação de Jung a Fausto e o anseio penitencial de expiação de uma culpa coletiva
traduz-se em seu pensamento como o empenho em recuperar para a condição moderna
um vínculo viável com a tradição. É o que ele mesmo confirma, ao dizer
retrospectivamente em suas memórias: “Mais tarde, em minha obra, parti do que Fausto
deixara de lado: o respeito pelos direitos eternos do homem, a aceitação do antigo e a
continuidade da cultura e da história do espírito.”
336
É igualmente revelador o fato de Jung abrir a narrativa sobre seu “confronto com
o inconsciente” falando da desorientação e da incerteza que sentia, e da falência do
“mito cristão” como fonte de sentido para sua vida.
337
Essa experiência profundamente
pessoal é, ao mesmo tempo, indício concreto de uma situação coletiva e cultural, e
revela o impasse a que chega a modernidade: nascida da Idade Média cristã, ela perde
em sua evolução histórica a continuidade com suas raízes, privando-se da orientação e
do suprimento de sentido que elas ofereciam. E assim o indivíduo que sofre
conscientemente o impacto dessa situação histórica, “tendo atrás de si tudo o que ruiu e
foi superado, e diante de si o nada, do qual tudo pode surgir”
338
, mergulha nessa crise
marcada pela incerteza e pelo desamparo, pois “admitir a modernidade significa
declarar-se voluntariamente falido.”
339
No limiar de sua crise, a arrogância faustiana com modulação nietzschiana ainda
levava Jung a escrever que “o poder hipnótico da tradição ainda nos mantém
agrilhoados, e por covardia e irreflexão o rebanho continua trotando pelo mesmo velho
pessoal. Efetivamente, tais perturbações ocorrem na esfera pessoal, mas não são necessariamente
primárias: são secundárias e decorrem de uma mudança desfavorável do clima social. Nesse caso,
portanto, não se deve procurar a causa da perturbação na ambiência pessoal, mas sim na situação coletiva.
A psicoterapia ainda não levou em conta, suficientemente, esta circunstância.” Ibid., p. 208.
336
In JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 210. Wolfgang Giegerich um fracasso na
forma como Jung procurou realizar sua expiação do crime de Fausto. Cf. GIEGERICH, “Jung’s Betrayal
of his Truth: the Adoption of a Kant-based Empiricism and the Rejection of Hegel’s Speculative
Thought”, in Harvest. Journal for Jungian Studies, vol. 44, nº 1, 1998, p. 46-64.
337
Cf. JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 152.
338
OC X, § 150.
339
OC X, § 152. “Considerando todos os aspectos, acho que não estou exagerando se comparar a
consciência moderna com a psique de um homem que, tendo sofrido um abalo fatal, caiu em profunda
insegurança.” Id., § 155. “O abalo de nosso mundo e o abalo de nossa consciência são uma e a mesma
coisa.” Id., § 177.
caminho.”
340
Quarenta e um anos depois, sua atitude é bem outra, e alude
explicitamente à perda de raízes ocorrida em sua crise:
“A filosofia oriental preenche uma lacuna em nós, mas sem resolver o problema colocado pelo cristianismo. Como não sou hindu
nem chinês, devo contentar-me com meus pressupostos europeus, caso contrário corro o perigo de perder pela segunda vez as
minhas raízes. Prefiro não arriscar algo assim, pois sei o que custa recompor uma continuidade perdida. Cultura é continuidade.”
341
Se o “mito cristão” lhe parecia falido em 1912, em 1955 ele escreve ao padre
beneditino Lucas Mensz: “Para a maioria das pessoas permanece oculto o fato de eu me
basear no espírito cristão; devido à estranheza da [minha] linguagem e à incompreensão
de meus anseios, mereço ser evitado.”
342
E em 1959 ele explica a um correspondente
inglês sua famosa declaração na entrevista à BBC em resposta à pergunta sobre se
acreditava em Deus (“I don’t need to believe. I know.”), dizendo:
“Sei que é uma maneira não convencional de pensar e entendo perfeitamente se ela a entender que não
sou cristão. Mas eu me julgo cristão, pois me baseio totalmente em conceitos cristãos. Apenas tento fugir
de suas contradições internas, introduzindo uma atitude mais modesta que leva em consideração a imensa
escuridão da mente humana. A idéia cristã prova sua vitalidade através de contínua evolução, como
acontece no budismo. Nosso tempo reclama sem dúvida alguns pensamentos novos neste sentido, pois
não podemos continuar pensando de modo antigo ou medieval no tocante à esfera da experiência
religiosa.”
343
A novidade reclamada pelo nosso tempo brota de uma exigência
própria da mentalidade moderna:
“A consciência moderna abomina a fé e conseqüentemente as religiões que nela se baseiam. (...)[Ela só as
considera válidas na medida em que o seu conteúdo de conhecimento parece concordar com sua própria
experiência do pano de fundo psíquico.] Ela quer saber, isto é, experimentar originalmente por si
mesma.”
344
340
CW VII, § 430. Passagem escrita em 1912 e deletada na revisão de 1917. Para a elaboração de sua
experiência criativa do período 1913-1917 foi decisivo o contato com culturas não-européias,
especialmente da África e do Novo México, que Jung conheceu em “expedições antropológicas” na
década de 20. Numa passagem omitida da versão publicada das Memórias, ele afirma que suas
experiências o haviam sobrecarregado “com um emaranhado de problemas cuja natureza exigia que eu
estudasse a vida psíquica de não-europeus. Pois eu suspeitava que as questões postas para mim eram
compensações por meus preconceitos europeus.” (citado em SHAMDASANI, Jung and the Making of
Modern Psychology, p. 322) E, em outra passagem omitida, ele revela o choque causado por esse contato
em primeira mão com a alteridade cultural, que o levou a perceber como inadequados os “modos
convencionais de conceber e lidar com problemas psicológicos”, e afirma: “Minha auto-confiança
moderna sofreu uma derrota desconcertante. Simultaneamente mais rico e mais pobre, eu retornei dessas
viagens para a tarefa de minha existência européia.” (id., p. 323)
341
Cartas II, 2/09/1953, à Condessa Elisabeth Klinckowstroem.
342
Cartas II, 22/02/1955, ao padre Lucas Mensz.
343
Cartas III, 05/12/1959, a Hugh Burnett.
344
OC X, § 171. Isso faz lembrar a declaração de Karl Rahner sobre a condição para se ser cristão nos
novos tempos: “Já se disse que o cristão do futuro ou será um místico ou não o será”, entendendo-se por
Este imperativo moderno da experiência soma-se a uma outra
exigência fundamental para a recuperação do lastro com a tradição
religiosa, e que diz respeito à linguagem enquanto suporte vivo das
categorias humanas de compreensão em sua historicidade essencial. É na
linguagem que o homem existe historicamente, e por isso a sua existência
histórica é essencialmente expressividade. Por conseguinte, todo sentido
que o homem elabora e expressa recebe necessariamente o selo da
temporalidade histórica, e deriva sua vitalidade da vinculação à conjuntura
cultural ampla em que ele é enunciado. Segue-se que uma transformação da
conjuntura impõe a necessidade de novas formas de interpretação e
expressão do sentido transmitido pela tradição.
No caso da modernidade, como indicamos no primeiro capítulo, não
estamos diante de uma simples transformação de conjuntura, e sim de uma
verdadeira revolução estrutural.
A consciência moderna, vinculada a uma visão de mundo gestada a partir
da revolução científica, para recuperar o acesso ao sentido simbolicamente
expresso na tradição da qual emergiu, requer preliminarmente a tradução
de seus conteúdos segundo as coordenadas do espaço epistemológico
constituído pelas ciências do homem. A incerteza e as dificuldades que
envolvem essa tarefa são consideráveis.
345
E não só isso: como apontamos
no capítulo anterior, ao tratar da hipótese da sincronicidade, em sua
radicalidade a experiência simbólica exige um ultrapassamento ou, pelo
menos, uma ampliação da visão de mundo científica na direção de uma
mística não fenômenos parapsicológicos raros, “mas uma experiência de Deus autêntica que brota do
interior da existência”. RAHNER, citado em LIBÂNIO, J.B. A Religião no Início do Milênio. São Paulo:
Loyola, 2002, p. 21. Porém, na perspectiva cristã de Rahner, a mística é a consumação plena da fé.
Também A. Malraux via na experiência mística uma possibilidade para o século XXI, entendendo por
isso um acesso direto a Deus pela experiência (cf. LIBÂNIO, op. cit., p. 22).
345
Vejam-se as reflexões de Henrique Vaz sobre a incidência desse problema no pensamento teológico e
na linguagem da fé em Escritos de Filosofia I (terceira parte: “Teologia e Linguagem).
nova ontologia, o que aumenta ainda mais as dificuldades de uma
restauração dos vínculos com a tradição.
Como quer que seja, a “moderna psicologia do inconsciente”,
elaborada por Jung a partir de sua experiência pessoal e profissional,
representa confessadamente um esforço de tradução e disponibilização para
a consciência racional moderna da sabedoria de vida presente nas tradições
simbólicas que a humanidade construiu, e que Jung estudou com interesse
inesgotável.
346
O envolvimento crítico e apaixonado de Jung com o
cristianismo expressa a particularidade moderna e ocidental de sua busca
de recomposição da continuidade perdida com as raízes autênticas de sua
“existência européia”. A validade e as limitações dos pressupostos teóricos
de fundo de sua tentativa são questões que discutiremos no próximo
capítulo e na conclusão. Por ora, basta-nos salientar o seu sentido e sua
coerência com a compreensão que tinha das causas histórico-culturais da
situação espiritual do homem moderno e dos problemas psíquicos dela
decorrentes, bem como com a concepção teórico-psicológica que
desenvolveu em torno das noções de arquétipo, instinto, símbolo e, por fim,
das relações entre consciência e inconsciente.
4. A psyches therapeia de C.G. Jung: experiência simbólica como forma de
sabedoria prática
Como se dá a experiência do mal-estar da modernidade na situação individual, isto é,
na experiência pessoal? O que poderia compelir a pessoa à experiência simbólica da
realidade?
346
Dentro desse espírito, Jung escreve ao amigo Hugo Rahner: “Só sei aquilo que já disse: que a
linguagem escolástica e seus pressupostos já não são adequados ao homem contemporâneo se quisermos
transmitir-lhe alguma coisa sobre a psique humana. Isto eu não sei a priori, mas da repetida experiência.”
Cartas I, 04/08/1945, a Hugo Rahner.
Como vimos, Jung reconhece uma relação de continuidade entre a psicologia
coletiva e a psicologia individual, de forma que, por um lado, os problemas coletivos
e sociais de uma determinada época e cultura se impõem na esfera pessoal,
determinando-a, e por outro lado a solução desses problemas começa com o
indivíduo – pelo menos, essa é a sua crença, que ele expressa abertamente:
“Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da
nação. Até hoje, os grandes problemas da humanidade nunca foram resolvidos por decretos coletivos, mas
somente pela renovação da atitude do indivíduo. Em tempo algum, meditar sobre si mesmo foi uma
necessidade tão imperiosa e a única coisa certa, como nesta catastrófica época contemporânea. Mas quem
se questiona a si mesmo depara invariavelmente com as barreiras do inconsciente, que contém justamente
aquilo que mais importa conhecer.”
347
Dois anos mais tarde, Jung reafirma e especifica sua posição, ao meditar sobre o
cenário criado pela primeira guerra mundial:
“O espetáculo dessa catástrofe faz com que o homem, sentindo-se totalmente impotente, se volte para si
mesmo, olhe para dentro e, como tudo vacila, busque algo que lhe segurança. Muitos ainda procuram
fora de si mesmos; uns acreditam na ilusão da vitória e do poder; outros em tratados e decretos; outros,
ainda, na destruição da ordem vigente. Mas são poucos os que buscam dentro de si, poucos os que se
perguntam se não seriam mais úteis à sociedade humana se cada qual começasse por si, se não seria
melhor, em vez de exigir dos outros, pôr à prova primeiro em sua própria pessoa, em seu foro interior, a
suspensão da ordem vigente, as leis e vitórias que apregoam em praça pública. É indispensável que em
cada indivíduo se produza um desmoronamento, uma divisão interior, que se dissolva o que existe e se
faça uma renovação, mas sem impô-la ao próximo sob o manto farisaico do amor cristão ou do senso da
responsabilidade social ou o que quer que seja usado para disfarçar as necessidades pessoais e
inconscientes de poder. O autoconhecimento de cada indivíduo, a volta do ser humano às suas origens, ao
seu próprio ser e à sua verdade individual e social, eis o começo da cura da cegueira que domina o mundo
de hoje.”
348
Mas o que arrasta o indivíduo à incômoda tarefa do autoconhecimento, como
mostra a experiência, não é uma espontânea e desinteressada vontade de se conhecer,
mas um tipo de necessidade que obriga: um conflito, um sofrimento, muitas vezes
manifestado sob a forma da “neurose psíquica” expressão que Jung por vezes utiliza
para cobrir genericamente o campo da psicopatologia, e que corresponde àquela
“divisão interior” acima mencionada. Isso significa que a divisão neurótica possui um
potencial de renovação, ligado ao autoconhecimento e à conseqüente possibilidade de
347
OC VII, pag. XIV (prefácio à edição de 1916).
348
OC VII, pag. XV (prefácio à edição de 1918). Em outro lugar, Jung afirma que “as terríveis forças
desencadeadas pela guerra mundial levam à autodestruição porque carecem da sabedoria humana para
orientá-las. Nossa visão do mundo revelou-se extremamente mesquinha, incapaz de dar a essas forças
uma forma cultural.” OC X, § 31.
devolver o ser humano às suas origens e à sua verdade individual e social.
Reciprocamente, essa renovação exige aquela divisão interior, que é vivida com
angústia como um “desmoronamento”
349
e por isso mesmo não é buscada
voluntariamente pelo indivíduo.
Para Jung a neurose “é a expressão da pessoa toda que não pode ser tratada
apenas nas categorias de uma especialidade médica”
350
, pois “se existe uma doença que
não pode ser localizada porque procede da totalidade da pessoa humana, essa doença é a
neurose psíquica.”
351
A conseqüência desta ampliação na compreensão da neurose,
correlata no nível clínico da compreensão histórico-cultural do sofrimento espiritual
moderno, é que a própria definição da psicoterapia precisa ser ampliada. Trata-se de um
procedimento que, de partida, destina-se a curar o mal-estar neurótico, mas o que cura
uma neurose?”, pergunta Jung.
352
E afirma em seguida: “Para encontrar a verdadeira
resposta a essa pergunta, a psicologia das neuroses precisa ir muito além de seus limites
puramente médicos.”
353
Assim, numa posição que certamente surpreende o leigo que
desconhece o sentido e a natureza de sua praxis psicoterapêutica, Jung sustenta que
“Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o
que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhe gratos, caso contrário
teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer realmente quem somos.
Uma neurose estará realmente ‘liquidada’ quando tiver liquidado a falsa atitude do eu. Não é ela que é
curada, mas é ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-
la.”
354
A neurose é, portanto, uma espécie de corretivo de uma “falsa atitude do Eu”
que deve “desmoronar” -, e representa uma oportunidade para o conhecimento de si
mesmo. Isto significa que a neurose, ou sofrimento psíquico, remete em profundidade a
essa “totalidade da pessoa humana”, que não se confunde com o Eu consciente
empírico, abarcando também a dimensão inconsciente da personalidade, e que Jung
designa com um termo distinto - Si-mesmo (Selbst):
“A ‘personalidade supra-ordenada’ é o ser humano total, isto é, tal como é na realidade e não apenas
como julga ser. A totalidade compreende também a alma inconsciente que tem suas exigências e
necessidades vitais tal como a consciência. (...) Habitualmente chamo a personalidade supra-ordenada de
349
Observe-se que isso corresponde, na esfera pessoal, à aposta de Jung sobre um sentido para o niilismo
que move o “iconoclasmo” ocidental.
350
OC XVIII, § 839.
351
OC XVI, § 194.
352
OC XVIII, § 840.
353
ibid.
354
OC X, § 361.
Si-mesmo, e separo estritamente o eu, o qual como se sabe vai até onde chega a consciência, do todo
da personalidade, no qual se inclui além da parte consciente, o inconsciente. O eu está para o ‘Si-mesmo’
assim como a parte está para o todo. Assim sendo, o Si-mesmo é supra-ordenado ao eu. Empiricamente o
Si-mesmo não é sentido como sujeito, mas como objeto, e isto devido à sua parte inconsciente, que
pode chegar indiretamente à consciência, via projeção. (...) O alcance indefinido da parte inconsciente
torna portanto impossível uma apreensão e descrição completas da personalidade humana.
Conseqüentemente, o inconsciente complementa o quadro com figuras vivas, que vão do animal até a
divindade como os dois extremos além do humano. Além disso, o extremo animal é complementado pelo
acréscimo do vegetal e do abstrato inorgânico, tornando-o um microcosmos. Estas complementações são
encontradas com grande freqüência como atributo em imagens divinas antropomórficas.”
355
Por transcender a consciência, em virtude de sua indeterminável extensão
inconsciente, a totalidade pessoal do Si-mesmo em si é por princípio inobjetivável.
356
Assim sendo, a experiência concreta que o sujeito faz de si mesmo como pessoa é
necessariamente de natureza simbólica, pois tudo que escapa à apreensão direta precisa
do símbolo para ser captado e expresso. Essa totalidade humana é, no fundo, uma noção
metafísica; por esse motivo, Jung diz que o Si Mesmo, tomado não como imagem mas
como realidade arquetípica “em si”, é uma noção transcendental e um conceito-limite,
podendo todavia ser captado empiricamente através de símbolos, que apresentam uma
fenomenologia especial própria, e que Jung estudou cuidadosamente.
357
A grande
variedade dessas manifestações simbólicas que passam pelos motivos arquetípicos da
pedra, da árvore, do animal prestativo, da criança, do velho sábio ou da grande mãe, das
figuras do Anthropos, e atingem as formas geométricas abstratas justifica a retomada
da concepção antropológica do microcosmos, que Jung identifica ora ao inconsciente
coletivo, ora ao Si-mesmo, e a postulação de uma possível continuidade entre a
totalidade do ser humano e o todo da natureza. Tal continuidade, como vimos no
capítulo anterior, é pressuposta na noção de sincronicidade, e a reproposição da
concepção de microcosmos, respaldada pela experiência simbólica do Si-mesmo, vem
355
OC IX-1, § 314-315. “Designei esta [totalidade] que transcende a consciência com a palavra Si-mesmo
(Selbst).” OC IX-1, § 278. Observe-se que o Si-mesmo é chamado tanto de totalidade “psíquica” quanto
de totalidade “humana”. Para se compreender esta equiparação do “psíquico” ao “humano”, é preciso
atentar para o fato de que a concepção de psique ou alma (Seele) em Jung engloba também as dimensões
do corporal e do espiritual: “Corpo e espírito são para mim meros aspectos da realidade psíquica.” Cartas
I, 10/09/1935, a H.A. Murray.
356
“Também o Si-mesmo é uma imagem psíquica [da totalidade transcendente do homem, a qual é
transcendente porque indescritível e inatingível].Cartas II, 13/01/1948, a Gebhard Frei.
357
Num sentido mais geral, isto é, na medida em que o Si-mesmo não é tomado apenas como um
arquétipo (do sentido, da ordem etc.), que é o centro regulador da psique, mas como a totalidade dessa
mesma psique, todos os múltiplos símbolos que expressam a atividade do inconsciente coletivo são
símbolos do Si-mesmo.
assim complementar com coerência a retomada da doutrina da correspondentia
verificada na hipótese da sincronicidade, conforme assinalamos anteriormente.
358
À noção de Si-mesmo articula-se outra, que lhe é intimamente relacionada, e que
representa, na verdade, a sua contrapartida dinâmica. Jung vê em ação na alma humana
um impulso à individuação, que expressa a tendência prospectiva desse “sistema auto-
regulado” que é a psique, cuja meta é a realização de todas as suas potencialidades
inatas, a atualização da totalidade imanente do Selbst.
Apesar de o próprio Jung não ter se dado conta disso com clareza, a sua
concepção acerca da individuação e do Si-mesmo evoca noções análogas encontráveis
no pensamento de Aristóteles. Somente numa entrevista a Ximena de Angulo, em 1952,
Jung admite a analogia com as noções aristotélicas. Tentando explicar o que entendia
por individuação, Jung usa uma comparação extraída da própria fenomenologia
simbólica das imagens psíquicas: “A individuação é um processo natural. É o que faz
uma árvore tornar-se árvore; se interferirem nela, então adoece e não pode funcionar
como árvore; mas se a deixarem entregue a si mesma, desenvolve-se até ser uma árvore.
Isso é a individuação.” Então a entrevistadora intervém, e relata: “Perguntei-lhe se o que
fazia uma árvore crescer para ser uma árvore o era a mesma coisa que a enteléquia
aristotélica, as potencialidades inerentes, dentro da glande, que se desenvolvem até se
transformarem num carvalho. Jung hesitou e eu tive que repetir a pergunta de outra
maneira, mas então ele disse que era a mesma coisa.”
359
Na verdade, a despeito de sua resistência a Aristóteles, Jung havia se utilizado
da noção de enteléquia para descrever a realização do Si-mesmo, num texto de 1940:
“A meta do processo de individuação é a síntese do Si-mesmo. Observado por outro ponto de vista,
prefere-se o termo ‘enteléquia’ ao de ‘síntese’. Há uma razão empírica pela qual a expressão ‘enteléquia’
[é, em certas condições,] mais adequada: os símbolos da totalidade ocorrem freqüentemente no início do
processo da individuação e até podem ser observados nos [primeiros sonhos da infância remota]. Esta
observação intercede a favor de uma existência [a priori da totalidade potencial], razão pela qual o
conceito de enteléquia é recomendável. Na medida porém em que o processo de individuação [ocorre,
358
A noção de microcosmos está abundantemente presente nos escritos de Jung basta conferir as
remissões no verbete respectivo no índice geral das Obras Coligidas (CW XX). J.J. CLARKE afirma que
“a principal contribuição de Jung ao pensamento moderno reside na revalidação e reformulação que fez
da idéia muito antiga de que o homem é uma espécie de cosmo um microcosmo” (Em busca de Jung.
Indagações históricas e filosóficas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993, p.131).
359
“Comentários sobre uma Tese de Doutorado”, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. C.G. Jung:
Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p.191-201, aqui p. 195. Ximena de Angulo comenta a
seguir: “Eu penso que o seu preconceito contra Aristóteles é tão grande que o fez relutar em
comprometer-se; provavelmente porque ‘o pensamento aristotélico, dentro da Igreja, produz tamanha
aridez intelectual e rigidez doutrinária’.” (Esta última observação retrata a posição de Jung).
empiricamente falando,] como uma síntese, é como se paradoxalmente algo já existente [estivesse sendo
reunido]. Deste ponto de vista o termo ‘síntese’ também é aplicável.”
360
Ao que tudo indica, o uso da noção de enteléquia em Jung provém
em linha direta de Hans Driesch, biólogo neovitalista do século XIX, que
por sua vez a refere explicitamente a Aristóteles, não obstante as diferenças
consideráveis existentes entre a biologia aristotélica e o neovitalismo.
361
Como pode ser percebido pela passagem acima, justamente por
desconsiderar o aparato conceptual aristotélico Jung se enreda em
complicações desnecessárias ao tentar compreender o estatuto ontológico
do Si-mesmo e sua relação com a individuação. Caso tivesse superado seu
preconceito contra Aristóteles, e lançado mão dos conceitos de ato e
potência, em suas relações com os conceitos de forma e atividade, que
tornam inteligível tanto o movimento quanto a ação humana (praxis), o
paradoxo de uma totalidade potencial existente a priori – e portanto já em
ato – que precisa ser empiricamente sintetizada seria substituído por uma
formulação mais rigorosa e precisa, do ponto de vista intelectual.
362
Aplicada mais propriamente à esfera humana, a individuação coincide com o
processo de tornar-se um ser humano completo e singular. Por outro lado, a
simbolização desse processo mediante imagens naturais a da árvore, por exemplo
não se resume a um artifício metafórico da linguagem: Jung entende a individuação
como uma expressão do processo biológico geral, “mediante o qual todo ser vivo torna-
se aquilo que está destinado a ser desde o começo.”
363
A extensão do principium
individuationis a um âmbito mais amplo do que o humano milita em favor de nossa
360
JUNG,C.G. OC IX-1, § 278. Lembremos que, em Aristóteles, a noção de enteléquia é
fundamentalmente sinônimo de ato, e também de forma e energeia (cf. REALE, G. História da Filosofia
Antiga. Vol. V:Léxico, Índices, Bibliografia. São Paulo: Loyola, 1995, verbete “enérgheia”, p. 88-89).
Além disso, na aitiologia aristotélica a causa final está inscrita na causa formal, que tem preeminência
sobre todas as demais causas.
361
Cf. SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 180-181.
362
De uma forma um pouco apressada, Marilyn Nagi afirma que Jung emprega a versão aristotélica de
teleologia em suas concepções de individuação e Si-mesmo (cf. NAGI, M. Questões Filosóficas na
Psicologia de C.G. Jung. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 237-244). A sedução dos paralelismos, tão
junguiana, não nos deve fazer perder de vista as diferenças existentes entre as duas formulações. No
Eranos Tagung de 1946, o professor Walter Wili mais cautelosamente chamou a atenção para as
afinidades existentes entre a ética de Aristóteles e concepções fundamentais na psicologia analítica (cf.
WILI, W. “Probleme der aristotelischen Seelenlehre”, in Eranos Jahrbuch, vol. XII, 1946, p. 55-93).
363
JUNG,C.G. OC XI, § 460.
afirmação de que os pressupostos metafísicos da psicologia analítica apontam na
direção da ontologia clássica. Em consonância a esta extensão, Jung alude ao “si-mesmo
mais íntimo de todo ser humano e animal, de plantas e cristais”
364
, que corresponde
àquilo que todo ser vivo está destinado a ser desde o começo em termos aristotélicos:
à sua enteléquia.
A individuação significa o impulso de realização plena daquilo que constitui a
essência da espécie:
“Todo ser vivo que é capaz de se desenvolver individualmente, sem restrições, melhor realizará, pela
própria perfeição de sua individualidade, o tipo ideal de sua espécie, e além disso alcançará um valor
coletivo.”
365
Há, portanto, uma correspondência entre a “perfeição da individualidade” e a
“realização do tipo ideal da espécie”.
366
Jung utiliza o termo teleiosis para se referir à
individuação, e diz que as imagens do Anthropos, enquanto homem completo (teleios)
representam simbolicamente o Si-mesmo, definido como totalidade transcendente à
consciência.
367
A individualidade ou singularidade de um indivíduo é definida como
“uma combinação única, ou como diferenciação gradual de funções e faculdades que
em si e por si mesmas são universais”, e não como uma “estranheza de sua substância
ou de seus componentes”.
368
Por conseguinte, a individuação “significa precisamente a
melhor e mais completa realização das qualidades coletivas do ser humano”.
369
Em
outros termos: individualidade e universalidade são mutuamente remitentes, e a
individualidade deve ser captada junto à universalidade ou generalidade, e nunca contra
ou além dela.
370
364
Cartas II, 03/08/1953, anônimo (Essa passagem merece ser lida integralmente, pois exibe uma posição
que lembra Nicolau de Cusa, quando Jung afirma que esse si-mesmo mais íntimo é Deus “mas
infinitamente diminuído e aproximado de sua forma individual última”).
365
CW VII, § 504 (cf. OC VII, pag. 287).
366
Aqui a terminologia pode ser enganadora: o viés indubitavelmente biologizante de Jung desaconselha
a interpretação do “tipo ideal” apenas como uma versão de idéia regulativa kantiana, justificando a
aproximação ao eidos aristotélico: o Si-mesmo em Jung é decididamente uma realidade concreta, que se
manifesta, por exemplo, nas grandes obras da cultura, bem como em certas experiências individuais.
367
Cf. OC XI, § 742 e 755: O Si-mesmo é o teleios anthropos, o homem completo, cujos símbolos são
[a criança divina] ou seus sinônimos.” Cf. Cartas II, 26/03/1951, ao pastor Werner Niederer: “No sentido
psicológico, a teleiosis significa uma ‘integralidadee não uma ‘perfeição’ da pessoa. A totalidade não
pode ser consciente, pois abrange também o inconsciente. Ela é, ao menos em sua metade, um estado
transcendental, portanto é mística e numinosa. A individuação é uma meta transcendental, uma
encarnação do anthropos.”
368
OC VII, § 267.
369
OC VII, § 267.
370
Cf. PIERI, P. F. Dicionário Junguiano. São Paulo: Paulus, 2002, verbete “individualidade”.
Para Jung, esse nível de universalidade/generalidade enraíza-se, por um lado, na
materialidade do corpo, e os símbolos do Si-mesmo humano expressam tanto essa
materialidade quanto a estrutura da consciência discriminadora.
371
Ao mesmo tempo,
portanto, em que uma distinção real entre Eu e Si-mesmo, também uma relação
recíproca: por um lado, o Si-mesmo é o fundamento imprescindível de toda consciência
e aquilo que e em movimento o processo de individuação; e, por outro lado, o Eu
enquanto sede ou órgão da tomada de consciência é condição da individuação e da
realização do Si-mesmo, na medida em que esta realização traduz-se na situação
humana como a conscientização do Si-mesmo ou auto-conhecimento.
372
Podemos
entender a individuação segundo dois ângulos: o Si-mesmo se individua ou realiza
através do Eu, ou no Eu, e o Eu se individua ao assemelhar-se ao Si-mesmo,
realizando-o. A meta da individuação é a realização plena da totalidade do Si-mesmo.
Porém, toda realização concreta sendo inevitavelmente particular, dados o seu
condicionamento empírico e a limitação essencial da consciência empírica do Eu,
resulta que se abre uma distância insuperável entre a meta da individuação e a sua
efetivação empírica: eis o motivo que leva Jung a referir-se à individuação enquanto
encarnação acabada do Anthropos como uma “meta transcendental”.
373
Por isso mesmo, raríssimas vezes Jung emprega o particípio “individuado” para
se referir a algum exemplo humano concreto de individuação. Pelo contrário: ele aceita
serenamente o “fardo de ser humano” – a finitude -, e reconhece que “em última análise,
todos ficamos presos em algum lugar, pois somos mortais e permaneceremos sendo uma
parte daquilo que somos como um todo. A totalidade que podemos atingir é muito
relativa.”
374
O que significa, usando os próprios termos de Jung, que na individuação
concreta o Eu a parte jamais realiza plenamente o Si-mesmo o todo. Desta forma,
a individuação é um processo estruturalmente aberto e interminável.
371
Cf. OC IX-1, §§ 290-291.
372
“O sentido da evolução humana está na realização desta vida. Ela é rica o suficiente em maravilhas. E
não numa separação deste mundo. Como posso realizar o sentido de minha vida se me coloco como
objetivo o ‘desaparecimento da consciência individual’? O que sou sem esta minha consciência
individual? [Mesmo] aquilo que chamei de ‘Si-mesmo’ atua apenas graças a um ‘eu’, que escuta a voz
daquele ser maior.” Cartas III, 02/08/1957, a Meggie Reichstein. Criticando a afirmação oriental de uma
experiência sem imagens, com a conseqüente anulação do Eu, Jung diz: “A comparação com o sono
profundo, do qual não resta lembrança alguma, também se refere a um estado em que nenhuma lembrança
pode surgir, porque nada foi percebido. Mas na experiência satori algo foi percebido, isto é, que houve
uma iluminação ou algo semelhante. E isto é uma imagem [definida] que pode ser comparada com a
tradição e com ela ser harmonizada. (...) É simplesmente incompreensível que [uma experiência possa ser
afirmada como tendo acontecido] quando não ninguém [que a teve]. Esse ‘ninguém’ que afirma é
sempre um [Eu]. Se não há [Eu], nada pode ser percebido.” Cartas III, 10/12/1958, ao Dr. James Kirsch.
373
Cf. Cartas II, 26/03/1951, ao pastor Werner Niederer.
374
Cartas III, 11/05/1956, a Rudolf Jung.
As noções de Si-mesmo e de individuação são os pilares da concepção
antropológica implicada na psicologia analítica.
375
A psyches therapeia formulada por
Jung organiza-se, em última análise, em torno a estes dois pólos.
376
Como assinalamos
em nossa introdução, para demonstrar a sua significação filosófica é preciso interpretá-
la a partir de uma perspectiva ética reconhecida no campo da própria filosofia. Por este
motivo, resumimos no primeiro capítulo as coordenadas fundamentais da concepção
aristotélica de sabedoria prática. É chegado o momento de utilizá-las para cumprir a
tarefa que nos propusemos.
Aqui não se trata, propriamente falando, de comparar a concepção de phronesis
de Aristóteles com a psyches therapeia de Jung. A simples comparação não faria muito
sentido, principalmente por dois motivos: em primeiro lugar, porque a experiência
humana sobre a qual Aristóteles se baseia para construir sua concepção não
contemplava uma série de dimensões presentes na realidade visada por Jung e em
especial a dimensão da interioridade subjetiva, resultante do longo e acidentado
itinerário histórico da noção e da experiência de pessoa no mundo ocidental, a partir de
suas raízes cristãs
377
; e em segundo lugar porque a phronesis aristotélica está sólida e
explicitamente ancorada em uma ontologia da forma que, mesmo concedendo a
homologia relativa entre certas noções aristotélicas e modelos explicativos elaborados
por Jung, estaria quando muito pressuposta na psicologia analítica, mas impedida de se
375
Tomando como referência a antropologia filosófica sistemática de Henrique Vaz, podemos
compreendê-las a partir das duas categorias que representam o fecho do discurso antropológico vaziano:
as categorias de pessoa e de realização. Cf. VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 141-252.
376
Isso não significa que, na prática psicoterapêutica, se possa prescindir de todas as outras categorias
fenomenológicas elaboradas por Jung sombra, anima, animus etc. nem que se deva reduzi-las à
categoria do Si-mesmo. Elas são indispensáveis para se compreender a multiplicidade de formas pelas
quais a totalidade psíquica se manifesta. Uma abordagem terapêutica que se reduzisse ao ângulo do Si-
mesmo, stricto sensu, estaria de antemão empobrecida pela perda da diversidade de aspectos que
caracterizam a vida anímica. Nesse ponto, subscrevemos inteiramente a posição de James Hillman, que,
sob o nome de “monoteísmo psicológico”, critica essa atitude que “usualmente apresenta o ego numa
linha direta de confronto e compromisso com um único Si-mesmo, representado por imagens de unidade
(mandalas, cristais, esferas, homens sábios e outros padrões de ordem). Mas, segundo Jung, o Si-mesmo
possui várias instâncias arquetípicas. A enigmática relação entre o Si-mesmo e os arquétipos reproduz o
antigo enigma do muitos-em-um e do um-em-muitos. Para dar pleno valor à multiplicidade diferenciada
das figuras divinas, dos daimones e das criaturas míticas do mundo arquetípico, como também do mundo
fenomênico de nossas experiências, onde a realidade psicológica é imensamente complicada e
multiforme, devemos concentrar-nos intensamente na pluralidade do Si-mesmo, em seus muitos Deuses e
nas várias modalidades existenciais de seus efeitos. Devemos pôr de lado as fantasias teológicas de
totalidade, unicidade e outras imagens abstratas daquela meta chamada Si-mesmo.” HILLMAN, J. O Mito
da Análise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 233.
377
Cf. VAZ, Antropologia Filosófica II, p. 189-207. Para a inflexão moderna desse processo histórico na
construção da identidade subjetiva, ver TAYLOR, C. As Fontes do Self. A Construção da Identidade
Moderna. São Paulo: Loyola, 1997. Ver também Rémi Brague, “Le Problème de l’Homme Moderne”, in
LAFOREST, G. e DE LARA, P. (dir.) Charles Taylor et l’Interpretation de l’Identité Moderne. Paris:
Cerf, 1998, e o bom ensaio de FIGUEIREDO, L. C. A Invenção do Psicológico. Quatro Séculos de
Subjetivação. 1500-1900. São Paulo: Educ/Escuta, 1992.
afirmar teoricamente de modo inequívoco em face da opção epistemológica cética feita
por Jung, que apresentaremos e criticaremos no próximo capítulo. Além disso, essa
ontologia pressuposta ou camuflada, sob muitos aspectos, quadra muito mais com a
matriz neoplatônica (que, como é sabido, pretende assimilar o hilemorfismo aristotélico
no interior de um enquadramento platônico), e mais ainda com a assimilação idealista e
romântica do neoplatonismo no século XIX. E por fim, certas características
determinantes das concepções psicológicas de Jung dificilmente encontrariam uma
confirmação explícita no pensamento de Aristóteles – como por exemplo a conformação
apriorística das estruturas universais da imaginação (não de seu conteúdo sensível
concreto) e a própria abertura fundamental da individuação. A comparação,
metodologicamente apropriada a uma abordagem como a da história das idéias, deveria
ser feita em primeira mão com as matrizes filosóficas do século XIX, mais
imediatamente ligadas à gestação da psicologia analítica.
378
Isso não nos impede de tentar compreender a praxis psicoterapêutica junguiana,
bem como seus modelos teóricos correlatos, à luz da teoria da praxis aristotélica e de
seus fundamentos ontológicos.
379
Nosso uso do referencial aristotélico, sempre levando
em conta a sua assimilação na Ética sistemática de Henrique Vaz, é portanto de natureza
metodológica. Assim, as noções aristotélicas de forma (eidos), ato (energeia,
entelechia) e de realização humana (eudaimonia) podem fornecer um valioso ângulo de
interpretação do sentido prático da psicologia analítica. A compreensão em chave
biológica da individuação vem, no caso do ser humano, ser assumida em chave ética, o
que significa que, mais do que simples momentos de um processo meramente natural, as
experiências que constituem o processo de individuação inscrevem-se na categoria da
praxis. Isto não deve causar estranheza, pois Jung, a despeito de sua inata “inclinação de
amante da natureza”
380
, reconhece que o homem não pode cumprir suavemente o
processo biológico natural da individuação, uma vez que, a partir da conquista
prometeica da consciência, impõe-se uma reviravolta trágica pela colisão entre
consciência e natureza.
381
Por um lado, Jung considera “um absurdo isolar a mente humana da natureza em
geral”, pois “não em princípio nenhuma diferença entre o animal e a psique humana.
378
Esboçaremos uma tal comparação no próximo capítulo, com o intuito de criticar a opção
epistemológica de Jung e mostrar a necessidade de se reconfigurá-la.
379
Da mesma forma, seria teoricamente possível e legítimo fazer-se uma leitura do modo de vida
filosófico neoplatônico, em seu aspecto prático, a partir do referencial conceptual aristotélico.
380
Cf. Letters II, 25/02/1958, a Karl Schmid (a tradução brasileira está escandalosamente errada).
381
Cf. Cartas II, 18/06/1949, a Armin Kesser.
O parentesco dos dois é muito óbvio.”
382
Por outro, a reflexividade que caracteriza a
consciência (Bewusstsein) humana e torna o homem um ser singular na natureza é
reconhecida em sua significação distintiva:
“A contradição e o paradoxo sempre inerentes à avaliação que o homem faz de sua própria essência na
verdade um objeto de admiração, e só se pode explicá-la como emergindo de uma extraordinária incerteza
de julgamento em outras palavras,] o próprio homem é um enigma [para si mesmo]. Isso
compreensível, visto que lhe faltam os meios de comparação] necessários para o autoconhecimento. Ele é
capaz de estabelecer com clareza as distinções entre si e os outros animais, no que diz respeito a sua
anatomia e fisiologia, mas faltam-lhe critérios para a avaliação de si mesmo enquanto essência
consciente, auto-reflexiva e dotada de linguagem. [Ele] é um fenômeno único no planeta, não podendo se
comparar a nada semelhante. (...) [o homem continua a se assemelhar] a um eremita que
sabe pertencer,
do ponto de vista da anatomia, à família dos antropóides [mas que, a julgar pelas aparências, é
extraordinariamente diferente de seus primos com relação a sua psique].”
383
A característica de ser “um enigma sem solução, um milagre surpreendente, ou
seja, um objeto de perplexidade” é, no entanto, “comum a todos os mistérios da
natureza”.
384
A oposição entre consciência, como princípio “espiritual”, e inconsciente,
como princípio “natural”, é apenas um caso particular da oposição de princípios ou
forças que caracteriza a concepção de Natureza em Jung, e portanto é também, de certa
forma, “natural”.
385
Mas ela introduz uma dificuldade específica, que justifica a função
da cultura e, nesta, a tarefa da psyches therapeia:
“É ao crescimento da consciência que devemos a existência de problemas; eles são o presente de grego da
civilização. É o afastamento do homem em relação aos instintos e sua oposição a eles que cria a
consciência. O instinto é natureza e deseja perpetuar-se com a natureza, ao passo que a consciência
pode querer a [cultura] ou sua negação. E mesmo quando procuramos voltar à natureza, embalados pelo
ideal de Rousseau, nós ‘cultivamos’ a natureza. Enquanto continuarmos identificados com a natureza,
seremos inconscientes e viveremos na segurança dos instintos que desconhecem problemas. Tudo aquilo
que em nós esligado ainda à natureza tem pavor de qualquer problema, porque seu nome é dúvida, e
onde a dúvida impera, se enquadra a incerteza e a possibilidade de caminhos divergentes. Mas nos
afastamos da guia segura dos instintos e ficamos entregues ao medo, quando nos deparamos com a
possibilidade de caminhos diferentes, porque a consciência agora é chamada a fazer tudo aquilo que a
382
Letters II, 18/06/1957, a J. C. Vernon. Por vezes essa continuidade é levada ao exagero, como quando
Jung afirma que “para [Freud] a consciência é uma aquisição humana. Eu, ao contrário, sou da opinião de
que mesmo os animais têm consciência os cães, por exemplo – e [empiricamente há muito a ser dito em
favor disso], pois os conflitos de instintos [não são de todo desconhecidos no nível animal].” Cartas III,
12/07/1958, a Wilhelm Bitter. Raiando ao absurdo, Jung se refere aqui à consciência moral! (Gewissen, e
não Bewusstsein). Nos momentos mais sóbrios, a continuidade é posta em termos mais plausíveis: “[Eu
arrisco a conjectura], baseada em [certas] experiências, de que as camadas inferiores de nossa psique
ainda têm caráter animal. É pois muito provável que também [os animais possuam] arquétipos
semelhantes ou idênticos. É certo [que eles possuem] arquétipos, pois as simbioses animais-plantas
demonstram claramente que deve haver uma imagem hereditária no animal que o leva a ações instintivas
específicas.” Cartas II, 25/06/1946, ao dr. Robert Eisler. Cf. também, em OC VIII, o ensaio “Instinto e
Inconsciente”.
383
OC X, § 525-526.
384
ibid. “Nossa psique é uma parte da natureza e seu [enigma] é igualmente [ilimitado].” OC XVIII, §
439.
385
Cf. OC VIII, § 98. Trataremos da concepção de Natureza em Jung no próximo capítulo.
natureza sempre fez em favor de seus filhos, a saber: tomar decisões seguras, inquestionáveis e
inequívocas. E, diante disto, somos acometidos por um temor demasiado humano de que a consciência,
nossa conquista [prometeica], ao cabo não seja capaz de nos servir tão bem quanto a natureza.”
386
A perda do vínculo instintivo desemboca em uma “desorientação nas situações
humanas em geral”,
387
o que significa admitir a necessidade imperiosa de uma
orientação prática. Jung reconhece, portanto, que a cultura e a consciência estão
obrigadas a tentar suprir o que a adesão imediata à natureza proporcionava em um
imaginário “estado natural”.
388
Porém, como consciência e cultura, em suas ilimitadas
formas particulares, correspondem à destinação da “natureza humana”, como o próprio
Jung não se cansa de reafirmar
389
, o nascimento da humanidade representa uma
ruptura da lei meramente natural, que impõe necessariamente a intenção restitutiva de
uma integração perdida.
390
Todo o paradoxo da condição humana transparece aqui:
realizar-se humanamente implica, em Jung, arrancar-se ao estado de inconsciência
natural, e reintegrar-se conscientemente à ordem da natureza, recuperando-a
humanamente.
A situação moderna representa uma substituição dessa intenção reconciliatória
pelo projeto de dominação ilimitada da natureza. Em perspectiva psicológica, isso
significa um desenraizamento radicalizado ou perda deliberada de contato com a esfera
instintual, e Jung interpreta tal atitude como uma usurpação pelo Eu consciente da
regência da totalidade psíquica que cabe ao Si-mesmo e que sempre leva em
consideração o inconsciente. O resultado é a dissociação neurótica, e por essa razão a
neurose é uma tentativa de cura (pois traz cifrada em si a marca de uma totalidade
386
OC VIII, § 750, grifos nossos. “O caminho percorrido até o Logos representa, sem dúvida, uma grande
conquista, que deve ser paga no entanto com a perda dos instintos, isto é, com a perda de realidade”. OC
XI, § 442.
387
OC XII, § 74.
388
Jung fala freqüentemente que o homem primitivo funciona de modo mais “natural” do que o homem
moderno. O que nem sempre ele explicita é o fato de que, também nessa situação “primitiva”, o
funcionamento “natural” deriva da tradição e portanto da cultura -, que, poderíamos dizer, é mais
“ecológica” nas sociedades arcaicas, ao passo que na modernidade a natureza é encarada como algo a ser
submetido aos desígnios do homem, que nessa mesma medida se aliena radicalmente da ordem natural.
