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REGINA COELI PACINI DE MORAES FORJAZ
CRISE DO DIREITO OU DOS DIREITOS?
Uma reflexão sobre o formalismo no processo civil e o acesso à Justiça
Dissertação de Mestrado apresentada à
Área de Direito Político e Econômico da
Faculdade de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
para obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. José Francisco Siqueira Neto
São Paulo
2007
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Universidade Presbiteriana Mackenzie. Decanato de Pesquisa e
Pós–Graduação. Sistema de Bibliotecas
Forjaz, Regina Coeli Pacini de Moraes, 1953 -
Crise do Direito ou dos direitos? Uma reflexão sobre o formalismo no processo civil e
o acesso à justiça Regina Coeli Pacini de Moraes Forjaz - Dissertação de Mestrado.
São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, abr.2007. 116 p.
Teoria Geral do Direito: Direito Processual. Direito Processual Constitucional. Acesso
à Justiça. Formalismo Jurídico
CDU 306.34
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REGINA COELI PACINI DE MORAES FORJAZ
CRISE DO DIREITO OU DOS DIREITOS?
Uma reflexão sobre o formalismo no processo civil e o acesso à Justiça
Dissertação de Mestrado apresentada à
Área de Direito Político e Econômico da
Faculdade de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
para obtenção do título de Mestre.
Aprovada em maio de 2007.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. José Francisco Siqueira Neto (Orientador)
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Gianpaolo Poggio Smanio
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Prof. Dr. Vladimir Oliveira da Silveira
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
A minha mãe, que me ensinou o valor do
conhecimento.
A meus filhos Thiago e Pedro, amigos de
todas as horas, amores de todos os
segundos.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
Doutor José Francisco Siqueira Neto, ilustre Orientador deste trabalho, o maior aliado para
sua concretização.
À Profª. Maria Lucila Ujvari de Teves, pela capacidade de doação, pela colaboração e pelo
incentivo.
Aos céus, que me abençoam;
À terra, que me sustenta
Ao mar... ah! o mar, que me energiza!
“Pode parecer ridículo, mas insistimos numa coisa que nos preocupa.
O Poder Judiciário de nosso país e, por contaminação, o Poder
Legislativo, sob o impacto da autoridade (intelectual e funcional) de
alguns doutrinadores que se tornaram arautos da celeridade,
efetividade, desformalização e tudo o mais, fizeram do réu o objeto
de seu ódio. E todos aqueles princípios, tão verdadeiros e tão
merecedores de atenção e de disciplina, por força dessa deformação
cabocla, tornaram-se os carrascos do réu, vitimado para possibilitar
relatórios judiciais reveladores de altos índices de produtividade,
mortalhas com que são envolvidos os cadáveres das garantias do
devido processo legal. E o pior, como apontado, é que aqui se
emprestou desvalia ao u, em detrimento, justamente, do princípio
da celeridade. Antes de tudo ser mais rápido e racional se faz mais
lento e totalmente irracional”. (J. J. Calmon de Passos, ao
comentar o artigo 296 do CPC)
RESUMO
Este trabalho é fruto de pesquisa efetuada na doutrina jurídica nacional e alienígena, nas áreas
da História do Direito, Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional e Direito Processual
Civil. Uma vez diagnosticada a crise generalizada por que passam as instituições jurídicas,
objetivou-se demonstrar que os princípios constitucionais da ampla defesa, do devido
processo legal e do contraditório não mais atendem à garantia de pleno acesso à justiça. A
doutrina hodierna, imbuída do propósito de oferecer soluções que garantam a efetividade do
processo e da tutela jurisdicional, que permita, a um tempo maior celeridade, sem
comprometer a segurança jurídica, se debate entre os que defendem o formalismo jurídico e
os adeptos da sua flexibilização. Essa tarefa cabe, não apenas aos operadores do Direito, mas
a toda a sociedade civil, que demanda ampla reformulação institucional, legislativa e ética,
pois o processo judicial representa, um instrumento decisivo para o pleno exercício da
cidadania em nosso País.
Palavras-chave: Teoria Geral do Direito: Direito Processual. Direito Processual
Constitucional. Acesso à Justiça. Formalismo Jurídico.
ABSTRACT
This work was the result of a national and worldwide juridic research in many branches of
juridic knowledge, as Law’s History, Law’s General Theory, Constitutional Law and Civil
Process Law. Based in the generalized crisis diagnose which affects the Brazilian Judiciary
Institution, we intend demonstrate that the constitutional principles as large defense, due
process of law do not guarantee justice access. Offering solutions in the direction of process
efectiveness and juridical protection is modern doctrine purpose, in order to reach celerity,
without compromise juridical-insurance. The polemics is torned between Civil Process Law
formalism followers and those who wants it more flexible. This task is directed not only to
Law Society but also to the Brazilian Civil Society as a whole, once it demands both
institutional, legislative and ethical behaviors changes, concerning to legal proceedings
because it is an important citizenship instrument.
Keywords: Law General Theory: Processual Civil,Constitutional Law. Law Acess. Law
Formalism.
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................. 10
1 A crise no Direito.................................................................................................. 12
2 Direito e igualdade.................................................................................................. 19
2.1 Referências históricas a princípios igualitários.................................................... 19
2.2 Igualdade perante a lei e igualdade na lei............................................................ 21
2.3 Parâmetros associados à aplicação de princípios igualitários.............................. 23
2.4 Direito de propriedade e princípios igualitários................................................... 24
2.5 Justiça e princípios igualitários............................................................................ 25
3 Evolução histórica do processo civil...................................................................... 28
3.1 O processo privatístico: contrato ou quase-contrato........................................... 29
3.2 O processo como relação jurídica........................................................................ 31
3.3 A escola instrumentalista do processo como relação jurídica............................. 34
3.4 O processo como situação jurídica...................................................................... 35
3.5 O processo como instituição................................................................................ 37
3.6 O processo como procedimento em contraditório............................................... 38
3.7 Teoria constitucionalista do processo.................................................................. 40
4 A constitucionalização do processo civil............................................................... 42
4.1 O processo civil e os novos paradigmas constitucionais.................................... 45
4.2 Processo civil e jurisdição constitucional........................................................... 50
4.3 A ordem jurídica justa: o justo processo............................................................. 54
5 O problema do acesso à Justiça.............................................................................. 56
5.1 Acesso à Justiça: um direito fundamental......................................................... 58
5.2 As acepções da expressão “acesso à Justiça”.................................................... 59
5.3 Acesso à Justiça e o Poder Judiciário................................................................ 61
6 Do formalismo no processo.................................................................................. 63
6.1 Formalismo e poder estatal................................................................................ 68
6.2 O formalismo processual e suas conseqüências na realização do Direito.......... 70
6.3 Processo como técnica e ética a serviço do Direito............................................. 71
6.4 Processo, formalismo e Justiça............................................................................ 75
7 Da flexibilização da vocação formalística do processo......................................... 83
7.1 Instrumentalidade do processo........................................................................... 83
7.2 Efetividade do processo e da tutela jurisdicional............................................... 86
7.3 O ativismo judicial............................................................................................. 87
8 A universalidade da crise do direito processual: considerações finais................. 94
Conclusões............................................................................................................... 97
Bibliografia.............................................................................................................. 98
Anexo A................................................................................................................... 106
Introdução
A grita generalizada seja dos operadores de Direito, seja dos consumidores dos
serviços jurisdicionais contra sua ineficiência, morosidade, parcialidade, para falar apenas de
alguns dos atributos negativos que seguem colados ao Poder Judiciário, aliada à experiência
diária vivida nas hostes forenses e aos resultados pífios (para não dizer, perigosos) oriundos
das alardeadas reformas do Código de Processo Civil implementadas nos últimos anos,
sugeriram o tema deste trabalho.
O estudo do formalismo jurídico processual, tema básico aqui abordado está
indissoluvelmente associado a várias áreas do Direito, que não o Direito Processual Civil
propriamente dito.
Esta a razão da abordagem, de início, dos princípios igualitários, com conteúdo
fundamentalmente jurídico, mas alicerçado, principalmente em bases históricas, sociológicas,
filosóficas, ideológicas, porquanto são eles o alicerce do Direito substancial e do Direito
Processual Constitucionalizado.
A senda percorrida pelo processo civil, na história, narrada no terceiro capítulo
configura um instrumento de compreensão dos movimentos helicoidais empreendidos pelo
direito processual, numa alternância de maior ou menor formalismo, quanto mais ou menos
autoritários fossem os regimes em que atuaram.
Daí, que o processo constitucionalizado refletiu a carga dos demais princípios
igualitários e de direitos e garantias sociais, consolidado pelo formalismo do devido processo
legal, da inafastabilidade do poder judiciário e do acesso à justiça, para citar apenas alguns.
O direito de todos à prestação jurisdicional, via da garantia constitucional do acesso
à justiça mereceu uma análise mais detida, visto que continente dos demais princípios
processuais, de natureza constitucional.
Esse lastro teórico preparou o ambiente necessário para situar o formalismo
processual e suas relações com o poder estatal e com a justiça, estabelecendo suas
conseqüências para a realização do direito.
No capítulo sete traz-se a lume a polêmica travada pela doutrina acerca do
formalismo jurídico, erigido ou como o algoz da efetividade e celeridade da justiça ou como o
garantidor da igualdade das partes e inibidor do arbítrio judicial .
Procurou-se, ainda, demonstrar, que a crise do direito processual não se circunscreve
ao Brasil, trazendo, para tanto, a experiência do direito processual alienígena, que o
comprova.
Desta forma, os assuntos aqui apresentados exigem uma postura crítico reflexiva,
além do normativismo puro, mas associada a uma ação participativa, buscando-se que o
analista desempenhe um papel ativo no enfrentamento da crise que assola o Direito
Processual, mediante a utilização crescente de meios alternativos de realização da Justiça,
colocados à disposição, com maior flexibilidade e menor solenidade.
1 A crise no Direito
Em agosto de 1879, a sociedade francesa vivenciou, com euforia, a aprovação, pela
Assembléia Constituinte, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:
“Os representantes do Povo Francês, constituídos em Assembléia Nacional,
considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do
homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos,
resolveram expor numa Declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e
sagrados do homem, a fim de que essa Declaração, constantemente presente a todos
os membros do corpo social, lhes recorde incessantemente seus direitos e deveres; a
fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser
comparados a todo instante com a finalidade de cada instituição política, sejam mais
respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, baseadas daqui por diante em
princípios simples e incontestáveis, redundem sempre na manutenção da
constituição e na felicidade de todos.” (g.n.)
Estava fincada a pedra inaugural do edifício de princípios e garantias dos direitos
individuais.
Na medida em que as sociedades do Estado liberal cresceram em tamanho e
complexidade, o conceito de direitos humanos foi se transformando radicalmente, deixando
para trás a visão individualista dos direitos, para, então, no dizer de Cappelleti
1
, reconhecer os
'direitos e deveres sociais' dos governos, comunidades, associações e indivíduos. Esses novos
direitos humanos, exemplificados pelo preâmbulo da Constituição Francesa de 1946
2
, são,
antes de tudo, os necessários para tornar efetivos, quer dizer, realmente acessíveis a todos, os
direitos antes proclamados.
E prossegue Cappelleti
3
:
“Entre esses direitos garantidos nas modernas constituições estão o direito ao
trabalho, à saúde, à segurança material e à educação. Tornou-se lugar comum
1
CAPPELLETI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p.10
2
Que reconhece que o acréscimo de novos direitos “sociais” e “econômicos” aos direitos civis tradicionais é particularmente necessário em
nosso tempo.
3
CAPPELLETI, op. cit., p.11.
observar que a atuação positiva do Estado é necessária para assegurar o gozo de
todos esses direitos sociais básicos. Não é surpreendente que o direito ao acesso
efetivo à justiça tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do
welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos em
sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos. De fato,
o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como de
importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a
titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o
requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico
moderno e igualitário que pretenda garantir, e o apenas proclamar os direitos de
todos.” (g.n.)
Hialina a percepção de que o desenvolvimento não pode ser alcançado sem a plena
garantia de acesso à Justiça, a bem da segurança e coesão social dos cidadãos.
Vale dizer, o acesso à Justiça, regulado, em termos amplos, no inciso XXXV do
artigo da Constituição Federal de 1988, é um dos caminhos para reduzir as desigualdades
sociais e a pobreza, por meio da promoção da eqüidade econômica e social.
No Brasil, infelizmente, vários obstáculos à efetivação desse fundamental direito-
garantia individual e coletivo o acesso à justiça têm sido diagnosticados. Alguns, no
passado, se encontram resolvidos
4
, enquanto outros, longe ainda da solução, vêm sendo
detectados, gerando grande polêmica no meio jurídico.
Prova disso é que, em 2004, o Ministério da Justiça apresentou um diagnóstico do
Poder Judiciário, no qual dados consistentes dão conta da grave situação vivenciada pelo
Poder Judiciário, com o enorme aumento de demandas recepcionado nos últimos quinze anos,
sem o correspondente acompanhamento de medidas que preparassem a estrutura judiciária do
país para prestar um serviço eficiente para a sociedade, culminando na assinatura pelos três
poderes da República, em fins do mesmo ano, do “Pacto de Estado por um Judiciário mais
Rápido e Republicano”.
Entretanto, é o próprio Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos quem, na
apresentação do Relatório de Governo Acesso à Justiça por Sistemas Alternativos de
4
Ressalte-se a assistência judiciária prestada pelo Estado, corrente na tradição constitucional brasileira desde 1934, ampliada pela assistência
jurídica integral ao necessitados, garantida pelo inciso LXXIV do artigo 5º da CF/88, e pela criação da Defensoria Pública (arts. 134 e 135).
Administração de Conflitos – mapeamento nacional de programas públicos e não-
governamentais afirma:
“No entanto, olhando com atenção o problema do Judiciário brasileiro, percebe-se
que a simples reforma legislativa o será suficiente para torná-lo mais célere e
democrático. É preciso uma verdadeira revolução institucional, por meio da qual
aquele poder se imbrique de uma nova cultura, adotando modos diversos de
soluções de conflitos.”
Ora, a atual “crise” do Direito e das instituições responsáveis por sua operação
nada mais é do que o reflexo das contradições dos movimentos da História, de cujas tensões
floresce a evolução dos povos.
Constata-se que ora aqui, ora acolá, espocam manifestações que expressam
inconformismos com o direito posto, premonindo-lhe, até mesmo, a morte. Com esse
prognóstico soturno, merece relevo citar o grande jurisconsulto Carnelutti, que previu, em
conferência proferida, La morte del diritto, no seguintes termos:
“O ponto máximo da crise do Direito positivo e do Direito natural é assinalado pela
presença do comunismo, como se deve ter a coragem de reconhecer”. (...) O
comunismo se resolve. Historicamente, no regresso aos tempos primitivos; que
logicamente, constitui o oposto e, por isso, o igual da escravidão; que,
espiritualmente, é nutrido de materialismo; que, politicamente, destrói a democracia,
pois fornece aos pobres, que antes se calavam, o pretexto para que, em massa,
alteiem a voz, e aqueles que gritam hão de ser escutados”.
E conclui:
“Ou se demonstra que o Direito natural tem a chave para resolver a questão dos
ricos e dos pobres e, com ela, estabelecer a igualdade entre eles, ou fica
demonstrada, ao contrário, a sua impotência.”
Orlando Gomes
5
descreve, com maestria, o seu sentir, nos idos de 1958:
“Nestes últimos tempos, uma onda de pessimismo se espraia sobre as areias da
juridicidade. A tristeza toma conta da alma dos grandes juristas. Nas reflexões a que
se entregam sobre o futuro do Direito não vibram notas de esperança. São
5
GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 101-115.
lamentações plangentes e lucubrações taciturnas que assinalam o discurso dos
doutores. Prognósticos sombrios se fazem, em tal tom e convicção, que até as
mentalidades otimistas vacilam. Na França, Ripert, um jurista de projeção universal,
que vem analisando, com acuidade de espírito, os aspectos fundamentais da ordem
jurídica superposta do regime capitalista da produção, procura, no fim da vida,
demonstrar a decadência do Direito, numa obra repassada de profunda melancolia,
que ecoou como um brado de alarme nos arraiais angustiados do pensamento
jurídico ocidental. Pouco faz que ratificou, em conferência pronunciada na Itália, as
teses pessimistas de seu livro sobre o declínio do Direito. Tratando da evolução e
progresso do Direito, condena a atual abundância de leis, para sustentar que provam
o seu ocaso, porque se afastam do ideal de justiça afirmado pelos romanos no
preceito de que deve se dar a cada um o que é seu. O progresso jurídico não passaria
de ilusão, vã e perigosa, em que se não deve crer.”
Cabe, neste ponto, uma exortação: a quem interessa a morte do Direito a um
tempo, balizador e apaziguador dos ânimos dos atores sociais em conflito, bem como origem
de aspirações e pleitos dos que se sentem injustiçados - ou, ao menos, quem luta por seu
declínio?
A História registra momentos em que o Direito, em sua função pura de equalizador
das diferenças, foi vilipendiado. Se não em todos eles, pelos menos em sua grande maioria, o
enfraquecimento do Direito serviu a ideologias, no mínimo, autoritárias.
Impelida por fatores de diversas ordens, a evolução social resulta de transformações
(ou contradições), que se processam com incrível rapidez, sem que o Direito as possa
acompanhar, pelo menos na mesma velocidade.
Para o filósofo e sociólogo francês Levy-Bruhl
6
, o drama do Direito pode ser
compreendido, a partir da constatação da contínua e perpétua transformação do meio social.
De outra banda, as relações entre os homens, disciplinadas pelo Direito, regulam-se
por leis que devem possuir o mínimo de precisão e rigidez, indispensáveis a sua segurança.
Manifesta-se, daí, um conflito permanente, entre a imobilidade das normas jurídicas
e o dinamismo da vida. Quanto mais “acelerada” se comporte a História, tanto mais agudo e
violento seu conflito com o Direito. À medida que a sociedade evolui (entendido o termo
6
De 1879 a 1882, lecionou filosofia no liceu de Poitiers e depois, entre 1882 e 1885, no liceu de Amiens. Doutorou-se em filosofia em
1884 com a tese A idéia de responsabilidade. No ano seguinte passou a lecionar no liceu Louis le Grand, de onde saiu em 1895. Foi
nomeado diretor de estudos na Sorbonne em 1900. Dois anos depois, substituiu Émile Boutroux na cadeira de história da filosofia. Sob
influência da teoria sociológica de Émile Durkheim, Lévy-Bruhl procurou elaborar uma ciência dos costumes. Acreditava que a moral era
determinada pelas épocas históricas e pelos grupos sociais. Assim, afirmava que ela era relativa, passível de ser aceita ou não pelos
homens, constituindo um meio – variável de acordo com as diferentes culturas – que os homens utilizam para relacionar-se com o mundo.
evolução, como simples caminhar para a frente, sem qualquer juízo de valor), o pensamento e
o sentimento mudam, mas as mudanças, hodiernamente, se verificam até mesmo no período
de uma geração. Por isso o conflito assume uma feição patética, a tal ponto que, como
observa o filósofo, muitas ilegalidades de hoje prefiguram o direito do futuro.
Isso porque, embora paradoxal possa parecer, a contradição existente entre a
dinâmica da vida e a aparente morosidade do Direito em acompanhá-la não é inconciliável.
O Direito sobrevive às crises, e a partir delas se renova, impulsionado pelas
aspirações coletivas.
No dizer de Orlando Gomes
7
:
“Em toda aspiração coletiva, que pode mudar o curso da História, perpassa o sopro
da juridicidade, que em essência atua como elemento de fixação, destinado a
instaurar a ordem no tumulto, a paz na guerra.”
Assim, já no início da segunda metade do século XX, advertia:
“É a consciência jurídica que cabe propor as normas que o solucionem, condensando
as representações coletivas que começam a expressar a aspiração de restabelecer a
paz social – suprema finalidade do Direito, o que não quer dizer que se preste a calar
o clamores. Essa aspiração vem carregada de eletricidade jurídica, de alto teor
humano. Por esse motivo, o pessimismo dos que apregoam a morte do Direito deve
ser substituído pelo otimismo dos que anunciam o nascimento do Direito. se
notam, nos diversos ordenamentos jurídicos, sinais do aparecimento de uma ordem
nova, indecisa, indefinida, mas já se agitando.”
Nada mais atual.
Nesse constante renascer, exsurge inafastável, proclamado pelas cartas políticas das
nações que preservam a liberdade, a exemplo do Brasil, o exercício da cidadania, mediante o
acesso à justiça, regulado pelas normas processuais, as quais embora refertas de formalismo
excessivo, o, ainda, a elogiável intenção de implementação do direito de todos ao exercício
da cidadania, associado às demais liberdades públicas garantidas pela carta política.
7
GOMES, op. cit., p. 105.
Por que, então, malgrado todo o status de megaprincípio constitucional de que se
acha investido o acesso à justiça, sua garantia a todos é de tão difícil concretização?
Por que, sendo unânime o entendimento de sua imprescindibilidade para a garantia e
aperfeiçoamento das instituições democráticas, não se nota efetiva vontade política que atue
diretamente na chaga do ranço autoritário do jogo do poder, que tem origem nas raízes do
Brasil?
Por mais que juristas e legisladores se esforcem por aperfeiçoar as leis de processo, a
censura da sociedade ao aparelhamento judiciário parece sempre aumentar, dando a idéia de
que o anseio de justiça das comunidades se esvai numa grande e generalizada frustração.
Para tentar compreender esse fenômeno, devemos relembrar o que se passou de
inovação nos últimos 200 anos, não apenas em torno das instituições processuais, mas da
própria estrutura política das nações.
De velhas e arraigadas concepções aristocráticas e autoritárias, no desempenho do
poder público, a humanidade caminhou em direção à democracia e à república, fundada,
primeiro, nas solenes declarações de direitos fundamentais, e, finalmente, na inclusão dentre
os deveres estatais o de tornar efetivos os declarados direitos fundamentais.
Os direitos dos cidadãos, em nosso tempo, saíram do âmbito das meras declarações
solenes para entrarem no campo das missões práticas que ao Estado cumpre implementar.
Dentre todas as mazelas que acometem a estrutura jurisdicional do País, muitas vozes
se levantam contra o formalismo processual atávico que dirige o processo civil brasileiro,
presente, com fanatismo, no Direito romano, de onde tiramos nossas raízes. A ele é imputada
grande parte da culpa pelo caos em que vemos mergulhada a jurisdição, nos quatro cantos do
País.
Outros brados apontam com veemência para o perigo da informalização do processo,
consubstanciado na ampliação do poder discricionário dos julgadores, alertando para o fato de
que, sendo seres humanos, a flexibilização das formas ensejaria a arbitrariedade judicial,
fulminando o princípio da imparcialidade.
Palavras de ordem como celeridade, instrumentalidade das formas, efetividade
processual, informalização, ativismo judicial, formas alternativas de solução de conflitos
ecoam, com quase obsessão, diuturnamente, no ambiente jurídico.
Porque o acesso à justiça é a garantia da dignidade da pessoa humana.
Ou, nos dizeres de Capelletti:
“O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental o
mais básico dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno e igualitário
que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.”
Mas, de que justiça falamos? Que justiça queremos?
