Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A ANÁLISE DE KELSEN E BOBBIO DAS
DISTINÇÕES KANTIANA ENTRE DIREITO E MORAL
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Greici Inticher Pedroso
Santa Maria, RS, Brasil
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
A ANÁLISE DE KELSEN E BOBBIO DAS DISTINÇÕES
KANTIANA ENTRE DIREITO E MORAL
por
Greici Inticher Pedroso
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, Área de Concentração em
Filosofias Continental e Analítica, da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Frank Thomas Sautter
Santa Maria, RS, Brasil
2007
2
ads:
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertação de Mestrado
A ANÁLISE DE KELSEN E BOBBIO DAS DISTINÇÕES KANTIANA
ENTRE DIREITO E MORAL
elaborada por
Greici Inticher Pedroso
como requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Filosofia
COMISSÃO EXAMINADORA:
________________________
Frank Thomas Sautter, Dr.
(Presidente/Orientador)
________________________
Thadeu Weber, Dr. (PUCRS)
____________________________
Hans Christian Klotz, Dr. (UFSM)
Santa Maria, 13 de agosto de 2007.
3
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Joice e Claudio, pelo amor, cuidado e confiança de sempre e
à minha irmã Deisi por conviver e compartilhar o computador pacientemente;
Aos demais familiares (avós, tios e primos), pela torcida e carinho, em
especial meu avô João, por me incentivar aos estudos desde que me entendo
por gente;
Ao professor Frank Thomas Sautter, pelas orientações e ensinamentos
valiosos dedicados muito pacientemente durante esses anos;
Aos professores: Abel Lassale Casanave, Ronai Rocha e Marcelo Fabri,
pelo incentivo. Também a Gisele Secco pelas sugestões;
Ao professor Hans Christian Klotz pelas sugestões e ao professor Thadeu
Weber (PUCRS), pelo recebimento e também algumas contribuições;
Ao curso de Filosofia, por propiciar o encontro com: Nelcí Regina Angnes,
Rafael Barasuol Mallmann, Gustavo Ellwanger Calovi e José Borges e,
conseqüentemente, sua amizade e companheirismo;
Ao meu colega Guilherme Saideles Genro, por gentilmente compartilhar
livros, muitas dúvidas e sugestões;
A Rojane Brum Nunes e Marcos Konzen, pelo incentivo e carinho. Aos
demais amigos, os de perto e de longe, pela torcida e amizade;
À UFSM e à CAPES, pelo incentivo e financiamento deste trabalho.
4
Quem pensa o que há de mais profundo,
ama o que há de mais vivente.
Hoelderlin
Não podemos buscar nosso bem maior
sem necessariamente promover ao
mesmo tempo o bem dos outros.
Uma vida que se
limita a interesses pessoais não pode ser
submetida a qualquer avaliação
respeitável.
Procurar o melhor em nós significa zelar
ativamente pelo bem-estar dos outros
seres humanos.
Nosso contrato humano não se restringe
às poucas pessoas a quem nossos
interesses estão mais intimamente
ligados, ou às mais preeminentes, ricas ou
de educação aprimorada, mas abrange
toda a imensa irmandade humana.
Veja a si mesmo como cidadão de uma
comunidade mundial e aja de acordo com
isso.
Epicteto
5
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Universidade Federal de Santa Maria
A ANÁLISE DE KELSEN E BOBBIO DAS DISTINÇÕES KANTIANA
ENTRE DIREITO E MORAL
AUTORA: GREICI INTICHER PEDROSO
ORIENTADOR: FRANK THOMAS SAUTTER
Data e local da defesa: Santa Maria, 13 de agosto de 2007.
A presente dissertação apresenta as principais noções kantiana para a distinção
entre Direito e Moral, exemplificadas, em um primeiro momento, através dos
imperativos hipotéticos e imperativos categóricos. A existência de outros meios para
efetivar a distinção em foco faz necessária a estipulação de outras noções capazes
de cumprir tal tarefa , como os conceitos de legislação interna e legislação externa,
autonomia e heteronomia, deveres, entre outros. A partir de tais distinções nosso
objetivo é fazer uma análise e levantamento da recepção dos jusfilósofos Hans
Kelsen e Norberto Bobbio, pensadores notórios no campo jurídico contemporâneo, a
partir de suas próprias concepções, e de críticas lançadas ao posicionamento de
Kant, mostrando um vínculo destes com Kant, até mesmo, uma influência positiva
kantiana. Destaque-se o fato de tratar-se, por um lado, de uma concepção
jusnaturalista, contraposto a, por outro lado, concepções juspositivistas. Nesse
sentido, é inevitável a possível transposição de planos, o da fundamentação e o da
aplicação, o que enfraquece o vigor de tais críticas.
Palavras-chaves: Direito, Moral, Kant, Kelsen, Bobbio.
6
ABSTRACT
Master’s Thesis
Postgraduate Program in Philosophy
Federal University of Santa Maria
A KELSEN AND BOBBIO’S ANALYSIS FOR THE KANTIAN
DISTINCTIONS BETWEEN LAW AND MORAL
AUTHOR: GREICI INTICHER PEDROSO
ADVISOR: FRANK THOMAS SAUTTER
Date and Place of Defense: Santa Maria, August 13th, 2007.
The present thesis presents the main Kantian notions for the distinction between law
and moral, exemplified, first through, the hypothetic imperatives and categorical
imperatives. The existence of others methods to make the distinction in focus makes
necessary the stipulation of other views capable to accomplish the task is, as the
concepts of internal and external legislation, autonomy and heteronomy, duties, and
others. From such distinctions our objective is to make an analysis and survey of the
reception of the law philosophers Hans Kelsen and Norberto Bobbio, well-known
ones in the contemporary legal field, for their own conceptions, and for the criticisms
of the positioning of Kant, showing a connection of those with Kant, even though, a
positive influence of Kant. Is highlighted the fact that, in one hand, there is a legal
naturalism conception, opposed, on the other hand, legal positivism conceptions. In
this direction, the possible transposition of plans, the foundation and the application,
is then inevitable, such as it weakens the vigor of such criticisms.
Key words: Law, Moral, Kant, Kelsen, Bobbio.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................9
1 DIREITO E MORAL SEGUNDO A FILOSOFIA PRÁTICA DE IMMANUEL
KANT.........................................................................................................................14
1.1 Preceitos gerais da doutrina ética kantiana....................................................15
1.2 Imperativos e suas implicações........................................................................27
1.3 Outras formas de distinção entre o Direito e a Moral....................................35
2 RECEPÇÃO E CRÍTICAS DE KANT EM KELSEN................................................40
2.1 A influência kantiana na teoria de Kelsen........................................................40
2.2 Preceitos fundamentais da doutrina kelseniana.............................................44
2.2.1 Ser e Dever-ser.................................................................................................44
2.2.2 Sobre a norma e afins.......................................................................................47
.
2.2.3 Sobre Direito e Moral.........................................................................................51
2.3 Críticas de Kelsen a Kant..................................................................................56
2.3.1Crítica à noção de imperativo hipotético............................................................57
.
2.3.2 Crítica à noção de imperativo categórico..........................................................64
2.3.3 Crítica à noção de autonomia
moral..................................................................67
3 RECEPÇÃO E CRÍTICAS DE KANT EM BOBBIO................................................74
3.1Perspectivas gerais de sua doutrina e as influências
kantianas....................75
3.2 Sobre a norma jurídica isolada.........................................................................81
3.2.1 Sobre a imperatividade da norma.....................................................................84
3.2.2 Da natureza das normas jurídicas ....................................................................86
8
3.2.3 Classificação das normas jurídicas segundo Bobbio........................................89
3.3 Críticas de Bobbio a Kant..................................................................................90
3.3.1Crítica à noção de direito ...................................................................................91
3.3.2 Crítica aos imperativos......................................................................................93
3.3.3 Crítica à noção de sanção.................................................................................99
CONCLUSÃO..........................................................................................................101
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................107
9
INTRODUÇÃO
A concepção Ética kantiana situa-se na tradição filosófica, como um dos
principais expoentes dentre as concepções jusnaturalistas. Apresenta, porém, a
peculiaridade de ser fundamentada na capacidade racional humana, fundamentando
assim não sua Ética, mas toda a sua filosofia. Tal abordagem fornece contornos
especiais às relações entre Moral e Direito, quer na identificação de similaridades,
quer na identificação de diferenças entre Moral e Direito.
Desse modo, a preeminência da concepção kantiana se reflete, dentre outras,
em concepções jusfilosóficas contemporâneas como as do italiano Norberto Bobbio
e do austríaco Hans Kelsen, figuras importantes no cenário jusfilosófico do século
XX, os quais avaliam suas propostas à luz da proposta de Kant, justificando, assim,
nossa escolha quanto a tais nomes. Em suas concepções são encontradas, além de
algumas influências, críticas fortes ao posicionamento de Kant a conceitos chaves
para distinção entre Moral e Direito, o que em um certo ponto pode ser irônico, na
medida em que se trata de duas concepções positivistas.
Neste sentido, o presente trabalho visa, em um primeiro momento, expor as
distinções fundamentais entre a Moral e o Direito em Kant e, a recepção destas
entre os jusfilósofos citados. O posicionamento de Kelsen e Bobbio é especialmente
enfatizado a partir das críticas destes àquele, respeitando a distinção em foco neste
trabalho, na medida em que são concernentes aos elementos fundamentais de cada
concepção. Em um segundo momento e, como conseqüência da primeira tarefa,
serão brevemente levantadas as influências de Kant nas concepções juspositivistas
aqui tratadas.Temos ciência, contudo, de que, embora não se tratem de todas as
críticas lançadas por Kelsen e Bobbio a Kant, as que aqui são levantadas enfatizam
o principal foco do trabalho.
Para tanto, o trabalho tem início com uma breve exposição dos elementos
fundamentais do sistema prático kantiano baseado nas obras: “Fundamentação da
Metafísica dos Costumes” (Kant, 2002), “Crítica da Razão Prática” (Kant, 1994) e
“Metafísica dos Costumes” (Kant, 2003), exposição tal que buscará fidelidade ao
expor os conceitos básicos (mesmo que alguns sejam deixados de lado por serem
10
irrelevantes aos questionamentos em vista), na medida em que se relacionam com
as questões levantadas posteriormente pelos jusfilósofos acima citados.
Nesse sentido, por exemplo, o princípio universal da moralidade, a autonomia
do sujeito, que é posteriormente questionada por Kelsen, é delineada por conceitos
como boa vontade, dever, liberdade, entre outros, e contrapõe-se à noção de
heteronomia fornecendo bases para a distinção entre o plano moral e o jurídico.
Estes dois âmbitos são distinguidos, em especial, na Metafísica dos Costumes,
através da idéia de dever que se relaciona com um sentido teleológico, dado de
diferentes maneiras a cada âmbito, mesmo sem deixar de caracterizar a concepção
ética kantiana como corrente estritamente deontológica.
Parece, em um primeiro olhar, que as noções de imperativos categóricos e
hipotéticos sejam os principais distingüidores de tais âmbitos. Tem-se tal
prerrogativa pela ênfase dada pelo autor, a qual buscamos explorar aqui no texto, às
características essenciais destes e suas implicações no contexto da legislação a que
se destinam, implicações estas que se dão através de sua necessidade, suas
motivações, diferentes formulações, entre outras. No entanto, é mister que se
esclareça que outros modos de distinguir a Moral e o Direito, o que é também
colocado por Bobbio e Kelsen.
Paralelamente a tais implicações o autor explora o caráter interno e externo
da Moral e do Direto, respectivamente. Para abordar tais considerações utilizamos a
leitura do jusfilósofo Norberto Bobbio a respeito disso, que sem muita delonga
explora conceitos como: autonomia e heteronomia, liberdade interna e liberdade
externa, entre outros, norteando-se pela caracterização citada.
Ressaltamos, mais uma vez, que o primeiro capítulo serve de base, que
trata da concepção questionada, para nortear não as críticas que posteriormente
são destinadas a este, mas para expor preceitos que fundamentam uma das
filosofias mais peculiares no âmbito filosófico ao longo da tradição. A peculiaridade
da filosofia kantiana é comprovada pela gama de interpretações, críticas e até
mesmo influências que desperta, que nos parece ser justificada pela própria
realização deste trabalho.
O segundo capítulo destina-se à abordagem de Kelsen sobre a distinção em
foco, assim bem como a outros elementos, também explorados pelo autor. Antes
11
disso, e para corroborar a tese anteriormente citada de que a concepção kantiana
influencia tal corrente, é necessário, ao menos, citar que não somente de forma
negativa, ou seja, através de contraposições e questionamentos tal fato se realiza,
mas de forma positiva, na medida em que, Kelsen apóia-se em princípios básicos, o
que se estende também ao sistema teórico kantiano, para fundamentar alguns de
seus próprios preceitos. A exemplo disso, citamos a procura por um método puro
que realize a fundamentação, de um lado, para o conhecimento da Natureza, e de
outro, do Direito.
No que concerne ao sistema prático kantiano, a influência sobre Kelsen é
bem notada na medida em que ambos os autores baseiam o fundamento de um
lado, da Moral e do Direito, e de outro para o segundo caso, em um princípio que é
universal e transcendental. Aqui, a norma fundamental kelseniana, elemento que
também é posteriormente utilizado, com outra dimensão por Bobbio, é a expressão
de um princípio inteligível que legitima toda uma legislação, tal como ocorre em
Kant.
Para, por outro lado, explicitar a influência “negativa” de Kant em Kelsen, se
faz necessária à exposição dos preceitos básicos da concepção do jusfilósofo, de
modo que estes sirvam de base justamente para fundamentar as críticas que logo
em seguida são lançadas à filosofia kantiana. Dentre tais noções, o autor explora a
distinção básica da realidade entre os planos do Ser e Dever-ser, a qual serve de
apoio para a crítica posta pelo autor à noção de imperativo hipotético, que segundo
o jusfilósofo pertence ao plano do Ser tal como Kant propõe. Nesta distinção
também apóia os questionamentos acerca do âmbito a qual pertencem as duas
áreas em questão, a Moral e o Direito, e com o mesmo pano de fundo Kelsen
questiona o conceito de razão prática.
Antes da parte destinada às críticas são ainda citadas, de forma breve, as
noções básicas do jusfilósofo acerca da normatividade de tais âmbitos, explorando
alguns conceitos afins com a própria norma, bem como as suas considerações
peculiares acerca da Moral e do Direito.
De forma mais incisiva, e dizemos assim porque abala a estrutura da
concepção prática kantiana como um todo, o juspositivista questiona o caráter
incondicionado do imperativo categórico e, nesse sentido, o rejeita. Além disso, a
12
noção de autonomia do sujeito moral é posta a prova por Kelsen baseada na relação
entre legislador e destinatário das normas a partir de sua concepção positivista,
tanto para o Direito, quanto para a Moral.
Por final, no terceiro capítulo, para a abordagem de Bobbio se tomará o
cuidado de utilizar a mesma metodologia, tal qual no capítulo de Kelsen. Vale
destacar, que diferentemente da doutrina kelseniana, Bobbio que também é
representante do positivismo jurídico, apresenta uma maior influência kantiana no
que concerne a sua concepção jusfilósofica. Além disso, nos assuntos tratados por
Bobbio é notória uma maior preocupação com o âmbito jurídico do que com o âmbito
da moralidade, que já em Kelsen não é tão enfatizado, e aqui o é ainda menos.
Inicia-se o capítulo destacando justamente o caráter jusnaturalista da
concepção positiva de Bobbio. O jusfilósofo faz de sua concepção uma das mais
peculiares dentre as correntes positivistas, dando destaque a valores que até, então,
são deixados de lado por positivistas extremistas. Dentre suas características está
uma proposta de relação jurídica baseada na noção de institucionalização, a qual
define o caráter essencial que propõe à legislação jurídica. De antemão
colocamos que esta é uma das noções questionadas em Kant, a da relação jurídica
e da característica fundamental de tal âmbito. Ainda aqui, nesta seção inicial, o
jusfilósofo propõe algumas noções básicas que definem o Direito enquanto
instituição, não só norteado pela noção de norma jurídica de forma isolada, que mais
adiante é enfatizada, mas, trazendo à tona conceitos como sanção (o qual é
utilizado para distinguir, tanto a Moral, quanto o Direito, quanto um terceiro grupo, o
social) que também é mais adiante questionado na concepção kantiana.
Além disso, Bobbio expõe alguns dos problemas existentes em um
ordenamento jurídico: a unidade, a sistematicidade e a completude, baseando sua
noção de unidade, a partir da noção de norma fundamental de Kelsen.
Em seguida damos destaque a sua visão de norma jurídica, a qual apresenta
algumas de suas características também absorvidas de Kant, como o caráter
estritamente imperativo, e também algumas conceituações como imperativo
categórico e hipotético.
Na parte destinada ao conteúdo crítico, dentre as citadas, o autor tem
algumas restrições quanto às noções de imperativo categórico e hipotético, baseado
13
na noção de autonomia e heteronomia, além de questionar a função de tais
imperativos, dentre outros questionamentos.
Dessa forma, são indicadas as distinções fundamentais entre a Moral e o
Direito na concepção kantiana, bem como implicações e críticas ao que concerne ao
conteúdo que delineia tais âmbitos, mediante a abrangência de sua concepção a
outras áreas (no caso, a jurídica) tanto positiva, quanto negativamente. As
conclusões do presente trabalho indicarão problemas daí surgidos, que possam vir
ser trabalhados em pesquisas futuras.
14
1 DIREITO E MORAL SEGUNDO A FILOSOFIA PRÁTICA DE
IMMANNUEL KANT
O impacto da filosofia prática kantiana é notável no campo filosófico não
através de uma expoente gama de concepções receptivas às idéias kantianas, mas
também, através de concepções que tomam algumas noções de sua filosofia como
ponto de apoio para críticas e até mesmo como ponto de apoio para concepções
contrárias à de Kant. Muito além disso, a concepção kantiana que também marca
sua importância na tradição filosófica em face de seu peculiar caráter crítico-
racional, estende-se para além do campo estritamente filosófico. Entre os juristas,
entretanto, Kant marca presença através de importantes figuras tais como Kelsen e
Bobbio que, exploram, além das noções básicas de sua filosofia prática, outras
noções que aqui nos servirão para aprofundar as distinções entre Direito e Moral. Na
medida em que serão expostas as noções basilares de Kant à distinção entre
Direito e Moral e em seguida, a recepção destes juristas a estas noções, teremos
efetivado o alvo central desta dissertação.
É portanto, voltando-se ao esclarecimento dos principais preceitos
distinguidores do Direito e da Moral que figuramos nosso trabalho, tornando-se
imprescindível, para isso, uma breve exposição das noções fundamentais da
concepção prática de Kant (assunto desta primeira seção do capítulo). Para a
efetivação desta tarefa são utilizadas como basilares as principais obras do filósofo
neste campo: A Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a Crítica da Razão
Prática e a Metafísica dos Costumes, em especial a primeira e a terceira. As duas
seções seguintes, em apoio a esta primeira, elucidarão a distinção em foco através
dos imperativos e suas implicações na concepção kantiana e também através de
noções pautadas no par conceitual interno/externo, respectivamente.
Deste modo, essa tarefa inicial servirá para delinear os preceitos
posteriormente questionados por Kelsen e Bobbio, no segundo e terceiro capítulos.
Destarte, um segundo alvo do trabalho será mostrar a influência kantiana na
concepção dos jusfilósofos acima mencionados. A falta de alguns elementos ,
importantes em outros contextos, justifica-se pela irrelevância diante nosso propósito
principal.
15
1.1 Preceitos gerais da doutrina ética kantiana
Para iniciar o delineamento das noções basilares da filosofia prática kantiana
(onde nestas páginas iniciais são expostas, em especial, através dos preceitos da
moralidade) vislumbramos o preceito básico do campo moral, qual seja, a autonomia
do indivíduo. Esta por si só, e também sua origem, são fundamentadas na
capacidade do homem (enquanto ser racional e livre) em se autolegislar através de
sua vontade própria, isto é, na capacidade de dar leis a si mesmo, aqui, guiado
unicamente pela idéia do dever. Kant deixa claro que é unicamente no ser humano
racional, o sujeito moral, onde o princípio fundamental da moralidade, a autonomia
da vontade (a qual também pode ser compreendida como a possibilidade originária
da própria moralidade) se realiza. A respeito dessas idéias kantianas Otfried Höffe
diz o seguinte: “(...) também no campo prático a objetividade somente é possível
através do próprio sujeito; a origem da moral encontra-se na autonomia, na
autolegislação da vontade”(Höffe, 2005, p.184). Ele diz ainda: “Autonomia significa
ser mais do que um mero ente necessitado e social e encontrar no “mais” nisto
consiste- a provocação de Kant seu verdadeiro si-mesmo , seu ser moral, a razão
prática pura” (Höffe, 2005, p.220).
Tais prerrogativas nos deixam claro que, com tais pilares, a moralidade
somente é possível e, daí seu valor, a partir do próprio sujeito, de sua vontade, e
não fora dele, como bem enfatiza Ferdinand Alquié em um comentário inicial a
Critique de la Raison Pratique: “Em Kant ao contrário o valor emana do sujeito
unicamente e do seu querer” (Alquié, 1971, p. XI)
1
.A moralidade se torna como uma
exigência e, ao mesmo tempo, um produto do homem.
Aqui, surge, então, uma das problemáticas (que posteriormente no capítulo
destinado a Kelsen é tratada) que dizem respeito não apenas ao campo moral, mas
também ao jurídico, no que se refere, por exemplo, à questão da autolegislação,
quando são indagados os princípios que fundamentam tal capacidade e sua
coerente justificativa.
1
No original: “Chez Kant au contraire la valeur émane du seul sujet et de son vouloir.”.
16
Se a autonomia do sujeito consiste numa capacidade da sua vontade, esta
somente o é se for uma boa vontade, boa pelo seu próprio querer, não por
finalidades que possa vir buscar. Kant assegura que, enquanto boa por si a vontade
é digna de ser avaliada independente das demais finalidades alcançadas pela sua
intervenção:
A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão
para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer,
isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em
grau muito mais alto do que tudo que por seu intermédio possa ser
alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da
soma de todas as inclinações (Kant, 2002, p.23).
O filósofo assegura que esta boa vontade também pode ser entendida como
uma vontade que é boa sem limitação. Esta somente o é se não tenta visar
finalidades, no sentido de que se fundamenta enquanto boa vontade na
determinação pelo seu próprio querer com vistas a cumprir o dever, que se efetiva
através do cumprimento da lei moral e não através de inclinações, desejos que
possam vir a determiná-la. A respeito disso reforça Victor Delbos:
A boa vontade não é aquela que revolve para atingir um fim ou realizar um
objeto do desejo; ela é aquela que se revolve por uma máxima
independente de todo fim e de todo objeto dessa ordem; é aquela que não
se permite determinar que não pela lei moral (Delbos, 1969, p. 274)
2
.
As argumentações de Kant nos deixam claro que, a possibilidade de uma
vontade completamente boa se baseia num pressuposto que aqui, e não somente
na proposta kantiana, é essencial na caracterização humana enquanto peculiar
frente à caracterização de outros seres, a saber, sua racionalidade. A razão
enquanto motriz do homem é para o autor usada tanto no âmbito teórico (âmbito do
conhecimento) quanto no prático (âmbito da ação humana), e é nesse aspecto que
ela se diferencia, posto que em essência não tem distinção, é uma só.
[...] para que a Crítica de uma razão pura prática possa ser acabada, que
se possa demonstrar simultaneamente a sua unidade com a razão
2
No original: “La volonté bonne n’est donc pás celle qui agit pour atteindre une fin ou pour réaliser
um objet du désir; c’est celle qui agit par une máxime indépendante de toute fine t de tout objet de
cette sorte; c’est celle quin e se laisse déterminer que par la loi morale”.
17
especulativa num princípio comum; pois no fim de contas trata-se sempre
de uma e mesma razão, que na aplicação se deve diferenciar (Kant,
2002, p.18).
Kant entende, contudo, que o fato de sermos seres racionais, não nos isenta
de sermos também pertencentes ao mundo sensível (empírico), onde as tentações,
como assim vulgarmente se diz, confrontam nossos princípios a todo instante.
Nesse sentido, a dificuldade em fundamentar a ação moral aumenta e necessita de
uma determinante forte o suficiente para capacitar o homem a agir moralmente,
posto que o arbítrio
3
do sujeito pode escolher móveis que não aquele exigido pela
moralidade. Aqui, a idéia do dever vem para Kant figurar como este determinante,
necessário ao homem para a efetivação de sua capacidade de agir moralmente.
É certo que todo ser humano, consciente de que uma boa convivência, de
que a vida compartilhada com outras pessoas, em qualquer aspecto, se baseia não
na vontade própria (no sentido de satisfazer somente seus quereres), é capaz de
representar tal idéia (dever) e nesse sentido se portar como alguém que tem
deveres a cumprir. Para isso, são necessários, porém, parâmetros nos quais se
basear para agir moralmente. Parece-nos que a lei cumpre tal tarefa, servindo de
padrão, o qual o sujeito moral tem como determinante para o seu agir. Disso Kant
(2002, p. 31) conclui: “Dever é a necessidade de uma acção por respeito à lei”, e
aponta ainda, que somente os seres racionais são capazes de cumprir a lei moral,
justamente porque a idéia de dever imposta por ela emana da própria razão
humana. Com outras palavras reafirma Georges Pascal (2005, p. 126): “O dever não
é um conceito empírico: é uma ordem a priori da razão”.