Para uma crítica da visão de Jung sobre o homem “primitivo”, cf. RADIN, P. El Hombre Primitivo como
Filósofo. Buenos Aires: EUDEBA, 1960; cf. também SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern
Psychology, p. 323-338.
389
“O alvorecer da consciência, na verdade a própria consciência, é a meta mais importante da evolução
humana.” Letters I, 10/07/1946, a Fritz Künkel.
390
“Jamais conheceu o homem a inocência de uma vida sem fratura. Há como que um pecado original da
existência. (...) A manutenção da existência exige a busca de um equilíbrio frágil e ameaçado, do qual a
menor das rupturas já impõe penalidades severas. Insegurança ontológica, geradora de angústias, como se
a vida mesma do homem correspondesse a uma transgressão da ordem natural.” GUSDORF, G. Mito e
Metafísica. São Paulo: Convívio, 1979, p. 24. Assim, a imagem arquetípica de uma conciliação do
humano com o natural aparece como uma espécie de ideal regulativo que mobiliza o desejo humano e
determina o impulso de individuação.
rompida) e esta cura que corresponde à substituição da dissociação neurótica pelo
engajamento consciente no processo de individuação expõe e supera a “falsa atitude
do Eu”. Por isso, também, a psyches therapeia proposta por Jung é endereçada à
consciência moderna, e no fundo representa um esforço no sentido de uma genuína
conversão de uma forma de atitude para outra.
Que tal esforço possa ser entendido a partir da concepção aristotélica da
phronesis fica evidente, em primeiro lugar, pela aproximação que Jung faz entre a
psicoterapia e a educação, entendida no sentido da vida filosófica nas escolas da
Antiguidade; em segundo lugar, pela apresentação da individuação como uma
realização moral; e em terceiro lugar, pela diferenciação que ele estabelece entre o
procedimento psicoterapêutico e a técnica – diferenciação em que ecoa a distinção
traçada por Aristóteles entre praxis e poiesis.
391
Relembrando o que expusemos em nosso primeiro capítulo, vimos que a
phronesis supõe a determinação do bem humano último, que Aristóteles demonstra ser a
eudaimonia significando a excelência do indivíduo na humanidade e sua auto-
realização nessa excelência. A eudaimonia consiste em uma atividade (energeia)
constituída por ações propriamente humanas e humanizadoras, que têm o seu fim em si
mesmas (praxeis), e seu resultado final é a teleiosis perfeição do agente, no sentido de
atualização ou cumprimento do fim (telos) que está inscrito na essência do indivíduo.
A realização ética do indivíduo, feita mediante a intervenção da razão prática,
representa também uma realização da natureza, em certo sentido: como a razão
profunda da physis está conservada no ethos, a educação virtuosa do sujeito empírico,
391
Cf. OC IV, § 442; cf. As Entrevistas de Stephen Black”, in MCGUIRE, W. e HULL, R.F.C. (coord.)
C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 231; cf. OC XVIII, § 1172: “(...) a cura
da neurose não é, em última análise, uma simples questão de habilidade terapêutica, mas uma realização
moral (...) Nenhuma teoria pode informar sobre as exigências últimas da individuação, nem existem à
disposição receitas que podem ser usadas rotineiramente.”; cf. Cartas I, 22/03/1935, a Otto Körner:
“Sempre procuro mostrar às pessoas que o verdadeiro conhecimento da psique humana não precisa
apenas de grande saber mas também de uma personalidade diferenciada. Em última análise não é possível
tratar da psique com uma única técnica (...) Segundo penso, deve-se evitar a impressão de que a
psicoterapia é uma técnica fácil.”; cf. OC X, § 335 e 337: O que poderia lançar mais luz sobre o fato de
que a psicoterapia não é simples ‘técnica’ do que a multiplicidade de técnicas, de opiniões, de
‘psicologias’ e de premissas filosóficas (ou de falta delas)? Não é precisamente esta multiplicidade e
contraditoriedade que mostram tratar-se de algo bem superior do que mera ‘técnica’? (...) Por muito
tempo imaginamos ser possível tratar a psicoterapia ‘tecnicamente’, como fórmula de receituário, um
método operacional ou um teste de cores. O clínico geral pode lançar mão de todas as técnicas médicas
existentes, não importando se tem esta ou aquela opinião pessoal sobre seu paciente, se defende esta ou
aquela teoria psicológica, se possui convicções filosóficas ou religiosas. Mas na psicoterapia não se pode
proceder assim. Querendo ou não, o médico está nela envolvido com suas convicções, tanto quanto o
paciente. Inclusive é indiferente qual técnica emprega; o importante não é a ‘técnica’, mas a pessoa que
usa determinado método. O objeto do método não é um preparado anatomicamente morto, nem um
abscesso ou uma substância química, mas a totalidade de uma pessoa sofredora.
ao elevá-lo à condição de sujeito ético, atualiza no âmbito humano a tendência imanente
à atualização plena que vigora em toda a extensão da physis. Poderíamos dizer que, na
eudaimonia, a liberdade do agente não abole nem se opõe à natureza, mas a confirma.
Examinando os fundamentos antropológicos da psyches therapeia de Jung,
pode-se perceber que eles são compatíveis com esse enquadramento, preenchendo as
exigências iniciais para a interpretação da mesma como forma de sabedoria prática.
Como apontamos no capítulo primeiro, a realização plena da forma humana (enteléquia)
coincide com o fim último a ser captado pela phronesis, que assim orienta a práxis
segundo a referência da eudaimonia, e por isso a deliberação em torno a qualquer
situação particular refere-se ao fim último da auto-realização humana segundo a sua
essência. A individuação para Jung é entendida justamente como a realização ou
atualização das potencialidades inatas do sujeito, inscritas na forma (eidos) ou
enteléquia do Si-mesmo, e este é entendido como a realidade concreta que fornece a
referência e o modelo para a “excelência do indivíduo na humanidade”. A psicoterapia
busca facilitar essa realização, que vem restaurar a integração à natureza segundo a
especificidade humana. A atividade fundamental na individuação é a tomada de
consciência (vulgarizada no jargão psicoterapêutico com o termo “insight”), e como tal
ela apresenta as características distintivas da energeia aristotélica: é um todo indivisível
que ocorre no agora, sendo completa pontual e instantaneamente.
392
Por outro lado,
assim como em Aristóteles o fim último deve ser realizado na “vida completa”, também
a individuação e a tomada de consciência em Jung se desenrolam ao longo da totalidade
da vida humana.
Vimos também que Aristóteles expõe a confluência e o encadeamento de desejo
e inteligência na obra da sabedoria prática. Na decisão racional ou escolha deliberada
(prohairesis) unificam-se inteligência e desejo. A oposição dos desejos alógicos à razão
pode ser superada pela deliberação racional (boulesis), na medida em que esta esclarece
e refreia os desejos, para orientá-los a seu fim verdadeiro.
Podemos dizer que esta perspectiva está pressuposta na praxis psicoterapêutica
de Jung, em especial na situação do confronto com o inconsciente. De fato, jamais Jung
advogou uma entrega cega aos impulsos e tendências inconscientes, mas sim a sua
consideração pela consciência na relação de confronto (Auseinandersetzung) ou
diferenciação. Para ele, o inconsciente, rigorosamente falando, não deve ser tomado
392
Cf. PUENTE, F.R. Os Sentidos do Tempo em Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2001, p. 316.
como fonte de revelações que nos guiam: nós é que nos orientamos considerando as
manifestações espontâneas ou “naturais” do inconsciente,
393
o que significa que a razão
prática deve necessariamente intervir para possibilitar tal orientação. Elie Humbert
circunscreve a atitude adequada da consciência na relação com o inconsciente, segundo
o modelo proposto na psicologia analítica, de acordo com três verbos utilizados por
Jung ao descrever sua experiência inaugural: sich auseinandersetzen (confrontar-se
com, ou diferenciar-se de), geschehenlassen (deixar acontecer) e betrachten (considerar,
e também engravidar: a consideração dos conteúdos do inconsciente pela consciência
pode deflagrar uma transformação nestes, em que o que estava contido
embrionariamente vem à luz e “nasce” para a consciência o que implica uma
transformação da própria consciência).
394
A simples inundação da consciência racional
pelos afetos e imagens do inconsciente irracional pode resultar em comprometimento ou
mesmo destruição da posição humana
395
, indo, em terminologia junguiana, da simples
“inflação” à catastrófica “possessão”. Assim, é preciso dizer em alto e bom som que, em
última análise, e por mais surpreendente que possa parecer, em Jung encontra-se um
alto e decisivo valor atribuído à consciência (no sentido de Eu consciente). Cabe ao Eu e
à sua atitude moral e reflexiva a palavra final quanto às possibilidades de uma
transformação positiva. Acentua-se dessa maneira a responsabilidade moral do
sujeito.
396
393
Cf. OC X, § 20 e § 34.
394
Cf. HUMBERT, E. Jung. São Paulo: Summus, 1985, p. 19-23. Para o sentido pouco comum de
betrachten como “engravidar”, ou mais exatamente “emprenhar”, cf. VIS, p. 661.
395
Cf. o relato de Jung in JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 158. Essa possibilidade
catastrófica está sempre presente no imaginário mítico de todas as culturas, sob a forma do tema
arquetípico da animalização de um personagem humano por exemplo, os companheiros de Ulisses na
ilha de Circe – que aponta para o apagamento da linha demarcatória entre a realidade animal e a realidade
humana, mais complexa do que aquela. Nessa situação, manter a medida humana é a tarefa vital que cabe
ao herói que se pauta pela phronesis. Sobre esse tema, tratado em vinculação com a experiência estética,
permitimo-nos remeter às reflexões que desenvolvemos em um pequeno artigo: BARRETO, M.H.
“Subjetividade e o Novo na Arte: Reflexões a partir de Adorno”, in Revista Kriterion, vol. XXXIII, nº 85,
jan.-jul./1992, p. 49-58.
396
Cf. Cartas II, 07/01/1953, a Elizabeth Metzger: “Evidentemente a pessoa humana não é Deus; só a ele
é possível conservar ou destruir a vida. A pessoatem possibilidades muito limitadas, mediante as quais
pode escolher com liberdade prática dentro do alcance de sua consciência.”; cf. Cartas II, 10/12/1953, a
rev. S.C.V. Bowman: “Só posso dizer que, até onde a consciência chega, a vontade é entendida como
sendo livre, isto é, que o sentimento de liberdade acompanha nossas decisões, não importando se elas são
realmente livres ou não. Esta última questão não pode ser decidida empiricamente. Onde a pessoa não
está consciente, obviamente não pode haver liberdade. Através da análise do inconsciente amplia-se o
horizonte da consciência e cresce automaticamente o grau de liberdade. Uma consciência plena
significaria uma liberdade e responsabilidade igualmente plenas. Se os conteúdos inconscientes que se
aproximam da esfera da consciência não foram analisados e integrados, então a esfera da liberdade fica
diminuída pelo fato de tais conteúdos serem ativados e ganharem mais influência compulsiva sobre a
consciência do que se fossem totalmente inconscientes.”
À consciência cabe portanto um papel decisivo, mas isso não significa que ela se
instale como o centro normativo: o confronto com as figuras do inconsciente, para Jung,
assume a forma de uma atitude de negociação diplomática, e mais uma vez - não de
uma técnica.
397
Ele é comparado ao procedimento alquímico, e explicitamente
diferenciado da “escolha e decisão racionais”
398
o que parece indicar, à primeira vista,
que a prohairesis está substancialmente modificada e mesmo negada na psyches
therapeia junguiana.
Mas, considerada mais detidamente, a questão assume outra figura. Jung está
nesse ponto se afastando do racionalismo moderno, que institui a partir da consciência
os fins que lhe agradam, e trata de implementá-los com a astúcia da técnica – a
dominação das paixões, que, como é sabido, difere da articulação da phronesis no
regime aristotélico. A ênfase sobre a “base instintiva”, entendida como correspondente à
esfera da afetividade humana corporalmente enraizada, na compreensão do agir humano
é atestada de longa data pela reflexão ética na história da filosofia. Em Platão, ela pode
ser descoberta, por exemplo, em seu bestiário, que traduz o nexo entre o humano e o
animal, bem como a possibilidade que se apresenta na condição humana de uma
desregulação “monstruosa” da esfera instintiva.
399
Em Aristóteles ela está na própria
base da definição das virtudes éticas, que se formam na educação das pulsões do
indivíduo segundo as medidas encarnadas nos costumes e valores do ethos, evitando-se
pela mediania os extremos do excesso e da falta. Toda a ética helenística pode ser
encarada como uma “terapia do desejo”, sob formas e metas variadas, tendo como
denominador comum a ascese e a regulação da esfera das paixões humanas.
400
Com
Descartes, em seu tratado das paixões, a forma prudencial das relações entre razão e
afetividade proposta por Aristóteles será substituída pela técnica do governo das paixões
pela razão. Hobbes e o empirismo ético que se lhe segue promovem o abandono da
razão prática em favor da primazia das paixões no agir humano. Kant, ao separar o
âmbito moral do pragmático-empírico, junto com a eudaimonia exclui também a
afetividade da vida ética. E também a ética contemporânea defronta-se com as aporias
397
Cf. Cartas I, 20/08/1937, a P.W. Martin.
398
ibid.
399
Cf. FRÈRE, J. Le Bestiaire de Platon. Paris: Kimé, 1998. Ver também o exame sucinto da
“monstruosidade” que acompanha a insaciabilidade do desejo humano segundo Platão em SISSA, G. O
Prazer e o Mal. Filosofia da Droga. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, capítulo II.
400
Cf. NUSSBAUM, M. The Therapy of Desire. Theory and Practice in Hellenistic Ethics. Princeton:
P.U.P., 1994. Também versando sobre a mesma problemática, merece ser lido outro livro de Martha
Nussbaum: Upheavals of Thought. The Intelligence of Emotions. Cambridge: C.U.P., 2001.
do empirismo e do formalismo, tentando pensar mais uma vez o problema da razão
prática em suas relações com as forças anímicas que agem independentemente da razão.
A psyches therapeia em Jung alinha-se muito mais com a concepção antiga de
sabedoria prática, com seu foco no fim último da eudaimonia (aqui correspondente à
meta ou fim da individuação, àquilo em vista de que a individuação é posta em
movimento, ou seja, à realização do Si-mesmo), do que com a concepção moderna que
propugna pela autonomia absoluta do sujeito. Podemos comprovar esta interpretação
retomando o tema das relações entre a esfera instintiva e a esfera espiritual.
Para Jung, a limitação da afetividade não precisa, não pode e nem deve ser
despoticamente imposta pela razão consciente. Ela é dada na própria “postura
natural” do inconsciente, que é representada por imagens de animais e corresponde à
parte animal do ser humano, ao enraizamento corporal do Si-mesmo.
401
Mas, por outro
lado, Jung afirma que o excesso de animalidade debilita o espírito, assim como o
excesso de cultura produz animais doentes.
402
A harmonia natural está de partida
comprometida pela colisão com a consciência, cuja diferenciação leva inevitavelmente à
unilateralidade e, portanto, traz em si a tendência à desproporção.
403
Assim sendo, a
tarefa crítica da psyches therapeia está na correta articulação entre o pólo instintivo e o
espiritual é preciso encontrar a forma correta de “tornar-se animal”
404
. E a articulação
401
“Nós somos preconceituosos com relação ao animal. As pessoas não entendem quando lhes digo que
deveriam se familiarizar com seus animais ou assimilar seus animais. Elas pensam que o animal está
sempre pulando por sobre os muros e promovendo um inferno por toda a cidade. Mas na natureza o
animal é um cidadão bem comportado. Ele é piedoso, segue o caminho com grande regularidade, não faz
nada extravagante. o homem é extravagante. Assim, se você assimilar o caráter do animal você se
torna um cidadão respeitador das leis, você procede bem devagar, e se torna razoável em seus caminhos,
na medida em que puder suportar isso. Pois é muito difícil ser razoável”. VIS, p. 168. “No assim chamado
instinto, isto é, na postura natural inconsciente já reside a harmonia. O corpo e suas capacidades e
necessidades proporcionam espontaneamente aquelas determinações e limitações que impedem a
desmedida e a desproporção. A individualidade espiritual baseia-se no corpo e jamais poderá realizar-se
se os direitos do corpo não forem reconhecidos. Inversamente, o corpo também não pode desenvolver-se
se a singularidade espiritual não for reconhecida.” OC VII, pag. 282 (CW VII, § 504). O espírito em si
não é mérito algum e tem um efeito peculiarmente [irrealizante] se não for contrabalançado por seu
oposto material.” Cartas III, 20/07/1958, a Edward Thornton.
402
Cf. OC VII, § 32.
403
“A atitude natural e inconsciente é harmônica. Uma função psicológica diferenciada, porém, tem
sempre uma tendência à desproporção devido à sua unilateralidade[, que é fomentada pela intenção
racional e consciente].” OC VII, pag. 287. “Num certo sentido o animal é mais temente a Deus do que o
ser humano, porque cumpre a vontade divina de modo mais perfeito do que o ser humano jamais sonhou.
O ser humano pode desviar-se do caminho, pode desobedecer porque tem consciência. Por um lado, a
consciência é um triunfo e uma benção; por outro, é nosso pior demônio que nos ajuda a inventar todo
motivo e meios imagináveis para desobedecer à vontade divina. Oh! Sim, as coisas são bem mais difíceis
do que deveriam ser!” Cartas II, 8/01/1948, ao Rev. Canon H. George England. Cabe lembrar que o
animal não é um monstro, e quando descrevemos nossas monstruosidades como “bestiais”,
subrepticiamente estamos projetando sobre a extremidade animal a desproporção que é tipicamente
espiritual, e “caluniando” a natureza em suas obras normais.
404
Cf. SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 253.
dos fins (“o que é bom para o homem”) aos meios adequados para os realizar, levando
em consideração todas as variáveis presentes na situação empírica, é a tarefa da
phronesis, a excelência da parte deliberativa da alma racional segundo Aristóteles.
Na perspectiva aristotélica, a conflitividade potencial entre os vários tipos de
desejo humano é compreendida em conexão com a percepção do tempo, prerrogativa
dos seres racionais. Situando-nos em outro contexto histórico, podemos entrever a
percepção não tematizada do papel da consciência na desestabilização da harmonia
meramente natural
Se a meta de toda praxis é atingir a mediania (mesotes), o que coloca a noção de
medida (metron) no centro da vida ética, essa meta, mediada pela phronesis,
particulariza-se de acordo com as contingências da situação. A orientação da razão
prática imersa nas circunstâncias empíricas das “coisas humanas” deve atender à
contingência constitutiva de suas relações particulares, para encontrar as vias possíveis e
concretas de realização do fim verdadeiro. Lançando mão de outra linguagem, podemos
dizer que a individuação deve se dar sempre no mundo, e considerar o que o mundo
espera da pessoa.
405
Como vimos, na perspectiva aristotélica é aqui que intervém a
experiência (empeiria), que permite à phronesis avaliar a situação prática em vista da
orientação da ação.
Por seu enraizamento na situação particular, que relativiza as formas
ilimitadas de realização do bem humano,
406
a praxis psicoterapêutica
desenrola-se necessariamente no tempo qualitativo ou kairos, e assim cabe
ao discernimento próprio da sabedoria prática, instruído pela experiência
405
Cf. Cartas II, 04/04/1949, a Emma von Pelet: “Aquilo que [você] recebe do mundo e aquilo que
[você] responde constitui sua relação com o mundo. Isto é o ‘sair para o mundo’. (...) Uma introversão
fecunda é possível apenas quando há também relação [com o lado de fora]. (...) Encontrar a medida certa
também uma forma de relacionar-se] com o mundo.Cf. Cartas II, 22/11/1954, ao prof. Arvin U.
Vasavada: “Vocês todos parecem interessados em como voltar para o Si-mesmo, em vez de [procurar] o
que o Si-mesmo quer que façam no mundo, onde ao menos neste momento estamos colocados,
provavelmente para determinado fim.”
406
“Também na questão do bem e do mal nós, terapeutas, podemos confiar estarmos vendo as coisas
de modo certo, mas não se pode ter certeza absoluta. Enquanto terapeuta, não posso abordar, em casos
concretos, o problema do bem e do mal de modo teológico ou filosófico, mas apenas de modo empírico.
Sendo minha atitude empírica, isto não quer dizer que relativizo em si o bem e o mal. Sei muito bem: isto
é mau, mas o paradoxo é que nesta pessoa, nesta situação concreta, neste determinado grau de seu
amadurecimento isto pode ser bom. Por outro lado, também vale: o bom no momento errado e no lugar
impróprio se torna o pior. Se assim não fosse, tudo seria muito simples demais. Se não fizer um juízo a
priori mas escutar os fatos concretos, não sei de antemão o que é bom ou mau para o paciente. Muitas
coisas se nos apresentam mas não conseguimos desvendar seu significado.OC X, § 866. “Kant diz com
razão que o indivíduo e a sociedade deveriam passar de uma ‘ética da ação’ para uma ‘ética da
convicção’. Mas Deus pode perscrutar a última e mais profunda convicção que está por trás da ação.
Por isso, nosso julgamento sobre o que é bom ou mau concretamente deve ser muito prudente e
hipotético, jamais apodítico como se pudéssemos ver claramente todos os fundamentos últimos.” OC X, §
871.
mas sempre levando em conta o nível de indeterminação das
circunstâncias, escolher o curso apropriado de ação:
“A questão propõe-se do seguinte modo: o que, para este indivíduo, e neste dado
momento, surge como um progresso à altura da vida? Isto não pode ser respondido por
nenhuma ciência, por nenhuma sabedoria de vida, por nenhuma religião, por nenhum
bom conselho, mas só pela consideração absolutamente sem preconceitos da semente de
vida psicológica que se expande da cooperação natural do consciente e do inconsciente,
por um lado, e do individual e coletivo, por outro.”
407
Todos os elementos anteriormente mencionados na situação em que opera a
sabedoria prática estão aqui presentes: a consideração do momento qualitativo
(kairos)
408
; a consideração do bem objetivo ou fim prático (prakton) a ser realizado (o
“progresso à altura da vida”); a consideração da individualidade em que esse bem deve
se atualizar, segundo a articulação da totalidade das dimensões subjetivas (o consciente
e o inconsciente); a inoperância de preceitos ou guias de conduta universais e genéricos,
que abre o espaço para a intervenção da razão prática
409
; a consideração da relação entre
o individual o agente - e o coletivo, relação em que se deposita a “semente de vida
407
OC VII, pag. 282-283. (CW VII, § 488-489).
408
Henri Ellenberger desenvolve uma breve e pertinente reflexão acerca da compreensão da noção de
kairos no domínio psicoterapêutico em “La notion de kairos em psychotherapie (Temps pour comprendre
et interpretation vraie)”, in ELLENBERGER, H. Médecines de l’Âme. Essais d’Histoire de la Folie et des
Guérisons Psychiques. Paris: Fayard, 1995, p. 239-251.
409
“Nada é mais importante do que isto: deve-se considerar toda pessoa realmente como pessoa e tratá-la
de acordo com suas peculiaridades. Costumo dizer aos jovens terapeutas: ‘Aprendam o máximo, saibam o
máximo e, depois, esqueçam tudo quando chegarem ao paciente’. Ninguém é bom cirurgião pelo fato de
saber de cor um livro sobre o assunto. (...) Sabe-se que esta doença foi tratada pelo autor X, no capítulo
17 de seu livro e acha-se que o mais importante aconteceu. Mas o pobre paciente continua sofrendo.”
OC X, §§ 881-882. Cf. Cartas I, de 25/09/1937, a B. Cully: “O senhor pode aprender muito a respeito da
psicologia nos livros, mas cedo descobrirá que esta psicologia pouca utilidade tem na vida prática. Uma
pessoa que se dedica à cura de almas deveria ter uma certa sabedoria de vida que não [consiste] apenas
em palavras mas também e sobretudo na experiência. [Tal] psicologia, como eu a entendo, não é apenas
uma soma de conhecimentos, mas também [uma certa sabedoria] de vida. Se ela for ensinável, então o
será apenas com base na própria experiência da [alma] humana. E esta experiência possível quando
o ensinamento tem um caráter pessoal, isto é, quando você é pessoalmente ensinado e não
genericamente].(...) o estudo em livros não lhe [seria] de grande valia, ainda que seja [indispensável].
O mais útil [seria] uma introspecção pessoal nos segredos da alma humana. Caso contrário tudo se
resumirá a [um astucioso truque intelectual, consistindo] em palavras vazias que levam a um falatório
[vazio].”
psicológica” a ser captada e que fornece a linha de desenvolvimento ou atualização para
nortear a ação prática.
A psyches therapeia, enquanto modalidade de sabedoria prática, consiste em
localizar e cultivar essas “sementes” de vida psicológica. Mas onde encontramos tal
semente? Jung responde:
“Alguns a procuram no consciente, outros no inconsciente. O consciente, porém, é
apenas um aspecto, e o inconsciente outro.
Encontramos na fantasia criadora a função unitiva que estamos buscando. Nela fluem conjuntamente
[todas as funções que estão ativas na psique].”
410
E assim encontramos a especificidade da phronesis junguiana: ela toma como
foco privilegiado de referência para a decisão prática o Si-mesmo, e em especial a sua
capacidade ou faculdade (dynamis) da fantasia criadora, cuja função específica é a
criação de símbolos.
411
As imagens simbólicas são a obra (ergon) da fantasia criadora, e
por elas se expressam as múltiplas instâncias ou estruturas do Si-mesmo enquanto todo
psíquico.
Em especial os sonhos recebem a primazia quanto à informação acerca da
situação do indivíduo.
412
Isto não significa que se trate de uma retirada do mundo, o que
configuraria uma espécie duvidosa de pseudo-espiritualidade. Trata-se antes de uma
atenção às manifestações psíquicas que sinalizam os efeitos e as direções possíveis do
410
OC VII, pag. 282-283. (CW VII, § 489-490).
411
Cf. OC VI, § 178.
412
“Os sonhos são produtos imparciais e espontâneos da psique inconsciente, escapando ao controle da
vontade. Eles são pura natureza; mostram-nos a verdade natural sem enfeites, e são portanto adequados,
como nada mais o é, para devolver-nos uma atitude que concorda com nossa natureza humana
fundamental, quando nossa consciência tenha se desviado demais de suas fundações e chegado a um
impasse. (...) Dar atenção aos sonhos é um modo de refletir sobre nós mesmos uma forma de
autoconhecimento. Não é a nossa consciência egóica que reflete sobre si mesma; antes, ela volta sua
atenção para a realidade objetiva do sonho como uma comunicação ou mensagem do inconsciente, alma
unitária da humanidade. Ela reflete não sobre o eu, mas sobre o Si-mesmo; ela rememora aquele estranho
Si-mesmo, que era nosso desde o começo, o tronco de que cresceu o eu. Ele é estranho porque dele nos
alienamos devido ao extravio da mente consciente. (...) Pode-se perguntar: existe algum método confiável
de interpretação de sonhos? Podemos confiar em qualquer das várias especulações? Admito e compartilho
dessas dúvidas inteiramente, e estou convencido de que não de fato nenhum método de interpretação
absolutamente confiável. Confiança absoluta na interpretação de eventos da natureza é encontrada
dentro dos limites mais estreitos isto é, quando nada mais vem da interpretação do que aquilo que nela
pusemos. (...) Ademais, quando consideramos a infinita variedade de sonhos, é difícil conceber que
haveria um método ou um procedimento técnico que levasse a um resultado infalível. Na verdade, é bom
que não exista nenhum método válido, pois senão o sentido do sonho seria limitado de antemão e perderia
precisamente aquela virtude que torna os sonhos tão valiosos para os propósitos terapêuticos a sua
capacidade de oferecer novos pontos de vista.”” CW X, § 317-319
movimento vital como um todo, fornecendo assim uma valiosa fonte de informações
sobre a situação total da pessoa em meio às obscuridades e incertezas das contingências
da vida, situação que constitui o cenário fundamental no qual ela deve tomar suas
decisões e orientar-se conscientemente na existência.
413
A peculiaridade de uma
psicologia do inconsciente encontra-se justamente aqui: essa orientação não é, em
primeiro lugar, uma decisão tomada por uma consciência encerrada em si mesma, e em
segundo lugar não se pauta apenas nem exclusivamente pelos dados exteriores da
realidade objetiva. É nesse sentido que se deve entender a afirmação de que a
individuação não é uma mera decisão racional, mas atende às posições “irracionais” do
inconsciente. Evidentemente isso não significa uma temerária demissão do bom senso e
da razoabilidade em favor de uma irracionalidade que, de resto, Jung o se cansa de
igualmente criticar.
414
O alvo da crítica à razão são as suas pretensões “totalitárias”, e não a razão em
si.
415
O que Jung identifica como racionalismo é a atitude subjetiva que instala a
consciência e a razão como senhoras absolutas no âmbito das “coisas humanas”. A
busca da medida adequada deve atentar para toda a complexidade da situação prática,
onde intervêm fatores que escapam à determinação do sujeito:
“a proporção correta não pode ser estabelecida apenas pela pessoa. Será estabelecida
por circunstâncias peculiares sobre as quais temos pouco ou nenhum controle.”
416
Mas a atitude racionalista moderna reproduz na esfera da interioridade (ou da
totalidade da pessoa) a mesma relação que o sujeito da ciência estabelece com a
natureza, transformando em objeto de dominação tudo o que não coincide com a própria
413
A modalidade de orientação prática integral assemelha-se àquela adotada pelo “homem arcaico”, que
“traça sua vida - forçosamente de acordo com os fatos externos e internos que ele não experimenta
como distintos, como nós o fazemos. Ele vive em um mundo, nós vivemos apenas numa de suas
metades e acreditamos, ou não, na outra metade. Nós a tapamos com o chamado ‘desenvolvimento
intelectual’ ”. Cartas II, 13/02/1951, a Heinrich Boltze. Contudo, por ser simbólica, a atitude consciente
na sabedoria prática junguiana diferencia-se da consciência mítica stricto sensu, que é literalista ou
dogmática.
414
Um grande equívoco sobre esse ponto enraizou-se na imagem que se faz de Jung, e em boa parte
devido à compreensão empobrecida de muitos “junguianos”. A crítica ao “racionalismo”, ao invés de ser
bem entendida, é transposta para uma inacreditável recusa da razão, eivada de sentimentalismo.
415
Ver o próximo capítulo. Cf. Cartas III, 8/01/1956, a Eugen Böhler: “é necessária uma relativização do
racionalismo, mas de modo algum uma renúncia à razão, pois o razoável para nós é o direcionamento
para a pessoa interior e para suas necessidades vitais.”
416
Cartas II, 12/09/1946, a Roger Lyons. (A passagem citada aqui refere-se a uma situação particular,
mas pode ser generalizada, por traduzir bem um elemento fundamental de toda situação prática.)
consciência racional. Deste modo, o centro da razão é capturado pela lógica da
identidade, isolando-se das partes não-racionais, e abrindo a via para o projeto de um
certo tipo de auto-controle, que é a versão subjetiva da relação de dominação da
natureza.
417
Nesta atitude, a consciência racional pode até explicar o inconsciente,
revelar seus princípios, mas no momento especificamente prático de ouvir, interpretar e
amoldar-se aos “traçados da vida” reconhecíveis no confronto com o inconsciente,
geralmente opta por seguir as diretrizes estabelecidas previamente a tal confronto.
Assim, reconhece a “inteligibilidade” do inconsciente, mas não lhe ouve (no sentido de
ob-audere) a palavra ou inteligência natural. Dessa atitude derivam o desenraizamento
moderno e o sofrimento neurótico.
Portanto, a especificidade dessa forma de sabedoria prática que é a psyches
therapeia junguiana está em priorizar as imagens do inconsciente como pontos de apoio
para a compreensão da posição do sujeito na situação prática e, conseqüentemente, para
a decisão a respeito da ação adequada à realização em dado momento da “linha de
individuação”.
418
Como vimos no capítulo anterior, Jung compreende certas imagens
psíquicas como mbolos, e a consideração teleológica da atividade da psique, base para
a compreensão prospectiva de qualquer processo psíquico, vincula-se à noção de
símbolo. Isso significa que a sabedoria prática em Jung constitui-se fundamentalmente
como uma hermenêutica das imagens simbólicas daí a definição de seu procedimento
como “método hermenêutico”, ou “sintético-construtivo” (denominação que, por
distinção ao método “analítico-redutivo” característico da abordagem psicanalítica,
enfatiza a função unificadora e prospectiva do símbolo). No próprio ato da interpretação
de uma imagem simbólica encontramos o fim prático (prakton) que a especifica: a
tomada de consciência, fim que incide na própria ação da interpretação, ordenando-a ao
417
Esse tema foi muito bem desenvolvido por Theodor W. Adorno. Cf. Negative Dialectics. London:
Rouledge and Kegan Paul, 1973. Cf. também, BARRETO, “Subjetividade e o Novo na Arte: Reflexões a
partir de Adorno”.
418
Nesse ponto, novamente encontramos algo que não está contemplado na teoria aristotélica da praxis.
Apesar de, como vimos no primeiro capítulo, Aristóteles afirmar o entrelaçamento de inteligência, desejo
e imaginação o que abriria a possibilidade de um desenvolvimento, segundo princípios genuinamente
aristotélicos, na direção de um autoconhecimento e de uma parcela de orientação a partir das imagens
psíquicas -, parece-nos que a matriz neoplatônica ofereceria mais imediatamente um enquadramento
ontológico satisfatório e adequado para uma modalidade de sabedoria prática pautada pela consideração
das imagens psíquicas, em todo o arco coberto pela concepção de simbolismo em Jung incluída a
hipótese da sincronicidade, que não quadra bem com a matriz aristotélica, apesar de não lhe ser
totalmente incompatível (a esse respeito, ver as sugestões de Victor WHITE. God and the Unconscious.
Chicago: Henry Regnery Company, 1953, especialmente o capítulo VII, “Revelation and the
Unconscious”).
fim último da realização do Si-mesmo a qual, vale repetir, passa precisamente pela
conscientização do Si-mesmo pelo Eu.
A compreensão simbólica no método hermenêutico avança para a captação das
linhas de força que dirigem o desenvolvimento psíquico:
“Mediante esse processo, o mbolo inicial é ampliado e enriquecido: desta forma chegaremos a um
quadro extremamente complexo e multifacetado. Configuram-se então certas linhas do desenvolvimento
psicológico, de natureza tanto individual como coletiva. Não conhecimento no mundo que possa
provar a ‘certeza’ dessas linhas; o racionalismo, pelo contrário, pode provar facilmente que elas não são
certas. Seu valor, no entanto, é atestado pelo extremo valor vital dessas linhas. (...) O traçado vital
hermeneuticamente construído é breve, uma vez que a vida não segue linhas retas,
pressentidas num
futuro distante. Diz Nietzsche que ‘toda verdade é sinuosa’. Os traçados de vida, portanto, nunca são
princípios ou ideais válidos para todos, mas pontos de vista e posições de validade efêmera. A baixa de
intensidade vital, a perda sensível da libido, ou ainda uma impetuosidade excessiva indicam que o traçado
foi abandonado e que se inicia, ou deveria iniciar-se, um novo.”
419
O desenvolvimento psíquico aqui corresponde ao processo de individuação, e as
linhas de força que o constituem, em toda a sua diversidade e mutabilidade, confluem
para a enteléquia do Si-Mesmo, fim último visado pela individuação em seus “traçados
de vida”.
420
Um problema que poderia surgir nessa forma de decisão ou orientação prática
diz respeito à diferença entre a universalidade das estruturas simbólicas arquetípicas e a
singularidade da situação contingente particular. Jung é bem claro a esse respeito:
“Esses símbolos, todos, são relativamente fixos, mas isso não nos garante aprioristicamente que, no caso
concreto, o símbolo deva ser interpretado assim.
Na prática, pode ser algo completamente diferente. Se tivéssemos que interpretar um sonho pela teoria, ou
seja, se tivéssemos que interpretá-lo a fundo, de modo científico, certamente teríamos que referir tais
símbolos a arquétipos. Mas clinicamente, isso pode ser o maior erro, pois a situação psicológica
momentânea do paciente pode estar exigindo tudo, menos um desvio para a teoria do sonho. É, portanto,
aconselhável, “in praxi”, considerar aquilo que o mbolo significa em relação à situação consciente, ou
seja, tratar o símbolo como se ele não fosse fixo. Em outras palavras, é melhor renunciar a tudo o que se
sabe melhor, e de antemão, para pesquisar o que as coisas significam para o paciente. Obviamente, a
interpretação teórica interrompe-se assim a meio caminho, ou já nos passos iniciais. No entanto, o clínico
que manipula demais os símbolos fixos pode cair numa rotina, num perigoso dogmatismo, que muitas
vezes impede a sua sintonização com o paciente.(...)
Não são raros os casos que, logo ao início do tratamento, desvendam ao médico,
através de um sonho, toda a programação futura do inconsciente. O médico só pode
percebê-lo graças ao seu conhecimento dos símbolos relativamente fixos. Mas por
419
OC VII, p. 291-294 (CW VII, §§ 493-501). Compreende-se então o motivo de o conhecimento de
simbologia e de antropologia simbólica ser de fundamental importância na praxis psicoterapêutica: é a
familiaridade com as formas típicas de expressão simbólica que permite ao psicoterapeuta reconhecer a
direção tomada em cada caso individual pelo impulso espontâneo e co-natural à psique de superação dos
conflitos humanos em geral, e das cisões que dilaceram a consciência moderna em particular.
420
“Qualquer que seja o significado da totalidade, do Si-mesmo do homem, empiricamente este Si-
mesmo constitui uma imagem da finalidade da vida, produzida espontaneamente pelo inconsciente, para
além dos desejos e temores da consciência. Representa a finalidade do homem total”. OC XI, § 745.
motivos terapêuticos é totalmente impossível revelar toda a profundidade do
significado de seu sonho. Por este lado, somos limitados por razões de ordem clínica.
Do ponto de vista do prognóstico e do diagnóstico, estas informações podem ser do
maior valor.”
421
O conhecimento da universalidade implícita nos casos particulares, tematizada
reflexivamente pela phronesis a partir da experiência, é indispensável na situação
terapêutica, como Jung afirma. A universalidade implícita nos casos particulares
semelhantes captados pela experiência poderia, em Jung, ser referida às estruturas
arquetípicas da existência humana. O conceito de arquétipo em suas várias modalidades
permite a formulação racional dessa universalidade, que, sendo tarefa da phronesis,
autoriza a interpretação da dimensão teórica da psicologia analítica como um corpo de
conhecimentos produzido pela sabedoria prática, não se confundindo com a mera
experiência acumulada ou com a sabedoria de vida, apesar de a elas referir-se.
422
Mas, assim como ocorre com a escolha deliberada na phronesis, a preeminência
da particularidade da situação comanda a praxis psicoterapêutica. Dessa forma, a
psyches therapeia junguiana
“consiste por um lado numa tomada de consciência, o mais completa possível, dos conteúdos
inconscientes constelados, e por outro lado numa síntese dos mesmos com a consciência através do ato
[de reconhecimento]. Dado que o homem civilizado possui um grau de dissociabilidade muito elevado e
dele se utiliza continuamente a fim de evitar qualquer possibilidade de risco, não é garantido que o
[reconhecimento] seja acompanhado da ação correspondente. Pelo contrário, devemos contar com a
extrema ineficácia do [reconhecimento] e insistir por isso numa aplicação significativa do mesmo. O
[reconhecimento] por si mesmo não basta, nem implica alguma força moral. Nestes casos vemos
claramente como a cura da neurose é um problema moral.
423
421
OC XVI, §§ 341, 342, 343. A “programação futura do inconsciente” não deve ser entendida como uma
espécie de pré-destinação absoluta. Ela indica apenas a linha de evolução possível do processo de
individuação, que dependerá, por um lado, do “preenchimento” contingente, imprevisível e variável pelos
conteúdos da experiência, e, por outro, da atitude da consciência. Uma possibilidade inconsciente não é
uma fatalidade inexorável: a individuação pode abortar, fracassar. E a certeza sobre sua forma concreta
escapa à previsão mesmo do “clínico” mais experiente.
422
Vale aqui fazer referência à Ética a Nicômaco, onde Aristóteles relaciona phronesis (sabedoria prática)
e empeiria (experiência). Cf. PERINE, M. Phrónesis: Um Conceito Inoportuno?”, in Revista Kriterion,
v. XXXIV, 87, jan.-jul./1993, p. 49-50: “A experiência implica uma forma de conhecimento
universalmente formulável e já formulado, pois uma certa captação do universal implícita em
empeiria, enquanto esta é a memória atual de muitos casos particulares semelhantes. A obra de phrónesis,
virtude da parte calculadora do intelecto que dirige o processo de decisão, consiste em tornar razoável,
por um lado, a captação não-racional do fim operada pelo desejo (1139 b3), fazendo dele um desejo
refletido (oréxis dianoetiké), e, por outro, em tematizar no âmbito da razão aquilo que de universal,
mas ainda não formulado, no conhecimento empírico da experiência. Dito de outro modo, phrónesis
capta o particular à luz do universal, isto é, do fim, e capta-o ‘proaireticamente’, vale dizer, em estado de
decisão, como particular protraído para o fim. Dito ainda de outro modo, phrónesis capta o particular no
contexto racional-decisório, e não estratégico-pragmático, do cálculo dos meios-para-o-fim.”
423
OC IX-1, § 84.
Aqui Jung estabelece uma distinção entre a tomada de consciência e a ação
correspondente reclamada pela mesma como a sua aplicação significativa. Na verdade,
a praxis psicoterapêutica só é autêntica quando ocorre a unidade entre esses dois
aspectos, ou seja, quando o “problema moral” conscientizado é respondido com uma
atitude de igual teor. Se na concepção aristotélica da phronesis o ergon próprio do ser
humano está na vida na razão conforme à virtude, na psyches therapeia de Jung esse
trabalho poderia ser sintetizado como o autoconhecimento ou o tornar-se consciente
daquilo que é inconsciente. A tomada de consciência verdadeira, real, implica uma
transformação da atitude e do modo de agir do sujeito, sendo simultânea e
indissoluvelmente intelectual e prática. Ela obriga, por assim dizer, constitui-se como
um compromisso do sujeito ao mundo, altera radicalmente a sua posição consciente no
mesmo. Por isso, ela não é uma theoria desinteressada, mas um ato (energeia) da
inteligência que é necessariamente prático.
424
É genuinamente uma realização
intelectual-ética específica que, lembrando um adágio alquímico freqüentemente citado
por Jung, convoca a totalidade do ser humano: Ars requirit totum hominem.
425
Poderíamos dizer que, na maioria das vezes, a tarefa do “conhecer-se a si
mesmo” é imposta por uma necessidade interna: não é um simples convite, que possa
ser declinado, mas uma intimação, uma convocação que brota do próprio núcleo
fundamental da pessoa, exigindo a realização ou atualização do Si-mesmo.
426
Reencontrando o preceito délfico do “conhece-te a ti mesmo” em sua significação
original, ou seja, entendido não meramente como um exercício reflexivo mas como um
apelo a situar-se melhor no ser
427
, a psicologia analítica descobre a exigência correlata
424
A partir de uma perspectiva dialética muito próxima da nossa linha de interpretação, Wolfgang
Giegerich aprofunda e critica a distinção feita por Jung, afirmando que a verdadeira conscientização
necessariamente traz em seu bojo a atitude prática correspondente. Ver GIEGERICH, W. Der Jungsche
Begriff der Neurose. Frankfurt/M, Berlin, Bern, New York, Paris, Vienna: Peter Lang, 1999. (tr. italiana:
Il Concetto di Nevrosi Secondo Jung. Dall’esperienza personale alla Riflessione. Milano: La Biblioteca
di Vivarium, 2004.)
425
“No plano psicodinâmico entende-se que o Eu, de uma precedente ‘inconsciência’ do Si-mesmo, chega
ao Si-mesmo, isto é, realiza uma tomada de consciência da própria individualidade. Com esta acepção o
termo coincide com autoconsciência, e usa-se para indicar aquela unidade significante particular que
nasce e se delineia na pergunta: ‘Sou eu, isto?’ Ao captar este significado do Si-mesmo, o
autoconhecimento se distingue de qualquer ‘passatempo’ intelectual; isto é, ao tomar consciência de ‘ser
como se é’ trata-se de assemelhar-se ao Si-mesmo, assim como ele encontra-se empiricamente.” PIERI,
P.F. Dicionário Junguiano, verbete “Si-mesmo” (nesse verbete encontra-se uma apresentação detalhada
dos vários sentidos e aspectos teorizados por Jung em relação à noção de “Si-mesmo”).
426
“É da necessidade e carência que nascem novas formas de vida, e não de exigências ideais ou de meros
desejos.” OC X, § 190.