2 Direito e igualdade
2.1 Referências históricas a princípios igualitários
Um dos primeiros tratamentos fundamentais sobre igualdade refere-se a Platão
8
, que
distinguiu dois tipos de igualdade: a igualdade absoluta, que implica nas mesmas
oportunidades de acesso aos cargos públicos, e a igualdade proporcional, pela qual o
provimento de cargos no governo seria feito de acordo com os méritos de cada um. O
conteúdo filosófico do pensamento de Platão certamente contribuiu significativamente para o
avanço das idéias sobre a igualdade entre os seres humanos. No entanto, considerando-se a
existência de castas, classes e estamentos sociais
9
nas comunidades da época em que Platão
viveu, os princípios da igualdade de oportunidades e a valorização dos méritos de cada um
eram de aplicação restrita a uma minoria de pessoas dotadas de cidadania, que o
constituíam uma amostra quantitativamente significativa da sociedade daqueles tempos. No
entanto, a idéia da valorização dos méritos de cada um assegurava o princípio pelo qual,
dentro de certos limites, todos poderiam ir até onde lhes permitissem as próprias forças, a
iniciativa, a perseverança e a capacidade de trabalho, qualidades que possibilitavam que
alguns progredissem mais do que outros.
No pensamento de Aristóteles
10
, é justa a igualdade de iguais tanto quanto o é a
desigualdade de desiguais. Essa idéia, consistente na admissão de que é injusto tratar
igualmente a pessoas desiguais como tratar desigualmente a pessoas iguais, conduz,
basicamente, ao problema de se definirem procedimentos que efetivamente dêem às pessoas
um tratamento paritário ou desigualitário e deve ser complementado, em sua aplicação, pela
escolha de critérios diferenciais
11
.
8
Apud DUNNING, William Archibald. A History of Political Theories. Ancient and Mediaeval. New York: Mcmillan, 1919 (p 40-41).
9
As castas representavam uma atividade específica, uma atitude religiosa, uma ética que valorizava o sagrado, derivando daí o conjunto de
normas e valores, padrões culturais e etiquetas, usos e costumes, símbolos e signos sociais que compunham as regras ritualísticas que
definiam os sentidos subjetivos e as relações sociais. Os estamentos correspondiam à distribuição do poder dentro de uma comunidade, ou
seja, as situações de status. As classes se referiam a um certo número de pessoas que tinham em comum um componente causal específico
em suas oportunidades de vida, onde esse componente era representado pelos interesses econômicos ou pelas funções que exerciam no
universo social
10
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Tecnoprint, 1972, p. 117
11
Tudo indica que um critério diferencial a ser aplicado não pode ser uma característica tão específica que particularize, para sempre, a
pessoa abrangida por este parâmetro diferenciador e que, além disso, a característica diferenciadora deve estar na pessoa, nunca fora dela.
Os procedimentos para implementação de tratamento igualitário e os critérios
empregados para a diferenciação entre os membros da sociedade do Mundo Antigo foram
quase sempre discriminatórios, em razão da existência de castas, classes e estamentos sociais
naquela época, o que, por outro lado, dificultava e até impossibilitava a mobilidade social.
Para Lindsay, também, o papel desempenhado pelo cristianismo foi marcante na
consolidação do princípio da igualdade; desenvolvendo-se e penetrando em extensas áreas
geográficas, acabou por reforçar a defesa dos princípios igualitários de forma universalizada,
considerando-se a igualdade de todos os homens, fato que influenciou significativamente os
alicerces do estado democrático moderno. Lindsay
12
afirma que “um elemento especial do
conceito cristão de igualdade é a universalidade. O cristianismo defende a igualdade, não de
todos os membros desta ou daquela comunidade, mas de todos os homens”. Desse conceito de
igualdade universal, o pensamento democrático tirou marcante contribuição.
Rousseau
13
, entre outros, estudou as desigualdades entre os homens, classificando-as
em duas modalidades: a desigualdade natural ou física, estabelecida pela natureza e que
consiste na diferença das idades, da saúde e das forças do corpo e das qualidades do espírito
ou da alma; a outra, por ele denominada desigualdade moral ou política, dependente de uma
espécie de convenção estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos
homens. Esta consiste nos diferentes privilégios que alguns usufruem em prejuízo de outros,
como serem mais ricos, mais reverenciados e mais poderosos, ou mesmo em se fazerem
obedecer. Ao considerar a existência da desigualdade política, deve-se atentar para o fato de
que Rousseau relacionava o poder de mando dos ricos e reverenciados como convenção
aceita pela sociedade. O mesmo não ocorrendo com os desfavorecidos. Por outro lado, os
12
LINDSAY, A.D. O Estado Democrático Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1964, p. 213
13
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens. São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 159.
poderosos se apoiavam em componentes políticos, nobiliárquicos e, principalmente,
econômicos.
2.2 Igualdade perante a lei e igualdade na lei
As desigualdades entre os seres humanos influenciam os sistemas normativos e
consagram, como instrumentos reguladores da vida social, que a lei deve tratar de forma
eqüitativa os cidadãos desiguais e não deve ser fonte de perseguições ou privilégios,
entendidos como direitos, vantagens, prerrogativas, válidos apenas para um indivíduo ou um
grupo, em detrimento da maioria. O direito de igualdade perante a lei não prejudica, portanto,
o reconhecimento da desigualdade relativamente à natureza singular ou especial do homem. É
fundamental o entendimento de que, embora a lei defina, para todos, tratamento igualitário
perante a lei, admite a desigualdade como fato que, em tese, é irrelevante para o tratamento
paritário entre os homens. O âmbito de proteção do princípio da igualdade perante a lei
abrange, portanto, diferentes dimensões, como a proibição do arbítrio e da discriminação,
além da obrigação de diferenciação.
Alaor Caffé Alves
14
concluiu que “ao submeter a regras iguais pessoas
economicamente iguais, o Estado não faz outra coisa senão reafirmar as desigualdades reais.
A lei que proíbe tanto ao rico como ao pobre dormir sob as pontes, mendigar nas ruas e furtar
o pão, não afeta de igual modo a ricos e pobres”. Defendeu assim o mesmo autor, que:
“(...) a igualdade perante a lei ou igualdade jurídico-formal, o é plenamente
compatível com a desigualdade real de natureza econômica, como também o é no
exato pressuposto essencial para que a repartição desigual da riqueza social possa
ser levada a efeito de forma harmonicamente dissimulada.”
14
ALVES, A.C. Estado e Ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 336.
Dalmo de Abreu Dallari
15
ressalta que um menino que nasce numa favela é igual ao
que nasce numa família rica, e vale o mesmo que este, mas dificilmente o favelado conseguirá
boa alimentação e boas escolas, e desde cedo será tratado como um marginal, discriminação
que irá acompanha-lo pela vida inteira. Assim, embora a lei diga que todos são iguais, o não
direito à igualdade de oportunidades entre os dois meninos fica evidente.
Alf Ross
16
leciona que a inserção de normas realizadoras de princípios que
caracterizam a igualdade perante a lei nos ordenamentos jurídicos, constitui-se numa
proibição dirigida principalmente ao legislador para que privilégios antes tolerados não mais o
sejam e, assim, prevaleçam princípios igualitários que possam trazer alguma forma de
garantia para a sociedade à qual se aplica o direito.
Celso Lafer
17
afirma que, na esfera pública, que diz respeito ao mundo que
compartilhamos com os outros, e que, portanto, não é propriedade privada de indivíduos e/ou
do poder estatal, deve prevalecer, para se alcançar a democracia, o princípio da igualdade.
Este não é dado, pois as pessoas não nascem iguais nas suas vidas. A igualdade resulta da
organização humana. Com isso, indica a importância da minimização dos efeitos das
desigualdades materiais por meio de medidas implantadas pelas instituições do poder público,
como acontece, por exemplo, com os procedimentos específicos da justiça distributiva.
Em síntese, o princípio genérico de igualdade perante a lei, destina-se a assegurar
uma proteção imparcial a todos os membros da sociedade. Considerando-se as situações
extremamente diferentes entre ricos e pobres, no que concerne à desigualdade de
oportunidades, na aplicação da lei e no acesso à justiça, esse princípio legal atua de forma
tênue e, mesmo, imperceptível na redução das profundas desigualdades existentes entre os
15
DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1999, p. 33.
16
ROSS, Alf. Hacía una ciencia realista del derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1961, p. 352.
17
LAFER, C. A Reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia da Letras, 1999, p. 152
universos das classes hegemônicas e das desfavorecidas, o que indica a descaracterização da
imparcialidade na aplicação destes princípios igualitários. Entretanto, o princípio de igualdade
perante a lei impõe limites aos legisladores que, em última análise, são os principais
destinatários das normas jurídicas deste princípio igualitário, o que os impede de criarem leis
esdrúxulas que se afastem das condições de razoabilidade.
As expressões igualdade perante a lei e igualdade na lei distinguem, respectivamente,
a conformidade com a norma (defina ela ou não um tratamento igualitário) e o próprio
tratamento igualitário expresso na lei, excluindo-se, por exemplo, as desigualdades resultantes
das diferenças de sexo, raça, cor da pele, credos políticos e religiosos.
A igualdade na lei, neste sentido, opera como complemento ou reforço explícito do
texto legal, que considera todos iguais perante a lei. Para Kelsen
18
, a igualdade perante a lei
pode existir mesmo quando não existir nenhuma igualdade na lei, ou seja, quando a lei não
prescrever nenhum tratamento igualitário.
2.3 Parâmetros associados à aplicação de princípios igualitários
A aplicação de princípios igualitários e a inserção das normas realizadoras desses
princípios nos ordenamentos jurídicos estão intimamente associadas a diferentes parâmetros
vinculados ao interesse jurídico, como o direito de propriedade, os princípios da justiça, a
globalização da economia, a qualidade de vida dos membros da comunidade, as
conseqüências da miséria humana, o respeito aos direitos humanos, a linha ideológica
dominante, os avanços tecnológicos e as formas alternativas de encarar o direito.
Passemos, então, à análise desses parâmetros relevantes na dinâmica da inserção de
normas realizadoras dos princípios igualitários nos ordenamentos jurídicos.
18
KELSEN, Hans. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 60.
2.4 Direito de propriedade e princípios igualitários
A propriedade assume um papel de relevo, como uma das características mais
significativas do poder econômico, além de ser uma marcante fonte geradora de desigualdades
materiais. A propriedade constituiu-se num dos primeiros institutos jurídicos, efetivamente
consolidado já ao tempo em que as normas religiosas confundiam-se com as regras de direito,
formando a trilogia religião, família propriedade privada. Primitivamente, a idéia de
propriedade, principalmente de bens imóveis, estava associada, de um lado, ao poder
econômico e, de outro, a uma concepção religiosa, mística, vinculada a sentimentos
individualistas que moldaram a consciência jurídica dos povos ocidentais.
No sistema de produção feudal, a propriedade se centrava nos bens imóveis, ou seja,
nas terras e o poder dos suseranos estava ligado diretamente à extensão e aos recursos naturais
das glebas que constituíam os seus domínios os feudos –, no qual trabalhavam os vassalos,
geralmente em número proporcional às áreas que ocupavam. Assim, no feudalismo, havia
uma relação direta entre o poder do senhor e a extensão e recursos naturais de sua propriedade
fundiária.
Com o advento do capitalismo ampliaram-se, sobremaneira, as relações de troca de
mercadorias, crescendo em importância, como corolário, a propriedade de bens móveis, com
diferentes preços e padrões variados, que passou, juntamente com a propriedade fundiária, a
ser associada a poder econômico, consolidando-se esse poder em função da quantidade,
qualidade e valor monetário desses bens.
No capitalismo, os bens resultantes da atividade humana, produzidos socialmente,
são colocados no mercado, segundo critérios de demanda e preço, que se conformam como
algumas das condições para que os usuários tenham acesso a esses produtos que, se
cumpridas, criarão, para os adquirentes, a propriedade destes bens móveis. Limitado fica,
assim, o acesso aos artigos resultantes da intervenção produtiva da atividade humana.
De outra banda, os produtos naturais, ou seja, aqueles providos pela natureza, e não
submetidos à transformação pela atividade humana,o estavam sujeitos a nenhuma barreira,
sendo, portanto de livre acesso, dada a gratuidade ínsita aos produtos espontâneos da
natureza.
2.5 Justiça e princípios igualitários
A igualdade ou a desigualdade dos seres humanos, considerados em sua natureza ou
sob enfoque social, constituem a base do problema essencial da justiça.
Dois princípios básicos da justiça são admitidos no pensamento liberal de Rawls
19
, o
da prioridade da liberdade e o da prioridade da justiça, sobre a eficiência e o bem-estar. Estes
princípios relacionam as liberdades fundamentais e a ordenação das desigualdades
econômicas e sociais dos homens. O primeiro princípio estabelece que cada pessoa deve ter
um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível
com um sistema semelhante de liberdade para as outras pessoas. Essas liberdades incluem
liberdade política (votar e ocupar cargo público), a liberdade de expressão e de reunião; a
liberdade de consciência e de pensamento e as liberdades que protegem os cidadãos contra a
agressão física, a opressão psicológica, o direito à propriedade privada e a proteção contra a
prisão e detenção arbitrárias.
O segundo princípio da justiça estabelece que as desigualdades sociais e econômicas
devem ser ordenadas de tal modo que sejam, ao mesmo tempo, consideraedas como
19
RAWLS, Jonh. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 64.
vantajosas para todos dentro dos imites do razoável e vinculadas a posições e cargos
acessíveis a todos. Explicando este segundo princípio, Rawls argumenta que a ordenação, à
qual se refere, deve trazer o maior benefício possível para os menos favorecidos e que as
desigualdades econômicas e sociais sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em
condições de igualdade eqüitativa de oportunidades.
Com esta explicação, Rawls considera “o maior benefício possível para os menos
favorecidos” como uma “vantagem para todos” na ordenação das desigualdades materiais e
econômicas da comunidade, o que, partindo da proposição de um pensador liberal, é uma
aproximação ideológica com o Estado Social. Pode-se constatar que as desigualdades
econômicas e sociais, que devem ser organizadas pelo segundo princípio de forma a que
“todos se beneficiem”, conforme Rawls, sucedem às violações de liberdades individuais,
protegidas pelo primeiro princípio, que não podem ser justificadas nem compensadas por
vantagens econômicas e sociais, por maiores que estas sejam.
Um tema amplamente questionado é o acesso à justiça. Para Faria
20
, estudos revelam
que a distância do cidadão em relação à administração da justiça, é tanto maior quanto mais
baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não
apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros
possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas.
Seus estudos demonstraram que as dificuldades no acesso à justiça são diretamente
proporcionais ao grau de pobreza do interessado no provimento judicial, ou seja, o poder
econômico de quem procura acessar a justiça dá-lhe uma especial vantagem em relação ao
cidadão pobre, traduzida em melhor atendimento, na contratação de advogados mais
experientes e na obtenção de maiores oportunidades de vencer o litígio.
O formalismo jurídico, nesta seara, pode assumir tanto as feições de herói quanto as
de um vilão da concretização do direito perseguido. No primeiro caso, o devido processo legal
20
FARIA, José Eduardo. Direito e Justiça. São Paulo. Ática, 1989, p. 48.
e o contraditório atua no sentido de equilibrar as forças das partes litigantes. No segundo, ao
converso, impõe ônus e sacrifícios que escancaram a desigualdade das partes, porquanto, para
os mais fortes, esses encargos não ensejam maiores esforços.
3 Evolução histórica do processo civil
O processo passou a ter autonomia a partir do século XVIII. Até então, a ação não
era vista de forma diferente do direito distinto daquele que a parte deduzia em juízo para
reclamar a tutela do Estado. Assim, a ação era apenas o direito subjetivo material do litigante
que reagia contra a violação sofrida.
Em outras palavras, o a ação e o objeto da ação eram indissociáveis, não havendo
nenhuma diferença teórica ou prática entre eles, o que veio a ocorrer posteriormente. Nesta
época, então, o processo consolidou-se num amontoado de formas e praxes do foro para
cuidar do conflito submetido ao juiz.
No século XIX, após a observação das demandas, os pandectistas descobriram que,
após a eclosão da lide, a parte e o Estado encontravam-se em nova relação jurídica, nascida da
violação do direito subjetivo material e do direito de obter um provimento do órgão judicial
contra dita violação. A relação material, então, era travada entre as partes de forma direta e
pertencente ao direito privado a relação processual era feita entre parte e Estado, portanto,
dizia respeito ao direito público.
Wach e von Bulow transportaram o estudo da relação processual para o ambiente
científico ainda no século XIX. A partir daí, foram conceituados os pressupostos, objeto e
método do processo. Depois disso, o direito processual obteve autonomia científica. No
século seguinte, as doutrinas, principalmente alemã e italiana, construiriam os conceitos
informadores do sistema científico do direito processual civil.
Depois da crise político-social da Segunda Guerra Mundial, as atenções voltaram-se
aos problemas da prestação jurisdicional, tema ainda não cogitado. Os estudiosos do Direito,
então, levaram mais de um século pesquisando as categorias fundamentais do Direito
Processual Civil e atentaram para o fato de que a sociedade, como um todo, ansiava, ainda,
por uma prestação jurisdicional mais efetiva. Era esperada, pela população, uma justiça que
servisse a todo tipo de conflito jurídico e que estivesse ao alcance de todos. A tutela deveria,
dessa forma, apresentar-se pronta e mais consentânea com a justa e célere preservação dos
direitos subjetivos violados ou ameaçados. Esperava-se, em conclusão, uma Justiça que
assumisse, de forma concreta e satisfatória, a função de implementar a lei material, com
custos e prazos os menores possíveis, por meio de órgãos de justiça preparados e muito
confiáveis no que diz respeito à ética.
A ciência processual, então, passou a manifestar interesse por temas como a garantia
de acesso à Justiça, instrumentalidade e efetividade da tutela jurisdicional, com preferência
sobre as categorias que haviam servido de base para a implantação do Direito Processual
como ramo diverso do direito material, este integrado solidamente no direito público.
Mas foi no relacionamento com o Direito Constitucional que o processo mais se
diferenciou do seu caráter publicístico. Mas não nisso ficou evidente o processo moderno.
Reconhecido desde logo como instrumento de atuação de soberania estatal, aos poucos seu
caráter mais marcante foi se deslocando para a sua qualidade cívica, a que a maioria das
constituições democráticas passassem a incluir o processo legal como direito fundamental do
cidadão.
A partir daí, o processo passou a constituir-se numa garantia de acesso do cidadão à
tutela jurídica, declarado e resguardado pelas constituições.
3.1 O processo privatístico: contrato ou quase-contrato
As primeiras formulações acerca da natureza jurídica do processo estavam
impregnadas de conceitos oriundos da civilização romana. Baseado na litiscontestatio, acordo
celebrado pelas partes diante do Pretor, pelo qual pactuavam submeter-se à decisão proferida,
o processo é concebido como um contrato, um negócio jurídico pelo qual as partes se
submetem, voluntariamente, ao processo e a seus resultados, conforme Cintra et al.
21
. De
21
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 15. ed.
São Paulo: Malheiros, 1999, p. 277.
origem francesa, teve como um de seus maiores defensores Pothier
22
, que colocava a vontade
individual como única fonte do direito e dever, cabendo ao Estado somente atender aos pactos
advindos dos particulares. Para essa teoria, não estavam as partes obrigadas a comparecer em
juízo, mas se a tanto fossem, comprometiam-se a cumprir a decisão proferida pelo juiz,
esclarece Leal
23
.
Por volta de 1850, Savigny
24
, observando que o processo não tinha características de
contrato, defendeu que deveria ser então um quase-contrato, visto que a parte que ingressava
em juízo consentia com a decisão judicial, favorável ou desfavorável, ocorrendo um nexo
entre autor e juiz, independentemente da adesão espontânea do réu ao debate da lide, assevera
Leal
25
. Partia tal premissa de erro metodológico fundamental, por se querer enquadrar o
processo, a todo custo, nas categorias de direito privado, esclarece Cintra et al.
26
.
As críticas lançadas às duas idéias são similares: partes ou autor estão submetidos,
coercitivamente, à decisão proferida pelo juiz, que não necessita de prévio assentimento de
qualquer daqueles para impor a sentença. Ademais, permanecia o processo no plano do direito
material, sem qualquer tratamento científico e confundido com o procedimento, interessando
apenas o seu aspecto evolutivo, na seqüência de atos coordenados até a sentença, esclarece
Fernandes
27
.
22
POTHIER, Robert Joseph. 1699 – 1772Nota do Autor Conselheiro do tribunal presidiário da cidade de Orléans, Pothier deixou obra
considerável da qual se destacam Pandectes de Justinien mises dans um nouvel ordre (Pandectas de Justiniano postas em nova ordem)
(1748) e tratados sobre o direito civil, que influenciaram o código civil francês. Em sua obra Obligations expõe a idéia de que a coisa
julgada é conseqüência lógica de que as convenções afetam somente os contratantes, e que decorre pois de um contrato judicial, consoante
COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil. Trad. Rubens Gomes de Sousa. São Paulo: Editora Saraiva, 1946, p. 91.
23
LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 2. ed. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 75.
24
SAVIGNY, Friedrich Karl von. (1779 – 1861) – Nota do Autor – Criou a escola histórica alemã, combatendo a teoria do direito natural e
substituindo-a pelo estudo da evolução histórica do direito positivo. Acreditando nessa força evolutiva, combateu a codificação do direito.
Sua obra pioneira, Gechichte dês rômischen Rechts im Mittelater (História do direito romano na idade média), 1815-1831, foi
completada pelo System des heutigen rômischen Rechts( Sistema do direito romano atual), 1840-1849. Foi profunda e duradoura a sua
influência sobre o pensamento jurídico dos tempos modernos.
25
LEAL, R. P. Op cit., p. 76
26
CINTRA, A. C. de A., GRINOVER; A. P.; DINAMARCO, C. R., Op cit., p. 278.
27
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 33.
3.2 O processo como relação jurídica
Deve-se, a Oskar Von Bülow, a autonomia do processo frente ao direito material, em
face da publicação, em 1868, do clássico: Teoria das Exceções Processuais e dos Pressupostos
Processuais. Inspirado em Bulgaro, para quem o processo seria ato de três personagens juiz,
autor e réu Bulow estabeleceu pressupostos de constituição e desenvolvimento do processo
por meio da relação entre tais atores, visto que, para a validade e legítima constituição do
mesmo, deveriam aqueles cumprir o disposto em lei processual, remetendo o direito disputado
para a matéria de mérito. Afirmou o autor, que:
“El processo es una relación jurídica que avanza gradualmente y que se desarolla
paso a paso. Mientras que las relaciones jurídicas privadas que constituven la
materia del debate judicial, se presentan como totalmente concluidas, la relación
jurídica processal se encuentra en embrión. Esta se prepara por medio de actos
particulares. Sólo se perfecciona com la litiscontestación, el contrato de derecho
público, por el cual, de una parte, el tribunal asume la concreta obligación de decidir
y realizar el derecho deducido en juício, y de outra, las partes quedan obrigadas,
para ello, a prestar una colaboración indispensable y a someterse a los resultados de
esta actividad común.”
28
Sistematizando a relação jurídica processual, ordenadora da conduta dos sujeitos do
processo em suas ligações recíprocas, Bülow deu realce a duas situações distintas: a de direito
material, que se discute no processo; e a de direito processual, que é o continente em que se
coloca a discussão sobre aquela. A relação jurídico-processual se distinguiria da de direito
material por três aspectos: pelos seus sujeitos (autor, réu e Estado-juiz), pelo objeto (prestação
jurisdicional) e pelos seus pressupostos (pressupostos processuais), conforme registro de
Cintra et al
29
.
Distingue ainda Bulow
30
os conceitos de processo e procedimento. Observa que a
relação jurídica processual que considera de natureza pública es em constante movimento e
28
BÜLOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Tradução Miguel Angel Rosas Lichtschein.
Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1964, p. 1-3.
29
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, e DINAMARCO, Cândido Rangel, op. cit., p. 278.
30
BÜLOW, Oskar von, op. cit., p. 3-4.
transformação, fato a que a ciência processual de então dava extrema importância,
destacando, unicamente, aquele aspecto que saltava à vista da maioria: sua marcha ou
andamento gradual, ou seja, o procedimento, descuidando-se de mostrar a relação processual,
como a outra parte do conceito.