Nesse sentido, parece-nos satisfatória a idéia da lei moral enquanto
parâmetro para o nosso agir, posto que a partir dela se impõe a idéia de um dever
que serve para determinar o agir, dada a racionalidade do homem e,
conseqüentemente, sua consciência da lei. Em contrapartida, se agimos de modo
que somente nos conformamos à lei, sem tomarmos como motivação a idéia do
dever por ela imposta, a ação não tem caráter moral. Aqui Kant tem uma
oportunidade para distinguir Direito e Moral
4
, ações legais e ações morais.
3
O conceito de arbítrio é distinguido conforme o objeto escolhido. De um lado, se este vem da
sensibilidade, o arbítrio é bruto, de outro se emana da própria razão, é a idéia do dever, é arbítrio
livre.
4
Para tal distinção, que é posteriormente mais bem explorada na parte destinada as principais
noções do Direito e da Moral, Kant se refere às noções de: ação conforme o dever e ação por dever.
18
Mesmo que se tenha a idéia do dever emanada da lei moral como parâmetro
no âmbito prático, é da natureza humana procurar finalidades, estipular objetivos ou,
ao menos, valorar as coisas, sentimentos, pessoas. Destarte, tomando-se como
contraponto a idéia proposta por Kant de que a moralidade por si não deve
fundamentar-se em diversas finalidades, nem valorar, assim, os diferentes objetivos
que o homem se propõe, o próprio autor se faz o seguinte questionamento: “Em que
é que reside pois esse valor, se ele se não encontra na vontade considerada em
relação com o efeito esperado dessas ações?” (Kant, 2002, p. 30).
A partir das elucidações dadas pelo próprio Kant, se torna claro que as ações
morais têm seu valor naquele princípio que é determinante para a vontade, desde
que este princípio seja dado a priori, ou seja, de forma pura, universal e necessária.
Para o filósofo é importante que se tenha claro que o valor das ações humanas
reside não somente em fazer o bem, que por vezes se confunde com o agir moral
propriamente dito, mas fazer o bem determinado pela idéia do dever (que é o
princípio determinante do agir moral) que é, na verdade, o único fim moral. Tais
preceitos são para Kant caracterizados como o valor da moralidade, intrínsecos ao
sujeito mesmo, como anteriormente enfatizado e também bem notado com outras
palavras por John Rawls:
O valor moral das ações depende dos princípios da vontade segundo os
quais são realizadas e não nos propósitos-objetivos, estados de coisas, ou
fins- os desejos os quais nos impelem a realizar as ações.
5
.
Em função do exposto acima, é possível, então, elencarmos as três
proposições fundamentais da Moral para Kant.
1) “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa
ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade
(Kant, 2002, p. 21).
2) “Uma acção praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito
que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina; não depende portanto
da realidade do objecto da acção, mas somente do princípio do querer segundo o
5
No original: The moral worth of actions depends on the principles of volitions from which they are
done, and not on the purposes - the aims, states of affairs, or ends - the desires for which move us to
do the actions”.
19
qual a acção, abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar, foi praticada”.
(Kant, 2002, p. 30).
3) ”Proposição que coincide com a definição do conceito de Dever:” Dever é a
necessidade de uma acção por respeito à lei “(Kant 2002, p.31).
Dadas tais prerrogativas, e, não as tendo como suficientes, Kant ainda propõe
outros elementos, essenciais na fundamentação de seu Sistema Prático (o que a
seguir expomos brevemente), visando uma complementação das definições
básicas.
Como já bem notado pelo filósofo, o pressuposto característico do homem é a
racionalidade e, esta, neste âmbito, serve como guia da vontade humana, posto que
dela derivam os conceitos morais. Nestes termos afirma Kant (2002, p. 46): “Do
aduzido resulta claramente que todos os conceitos morais têm sua sede e origem
completamente a priori na razão (...)”, como enfatizou com relação ao conceito de
dever. Para o filósofo, a razão possui uma “faculdade” capaz de proporcionar ao
homem a representação de uma lei que guia sua vontade, uma lei que ele mesmo se
impõe e lhe garante, assim, o status de autolegislador. Refiro-me a faculdade da
liberdade.
A liberdade
6
é um pressuposto necessário e suficiente para que a razão
humana seja capaz de determinar a vontade a partir da idéia de um dever que a
própria lei lhe impõe. Dito de outro modo, a liberdade é um pressuposto para
autonomia do indivíduo. Ela funciona como uma certa causalidade para as ações,
mas, diferentemente da causalidade da natureza, ela é causalidade livre. Em seus
escritos de filosofia prática Kant a explica da seguinte forma:
Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis segundo as
quais, por meio de uma coisa a que chamamos causa, tem de ser posta
outra coisa que se chama efeito, assim a liberdade, se bem que não seja
uma propriedade da vontade segundo leis naturais, não é por isso
desprovida de lei, mas tem de ser uma causalidade segundo leis imutáveis,
ainda que de uma espécie particular; pois de outro modo uma vontade livre
seria um absurdo (Kant 2002, p. 93-94).
Considerando-se livre, a vontade humana é capaz de se determinar
independentemente de determinações estranhas à lei. Kant faz, para melhor
6
Para o nosso trabalho nos detemos em utilizar as explicações sobre o conceito de liberdade na esfera prática.
Kant faz menção e explicações sobre tal noção no âmbito teórico, em especial na Crítica da Razão Pura.
20
esclarecimento sobre tal assunto, uma distinção da liberdade em negativa e positiva.
A primeira é justamente a liberdade capaz de impulsionar a vontade a eliminar os
impulsos da sensibilidade enquanto móveis. em seu conceito positivo ela é
justamente a capacidade da vontade de se autodeterminar a querer nada mais que a
lei moral como motivo para o agir. Seguindo a definição dada ao conceito de vontade,
Kant (2002, p. 93) diz o seguinte sobre a liberdade: “(...) liberdade seria a
propriedade dessa causalidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente
de causas estranhas que a determinem;”. No seguinte parágrafo ele continua: “A
definição da liberdade acima proposta é negativa e, portanto, estéril para conhecer a
sua essência; mas dela decorre um conceito positivo dessa mesma liberdade que
é bastante rico e fecundo”, e segue definindo-a com a seguinte pergunta: “(...) que
outra coisa pode ser, pois, a liberdade da vontade senão autonomia, i.e, a
propriedade da vontade de ser lei para si mesma?” (Kant, 2002, p. 94).
Através da definição da liberdade da vontade em sentido positivo Kant alicerça
efetivamente, o princípio supremo da moralidade: a autonomia da vontade, que com
outra definição é designada por Kant (1995, p.79) como “(...) fundamento da
dignidade da natureza humana e de toda natureza racional”. Com estes argumentos,
vistos com menor profundidade no início deste capítulo, Kant mostra efetivamente o
papel que cabe à autonomia do sujeito: o de ser pilar fundamental na moralidade.
Deste modo, tem-se efetivamente que ela é, portanto, o princípio que legitima o
homem à sua natureza enquanto ser humano racional e livre.
Todavia, sugerimos as seguintes observações dadas por Höffe para uma
melhor compreensão do aduzido acima:
Assim a moralidade tem sua origem na liberdade no sentido mais estrito,
isto é, transcendental. O conceito de liberdade transcendental formado na
primeira Crítica, a independência de toda a natureza, revela-se na Ética
como a liberdade prática (moral), como a autodeterminação. A vontade livre
de toda a causalidade e determinação estranha a si mesma sua lei. Por
conseguinte, o princípio de todas as leis morais encontra-se na autonomia,
na autolegislabilidade da vontade. Negativamente, a autonomia significa a
independência de fundamentos determinantes materiais, positivamente a
autodeterminação ou legislação própria (KpV, §.8) (Höffe, 2005, p. 219).
A partir daí e, contrapondo-se ao princípio da autonomia, tem-se a
heteronomia da vontade, que é caracterizada pela determinação da vontade através
21
de outros móveis que não a lei dada por ela mesma, são móveis fora dela. A
respeito disso Kant diz o seguinte:
Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro
ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria
legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca
essa lei na natureza de qualquer dos seus objectos, o resultado é então
sempre heteronomia (Kant, 2002, p. 86).
Aqui são simplesmente outros determinantes para o agir, que não mais a lei,
os incitadores da vontade. Eles são determinantes insuficientes para a determinação
da moralidade e, portanto, somente de outra legislação que não esta, como a
legalidade, por exemplo.
Além de tais esclarecimentos que, são tão caros para o estabelecimento das
bases da filosofia prática kantiana , o autor explora conceitos igualmente importantes
das referidas legislações como: as noções de leis, de imperativos, de máximas, entre
outros. Aqui, antes da parte destinada aos pressupostos básicos da legalidade,
utilizaremos alguns parágrafos para elucidação destas noções.
A respeito de tais idéias (que mais pormenorizadamente são esclarecidas na
seção seguinte) tem-se um pressuposto fundamental, que é o seguinte: leis têm
como características essenciais a universalidade. Sendo assim, e dado que a lei
moral é expressa através de um imperativo, designado por Kant como ‘Imperativo
Categórico’, o qual dita uma ação que necessariamente deve ser cumprida sem
condição alguma que se lhe imponha, é evidente que o imperativo seja a fórmula que
expressa um mandamento e, é, como diz Kant (2002, p. 48), “A representação de um
princípio objetivo enquanto obrigante para uma vontade (...)”. A partir disso têm-se
que a lei moral obriga, justamente porque a vontade, por vezes, pode querer outros
móveis que não ela (a lei) para a ação, mas enquanto autônoma é capaz de impor
uma lei para sua determinação, posto que é livre para isso. O filósofo esclarece que,
enquanto lei, ela é objetiva, dado o seu caráter universal e incondicional, sendo
assim, ela é uma proposição sintética-prática a priori, justamente porque:
Eu ligo à vontade, sem condição pressuposta de qualquer inclinação, o acto
a priori, e portanto necessariamente (posto que objectivamente, quer
dizer partindo da idéia de uma razão que teria pleno poder sobre todos os
móbiles subjectivos) (Kant 2002, p. 57-58).
22
Em tal caso, não algo pressuposto,ou seja, não condições. Aqui, o
imperativo é a expressão de um dever, mas é um dever o qual o ser humano tem
consciência. Em sua formulação geral o imperativo categórico é designado da
seguinte forma: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo
querer que ela se torne lei universal” (Kant 2002, p. 59).
Além da estipulação da lei moral, que é expressa através do imperativo
categórico, Kant ainda propõe um segundo tipo de imperativo: o imperativo
hipotético. Este é um imperativo que expressa condicionalidade, e em contraposição
ao imperativo categórico, caracteriza-se pela analiticidade, posto que, ele “deriva o
querer de uma ação de um outro querer pressuposto (...)” (Kant, 1995, p. 58), no
qual em analogia com os juízos “o conceito do sujeito está contido no predicado”.
Tais imperativos, diferentemente do categórico que apresenta unicamente a forma
(da universalidade) e, portanto, é formal, são materiais porque propõem finalidades,
aquilo que é buscado.
Estes imperativos, os imperativos hipotéticos, considerados como a expressão
das normas jurídicas, são classificados em dois tipos: os imperativos de destreza ou
técnicos, e os imperativos da prudência ou pragmáticos. Os primeiros são as regras
que ditam meios específicos para finalidades específicas, diferem dos segundos
porque estes propõem meios para finalidades subjetivas, no caso a felicidade, por
isso não são tão específicos quanto os primeiros.
Além de tal classificação, os imperativos ainda podem ser classificados quanto
ao princípio que expressam. No caso dos hipotéticos, os primeiros são os princípios
problemáticos, eles propõem que uma ação é possível com vistas a um fim,
enquanto que os segundos são os princípios assertóricos, posto que propõem ações
para fins reais. o imperativo categórico vale como um princípio apodítico, pois é
incondicionalmente necessário.
Propomos, de forma concisa, as próprias palavras de Kant para expressar o
que, até então, foi proposto nos últimos parágrafos (o que na seção seguinte,
destinada aos imperativos, será mais bem analisado):
Como toda lei prática representa uma acção possível como boa e por isso
como necessária para um sujeito praticamente determinável pela razão,
23
todos os imperativos são fórmulas da determinação da acção que é
necessária segundo o princípio de uma vontade boa de qualquer maneira.
No caso de a acção ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o
imperativo é hipotético; se a acção é representada como boa em si, por
conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como
princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico (Kant 2002, p. 50).
Ainda com relação aos imperativos, o filósofo propõe como função básica o
ordenar da ação humana (tal questão é posteriormente questionada por Bobbio). No
que se refere, porém, em específico ao imperativo de prudência, sua função é
qualificada mais como um conselho a ser seguido, dada a necessidade meramente
subjetiva e contingente expressa por ele. Sobre este assunto Kant (2002, p. 55) diz o
seguinte: “Daqui conclui-se: que os imperativos da prudência, para falar com
precisão, não podem ordenar, quer dizer representar as acções de maneira objectiva
como praticamente necessárias; que eles se devem considerar mais como conselhos
(consilia) do que como mandamentos (praecepta) da razão (...)”.
O autor ainda esclarece que a máxima a qual o imperativo se refere é o
“princípio subjetivo do querer” (Kant, 2002, p. 31) e, quando falamos em lei moral é
porque a máxima a qual o sujeito adotou para uma determinada ação passou, como
dizem, pelo teste do imperativo categórico, adquirindo, assim, o status de uma
máxima objetiva, porque agora funciona como lei universal para uma ação. Como o
próprio Kant diz, em outras palavras, a máxima é o princípio com o qual o sujeito age,
a lei é o princípio com o qual ele deve agir.
A partir dos pressupostos elucidados acima, esperamos ter cumprido com a
caracterização da moralidade, a qual, conforme Kant (2002, p. 113) ilustra: “é válida
para nós homens, pois que nasceu da nossa vontade, como inteligência, e portanto
do nosso verdadeiro eu (...)”.
Neste sentido, uma vez que a moralidade é fundamentada justamente na
capacidade racional do ser humano em ser legislador de si mesmo, porém abalada
na medida em que seres humanos também são dotados de vontade, que por sua
essência não é somente pura, uma legislação externa se faz necessária.
Passaremos agora a expor, de forma breve, os elementos fundamentais do âmbito
da legalidade, na medida em que também são contrastados com as características
da moralidade.
24
A tradição nos mostra que, em contraposição às doutrinas estritamente
positivistas, Kant propõe um modelo jusnaturalista de Direito, o chamado Direito
Racional, que poderia, se confrontado com o Direito Positivo, servir como
fundamentação deste, servindo como padrão para um modelo “institucional” de
regras para conduzir o ser humano. A respeito disso Ricardo Terra (2004, p. 18) aduz
do seguinte modo: “O Direito Racional é um padrão de medida que permite avaliar o
direito positivo, isto é, aquele que existe historicamente em uma sociedade
específica”.
Dados estes pressupostos, para muitos leitores de Kant a proposta de Direito
do filósofo é vista como uma via moral do Direito, posto que ambos fundamentam-se
em um mesmo princípio, na liberdade dos indivíduos, aqui, sujeitos de uma
legislação externa. Esta interpretação está ancorada numa certa compatibilidade
entre os quereres, através de um princípio que respeita a liberdade alheia, as
vontades livres. Esta é, por exemplo, uma interpretação de Adela Orts
7
(comentadora
da tradução espanhola da Metafísica dos Costumes), interpretação esta que
representa uma certa relação entre ambas às instâncias, aqui tão enfatizadas quanto
às suas diferenças.
Não obstante, não haja dúvidas de que o direito kantiano seja pautado por
princípios estritamente racionais, o que pode corroborar as especulações a respeito
de sua via moral, é certo que ele (o Direito) apresenta especificidades bem distintas
frente à moralidade, como apontado por Joãosinho Beckenkamp:
É peculiar da filosofia do direito de Kant a limitação do seu escopo a uma
legislação (sempre pura) da razão, quer dizer, àquilo que a razão pode
estabelecer a priori no âmbito do direito, e ainda assim firmar uma diferença
essencial do direito em relação à ética (Beckenkamp, 2003, p.155).
Fazendo um retorno, de modo mais específico à distinção dos dois âmbitos
em questão, a Moral e o Direito, através dos imperativos categórico e imperativo
hipotéticos, respectivamente (como brevemente visto acima), podemos apontar
boas informações sobre outras peculiaridades desses dois âmbitos. Para o filósofo,
esta distinção básica expõe justamente o caráter formal da moralidade, contraposto
7
La base de la moral y el derecho vendria constituída por la Idea de libertad transcendental, que se
identifica como autonomia y, sin embargo, por razones de autonomia el individuo se vería obligado a
comportarse de modo heterônomo (Orts, 1989, p. XXXV).
25
ao material da legalidade. Tal distinção mostra a incondicionalidade da primeira
norma em contraste com a condicionalidade da segunda, visto que, na moralidade a
lei somente põe a forma universal como deve ser cumprida a ação, contrapondo-se a
teleologicidade posta na legislação jurídica.
É certo que, embora a legalidade baseie-se em normas que visam finalidades,
elas não deixam com isso, de apresentar um caráter deôntico. Este, porém,
apresenta algumas peculiaridades em cada âmbito, sendo bem explorado por Kant
na obra Metafísica dos Costumes. Segue-se, na seqüência, uma breve exposição da
diferença entre Moral e Direito com base em tal característica.
No caso da moralidade, a liberdade tal como proposta por Kant é preservada,
ou então, é exercitada na medida em que cada vez mais a idéia do dever se põe ao
homem através do imperativo categórico. O filósofo deixa claro que é através da
capacidade de se “esquivar” das inclinações justamente determinado pelo dever, que
o homem se torna virtuoso e digno. Neste sentido Kant (2003, p. 238) afirma que a
virtude é “a força das máximas de um ser humano no cumprimento de seu dever”. O
dever faz da virtude não uma característica de seres que buscam ou exercitam a
moralidade, mas também uma certa conseqüência àqueles que do dever fazem um
estímulo e uma finalidade para a sua ação. Em outras palavras, este mesmo dever
que nos torna virtuosos, aqui, na moralidade, é a finalidade das nossas ações, pois,
ele, enquanto móbil, atua também como fim a ser buscado, como bem ilustra Kant:
Mas no imperativo que prescreve um dever de virtude se acha acrescentado
não o conceito de auto-constrangimento, como também aquele de um
fim, não um fim que temos, mas um que devemos ter, um que a pura razão
prática, portanto, tem dentro de si mesma. O fim mais elevado, incondicional
de pura razão prática (que continua sendo um dever) consiste nisto: que a
virtude seja o seu próprio fim e, a despeito dos benefícios que confere aos
seres humanos, também sua própria recompensa (Kant, 2003, p. 240).
Neste mesmo âmbito os deveres que são, ao mesmo tempo fins, são
chamados de deveres latos, posto que propõem uma ampla obrigação. Eles se
referem a um domínio de aplicação vasto (apresentam universalidade), pois, se
remetem a todos os indivíduos que a esta legislação estão submetidos ou, ao menos,
devem estar. Embora de algum modo são deveres para com os outros, são, ao
mesmo tempo, para conosco mesmos, são deveres internos porque deles emanam
nossa responsabilidade.
26
Dentre os principais deveres que pertencem ao âmbito da moralidade estão: a
busca pela felicidade (alheia) e a procura pela perfeição de cada um. A busca da
felicidade dos outros envolve um ideal de comunidade e nega o caráter egoístico
que na moralidade não deve ter lugar. A felicidade alheia (enquanto não pensamos
na felicidade subjetiva que cada um busca e promove para si mesmo) é alcançada na
medida que buscamos proporcionar um bem estar moral através da realização do
bem “por dever”.
Temos de ter clareza que nossa própria felicidade busca objetos subjetivos
(estabelece fins para se chegar a um deleite), advindos da empiria e nos levam ao
egoísmo, que aqui não cabe. Neste sentido, se faz necessária uma busca pelo cultivo
de nossas faculdades, uma busca pela redução da ignorância, uma procura por
sermos nossos próprios juízes. Esse esforço se na medida em que a vontade
propõe uma disposição virtuosa, como uma maneira de buscar o cumprimento de
deveres para conosco mesmos e deveres para com os outros; é a busca pela própria
perfeição. Kant (2003, p. 236) diz o seguinte a respeito disso: “A maior perfeição de
um ser humano é realizar seu dever a partir do dever (para que a lei seja não apenas
a regra, como também o estímulo de suas ações)”.
Isso considerado, nos torna aclarado que a moralidade traz felicidade
(diferente da felicidade baseada na satisfação das inclinações) ao próprio indivíduo,
mas somente na medida em que este cumpre seus deveres e sente com isso uma
satisfação para com a sua conduta moral e não a toma como finalidade, a qual deve
ser simplesmente o cumprimento do dever pelo dever. Aqui, como diz Kant, a
felicidade se enquadra no conceito de perfeição, posto que é uma tentativa de
cultivar justamente a moralidade, a realização do dever.
O passo inverso ocorre no Direito, no sentido de não mais pensar o dever
como fim, mas sim os fins que são também deveres. Aqui, os chamados deveres de
direito se remetem à legislação externa, também fundamentados no princípio
universal da liberdade do indivíduo. Os deveres desse âmbito relacionam-se
reciprocamente aos direitos alheios, mostrando, assim, que algumas ações destinam-
se a obrigar o outro, embora sejam legalmente amparadas, como acentua José N.
Heck (2002, p. 01): “O objeto de todo dever de direito é uma ação à qual alguém
27
pode ser obrigado por algum outro com vistas ao direito subjetivo que cabe ao último
com base na lei geral do direito”.
De maneira análoga aos deveres de virtude, os deveres de direito também
prezam por uma certa exigência quanto à dignidade do indivíduo, prezam, portanto,
pela conservação do bem estar alheio (sem lhes causar prejuízos), e uma busca pela
boa convivência em sociedade. Diferem dos deveres de virtude, em especial, pela
motivação da ação, que não necessariamente é a idéia de dever, mas qualquer
outra, desde que respeite tais deveres e, neste sentido, os fins visados.
Diferentemente dos deveres latos da legislação moral, os jurídicos são chamados
estritos porque referem–se, de forma mais especifica, a um domínio de aplicação.
A partir de tais peculiaridades a justificativa para os deveres de direito pode
ser encontrada, implicitamente, na própria definição dada por Kant (2003, p. 76) ao
conceito de Direito: “O direito é, portanto, a soma das condições sob as quais a
escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei
universal de liberdade”. Tais quesitos somente são possíveis quando do uso de
nossa própria liberdade que, neste âmbito praticamente se coaduna com a alheia
numa relação de estrita reciprocidade. Nessa relação, entre os arbítrios dos sujeitos,
parece-nos estar implícita a exigência de deveres a serem respeitados.
Ademais, o caráter deôntico da legalidade, o seu cunho coercitivo também é
acentuado. Para tanto, tendo em vista a possibilidade de transgressão de uma lei
jurídica, e nesse sentido um abuso contra uma liberdade, o uso da coerção (elemento
fundamental na definição de Direito, na medida em que também é importante para
distinguí-lo da Moral) é um modo de preservação da liberdade, desde que esta cuide
para não anular a primeira. Kant (2003, p. 78) ressalta, neste sentido que: “(...) o
direito estrito se apóia no princípio de lhe ser possível usar constrangimento externo
capaz de coexistir com a liberdade de todos de acordo com leis universais”, na
medida em que preserva o cumprimento de um dever, e também garante um direito.
Nesses moldes, a coerção não necessariamente é vista como um ataque, mas como
uma defesa, como é aduzido por Höffe:
Em primeiro lugar, a coerção somente é permitida onde, aliás, existe
coerção, lá nomeadamente onde um outro invade o meu espaço legítimo de
liberdade. A coerção legítima não ataca, mas se defende, ela não é
nenhuma coerção agressiva, mas defensiva, uma anti-coerção. E no quadro
28
da coerção defensiva, em segundo lugar,é legítima unicamente aquela
coerção que se volta contra uma injustiça (Höffe, 1998, p.227).
Dado isso, a noção de coerção, além de nos mostrar a forma como é possível
o Direito, desde que respeite seu fundamento dado a prioricamente, parece tornar
possível, embora não seja sempre necessária, a relação externa entre pessoas e,
conseqüentemente, a relação entre seus arbítrios (esta questão é posteriormente
analisada por Bobbio). Estas noções são fundamentais no campo da legalidade em
Kant.
Na seqüência desse trabalho, serão elucidadas, especificamente, as principais
características e algumas implicações dos imperativos, referindo-se em especial aos
aspectos basilares para a distinção em foco. Dentre tais aspectos destacam-se: a
possibilidade, a necessidade, e as distinções quanto à sua aplicação e natureza.
1.2 Imperativos e suas implicações
Na seção anterior, dentre outras noções, os imperativos foram tratados de
um modo geral, sem especial atenção à distinção entre moralidade e legalidade.
Cabe-nos agora, fazer uma análise daqueles de forma mais detalhada e que abranja
aspectos relevantes, antes não tratados, para a distinção dos âmbitos Moral e Legal.
Com este intuito citamos, através das palavras de Kant, mais uma definição dos
imperativos:
Como toda a lei prática representa uma acção possível como boa e por
isso como necessária para um sujeito praticamente determinável pela
razão, todos os imperativos são fórmulas da determinação da acção que é
necessária segundo o princípio de uma vontade boa de qualquer maneira
(Kant, 2002, p. 50).
Tal explicação enfatiza que os imperativos se referem, enquanto fórmulas de
leis, a ações boas que, ou são boas em si mesmas, ou são boas para algum
propósito, mas que independentemente disso sempre são determinantes para a
ação. Cabe, porém, enfatizar, que somente o imperativo categórico apresenta “o
caráter de uma lei prática, ao passo que todos os outros se podem chamar em
verdade princípios da vontade, mas não leis;” (Kant, 2002, p.57). Tal característica é
29
possível porque somente a lei moral apresenta a universalidade enquanto
característica essencial, o que não ocorre no caso dos imperativos hipotéticos,
porque se referem a ações como meios para finalidades, e apresentam com isso,
um caráter meramente subjetivo.