427
“Tratando ombolo como um simples revelador da consciência de si, nós o amputamos de sua função
ontológica; nós fingimos crer que o ‘conhece-te’ é puramente reflexivo, ao passo que ele é de partida um
apelo através do qual cada um é convidado a melhor se situar no ser, em termos gregos, a ‘ser sábio’.”
expressa no “torna-te o que és” pindárico, sob a forma do impulso da individuação. Da
totalidade “potencial” irradia a força de atração que compele o indivíduo ao dever-ser
da totalidade efetivada ou realizada: esse é o esquema pressuposto no processo de
individuação. Por isso, a individuação é, essencialmente, uma realização moral:
“Afinal são as qualidades morais de um ser humano que o obrigam a assimilar seu Si-mesmo
inconsciente, mantendo-se consciente, quer pelo reconhecimento da necessidade de fazê-lo, quer
indiretamente, através de uma penosa neurose (...), ampliando o âmbito de sua personalidade. (...) Poderia
acrescentar que esta ampliação’ se refere, em primeiro lugar, à consciência moral, ao autoconhecimento,
pois os conteúdos do inconsciente liberados e conscientizados pela análise são em geral desagradáveis e
por isso mesmo foram reprimidos. Figuram entre eles desejos, lembranças, tendências, planos, etc.”
428
Jung diferencia a lei moral objetiva ou coletiva, à qual ele refere o conceito
freudiano de superego, dessas “qualidades morais” individuais referentes à realização
do Si-mesmo, e observa que freqüentemente esses dois âmbitos estão em conflito. Em
um texto tardio sobre a consciência moral, ele faz uma distinção entre o comportamento
“moral” e o comportamento “ético”:
“Resumindo, gostaria de dizer que a consciência [moral] {Gewissen} é uma reação psíquica que se pode
denominar moral, porque aparece quando a consciência psicológica {Bewusstsein} abandona a trilha dos
costumes, da moral (dos mores) ou [repentinamente dela se lembra]. Portanto, [na maioria dos casos] a
consciência [moral] significa [primariamente] uma reação a um desvio real ou suposto do digo moral e
corresponde, em grande parte, ao medo primitivo do não usual, do não costumeiro e, portanto, não
‘moral’. Uma vez que este comportamento é, por assim dizer, instintivo e, no melhor dos casos, apenas
em parte resultado da reflexão, pode ainda assim ser moral, mas não pode ter a pretensão de ser ético.
Esta qualificação ele a merece se for reflexivo, isto é, se for submetido a um entendimento consciente.
Isto é possível quando surge uma dúvida fundamental entre dois modos possíveis de comportamento
moral, portanto num conflito de deveres. Uma situação dessas pode ser resolvida quando uma reação
moral até então irrefletida for suprimida em favor de outra. Neste caso o digo moral será invocado em
vão e o intelecto judicante ficará na situação do burro de Buridan entre os dois feixes de capim. Aqui
somente a força criadora do [ethos], que representa a pessoa inteira, pode dar a decisão final.”
429
Como se vê, nessa passagem Jung reserva o qualificativo “ético” para o
comportamento reflexivo consciente, ao passo que o atributo “moral” designa a mera
conformidade “instintiva” ou habitual ao ethos entendido como costume. O
comportamento ético emerge na situação de um “conflito de deveres”, ou seja, de um
autêntico conflito ético, tal como descrito por Henrique Vaz na sua fenomenologia do
ethos.
430
Um conflito dessa natureza é o que está, via de regra, cifrado no conflito de
RICOEUR, P. “Le Symbole Donne à Penser”, in Philosophie de la Volonté II. Finitude et Culpabilité.
Paris: Aubier, 1988
2
, p. 487.
428
OC VII, § 218. “Consciência moral e autoconhecimento estão no fundamento de tudo aquilo que se
manifestará na análise.” PIERI, Dicionário Junguiano, verbete “Si-mesmo”, p. 463.
429
OC X, § 855.
430
Cf. Escritos de Filosofia II, p. 28-35.
que se origina a dissociação neurótica. Assim sendo, a cura da neurose, descrita por
Jung como uma realização moral, na medida em que passa pela conscientização do
conflito pelo indivíduo, e exige a sua tomada de posição frente ao mesmo, é mais
propriamente uma realização ética. Nela estão implicadas, de certa forma, a deliberação
(boulesis) e a escolha deliberada (prohairesis) que Aristóteles distingue na praxis
virtuosa. E, por fim, a “força criadora do ethos, que representa a pessoa inteira” pode ser
lida como sinalizando a relação dialética entre o ethos e o indivíduo, relação em que “a
universalidade abstrata (no sentido da lógica dialética) do ethos como costume é negada
pelo evento da liberdade na praxis individual e encontra o caminho da sua concreta
realização histórica no ethos como hábito (hexis) ou como virtude.”
431
Se lembrarmos, por outro lado, que o conflito ético é constitutivo do ethos como
cifra da indeterminação característica da liberdade presente necessariamente em toda
ação humana
432
, então o choque entre o indivíduo e o coletivo, tão freqüentemente
assinalado por Jung, encontra sua inteligibilidade ética profunda.
433
Encarada sob este
ângulo, a individuação é um fardo, podendo implicar em culpa e reparação quando, na
situação de conflito, a individualidade autoconsciente sente que “lesa” a coletividade,
por arrancar-se da adesão inconsciente, não-reflexiva e espontânea à mesma.
Vivida nessa situação paradoxal e tensa entre comunidade e indivíduo, entre o
costume e a liberdade, a individuação mantém com a tradição uma relação igualmente
dialética. Assim, o que à primeira vista poderia aparecer como uma espécie de
ambigüidade de Jung com relação à tradição ganha outro sentido. De fato, a
desvalorização da mera submissão irrefletida à tradição acompanha sempre as suas
reflexões sobre a individuação. Por outro lado, como vimos, ele afirma categoricamente,
e sem dar margem a dúvidas, que a ruptura com a tradição representa uma perda
431
VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 29. Cf. também VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 21, nota 24: “O
indivíduo ético alcança sua plena efetividade a partir do uso consciente da razão e do livre-arbítrio.
Mas essa efetividade é a atualização de uma virtualidade presente na constituição essencial do ser
humano que o predetermina necessariamente a desenvolver-se como ser moral. Essa virtualidade ética
é, portanto, constitutiva do ser humano desde a sua gênese no estado fetal e nos primeiros estágios da sua
evolução na infância.”
432
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 30. Cf. OC VII, § 240: “Sem liberdade não pode haver
moralidade.”
433
“O conflito ético coloca o indivíduo em face do apelo de exigências mais profundas e aparentemente
paradoxais do ethos: o apelo a sacrificar o calmo reconhecimento dos limites e a segurança protetora das
formas tradicionais desse mesmo ethos, e a lançar-se no risco de um novo e mais radical caminho da
liberdade. Tal a idéia de transgressão que perpassa, como um motivo fundamental, a ética
neotestamentária e que encontra sua expressão definitiva na palavra de Jesus: ‘Quem quiser, pois, salvar
sua vida a perderá, mas quem perder sua vida por minha causa e da Boa Nova, a salvará’.”
VAZ, Escritos
de Filosofia II, p. 34. Jung diz: “Nada pode poupar-nos do tormento da decisão ética.” in JAFFÉ,
C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 285.
inestimável para o homem moderno, e toda a dinâmica da individuação pode ser vista
como uma busca de reparação dessa perda.
Esta aparente ambigüidade desaparece quando examinamos em que consiste
propriamente a individuação encarada segundo o aspecto de processo objetivo de
relação com o outro.
434
Essa relação modela-se pela mútua e indissolúvel remissão entre
o Eu e o mundo, e a individuação comporta um duplo movimento de diferenciação e de
integração entre os pólos constituídos por Eu e mundo, sob a condição de ser um
processo consciente, reflexivo e livre. Portanto, o que se critica a partir dessa condição
característica da individuação não é a adesão ao mundo como tal, mas a forma não
crítica e inconsciente de identificação do Eu aos modelos e valores encarnados no
mundo.
Mundo aqui é o correlato do ethos, a face visível de manifestação e efetivação
deste, o veículo e o suporte objetivo dos valores e costumes que definem o perfil ético
particular das sociedades humanas, o meio humano no qual originariamente o indivíduo
encontra-se imerso e do qual gradualmente ele emerge como Eu consciente a partir das
interações entre Si-mesmo e mundo. Entendida nesse contexto, a individuação tal como
descrita por Jung corresponde ponto a ponto ao movimento dialético que faz do
indivíduo empírico um sujeito ético (ou pessoa moral), movimento compreendido pela
circularidade do ethos
435
. Nessa medida, a sua homologia com a energeia aristotélica,
em sua vinculação com a praxis, fica mais uma vez explicitada, e a afirmação de Jung
de que a individuação significa uma “realização moral” fica melhor compreendida.
Na prática, os dois aspectos (subjetivo e objetivo ou intersubjetivo) do processo
de individuação estão indissoluvelmente ligados, e não raro é impossível distinguir um
do outro. O reconhecimento da objetividade intrapsíquica do Si-mesmo é simultâneo ao
reconhecimento do outro: a relativização do Eu, que significa a aceitação de sua finitude
ou de seu estatuto de parte no todo psíquico, se faz acompanhar da ampliação de sua
relacionalidade verdadeira, na medida em que a percepção da realidade psíquica das
imagens do desejo permite distingui-las da realidade do “tu”. Reciprocamente, é a
434
“O processo de individuação tem dois aspectos fundamentais: por um lado, é um processo interior e
subjetivo de integração, por outro, é um processo objetivo de relação com o outro, tão indispensável
quanto o primeiro. Um não pode existir sem o outro, muito embora seja ora um, ora o outro desses
aspectos que prevaleça. Há dois perigos típicos inerentes a esse duplo aspecto: um, é que o sujeito se sirva
das possibilidades de desenvolvimento espiritual oferecidas pelo confronto com o inconsciente, para
esquivar-se de certos compromissos humanos mais profundos e afetar uma ‘espiritualidade’ que não
resiste à crítica moral; o outro consiste na preponderância excessiva das tendências atávicas, rebaixando a
relação a um nível primitivo.” OC XVI, §
448.
435
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p.15.
experiência tornada possível da realidade do “tu” que possibilita a percepção das
realidades interiores da alma:
“O ser humano que não se liga a outro não tem totalidade, pois [a totalidade] é alcançada [através da]
alma, e [a alma] não pode existir sem o seu outro lado que sempre se encontra no ‘tu’. A totalidade
consiste em uma combinação do eu e do tu, [e] ambos se [mostram] como partes integrantes de uma
unidade transcendente (...) Não se trata evidentemente de síntese [ou] identificação de dois indivíduos,
mas da ligação consciente do eu com tudo aquilo que [foi projetado no ‘tu’]. Isso significa, portanto, que
a realização da totalidade é um processo [intrapsíquico], que depende essencialmente de o indivíduo estar
relacionado com outro ser humano. Estar relacionado [abre o caminho para a] individuação [e a torna
possível]”.
436
Em última análise, poderíamos dizer que o que está em jogo em profundidade no
processo psicoterapêutico é a efetivação pelo Eu de uma genuína relação de
reconhecimento de dupla direção: reconhecimento da alteridade do Si-mesmo,
reconhecimento da alteridade do “tu”. Nesse sentido, a psyches therapeia de Jung pode
ser entendida como forma daquele “laborioso e muitas vezes penoso trabalho de
educação ética”
437
que se choca com as obstinadas resistências encarnadas em “fatores
poderosos que impelem os indivíduos e os grupos na direção das necessidades e
interesses, em que o encontro com o outro é medido pelas categorias da utilidade, da
dominação ou das satisfações subjetivas”.
438
Se a individuação é uma realização ética genuína, ela deve pressupor a formação
do sujeito e a sua educação para o ethos. O privilégio concedido por Jung à
individualidade deu margem a equívocos quanto à avaliação de sua posição no tocante a
esse ponto, freqüentemente interpretada como individualismo. Tais equívocos se
desfazem quando atentamos para sua visão a respeito da relação entre educação e
individualidade:
“Quanto mais ‘científica’ pretende ser a educação, mais se orienta por [preceitos] gerais
e mais impede o desenvolvimento individual da criança. Um desses [preceitos] gerais
soa assim: ‘Deve-se levar em conta a individualidade do aluno e protegê-la’. (...) Este
princípio, tão louvável em si, transforma-se na prática em absurdo, se as inúmeras
peculiaridades dos alunos não se diferenciarem através da confrontação com os valores
436
OC XVI, § 454.
437
VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 73.
438
VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 70.
coletivos. Se não for este o caso, só se estarão protegendo e desenvolvendo
peculiaridades, sem considerar se elas serão proveitosas ou prejudiciais à criança em sua
vida social no futuro. Nega-se a ela a importante experiência de que as peculiaridades
não são válidas sem mais [só porque ela as possui]. (...) Existe o perigo de que a
aplicação muito geral desse princípio forme individualistas inadaptados, ao invés de
indivíduos capazes de adaptação. No primeiro caso, comanda um eu intolerante; no
segundo, o eu conhece a existência de fatores que são iguais ou mesmo superiores à sua
vontade própria. (...) A [posse de] peculiaridades não [constitui] mérito nem presente
valioso da natureza. [É] um simples ‘estar aí’ que só adquire importância quando a
consciência refletir sobre [ela], valorizá-[la] e submetê-[la] a uma decisão ética.”
439
Como Jung não cansou de afirmar, a individuação não leva ao individualismo,
mas à adesão complexiva entre o Eu e o mundo, ou seja, à integração reflexiva,
consciente e crítica de um indivíduo diferenciado à sua comunidade. O sentido social da
individuação é insistentemente lembrado por ele:
“Muito embora a tomada de consciência da individualidade possa corresponder ao destino natural do ser
humano, ela não é o fim último. Isso porque não é possível que o objetivo da educação do homem se
reduza a produzir um conglomerado anárquico de existências individuais. Isso equivaleria a um ideal
inconfesso de extremado individualismo, o que não passa de reação doentia a um coletivismo igualmente
inadequado. Contrapondo-se a isso, o processo da individuação natural produz uma consciência do que
seja a comunidade humana, porque traz justamente à consciência o inconsciente, que é o que une todos os
homens e é comum a todos. A individuação é o ‘tornar-se um’ consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a
humanidade toda, em que também nos incluímos.”
440
439
OC X, § 894-896.
440
OC XVI, § 227. “Basta saber que a alma humana é tanto individual quanto coletiva e que o seu
crescimento é possível se estes dois lados aparentemente contraditórios chegarem a uma cooperação
natural. No âmbito da pura vida instintiva, tal conflito obviamente não existe, apesar de que a vida
puramente corporal também tenha que satisfazer à exigência individual e à coletiva.” OC VII, pag. 282.
“Esta preocupação com o inconsciente tem interesse não apenas teórico mas prático. Pois, da mesma
forma que a [visão de mundo] que tivemos até agora é fator decisivo na constituição [do inconsciente e
seus conteúdos], assim também a reformulação de nossa visão de mundo, em consonância com os
conteúdos ativos do inconsciente, tornou-se uma [necessidade prática]. É praticamente impossível curar
definitivamente [uma neurose com drogas individuais], pois o homem não pode viver como indivíduo
isolado, fora da sociedade humana. O princípio sobre o qual constrói sua vida deve ser um princípio
[aceitável] de modo geral, do contrário prescindirá daquela moralidade natural indispensável ao homem
como membro da comunidade. Mas este princípio, se não for relegado à obscuridade do instinto
inconsciente, tornar-se-á uma [visão de mundo] bem elaborada, necessária a todos aqueles que costumam
prestar contas a si mesmos sobre seu modo de pensar e de agir.” OC X, § 48.
É esse contexto intersubjetivo que permite avaliar de maneira plena o conteúdo
ético da individuação que, como assinalamos, é dialeticamente entendida em relação à
socialidade humana.
441
A realização da própria individualidade, que na formulação de
Jung corresponde inequivocamente à passagem da universalidade abstrata do ethos à
singularidade concreta da praxis virtuosa do sujeito ético
442
, implica em algum grau um
auto-sacrifício do indivíduo empírico em face da universalidade das exigências
profundas dos valores do ethos, por um lado, e da totalidade do Si-mesmo, por outro.
443
Por isso mesmo, Jung categoricamente afirma que a individuação não pode ser
entendida como auto-salvação ou auto-redenção
444
: ela depende de uma alteridade que
interpela o Eu objetivamente na experiência ética, que é simultaneamente intimação
comunitária e destinação interior. Jung afirma a remissão indissolúvel entre Si-mesmo e
comunidade:
“Na verdade, uma relação positiva entre o indivíduo e a sociedade, ou um grupo, é essencial, pois nenhum
indivíduo subsiste por si mesmo, mas depende da simbiose com um grupo. O Si-mesmo, o verdadeiro
centro de um indivíduo, é de natureza conglomerativa. Ele é por assim dizer um grupo. Ele é uma
coletividade em si e, por isso, quando atua de modo mais positivo, sempre cria um grupo.”
445
Fica claro que para Jung não há uma separação absoluta entre Si-mesmo e
comunidade intersubjetiva, mas antes uma relação constitutiva: é a “natureza
conglomerativa” do Si-mesmo que faz do ser humano um animal social, e
reciprocamente uma configuração social particular remete à realização do Si-mesmo em
sua dimensão comunitária. No entanto, persiste sempre um índice de diferença entre a
realidade inabarcável do Si-mesmo e a sua expressão comunitária concreta e particular,
e é tal diferença que abre para o indivíduo a possibilidade de diferenciação com respeito
à coletividade.
441
Cf. Cartas III, 24/09/1959, a Mrs. C.: “Nós nunca nos bastamos a nós mesmos.” Cf. também a atitude
crítica de Jung com relação à idéia do padre Lucas Mensz a respeito de um eu em completa possessão de
si mesmo: Cartas III, 28/03/1955.
442
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia II, p. 15 (cf. esquema da nota 19).
443
Sobre o tema do auto-sacrifício, cf., por exemplo, OC XI, § 387ss. Jung diz que se trata de uma
disposição para o auto-sacrifício por parte da consciência empírica do indivíduo, pois “nem mesmo
estamos em condições de decidir sobre a natureza desse auto-sacrifício, pois esta decisão depende do
outro lado.” Cartas III, 21/12/1960, a Albert Jung.
444
Cf. Cartas II, 14/05/1950, a Joseph Goldbrunner: “Também é errado supor que a individuação seja
auto-redenção. [Isso] é exatamente o que ela não é.”; Cartas II, 25/04/1952, a Vera von Lier- Schmidt
Ernsthausen: “Descobri que, via de regra, quando aparecem espontaneamente conteúdos ‘arquetípicos’
nos sonhos, etc., deles emanam efeitos numinosos e curativos. São experiências psíquicas primitivas que
reabrem muitas vezes para os pacientes o acesso a verdades religiosas soterradas. Eu mesmo passei por
esta experiência. Longe de mim pensar em ‘auto-redenção’, pois dependo inteiramente do fato de me
acontecer semelhante experiência ou não.”
445
Cartas II, 30/09/1948, a Sally M. Pinckney.
Uma vez que o Eu consciente encontra-se irrevogavelmente situado entre os
pólos dialeticamente entrelaçados do Si-mesmo e do mundo, a expressão de sua posição
particular num dado momento por meio de uma imagem simbólica espontânea do
inconsciente faz referência à sua situação global, e portanto aos dois pólos que a
determinam. O dinamismo profundo da individuação conjuga o finalismo que comanda
a realização do Si-mesmo no mundo e a consideração à forma intersubjetiva particular
assumida por este mundo. Em outros termos: a individuação implica um esquema
ternário envolvendo Si-mesmo, Eu e mundo, ou totalidade psíquica, consciência
individual e comunidade ética. Por isso, uma imagem que retrate algo relativo ao estado
da interioridade subjetiva do Eu necessariamente também implica uma referência, ainda
que velada, ao estado de sua relacionalidade objetiva e intersubjetiva. Na medida em
que a posição do Eu não pode ser pensada sem a referência ao mundo (isto é, ao ethos,
aos “valores coletivos”), uma imagem simbólica que expresse tal posição
necessariamente conjuga a tendência prospectiva (por originar-se da fantasia criadora e
do impulso à realização do Si-mesmo) e a tradição coletiva (que constitui o meio em
que concretamente o indivíduo existe e se situa). Como diria Jung, o Si-mesmo “quer”
que façamos algo no mundo, “onde ao menos neste momento estamos colocados,
provavelmente para determinado fim.”
446
A “consideração absolutamente sem
preconceitos da semente de vida psicológica que se expande da cooperação natural do
consciente e do inconsciente, por um lado, e do individual e coletivo, por outro”
447
,
debruçando-se sobre as imagens simbólicas da fantasia criadora que veiculam tal
semente, encontra o entrelaçamento indissolúvel de Si-mesmo, Eu e mundo.
Assim sendo, a hermenêutica das imagens simbólicas, forma própria da psyches
therapeia junguiana enquanto modalidade de sabedoria prática, informando o sujeito
acerca de sua linha de individuação ou “traçado de vida”, o defronta com a dupla e
recíproca exigência da realização do Si-mesmo e da adesão consciente e reflexiva ao
mundo, segundo as modalidades da diferenciação e da integração. É nessa situação
complexa que cabe ao sujeito exercer a decisão ética e encontrar a melhor forma
possível de atender ao imperativo maior de sua plena realização humana.
Ao termo dessa exposição, gostaríamos que a imagem que reconstruímos da
psyches therapeia junguiana como modalidade de sabedoria prática espelhasse a
446
Cartas II, 22/11/1954, ao prof. Arvin U. Vasavada.
447
OC VII, pag. 283. (CW VII, § 489).
intenção de seu fundador, e correspondesse à impressão que uma conhecida de Jung
tinha a seu respeito:
“No fundo Jung era ... um apaixonado moralista. Sua moralidade é diferente daquela em que a maior parte
de nós foi criada: é ao mesmo tempo mais permissiva e mais exigente. É sobretudo uma moralidade
profundamente enraizada na no valor do indivíduo e na potencialidade criativa do
inconsciente.”
448
Adendo: nota sobre o sofrimento
Se a sabedoria prática visa a eudaimonia ou auto-realização humana, sendo esta
o fim (telos) das coisas humanas segundo Aristóteles
449
, a contrapartida da vida feliz,
ou pelo menos um ingrediente inevitável de qualquer vida, é o sofrimento. Qualquer
concepção de realização humana que ignore a experiência do sofrimento torna-se
ingênua e, por isso, irrelevante. É a realidade do sofrimento que impõe a necessidade da
sabedoria prática. As escolas filosóficas da Antigüidade enfrentaram de modos diversos
essa realidade, buscando caminhos viáveis de superação do sofrimento humano.
Também Jung percebia na relação com o sofrimento um componente fundamental da
existência e um assunto incontornável da psyches therapeia, que inclui entre seus
objetivos possibilitar à pessoa adquirir “firmeza e paciência filosóficas para suportar o
sofrimento”, que “a plenitude da vida exige um equilíbrio entre sofrimento e
alegria.”
450
Numa carta a um correspondente indiano, que lhe propusera a questão do
sofrimento e de sua superação pela filosofia, Jung responde:
“Concordo plenamente com sua opinião de que é um nobre esforço da filosofia procurar um caminho de
felicidade para todas as pessoas. Naturalmente esse objetivo é inatingível sem erradicar o sofrimento do
mundo. A filosofia precisa encontrar um caminho que provoque a destruição do sofrimento, para então
alcançar um estado de felicidade. Parece-me tarefa muito pretensiosa querer eliminar o sofrimento do
mundo, e não sou tão otimista para acreditar que isso seria possível. Ao contrário: creio que o sofrimento
é parte essencial da vida humana, sem o qual jamais realizaríamos coisa alguma. Sempre procuramos
fugir do sofrimento. Nós o fazemos de milhares de formas diferentes, mas nunca o conseguimos de todo.
Por isso cheguei à conclusão de que deveríamos tentar, se possível, encontrar ao menos um caminho que
possibilitasse às pessoas suportar o sofrimento inevitável, que é o destino de toda existência humana.
Quando alguém consegue ao menos suportar o sofrimento, realizou uma tarefa quase sobre-humana.
Isto pode proporcionar-lhe um certo grau de felicidade ou satisfação. Se o senhor chamar isto de
felicidade, nada tenho a objetar.”
451
448
Miss A. I. Allenby, citada em BROME, V. Jung. Man and Myth. London: Granada, 1980, p. 16.
449
Ética a Nicômaco X, 1176 a 31.
450
Cf. OC XVI, § 185.
451
Cartas I, 16/09/1937, a V. Subrahmanya Iyer.
Em nota a essa carta, encontra-se o relato de Walter Uhsadel, a quem Jung teria
dito: “A humanidade precisa resolver o problema do sofrimento. O homem oriental quer
livrar-se do sofrimento desprendendo-se dele. O homem ocidental tenta suprimir o
sofrimento através das drogas. O sofrimento precisa ser vencido, mas o será quando
for suportado. E isto nós aprendemos dele”, e apontou para a cópia de um vitral em
sua biblioteca, representando a crucifixão de Jesus, de que dissera antes: “Veja, isto é o
decisivo para nós.”
452
O contínuo e apaixonado envolvimento crítico de Jung com o cristianismo
moldou a sua atitude a respeito do sofrimento: mal necessário, ele atua como uma
espécie de motor na realização humana, vale dizer, na individuação. Apresentações
adocicadas e inocentes da psicologia de Jung esquecem-se dessa dimensão essencial,
traindo o seu espírito profundo. Talvez essa traição seja indício da dominância
silenciosa da modernidade pós-cristã, que enxerga o lado negativo do sofrimento
humano e torna-se, com o triunfo da tecnologia, cada vez mais intolerante a qualquer
desconforto, seja material, seja psicológico. Porém, a psyches therapeia junguiana
apresenta de partida duas exigências: a integridade do sentido moral e a disposição a
suportar o sofrimento. Tanto uma como a outra parecem estar em declínio em nossa
civilização, sendo o hedonismo amoral apenas uma das faces mais comuns e banais com
que o niilismo moderno ocupa o cenário social contemporâneo, numa negação das
raízes gregas e cristãs que definiram a têmpera espiritual do Ocidente, das tradições que
deram à luz nossa problemática modernidade. Neste cenário, o destino de uma proposta
psicoterapêutica como a formulada por Jung é incerto. Não sem razão, ele por vezes se
mostrava desiludido ao final de sua vida com relação aos resultados da recepção de seu
trabalho.
453
A rememoração da sensibilidade simbólica, afinal, não parece ter se
convertido em canal visível de reencontro do mundo moderno com as suas raízes e de
recomposição do vínculo perdido com sua tradição.
CAPÍTULO QUARTO
UM CETICISMO DE ALMA ROMÂNTICA
452
Ibid.
453
Cf. SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 351-352.
Uma vez estabelecida a caracterização da psyches therapeia em Jung como
forma de sabedoria prática, cabe-nos agora avaliar o resultado que obtivemos, suas
limitações e dificuldades.
Conforme afirmamos anteriormente, a limitação constitutiva da compreensão
explicativa própria das ciências humanas e dos modelos nelas inspirados faz com que
ela atinja o nível de particularidade do problema ético, nível onde se a efetiva
realização do agir ético e da vida ética, condicionada pelas situações psicológica, sócio-
econômica, cultural e histórica. O nível de universalidade do ethos, que Henrique Vaz
define pela ordenação da razão prática ao horizonte universal do Bem
454
, não é
alcançado pela compreensão explicativa, sendo por ela implicitamente pressuposto.
Desde que não se incorra numa forma de reducionismo empirista, que consiste na
abolição do nível de universalidade com a conseqüente restrição da inteligibilidade do
agir ético às condições de seu exercício, a validade teórica da compreensão explicativa
da particularidade é inquestionável. Por outro lado, sob o ponto de vista prático esta
compreensão se mostra necessária e insubstituível, que a realização efetiva da vida
ética justamente se na situação concreta, configurada por condições contingentes, a
cuja inteligibilidade se aplicam os vários discursos das ciências humanas. Deste modo,
respeitadas as esferas de competência e a articulação dos níveis de inteligibilidade
próprios, a Ética filosófica pode referendar os resultados da compreensão explicativa, e
mesmo se beneficiar com eles, pois eles lhe trazem a vida pulsante da realidade efetiva
cujo fundamento último, por seu turno, somente as categorias propriamente filosóficas
da Ética permitem enunciar.
Jung não se cansa de repetir que é um “empirista”. Vale portanto para a
psicologia analítica o que acabamos de afirmar: a orientação da razão prática ao
horizonte universal do Bem não pode ser tematizada no âmbito empírico em que o
exercício da praxis psicoterapêutica se desenrola, mas deve estar pressuposta nesse
mesmo exercício e, por isso, poder ser indicada por uma reflexão filosófica específica,
tal como a que realizamos em nossa interpretação. É exatamente por esse motivo que
pudemos interpretar a individuação ou realização do Si-mesmo como fim último, e para
tanto nos situamos no plano da compreensão filosófica da universalidade.
454
Cf. Escritos de Filosofia V, p. 219-220.
Assim, a relativização das formas ilimitadas de realização do bem humano não
significa, como Jung declara explicitamente, que se proceda a uma relativização do bem
e do mal em si.
455
Pelo contrário: o horizonte universal do Bem está pressuposto no
interior mesmo da relativização empírica de bem e mal que deve reger a consideração
psicoterapêutica. Pois se os caminhos da individuação são tortuosos, paradoxais,
contingentes, a própria individuação, categoria que torna inteligível a experiência
simbólica, ao mesmo tempo apresenta-se como norma imanente para a mesma. Como
ensina Henrique Vaz, a inteligibilidade da praxis pressupõe a normatividade imanente
do fim.
456
A psyches therapeia junguiana orienta-se por uma pergunta, que poderia ser
formulada nos seguintes termos: “como, nessa situação concreta, a humanidade realiza-
se da melhor maneira possível nesse sujeito?” Vê-se que o critério é o fim último da
realização humana (e não algum interesse particular do indivíduo, ou seu bem-estar), e
ele apresenta-se como o bem a ser realizado concretamente levando-se em conta a
complexidade única (“individual”, ou particular) da situação como um todo. Em face da
conflitividade inerente a uma tal situação, a decisão ordena-se implicitamente ao fim
último da realização humana, na medida em que se busca a melhor maneira possível
para tal realização, e a articulação da universalidade dos princípios com a singularidade
da ação é feita justamente pela mediação da sabedoria prática que considera a
particularidade da situação. Se refletirmos sobre os relatos fragmentários de
intervenções e atitudes clínicas de Jung, dispersos em suas obras, correspondência e nos
testemunhos de quem conviveu e trabalhou com ele, veremos com facilidade que na
praxis psicoterapêutica ele claramente orientava-se pelo critério da individuação, que
representava assim o foco da universalidade que regia a consideração da relatividade
inerente à situação prática.
Talvez seja oportuno insistir sobre esse ponto. Jung afirma que não se deve
sucumbir nem ao bem nem ao mal.
457
O critério da individuação supõe a integridade
455
Cf. OC X, § 866. Cf. também JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 285: “A
relatividade do ‘bem’ e do ‘mal’ não significa de forma alguma que essas categorias não sejam válidas ou
não existam. O julgamento moral existe sempre e em toda parte, com suas conseqüências características.
(...) São os conteúdos do julgamento que mudam, submetidos às condições de tempo e de lugar, e em
conseqüência destes.”
456
VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 8.
457
“Quando se toca no mal, corre-se o risco de se sucumbir a ele. Ora, o homem, de um modo geral, não
deve sucumbir nem mesmo ao bem. Um pretenso bem ao qual se sucumbe perde seu caráter moral, não
porque tenha se tornado um mal em si, mas porque determina conseqüências más, simplesmente porque
se sucumbiu a ele. Qualquer que seja a forma que revele o excesso a que nos entregamos, como o álcool,
a morfina ou o idealismo, é nociva. Nunca devemos sucumbir à sedução daquilo que é prejudicial. (...)
racional e livre da consciência na decisão moral, o que significa que as capacidades
simbólica e relacional devem estar íntegras – o fanatismo, o literalismo fundamentalista,
todas as formas de exaltação maníaca, a instrumentalização das relações intersubjetivas,
em suas ilimitadas formas, são indícios de que a experiência simbólica degradou, e de
que a realidade do outro foi eclipsada pelo fascínio de uma imagem psíquica interna,
imperando assim a inconsciência que, como Jung reconhece, exclui a liberdade.
Mas esse critério não pode ser simplesmente subjetivo e individual se é que,
em toda situação particular, a intenção de encontrar a melhor maneira possível de
realização da humanidade em uma pessoa revela-se como intenção de alcance universal.
O critério da individuação ou da realização do Si-mesmo, enquanto fim último que se
eleva sobre as múltiplas e cambiantes situações que constituem a contingência concreta
da realização humana, orientando assim a decisão ética, precisa estar ancorado em uma
dimensão universal, submetendo-se a um discurso sobre o ser do homem, sua
“natureza”, as formas de sua realização/individuação, que permita estabelecer as bases
universais para os nossos juízos de valor (sem que com isso estes juízos se convertam
em “imperativos categóricos” que ignoram a contingência das situações: o universal
precisa ser realizado concretamente de acordo com essa contingência – e esta é a
prerrogativa da phronesis.) Essa exigência de universalidade está implícita em Jung,
458
mas só pode ser tematizada por um discurso estritamente filosófico.
Esclareçamos melhor este ponto mediante um exemplo. Numa carta a J. J.
Putnam, de 8 de julho de 1915, Freud confessava sua perplexidade diante dos motivos
que o levavam a aderir à existência ética segundo certos valores que a psicanálise não
conseguia explicar:
“Se me pergunto por que eu sempre busquei ser fiel, ter consideração pelo outro e até ser bom para com
ele e por que eu nunca desisti quando percebia que se pode sofrer por causa disso, porque as pessoas são
brutais e não se pode fiar nelas, aí de fato eu não sei a resposta. Sensatez sem dúvida, não há nisso.”
459
A perplexidade de Freud, paradigmática para as ciências humanas em geral e
portanto válida também para a psicologia analítica de Jung, diz respeito ao problema da
fundamentação do agir moral. O que está na raiz deste problema é a possível vinculação
Nada pode poupar-nos do tormento da decisão ética.” In JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos,
Reflexões, p. 284-285.
458
Para se comprovar essa afirmação, vale a pena ler toda a a seção intitulada “Últimos Pensamentos” em
JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 283-306.
459
Citado em GONTIJO, E. D. “A Psicanálise e a Fundamentação do Agir Moral: Breve Comentário de
uma Carta de Freud a Putnam”, in Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 21, n. 65, 1994, p. 306.
da Razão a um incondicional, que escapa por princípio à psicanálise e à compreensão
explicativa de qualquer das ciências humanas, pois, repetindo, qualquer discurso que se
situe no nível da particularidade com relação ao objeto da Ética não está em condições
de expor a fundamentação inteligível última para a existência ética. Diante disso,
abrem-se-lhe duas opções: ou renunciar a qualquer fundamentação, negando assim o
nível da universalidade e com isso estaria praticando, inadvertidamente ou não, “uma
filosofia de cunho empirista incapaz de atingir o porquê do agir ético intersubjetivo na
particularidade das situações”
460
, ou então ater-se aos seus limites epistemológicos e
delegar a tarefa dessa fundamentação a um discurso legitimamente filosófico que possa
de pleno direito se situar no nível da universalidade, nível “que assegura a possibilidade
do encontro ético com o outro pela referência ao horizonte universal do Bem.”
461
A partir de uma perspectiva propriamente filosófica, podemos responder à
perplexidade de Freud quanto ao porquê do agir ético numa situação em que ele não traz
vantagens imediatas ao agente - antes pelo contrário. Se o homem, como ensina a
Antropologia Filosófica, é essencialmente um ser-com-os-outros-no-mundo, e se, como
ensina a Ética, a razão prática ordena-se constitutivamente ao horizonte universal e
incondicionado do Bem, então a autêntica realização humana deve se elevar sobre a
particularidade das condições contingentes e negativas para ordenar-se segundo a razão
prática àquele horizonte. O outro humano, mesmo sendo brutal e indigno de confiança,
necessariamente nos diz respeito, participa e condiciona a nossa existência humana.
Recusá-lo com a mesma violência e brutalidade que ele demonstra em seu
comportamento não ético significa abdicarmos de nossa própria humanidade. A atração
que o horizonte incondicionado do Bem exerce, se infelizmente não parece ser forte o
suficiente para expressar-se sob a forma de um mundo um pouco mais justo, é
testemunhada pela vida das grandes personalidades éticas, e, mais modestamente, vivida
naqueles raros momentos em que conseguimos nos superar e às condições adversas do
mundo para colocarmo-nos à altura das exigências de uma autêntica vida ética. Em
última análise, Jung entendia o processo de individuação como sendo a manifestação
empírica dessa atração, e por isso a individuação lhe aparecia como uma realização
moral. Colocando-nos no plano da compreensão filosófica, podemos revelar o estatuto
de fim último, e portanto a ordenação ao horizonte universal do Bem, segundo o qual a
noção de individuação exige ser pensada.
460
VAZ, Escritos de Filosofia V, p. 79.
461
Id., p. 78-79.
Aqui, contudo, encontramos um obstáculo ou uma dificuldade para nosso
paradigma de interpretação filosófica, privilegiando a categoria da sabedoria prática:
Jung insistiu sempre em interpretar a dimensão teórica de sua psicologia segundo a
categoria da ciência ou seja, apesar de perceber o parentesco da psicoterapia com a
vida filosófica antiga, conforme indicamos na introdução, ele não transpôs essa
percepção para o nível teórico, o que significa que ele ficou enredado em um
compromisso ou uma intenção teórica a da cientificidade moderna sem admitir que
penetrava claramente no campo da filosofia e que, por conseguinte, a ele se
subordinava ou subscrevia, o que terminou por criar uma cisão interna em sua
psicologia que vem justamente reforçar a própria cisão a que ele pretendia responder no
plano prático. Pior: não raras vezes a psicologia analítica avizinha-se daquela forma de
“filosofia de cunho empirista” que nega o nível de universalidade na compreensão do
agir ético, e isso em virtude de uma adesão obstinada e dogmática a uma opção
epistemológica determinada, com a qual Jung presumia legitimar o estatuto científico de
sua psicologia. Diante disso, e se, como sustentamos em nossa tese, a essência da
psicologia analítica é melhor compreendida justamente através do modelo da filosofia
prática no que aplicamos a sugestão de Gadamer para as ciências do espírito-, então
um passo necessário para a sua possível legitimação intelectual é demonstrar que,
também no plano teórico, tal como Jung o elaborou, mais que científica a psicologia
analítica é melhor interpretada como uma “filosofia camuflada”, sendo portanto passível
de uma reconstrução crítica ou de um desenvolvimento teórico que a faça atingir a sua
verdadeira essência epistêmica, ou seja, a sua necessária inscrição no universo
filosófico, depurando-a da questionável condição de, sob a máscara da ciência, praticar
uma pseudo-filosofia empirista inadequada e incompatível com a sua essência prática.
Eis o motivo pelo qual a legitimação completa de nossa tese exige que analisemos
criticamente a opção epistemológica feita por Jung, para então expormos a natureza do
perfil filosófico que pode ser desentranhado das concepções teóricas fundamentais da
psicologia analítica.
1. O limite epistemológico de uma ciência peculiar: um ceticismo epistêmico
mitigado
A presença de Kant no texto junguiano pode ser verificada em dois veis, nem
sempre claramente distintos: primeiro, como um ingrediente no sincretismo de seus
argumentos aparecendo então a impropriedade do uso de noções de Kant. É essa
impropriedade, apontada por diversos autores,
462
que permite falar-se de uma leitura
por vezes equivocada e ilegítima de Kant por Jung. Contudo, essa crítica não leva em
consideração o fato de a utilização de Kant se dar também em outro nível: o de um
referencial que inspira um enquadramento epistemológico não coincidente com a
epistemologia kantiana original. Como quer que seja, em ambos os casos a questão de o
“erro flagrante” de Jung ser na verdade uma transformação deliberada deve permanecer
em aberto.
463
Feita esta advertência preliminar, tentemos explicitar a posição epistemológica
que está na base da psicologia analítica e a concepção de ciência que lhe corresponde.
Uma das reivindicações mais insistentes feitas por Jung é a de que adotava um ponto de
vista epistemológico proveniente de Kant, que para ele é “o” filósofo. De fato, em
várias passagens é possível ver como Jung se esforça em ancorar epistemologicamente a
psicologia analítica em Kant, e assim contornar várias críticas a ela endereçadas como
por exemplo a de hipostasiar idéias metafísicas com a teoria dos arquétipos
464
, ou a de
estar cometendo um reducionismo psicológico ao tratar de temas teológicos
465
.
Mas a assimilação da teoria do conhecimento de Kant leva Jung a reconhecer
que, dada a natureza de seu objeto, também a psicologia não pode ser uma ciência
segundo os critérios kantianos. E isso porque as condições de constituição do mundo
dos fenômenos objetivos investigados pela ciência não valem para a própria psique.
Jung sabe perfeitamente que “tempo e espaço são categorias epistemológicas,
indispensáveis para a descrição dos corpos que se movem, mas incompatíveis com a
experiência interna e seus conteúdos.”
466
Portanto, a rigor os conteúdos da experiência
462
Ver, por exemplo, DE VOOGD, S. “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, in
PAPADOPOULOS, R.K. e SAAYAMAN, G.S. (eds.) Jung in Modern Perspective. Bridport: Prism
Press, 1991
2
, p. 204-228. Mais consistente é o excelente trabalho de Paul BISHOP, Synchronicity and
Intellectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung. Lewiston: Edwin Mellen Press, 2000.
463
Cf. SHAMDASANI, S., Jung and the Making of Modern Psychology, p. 237.
464
“Epistemologicamente me baseio em Kant, o que significa que uma afirmação não [põe] seu objeto.”
Cartas I, 08/02/1941, ao Dr. Josef Goldbrunner.
465
“Mas isso não quer dizer que aquilo que se chama inconsciente venha a ser idêntico a Deus ou ocupar
o lugar de Deus. O inconsciente é apenas o meio do qual parece brotar a experiência religiosa. Tentar
responder qual seria a causa mais remota desta experiência fugiria às possibilidades do conhecimento
humano, pois o conhecimento de Deus é um problema transcendental.” OC X, § 565.
466
Cartas II, 25/10/1955, a Palmer A. Hilty.
interna não podem ser definidos como fenômenos no sentido kantiano.
467
A tentativa de
aplicação das categorias da sensibilidade e do entendimento ao material psíquico
revelar-se-ia, em última instância, estéril e irrelevante, na medida em que não faria
avançar o conhecimento sobre a psique e seus processos. Por outro lado, a psicologia
empírica admitida por Kant, tendo como objeto o funcionamento do “sentido interno”,
configurar-se-ia como uma “descrição natural da alma”, mas não como uma ciência
nem como uma doutrina experimental, uma vez que a observação da própria alma,
segundo Kant, altera e distorce o estado do objeto observado.
468
Jung é rigorosamente lúcido e consciente das limitações epistemológicas
impostas à psicologia empírica pela identidade entre o sujeito e seu objeto – a psique:
“Não que eu alguma vez creia estar totalmente certo; ninguém pode afirmar isto em assuntos
psicológicos. É bom nunca esquecer que em psicologia o meio pelo qual se julga e se observa a psique é a
própria psique.(...) Na psicologia, o observador é o observado; a psique não é apenas o objeto, mas
também o sujeito de nossa ciência. Como estamos vendo, trata-se de um círculo vicioso e por isso temos
de ter uma modéstia incrível. O melhor que podemos esperar é que todo mundo ponha as cartas na mesa e
admita: ‘Conduzo as coisas de tais e tais formas e é assim que as vejo’. poderemos comparar as
experiências.”
469
Além do mais, a situação se complica pelo fato de a psique apresentar uma
atividade inconsciente empiricamente detectável
470
, mas por princípio indeterminável:
“A psicologia como ciência relaciona-se, em primeiro lugar, com a consciência; a seguir, ela trata dos
produtos do que chamamos psique inconsciente, que não pode ser diretamente explorada por estar a um
nível desconhecido, ao qual não temos acesso. O único meio de que dispomos, nesse caso, é tratar os
produtos conscientes de uma realidade, que supomos originários do campo inconsciente (...). Tudo o que
conhecemos a respeito do inconsciente foi-nos transmitido pelo próprio consciente. A psique
inconsciente, cuja natureza é completamente desconhecida, sempre se exprime através de elementos
conscientes e em termos de consciência, sendo esse o único elemento fornecedor de dados para a nossa
ação. Não se pode ir além desse ponto, e não nos devemos esquecer que tais elementos são o único fator
de aferição crítica de nossos julgamentos.”
471
A incognoscibilidade essencial da psique axioma de extração kantiana -
transfere-se para a noção de inconsciente, que descreve algo que Jung declara ser “de
fato inconsciente”, quer dizer, escapa à apreensão direta pela consciência, e portanto ao
procedimento experimental das ciências da natureza. Mas como empiricamente a psique
467
Cf. DE VOOGD, “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, p. 221.
468
Kant reserva à psicologia empírica um lugar no interior de sua Antropologia, e a Anthropologie in
pragmatischer Hinsicht é um texto com que Jung estava familiarizado.
469
OC XVIII, § 277. Recorde-se que na Crítica da Razão Pura Kant proíbe o conhecimento da alma
como objeto, uma vez que ela deve ser pressuposta a fim de conhecer qualquer objeto.