Muito ainda se debateu acerca das maneiras de se considerar essa relação processual.
Adolf Wach assevera Tornaghi
31
entendia a relação processual entre o juiz e as partes
como de direito público, e das partes entre si como de direito privado, graficamente
representada como triangular, enquanto Kohler afirmava que a relação ostentava natureza
privada, estabelecendo-se somente entre as partes, sendo o juiz mero colaborador e não
partícipe, numa perspectiva linear (autor-réu), registra Araújo
32
.
Tornaghi
33
ensina, ainda, que o sistema concebido por Planck e Hellwig demonstrava
que as partes o estavam vinculadas uma à outra, mas ligadas ao juiz, sendo, pois, uma
relação exclusivamente de direito público e angular. A idéia linear foi, de plano, descartada,
visto que o interesse do juiz no processo é prestar a jurisdição, solucionando a pendenga, e
sua participação o insere na relação processual, transformando-a em pública.
Com o acréscimo do conceito de direito subjetivo feito por meio do debate entre
Windscheid & Muther
34
à teoria da relação jurídica, com importantes reflexos também para a
conceituação do direito de ação, esta se aperfeiçoa, sendo conceituada como o vínculo
normativo que liga sujeitos, em dois pólos passivo e ativo , atribuindo ao sujeito ativo o
poder de exigir do sujeito passivo uma determinada conduta, e impondo a este o dever de
prestá-la, conforme assevera Gonçalves
35
.
31
WACH, Adolf. Handbuch des deutschen Civilprozessrechts. Lípsia, 1885, apud TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal. 2. ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 17.
32
ARAÚJO, Sérgio Luiz de Souza. Teoria geral do processo penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999, p. 51.
33
TORNAGHI, Hélio, op cit., p. 23.
34
WINDSCHEID, Bernhard; MUTHER, Theodor. Polemica sobre la “actio”. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974.
35
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 77.
Hodiernamente, os juristas não discrepam da idéia primeva, vislumbrando, no
processo, uma força que motiva e justifica a prática dos atos do procedimento, interligando os
sujeitos processuais. O processo pode ser encarado pelo aspecto dos atos que lhe dão corpo e
das relações entre eles e, igualmente, pelo aspecto das relações entre os sujeitos.
Procedimento, seria o meio extrínseco pelo qual se instaura, se desenvolve e se conclui o
processo; é a manifestação extrínseca do processo, sua realidade fenomenológica perceptível.
A noção de processo é teleológica, pois se caracteriza por sua finalidade de exercício de
poder, como instrumento da jurisdição para eliminar conflitos, e fazer justiça mediante a
atuação concreta da lei.
A teoria da relação jurídica é encampada pela maioria dos processualistas brasileiros,
inspirando o digesto e a processualística civil por obra de Liebman. Também os penalistas a
adotam, pois retira o acusado da condição de mero objeto do processo e o transforma em
sujeito de direitos, vinculado às determinações da lei e não à discrição do juiz. As relações
entre acusado, acusador e juiz são relações jurídicas com direitos, faculdades, encargos e
obrigações específicas.
Observa-se que, em uma concepção democrática, o processo não é instrumento da
jurisdição, mas seu validador e disciplinador, mormente porque o direito de ação instaura o
procedimento e não a jurisdição. Essa concepção peca, ainda, por não conseguir distinguir o
procedimento do processo.
3.3 A escola instrumentalista do processo como relação jurídica
Notadamente, no Direito Brasileiro, a concepção da relação jurídica vem sofrendo
constante evolução, através do movimento conhecido como Escola Instrumentalista do
Processo, produzida pela doutrina paulista. Em obra clássica, Dinamarco
36
eleva os
ensinamentos da escola do processo como relação jurídica, impondo argutas observações.
Concebe, o doutrinador, a jurisdição como poder do Estado e centro da teoria processual,
numa perspectiva publicista, onde o processo é concebido como instrumento de exercício
daquele poder, para cumprimento de seus objetivos. Advém a sua instrumentalidade, por não
ser um fim em si mesmo, mas um meio para a consecução dos fins jurisdicionais.
Por estar destituído de uma maior expressão substancial dentro do sistema que
integra, uma vez marcado pelo formalismo (aspecto negativo da instrumentalidade), é que o
processo não merece ser colocado como fonte substancial de emanação e alvo de
convergência de idéias, princípios e estruturas que integram a unidade do direito processual.
Portanto, deve ser extraído dele o máximo de proveito quanto à obtenção dos resultados
propostos, os escopos do sistema e a efetividade processual (aspecto positivo da
instrumentalidade).
O exercício da jurisdição, por meio do processo, deve observar o devido processo
legal, mediante o qual é imposta, ao juiz, uma estrutura de oportunidades e respeito a
faculdades e poderes processuais, pela Constituição e pela lei. Portanto, a jurisdição não pode
ser vista apenas no seu aspecto jurídico, pois sendo expressão do poder estatal, tem
implicações com a estrutura política do Estado. Está inserta em um contexto de poder, e não
como um poder, devendo ser descortinado o panorama sociopolítico em que inserida sua real
função. Passa a ter escopos jurídicos e extrajurídicos (sociais e políticos).
Sendo assim, o principal escopo jurídico do processo seria a atuação da vontade
concreta do direito, não pela composição das lides ou o estabelecimento da regra que as
disciplina e soluciona, no caso concreto, mas pela efetividade à regra, no caso concreto, que
lhes pré-existia.
36
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001
Muitas são as críticas formuladas contra essa concepção, visto que permanece a
cultura do exercício da jurisdição pelos vínculos de subordinação, comando, autoridade e
ordenação, que na prática forense se degeneram em vínculos de autoritarismo. Sendo o juiz
colocado como órgão suprapartes, os sujeitos do processo, verdadeiros interessados, sofrerão
os efeitos do provimento final, pois são desprezados, amesquinhados, convertendo-se em
súditos, pois sujeitos a atos de império emanados do juiz, conclui Araújo
37
.
3.4 O processo como situação jurídica
Imputa-se a Goldschmidt
38
a formulação da teoria do processo como situação
jurídica, por volta de 1925.
Utilizando um paralelo entre a guerra e o processo, Goldschmidt ensina que o
vencedor da batalha desfruta de situações vantajosas pela simples conquista, tendo ou o
direito anterior. O processo seria o direito numa condição dinâmica, mudando
estruturalmente: o que era direito subjetivo transforma-se em meras possibilidades (de praticar
atos para que o direito seja reconhecido), expectativas (de obter o reconhecimento do direito),
perspectivas (de uma sentença desfavorável) e ônus (encargo de praticar certos atos, cedendo
a imperativos ou impulsos do próprio interesse, para evitar a sentença desfavorável),
conforme registro em Cintra et al.
39
.
Significou o rompimento com a idéia de relação jurídica. Constituída, a situação
jurídica passa a ser o complexo de direitos e deveres de uma pessoa, vistos concretamente na
37
ARAÚJO, Sérgio Luiz de Souza, op cit., p. 124.
38
GOLDSCHMIDT, James. Teoría general del proceso. Barcelona, 1936
39
CINTRA, A. C. de A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R., op cit., p. 279.
perspectiva de determinado sujeito, esclarece Gonçalves
40
. Logo, o fato ou ato jurídico
produzido pela norma determinaria a situação do sujeito no processo, conferindo-lhe um
complexo de direitos e deveres. A situação jurídica de filho é que daria, ao sujeito, o direito
de pleitear alimentos dos ascendentes, exemplifica o mesmo autor.
Mal comparando, o processo, como situação jurídica, assemelha-se a uma luta de
boxe, em que o juiz apenas afere qual dos boxeadores foi melhor na contenda, na utilização
dos meios lícitos postos a seu dispor. Daí advêm as maiores críticas à teoria, visto que o
direito subjetivo migrou para a atividade jurisdicional do juiz, esclarece Leal
41
. Também
argumenta pela exceção, utilizando-se como regras as deformações do processo, sendo este
um complexo de situações jurídicas, que seriam os compostos da relação jurídica. Ademais, o
que é posto em dúvida, não é o processo, mas o direito subjetivo material.
Embora pouco adotada pelos doutrinadores, esclareceu tal doutrina as idéias de ônus,
sujeição e relação funcional do juiz com o Estado, esclarece CINTRA et al.
42
.
3.5 O processo como instituição
Essa teoria não tem inspiração jurídica, mas sociológica, foi desenvolvida pelo
espanhol Guasp
43
por volta de 1940, e tem seu relevo e citação nos manuais jurídicos, em
40
GONÇALVES, A. P., op. cit., p. 88
41
LEAL, R. P., op cit., p. 78.
42
CINTRA, A. C. de A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 280.
43
GUASP, Jaime. Comentarios a la ley de enjuiciamiento civil. Madrid, 1943.
razão de sua adoção por Couture
44
que logo a abandonou, para integrar a escola do processo
como relação jurídica.
No dizer de Guasp, instituição seria:
“(...) um complexo de atividades relacionadas entre si pelo vínculo de uma idéia
comum objetiva, à qual surgem ligadas, seja ou não aquela a sua finalidade
específica, as diversas vontades individuais dos sujeitos, dos quais procede a
referida atividade.”
45
Assim, a instituição se compõe de uma idéia objetiva, fora da vontade dos sujeitos e
acima dela, e do conjunto das vontades que se vinculam àquela idéia. Aplicando o conceito ao
processo, a idéia objetiva comum que nele aparece é a afirmação ou a negação da pretensão,
as vontades ligadas a essa idéia são as dos diversos sujeitos que figuram no processo, entre os
quais, a idéia comum cria uma série de vínculos de caráter jurídico. Ao encampar tal teoria,
Couture conceitua o processo como uma instituição submetida ao regime da lei, a qual regula
a condição das pessoas, a situação das coisas, e o ordenamento dos atos que tendem à
obtenção dos fins da jurisdição
46
considerando que da mesma forma que a família, a
associação, a comuna, entram pela multiplicidade de suas relações na categoria de
instituições, também é acertado incluir, no gênero, o processo.
Essa teoria concebe o processo como uma instituição histórico-cultural (e, portanto,
existente na realidade sociológica), um complexo de atos, um método, um modo de ação
unitário que é regulado pelo direito, para obter um fim, esclarece Leal
47
. Porém, por seu fundo
sociológico e sua concepção primária, ela foi afastada por Couture, com a ressalva de que o
fazia, até o dia que a concepção institucional do direito projetasse suas idéias em planos mais
rigorosos, explica Assis
48
.
44
COUTURE, E. J., op. cit., p. 103.
45
GUASP, J., op cit., p. 22. apud. COUTURE, E. J. op. cit., p. 101.
46
COUTURE, E. J., op. cit., p. 103.
47
LEAL, R. P., op cit., p. 79.
48
ASSIS, Jacy. Couture e a teoria institucional do processo. Uberlândia: Faculdade de Direito de Uberlândia, 1959. Apud. LEAL, R. P.,
op. cit., p. 79.
3.6 O processo como procedimento em contraditório
A distinção entre processo e procedimento sempre representou uma árdua tarefa para
os processualistas.
Para os adeptos da escola da relação jurídica, um permanecia no campo metafísico, e
outro, no campo naturalístico, o que representava, muitas vezes, conceitos antinômicos.
Coube a Fazzalari
49
a correta individuação dos conceitos, criticando o inadequado
“clichê” pandetístico da relação jurídica processual, e amparando-se em estudos de
administrativistas, gravar o contraditório como característica própria do processo, explica
Nassif
50
, representando marco evolutivo daquela ideação, como se pode constatar na obra
Gonçalves
51
.
Concebia Fazzalari o procedimento, como uma série de atos normatizados, que
levariam a um provimento final dotado de imperatividade. Em tal seqüência normativa, o ato
é validado, se baseado na norma, ou seja, se atendido seu pressuposto, que é um ato
anterior válido. O provimento, ato final do procedimento, é válido se amparado neste, pois
este é o meio de sua preparação. A noção de processo começa a ser construída com a
participação dos interessados na preparação do provimento, considerados estes, como aqueles
em cuja esfera particular o provimento interferirá. Mas tal participação deve ser em
contraditório entre as partes, com simétrica paridade. Parte, pois, da noção de procedimento
como nero, e do processo como espécie daquele, gravado pela característica do
contraditório. Logo, o processo é um procedimento.
49
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. Ottava Edizione, Milano: CEDAM, 1996, p. 75-76.
50
NASSIF, E. N. op. cit., p. 111.
51
GONÇALVES, A. P., op cit., p.102-132.
Partindo desse conceito, pode haver processo administrativo, legislativo e judicial,
como também procedimentos nessas esferas. O pedido de licença de porte de arma ou o pleito
de jurisdição voluntária se incluem nesta última exegese. Mas, se porventura, surgir o
contraditório em um pedido de tutela, por exemplo, instalar-se-á o processo (nesta hipótese, a
matéria administrativa deve estar submetida à jurisdição). Assim, o processo é um
procedimento, do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica
o ato final é destinado a produzir efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato final
não possa obliterar a atividade deles, enfatiza Fazzalari
52
.
Melhor explicitando, o procedimento equivale a uma estrutura técnica normativa,
sendo construído pelas partes, em contraditório, com vistas a uma sentença conseqüência e
expressão jurídica racionalizada e conclusiva dos atos realizados. A preocupação atual
atendida por tal teoria, que a dota de extraordinária legitimidade, é que a sociedade não quer
apenas que as decisões sejam justas, mas que também haja justiça no processo. A relação
jurídica processual é retirada do conceito de processo, inserindo-se o módulo processual
representado pelo procedimento realizado em contraditório.
Tal argumentação vem merecendo aquiescência dos adeptos da idéia do processo
como relação jurídica, que, não se afastando desta, adotam o conceito de procedimento aqui
explicitado como um modo distinto de se ver a mesma realidade
53
. Isso porque, afirma
Dinamarco
54
, a introdução do contraditório é uma exigência política, para a
instrumentalização jurídica da relação processual.
3.7 Teoria constitucionalista do processo
52
FAZZALARI, E., op cit., p. 82. Apud. OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Tutela jurisdicional e estado democrático de direito.
Belo Horizonte: Editora e Livraria Del Rey, 1998, p. 143.
53
cfr. FERNANDES, A. S., op. cit., p. 42.
54
DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 314
Incontestável que a modernidade trouxe um vínculo profundo entre o direito
processual e o direito constitucional, no mais das vezes em países onde os ordenamentos
foram concebidos durante os regimes democráticos. Isso não quer dizer que nas constituições
nascidas sob regimes autoritários não houvessem dispositivos destinados a regular matéria
processual.
Em seguida, a Teoria Constitucionalista do Processo, desenvolvida por Fix-
Zamundio
55
, Andolina e Vignera
56
e, principalmente no Brasil, pelos trabalhos pioneiros de
Baracho
57
, foi responsável por afirmar que a existência de um modelo geral constitucional do
processo. Destarte, o modelo que era estava fundado na legislação infraconstitucional, agora
foi constitucionalizado.
Paralelamente a esse movimento, o Direito buscou desenvolver um arcabouço teórico
para melhor estudar esse novo paradigma. A teoria de Habermas aquela que mais de mostra
adequada, primeiramente, por ser construída tendo como base a noção de pluralismo
e,
depois, porque assume a tensão entre a facticidade e a validade do direito contemporâneo,
presente na própria linguagem (...) como essencial à sua constituição. Por facticidade e
acompanhando Habermas, quero aqui me referir ao caráter histórico e contingente do direito
moderno que o liga, indissoluvelmente, ao fato de ser um sistema de ão que recorre
inclusive à força para sua concretização e, assim, à política. Por validade quero aqui me
referir à dimensão de justificação racional do direito moderno, que o liga indissoluvelmente, à
exigência de sua fundamentação, vale dizer, às questões acerca da sua legitimidade e justiça, e
assim, à moral moderna
58
.
55
FIX-ZAMUNDIO, Héctor. El Pensamiento de Eduardo J. Couture y el derecho constitucional procesal. Boletín Mexicano de Derecho
Comparado, UNAM, n. 30, 1977.
56
ANDOLINA, Ítalo; VIGNERA, Giuseppe. Il modelo constituzionale del processo civile italiano: corso di lesioni. Torino: Giappichelli,
1990.
57
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984.
58
GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e Diferença: Estado Democrático de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo
Horizonte: Mandamentos, 2002, p.18-19
A Teoria do Processo passa, então, por uma reconstrução, sendo o devido processo
legal erigido ao status de direito fundamental
59
que apresenta as “condições de possibilidade
de um consenso racional acerca da institucionalização das normas do agir”. Representam,
assim, a garantia de legitimidade do Direito, pois “o poder político pode desenvolver-se
através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais”
60
. Assim,
pode-se afirmar que “somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de
encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo de normatização
discursiva”
61
. Com isso, qualquer decisão que não encontre amparo no consenso de todos os
sujeitos envolvidos, será carecedora de legitimidade, por não conter o melhor argumento
(aquele capaz de convencer a minoria dissidente), muito possivelmente por não encontrar
amparo entre os direitos fundamentais, mas sim entre as diretrizes políticas, que representam
questões axiológico-teleológicas de bem-estar coletivo, e, portanto, não podem persistir em
um debate com os princípios. Logo, os direitos fundamentais (e o devido processo legal
apresenta tal qualidade) “não caem sob uma análise dos custos e vantagens”
62
.
4 A constitucionalização do Processo Civil
Tendo em mira o plano normativo traçado na Carta Constitucional de 1988, no qual
se encontra abrangente pauta axiológica fundamental, cumpre viabilizar sua máxima
59
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 71) esclarece que os
direitos fundamentais podem ser divididos em: 1) direitos a iguais liberdades subjetivas; 2) direitos a iguais direitos de pertinência
(nacionalidade); 3) direitos à tutela jurisdicional; 4) direitos à elaboração legislativa autônoma; e 5) direitos participatórios. Os direitos à
tutela jurisdicional representam a garantia de meios jurídico-processuais mediante os quais cada pessoa cujos direitos foram supostamente
lesados possa afirmar suas pretensões, dispondo, para tanto, do direito de agir em juízo pela via do devido processo legal. .
60
HABERMAS, Jünger. Direito e democracia: entre a facricidade e validade. Vol. 1. Tradução Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1997a, p. 171.
61
Ibid., p. 145.
62
Ibid., p. 322.
expressão buscando-se, através da adequação do Processo Civil aos novos paradigmas
valorativos informadores do Estado Democrático, conferir efetividade à garantia fundamental
de acesso à justiça.
No modelo estatal contemporâneo, centrado na idéia de valorização do ser humano,
adquire grande relevância o direito fundamental de acesso à justiça, consectário do sistema de
proteção da dignidade humana, sem cuja realização jamais seria possível pensar em tornar
realidade o sonho de uma sociedade justa e solidária. Isto porque, por maior e mais
cuidadosamente elaborada que seja a pauta de direitos fundamentais gravada na Constituição
brasileira, pouca utilidade teria se não se conferisse posição proeminente ao direito de acesso
à justiça, garantia cuja não observância acaba por esvaziar o sentido deste sistema protetivo
diante da ausência de mecanismos capacitados a garantir sua realização.
É certo que normas jurídicas que estabeleçam condutas e eventuais sanções
desacompanhadas de mecanismos capazes de viabilizar sua concretização, tornando efetivas
as promessas de pacificação social, não são capazes de assegurar a realização do objetivo de
uma vida social harmônica. Neste espaço se situa o Processo atual, entendido como um
instrumento para efetivação do plano normativo, cumprindo-lhe, portanto, determinar os
rumos que devem ser seguidos até que a harmonia objetivada pelo ordenamento jurídico seja
efetivamente alcançada.
Questão objeto de pouquíssimo dissenso no atual momento metodológico vivenciado
pelo Direito Processual Civil, e que constitui um dos pressupostos fundamentais sobre o qual
se fundam as discussões acerca da efetivação do direito de acesso à justiça, é a necessidade de
adequação dos procedimentos judiciais ao modelo de proteção do ser humano trazido a lume
com a Constituição de 1988 e, conseqüentemente, às características mutantes da realidade
social, com suas novas carências e novos litígios. Isto reafirma, por conseguinte, o elevado
relevo da luta contra os entraves encontrados nas leis e na teoria processual que, muitas vezes,
inviabilizam a atuação jurisdicional, tornando imprestável a tutela concedida.
O tempo certamente é um dos principais algozes do acesso à justiça, como enfatiza
José Rogério Cruz e Tucci, para quem a aceleração da marcha processual representa
verdadeira condição de possibilidade para a efetiva atuação das garantias constitucionais de
ação e defesa, sem o que avulta-se o risco de restarem inócuas quaisquer prescrições que
visem a assegurar o pleno exercício de direitos essenciais à sobrevivência digna
63
. Ser
intolerante com a excessiva lentidão, que parece compor um dos elementos estruturantes do
Processo tradicional, é atitude indispensável para o alcance de uma prestação jurisdicional
adequada não a satisfazer os interesses privados dos litigantes, mas também a finalidade
maior que deve orientar o Processo atual: a pacificação social por meio da concretização das
promessas inscritas nas normas de direito material.
O desenvolvimento de procedimentos especializados, voltados para a solução de
conflitos que se revistam de características próprias, tem sido apontado como um eficiente
meio para o alcance de melhor proteção dos direitos, reconhecendo-se a necessidade de
oferecimento de mecanismos específicos para a operacionalização de variadas situações. É
certo que os procedimentos por intermédio dos quais novas e variadas prestações são
reivindicadas devem ser aptos a oferecer a melhor adequação entre as necessidades postas e
os meios disponíveis para saná-las
64
. Além disso, ao mesmo tempo, busca-se aprimorar o
procedimento comum, suprimindo formalidades excessivas e inserindo mecanismos que o
habilitem a viabilizar o alcance de soluções mais eficazes.
63
TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 129.
64
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Miradas sobre o Processo Civil Contemporâneo. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense. n. 331,
jul./set. 1995. p. 145.
Porém, não só à excessiva demora pode ser imputada a responsabilidade pela falta de
efetividade da tutela jurisdicional, constituindo o tempo apenas mais um dos fatores de
preocupação para os estudiosos do Processo contemporâneo.
É imperioso romper as amarras impostas por estruturas arcaicas e excessivamente
formalistas do tradicional Processo, repensar os procedimentos, procurando reformá-los de
modo a permitir mais ágil e eficiente atuar da jurisdição, e rever os conceitos vigentes acerca
do conteúdo da tutela jurisdicional. Afinal, se o Processo deve ser instrumento eficaz de
proteção das pessoas, garantia para a concretização de direitos fundamentais, imprescindível é
a admissão quanto a poder ter por objeto qualquer espécie de pretensão que mereça tutela;
inafastável é a obrigação de ser estruturado de forma a não se tornar um empecilho à
realização dos direitos individuais ou coletivos.
Em resposta a estes clamores, representantes de vasta gama de reivindicações cuja
pormenorização seria extremamente fatigante e custosa, variadas reformas na legislação
processual civil brasileira e estrangeira m sendo efetuadas, visando ao aprimoramento de
institutos e criação de novos procedimentos.
Outrossim, é imperioso notar que, ao lado das alterações legislativas, a interpretação
das regras e conceitos processuais à luz dos paradigmas constitucionais fundadores de uma
nova ordem estatal, centrada na dignidade humana e voltada à realização do princípio
democrático, é tarefa essencial de cuja realização não podem os juristas se furtar. O
aprimoramento da prestação jurisdicional, entendida sob uma ótica participativa, onde o
Processo se afigura como um canal de comunicação social e participação democrática,
somente pode acontecer se não se perder de mira a posição central que a Constituição e toda a
sua pauta de valores fundamentais possui na atual ordem jurídica estatal.