Ademais, soma-se a tais características o fato de somente a lei moral
apresentar estrita relação com a capacidade autônoma do ser humano racional, na
qual faz dele ao mesmo tempo em que, destinatário deste imperativo, o seu próprio
soberano, como é pontuado por Kant:
Destaca-se que o imperativo categórico é a idéia que cada pessoa a lei
a si mesmo; ou seja, cada indivíduo não é apenas um sujeito, mas também
um soberano legislador no “reino dos fins”, o reino moral (Kant, 1999, p.
XVI)
8
.
Diante de tantas especificidades, é notório que até mesmo a possibilidade
dos imperativos se de modo diferente. Os imperativos hipotéticos enquanto
regras que ditam meios para determinados fins são possíveis justamente em função
de tal característica, isto é, é na específica função dos imperativos, a de propor
meios para finalidades, que reside sua possibilidade. Assim, a necessidade de
elucidação sobre sua possibilidade não encontra obstáculos, como é ressaltado pelo
filósofo:
Mas como ambos eles apenas ordenam os meios para aquilo que se
pressupõe ser querido como fim, o imperativo que manda querer os meios
a quem quer o fim é em ambos os casos analítico. Não pois também
dificuldade alguma a respeito da possibilidade de um tal imperativo (Kant,
2002, p. 56).
Destaque-se o fato, porém, de que o modo como operam é um pouco
diferente, os imperativos hipotéticos entre si são distintos. Os imperativos de
habilidade propõem meios específicos para os seus fins, pois, são possíveis e bem
determinadas as finalidades buscadas. o imperativo da prudência, que tem como
finalidade maior a felicidade enquanto um ideal da imaginação e é, portanto,
8
Na edição em língua inglesa: “Underlying the categorical imperative is the Idea that every person
gives the moral law to himself; that is, each individual is not only a subject, but also a sovereign
legislator in the “ realm of ends”, the moral realm”.
30
subjetiva a cada indivíduo, apresenta meios diferentes para sua realização, dado
que cada sujeito busca seus propósitos diferentemente.
Já, no que se refere ao imperativo da moralidade, a dificuldade para o
estabelecimento de sua possibilidade começa a ser enfrentada pela falta de
pressupostos ao qual possa se apoiar a sua necessidade, assim enfatiza Kant:
Em contraposição, a possibilidade do imperativo da moralidade é sem
dúvida a única questão que requer solução, pois que este imperativo não é
nada hipotético e portanto a necessidade objectiva que nos apresenta não
se pode apoiar em nenhum pressuposto, como nos imperativos hipotéticos
(Kant, 2002, p. 56).
É notório que o imperativo categórico não pode ser demonstrado ou
conhecido através da experiência, ele necessita de um pressuposto que seja
transcendental, que forneça princípios a priori para seu estabelecimento. Nesse
sentido, diferentemente do imperativo hipotético, que é analítico, este é sintético
porque à vontade está ligada uma ação de forma a priori, não tem necessidade
subjetiva, mas, sim, objetiva. É uma lei que não necessita da empiria para ser
pressuposta posto que é justamente do caráter inteligível que resulta sua
sinteticidade, ela se impõe a si mesma sem pressupostos. A sua possibilidade,
porém, está fundamentada na distinção entre mundo sensível e mundo inteligível, os
quais pertencem os fenômenos e as coisas em si, respectivamente.
No mundo sensível as ações humanas são determinadas pelos apetites, as
paixões, suas inclinações. Aqui, o homem se permite ao deleite de seus desejos,
proporcionado pela entrega irrefletida às mais diferentes inclinações que o
envolvem. No entanto, é quando nos damos conta de que além de seres sensíveis,
somos seres racionais (assim destaca Thadeu Weber
9
), e por isso capazes de
conduzir nossas ações através de nossa pura razão que nos a lei, que temos a
possibilidade de um mundo inteligível.
É sob o pressuposto de que uma vontade que pode ser pura, no sentido
de que não se determina, embora afetada pelas inclinações, que o homem é capaz
de se ver como membro do mundo inteligível, no qual é livre. É quando se pensa
9
O ser racional, enquanto inteligência, pertence ao mundo inteligível, submetido a leis que não
dependem da causalidade natural, não são empíricas, mas originárias da razão. Mas o ser racional
pertence também ao mundo sensível e, como tal, submetido às leis da natureza (Weber, 1999, p. 48).
31
sob o pressuposto da liberdade que a vontade humana é capaz de dar a si mesma a
lei, independentemente das inclinações que o afetam. A respeito disso diz Weber
(1999, p. 49): "Se a vontade quiser ser livre, terá de dar-se a si própria a lei, caso
contrário, só poderia tirá-la do mundo sensível, isto é, dos apetites e inclinações".
Na medida em que é pertencente ao mundo sensível, e neste o indivíduo é
passível de determinação de sua vontade pelas inclinações, porém, ao mesmo
tempo em que é pertencente também ao mundo inteligível, sendo, portanto guiado
pela razão, a lei funciona como um imperativo, porque constrange a vontade dos
indivíduos que a ela se submetem. Ela impera sobre as inclinações e faz da ação
um dever e não uma mera causalidade. É importante notar que essas inclinações,
embora sempre presentes, não podem ser excluídas, pois fazem parte da natureza
humana. Elas, para não serem determinantes de nosso agir, e isto se torna função
da vontade, são reprimidas através da imposição da lei, como diz Pedro Paulo
Pimenta (2004, p. 61): “Superar a sensibilidade não significa, no entanto, suprimir a
sensibilidade. O que o imperativo moral permite ao sujeito é coordenar os fins
sensíveis com vistas a um outro fim”. Ocorre que a vontade humana, enquanto
guiada pela razão, impõe como fim a lei e não outros fins que poderiam determiná-
la.
Dito tudo isso e, com outras palavras, salientamos que é na medida em que
somos seres de "dois mundos", o sensível e o inteligível, que colocamos à prova
nossa capacidade de sermos nossos próprios legisladores, sempre que afetados pela
sensibilidade. Deste modo, o imperativo categórico é possível, porque ele se impõe
como uma obrigação (porque minha ação é um dever a ser cumprido) ao homem
sensível que, porém, como inteligência é capaz de impô-lo a si mesmo.
Resumidamente, sobre o tema desses últimos parágrafos, Kant diz o
seguinte:
E assim são possíveis os imperativos categóricos, porque a idéia de
liberdade faz de mim um membro do mundo inteligível, pelo que, se eu
fosse isto, todas as minhas acções seriam sempre conformes à
autonomia da vontade; mas como ao mesmo tempo me vejo como membro
do mundo sensível essas minhas acções devem ser conformes a essa
autonomia. E esse dever categórico representa uma proposição sintética
prática a priori, porque acima de minha vontade afectada por apetites
sensíveis sobrevém ainda a idéia dessa mesma vontade, mas como
32
pertencente ao mundo inteligível, pura, prática por si mesma (...) (Kant,
2002, p.104).
Sendo assim, é somente enquanto inteligência que o ser humano racional tem
consciência da lei, posto que ela se impõe como um fato (Faktum) da sua própria
razão, que não é dada a posteriori como no caso de outras leis distintas da lei
moral, como assevera Kant:
A lei moral também nos é dada, de certo modo, como um facto (Faktum) da
razão pura de que somos conscientes apriori e que é apodicticamente certo,
supondo mesmo que não se pudesse encontrar na experiência exemplo
algum em que ela fosse exactamente observada (Kant, 1994, p. 59).
Depois de elucidada a sua possibilidade, pode-se dizer que o imperativo
categórico se torna necessário em função da imperfeição da vontade humana. É
porque somos seres racionais, porém finitos, que necessitamos uma lei que nos
obrigue, servindo como guia para correção e até mesmo para o aprimoramento de
nossas ações. O filósofo destaca que os imperativos categóricos valem e são
necessários para a vontade humana, pois, esta é afetada pelas inclinações ao
contrário da vontade de seres santos, por exemplo, na qual a lei coincide com o
querer. Em suas próprias palavras:
Uma vontade perfeitamente boa estaria portanto igualmente submetida a
leis objectivas (do bem), mas não poderia representar como obrigada a
acções conformes à lei, pois que pela sua constituição subjetiva ela
pode ser determinada pela representação do bem. Por isso os imperativos
não valem para a vontade divina nem, em geral, para uma vontade santa; o
dever (Sollen) não está aqui no seu lugar, porque o querer coincide por
si necessariamente com a lei. Por isso os imperativos são apenas fórmulas
para exprimir a relação entre leis objectivas do querer em geral e a
imperfeição subjectiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana,
por exemplo (Kant, 2002, p. 49).
Contudo, mesmo que os imperativos sejam necessários, é imprescindível que
a eles esteja relacionada uma motivação, que é estipulada por Kant (2002, p. 67)
com base nas seguintes distinções: “O princípio subjetivo do desejar é o móbil
(Triebfeder), o princípio objetivo do querer é o motivo (Bewegungsgrund) (...)”. O
móbil e o motivo diferem quanto à subjetividade e objetividade que impõem diante
dos princípios que servem de determinantes para a ação. A diferente motivação
relacionada a cada âmbito, o que também serve de apoio para distinguir o princípio
33
da autonomia e da heteronomia, está diretamente relacionada ao princípio
determinante da ação. Kant diz o seguinte sobre os princípios:
Princípios práticos são proposições que contém uma determinação geral da
vontade, a qual inclui em si várias regras práticas. São subjectivos, ou
máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como válida
unicamente para a sua vontade; mas são objectivos, ou leis práticas,
quando essa condição é reconhecida como objectiva, isto é, válida para a
vontade de todo o ser racional (Kant, 1994, p. 29).
No caso da legalidade, as motivações que levam o sujeito a agir são variadas
(como já citado no que se refere à noção de heteronomia) – por exemplo, o medo da
punição justamente porque são subjetivas. Nesse caso os princípios são também
subjetivos porque não submetidos à idéia da universalidade, embora o possam ser
se motivados pelo motivo moral.Tais princípios podem também ser chamado de
materiais (porque buscam um objeto para sua determinação), embora alguns deles
possam ser derivados da razão. Kant assim aduz destes princípios que são:
“materiais quando se baseiam nestes fins subjectivos e portanto em certos móbiles”
(Kant, 2002, p. 67).
No caso da moralidade, a motivação é unicamente o puro respeito à própria
lei, como bem assevera Kant:
O respeito pela lei moral é, pois o único e simultaneamente o incontestado
motivo moral, da mesma maneira que este sentimento não se aplica a
nenhum objeto (Objekt) a não ser unicamente por esta razão (Kant, 1994,
p. 94).
o princípio moral, contrariamente ao legal que é material, é formal, porque
não busca em outro objeto que não a mesma lei sua motivação, ele não busca,
portanto, fins subjetivos, o que fica claro através da afirmação de Kant (2002, p. 67):
“Os princípios práticos são formais quando fazem abstração de todos os fins
subjetivos (...)”. Respeitando tal exigência, o único princípio moral é a autonomia da
vontade. Ela pode fazer de uma máxima subjetiva, uma lei objetiva para o sujeito,
porque atende a universalidade que a moralidade exige.
Depois de estudadas nesta seção as principais especificidades dos
imperativos representantes das normas morais e legais, concluímos a presente
seção com uma breve exposição das diferentes formulações do imperativo
34
categórico, baseadas nos preceitos fundamentais que o autor relaciona à
moralidade. Como apoio utilizamos a leitura de J. B. Paton com a obra The
Categorical Imperative: A study in Kant’s moral philosophy (1971), cuja interpretação
encontra cinco formulações do imperativo moral.
O próprio Paton admite que, em um primeiro olhar, parece que Kant
estabelece somente três formulações. Essa interpretação também é sustentada por
outros comentadores de Kant. Sobre isso Paton (1971, p. 129) diz o seguinte de
Kant: “ele nos dificulta com não menos que cinco fórmulas diferentes, por intermédio
das quais, curiosamente o suficiente, ele tende a falar como se elas fossem apenas
três”
10
. Ocupamo-nos, no entanto, apenas em citar as formulações indicadas por
Paton e relacioná-las, brevemente, aos preceitos fundamentais do sistema moral
kantiano. Paton as estrutura do seguinte modo:
Fórmula I ou Fórmula da Lei Universal:
Aja somente segundo uma máxima através da qual você possa ao mesmo
tempo querer que ela se torne uma lei universal.
Fórmula Ia ou Fórmula da Lei da Natureza:
Aja como se a máxima da sua ação seja através do seu querer uma lei
universal da natureza.
Fórmula II ou Fórmula do Fim em si Mesmo:
Aja somente se usar a humanidade, ambos na sua própria pessoa ou na
dos outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, nunca simplesmente
como um meio.
Fórmula III ou Fórmula da Autonomia:
Aja somente através de suas máximas como se pudesse considerar elas
mesmas como legisladora universal.
Fórmula IIIa ou Fórmula do Reino dos Fins:
Aja somente como se fosse através de suas máximas um membro
legislador num reino universal dos fins. (Paton, 1971, p.129)
11
.
10
No original: “(...)he embarrasses us with no less than five different formulae, through, curiously
enough, he tends to speak as if there were only three”.(Paton, 1971, p.129)
11
“Formula I or the Formula of Universal Law:
Act only on that maxim through which you can at the same time will that it should become a universal
law.
Formula Ia or the Formula of the Law of Nature:
Act as if the maxim of your action were to become through your will a universal law of nature.
Formula II or the Formula of the End in Itself:
So act as to use de humanity, both in your own person and in the person of every other, always at the
same time as an and, never simply as a means.
Formula III or the Formula of Autonomy:
So act that your will can regar itself at the same time as making universal law through its maxim.
Formula IIIa or The Formula of the Kingdom of Ends:
So act as if you were always through your maxims a law-making member in a universal kingdom of
ends.” (Paton, 1971, p.129).
35
Tais formulações respeitam, de início, o princípio formal da moralidade, a
universalidade. Aqui é indicada a forma como a lei se põe, que é também o princípio
básico a qual as máximas devem conformar-se para tornarem-se leis. Está incluída,
ao menos implicitamente, a forma da obrigação moral, que implica no conceito de
dever.
Em um segundo momento, o que é destacado é o vínculo da lei com a própria
natureza do homem; um ser peculiarmente distinto em função de sua capacidade
racional, que faz de suas leis necessárias porque fundamentadas na sua própria
liberdade, diferentemente das leis da natureza que respeitam uma necessidade por
causalidade. Neste quesito, o conceito de liberdade, enquanto pilar da capacidade
racional humana, parece-nos indispensável.
O terceiro ponto, diz respeito ao modo como o homem deve ser visto e
tratado no plano da moralidade, qual seja, como um fim em si mesmo. Isso é
possível mediante a idéia de respeito imposta pela lei.
Adiante, a fórmula do princípio supremo da moralidade preza pela capacidade
autolegisladora do sujeito moral. Tal pressuposto é defendido, na medida em que o
sujeito, mais uma vez, vê-se amparado pela razão livre, que, por dar-se a lei, é
razão prática.
E, finalmente, uma menção ao propósito final da moralidade, a formação de
uma comunidade ética em que os sujeitos regidos por uma lei universal têm-se
como fins, na medida em que se respeitam mutuamente, e, por isso capazes de bem
conviver.
Tais prerrogativas parecem-nos ter cumprido com o propósito de tal seção,
tratar das leis dos âmbitos em questão (e suas implicações), a Moral e o Direito, e
ao mesmo tempo, relacionamo-las, em especial o imperativo categórico, aos
conceitos chaves do Sistema Ético kantiano (sendo que destes, alguns, nos
próximos capítulos serão criticados). Antes disso, é feita uma breve elucidação de
outras maneiras de distinguir a Moral e o Direito apoiado no par conceitual
interno/externo.
1.3 Outras formas de distinção entre o Direito e a Moral
36
Uma vez realizada a distinção entre Moral e Direito através dos imperativos
categórico e imperativo hipotéticos, destacaremos outros meios que sirvam de
critério para distinguir tais âmbitos. A própria obra kantiana mostra que uma
caracterização para tais áreas pode ser expressa pelo par conceitual “interno e
externo” e sua aplicação aos diferentes aspectos de cada área. Tal característica é
estabelecida, ao menos implicitamente, através de conceitos tais como: coação e
auto-coação, autonomia e heteronomia, entre outros.
Para a efetivação desta nova via de distinção entre Direito e Moral, que serve
de prova da abrangência, e também da influência da filosofia prática kantiana ao
âmbito jurídico, nos apoiaremos na leitura bobbiana sobre tal tema, a qual expõe
alguns conceitos explicitamente tratados por Kant e outros particularmente
interpretados pelo jusfilósofo, como é por ele pontuado:
Trata-se do clássico problema da distinção entre moral e direito, que é
geralmente considerado como problema preliminar de qualquer filosofia do
direito. Na obra de Kant encontram-se não somente um, mas vários
critérios de distinção, alguns explícitos, outros implícitos (...) (Bobbio, 2000,
p. 86).
Em um primeiro momento, Kant separa a Moral e o Direito através da
distinção entre autonomia e heteronomia, a qual apóia-se no dualismo interno-
externo. A autonomia, como já tratada anteriormente, é expressão da autolegislação.
Ela é interna porque necessita unicamente de um elemento intrínseco ao homem,
sua capacidade racional de impor a si mesmo a lei pela sua própria vontade, que
encontra no puro respeito à lei o móbil para a ação. Com as seguintes palavras Kant
(1995, p.75) aduz sobre a autonomia: “O conceito segundo o qual todo o ser racional
deve considerar-se como legislador universal por todas as máximas da sua vontade
(...)”. Por outro lado, a heteronomia caracteriza o aspecto externo de tal distinção.
Ela é concebida na medida que tomamos os móbeis da sensibilidade, vindos da
empiria, e, portanto, exteriores ao homem, como responsáveis pela motivação do
agir. Aqui, a vontade humana é levada ao agir através de elementos que não aquele
emanado de sua própria razão, por isso são chamados exteriores. Ela procura na
exterioridade aquilo que na moralidade é encontrado no próprio sujeito, e por isso,
cabe à legalidade.
37
Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em qualquer outro
ponto que não seja a aptidão de suas máximas para a sua própria
legislação universal, quando, portanto, passando além de si mesma, busca
essa lei na natureza de qualquer dos seus objectos, o resultado é, então,
sempre heteronomia (Kant, 2002, p.86).
Como conseqüência da distinção entre autonomia e heteronomia, e,
relacionada implicitamente a esta, tem-se a explicitação da típica legislação que a
cada área cabe, à Moral a moralidade, ao passo que ao Direito a legalidade.
Conforme Bobbio, o critério distinguidor destes dois âmbitos, no que tange aos
efeitos da imposição da lei, é estritamente formal justamente porque: “(...) diz
respeito ao conteúdo, respectivamente da lei moral e da lei jurídica, mas
exclusivamente quanto à forma da obrigação; e é o critério com base no qual Kant
distingue a moralidade da legalidade (Bobbio, 2000, p.86). Tal critério por Kant
mesmo já foi levantado ao distinguir ações por dever e ações conforme o dever.
A respeito disso pode-se entender o seguinte: quando a vontade é motivada
pela idéia do dever que se põe ao representarmos a lei, temos a fundamentação de
uma ação puramente pelo dever, ao passo que se tomamos outros móbeis que não
este, fundamentamos um agir que se conforma ao dever, mas não é por ele
motivado. Veja-se as palavras de Bobbio sobre tal distinção:
Tem-se a moralidade quando a ação é cumprida por dever; tem-se, ao
invés, a pura e simples legalidade quando a ação é cumprida em
conformidade ao dever, segundo alguma inclinação ou interesse diferente
do puro respeito ao dever (Bobbio, 2000, p. 88).
Nesse sentido, pode-se falar em uma legislação interna e uma legislação
externa, na medida em que tratam não das ações, mas também dos deveres dos
sujeitos. Pode-se pensar que a ação na moralidade é interna porque trata da
intenção, e não da ação propriamente dita como no caso da legalidade e, por isso é
externa. A ação moral que é impulsionada pelo dever somente exige um acordo
interior, se assim podemos dizer, entre meu querer e o puro dever, ao passo que a
ação legal exige um acordo exterior, estabelecido simplesmente pelo cumprimento
da ação, independentemente da motivação que o impulsionou. Assim diz Bobbio:
Deve-se entender, nesse sentido: a ação legal é externa pelo fato de que a
legislação jurídica, dita, portanto, legislação externa, deseja unicamente
uma adesão exterior às suas próprias leis, ou seja, uma adesão que vale
38
independentemente da pureza da intenção com a qual a ação é cumprida,
enquanto a legislação moral, que é dita, portanto, interna, deseja uma
adesão íntima às suas próprias leis, uma adesão dada com intenção pura,
ou seja, com a convicção da bondade daquela lei (Bobbio, 2000, p. 92).
Destarte o fato da lei se impor de diferente modo em cada âmbito, gerando
com isso, uma obrigação que também é distinta, diz-se que o dever moral é interno
porque preza pela intencionalidade, enquanto o dever legal é externo porque preza
exclusivamente pela conformidade com a lei.
Disso se segue que o dever jurídico pode ser dito externo, porque
legalmente eu sou obrigado somente a conformar a ação, e não também a
intenção com a qual cumpro a ação, segundo a lei; enquanto o dever moral
é dito interno porque moralmente eu sou obrigado não somente a
conformar a ação, mas também agir com pureza de intenção (Bobbio,
2000, p. 92).
Bobbio ainda destaca um critério distinguidor dos dois âmbitos no que se
refere ao conceito de liberdade, explorando aspectos que acreditamos ser
coerentes. Conforme o jusfilósofo, a liberdade enquanto fundamento legitimador, ou
faculdade pela qual a vontade possibilita a autolegislação ou não, também se define
como liberdade interna ou liberdade externa. O jusfilósofo diz o seguinte (2000, p.
95): “O âmbito da moralidade diz respeito à liberdade interna, a do direito se amplia
para a liberdade externa. Pode-se ainda falar, com Kant, de uma liberdade moral,
distinta da liberdade jurídica”.
A liberdade moral é correspondente, segundo Bobbio, à definição kantiana de
liberdade negativa, a qual simplesmente preza pela liberação das inclinações que
provém de nossos desejos e, é por isso interna, ao passo que a liberdade jurídica, a
qual exige um esforço frente a impedimentos que venham dos outros, é externa:
(...) liberdade moral é a liberdade dos impedimentos que provém de nós
mesmos (as inclinações, as paixões, os interesses), é liberação interior,
esforço de adequação à lei eliminando os obstáculos que derivam da nossa
faculdade de desejar; liberdade jurídica, porém, é a liberação dos
impedimentos que provêm dos outros, é liberação exterior, ou seja, eficaz
no domínio do mundo externo em concorrência com os outros (...) (Bobbio,
2000, p. 96).
Nestes trâmites, ocorre uma relação do sujeito consigo mesmo e com relação
aos outros no que se refere à responsabilidade, dada a liberdade que lhe cabe em
39
cada âmbito. Na moralidade me é exigida uma responsabilidade para comigo
mesmo porque me relaciono com meus próprios obstáculos, ao passo que na
legalidade a responsabilidade me é exigida perante os outros, pois me relaciono
com liberdades alheias (entendidas, então, como obstáculos) que também me
exigem isso. Bobbio assim afirma:
Mais precisamente, no conceito de moralidade entendida como liberdade
interna é evidente a referência a uma relação de mim comigo mesmo; no
conceito de direito entendido como liberdade externa é igualmente evidente
a referência uma relação minha com os outros (Bobbio, 2000, p. 96).
E ele ainda ressalta que em conseqüência desta relação, na moralidade: “(...)
sou responsável por aquela ação somente diante de mim mesmo (ou seja, na minha
consciência)” ao passo que na legalidade, “sou responsável por aquela ação frente
aos outros” (Bobbio, 2000, p. 97).
Com estes pressupostos é aclarado que não uma distinção baseada em
normas, ou em modos de operar se faz necessária para suprir tal distinção, mas
muito além disso, e talvez não dada, aqui, por completo, uma distinção que
explore elementos de ordem constitutiva de ambas as instâncias. Não obstante, os
passos fundamentais para o apoio frente às críticas posteriormente recebidas de
Kelsen e Bobbio parecem ter sido oferecidos.
40
2 RECEPÇÃO E CRÍTICAS DE KANT EM KELSEN
A recepção kelseniana das noções fundamentais da filosofia prática kantiana,
é abordada, em especial, através de algumas críticas propostas pelo jusfilósofo a
partir de suas próprias noções fundamentais. Para apoiar, não as críticas
kelsenianas a Kant, mas também, com o intuito de expor suas características
essenciais e, em uma certa medida seu caráter receptivo às idéias kantianas, o
capítulo inicia com uma seção voltada às influências deste na concepção de Kelsen.
Em um segundo momento, na seguinte seção faz-se a elucidação de seus preceitos
básicos, pilares de suas críticas que, posteriormente, na terceira seção do capítulo,
recebem atenção especial.
2.1 A influência kantiana na teoria de Kelsen
Embora o jusfilósofo Hans Kelsen dirija boa parte de suas críticas à doutrina
de Kant, o sistema kelseniano reivindica para si uma base kantiana não apenas em
questões práticas, mas também em questões teóricas e, nas relações entre
questões teóricas e práticas.
