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então podemos considerar-nos “escravos”. Aqui, Sartre está apelando tacitamente
para o tema do reconhecimento hegeliano e à dialética do senhor-escravo
4
. Não se
trata de uma escravidão social ou histórica, mas de uma condição estrutural do ser
humano, conforme afirma: “Sou escravo na medida que sou dependente em meu
ser do âmago de uma liberdade que não é minha e que é a condição mesmo de
meu ser.” (SN, p. 344). Enquanto sou objeto de outro ser que me avalia com sua
própria escala de valores, sou um escravo, pois não posso agir sobre essa
qualificação e nem mesmo consigo conhecê-la. Por isso, posso ser avaliado como
um mero meio para fins que ignoro. Nesse sentido, estar-em-perigo é uma
estrutura permanente de meu ser-Para-outro. Essa situação de ser escravo em
virtude do Olhar do Outro, vai me conduzindo a uma experiência cada vez mais
impessoal de mim mesmo, até o ponto de me considerar coisa entre as coisas ou
uma simples pedra (Cf. SN, p. 344). No decorrer da sua análise, Sartre expressará
de um modo mais enfático: “Esta petrificação em Em-si pelo olhar do outro é o
sentido profundo do mito da Medusa.” (SN, p. 531). Isto é, o Outro, ao surgir,
confere ao Para-si um ser coisa entre coisas.
2.3.1. Conseqüências do Olhar
A aparição do Olhar, não obstante o seu papel petrificador, não tem uma
conseqüência negativa no sentido de deixar imobilizada a consciência. Muito pelo
contrário, é o caminho pelo qual ela se libera do solipsismo a que a conduz sua
pura dimensão de ser-Para-si. Com efeito, sai de si mesma numa espécie de
“relação ek-stática”, como Sartre diz (SN, p. 345), da qual um dos termos é o Para-
si e o outro termo é o ser-Para-outro. Esse segundo termo da relação sou eu
mesmo, mas fora do meu alcance, fora de minha ação e fora do meu
conhecimento. Dita alteridade da consciência está em íntima ligação com a
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Para uma crítica à idéia de reconhecimento negativo, enquanto luta, presente em Hegel e Sartre,
Cf. RICOEUR, Paul. La lutte pour la reconnaissance et l’economie du don. UNESCO: Paris,
2004. E para uma crítica à fenomenologia dos sentimentos (vergonha, ódio), Cf. RICOEUR, Paul.
Simpathie et respect: phénoménologie et éthique de la seconde personne, in Revue de
Métaphysique et de Morale, n. 4, 1954, p. 380-397. Para uma idéia de reconhecimento como luta,
HONNET, A. Luta pelo reconhecimento: a Gramática Moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz
Repa. Edit. 34: São Paulo, 2003; e para uma sugestão de estudo do tema do olhar sartreano como
uma fase do capitalismo colonial, JAMESON, F. A cultura do dinheiro: Ensaios sobre golbalização.
Petrópolis: Vozes, 2001. Ver também o artigo de ROSSATTO, N. D. Alteridade,Reconhecimento e
Cultura – o Problema do Outro no Enfoque da Fenomenologia Francesa. In: TREVISAN A. L.;
TOMASSETTI, E. M. (orgs.) Cultura e Alteridade. Ed. Unijuí: Ijuí, 2006. p. 157-170.