Mostra-se, desta feita, ser um dever de todo aquele que pensa e utiliza o Processo
analisar seus conceitos e normas com os olhos lavados nas límpidas águas que brotam da
fonte basilar do ordenamento jurídico, tentando, assim, encontrar soluções para a falta de
efetividade processual. Este papel preponderante assumido pela Constituição no modelo do
Estado Democrático implica em conseqüências, como se nota destas últimas considerações,
em todos os ramos do Direito, assim como nas próprias estruturas fundantes do Estado.
4.1 O processo civil e os novos paradigmas constitucionais
É incontestável que, com o novo constitucionalismo hoje vivenciado, ao Direito foi
assimilada forte carga axiológica, assumindo papel relevantíssimo os Princípios
Constitucionais, os quais incidem sobre toda a ordem jurídica, em sua compreensão e
aplicação. A visão contemporânea do Direito, concebida sob o cânone democrático que
estrutura o Estado atual, o mais admite seu isolamento face à sociedade, suas necessidades
e valores carentes de tutela. O Direito, ao absorver valores sociais fundamentais, em torno
deles se estruturando, saiu da redoma onde permanecera, intangível, por longas décadas,
impregnando-se com o ideal de justiça e a certeza de que somente existe para realizar um bem
maior, que é servir à proteção de todo o corpo social.
Não seria possível, porém, alcançar este almejado patamar sem que se promovesse
ampla revisão das regras positivadas, afirmando-se, conseqüentemente, a insuficiência do
sistema erigido sob os auspícios de um modelo liberal para regulamentar as situações
juridicamente relevantes. Neste espaço que se abre para a rediscussão de dogmas, regras e
conceitos à luz do norte constitucional, assume o Poder Judiciário posição de absoluta
prevalência, cabendo-lhe realizar, através do exercício da jurisdição constitucional, o plano
social naquele traçado. Aliás, a posição preponderante conferida a este Poder no Estado
Democrático é uma das razões deste existir, sendo-lhe inerente à própria essência centralizar
na função jurisdicional uma carga maior de relevância, posto que a esta cumpre resguardar os
fundamentos de tal modelo estatal, preservando e realizando as promessas constitucionais
65
.
Não se pode deixar de salientar que a nova ordem de forças, característica do
momento constitucional presente, o faz desaparecerem ou perderem relevância as funções
exercidas pelos Poderes Políticos. Assim sendo, a estes, e especialmente ao Poder Legislativo,
jamais deixará de incumbir a obrigação de sanar situações que restrinjam ou inviabilizem o
pleno exercício de direitos inerentes à tutela da dignidade humana.
Tendo em mira semelhante realidade, acredita-se dificilmente refutável a crença de
que a evolução do Processo rumo à efetividade buscando-se estruturá-lo como mecanismo
hábil à plena realização do Direito – pode se dar por intermédio da revisão de seus conceitos e
normas a partir dos referenciais extraídos dos valores, constitucionalmente amparados,
voltados à proteção e realização das potencialidades humanas, oferecendo a ciência
hermenêutica
66
uma via ampla e de sólido piso para a promoção dos fins sociais almejados.
Esta via, que se desenvolve paralelamente à das reformas legislativas, possibilita a
permanente e rápida adequação dos procedimentos às necessidades concretas apresentadas
cotidianamente, vivificando o Direito, moldando-o constantemente ao horizonte oferecido
pela tábua axiológica constitucional e permitindo dar pronta resposta a novas e antigas
carências que clamam por solução. Sua utilização viabiliza a supressão de vazios e
incorreções na normativa infraconstitucional pela atuação inteligente e ativa dos intérpretes do
Direito, empenhados “(...) em fazer com que prevaleçam os verdadeiros princípios da ordem
jurídica sobre o que aparentemente poderia resultar dos textos
67
”.
65
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.
113.
66
Para Lenio Streck, a atividade hermenêutica é um processo de compreensão por meio do qual se busca atribuir sentidos, a partir das pré-
compreensões que o intérprete possui em razão de sua relação com o mundo factível. É, portanto, um modo-de-ser, não um procedimento,
não se limitando a explicar os procedimentos utilizados anteriormente, mas buscando compreender os fenômenos que são dados a interpretar.
Ibidem. p. 246-251. Já Friedrich Müller propugna pela compreensão de hermenêutica enquanto “(...) condições de princípio da concretização
jurídica normativamente vinculada do direito.”, que cumpre sua tarefa fornecendo “(...) as modalidades de trabalho da concretização da
norma e da realização do direito.” Müller, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. Trad. Peter Naumann. 2. ed. São Paulo:
Max Limonad, 2000. p. 22.
67
DINAMARCO, Cândido Rangel. Relendo Princípios e Renunciando a Dogmas. Nova Era do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2003.
p. 21.
A estreita submissão da atuação dos juristas aos textos legais, em cujos limites
estaria contido todo o Direito, vem sendo refutada de forma cada vez mais enfática.
Comentando o reacionarismo de parte da doutrina processualista italiana, após reforma
constitucional leva a cabo no ano de 1999, na qual foi inserido dispositivo que afirma dever
atuar a jurisdição mediante um processo regulado pela lei, Luigi Paolo Comoglio nega, com
veemência, que o Processo somente possa ser justo se permanente e completamente regulado,
em cada uma de suas partes, pelas normas positivas infraconstitucionais. Afirma este autor
que às regras positivadas incumbe ditar as linhas gerais que orientam a atividade jurisdicional,
deixando margem para a sua complementação pelo poder discricionário do julgador, diante
das variadas exigências de tutela que cada controvérsia apresenta
68
, discricionariedade que,
ressalte-se, não é irrestrita, subordinando-se permanentemente aos limites extraídos do plano
normativo constitucional. Conclui aduzindo que se deve compreender a expressão regulado
pela lei:
(...) nel senso che il processo in tanto possa comunque dirsi ‘giusto e equo’, in
quanto sia ‘conforme’ ai principi ed alle garanzie fondamentali su cui si basa
l’ordinamento costituzionale e processuale dello Stato di diritto (e, quindi, da tali
principi e da tali garanzie possa dirsi ‘regolato’)
69
.
Ganha realce, desta forma, o papel dos intérpretes e aplicadores do Direito que, no
exercício de seu mister, constroem, a partir da conjunção dos textos legais com os valores que
orientam todo o ordenamento jurídico, os comandos normativos. Afinal, como alerta Oscar
Vilhena Vieira, “A norma, por si, é um dispositivo inerte. Necessita da intervenção humana
para que sirva como uma razão para agir, para a tomada de decisão por parte daquela
autoridade responsável por resolver o conflito
70
.” O que complementa Humberto Ávila, ao
68
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie Minime del “Giusto Processo” Civile negli Ordinamenti Ispano-latino Americani. Revista de
Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 112, out./dez. 2003. p. 173.
69
(no sentido de que o processo possa, de qualquer modo, dizer-se justo e équo sempre que esteja conforme os princípios e garantias
fundamentais sobre os quais se baseia o ordenamento constitucional e processual do Estado de direito e, ainda, por tais princípios e
garantias seja regulado.) Ibid. p. 174.
70
VIEIRA, Oscar Vilhena. Discricionariedade Judicial e Direitos Fundamentais. Disponível em
<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/oscarvilhena/vilhena_discricionalidade.html> Acesso em 05.01.2007
afirmar que não são as normas jurídicas os textos legislativos, mas os sentidos que podem ser
construídos a partir de sua interpretação, consistindo no resultado da atividade hermenêutica
71
.
Interpretar, portanto, significa atribuir sentidos às palavras que compõem os textos
legislativos, atividade que se processa a partir das pré-compreensões do intérprete e que tem
em mira o horizonte constitucional, ou seja, o plano normativo traçado no momento
constituinte. Este horizonte, por seu turno, não é algo abstrato, ao contrário, encontrando
nítido delineamento na pauta de direitos fundamentais, o rol de valores relativos à realização
da dignidade humana.
O sentido das normas é realizado pelos aplicadores do Direito os quais, na condição
de entes interpretativos, inseridos em um contexto social e impregnados de pré-concepções,
necessariamente influenciam no resultado deste trabalho construtivo, e não meramente
reprodutivo. Como bem ressalta Lenio Streck, partindo das lições de Heidegger e Gadamer, o
ser humano possui:
“(...) uma compreensão que se antecipa a qualquer tipo de explicação. Temos uma
estrutura do nosso modo de ser que é a interpretação. Por isso, sempre
interpretamos. O horizonte do sentido nos é dado pela compreensão que temos de
algo. O ser humano é compreender. Ele se faz pela compreensão (...)
Compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o homem se
constitui”.
72
E na condição de ser inserido em um universo histórico e social, o intérprete (visto
como o Dasein o ser-aí, ou ser-no-mundo) sempre sofrerá influências oriundas de seus pré-
conceitos e orientadas segundo suas concepções axiológicas. Sendo, portanto, o processo
hermenêutico construtivo do Direito estreitamente vinculado à pessoa do intérprete, os
significados encontrados a partir da adequação das regras positivadas aos valores
constitucionalmente relevantes, que amoldam o tecido jurídico e lhe conferem a
71
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 22-23.
72
STRECK, op. cit., p. 203.
imprescindível legitimidade democrática
73
, necessariamente estarão submetidos à concepção
do Direito, e de sua relevância social, inculcada na mente dos juristas
74
.
A superação de uma concepção liberal acerca da figura do Estado, colocado em
situação de permanente conflito com o corpo social, bem como do Direito e seus mecanismos
de expressão e realização, mostra-se premente. Sem que as conseqüências desta virada
paradigmática se espraiem, jamais se conseguirá desenvolver uma ampla compreensão do
Direito, e do Processo, que permita adequar os conceitos e textos legais que os orientam ao
paradigma axiológico conformador do Estado Democrático contemporâneo, onde seja
possível realizar o Processo justo e efetivo, capaz de cumprir sua função pacificadora. Afinal,
como aduz Cândido Dinamarco, “Pior que uma lei velha e fiel a valores do passado é a
interpretação tradicionalista e fiel aos valores do passado
75
.” Nada se caminhará adiante se
continuarem, o juristas, a olhar o Processo com os olhos do velho.
Assim se justifica a defesa desta via evolutiva, que poderia ser identificada com um
movimento de constitucionalização do Processo (no sentido de uma compreensão de sua
dogmática à luz do paradigma constitucional e não como uma decorrência da previsão, no
texto da Constituição, de alguns procedimentos civis), que constitui alternativa para a
concretização de rias propostas erigidas no seio dos movimentos reformadores. Fazendo
coro com Barbosa Moreira, nota-se que:
A abertura de novos horizontes e a penetração de outras luzes, de que hoje nos
beneficiamos, o nos hão de tornar menos sensíveis à permanente importância do trabalho
73
O poder legítimo, segundo Bobbio, é aquele “(...) cujas decisões são aceitas e cumpridas na medida em que consideradas como emanadas
de uma autoridade à qual se reconhece o direito de tomar decisões válidas para toda a coletividade.” Bobbio, Norberto. Estado, Governo,
Sociedade. Por uma teoria geral da política. Trad. Marco Aurélio Nogueira. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 36-37.
74
Importante se mostra a lembrança das palavras de Peter Häberle, para quem a tarefa interpretativa não incumbe apenas aos julgadores, mas
a todos os personagens envolvidos com a operacionalização das normas jurídicas. Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade
aberta dos interpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental da constituição. Trad. Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997.
75
DINAMARCO, Cândido Rangel. Universalizar a Tutela Jurisdicional. Fundamentos do Processo Civil Moderno. tomo II. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2000. p. 857.
que encontramos realizado, ou iniciado. Uma coisa é a retificação de rumos; outra, o
desprezo ou o esquecimento das descobertas com que nos enriqueceu o percurso vencido
76
.
Ao alerta de Barbosa Moreira se soma o formulado por Cândido Dinamarco, sendo
certo que desfazer dogmas ou reler conceitos sob um prisma evolutivo “(...) não significa
renunciar a estes, ou repudiar as conquistas da ciência e da técnica do processo.”
77
O que se advoga, que fique claro, não é o repúdio às regras positivadas ou aos
conceitos tão solidamente erigidos pela dogmática processual, mas sua compreensão a partir
dos novos paradigmas valorativos que afetam a todo o Direito, posto que gravados em sua
pedra fundamental, de modo que não representem empecilho à plena realização dos fins
sociais a este colimados. Assim procedendo, buscando-se adequar as regras processuais aos
ditames que os valores constitucionais fundamentais orquestram, pode-se conferir aos
jurisdicionados a garantia de que disporão de um Processo justo, capaz de produzir decisões
pautadas em critérios de eqüidade, e apto a efetivamente realizar o Direito.
4.2 Processo civil e jurisdição constitucional
O reconhecimento do caráter normativo dos Princípios de Direito, processo realizado
concomitantemente à sua inscrição nos textos constitucionais, lhes conferiu papel
preponderante na estruturação do ordenamento jurídico, beneficamente contaminado por estas
bases conceituais, imprescindíveis à materialização das promessas de acesso à justiça e
dignidade, a partir das quais forjam-se o Direito e o Estado contemporâneos.
76
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Efetividade do Processo e Técnica Processual. Temas de Direito Processual - sexta série. São Paulo:
Saraiva, 1997. p. 22-23.
77
DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 14.
As Constituições atuais afiguram-se como os principais receptáculos e fontes de
legitimidade dos Princípios de Direito, ao mesmo tempo em que, a partir destes, se
estruturam. Esta nova feição por elas assumida, adquirida especialmente após a Segunda
Guerra Mundial, talvez permita conceber uma diversa justificativa para a posição
preponderante que assumem nos ordenamentos jurídicos, a qual não residiria tão somente em
bases formais, mas especialmente em seu conteúdo valorativo, servindo como sustentáculos
lógicos, fornecedores das bases axiológicas para a edificação do corpo legislativo
infraconstitucional.
A “(...) íntima conexidade entre a jurisdição e o instrumento processual na aplicação
e proteção dos direitos e garantias asseguradas na Constituição” é uma decorrência direta da
natureza instrumental assumida pelo Processo, funcionando como caminho para expressão do
Direito e dos valores neste inseridos
78
. A função de porta voz dos clamores gravados no texto
constitucional que ao Processo contemporâneo é dada implica em que se compreenda, tal qual
propugna Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, não ser suficiente buscar uma mera adequação
formal das regras procedimentais às normas constitucionais, impondo-se aos juristas
reconhecer no Processo um eficaz mecanismo para o exercício da função jurisdicional, com
reflexo direto no seu conteúdo, naquilo que é decidido pelo órgão judicial e na maneira como
o Processo é por ele conduzido. Complementa o autor:
“Tudo isto é potencializado por dois fenômenos fundamentais de nossa época: o
afastamento do modelo lógico próprio do positivismo jurídico, com a adoção de
lógicas mais aderentes à realidade jurídica, como a tópica-retórica, e a conseqüente
intensificação dos princípios, sejam eles decorrentes de texto legal ou constitucional
ou não.”
79
Tem-se, assim, que, ao mesmo tempo em que o Processo serve para materializar as
promessas constitucionais, por elas deve ser impregnado, amoldando-se, tanto na sua forma
78
OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais. Revista de Processo. São Paulo:
Revista dos Tribunais. n. 113, jan./fev. 2004. p. 10.
79
Idid.
quanto em seu conteúdo, aos parâmetros estipulados na Carta Magna para o eficaz exercício
da função jurisdicional. Como oportunamente salientado, todo o sistema de proteção da
dignidade humana, consagrado na vasta pauta de direitos fundamentais inscrita na
Constituição, depende de medidas concretas para ser efetivado. Estas se fazem presentes e
necessárias tanto em um plano de relações intersubjetivas quanto na esfera de relações entre
Estado e particulares. Nesta última, resolvem-se em práticas de natureza política, por
intermédio da implementação de condições para a plena realização daqueles direitos e seus
consectários, e na atuação jurisdicional, a qual entra em cena toda vez que se mostre
imperativo impor, através de atos de força estatal, a observância do plano normativo.
Reafirma-se, assim, o papel fundamental exercido pelo Processo, ramo do Direito no
qual se encontram os caminhos que devem ser seguidos tanto por jurisdicionados quanto pelo
Estado para alcançar a restauração da integridade da ordem jurídica, rompida sempre que uma
de suas normas seja violada. Ante o monopólio estatal da jurisdição, outra alternativa não
resta para colocar em prática o plano constitucional, sempre que este não seja voluntariamente
observado por seus destinatários. Disto é possível inferir que a ausência de uma estrutura
processual, tanto normativa quanto dogmática, adequada à sua eficaz realização, permitindo
concretizar a promessa constitucional de valorização e dignificação do ser humano, representa
uma proteção deficiente da ordem constitucional e da dignidade humana (untermassverbot).
Estando a Constituição no centro do ordenamento estatal e concentrando-se nela os
principais valores sociais de proteção à pessoa, a ordem jurídica infraconstitucional incide em
vício de inconstitucionalidade sempre que restringe axima expressão da carga eficacial de
suas normas, nulidade que decorre da violação à regra de proteção contra omissões estatais.
Analisando-se o Processo sob este prisma, é possível afirmar que sua incapacidade estrutural
para oferecer respostas adequadas às pretensões que se acumulam, não permitindo que se
efetividade à pauta axiológica constitucional voltada à proteção da dignidade humana,
explicita a inconstitucionalidade das regras que inviabilizem a eficaz tutela dos direitos dos
jurisdicionados.
Lenio Streck explica que a proibição da proteção deficiente é uma das vertentes da
regra da proporcionalidade, que se junta à sua face mais conhecida: a proibição de excessos
cometidos pelo Estado. Assim é que “(...) a inconstitucionalidade pode ser decorrente de
excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional
o resultado do sopesamento entre fins e meios (...)” ou, por outro lado, “(...) a
inconstitucionalidade [pode] advir de proteção insuficiente de um direito fundamental-social
(...)”
80
.
Um Processo ineficaz inviabiliza o adequado resguardo dos direitos fundamentais,
núcleo essencial das Constituições e do Estado Democrático, o que traz a lume a necessidade
de se buscar evitar uma insuficiente proteção destes direitos, como diz Lenio Streck:
“(...) caso no qual se estará em face do que, a partir da doutrina alemã, passou-se a
denominar de ‘proibição de proteção deficiente’ (Untermassverbot). (...) A proibição
de proteção deficiente pode ser definida como um critério estrutural para a
determinação dos direitos fundamentais, com cuja aplicação pode-se determinar se
um ato estatal (...) viola um direito fundamental de proteção. A busca pela
materialização do plano normativo constitucional é tarefa da qual não se podem
desincumbir os juristas, sendo certo que é um dever de todos (e não dos
operadores do Direito) cuidar para que a Constituição não reste esvaziada de sentido
em razão de sua pouca ou nenhuma aplicação. Ao se realizar o processo
hermenêutico, atribuindo sentidos aos textos legais, é preciso ter em mira o
horizonte por aquela fornecido, especialmente no que lhe compõe o núcleo
essencial: os direitos fundamentais, que se identificam com os Princípios Gerais de
Direito”.
81
Este exercício hermenêutico, que busca permanentemente a construção de normas
jurídicas que se conformem e permitam a expressão dos valores constitucionalmente
amparados, em um permanente e rico diálogo entre o plano normativo maior e as regras
abstraídas do direito infraconstitucional, caracteriza a jurisdição constitucional, a qual,
80
Streck, Lenio Luiz. Da Proibição de Excesso (Übermassverbot) à Proibição de Proteção Deficiente (Untermassverbot): de como não
blindagem contra normas penais inconstitucionais. (Neo) Constitucionalismo: ontem, os códigos hoje, as constituições. Revista do Instituto
de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, n. 2, 2004. p. 254.
81
Idem.
percebe-se desta colocação, é sempre realizada. Em outras palavras, toda vez que se interpreta
um texto legal deve-se fazê-lo tendo em mira o horizonte constitucional, buscando-se aplicar
e conferir afetividade à bua axiológica que lhe confere sustentação, o que não encontra
ressalva na seara processual.
Tudo isto leva à certeza de que a releitura dos conceitos e regras que compõem o
Processo tradicional à luz da pauta axiológica constitucionalmente consagrada viabiliza a
construção de um novo Processo, constitucionalizado, capacitado a oferecer respostas aos
anseios sociais e conferir efetividade aos direitos mais nobres do ser humano.
4.3 A ordem jurídica justa: o justo processo
Não basta ao Estado realizar a jurisdição com a participação popular através do
processo, deve garantir uma adequada tutela jurisdicional, propiciando uma ordem jurídica
justa através do acesso à justiça acessível a todos, assegurando às partes uma igualdade real e
não formal, não o mero ingresso em juízo.
O acesso à justiça não importa em um processo justo e imparcial como também
garante a igualdade de oportunidades com a participação efetiva e adequada das partes no
processo.
Democracia significa acima de tudo participação com garantia a igualdade de
oportunidades, bem como, efetiva e adequada, como uma decorrência natural do princípio da
igualdade substancial, é o pleno exercício da cidadania.
Kazuo Watanabe escreveu um estudo sobre o Acesso à Justiça e Sociedade Moderna
82
onde concluiu dizendo que o acesso não se limita à mera provocação do Poder Judiciário e
sim, “é fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa”, considerando-se como
82
WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.
dados elementares do direito à ordem jurídica justa: a) o direito à informação; b) adequação
entre a ordem jurídica e a realidade sócio-econômica do país; c) direito a uma justiça
adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e
comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; d) direito a
preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos;
e) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à justiça com
tais características.
5 O problema do acesso à Justiça
Nos dias atuais, um dos grandes problemas com que se tem deparado o jurista diz
respeito ao tema do acesso à justiça. Após muitos estudos o tema mereceu uma obra
específica de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, onde restou esclarecido que numa primeira
onda deveria ser assegurada assistência judiciária aos pobres; numa segunda onda, propugna-
se por uma adequada representação dos interesses difusos e culminam seus estudos numa
terceira onda que esses estudiosos do direito intitularam de “o enfoque do acesso à Justiça”,
tendo em vista a sua abrangência, pois uma diversidade de fatores a serem analisados
para melhor aperfeiçoamento da solução dos conflitos.
Essa preocupação não passou despercebida de Enrique Véscovi ao proclamar:
“La moderna teoria general del proceso se plantea toda la problemática derivada de
la nuevas condiciones de la sociedad, las cuales, naturalmente, tienen influencia
sobre el derecho y la justicia. En nuestra época se ha planteado, quizá com mayor
énfasis, el problema de la dificultad del acceso a la justicia para ciertas personas.
Decimos con mayor énfasis, por cuanto ese problema es tan viejo como el de la
propia sociedad, el derecho y la justicia.”
No Brasil o tema tem merecido grande destaque e preocupação constante dos
estudiosos do direito. Sintetizando o pensamento de vários doutrinadores Luiz Guilherme
Marinoni afirma:
“Ao visualizarmos o direito processual civil por meio de lente do acesso à justiça
temos que fazer aflorar toda uma problemática inserida num contexto social e
econômico. Daí a necessidade do processualista socorrer-se de outras ciências, bem
como de dados estatísticos, a fazer refletir as causas de expansão da litigiosidade,
bem como os modos de sua solução e acomodação. O processualista precisa
certificar-se de que toda técnica processual, além de não ser ideologicamente neutra,
deve estar sempre voltada a uma finalidade social. Deve convencer-se, ainda, de que
não somente os órgãos judiciários tradicionais têm condições para solucionar os
conflitos de interesses. E, mais, se bem que indissociavelmente ligada à noção de
acesso, aquele que trabalha com o direito tem o dever de imbuir-se da mentalidade
instrumentalista, que falar em instrumentalidade do processo ou em sua
efetividade significa como mostra Cândido Rangel Dinamarco, "falar dele como
algo posto à disposição das pessoas com vistas à fazê-las mais felizes (ou menos
infelizes), mediante a eliminação dos conflitos que as envolvem, com decisões
justas. Melhor é falarmos, então, seguindo a feliz expressão cunhada por Kazuo
Watanabe, em acesso à ordem jurídica justa. Acesso à justiça deve significar o
"acesso a um processo justo, o acesso ao devido processo legal", a garantia de
acesso "a uma Justiça imparcial; a uma Justiça igual, contraditória, dialética,
cooperatória, que ponha à disposição das partes todos os instrumentos e os meios
necessários que lhes possibilitem, concretamente, sustentarem suas razões,
produzirem suas provas, influírem sobre a formação do convencimento do juiz". E
mais: deve significar acesso à informação e à orientação jurídica, e a todos os meios
alternativos de composição de conflitos. O acesso à ordem jurídica justa é, antes de
tudo, uma questão de cidadania. A participação da gestão do bem comum através do
processo cria "o paradigma da cidadania responsável. Responsável pela sua história,
a do país, a da coletividade. Nascido de uma necessidade que trouxe à consciência
da modernidade o sentido democrático do discurso, ou seja, o desejo de tomar a
palavra, e ser escutado. É necessário, portanto, que também a jurisdição seja pensada
com vários escopos, possibilitando o surgir do processo como instrumento de
realização do poder que tem vários fins."