Além de Kant, alguns neokantianos também influenciaram a doutrina de
Kelsen. Isso se demonstra através do próprio aparato conceitual e de problemas
fundamentais de seu sistema, que são herdados de pensadores como Wilhelm
Windelband, Heinrich Rickert, Hermann Cohen, entre outros
12
. Dentre os problemas
herdados, por vezes utilizados sob outra nomenclatura, citamos a dicotomização da
realidade em Ordem do Ser e Dever-ser, central na concepção kelseniana, que em
um primeiro momento surgiu como o problema da doutrina dos dois mundos, ou
então, a questão análoga da distinção entre fato e valor. Também citamos a
problemática em torno dos elementos explicativo e normativo da realidade,
relacionados às relações de causalidade e imputabilidade, respectivamente, e a
investigação a respeito de um princípio que sirva como fundamento para o
pensamento, o chamado princípio de origem, que se vincula com a norma
12
Ver Stanley Paulson, 2004.
41
fundamental, dentre outros. Com base nisso é de salientar que a apropriação
kelseniana de Kant, a partir da leitura dos neokantianos, pode, em algum ponto,
gerar confusão.
A afirmação a respeito de uma evidente influência kantiana em Kelsen é
corroborada através das principais obras do jusfilósofo, a Teoria Pura do Direito
(1960) e a Teoria Geral das Normas (1979). A Teoria Pura do Direito, a qual expõe
um projeto epistemológico de sistematização do Direito e de insulamento de
questões genuinamente jurídicas, distinguindo-as de questões relativas ao entorno
do Direito Psicologia, Política, etc. está proposta sob uma base metodológica
kantiana. Já a Teoria Geral das Normas ocupa-se principalmente, no que se refere a
questões relacionadas à concepção kantiana do Direito e da Moral, com as críticas
dirigidas a Kant (o que na terceira seção deste capítulo será analisado).
No que se refere, em especial, ao problema metodológico que é fundamental
em ambas as concepções, é visível uma aproximação nos próprios títulos de suas
obras principais: a Crítica da Razão Pura e a Teoria Pura do Direito. O que ocorre, é
que o estabelecimento do métodoa condição de possibilidade, por um lado, para
o conhecimento da Natureza, e de outro para o Direito, como é bem pontuado por
Stanley Paulson:
(...) Kant em vez de esto retiene algo de su nomenclatura, utilizando el
término ‘transcendental’ para hablar de cognición o conocimento referido
‘no tanto a los objetos de conocimiento sino como conocemos los objetos
de forma que esto sea possible a priori’ [...] La cuestión transcendental de
Kant se pregunta como tal conocimiento o cognición es posible. Kelsen,
seguiendo conscientemente a Kant en este particular, situa su cuestión
transcendental: Como es posible el Derecho positivo como objeto de
cognición, como objeto de ciência jurídica cognitiva? (PAULSON 1991, p.
175).
Baseando-se na pureza do método, Kelsen busca fundamentar o Direito,
como o próprio título de sua obra principal indica, eliminando os aspectos exteriores,
ou seja, aqueles que não sejam estritamente relevantes ao Direito. Adotando como
ponto de apoio a proposta de Kant, Kelsen busca para o Direito não a condição
de possibilidade para seu conhecimento, mas a própria condição de validade, que é
dada através de um princípio transcendental, tal como na teoria kantiana, como
assim bem destaca José N. Heck (2000, p. 23): ”o princípio de validez dedutiva da
42
posição juspositivista kelseniana mantém um parentesco concepcional com a
doutrina kantiana do direito”.
Neste sentido, o esquema de interpretação dos âmbitos natural e o normativo,
ou melhor, utilizando-se a nomenclatura kelseniana, do âmbito do Ser e do âmbito
do Dever-ser, se dá através de normas (que no plano do ser não apresentam caráter
prescritivo). Com respeito a esta divisão (a qual não nos detemos no que se refere a
Kant), os autores divergem em alguns aspectos, porém a crítica lançada por Kelsen
a Kant sobre tal ponto será mais bem analisada na terceira seção deste capítulo.
Enquanto na doutrina prática kantiana a norma é posta pelo próprio sujeito e
se fundamenta num princípio universal, expondo, assim, a idéia do Dever, na
concepção kelseniana a norma não é nem posta pelo legislador, nem pelo indivíduo
enquanto destinatário, mas é pressuposta como quesito essencial e validador deste
âmbito. Estruturada na positividade do Direito e da Moral, a norma kelseniana serve
como fundamento e possui um caráter transcendental, ela é denominada de norma
fundamental, uma vez que serve como parâmetro ou fundamento de todos os
sistemas normativos, ou melhor, das outras normas subsumidas a ela.
Destaque-se, o princípio kelseniano seja análogo ao princípio kantiano
enquanto método para validar leis de ambos os campos; não se pode, porém,
confundir que tais princípios aplicam-se da mesma maneira no campo do
conhecimento (para Kant), e nos campos da Moral e do Direito (para Kelsen); o que
é análogo, é a forma como se chega ao princípio. Ao passo que o princípio kantiano
é transcendental e apriórico, pois não depende da experiência para ser aceito, o
princípio fundamental de Kelsen, diferentemente, é pressuposto a partir da
experiência.
Neste sentido, conforme a leitura de Alexandre Travessoni Gomes, a norma
fundamental kelseniana é comparável com a noção de liberdade transcendental de
Kant, que ambos são princípios fundamentais, mas ao mesmo tempo apresentam
algumas diferenças. Segundo Gomes (2004, p. 273): “A norma fundamental pode,
portanto, ser comparada à liberdade em Kant, pois uma semelhança evidente
entre os esquemas de pressuposição desses fundamentos de validade”. Essa
crucial diferença subsiste, no entanto, quanto ao caráter apriórico existente no
fundamento kantiano e que carece no fundamento kelseniano, como dito antes,
43
depende da experiência. Mesmo assim, Gomes defende que em um certo sentido o
pressuposto kelseniano assemelha-se ao de Kant segundo sua função. Nas
palavras de Gomes (1991, p. 275) isso é evidente: “O que de transcendental na
norma fundamental é que ela torna possível o direito e a Ciência do Direito, assim
como as categorias kantianas tornam possível a ciência e a liberdade torna possível
a Ética”.
Kelsen mesmo aponta que a norma fundamental é uma exigência do
pensamento, é um fundamento epistemológico. Ela segue a racionalidade e
fundamenta um método sistemático que preza pela unidade, por uma essência
universal.
Neste ditame encontramos a maior influência kantiana no sistema kelseniano.
É aqui, que a caracterização de um princípio transcendental, universal, e que
apresenta uma unidade, vale como essência em ambas as teorias. O caráter
universal existente em ambas as teorias, reflete, também, a formalidade de ambos
os sistemas. Já a unidade sistemática é expressa pela simples condição
transcendental existente como condição de validade, o que é enfatizado por Simone
Goyard-Fabre:
A unidade do sistema jurídico provém da sua condição lógico-
transcendental e pura - que, por certo, não podemos confundir com algum
valor transcendente do direito positivo. (...) a idéia de uma Norma
Fundamental é uma hipótese inteligível pura que aos termos de uma
atitude regressiva necessária, instaura o fundamento de validade da ordem
jurídica (Simone Goyard-Fabre 1979,.p. 227)
13
.
De um modo geral, assim como Kant, Kelsen fundamenta o Direito na pura
racionalidade, uma vez que, propõe um princípio fundamentador que é
transcendental, uma exigência da razão como Goyard-Fabre (1979, p. 232) aduz: “o
direito, fundado nas exigências da razão, é como uma estrutura pura e universal da
racionalidade”
14
. Em outras palavras, é porque fundamentado na racionalidade, em
um princípio transcendental, numa condição que é incondicionada e pressuposta,
13
No original: “L’unité du système juridique provient de sa condition logique transcendentale et purê
que, bien sûre, l’on ne peut confondre avec aucune valeur transcendante au droit positif.” (...) l ‘idée
d’une Urnorm est l’hypothèse intelligible pure qui, au terme d’une démarche régressive nécessaire,
instaure le fondement de validité de l’ordre juridique”.
14
No original: “...le droit, fondé dans la exigences de la raison, est comme une structure pure et
universelle de la rationalité.”
44
que se pode pensar a possibilidade de validade do Direito para Kelsen, assim como
em Kant.
2.2 Preceitos fundamentais da doutrina kelseniana
Examinaremos, nesta seção, os preceitos fundamentais do sistema
15
(se
assim podemos caracterizar sua concepção filosófica do Direito) kelseniano do
Direito. Destacamos dentre estes preceitos a divisão proposta da realidade em
Ordem do Ser e Dever-ser, fundamental na caracterização das Ciências Naturais e
Ciências Sociais (Direito e Moral), respectivamente; uma definição detalhada dos
principais conceitos que permeiam o objeto das Ciências Sociais a norma e,
também, e o que nos parece mais interessante em vista da proposta principal deste
trabalho, uma análise da distinção entre Direito e Moral, tal como Kelsen a pensa e a
relação entre ambos.
2.2.1 Ser e Dever-ser
É essencial, para o jusfilósofo, e o é observado com ênfase em todo seu
trabalho, a estrita observância da divisão da realidade entre os fatos naturais
(regidos pela lei da causalidade), ou seja, o plano do Ser, e o que é devido (regido
por leis normativas), o plano do Dever-ser. A respeito disso veja-se as palavras de
Kelsen:
A natureza é, segundo uma das muitas definições deste objeto, uma
determinada ordem das coisas ou um sistema de elementos que estão
ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, portanto, segundo
um princípio que designamos por causalidade. E segue: Se há uma ciência
social que é diferente da ciência natural, ela deve descrever o seu objeto
segundo um princípio diferente do da causalidade. Como objeto de uma tal
ciência que é diferente da ciência natural a sociedade é uma ordem
normativa de conduta humana (Kelsen, 2003, p. 85).
Um contraponto utilizado para enfatizar tal distinção é o princípio ao qual as
leis estão submetidas, ou melhor, a ordem a qual tais instâncias obedecem, que
15
A noção de sistema utilizada para caracterizar a concepção filosófica kelseniana do Direito,
justificada uma vez que, parece-nos a proposta do jusfilósofo baseia-se no rigor metodológico e na
unidade conceitual, fundamentais em sua doutrina, características da noção de sistema.
45
ambas baseiam-se em uma certa regulamentação dos fatos e das condutas,
respectivamente. Tais princípios são a causalidade e a imputação, respectivamente.
O princípio da causalidade liga uma causa a um efeito quando a
correspondência entre um meio e um fim, ou melhor, que de certos fatos como
meios resultam outros como fins. No caso da imputação também uma ligação de
um acontecimento que é sucedido por outro, porém a relação se de outra forma.
Aqui, o conseqüente não é simplesmente, mas deve ser; é algo que por ser
produzido por um ato de vontade estabelece um deve ser. Aqui é expresso que em
vistas de uma ação há outra (que é devida) como conseqüência.
Dito em outras palavras, o princípio da causalidade sustenta que uma
determinada conseqüência está ligada a um certo pressuposto e o princípio da
imputação sustenta que uma certa ação é dada como antecedente, então, de um
conseqüente previamente prescrito.
Neste sentido, uma característica que distingue tais princípios é a natureza da
conseqüência. No caso da causalidade o conseqüente depende do antecedente no
âmbito do Ser, depende de um fenômeno. no caso da imputação, o conseqüente
depende exclusivamente da manifestação da vontade humana, de uma ação devida.
A respeito do conseqüente no âmbito do Ser pode-se afirmar que é ou será; por
outro lado, a respeito do conseqüente no âmbito do Dever-ser nada se pode afirmar,
a não ser que ele deve-ser, pois, sobre sua futura efetivação não se tem certeza
alguma.
Contudo, de se fazer uma ressalva quanto à imputação no sentido de
esclarecer que esta é a ligação entre uma ação que transgrediu outra previamente
prescrita e por isso coube uma punição. Aqui, uma ação é conseqüência de uma
transgressão como acentua Kelsen (2001, p. 91): “A imputação que se exprime no
conceito de imputabilidade é a ligação de uma determinada conduta, a saber, de um
ilícito, com uma conseqüência do ilícito”. Esta imputação pode também ser a
recompensa por uma ação conforme a prescrita. A questão é que algo é imputável
como conseqüência de uma ação.
Outro fator que distingue a imputação da causalidade é que aquela apresenta
uma relação estabelecida através de um produto do querer humano, possível
através de sua liberdade. A necessidade daí estabelecida é normativa porque
46
advém de um dever-ser; a causalidade, por seu turno, é uma necessidade que
independe do querer.
Além disso, a cadeia que se através da ligação entre antecedente e
conseqüente também é fator diferenciado entre ambos os princípios. A causalidade
produz cadeias ilimitadas, isto é, uma determinada causa é efeito de outra causa e
assim sucessivamente sem que se chegue a uma causa inicial ou efeito final. Diz-se
que aqui a série é potencialmente infinita. o âmbito da imputação ocorre
justamente o contrário, pois, um início e um fim bem estabelecidos porque
quando a ação prescrita (o início) é cumprida o fim da cadeia está dado. A série é
finita. Como conseqüência disso, as expressões utilizadas para referir-se em ambos
os modos também são diferenciadas. Utiliza-se o termo “ter de” para se referir à
relação de causalidade expressa no âmbito do Ser. E utiliza-se o termo “deve ser”
para referir à relação de imputabilidade expressa no plano do Dever ser.
Para melhor aclarar as anotações acima pontuadas, ilustramo-las através do
seguinte quadro:
Nexo funcional Série Necessidade Expressão
Ser causalidade infinita causal ter-de
Dever-ser imputabilidade finita normativa deve-ser
Quadro 1. Ser e dever-ser, segundo Kelsen
Ainda é importante ressaltarmos que, em ambos os casos, no Ser e no Dever
ser, o conteúdo é o mesmo, por exemplo: um enunciado estabelece que “B cumpre
sua promessa”, nesse caso algo é, do outro lado é estabelecido que “B deve cumprir
sua promessa”, nesse caso algo deve ser. A ressalva se na observância de que
um mesmo conteúdo, chamado por Kelsen de substrato modalmente indiferente (no
exemplo acima a expressão “cumprir promessa”), pode assumir dois modos
distintos, num momento no plano do ser e em outro no plano do dever-ser.
Além disso, também se faz necessário ter claro que o dever-ser somente se
como um produto estabelecido por um ato de vontade, ou seja, o dever-ser
somente é manifestado quando a norma, enquanto sentido de um ato de vontade, é
prescrita. Em realidade, o dever-ser é a norma propriamente dita. Neste sentido, o
47
enunciado utilizado para expressar tal norma ainda pertence ao plano do ser, no
caso a proposição jurídica, que é fruto de um pensamento e estabelece, portanto,
que um dever-ser é dado.
Tais momentos são bem distintos por Kelsen; o estabelecimento e a
expressão do dever-ser ainda pertencem à esfera do ser, somente a norma pertence
ao plano do dever-ser, ou,então, é o próprio dever-ser.
2.2.2 Sobre a norma e afins
Como conseqüência do lugar destacável que as normas possuem na Moral e
no Direito é mister entendermos minuciosamente seu significado e de outras
entidades no seu entorno. O trabalho kelseniano é norteado pela estrita observância
dos conceitos que visam esclarecer aspectos fundamentais de sua doutrina e, que
ele entende serem, por vezes, confusos em outras concepções, como por exemplo:
a diferença entre leis naturais e normas sociais.
Quanto trata da Natureza, Kelsen utiliza a expressão ’lei’ para designar as
normas regentes dos fatos, justamente porque estas, diferentemente das normas
sociais apresentam um caráter geral e não são postas por um ato de vontade
humano. , como as outras. Elas se apresentam através do princípio de causalidade
e descrevem fenômenos.
as normas sociais, entendendo-se com as mesmas as normas do Direito e
da Moral, situadas no âmbito do dever-ser, apresentam como característica a
positivação, e são regidas pelo princípio de imputação, prescrevendo, assim, ações
devidas.
No âmbito da natureza a lei se caracteriza pelo nexo causal e pela sua
generalidade, a lei natural descreve como algo se comporta ou acontece, no caso
da lei social a generalidade é preservada, porém, o que é descrito é como algo deve
se comportar. Além disso, a lei social pode ser distinguida por ser a aplicação do
princípio retributivo (o qual, neste âmbito, preserva a idéia de justiça).
Sendo assim, a definição inicial de Kelsen (1986, p. 01) do conceito de norma
é a seguinte: “Com o termo se designa um mandamento, uma prescrição, uma
ordem”. E mais adiante ele completa a definição: “‘Norma’ a entender a alguém
48
que alguma coisa deve ser ou acontecer. Desde que a palavra ‘norma’ indique uma
prescrição, um mandamento.” (Kelsen, 1986, p. 02).
Tais definições deixam claro que a principal característica da norma social é
o caráter prescritivo. Em apoio a isso, dentre outras, a principal função da norma é a
imposição (que é tomada por Kelsen como sinônimo de prescrição), ou seja, o que
ela diz deve ser tomado como algo que deve ser feito, posto que ela diz que uma
conduta determinada é exigida. Além disso, permitir, conferir poderes, derrogar,
ordenar, também são funções da norma que através de tais funções explicita o
dever-ser.
Neste ponto lançamos um questionamento no que se refere a características
ditadas por Kelsen quanto às normas sociais. Quando ele diz que além de ordenar a
norma também tem a função de conferir poderes, permitir, derrogar, ele se refere
também às normas morais? Questionamos, neste sentido, em que medida uma
norma moral é capaz de conferir poderes ou derrogar? Em que situação podemos
identificar que uma norma moral permitiu uma conduta? Parece-nos que em tal
ponto a análise kelseniana não ênfase às características das normas morais, ou
melhor, as deixa de lado, ou então, as define da mesma maneira que as normas
jurídicas.
Sendo assim, a norma de um ordenamento positivo, que conseqüentemente
pertence ao plano do Dever-ser, é designada como o sentido de um ato de vontade,
ou seja, a norma social, somente o é, se produto do querer humano, como pontua
Kelsen (1986, p. 06): “Uma norma posta na realidade do ser por um realizante ato
de vontade é uma norma positiva”. Como enfatizado em outro momento, o caráter
legislativo, neste âmbito, é preservado justamente em função da norma ser o
resultado do querer do legislador que está capacitado a prescrevê-la de forma a
exigir uma determinada conduta, uma conduta alheia.
O dever-ser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e
- se a norma constitui uma prescrição, um mandamento, - é o sentido de
um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um
outro (ou outros) deve (devem) conduzir-se de determinado modo. (Kelsen,
1986, p. 03).
49
Neste ditame é possível fazermos uma comparação entre o chamado Direito
Divino e o Direito Positivo
16
. No primeiro caso, as leis da Natureza são postas pelo
querer divino, que diferentemente do querer humano tem suas normas como
resultado de atos de pensamento e ao mesmo tempo de atos de vontade (estes
coincidem em Deus). no segundo, como enfatizado antes, somente atos de
vontade são produtores de norma, aqui, atos de pensamento produzem somente
conhecimento. Esta comparação explicita o dualismo entre o plano do Ser e Dever-
ser em questões humanas.
Como conseqüência do ato de fixação da norma se obtém sua validade, que
é identificada com sua existência. Kelsen (1986, p. 04) diz: “‘Validade’ é a específica
existência da norma”. Uma norma existente, isto é, que é válida, ao ser cumprida ou
aplicada, tem garantido sua eficácia. O que não nos permite, porém, confundirmos
validade com eficácia, como bem enfatiza o jusfilósofo: “Do efetivo cumprimento da
norma ou do seu não cumprimento com a conseqüente aplicação disto deriva
sua eficácia.” (Kelsen, 1986, p. 05) Kelsen enfatiza que ambos os “momentos” são
distintos, mas que há , porém, uma relação de dependência entre ambos.
a respeito da caracterização das normas, diz-se que: ou são individuais ou
são gerais. Sua classificação tem estreita relação com seus destinatários, ou seja, a
conduta do seres humanos e se da seguinte maneira, segundo as palavras do
jusfilósofo:
Uma norma tem um caráter individual se uma conduta única é
individualmente obrigada; p. ex.: a decisão judicial de que o ladrão Schulze
deve ser posto na cadeia por um ano. Uma norma tem o caráter geral se
uma certa conduta universalmente é posta como devida, como, p. ex., a
norma de que todos os ladrões devem ser condenados à prisão (Kelsen,
1986, p. 10).
Neste sentido, levando-se em consideração que as normas sejam dirigidas de
um certo modo às pessoas, elas podem ser caracterizadas como gerais ou
individuais. O que interessa, em realidade, é o ser devido das normas e que tais
normas sempre estabelecem uma conduta definida. O jusfilósofo destaca que
mesmo uma norma dirigida a uma pessoa específica pode ter caráter geral, como
16
Ver texto de Ulisses Schmill: “Jurisprudencia y Teología em Hans Kelsen”(1999).
50
por exemplo: a ordem de uma mãe a sua filha para sempre obedecê-la, e ainda
pontua:
O que é devido numa norma ou ordenado num imperativo é uma
conduta definida. Esta pode ser uma conduta única, individualmente certa,
conduta de uma ou de várias pessoas individualmente; pode, por sua vez,
de antemão, ser um número indeterminado de ações ou omissões de uma
pessoa individualmente certa ou de uma determinada categoria de
pessoas. Esta é a decisiva distinção (Kelsen, 1986, p. 11).
Como também pode ser notado, o caráter da norma quanto a tal classificação
é destacado em função de sua forma (e não à forma da expressão da norma), ou
seja, se a norma estabelece uma conduta incondicionada ou condicionada,
classificando-se, assim, ou como categórica ou hipotética, respectivamente.
A distinção entre normas categóricas e hipotéticas significa a distinção
entre normas que estabelecem uma certa conduta incondicionalmente e as
que estabelecem, como devida, uma certa conduta apenas sob
determinadas condições. Esta distinção é aplicada às normas individuais,
assim como às gerais (Kelsen, 1986, p. 25).
Contudo, é importante sempre lembrar que o real destinatário da norma, ou
também chamado por Kelsen, objeto da norma é a própria conduta humana, não o
ser humano, mas sim o que a ação que a norma exige.
Kelsen ainda propõe uma ressalva quanto aos conceitos de norma e lei no
âmbito jurídico. Ele o faz com base nos seguintes argumentos:
A proposição com a qual a Ciência do Direito descreve essa ligação do
ilícito e conseqüência do ilícito, é por mim qualificada como proposição
jurídica para diferenciação da norma jurídica por ela descrita. Essa
proposição jurídica é a específica lei jurídica (Kelsen, 1986, p. 30).
Em outro momento ele ainda enfatiza seu caráter geral:
A norma jurídica que prescreve que sob determinadas condições, um
determinado ato de coação (pena, execução civil) deve ser levado a efeito,
na verdade é qualificada de ‘lei’, se tem caráter geral (...) (Kelsen, 1986, p.
368)
17
.
17
Trata-se de parte da nota 25 da Teoria Geral das Normas (Kelsen, 1986, p.368)
51
No entanto, a distinção da lei moral e jurídica provém do fato de que na
moralidade o princípio retributivo também presa pela recompensa de uma ação
conforme a devida, e não somente uma punição pela conduta contrária à prescrita.
no que se refere à expressão de uma norma, esta pode se dar através da
expressão lingüística e, também, através de gestos e outros símbolos. No que
concerne à expressão lingüística, que pode-se dar através de imperativos,
proposições de dever-ser e também de proposições enunciados, pede-se por uma
distinção entre: a norma propriamente dita e a proposição que enuncia a norma. O
jusfilósofo enfatiza que naquele caso temos uma prescrição, neste uma descrição:
(...) uma proposição de dever-ser tanto pode apresentar uma norma quanto
um enunciado sobre uma norma, enquanto um imperativo somente pode
constituir a expressão de uma norma, não porém o enunciado sobre uma
norma (...) (Kelsen 1986, p. 190).
Isto quer dizer que a expressão puramente prescritiva da norma é feita
através do imperativo, seja ele categórico, seja ele hipotético. a descrição da
norma cabe à proposição de dever-ser. Ambos (a proposição de dever-ser e o
imperativo) têm, por isso, distintas funções, expressar um saber e o outro expressar
um querer que busca persuadir um querer alheio.
A função do enunciado é a de fazer outrem, além do enunciante, saber
algo para enriquecer seus conhecimentos. A função da norma é a de fazer
um outro querer algo, de determinar sua vontade, e precisamente fixar, de
modo que sua conduta exterior causada por seu querer corresponda à
norma (Kelsen, 1986, p. 208).
Contudo se tem claro que a proposição de dever-ser pode expressar tanto a
norma propriamente quanto o enunciado da norma, compreendidos como
“significações diferentes de proposições”. Ela, porém, enquanto proposição é um
enunciado (é o sentido de um ato de pensamento), ou seja, pertence ao plano do ser
e não vale como prescrição da norma.
2.2.3 Sobre Direito e Moral
Na discussão sobre Direito e Moral, Kelsen enfatiza a distinção de tais
âmbitos com suas correspondentes ciências, a ciência do Direito e a Ética. Estas
52
duas ciências, diferentemente do caráter prescritivo daqueles, têm a função de
descrever e conhecer tais instâncias. O jusfilósofo destaca também, que o objeto
central, a norma, é expressa de modo diferente, ou seja, no Direito e na Moral
aparecem com um caráter prescritivo, como um resultado de ato de vontade e nas
suas respectivas ciências são simplesmente descritas através de proposições, são o
sentido de atos de pensamentos, são enunciados, e não normas.
Cabe-nos lembrar, antes de distinguir o Direito e a Moral, que a função de
ambos coincide, qual seja, regular a conduta humana que tanto pode se dar externa
quanto internamente. O dualismo externo e interno revela que não é somente a ação
propriamente dita que é regulada, mas as motivações da ação. Neste sentido, a
conduta social assim o é designada porque não é simplesmente uma conduta
individual independente de outras condutas individuais, ela é social porque
apresenta um caráter coletivo no sentido de tratar de interesses que um grupo tem,
os interesses da comunidade que possam vir a ser violados.