470
A base experimental de comprovação de uma atividade psíquica inconsciente é fornecida pelo teste de
associação de palavras, desenvolvido por Jung no início de sua atividade psiquiátrica.
471
OC XVIII, § 8.
inconsciente determina a consciência, a grande conseqüência da situação peculiar da
psicologia empírica, de acordo com o ponto de vista epistemológico de Jung, é que ela
pode ser compreendida como uma forma de conhecimento de partida imperfeito,
incerto, duvidoso, no melhor dos casos provável, mas nem por isso destituído de um
rigor próprio.
No fundo, portanto, Jung concorda em certo sentido com o interdito de Kant à
psicologia como ciência e em mais de uma oportunidade ele mesmo afirmou que o
destino da psicologia empírica é abolir-se como ciência:
“A psique é um fator muito complexo e tão fundamental a [todas as premissas] que nenhum julgamento
pode ser considerado ‘meramente empírico’, mas deve sempre indicar com antecedência [as premissas]
segundo [as quais] ele julga. Além disso, o conhecimento psicológico não pode esconder hoje em dia o
fato de que o seu objeto abrange ao mesmo tempo o seu próprio ser e que, por isso, em certo sentido, não
pode haver ‘princípios’ e julgamentos válidos, mas apenas fenomenologia, o que significa em outras
palavras pura experiência. Neste nível do conhecimento a psicologia como ciência deve renunciar a si
mesma, mas só neste alto nível. Abaixo dele são possíveis os julgamentos e, portanto, a ciência na medida
em que as premissas do julgamento são fornecidas, e nesta medida também a psicologia como ciência é
possível. Mas se perder a consciência de sua condicionalidade ou se ainda não tiver alcançado esta
consciência, será semelhante ao cachorro que persegue o próprio rabo.”
472
Como se vê, Jung dilata a noção de ciência para nela admitir “dois níveis" e
deixa claro que a psicologia, afinal, pode ser uma espécie de fenomenologia descritiva
da psique, que ele considera como um outro tipo de ciência, cujo método deve permitir
o estabelecimento de categorias que permitam exprimir as regularidades observadas nos
processos psíquicos:
“Devido à enorme complexidade dos fenômenos psíquicos, um ponto de vista puramente fenomenológico
é sem vida o único possível e que promete êxito a longo prazo. (...) O campo das manifestações
psíquicas, provocadas por processos inconscientes, é tão rico e múltiplo, que prefiro descrever o fato
observado e quando possível classificá-lo, isto é, subordiná-lo a determinados tipos. Trata-se de um
método científico, empregado sempre que nos encontramos diante de um material variado e ainda não
organizado. Podemos ter dúvidas quanto à utilidade e oportunidade das categorias ou tipos de
ordenamento empregados, mas não quanto ao acerto do método.
Como observo e examino décadas os produtos do inconsciente no sentido mais amplo, isto é, os
sonhos, fantasias, visões e delírios, não pude deixar de reconhecer certas regularidades ou tipos. tipos
de situações e de figuras que se repetem freqüentemente de acordo com seu sentido. Por isso uso também
o conceito de tema ou motivo a fim de designar estas repetições.”
473
472
OC XVIII, § 1738. Cf. também: OC VIII, § 261,421, 429.
473
OC IX-1, § 308-309. “A minha metodologia científica não é nada fora do comum; ela procede
exatamente como a anatomia comparativa, só que descreve e compara formas psíquicas.” Cartas I,
07/04/1945, ao pastor Max Frischknecht. “O empirista deve contentar-se portanto com um ‘como se’
teórico. Neste ponto, sua situação não é pior do que a [do físico atômico], se bem que seu método não seja
[baseado em medição quantitativa], mas [é] morfologicamente descritível.” OC IX-1, § 143.
Esses tipos, temas ou motivos correspondem evidentemente ao conceito de
arquétipo
474
que, em consonância com o nível “inferior” de cientificidade possível para
a psicologia, deve ser tomado como um modelo descritivo, assim como todas as demais
noções psicológicas utilizadas na transposição teórica dos fenômenos observados. Mas
as próprias observações empíricas e respectivas classificações dependem de
determinantes subjetivos psíquicos, constituintes daquilo que Jung chamou “equação
pessoal”. Por “equação pessoal” Jung entende não uma disposição meramente
individual, mas sim aquela posição, de início inconsciente ou pré-consciente, que molda
a personalidade do sujeito e a partir da qual ele interpreta a realidade, suas experiências
e a si próprio. A “equação pessoal” entrelaça-se com a visão de mundo
(Weltanschauung) e com o espírito do tempo (Zeitgeist), noções que Jung utilizava para
compreender a situação espiritual coletiva. A “equação pessoal” é, portanto, um
precipitado histórico, social e cultural. Ela pode ser encarada como equivalente, no
plano psicológico, à noção de pré-juízo (Vorurteil) na hermenêutica de Hans Georg
Gadamer.
À “equação pessoal” o escapam os próprios modelos descritivos, que para
Jung apenas ilustram determinado modo de considerar as coisas.
475
Daí a exigência de
474
Jung comenta na mesma passagem: “A crítica contentou-se em afirmar que tais arquétipos não
existem. E não existem mesmo, assim como não existe na natureza um sistema botânico! Mas será que
por isso vamos negar a existência de famílias de plantas naturais? Ou será que vamos contestar a
ocorrência e contínua repetição de certas semelhanças morfológicas e funcionais? Com as formas típicas
do inconsciente trata-se de algo em princípio muito semelhante. São formas existentes a priori ou normas
biológicas de atividade anímica.” OC IX-1, § 309, nota 1. Vê-se mais uma vez a confluência de sentidos
distintos: os arquétipos são categorias classificatórias, que descrevem algo real e objetivo; são formas a
priori comparáveis às categorias kantianas; e são “normas biológicas” da atividade anímica. Mas a
precedência de seu ceticismo epistêmico tem prioridade sobre suas incongruências explicativas: “Não
sabemos o que é (isto é, em que consiste) um arquétipo, uma vez que a natureza da psique nos é
inacessível; mas sabemos que os arquétipos existem e atuam.” OC XVIII, § 1567.
475
Cf. OC VIII, § 381. “Há muitas pessoas que ainda acreditam na possibilidade de se escrever uma
psicologia ex cathedra, mas a maioria de nós está convencida de que uma psicologia objetiva deve
fundamentar-se sobretudo na observação e na experiência. Esta fundamentação seria o ideal, se fosse
possível. O ideal e objetivo da ciência não consistem em dar uma descrição, a mais exata possível, dos
fatos a ciência não pode competir com a câmara fotográfica ou com o gravador de som mas em
estabelecer [certas leis] que nada mais [são] do que [expressões abreviadas] de processos múltiplos que,
no entanto, [são concebidos como sendo de alguma forma relacionados]. Este objetivo se sobrepõe, por
intermédio [do conceito], ao puramente empírico, mas será sempre, apesar de sua validade geral e
comprovada, um produto da constelação psicológica subjetiva do pesquisador. Na elaboração de teorias e
conceitos [estão envolvidos muitos fatores pessoais e acidentais]. também uma equação pessoal [que
é] psicológica e não apenas psicofísica. Desconfio do princípio da ‘pura observação’ na assim chamada
psicologia objetiva (...) Esta equação pessoal psicológica aparece mais ainda quando se trata de
[apresentar] ou comunicar o que se observou, sem falar da [interpretação e exposição abstrata] do
material [empírico]. (...) Exigir que se olhe objetivamente nem entra em cogitação, pois isto é
impossível. deveria bastar que não se olhasse subjetivamente demais. (...) Reconhecer e levar em
consideração o condicionamento subjetivo dos conhecimentos em geral e dos conhecimentos psicológicos
em particular é a condição essencial da [avaliação] científica e [imparcial] de uma psique diferente da do
se apresentar a “premissa dos julgamentos” nesse nível epistemologicamente
problemático. E Jung se submete à exigência que ele mesmo levantou:
“A premissa [subjacente a meus julgamentos] é a realidade [Wirklichkeit] das coisas psíquicas, um
conceito que resulta do reconhecimento de que a psique também pode ser pura experiência.”
476
Nesta declaração encontra-se o segredo do pensamento de Jung e a pedra
angular de sua psicologia: a noção de psique, que kantianamente ele afirma não poder
ser conhecida em si mesma, por possuir uma radical dimensão inconsciente
477
, mas cuja
realidade efetiva (Wirklichkeit) ele assume como premissa de todas as suas proposições
psicológicas. Assim, traduzido em outros termos, o nível “inferior” em que se situa a
psicologia significa que ela pode ser entendida segundo uma concepção cética de
ciência, tratando-se mais especificamente de um ceticismo mitigado que assume uma
premissa, não demonstrada racionalmente, mas empiricamente plausível e justificada.
A extensão do ceticismo em Jung pode causar surpresa. Acompanhando as
transformações ocorridas na teoria e na prática das ciências contemporâneas, que
implicavam em uma definição de cientificidade muito diferente daquela em que se
assentava o paradigma newtoniano conhecido por Kant, Jung atualiza sua concepção de
ciência e a formula claramente em termos de um probabilismo cético. Assim, ele exibe
uma posição epistemológica que não pode nem remotamente ser referida a Kant,
quando afirma que “não existem leis naturais, apenas probabilidades estatísticas”,
complementando com a afirmação de que “como não existem leis axiomáticas, toda
assim chamada ‘lei’ tem exceções. Por isso, nada é absolutamente impossível, exceto a
contradição lógica (contradictio in adiecto).”
478
sujeito que observa. Esta condição será satisfeita quando o observador estiver suficientemente
informado sobre a extensão e a natureza de sua própria personalidade.” OC VI, § 8 (grifos nossos).
476
OC XVIII, § 1740.
477
“Eu nunca afirmei, nem acho que sei o que é, em última análise, o inconsciente em si e para si. É a
região desconhecida da psique. Quando falo da psique, também não me vanglorio de saber o que ela é em
última análise e até onde esse conceito pode chegar. Pois este conceito está simplesmente além de
qualquer [conhecimento]. É mera convenção dar o nome de psíquico ao desconhecido que se nos
apresenta. Experimentalmente este [fator] psíquico é algo bem diferente da nossa consciência.” Cartas I,
07/09/1935, ao pastor lic. Ernst Jahn. “Quando digo ‘psique’, entendo algo desconhecido a que dou o
nome de ‘psique’”. Cartas III, 16/8/1960, a Robert C. Smith. Para mim a psique é um fenômeno quase
infinito. Não tenho a mínima idéia do que ela é em si, e sei apenas muito vagamente o que ela o é.”
Cartas II, 17/06/1952, a R.J. Zwi Werblowsky.
478
Cartas II, 25/10/1955, a Palmer A. Hilty. Cf. OC XVIII, § 1188: “A verdade estatística deixa aberta
uma lacuna para os fenômenos acausais, e como nossa explicação causalista da natureza contém a
possibilidade de sua própria negação, ela pertence à categoria dos juízos transcendentais, que são
paradoxais e antinômicos. Isto é assim porque a natureza ainda nos supera e porque a ciência só consegue
nos dar um quadro aproximado do mundo, e não um quadro verdadeiro.” Certamente essa posição não
quadra bem com as pretensões da teoria do conhecimento de Kant, sempre voltada para uma legalidade
Ademais, no que diz respeito especificamente à psicologia, permanece
incontestável o fato de que a natureza do objeto de investigação de uma psicologia do
inconsciente foge a fortiori aos critérios kantianos do experienciável e do cognoscível.
Concordando com Kant ao afirmar que a natureza essencial da psique é incognoscível,
ou, em seus próprios termos, inconsciente em seus fundamentos reais, Jung confere-lhe
um estatuto numênico. Ele observa e estuda os fenômenos psíquicos que expressam esse
númeno hipotético, mas não pode se limitar a tomá-lo rigorosamente como conceito-
limite negativo, que postula a sua realidade efetiva (Wirklichkeit), empiricamente
constatável nos efeitos que são a ele atribuídos. Jung vai além de Kant não apenas ao
afirmar uma realidade forte” para esse fator numênico e uni-lo por um vínculo de
representação aos fenômenos psíquicos ou imagens arquetípicas,
479
como também ao
propor modelos descritivos do mesmo, o que representa uma transgressão flagrante do
interdito kantiano. Se “arquétipo”, “psique”, “inconsciente” etc. são apenas modelos
heurísticos, eles contudo indicam algo real e atuante eis a premissa da Wirklichkeit
der Seele -, o que significa que essa realidade indicada por tais modelos é, afinal, não só
pensável mas também cognoscível, ao contrário da coisa-em-si kantiana. Esses modelos
não são, portanto, conceitos-limite no sentido técnico kantiano, apesar da insistência de
Jung em apresentá-los como tais.
480
dos fenômenos naturais que se define pela necessidade e universalidade ancoradas na objetividade
subjetiva do sujeito transcendental. Jung estava perfeitamente ciente disso: cf. OC XI, § 967.
479
“Aqui vale a pena notar que em Kant é a realidade fenomênica que é solidamente real, ao passo que as
entidades numênicas (...) não podem escapar de um certo ar de irrealidade dado seu estatuto de postulado
e sua persistente incognoscibilidade. Nas mãos de Jung, porém, a mesma dicotomia fenômeno-númeno
recebe uma torção visto que Jung insiste em nos mostrar a realidade fenomênica das manifestações
psíquicas. Em termos kantianos isso significa nada menos do que um convite a encarar o
fenomenicamente irreal como o fenomenicamente real (...) Uma conseqüência ulterior é que na obra de
Jung o numênico transcendente não pode deixar de soar como a ‘coisa real’ (em comparação com suas
manifestações ‘meramente psíquicas’).” DE VOOGD, “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism
Appraised”, p. 222.
480
“De certa forma, eu poderia dizer do inconsciente coletivo o mesmo que Kant disse da coisa-em-si,
isto é, que ele é simplesmente um conceito-limítrofe negativo, o que no entanto não pode impedir-nos de
formular sobre isso (...) hipóteses [sobre sua possível natureza como se ele fosse] um objeto da
experiência humana.” (Cartas I, 08/04/1932, ao Dr. A. Vetter, itálicos nossos) Da mesma forma, Jung
afirma do arquétipo do Si-mesmo ser ele um conceito-limite (cf. Letters II, 13/06/1955, ao pastor Walter
Bernet; cf. OC XVIII, § 1672; OC XI, § 399 e 819; OC XII, § 247), mas ao mesmo tempo toma-o como
um “conceito descritivo”, e não como uma “abstração vazia” mediante a qual “o arquétipo é
progressivamente separado de um pano de fundo dinâmico e reduzido aos poucos a uma fórmula
puramente intelectual.” (Cartas I, 08/04/1932, ao Dr. A. Vetter) Por isso, o Si-mesmo “não é tanto uma
hipótese de trabalho, mas algo que foi encontrado” (Cartas II, 13/04/1946, ao Dr. med. Bernhard Milt; cf.
OC XI, § 399 nota 19), correspondendo a “uma imagem psíquica da totalidade do homem, a qual é
transcendente porque indescritível e inapreensível.” (Letters I, 13/01/1948, a Gebhard Frei) Mais uma vez
aparece aqui o índice da transformação representada pela afirmação da realidade da psique: “A
dificuldade que dá motivo a mal-entendidos é o fato de que os arquétipos são ‘reais’, isto é, podem ser
estabelecidos efeitos cuja causa é chamada hipoteticamente de arquétipo como, por exemplo, nos efeitos
da física pode ser estabelecido que sua causa seja o átomo (que é um simples modelo). (...) Para mim a
Analogamente, todos os conteúdos dados à consciência na experiência interna
são tomados como representações ou imagens da própria psique, e recebem o estatuto
fenomênico, que no entanto não pode ser tomado no sentido próprio kantiano, pelas
razões que expusemos.
Dessa forma, a reivindicada filiação epistemológica kantiana de Jung revela-se
problemática. Jung não poderia ser, quanto à epistemologia da psicologia que ele
constrói, um kantiano de estrita observância.
481
Aparentemente, ele não estava
disposto a admitir que sua psicologia ultrapassava e mesmo transgredia o espaço
teórico kantiano ao afirmar como premissa central a realidade e originariedade da
psique, premissa que tinha conseqüências no plano ontológico. Essas conseqüências
foram elaboradas em chave antropológica numa passagem fundamental de Tipos
Psicológicos
482
. Abordando psicologicamente o problema da relação entre esse in re
e esse in intellectu na controvérsia entre nominalismo e realismo, Jung evoca um
terceiro nível ontológico – o nível do esse in anima – e o define como sendo
correspondente à realidade da psique por ele postulada na psicologia contemporânea.
Não nos interessa discutir aqui a compreensão limitada e talvez equivocada que Jung
oferece do problema dos universais a partir do ângulo próprio em que histórica e
filosoficamente ele se coloca. Basta-nos assinalar que a passagem permite comprovar
que ele concedia um estatuto ontológico diferenciado à psique, e além disso referia a
ela os outros níveis, ao afirmar o primado da fantasia, entendida como atividade
imaginativa,
483
na construção da realidade tal como pode ser humanamente
experimentada:
psique é algo real [wirklich], pois ela atua [wirkt], como pode ser constatado empiricamente. Deve-se
admitir portanto que as idéias arquetípicas atuantes, inclusive o nosso modelo de arquétipo, baseiam-se
em algo real, ainda que [incognoscível], assim como o modelo do átomo se baseia em certas propriedades
[incognoscíveis] da matéria.” (Cartas II, 23/04/1952, ao prof. H. Haberlandt) Sobre a aproximação com a
física, Jung diz: “A comparação da psicologia moderna com a física moderna não é conversa inútil.
Apesar de [sua diametral oposição], as duas disciplinas têm um ponto muito importante em comum, isto
é, o fato de ambas abordarem a região até agora ‘transcendental’ do Invisível e Intangível, o mundo do
pensamento [meramente] análogo. (Cartas III, 17/06/1956, ao prof. Benjamin Nelson) “Por isso os
conceitos limítrofes são em parte de natureza mitológica em ambas as ciências. [Esta seria uma boa razão]
para um exame epistemológico-psicológico [de seus] conceitos básicos.” (Cartas III, 10/09/1956, a Fritz
Lerch) A comparação com a microfísica contemporânea – também ela não-kantiana – não deve ser levada
longe demais, pois os modelos desta aplicam-se a uma realidade que pode ser quantificada e submetida a
experimentação. Cf. OC VIII, § 421-422.
481
cf. DE VOOGD, “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, p. 221-222, 226.
482
Publicado em 1921, agora correspondendo ao sexto volume das Obras Coligidas. Para a passagem, cf.
OC VI, § 63 ss.
483
Sobre os dois sentidos da noção de fantasia em Jung, veja-se OC VI, § 799-810.
“Toda expressão lógico-intelectual, por mais perfeita que seja, retira da impressão objetiva sua vitalidade
e imediatidade. Ela tem que fazer assim para poder chegar a uma formulação. Com isso se perde, no
entanto, o que parece ser o mais essencial para a atitude extrovertida: a relação com o objeto real. Não há,
portanto, nenhuma possibilidade de encontrar, através de uma ou outra atitude, uma fórmula de
conciliação satisfatória. E mesmo que seu espírito o suportasse, o homem não poderia persistir nessa
divisão que não diz respeito apenas a uma filosofia longínqua, mas ao problema diuturno do
relacionamento do homem consigo mesmo e com o mundo. E como, no fundo, é desse problema que se
trata, a divisão não pode ser resolvida discutindo-se os argumentos dos nominalistas e realistas. Para a
solução, é preciso um terceiro ponto de vista, intermediário. Ao esse in intellectu falta a realidade
tangível, e ao esse in re falta espírito. Idéia e coisa confluem na psique humana que mantém o equilíbrio
entre elas. Afinal o que seria da idéia se a psique não lhe concedesse um valor vivo? E o que seria da
coisa objetiva se a psique lhe tirasse a força determinante da impressão sensível? O que é a realidade se
não for uma realidade em nós, um esse in anima? A realidade viva não é dada exclusivamente pelo
produto do comportamento real e objetivo das coisas, nem pela fórmula ideal, mas pela combinação de
ambos no processo psicológico vivo, pelo esse in anima. Somente através da atividade vital e específica
da psique alcança a impressão sensível aquela intensidade, e a idéia, aquela força eficaz que são os dois
componentes indispensáveis da realidade viva. Esta atividade autônoma da psique, que não pode ser
considerada uma reação reflexiva às impressões sensíveis nem um órgão executor das idéias eternas, é,
como todo processo vital, um ato de criação contínua. A psique cria a realidade todos os dias. A única
expressão que me ocorre para designar esta atividade é fantasia. A fantasia é tanto sentimento quanto
pensamento, é tanto intuição quanto sensação. Não função psíquica que não esteja inseparavelmente
ligada pela fantasia com as outras funções psíquicas. Às vezes aparece em sua forma primordial, às vezes
é o produto último e mais audacioso da [combinação] de todas as capacidades. Por isso, a fantasia me
parece a expressão mais clara da atividade específica da psique. É sobretudo a atividade criativa donde
provêm as respostas a todas as questões passíveis de resposta; é a mãe de todas as possibilidades onde o
mundo interior e exterior formam uma unidade viva, como todos os opostos psicológicos. A fantasia foi e
sempre será aquela que lança a ponte entre as exigências inconciliáveis do sujeito e objeto, da introversão
e extroversão.”
484
Como Stephanie de Voogd mostrara
485
, apoiando-se em reflexões de James
Hillman
486
, a ontologia do esse in anima com seu primado da fantasia requer um
modelo descritivo que conceda prioridade à metáfora sobre o conceito, o que significa
que o mbolo forma específica da atividade imaginativa - passa a ser a noção
epistemológica fundamental.
Neste ponto, portanto, intervém a terceira noção fundamental do espaço teórico
em que Jung trafega: a noção de símbolo, definida por ele como “a melhor designação
ou [formulação] possível de um fato relativamente desconhecido, mas cuja existência é
conhecida ou postulada.
487
Dada a incognoscibilidade radical da psique em si mesma,
transposta para a tese da primazia dinâmica do inconsciente, as imagens e
representações arquetípicas investigadas pela psicologia do inconsciente serão sempre e
em última análise símbolos da psique, e a própria psicologia, com seus modelos
484
OC VI, § 73. Parece-nos que a posição de Jung pode ser comparada em certa medida à de David
Hume, para quem a imaginação é um dos pilares da natureza humana, “a grande operária da nossa
experiência e da nossa ciência.” (LEROY, A-L. David Hume. Paris: PUF, 1953, p. 59) Também a
concepção humeana do eu como um “feixe de impressões” apresenta analogias com a concepção do
“complexo do eu” em Jung.
485
Cf. DE VOOGD, “Fantasy versus Fiction: Jung’s Kantianism Appraised”, p. 224-228.
486
Cf. HILLMAN, J. O Mito da Análise. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
487
OC VI, § 903. Já indicamos no capítulo segundo a centralidade da noção de símbolo em Jung.
descritivos, será um símbolo especial da psique.
488
A psicologia, diz Jung, é um logos
da psique que deve ser entendido em duplo sentido (genitivo objetivo e genitivo
subjetivo): como conhecimento sobre a psique através de seus símbolos, e como
expressão simbólica da própria psique.
Note-se que o ceticismo epistêmico mitigado de Jung estende-se também à sua
concepção de símbolo, fazendo-o atribuir pragmaticamente à verdade simbólica
“uma validade temporária, pois é entendida apenas para uma determinada situação. Se a situação
mudar, necessidade de nova ‘verdade’, por isso a verdade é sempre relativa a uma determinada
situação. Enquanto o símbolo for a resposta verdadeira e, portanto, capaz de solucionar uma situação que
lhe corresponda, ele é verdadeiro, válido, ‘absoluto’. Mas, se a situação mudar e o mbolo continuar
simplesmente perpetuado, ele nada mais é do que um ídolo que atua de modo empobrecedor e
embrutecedor, pois só age inconscientemente e não dá nenhuma explicação ou esclarecimento.”
489
Se é plausível a nossa interpretação, então, sob o ponto de vista epistemológico,
a psicologia de Jung apoia-se fundamentalmente nessas três noções de psique,
inconsciente e símbolo, sendo que as duas primeiras não devem ser tomadas como
conceitos rigorosos, inscrevendo-se elas mesmas na categoria de símbolo, pois referem-
se a algo de partida caracterizado como desconhecido e mesmo, mais radicalmente,
como transcendente à apreensão consciente e intelectual definitiva. No seu conjunto,
estas noções são os esteios de um modelo de compreensão que é, em última análise, ele
mesmo simbólico.
490
488
Cf. OC VI, § 906: Na medida em que toda teoria científica encerra uma hipótese, portanto é uma
descrição antecipada de um fato ainda essencialmente desconhecido, ela é um símbolo.”
489
Cartas I, 10/01/1929, ao dr. Kurt Plachte. Esta posição vale tanto para os grandes símbolos coletivos
quanto para os símbolos pessoais que emergem no processo de individuação. Respondendo a um ensaio
de uma estudiosa das culturas indígenas americanas sobre os símbolos pessoais que ele esculpira na pedra
em sua torre de Bollingen, Jung escreve: “Não tenho convicções religiosas ou outras a respeito de meus
símbolos. Eles podem mudar amanhã. São meras alusões, eles indicam algo, eles balbuciam e muitas
vezes perdem seu caminho. Eles procuram apenas apontar para certa direção, isto é, para aqueles
horizontes obscuros para além dos quais está o segredo da existência. Eles não são nenhuma gnose, não
são afirmações metafísicas. Em parte são até mesmo tentativas fúteis ou duvidosas de expressar o
inefável. Por isso seu número é infinito e a validade de cada um é incerta. Nada mais são do que humildes
tentativas de formular, definir e dar forma ao [inexprimível]. ‘Wo fass ich Dich, unendliche Natur?’
(Fausto). Não é uma doutrina, mas simples expressão da experiência de um mistério inefável e uma
[reação] a isso.” Cartas III, 11/02/1956, a Maud Oakes.
490
É isso, segundo cremos, que empresta ao texto junguiano a sua desconcertante mobilidade, sua
volatilidade que irrita os nossos modos habituais de compreensão, e torna a sua leitura ao mesmo tempo
extremamente difícil, penosa, e apaixonante. Exemplo paradigmático disso é o livro que selou sua ruptura
com Freud, Símbolos da Transformação, onde assistimos à passagem aparentemente aleatória de um
universo de imagens simbólicas a outro, entremeada com reflexões de cunho psicológico que trazem o
leitor momentaneamente de volta à sobriedade da compreensão segundo conceitos, apenas para em
seguida arrastá-lo de novo a uma nova constelação simbólica. Também os ensaios sobre o simbolismo
alquímico (Psicologia e Alquimia, Psicologia da Transferência e Mysterium Coniunctionis) exibem o
mesmo estilo. As exigências postas para a leitura de um texto assim são consideráveis, e não é sem razão
Porém, o projeto de Jung para a psicologia tinha uma ambição maior. A
afirmação da onipresença da psique na construção da realidade trazia em seu bojo a
conseqüência de tornar problemática qualquer pretensão a uma objetividade pura, e em
especial no caso da própria psicologia. Mas justamente a psicologia em tese poderia,
através de uma reflexão metapsicológica sobre os modelos e estilos de expressão,
descrição e conhecimento, estabelecer os modos típicos de estilos e construção de
modelos, e portanto de apreensão e expressão da realidade. Era precisamente isto que a
teoria dos tipos psicológicos de Jung tinha intenção de realizar
491
, e era a partir de tal
intenção que a herança kantiana era reclamada: a psicologia crítica seria filha do
criticismo de Kant. Jung acreditava que ela seria de imenso valor não só para o círculo
mais estreito da psicologia, como também para o círculo mais vasto das ciências em
geral.”
492
Mas este mesmo projeto não poderia escapar ao círculo vicioso constitutivo da
psicologia empírica. Por fim, Jung reconhece honesta e coerentemente que, a despeito
de sua intenção de fazer ciência, sua teorização psicológica, ao se imiscuir em outros
domínios, estava determinada por sua equação pessoal:
“Os problemas da psicologia complexa que aqui procurei delinear levaram-me a
resultados espantosos até para mim mesmo. Eu acreditava estar trabalhando
cientificamente, no melhor sentido do termo, estabelecendo, observando e classificando
fatos reais, descrevendo relações causais e funcionais, para, no final de tudo, descobrir
que eu havia me emaranhado em uma rede de reflexões que se estendiam muito para
além dos simples limites das Ciências naturais, entrando nos domínios da Filosofia, da
Teologia, da Ciência das religiões comparadas e da História do espírito humano em
geral. Esta extrapolação, tão inevitável quanto suspeita, trouxe-me não poucos
aborrecimentos. Sem falar de minha incompetência nestes domínios, minhas reflexões
que mais de um crítico de talhe cartesiano a começar pelo próprio Freud - se irritou com o texto
impenetrável do “obscuro e confuso” Jung.
491
Tratava-se, portanto, de uma intenção originariamente epistemológica, que no entanto se eclipsou
diante da intenção caracterológica que se impôs com a vulgarização da teoria dos tipos, sofrendo assim
uma desvirtuação de que o próprio Jung se lamentava. A esse respeito, ver SHAMDASANI, Jung and the
Making of Modern Psychology, p. 61-99.
492
OC VIII, § 260.
em princípio pareciam-me duvidosas, porque eu estava profundamente convencido de
que a [assim chamada equação pessoal] tinha um efeito de peso nos resultados da
observação psicológica.”
493
Portanto, a peculiar forma de ciência ou “fenomenologia” que Jung elabora
sobre bases céticas, confessadamente extrapolando os “simples limites das Ciências
naturais”, revela-se como uma modalidade específica de ciência hermenêutica, e por
isso pudemos caracterizá-la como um modelo de compreensão simbólico. Todavia, a
referência a Kant faz com que Jung ultrapasse o limite de um ceticismo epistêmico
circunscrito ao âmbito da psicologia empírica para defender uma posição de ceticismo
metafísico:
“Pode-se dizer de todas as afirmações metafísicas que sua realidade consiste em serem afirmadas, mas de
nenhuma se pode provar que seja verdadeira ou falsa. Não pertence ao alcance de uma ciência como a
psicologia verificar a verdade ou não de afirmações metafísicas. É um ponto de vista totalmente
antiquado, e isto desde os tempos de Immanuel Kant, pensar que a pessoa humana pode formular uma
verdade metafísica. Isto é e continuará sendo prerrogativa da [crença]. A [crença], por sua vez, é um fato
psicológico e nem de longe significa uma prova. Na melhor das hipóteses este fato diz que tal crença
existe e que ela corresponde a determinada necessidade psicológica. Como nenhuma necessidade humana
é desprovida de fundamento, podemos deduzir que a necessidade de afirmações metafísicas repousa sobre
fundamento correspondente, mesmo que este fundamento nos seja inconsciente. Com isto nada é
afirmado e nada é negado. (…) Meu aparente ceticismo é [apenas o reconhecimento da barreira
epistemológica]”.
494
É notável a contradição interna que se manifesta nessa passagem: ao mesmo tempo em que, sobriamente, Jung reconhece
que “não pertence ao alcance de uma ciência como a psicologia verificar a verdade ou não de afirmações metafísicas”, ele abandona
a posição de psicólogo ao decretar que de nenhuma afirmação metafísica “se pode provar que seja verdadeira ou falsa”, e esse
movimento imprudente é feito a partir da adoção dogmática da “barreira epistemológica” kantiana. Nesse ponto, vemos como Jung
resvala para aquele tipo de “filosofia de cunho empirista” que denunciamos anteriormente: ele não se limita a evitar o problema da
verdade e se ater à limitação epistemológica de sua forma de ciência; ele descarta implicitamente a questão da verdade ao declará-la
“irrespondível”.
495
Seu ceticismo epistêmico, legítimo se restrito ao âmbito de sua ciência, dá um passo problemático ao converter-
se em ceticismo metafísico.
À luz da interpretação que propomos, o próprio ceticismo metafísico reivindicado por Jung precisa ser redimensionado.
Jung afirma que as proposições metafísicas, apesar de impossíveis do ponto de vista da teoria do conhecimento kantiana,
representam necessidades humanas profundas, e por isso não podem ser eliminadas pela crítica racional.
496
Ora, mas como a
493
OC VIII, § 421.
494
Cartas III, 8/6/1957, a Bernhard Lang.
495
Também nas Obras Coligidas Jung textualmente considera a questão da verdade “simplesmente
irrespondível”, e acrescenta: “Por razões epistemológicas, esta questão se tornou obsoleta muito
tempo. O conhecimento humano deve contentar-se com a produção de modelos que correspondem à
probabilidade. Mais do que isto seria presunção descabida.” OC X, § 853. Ele recusa a possibilidade de
afirmação de uma verdade absoluta pelo homem, justamente porque percebe na mediação psíquica
incontornável um fator que torna quaisquer postulados humanos inevitavelmente humanos, vale dizer,
relativos: “Somente se você for capaz de ver a relatividade, isto é, a incerteza de todos os postulados
humanos, poderá experimentar aquele estado no qual a psicologia analítica faz sentido.Letters II,
May/1956, anônimo.
496
“Parece-me que julgamentos transcendentais do intelecto são impossíveis e, por isso, inúteis. Mas,
apesar de Kant e da epistemologia, eles aparecem sempre de novo e não podem ser suprimidos. Isto é
psicologia deve por princípio lidar com essas “necessidades emocionais”, não lhe resta outra alternativa a não ser ir além de Kant e
propor modelos para a “compreensão empírica” dos fenômenos da experiência interior. A efetividade dessas necessidades e desses
fenômenos pressupõe que esse “desconhecido em si” – a psique – tenha sua realidade afirmada, e assim, de conceito-limite negativo
para o Kant da primeira Crítica, o númeno se converte em hipótese de trabalho com valor heurístico para Jung, mas – repita-se -
uma hipótese que corresponde a algo positivamente encontrado na experiência interna.
A demarcação de fronteira entre dois territórios distintos, inspirada em Kant mas comportando uma transformação
fundamental, faz a psicologia analítica instalar-se no espaço de onde a metafísica toma seu impulso e motivação. A “verdade
psicológica” para Jung trará as marcas que Kant atribuiu às proposições metafísicas: “toda afirmação sobre uma coisa desconhecida
em si é necessariamente antinômica se quiser ser verdadeira”.
497
A hipóstase metafísica se converte em hipótese psicológica, e Jung cautelosamente se exime do ônus da demonstração
metafísica:
“Acredito igualmente que a palavra ‘imagem primordial’ ou ‘arquétipo’ possa caracterizar as formas
estruturais que estão na base da consciência, assim como a estrutura do cristal caracteriza o processo de
cristalização. Devo deixar ao filósofo [hipostasiar o ‘arquétipo’] como o eidos platônico. [Ele não estaria
tão longe da verdade, de qualquer forma].”
498
Nesta passagem vemos Jung por um lado recobrar a lucidez e “deixar ao
filósofo” aquilo que lhe compete, e por outro não se conter e imiscuir-se na
problemática filosófica da verdade. Não cabe à psicologia empírica, justamente porque
seu limite epistemológico veda o passo metafísico, indicar as vias de superação possível
do limite que ela própria afirma: a psique.
499
Por outro lado, também não cabe à
psicologia empírica afirmar que o interdito kantiano não pode ser superado. Mas
permanece evidente o fato de que as hipóteses e modelos em que Jung traduz suas
observações psicológicas empíricas trazem em si certas implicações que não podem ser
desenvolvidas nos quadros da Crítica da Razão Pura, que lhe serve de referência, e é
isto o que obriga Jung a descartar ceticamente o problema da verdade. Esta é a tese do
porque [provavelmente] representam necessidades emocionais e, como tais, são fatos psicológicos que
não podem ser eliminados, [que é como aparecem] à compreensão empírica.” Cartas II, 02/05/1955, ao
Dr. Walter Robert Corti. “Como nenhuma necessidade humana é desprovida de fundamento, podemos
deduzir que a necessidade de afirmações metafísicas repousa sobre fundamento correspondente, mesmo
que este fundamento nos seja inconsciente.” Cartas III, 8/6/1957, a Bernhard Lang. “A psicologia pode
criticar a metafísica como sendo uma asserção humana, mas ela mesma não está em condições de fazer
asserções desse tipo. consegue estabelecer que elas existem como uma espécie de exclamação,
sabendo que nem esta ou aquela formulação são demonstráveis e, portanto, objetivamente justificadas,
devendo, no entanto, admitir a legitimidade da afirmação subjetiva [enquanto tal]. Asserções desse tipo
são manifestações psíquicas que fazem parte da natureza humana e não existe totalidade psíquica sem
estas, mesmo que não lhe possamos atribuir mais do que validade subjetiva.” OC X, § 845. Cf. ainda OC
XI, § 448, 835; OC XIV, § 558.
497
Cartas I, 07/04/1945, ao Pastor Max Frischknecht.
498
Ibid.
499
“Tudo o que nós tocamos ou com o qual nós entramos em contato transforma-se logo em [um]
conteúdo psíquico, e assim estamos [envolvidos por um] mundo de imagens psíquicas, das quais algumas
recebem o rótulo ‘de origem material’ e outras o tulo ‘de origem espiritual’. Mas [como essas coisas se
parecem enquanto coisas materiais em si ou coisas espirituais em si nós não sabemos], uma vez que
podemos percebê-las como conteúdos psíquicos, e nada mais. Mas não [posso dizer] que as coisas
materiais em si ou as coisas espirituais em si [são] de natureza psíquica, [embora possa ser que não haja
nenhum outro tipo de existência exceto a psíquica]. Se for este o caso, [então] a matéria não seria outra
coisa a não ser uma definição da idéia divina, como acha o tantrismo. Contra tal hipótese nada tenho a
objetar, mas [a mente] ocidental [renunciou], ainda que só recentemente, a afirmações metafísicas que per
definitionem não são verificáveis.” Cartas I, 09/01/1939, a V. Subrahmanya Iyer.
analista junguiano alemão Wolfgang Giegerich.
500
Para ele, a barreira epistemológica
kantiana imunizou a psicologia analítica contra o caráter especulativo, religioso e
metafísico inerente a seus conteúdos, ajudando “a encapsular os temas especulativos
experimentados ao atribuir-lhes o status de ‘fatos empíricos’”.
501
Com efeito, o ceticismo epistêmico de Jung, apesar de ser consistente, coerente e
rigoroso, não satisfaz à exigência de uma reflexão ulterior que seria mais adequada às
suas hipóteses e modelos principais a realidade da alma, a distinção arquétipo em
si/imagem arquetípica, a hipótese de um sentido objetivo e de um saber absoluto (ou
intuição intelectual) nos fenômenos sincronísticos, o platonismo do número-arquétipo
na hipótese do Unus Mundus, a universalidade das estruturas arquetípicas da alma
humana, o dinamismo do Si-mesmo e do processo de individuação. E por restringir-se
ao aspecto epistêmico, isto é, por não se completar em um rigoroso ceticismo prático,
paga o preço de deixar suas hipóteses e modelos como que “flutuando” de um ponto de
vista teórico, entregues, quanto à verificação última, tão-somente ao assentimento não
racional do sujeito da experiência. Wolfgang Giegerich coerentemente critica a posição
anti-metafísica de Jung e o passo na direção de uma “noção rigorosa de psicologia”,
recuperando, com o recurso a Hegel, a verdade implícita nas concepções de Jung mas
por ele deserdada em favor da adoção de um empirismo baseado em Kant.
Encarada sob este ângulo, a psicologia analítica herda a cisão kantiana e a ela
responde articulando-se ao que poderíamos chamar de “fideísmo pragmático”, que é
tão-somente a outra face do ceticismo metafísico de Jung. Mas, dada a conhecida
distância que tomava da atitude de simples crença, Jung seria o primeiro a protestar
contra essa expressão. Para justificá-la, é preciso examinar os sentidos que ele aos
termos “fé” e/ou “crença”.
“Fé” tem duplo sentido no uso junguiano: em primeiro lugar, opõe-se à
“experiência”, que se identifica a “saber”
502
; em segundo lugar, corresponde à atitude
500
Cf. GIEGERICH, W. “Jung’s Betrayal of his Truth: The Adoption of a Kant-based Empiricism and the
Rejection of Hegel’s Speculative Thought”, in Harvest. Journal for Jungian Studies, London, vol. 44, n.
1, 1998, p. 46-64; e id. The Soul’s Logical Life: Towards a Rigorous Notion of Psychology. Frankfurt am
Main: Peter Lang, 1998.
501
“Jung’s Betrayal of his Truth: The Adoption of a Kant-based Empiricism and the Rejection of Hegel’s
Speculative Thought”, p. 60-61.
502
“A consciência moderna abomina a fé e conseqüentemente as religiões que nela se baseiam. (...)[Ela
as considera válidas na medida em que o seu conteúdo de conhecimento parece concordar com sua
própria experiência do pano de fundo psíquico.] Ela quer saber, isto é, experimentar originalmente por si
mesma.” OC X, § 171. No mesmo sentido, Jung responde ao entrevistador da BBC que lhe pergunta se
acreditava em Deus: Não preciso crer. Eu sei” (“I don’t need to believe. I know.”) Cf. MCGUIRE, W. e
HULL, R.F.C. (eds.) C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 375. “A crença me
que afirma aquilo que não pode ser alcançado pela razão em virtude da “barreira
epistemológica”. Esses dois sentidos não são coincidentes e nem se superpõem
facilmente. Por exemplo: Jung fala a respeito da “experiência imediata” de Deus na
experiência religiosa. Pois bem: no primeiro sentido, não há “fé” nessa
experiência/saber, pois trata-se justamente de uma experiência direta semelhante às
experiências em que se baseiam os enunciados dos dogmas e símbolos religiosos
instituídos – e portanto não é uma crença nestes dogmas e símbolos; mas se
passamos à questão de estabelecer a objetividade extra-psíquica daquilo que foi
experimentado, então intervém o segundo sentido, que impõe a abstenção cética de
juízo (a psicologia empírica só pode falar da “imagem de Deus” enquanto fenômeno
psíquico, e não de Deus em si mesmo como seu correlato objetivo), e nesse segundo
sentido a objetividade fica entregue à “fé” ou crença pessoal, impulsionada pelo
impacto da presença de uma alteridade numinosa na estrutura da própria experiência.
Jung observa que nessa experiência o Eu é confrontado com um não-Eu psíquico
(referência ao arquétipo do Si-mesmo), e este é empiricamente indistinguível de
“Deus” – entenda-se: não se pode decidir pela imanência psicológica ou pela
transcendência objetiva desse “não-Eu” apenas com os recursos de uma psicologia
empírica.
Para atender ao objetivo primeiro de dar alívio aos sofrimentos humanos que são
endereçados ao psicólogo na situação clínica, Jung forja categorias de compreensão
provisórias, empíricas, julgando sua validade em primeiro lugar a partir dos efeitos
concretos que se poderiam verificar no estado da pessoa sofredora. Esse pragmatismo,
fortemente tributário de William James, revela-se, continuando com nosso exemplo,
quando ele observa a respeito da experiência religiosa:
“É indiferente o que pensa o mundo sobre a experiência religiosa: aquele que a tem possui, qual
inestimável tesouro, algo que se converteu para ele numa fonte de vida, de sentido e de beleza, conferindo
um novo brilho ao mundo e à humanidade. Ele tem pistis e paz. Qual o critério válido para dizer que tal
vida não é legítima, que tal experiência não é válida sendo essa pistis mera ilusão? Haverá uma verdade
melhor, em relação às coisas últimas, do que aquela que ajuda a viver? Eis a razão pela qual eu levo a
sério os símbolos criados pelo inconsciente. Eles são os únicos capazes de convencer o espírito crítico do
homem moderno. Eles convencem, subjetivamente, por razões antiquadas: são imponentes, convincentes,
palavra que vem do latim convincere, e significa persuadir. O que cura a neurose deve ser tão
convincente quanto a própria neurose e, como esta é demasiado real, a experiência benéfica deve ser
desagrada sob todos os aspectos, porque eu quero conhecer uma coisa, e então eu não tenho que acreditar
nela se eu a conheço. Se não a conheço, parece-me uma usurpação dizer ‘Eu acredito’, ou o contrário.
Penso que deveríamos ter no mínimo algumas razões mais ou menos tangíveis para nossas crenças.
Deveríamos ter no mínimo algum conhecimento que torne uma hipótese provável.” Letters II, 6/6/1958, a
Mrs. Otto Milbrand.
dotada de uma realidade equivalente. Numa formulação pessimista: deverá ser uma ilusão muito real.
Mas que diferença entre uma ilusão real e uma experiência religiosa curativa? É uma diferença de
palavras. (...) Ninguém pode saber o que são as coisas derradeiras e essenciais. Por isso devemos tomá-las
tais como as sentimos. E se uma experiência desse gênero contribuir para tornar a vida mais bela, mais
plena ou mais significativa para nós, como aqueles que amamos então poderemos dizer com toda a
tranqüilidade: ‘Foi uma graça de Deus’. (...) A aventura espiritual do nosso tempo consiste na entrega da
consciência humana ao indeterminado e indeterminável, embora nos pareça e não sem motivos que o
ilimitado também é regido por aquelas leis anímicas que o homem não [inventou], e cujo conhecimento
adquiriu pela ‘gnose’ no simbolismo do dogma cristão, e contra o qual os tolos e imprudentes se
rebelam; nunca, porém, os amantes da alma.”