Em uma abordagem ampla, o acesso à justiça tem o sentido de assistência jurídica
em juízo e fora dele, com ou sem conflito específico, abrangendo inclusive serviço de
informação e de orientação, e até mesmo de estudo crítico, por especialistas de várias áreas do
saber humano, do ordenamento jurídico existente, buscando soluções para sua aplicação mais
justa.
Quando se se depara com a expressão “acesso à justiça”, pensa-se logo numa Justiça
eficaz, acessível aos que dela precisam e em condições de dar resposta imediata às demandas;
enfim, uma Justiça capaz de atender a uma sociedade que esta em constantes transformações.
Entretanto, o acesso à justiça não fica somente reduzido ao sinônimo de acesso ao
Judiciário e suas instituições, mas sim, a uma ordem de valores e direitos fundamentais para o
ser humano.
Assim, o acesso à justiça constitui a principal garantia dos direitos subjetivos.
Em uma abordagem ampla, o acesso à justiça tem o sentido de assistência jurídica
em juízo e fora dele, com ou sem conflito específico, abrangendo inclusive serviço de
informação e de orientação, e até mesmo de estudo crítico, por especialistas de várias áreas do
saber humano, do ordenamento jurídico existente, buscando soluções para sua aplicação mais
justa.
Quando se fala na expressão “acesso à justiça”, pensa-se logo numa Justiça eficaz,
acessível aos que precisam dela e em condições de dar resposta imediata às demandas; enfim,
uma Justiça capaz de atender a uma sociedade que esta em constantes transformações.
Entretanto, o acesso à justiça não fica somente reduzido ao sinônimo de acesso ao
Judiciário e suas instituições, mas sim, a uma ordem de valores e direitos fundamentais para o
ser humano.
5.1 Acesso à Justiça: um direito fundamental
Reconhecido como direito fundamental, o pleno acesso ao Judiciário, em sua
acepção normativa, encontra-se disposta no art. 5
o
, XXXV e LXXIV , da Constituição Federal
de 1988: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e “o
Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de
recursos”.
Nossa Carta Magna de 1988 conferiu o direito de petição aos órgãos públicos em
defesa dos direitos, contra a ilegalidade e abuso de poder, impedindo a exclusão da apreciação
do Poder Judiciário de qualquer lesão ou ameaça a direito, e, garantindo que ninguém será
processado por autoridade incompetente.
O acesso à justiça, como um direito fundamental, recomenda uma atuação
sintonizada com outros mecanismos estruturais e organizados das comunidades, numa ação
direta no local dos fatos, ali procurando resolver situações que normalmente não chegariam
jamais ao Judiciário, quer pela ausência dos poderes constituídos, quer pelos altos custos de
um processo, em razão das despesas diversas, como papéis, documentos, e trabalhos de
profissionais, quer pela demora na tramitação dos feitos, uma marca que se propaga e que
se torna, infelizmente, uma realidade constrangedora e desestimulante para buscar a justiça
nos fóruns e tribunais
83
.
No sentido inerente à natureza humana, a garantia do acesso à justiça legitimamente
efetivado e positivado pela Constituição resulta um direito fundamental.
83
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 26.
Ingo Sarlet
84
salienta que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles
direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo
de um determinado Estado.
Os direitos fundamentais nascem e se desenvolvem com as Constituições nas quais
foram reconhecidos e assegurados.
Como todo o espírito da Constituição é eminentemente social, de justiça social,
depreende-se que o acesso à justiça, a par de ser um direito do cidadão brasileiro, guinda-se à
qualidade de direito fundamental constitucionalmente garantido
85i
.
5.2 As acepções da expressão “acesso à Justiça”
Alexandre César coloca em questão a conceituação do acesso à justiça. Dispõe o
referido autor que: “dentro de uma concepção axiológica de justiça, o acesso à lei não fica
reduzido ao sinônimo de acesso ao Judiciário e suas instituições, mas sim a uma ordem de
valores e direitos fundamentais para o ser humano, não restritos ao ordenamento jurídico
processual.”
86
Segundo os juristas Mauro Cappelletti e Bryant Garth
87
a expressão “acesso à
justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades
básicas do sistema jurídico o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos
e/ou resolver seus litígios, sob os auspícios do Estado. O sistema deve ser igualmente
acessível a todos devendo produzir resultados que sejam individuais e socialmente justos.
84
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev. Atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006,
p.35.
85
BEZERRA, Paulo César Santos. Acesso à justiça:um problema ético-social no plano da realização do direito. Rio
de
Janeiro:Renovar,
2001, p.121.
86
CESAR, Alexandre. Acesso à justiça e cidadania. Cuiabá: Ed. UFMT, 2002, p. 49.
87
CAPPELLETTI M.; GARTH B., op .cit., p. 8.
Concluem que sem dúvida, uma premissa básica será a de que a justiça social, tal como
desejada por nossas sociedades modernas, pressupõe o acesso efetivo.
É necessário destacar, frente ao sentido vago da expressão “acesso à Justiça”, que a
ele são atribuídos, pela doutrina, diferentes sentidos, sendo eles fundamentalmente dois: o
primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e conteúdo que o de Poder
Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à Justiça e acesso ao Poder Judiciário; o
segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão justiça, compreende o acesso a ela
como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser
humano, esse último, por ser mais amplo, engloba no seu significado o primeiro
88
. Até bem
pouco tempo, o entendimento que se empregava, restringia o significado somente ao acesso
aos órgãos judiciais. Atualmente, existe uma posição unânime no fato de que o acesso à
justiça não se limita a um direito à ordem jurídica, ou seja, não é o acesso à justiça a admissão
do processo, ou simplesmente a possibilidade do ingresso em juízo.
Na verdade, por acesso à justiça deve-se entender como a proteção a qualquer direito,
sem qualquer restrição. Não basta simplesmente a garantia formal da defesa dos direitos e o
de acesso aos tribunais, mas a garantia de proteção material desses direitos, assegurando a
todos os cidadãos, independente de qualquer condição social.
5.3 Acesso à Justiça e o Poder Judiciário
Segundo Jasson Torres
89
, falar em acesso à justiça é viabilizar a discussão sobre uma
série de fatores, englobando a estrutura da instituição do Poder Judiciário, que se quer
democratizar, aberta, próxima do cidadão, e com meios legais adequados que ensejem a
88
RODRIGUES, Horácio Wanderley. Acesso à Justiça no Direito Processual Brasileiro. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p. 28
89
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. p. 49.
agilização do processo. Não se oportuniza esse princípio constitucional se os órgãos estatais
não estiverem presentes, orientando e informando sobre o direito de cada um, como é o caso
de uma Defensoria Pública organizada e de um Judiciário atuante. A sociedade cobra uma
atuação avançada e voltada para a solução dos conflitos, com uma nova mentalidade e visão
de Justiça.
O acesso à justiça não se esgota no acesso ao judiciário e nem no próprio universo do
direito estatal, Kazuo Watanabe
90
reflete bem essa dimensão quando afirma que a
problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos
órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto
instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.
Sempre que um direito não for respeitado espontaneamente, não como fazê-lo
legitimamente senão através do devido processo legal. Adotando, portanto, uma visão
instrumentalista do direito processual, pode-se afirmar que todas as suas normas devem ser
criadas, interpretadas e aplicadas sob o prisma da efetividade do acesso à justiça.
Em relação do acesso à justiça como um princípio, Cândido Dinamarco
91
aborda que
acesso à justiça é mais do que um princípio, é a síntese de todos os princípios e garantias do
processo, seja em nível constitucional ou infraconstitucional, seja em sede legislativa ou
doutrinária e jurisprudencial. Chega-se à idéia do acesso à justiça, que é o pólo metodológico
mais importante do sistema processual da atualidade, mediante o exame de todos e de
qualquer um dos grandes princípios.
Entretanto, o acesso ao judiciário não se faz somente através de princípios, se faz
principalmente, através de um sistema organizacional, democrático e real aproximação dos
conflitos sociais ao Poder Judiciário, afastando a grande desconfiança dos cidadãos frente às
90
WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini Cândido Rangel Dinamarco e Kazuo
Watanabe. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 128/129.
91
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 6 ed. rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 304.
instituições públicas, para não ser surpreendido e até substituído e pela iniciativa de uma
“justiça privada.”
92
O acesso a uma ordem jurídica justa passa pela Reforma do Judiciário, que se
diante de problemas estruturais e históricos que interferem diretamente nessa questão. A
morosidade na prestação jurisdicional, a carência de recursos materiais e humanos, a ausência
de autonomia efetiva dos poderes, a centralização geográfica das instalações, muitas vezes,
dificultando o acesso da pessoa que mora na periferia, o corporativismo de membros e
ausência de um controle externo por parte da sociedade, são alguns problemas, devendo
portando, serem resolvidos.
Cabe ao Judiciário a difícil tarefa, indo ao encontro dos problemas, buscando
solucioná-los com rapidez, principalmente, incentivando a conciliação entre as partes em
litígio.
Ora, um sistema jurídico incapaz de colocar em ação, em condições satisfatórias,
uma política para recepcionar as insatisfações ocorrentes na sociedade, perde a legitimidade e
compromete a existência da democracia.
6 Do formalismo no processo
São raros na literatura processual estudos sobre a organização e funcionamento
interno do processo. Quiçá, essa circunstância esteja intimamente ligada aos esforços
despendidos pela ciência processual, num primeiro momento, voltado para tornar o processo
autônomo em relação ao direito substancial. Na seqüência, o alvo da preocupação foi o
92
TORRES, Jasson Ayres. O acesso à justiça e soluções alternativas. p. 35.
estabelecimento das difíceis relações entre os dois ramos, sobrevalorizando-se,
inconvenientemente, o problema da ação, debruçada, ora no direito material, ora no direito
constitucional, para o se falar da energia concentrada em fazer funcionar, com a maior
excelência possível, os sistemas processuais.
Destaca-se, ainda, que os vínculos constitucionais do processo e os fatores
ideológicos que influenciam sua conformação e sua reformulação têm ocupado a doutrina, no
afã de aproximá-lo da vida real, que encastelado num tecnicismo pouco eficaz, do ponto de
vista de sua natureza instrumental de concretização dos direitos.
Ademais, a consciência do ritmo frenético da humanidade, leva à necessidade de
acelerar, tornar eficiente e efetiva a prestação jurisdicional. Para tanto, buscam-se vias
alternativas, para a realização da justiça.
A forma do ato processual difere do processo como forma. A forma, em sentido
amplo, exterioriza-se abrangente e indispensável, importando na totalidade formal do
processo, compreendendo, especialmente, a delimitação dos poderes, faculdades e deveres
dos sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e
organização do processo, objetivando alcançar sua finalidade primordial. Portanto, forma em
sentido amplo, implementa a tarefa de indicar limites para o início e o fim do processo,
delimitar o material a ser formado, impor limites de atuação dos atuantes dos seus respectivos
pólos para atingir o seu desiderato.
O mestre Carlos Alberto Álvaro de Oliveira leciona
93
que o formalismo processual
pressupõe a idéia do processo como organização da desordem, objetivando visualizar o
procedimento. Por isso, se o processo não obedecesse a uma ordem preestabelecida, devendo
cada ato ser praticado a seu tempo e lugar, infere-se, de logo, que o litígio desembocaria num
cipoal desordenado, sem limites ou garantias para as partes, podendo, aí, prevalecer a
arbitrariedade e a parcialidade do órgão judicial ou a chicana do adversário.
93
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do Formalismo no Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p.1-3.
Não se cuida apenas de ordenar, mas de disciplinar o poder do juiz e, nessa quadra, o
formalismo processual implementa garantia de liberdade contra o arbítrio dos órgãos que
exercem o poder do Estado. Relegar o poder ao arbítrio do juiz, em conformidade com as
necessidades do caso concreto, haveria potencial desequilíbrio entre o poder judicial e o
direito das partes. A isso equivaleria a insegurança do direito substancial, face a discrição do
órgão judicial, no que concerne ao procedimento e ao exercício da atividade jurisdicional.
Por outro vértice, o formalismo processual constitui elemento de controle entre os
eventuais excessos de uma parte em relação à outra, atuando como fator de equilíbrio entre os
litigantes.
Esse rápido escorço conduz a duas asserções: (i) no plano normativo, estabelece
equilíbrio na distribuição de poderes entre as partes, sob pena de tornar-se o contraditório um
nada; (ii) no plano do fato, ou do desenvolvimento concreto do procedimento, reclama o
exercício de poderes pelo sujeito, de modo a que sempre fique garantido o exercício dos
poderes do outro. Trata-se, aqui, do justo equilíbrio, que serve às partes para atribuir, na
mesma medida, poderes, faculdades e deveres.
Em rápidas pinceladas, nos estágios iniciais de qualquer civilização, a forma aparece
como algo misterioso, com invólucro da força absoluta, via de regra, ligada à religião.
Exemplo disto rememore-se os sacerdotes, ao tempo das legis actiones –, eram os
sacerdotes que compunham, a demonstrarem como a lex poderia ser aplicada por analogia a
diferentes espécies de situações de fato. Eram grandes influentes na administração da justiça e
de tudo guardavam segredo. Foram equivocadas fórmulas e resultaram na intervenção da
magia na solução das contendas, e até na criação de regras de conduta. Nessa órbita, não
existem meios de prova para comprovação da verdade ou falsidade de um fato; apenas
interessa investigar que partes podem pleitear ante os poderes mágicos questões juridicamente
correspondentes e estabelecer as formas indispensáveis para essa finalidade.
O formalismo religioso evoluiu para o formalismo primitivo até alcançar o início do
formalismo exagerado. O direito das legis actiones é constituído pelo ordenamento
procedimental dos antigos aldeões, ius civile, criado pelo cidadão romano para o cidadão
romano. Inicialmente, formado pela praxe, seus princípios basilares foram instituídos pela Lei
das XII Tábuas, acrescidas por leis posteriores. Esse acervo que tanto servia para o processo
de conhecimento quanto de execução demonstra a característica típica do formalismo romano
primitivo, com rigores de forma verbal e ritos simbólicos, os quais, desobedecidos, retiram a
validade do ato.
No processo das lex actiones se aferia a vigência de princípios processuais hoje
considerados inafastáveis para a justiça do processo: publicidade, oralidade, imediatidade da
recepção da prova e audição de ambas as partes.Em todo o processo romano, a iniciativa do
impulso processual estava, em regra, nas mãos das partes, embora o Tribunal não carecesse de
todo da faculdade de tomar certas iniciativas.
A expansão do fides et aequam bonum definida por cero como, “verdade,
lealdade, comportamento honesto no cumprimento dos pactos estabelecidos” contribuiu
para o advento da Lex Aebutia, facultando o processo por fórmulas também para o cives. As
formas solenes do processo, estabelecidas na Lex Tabularam, desaparecem. A causa aparente
está na evolução da sociedade e nas suas necessidades práticas, dado que, as rígidas
formalidades com as quais o procedimento se revestia nos tempos anteriores, passaram a ser
matéria ridicularizada.
Por volta de 200 a.C, o procedimento da legis actiones se transforma no processo
formulário (com uma pluralidade de fórmulas, não adstritas à lex, com um rito bem mais
flexível, aumentando a influência do magistrado e extinguindo o predomínio da forma, como
força coercitiva , no processo.
Quanto ao juiz, gozava de absoluta liberdade de consciência e nada vinculava seu
convencimento pessoal, embora coubesse às partes exercer todos os meios de prova. O ápice
dessa liberdade consistia no direito que lhe era concedido de liberar-se da obrigação de julgar,
jurando nada ter compreendido dos fatos da causa. Esse sistema apenas refletia o desinteresse
do Estado e do direito em relação ao juízo de fato, principalmente porque o iudex era um
cidadão comum, e não órgão estatal, que atuava mais como instrumento das partes do que
como verdadeiro sujeito do processo.
O aumento da autoridade estatal faz decrescer a influência da fórmula no processo.
Em seu lugar adota-se uma forma mais livre de processo: o da cognitio, realizada na presença
do imperador ou de seus delegados. Em conseqüência, o processo romano assume natureza
pública, inerente à função estatal de administrar justiça. Abolidas as formas do processo
ordinário, os juízes não mais decidem com base no direito (ius) ou as normas da lei, mas em
virtude do seu poder ilimitado.
A esse respeito, Carlos Alberto Álvaro de Oliveira narra que se cuida, aliás, de fato
recorrente na história do formalismo processual: à medida que cresce e se intensifica o poder
e o arbítrio do juiz, enfraquece-se também o formalismo, correlativo elemento de contenção
94
.
E exorta: etapas posteriores de evolução, de exercício mais maduro da cidadania,
de conscientização interna para o uso mais adequado do poder e da conquista de uma relativa
independência do Poder Judiciário, poderão mudar essa escala entre um e outro fato, quase
constante em épocas mais atrasadas.
No processo pós-clássico da cognitio, a situação começa a se modificar, dando lugar
a um procedimento normatizado.
Com o passar do tempo, aumentam a civilização e a riqueza, desenvolvem-se os
negócios e se complicam as relações sociais.
94
OLIVEIRA, C. A. Á. de., op. cit., p. 21.
Daí a necessidade de ordenamentos jurídicos que consagrem processos mais lentos,
que assegurassem a garantia dos direitos dos cidadãos.
Entram em cena os princípios para limitação do juiz na busca do direito, sendo
relevantes três causas para esse novo modo de pensar o direito processual. A primeira, de
caráter ideal, com base na doutrina escolástica da imperfeição do homem e da sua natureza
corrupta. A segunda, com espeque na realidade, levava em conta a periclitação da honradez e
da independência jurisdicional nas acirradas lutas políticas e econômicas daqueles tempos. A
grande desconfiança em relação ao judiciário conduziu à criação de normas processuais muito
mais rígidas do que as conhecidas nos tempos atuais. Por fim, empregava-se o argumento de
corte lógico, considerado corresponder à natureza privada do litígio a correlata faculdade
dispositiva das partes sobre os limites da pretensão exercida no processo e das alegações
conducentes a sua realização.
Por outra banda, a imposição de forma escrita aos atos processuais, consubstanciando
o chamado princípio da escritura, ao obrigar a autoridade judicial a julgar somente com base
nos escritos constantes dos autos (acta scripta), destinava-se também a proteger as partes
“contra falsam assertionem iniqui judicis”, resguardando-as da iniqüidade e falsidade do juiz
desonesto.
6.1 Formalismo e poder estatal
No estágio atual de desenvolvimento da humanidade, é lícito afirmar que a
soberania, embora exprima o poder em seu grau mais elevado, não pode deixar de ser
suscetível à limitação e controle, pelo menos na ordem das realidades positivas e das coisas
humanas. Submete-se ao direito e, o reconhecimento desses limites, com a garantia de
liberdade do indivíduo perante aquele, encerram dois princípios típicos do Estado de direito,
enraizados nas Constituições modernas. O princípio da distribuição, a supor a esfera da
liberdade do indivíduo e, o princípio da organização, apto da colocar em O Código de
Processo Civil de 1939, como reconhece Alfredo Buzaid, ao consagrar o sistema da oralidade,
da concentração e da identidade física do juiz, prática o primeiro postulado: o poder do Estado
divide-se e se encerra num sistema de competências delimitadas.foi elaborado segundo
princípios modernos da ciência do processo.
Esses princípios são relevantes para o formalismo processual porque importam em
restrição ao exercício do poder. O primeiro encontra campo rtil nas liberdades públicas e o
segundo, na divisão de poderes.
O princípio geral da distribuição informa o formalismo processual, porque organizar
competências, não significa apenas dividir o poder do Estado em órgãos, mas em racionalizar
o poder. Trata-se da forma mais moderna de administração, marcado pelo exercício regulado
das funções, na circunstância de competências exatas e com ordenamento hierárquico de
ofícios. Nessa linha, a atividade jurisdicional não pode prescindir de exata regulação da
competência, o que equivale, à estrutura hierárquica de juízes e tribunais. De conseguinte, isto
impõe a fixação, por lei, da regulação dos recursos, afastando-se a livre determinação das
partes ou do órgão judicial a respeito do emprego da inconformidade no caso concreto.
Logo, constitui manifesta afronta aos princípios a criação jurisprudêncial de
requisitos recursais não previstos em lei, como vem acontecendo, e.g., no âmbito do agravo
de instrumento destinado a fazer subir recurso extraordinário ou especial, com a exigência de
prova da tempestividade da interposição dos recursos denegados.
Registre-se o fato de que o excesso de recursos insertos no atual sistema jurídico
brasileiro, como ocorrem noutros sistemas, representam desconfiança da sociedade para com
seus juízes, constitui aspecto perverso do formalismo excessivo, freqüentes em épocas de
crise.
fatores externos do formalismo a serem considerados. Destacam-se: valor justiça,
valor da paz social, valor segurança e valor efetividade.
O valor justiça está intimamente ligado à atuação concreta do direito material, assim
entendido como sendo este, de caráter subjetivo, com vantagens conferidas pela ordem
jurídica ao sujeito de direito.
O valor da segurança reclama respeito ao direito objetivo como um todo, concernente
ao propósito político do processo. E.g., no direito brasileiro, o recurso especial, o
extraordinário, a ação direta de inconstitucionalidade e a uniformização da jurisprudência.
O valor da paz social plasmada na atividade jurídica do Estado insta pacificar o
conflito, com celeridade, pelo emprego de meios idôneos. A maior contribuição à economia
processual será prestada pelo juiz ativo, efetivo diretor do processo, pois essa atividade, como
ressaltado, contribui para dar curso ao processo, segundo a lei e suas exigências finalísticas.
Todavia, a economia processual não pode dar azo à derrogação de normas processuais
válidas. Neste caso, estão infirmadas as garantias das partes.
O valor da efetividade está ligado a corrente sociocultural alinhada para a realização
efetiva dos direitos, perfilhada pela tutela da liberdade e dos direitos constitucionalmente
relevantes, voltados para o social, destacando-se os de natureza difusa e coletiva.
6.2 O formalismo processual e suas conseqüências na realização do Direito
O excessivo e injustificado apego ao formalismo no processo judicialvel contribui
para a morosidade na prestação jurisdicional e, na maioria das vezes, constitui a causa do
perecimento do direito subjetivo assegurado pela norma de direito material. Isso, além de
militar contra a efetividade do processo e a própria realização do Direito, implica na
persistência do conflito e o recrudescimento do descrédito em relação ao Judiciário.
O que se pretende abordar, sucintamente, é a necessidade de a aplicação das regras
de direito processual estreitar-se com o princípio da instrumentalidade que as corporifica,
servientes à garantia do direito material, evidenciando-se como imperiosa e urgente a
necessidade de mudança de mentalidade dos operadores do sistema jurídico.