Embora algumas diferenças, ambas as instâncias Direito e Moral são,
para Kelsen, positivadas; elas não diferem quanto à produção nem quanto à
aplicação de suas normas. A positividade é uma das principais características das
normas sociais, e é definida pelo autor com as seguintes palavras:
Somente uma norma posta pela via do estabelecimento consciente ou pela
via do Costume pode valer como norma positiva da Moral ou do Direito.
Neste através de atos humanos ser-lei, e na anteriormente assinalada
eficácia, como condição de validade, está a positividade da Moral e do
Direito (Kelsen 1986, p. 179).
Somente são normas positivas aquelas que resultam de atos reais de vontade
humanos, são o seu sentido, ou, as que resultam do Costume adotado pela
sociedade. Daí alguns pontos sobre a estrita relação entre ambas as áreas.
Destarte, Kelsen enfatiza que as normas positivadas são sempre normas
hipotéticas, se analisadas sob o prisma das circunstâncias que as envolvem. Elas
podem, porém, ter caráter categórico, mas somente quanto à forma, sendo desse
modo, tanto as normas jurídicas quanto as morais. Neste ditame, à divisão das
normas em gerais e individuais, acrescenta-se outra classificação: em normas
primárias e normas secundárias, estabelecendo uma pequena diferença entre o
Direito e a Moral.
53
As normas primárias são as normas que impõem uma certa conduta, as
secundárias são aquelas que em caso da conduta contrária à prescrita por outra(s)
norma(s) prescrevem uma sanção
18
. A diferença consiste que no Direito a norma
secundária existe como implicada em uma norma primária, o que não ocorre no
caso da Moral. Na moralidade a sanção não tem um caráter tão importante como no
Direito, não é condição de eficácia para uma norma primária. É o dever moral,
imposto pela norma primária, que resguarda a conduta e não a sanção como no
caso do Direito. A diferença consiste no caráter coercitivo que a Moral carece.
Desta forma, a sanção caracteriza a principal distinção entre Direito e Moral,
ela funciona como uma ação que busca salvaguardar outra que se deu
contrariamente ao prescrito pela norma. No âmbito jurídico ela se caracteriza por se
relacionar estritamente a uma conduta contrária à norma, utilizando-se para isso, se
for necessário, até da força física. No caso da Moral a sanção não possui o caráter
coercitivo tal como no Direito, ela simplesmente é manifestada pela desaprovação,
censura, desprezo. Além disso, ela também manifesta uma reação ao que é
conforme a norma prescrita, ou seja, as ações cumpridas são merecedoras, aqui, de
elogios, sinal de respeito, etc
19
.
É possível entendermos que a sanção funciona como uma aplicação do
princípio da retribuição, ou seja, que em casos de conduta contrária à norma deve
ser aplicado um mal e em casos de conduta conforme a norma deve ser aplicado um
bem. Tal princípio também é identificado com o princípio da Justiça e o de Talião.
Como Kelsen bem aduz essa diferença é notada do seguinte modo:
Uma distinção entre Direito e Moral não pode encontrar-se naquilo que as
duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas
prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. O Direito
pode ser distinguido essencialmente da Moral quando – como
mostramos se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma
ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana
ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado,
18
Tal classificação, em um primeiro momento (na Teoria Pura do Direito), foi dada por Kelsen de
modo inverso, ou seja, o jusfilósofo atribuiu o caráter primário à norma secundária e vice-versa. Tal
mudança foi posteriormente retificada na Teoria Geral das Normas. Para melhor esclarecimento
sobre tal distinção ver Evanna Soares: “A norma jurídica em Kelsen. Concepção de sanção na norma
primária e na norma secundária”.
19
Destacamos que no Direito, em alguns casos especiais, também é possível encontrarmos uma
aplicação do princípio da retribuição. Por exemplo: na condecoração de um militar por serviços
bravamente prestados à nação. Porém, não ocorre com tanta freqüência como na Moral, e não
necessariamente é resultado de uma sanção.
54
enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções
desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da
conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às
normas , nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego
da força física (Kelsen, 2003, p. 71).
Além de tais distinções, cabe destacar também a seguinte: sanções ao
descumprimento das normas jurídicas são aplicadas por um órgão, ou seja, elas são
institucionalizadas, ou aplicadas por pessoa autorizada, o que não ocorre na
moralidade. Nesta, os indivíduos se sancionam de forma espontânea, na maioria
dos casos.
Dito isso, pode-se entender, que o caráter sancionador das normas sociais
(como será mais bem visto na parte destinada à crítica kelseniana ao conceito de
autonomia em Kant), é uma maneira de salvaguardar uma certa autonomia neste
âmbito que, diferentemente da proposta por Kant e, que inclusive é criticada por
Kelsen, resguarda o caráter autônomo quanto à aplicação das normas, que,
quanto à produção, Kelsen especifica as normas sociais como heterônomas. Aqui,
ao contrário da proposta de Kant, até mesmo a moralidade apresenta um caráter
heterônomo.
Após uma análise dos principais elementos que distinguem o Direito e a
Moral, na ótica kelseniana, é importante se pensar sobre uma possível
interdependência entre ambos e se uma justificação do Direito pela Moral, visto
que esta agrega valores como o bem, o mal, o justo, o injusto, valores que
circunstanciam as relações norteadas pelas normas sociais.
Outras concepções defendem a fundamentação do primeiro pela segunda,
mas a resposta kelseniana a tal questão busca mostrar que não se trata de
questionar uma possível dependência dos valores jurídicos aos morais, ou até
mesmo dos conteúdos jurídicos; trata-se, sim, de questionar sobre uma essência
jurídica advinda da Moral no que concerne à sua forma, qual seja, a de resguardar o
caráter de dever-ser, de ser norma social que prescreve condutas devidas. É desta
maneira, defende Kelsen, e, simplesmente assim, que se encontra o que de
comum entre os sistemas morais e agora, também, o que de herança do Direito
em relação à moralidade, como ele afirma:
55
Sob esses pressupostos, a afirmação de que o Direito é, por essência,
Moral, não significa que ele tenha um determinado conteúdo, mas que ele
é norma e uma norma social que estabelece, com o caráter de devida
(como devendo-ser), uma determinada conduta humana (Kelsen, 2003, p.
74).
Na Teoria Pura do Direito, Kelsen rejeita a possibilidade de fundamentar o
Direito em um princípio comum ao da Moral, o que é defendido por Kant. Conforme
a ótica kelseniana é importante enfatizar que existem várias morais, um pressuposto
que para ele justifica sua ineficácia quanto fundamentadora do Direito. Segundo o
jusfilósofo cabe destacar como influência da Moral no Direito, ou como semelhança
no que se refere à fundamentação é a mesma forma do princípio fundamentador
(igual ao da moral kantiana) de ambas as instâncias: um princípio transcendental
que valida as normas dos referidos ordenamentos.
Em realidade, Kelsen defende a relatividade da Moral (tanto espaço, quanto
temporalmente), ele mostra que o Direito se valida independentemente de uma
Moral, que existem várias morais e seus valores são variados e, por vezes
discordantes, porém é possível tomar como critério valores morais desde que
tenhamos claro que estes são relativos. Para o jusfilósofo somente seria possível
admitirmos uma dependência do Direito para com a Moral se fosse possível
admitirmos uma única Moral, o que é por ele totalmente negado. A respeito disso,
Kelsen destaca:
Isto não significa, porém, que não haja qualquer medida. Todo e qualquer
sistema moral pode servir de medida ou critério para tal efeito. Devemos ter
presente, porém, quando apreciamos “moralmente” uma ordem jurídica
positiva, quando a valoramos como boa ou má, justa ou injusta, que o
critério é um critério relativo, que não fica excluída uma diferente valoração
com base num outro sistema de moral , que, quando uma ordem jurídica é
considerada injusta se apreciada com base no critério fornecido por um
sistema moral, ela pode ser havida como justa se julgada pela medida ou
critério fornecido por um outro sistema moral. (Kelsen, 1998, p. 76)
Contudo, fica claro que somente é possível pensarmos numa justificação do
Direito pela Moral se esta é uma Moral específica, ou seja uma única Moral dentre
as várias existentes. Isso não quer dizer, no entanto, que o Direito para ter seu valor
específico tenha necessidade de uma legitimação advinda da Moral ou da Ética.
Além do mais, ele não depende também que a Ciência jurídica o julgue, visto que a
56
ela somente cabe descrever e conhecer. O Direito justifica-se pelo seu próprio
caráter normativo, por ser constituído por normas positivas.
2.3 Críticas de Kelsen a Kant
No que se refere à parte crítica da análise kelseniana acerca da filosofia
prática de Kant, é importante ressaltar que o interesse do jusfilósofo volta-se mais
especificamente para as questões de Filosofia do Direito e, secundariamente, à
medida que afetam tais questões, interessa-se pelas questões da Filosofia da Moral
stricto sensu. Apesar de tratar de questões pontuais, tais críticas acabam por
comprometer o sistema Ético de Kant, como um todo.
Dentre os principais conceitos, que aqui são examinados, e mais adiante
detalhadamente analisados, estão os conceitos de imperativo hipotético, de
imperativo categórico, de razão prática, de Moral e de Direito (implícitos nos demais
questionamentos), e de autonomia. Kelsen questiona os imperativos hipotéticos
quanto ao âmbito ao qual pertencem. Segundo Kelsen, a proposta de Kant explicita
um imperativo que não pode pertencer ao âmbito do Dever-ser. Por outro lado,
Kelsen rejeita a possibilidade de um imperativo incondicionado, ou seja, a
possibilidade de um imperativo categórico. De acordo com Kelsen, tal possibilidade
(a incondicionalidade) cai por terra, na medida em que não se podem excluir as
circunstâncias das situações que condicionam o cumprimento de tal imperativo.
Quanto à razão prática, os questionamentos voltam-se, principalmente, ao âmbito
que esta pertence, se ao Dever-ser como Kant propõe, ou ao Ser, tal como
defendida por Kelsen e, conseqüentemente, ela é questionada quanto ao seu
caráter legislador. Sobre Moral e Direito, também é questionado o âmbito aos quais
pertencem. E finalmente quanto ao conceito de autonomia, a rejeição kelseniana se
volta ao seu caráter autolegislador.
Os questionamentos lançados pelo jusfilósofo, apesar de apresentarem uma
especificidade, revelam total nexo com sua concepção de Filosofia do Direito através
de seus preceitos mais fundamentais.
57
Para tanto, é mister iniciar tal análise recorrendo à problemática kelseniana do
dualismo entre Ser e Dever-ser, que serve como ponto de apoio para suas críticas,
posto que é característica fundamental de sua concepção e tem, dentre suas
funções, distinguir o locus próprio do Direito e da Moral como tratado na segunda
seção deste capítulo.
Grosso modo, o plano do Ser é caracterizado através dos acontecimentos ou
fenômenos da Natureza. Em tal plano, os eventos são regidos pelas leis da
causalidade e pelo determinismo. Neste âmbito existem meios específicos para se
chegar aos fins propostos, por isso relações de causa e efeito e de meio e fim.
Utiliza-se, aqui, o termo “ter-de” para referir-se a tais relações que se dão em séries
infinitas ou de sucessividade por uma necessidade natural. Kelsen exemplifica:
Na proposição, na qual a Ciência Natural descreve o nexo que existe entre
calor e dilatação de um corpo metálico: se um corpo metálico é aquecido,
ele se dilatará’, a ligação de condição e conseqüência é a de causa e
efeito; representa uma ligação causal; a necessidade de nexo é um ter de
(Kelsen, 1986, p. 29).
Em contrapartida, no plano do Dever-ser, a necessidade existente é
meramente normativa, as instâncias da Moral e do Direito (que pertencem a tal
plano) são regidas por leis normativas que justamente caracterizam a especificidade
de cada uma delas. Aqui é utilizada a expressão “dever-ser” para expressar a
relação de imputabilidade que, diferentemente da relação de causalidade, é
caracterizada por séries finitas. Nas palavras do autor:
Se a Ética descreve uma norma geral na proposição: ‘se alguém está na
miséria deve-se socorrê-lo’, ou a Ciência do Direito descreve uma norma
jurídica geral na proposição: se alguém recebeu um empréstimo deve
pagá-lo’, então a ligação de condição e conseqüência não tem abertamente
o caráter de uma necessidade causal. Ela se expressa por um ‘dever-ser’,
e não por um ‘ter de’. É uma necessidade normativa e não meramente
causal (Kelsen, 1986, p. 29).
2.3.1 Crítica à noção de imperativo hipotético
Uma falha de Kant reside, para Kelsen, na confusão quanto ao âmbito ao
qual pertencem os imperativos hipotéticos, que segundo a ótica kelseniana pertence
ao âmbito do Ser, tal como é proposto por Kant, dadas as relações de meio e fim e
58
de causa-efeito que apresentam. Para Kant (2002, p. 50), “o imperativo hipotético
diz, pois apenas que a ação é boa em vista de qualquer intenção possível ou real.
No primeiro caso é um princípio problemático, no segundo um princípio assertórico-
prático”. Kant remete às regras do Direito os imperativos hipotéticos do primeiro
caso, os problemáticos, que também são chamados por ele de imperativos de
habilidade. Eles manifestam uma relação entre um fundamento e um conseqüente
ou de meio e fim através de um se....então... e, o que é expresso é uma relação de
condicionalidade, proposta pelo filósofo como uma das principais características das
normas do plano jurídico.
Ao propor que os imperativos hipotéticos mantêm uma relação de meio e fim,
Kant é questionado por Kelsen na medida que as normas jurídicas, para o jusfilósofo
somente podem, apresentar relações de imputabilidade. Com outras palavras, a
crítica é lançada posto que os imperativos com os quais as regras jurídicas são
expressas intentam uma relação causal e não normativa, o que contraria a proposta
kelseniana para o Direito e a Moral. Neste ditame, as normas regentes do agir
humano, propostas pelo filósofo, são para Kelsen regras do plano do Ser, que
expressam também uma necessidade causal (teleológica) e são advindas de atos de
pensamentos.
É importante se fazer uma ressalva sobre a natureza da razão prática (que
adiante será analisada) dado que as regras jurídicas (e também morais), para Kant,
advêm desta e para Kelsen a razão está relacionada exclusivamente com o plano
do ser, que somente pode tratar do que cabe ao conhecimento. Supõe-se, então,
que: ou a razão prática é uma “contradictio in adjecto”, ou a razão prática é a razão,
pertencente ao plano do ser, aplicada ao que pertence ao plano do dever-ser, por
exemplo, quando se diz que uma certa norma pertence a um dado ordenamento,
isto é o resultado de um ato de pensamento, mas o assunto diz respeito ao sentido
de um ato de vontade.
Seguem-se, então, os argumentos contra o imperativo hipotético kantiano: no
que trata do plano do Ser, diz Kelsen (1986, p. 14): “A relação entre meio-fim é a
relação entre uma causa e seu efeito, uma relação causal”. De outro lado, sobre o
Dever-ser: “O dever-ser não é relação entre dois elementos: nem uma relação entre
uma norma e a conduta que lhe corresponde, nem uma relação entre um ato de
59
fixação da norma e a conduta correspondente à norma. O dever-ser é a norma, quer
dizer, é o sentido do ato” (Kelsen, 1986, p. 15). Com tais palavras, Kelsen enfatiza
que no âmbito do ser somente relações causais posto que leis da natureza
possuem a característica de estabelecer um vínculo entre as finalidades e os meios,
é isso que é proposto pelo imperativo hipotético kantiano, segundo o jusfilósofo. No
plano do Dever-ser, somente há espaço para as normas propriamente ditas.
Se Kant propõe que tais imperativos expressam as regras jurídicas e estas,
para Kelsen, conjuntamente com as regras morais expressam as regras do Dever-
ser, o imperativo hipotético kantiano tal como é proposto, somente pode pertencer
ao plano do Ser. Além do mais, através do segundo argumento (a segunda citação
acima) Kelsen deixa claro que no Dever-ser não existem relações, o Dever-ser,
como disse o jusfilósofo, é a própria norma, e esta não pode expressar-se tal
como Kant propõe.
Outro questionamento de Kelsen se em função da seguinte afirmação de
Kant:
Quem quer o fim, quer também (se a razão tem influência decisiva sobre as
ações, o meio indispensavelmente necessário para o alcançar, que esteja
no seu poder. Esta proposição, é pelo que respeita ao querer, analítica;
pois no querer de um objecto como actividade minha está pensada a
minha causalidade como causalidade de uma força actuante, quer quer
dizer o uso dos meios, e o imperativo extrai o conceito das acções
necessárias para este fim do conceito do querer deste fim...(Kant, 2002, p.
54).
A partir de tal afirmativa fica claro que, se quero uma finalidade, tenho de
querer também os meios necessários para se chegar a tal propósito. Este querer é,
para Kant, um querer racional das ações que são necessárias para se chegar a um
fim, na medida que o sujeito as têm como devidas e em seu poder quando do
querer da finalidade.
Kelsen propõe que, aqui, Kant uma necessidade causal e uma normativa
através do imperativo hipotético. Para aceitar tais preceitos é suposto, então, que
Kant na relação meio-fim um dever-ser lógico, caso contrário imediatamente o
imperativo hipotético é recusado em função do dualismo. Mesmo tal suposição é
recusada por Kelsen dado que a relação existente explicitada por um dever-ser
60
lógico pertence ao plano do Ser, que ao se falar em Lógica estamos transitando
no plano do conhecimento, o que o próprio Kant admite.
Kelsen (1986, p. 14) ainda argumenta: “Que uma determinada conduta é um
meio próprio para realizar um determinado fim, de nenhum modo significa que esta
conduta é devida, quer dizer, prescrita por uma norma válida da Moral ou do Direito”.
Pode-se entender que mais de um meio para certos fins, e que não como
saber se o meio é devido, ou, até mesmo, poder-se-ia, diante do querer do fim,
dizer, quando muito, que um dos meios é devido, mas não que este ou aquele meio
é devido. A afirmativa “Quem quer o fim tem de querer o meio” é por isso
questionada por Kelsen e ele ainda argumenta que mesmo que o fim seja
juridicamente ou moralmente bom, não quer dizer que o meio também o será. Ele
exemplifica: “Livrar a cidade dos tiranos é moralmente bom, mas o assassínio dos
tiranos, - é como o homicídio - moralmente e juridicamente mau”. (Kelsen, 1986, p.
17).
O argumento contra Kant, acima referido, cai por terra se somos caridosos,
isto é, se aceitarmos que o que o filósofo quis dizer com a afirmação “quem quer o
fim, quer também o meio necessário para tal fim” é que um meio é devido, não
importa qual entre os vários disponíveis para se chegar a um dado fim. Por isso,
um segundo argumento contra Kelsen do seguinte modo: mesmo que nem todo
meio para um fim bom é, por sua vez, bom, isso não quer dizer que não exista pelo
menos um meio bom. Kelsen precisa provar que casos em que todos os meios
para um fim moral ou juridicamente bom são, moral ou juridicamente maus, se quer
refutar totalmente o imperativo hipotético quanto a tal aspecto.
Além disso, uma opção a tais argumentos pode ser dada a partir da seguinte
afirmação de Kant (2002, p. 51): “Se a finalidade é razoável e boa não importa aqui
saber, mas tão somente o que se tem de fazer para alcançá-la”. O que importa não
é o valor da ação, mas sim que uma ação, enquanto meio, que garantirá o fim
buscado. Em outras palavras, Kant o pode desqualificar alegando simplesmente que
o caráter (ser bom ou mau) do fim não está em jogo, mas somente que meios a
serem utilizados para se chegar ao fim proposto.
Contudo, acreditamos, que uma tentativa de salvaguardar os argumentos
kantianos criticados por Kelsen a partir da sua estrita observância da divisão da
61
realidade em ordem do Ser e Dever-ser, pode se dar levando em consideração
algumas distinções e conceituações que são importantes no sistema prático de Kant.
Inicialmente, ao propor que a afirmação “Quem quer um fim, tem de querer o
meio” expressa uma relação de causalidade, e por isso pertence ao plano do Ser e,
também, que a idéia de que do fim querido não se assegura um meio devido, a
possibilidade dos imperativos hipotéticos de habilidade pertencerem ao âmbito
jurídico é negada por Kelsen, posto que, sob nossos olhos não considera o conceito
de querer tal como proposto por Kant, e que é tão importante neste contexto.
O querer, para Kant, é racional, na medida em que o ser humano é livre e
dotado de vontade, assim capaz de atingir o que se propõe. Somente é possível
querer algo que esteja a nosso alcance, situações que não dependem de nossa
vontade, como, por exemplo, desejar que chova amanhã, não se inserem neste
ditame. Sendo assim, a possibilidade de efetuação de um querer somente é possível
no âmbito da prática, ou seja, das ações humanas, as quais dependem de um
querer pré-estabelecido.
É neste âmbito, o do querer racional, que pertence o dever-ser, porque aqui
sim são possíveis ações fundamentadas em princípios racionais e, portanto, ações
devidas. Mesmo que Kant afirme que as normas hipotéticas apresentem
características formais do plano do Ser, para o filósofo um Dever-ser implícito em
função do querer racional do indivíduo, que, por mais que venha a agir impulsionado
por diferentes móbeis, tem a capacidade de guiar-se racionalmente e, portanto, agir
por dever. A forma das normas jurídicas de Kant (que se apresentam de maneira
condicionada) realmente possui um caráter de meio e fim, tal como proposto por
Kelsen, e por isso pertenceriam ao plano do ser, porém, os princípios últimos que
fundamentam tal instância, a do Direito, também são racionais e salvaguardam o
Dever-ser.
A proposta do Direito Racional de Kant parece corroborar a idéia acima
proposta, sendo definido da seguinte maneira: “O direito é, portanto, a soma das
condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de
acordo com uma lei universal de liberdade”.(Kant, 2003, p. 76) Se escolha livre é
porque o querer dos indivíduos é racional, o dever-ser é assegurado, pois um
padrão que serve para todo indivíduo. A proposta do Direito Racional assegura, por
62
isso, a boa convivência entre os homens, capazes de usar seus arbítrios sem que
isso ultrapasse o uso dos arbítrios alheios.
Outro conceito que nos parece ser importante é o de causalidade,
caracterizado distintamente em cada autor. Kelsen remete a causalidade
simplesmente ao modo como operam as leis da Natureza, com características
puramente determinísticas. A diferença consiste que para Kant a causalidade
também existe no que se refere ao campo da ação humana. O filósofo faz a
distinção entre causalidade por necessidade (tal como Kelsen) e causalidade por
liberdade (a qual se refere às ações dos seres humanos e racionais).
Uma vez que a causalidade, no âmbito da ação humana, se caracteriza pela
determinação através da liberdade e por isso possui uma espontaneidade à idéia do
dever (advinda da lei), se tratando de seres enquanto fenômenos, a racionalidade,
aqui presente, assegura o caráter numênico e, portanto , de dever-ser, também
presente neste tipo de imperativo.
Também nos parece importante fazer uma ressalva quanto ao conceito de
razão que é fundamental no edifício da filosofia kantiana, porque legitima a
possibilidade da efetivação do que é devido. Como em outro momento lembrado, a
razão, para Kant, é una, porém possui dois modos de usos, no campo teórico
enquanto razão pura teórica, e no campo prático, enquanto razão pura prática. A
respeito disso o filósofo diz o sguinte:
(...) para que a Crítica de uma razão pura prática possa ser acabada, que
se possa demonstrar simultaneamente a sua unidade com a razão
especulativa num princípio comum; pois no fim de contas trata-se sempre
de uma e mesma razão, que na aplicação se deve diferençar (Kant
2002, p. 18).
E mais adiante fala sobre os diferentes usos:
O uso especulativo da razão, com respeito à natureza, conduz à absoluta
necessidade de qualquer causa suprema do mundo; o uso prático da
razão, com respeito à liberdade, conduz também à uma necessidade
absoluta, mas somente das leis das acções de um ser racional como tal
(Kant, 2002, p. 116).
63
Difere da razão kelseniana porque para este não pode haver distinções,
mesmo quanto ao seu uso, porque a razão é aquela que se relaciona ao plano do
conhecimento, justificativa para sua rejeição da razão prática kantiana.
Ainda, com relação ao imperativo hipotético, Kelsen propõe que uma
confusão do plano do Ser e Dever-ser, a partir de uma equivalência proposta por
Kant aos termos mandamento e proposição de dever-ser. Estes explicitam,
respectivamente normas do plano do dever-ser e, os enunciados de normas. A
crítica do jusfilósofo é dada com o seguinte argumento:
É verdade que Kant distingue entre o mandamento e o ‘imperativo’, como
entre a fórmula, i.e., a expressão lingüística de mandamento. Mas na frase:
‘todos os imperativos manifestam-se através de um ‘dever-ser’, ele
emprega a palavra ‘imperativo’ como equivalente de ‘mandamento’, e com
isto admite que um mandamento possa ser manifestado não somente na
forma lingüística de um imperativo como também na forma lingüística de
uma proposição de dever-ser (Kelsen, 1986, p. 18).
a definição dada por Kant a tais expressões se da seguinte maneira: “A
representação de um princípio objetivo, enquanto obrigante para uma vontade,
chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se
Imperativo” (Kant, 2002, p. 48) E segue, na mesma passagem: “Todos os
imperativos se exprimem pelo verbo dever-ser (sollen), e mostram assim a relação
de uma lei objetiva da razão para uma vontade que segundo sua constituição
subjetiva não é por ela necessariamente determinada (uma obrigação)”. Isso quer
dizer que o dever expresso através do imperativo serve como uma maneira de
comandar uma ação humana, ou melhor, constranger o ser humano a agir de forma
devida, que possui, nas palavras de Kant, “constituição subjetiva”, e por isso
entrega-se às inclinações. Parece-nos que o termo dever é utilizado por Kant, não
para expressar uma proposição de dever-ser, que é utilizada com o sentido
descritivo por Kelsen (embora também seja utilizado com sentido prescritivo,
dependendo do contexto), mas para expressar uma obrigação para uma vontade
subjetiva, o que parece não ser enfatizado por Kelsen, ou até mesmo percebido por
ele. Além disso, as distinções kelsenianas são visivelmente voltadas à sua
preocupação em preservar sua distinção entre o plano do Ser e Dever-ser.