503
O que é válido para o caso do incognoscível “Deus” aplica-se, de um ponto de vista
epistemológico, a todos os incognoscíveis indicados pelos modelos descritivos da
psicologia analítica. Assim, frustra-se a exigência de uma resposta racional à questão
sobre a natureza verdadeira daquilo que se apresenta à consciência na experiência
simbólica. Isso permite compreender a posição de Jung como uma articulação entre
o ceticismo epistêmico e uma espécie de “fideísmo razoável”. Pois é preciso lembrar
que a premissa sobre a qual repousa toda a compreensão psicológica de Jung e sobre
a qual insistimos tanto anteriormente – a premissa da realidade da psique – é, em
termos epistemológicos rigorosos, uma hipótese de valor heurístico. É ela que vem
mitigar o ceticismo epistêmico de Jung. Mas, encarada a partir de uma posição cética
radical, como aquela implicada no ceticismo metafísico assumido em honra a Kant,
em última análise essa hipótese se mostra indistinguível de uma crença – razoável,
plausível, verossímil, mas nem por isso menos crença, e uma crença que já fazia
parte do repertório de pressuposições do contexto cultural em que Jung se formou.
Em linguagem junguiana, ela estruturava a “equação pessoal” de que a psicologia
analítica é expressão.
Aqui se revela o significado do “mito do sentido” oferecido na psicologia
analítica. Para uma consciência moderna, e especialmente em face da suspeita de
ilegitimidade epistemológica da razão metafísica, a afirmação de um sentido radical da
503
OC XI, § 167-168. Também sobre a legitimidade e realidade das supostas “ilusões”, cf. OC XVI, §
111. Pode-se perceber, por outro lado, como o pragmatismo médico de Jung subscreve-se à tradição grega
da retórica, sistematizada em Aristóteles. Pedro Laín-Entralgo sintetiza a posição aristotélica sobre a
natureza da palavra persuasiva: “A missão da retórica não é, pois, persuadir, mas descobrir o que de
persuasivo possa haver em cada caso, como a missão da medicina não é curar – assim, em absoluto -, mas
averiguar como e até que ponto é curável cada doente ([Retórica] I, 1, 1355, b 10-15). À sua maneira,
Aristóteles segue a idéia do paralelismo entre a medicina e a retórica que Platão havia exposto no Fedro.
La Curación por la Palabra em la Antigüedad Clásica. Madrid: Revista de Occidente, 1958, p. 249-250.
Laín-Entralgo lembra também que pistis (crença, confiança) e peitho (persuasão) provêm de uma mesma
raiz, e portanto aquilo que persuade alguém é igualmente aquilo em que se crê ou confia (pistis) (cf. op.
cit., p. 250-251). Porém, a persuasão não elimina a problemática da verdade e nisso o ceticismo de Jung
afasta-se da posição aristotélica.
existência torna-se extremamente problemática.
504
Nesse clima adverso, os frutos da
metafísica são deportados para o campo do mito (epistemologicamente entendido). Na
medida em que Jung afirma a necessidade imperiosa de se viver um sentido, e uma vez
que seu ceticismo não lhe permite avançar pela trilha perdida ou interditada da
metafísica, lhe resta de fato oferecer um mito do sentido o que significa que o
sujeito faz a experiência do sentido (prescindindo da em uma tradição) mas tem que
suplementá-la com a crença, que o fundamento transcendente de sua experiência por
princípio subtrai-se quer à afirmação, quer à negação por parte de uma inteligência
cética.
A “traição de sua própria verdade” por Jung, denunciada por Giegerich, significa
que ele se recusou a filosoficamente chegar a um acordo com o absoluto, o
transcendente”, e a “perceber seu viés kantiano como devastador para a psicologia”,
505
pois a forma gica em que ele assentou sua teorização “preclui absolutamente uma
conexão entre (...) os mundos fenomênico e numênico”.
506
Sem uma tal reflexão
ulterior, a psicologia analítica encerra-se em sua própria “bolha”, como diz Giegerich, e
não consegue responder convincentemente à acusação de ser apenas mais uma das
“ilusões” de efeito terapêutico, tão comuns em nosso exuberante e triste mercado de
desejos.
507
Como o próprio Jung é o primeiro a admitir, em virtude das exigências práticas e
prementes da situação clínica, ele não pôde sistematizar e aprofundar filosoficamente
suas concepções psicológicas
508
. Seguindo a sua sugestão e aplicando à face teórica da
psicologia analítica a perspectiva da equação pessoal”, bem como seu método
comparativo, podemos analisar morfologicamente a configuração daquilo que
chamamos o perfil filosófico do seu pensamento e assim compará-lo com correntes do
contexto cultural em que ele se forjou. Tal comparação descortina um outro cenário,
bem mais condizente com os pressupostos, implicações e exigências de suas hipóteses e
modelos psicológicos do que o cenário visado por sua obstinada – e equivocada
504
A esse respeito veja-se o ensaio de Wolfgang GIEGERICH: The End of Meaning and the Birth of
Man. An Essay about the State Reached in the History of Consciousness and an Analysis of C.G.Jung’s
Psychology Project. www.beamish.org/Files/Giegerich_EndofMeaning.pdf.
505
GIEGERICH, “Jung’s Betrayal of his Truth: The Adoption of a Kant-based Empiricism and the
Rejection of Hegel’s Speculative Thought”, p. 50.
506
Id., p. 52. A postulação do “arquétipo em si”, entidade evidentemente metafísica, salva, segundo Jung,
a premissa teológica da transcendência (cf. Cartas II, 30/08/1951, ao dr. H.). Mas Jung se abstém de
trabalhar as conseqüências e as exigências de sua própria postulação.
507
Giegerich afirma que a intenção expressa de reparação do crime de Fausto contra Filemon e Báucis,
assumida por Jung, fracassa em virtude dessa “traição de sua verdade”.
508
Cf. OC XVI, § 181; OC XVIII, § 1731.
reivindicação por uma cientificidade não filosófica. Ela revela que a inteligência cética
de Jung era habitada por uma alma romântica, que ele tentava a custo camuflar, negar e
reprimir.
2. Jung, o Romantismo e o Idealismo Alemão
Ao longo desse trabalho, fizemos algumas vezes alusão às tangências e mesmo
ao parentesco entre o pensamento de Jung e a Naturphilosophie idealista e romântica.
Na verdade, mais do que uma mera coincidência casual e superficial de noções, temas e
linhas de raciocínio, cremos encontrar nesse parentesco uma chave adequada de
compreensão histórica da psicologia analítica, que permite referendar a necessidade e a
legitimidade de um desenvolvimento, no plano teórico, do legado de Jung na direção de
matrizes filosóficas mais adequadas à sua real essência epistêmica.
Esta perspectiva não é original.
Henri F. Ellenberger afirma que “dificilmente
um único conceito de Freud ou Jung que não tenha sido antecipado pela filosofia da
natureza e pela medicina Romântica.”
509
Sonu Shamdasani igualmente enfatiza a
profunda dependência histórica da psicologia de Jung ao movimento romântico.
510
Visando compreender certas inovações da psicanálise pós-freudiana, Suzanne Kirschner
expõe as origens religiosas e românticas das noções de individuação e integração
511
, que
estão antecipadas e são centrais em Jung. Richard Noll, num livro que alcançou
repercussão internacional, aponta o perfil romântico da psicologia de Jung, mas para
desqualificá-la como não-científica”, ou “uma regressão ou degeneração para a
filosofia natural oitocentista”
512
o que, para sua perspectiva positivista, equivale a
“falsa” ou “não digna de crédito”.
509
The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of Dynamic Psychiatry. Nova York:
Basic Books, 1970, p. 205.
510
Cf. Jung and the Birth of Modern Psychology, passim.
511
KIRSCHNER, S.R. The Religious and Romantic Origins of Psychoanalysis. Individuation and
Integration in Post-Freudian Theory. Cambridge: C.U.P., 1996. Também dedicado à explicitação dos
laços entre o Romantismo alemão e a psicanálise de Freud é o livro de Ricardo Sobral de Andrade, A
Face Noturna do Pensamento Freudiano. Freud e o Romantismo Alemão. Niterói: Editora da U.F.F.,
2001. Muitos dos vínculos que o autor descobre aplicam-se também, e talvez ainda mais propriamente, a
Jung. Cf. também HUBBS, V. “German Romanticism and C.G. Jung: Selective Affinities”, in Journal of
Evolutionary Psychology, vol. 4, nº 1-2, 1983, p. 8-20. O livro de Paul Bishop, Synchronicity and
Intelectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung, expõe com precisão os vínculos da psicologia de
Jung ao Romantismo.
512
O Culto de Jung. Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Ática, 1996, p. 298-299. Para
uma crítica da posição de Noll, veja-se BARRETO, M.H. “Observações a respeito de O Culto de Jung,
O reconhecimento da afinidade do pensamento de Jung ao Romantismo não
significa que ele tenha partido intencional e imediatamente do conteúdo da filosofia da
natureza romântica, ou de qualquer outra posição filosófica, na elaboração de sua
psicologia.
513
Ele não se cansa de repetir, quanto a isso, que não é um “filósofo”, e sim
um “empirista” que não tem “postulados”, “sistema” nem “doutrinas”, e que se atém aos
“fatos”.
514
Porém, como vimos, Jung reconhece que sua psicologia empírica depende de
uma premissa. E, como ele mesmo afirma, “na medida em que a psicologia leva em
conta suas premissas, torna-se evidente sua vinculação com a filosofia e a história das
idéias.”
515
O que é premissa para Jung – a realidade da psique ou alma - corresponde a uma
verdade estabelecida para a maior parte da tradição filosófica até Hume e Kant, quando
então ela é posta em causa, problematizada, e a partir de então abrem-se-lhe três grandes
alternativas, se não se quiser limitá-la ao estatuto que lhe é concedido no criticismo:
trabalhada mediante uma crítica do interdito kantiano, ela é restituída como doutrina
racionalmente estabelecida, mas profundamente transformada, no interior dos sistemas
idealistas pós-kantianos; ou então é reduzida de modo materialista-mecanicista; ou,
finalmente, é obrigada a se converter ceticamente em “premissa”.
Considerando a questão nestes termos, é reveladora a interpretação que Jung faz
do empenho de Kant na Crítica da Razão Prática como sendo “uma grandiosa tentativa
de valorizar o esse in anima em termos filosóficos”
516
, pois, como se sabe, é na segunda
Crítica que o acesso ao númeno, interditado na Crítica da Razão Pura, vai ser
de Richard Noll”, in Síntese Nova Fase, v. 23, n. 74 (1996), p. 405-415. E para uma refutação das falácias
subjacentes à sua reconstrução das origens do “movimento carismático” junguiano, sobre a qual se
baseiam suas interpretações bombásticas, veja-se SHAMDASANI, S. Cult Fictions. C.G. Jung and the
Founding of Analytical Psychology. Londres: Routledge, 1998.
513
Ainda que eu deva muito à filosofia e me tenha beneficiado de sua rigorosa disciplina do método de
pensar, sinto diante dela aquele respeito sagrado que é inato a todo observador dos fatos. A grande
quantidade de conceitos e possibilidades de conceitos, que serpeiam na história da filosofia como um
largo rio, inunda facilmente o jardinzinho experimental e bem demarcado do [empirista], ou ainda seu
campo bem arado, ou mesmo suas terras ainda inexploradas. Confrontando o fluxo de acontecimentos
com olhar não preconcebido, deve moldar para si um instrumento intelectual ‘livre de preconceitos’, e
retrair-se temerosamente de todas as possibilidades de pontos de vista que a filosofia lhe oferece em
exagerada quantidade como se fossem tentações perigosas.” OC XVIII, § 1730.
514
Cf., p. ex., OC XVIII, § 1731. Esta declaração precisa ser contextualizada para não ser tomada como
uma simples contradição a tudo o que Jung diz a respeito da equação pessoal. Assim, mais adiante ele
afirma: “Seria fora de propósito imaginar que pudéssemos numa disputa honrosa com o Barão de
Münchhausen livrar-nos de [nosso próprio peso] e, assim, descartar o último e mais fundamental dos
pressupostos, isto é, nossa própria disposição mental.” OC XVIII, § 1732.
515
OC XVIII, § 1739.
516
OC VI, § 63. Sintomática é a omissão à Crítica da Faculdade do Juízo, que Jung conhecia a ponto de
citá-la textualmente em determinada ocasião. Cf. OC IV, § 688. Aparentemente ele se interessou pela
segunda parte da terceira Crítica (“Crítica da Faculdade de Juízo Teleológica”), desconsiderando a
primeira (“Crítica da Faculdade de Juízo Estética”).
permitido como fundamento da própria razão prática. Parece que isso, na interpretação
de Jung, seria um equivalente filosófico da premissa da Wirklichkeit da psique, o que
emprestaria legitimidade à extensão que ele à realidade objetiva kantiana. De fato,
Kant afirma que os postulados da razão prática “dão às idéias da razão especulativa em
geral (por intermédio da sua relação ao prático) realidade objetiva e habilitam-na para
conceitos cuja possibilidade, de outro modo, ela nem sequer poderia pretender
afirmar.”
517
Mas em Kant essa realidade objetiva fica necessariamente circunscrita ao
domínio prático, não ampliando o conhecimento especulativo. O Idealismo Alemão
unificará o fundamento dos domínios teórico e prático, ultrapassando a posição de Kant.
Jung, em sua interpretação da Crítica da Razão Prática, faz um movimento análogo.
Porém, optando por uma problemática fidelidade ao interdito kantiano, e recusando
tanto a superação idealista quanto a redução materialista, lhe restava seguir o
caminho do ceticismo epistêmico para sua psicologia, sem tentar levar adiante aquilo
que estava implícito em várias de suas noções e hipóteses centrais e que, como
dissemos, não encontrava espaço adequado no interior do criticismo. Nessa restrição
estaria, na expressão forte de Wolfgang Giegerich, a traição de sua verdade.
De qualquer forma, não é portanto casual a possibilidade de indicarmos
analogias entre a psicologia analítica e concepções dos sucessores de Kant. O próprio
Jung reconhece o paralelismo e as afinidades entre suas “descobertas” e vários pontos
do Idealismo Alemão. O fato de ele considerar a época posterior a Kant, sob o ponto de
vista filosófico, como um “contramovimento lógico” e designá-la indistintamente sob a
rubrica “Romantismo” revela sua compreensão do vínculo entre a psicologia e a
filosofia desse período:
“Kant traçou uma linha divisória através do mundo mental que tornou impossível até para o mais
[ousado] salto da especulação penetrar no objeto. O romantismo foi o contramovimento lógico,
expresso com mais intensidade e mais disfarçadamente oculto em Hegel, o grande psicólogo vestido
de filósofo.”
518
Nas poucas vezes em que se refere ao pensamento hegeliano, Jung o trata
segundo a perspectiva psicológica do esse in anima e da equação pessoal, e assim
considera Hegel “um psicólogo camuflado” que “projetava as grandes verdades da
517
KANT, Crítica da Razão Prática, A 238 (na tradução portuguesa de Artur Morão: Lisboa, Edições 70,
1989, p. 151).
518
OC XVIII, § 1734.
esfera do sujeito sobre um cosmo por ele próprio criado.”
519
Por ser considerado um
romântico, Hegel aparece a Jung como fazendo a transição para a psicologia e, por isso,
a sua forma filosófica parece-lhe “inautêntica”, um mero “veículo”.
520
A filosofia de
Hegel é “uma confissão altamente racionalizada e prodigamente decorada de seu
inconsciente”
521
, e Hegel é portanto um “psicólogo camuflado” cujo pensamento exibe
coincidências “notáveis” com as descobertas de Jung sobre o inconsciente coletivo.
522
Segundo Wolfgang Giegerich, Jung assume de antemão que
“a barreira de Kant é uma verdade indiscutível e na verdade define os limites da razão como tal. Mas isso
teria de ser demonstrado. O que Hegel fez foi interpretado de modo não crítico por Jung como
‘transgressão dos limites da razão’. Jung simplesmente desqualificou a cuidadosa crítica filosófica de
Hegel a Kant como não merecedora de uma resposta intelectual. Em vez disso, ele argumentou contra
Hegel por meio de rótulos psicológicos, mas tal aplicação de diagnósticos psicológicos para difamar o
oponente ao invés de refutar o que ele diz é deselegante.”
523
Diríamos mais: Jung perpetra contra Hegel o excesso do “psicologismo
desenfreado” que ele mesmo condena ao defender a legitimidade da crítica
psicológica.
524
E no entanto, esse psicologismo inadvertido resulta, como bem aponta
Giegerich, da entronização dogmática de Kant como “o” filósofo, seguindo-se então o
corolário de que a filosofia que ultrapassa a barreira kantiana não seria rigorosamente
filosófica, mas em grande parte uma psicologia projetada, camuflada, e romântica. Mas
inversamente, na medida em que pomos em suspenso esse dogmatismo kantiano sobre o
qual se apoia o ceticismo epistêmico de Jung, podemos interpretar sua psicologia, em
sua dimensão teórica, como uma filosofia camuflada”. Na verdade, é no próprio Jung
que encontramos o convite a tal inversão, quando ele diz honestamente: “Sempre fui de
opinião que Hegel era um psicólogo inautêntico [uneigentlich], como eu sou um
519
OC VIII, § 358.
520
“Ao contrário de Kant, Hegel parece-me um pensador romântico e, com isso, um típico filho de seu
tempo; é romântico também em sua transição para a psicologia. A forma [de pensamento] [denkerische
Form] já não é autêntica, mas um veículo.” Cartas I, 31/07/1935, ao prof. Friedrich Seifert (que escrevera
um ensaio intitulado “Dialética da Idéia e Dialética da Vida. O Problema dos Opostos em Hegel e Jung”).
“Para mim é mais do que óbvio que aquelas afirmações da Filosofia que transcendem as fronteiras da
razão são antropomórficas e não possuem nenhuma outra validez além [daquela] que [compete] às
afirmações psiquicamente condicionadas. Uma filosofia como a de Hegel é uma auto-revelação [do pano
de fundo psíquico] e, filosoficamente, uma presunção.” OC VIII, § 360.
521
Cartas III, 27/04/1959, a Joseph F. Rychlak
522
Cartas III, 27/04/1959, a Joseph F. Rychlak: “Na minha opinião bem incompetente, [Hegel] não é
[nem mesmo] um filósofo propriamente, mas um psicólogo camuflado.(...) Nunca estudei propriamente
Hegel, isto é, suas obras originais. [Não nenhuma possibilidade de inferir] uma dependência direta,
mas, como disse, [Hegel professa as principais tendências] do inconsciente e pode ser chamado un
psychologue raté’. Naturalmente uma coincidência notável entre certos pontos da filosofia de Hegel e
minhas descobertas sobre o inconsciente coletivo.”
523
GIEGERICH, ‘Jung’s Betrayal of his Truth’, p. 48-49.
524
Cf. OC IX-1, § 151.
filósofo inautêntico. Mas sobre o que é ‘autêntico’ cabe ao espírito da época decidir.”
525
E examinando mais de perto essa “camuflagem” que encobre a “inautenticidade”
filosófica de Jung, percebemos claramente que ela se assemelha às correntes idealistas e
românticas que, segundo ele, fazem a transição para a psicologia. Em resumo: se o
Romantismo prepara o caminho para a psicologia analítica, a psicologia analítica por
sua vez participa da visão de mundo romântica, e essa relação incide sobre o plano
teórico.
Foi com surpresa que, tardiamente, Jung se deu conta pela primeira vez da
afinidade de sua psicologia ao Romantismo.
526
Mas logo a seguir ele aprofunda esse
reconhecimento:
“Não se pode negar que certas premissas significam reassumir idéias que são características do tempo do
romantismo. Mas não são tanto os pressupostos ideais que justificam esta visão histórica, e sim o ponto
de vista fenomenológico, chamado moderno, da ‘[pura] experiência’ que não apenas foi antecipado de
certo modo pelo romantismo, mas que realmente pertence à sua verdadeira natureza. É mais próprio do
romantismo ‘experimentar’ a psique do que ‘investigá-la’. Foi novamente a época dos médicos filósofos,
um fenômeno que se manifestou pela primeira vez na época pós-Paracelso, sobretudo na alquimia
filosófica, cujos representantes mais importantes eram médicos. Correspondendo ao espírito pré-científico
da época, a psicologia romântica do início do século XIX foi filha da filosofia romântica da natureza. (...)
O paralelismo com minhas concepções psicológicas justifica designar minhas idéias como ‘românticas’.
Pesquisa semelhante [sobre seus antecedentes filosóficos] também justificaria esta designação, pois toda
525
Cartas I, 31/07/1935, ao prof. Friedrich Seifert. De um ponto de vista histórico-filosófico, a
vinculação de Hegel ao Romantismo é contestável: apesar de sua doutrina ser inconcebível sem o
Romantismo, Hegel se afastou dos românticos e, na Fenomenologia do Espírito, faz a crítica do
movimento como um todo. Segundo Gerd Bornheim, “o pensamento de Hegel deve ser considerado o
momento em que o Romantismo se supera a favor de um sistema plenamente racional. É bem verdade
que seu sistema pode ser interpretado como o ápice do Romantismo, mas suas idéias não se coadunam
facilmente com as concepções desenvolvidas pelo chamado grupo de Jena.” BORNHEIM, G. “Filosofia
do Romantismo”, in GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1985
2
, p. 75-111,
aqui p. 98, nota 40).
526
Em um prefácio ao livro de Rose Mehlich sobre a psicologia de Immanuel Hermann Fichte, filho de
J.G. Fichte, de 1935, onde Jung diz: “Conheço naturalmente Leibniz, C.G. Carus e E. von Hartmann, mas
não sabia a[agora] que minha psicologia era ‘romântica’.” OC XVIII, § 1732. Neste prefácio, Jung
explica a afinidade entre sua psicologia e o Romantismo psicologicamente, como resultado de disposições
típicas semelhantes: “Se existe, pois, um tipo de mente, isto é, uma disposição que pensa e interpreta
‘romanticamente’, sempre aparecerão conclusões semelhantes, quer sejam derivadas do sujeito ou do
objeto.” Ibid., § 1732. E complementa depois: “Será o [empirista] em mim, ou será porque a analogia não
é identidade que me faz considerar o ponto de vista ‘romântico’ simplesmente como ponto de partida e
suas afirmações como ‘material comparativo’?” Ibid., § 1734. Esta explicação psicológica coincide com a
interpretação filosófica de Benedito Nunes sobre a “sensibilidade romântica” como uma categoria
psicológica universal. Mas, como ressaltam tanto Benedito Nunes quanto Gerd Bornheim, o Romantismo
precisa ser compreendido também como fenômeno histórico bem determinado, para que a universalidade
da categoria psicológica não redunde numa unilateralidade exagerada, que se atém às semelhanças
estruturais dos vários “romantismos” e perde de vista as profundas diferenças entre constelações culturais
e históricas distintas. Cf. BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, e NUNES, B. “A Visão Romântica”,
in GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1985
2
, p. 51-74. Jung também
reconhecia a dimensão histórica de sua afinidade romântica, mas tendia a interpretá-la romanticamente, o
que significa dar a primazia ao ponto de vista antropológico-psicológico.
psicologia que conhece a psique como experiência é ‘romântica’ e ‘alquimista’ [do ponto de vista] da
história.”
527
Posteriormente Jung vai mais longe e afirma que o simples fato de falarmos do
inconsciente é uma herança direta do espírito romântico.
528
Contudo, ele continuará
tentando se dissociar do movimento romântico, apelando para seu kantismo leia-se:
ceticismo epistemológico, e recusando as “hipóstases metafísicas românticas” e seus
juízos transcendentais.
529
Em virtude dessa atitude, Paul Bishop fala de um
“Romantismo relutante” em Jung.
530
É sabido como, após estudos aprofundados sobre o simbolismo alquímico, Jung
passou a ver na alquimia a precursora medieval não tanto da química moderna, mas de
sua psicologia analítica. Contudo, antes de ter sido reinterpretada pelo pensamento
psicológico de Jung no século XX, a alquimia, bem como boa parte da tradição
hermética, fora objeto de interesse exatamente do Romantismo alemão, e a concepção
romântica de natureza é tributária da concepção alquímica, o que nos permite referendar
a posição de Jung quando interpõe a psicologia romântica, derivada da
Naturphilosophie oitocentista, como um elo histórico entre a psicologia analítica e a
alquimia. Por este motivo, ainda que paralelos e analogias possam ser estabelecidos
entre Jung e Hegel, ou entre Jung e Fichte, parece-nos que o primum analogatum para
sua psicologia, na comparação com as matrizes filosóficas do Romantismo, encontra-se
na filosofia da natureza de Schelling, que exercerá forte influência nos círculos
românticos, e assim é através dessa convergência que passa a afinidade de Jung ao
Romantismo propriamente dito.
531
Porém, não é nosso propósito aqui comparar diretamente a psicologia analítica
com a filosofia do Romantismo, e isto por um motivo bem simples: a psicologia
analítica evidentemente não é uma filosofia, no sentido rigoroso do termo quando
muito seria uma “filosofia inautêntica”, se levarmos a sério a bem-humorada confissão
527
OC XVIII, § 1739-1740.
528
No seminário sobre a interpretação psicológica dos sonhos infantis (1938-1939), citado em
SHAMDASANI, Jung and the Making of Modern Psychology, p. 167.
529
Cf. Cartas II, 4/02/1943, a Arnold Künzli, e 2/05/1955, a Walter R. Corti.
530
Cf. BISHOP, Synchronicity and Intellectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung, p. 10.
531
A leitura dos escritos de Carl Gustav Carus, médico romântico ligado aos círculos da
Naturphilosophie, e de seu discípulo filósofo, Eduard von Hartmann, é decisiva na formação de Jung, e
principalmente para sua concepção de natureza e inconsciente. Portanto, e apesar de Jung ter lido
Schelling, a mediação com o espírito do Romantismo passa por Carus e von Hartmann - pondo-se entre
parênteses a afinidade “tipológica” apontada por Jung. Cf. SHAMDASANI, Jung and the Making of
Modern Psychology, capítulo 3 (“Body and Soul”).
do próprio Jung. O empirismo pragmático que governa a sua construção, em alicerces
céticos, não favorece a sistematização, o que tornaria sem sentido a comparação direta
com os sistemas metafísicos fichteano e schellinguiano. Assim, pareceu-nos preferível
proceder à comparação indiretamente, e evidenciar a “alma romântica” de Jung
mostrando a coincidência entre noções centrais de seu pensamento e certas idéias
diretrizes da visão romântica do mundo, a qual é historicamente tributária das espécies
metafísicas do idealismo pós-kantiano.
532
Isso, parece-nos, é suficiente para respaldar
nossa posição de que, quanto à dimensão teórica, a psicologia analítica reclama um
aprofundamento que revele a sua verdadeira referência epistêmica filosófica, e não
científica como queria Jung. Tal aprofundamento – que não nos cabe fazer aqui –
poderia seguir várias linhas distintas, sendo que o neoplatonismo parece-nos ser uma
opção preferencial. Com isto, nossa interpretação da psyches therapeia junguiana como
forma de sabedoria prática encontraria a sua legitimação mais ampla. E,
incidentalmente, um tal aprofundamento superaria a “dissociação neurótica” entre
praxis e episteme de que padece a psicologia analítica, que, ao esquivar-se de sua
verdade, perde também a oportunidade de alcançar a sua real identidade.
Como ponto de partida, devemos recordar que o Romantismo define-se por uma
relação de oposição ao Iluminismo, e realiza a crítica do racionalismo esclarecido que,
submetendo a atividade humana a um excesso de normas e convenções, levara a um
estreitamento do homem e de seus valores.
533
Conseqüentemente, apesar de não
desprezarem a razão como o comprova o interesse e a influência sobre eles exercidas
pelas matrizes filosóficas de Fichte e Schelling -, os românticos a subordinavam ao
sentimento, que ganha assim um lugar privilegiado em sua visão de mundo. O
sentimento, como categoria psicológica definidora do Romantismo, deve ser entendido
não como simples estado afetivo, mas como interioridade, intimidade e espiritualidade –
o “objeto da ação interior do sujeito”.
534
532
“As matrizes filosóficas da visão romântica do mundo podem ser localizadas nas espécies
complementares desse idealismo a metafísica do Espírito de Fichte e a metafísica da Natureza de
Schelling -, que derivaram do criticismo de Kant. Não se deverá, contudo, identificar a visão romântica
do mundo com a filosofia do Romantismo, que designa o conjunto dos sistemas idealistas e das doutrinas
posteriores a Kant, inclusive a teologia sentimental de Schleiermacher, o realismo mágico de Novalis,
menos o idealismo de Hegel.” NUNES, “A Visão Romântica”, p. 52. Em nossa comparação, apoiamo-nos
substancialmente neste texto de Benedito Nunes.
533
Cf. BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 79.
534
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 52.
Essa mesma valorização do sentimento encontra-se em Jung, que o considera
uma das quatro funções de orientação da consciência, conforme a tipologia psicológica
que propõe.
535
Num outro sentido, Jung trata do sentimento em vinculação com os
estados afetivos não-racionais as emoções. E, por fim, é indiscutível a primazia que
Jung confere à interioridade, base daquela ênfase sobre a “experiência da psique”, que
ele aponta como sendo um dos traços distintivos da mentalidade romântica e que
explica a afinidade entre sua psicologia e o Romantismo, por oposição à atitude
racionalista de “investigar a psique”.
536
Daí provém sua insistência romântica - sobre
o “irracional”, que não deve ser entendido como ininteligível ou contrário à razão, mas
simplesmente como tudo o que transcende a necessidade racional por não ser posto pela
razão humana:
“Nossa vontade é uma função dirigida pela reflexão; logo, ela depende da qualidade da nossa reflexão. A
reflexão a verdadeira reflexão tem que ser racional, isto é, sensata. Mas já foi provado, ou será
possível provar algum dia, que vida e destino concordam com a nossa razão humana ou são racionais?
Pelo contrário, temos base para sustentar que são irracionais ou, em última análise, que m um
fundamento que transcende a razão humana. (...) A plenitude da vida tem normas e não as tem, é racional
e irracional. Por isso a razão e a vontade fundada na razão têm validade em pequenos espaços da
vida.”
537
Assim, são “irracionais”, no sentido junguiano, o acaso, a liberdade, a vida, a
natureza (só apreendida probabilisticamente pela racionalidade científica), as funções
psicológicas da sensação e da intuição.
538
Portanto, quando Jung critica o “racionalismo”, isso deve ser entendido na
mesma linha da crítica romântica, ou seja, não uma deposição da razão, mas uma recusa
dos seus excessos que atentam contra a vida.
539
535
Cf. OC VI, capítulo X (“Descrição Geral dos Tipos”). Jung considera a função sentimento como uma
função racional, judicativa com relação a valores e gostos. Note-se, contudo, que a valorização do
sentimento, ao contrário do que acontece em muitos de seus seguidores, não significa em Jung
desvalorização da razão que ele designa como “função pensamento” - , como também não significa
privilégio incondicional da função sentimento sobre as demais.
536
Cf. OC XVIII, § 1739.
537
OC VII, § 72. Para aprofundar esse sentido, leia-se OC IX-1, § 64-69.
538
“Dados naturais (por exemplo, a densidade máxima da água a + C) são sempre irracionais. Sendo a
afirmação científica indutiva, isto é, partindo de dados irracionais, ela deve ser irracional na medida em
que é descritiva. Apenas as [deduções] são lógicas.” Cartas I, 07/04/1945, ao pastor Max Frischknecht.
539
“A intelectualização, quando ditatorial, leva inevitavelmente a um afastamento da natureza, ficando
esta reduzida a objeto do pensamento racional, quer científico, quer filosófico.” BORNHEIM, “Filosofia
do Romantismo”, p. 79. A defesa romântica e junguiana do “irracional” significa, no fundo, uma
tentativa de restituição do vínculo com a natureza e com a tradição.
No centro da visão do mundo romântica está uma forma típica de sensibilidade
conflitiva, produzida por antagonismos insolúveis, e por isso mesmo animada por uma
tendência à união dos opostos, que se expressa no afã de totalidade e de unidade tão
característico do espírito do Romantismo. Este seria o núcleo psicológico universal da
“atitude romântica”.
540
A conflitividade que marca a sensibilidade romântica resulta da experiência da
dissociação dos opostos, que, traduzida em outros termos, expressa a dolorosa
consciência da finitude. Assim, a tendência à conciliação dos opostos corresponde, no
fundo, a um anseio irresistível pelo in-finito, à busca nostálgica de reconstituição de
uma unidade perdida.
541
Em Jung, encontramos esta mesma sensibilidade. Pessoal e profissionalmente,
ele viveu o dilaceramento dos opostos ao longo de toda a sua vida, e todo o esforço de
sua concepção psicoterapêutica representa uma forma de aliviar a “desunião consigo
mesmo”, raiz do sofrimento psíquico. Se para Jung a conflitividade e a fragmentação
não podem ser definitivamente ultrapassadas, representando o “fardo de ser humano”
542
,
não obstante ele percebeu em ação na alma humana tanto uma força diferenciadora
quanto uma integradora, e traduziu a interação dinâmica dessas tendências opostas na
540
Sob o ponto de vista histórico, a visão de mundo romântica ganha ascendência quando essa
sensibilidade conflitiva é acirrada em virtude das mudanças estruturais por que passa a sociedade
européia a partir do surgimento do capitalismo. Cf. NUNES, “A Visão Romântica”, p. 52-53. Uma
contribuição, em perspectiva sociológica e histórica, à compreensão da formação do ethos romântico a
partir das vicissitudes da ética protestante encontra-se em CAMPBELL, C. A Ética Romântica e o
Espírito do Consumismo Moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. As conseqüências “irônicas” (no sentido
sociológico presente em Max Weber) da degradação da ética romântica apontadas por Campbell, dentre
elas sobressaindo-se o fenômeno da insaciabilidade do consumismo moderno movido por um “hedonismo
autônomo e imaginativo”, vêm corroborar o veredicto de Hegel sobre a “má infinitude” definidora do
espírito romântico.
541
“Uma das categorias básicas, fundamentais, que permitem compreender o Romantismo é a da unidade.
Podemos mesmo dizer que todo o movimento se desdobra sob o signo da unidade. (...) A reconquista da
unidade, do infinito sempre distante, determina a nostalgia romântica. Por isso mesmo, a nostalgia não é,
como pretendem certos autores, um fenômeno primeiro do Romantismo. Primeiro, é o sentido do infinito,
do absoluto interior à alma humana condenada à sua finitude, e que se extravasa no romântico sob forma
de nostalgia, de Sehnsucht. (...) Por isso o eu, a subjetividade, não pode ser compreendido meramente
como uma realidade psicológica. (...) esse subjetivismo tende a ser transcendido através de um
alargamento sempre maior do eu, dando-lhe uma dimensão metafísica que o confunde com o Universo e,
em última análise, com o Absoluto.” BORNHEIM,”Filosofia do Romantismo”, p. 91-92.
542
“Posso acompanhá-lo em seu processo de ‘tornar-se inteiro e santo’, [ou individuação,] mas não posso
[subscrever] suas afirmações com relação ao ‘eu em completa posse de si mesmo’, e ao amor [universal]
que tudo reveste, ainda que com [elas] o senhor se aproxime perigosamente do ideal da ioga [:]
nirdvandva(livre dos opostos). Sei que no decurso [do processo] cintilam semelhantes momentos de
libertação. Mas eu os temo, pois sinto em tal momento que sacudi o fardo de ser humano, e que ele
voltará a mim com peso dobrado.” Cartas II, 28/03/1955, ao padre Lucas Mensz. “Nós somos sempre
humanos, e não deveríamos esquecer nunca que carregamos todo o fardo de sermos somente humanos”.
CW XVIII, § 169.
noção de processo de individuação.
543
Enfocada pelo ângulo da conciliação dos
opostos, a individuação representa o impulso à unidade e totalidade, que na psicologia
analítica é referida ao arquétipo do Si-mesmo.
A cisão estrutural que afeta a subjetividade humana, como conseqüência da
oposição entre a consciência e o inconsciente, não pode ser suspensa, como afirmava
Freud, resultando disso a inevitabilidade do conflito psíquico. Jung mantém a posição
freudiana,
544
mas indica no símbolo, produto da função transcendente, a forma
espontânea e natural que a psique encontra para conciliar os opostos. O símbolo, que,
como temos insistido, é uma noção axial da psicologia analítica, evidentemente supõe a
cisão em opostos. Deste modo, a coniunctio oppositorum, que Jung estudará com afinco
na tradição alquímica, mas encontrando a sua presença em todas as tradições religiosas
e culturais, ocupará um lugar privilegiado no seu pensamento. A ela será dedicada sua
última e maior obra: Mysterium Coniuntionis, de 1955-56, que é, como indica o sub-
título, uma “investigação sobre a separação e síntese dos opostos psíquicos na
alquimia”.
545
Portanto, não o modelo descritivo da psique segundo a distinção consciência-
inconsciente, como também todas as noções centrais de símbolo, função transcendente,
individuação, Si-mesmo, fazem referência à temática romântica circunscrita pelas idéias
diretrizes de opostos-unidade-totalidade.
546
543
De passagem, cabe observar que essas duas tendências implicam-se estruturalmente segundo um
polarismo dialético. A disputa de interpretações de Jung entre o privilégio a ser dado à unidade ou à
pluralidade psíquicas não atenta para essa dependência estrutural: não se trata de optar entre uma visão ou
outra, nem contra outra, mas necessariamente de uma visão com a outra, segundo a lógica dialética dos
opostos, que rege o processo terapêutico no tempo, conforme o ritmo do solve et coagula alquímico: a
individuação é tanto diferenciação quanto unificação. A ruptura desse nculo resulta em paranóia
(degeneração da tendência à unidade em totalitarismo) ou esquizofrenia (degeneração da tendência
diferenciadora em fragmentação), ou seja, incorre no excesso por carência ou no excesso por abundância.
Para um bom exemplo de leitura de Jung privilegiando a tendência diferenciadora, veja-se MARONI, A.
Jung: o poeta da alma. São Paulo: Summus, 1998. Toda a psicologia arquetípica de James Hillman
também privilegia esse ângulo de abordagem da alma humana, e se desinteressa das noções de Si-mesmo,
símbolo, e sincronicidade.
544
“A psique está longe de [ser uma unidade homogênea]; pelo contrário, ela é [um caldeirão]
borbulhante de impulsos, bloqueios e afetos contraditórios e o seu estado conflitivo é, para muitas
pessoas, tão insuportável, que elas desejam a salvação apregoada pela teologia. Salvação do quê?
Naturalmente, de um estado psíquico altamente duvidoso. A unidade da consciência [ou] da chamada
personalidade não é uma realidade, mas um desideratum.” OC IX-1, § 190.
545
Nas Obras Coligidas, corresponde ao volume XIV.
546
Como corretamente aponta Richard Noll, “depois de 1916 a teoria psicológica de Jung se inseriu
diretamente na tradição da Naturphilosophie especulativa ou metafísica, compartilhando com ela noções
fundamentais como Einheit (unidade), Stufenfolge (sucessão de estágios de desenvolvimento gradual),
Polarität (polaridade, ou interação de forças vitais opostas), Metamorphose (metamorfoses), Urtyp
(arquétipo) e Analogie (analogia).” NOLL, O Culto de Jung, p. 298-299. Noll, porém, deixa de levar em
conta a função crucial da noção de símbolo em Jung, e por isso sua interpretação desanda. Cf.
BARRETO, “Observações a respeito de O Culto de Jung, de Richard Noll”.
Kant legara a seus sucessores uma irredutível oposição entre o mundo da
natureza e o mundo da espiritualidade. O ultrapassamento desse limite levará ao
monismo ontológico que se estabelece quer na metafísica do Espírito de Fichte, quer na
metafísica da Natureza de Schelling, e informa a visão romântica de mundo,
constituindo um de seus traços mais fundamentais.
Também aqui o Romantismo se oporá ao racionalismo iluminista. Por um lado,
o caráter transcendente do sujeito humano (idéia moldada pela transcendência do Eu na
filosofia de Fichte) quebra a uniformidade da razão e o individualismo racionalista. Por
outro, o caráter espiritual da realidade (idéia moldada pela concepção de Natureza como
individualidade orgânica na filosofia de Schelling) quebra a concepção mecanicista
newtoniana dominante nos meios iluministas.
547
Por conseguinte, postulada a identidade absoluta do Espírito em nós e da
Natureza fora de nós, os românticos, seguindo a Naturphilosophie schellinguiana,
reconhecerão na natureza a manifestação visível do espírito, e no espírito a presença
invisível da natureza. Por isso, a experiência romântica da natureza se faz a partir da
interioridade e, reciprocamente, a interioridade é expressão privilegiada da natureza. O
precursor desta experiência será Rousseau, que se opõe à concepção cartesiana e
enciclopedista que considerava a natureza em termos matemáticos e racionais, nela
vendo apenas algo de exterior e objetivo.
548
A concepção mecanicista do universo
permitia integrar o homem e a natureza sob a regência de leis uniformes, mas apenas
segundo um rígido determinismo causal.
549
O nivelamento do sujeito à natureza física
assim concebida excluía, por princípio, a originalidade pessoal que se manifestava na
“experiência singular individual subjetiva, transgressora da uniformidade da razão”.
550
A reação romântica, portanto, deveria rever tanto a concepção de natureza quanto a de
sua experiência.
Os patronos alemães dessa reformulação são Herder e Goethe, que também
recusam o mecanicismo newtoniano e o substituem por uma concepção organicista,
547
Cf. NUNES, “A Visão Romântica”, p. 58.
548
A idéia iluminista de natureza pode ser assim definida: “conjunto daquelas disposições que, acessíveis
ao livre exame analítico, seriam sempre iguais em toda parte, escapando à força do hábito, ao prestígio da
autoridade, às tradições e aos caprichos das circunstâncias históricas, bem como à influência, considerada
perturbadora, das paixões e dos hábitos.” NUNES, “A Visão Romântica”, p. 56.
549
Kant tentará salvaguardar a especificidade humana do espírito da redução mecanicista, recuperando o
espaço da liberdade, mas legando o dualismo natureza-espírito, que o monismo ontológico idealista
ultrapassará.
550
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 57.
segundo a qual a natureza é um grande animal vivo, de cujo tratamento matemático
resulta desfiguração. A natureza, na concepção romântica, existe independentemente
dos esforços e intenções humanas, e sua individualidade orgânica correlaciona-se à
individualidade singular do sujeito, que é também natural e abarca aqueles atributos
inatos, espontâneos, não premeditados, irrefletidos, involuntários e não determinados
pela convenção social.
551
Seguindo Goethe, os românticos estabelecem no próprio
domínio da natureza uma unidade fundamental:
“A idéia da natureza dividida em dois reinos separados, o orgânico e o inorgânico, parecia-lhes algo
definitivamente caduco; a natureza toda deveria ser compreendida como um único organismo vivo, e
caberia à ciência o conhecimento da história desse organismo.”
552
Uma conseqüência, decisiva para a atitude romântica, dessa concepção de
natureza sustentada pelo monismo ontológico, é a possibilidade de leitura analógica de
todos os domínios do real, que se correspondem organicamente. É isto que permite ao
mineralogista Werner dizer que “deveria existir um laço profundo, embora pouco
aparente, uma analogia secreta, entre a ciência gramatical do Verbo, - essa mineralogia
da linguagem, - e a estrutura interna da natureza.”
553
Benedito Nunes interpreta esse
aspecto da visão do mundo romântica e comenta sua significação histórico-espiritual:
“Uma vez que o seu aspecto material significa o espírito que as anima, as formas naturais, por um lado
produtivas e portanto criadoras, por outro expressivas e portanto simbólicas, oscilam entre o estado de
coisa e o estado de linguagem, achando-se comprometidas pela dualidade da expressão e da criação
conceitos românticos mantidos com valência quase igual para a literatura. O universo inteiro fala e os
corpos são os signos de sua linguagem. (...) Desse ponto de vista, a Natureza, que não foi para o
Romantismo apenas a mais abrangente de suas tematizações, mas o foco precípuo sob o qual a
imaginação intuitiva se afirmou e se exerceu, voltou a ser contemplada pelos românticos através da
551
Cf. CAMPBELL, A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, p. 257.
552
BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 97. Ressalte-se que o Romantismo não se alienou dos
desenvolvimentos das ciências da época, integrando-os em sua concepção organicista de natureza.
Indissoluvelmente filósofos da natureza e cientistas românticos foram, por exemplo, J. W. Ritter (físico
romântico que representa no interior da Naturphilosophie a tendência empírico-experimental contra a
tendência especulativa) e A. Werner (geólogo e mineralogista, professor de Novalis em Freiberg). Cf.
BÉGUIN, L’Âme Romantique et le Rêve, passim.
553
Citado em BÉGUIN, L’Âme Romantique et Rêve, p. 83. Da mesma forma, Novalis afirma: “O
homem não é o único a falar o universo também fala tudo fala línguas infinitas.” (citado em
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 59, nota 28) E Gérard de Nerval escreve em Aurélia: “Como pude ter
existido tanto tempo fora da Natureza, sem me identificar com ela? (...) Tudo vive, age, se corresponde.”