Ensina, com muita propriedade, Osvaldo Ferreira de Melo
95
que “o caráter ideológico
e axiológico próprio da Política do Direito exige que uma norma, além dos requisitos para sua
validade formal, se conforme com os valores da justiça e utilidade social, pois assim
poderá ostentar a sua validade material. Uma norma queo assegure esses valores não pode
ser chamada jurídica e melhor será que não faça parte do sistema normativo”.
Assim, somente o interesse público superior, traduzido nos valores justiça e utilidade
social, justificador, em última instância, da própria existência do Direito Processual, autoriza
a sobreposição da forma em relação ao direito material e a desconsideração do direito
subjetivo a ele imanente.
6.3 O processo como técnica e ética a serviço do Direito
Segundo a expressão de Calera, o direito deve retomar o seu papel de instrumento de
ordenação social, respondendo às convenções morais, aos valores e aos interesses
estabelecidos majoritariamente pelos integrantes da sociedade, deixando de ser uma mera
95
MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de Política do Direito. Porto Alegre: Sérgio Fabris/CMCJ — Univali, 1998, p. 44.
imposição de força, para ser a verdadeira expressão da realização social na busca pela
justiça
96
.
Uma conclusão valorativa, ainda no dizer do mesmo autor, seria a seguinte: deve ser
evitado um idealismo jurídico ao estilo do jusnaturalismo que propicie uma etificação radical
do Direito; que ser superado também o realismo jurídico pessimista e irracional que se
resigna ante a realidade do direito como forma de poder. É necessário que se transcenda a essa
concepção pós-moderna, que reduz o Direito a uma simples regra técnica de ordenação social,
sem questionar os fins e os modelos sociais a que serve essa técnica
97
.
Em meio a esse emaranhado de leis, e ante as concepções equivocadas pelas quais é
enfocado, agiganta-se hodiernamente no seio da sociedade uma generalizada descrença no
Direito, principalmente sobre a ineficiência desse instrumental legal em dar as respostas
esperadas pela maioria dos destinatários de seus preceitos e princípios. Cresce a convicção de
que o aumento quantitativo de normas não corresponde na mesma proporção em um
progresso sensível dos níveis de justiça.
Dentre tantas razões apontadas para a ineficiência do Direito em corresponder às
expectativas da sociedade, tem merecido destaque o excessivo formalismo na solução
jurisdicional dos conflitos sociais e dos conflitos individuais que acabam trazendo
importantes reflexos àqueles. Os órgãos jurisdicionais do Estado estão assoberbados pela
quantidade e complexidade técnico-formal das normas jurídicas, mormente as processuais,
dificultando a interpretação e, muitas vezes, obstando a própria solução dos casos concretos.
Os procedimentos jurídicos, em especial o processo como instrumento de busca pelo
atendimento de uma pretensão respaldada pelo Direito, são extremamente formais e
complicados, acarretando o retardamento da prestação jurisdicional que, muitas vezes, perde
seu sentido nas malhas do tempo.
96
CALERA, Nicolas M. López. Derecho y teoria del derecho em el contexto de la sociedad contemporánea. In O Novo em Direito e
Política. José Alcebíades de Oliveira Júnior (org.) Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 42.
97
Ibidem.
O Direito como realidade política, moral, econômica, cultural e histórica está
impregnado de valores. Para a sua compreensão, pois, não basta uma análise sob a perspectiva
estritamente científica. Na condução do processo, o juiz deve trabalhar com o direito como
valor, pois de há muito vencida a posição kelseniana da neutralidade absoluta da norma.
A simplificação dos procedimentos, sem o enfraquecimento das garantias
processuais que protegem a igualdade das partes, o seu direito de defesa e o pleno acesso à
justiça, constitui-se num desafio que mantém em crescente atividade a preocupação e o poder
criativo dos juristas e dos operadores do direito de uma forma geral. Afastar o Direito de seu
sentido ético, para reduzi-lo à simples regra técnica, em nada vai ajudar a vencer os
obstáculos que se apresentam. Ao contrário, haverá um retrocesso e um recrudescimento dos
problemas já existentes.
Os defensores e aplicadores da rigidez da forma em detrimento do próprio direito
material em discussão apegam-se à justificativa da preservação do interesse público, traduzido
na segurança, igualdade e estabilidade das relações processuais.
Enfrentando o tema, Galeno Lacerda, nos idos de 1983, quando o atual Código de
Processo recém tinha completado dez anos de vida, em proficiente palestra aos participantes
do Congresso Brasileiro de Direito Processual Civil, teve oportunidade de asseverar que
“fala-se muito em interesse público na preservação do rito, do due process of law, como um
valor absoluto e abstrato, para justificar as devastações concretas que a injustiça de um
decreto de nulidade, de uma falsa preclusão, da frieza de uma presunção processual
desumana, causam à parte inerme. Não. Não é isto fazer justiça. Não é para isto que existe o
processo”
98
.
E adverte o eminente doutrinador:
98
LACERDA, Galeno. Conferência proferida no Congresso Brasileiro de Direito Processual Civil, Porto Alegre, em 15-7-83. Revista da
Associação dos Magistrados do Rio Grande do Sul, n. 28, p. 12.
“Esquecem, os que assim pensam e agem, que os valores e os interesses no mundo
do direito não pairam isolados no universo das abstrações; antes, atuam, no
dinamismo e na dialética do real, em permanente conflito com outros valores e
interesses. Certa, sem dúvida, a presença de interesse público na determinação do
rito. Mas, acima dele, se ergue outro, também público, de maior relevância: o de que
o processo sirva, como instrumento, à justiça humana e concreta, a que se reduz, na
verdade, sua única e fundamental razão de ser.”
É dever, pois, do intérprete e do operador das normas do processo, antes de adotar a
decisão que fulminará o direito de uma das partes e conseqüentemente frustrará a solução do
conflito, analisar com acuidade se acima do interesse formal que lhe parece imperativo não se
sobreleva outro interesse público mais alto que aponte para o caminho da efetiva justiça.
A interpretação calcada nos princípios maiores que norteiam o processo e o próprio
Direito possibilita a hierarquização dos interesses tutelados nos textos de lei. No caso do
Código de Processo Civil, o interesse público maior traduz-se na efetividade do processo, ou
seja, na concretização e realização do direito material.
Demais disso, é sempre bom lembrar que hodiernamente a primazia do interesse
público diante dos direitos individuais não mais vige de forma absoluta.
Hoje, no Estado contemporâneo democrático, a dignidade humana e muita dos
direitos individuais garantidos constitucionalmente estão acima do interesse público, devendo
ser observado o chamado princípio da proporcionalidade.
Dalmo Dalari em sua obra “O Poder dos Juízes” chama a atenção para o fato da
convicção tradicional e generalizada no Brasil de que as leis não precisam ser obedecidas
sempre nem devem ser aplicadas com muito rigor.
Essa premissa, sob o prisma jurídico, infundada, contrasta com algumas atitudes de
exagerado legalismo. Este, praticado por muitos juízes, consiste no apego quase fanático a
pormenores das formalidades legais, mesmo quando isso é evidentemente inoportuno, injusto
ou acarreta graves conflitos sociais.
“Mas o que prevalece amplamente, inclusive entre as autoridades públicas, é pouco
apreço à legalidade, o que se verifica também em certas atitudes dos tribunais
superiores, que freqüentemente demonstram excessiva condescendência com
inconstitucionalidades e ilegalidades praticadas por chefes do Executivo”
99
.
Segundo o mesmo autor, outro perigo que favorece a impunidade é o dos juízes que,
por um vício de sua formação jurídica, são demasiado formalistas. Geralmente fanatizados
pela lógica aparente do positivismo jurídico, muitas vezes não chegam a perceber que o
excessivo apego a exigências formais impede ou dificulta ao extremo a consideração dos
direitos envolvidos no processo. Não se sensibilizam com as flagrantes injustiças, desde que
sejam respeitadas as formalidades
100
.
Em tom crítico, acentua Dallari que infelizmente na maioria das decisões judiciais,
sobretudo dos tribunais superiores dos Estados e do País, fica evidente que existe preocupação
bem maior com a legalidade do que com a justiça. “O excesso de apego à legalidade formal
pretende, consciente ou inconscientemente, que as pessoas sirvam à lei, invertendo a
proposição razoável e lógica, segundo a qual as leis são instrumentos da humanidade e, como
tais, devem basear-se na realidade social e serem conformes a esta”
101
.
É na Política do Direito que repousa a esperança de que o processo reencontre o seu
verdadeiro rumo. A discussão a respeito do conteúdo das normas processuais e
principalmente a proposição de instrumentos legais identificados com a idéia do justo e do
legitimamente necessário, ou seja, do socialmente útil8, é que criarão as possibilidades para o
desencadeamento das mudanças corretivas necessárias à atividade jurisdicional como um
todo.
6.4 Processo, formalismo e justiça
99
DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 3.
100
Ibidem, p. 38.
101
Ibidem, p. 80 a 84.
John Rawls enfatiza que a “justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como
a verdade o é para o pensamento. Uma teoria que, embora elegante e econômica, não seja
verdadeira, deve ser revista ou rejeitada [...]”. Nessa linha sustenta que leis ou instituições,
mesmo que sejam eficientes e engenhosas, se forem injustas, deverão ser revistas ou
suprimidas
102
.
Em Santo Tomás de Aquino temos que:
“a justiça, especialmente e de preferência às outras virtudes, tem o seu objeto em si
mesmo determinado, e que é chamado justo. E este certamente é o direito. Por onde,
é manifesto que o direito é o objeto da justiça. [...] assim também na mente preexiste
uma idéia da obra justa que a razão determina, idéia que é como que a regra da
prudência. E esta, quando redigida por escrito, chama-se lei; pois, a lei, segundo
Isidoro, é uma constituição escrita. Por onde, a lei, propriamente falando, não é o
direito mesmo, mas, uma certa razão do direito”
103
.
Quando aborda a justiça, Santo Tomás de Aquino refere ser imprescindível seja ela
estudada abrangendo quatro questões que se interligam e não podem, portanto, ser
dissociadas, quais sejam: a primeira, sobre o direito; a segunda, sobre a justiça em si mesma; a
terceira, sobre a injustiça e a quarta sobre o julgamento.
Ao contrário das outras virtudes que aperfeiçoam o homem em relação a si próprio,
num processo introspectivo, restrito ao campo dos sentimentos ou da paixão como refere
Santo Tomás, a justiça o aperfeiçoa em relação aos seus semelhantes e, por conseqüência, em
relação à sociedade da qual faz parte. E isso dá-se exatamente porque a justiça orienta a
relação do homem para com o homem, ou dele para com os demais homens, e não para
consigo mesmo. Quer ordene a relação singular entre um homem e outro, ou a relação geral
entre os homens que fazem parte de uma sociedade, o caminho a que conduz é sempre o bem
comum
104
.
102
RAWS, John. Uma Teoria da Justiça. Tradução de Valmireh Chacon, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981, p. 27.
103
AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. Trad. Alexandre Corrêa, parte da parte, Questões 1-79, Porto Alegre: Sulina e
UFRGS, 1980, p. 2.481
104
Cfe. Santo Tomás de Aquino, op. cit., p. 2.493 a 2.495.
Isso é uma verdade aceitável inclusive nos dias de hoje, aliás, mais do que nunca.
Sempre que uma lei contrarie o que naturalmente é concebido como sendo o justo pela
sociedade, esta lei se iníqua. Por isso, com supedâneo nos ensinamentos de Santo Tomás,
não se mostra temerária a afirmação de que a justiça legal viabiliza a justiça social. Afinal, ela
é, ou pelo menos deveria ser, o resultado sintomático da aplicação de todos os preceitos que o
povo elegeu como sendo os norteadores da busca e preservação do bem comum. A justiça
pautada em regras estabelecidas por todos e no interesse de todos e não no de poucos,
inexoravelmente, resultaria na acalentada pacificação social.
Nesse norte, colhe-se de Aristóteles, na sua obra “A Política”, que a justiça é a base
da sociedade, é uma virtude social, que forçosamente arrasta consigo todas as outras. E
julgamento é a aplicação do que é justo”
105
.
é consagrado pela nossa doutrina que as exigências formais do processo
merecem ser cumpridas à risca sob pena de invalidade dos atos, na medida em que isso seja
indispensável para a consecução dos objetivos desejados, objetivos que não podem ser
desconformes com a justiça.
O apego exagerado ao formalismo faz com que alguns juízes acabem por favorecer a
impunidade, desviando o Direito de seu curso natural.
Acredita-se que esse seja um vício de formação jurídica, ligado à aparente lógica do
positivismo. Não se percebe que esse apego às formalidades impede ou chega muitas vezes a
dificultar a observância dos verdadeiros direitos em jogo no processo judicial. A forma,
instrumento criado para assegurar a igualdade e a segurança das partes no processo, quando
supervalorizada ou mal utilizada, acaba sendo o veículo para a chicana e para a sacralização
de interesses espúrios.
105
ARISTÓTELES, op. cit., p. 14 e 65.
É impressionante como o formalismo passou a ser a baliza mestra de uma parcela
significativa dos operadores do Direito. Com o Código de Processo em punho, qualquer
desvio à forma é tratado com apreensão e, não raras vezes, com desmedido rigor. Esquecem
eles que o próprio Código de Processo Civil (diploma formal por excelência) coloca o
formalismo em segundo plano quando o resultado desejado for obtido por outros meios
106
.
Por isso, não é raro nos depararmos com verdadeiras injustiças propugnadas pelos
tribunais. Isso gera na sociedade um sentimento de descrença, de repulsa e, ato contínuo, de
afastamento do Judiciário.
“O Direito preocupa-se com a justiça material. O Judiciário não pode contentar-se
com o aspecto formal das normas jurídicas”, na expressão do Ministro Vicente
Cernicchiaro
107
ou, no dizer do Ministro Garcia Vieira, o direito é muito maior do
que a lei e seu objetivo deve ser sempre a realização da justiça”
108
.
Ao não observar que o processo é meio de realização do Direito e que a interpretação
das leis processuais não deve ser estritamente formal, mas, sim, antes de tudo, socialmente
útil e justa, o Judiciário não estaria cumprindo a contento sua missão constitucional de
pacificar e decidir conflitos.
O mestre Galeno Lacerda, na palestra antes referida, sustentava, com ênfase, o
antiformalismo processual consagrado pelo sistema estabelecido no novo diploma, alertando:
“Quando se fala em ‘forma’ no processo, acodem logo as palavras com que
Montesquieu inaugura o Livro 29, de seu Espírito das Leis: ‘As formalidades da
justiça o necessárias à liberdade’. Esse conceito, o pleno de ressonância,
destacado das demais palavras do texto, que lhe abrandam a grandiloqüência, foi
responsável por séculos de equívoco, na radicalização do rito, como um valor em si
mesmo, em nome de um pretenso e abstrato interesse público, descarnado do
humano e do verdadeiro objetivo do processo, que é sempre um dado concreto de
vida, e jamais um esqueleto de formas sem carne”
109
.
106
Cfe. Galeno Lacerda, op. cit.
107
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência Brasileira, Curitiba: Juruá, n. 163, p. 141
108
Idem. Revista do Superior Tribunal de Justiça. Brasília, n. 8, p. 301
109
Op. cit., p. 12.
Já criticava o renomado autor que derivando dessa equivocada concepção, diga-se de
passagem, reinante até os dias de hoje, subverteu-se o meio em fim. As consciências foram
distorcidas a tal ponto que se acreditava fazer justiça seria impor a rigidez da forma sem olhos
para os valores humanos em lide. A sacralidade do rito e a pseudo-segurança das relações
processuais eram suficientes para que os operadores do direito lavassem as mãos e voltassem
as costas para as injustiças decorrentes de interpretações puramente técnicas.
Essa deturpação do sentido da forma coaduna-se não com o proclamado interesse
público, mas, sim, com a cultura individualista que permeia o digesto processual. Com isso,
esbarra nos ideais sociais de rápida solução do litígio e contraria a justiça de mérito, acabando
por representar o papel espúrio de defender o interesse da parte sem razão, ou de se prestar
aos fins da chicana e da má-fé processual.
É sabido que, no desempenho de sua função jurídica, o Estado regula as relações
intersubjetivas, por meio de duas ordens de atividades distintas, mas intimamente
relacionadas.
Com a primeira, por intermédio do direito material (ou substancial), estabelece as
normas que, segundo o pensamento dominante, devem reger as condutas do ser humano em
sociedade. São elas que dizem o que é lícito e o que é ilícito, atribuindo direitos, poderes,
faculdades, obrigações; são normas de caráter genérico e abstrato, ditadas, aprioristicamente,
sem destinação particular a nenhuma pessoa e a nenhuma situação concreta; são verdadeiros
tipos, ou modelos de conduta (desejada ou reprovada), acompanhados ordinariamente dos
efeitos que seguirão à ocorrência de fatos que se adaptem às previsões
110
.
a segunda ordem de atividades jurídicas se desenvolve por meio da jurisdição,
pela qual o Estado busca a realização prática daquelas normas em caso de conflito entre
pessoas. De acordo com o modelo estabelecido no direito material, pelo processo judicial, o
110
Cfe. CINTRA, A. C. de A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 38.
Estado-Juiz declarará qual o preceito pertinente ao caso concreto, desenvolvendo medidas
para que o direito assim legitimado seja realmente efetivado.
A distinção fundamental entre o direito material e o direito processual é que este
último cuida das relações dos sujeitos processuais, da posição de cada um deles no processo,
da forma de se proceder aos atos deste, sem nada regular, no entanto, quanto ao bem da vida,
que é o objeto do interesse primário das pessoas, e que está regulado pelo primeiro (direito
material)
111
.
Assim concebido, vencidas as discussões da teoria monista e respeitada a sua
autonomia, o direito processual, sob o ponto de vista de sua função estritamente jurídica,
constitui-se num instrumento a serviço do direito material, garantidor, em última análise, da
autoridade do ordenamento jurídico.
Conforme lembra Dinamarco, a instrumentalidade do processo, em seu aspecto
positivo é a relação que liga o sistema processual à ordem jurídico-material e ao mundo das
pessoas e do Estado, com realce à necessidade de predispô-lo ao integral cumprimento de
todos os seus escopos sociais, políticos e jurídicos. Falar em instrumentalidade nesse sentido
positivo, pois, é alertar para a necessária efetividade do processo, ou seja, para a necessidade
de ter-se um sistema processual capaz de servir de eficiente caminho à ordem jurídica justa
112
.
Essa perspectiva da instrumentalidade do processo combate a tradicional postura,
consistente em considerá-lo como um fim em si mesmo, e que o eleva à condição de fonte
geradora de direitos.
Ensinam Antônio Carlos de Araújo Cintra et al. que “os sucessos do processo não
devem ser tais que superem ou contrariem os desígnios do direito material, do qual ele é
também um instrumento aplicação das regras processuais não deve ser dada tanta
importância, a ponto de, para sua prevalência, ser condenado um inocente ou absolvido um
111
Ibidem, p. 40.
112
DINAMARCO, C. R., op. cit., p. 267-270.
culpado; ou ao ponto de ser julgada procedente uma pretensão, no juízo cível, quando a razão
estiver com o demandado)
113
.
Um procedimento que elege a obediência à forma o seu ápice e desconsidera o que se
passa nos planos do direito material e da realidade social, por óbvio, militará contra a
efetividade da prestação jurisdicional. A decisão, quando muito, porá fim ao conflito apenas
no seu aspecto formal.
Substancialmente, ele persistirá, levando a parte prejudicada a se indispor contra o
sistema que lhe negou o reconhecimento de um direito, muitas vezes indiscutível, mas que
pereceu em nome de uma formalidade qualquer.
A crescente preponderância do direito processual sobre o direito material
desencadeou no excesso de formalismo por conta da aplicação prioritária das regras
processuais o que atenta contra o direito subjetivo amparado em norma substancial. As regras
concernentes às relações, à posição dos sujeitos no processo e às formas processuais o
devem sobrepor-se ao bem da vida, que se constitui em objeto do interesse primário dos
integrantes da sociedade.
Essa prevalência das normas inerentes ao processo traz, como uma das
conseqüências prejudiciais, a obstaculização da efetividade do processo, na medida em que o
deixa de cumprir a contento sua função de pacificação social, via eliminação de conflitos.
O que se nota, com alguma freqüência, é a extinção do processo sem julgamento do
mérito ou o não conhecimento do recurso, com a adoção de interpretação flagrantemente
restritiva de direitos, como uma forma de dar vazão ao excessivo número de feitos em
tramitação. Em outras palavras, o defeito de forma, mesmo quando irrelevante à solução do
dissídio, serve como justificativa para “livrar-se” do processo.
113
CINTRA, A. C. A., op. cit., p. 42.
De outro lado, na recente reforma que sofreu o Código de Processo Civil, observa-se
que muitas das alterações foram editadas com o nítido e confessado escopo de desafogar o
Judiciário, sem uma preocupação maior com o direito subjetivo em discussão. Esse fato,
muito embora possa ter contribuído (até agora não se comprovou isso) para a celeridade
processual, exatamente por ter relegado o direito material a um segundo plano, contribui ainda
mais para o afastamento do processo de sua missão principal de eliminar conflitos.
Parece que o legislador, ao proceder à reforma, orientou-se unicamente pelo
princípio da utilidade, mas uma utilidade mais corporativa do que social. Claro que os
mecanismos que agilizam a tramitação dos processos têm reflexos altamente positivos perante
a sociedade. Porém, se as medidas não se pautarem também na idéia de justiça, a utilidade
social será neutralizada. Interessa à sociedade um processo célere; mas, acima de tudo, um
processo justo.
Os valores utilidade social e justiça não são necessariamente antinômicos; eles se
completam, ou seja, o atendimento de um pode desencadear os efeitos do outro. Assim, a
norma processual que mais se prestará à realização do Direito será aquela que atenda
simultaneamente à justiça e à utilidade social.
Para a efetividade do processo como meio de acesso à ordem jurídica justa, mais
necessária que a própria reforma legislativa, é necessária a mudança da postura mental dos
operadores do sistema (juízes, advogados, promotores de justiça e doutrinadores). A mudança
de mentalidade em relação ao processo e a aplicação de suas regras traduz-se numa
necessidade para que ele possa aproximar-se concretamente dos legítimos objetivos que
justifiquem a sua própria existência.
Em sábias palavras, afirma Osvaldo Ferreira de Melo que o processo que não leve a
uma decisão capaz de assegurar os valores justiça e utilidade social no seu desiderato será
politicamente ilegítimo, em que pese sua validade formal. Essa é a posição inarredável da
Política do Direito
114
.
Nela repousa a esperança de que o processo reencontre o seu verdadeiro rumo. A
reflexão sobre o que deve ser e como deve ser o Direito Processual é que possibilitará, num
futuro que acalentamos seja próximo, a identificação de suas normas com a idéia do justo e do
legitimamente necessário, do socialmente útil. O processo será, então, um eficaz instrumento
da realização do Direito.
7 Da flexibilização da vocação formalística do processo
7. 1 Instrumentalidade do processo
114
MELO, O. F., op. cit., p. 44.
Na segunda metade do século XX, o direito processual civil enfrentou a maior
revolução doutrinária, desde sua emancipação do direito material e depuração de seus
conceitos fundamentais. Passou-se à determinação e valorização de seus verdadeiros e
definitivos objetivos, para com estes proceder à adequação dos conceitos e princípios até
então fixados e analisados estaticamente. Enfrentou-se, a partir daí, a dinâmica do processo,
visto que após um século de ciência a seu respeito, pouco ou nada se alterara quanto a sua
eficiência prática em favor do titular do direito subjetivo lesado ou ameaçado, ou seja, em
favor daquele sujeito da lide a que, afinal, o Estado deverá prestar a tutela jurídica
constitucionalmente prometida.