Ainda é importante levar em consideração que a definição dada por Kelsen ao
termo proposição de dever-ser diz: “Uma proposição de dever-ser, que não é
64
nenhuma norma, mas o enunciado sobre a validade de uma norma, é o sentido de
um ato de pensamento” (Kelsen, 1986, p. 193). É em função de tal afirmativa que
Kelsen entende haver uma confusão no uso que Kant propõe aos termos, que
para Kelsen é somente a norma o próprio dever-ser e uma proposição pertence ao
âmbito do Ser.
Contudo, é importante considerarmos que diferentes proposições de dever-
ser, ou, uma proposição de dever-ser em diferentes contextos, além de expressarem
um mandamento, também podem expressar o enunciado sobre uma norma. A
respeito disso Kelsen (1986, p.190) aduz assim: “(...) uma proposição de dever-ser
tanto pode apresentar uma norma quanto um enunciado sobre uma norma,
enquanto um imperativo somente pode constituir a expressão de uma norma, não,
porém, o enunciado sobre uma norma;(...)”.
2.3.2 Crítica à noção de imperativo categórico
Com relação ao imperativo categórico kantiano, a principal crítica que Kelsen
faz remete-se ao caráter incondicionado, tal como é proposto por Kant.
Relembrando, para o filósofo alemão, o imperativo categórico sustenta-se na
universalidade (expressão de sua pura forma) e na incondicionalidade, ele é a
expressão de um dever-ser que simplesmente prescreve uma conduta sem qualquer
outra intenção. O filósofo diz: “O imperativo categórico seria aquele que nos
representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma, sem
relação com qualquer outra finalidade” (Kant, 2002, p. 50). Isso quer dizer que a
regra moral kantiana prescreve simplesmente que uma ação deve ser efetuada de
modo que não haja condições e nem possibilidades distintas de efetuação, que
apresenta a pura forma e necessidade do que está sendo prescrito e não contém
finalidades diferentes do que o puro cumprimento do dever. Ele argumenta com
outras palavras: “(...) um imperativo que, sem se basear como condição em qualquer
outra intenção a atingir por um certo comportamento, ordena imediatamente esse
comportamento” (Kant, 2002, p. 52). A lei moral kantiana é incondicionada porque,
além de não deixar possibilidades distintas de cumprimento para o que está sendo
prescrito, o é pela pura exigência do dever-ser, nela um princípio uno como
65
fundamento que vale para todos os seres humanos racionais. Kant (2002, p. 53) diz:
“Pois só a lei traz consigo o conceito de uma necessidade incondicionada, objetiva e
conseqüentemente de validade geral (...)”.
A contrapartida kelseniana se dá justamente pela defesa do caráter
condicionado do imperativo da moralidade de Kant. Para Kelsen:
A condição não tem de ser que aquele a quem é dirigido o imperativo da
Moral, queira algo determinado; o imperativo não tem de dizer: ‘se tu
queres que... faze isto e aquilo’. O imperativo também pode ser
condicionado por alguma coisa que não foi desejada pelo destinatário (...)
(Kelsen, 1986, p. 20-21).
Isso significa que a incondicionalidade, tal como Kant a propõe, não existe
justamente porque as situações são envoltas em circunstâncias de forma que
sempre condicionadas ao que não está restrito ao mero querer humano.
É importante entendermos que não é uma distinção, entre ambos os autores,
quanto ao que seja um imperativo categórico, mas quanto à aplicação. É certo que
ambos concordam que um imperativo categórico é a expressão lingüística de um
mandamento, porém para Kelsen a dimensão que tal imperativo pode alcançar se
estende, além do âmbito da Moral, também para o âmbito do Direito. Porém, é
necessário ter claro que a proposta de Kelsen aborda mais especificamente o
imperativo categórico quanto à sua forma de expressão. O jusfilósofo classifica as
regras do dever-ser em gerais e individuais, como citado, e tal classificação se
conforme os sujeitos a quem se aplicam, porém, quanto à sua forma, tal como em
Kant, são ou categóricas ou hipotéticas. Kelsen diz:
A distinção entre normas categóricas e hipotéticas significa a distinção
entre normas que estabelecem uma certa conduta incondicionalmente e as
que estabelecem, como devida, uma certa conduta apenas sob
determinadas condições. Esta distinção é aplicada às normas individuais,
assim como às gerais (Kelsen, 1986, p. 25).
Além desta peculiar característica, para o jusfilósofo as normas positivas
possuem sua validade sempre condicionada. Isso significa que uma norma válida,
ou seja, que existe, e exige o que prescreve, condiciona-se pelas circunstâncias que
envolvem a possibilidade de seu cumprimento ou não. Ele diz: “A condição sob a
qual toda norma vale a individual como a geral é a síntese de todas as
66
circunstâncias sob as quais a norma pode ser obedecida ou violada” (Kelsen, 1986,
p. 26).
Além da conduta e da validade, o jusfilósofo enfatiza que o dever-ser da
norma também é condicionado em função destas condições que propiciam
possibilidades para o cumprimento ou não da norma, porém parece que não deixa
claro de que maneira o dever-ser é condicionado.
Sugerimos, neste aspecto, que ambos, ao falar sobre condicionalidade e
incondicionalidade de uma norma, têm em vista âmbitos ou planos distintos. Kelsen
trata mais especificamente do plano da aplicação das normas ou, com outras
palavras, da efetivação da conduta ao falar de circunstâncias, uma preocupação
justamente com o cumprimento do que está sendo prescrito. Em contrapartida e,
antes disso, Kant busca a fundamentação da norma (ele trata do plano da fixação
dos princípios fundamentais) e também do Dever-ser que é fundamento de sua
especificidade. Como antes já proposto, a incondicionalidade do imperativo kantiano,
além de guardar uma possibilidade para o cumprimento, preza mais especificamente
pelo caráter apriórico do imperativo da moral.
O imperativo categórico também é questionado por Kelsen quanto ao seu
âmbito de aplicação, ou melhor, a quem é aplicável o dever-ser daí advindo. Kelsen
diz:
Para o homem, como ser inteligível não nenhum dever-ser, não valem,
portanto, nenhuns imperativos, porque o querer com o dever-ser
coincidem. Mas um tal ente inteligível, cujo querer para o ser empírico é um
dever-ser, somente pode ser Deus. (Kelsen, 1986, p. 102).
De outro lado, Kant (2002, p. 49) diz: “(...) os imperativos não valem para a
vontade divina nem, em geral para uma vontade santa, o dever (Sollen) não está
aqui no seu lugar, porque o querer coincide por si necessariamente com a lei”.
Mais uma vez Kelsen (1986, p. 102) enfatiza que: “a vontade divina é uma vontade
legislativa, não está o dever-ser, aqui, no lugar impróprio, senão precisamente no
lugar certo”.
Quando Kant defende que o dever-ser não cabe ao plano divino e que não é
que são aplicados os imperativos, preserva o caráter inteligível, mas também
sensível que o ser humano racional possui. Para o filósofo da moralidade o
67
imperativo categórico é necessário justamente porque o homem, ao se “render” à
sensibilidade ou às inclinações da empiria, oculta sua capacidade racional e,
portanto, de impor-se a si mesmo a lei. A moralidade existe justamente como uma
necessidade de se fazer valer o dever-ser que, por vezes, carece aos homens.
uma vontade sagrada, ou santa, ou até mesmo a vontade divina, não possui
conflitos com as inclinações, ou, na terminologia kantiana, com móbeis externos,
que possam vir a deturpar seu querer. Eles não necessitam, por isso, de um
imperativo que prescreva a ação devida, mas sim, dele necessitam os homens que
estão imersos no mundo empírico e, portanto, a mercê do erro advindo da
sensibilidade. A respeito disso Kant diz:
Mas porque o mundo inteligível contém o fundamento do mundo sensível, e
portanto também das suas leis, sendo assim, com respeito à minha
vontade (que pertence totalmente ao mundo inteligível), imediatamente
legislador e devendo também ser pensado como tal, resulta daqui que,
posto por outro lado me conheça como ser pertencente ao mundo sensível,
terei, como inteligência, de reconhecer-me submetido à lei do mundo
inteligível, isto é, à razão, que na idéia de liberdade contém a lei desse
mundo, e portanto a autonomia da vontade; por conseguinte terei de
considerar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim e as
acções conformes a este princípio como deveres (Kant, 2002, p. 104).
A idéia do dever que advém da lei é expressa, então, pelo imperativo
categórico, que se faz necessário justamente porque, como dito antes, a capacidade
racional humana e, por conseguinte, a capacidade autolegisladora, é deturpada
pelos atrativos do mundo sensível. É neste liame entre mundo inteligível e mundo
sensível, aos quais o homem pertence, ao mesmo tempo, que o imperativo
categórico se faz necessário.
Entendemos que a crítica que Kelsen lança, neste momento, é porque leva
em consideração somente à capacidade legislativa e porque o dever-ser
simplesmente no ato prescritivo; em Kant o caráter de ser destinatário e, ao
mesmo tempo, legislador, também é observado.
2.3.3 Crítica à noção de autonomia moral
No que se refere a problematização de Kelsen acerca da noção kantiana de
autonomia moral tem-se como fundamento basicamente duas teses: 1) toda norma
68
positiva pressupõe ao menos duas pessoas distintas, uma que a fixa e a outra que é
o seu destinatário, e, também, 2) toda norma positiva, seja legal, seja moral é
sancionadora. Kelsen não encontra tais teses na proposta de Kant.
Consideremos inicialmente a contrapartida kantiana à primeira tese de
Kelsen. Kant concebe a autonomia moral do indivíduo do seguinte modo: em poucas
palavras, o ser humano enquanto ser racional é livre para agir segundo leis que ele
mesmo se impõe, sendo desse modo, o seu próprio legislador. Neste sentido, Kant
postula a autonomia da vontade como o princípio supremo da moralidade.
Ele é efectivamente o sujeito da lei moral que é santa, em virtude da
autonomia da sua liberdade. Justamente por causa desta, toda a vontade,
mesmo a vontade própria de cada pessoa e dirigida para si própria, está
restringida à condição de um acordo com a autonomia do ser racional, isto é,
de não a submeter a objetivo algum que não seja possível segundo uma lei
que possa brotar da vontade do sujeito passivo; (Kant, 1994, p. 103).
A autonomia moral é resultado de um processo que envolve um único
indivíduo, que, ao mesmo tempo legisla e é o destinatário da norma. Neste sentido, a
autonomia kantiana é assim caracterizada porque a razão humana livre é capaz de
determinar a sua vontade a querer um princípio para o seu agir que respeite o que a
moralidade exige. É justamente porque é dotada de liberdade que a vontade é capaz
de buscar e propor a lei moral a si mesma. Ela é livre negativamente para excluir as
inclinações da sensibilidade e ao mesmo tempo o é positivamente para se
autodeterminar em função do respeito à lei moral.
Do outro lado, o jusfilósofo defende que o processo normativo se quando
um mandamento advindo de um legislador que demanda uma ação que é devida
pelo destinatário da norma. A relação aqui estabelecida é a de um sujeito que quer
que o outro deva agir de uma determinada maneira. Nas palavras de Kelsen (1986,
p. 37): “Aquele que ordena algo fixa uma norma, quer algo, aquele ao qual algo é
imposto, cuja conduta fixada como devida numa norma, deve algo”. Nestes termos,
Kelsen ainda propõe a seguinte asserção: “Nenhuma norma sem uma autoridade que
a estabeleça, nenhuma norma sem um destinatário (ou destinatários da norma)”
(Kelsen, 1986, p. 38). Tais elementos são básicos para o processo normativo tanto
no Direito quanto na Moral, segundo Kelsen.
69
Há, porém, uma certa concessão por parte de Kelsen ao argumento kantiano
de que um mesmo indivíduo põe a norma e tem a si mesmo como destinatário. Tal
consentimento se explicita no seguinte argumento: somente se a consciência
humana observa a si mesma de modo a sugerir uma relação de um eu e um outro eu
no mesmo indivíduo é possível o autolegislar-se. Kelsen insiste na importância do
outro na relação normativa. Um de seus preceitos fundamentais já enfatiza isso: o de
que uma norma é o sentido de um ato de vontade, e este ato de vontade expressa o
querer de um indivíduo com relação a um dever de “outro” indivíduo, no caso uma
conduta devida. O que deve acontecer na concessão de Kelsen é que: “O eu que
impõe a norma quer que o outro eu deva se conduzir de uma determinada maneira”
(Kelsen, 1986, p. 39). Isso somente é possível se a mesma pessoa cumpra papéis
distintos, o eu e o “outro” eu.
Em reforço a tal ponto de vista, Kelsen também argumenta que somente
posso querer que uma pessoa deva agir de determinada maneira, porém com
relação ao meu próprio agir somente posso querer efetivá-lo, posso querer fazer
algo, não que eu deva fazer algo. Nas palavras do jusfilósofo:
Na hipótese de um ato de vontade dirigido à conduta de um outro, i.e., no
caso de um comando, o sentido de um ato de vontade de um não é o fazer
do outro, e sim o dever-ser do fazer do outro que é ordenado no comando.
(Kelsen, 1986, p. 56).
A não realização do primeiro caso (primeiro argumento do parágrafo acima)
viola o caráter coativo da doutrina kelseniana, que também é fundamental neste
âmbito de análise. É buscando salvaguardar algumas de suas propostas
fundamentais, de que o tipo de coação operante no âmbito do dever-ser somente
pode se dar de uma pessoa a outra, que Kelsen estrutura seu questionamento sobre
tal tema.
A coação é, para o jusfilósofo, um dos elementos que define a função do
mandamento, a de expressar a vontade que um sujeito impõe a um outro. No âmbito
do dever-ser a coação é um elemento importante para distinguir as duas instâncias, a
Moral e o Direito (como na seção 2 deste capítulo já foi visto).
Numa das definições dadas por Kelsen ao conceito de Direito está explícito
que: “O Direito é essencialmente ordem de coação. Prescreve uma certa conduta de
70
modo que, como conseqüência, liga um ato de coação à conduta contrária do ser
devido” (Kelsen, 1986, p. 30). A coação que o Direito impõe acompanha atos
coercitivos de modo que possa utilizar-se da força quando preciso, caracterizando
assim, o caráter sancionador do Direito. no âmbito da moralidade ocorre algo
diferente, nas palavras do jusfilósofo:
A Moral diferencia-se do Direito pelo fato de que a reação por aquela
prescrita, suas sanções, não têm como as do Direito o caráter de atos de
coação, quer dizer: - como a sanção do Direito - não são executáveis com o
emprego da força física, quando elas enfrentam a resistência (Kelsen, 1986.
p. 30).
Isto quer dizer que, mesmo apresentando um caráter de sanção a uma
conduta contrária à prescrita, a Moral não utiliza, como o Direito, o elemento coativo.
Além do mais, as sanções morais caracterizam-se pela simples desaprovação,
censura, sinal de desprezo, e o contrário também, se a conduta é conforme a norma,
o indivíduo é merecedor da aprovação ou recompensa por parte dos outros membros
da “comunidade”. Acredita-se que, neste ditame, através do caráter sancionador
proposto pelo Direito, uma certa autonomia é resguardada no sentido de que a
efetivação daquilo que é prescrito ou aquilo que é contrário ao previamente prescrito,
ainda é preservado.
Já, para Kant, o âmbito da moralidade caracteriza-se pela carência de
elementos exteriores como, uma lei imposta por instituições ou outra pessoa e nem
mesmo a coação externa, sim a autocoação que, para Kant, efetiva-se quando da
substituição dos princípios sensíveis por um racional e é, por isso, uma coação
interna.
Neste ditame, é interessante ressaltar que a crítica de Kelsen à noção
Kantiana de autonomia moral, a qual leva em consideração o elemento coativo que,
para Kant na verdade é autocoativo, é justamente rejeitada com a tese kelseniana,
acima citada, de que na Moral não coação. O próprio jusfilósofo admite que na
Moral no máximo uma coação dos motivos que nos levam a agir, porém não
relevância para tal aspecto posto que o que lhe interessa é coação em relação à
ação, no caso de realização ou não-realização da ação, aquela força que se impõe à
ação de outrem.
71
Contudo, parece-nos que há, aqui, uma sutil confusão de Kelsen no que
concerne ao objeto de coação em Kant. O que o filósofo alemão entende como
elemento passível de coação é justamente o princípio que guiará o agir, o que é
coagido é o motivo da ação, que é interno e por isso designado por ele de
autocoação, que o próprio indivíduo se dá, elemento este que, pelo próprio
jusfilósofo, foi admitido. Em consonância a isso nos parece sem efeito a crítica de
Kelsen porque ele justamente diferencia o objeto de coação como Kant também faz,
e também porque a nossos olhos sua rejeição somente faria sentido se se tratasse
do âmbito do Direito e não da Moral.
Além destes elementos, faz-se presente, na concepção Kantiana da
autonomia moral e, conseqüentemente, em todo seu sistema prático, o conceito de
Deus. Aqui, ele aparece como um modo de “justificar” o agir moral dos homens que
tendem por natureza a buscar uma finalidade e também uma compensação para
suas ações. Kant equipara a razão prática do homem com Deus para responder
justamente a estas exigências as quais o próprio homem, por natureza, se impõe.
Deus, como um postulado da razão humana, ocupa o lugar de um Legislador
que, além de coordenar nossas ações através de mandamentos (no caso divinos) é
capaz de proporcionar uma compensação às nossas ações morais,sob a forma da
felicidade. Contudo, é de extrema importância, para Kant, ressaltar a capacidade
racional do homem em ser autônomo para guiar o seu agir através de uma lei que ele
mesmo se impõe, posto que é livre para isso.
Em reforço à refutação da noção kantiana de autonomia moral, Kelsen ainda
propõe um terceiro argumento:
(...) a noção de que a razão prática como legislador moral é a razão divina
no homem, na qual somente conhecimento e querer, ser e dever-ser como
coincidentes podem tornar-se acreditados, encobre-se em Kant pelo
princípio postulado por ele de autonomia Moral (Kelsen, 1986, p. 101).
Para Kelsen, a proposta kantiana de que a autonomia do indivíduo moral se
dá através da razão prática é uma maneira de “encobrir” a autonomia de Deus como
legislador supremo. Kelsen critica Kant quanto a tal aspecto posto que para o
jusfilósofo, o filósofo da Moral mesmo admite Deus como tal Legislador e admite
também que os mandamentos divinos são as leis morais.
72
Parece-nos interessante lembrar que o próprio Kelsen trata Deus como o
Legislador da Natureza (do Universo), traçando um paralelo entre a Jurisprudência e
a Teologia (ver Schmill, 1999) buscando congruências no que tange ao modo como
operam as normas, assim como a aspectos que tratam da função e implicação de um
Legislador em cada plano.
Kelsen entende que, ao mesmo tempo em que Kant toma a razão humana
como legisladora, reconhece que Deus é o Criador e Legislador Supremo. O
jusfilósofo propõe que ao defender estas afirmações, em várias de suas obras, Kant
se contradiz, pois, se um chefe que é o legislador supremo a razão perde sua
força legislante e subordina-se à legislação Divina.
É coerente ressaltar que Kant, em passagens de algumas de suas obras,
admite ser Deus o Legislador e que devemos pensar as leis morais como se fossem
leis divinas, porém, é mister lembrar que como meros postulados da razão pura
(prática) e, como dito antes remetendo a Deus uma possível maneira de justificar
anseios e buscas que o próprio homem, por natureza, possui.
Entendemos, enfim, que o tratamento que Kelsen ao conceito de Deus e
conseqüentemente ao Direito Natural não deve ser confundido com o papel que Kant
atribui ao conceito de Deus, e conseqüentemente à Religião, que para ele trata de
questões de fé que não mais cabem à razão humana.
Embora pareça coerente pensar que a vontade divina prescreva
mandamentos visando sempre o bem, talvez o melhor bem possível ao homem, isto
somente é possível através do próprio querer humano, de sua vontade diante este
determinado bem em assumi-la, em colocar-lhe como bem, como seu objeto. Assim
diz Schneewind:
Um estado de coisas pode ser bom, defende agora Kant,se alguém o
quer ou deseja; e querer e desejar pressupõem a possibilidade do objeto da
vontade ou do desejo. Assim, quando a natureza de Deus estabelece
possibilidades, não pode fazê-lo, buscando a orientação de algo
independentemente bom (Schneewind, 2001, p. 540).
Para findar, como resposta ao problema antes exposto, Kelsen propõe que
sim uma certa autonomia (como um elemento secundário) tanto na Moral quanto no
Direito, que também é por ele rejeitada através da Teoria da Consciência (já que esta
agrega elementos do plano do ser e não é capaz de prescrever normas positivas),
73
mas somente autonomia quanto à aplicação das normas. Com as palavras do
jusfilósofo:
A chamada autonomia da Moral existe apenas no fato de que a aplicação de
uma norma geral da Moral a um caso concreto, quer dizer a fixação de uma
norma individual correspondente à geral é condicionada pelo
reconhecimento da validade de norma geral a caso concreto, por parte dos
indivíduos, cuja conduta as normas gerais da Moral estabelecem como
devida (Kelsen 1986, p. 301).
Kelsen exclui totalmente a possibilidade de autonomia do indivíduo (enquanto
destinatário) quanto à fixação ou produção das normas, o que cabe ao sujeito é o
“reconhecimento” de uma norma posta, como num ato que estabelece mais uma
vez uma norma que foi fixada por uma autoridade, e reforça-a, assim, num ato de
“auto-obrigação”.
É mister deixar claro que o foco de Kelsen e Kant quanto, de um lado a recusa
e, de outro lado a defesa da noção de autonomia, respectivamente, tem como basilar
o destinatário da norma, que para Kelsen não pode legislar (o que justifica sua
recusa dos argumentos kantianos), enquanto para Kant o pode. Com este ponto de
vista ficam bem claras as concepções jusfilosóficas defendidas por ambos os
autores.
74
3 RECEPÇÃO E CRÍTICA DE KANT EM BOBBIO
A concepção jusfilosófica de Norberto Bobbio situa-se, entre as correntes
positivistas do Direito, como um sistema moderado ao contrário da concepção de
Kelsen, por exemplo, caracterizada pelo extremismo positivista. Neste sentido, sua
concepção norteia-se não por elementos estritamente positivistas, mas também
por alguns elementos de concepções jusnaturalistas, o que não a descaracteriza
enquanto corrente positivista do Direito, mas lhe atribui um caráter mais flexível no
sentido de acolher idéias de outras concepções.
Diante o aduzido acima, a tarefa deste capítulo será expor a recepção de
Bobbio às noções centrais kantianas, enfatizada, especialmente, através dos
questionamentos levantados pelo jusfilósofo (tema da terceira seção). Sendo assim,
a análise das críticas que o jusfilósofo lança ao sistema prático kantiano nos revela
uma maneira mais branda de opor-se a teses que, por outros teóricos, como Kelsen,
são fortemente rejeitadas. Pode-se, no entanto dizer, que as objeções de Bobbio,
que inclusive é simpático com alguns pontos da concepção ética kantiana, têm um
intuito maior em corrigir e ampliar algumas teses do que simplesmente destruí-las, o
que em um certo sentido o aproxima mais de Kant do que de Kelsen.
Antes disso, e com o intuito de explorar as noções fundamentais de sua
concepção, que em uma certa medida apóiam-se nas de Kant, as duas primeiras
seções vislumbram seus preceitos basilares
Neste sentido, para uma breve elucidação dos elementos fundamentais da
concepção jurídica de Bobbio, assim como de sua noção da norma jurídica e suas
peculiaridades, e também sobre as críticas que Bobbio propõe à concepção prática
de Kant, serão utilizadas como fontes suas obras: Positivismo jurídico: lições de
filosofia do direito (1995), Teoria geral do direito (2007) e Direito e Estado no
pensamento de Emanuel Kant (2000). Estes três aspectos da doutrina bobbiana - os
75
preceitos gerais de sua doutrina, as peculiaridades da norma jurídica e a crítica de
Bobbio a Kant- estabelecem a estrutura do capítulo, o qual é apresentado com um
caráter meramente expositivo nas duas primeiras seções.
3.1 Perspectivas gerais de sua doutrina e as influências kantianas
É característico de Bobbio analisar temas e elucidá-los baseando-se em
classificações. Não diferentemente, este é o método utilizado pelo jusfilósofo em
suas obras, em especial na Teoria geral do direito, obra que resulta de aulas
ministradas pelo jusfilósofo. É importante destacar que a concepção de Bobbio
enfatiza muito mais o âmbito jurídico do que o moral, o que se reflete nas críticas
que põe a Kant.
Em linhas gerais, a sua concepção de positivismo é abordada sob três
aspectos: o positivismo enquanto ideologia, o positivismo enquanto teoria do Direito
e o positivismo enquanto método.