(São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 82) Na concepção romântica de natureza pode ser percebido um
movimento oposto ao desencantamento iluminista do mundo: enquanto este banaliza o sobrenatural,
mergulhando-o no natural, o romantismo exalta o natural, elevando-o ao sobrenatural, donde a
denominação de “sobrenaturalismo natural” que M.H Abrams propõe para caracterizar a dimensão
religiosa do espírito romântico. Cf. CAMPBELL, A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo
Moderno, p. 257 , e KIRSCHNER, The Religious and Romantic Origins of Psychoanalysis. Individuation
and Integration in Post-Freudian Theory, p. 153-161.
perspectiva de coesão mágica, de envolvimento analógico entre palavras e coisas, da compreensão pré-
clássica do mundo, dominante do Medioevo à fase renascentista.”
554
Paradoxalmente, no momento em que a moderna metafísica da subjetividade se
acirra no Romantismo, ela reencontra na sua concepção de Natureza um dos
fundamentos que estruturavam o “espaço hermenêutico”. Para a atitude romântica, a
Natureza transforma-se numa teofania, e essa teofania pode receber valência
panenteísta compatível com o criacionismo (por exemplo, em Chateaubriand e
Lamartine), ou então panteísta (por exemplo, em Shelley, Wordsworth e Novalis) – esta
mais conforme às matrizes filosóficas de Fichte e Schelling.
Finalmente, é preciso lembrar que, em Schelling, o princípio ativo real em
operação na Natureza é inconsciente. O Espírito Absoluto, raiz da idealidade imanente à
natureza, é, nesta, inconsciente e sem liberdade, tornando-se no ser humano consciência
e liberdade. Entre consciência humana e inconsciente natural uma relação de
anterioridade e determinação, de forma que a consciência não pode ser ontologicamente
tomada como um dado primário:
“Schelling aponta o erro no qual facilmente incide o filósofo e que constitui a tentação
perene de toda vida filosófica. Para ele, esse perigo consiste na tendência em considerar
a consciência como um dado primeiro e original, como se ela fosse sua autogênese. O
filósofo, perdido na contemplação especulativa, seria levado a ignorar o que Schelling
chama de ‘pré-história da consciência’, quer dizer, o mundo que circunda o homem e
sem o qual nem teria sentido falar em consciência. Quem melhor pode escapar a essa
tentação de considerar a consciência como realidade autônoma e auto-suficiente é o
físico.”
555
O Romantismo acolherá a lição de Schelling, associando intimamente, portanto,
as noções de Natureza e inconsciente.
556
Parece-nos que daí deriva a ambigüidade da
vivência romântica da Natureza, que oscila “entre um sentimento de proximidade, de
554
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 59 e 67.
555
BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 99. Mas ressalte-se que se trata de um físico organicista.
556
C.G. Carus e E. von Hartmann representam o elo de transmissão da noção romântica de inconsciente à
“psicologia das profundezas”.
união desejável e prometida, de compenetração a realizar-se, e um sentimento de
distância, de afastamento irrecuperável ou de separação fatalmente consumada.”
557
Pois, a despeito da comunidade de origem no Absoluto, persistirá sempre a diferença
irredutível entre o estado subjetivo de consciência e o estado de inconsciência natural.
Pelo fracasso de seu anseio por uma reintegração total, uma comunhão absoluta com a
natureza, o espírito romântico será marcado pela inquietude, pela insatisfação e, por fim,
pelo desespero.
Retomando a comparação com a atitude de Jung sob este aspecto, observemos
preliminarmente que a noção de natureza, que percorre seus escritos e suas reflexões
como um verdadeiro leitmotiv, não recebe um sentido exato e unívoco em todas as
passagens.
558
Às vezes “natureza” se opõe a “espírito”, e designa geralmente tudo aquilo
que funciona espontânea e inconscientemente, sem a intervenção da consciência
humana daí a inclusão da consciência na categoria do “espiritual” e a do inconsciente
na categoria do “natural”; às vezes “natureza” engloba “matéria” e “espírito”, e estes
são os opostos que a constituem. Nesse último sentido, que suprassume o primeiro, a
“Natureza”, geralmente grafada nos escritos em inglês com inicial maiúscula, significa a
totalidade do que existe, e portanto inclui a consciência e o inconsciente.
559
A
imprecisão da noção de natureza em Jung pode ser atribuída a seu ceticismo epistêmico,
que também aqui deixa a sua marca. Assim, Jung escaparia a uma inquisição
racionalista afirmando que “não podemos definir ‘natureza’ ou ‘psique’, podemos
apenas [declarar] o que atualmente entendemos [que elas sejam].”
560
557
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 65.
558
Para se ter uma visão panorâmica sobre a presença da noção de natureza e seus correlatos em Jung, é
útil a consulta à coletânea de excertos de escritos de Jung sobre o tema editada por Meredith SABINI:
The Earth has A Soul: the Nature Writings of C.G. Jung. Berkeley: North Atlantic Books, 2002.
559
“Nossa consciência desempenha uma função seletiva e é ela própria um produto da seleção, ao passo
que o inconsciente coletivo é simplesmente Natureza e como a Natureza contém tudo, ela também
contém o desconhecido. Está além da verdade e do erro (...) Até onde podemos entender, o inconsciente
coletivo é idêntico à Natureza na medida em que a própria Natureza, inclusive a matéria, é desconhecida
para nós. Nada tenho contra a suposição de que a psique é uma qualidade da matéria, ou a matéria o
aspecto concreto da psique, se ‘psique’ for definida como o inconsciente coletivo. Na minha opinião, o
inconsciente coletivo é o aspecto pré-consciente das coisas no nível ‘animalou instintivo da psique.
Tudo o que é apresentado ou manifestado pela psique é uma expressão da natureza das coisas, da qual o
homem é uma parte.” Letters II, 9/02/1960, a A.D. Cornell. “O inconsciente coletivo é neutro; nada mais
é do que natureza, tanto espiritual quanto ctônica.” OC XVIII, § 1536. (A mencionada “função seletiva”
deve ser entendida como discriminação e escolha de “regras e leis” que constituem a cultura, na qual a
consciência se forma segundo a circularidade dialética do ethos -, e sendo assim também um “produto
da seleção”. Cf., p. ex., OC XIII, § 229, citado adiante.)
560
OC XVIII, § 439. “Essencialmente, sabemos tão pouco [do espírito] quanto [da matéria].CW XVIII,
§ 583.
Como quer que seja, a afirmação da continuidade entre a esfera espiritual e a
esfera natural é uma das mais constantes e reiteradas posições que Jung expressa. Para
ele, a “divisão da natureza em aspectos físicos e espirituais é mera discriminação que
serve aos interesses do conhecimento humano”, e por isso “o processo de individuação,
isto é, o tornar-se totalidade, inclui por definição o todo do fenômeno humano e o todo
do enigma da natureza”.
561
Portanto, Jung a Natureza como um grande mistério
abrigando os princípios “espiritual” e “natural” que ele, com sua habitual cautela
cética, evita definir com precisão -, segundo uma oposição que faz nascer a energia
psíquica ou libido:
“o princípio espiritual, ([o que quer que isto seja]), se afirma contra o princípio meramente natural com
força inaudita. Poderíamos mesmo dizer que isto também é ‘natural’, e que tanto um como o outro têm
sua origem em uma e mesma natureza. Não duvido absolutamente desta origem, mas devo ressaltar
que esta coisa ‘natural’ consiste em um conflito entre dois princípios, aos quais se pode dar este ou aquele
nome, segundo o gosto de cada um, e que esta [oposição] é expressão e possivelmente também a raiz
daquela tensão que chamamos de energia psíquica.”
562
A Natureza para Jung é essencialmente dinamismo conflitivo, oposição de
princípios ou forças eis a Polarität tão cara às concepções românticas. Esta
conflitividade fundamental expressa-se, no âmbito humano da Natureza, nas relações
entre consciência e inconsciente:
“Nenhum código penal, nenhum código moral, nem a mais sublime casuística seriam capazes de
classificar e decidir com justiça acerca das confusões, conflitos de deveres e tragédias invisíveis do
homem natural em sua colisão com as exigências da cultura. O ‘espírito’ é um dos aspectos, a ‘natureza’,
outro. Naturam expellas furca, tamen usque recurret. [Horácio, Epistulae, I, x, 24: “Tu podes afastar a
natureza com o forcado, ela voltará do mesmo modo com passo apressado.”] A natureza não deve ganhar
o jogo, mas não pode perdê-lo. Sempre que a consciência se fixa em determinados conceitos muito
rígidos e se prende a regras e leis que ela mesma escolhe – o que é inevitável e próprio de uma
consciência cultural a natureza se manifesta com suas exigências inelutáveis. A natureza não é apenas
matéria, mas também espírito. Se assim não fosse, a única fonte do espírito seria a razão humana. O
grande mérito de PARACELSO é ter ressaltado a ‘luz da natureza’ como um princípio [e tê-lo enfatizado]
de modo muito mais intenso do que seu predecessor AGRIPA. A lumen naturae é o espírito natural,
[cujas operações estranhas e significativas] podemos observar nas manifestações do inconsciente; e isto
desde que a pesquisa psicológica chegou à constatação de que o inconsciente não representa apenas um
apêndice ‘subconsciente’, ou até mesmo um mero depósito de lixo da consciência, mas um sistema
psíquico amplamente autônomo capaz de compensar [as unilateralidades e aberrações da atitude
consciente, na maioria das vezes funcionalmente, embora às vezes ele as corrija à força]. A consciência
pode extraviar-se como é sabido, tanto natural como espiritualmente, o que é conseqüência lógica da
relativa liberdade da mesma. O inconsciente limita-se não apenas aos processos de instintos e reflexos dos
561
Cartas III, 21/12/1960, a Albert Jung.
562
OC VIII, § 98. Também para Schelling “é a priori certo que na natureza inteira atuam princípios
divididos em dois, realmente opostos”, como também é certo que todo dualismo tende a superar-se
através de um novo indivíduo. Cf. BORNHEIM, “Filosofia do Romantismo”, p. 101.
centros subcorticais, mas também ultrapassa a consciência, antecipando com seus símbolos futuros
processos da consciência. Por isso ele também é uma forma de supraconsciência.”
563
A auto-regulação da psique, manifestada na compensação da consciência pelo
inconsciente que na passagem citada Jung homologa ao espírito natural ou lumen
naturae -, sugere a existência de uma inteligência inconsciente ou sabedoria da natureza
que Jung identifica à própria natureza, acrescentando a observação de que “se a natureza
fosse consciente de si mesma, seria um ser superior de extraordinário conhecimento e
compreensão”.
564
Essa paradoxal supraconsciência inconsciente corresponde ao saber
ou conhecimento absoluto postulado a partir dos fenômenos da sincronicidade, que
abordamos no capítulo segundo:
“Agrippa [de Nettesheim] sugere (...) que um ‘conhecimento’ ou ‘[percepção]’ inata nos organismos
vivos, idéia esta à qual Hans Driesch recorreu também em nossa época. Quer queiramos quer não,
encontramo-nos nesta mesma situação [embaraçosa] assim que refletimos seriamente sobre os processos
[teleológicos] da Biologia ou investigamos mais acuradamente a função compensadora do inconsciente,
ou procuramos mesmo explicar o fenômeno da sincronicidade. As chamadas causas finais torçamo-las
tanto quanto quisermos postulam uma precognição de alguma espécie. Não é, certamente, um
conhecimento que possa estar ligado ao eu, e, portanto, não é um conhecimento consciente como o
conhecemos, mas um conhecimento inconsciente subsistente em si mesmo, e que eu preferiria chamar de
conhecimento absoluto. Não é uma cognição no sentido próprio mas, como disse excelentemente Leibniz,
uma percepção que consiste – ou, mais cautelosamente, parece consistir – em simulacra (imagens)
desprovidos de sujeito. Presumivelmente esses simulacra postulados são equivalentes aos meus
arquétipos, que podemos encontrar como fatores formais nos produtos da fantasia.”
565
A hipótese da sincronicidade é inegavelmente uma versão da correspondência
analógica presente na Naturphilosophie romântica, despida de sua certeza metafísica
idealista pela estratégia cética adotada por Jung. Aliás, é curioso – e talvez revelador de
uma resistência interior que Jung não tenha arrolado entre os precursores da idéia de
sincronicidade nenhum expoente do Idealismo e do Romantismo alemão.
566
O
reconhecimento de um sentido objetivo latente nos eventos físicos ou naturais pressupõe
exatamente aquele laço profundo unindo a linguagem humana à estrutura interna da
natureza de que A. Werner falava. Não nos parece, contudo, que Jung tenha prestado
563
OC XIII, § 229. Sobre a continuidade da consciência com o corpo, com a matéria e com o mundo, cf.
também OC IX-1, § 290-291. Sobre o “princípio espiritual” na natureza, veja-se o belo ensaio “A
Fenomenologia do Espírito nos Contos de Fadas”, em OC IX-1.
564
ZAR, p. 1393. Nessa passagem, Jung trata da imagem arquetípica do velho sábio, que encarnaria essa
sabedoria instintiva natural, e que corresponde a uma das formas em que se manifesta o arquétipo do Si-
mesmo (também designado como arquétipo do sentido ou do espírito: cf. OC IX-1, § 79).
565
OC VIII, § 921. Esse conhecimento inconsciente absoluto é anterior a qualquer estado de consciência e
corresponde à hipótese do inconsciente coletivo que, como vimos, Jung identifica à natureza. Cf. ainda
OC VIII, § 902, 913, 920, 938.
566
A hipótese da sincronicidade em Jung poderia ser interpretada como o espírito romântico tentando
reencontrar-se com o espírito científico que decretara, no século XIX, a sua impugnação.
particular atenção ao fato de que sua concepção de natureza, abundantemente utilizada
em seus escritos, também era uma herança romântica, tanto quanto alquímica, e que era
na verdade um grande símbolo em sua construção teórica e em seus argumentos. Este
símbolo de talhe romântico desempenha um papel fundamental no seu pensamento.
Todos os empréstimos e referências às disciplinas científicas pós-românticas, como por
exemplo à fisiologia (estrutura do cérebro, sistema nervoso central, sistemas funcionais
autônomos, etc.), à teoria da evolução (hereditariedade, adaptação, funcionalidade etc.),
à biologia (instintos), devem ser remetidos e subordinados a essa concepção de
natureza, que difere do conceito científico e materialista, pois pressupõe uma ontologia
monista o “conceito unitário do ser” que Jung percebia ser exigido pelos fenômenos
sincronísticos e que ele propõe ao resgatar a noção alquimista de Unus Mundus. Como
assinalamos no capítulo segundo, também em Jung encontramos, na relação entre
natureza e sincronicidade, um parentesco tipológico com aquela “perspectiva de coesão
mágica, de envolvimento analógico entre palavras e coisas, da compreensão pré-clássica
do mundo, dominante do Medioevo à fase renascentista”, que o pensamento racionalista
nascente nos fins do século XVII contribuíra para arcaizar.
567
O monismo ontológico subjacente à Naturphilosophie tem ainda outra
conseqüência. A experiência da temporalidade, lugar da dispersão inexorável de todo
ente sensível, vem estampar de modo ainda mais radical a finitude da existência
humana. Por isso, o anseio de reintegração e unidade fará com que a concepção
romântica do tempo e da história obedeça à tendência de superação dessa insuportável
fragmentação que o tempo nos impõe. Nesse sentido, na visão de mundo romântica o
devir temporal está subordinado a um princípio teleológico imanente, que confere
sentido a todos os eventos, quer sejam eles humanos ou naturais. Por um lado, é isso
que permite a leitura analógica dos eventos naturais. Por outro, daí provém igualmente a
noção de uma evolução idéia fundamental em Schelling -, que, por estar radicada em
um princípio Absoluto, converte-se numa espécie de história intemporal: a falta de
sentido do tempo meramente quantitativo, sucessão infinita de instantes homogêneos, é
substituída pelo sentido imanente de um tempo eminentemente qualitativo, articulado
em um processo progressivo cuja meta é a integração plena de cada parte na totalidade,
mas segundo um esquema último que é ele mesmo atemporal, e ao qual a natureza
567
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 67.
obedece em sua dinâmica histórica evolutiva. O Absoluto, como causa final e estrutura
fundamental da própria natureza, fornece o sentido ou a meta de toda a evolução, na
medida em que é a origem “à qual toda natureza busca integrar-se sem jamais consegui-
lo.”
568
A noção de evolução é a outra face da noção de individuação: o principium
contradictionis, que rege a interação dos opostos na natureza, é a condição para o
principium individuationis que rege a evolução. Aqui, como indica Lidia Procesi,
também Schelling, por estar por trás da inclusão dessa idéia diretriz na visão de mundo
romântica, pode ser considerado um antecedente filosófico de Jung.
569
Em Jung o principium individuationis é estendido a um âmbito mais amplo do
que o humano. Se, em sentido estrito, a individuação coincide com o processo de tornar-
se um ser humano completo e singular, por outro lado Jung a entende como “uma
expressão do processo biológico (...) através do qual todas as coisas vivas tornam-se
aquilo que, desde o princípio, foram destinadas a ser.”
570
A individuação para ele, como
dissemos, é tanto diferenciaçãocada indivíduo tende a atualizar a plenitude particular,
relativa e única que lhe cabe, em sua determinação específica, “desde o princípio”
como unificação ao se diferenciar, o indivíduo no mesmo ato se unifica e participa da
totalidade, integrando-a.
571
Neste sentido, a concepção de Jung harmoniza-se
perfeitamente com a da Naturphilosophie do primeiro Schelling, ressalvando-se a
diferença cética que não lhe permite afirmar positivamente o Absoluto metafísico, mas
tão-somente vislumbrá-lo num horizonte que lhe parece proibido para a razão
humana.
572
568
Cf. BORNHEIM, p. 101.
569
Cf. PROCESI, L. “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, in CAROTENUTO, A. ( dir.) Trattato di
Psicologia Analitica. Volume Primo: La Dimensione Culturale. Turim: UTET, 1992, p. 47-66, aqui p. 60-
64. Nesse tópico da individuação, optamos por uma comparação a Schelling, e nisso orientamo-nos pela
sucinta exposição de Lídia Procesi, que é extremamente condensada. Para uma exposição mais cuidadosa
e pormenorizada, cf. PUENTE, F. R. As Concepções Antropológicas de Schelling. São Paulo: Loyola,
1997, especialmente o capítulo 3 (“Definição Teológica do Homem”).
570
OC XI, § 460, itálicos nossos. A teleologia implícita nessa posição exclui a interpretação do
“naturalismo” de Jung em termos de um evolucionismo materialista-mecanicista. Essa ampliação do
princípio de individuação e a continuidade com a natureza que ela supõe é a base para a revalidação e
reformulação da idéia antiga de que o homem é um microcosmos, conforme assinalamos anteriormente.
571
A unificação para Jung não significa supressão da multiplicidade interna do próprio indivíduo, mas a
sua harmonização em uma forma de equilíbrio dinâmico. No caso do ser humano, o mbolo não anula a
potencialidade de contradição das polaridades antagonistas, mas a integra mantendo juntos (sym-ballein)
os opostos.
572
“Os enunciados metafísicos são afirmações da alma [e são portanto psicológicos]. Mas o espírito
ocidental, [que compensa seu conhecido ressentimento através de um respeito servil por explicações
‘racionais’], acha esta verdade óbvia demasiado evidente, ou a considera como uma negação inadmissível
da ‘verdade’ metafísica. A palavra ‘psicológico’ ressoa a seus ouvidos como [‘apenas psicológico’]. De
qualquer modo, para ele a alma é algo de extremamente pequeno, inferior, pessoal, subjetivo, ou algo do
Mas a coincidência maior entre Schelling e Jung refere-se à fenomenologia da
individuação humana. Nesse ponto, para compor o quadro comparativo completo
deveríamos privilegiar as reflexões tardias de Schelling presentes na Philosophie der
Offenbarung e na Philosophie der Mythologie, bastante distanciadas da fase
romântica do pensador de Leonberg.
Schelling na separação do eu em relação à totalidade (separação do cosmos,
da alma, de Deus, e em resumo da Natureza) a origem daquela “infinita falta de ser” que
é experimentada como aniqüilamento do sujeito. Esta é a herança do racionalismo
iluminista e, mais especificamente, do dualismo kantiano. A infelicidade da consciência
universal e livre tema que será celebrizado por Hegel impõe a exigência de sua
superação. A uniformidade da razão e da consciência na perspectiva iluminista revela-se
à perspectiva romântica e idealista como alienação de si mesma. A unidade forçada da
consciência defronta-se com a possibilidade de mudança, e assim enfrenta o desafio do
nascimento da autoconsciência de fato desalienada. Nesse desafio está a possibilidade
de constituição do sujeito humano como individualidade, ou seja, da sua individuação.
Para Schelling, essa possibilidade se apresenta quando o eu é arrancado para fora de si
pelo impacto com a totalidade do ser na qual descobre estar contido: esta é a figura do
“êxtase da razão”, experiência em que o eu penetra em um estado totalmente
desagregado, e que Lídia Procesi resume:
A autoconsciência, princípio unificante, aprofunda-se em um ente – o ser humano
elementar – cuja unidade é doravante dada apenas por seu ser definitivamente possuído
por um único e tirânico princípio: o encontro com esse ser cego, que precede o
pensamento, do qual este último nada sabe, é uma verdadeira e própria invasão, um
arrebatamento. To theoblabes, to theoplekton tes psyches, segundo a imagem antiga
usada por Schelling: o deus possui a alma, arrebatando-a, assim como a inteira potência
mesmo teor. Por isto [ele prefere usar] o termo ‘espírito’, [embora ele goste de supor ao mesmo tempo
que uma afirmação que na verdade pode ser de fato muito subjetiva é feita pelo ‘espírito’, naturalmente
pelo ‘Espírito Universal’, ou até mesmo – em um aperto – pelo próprio ‘Absoluto’].” OC/CW XI, § 835.
do ser, na qual o homem está contido mas que para ele se tornou de agora em diante de
todo estranha, o possui, arrebatando-o.”
573
Esta experiência de invasão ou arrebatamento é vivida pelo eu como um confronto com uma infinidade de fantasmas
produzidos pela própria natureza inconsciente que o invade, comandada por uma imaginação compulsória. Tais fantasmas,
representações à consciência das quais o eu é antes o objeto do que o sujeito, são expressões involuntárias da coisa em si, e a
consciência não pode se lhes subtrair. Manifestam-se como múltiplas entidades onipotentes, estranhas e desordenadas: a experiência
interna de desagregação é vivida sob a forma de personificações numinosas, correspondentes aos “deuses”.
A recomposição da consciência não pode ser um retorno à condição prévia ao
“êxtase da razão”, devendo portanto superar integrando a própria fragmentação da
natureza. Essa recomposição, que representa a constituição do sujeito humano como
individualidade, não é obra do eu, mas torna-se possível porque o eu renunciou à
pretensão de autonomia absoluta ao abandonar-se extaticamente ao ser cego. Essa
renúncia encontra a contrapartida na própria natureza inconsciente, que restitui à
consciência sacrificada a força unificadora perdida:
“Ao desaparecimento da força unificadora do eu corresponde, na cenografia da consciência alienada, a
manifestação de uma entidade numinosa trágica: marcado pela servidão e votado ao sacrifício total, este
deus de vários vultos exprime a única possibilidade de salvação e a única modalidade através da qual esta
pode ocorrer. Se a autoconsciência é morta, fragmentada em um universo incompreensível de fantasmas,
de figuras divinas onipotentes, um deus que renuncie a possuí-la pode ressuscitá-la: um deus que não
se imponha mais sob forma de representação, uma figura que renuncie à força que lhe é conferida pela
coação a representar que enreda a consciência. um deus que morrendo renuncie à divindade e ao seu
poder de evocar os fantasmas que sorvem em redemoinho o eu, um deus que ponha em cena o seu
sacrifício, com o qual cede a sua numinosidade, pode liberar a razão extática.”
574
Lídia Procesi sintetiza assim a visão de Schelling a respeito do processo de
individuação:
“A própria filosofia, portanto, é destinada a uma cisão radical, se quer tentar reencontrar
a consciência perdida, ou seja, reconstruir o ente humano com os sinais que atestam-lhe
todavia a existência. Por um lado permanecerá ciência do modelo do conhecimento,
crítica da razão pura: epistemologia. Mas por outro deve se fazer experiência da razão
573
PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p. 61.
574
PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p.63-64. “A morte de Deus e a morte do deus
(...) assinalam reciprocamente a esperança de uma nova vida para a egoidade. (...) só a morte a vida,
a extrema abjeção regenera a esperança,a destruição da egoidade isolada na sua identidade, consente o
nascimento da personalidade, do eu que no reconhecer a si reconhece o tu e reconhece a comunidade do
mundo.” (id., p. 64) Por isso Cristo, para o idealismo schellinguiano, como para Jung (cf. Aion. Estudos
sobre o Simbolismo do Si-Mesmo, OC IX-2), “é o modelo do Si-mesmo como individualidade
supraordenada ao eu, tanto mais realizada em si mesma quanto mais aberta à comunicação com as outras
individualidades e à comunicação com a plenitude da vida.” (PROCESI, ibid.).
extática, deve ter a coragem não tanto de despotenciar a subjetividade, quanto, muito
mais radicalmente, de desmantelá-la, aprendendo a devanear, se pretende poder
recompor a fratura entre pensamento e ser, entre homem e natureza, ou dos homens
entre si, e curar a sua fonte, isto é, a íntima cisão do eu. (...) Além dos limites do puro
saber, Schelling empreende pois o percurso filosófico da terapia da alma: é a sua
‘filosofia positiva’, que é a reconstrução a posteriori da experiência eminentemente
interna das modificações sofridas pela consciência para se fazer relação, antes de
reconhecer o ser e os seres externos a si. A razão deve gradualmente recuperar-se,
depois de ter passado através de uma dispersão total, na interioridade de um universo
puramente fantasmático.”
575
Esta é, ponto a ponto, a mesma concepção que Jung tem do confronto com o
inconsciente. A leitura de Memórias, Sonhos, Reflexões ilustra exemplarmente a
experiência do “êxtase da razão” schellinguiano. Muito do que Jung fala a respeito da
individuação em seus livros coincide com esta visão de Schelling. Basta percorrer as
páginas do ensaio O Eu e o Inconsciente
576
para comprovar esta afirmação. Ali o
itinerário da individuação é descrito como um processo que começa com a
desidentificação do eu com relação à psique coletiva em sua forma de persona (uma
função social, coletiva e abstrata, preenchida pelo sujeito), com o que se abre a
experiência do inconsciente coletivo (o “ignoto oceano da coisa em si” em Schelling),
marcada pela ambigüidade das várias e sucessivas figuras que se apresentam,
basicamente reconduzíveis aos arquétipos da sombra, da anima/animus e do Si-Mesmo.
A individuação é uma vivência da imagem e na imagem, e portanto se faz segundo a
tendência à personificação própria da atividade imaginativa inconsciente. A
“diferenciação entre o eu e as figuras do inconsciente”, a que é votado o esforço
psicoterapêutico em Jung, é ao mesmo tempo condição para a desalienação do eu,
enclausurado em uma falsa identidade, e para o encontro com o tu, mediante o
575
PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p. 61-62.
576
Integra o volume VII das Obras Coligidas.
reconhecimento e a retirada das projeções inconscientes, que transformam o outro em
simples reflexo especular de imagens inconscientes do próprio sujeito.
577
Tanto em Schelling como em Jung, a passagem da uniformidade do ser à
diferenciação e à constituição de individualidades se estrutura segundo três predicados
fundamentais: a identidade, a diferença, a totalidade, que “são também as três
experiências das quais depende a aniqüilação ou a regeneração da consciência.”
578
A
individuação é vivida como um sacrifício do eu tema fundamental para Jung na
separação de Freud, ao qual é dedicado o capítulo conclusivo de Símbolos da
Transformação. Nessa mesma medida, ela evoca as imagens da morte, e comporta
sempre um perigo real de aniqüilação da consciência pelas potências do inconsciente,
perigo que se concretizou tragicamente em Hölderlin e Nietzsche.
Por fim, a individuação vivida em profundidade corresponde, segundo Jung, a uma
experiência religiosa – tanto morfológica quanto afetivamente. A valorização da
religiosidade remete ao espírito religioso característico de todo o Romantismo,
também partilhado por Schelling que, assim como Schleiermacher e também Jung,
recusa a possibilidade de compreender a união com o divino através de métodos
racionais e discursivos. Como os românticos em geral, Jung interioriza o sagrado e
insiste em sua experiência subjetiva.
Na experiência romântica, a aventura cristã e moderna de exploração das
profundidades desconhecidas ou inconscientes da interioridade da pessoa encontrava
nos sonhos um instrumento e fonte privilegiada de informações e experiências.
579
O
entrosamento da individualidade singular do sujeito com a individualidade orgânica da
natureza fazia dos sonhos experiências essencialmente reveladoras da verdade, uma
verdade poética ou simbólica a ser encontrada nos meandros da subjetividade, e não nas
descrições objetivas da realidade exterior. Retomada em nova perspectiva no interior da
experiência romântica, a prática da interpretação dos sonhos como via de acesso à
interioridade sobreviverá ao ocaso do Romantismo, difundindo-se na cultura da segunda
metade do século XIX, de onde será comunicada à nascente Tiefenpsychologie.
577
Por outro lado, para Jung o encontro com o tu possibilita a individuação, como mencionamos no
capítulo terceiro.
578
PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p. 62-63.
579
A esse respeito, a obra de Albert Béguin (L’Âme Romantique et le Rêve) continua a ser referência
obrigatória. O pós-junguiano James Hillman a considera uma valiosa introdução à problemática da alma,
que deveria ser lida por todo aspirante a psicoterapeuta.
Também o tema da Entwurzelung, que abordamos no terceiro capítulo, bem
como as propostas de sua superação, são de inconfundível têmpera romântica.
580
O
desenraizamento era percebido no Romantismo como um dos efeitos nocivos do
racionalismo iluminista, que implicava a ruptura fatídica com as tradições. Dessa forma,
a reintegração à Natureza se complementava, enquanto modalidade de reconciliação e
anseio por integridade, com a recuperação do vínculo rompido com a tradição. Nesse
sentido, o Romantismo foi um tradicionalismo, que José Guilherme Merquior como
“uma estratégia de resgate das atitudes e modos de vida de origem, em última análise,
religiosa, reprimidos pela marcha do racionalismo capitalista”, em que se opera uma
rememoração reflexiva do irracional “contra o mundo desenfeitiçado, dessacralizado
dos tempos modernos, abertamente exaltado pela Ilustração – o tradicional apelidado de
irracional.”
581
Isso permite compreender o sentido romântico da insistência de Jung
sobre a necessidade de vínculos com o passado e a tradição, ampliando também a
compreensão do sentido do “irracional” em seu pensamento.
No entanto, Jung não acompanha o espírito romântico em dois de seus traços
mais característicos: o esteticismo e o entusiasmo. A dimensão estética da atividade
imaginativa é reconhecida integralmente por ele. Por isso, ele afirma do inconsciente:
“sua mentalidade é de caráter instintivo; [ele] não tem funções diferenciadas, nem pensa segundo os
moldes daquilo que entendemos por ‘pensar’. Ele somente cria uma imagem que responde à situação da
consciência; esta imagem é tão impregnada de idéia como de sentimento e poderá ser tudo, menos o
produto de uma reflexão racionalista. Seria mais certo considerarmos tal imagem como uma visão
artística.”
582
Mas o privilégio que os românticos conferem à figura do artista genial como
aquele que consegue melhor realizar a tarefa de mediação entre os opostos do espiritual
e do sensível, da razão e do instinto, do individual e do supra-individual, é relativizado
por Jung. É claro que, para ele, certos indivíduos privilegiados são mais bem sucedidos
nessa tarefa, que coincide com o processo de individuação, mas não necessariamente os
artistas nenhuma função social detém tal privilégio, que é dado ao indivíduo singular,
580
Ver o livro II (“Le Rêve, la Nature et la Réintégration”) em BÉGUIN, A., L’Âme Romantique et
Rêve, p. 63-116.
581
MERQUIOR, J. G. Saudade do Carnaval, citado em NUNES, “A Visão Romântica”, p. 70, nota 69.
582
OC VII, § 289. Cf. OC VI, § 808, onde Jung fala da fantasia como característica principal da atividade
artística do espírito, e o artista como criador e educador, entendendo suas obras como símbolos que
prefiguram as linhas de desenvolvimento futuro, cujo valor depende da capacidade vital da
individualidade criadora.
e não à sua persona coletiva, mesmo que esta seja autêntica e corresponda à vocação
que solicita o indivíduo a partir de sua interioridade. O artista pode até ser privilegiado
como mediador que capta os conteúdos do inconsciente, mas não como modelo de
individuação. Se, por um lado, Jung reconhece o papel social do artista como criador,
educador e visionário, por outro ele expressa reservas quanto à capacidade de artistas
em conciliar as exigências da realidade exterior com as solicitações da realidade
interior, devido à configuração psíquica peculiar muito freqüente nos temperamentos
artísticos, que ele explica psicologicamente assim:
“Há casos pude constatá-los principalmente entre artistas ou naturezas exaltadas - cujo eu não se
localiza na persona ([a função de relacionamento] com o mundo real), mas muito mais na anima ([a
função de relacionamento] com o inconsciente coletivo). Neste caso, indivíduo e persona são
[igualmente] inconscientes. O inconsciente coletivo [então invade o mundo consciente, e] uma grande
parte do mundo real [se torna] um conteúdo inconsciente. Tais pessoas têm [o mesmo medo demoníaco
da realidade que as pessoas comuns sentem] do inconsciente.”
583
Jung psicanalisa criticamente a exaltação e o entusiasmo, típicos mas não
essencialmente necessários na atitude romântica oitocentista, considerando-os um dos
efeitos negativos da anima, que pode alienar a pessoa da realidade a isso
corresponderia tanto a evasão quanto o esteticismo românticos. A desconfiança do
esteticismo da anima o diferencia do veio que se expressa no projeto romântico para a
cultura, que concedia a primazia à arte e denotava assim um forte rasgo esteticista. Jung
transfere a primazia para a responsabilidade moral do sujeito ao dar ênfase ao caráter
ético da “experiência da imagem e na imagem”, ficando a dimensão estética, assim
como a dimensão intelectual, subordinada à dimensão ética
584
.
A crítica de Hegel vai descobrir na visão romântica de mundo o sintoma da “má
infinitude” típica do desejo e da “consciência infeliz”. Nesse ponto, Jung se aproxima
da posição de Hegel. A inquietação, a ilimitação e a insatisfação que conformam a
atitude espiritual romântica oitocentista estão, em boa medida, “domadas” na
psicologia analítica. Jung prega o envolvimento contínuo com o mundo, segundo
medida e proporção (e não conforme a ilimitação dos desejos, do “mau infinito” que
gera insatisfação, inquietude e desespero românticos), ao mesmo tempo em que não
583
OC VII, g. 290 (CW VII, § 510). “Há, por assim dizer, um interesse legítimo e outro ilegítimo com
os problemas impessoais. São legítimas as [incursões] que surgem de uma profunda e autêntica
necessidade individual e ilegítimas as que representam apenas uma curiosidade intelectual, ou a tentativa
de evadir-se de uma realidade desagradável.” OC VII, § 288.
584
Cf. JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 164-171. Para uma crítica da resistência de
Jung aos apelos estetizantes da anima, veja-se HILLMAN, J. The Thought of the Heart. Dallas: Spring
Publications, 1984.
deixa de criticá-lo radicalmente. Ele corrige a ilimitação romântica com o apelo à
moderação, a busca do limite adequado em sintonia com o kairos, que caracteriza a
phronesis antiga, e que ele remete à própria natureza, que “dispensa quaisquer
declarações de princípios” e “contenta-se com tolerância e sábias medidas.”
585
Dentro
desse espírito, Jung critica a exaltação dionisíaca da experiência de Nietzsche, que teve
um desenlace fatal:
“Nietzsche ficou entalado na exaltação. Pelo êxtase não precisava ter rompido com o cristianismo. E isso
não responde ao problema da alma animal, pois [um] animal extático é um disparate. Um animal cumpre
a lei da sua vida, nada mais nada menos. Podemos chamá-lo de obediente e piedoso. O extático passa por
cima da lei da vida e comporta-se [impropriamente] em relação à natureza. [Essa impropriedade] é
prerrogativa exclusiva do homem, cuja consciência e livre arbítrio podem [ocasionamente desligar-se
contra naturam de suas raízes na natureza animal]. Esta particularidade é a base imprescindível de toda
cultura, mas também da doença psíquica, quando exagerada. A cultura é tolerável até certo ponto. O
dilema sem fim entre cultura e natureza, no fundo, é sempre uma questão de insuficiência ou excesso,
nunca uma opção entre uma ou outra.”
586
Os excessos românticos são moderados em Jung, talvez, pelo próprio ceticismo
epistêmico, pela afinidade ao espírito de Goethe e Schiller, mas principalmente,
acreditamos, pela lição imposta por sua sólida experiência de médico psiquiatra, pela
qual ele se defrontou com as tragédias humanas causadas pela ruptura do frágil
equilíbrio dinâmico das forças antagônicas da psique. Nesse aspecto, Jung é menos
romântico do que herdeiro do espírito clássico e grego.
587
De qualquer forma, a individuação, eixo da psyches therapeia proposta por Jung,
passa para ele pela experiência plena do mundo.
588
Talvez a melhor expressão de sua
585
OC VII, § 32.
586
OC VII, § 41. De passagem, é preciso observar que, se Jung é fortemente influenciado por Nietzsche,
ele no entanto adota uma posição crítica em relação à sua experiência, dela tomando decididamente
distância: Nietzsche é não somente uma fonte de suas idéias, mas também um exemplo de experiência
humana trágica que é analisada psicologicamente. As imagens e símbolos dessa experiência, tal como
aparecem em Assim Falava Zaratustra, foram objeto de uma extensa interpretação psicológica no
seminário que Jung conduziu entre 1935 e 1939.
587
Paul Bishop lembra que também Baumgarten e Schiller advertiam sobre os riscos de uma imaginação
excessiva (cf. “C.G. Jung and the Uses of Tradition”, in Harvest. International Journal for Jungian
Studies, London, vol. 46, 1, 2000, p. 101). Os românticos - por exemplo: Hoffmann, Eichendorff e
Tieck - também conheceram os perigos do “mundo dos sonhos” (cf. HUBBS, “German Romanticism and
C.G. Jung: Selective Affinities”, passim). E Jung afirma que “a fantasia criadora, se não mantida dentro
de limites adequados, pode degenerar em anormalidades perniciosas. Mas esses limites não devem ser
artificialmente impostos pelo intelecto ou pelo sentimento racional. São limites colocados pela
necessidade e pela realidade irrefutável.” OC VI, § 83.
588
Nesse ponto, encontramos uma convergência com Schelling, que critica os teosofistas por rejeitarem
ou desprezarem a vida neste mundo, buscando um estado contemplativo na unidade, totalidade e
interioridade da intuição. Sobre essa atitude, diz Schelling: “O homem que quer permanecer nesse estado
não presta atenção e esquece o estado atual que se comporta em relação àquele estado pré- e
supramundano como o estado de desenvolvimento (Entwicklung) em relação ao estado de involução
(Einwicklung) e cuja intenção final é a de que, nele, aquilo que no outro era coetâneo e unido alcance a
atitude realista, moderada e afirmadora do mundo esteja na carta que ele escreve a um
professor indiano a respeito da experiência da totalidade ou do Si-mesmo:
“O seu ponto de vista parece coincidir com aquele dos nossos místicos medievais, que tentaram dissolver-
se em Deus. Vocês todos parecem interessados em como voltar para o Si-mesmo, em vez de [procurar] o
que o Si-mesmo quer que façam no mundo, onde ao menos neste momento estamos colocados,
provavelmente para determinado fim. Parece que o [universo] não existe com a finalidade única de a
pessoa negá-lo ou dele fugir. Ninguém pode estar mais convencido da importância do Si-mesmo do que
eu. Mas, como o jovem não fica na casa do pai, mas vai para o mundo, assim eu não olho para trás para o
Si-mesmo, mas o recolho a partir de múltiplas experiências e o reconstituo novamente. O que deixei para
trás, aparentemente perdido, eu o encontro em tudo o que me acontece no caminho e o recolho e o
reconstituo como era. Para me livrar dos opostos, é imprescindível aceitá-los de imediato, mas isto me
afasta do Si-mesmo. Devo [também aprender] como os opostos podem ser unidos, e não como podem ser
evitados.”
589
O temperamento realista de Jung o afasta, também, da tendência idealizante
presente no Romantismo: “Enquanto possível, evito ideais e atenho-me à realidade.”
590
Por outro lado, Colin Campbell relativiza a rejeição romântica do mundo, lembrando
que ela é antes de mais nada “uma rejeição do mundo artificial e social do ‘adquirir e
gastar’, e mostra uma estreita afinidade com a desconfiança do puritano ortodoxo sobre
essa realidade imperfeita que é o produto da iniqüidade do homem.”
591
Campbell
assinala ainda os pontos em comum da ética romântica e da ética puritana: ambas são
individualistas, orientadas para a interioridade, requerem intensa introspecção e
indagação espiritual, recorrem a um “eu real” (diferentemente concebido nos dois casos)
como a uma realidade secreta que legitima a resistência às indefensáveis exigências
externas,
592
além de darem um lugar central, no desenvolvimento espiritual, ao drama
da conversão e salvação, em que cada alma tem um destino único.
593
A inegável
analogia com o modelo junguiano do processo de individuação confirma a posição de
Suzanne Kirschner a respeito das origens religiosas e românticas da psicanálise
extensivas à psicologia analítica, evidentemente.
3. Considerações finais
mais elevada forma de diferenciação (Auseinandersetzung) e de desdobramento (Entfaltung).”
(SCHELLING, Weltalter, citado e traduzido em PUENTE, As Concepções Antropológicas de Schelling,
p. 67-68; cf. também p. 83).
589
Cartas II, 22/11/1954, ao prof. Arvind U. Vasavada.
590
OC XVIII, § 1676.
591
CAMPBELL, A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, p. 308.
592
Cf. ibid.
593
Cf. id., p. 260.
Ao longo de nosso trabalho indicamos reiteradamente a centralidade da noção de
símbolo no pensamento de Jung. Ao examinarmos o seu teor epistêmico, sustentamos
ser o símbolo a noção epistemológica fundamental na psicologia analítica. Isso,
definitivamente, não se encontra em Kant, mas constitui a originalidade do pensamento
de Ernst Cassirer que, partindo da crítica kantiana, tenta depurá-la de um positivismo
cientificista que considera apenas a primeira Crítica, apoiando-se para tanto, em
especial, na Crítica da Faculdade do Juízo. Cassirer confere à noção de símbolo uma
eminência tal que o leva a definir o ser humano como animal symbolicum, propondo
assim uma espécie de pansimbolismo que, no entanto, ainda está muito comprometido
com a gica da identidade proveniente da crítica e da epistemologia kantiana, o que o
diferencia da concepção do símbolo em Jung.
594
Aparentemente Jung não se deu conta de que sua real afinidade a Kant passava
menos pela epistemologia da Crítica da Razão Pura do que pela estética da Crítica da
Faculdade do Juízo. Paul Bishop expõe com clareza a dimensão estética da psicologia
analítica e sustenta que “a psicologia de Jung como um todo pode ser encarada como
uma continuação do programa da estética como estabelecido por Baumgarten, Herder,
Goethe, Schiller, e Nietzsche. É dessa perspectiva que a realização intelectual de Jung e
sua significação cultural podem ser melhor apreendidas.”
595
Parece-nos, não obstante,
necessário insistir sobre o inquestionável primado do ético sobre o estético em Jung, o
que também o coloca na linhagem que parte de Kant, passa por Fichte e Schelling, para
exercer influência sobre o Romantismo alemão como um todo.
Como vimos, ao postular o esse in anima Jung o coloca como um intermediário
entre o esse in re e o esse in intellectu. Ora, essa intermediação é feita, segundo a teoria
do conhecimento kantiana, pela imaginação transcendental. Porém, a psique
imaginativa em Jung não pode ser homologada à imaginação transcendental da primeira
Crítica: intermediária entre a intuição sensível e as categorias do entendimento, a
imaginação transcendental kantiana é esquematizante, vinculada à forma de um senso
comum lógico. Os esquemas da imaginação transcendental em seu uso cognoscitivo em
Kant não coincidem com as fantasias da psique em Jung. A fantasia do esse in anima
aproxima-se mais da idéia estética da imaginação na Crítica da Faculdade do Juízo,
594
Cf. DURAND, G. A Imaginação Simbólica. São Paulo: EDUSP/Cultrix, 1988, p. 57-59.
595
BISHOP, P. “C.G. Jung and the Uses of Tradition”, p. 114. Cf. também BISHOP, P. “Epistemological
Problems and Aesthetic Solutions in Goethe and Jung”, in Goethe Yearbook, vol. 9, 1999, p. 278-317; id.
Synchronicity and Intellectual Intuition in Kant, Swedenborg and Jung, p. 156-158; id. “The Birth of
Analytical Psychology from the Spirit of Weimar Classicism”, in Journal of European Studies, v. xxix
(1999), p. 417-440.
que Kant define como “aquela representação da faculdade da imaginação que muito
a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, possa
ser-lhe adequado, que conseqüentemente nenhuma linguagem alcança inteiramente nem
pode tornar compreensível.”