Conclusão a que chegaram os mais conspícuos cientistas do processo e que, aos poucos,
evoluiu até a unanimidade: não basta ao direito processual a pureza conceitual de seus
institutos e remédios; mais importante do que tudo isto é a obtenção de resultados. O processo
contemporâneo é um processo de resultado, acima de tudo.
Porém, a unanimidade pára por aí.
A bússola adotada pela doutrina processual civil paulista (Cândido Rangel
Dinamarco, Ada Pellegrini Grinover, Luiz Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, entre
outros) concentrou-se na idéia de efetividade, que não era nova, mas que sofreu notável
valorização dentro dos novos caminhos abertos para o estudo e aperfeiçoamento da função
jurisdicional.
O direito de acesso à justiça, incluído entre as garantias constitucionais do Estado
Democrático de Direito, sofreu a mesma transformação por que passaram as cartas magnas do
século XIX para o século atual: de simples e estática declaração de princípios transformaram-
se em fontes criadoras de mecanismos de realização prática dos direitos fundamentais.
Cândido Rangel Dinamarco
115
observa que o tema da instrumentalidade do processo não é
novo; o que se tem pretendido é o estabelecimento de
um novo método do pensamento do processualista e do profissional do foro... O
que importa é colocar o processo no seu devido lugar, evitando os males do
exagerado processualismo (tal é o aspecto negativo do reconhecimento do seu
caráter instrumental) - e ao mesmo tempo cuidar de predispor o processo e o seu uso
de modo tal que os objetivos sejam convenientemente conciliados e realizados tanto
quanto possível. O processo de ser, nesse contexto, instrumento eficaz para o
acesso à ordem jurídica justa”.
A instrumentalidade, nesse contexto, caracteriza-se pela
“preocupação em extrair do processo, como instrumento, o máximo de proveito
quanto à obtenção dos resultados propostos (os escopos do sistema); confunde-se
com a problemática da efetividade do processo e conduz à assertiva de que o
processo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-
jurídica, atingindo em toda plenitude todos os seus escopos institucionais”
116
.
Recomenda, assim, que seja o processo compreendido da maneira que considera
inteligente e com uma dose inevitável de fluidez, pois a inflexibilidade e a rigidez são
próprias do formalismo ultrapassado e não coexistem com o moderno processo de resultados.
para o Prof. J.J. Calmon de Passos
117
, em razão da natureza política do processo,
esse processo reclama rigorosa disciplina, em todos os seus aspectos agentes, organização e
procedimentos – sob pena de se privilegiar o arbítrio dos decisores.
não há como se dissociar o direito obtido como produto da organização política da
sociedade que o produz e do processo político mediante o qual as reduções de
complexidade se efetivam nesse primeiro momento, macropolítico e
macroeconômico. Nem para aí o processo de produção do direito, pois ele prossegue
numa segunda etapa, aquela que, a nível micro, deve editar a norma reguladora de
um conflito precisamente delimitado em termos de pessoas, de tempo, de lugar e de
circunstâncias. Também aqui, como ali, antes de o produto condicionar o processo, é
o processo que condiciona o produto. E também aqui não podemos dissociar o
115
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 16.
116
Ibid.
117
PASSOS, J. J. Calmon de. Instrumentalidade do processo e devido processo legal. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3062>. Acesso em: 08 abr. 2007.
produto do processo de sua produção, que reclama, como antes, rigorosa disciplina,
em todos os seus aspectos agentes, organização e procedimentos - sob pena de se
privilegiar o arbítrio dos decisores”.
E prossegue o eminente doutrinador baiano
118
, rechaçando, com tanta
eloqüência a posição dos arautos da instrumentalidade do processo, que não nos atrevemos a
interromper-lhe o discurso, optando por transcrever integralmente seus precisos dizeres:
“É essa evidência que o modismo da "instrumentalidade do processo" camufla, ou
conscientemente perversidade ideológica, a ser combatida, ou por descuido
epistemológico equívoco a ser corrigido. Ele parece ignorar ou finge ignorar o
conjunto de fatores que determinaram uma nova postura para o pensar e aplicar o
direito em nossos dias, como sejam a crise da razão instrumental, severamente posta
a nu neste século, os avanços originados pelos estudos semiológicos, a revalorização
do político, a partir dos desencantos existenciais recolhidos da experiência do
capitalismo tardio e da derrocada do socialismo real, a crise do Estado do Bem Estar
Social e, principalmente, as revoluções que têm sua raiz no progresso técnico-
científico, acelerado depois da Segunda Grande Guerra Mundial. São elas a
revolução eletrônica, seguida pelas revoluções das comunicações, dos novos
materiais, da biotecnológica, todas incorporando lógicas próprias que determinaram
a hibridização das várias lógicas organizativas as quais, por sua vez, influenciaram a
mudança radical operada na ciência organizacional, com inevitável repercussão
sobre o Estado e o direito”.
Ao contrário da doutrina paulista, orgulhosa pela autoria sem número de
reformas implementadas no Código de Processo Civil, nos últimos anos, Calmon de Passos
denuncia que um desses frutos perversos, ou peçonhentos gerados pela “instrumentalidade”
foi a quebra do equilíbrio processual que as recentes reformas ocasionaram. Hipertrofiaram o
papel do juiz, precisamente o detentor de poder na relação processual, portanto o que é,
potencialmente, melhor aparelhado para oprimir e desestruturar expectativas socialmente
formalizadas em termos de segurança do agir humano e previsibilidade de suas
conseqüências. Privilegiaram, de outra parte, o autor, justamente aquele a quem cabe o dever
ético e político de comprovar o inelutável da sujeição do outro a sua pretensão. Numa total
inversão de valores, tem-se como "dado" o que jamais pode ser entendido nesses termos antes
118
Ibid.
de comunicativa e intersubjetivamente produzido. Esses erros levaram a que as reformas, em
lugar de resolverem a crise da Justiça, agravassem-na e o fizessem progressivamente, até
atingir o intolerável, que determinará o indesejável a implosão, quando se queria apenas e
se necessitava apenas de reformulação.
Cremos que a solução para o confronto das posições doutrinárias apresentadas
seja a adoção temperada de ambas, mormente porque o processo submetido à jurisdição,
deixou de ser a única via para solução dos litígios, uma vez que o movimento de
desjudicialização da solução dos conflitos caminha a todo o vapor, seja pelo caminho da
arbitragem, seja pela instalação progressiva de juízos não togados de conciliação, seja pela
intervenção de conciliadores nos juizados de pequenas causas.
7.2 Efetividade do processo e da tutela jurisdicional
Uma das grandes dificuldades do processualista moderno é justamente tentar
sistematizar a convivência harmônica entre essas garantias fundamentais do devido
processo legal com o escopo finalístico do processo, ou seja, a efetividade. Anota
Marinoni:
"A busca da efetividade do processo é necessidade que advém do direito
constitucional à adequada tutela jurisdicional, indissociavelmente ligado ao
due process of law, e ínsito no princípio da inafastabilidade, que é
garantido pelo princípio da separação dos poderes e que constitui princípio
imanente ao próprio Estado de Direito, aparecendo como contrapartida à
proibição da autotutela privada, ou dever que o Estado se impôs quando
chamou a si o monopólio da jurisdição. A tutela antecipatória, portanto,
nada mais é do que instrumento necessário para a realização de um direito
constitucional".
7.3 O ativismo judicial
A natureza instrumental do Processo e a necessidade de constantemente atualizá-lo,
de modo que sempre se mostre apto a cumprir suas funções essenciais, impõem sua adaptação
às variadas circunstâncias fáticas que se lhe apresentam e às diversas situações jurídicas
merecedoras de tutela. Esta adequação a diferentes e, por vezes, antagônicas hipóteses é uma
afirmação de sua natureza instrumental e constitui característica fundamental para que se
alcance a eficaz realização do direito de acesso à justiça.
No Direito atual não mais resta espaço para certezas ou conceitos intangíveis. A
consagração, na física, da relatividade propugnada por Einstein em substituição à certeza do
absoluto, de Newton, produziu reflexos também em outras ciências, especialmente as voltadas
ao estudo das relações humanas. A ciência jurídica, portanto, não poderia restar indiferente a
este novo paradigma, um dos pontos de apoio para a superação do pragmatismo positivista.
Esta constatação não passou despercebida de Barbosa Moreira, servindo seus
comentários para ratificar o raciocínio apresentado:
“No universo processual (...) pouco espaço para absolutos, e muito para a
interação recíproca de valores que não deixam de o ser apenas porque relativos.
Nem os mais altos princípios devem ser arvorados em objetos de idolatria: para
usarmos expressão em voga noutros setores, todos admitem certa dose de
flexibilização.”
119
O processo de atribuição de sentido às normas jurídicas passa, necessariamente, pela
sua adequação às expectativas que, legitimamente, orientam a atuação dos intérpretes, em
especial os julgadores. As normas jurídicas desveladas pelo processo hermenêutico,
especialmente as de natureza principiológica, dada a sua condição de preceitos que visam à
realização de determinados valores, sempre devem ser a estes orientados, não se perdendo de
vista, contudo, que, por vezes, tais valores podem se mostrar conflitantes com outros, cuja
119
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Por um Processo Socialmente Efetivo. Temas de Direito Processual - oitava série. São Paulo: Saraiva,
2004. p. 26.
preservação igualmente se faça necessária. Daí não se poder admitir que à extensão do
conteúdo axiológico dos Princípios de Direito seja conferido um caráter absoluto,
incontestável, não sendo possível, em sua aplicação, deixar de ter em mira o horizonte
constitucional e a necessidade de se assegurar a integridade do valor basilar do Estado
Democrático: a dignidade humana.
Ao realizar, dentro do Processo, uma hermenêutica preocupada em conferir
efetividade à pauta de valores constitucionais que emanam do modelo de proteção à dignidade
humana, estão os atores processuais conformando este ramo do Direito ao plano normativo
constitucional, aferindo a validade de suas normas à luz dos novos paradigmas oferecidos. O
trabalho de reelaboração conceitual e normativa do Processo, a partir dos parâmetros
constitucionais que fixam o modelo humanista e solidarista próprio do Estado Democrático,
representa exercício de uma jurisdição constitucional voltada a tornar realidade as promessas
abstraídas do texto maior.
Semelhante atividade deve ser praticada por todos que, de alguma forma, tomam
parte no Processo, fazendo-se viva e atual a idéia de Peter Häberle que afirma a existência de
uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Observar e realizar as promessas
constitucionais é dever que assiste tanto aos entes públicos quanto aos particulares, em
qualquer espécie de relação jurídica. No Estado Democrático, onde a Constituição figura em
posição central, dela irradiando toda a restante ordem jurídica, a defesa de sua integridade é
obrigação que a todos atinge, mas com muito mais ênfase à justiça constitucional. Diante da
necessidade da atividade hermenêutica ser realizada à luz dos preceitos por aquela ofertados e
tendo-se por certa a existência de autorização constitucional, no modelo brasileiro, para que o
controle de constitucionalidade seja realizado pela via difusa, face a cada caso concreto que se
apresente, impossível se torna negar o dever de todo juiz dar conta deste mister.
Assim sendo, exalta-se a função dos julgadores que, a todo momento, se vêem
vinculados à verificação da constitucionalidade das normas infraconstitucionais em geral e,
em especial, daquelas que possuam natureza processual, buscando, através de uma atuação
inteligente e construtiva, adequá-las à (ainda) nova realidade trazida pelo projeto de Estado
erigido a partir de 1988. No momento em que se encontram incumbidos do exercício da
função jurisdicional, os juízes são a própria corporificação do Estado, suportando em seus
ombros o enorme fardo que representa ter de lidar com o incomensurável poder àquele
pertencente. Esta realidade torna premente a concepção de um sistema de freios capaz de
limitar tamanha força, consistindo o Processo eficiente mecanismo de controle para a atuação
estatal.
Como conseqüência deste escopo ao Processo conferido, espraiou-se a crença de que
somente se lograria alcançar tal intento através da estrita submissão dos atos praticados pelos
juízes a amplos e firmes critérios previamente concebidos em lei (um dos desdobramentos da
cláusula do devido processo legal). Adstritos a rígidos ditames, jamais conseguiriam os
julgadores ultrapassar os limites impostos à sua autoridade, resguardando-se os destinatários
da atuação jurisdicional contra a possibilidade de exercício arbitrário de seus poderes.
Levado a extremos tal cerceamento, inconcebível se tornou admitir que os julgadores
pudessem colocar em prática os objetivos almejados pelos movimentos reformadores do
Direito e do Processo, ao menos não pela via ora preconizada, a qual acabaria restando
esvaziada de sentido. Aliás, superficial análise da produção dos Tribunais deixa ver
claramente a resistência ainda hoje encontrada ao exercício da jurisdição constitucional em
sua plenitude, resquício, é certo, do modelo formalista e de baixa densidade constitucional
prevalente no país por tanto tempo.
A solução para este aparente paradoxo mais uma vez foi ofertada pela ciência
hermenêutica que, tomando por base a necessidade de realização de Princípios logicamente
sobrepostos às barreiras legais procedimentais, logrou viabilizar a legitimação de outra idéia
igualmente preconizada pelos pensadores adeptos do movimento pelo acesso à justiça: o
reconhecimento, aos juízes, do dever de adotarem uma postura ativa na condução do
Processo, sempre o apontando na direção indicada pelos fins que lhe são colimados.
Para Luigi Paolo Comoglio:
“La presenza di un ruolo attivo del giudice nella direzione (formale e materiale) del
procedimento, sia pure entro i limiti propri di un processo istituzionalmente
dispositivo, non soltanto non è incompatibile, ma è in piena consonanza con i
cardini del ‘processo giusto’.
120
Assim é que, como decorrência desta concepção, admite-se ao julgador a capacidade
de “(...) fazer tudo aquilo que a tutela do direito material impõe, e nem sempre o direito
material tem como fonte a lei. Ademais, ele tem de conduzir o processo a um resultado eficaz,
acomodando-o às necessidades da efetividade (...)”
121
.
Daí porque Chaïm Perelman propugnar que a atual concepção do Direito não deixa
espaço para se limitar o papel do juiz ao de uma boca pela qual fala a lei, tendo em vista que a
dogmática jurídica pautada no constitucionalismo contemporâneo não admite a circunscrição
do plano normativo ao espaço delimitado pelo corpo legislativo positivado. Ao lado dos
textos legais, outros instrumentos capazes de guiar os intérpretes e julgadores em sua tarefa de
reconstruir o Direito se fazem presentes e devem ser enfaticamente utilizados
122
.
É claro, portanto, que tanto os juízes quanto os demais participantes do Processo
devem se deixar sensibilizar pelas concretas exigências sociais, jamais se quedando alheios
aos elementos de evolução econômica, social, política, em sentido amplo cultural, que tanto
120
A presença de um papel ativo do juiz na condução – formal e materialdo procedimento, seja apenas dentro dos limites próprios a um
processo institucionalmente dispositivo, não não é incompatível, mas é plenamente consoante com os fins do processo justo)
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie Minime del “Giusto Processo”. Civile negli Ordinamenti Ispano-latino Americani. Revista de Processo.
São Paulo: Revista dos Tribunais. n. 112, out./dez. 2003. p. 169.
121
GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: o processo justo. Juris Poiesis. Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, n. 7, 2004. p. 35
122
PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Trad
ução
Virgínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 221-222.
influenciam na compreensão do sentido que às normas e à atividade jurisdicional pode ser
atribuída
123
, opinião partilhada por João Baptista Herkenhoff:
No desempenho do papel de aplicador do direito, o juiz pode ser um ator social a
reboque da estagnação ou até mesmo do retrocesso, ou pode ser uma força a serviço do
progresso. Pode ser o construtor de uma hermenêutica comprometida com o avanço social,
com a melhor distribuição dos bens, com a universalização do direito, ou pode ser um
sustentáculo do passado, insensível às mudanças, adepto de uma dogmática jurídica que
cristaliza privilégios
124
.
Afinal, nenhum sistema processual, por mais bem inspirado que seja em suas bases
conceituais e textos legislativos, se revelará socialmente efetivo se não contar com
participantes empenhados em fazê-lo funcionar nessa direção
125
, cabendo aos juízes abraçar
seu dever de proteger e realizar o plano constitucional, jamais temendo colocar em prática os
mecanismos de controle de constitucionalidade que lhe são ofertados, como a interpretação
conforme a constituição, a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, a declaração de
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade ou a aplicação da regra da untermassverbot.
A materialização desta exigência passa pela observância de alguns deveres, como,
por exemplo, a promoção da material igualdade entre as partes, o que pode ser alcançado,
fundamentalmente, através da equalização das oportunidades que lhes são ofertadas, no curso
dos procedimentos, para defenderem seus interesses
126
. Legitima-se, desta forma, uma atuação
que permita suprir eventuais falhas ou incapacidades dos litigantes, viabilizando-se o correto
desenvolvimento do Processo.
123
Cappelletti, Mauro. Problemas de Reforma do Processo nas Sociedades Contemporâneas. Revista Forense. Trad
ução
J. C. Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense. n. 318, abr./jun. 1992. p. 125.
124
Herkenhoff, João Baptista. O Direito Processual e o Resgate do Humanismo. Rio de Janeiro: Thex, 1997. p. 22.
125
Moreira, José Carlos Barbosa. Por um Processo Socialmente Efetivo. Temas de Direito Processual - oitava série. São Paulo: Saraiva,
2004. p. 26.
126
“Aos olhos de expressiva corrente doutrinária, o que hoje importa é tornar operativo o princípio [da igualdade] no plano substancial, de
tal modo que se assegure às partes, independentemente de desníveis culturais, sociais, econômicos, verdadeira igualdade de oportunidades no
processo. Tal aspiração põe em foco, por outro ângulo, o problema da atribuição de papel mais ‘ativo’ ao órgão judicial, convocado a suprir,
em certa medida, as falhas da atuação dos litigantes.” Moreira, José Carlos Barbosa. Tendências Contemporâneas do Direito Processual
Civil. Temas de Direito Processual - terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 8.
É certo queAlgunos miran con reserva semejante evolución; temen que ella ponga
en jaque la imparcialidad del juez.
127
Busca-se amenizar este risco propagando-se os
mecanismos de controle da sua atuação, capazes de assegurar, ao menos minimamente, que a
iniciativa do representante estatal não influenciará decisivamente no resultado do Processo.
Almeja-se, desta forma, conciliar participação com imparcialidade, afastando a imagem do
julgador indiferente e desinteressado na solução da causa
128
e não se olvidando dos riscos que
a omissão do julgador pode trazer para a boa prestação jurisdicional.
Semelhantes razões justificam que se imponha aos julgadores, tal qual defende Luigi
Paolo Comoglio:
(...) l’esigenza strumentale di commisurare l’esercizio di qualsiasi facoltà
discrezionale al principio di legalità ed agli altri principi fondamentali del processo,
da porre sempre gli utenti del servizio giudiziario nella migliore condizione di
percepirne la ‘necessità’ ed apprezzarne la concreta ‘accettabilità’.
129
Enfim, é importante notar que as regras atualmente existentes, tanto no Direito
Processual nacional quanto no alienígena
130
, que reconhecem aos juízes o dever de assumir
uma postura ativa na condução dos procedimentos, vêm na esteira das inovações concebidas
através de mecanismos interpretativos, que buscam materializar Princípios como o do acesso
à justiça ou o da efetividade do processo, direitos fundamentais decorrentes do valor
dignidade humana, permitindo a eficaz expressão de seus conteúdos axiológicos e a realização
do processo justo.
127
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Dimensiones Sociales del Proceso Civil. Temas de Direito Processual - quarta série. São Paulo:
Saraiva, 1989. p. 33.
128
Frise-se que o interesse do juiz não deve ser na prevalência da opinião de determinado litigante, mas na realização dos fins do Processo e
da jurisdição estatal, os quais, não é demasiado lembrar, não estão à disposição do interesse privado dos contendores, mas de toda a
sociedade.
129
(a exigência instrumental de subsumir o exercício de qualquer faculdade discricionária ao princípio da legalidade e aos princípios
fundamentais do processo, de forma a colocar os usuários do serviço judiciário na melhor condição para perceber a necessidade e gozar da
efetiva aceitabilidade.) Comoglio, op. cit., p. 171-172.
130
Exemplificam o afirmado as normas contidas nos parágrafos e 6º, do artigo 461, do Código de Processo Civil brasileiro. No direito
estrangeiro, Barbosa Moreira notícia de regras inscritas no ZPO alemão, em seus parágrafos 139 e 278, n.º 3. Moreira. Tendências
Contemporâneas do Direito Processual Civil. op. cit., p. 9.
8 A universalidade da crise do direito processual: considerações gerais
As últimas décadas do século XX vieram demonstrar que o risco antes temido
tornou-se apreensiva realidade. Após a implantação da Democracia ampla com a valorização
do direito cívico de todos serem ouvidos em juízo, o volume dos processos, em todos os
segmentos da jurisdição, tornou-se explosivo. Seu crescimento é incessante. Reconhece-se
estar ocorrendo, em toda parte, uma verdadeira euforia no ânimo de demandar.
Essa vigorosa emancipação da cidadania tem gerado a tendência geral de cada vez
mais se usar as vias processuais para a solução dos litígios, notando-se uma disposição de
amplas camadas da população a não mais se resignar diante da injustiça e a exigir sempre a
proteção dos tribunais. Fala-se, mesmo, numa síndrome de litigiosidade, para a qual concorre,
também, a redução na sociedade contemporânea, da “capacidade para dialogar”. Nem se pode
ignorar a pesada carga que, nesse incremento das tarefas judiciais, exerce o próprio Estado
por meio de seu volumosos atrito com os cidadãos.
Ao findar o século XX, nem mesmo as nações mais ricas e civilizadas da Europa se
mostram contentes com a qualidade da prestação jurisdicional de seu aparelhamento
judiciário. A crítica, em todos os quadrantes, é a mesma: a lentidão da resposta da justiça, que
quase sempre a torna inadequada para realizar a composição justa da controvérsia. Mesmo
saindo vitoriosa no pleito judicial, a parte se sente, em grande número de vezes, injustiçada,
porque justiça tardia não é justiça e, sim, denegação de justiça.
O prof. Humberto Theodoro Júnior
131
narra que a Itália, que como o Brasil, passou e
vem passando nos últimos anos por uma sucessão de reformas de seu Código de Processo
Civil, Tarzia, relator do último projeto, adverte que as simples alterações legislativas, por si só
jamais terão força para combater a crônica ineficiência dos serviços judiciários, cujas raízes
são mais profundas e ultrapassam, amplamente, o mero esquema procedimental. Qualquer
reforma da lei processual, segundo o jurista italiano, será impotente para desatravancar a
prestação jurisdicional,
131
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Celeridade e Efetividade na Prestação Jurisdicional. – Insuficiência de Reforma das Leis
Processuais. Revista de Processo, São Paulo, nº 125, p.61-78, julho 2005.
se non accompagnata da profonde riforme di struttura, che attengono
all’ordinamento giudiziario, all’organico dei giudici, al personale ausiliario, agli
strumenti materiali che costituiscono l’indispensabile supporto per l’esercizio della
giurisdizione ”.
Na França, Roger Perrot faz interessantes observações sobre a reforma operada no
século expirante nos procedimentos do CPC, dentre os quais destaca como as mais
importantes inovações a antecipação de tutela (référé-provision) e o procedimento monitório
(injonction de payer).
Registra, no entanto, que continua a existir um descompasso entre a demanda e a
oferta dos serviços judiciários, frustrando a garantia constitucional de acesso à justiça.