O positivismo é tratado por Bobbio enquanto ideologia (chamado também de
positivismo ético) através da distinção entre uma versão moderada e uma versão
extremista do Direito. A característica central da concepção moderada volta-se ao
caráter valorativo do Direito enquanto tal, no sentido de que seu valor consiste não
no seu conteúdo mas, em sua validade enquanto um instrumento de realização do
que se propõe enquanto Direito, qual seja, ser um conjunto ordenado de normas
para a conduta humana. a versão extremista defende que a própria validade do
direito é seu valor supremo, uma vez que a lei jurídica deve ser absoluta. Nas
palavras de Bobbio:
Também a versão moderada do positivismo ético afirma que o direito tem
um valor enquanto tal, independentemente de seu conteúdo, mas não
porque (como sustenta a versão extremista) seja sempre por si mesmo
justo (ou com certeza o supremo valor ético) pelo simples fato de ser
válido, mas porque é o meio necessário para realizar um certo valor, o da
ordem (e a lei é a forma mais perfeita de direito, a que melhor realiza a
ordem). Para o positivismo ético o direito, portanto, tem sempre um valor,
mas, enquanto para a sua versão extremista trata-se de um valor final, para
a moderada trata-se de um valor instrumental (Bobbio, 1995, p. 230).
76
Neste ditame, Bobbio defende a versão moderada do Direito enquanto
ideologia. Aqui, o jusnaturalismo, fundamentado em princípios racionais e que
propõe um ideal de Direito baseado na justiça como valor a ser alcançado, é
utilizado por Bobbio, em alguns pontos, em contraste com a corrente positivista, e
negligenciado pelo jusfilósofo em suas formas mais radicais.
no que concerne à avaliação de Bobbio ao positivismo jurídico enquanto
teoria, são abordados três aspectos do Direito: o Direito enquanto uma teoria
coativa, o Direito enquanto uma teoria legislativa, e o Direito enquanto teoria
imperativa. Reunindo tais abordagens o autor define tal concepção como “Teoria
positivista em sentido amplo”.
Resumidamente, a teoria coativa do Direito sustentada por Bobbio destaca,
dentre outras, a proposta de Kelsen de que o Direito é, nas palavras de Bobbio
(1995, p. 157), “[...] um conjunto de regras que têm por objetivo a regulamentação
do exercício da força numa sociedade”. Sob essa ótica são tomados como
importantes aspectos que estão no domínio das considerações do Direito: o
estabelecimento do sujeito, do modo, do grau e das situações em que a coação é
utilizada. a teoria legislativa preocupa-se com as fontes as quais o Direito se
ocupa para prescrição de suas normas, sustentando que a fonte principal é a
vontade do legislador posto, destaca, o caráter positivo de que o Direito é aquele
ordenamento que tem normas postas por “alguém” autorizado para isso. Sobre a
teoria imperativista, é destacável a influência da concepção kelsenaina que
fundamenta a norma jurídica como sancionadora em caso de conduta indevida,
tornando evidente o caráter hipotético do imperativo jurídico.
a abordagem positivista do direito enquanto método apresenta uma
posição científica frente ao Direito no sentido de abordá-lo avalorativamente. Nestes
moldes, a tomada de posição do cientista jurídico tem como pressuposto conhecer
a realidade de fato, objetivamente, isentando-se de avaliações subjetivas ou de
valor. Nas palavras de Bobbio:
O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato,
não como valor: na definição do direito deve ser excluída toda qualificação
que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio
direito em bom e mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência jurídica, é
aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o
77
juspositivista estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe
também um direito ideal (Bobbio, 1995, p. 136).
Visto isso, é notório e merece destaque mais uma vez, que a análise
bobbiana do Direito a partir de tais concepções, a do Direito enquanto ideologia,
enquanto teoria e enquanto método, salientam seu caráter moderado frente às
teorias positivistas extremistas. Aqui, Bobbio trata de aspectos por ele apontados
como importantes, acolhidos da teoria jusnaturalista do Direito de modo que os
estrutura conjuntamente a aspectos positivistas, o que garante a singeleza de sua
doutrina.
Outro enfoque dado à doutrina jurídica de Bobbio tem como ponto enfatizar
uma abordagem mais completa do Direito, o ordenamento jurídico como um todo.
Esta abordagem não desfoca, com isso, o papel fundamental da norma jurídica
enquanto tal, de forma isolada (ver seção 2 do capítulo) mas, investiga e propõe o
Direito como um conjunto de normas, como um complexo que se estrutura pelo
ordenamento destas. É destacável que tal teoria é fundada numa tentativa do
positivismo jurídico de propor um modelo de direito coerente com a realidade. Neste
sentido, Bobbio busca traçar alguns aspectos importantes para definir o conceito de
Direito a partir desta nova perspectiva, da complexidade das normas que compõem
o ordenamento.
Um dos expoentes que Bobbio utiliza para inspiração de sua proposta de
Direito enquanto ordenamento jurídico é Kelsen, que propõe um modelo de Direito
sistemático (embora Bobbio tenha restrições a este termo), como um conjunto de
normas prescritivas ordenadas.
A perspectiva utilizada pelo autor para tal propósito coloca como pedras de
toque desta nova definição do Direito os conceitos de sanção e de
institucionalização; sendo assim, o caráter de ordenamento tal como está
defendendo é preservado em função da sanção normativa ser institucionalizada. A
respeito disso Bobbio (2007, p. 181) diz: “Definir o direito por meio da noção de
sanção organizada significa procurar o caráter distintivo do direito não em um
elemento da norma, mas em um conjunto orgânico das normas”.
No que se refere à análise da sanção, que mais adiante será analisada a
partir da norma jurídica de forma isolada, é importante lembrar que o fato de
78
algumas normas carecerem desta não implica que o ordenamento perca seu caráter
sancionador. Tal situação se reflete a partir do problema da eficácia das normas,
problema que focaliza as normas isoladamente.
o conceito de institucionalização não é tão simples assim. Sua análise nos
remete a uma busca por definir a melhor concepção, ou, então, a mais oportuna
teoria do Direito. A teoria da instituição (a qual é utilizada por Bobbio para questionar
a definição kantiana dada à noção de Direito), em sua proposta inicial, tem como
fundamento três quesitos básicos: a sociedade, a ordem e a organização. Estes são
os pilares de tal teoria que sustenta que somente uma sociedade organizada a partir
de normas bem estabelecidas faz jus ao propósito do Direito.
Destarte, Bobbio questiona a possibilidade de exclusão da teoria normativa e
da teoria da relação, concorrentes como teorias definitórias do Direito. Para isso,
consideremos a definição das mesmas. A primeira defende o aspecto normativo, ou,
então, regulativo que as normas jurídicas proporcionam ao Direito. A norma é
elemento indiscutivelmente necessário para que se fale em Direito, uma vez que,
sem esta não há possibilidade de propor ações devidas para qualquer intuito que um
ordenamento possa ter. Logo, uma teoria normativa não pode ser excluída, mas sim
incorporada na teoria da instituição. a teoria da relação defende que o Direito se
fundamenta em relações intersubjetivas, as quais se estabelecem entre indivíduos
dotados de direitos e deveres (sujeitos ativos e sujeitos passivos).Tal teoria não se
sustenta por si em função de extrair elementos de individualidade, rejeitados por
alguns institucionalistas, no âmbito da sociedade como um conjunto de indivíduos.
Porém, é inegável que relação jurídica. O ponto aqui enfatizado por Bobbio é
estabelecer os elementos mais importantes de uma teoria mais oportuna.
Sendo assim, Bobbio propõe que as teorias não são excludentes, pelo
contrário, elas se integram em função de cada uma abarcar elementos constituintes
para o estabelecimento de uma teoria que seja mais adequada ao conceito de
Direito, então baseado na idéia de ordenamento, como é destacado pelo jusfilósofo:
Cada uma delas evidencia um aspecto da multiforme experiência jurídica: a
teoria da relação, o aspecto da intersubjetividade; a teoria da instituição, o
aspecto da organização social; a teoria normativa, o aspecto da
regularidade. Com efeito, a experiência jurídica nos coloca diante de um
mundo de relações entre sujeitos humanos organizados de maneira estável
em sociedade mediante o uso de regras de conduta. De resto, dos três
79
aspectos complementares, o fundamental continua a ser o aspecto
normativo. A intersubjetividade e a organização são condições necessárias
para a formação de uma ordem jurídica; o aspecto normativo é a condição
necessária e suficiente (Bobbio, 2007, p. 24).
Além disso, um último aspecto da doutrina de Bobbio diz respeito ao seu
cuidado com os ordenamentos em si, destacando propriedades desejáveis dos
mesmos e alguns problemas relacionados a eles.
Em um primeiro momento deve-se ter claro que a complexidade de normas
de um ordenamento é fato, e fato que gera os principais problemas do ordenamento
em função dos relacionamentos existentes entre tais normas. O ordenamento é
composto por normas de conduta (as permissivas, proibitivas, comandos, etc.) e as
normas de competência, estas últimas estabelecem “as condições e procedimentos
por meio dos quais são emanadas normas de conduta válidas” (Bobbio, 2007, p.
186).
Os principais problemas de um ordenamento se referem: à possibilidade de
estabelecer uma unidade entre as normas, ou então uma certa hierarquia entre elas,
à possibilidade de se estabelecer uma sistematicidade do ordenamento, se
coerência entre as normas (tal problema se funda nas chamadas antinomias
jurídicas), e por fim, a problemática em torno da completude de um ordenamento, se
esta é possível ou não em função das chamadas lacunas do Direito.
O primeiro problema, que trata da unidade do ordenamento jurídico, é
solucionado, ou ao menos é feita uma tentativa, através da proposta de Kelsen da
norma fundamental. Segundo este (como visto) a norma fundamental é uma
maneira de validar as normas de um ordenamento, que em função desta, obedecem
a uma hierarquia. Esta norma serve, e aqui está a novidade posta por Bobbio, para
unificar o ordenamento no sentido de dar às outras normas uma base comum, um
fundamento que serve para dar consistência às outras normas. Ela é, em termos
bobbianos, o critério supremo. Tal norma não é posta como as outras, mas
simplesmente pressuposta pelo jurista, que tem, agora, a fonte ou o poder superior
para produzir as outras normas do ordenamento.
Veja-se nas palavras de Bobbio:
Então diremos que a norma fundamental é o critério supremo que permite
estabelecer a pertinência de uma norma a um ordenamento; em outras
80
palavras, é o fundamento de validade de todas as normas do sistema.
Portanto, não a exigência da unidade do ordenamento, mas também a
exigência de fundar a validade do ordenamento nos induzem a postular a
norma fundamental, que é a o mesmo tempo o fundamento da validade e o
princípio unificador das normas de um ordenamento. E, tendo em vista que
um ordenamento pressupõe que exista um critério para estabelecer a
pertinência das partes ao todo e um princípio que as unifique, não pode
haver ordenamento sem norma fundamental. Uma teoria coerente do
ordenamento jurídico e a teoria da norma fundamental são indissociáveis
(Bobbio, 2007, p.210- 211).
a sistematicidade de um ordenamento é dada quando a coerência exigida
é cumprida. Somente é coerente aquele ordenamento em que não excesso de
normas. Sobre o princípio da coerência Bobbio diz o seguinte:
(...) é garantido por uma norma, implícita em todo ordenamento, segundo a
qual duas normas incompatíveis (ou antinômicas) não podem ser ambas
válidas, mas somente uma delas pode (mas não necessariamente deve)
fazer parte do referido ordenamento (...) (Bobbio, 1995, p. 203).
Em caso de incoerência, ela se caracteriza como uma situação na qual
mais de uma norma possivelmente capaz de solucionar o caso, porém a solução
não pode se dar porque os estados resultantes do cumprimento das normas não são
compatíveis. Nesses casos se busca solucionar a questão através da eliminação de
uma das normas, as chamadas antinomias. Tais antinomias somente assim o são se
ambas pertencem ao mesmo ordenamento e têm o mesmo âmbito de validade.
Para a solução das antinomias em um ordenamento são tradicionalmente
estipulados três critérios: o cronológico, o hierárquico e o da especialidade.O
primeiro critério estipula que a norma que deve prevalecer é aquela posta por último,
ou seja, a norma posterior. O critério da hierarquia preza por eliminar a norma de
grau inferior, aqui a superioridade na hierarquia das normas em um ordenamento
garante o uso da norma superior em caso de incompatibilidade com outra. Por sua
vez, o critério da especialidade garante que a norma especial (ou excepcional) tem
preferência à norma geral.
Bobbio nos precavi, porém, que tais critérios podem, por vezes, não ser
suficientes ou até mesmo podem ser inaplicáveis, por exemplo, quando duas
normas em conflito foram produzidas simultaneamente, pertencem ao mesmo nível
hierárquico e o conteúdo de uma não está subordinado ao conteúdo da outra.
81
Quanto a estas questões, Bobbio conclui defendendo a importância da
completude de um ordenamento jurídico. Ele a define com as seguintes palavras:
Por “completude” entende-se a propriedade pela qual um ordenamento
jurídico tem uma norma para regular cada caso.Tendo em vista que a
ausência de uma norma costuma ser chamada de “lacuna” (em um dos
sentidos do termo “lacuna”), “completude” significa “ausência de lacunas”
(Bobbio, 2007, p. 259).
Em outras palavras, esta se quando os juízes encontram no ordenamento
normas capazes de solucionar todos os casos que a este se apresentam. Em caso
de não haver uma norma que conta de uma dada situação, diz-se que uma
lacuna jurídica, ou seja, há falta de uma norma para solucionar o caso.
Visto isso, entendemos, de forma breve, a complexidade de um ordenamento
em seu todo tal como é proposto pelo jusfilósofo e algumas restrições impostas aos
ordenamentos. Sendo um ordenamento constituído por partes, as normas, que
também apresentam peculiaridades e algumas restrições, seu exame será o alvo da
seção seguinte.
3.2 Sobre a norma jurídica isolada
É certo que uma análise do ordenamento jurídico como um todo requer uma
estrita observância de seus elementos constituintes, assim como conceitos e
problemas que a complexidade da experiência jurídica, como um todo, pode
desencadear, mas, para isso, é necessária uma análise da norma de forma isolada,
uma vez que esta é o fundamento de toda e qualquer experiência jurídica. Bobbio
não abre mão disso. Detemo-nos, aqui, na consideração das várias peculiaridades
da norma, assim como de alguns problemas advindos das relações entre as várias
normas de um ordenamento, seus loci e função na experiência jurídica.
Será visível nesta seção a peculiaridade de Bobbio e sua destreza em trazer
a tona elementos fundamentais de outras concepções de modo a incorporá-los
como, por exemplo, alguns elementos da concepção jusnaturalista de Kant, o que
se verificou na seção anterior. Serão expostos, aqui, os principais elementos de sua
teoria geral das normas, alguns dos quais se encontram relacionados às futuras
observações a respeito da concepção de Kant. Outros, que por hora serão deixados
82
de lado, não devem ser, por isso, considerados menos importantes, somente
inoportunos para o objetivo aqui almejado. Tal exposição contemplará uma
descrição dos elementos fundamentais dos capítulos II, III, IV, V e VI da Teoria da
Norma Jurídica.
Inicialmente, Bobbio trata das valorações a que podem ser submetidas as
normas. Ele elenca três tipos principais: a justiça, a validade, e a eficácia.
O problema da justiça trata do aspecto deontológico do direito, o qual lida com
as questões que opõem o mundo real ao mundo ideal. Neste ditame é questionado
um dos principais, senão o principal valor do campo ético. Diz Bobbio (2007, p. 25):
“O problema da justiça é o problema da correspondência ou não da norma aos
valores últimos ou finais que inspiram determinado ordenamento jurídico”. Aqui, a
norma é analisada como um valor ideal, o que caracteriza, neste ditame, uma visível
aproximação de Bobbio com propósitos jusnaturalistas.
O problema da validade, ou validez, diferentemente da questão da justiça,
toma a norma como simplesmente existente ou não, não se importa com valores,
nem ideais buscados a partir desta. O problema examinado é o da ontologia da
norma e, para sua constatação se efetuam pesquisas de tipo empírico, ou seja, a
norma deve ser constatada de forma a exibir sua específica existência dentro de um
ordenamento. A respeito disso o jusfilósofo diz: “O problema da validade é o
problema da existência da regra enquanto tal, independentemente do juízo de valor
sobre o fato dela ser justa ou não” (Bobbio, 2007, p. 26).
A questão da eficácia da norma trata de sua específica efetivação, a
verificação da sua aplicabilidade, ou melhor, do cumprimento ou não das normas
pelos seus destinatários. A sua aplicação pode se dar tanto de forma espontânea
quanto apelando a meios coercitivos. Bobbio (2007, p.27) diz: “O problema da
eficácia de uma norma é o problema de saber se essa norma é ou não seguida
pelas pessoas a quem se destina (os chamados destinatários da norma jurídica) e,
caso seja violada, seja feita valer com meios coercitivos pela autoridade que a
estabeleceu”. Diz-se que é o problema fenomenológico do direito.
Nesta de via de análise, percebe-se a comparação de Bobbio destes critérios
a três concepções de Direito e a constatação de uma correspondência entre eles: os
valores da justiça, da validade e da eficácia de uma norma. Tais critérios são
83
comparados aos principais problemas da teoria do Direito natural, do juspositivismo
jurídico (concepção que toma como exemplo a doutrina kelseniana do Direito) e o
realismo jurídico, respectivamente.
Outra análise do autor trata a norma jurídica sob o ponto de vista formal, ou
então, sob o aspecto da estrutura da norma que, em oposição a outros tipos de
normas, é do tipo proposição “prescritiva”. Ela, a norma, é do tipo mandato (ou
comando) que se manifesta, em geral, na forma de um imperativo, tal como Kant
também defende. Diferentemente das proposições descritivas e expressivas que têm
por função simplesmente anunciar (informar) ou expressar sentimentos,
respectivamente, as proposições prescritivas ordenam, recomendam, aconselham,
buscam influenciar o comportamento alheio e modificá-lo, elas utilizam-se, para isso,
da linguagem imperativa, muito embora possam se utilizar os demais tipos de
manifestação. Para diferenciá-las, Bobbio propõe uma análise a partir de três
critérios: 1) a relação entre sujeito ativo e sujeito passivo, 2) a forma como o
comando é expresso e, 3) a força obrigante utilizada a partir de tal norma.
Sobre o primeiro ponto Bobbio apropria-se como exemplo da distinção
kantiana entre os imperativos autônomos e heterônomos. No primeiro caso, o sujeito
é ativo, uma vez que ele próprio é quem impõe a regra, é autônomo, no segundo, o
sujeito é passivo, pois ele simplesmente recebe a norma, quem impõe a norma é
outra pessoa, por isso diz-se ser heterônomo. Tal distinção foi utilizada por Kant,
como visto, para diferenciar a Moral do Direito e é problemática, segundo Bobbio,
mas mais adiante isso será minuciosamente analisado.
No que se refere ao segundo ponto, a forma como o comando é expresso,
mais uma vez Bobbio utiliza o exemplo kantiano dos imperativos categóricos e
hipotéticos. Os imperativos categóricos seriam aqueles que expressam uma ação
incondicional, boa em si mesma. Por sua vez os imperativos hipotéticos seriam
aqueles que expressam uma ação em função de alguma condição, como meio para
algum fim. Mais uma vez Bobbio encontra problemas que em seu devido tempo
serão expostos.
Por fim, com relação ao terceiro modo de diferenciar as proposições
prescritivas, ao analisar a força obrigante imposta pelo comando, Bobbio subdivide
as regras jurídicas em mandatos e conselhos. Os primeiros, os mandatos (ou então
84
os imperativos), são a expressão de maior força, são as regras que os destinatários
têm obrigação de cumprir. Já no segundo caso, os conselhos (e também os pedidos,
ou petições), são a expressão de menor força vinculante dentro do Direito, ou seja,
eles impõem uma certa obrigação aos seus destinatários, a força utilizada é, como
diz Bobbio, mais branda.
Sobre tal questionamento Bobbio propõe algumas reflexões quanto à
proposta kantiana, que diz que ambos os imperativos, tanto os categóricos
(expressão da regras da moralidade) quanto os imperativos hipotéticos (regras
jurídicas) ordenam, porém, com restrições no que se refere a basear os preceitos na
racionalidade ou na experiência (e com isso abre um espaço aos conselhos), o que
também no próximo capítulo será mais detalhadamente analisado.
Pode-se dizer, com isso, que, para Bobbio, somente os imperativos têm força
obrigante no Direito, ao passo que os outros tipos de prescrições servem mais como
conselhos a serem seguidos.
3.2.1 Sobre a imperatividade da norma
Uma vez estabelecidos os critérios que diferenciam e explicitam a proposição
jurídica, ou melhor, o imperativo que expressa a norma do Direito, Bobbio preocupa-
se em levantar os elementos fundamentais da imperatividade do Direito, aqueles
critérios que demarcam o Direito enquanto um conjunto organizado ou instituição de
normas, normas estas que são expressas por imperativos, bem como as
características básicas destes.
Sobre a análise da imperatividade da norma é importante enfatizar que se
comparada com a proposta kantiana (que propõe somente o caráter imperativo),
Bobbio se mostra receptivo e faz um exame mais detalhado de tal caráter na
experiência jurídica como um todo. Aqui, o autor faz distinções e, ao mesmo tempo,
rejeita outras que lhe parecem inócuas.
Os questionamentos levantados por Bobbio, neste ditame, em um primeiro
momento, levam em consideração a imperatividade do Direito de modo a contrastá-
la com outras teorias. Bobbio elenca, então, três requisitos para a norma jurídica: a
imperatividade, a estatalidade e a coercibilidade e aponta que o problema de
85
estabelecer a característica fundamental da norma jurídica defendendo apenas uma
das teorias e excluindo as outras, é tarefa problemática.
Ocupamo-nos, no entanto, somente em citar que teorias, além das
imperativas, as chamadas teorias mistas, que defendem que somente algumas
proposições do ordenamento são imperativos, em contraste com teorias do tipo
negativa, que sustentam que as normas jurídicas não são expressas por meio de
imperativos. No entanto, elencamos dentre estas aquelas que consideramos
relevantes ao nosso propósito inicial.
Dentre várias propostas, uma tentativa é lançada a partir da defesa de que a
norma jurídica é norma técnica. Tal tese se fundamenta na distinção kantiana do
imperativo hipotético em pragmático e técnico, e defende o segundo como modelo
de norma jurídica. Com este modelo de norma o Direito tem por objetivo a
conservação da sociedade. Para Bobbio, alguns problemas em tal teoria, dentre
os quais o perigo de basear o Direito em um mero tecnicismo, deixando de lado o
caráter pragmático e sancionador, os quais são, para o jusfilósofo, importantes no
contexto jurídico, e que também caracterizam normas do tipo técnico, tal como ele
as defende.
Outra teoria da norma positiva defende a idéia que as normas são regras do
tipo finalista, isto é, regras que impõem que por parte do sujeito finalidades ou
objetivos a serem alcançados. Em tal proposta a norma jurídica é definida da mesma
maneira que Kant definiu os imperativos hipotéticos (no caso normas técnicas), os
quais impõem meios para alcançar fins visados. Tal teoria, porém, tem sua
peculiaridade, posto que aqui as normas jurídicas não são imperativos. Aqui, o dever
imposto pela norma não tem inteiramente um caráter de obrigatoriedade como em
outros casos, posto que o sujeito possui um dever livre no sentido de que pode violar
a norma. Bobbio toma tais argumentos como não convincentes, e defende que tais
regras pertencem ao âmbito jurídico e, conseqüentemente, dirigem-se ao
comportamento alheio, então não porque não serem consideradas como
imperativos.
Outra avaliação sobre as normas jurídicas trata das teorias do tipo negativo,
ou seja, as teorias que negam que as normas jurídicas sejam expressas através de
imperativos. Exemplo de tal teoria diz que as normas do Direito são expressas
86
através de juízos hipotéticos. A proposta de Kelsen é utilizada como exemplo, por
Bobbio, e diz que as proposições jurídicas não garantem que o comportamento
esperado seja executado, por isso a exigência da sanção e conseqüentemente, da
formulação da norma através de um juízo do tipo hipotético, uma vez que a
relação de uma condição (o ilícito) e uma conseqüência (a sanção). A questão
enfatizada, neste patamar, preza pelo caráter prescritivo de tais juízos, que não têm,
como nos juízos descritivos, a ligação causal como nexo, mas a imputação. Para
Bobbio, a teoria kelseniana da norma jurídica é exemplo de teoria antiimperativista.
Em suma, após uma breve exposição dos diferentes tipos de teorias da
norma jurídica é verificável a posição de Bobbio na defesa da norma como
proposição do tipo prescritiva. Sua sugestão é que as diferentes teorias são válidas
enquanto tentativas de mostrar as várias maneiras de expressar as normas do
Direito, porém seu caráter prescritivo, como expressão da característica essencial da
norma, nunca deve ser suprimido. Usando a nomenclatura dada por Bobbio, a
questão da multiplicidade das normas jurídicas do Direito simplesmente retrata a
diversidade do “gênero” norma jurídica, enquanto variadas “espécies” de normas
jurídicas.
3.2.2 Da natureza das normas jurídicas
A seguinte análise do jusfilósofo trata da natureza das normas jurídicas e
suas diferenças com as outras normas. Tal problema, chamado de “características
diferenciais”, é uma tentativa de elencar as diferenças essenciais entre as normas, e
para isso Bobbio busca estabelecer alguns critérios, não-formais, para dar conta de
suas indagações.
O jusfilósofo propõe, inicialmente, cinco critérios para uma possível teoria da
norma jurídica e, por fim, defende um sexto critério como sendo o mais eficaz.
Ocupamo-nos, aqui, apenas de citar os cinco primeiros: o critério do conteúdo da
norma, o critério do fim da norma, o critério que analisa o sujeito que põe a norma, o
critério que ênfase aos valores suscitados no Direito, e ainda o critério que
analisa as normas a partir das obrigações impostas por estas.
87
Bobbio esclarece que através de tais critérios é explícita a complexidade do
problema em questão e defende que uma integração destes converge para o
encontro de uma teoria que seja a mais oportuna o possível e, para isso, numa
tentativa mais eficaz de solucionar tal indagação Bobbio propõe, então, o sexto
critério, o da resposta à violação da norma, ou melhor, a sanção.