596
Kant diz ainda que “tais representações da faculdade da
imaginação podem chamar-se idéias, em parte porque elas pelo menos aspiram a algo
situado acima dos limites da experiência, e assim procuram aproximar-se de uma
apresentação dos conceitos da razão (das idéias intelectuais), o que lhes dá a aparência
de uma realidade objetiva; por outro lado, e na verdade principalmente porque nenhum
conceito pode ser plenamente adequado a elas enquanto intuições internas.”
597
A concepção de imaginação na terceira Crítica parece-nos ser o elo teórico que
indica o ponto de partida para uma revisão crítica da dimensão teórica da psicologia
analítica. A experiência do sublime, em particular, fornece um forte ponto de apoio para
a nossa posição. A imaginação no sublime, confrontada com a irrepresentabilidade das
idéias da razão (infinito, liberdade e totalidade), é libertada da forma de um senso
comum (seja o lógico da imaginação esquematizante da Crítica da Razão Pura, seja o
estético do juízo de gosto na Analítica do Belo da Crítica da Faculdade do Juízo) e
atinge sua forma propriamente pura, no sentido kantiano. Na experiência do sublime,
segundo Kant, a imaginação quase “enlouquece”, “arrisca-se a crescer até o
entusiasmo” e se põe a expressar o inexprimível em linguagem junguiana, a produzir
símbolos.
Kant faz o gosto “cortar as asas” do gênio, disciplinando e limitando a
imaginação pela imposição de um acordo subjetivo com o entendimento, para garantir à
obra do gênio a beleza tal como definida na Analítica do Belo, onde a forma sensível do
objeto é o fundamento exterior necessário ao juízo de gosto. Evita-se assim o “choque”
do entendimento submetendo-se a liberdade da imaginação à restrição de referir-se à
forma do objeto enquanto representação (que pertence ao conceito do objeto) e assim,
como observa Gérard Lebrun, “subsiste um núcleo comum entre a Gestalt estética e o
Gegenstand teórico” em Kant.
598
Mas no sublime, a ruptura desse vínculo e da restrição
que ele impõe liberaria a imaginação do acordo com o entendimento via representação
objetiva para deixá-la expressar as idéias da razão, o supra-sensível subjetivo segundo
Kant. As idéias estéticas da imaginação, no gênio, voltam-se para as idéias da razão e
596
KANT. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense, 1995, § 49, p. 159.
597
ibid., p. 159-160.
598
LEBRUN, G. Kant e o Fim da Metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 564.
buscam expressá-las. Mas essa expressão não poderia se conformar a nenhum conceito:
seria, em linguagem junguiana, eminentemente simbólica.
É sabido o papel que a leitura da Crítica da Faculdade do Juízo nos círculos
idealistas e românticos teve no ultrapassamento de Kant. As noções de imaginação e de
gênio na terceira Crítica serão recebidas no período posterior a Kant e, trabalhadas e
desenvolvidas reflexivamente, exercerão papel fundamental nas grandes construções
teóricas que se erguem nesse mesmo período. A faculdade de apresentar idéias estéticas,
própria da imaginação na Crítica da Faculdade do Juízo, e que Kant atribui também ao
gênio, converte-se, para o Romantismo, em poder intuitivo cognoscente da imaginação
poética, superior ao conhecimento empírico e correspondente “à capacidade expansiva e
à força irradiante do Eu, à originalidade e ao entusiasmo, a elevação, a espiritualidade e
a liberdade da vida interior.”
599
Após a reavaliação kantiana da noção de gênio, este
passa a ser entendido como a capacidade sintética que universaliza e transubstancia, e
assim a fantasia se liberta da tutela da razão teórica kantiana e por conseguinte da
ciência. O gênio alcança pela intuição aquilo que é vetado ao conhecimento racional:
criando seu objeto sem imitar, o gênio torna-se o órgão da intuição intelectual, que se
especifica como intuição artística. O Romantismo alemão, acolhendo a noção kantiana
de gênio, confere-lhe “uma posição teórica e prática superior, de porte ético, estético e
metafísico, supra-sumo da originalidade do indivíduo singular e do estado de
entusiasmo.”
600
Por fim: o gênio será uma das bases da Naturphilosophie de Schelling
que, como sugerimos, representa uma das matrizes teóricas mais condizentes com a
verdadeira essência epistêmica da psicologia analítica.
Na medida em que, segundo a nossa interpretação, a psicologia analítica tem
como fundamento a concepção de imaginação simbólica, ela pode ser comparada com a
concepção romântica da poesia (que se assentava na combinação das linhas-mestras da
metafísica do Espírito de Fichte com as da filosofia da natureza de Schelling): “Ora
linguagem original e primitiva, ora linguagem intercomunicante dos domínios religioso,
ético e filosófico, a poesia, superior à ciência, análoga à filosofia, capaz de exercer uma
ação moral e de purificar a religião, sustentada por um processo apologético de
dignificação, alça-se a um plano de universalidade cultural e histórica, penetrando
599
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 61.
600
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 61.
horizontalmente em todos os domínios da cultura, e enlaçando-se verticalmente, desde
os primórdios, ao desenvolvimento sócio-histórico.”
601
Certamente Jung recusaria peremptoriamente a compreensão de sua psicologia a
partir da noção romântica de poesia.
602
Mas mesmo insistindo em apresentar a
psicologia analítica, em sua dimensão teórica, como ciência, Jung opta por uma
linguagem deliberadamente não científica, e muito mais literária (anima, sombra,
animus, velho sábio, etc.), como forma de torná-la mais eficaz do ponto de vista
terapêutico.
603
Pelo menos aqui ele não cedeu às pressões que condicionavam à sua
época a legitimação de um saber científico, e nisso ele foi mais fiel à verdade que se
impunha em sua obra.
Pela analogia entre a imaginação simbólica em Jung, a imaginação na terceira
Crítica, e a imaginação poética nas construções dos sucessores de Kant, cremos
legitimar nossa afirmação acerca da afinidade teórica de Jung ao Idealismo Alemão e ao
Romantismo. O aprofundamento dessa afinidade levaria à superação da cisão interna da
psicologia analítica, originada da inadequação entre o ceticismo epistêmico teórico e a
natureza de sabedoria prática da psyches therapeia junguiana. Com isto, o legado de
Jung poderia encontrar a sua legitimação intelectual ou, para retomar os termos de
Jaspers que motivaram nosso trabalho, a sua comprovação ética e metafísica.
CONCLUSÃO
- I -
A interpretação em chave ético-filosófica do pensamento de Jung que
formulamos ao longo de nosso trabalho não desenvolveu uma importante dimensão do
objeto em análise. Para não falsearmos a perspectiva de Jung, é imperioso observar que
a experiência das múltiplas instâncias do Si-mesmo, na medida em que empiricamente
este se apresenta como uma espécie de “personalidade” objetiva ou supra-ordenada que
601
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 62. A validade dessa comparação vem justificar o título do belo
livro de Amnéris Maroni: “Jung, o poeta da alma”.
602
Mas é muito revelador o fato de que, na experiência de “descoberta” da anima, quando esta lhe sugere
que o que ele está fazendo é arte, Jung não responde estar fazendo ciência, mas sim natureza e aqui,
mais uma vez, teríamos a justificação para a interpretação de sua obra à luz da Naturphilosophie
romântica. Cf. JAFFÉ, A. C.G. Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 164-165.
603
Cf. OC X, § 83.
se opõe ao eu e o interpela, guarda analogias evidentes com a experiência religiosa,
604
e
assim pode ser comparada, por exemplo, à experiência grega antiga do daimon, cuja
versão homérica o helenista M.P. Nilsson resume assim:
“Homero aplica o termo daimon aos deuses antropomorfos de forte individualidade, mas mais amiúde a
individualidade vem concedida pela manifestação mesma do destino que ela impõe (...) O fato de que a
fonte da atividade humana esteja oculta nas profundidades de sua alma não permite ao homem citar um
deus individual determinado a modo de causa. O homem tem freqüentemente a impressão de ser
impulsionado por uma potência obscura que se opõe a suas intenções e o conduz a um resultado final que
ele não preparou nem desejou. Essa potência não poderia ser um dos deuses individuais, mas sim uma
potência divina obscura, indeterminada, um daimon.”
605
Jung interpretou explicitamente a noção religiosa de daimon em chave
psicológica, referindo-a à experiência das figuras do inconsciente coletivo, ora segundo
a categoria do Si-mesmo em sentido estrito,
606
ora segundo as categorias de anima e
604
‘Si-mesmo’ é algo que podemos verificar psicologicamente. Nós experimentamos ‘símbolos do Si-
mesmo’, que não se deixam distinguir dos ‘símbolos de Deus’. Não posso provar que o Si-mesmo e Deus
sejam idênticos, mesmo que na prática pareçam idênticos. Naturalmente, a individuação é em última
análise um processo religioso que exige uma atitude religiosa correspondente – a vontade do eu submeter-
se à vontade de Deus. Para não provocar mal-entendidos desnecessários, digo ‘Si-mesmo’ em vez de
Deus. Empiricamente também é mais exato.” Cartas II, 15/06/1955, a Hélène Kiener. Entenda-se bem: a
ação do psicoterapeuta, como Jung insistia e como indicamos na introdução, compara-se
preferencialmente à psyches therapeia filosófica da Antigüidade; já a configuração e os conteúdos da
experiência psicológica subjetiva freqüentemente apresentam analogias com a experiência religiosa. De
qualquer modo, vale lembrar que o elemento religioso já estava integrado (e transformado) na vida
filosófica antiga, e em especial na tradição socrático-platônica. Para uma excelente exposição sobre a
posição de Jung acerca da experiência religiosa, veja-se CHAPMAN, J.H. Jung’s Three Theories of
Religious Experience. Lewiston: The Edwin Mellen Press, 1988.
605
NILSSON, Les Croyances Religieuses de la Gréce Antique, citado em LAÍN-ENTRALGO, P. La
Curación por la Palabra en la Antigüedad Clásica. Madrid: Revista de Occidente, 1958, p. 20, nota 12.
606
Por exemplo, em OC XI, § 154, passagem em que fala do pressentimento pelos alquimistas de que o
que buscavam era o Si-mesmo humano: “É evidente que este ‘Si-mesmo’ jamais foi concebido como uma
essência idêntica ao eu; por isso mesmo foi descrito como uma ‘natureza oculta’ até mesmo na matéria
inanimada, como um espírito, [um daimon], ou uma centelha [flamejante].” Em suas memórias, Jung faz
o balanço final de sua vida nos seguintes termos: “Conheci todas as dificuldades possíveis para me
afirmar, sustentando meus pensamentos. Havia em mim um daimon que, em última instância, era sempre
o que decidia. Ele me dominava, me ultrapassava e quando tomava conta de mim, eu desprezava as
atitudes convencionais. Jamais podia deter-me no que obtinha. Precisava continuar, na tentativa de atingir
minha visão. Como, naturalmente, meus contemporâneos não a viam, podiam constatar que eu
prosseguia sem me deter. (...) como toda personalidade criadora, não era livre, mas tomada e impelida
pelo demônio interior. (...) A falta de liberdade causava-me grande tristeza. (...) Entretanto, o daimon urde
as coisas de tal modo que é possível escapar à inconseqüência abençoada e, em oposição à flagrante
‘infidelidade’, permaneço totalmente fiel. (...) O demônio interior e o elemento criador se impuseram a
mim de forma absoluta e brutal.” In JAFFÉ, C.G.Jung. Memórias, Sonhos, Reflexões, p. 308-309. Cf.
Cartas III, 05/12/1959, a M. Leonard: “Este é o nome {Deus} que dou a todas as coisas que atravessam
de maneira violenta e temerária o meu caminho voluntariamente traçado, a todas as coisas que
[perturbam] meus pontos de vista subjetivos, meus planos e intenções e que mudam o curso de minha
vida para melhor ou [para] pior. De acordo com a tradição, chamo o poder do destino neste aspecto
positivo ou negativo, [e visto que] sua origem está além de meu controle, [‘Deus’, um ‘Deus pessoal’],
pois meu destino significa na verdade eu mesmo, sobretudo quando [ele] se aproxima de mim na forma
da consciência [moral] [como uma] vox Dei com a qual posso até mesmo conversar e discutir.” A
tendência espontânea da psique de manifestar seus conteúdos sob forma de personificações foi
aproveitada por Jung de forma criativa na técnica da imaginação ativa que, entendida em sentido mais
animus, o que lhe permitia apresentar uma visão dos relatos antigos a respeito da
experiência do daimon por exemplo, no célebre caso de Sócrates
607
- compatível com
a sensibilidade moderna.
Não desenvolvemos essa dimensão da individuação e do Si-mesmo aqui, pois
isso nos afastaria do objetivo restrito que nos impusemos. Mas é preciso salientar que a
consideração ontológica dessas duas noções fundamentais da psyches therapeia
proposta por Jung precisaria ser complementada pela analogia teológica, para compor o
quadro completo da compreensão filosófica de seu caráter de sabedoria prática.
Nossa opção metodológica pelo referencial teórico aristotélico para a
comprovação do estatuto de sabedoria prática da psyches therapeia junguiana poderia
ser mantida no caso de um desenvolvimento da complementação teológica. A
experiência psicológica do Si-mesmo guarda analogias estruturais com a inspiração
divina reconhecida por Aristóteles nos casos de êxtase, entusiasmo e excitação
melancólica
608
, em que a imaginação é comandada por um princípio superior à razão
discursiva (logos)
609
. Esse princípio é o elemento divino em nós: “o princípio do logos
não é o logos, mas algo mais forte. Que poderia haver de mais forte que a ciência e a
inteligência ao mesmo tempo, se não deus?”
610
. Jackie Pigeaud assevera que se deve
tentar pensar essa última passagem mesmo fora de seu contexto, dado seu caráter
aforístico geral, e comenta:
“O logos, isto é, a racionalidade, encontra a sua origem em algo mais forte do que ele; dever-se-ia dizer
em algo que lhe é inassimilável, na força mesma. É deus; pode ser a natureza ou o natural. Quando a
razão é ocultada, quando cedeu o lugar ao natural, isso se passa como para os melancólicos. ‘Os
melancólicos m sonhos verídicos; o princípio com efeito parece exercer um maior poder quando a
razão se separou, assim como os cegos têm uma melhor memória, porque esta se separou dos objetos
visíveis’ (Ética a Eudemo, 1248 a 39 –b 3).”
611
amplo, constitui o cerne da originalidade de sua proposta psicoterapêutica. Cf. OC VII, § 312, 321ss; OC
XIII, § 58, 61ss.
607
Cf. Cartas III, 09/01/1960, a Hugo Charteris, em que Jung interpreta a voz do daimon de crates
como manifestação da anima, e diz, criticando a perda da experiência do daimon com a subjetivização
psicologizante moderna: “Mas quem escuta o daimon? Nós falamos mas ele não diz nada; ele nem mesmo
existe; e, se existisse, não passaria de um erro patológico. A ‘ingenuidade’ de Sócrates é sua grandeza que
supera a nossa. Sua humildade é um ideal que ainda não atingimos. Consideramos seu daimon como uma
peculiaridade individual, se não algo pior.” Para uma interpretação psicológica mais complexa do daimon
de Sócrates, cf. VON FRANZ, “The Dream of Socrates”, in Dreams. London: Shambhala, 1998, p. 35-
64.
608
Cf. Ética a Eudemo, 1248 a 33; Ética a Nicômaco, 1152 a 28-29.
609
Cf. De Memoria et Reminiscentia, 453 a 10; 451 a; Ética a Nicômaco, 1150 b 25 ss; Ética a Eudemo,
1225 a 27 ss.; 1248 a 39-41.
610
Ética a Eudemo, 1248 a 26- b 1.
611
PIGEAUD, in ARISTÓTELES. La Verité des Songes. De la Divination dans le Sommeil (Parva
Naturalia 462 b- 464 b). (Traduit du grec et presenté par Jackie Pigeaud) Paris: Payot & Rivages, 1995, p.
57.
Aristóteles admitia a superioridade da inspiração divina sobre o intelecto e a
deliberação nesses casos. A concatenação dessa inspiração divina com o nous é
extremamente problemática mas, pelo menos em princípio, poderia ser pensada. Assim,
as obscuridades que cercam a famosa passagem de De Anima, 430 a 10-23, confirmada
por De generatione animalium, 736 b 27-28, em que Aristóteles diz do nous - a essência
do ser humano – que ele vem “de fora”, é imortal, transcendente e divino, convidariam a
uma investigação das possíveis relações e tangências entre o nous, a psyche e o daimon
religioso e a história do aristotelismo antigo e medieval mostra que os peripatéticos
não se furtaram a tal convite. Giovanni Reale resume as perguntas não respondidas a
respeito do nous no texto aristotélico:
“Esse intelecto é individual? Como pode vir ‘de fora’? E que relação tem com a nossa individualidade e
com o nosso eu? E que relação tem com o nosso comportamento moral? Está subtraído a qualquer destino
escatológico? E que sentido tem a sua sobrevivência ao corpo? Algumas dessas interrogações não foram
sequer levantadas por Aristóteles, e estariam destinadas, de qualquer modo, a não ter estruturalmente
resposta”.
612
Em especial, as questões acerca da relação que tem o nous com a nossa
individualidade, nosso eu, e com o nosso comportamento moral abrem o espaço para
uma aproximação à sabedoria prática em Jung sob o ângulo teológico. Na experiência
psicológica, o Si-mesmo aparece como “de fora” em relação ao eu, como uma
alteridade “numinosa”, mas é teoricamente compreendido como sendo tanto o núcleo
ordenador fundamental da psique como a totalidade desta. A transcendência do Si-
mesmo à consciência não leva Jung a se decidir resolutamente pelo passo metafísico de
afirmar sua transcendência à própria psique, que para ele é o meio em que se dá
qualquer experiência subjetiva, independentemente da afirmação ou não de seus
correlatos objetivos. Porém, por outro lado é inegável a persistência de um pressuposto
metafísico “forte” na teorização junguiana: os arquétipos em si, sendo irrepresentáveis,
têm um estatuto que poderíamos chamar, seguindo Kant, “numenal”, e que Jung
caracteriza com o termo “psicóide”, para salientar a sua transcendência radical com
relação à consciência, razão de sua incognoscibilidade, e a sua natureza “quase
psíquica” ou “semelhante à psique”, o que significa, em última análise, que o arquétipo
transcenderia a própria psique e assim estaríamos aparentemente mais próximos da
metafísica neoplatônica.
612
REALE, G. História da Filosofia Antiga, vol. II. São Paulo: Loyola, 1994, p. 398.
A menção que fazemos ao neoplatonismo descortina um outro
cenário teórico que poderia ter sido escolhido para a compreensão da
psicologia analítica, e que apresentaria vantagens e desvantagens em
relação à escolha do referencial aristotélico, tanto do ponto de vista
ontológico quanto do teológico. Se a matriz aristotélica parece mais
adequada para elucidar e comprovar a correlação phronesis-psicoterapia
analítica, a matriz neoplatônica teria a vantagem de oferecer um referencial
mais cômodo para a especificação da sabedoria prática junguiana como
hermenêutica vivida das imagens simbólicas. A noção de símbolo em Jung
inspira-se em grande parte na obra de Friedrich Creuzer, Symbolik und
Mythologie der alten Völker besonders der Griechen. Creuzer, por sua vez,
estava profundamente embebido pelo neoplatonismo de Plotino, Proclo e
Olimpiodoro, de cujos textos originais fora editor, em 1820-22 e 1835.
Assim, não é de se estranhar que a valorização do símbolo em Jung,
essencial à sua práxis psicoterapêutica, apresente um inconfundível tom
neoplatônico.
613
Evidentemente, a questão das relações entre consciência e inconsciente não se
colocavam para Aristóteles, muito menos nesses termos psicológicos. Por outro lado, há
paralelos bem definidos entre a concepção junguiana da personalidade humana total,
com seu núcleo na noção de Si-mesmo, e a distinção plotiniana entre psyche e
hemeis.
614
E.R. Dodds interessou-se pelas contribuições de Plotino à psicologia. Em
seus comentários no colóquio Sources de Plotin
615
Dodds fornece exemplos e
estabelece paralelos entre Plotino e a moderna psicologia do inconsciente ou psicologia
profunda. Também Philip Merlan, especialista em neoplatonismo, traça paralelos entre
Jung e Plotino no que se refere à noção de inconsciente coletivo.
616
No campo da
Psicologia Arquetípica, James Hillman aponta Plotino como precursor de Jung em
matéria de psicologia
617
. No entanto, Hillman reconhece de passagem que o método
empírico-comparativo de Jung é mais próximo do modo de proceder de Aristóteles do
613
No tocante ao problema do símbolo, repita-se que, se é inegável que a gnosiologia aristotélica
desinteressa-se da questão do simbolismo como modo de conhecimento ordinário, por outro lado
Aristóteles admite a existência de outras formas de conhecimento não abarcadas em sua gnosiologia.
Como sugerimos no capítulo segundo, seria possível um desenvolvimento a partir dos princípios
fundamentais do aristotelismo que resultasse em uma teoria do simbolismo e de sua capacidade
cognoscitiva “anômala”, por assim dizer. É o que faz Tomás de Aquino no tocante à revelação.
614
“[Plotino] aparentemente foi o primeiro a fazer a distinção vital entre a personalidade total (psyche) e a
consciência do ego (hemeis) (...) Toda a sua psicologia depende dessa distinção entre Psyche e ego.”
DODDS, E.R. The Ancient Concept of Progress and Other Essays. Oxford: Clarendon, 1973, p.135. Cf.
PLOTINO, Enéadas I, 1, 7.
615
Génève: Vandoeuvres, 1960, p.384ss.
616
Cf. MERLAN, P. Monopsychism, Mysticism, Metaconsciousness. The Hague: Nijgoff, 1963, p.55.
617
Cf. “Plotino, Ficino e Vico Precursores da Psicologia Arquetípica”, in HILLMAN, J. Estudos de
Psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981, p. 169-192. Hillman desenvolve seu argumento
apoiando-se na literatura filosófica especializada sobre Plotino e o neoplatonismo (Dodds, Blumenthal,
Inge, Merlan, Schwyzer e Warren).
que de Plotino: “Jung tenta sustentar sua concepção da impessoalidade e da
universalidade dos processos psíquicos básicos através da alusão a um substrato
inferior, reunindo, à maneira de Aristóteles, evidências empíricas encontradas em almas
alienadas e em culturas exóticas. Plotino não faz nenhuma tentativa nesse estilo.”
618
Observe-se também que o conceito de enteléquia, com que Jung compreende o
Si-mesmo enquanto totalidade psíquica, é assimilado do aristotelismo por Plotino, que
no entanto explicitamente não o identifica à alma, já que esta, segundo o modelo
metafísico platônico, não inere ao composto humano, sendo dele separável o que não
ocorre com a enteléquia. Mas Plotino não repete simplesmente Platão, elaborando uma
antropologia nova em que, ao assimilar a crítica de Aristóteles a Platão, intenta
compaginar o dualismo platônico com o hilemorfismo aristotélico, dando a impressão
“de abrir para si um novo caminho forjando um hilemorfismo de novo cunho que,
salvando ao mesmo tempo a transcendência da alma e a unidade do composto, ponha
fim ao conflito entre o dualismo e o entelequismo.”
619
Os dois aspectos mais salientes
dessa nova antropologia são a existência de uma entidade intermediária entre a alma
real e o corpo (uma “imagem da alma”) e a imanência dessa imagem da alma no corpo,
a modo de forma ou enteléquia, resultando em uma união que Jesús Igal qualifica como
hilemórfica ou “quase-hilemórfica”.
620
Ao tentar atender às exigências postas por
Aristóteles, Plotino diminui a distância entre a antropologia platônica e a aristotélica,
sem contudo eliminá-la.
621
De resto, a história do aristotelismo medieval mostra que é possível uma
combinação, em formas e graus variados, das matrizes aristotélica e neoplatônica. Uma
tal combinação poderia fornecer um instrumento de leitura adequado à complexidade
das configurações teóricas implícitas na psicologia analítica.
Da mesma forma, Werner Beierwaltes, eminente especialista em neoplatonismo,
sustenta que se deve inscrever o Romantismo na tradição neoplatônica, e também
desenvolve as analogias existentes entre neoplatonismo e Idealismo alemão
622
. E no
618
id., p. 175.
619
IGAL, J. “Aristóteles y la Antropología de Plotino”, in Pensamiento, vol. 35 (1979), p. 331-332.
620
Cf. IGAL, “Aristóteles y la Antropología de Plotino”, p. 332-333.
621
Além do artigo supracitado de Jesús Igal, para a relação neoplatonismo-aristotelismo em Plotino veja-
se BLUMENTHAL, H.J. Plotinus Psychology. His Doctrines of the Embodied Soul. La Hague: M.
Nyjhoff, 1971; cf. também BLUMENTHAL, H.J. “Plotinus’s Psychology: Aristotle in the Service of
Platonism”, in International Philosophic Quarterly, 12 (1972), p. 340-364.
622
Cf. BEIERWALTES, W. Platonismo e Idealismo. Bologna: Il Molino, 1987. Cf. ainda, do mesmo
autor, Pensare l’Uno. Studi sulla Filosofia Neoplatonica e sulla Storia dei suoi Influssi. Milano: Vita e
Pensiero, 1991, p. 173-199 e 369-385; e ainda Identità e Differenza. Milano: Vita e Pensiero, 1989, p.
239-309.
interior desse neoplatonismo alemão do século XIX elabora-se, em consonância com
toda a tradição neoplatônica, uma típica maneira de se ler Aristóteles.
Jung, mais próximo ao entelequismo de feitio aristotélico no tocante à
antropologia, aponta contudo Plotino como o primeiro testemunho da noção de Unus
Mundus que ele reabilita para compreender os fenômenos sincronísticos.
623
Como quer que seja, a natureza simbólico-religiosa da experiência da
individuação e do Si-mesmo, compreensível em termos moderados segundo a matriz
aristotélica e em termos mais diretos segundo a matriz neoplatônica, não suprime a
decisão ética que cabe ao eu consciente o que significa que a psyches therapeia
junguiana preserva integralmente seu caráter de sabedoria prática, mesmo no interior de
uma experiência religiosa.
- II -
Um ceticismo de alma romântica, ou um romantismo despotenciado
ceticamente: eis a imagem que resume a reconstrução que propomos em nossa
interpretação do pensamento de Jung no quarto capítulo. E esta imagem entranha um
problema, quando a superpomos às demais reflexões que desenvolvemos em nosso
trabalho: mostramos como o sentido cultural da psicologia de Jung reside em sua
tentativa de recuperar para uma consciência moderna a sensibilidade simbólica, como
uma saída para o niilismo ético que parece se aninhar na trama mesma de sua
constituição. Nomeado como “crise espiritual” do homem moderno, que se via obrigado
pelo sofrimento psíquico a sair em busca de sua alma - conforme o título de um de seus
livros mais populares, Modern Man in Search of a Soul -, o niilismo aparece na
compreensão de Jung sob as formas da falta de sentido da vida, da desorientação moral
e de visão de mundo, da massificação do indivíduo com a conseqüente destruição de sua
individualidade pessoal. Se reunirmos as duas afirmações de Jung a falta de sentido é
a neurose contemporânea generalizada, e a cura da neurose é uma realização moral, ou
um problema moral -, podemos sustentar nossa posição de que a psyches therapeia
junguiana é fundamentalmente uma tentativa de resposta ao niilismo ético que se irradia
a partir do centro simbólico da cultura ocidental moderna.
623
Cf. OC XIV-2, § 416 (CW XIV, § 761).
Mas, dada a dupla natureza cética e romântica da psicologia analítica que
extraímos da análise precedente, será que não estaríamos diante de uma das figuras que,
pelo contrário, confirmam o triunfo inelutável do próprio niilismo? Por participar em
larga medida da visão de mundo romântica, não estaria a psyches therapeia de Jung,
com muito mais força ainda por proibir ceticamente qualquer fundamentação
metafísica, inelutavelmente condenada ao fracasso de sua intenção fundamental? A
promessa de uma possibilidade de superação do desenraizamento niilista pela
experiência da realidade simbólica não se revelaria, ao seu termo, como uma ilusão
mesmo que uma ilusão que ajuda a viver melhor?
Esclareçamos este problema. Nietzsche interpreta o Romantismo como “tardia
justificativa da fé, hipérbole de uma grande paixão consumida”.
624
Convergindo com a
crítica de Hegel na Fenomenologia do Espírito acerca da infinitude romântica, ele
denuncia por debaixo de uma retórica de abundância a carência insaciável, que perpetua
a fome de que nasceu a paixão romântica. Segundo Goethe, o Romantismo seria muito
mais o sintoma de uma doença do que um estado eufórico de saúde. Se a experiência
romântica do mundo é vivência de uma teofania, no entanto ela não consegue, por estar
enraizada no “avultamento do sujeito” que se instila na tradição metafísica ocidental
moderna
625
, se libertar de sua equivocidade fundamental:
“Dialogando com as coisas, que lhe falam à alma, é de si mesmo que o poeta romântico sempre fala. Nas
condições de sua sensibilidade conflitiva, o dinamismo da interiorização permanentemente reconduz à
direção centrípeta para dentro e para o Eu a direção centrífuga da consciência para fora e para as
coisas.”
626
Por fim, também o tema idealista da morte de Deus e da morte do deus,
assinalando embora a esperança romântica de uma renovação do eu, está diretamente
presente nas raízes do niilismo contemporâneo.
627
Porém, o processo movido contra o Romantismo por seus críticos e/ou
adversários está longe de ser cabalmente vitorioso.
628
Há interpretações divergentes, que
624
Cf. NUNES, “A Visão Romântica”, in GUINSBURG, J. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva,
1985
2
, p. 74.
625
Cf. ibid.
626
NUNES, “A Visão Romântica”, p. 67-68.
627
Cf. PROCESI, “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, in CAROTENUTO, A. ( dir.) Trattato di
Psicologia Analitica. Volume Primo: La Dimensione Culturale. Turim: UTET, 1992, p. 64.
628
Acima de tudo é preciso lembrar que a própria rubrica “Romantismo” não designa um fenômeno
histórico e cultural homogêneo e unitário, como acentuou A.O. Lovejoy (cf. “On the discrimination of
Romanticisms”, in Essays in the History of Ideas. Baltimore: John Hopkins Press, 1948, p. 228-253).
Mais correto seria falar-se dos vários Romantismos que surgem no período oitocentista e diferenciá-los
desenham um quadro bem diferente. Por exemplo: Georges Gusdorf sustenta que a
acusação de niilismo levantada contra o Romantismo detém-se nas aparências:
ontologia do nada, o Romantismo não é contudo um nada de ontologia
629
; filosofia do
não, não é uma não-filosofia: o momento negativo caracteriza o fascínio da consciência
romântica pelo Absoluto, que não pode se identificar às formas positivas que pretendem
exprimi-lo. Por isso, a negatividade romântica, que não é negativismo para Gusdorf, se
inscreve na tradição negativa da espiritualidade ocidental, cujas origens platônicas e
neoplatônicas remontam ao ambiente cultural da Alexandria antiga, perpassando toda a
teologia apofática medieval e cristã. Segundo Gusdorf, justamente a poética romântica
triunfa sobre o Nada, respondendo a uma intenção metafísica e religiosa.
630
E na
extensão da poética romântica situa-se a experiência simbólica junguiana.
Em face da polêmica sobre a caracterização do Romantismo como forma de
niilismo esse “reverso dialético perfeito da experiência do Absoluto real”
631
-,
permanece em suspenso a resposta à questão que formulamos acerca do fracasso da
intenção fundamental da psicologia analítica: a natureza romântica da experiência
simbólica, pelo menos até o momento, não pode ser categoricamente julgada (e
repudiada) como expressão do triunfo do niilismo. De qualquer maneira, a suprassunção
do ceticismo epistêmico de Jung em uma reflexão metafísica específica permanece
como uma exigência a ser cumprida perante o tribunal da razão, no que diz respeito à
suspeita de niilismo.
- III -
segundo seu teor específico. Como esse propósito foge de nossa alçada e de nossos objetivos,
contentamo-nos aqui com uma apreciação bastante genérica.
629
“O Nada romântico evoca a presença total do Ser sem restrição, em sua identidade incaracterizável,
antes que lhe sejam aplicadas as formas restritivas de nossa linguagem e de nosso intelecto.” GUSDORF,
G. Les Sciences Humaines et la Pensée Occidentale. Volume X: Du Néant à Dieu dans le Savoir
Romantique. Paris: Payot, 1983, p.116. Denise Souchez-Dagues confirma de início a posição de Gusdorf,
quando afirma que “para Schelling, é ao reconhecer sua negatividade inelutável que o pensamento teórico
se abre a uma positividade diante da qual ele se apaga completamente, abdicando de toda palavra,
portanto de toda determinação, em uma alegria esfuziante que suprime mesmo toda apresentação. Então o
ultrapassamento do niilismo se faz como o deixar-ser do niilismo. Por sua conjugação com a mística, a
especulação descobre no niilismo o acesso a uma ontologia negativa, mesmo a uma me-ontologia.”
(Nihilismes. Paris: PUF, 1996, p. 76) Mas em seguida a autora estampa uma posição frontalmente oposta
à de Gusdorf, ao concluir que “assim se confirma que o ‘niilismo’ não é jamais um discurso simples: ele
engloba na realidade a si mesmo e à sua crítica, reduplicando-se através de sua auto-negação.” (ibid.)
Porém, poderíamos com igual legitimidade inverter a conclusão de Souchez-Dagues e incluir o niilismo
como um momento dialético interno à própria experiência do Absoluto. Desta forma, a decisão acerca da
natureza niilista da experiência romântica esbarra em uma espécie de antinomia problemática.
630
Cf. GUSDORF, op. cit., p. 115-119.
631
VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 175.
Jung assume o primado da realidade humana na episteme moderna, mas,
pretendendo seguir Kant e ampliar sua epistemologia, ele na verdade dela diverge
ceticamente. Constrói assim uma psicologia cética que formula hipóteses e modelos
sobre a coisa-em-si
632
. Mas, ao contrário do cético tradicional, antigo ou moderno, Jung
não deixa de lado as “impressões” ou imagens que fornecem o material para a razão
metafísica. Ele as toma, de acordo com sua premissa fundamental, como realidades
psíquicas efetivas, e propõe um modo concreto de vida e ação a partir da sua
interpretação, que Lídia Procesi avalia assim:
“Se, com o fim da metafísica, não é mais possível a psicologia como ciência, é possível uma
fenomenologia da experiência interna da qual nasce ou se regenera o eu, como paradigma da terapia da
consciência (...) A psicologia analítica mantém, ao lado dos cânones operativos das ciências empíricas,
uma rica e corajosa linguagem metafórica, e dela se serve como instrumento dúctil, na convicção de que o
tratamento terapêutico deve antes de tudo poder reconhecer e reviver o sofrimento psíquico, respeitando o
ser humano e a sua afetividade, acolhendo-o como pessoa, mais do que como corpo, evitando reduzi-lo a
um mero objeto quantificável: por isso ela encontra um direto antecedente neste horizonte filosófico, no
qual a ciência a que eminentemente compete o conhecimento do homem foi individuada e fundada como
hermenêutica.”
633
Contudo, o diagnóstico acerca do “fim da metafísica” é prematuro. Por um lado,
a inteligibilidade metafísica conquistada no empreendimento do Idealismo Alemão não
pode ser liqüidada tão facilmente como pretendem os arautos da morte da metafísica.
Por outro lado, a certeza metafísica realista da metafísica antigo-medieval do ser
poderia ser recuperada legitimamente passando pela interlocução com Kant e por seu
possível ultrapassamento em bases não idealistas. Assim sendo, a epistemologia cética
de Jung pode ser reconfigurada de acordo com uma nova fundamentação, mais
adequada ao perfil teórico que se projeta a partir das concepções fundamentais da
psicologia analítica, e mais afinada com a versão contemporânea da experiência
simbólica afinal, indiferente à verdadeira titanomaquia envolvendo as disputas entre
legitimidade versus morte da metafísica, a alma humana continua a se manifestar
através dos mesmos processos de simbolização (antinômicos) que permitem a
compreensão e recuperação atual de experiências simbólicas passadas. Enquanto essa
disputa não se decide, as pessoas continuam a buscar um sentido para suas vidas, sendo
632
Cf. Cartas I, 8/4/1932, a A. Vetter (citada no capítulo quarto).
633
PROCESI, L. “Gli Antecedenti Filosofici di C.G. Jung”, p. 64-65.
essa uma necessidade humana imperiosa.
634
Impedida de fornecer, nessa situação, um
sentido com o selo de garantia da certeza metafísica e/ou religiosa, doravante sempre
problemática, a psicologia analítica pode cumprir sua função prática apontando para
as manifestações da alma e oferecendo aquilo que, afinal, define a vida e o pensamento
de Jung: a possibilidade do mito do sentido. Porém, a ambigüidade própria de qualquer
mito, e em especial na configuração mental moderna, não permite solucionar a
vizinhança do ceticismo de Jung ao niilismo.
O homem do espaço hermenêutico podia realizar a experiência da
autoconsciência, ou do reencontro com a fonte autêntica de si mesmo, pela mediação da
tradição, que lhe indicava, sob a forma de um símbolo fundamental, o modelo que
correspondia à realização plena da humanidade, e portanto de sua individualidade
pessoal profunda e desconhecida. Realizava o conhece-te a ti mesmo” sob a égide
desse modelo. No caso da civilização cristã, a Imitatio Christi ganha sentido nesse
contexto
635
. O homem moderno, destruindo a marteladas o vinculum com a tradição,
perde essa mediação e tem que fazer a experiência humana fundamental no interior da
situação de nil-hylum, o que significa fazê-la imediatamente, ou seja, na interioridade da
experiência subjetiva.
Sob o ponto de vista cultural, podemos interpretar o fenômeno do niilismo,
entendido como forma cultural dominante em que desemboca a experiência particular
da modernidade, como indício de uma situação histórica particular, o que significa que
encontramo-nos coletivamente no momento arquetípico da destruição. Tomados
psicologicamente, os temas de destruição niilista podem ser compreendidos também
como momentos estruturais do processo de individuação, que supõe a destruição de
formas caducas de existência como condição para a emergência de formas renovadas.
636
Aqueles temas integram o ritmo do ciclo vital, simbolizado pelo mitologema do
renascimento, cuja universalidade confirma o seu caráter arquetípico.
Vivemos, se encararmos nosso tempo por este ângulo, a agonia de um mundo
que paradoxalmente destruiu os fundamentos de seus valores (niilismo ético) e que,
incapaz por isso mesmo de encontrar uma norma transcendente e universal que
634
“A inquietação metafísica permanece e reponta aqui e ali no mundo da objetividade como inquietação
sobre o sentido da imensa aventura na qual o homem moderno se lançou, e que as razões da utilidade não
conseguem acalmar.” VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 218.
635
Cf. GILSON, E. L’Esprit de la Philosophie Médiévale. Paris: Vrin, 1998
2
, capítulo XI (“La
conaissance de soi-même et le socratisme chrétien”, p. 214-233).
636
A literatura junguiana trata desse tema a partir da constelação arquetípica puer-senex. Também nessa
linha estaria a compreensão de Jung a respeito da inevitabilidade do iconoclasmo niilista ocidental.
comande a organização e forneça o sentido de sua existência, precipita-se na auto-
destruição que se verifica cotidianamente e de forma banalizada na escalada sem freios
de violência, no alastramento das mais inacreditáveis perversões (pedofilia,
canibalismo, parricídio, etc.), no insidioso vazio camuflado sob a luxuriante e
inesgotável selva de informações, novidades de consumo e objetos tecnológicos. Porém,
resta ainda a possibilidade de ser esta constelação cultural não uma estação terminal,
mas um momento logicamente necessário de uma renovação civilizacional, ou parte
integrante da experiência religiosa ocidental.
637
Bertrand Saint-Sernin conclui sua exposição sobre o niilismo no Dicionário de
Ética e Filosofia Moral lançando um olhar para a sua possível superação:
“Tudo se passa como se não nos restasse nada, para reencontrar a razão, além do caminho desviado,
obscuro, arriscado, de um salto no escuro, de uma aposta: nós estamos expostos ao ‘nada’, e nos é pedido,
segundo as palavras de Fénelon, ‘nada acrescentar a este puro nada’. O que isso mostra, senão que o
homem, para sair do niilismo, não pode mais recorrer hoje em dia à velha farmacopéia metafísica ou
positiva? Ele tem necessidade de uma ‘revelação’ que a sua razão e a sua alma possam entender. Este que
fará ressoar esta esperança, se ele vier um dia, restituirá ao homem o seu rosto e colocará fim à figura
presente e passada do niilismo.”
638
Nos termos finais em que Saint-Sernin coloca a questão, a superação do niilismo
depende de uma experiência, que em sua formulação aparece com os traços
inconfundíveis de uma experiência religiosa pois esse “que virá” para restituir ao
homem o seu rosto pode ser o próprio Deus, que se revela nessa experiência. De
acordo com essa perspectiva, a superação do niilismo não depende apenas de uma opção
da razão pela metafísica ou contra ela -, mas de uma presença que se revela e é
compreendida no interior da experiência, “pela razão e pela alma”. Portanto, é
fundamental que o sujeito consiga compreender a sua experiência e a razão tem
algo a dizer.
637
“Mas, e se a exigência do Absoluto transcendente estiver inscrita na própria essência e no dinamismo
mais profundo da Razão? E se foi a implacável dialética dessa exigência, desdobrando-se no terreno da
teoria da representação, a levar a humanidade moderna ocidental à dramática experiência do niilismo,
reverso dialético perfeito da experiência do Absoluto real, e a conviver com essas formas do não-sentido
absoluto da violência e da morte, presentes como símbolos de uma civilização em crise, em todas as
encruzilhadas do nosso tempo?
Essas questões merecem ser postas e sobre elas convém refletir no momento em que ameaças nunca antes
pressentidas pairam sobre a tradição do autêntico humanismo, sem dúvida o título mais incontestável de
legitimação histórica que a civilização e a cultura do Ocidente podem ostentar.” (VAZ, Escritos de
Filosofia III, p. 175)
638
Bertrand Saint-Sernin, verbete “niilismo”, in CANTO-SPERBER, M. (org.) Dicionário de Ética e
Filosofia Moral. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2003.
A forma religiosa que parece condicionar a possível superação do niilismo
converge com o que a fenomenologia da experiência religiosa estabelece. A experiência
da desolação, do vazio, da falta de sentido, é parte integrante da experiência maior do
sagrado – vejam-se a espiritualidade do deserto, a “noite escura da alma” de São João da
Cruz, e tantos outros relatos semelhantes dos místicos das mais diversas orientações
culturais religiosas. Por isso, na perspectiva da fenomenologia da experiência religiosa o
niilismo poderia ser compreendido como o equivalente de um momento estrutural da
revelação do sagrado: o momento do “silêncio de Deus”
639
, que é praticamente
insuportável em todo caso: é uma experiência dificílima, diante da qual a tendência
humana natural é a de se refugiar em alguma forma de idolatria que alivie a ausência de
sentido com a oferta de um sentido bem “à mão” e por se compreende o assim
chamado “retorno do sagrado” na sociedade contemporânea, tão evidente na
superabundante oferta de salvação dos mais variados matizes, ou em qualquer
sucedâneo da experiência religiosa autêntica: “o mercado de desejos expõe seus tristes
tesouros”.
640
Por se compreende também a atitude inversa, que corresponde à
consciência cínica, herdeira prática do desencantamento radical do mundo promovido
pela razão esclarecida.
Também Henrique Vaz arrisca um olhar na direção nebulosa da possível
superação do niilismo:
“Tudo, portanto, leva a crer que um passo além da pós-modernidade e esse passo será dado
necessariamente pelo homem do século XXI consistirá em repropor, provavelmente em novos termos,
nas diversas instâncias da cultura, sobretudo nas instâncias ética, filosófica e religiosa, o problema da
transcendência como problema de um Transcendente que se eleve acima da natureza, do sujeito e da
história.
Que traços irão compor a figura do Transcendente aos olhos do homem que terá percorrido o caminho do
individualismo moderno e da anomia pós-moderna? Talvez seja ainda prematura a tentativa de começar a
decifrar esses traços nos sinais ainda incertos que anunciam um novo tempo. É possível, no entanto,
prever que o reconhecimento do Transcendente ocorrerá por obra de um sujeito que terá reencontrado, em
novas formas de experiência e consciência históricas, sua dimensão mais profunda, ou seja, exatamente
sua abertura para a transcendência.”
641
A posição de Vaz diferencia-se da de Bertrand Saint-Sernin (e também da de
Lídia Procesi) na medida em que se abre para uma possível renovação da metafísica,
639
Cf. a carta a Karl Oftinger, de setembro/1957, onde Jung entende o “pavor ao silêncio”, manifestado
na moderna exponenciação do barulho, como defesa diante da possibilidade de uma “revelação”, que
se dá na situação de um “silêncio mortal”.
640
DRUMMOND, Viagem na Família.
641
VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 118. (A mensagem cristã pode ser de alguma valia nessa nova
experiência, “desde que a tentação da imanência tenha sido definitivamente vencida no discurso cristão”.