Observa, ainda, o Prof. Perrot que, em nossos tempos, a angústia da sociedade diante
da demora da prestação jurisdicional tornou-se mais intensa, não pelo estímulo
constitucional de acesso à justiça (direito cívico valorizado pelas constituições de todo o
mundo civilizado), mas também e principalmente sobre a nova qualidade dos litígios. Hoje as
demandas não se restringem, como outrora, ao direito de propriedade e de sucessão (questões
que naturalmente exigiam ou toleravam processos lentos e complexos). O que hoje predomina
no foro são as questões de massa e de interesses imediatos da pessoa, como as derivadas do
direito de família, de locação, de indenização e pensionamentos por ato ilícito, as provocadas
pelas relações de consumo, cuja solução não pode demorar, obviamente.
Muito embora disponha de uma das mais bem aparelhadas e eficientes justiças da
Europa, a Alemanha também não está satisfeita com a prestação jurisdicional. Reclama a
sociedade tedesca da sobrecarga de processos em seus tribunais e o seu volume não pára de
crescer.
Tanto entre os franceses como entre os alemães um consenso de que o se deve
admitir a solução do agigantar do volume dos processos por meio de “uma expansão
indefinida do número de juízes”. Os custos dessa perpétua ampliação dos órgãos judiciários
são insuportáveis mesmo para os países mais ricos.
Entre nós, também, vozes abalizadas reconhecem que o será pela via do simples
crescimento numérico dos juízes que se terá de enfrentar o problema social da impotência da
Justiça para dar vazão satisfatória à gigantesca e sempre crescente demanda pela prestação
jurisdicional. Moniz Aragão é um daqueles que não vêem no aumento do número de juízes a
“solução para o crescimento do volume de litígios”. Seu posicionamento encontra respaldo
nas idéias, entre outros, de Gerhard Walter.
É, portanto, preciso conscientizar-se de que o aprimoramento da prestação
jurisdicional não acontecerá somente em virtude de modificações procedimentais, nem
tampouco do simples crescimento numérico dos juízes disponíveis. A solução para o mal da
demora dos processos, seja aqui, seja na Europa, terá de ser procurada por outras formas.
Conclusões
Conquanto o formalismo processual seja o vilão da vez, sentenciado de morte pela
esmagadora maioria dos operadores do Direito, insta relembrar a advertência contida nas
conclusões a que chegou a maior autoridade da doutrina brasileira na matéria – o Prof. Carlos
Alberto Álvaro de Oliveira
132
, no que tange à inadequação de soluções extremas, que pendam
radicalmente para a informalização do processo.
Conclui-se que garantismo e eficiência devem ser postos em relação de adequada
proporcionalidade, por meio de uma delicada escolha dos fins a atingir e de uma atenta
valoração dos interesses a tutelar. E o que interessa realmente é que nessa difícil obra de
ponderação sejam os problemas da justiça solucionados num plano diverso e mais alto do que
o puramente formal dos procedimentos e transferidos ao plano concernente ao interesse
humano, objeto dos procedimentos: um processo assim na medida do homem, posto
realmente ao serviço daqueles que pedem justiça.
Em suma, com a ponderação desses dois valores fundamentais efetividade e
segurança jurídica – visa-se idealmente a alcançar um processo tendencialmente justo.
Observe-se, finalmente, à vista do caráter essencialmente principiológico dos direitos
fundamentais, que se pode determinar o que se entende por processo justo levando-se em
conta as circunstâncias peculiares do caso.
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ANEXO A
Caos na Justiça
Algumas reflexões sobre a questão judiciária no Brasil
por José Celso de Mello Filho
Sumário: Reformulação do sistema de administração da Justiça. Vetores condicionantes. Da
crise de funcionalidade à perda de legitimidade. Algumas soluções possíveis. O acesso ao
Poder Judiciário: expressão de uma necessidade do Estado democrático de Direito.
Defensoria Pública e exclusão jurídica. mula vinculante: hermenêutica de submissão?
A necessidade de fiscalização externa do Poder Judiciário como pressuposto de legitimação
material de sua atividade administrativa. Adequação da ordem constitucional brasileira à
experiência resultante da prática comunitária. Consagração constitucional de instrumentos
de proteção dos direitos básicos da pessoa humana. Implementação de mecanismos fundados
em declarações internacionais de direitos. A centralidade do papel do magistrado na
concretização das liberdades públicas garantidas pela Constituição e asseguradas por
convenções internacionais. Outras sugestões e propostas.
1. Os dados estatísticos acentuam, de maneira dramática, o crescente congestionamento
do aparelho judiciário em nosso País, revelando situação particular que, no âmbito do
Supremo Tribunal Federal, tem afetado sensivelmente, o regular desenvolvimento dos
trabalhos de nossa Corte Suprema.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o aumento progressivo de causas julgadas e
em curso no Supremo Tribunal Federal tem constituído impressionante dado revelador do
excesso de litigiosidade que se instaurou perante a Corte, a traduzir a existência de uma
anômala situação responsável pela crise de funcionalidade que vem afetando, de maneira
drástica, a normalidade dos trabalhos desenvolvidos pelo Tribunal, hoje assoberbado por um
volumoso índice de processos e de recursos. A gravidade dessa situação de crise constitui
um dos tópicos de reflexão concernentes à presente agenda política nacional, em cujo
contexto se busca introduzir, no Poder Judiciário brasileiro, profunda reformulação
institucional fundada em amplo debate com os operadores do Direito e com o conjunto da
sociedade civil.
A reforma judiciária, na realidade, traduz justa reivindicação dos próprios cidadãos
brasileiros, pois a questão do Poder Judiciário - mais do que um simples problema de ordem
técnica ou de caráter burocrático - representa, no plano político--institucional, um fator
decisivo para o pleno exercício da cidadania em nosso País.
O quadro abaixo reproduzido, elaborado com elementos informativos constantes do Banco
Nacional de Dados do Poder Judiciário, mantido pelo Supremo Tribunal Federal,
demonstra, objetivamente, a partir da Constituição da República de 1988, a situação de
congestionamento que, neste momento, atinge a Suprema Corte brasileira:
Ano Processos recebidos Julgamentos proferidos
1989 14.721 17.432
1990 18.564 16.449
1991 18.438 14.366
1992 24.447 18.236
1993 24.377 21.737
1994 24.295 28.221
1995 27.743 34.125
1996 28.134 30.829
1997 36.490 39.944
1998 52.636 51.307
1999 68.369 105.307
2000 56.307 86.138
2001 110.771 109.743
2002 160.453 117.484
2003 87.186 15.211
2004* 158.785 13.851
(* até 07.03.2004)
A extrema gravidade dessa situação, que está a comprometer - e, até mesmo, a inviabilizar
- a atuação do Supremo Tribunal Federal, provocada pelo volume excessivo de recursos e de
processos, evidencia-se, de maneira bastante expressiva, por um dado de comparação com o
funcionamento da Suprema Corte norte-americana.
É completamente diversa a situação que se registra na Suprema Corte dos Estados Unidos
da América, pois esta tem recebido, por ano, não mais do que 8.000 (oito mil) processos,
julgando, no entanto, anualmente, apenas 2% (dois por cento) desse total. Isso se tornou
possível, num país que, hoje, possui cerca de duzentos e oitenta milhões de habitantes, graças
ao instrumento processual do “writ of certiorari”, que permite àquele alto Tribunal
estabelecer um sistema de filtragem dos recursos, selecionando aqueles que versem temas
revestidos de transcendência ou de relevância jurídica, política, econômica ou social, à
semelhança do que já ocorre na República Argentina, cujo Código de Processo Civil (art.
280) - com a alteração introduzida pela Lei Federal 23.774/90 - outorga, à Corte Suprema
dessa vizinha república, o poder para “rechazar el recurso extraordinario” , sempre com
fundamento em um juízo eminentemente discricionário, “cuando las cuestiones planteadas
resultaren insustanciales o carentes de trascendencia”.
A discussão sobre a reforma judiciária brasileira vem propiciando o surgimento de
diversas propostas que visam a superar a crise de funcionalidade em que hoje se debate,
como órgão do Estado e como instituição da República, o Poder Judiciário nacional. Todos
concordam: a reforma é necessária e é irreversível. Impõe-se, por isso mesmo, o
aperfeiçoamento do sistema de administração da Justiça.
Sob tal aspecto, cabe enfatizar que a instituição de um novo sistema de administração da
Justiça, em nosso País, para legitimar-se em face dos cidadãos, deve revelar-se
politicamente independente, tecnicamente eficiente, processualmente célere, socialmente
eficaz e eticamente irrepreensível.
Isso significa, portanto, na perspectiva do processo de reconstrução institucional do Poder
Judiciário, que essa reformulação deve apoiar-se em cinco pilares fundamentais: (a)
independência política dos juízes, (b) eficiência técnica de suas decisões, (c) celeridade
processual, (d) eficácia social dos julgamentos e (e) probidade dos integrantes da
magistratura.
Na realidade, a reconstrução institucional do Poder Judiciário exige a formulação de uma
agenda que permita conferir, à reforma judiciária, um sentido de efetividade, para nela
incluir a discussão de temas básicos, como (a) a necessidade de aperfeiçoar o processo de
formação acadêmica nos cursos de Direito; (b) o aperfeiçoamento do sistema de
administração dos Tribunais; (c) a organização e consolidação das escolas judiciais; (d) a
institucionalização de sistemas alternativos de resolução de controvérsias e (e) a viabilização
do direito de pleno acesso ao aparelho judiciário do Estado.
2. O acesso à Justiça, nesse contexto, deve representar um claro movimento em favor da
universalização da jurisdição, em ordem a permitir que todos, sem quaisquer restrições -
notadamente aquelas limitações que emergem da reduzida capacidade financeira das
pessoas - possam ingressar em juízo, para que o Estado, em resolvendo de maneira efetiva
e adequada os conflitos de interesses, viabilize o integral exercício dos direitos por parte
daqueles que os titularizam.
Convém insistir na asserção de que o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador
das liberdades civis e das franquias constitucionais. Essa alta missão, que foi confiada aos
juízes e Tribunais pelo Povo, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas
do Poder Judiciário.
É que de nada valerão os direitos e de nada significarão as liberdades, se os fundamentos
em que eles se apóiam - além de desrespeitados pelo Poder Público - também deixarem de
contar com o suporte e o apoio da ação conseqüente e responsável do Poder Judiciário.
Daí a necessidade de enfatizar, a cada momento, que o Poder Judiciário tem um
compromisso histórico e moral com a luta pelas liberdades e, também, com a preservação
dos valores fundamentais que protegem a essencial dignidade da pessoa humana.
Sem que se reconheça a toda e qualquer pessoa o direito que ela tem de possuir e de
titularizar outros direitos, frustrar-se-á - como conquista verdadeiramente inútil - o acesso
ao regime das liberdades públicas.
É preciso construir a cidadania em bases consistentes, a partir do reconhecimento de que
assiste, a toda e qualquer pessoa, uma prerrogativa fundamental que se qualifica como fator
de viabilização dos demais direitos e liberdades. Torna-se imperioso reconhecer que toda
pessoa tem direito a ter direitos.
O fato grave e dramático que atinge os socialmente excluídos - e que se tornam, também
eles, por efeito causal, vítimas injustas dessa perversa exclusão de ordem jurídica - reside
na circunstância de que a condição de despossuídos acaba gerando a perda de um
essencial elemento de conexão que lhes garanta uma exata e bem definida posição em
nosso sistema político e normativo.
Com os socialmente excluídos está em causa, portanto, o próprio reconhecimento - tão
essencial à preservação da dignidade individual - de que à pessoa humana assiste o
direito a ter direitos.
A exclusão de ordem jurídica - que representa um sub--produto perverso derivado da
exclusão social -, gerada e impulsionada pela injusta condição social que tão
gravemente afeta os que nada têm, acaba por frustrar a possibilidade de defesa
jurisdicional das prerrogativas jurídicas que competem, de maneira indisponível, a
cada ser humano.
No processo de construção da igualdade e de consolidação da cidadania, revela-se essencial
organizar um modelo institucional que viabilize o efetivo acesso de todos - notadamente das
pessoas despossuídas - ao sistema de administração de justiça, para que o reconhecimento
constitucional dos direitos e das liberdades não se transforme em um inútil exercício de
justas expectativas fraudadas pela omissão inconseqüente do Poder Público.
A proteção jurisdicional, ao materializar o acesso ao sistema normativo, permite tornar
efetivos e reais os direitos abstratamente proclamados pela ordem positiva.
A frustração do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pelo injusto
inadimplemento do dever governamental de conferir expressão concreta à norma
constitucional que assegura aos necessitados integral assistência de ordem jurídica (CF, art.
5º, LXXIV), culmina por gerar situação socialmente intolerável e juridicamente inaceitável.
Dentro dessa perspectiva, torna-se imperioso cumprir a Constituição (art. 134) e, em
conseqüência, fortalecer e consolidar a Defensoria Pública como expressão orgânica e
instrumento constitucional de realização do postulado segundo o qual a Justiça deve ser
efetivamente acessível a todos, inclusive aos que sofrem o injusto estigma da exclusão
social.
Na realidade, mais do que o simples acesso ao processo, impõe-se identificar, na
perspectiva mais abrangente do acesso à Justiça, o reconhecimento da necessidade de
formular e de implementar um decisivo programa de reforma que vise à remoção dos
obstáculos jurídicos, sociais, econômicos e culturais que injustamente frustram ou inibem a
utilização, por vastos contingentes da população brasileira, do sistema de administração da
Justiça.
Torna-se essencial adequar o Estado e o seu aparelho judiciário às exigências que emergem
do novo contexto político, econômico e social que hoje caracteriza a experiência institucional
e a organização da sociedade civil em nosso País, provendo o sistema estatal com meios que
lhe permitam responder, de maneira idônea, adequada e integral, à intensa demanda de
jurisdição, propiciando, desse modo, aos sujeitos da relação processual, o desejável acesso à
ordem jurídica justa. Cumpre ter presente, por isso mesmo, a advertência exposta em
lúcido magistério doutrinário: “o processo precisa ser apto a dar a quem tem um direito, na
medida do que for praticamente possível, tudo aquilo a que tem direito e precisamente
aquilo a que tem direito” (Cândido Rangel Dinamarco, “A Instrumentalidade do
Processo”, p. 426, 1987, RT).
3. Cabe apreciar (e enfrentar), de outro lado, a crise de funcionalidade que hoje incide
sobre o aparelho judiciário brasileiro. Trata-se de situação extremamente grave, que, além
de comprometer a regularidade do funcionamento dos corpos judiciários, pode propiciar a
formação de condições objetivas que culminem por afetar - ausente a necessária base de
credibilidade institucional - o próprio coeficiente de legitimidade político-social do Poder
Judiciário.
Antes de mais nada, cumpre identificar os fatores reais de congestionamento que atingem
o Poder Judiciário. E o principal deles reside, inquestionavelmente, na oposição
governamental (muitas vezes infundada) e na resistência estatal (nem sempre justificável)
a pretensões legítimas manifestadas por cidadãos de boa-fé que se vêem constrangidos, em
face desse inaceitável comportamento do Poder Público, a ingressar em juízo, gerando,
desse modo, uma desnecessária multiplicação de demandas contra o Estado.
O ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-
jurídico da lealdade processual. Na realidade, o processo deve ser visto, em sua expressão
instrumental, como um importante meio destinado a viabilizar o acesso à ordem jurídica
justa, achando-se impregnado, por isso mesmo, de valores básicos que lhe ressaltam os fins
eminentes a que se acha vinculado.
O processo não pode ser manipulado para viabilizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia
que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das
partes. O litigante de má-fé - trate-se de parte pública ou cuide-se de parte privada - deve ter
a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juízes e dos tribunais,
que não podem tolerar o dolo e a fraude processuais como instrumentos deformadores
da essência ética do processo.
É preciso reconhecer - e lamentar - que o Poder Público, muitas vezes, tem assumido,
em alguns casos, a inaceitável posição de “improbus litigator”, incidindo, com essa
inadequada conduta processual, em atitudes caracterizadoras de litigância temerária,
intensificando, de maneira verdadeiramente compulsiva, o volume das demandas
múltiplas que hoje afetam, gravemente, a regularidade e a celeridade na efetivação da
prestação jurisdicional pelo próprio Estado.
Cumpre ressaltar que existe meio para neutralizar esse tipo de comportamento
processual, sem prejuízo da adoção de outras soluções processuais cabíveis. Reside no
efetivo cumprimento das disposições da Lei Complementar federal 73/93, aplicáveis à
União Federal e às suas autarquias, que, na maior parte dos casos, são diretamente
responsáveis pelo excesso de litigiosidade recursal que hoje afeta e virtualmente paralisa
os trabalhos do Supremo Tribunal Federal.
A LC 73/93, em seu art. 4º, XII, atribui ao Advogado--Geral da União o poder de
editarsúmula, com fundamento em jurisprudência iterativa dos tribunais. Uma vez
editada, a súmula da Advocacia-Geral da União aplica-se, obrigatoriamente, a todos os
órgãos jurídicos tanto da União Federal (art. da LC 73/93) quanto das autarquias
federais (art. 17 da LC nº 73/93), consoante prescreve o art. 43 da Lei Complementar
73/93, vinculando-os, assim no plano processual como na esfera administrativa, às
diretrizes consubstanciadas nos enunciados sumulares formulados pelo Advogado-Geral
da União e resultantes de prática jurisprudencial iterativa dos tribunais (do Supremo
Tribunal Federal, especialmente).
Veja-se, portanto, que o princípio da súmula vinculante para a administração pública já se
acha devidamente instituído, no plano federal, pela LC 73/93 (arts. 4º, XII, e 43). É uma
medida que, além de não comprometer a independência do magistrado, representa uma
solução possível, imediatamente aplicável, destinada a permitir o descongestionamento do
aparelho judiciário. Estou convencido de que a efetiva aplicação desse instrumento legal,
além de contribuir para a celeridade da atividade jurisdicional dos magistrados e tribunais
brasileiros, permitirá, ainda, que pretensões legitimamente manifestadas pelo cidadão
possam ser atendidas, desde logo, pelo Poder Público, até mesmo na própria instância
administrativa.
Louvável, sob esse aspecto, a iniciativa tomada pelo então Advogado-Geral da União,
Ministro GILMAR MENDES, hoje eminente Juiz do Supremo Tribunal Federal, que
iniciou, efetivamente, no plano da União Federal, a prática da súmula administrativa com
efeito vinculante.
4. Cabe, aqui, uma consideração sobre a instituição da súmula vinculante, nos termos em
que vem sendo preconizada no contexto da proposta de reforma do Poder Judiciário.
Antes de mais nada, impende repudiar qualquer solução que busque impor sanções
punitivas ao juiz que se insurgir contra a fórmula subordinante do enunciado sumular,
pois não tem sentido prescrever, para os casos de “rebeldia da consciência” do
magistrado, qualquer tipo de punição.
O gesto independente de pensar com liberdade não pode conduzir a qualquer restrição que
incida sobre o magistrado. O efeito perverso gerado pela aplicação do postulado da
súmula vinculante, tal como esse princípio vem sendo disciplinado no processo de reforma
judiciária, consistirá na indesejável aniquilação da consciência crítica dos Juízes, em
claro antagonismo com as diretrizes que devem informar a concepção democrática do
Estado de Direito.
A proposta de instituição da súmula vinculante - além de introduzir, em nosso sistema
jurídico, inadmissível hermenêutica de submissão - revela-se inaceitável, porque, ao
virtualmente inibir o juiz de refletir, de maneira crítica, sobre as questões submetidas à
sua apreciação jurisdicional, culmina por suprimir-lhe a liberdade e a independência no
desempenho da atividade jurisdicional.
A Súmula - idealizada e concebida, entre nós, pelo saudoso Ministro VICTOR NUNES
LEAL - desempenha, na lição desse eminente Magistrado, enquanto método de trabalho e
ato provido de eficácia interna, várias e significativas funções, pois (a) confere maior
estabilidade à jurisprudência predominante nos Tribunais; (b) atua como instrumento de
referência oficial para os precedentes jurisprudenciais nela compendiados; (c) acelera o
julgamento das causas e (d) evita julgados contraditórios.
A Súmula, ao contrário das notas que tipificam o ato normativo, não deve revestir-se de
compulsoriedade na sua observância externa, nem de cogência na sua aplicação por
terceiros. A Súmula, na realidade, deve configurar mero instrumento formal de
exteriorização interpretativa de determinada orientação jurisprudencial, refletindo, em
sua formulação, apenas um resultado paradigmático para decisões futuras a serem
livremente proferidas por outros juízes e Cortes judiciárias.
A jurisprudência compendiada na formulação sumular - respeitada a exigência de
liberdade decisória que deve qualificar, em nosso sistema jurídico, a atuação do Juiz - não
pode revestir-se de expressão normativa, muito embora traduza, a partir da experiência
jurídica motivada pela atividade jurisdicional do Estado, o significado da norma de direito
positivo, tal como ela é compreendida e constatada pela atividade cognitiva e interpretativa
dos Tribunais.
A Súmula, não obstante reflita a consagração jurisprudencial de uma dada interpretação
normativa, não constitui, ela própria, norma de decisão, mas, isso sim, decisão sobre
normas, na medida em que exprime - no conteúdo de sua formulação - o resultado de
pronunciamentos jurisdicionais reiterados sobre o sentido, o significado e a aplicabilidade
das regras jurídicas editadas pelo Estado.
Em uma palavra: a mula não é uma pauta vinculante de julgamentos. Nem deve
constituir modelo impositivo de uma inaceitável hermenêutica de submissão.
Insisto, portanto, em que, mantida a Súmula com o seu atual perfil jurídico, dela sejam
extraídas todas as suas potencialidades no plano processual, a fim de que, preservadas as
funções inerentes ao modelo sumular (funções que conferem estabilidade às relações de
direito e que outorgam previsibilidade às decisões judiciais) - e sempre respeitada a
essencial independência do Magistrado -, venha este, por efeito de persuasão racional (e
não de imposição estatal), a aplicar, facultativamente, na solução da controvérsia, o
critério jurisprudencial consubstanciado no enunciado sumular.
A valorização da súmula no plano processual deve permitir que se prestigiem as decisões
fundadas na orientação sumulada, de tal modo que se torne possível, “de jure
constituendo”, restringir o acesso à via recursal extraordinária, mediante adequado
sistema de filtragem ou de controle seletivo dos recursos excepcionais, quando o acórdão
se achar fundamentado na súmula. Ou, então, à semelhança do que dispõe o Código de
Processo Civil, instituir o reconhecimento, em lei, da possibilidade de os tribunais
aplicarem, sempre em favor do “ex adverso”, pena de multa à parte recorrente (mesmo
que se trate do Poder Público), que, sem fundamentação consistente ou com objetivos
procrastinatórios, impugnar, de maneira temerária, decisões proferidas com apoio na
súmula. Ou, ainda, que se preveja, como novo pressuposto de rescindibilidade dos
julgados, a sentença de mérito proferida com violação à diretriz jurisprudencial
consagrada na Súmula. Ou, então, que se exonere a parte recorrente do encargo
financeiro do preparo, quando se tratar de recurso por ela interposto contra decisão que
desprestigiar a solução inscrita no enunciado sumular. Ou que se exija, nos casos de
recurso contra decisão fundamentada na súmula, a efetivação de depósito preparatório
equivalente ao valor da condenação ou correspondente a determinado percentual sobre o
valor da causa, subordinando-se, dessa maneira, a cognoscibilidade recursal, à realização
desse ato processual, dispensando-se, unicamente, de tal imposição os beneficiários da
gratuidade. Ou, ainda, tratando-se de recursos interpostos pelas pessoas estatais ou
entidades autárquicas, que se institua, mediante legislação própria, no âmbito dos
Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios, o princípio da súmula
administrativa vinculante, observado, sob tal aspecto, como modelo, o sistema instituído
pela Lei Complementar federal nº 73/93.
Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2004
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