Ibid.)
evitando subscrever-se ao veredicto de seu fim irreversível. Tal renovação recupera para
a razão a possibilidade metafísica de pensar a possível nova forma de experiência de um
Transcendente, única via de real ultrapassamento do niilismo.
Parece-nos que esse Transcendente, entretanto, pode a princípio ser concebido
de duas formas: uma, para usar um termo hoje já caído em desuso até mesmo na
teologia cristã, seria sobrenatural; a outra seria natural.
642
Nos dois casos, estaríamos
diante de uma transcendência real e radical com relação ao sujeito humano, e assim a
“inanidade do antropocentrismo moderno”, com a forma de niilismo que lhe é correlata,
seria superada. As duas formas corresponderiam à afirmação de Deus ou da Natureza
como termos transcendentes radicalmente irredutíveis ao sujeito, e como fonte de
valores normativos para o agir humano. No primeiro caso teríamos a forma criacionista;
no segundo, a panteísta. O homem é parte da totalidade; essa totalidade o transcende,
seja ela a Natureza, ou tenha como fundamento criador o Ipsum Esse Subsistens. E no
caso da transcendência criacionista a situação é ainda mais clara: a condição de criatura
supõe uma diferença ontológica ineliminável entre a causa e seu efeito, o Criador e
sua criatura, o Ipsum Esse Subsistens participado e os seres que dele participam e
existem na medida dessa participação.
643
Na verdade, este é o problema interno à teologia contemporânea, que se defronta
com as mesmas dificuldades postas pela metafísica da subjetividade para a afirmação de
um Transcendente real. Henrique Vaz percebe claramente essa situação, e adverte os
teólogos:
“Instituir uma ontologia dos sinais com os quais se manifesta o objeto da fé, tal o desafio teórico
fundamental de toda teologia. Estará, nesse caso, toda forma de ontologia teológica ou teologal, ao
enunciar Deus e discorrer sobre o objeto da nos seus sinais, aprisionada no interior do paradigma
ontoteológico? Se assim fosse, não restaria ao teólogo senão renunciar ao estilo do pensar teológico nas
642
Henrique Vaz reconhece também o significado cultural e histórico da recuperação de uma outra atitude
com relação à natureza: “É lícito pensar que o frêmito ecológico que percorre hoje o mundo, além de
outras razões ligadas ao instinto de sobrevivência da espécie, recebe inspiração e alento da necessidade
profunda de buscar um princípio transcendente de valor, restabelecendo-se a estrutura ternária que
permitiu aos grupos humanos na história constituir-se como comunidades éticas. É por isso que nos
inclinamos a interpretar a exaltação quase mística da Natureza e a celebração da Gaia maternal como
fonte primigênia de valor, o que tende a lançar a onda ecológica na contracorrente do grande fluxo da
modernidade.” (Escritos de Filosofia III, p. 148)
643
Escaparia aos limites destas reflexões conclusivas acompanhar a crítica à insuficiência aporética da
concepção panteísta-naturalista, que percorre a tradição platônico-aristotélica da metafísica. De qualquer
modo, parece-nos que a relação entre a perspectiva panteísta e a criacionista não é, necessariamente, de
exclusão, podendo ser pensada segundo a modalidade da inclusão ou suprassunção da primeira na
segunda. É essa possibilidade que permite a Jürgen Moltmann propor uma “doutrina ecológica da
criação” (cf. MOLTMANN, J. Deus na Criação: Doutrina Ecológica da Criação. Petrópolis: Vozes,
1992) Cf. ainda o artigo do beneditino Willigis Jäger, “Mística Fuga do Mundo ou Responsabilidade
pelo Mundo?”, in Concilium/254, 1994/4: Espiritualidade (Mística e Crise Internacional), p. 587-601.
suas formas tradicionais, por exemplo agostiniana ou tomásica, e inaugurar uma teologia de ‘Deus sem o
ser’ ou de um Deus ‘desontologizado’. (...) Pretendemos apenas chamar a atenção para a inextricável
aporia gica inicial que se apresenta no propósito de um pensar sem ontologia (sem o ser) e que mina, a
nosso ver, a possibilidade de uma teo-logia não metafísica, revelando, na verdade, nos discursos
pretendidamente não-ontológicos, a presença de uma ontologia que não ousa dizer seu nome. (...) Com
efeito, não se pode negar o discurso da ontologia senão com outro discurso, e esse, por sua vez, é
necessariamente ontológico, pois nenhum discurso, articulado em enunciados inteligíveis, pode fazer a
economia do ser. (...) Como discorrer sobre o Deus vivo da Revelação senão negando toda ontologia?
Mas como negar a ontologia senão com o discurso de uma ontologia negativa que deve pressupor o ser
para poder negá-lo? Ora, a negação do ser, como mostrou Aristóteles, refuta-se a si mesma. Não resta à
teologia senão refugiar-se numa forma de narratividade poética a exemplo do último Heidegger ou
numa mística do inefável.”
644
A ruptura do círculo encantado em que a consciência reflexiva moderna se
enclausura exige a reversão da relação entre o Cogito e o ser definidora da metafísica da
subjetividade: não mais o ser absorvido no Cogito, mas o Cogito enraizado no ser.
645
Esta fundamentação escapa à alçada da psicologia empírica e, no que diz respeito ao
campo próprio de atuação de uma hermenêutica das imagens, pode ser estabelecida
filosoficamente por uma ontologia do símbolo, que teria condição legítima de alçar a
hipótese da “concepção unitária do ser” e do correspondente fundamento objetivo do
sentido ao seu estatuto metafísico legítimo.
646
Na verdade, esse movimento metafísico é exigido pela própria visão de Jung: ao
afirmar que a existência do mundo tem duas condições a primeira sendo existir, e a
segunda ser reconhecido por uma consciência
647
– Jung necessariamente afirma um
princípio que transcende a psique e que é condição de possibilidade para todas as
manifestações psíquicas: a existência. A premissa da Wirklichkeit der Seele pressupõe
necessariamente este prius ontológico, pois para algo “atuar” é preciso primeiro que
esse algo exista, que o nada não atua, por definição. Por esse motivo, o
ultrapassamento “existencialista” de Kant está presente como exigência latente no
pensamento de Jung, e por tal motivo a interlocução com o pensamento do segundo
Schelling parece-nos legítima e fecunda. Por outro lado, a recuperação contemporânea
da metafísica tomásica do actus essendi, à qual Henrique Vaz valiosa contribuição,
644
VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 277-279. Sobre a mesma problemática, cf. Escritos de Filosofia I, p.
190-222.
645
Cf RICOEUR, P. “Le symbole donne à penser”, in Philosophie de la Volonté 2: Finitude et
Culpabilité. Paris: Aubier-Montaigne, 1960, p. 479-488, especialmente p. 487.
646
Acreditamos que uma ontologia do símbolo nos moldes daquela proposta por Karl Rahner (Escritos de
Teologia.(vol. 4) Madrid: Taurus Ediciones, 1964, p. 283-321) estaria capacitada para fornecer uma
fundamentação compatível com as hipóteses de Jung.
647
Cf. OC XVI, § 201; cf. também OC X, § 528. O mesmo dualismo de princípios subjaz à afirmação de
Jung de que “a psique é o espelho do ser.” (OC XVI, § 203)
fornece um referencial teórico-especulativo em que o próprio ceticismo epistêmico de
Jung pode ser reconhecido e posto em causa:
“Retirada do esse a sua inteligibilidade fontal, que implica a afirmação de um Absoluto transcendente, a
pressuposição da imanência absoluta da razão finita deve conviver com a sem-razão do simples existir.
Forma-se, desta sorte, uma dramática situação espiritual e intelectual, que o homem moderno tenta viver
refugiando-se em atitudes que apenas aprofundam a sem-razão que as gerou, desde o cauteloso ceticismo
ao declarado niilismo.”
648
Dessa forma, em última análise, e como está confessado ao final de Memórias,
Sonhos, Reflexões, na dimensão teórica da psicologia analítica a questão do sentido da
vida fica em suspenso, sem poder franquear a barreira da dúvida. O “sentido latente”
objetivo implicado na teoria da sincronicidadepode permanecer no nível da hipótese.
A restrição epistemológica aos limites céticos de sua psicologia faz com que Jung não
pretenda apresentar, no plano teórico, uma fundamentação racional para a experiência
do sentido, verdadeira essência do processo de individuação, que é pragmaticamente
reconhecida e descrita no plano prático/empírico. Contudo, essa restrição faz o “mito do
sentido” junguiano padecer da fragilidade resultante da ausência de uma ontologia que
lhe suporte, e assim não conseguir escapar, por si , à poderosa força gravitacional
do niilismo contemporâneo.
649
- IV -
Em nosso último capítulo, assinalamos como o ceticismo epistêmico de Jung
desdobra-se, na dimensão prática, em um pragmatismo que avalia a validade terapêutica
de uma determinada situação psíquica conforme sua adequação à totalidade da
experiência psicológica. A aferição não se em termos de bem-estar, e sim da
capacidade expressa pelo sujeito de integrar um aspecto da totalidade pessoal, tendo
como critério a preservação da diferença entre Eu e Si-mesmo e a sua articulação em
uma relação na qual a consciência não é aliviada do “tormento da decisão ética”.
648
VAZ, Escritos de Filosofia VII, p. 103.
649
Dentre as quatro vertentes que levam à idéia de transcendência, Eric Voegelin inclui uma a que se
poderia afiliar a concepção de experiência simbólica em Jung: “o processo de simbolização no seu
encaminhar-se para adquirir uma estrutura analógica quando o fecho transcendente da ordem do ser se
mostrar incognoscível em si mesmo”, repontando aí “a idéia da possibilidade de convivência de tradições
diversas ou de um sincretismo de símbolos.” VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 205, itálicos nossos. Todo
o problema do diálogo possível entre a psicologia analítica e a teologia cristã depende da definição da
ontologia da transcendência.
A “traição da própria verdade” em Jung, como indicamos, concordando com a
crítica de Wolfgang Giegerich, consistiu em fechar as portas a uma reflexão filosófica
de natureza metafísica, que chegasse a um acordo com o problema da transcendência,
650
pela qual se pudesse alcançar a unidade possível entre praxis e episteme na psicologia
analítica. Assim, somente uma abordagem filosófica está em condições de “salvar” o
legado de Jung de sua contradição interna. À filosofia cabe a tarefa de recuperação
reflexiva do “implícito metafísico” presente nas manifestações da vida cultural em suas
aporias.
651
Para Henrique Vaz, como para Hegel, a filosofia é “a única capaz de
formular em sua radicalidade o pensamento da cisãoque revela a ruptura instalada na
cultura ocidental, cabendo-lhe por isso também “pensar os caminhos que conduzem à
unidade restaurada da cultura”.
652
Mas aqui revela-se uma limitação que nos parece
incontornável: a filosofia pode pensar os caminhos que conduzem à unidade restaurada
da cultura, e pode talvez até mesmo prescrevê-los, mas não pode, por si , construí-los
concretamente, pois na matéria em que esses caminhos deveriam ser esculpidos
encontram-se “forças irracionais”, que não se deixam docilmente mudar segundo os
imperativos da razão, e que podem ser enfrentadas efetivamente com os recursos da
phronesis – e da ação política.
Por isso, a compreensão filosófica sistemática também é insuficiente. A possível
unidade de fundo entre o philosophos e o phronimos, entre theoria e praxis, entre
sophia e phronesis, não permite que um dos termos substitua o outro em suas
atribuições próprias.
653
Giovanni Reale, em seu livro O Saber dos Antigos
654
, propõe uma “terapia para
os tempos atuais” que, indicando no niilismo a raiz profunda de todos os males do
homem contemporâneo, tenta recuperar as lições da filosofia antiga como base para
uma atitude capaz de fazer frente ao desafio niilista e exterminá-lo na raiz. O
diagnóstico de Reale coincide com o de Henrique Vaz, e fornece um dos eixos em que
apoiamos nossas reflexões neste trabalho.
650
Jung admite que a postulação do arquétipo em si deixa espaço para a transcendência da “premissa
teológica”. Cf. Cartas II, 30/08/1951, ao dr. H.
651
Cf. VAZ, Escritos de Filosofia III, p. 32-33.
652
Cf. id., p. 46.
653
Jung ratifica nossa posição, ao afirmar que as premências da tarefa psicoterapêutica não permitem a
tarefa de desenvolvimento filosófico e clarificação interna dos conceitos empíricos, acrescentando que
quem realiza a primeira tarefa satisfatoriamente raramente será capaz de completar a segunda. Cf. OC
XVIII, § 1731.
654
REALE, G. O Saber dos Antigos. Terapia para os Tempos Atuais. São Paulo: Loyola, 1999.
Porém, uma objeção pode ser feita a essa terapia filosófica estritamente racional
proposta por Reale: ela desconsidera a experiência do inconsciente, a qual se defronta a
todo momento com a natureza refratária da afetividade humana às prescrições racionais,
e assim uma terapia simplesmente dirigida à razão arrisca-se a expressar apenas um tipo
de otimismo racionalista moderno, de cuja eficácia prática cabe duvidar. Pior: tal
racionalismo arrisca-se ainda a incidir na inanidade de um certo humanismo, que
tematiza a liberdade, a dignidade humana, e recua diante das monstruosidades que
emergem do fundo da alma humana, adotando uma atitude de condenação e
aconselhamento tão comum em uma postura moral exortativa, edificante, até mesmo
verdadeira, mas impotente.
655
Como dizia Jung, “a verdade mais bela de nada adianta se
ela não se tornou a experiência íntima e própria do indivíduo.”
656
Mas a apropriação
dessa verdade, ou a realização dessa experiência íntima, não depende exclusivamente de
uma decisão racional, voluntária e consciente do indivíduo: ela passa pela incerta e
angustiante confrontação com o mal dentro e fora de si mesmo.
Ao racionalista abre-se, assim, a saída honrosa de reconhecer o mistério humano
que participa de um mistério maior e mais insondável, o mysterium iniquitatis e,
caso exerça a razão dentro de uma atitude cristã, como o fazem Reale e Henrique Vaz,
reconhecer também o desamparo e a impotência do homem e de sua razão finita e
falível para superar o mal que ele mesmo perpetra, e, portanto, afirmar, obedecendo à
sua fé, a necessidade da graça para que a terapia que propõe chegue a bom termo. Esta
saída seria estruturalmente congruente com a experiência do inconsciente.
657
Entenda-se bem: não se trata de pôr em vida a validade do discurso
antropológico-filosófico ou ético. Ela é pressuposta de partida na tarefa
psicoterapêutica, e por isso mesmo ela permitiu-nos levar a cabo nossa interpretação da
psicologia analítica. Mas por elidir o problema do mal, reservando-lhe quando muito
uma “nota” e honestamente declarando-se impotente diante dele
658
, a filosofia
655
“Os acontecimentos em nosso mundo moderno onde a humanidade anda às cegas, sem ajuda e sem
querer, de uma catástrofe para outra pouco colaboram para fortalecer a no valor de nossa consciência
e na liberdade de nossa vontade. A consciência deveria ser de suma importância, pois é a única garantia
da liberdade e da possibilidade de evitar o desastre. Mas isso, ao que parece, continua sendo por ora mera
esperança piedosa.” OC XVIII, § 754.
656
OC XVIII, § 1292.
657
Jung fala metaforicamente da “graça” nas transformações de conflitos psíquicos, e diz ainda: “Quando
a natureza não colabora, o médico trabalha em vão” (OC XVIII, § 1575) – o que significa que a
autonomia da razão é relativa, limitada, não absoluta, e depende do concurso de um fator que transcende
consciência, vontade e razão, ao qual ele designa com o termo “inconsciente”.
658
“Diante do mistério do mal a Filosofia e a Ética se declaram impotentes.” VAZ, Escritos de Filosofia
V, p. 135.
sistemática não é suficiente nas situações práticas em que se trata justamente de
confrontar-se o mal, que se instala desde sempre no mundo, e opõe suas armadilhas à
existência humana. Poderíamos dizer que, ali onde se detém a Ética como ciência
filosófica do agir humano
659
, começa a tarefa psicoterapêutica como sabedoria prática.
A falibilidade do livre-arbítrio sinaliza a presença de outro fator que atravessa e
interfere com a auto-determinação consciente do sujeito: é a este fator que se refere a
noção de inconsciente em psicologia, sob um ponto de vista empírico. A individuação,
definida como confronto com o inconsciente o que não significa o seu domínio pela
consciência, nem o mero reconhecimento intelectual, mas o envolvimento vivo e moral
é o eixo da psyches therapeia que está obrigada a enfrentar aquilo que deixa
impotente a Filosofia e a Ética. Só a Ética sistemática pode dar a razão de ser da
sabedoria prática, ao tematizar a natureza do bem que esta busca alcançar na vida
concreta; mas muito pouco ela tem a oferecer nas situações contingentes em que cabe à
sabedoria prática cumprir a sua tarefa de escolha e orientação para a realização, sempre
condicionada e portanto relativizada, do bem, pois a sombra do mal está
invariavelmente presente:
“Se entendemos então que o mal habita a natureza humana independentemente da nossa vontade e que ele
não pode ser evitado, o mal entra na cena psicológica como o [parceiro igual e oposto] do bem. Essa
compreensão nos leva de imediato [a um dualismo psicológico] que, de maneira inconsciente, se encontra
prefigurado na cisão política do mundo e na dissociação do homem moderno. O dualismo não advém da
compreensão. s é que nos encontramos [em uma condição dissociada]. Todavia, seria extremamente
difícil pensar que teríamos de assumir pessoalmente essa culpa. Assim, preferimos localizar o mal em
alguns criminosos isolados ou em um grupo, lavando as próprias mãos e ignorando a propensão geral para
o mal. A inocência, porém, a longo prazo, não será capaz de se manter porque, como nos mostra a
experiência, [o mal] está no próprio homem e não constitui um princípio metafísico como supõe a visão
cristã. Esta visão possui a enorme vantagem de retirar esta dura responsabilidade da consciência moral
humana, deslocando-a para o diabo a partir do justo entendimento de que o homem é bem mais uma
vítima da sua constituição psíquica do que o seu voluntário criador. Considerando que o mal de nossa
época lança tudo o que atormentou a humanidade num mar de sombras, torna-se, de fato, necessário
[perguntar como é que, com todo o progresso na administração da justiça, na medicina e na técnica, foram
inventadas monstruosas máquinas de destruição que poderiam facilmente exterminar a raça humana].”
660
659
“Diante do enigma ou do mistério dessa falibilidade do livre-arbítrio, a Ética se detém.” VAZ, Escritos
de Filosofia V, p. 137.
660
OC X, § 573. O professor Fernando Rey Puente sugere-nos uma interessante via de desenvolvimento
teórico da psicologia analítica, centrada na reflexão de Kant sobre o mal radical e sua recepção e
desenvolvimento pelo último Schelling, onde o pensamento da contingência é radicalizado. O passo de
Kant a Schelling por esta via formaria um elo teórico congruente com a persistente reflexão sobre o
problema do mal em Jung reflexão que acabou por selar seu desentendimento final com Victor White.
Um tal desenvolvimento se faria ao longo dessa “segunda via do Idealismo Alemão”, segundo a
denominação proposta por Miklos Vetö. Cf. VETÖ, M. De Kant à Schelling. Les Deux Voies de
l’Idéalisme Allemand (2 tomes). Grenoble: Jérome Millon, 1998 e 2000.
A experiência psicoterapêutica com o inconsciente revela-se, em última análise,
como uma forma peculiar de socratismo contemporâneo que, em face do otimismo
racionalista, recomenda uma atitude de modéstia e humildade, entendidas menos como
virtudes morais do que como realismo prático: o saber sobre o não-saber vale dizer,
em termos psicológicos, o reconhecimento da realidade do inconsciente e de sua
autonomia por relação aos desígnios e poderes de nossa vontade consciente implica o
reconhecimento de que qualquer transformação substancial do indivíduo exige a
auscultação
661
das forças e configurações inconscientes pela consciência. A lição da
experiência do inconsciente ensina que, sem o concurso deste (ou, para usar o símbolo
fundamental de Jung, da “natureza”), nada acontece. A consciência é transformada
nessa experiência, e também a oposição ao inconsciente é modificada. A orientação
prática advém da interpretação dos sinais emitidos pelo inconsciente e da adesão
consciente às linhas de desenvolvimento vital assim captadas. A “natureza” parece
possuir uma tendência imanente à realização de cada indivíduo segundo a forma
específica de suas partes, nisso consistindo a sua “inteligência”:
“Parece que os médicos medievais sabiam algo a respeito, pois dedicavam-se a uma filosofia, cujas raízes
provêm comprovadamente do mundo pré-cristão e era constituída de uma forma, que corresponde
exatamente às experiências que hoje fazemos com os nossos pacientes. Esses médicos conheciam além
da luz da sagrada revelação um lumen naturae, como uma segunda fonte de luz, independente, a que o
médico pode recorrer, caso a verdade transmitida pela Igreja se revele ineficaz por algum motivo.”
662
Mas a consideração da “natureza” como fonte de valor, orientação e
conhecimento pode escamotear a grande dificuldade reconhecida e insistentemente
apontada por Jung: o lumen naturae por si só não é suficiente - é preciso a ação
discriminadora da consciência humana, pois a natureza em si é neutra, não revela nada,
apenas se auto-manifesta, e somos nós que a interpretamos para poder servir aos nossos
propósitos/fins.
663
E por isso mesmo, sempre se coloca, diante do lumen naturae, a
possibilidade da presença de Lúcifer o portador da luz, que é, no mínimo, o reflexo
661
No sentido etimológico do latim ob-audere, de onde provém obediência, e que significa escutar
respeitosamente. No mesmo sentido Jung recuperava a etimologia clássica, não patrística, de religio
remontando a religere, que significa observar cuidadosamente e levar em consideração o numinoso (cf.
OC XI, § 982). Daí vem o caráter religioso de certas experiências psicoterapêuticas, segundo Jung, e ele
interpretava conseqüentemente a que se segue a tais experiências segundo uma etimologia peculiar do
termo grego pistis: lealdade à própria experiência (cf. OC XI, § 74).
662
OC XVI, § 189.
663
Cf. OC X, § 34. Cf. OC XVI, § 252: “É que os símbolos gerados pelo inconsciente m que ser
‘entendidos’ pela consciência, isto é, têm que ser assimilados e integrados para se tornarem eficazes. Um
sonho não compreendido não passa de um simples episódio, mas a sua compreensão faz dele uma
vivência.”
especular de nossas intenções ou fins secretos na interpretação e utilização das
informações da natureza. Não fosse isso a presença ambígua do mal na constituição
humana a individuação seria não uma realização moral, mas um processo meramente
natural. A psicoterapia como forma contemporânea de sabedoria prática perderia o seu
sentido, convertendo-se em mera técnica para a construção progressiva do “admirável
mundo novo”, e o racionalismo poderia apresentar suas credenciais pelagianas.
NOTA SOBRE AS CITAÇÕES
As citações da Obra Coligida de C.G. Jung serão indicadas com a abreviatura
OC, seguida do número do volume em algarismos romanos, e do número do parágrafo.
Optamos por utilizar a tradução brasileira como base. Porém, como a mesma é muito
irregular, problemática e não confiável, corrigimos várias passagens a partir da edição
alemã das Gesammelte Werke e da edição anglo-americana das Collected Works, sendo
que nossas correções encontram-se indicadas por colchetes. Em certos casos, julgamos
necessário indicar a referência anglo-americana com a abreviatura (CW). Também no
tocante às cartas, indicamos o volume da tradução brasileira em três volumes (por
exemplo: Cartas II), assinalando a seguir a data da carta e o destinatário. Quando
necessário, corrigimos a tradução a partir da edição anglo-americana (Letters),
colocando igualmente a correção entre colchetes. Os seminários utilizados são
abreviados da seguinte maneira: Visions Seminars = VIS; Zarathustra Seminar = ZAR.
Na Bibliografia indicamos detalhadamente os volumes das Obras Coligidas, Seminários
e Cartas, e fazemos um comentário acerca das traduções e seus problemas.
Quanto às obras de Henrique Vaz, optamos por indicar o título e o volume,
apresentando na Bibliografia a referência completa.
Em geral, na primeira ocorrência de uma obra citada damos a referência
completa, e a seguir a indicamos apenas com o nome do autor e o título da obra.
Todas as traduções de textos em outras línguas são de nossa responsabilidade.
ANEXO I: Sobre a divergência entre Freud e Jung
É interessante acompanhar a dissensão entre Freud e Jung no momento mesmo
em que ela eclode, revelando a compreensão distinta que os dois têm acerca do símbolo
e da forma como encarar os eventos psíquicos.
Quando, em 1909, Jung se volta pela primeira vez para o estudo da mitologia,
ele escreve a Freud dizendo que confirmava a intuição psicanalítica fundamental:
“Já não tenho dúvidas sobre o que os mitos mais antigos e mais naturais querem dizer. É do complexo
nuclear da neurose que, com absoluta “naturalidade”, eles falam.”
664
Completamente alinhado à causa psicanalítica naquele momento, e na verdade
um de seus principais articuladores, Jung escreve a Freud em 27 de abril de 1912 (carta
312 J) e lhe comunica a sua posição:
“Como o senhor, estou absorvido pelo problema do incesto e cheguei a conclusões que mostram
primariamente o incesto como um problema de fantasia. Originariamente, a moralidade era apenas uma
cerimônia de reparação, uma proibição substitutiva, de forma que a proibição étnica do incesto pode não
significar absolutamente incesto biológico, mas simplesmente a utilização de material incestuoso infantil
na construção das primeiras proibições. (Não sei se estou me expressando claramente!) Se significasse
incesto biológico, então o incesto pai-filha teria caído em proibição muito mais prontamente do que
aquele entre genro e sogra. O espantoso papel da mãe na mitologia tem um significado que excede em
muito o problema do incesto biológico – um significado que corresponde à pura fantasia.”
665
A carta em que Freud respondia não foi preservada. Ao que tudo indica, ele não
compreende ou não concorda com o que Jung diz, pois em 8 de maio de 1912 (carta 313
J) Jung tenta mais uma vez explicar sua posição:
“Lamento muito a minha incapacidade de fazer-me inteligível à distância, sem remeter-lhe o volumoso
material de apoio. O que quero dizer é que a exclusão do relacionamento pai-filha da proibição do
incesto, habitualmente explicada pelo papel do pai como legislador (egoísta), deve ter-se originado do
período relativamente tardio de patriarcado, quando a cultura estava suficientemente avançada para a
formação de laços familiares. Na família, o pai era forte o bastante para manter o filho na ordem com uma
sova, sem contradizer a lei, se, naqueles tenros anos, o filho demonstrasse quaisquer inclinações
incestuosas. Na idade mais madura, por outro lado, quando o filho poderia realmente ser um perigo para o
pai, e as leis eram portanto necessárias para reprimi-lo, o filho não tinha mais quaisquer verdadeiros
desejos incestuosos pela mãe, com o ventre caído e as veias varicosas. Pode-se conjeturar quanto a uma
tendência incestuosa muito mais genuína no primitivo período de matriarcado, sem cultura, isto é, na
família matrilinear. Ali o pai era puramente fortuito e não contava para nada, de forma que não teria tido
o menor interesse (considerando a promiscuidade geral) em decretar leis contra o filho. (Na verdade, não
existia essa coisa, o filho de um pai!)
Penso, portanto, que a proibição do incesto (compreendida como
moralidade primitiva) era simplesmente uma fórmula ou cerimônia de reparação in re vili: o que era
valioso para a criança a mãe e é tão
desprezível para o adulto que logo é posta de lado, adquire um
valor extraordinário graças à
proibição do
incesto e é declarada desejável e proibida. (Esta é a genuína
moralidade primitiva: qualquer diversão pode ser proibida, mas é certo que se torne um fetiche).
Evidentemente, o objetivo da proibição não é impedir o incesto, mas consolidar a família (ou a
religiosidade, ou a estrutura social).”
666
Freud retruca em 14 de maio (carta 314 F):
664
MCGUIRE,W. (org.) A Correspondência Completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung. Rio de Janeiro:
Imago, 1993
2
, p. 284 (carta 162 J). O “complexo nuclear” é o mesmo “complexo de Édipo”.
665
Em McGUIRE, op. cit., p. 506.
666
Id., p.507.
“Certamente não será surpresa para o senhor que a sua concepção do incesto não esteja ainda clara para
mim. Às vezes tenho a impressão de que não se afastou ainda do que pensamos até agora, mas isso
pode ser esclarecido por uma conversa mais detalhada. Quanto aos seus argumentos, tenho três
observações a fazer; não são refutações, devem ser tomadas simplesmente como expressões de dúvida.
1) Muitos autores consideram um estado primordial de promiscuidade como altamente
improvável. Eu próprio, com toda a modéstia, sou favorável a uma hipótese diferente em
relação ao período primordial – a de Darwin.
2) O direito materno não deve ser confundido com a ginecocracia. pouco a dizer quanto a
esta. O direito materno é perfeitamente compatível com a degradação poligâmica da mulher.
3) Parece provável que tenha havido filhos do pai em todas as épocas. O pai é alguém que
possui sexualmente a mãe (e os filhos como propriedade). O fato de ter sido engendrado por
um pai tem, afinal de contas, significado psicológico para uma criança.”
667
Em 17 de maio (carta 315 J), Jung explicita longa e claramente sua posição:
“No tocante à questão do incesto, receio causar uma impressão paradoxal ao senhor. Aventuro-me apenas
a lançar uma conjectura audaciosa na discussão: a grande quantidade de ansiedade flutuante no homem
primitivo, que conduziu à criação de cerimônias tabu no sentido mais amplo (totem etc.), produziu
também, entre outras coisas, o tabu do incesto (ou antes: o tabu do pai e da mãe). O tabu do incesto não
corresponde mais ao valor específico do incesto sensu strictiori do que a sacralidade do totem
corresponde ao seu valor biológico. Sob esse ponto de vista, deve-se dizer que o incesto é proibido não
porque é desejado, mas porque a ansiedade flutuante reativa regressivamente o material infantil e o
transforma numa cerimônia de reparação (como se o incesto tivesse sido, ou pudesse ter sido, desejado).
Psicologicamente, a proibição do incesto não tem o significado que é preciso atribuir-lhe, se se presume a
existência de um desejo de incesto particularmente intenso. O significado etiológico da proibição do
incesto deve ser diretamente comparado com o assim chamado trauma sexual, que, habitualmente, deve o
seu papel etiológico apenas à reativação regressiva. O trauma é aparentemente importante ou real, e
assim o é a proibição ou barreira do incesto, que, do ponto de vista psicanalítico, tomou o lugar do trauma
sexual. Assim como cum grano salis não importa se um trauma sexual realmente ocorreu ou não, ou foi
uma simples fantasia; psicologicamente é secundário se existiu ou não realmente a barreira do incesto,
uma vez que é, essencialmente, uma questão de desenvolvimento posterior o assim chamado problema do
incesto transformar-se ou não num problema de evidente importância. Uma outra comparação: os
eventuais casos de verdadeiro incesto têm tão pouca importância para as proibições étnicas de incesto
quanto as ocasionais manifestações de bestialidade entre os primitivos em relação aos antigos cultos
animais. Na minha opinião, a barreira do incesto não pode ser explicada pela redução à possibilidade de
verdadeiro incesto, assim como o culto animal não pode ser explicado por redução à verdadeira
bestialidade. O culto animal é explicado por um desenvolvimento infinitamente longo, que é de
importância primordial, e não por tendências bestiais primitivas estas nada mais são do que a pedreira
que fornece o material para a construção do templo. Mas o templo e o seu significado nada têm a ver com
a qualidade das pedras da construção. Isso aplica-se também ao tabu do incesto, que, como instituição
psicológica especial, tem um significado muito que maior - e diferente – do a
prevenção do incesto, muito
embora possam, de fora, parecer a mesma coisa. (O templo é branco, amarelo ou vermelho, de acordo
com o material usado.) Como as pedras de um templo, o tabu do incesto é o símbolo ou veículo de um
significado especial e mais amplo, que pouco tem a ver com o incesto de verdade, assim como a histeria
com o trauma sexual, o culto animal com a tendência à bestialidade e o templo com a pedra (ou, melhor
ainda, com a primitiva moradia de cuja forma é derivado).”
668
667
Id., p.508.
668
Id., p.509-510. Observe-se que a analogia do templo e das pedras de que é construído, reiteradamente
utilizada por Jung, é muito próxima daquela empregada por Dilthey para sustentar a diferença entre
explicar (erklären) e compreender (verstehen), sobre a qual se baseia a distinção entre
Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften.
Finalmente Freud reconhece a diferença (carta 316 F):
“Na questão da libido, finalmente, vejo a que ponto a sua concepção difere da minha. (Estou-me
referindo, é claro, ao incesto, mas pensando nas suas anunciadas modificações no conceito de libido.) O
que não consigo ainda compreender é por que razão o senhor abandonou a concepção mais antiga, e que
outra origem e motivação a proibição do incesto pode ter. Naturalmente, não espero que o senhor me
explique essa difícil matéria mais plenamente por carta; serei paciente até que o senhor publique as suas
idéias sobre o tema.
Valorizo a sua carta pela advertência que contém e pela lembrança do meu primeiro grande erro, quando
confundi fantasias com realidades. Serei cuidadoso e conservarei os olhos abertos a cada passo.
Se agora, porém, deixarmos de lado a razão e sintonizarmos o aparelho com o prazer, confesso ter uma
forte antipatia pela sua inovação. (...) Creio que temos sustentado, até agora, que a ansiedade se origina na
proibição do incesto; agora o senhor afirma, pelo contrário, que a proibição do incesto origina-se na
ansiedade, o que é muito semelhante ao que foi dito antes da era da [psicanálise].”
669
A partir de então, estava selada a ruptura entre o pai da psicanálise e aquele que
ele pretendera investir como seu “príncipe herdeiro”. O símbolo na visão de Jung,
entendido segundo sua tendência prospectiva e não meramente sintomática, não
encontrava espaço no interior das coordenadas teóricas definidas por Freud.
Ulteriormente, a teleologia em que se ancora a concepção junguiana de mbolo
convergirá com a hipótese da sincronicidade. A menção aos “processos teleológicos” no
campo da Biologia remete-nos à discussão com Freud, que repassamos no capítulo
segundo. O finalismo que sustenta a concepção de símbolo em Jung apontava na
direção da hipótese da sincronicidade, somente formulada mais tarde. O próprio Jung
faz essa conexão,
670
quando diz que duvidava muito tempo da validade exclusiva e
absoluta do princípio de causalidade, e, citando uma passagem do prefácio de 1916 aos
Collected Papers on Analytical Psychology, que transcrevemos no segundo capítulo,
comenta: “A finalidade psíquica repousa em um ‘[sentido]’ preexistente que só se torna
problemático quando é um arranjo inconsciente. Neste caso deve admitir-se uma espécie
de ‘conhecimento’ anterior a qualquer consciência. Hans Driesch chegou também a esta
conclusão.”
671
A extensão do sentido simbólico, na hipótese da sincronicidade, a um âmbito
extra-psíquico definitivamente é igualmente incompatível com os pressupostos
freudianos. A oposição frontal de Freud à posição correspondente à hipótese da
sincronicidade já está antecipada em A Psicopatologia da Vida Cotidiana:
669
Id., p.511.
670
Cf. OC VIII, § 843 nota 32.
671
Ibid.
“diferencio-me de um supersticioso pelo seguinte: não creio que um
acontecimento em cuja produção a minha vida psíquica não participou
possa ensinar-me algo oculto sobre o perfil futuro da realidade. Ao
contrário, creio que uma exteriorização não deliberada de minha própria
atividade psíquica revela-me algo oculto, porém algo que só à minha vida
psíquica pertence; certamente creio em um acaso externo (real), porém não
numa casualidade interna (psíquica). Com o supersticioso ocorre o inverso:
ele não sabe nada sobre a motivação de suas ações casuais e de seus atos
falhos, crê que existam casualidades psíquicas; por outro lado inclina-se a
atribuir ao acaso exterior um significado que se manifestará no acontecer
real, a ver no acaso um meio pelo qual se expressa algo que para ele está
oculto no exterior.”
672
O irônico desta posição, a partir de uma leitura dialética e crítica, é que Freud
deixa-se determinar pelo supersticioso: de fato, trata-se da afirmação de uma crença de
Freud, a crença no determinismo psíquico absoluto ou seja, na onipotência do
princípio de causalidade na esfera psíquica - e a crença na ausência de qualquer
significado em um acaso exterior. Mas essa crença não pode ser demonstrada pela
razão, sendo portanto uma forma de “superstição” metafísica dogmática isto é, não
crítica - de Freud. A sincronicidade, com sua postulação de coincidências significativas
em certos “acasos”, está de partida excluída da profissão de fé de Freud. Segundo este
credo, Jung seria indiscriminadamente arrolado entre os “supersticiosos”
673
... Porém, a
partir do criticismo de Jung, Freud seria arrolado precisamente entre os “dogmáticos”
do positivismo novecentista.
674
672
Cf. FREUD, S. “A Psicopatologia da Vida Cotidiana”, in Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. VI. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 308 (a tradução aqui
apresentada, feita diretamente do original alemão, é de Carlos Roberto Drawin).
673
O conhecido episódio narrado por Jung, quando de uma visita a Freud em Viena, em que ele antecipou
a repetição de um estrondo na estante da biblioteca de seu anfitrião, é instrutivo. No momento em que se
deu o fato, Freud ficou perplexo e mudo, Alguns dias depois, ele escreve a Jung dando uma explicação
causal-natural para o estrondo mas, nota bene, ele simplesmente se esqueceu” do mais extraordinário:
a precognição de Jung. Isso poderia ser explicado por ele como mero acaso, mas uma tal explicação é
tudo, menos convincente.
674
Cf., por exemplo, OC IV § 675; OC VIII § 705; OC XV, §§ 46-47. Uma leitura interessante no
contexto de uma avaliação crítica da diferença demasiado simplista entre o “supersticioso” e o
“esclarecido” encontra-se no ensaio de Jung sobre o homem arcaico (OC X, § 104-147), em que ele
mostra como a diferença entre as duas posições está no conteúdo dos pressupostos, e não no fato de que
sempre tenhamos pressupostos, nem na presumida falta de lógica da mentalidade arcaica. E aplica o
argumento ao tópico da causalidade natural versus causalidade sobrenatural: “É nossa pressuposição, na
verdade nossa convicção positiva, que tudo tem uma causa ‘natural’ que, pelo menos em teoria, é
perceptível. O homem primitivo, por outro lado, assume que tudo é determinado por poderes invisíveis,
arbitrários em outras palavras, que tudo é acaso. Apenas ele não o chama de acaso, mas de intenção. A
causação natural é para ele mera ficção, e não merece ser mencionada. Se três mulheres vão ao rio
apanhar água, e um crocodilo ataca a do meio e a leva, nossa visão das coisas nos conduz ao veredicto
que foi por puro acaso que aquela mulher particular foi levada. (...) [O primitivo] corretamente julga
BIBLIOGRAFIA
I – Obras de C.G. Jung
Os escritos publicados de C.G. Jung foram reunidos em dezoito volumes,
segundo um critério temático, aos quais se acrescentaram um volume contendo a
bibliografia utilizada por Jung, e outro contendo o índice geral temático da Obra
Coligida. A maior parte dos escritos originais foi redigida em alemão, mas também
um número considerável de escritos incluindo os seminários, conferências,
pronunciamentos e cartas que foram redigidos e/ou proferidos em inglês. A edição
anglo-americana das Collected Works, que até o momento continua a ser a referência de
pesquisa internacional, foi elaborada com a participação do próprio Jung. Ela apresenta
vários problemas referentes à tradução, mas no geral é confiável. A edição alemã,
posterior às Collected Works, também apresenta problemas. Para uma visão ampla
acerca do estado das fontes nas duas edições, consulte-se o recente livro de Sonu
Shamdasani: Jung Stripped Bare, by his Biographers Even (London: Karnac Books,
2005). Uma nova tradução e edição, desta feita das obras completas de Jung, está sendo
realizada, num projeto de longo prazo patrocinado pela Philemon Foundation, sob a
direção de Sonu Shamdasani.
Optamos em nosso trabalho por utilizar a tradução brasileira, que é feita
diretamente do alemão. Contudo, além de equivocadamente ela se intitular como sendo
as obras completas (e não, como seria correto, obras coligidas), a sua qualidade e
confiabilidade são questionáveis. erros crassos de tradução e edição, que por vezes
distorcem, deturpam e tornam ininteligível o pensamento de Jung. Por tal motivo,
corrigimos a tradução em nossas citações, sempre que necessário, consultando as
edições anglo-americana e alemã. O mesmo problema se verifica na tradução brasileira
das cartas de Jung, e por isso procedemos da mesma forma.
Quanto às comumente chamadas Memórias de Jung, elas na verdade resultam de
uma edição feita por Aniela Jaffé, com alguma interferência dos herdeiros e editores de
nossa explicação superficial ou mesmo absurda, pois de acordo com essa visão o acidente poderia
igualmente não ter acontecido e a mesma explicação serviria nesse caso também que foi por puro
‘acaso’ que não aconteceu. O preconceito do europeu não lhe permite compreender quão pouco ele está
dizendo quando explica as coisas dessa maneira.” CW X, § 115-116.
Jung, a partir do material escrito e ditado por Jung a Jaffé. Em vista disso, a sua
confiabilidade deve ser vista com reservas. O próprio Jung se referia ao livro como
sendo “a biografia feita pela sra. Jaffé”. Por este motivo, preferimos citá-la sob o nome
de Aniela Jaffé, e não de Jung. Sonu Shamdasani expõe todo o caráter problemático
desse escrito, que não é uma autobiografia de Jung, no livro que acabamos de referir,
como também em um artigo importante publicado no Spring Journal (“Memories,
Dreams, Omissions”, in Spring: a Journal of Archetype and Culture, 57 [1995], p. 115-
137).
A seguir arrolamos as referências bibliográficas completas que utilizamos:
- Obras Completas de Carl Gustav Jung. Petrópolis: Vozes, 1978-, 18 volumes
publicados:
* Volume I: Estudos Psiquiátricos
* Volume II: Estudos Experimentais
* Volume III: Psicogênese das Doenças Mentais
* Volume IV: Freud e a Psicanálise
* Volume V: Símbolos da Transformação
* Volume VI: Tipos Psicológicos
* Volume VII: Estudos sobre Psicologia Analítica
* Volume VIII: A Dinâmica do Inconsciente
* Volume IX-1: Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo
* Volume IX-2: Aion. Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo
* Volume X: Civilização em Transição
* Volume XI: Psicologia da Religião Ocidental e Oriental
* Volume XII: Psicologia e Alquimia
* Volume XIII: Estudos Alquímicos
* Volume XIV: Mysterium Coniunctionis
* Volume XV: O Espírito na Arte e na Ciência
* Volume XVI: A Prática da Psicoterapia
* Volume XVII: O Desenvolvimento da Personalidade
* Volume XVIII: A Vida Simbólica
Ainda não publicados: Volume XIX (Bibliografia Geral de C.G.Jung) e Volume
XX (Índice Geral das Obras de C.G.Jung)
- The Collected Works of Carl Gustav Jung. London: Routledge and Kegan Paul, 1953-
1983, 20 volumes.
- C.G.Jung: Gesammelte Werke. Olten und Freiburg im Breisgau: Walter-Verlag, 1960-
1983, 20 volumes.
- Cartas. Petrópolis: Vozes, 2003, 3 volumes.
- Letters. London: Routledge and Kegan Paul, 1973-1975, 2 volumes.
- Briefe. Olten und Freiburg im Breisgau: Walter-Verlag, 1972-1973, 3 volumes.
- Notes of C.G.Jung’s Seminars (Princeton: Princeton University Press):
. Dream Analysis ([1928-1930] 1984) Ed. William McGuire.
. Nietzsche’s Zarathustra ([1934-1939] 1988) Ed. James L. Jarret
. Analytical Psychology ([1925] 1989) Ed. William McGuire.
. The Psychology of Kundalini Yoga ([1925] 1989) Ed. Sonu Shamdasani.
. Visions ([1930-1934] 1997). Ed. Claire Douglas (2 vols.)
II – Escritos de Filosofia de Henrique Cláudio de Lima Vaz:
- Escritos de Filosofia I. Problemas de Fronteira. São Paulo: Loyola, 1986.
- Escritos de Filosofia II. Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1988.
- Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura. São Paulo: Loyola, 1997.
- Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999.
- Escritos de Filosofia V. Introdução à Ética Filosófica 2. São Paulo: Loyola, 2000.
- Escritos de Filosofia VI. Ontologia e História. São Paulo: Loyola, 2001
2
.
- Escritos de Filosofia VII. Raízes da Modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.
Aos Escritos de Filosofia acrescentam-se os dois volumes da antropologia
vaziana:
- Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991.
- Antropologia Filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992.
Os artigos publicados apenas em períódicos constam da Bibliografia Geral a
seguir.
III – Bibliografia Geral
ADORNO, T.W. Negative Dialectics. London: Rouledge and Kegan Paul, 1973.
ADORNO, T.W. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro:
Zahar, 1991.
AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.
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ARISTÓTELES. Éthique à Nicomaque. (Traduit par Jean Tricot). Paris: Vrin, 1997.
ARISTÓTELES. La Verité des Songes. De la Divination dans le Sommeil (Parva
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