Bobbio defende que todo ordenamento possui, como uma de suas
características centrais, as sanções como resposta às violações de suas normas,
pelo simples fato de que as normas que prescrevem as ações devidas não garantem
que o seu cumprimento será efetivado. Neste ponto, Bobbio sugere a possibilidade
de que através deste critério seja traçada uma distinção entre os variados tipos de
ordenamentos. A respeito disso, o jusfilósofo afirma:
Violação da norma e sanção como resposta à violação estão implicadas
em todo sistema normativo. Trata-se de ver se existem diversos tipos de
resposta e se esses diversos tipos de resposta nos permitem uma
classificação satisfatória dos diversos ordenamentos normativos (Bobbio,
2007, p. 134).
O jusfilósofo, no entanto, não nega a existência de normas não - sancionadas,
citando, como exemplo, a teoria que propõe uma adesão espontânea às normas,
bem como é capaz de admitir uma delimitação do campo de atuação das normas
sancionadoras. Ele ainda defende a eficácia de ordenamentos mesmo com normas
não sancionadas e, ainda mais, menciona a teoria que defende a existência até
mesmo de ordenamentos sem sanção, e a noção de normas em cadeia e o
processo ao infinito (que preza pela existência de uma última norma sem sanção),
porém nega a existência das mesmas.
Na defesa da eficácia do critério da sanção, Bobbio apropria-se das
distinções entre os tipos de sanções para mostrar as diferenças entre os tipos de
normas. Ele propõe, então, uma análise da sanção moral, da social e da jurídica.
Sobre a primeira, Bobbio inicia definindo a própria ação moral como aquela
que suscita no indivíduo um certo sentimento a partir de sua observância ou
inobservância. Assim Bobbio (2007, p. 136) aduz: “Comumente chamamos de
‘moral’ aquela ação que não é realizada por nenhum outro motivo a não ser pela
satisfação íntima que a adesão a ela nos provoca, ou pela repugnância à
insatisfação íntima que nos provocaria a sua transgressão”. A sanção seria um certo
88
sentimento de insatisfação provocado no indivíduo a partir da transgressão da
norma, numa maneira de testar sua consciência moral, elemento importante neste
ditame, e que mostra o caráter interno de tal ordenamento, porque trata dos efeitos
de dada situação sobre o indivíduo e sua própria consciência.
Aqui, as normas também são formuladas através de juízos hipotéticos, uma
vez que as sanções são previstas. Bobbio, porém, julga tais sanções como
ineficazes justamente em função do elemento interno, em outras palavras, para
Bobbio a sanção moral não é totalmente eficaz pelo fato de que nem todas as
pessoas possuem consciência moral a ponto de serem sujeitas a sanção.
a sanção social, diferentemente da moral, é externa, ou seja, ela não
provém de nós mesmos, mas dos outros membros da comunidade. Ela é uma
resposta de um grupo à violação de uma norma social e se com variados graus
de gravidade, como diz Bobbio (2007, p. 137): “(...) parte-se da pura e simples
reprovação e vai-se até o banimento do grupo, que pode consistir em alguma forma
de isolamento no próprio interesse do grupo ou em uma verdadeira expulsão”.
Tais sanções são eficazes na medida em que provocam um certo controle
social, porém com deficiências. Assim como as normas de um ordenamento social
não possuem total eficácia em função da falta de institucionalização, as sanções de
tal ordenamento também. Tal ineficácia remete à falta de certeza do seu resultado,
na inconstância da sua aplicação, e ainda diz Bobbio (2007, p.139): “(...) pela falta
de medida na relação entre violação e resposta”.
Para Bobbio, o que falta aqui é uma organização do próprio grupo que leve à
institucionalização, que é preservada através da organização resultante de um
regramento capaz de estabelecer os fins, os meios e os órgãos do grupo. Nestes
moldes a institucionalização da sanção caracteriza a sanção jurídica que tem
eficácia reforçada, uma vez que corrige as deficiências das demais sanções por ser
externa e institucionalizada. Ela caracteriza-se por apresentar certeza de resposta,
ou seja, dita que para toda violação uma sanção, persegue a proporcionalidade,
uma vez que medida na sanção e por ser imparcial, posto que pessoas
responsáveis pela sua aplicação.
89
Visto isso, Bobbio preza pela defesa do elemento sancionador como
característica fundamental da norma e, conseqüentemente, do ordenamento. Ele
reforça tal idéia dizendo:
Estamos inclinados a considerar um ordenamento tão mais “jurídico” (o
estado de direito é um Estado em que o controle jurídico foi-se ampliando
e, portanto, é mais “jurídico” do que um estado de polícia) quanto mais
aperfeiçoada é a técnica da sanção. (Bobbio 2007, p. 150).
3.2.3 Classificação das normas jurídicas segundo Bobbio
Uma última análise de Bobbio com respeito à linguagem normativa, ou então,
com respeito às características da norma em um ordenamento, leva em
consideração a classificação a qual estas se submetem dentro do contexto da
prescritividade. Aqui o critério de análise utilizado é puramente formal.
Muito brevemente citamos que Bobbio classifica as normas, em um primeiro
momento, no que se refere aos elementos constitutivos do ordenamento: o sujeito
(destinatário) e o objeto da prescrição (a ação). Segundo tal classificação as normas
são: gerais (universais) e singulares. Relativamente a esta classificação ele destaca
que quanto à universalidade elas ainda podem ser: ou gerais, ou abstratas e que
estas ainda se mesclam.
Ainda, além da distinção entre normas afirmativas e negativas (as quais
asseveram ou negam uma prescrição), o jusfilósofo as classifica em categóricas ou
hipotéticas, classificação que está em conformidade com a forma do discurso.
Bobbio remete-se a Kant para estabelecer tal distinção, o que na próxima seção é
melhor visto.
Brevemente, tal distinção apóia-se na separação entre juízos apodíticos e
hipotéticos. Bobbio (2007, p.169) diz sobre tal classificação: “‘Norma categórica’ é
aquela que estabelece que uma determinada ação deve ser realizada; ‘norma
hipotética’ é aquela que estabelece que uma determinada ação deve ser realizada
caso se verifique uma determinada condição”.
Bobbio fala em normas acompanhadas de sanção, porém ele admite a
existência de normas sem as mesmas. Em se tratando de normas sancionadas o
elemento hipotético existe por sua natureza (no sentido de que é expresso através
90
da forma que a norma tem quando sancionada); o autor admite, porém, que no
âmbito jurídico existam normas categóricas, as quais são formuladas na forma
apodítica, sem condições. No que se refere às normas hipotéticas, às quais as
sanções são inerentes, estas ainda são classificadas em instrumentais ou finais,
quando, ou prescrevem ações como meio para um fim, ou “ações que tem valor de
fim”.
Em suma, Bobbio ainda fala em normas categóricas e normas hipotéticas
apelando para a distinção entre normas que impõem obrigações simples e
obrigações condicionadas.
Finalmente, após a elucidação da linguagem normativa de Bobbio, passamos
a uma análise das críticas que o jusfilósofo lança a alguns pontos fundamentais da
concepção kantiana, em especial de Direito, mas de um modo geral à sua filosofia
prática.
3.3 Críticas de Bobbio a Kant
Como já mencionado anteriormente, este capítulo aborda as principais críticas
de Bobbio a pontos obscuros da ética kantiana. Tal análise, vale destacar mais uma
vez, tem por base conceitos fundamentais da proposta de Bobbio, que em alguns
momentos apóia-se na própria filosofia kantiana, porém busca, ao mesmo tempo,
solucionar seus pontos problemáticos. São críticas que se direcionam a pontos
específicos do sistema prático de Kant, como, por exemplo, à noção de imperativo,
mas que ao mesmo tempo se referem de um modo geral à proposta do filósofo da
moral e que se relacionam de forma a serem garantias para a conservação do seu
sistema prático como um todo.
Vale destacar que é característica de alguns neokantianos a preocupação em
transformar ou reler com aspectos distintos os pontos fundamentais da proposta de
Kant de modo a não confrontá-los por completo, mas consertar pontos específicos.
Não diferentemente, aqui, Bobbio o faz através de um exame multifacetado,
abordando os problemas sob vários ângulos, através de distinções e classificações.
91
É inegável, porém, que sua análise trata de um âmbito distinto daquele colocado
pelo próprio Kant. Bobbio trata do âmbito da aplicação do Direito ao passo que Kant,
ainda está no plano da fundamentação, ou baseado numa proposta de Direito ideal,
o que dificulta a comparação entre os mesmos.
Basicamente, são quatro os problemas abordados por Bobbio: a definição de
Direito a partir da noção de instituição e as relações jurídicas a partir desta; no que
se refere aos imperativos, sobre seu âmbito de atuação e função, e sobre a sanção.
3.3.1 Crítica à noção de Direito
O primeiro ponto trata sobre uma diferença fundamental entre os autores
quanto à definição do Direito. Enquanto para Bobbio o Direito caracteriza-se pela
institucionalização, para Kant a relação entre os arbítrios dos sujeitos livres cumpre
tal tarefa.
De um lado, Bobbio caracteriza o Direito como um conjunto ordenado de
normas que visam o conduzir das ações humanas numa dada sociedade. A
institucionalização se quando as pessoas buscam fins, sendo que para isso se
estruturam de forma organizada através de normas positivas. É característica desta
concepção a noção de normatização como elemento que legitima a instituição e tem
o papel de viabilizar a ordem na sociedade.
Uma sociedade organizada, uma instituição, é constituída por um grupo de
indivíduos que disciplinam suas respectivas atividades com a finalidade de
perseguir um objetivo comum, ou seja, um objetivo que os indivíduos,
singularmente considerados, não poderiam alcançar. A instituição nasce no
momento em que nasce e toma forma uma certa disciplina das condutas
individuais, disciplina destinada a conduzi-las a um fim (Bobbio, 2007, p.
15).
Do outro lado, a definição kantiana do Direito, que se apóia na idéia de um
Direito racional, preza também, assim como a proposta de Bobbio, pela ordenação
das ações humanas na sociedade. Porém, a forma como se tal ordenação
depende da escolha que os próprios sujeitos fazem das leis que os guiarão. Aqui os
sujeitos são capazes de guiar-se por um princípio que é comum a todos e, nesse
sentido, são capazes de manter uma relação de recíproca liberdade, que a
capacidade racional (e, portanto, a capacidade de escolher o princípio universal) é
dada a todos. Kant (2003, p. 76) define o Direito da seguinte forma: “O direito é,
92
portanto a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à
escolha de outrem de acordo com uma lei universal da liberdade”.
Além disso, o próprio Bobbio propõe que a noção kantiana de Direito também
se define a partir de três elementos: da relação externa de uma pessoa com outra,
das relações que se dão especificamente entre os arbítrios dos sujeitos, e da forma
que se dá a relação entre os arbítrios.
A partir de tais noções, a problemática se reflete na medida em que, para os
positivistas, a teoria do Direito que se apóia na noção de relação jurídica somente é
possível caso se tenham claros que os elementos desta relação, sejam de um lado
os direitos de um dos sujeitos (o sujeito ativo) e, de outro lado, os deveres do outro
sujeito (o sujeito passivo). Uma relação jurídica que se baseie nos arbítrios dos
sujeitos corre o risco de cair na individualidade e perder, com isso, um caráter mais
social, até então preservado pela proposta defendida pelos juspositivistas. Os
opositores da teoria de Kant argumentam que sua proposta não sustenta o caráter
de organização que é fundamental no âmbito jurídico, como assim enfatiza Bobbio:
Duas pessoas isoladas que se encontram apenas para estabelecer entre
elas a regulamentação de certos interesses mútuos não constituem ainda
direito; o direito só nascerá quando essa regulamentação se tornar de certo
modo estável e der origem a uma organização permanente da atividade
dos dois indivíduos (Bobbio, 2007, p. 17).
Além do mais, a regulamentação de uma relação jurídica somente é possível
se esta é ordenada por normas jurídicas, normas positivas que se estruturam numa
teoria que agrega elementos tanto da teoria da instituição, da teoria da
normatização, quanto da teoria da relação, como na primeira seção já mostramos.
Contudo, uma tentativa, não tanto de defender uma proposta e eliminar a
outra, mas de estabelecer a existência de elementos distintos, e também a carência
de outros, tanto em uma como em outra teoria, nos parece importante uma vez que
ambas tomam como apoio perspectivas diferentes.
Se, por um lado, o que um caráter organizacional, ou então, regulativo, é
o estabelecimento de normas reguladoras a partir de uma instituição e esta é capaz
de estabelecer os direitos e deveres do indivíduo, por outro lado, é a capacidade
racional dos indivíduos de obedecer a um princípio universal e que é comum a
todos, que garante a organização e regulamentação das ações dos sujeitos no
93
âmbito jurídico. Fica claro que elementos como um princípio comum e a capacidade
racional de basear-se neste princípio não são elementos de uma proposta
juspositivista, assim como a instituição organizada não é necessária numa teoria
jusnaturalista, e que nem por isso elas perdem sua legitimidade diante do que se
propõem.
Contudo, parece-nos que a crítica sofrida por Kant, a de que uma relação
jurídica tal como ele propõe apresenta elementos individualistas, é superada na
medida em que seja compreendido e aceito o caráter universal do princípio
regulador das relações ações humanas neste âmbito, bem como a capacidade que
todos os sujeitos tem de cumprir este princípio e impor a si mesmo a partir de sua
vontade, igual a dos demais, que sujeitos racionais e livres. Assim afirma Ricardo
Terra:
As relações das vontades no direito serão pensadas sob uma vontade
geral, o que remete à autonomia no direito, pois todos participam da
legislação à qual se submetem, as relações jurídicas devendo dar-se sob
as leis universais da liberdade (...) (Terra, 2005, p. 101).
Entendemos que tais elementos asseguram, no âmbito jurídico assim como é
defendido por Kant, o estabelecimento do que é direito e dever, dada a
universalidade do princípio que rege as ações neste âmbito, uma vez que todos os
sujeitos (arbítrios) são livres porque racionais a ponto de estabelecer seus limites.
3.3.2 Crítica aos imperativos
Neste mesmo contexto, uma análise da forma como as ações são reguladas
e a partir de que elementos o Direito se estrutura, têm como conseqüência o estudo
das normas propriamente ditas. Estas (as normas) também têm a função de
distinguir os âmbitos da Moral e do Direito e foram classificadas por Bobbio seguindo
a distinção básica de Kant entre normas categóricas e normas hipotéticas, porém
acolhendo peculiaridades.
Em um primeiro momento, na tentativa de fazer a distinção entre a Moral e o
Direito, Bobbio propõe, o que em uma certa medida acolhe a proposta kantiana, que
os imperativos autônomos representam as normas da moralidade e os imperativos
94
heterônomos representam as normas legais. Lembramos que tal distinção se refere
à relação entre sujeito ativo e passivo, ou seja, a relação daquele que põe a norma e
aquele ao qual ela é destinada. No primeiro caso, o imperativo é autônomo se os
sujeitos são a mesma pessoa, no segundo o imperativo é heterônomo se os sujeitos
são distintos. Até Bobbio acolhe Kant sem objeções, a questão por ele levantada
trata sobre a possibilidade de também haver imperativos autônomos no campo do
Direito e imperativos heterônomos na Moral. Ocupamo-nos, aqui, de simplesmente
citar os exemplos utilizados pelo jusfilósofo para fazer tal questionamento.
No caso da moralidade, Bobbio sugere que uma moral religiosa fundada nos
preceitos de um ser superior, é uma moral heterônoma, pois segue a regra de que
quem dá a norma e quem a cumpre são pessoas distintas. Já no campo do Direito a
sugestão bobbiana trata sobre o Direito privado, aquele no qual o próprio sujeito se
à regra a cumprir, bem como no caso do Estado Democrático, o qual segue um
ideal de livre autoregulação. Temos com isso, que, neste ponto, Bobbio trata da
distinção entre Moral e Direito através de tal classificação com uma distinção mais
branda do que a proposta por Kant.
no que se refere à distinção fundamental kantiana entre normas morais e
normas jurídicas, ou seja, aquelas que são expressas respectivamente pelo
imperativo categórico, o qual prescreve uma ação como boa em si mesma, e os
imperativos hipotéticos que prescrevem uma ação como boa para alcançar um fim,
Bobbio tem suas restrições e discordâncias.
Primeiramente, o jusfilósofo questiona a real classificação dos imperativos
hipotéticos, em especial as normas técnicas, como imperativos, ou melhor, se é
possível realmente dizer que um imperativo hipotético (do tipo norma técnica) é um
imperativo. A análise tem como pano de fundo a definição de norma técnica como
sendo aquela que obedece a relação entre uma causa e seu efeito de ordem natural.
Obviamente, Bobbio nega a possibilidade de classificar as normas jurídicas como
técnicas neste sentido, uma vez que normas do âmbito das ações humanas
apresentam relações e nexo distintos da ordem natural. Aqui, os elementos lícito e
ilícito proporcionam uma conotação distinta da, até então, proposta para uma norma
técnica do tipo natural. Parece-nos que a apropriação do termo “norma técnica” para
um imperativo jurídico leva em consideração a estrutura da norma.
95
Neste sentido, Bobbio esclarece que uma norma jurídica positiva, aquela que
propõe que para um certo fim se deve executar tal ação, tem como fim uma
conseqüência imputada pela ordem, que prescreve uma ação obrigatória ao sujeito:
A característica de um imperativo hipotético desse tipo é que a conseqüência
ou o fim não é o efeito de uma causa em sentido naturalístico, mas uma
conseqüência que é imputada a uma ação, considerada como meio, pelo
ordenamento jurídico, ou seja, por uma norma (Bobbio, 2007, p. 75).
Sendo assim, é possível aceitar as normas técnicas como imperativos em
função de dois elementos: a conseqüência que é imputada à ação como meio, que
tem a sanção em caso de transgressão da norma, e também através do elemento
teleológico atribuído às normas jurídicas, ou seja, aquele que diz que a norma visa
uma ordem social dada através de uma certa técnica no seu ordenamento.
Seguindo o mesmo nível de questionamento, Bobbio ainda propõe que tal
distinção pode se justificar apelando para as classificações do Direito enquanto
legalidade e enquanto liberdade externa. Conforme o jusfilósofo é aceitável que as
normas técnicas, neste caso, os imperativos hipotéticos, pertençam à esfera do
Direito tendo em vista a busca por conformidade a um fim imputado que a norma
está prescrevendo (pela legalidade que ela obedece), e também em vista a uma
obrigação que temos frente aos outros, já que em função de um fim imputado somos
responsáveis frente aos outros pelo seu cumprimento e por isso obedecemos a uma
legislação externa.
no que diz respeito à distinção kantiana entre imperativos categóricos e
imperativos hipotéticos, no que se refere ao seu âmbito de atuação a análise de
Bobbio, em um primeiro momento, vai de encontro à proposta kantiana. O imperativo
categórico é aquele que prescreve uma ação boa em si mesma, sem condição
alguma, é o imperativo da moralidade. Já os imperativos hipotéticos são aqueles que
prescrevem ações como meios para se chegar a certas finalidades, por isso eles são
condicionados e representam as regras do Direito.
O autor propõe, porém, uma análise peculiar frente a tal proposta levando em
consideração o caráter sancionador das normas. Tendo em vista que a sanção é
uma maneira de salvaguardar a ação prescrita pela norma e que com isso fica
estabelecida uma certa condicionalidade em função do não cumprimento daquilo
96
que foi prescrito previamente, a sanção cumpre o papel de assegurar o elemento
condicionador também proposto por Kant, até então, pertencente às normas
jurídicas. Segundo Bobbio, as normas morais também são sancionadas, porém de
outra forma, não apresentando uma norma secundária, utilizando a terminologia de
Kelsen (como visto no capítulo referente a tal autor). Neste sentido, a sanção serve
como meio de distinguir as normas morais e as legais, porém, para isso, Bobbio
ainda estabelece uma ressalva.
Partindo da aceitação do jusfilósofo de que normas jurídicas sem sanção,
como anteriormente visto, parece-nos perfeitamente aceitável a existência de
imperativos do tipo categórico no âmbito jurídico. O autor diz que: “Como, de resto,
não se excluem que existam normas não-sancionadas, é preciso admitir a existência
de normas jurídicas categóricas, ou seja, de normas formuláveis de forma apodítica,
sem condições” (Bobbio, 2007, p. 169). Desse mesmo modo, Bobbio também se
refere às normas morais, dizendo que a formulação de um imperativo hipotético é
assegurada, neste âmbito, uma vez que a busca por uma satisfação ou negação de
uma insatisfação através da transgressão da norma garante um caráter
condicionado.
Uma vez visto que o caráter sancionador é fundamental para distinção de
normas e até mesmo sua classificação, é mister questionarmos a respeito do status
das normas sem sanção e sobre sua validade frente às normas sancionadas. Como
já visto, a existência de normas sem sanção em um ordenamento é inegável. Bobbio
(2007, p. 146) diz: “A presença de normas não-sancionadas em um ordenamento
jurídico é um fato incontestável”. O próprio autor busca justificar e estabelecer como
é possível aceitar tal situação diante das características até então estabelecidas
para um ordenamento.
Neste sentido, uma possível maneira de salvaguardar o caráter sancionador
dos ordenamentos jurídicos, assim como de não desmerecer a norma não
sancionada, é tomarmos como ponto de análise a norma simplesmente a partir de
seu caráter isolado, ou como diz Bobbio, a norma singular. O autor utiliza-se do
conceito de validade para estabelecer que é pertinente a existência da norma sem
sanção no ordenamento.
97
Quando me coloco diante de uma norma singular e me pergunto se é ou
não uma norma jurídica, o critério da juridicidade certamente não é a
sanção, mas a pertinência ao sistema, ou seja, a validade, no sentido
esclarecido de referibilidade daquela norma a uma das fontes de produção
normativa reconhecidas como legítimas (Bobbio, 2007, p.147).
Conforme Bobbio, o simples fato de que a norma é produzida em um certo
ordenamento e, portanto, nele existente, é a sua própria validade e por isso garantia
de sua pertinência no ordenamento, mesmo que com característica distinta das
outras normas.
Destarte, Bobbio ainda questiona em que medida uma norma sem sanção
afeta a eficácia de um ordenamento. Neste sentido, se mais uma vez tomamos a
norma de forma singular e temos claro que algumas circunstâncias desta são
imutáveis a ponto de não fazer sentido a aplicação de uma sanção àquele caso
específico, tem-se a garantia de que a estrutura do ordenamento não é abalada e
nem mesmo seu princípio básico da eficácia reforçada. Uma análise sobre o
conceito de sanção também é feita na filosofia kantiana na seção seguinte.
Dito isso, e, uma vez visto a natureza da norma jurídica, assim como da
norma moral, temos como objetivo, agora, verificar a função de ambas as normas
em seus respectivos ordenamentos. Para tal análise nos apoiamos na nítida
diferença entre os autores quanto a tais elementos.
Como visto, para Bobbio a característica fundamental das normas jurídicas
é a prescritividade, ou seja, é ordenar, imperar de forma a regular um
comportamento. Em contraposição a isso, o autor diz que às normas morais cabe
simplesmente a tarefa de aconselhar os indivíduos, uma vez que não possuem total
eficácia, tal como as normas jurídicas, a ponto de obrigar os indivíduos, que são
livres para o seu não cumprimento. O autor diz o seguinte a respeito disso:
“Deveríamos dizer, então, que o direito obriga: a moral limita-se a aconselhar, a
dar recomendações que deixam o indivíduo livre (ou seja, apenas responsável) para
segui-las ou não” (Bobbio, 2007, p. 77).
Do outro lado, para Kant, ambos os imperativos têm a função de ordenar.
“Ora, todos os imperativos ordenam, ou hipotética - ou categoricamente” (Kant,
1995, p. 50) O que ocorre é uma distinção quanto ao modo como isso se efetiva, em
função da forma como os imperativos assumem em cada âmbito. No caso da
moralidade, como é sabido, o imperativo ordena categoricamente, ou seja, de
98
forma necessária e incondicional, de modo que o indivíduo cumpra o que a norma
prescreve pelo simples dever que ela impõe. Já no caso dos imperativos hipotéticos,
as normas da legalidade, a ordem se de forma condicionada, o que é exigido é a
simples conformidade da ação com aquilo que a norma prescreve.
Em função de tais peculiaridades, Kant ressalva que se tomamos como ponto
de análise os móbeis das ações nestes dois planos distintos, um, o dever, e do outro
lado elementos da empiria, as funções dos imperativos são distintas. No primeiro
caso, do imperativo categórico que impõe uma ação pelo seu simples dever de ser
cumprida então o que lhe cabe é ordenar. no caso dos preceitos da empiria que
tomam outros móbiles que não o dever, o que lhes cabe é aconselhar, como bem
destaca Kant:
Porém, algo diverso ocorre relativamente aos preceitos da moralidade. São
comandos para todos, que desconsideram as inclinações, meramente
porque e na medida em que todos são livres e dispõem de razão prática;
cada um não extrai instrução nas suas leis a partir da observação de si
mesmo e de sua natureza animal ou da percepção dos modos do mundo, o
que acontece e como se comportam os homens (ainda que a palavra
alemã Sitten, como a latina mores, signifique apenas maneiras e modos de
vida). Em lugar disso, a razão ordena como cabe aos homens agir, mesmo
que nenhum exemplo disso possa ser encontrado, e não leva em
consideração as vantagens que pudéssemos com isso granjear, o que
somente a experiência poderia nos ensinar, pois embora a razão nos
permita buscar nossa vantagem de todas as formas possíveis a nós, e
possa, inclusive, nos prometer, com o testemunho da experiência, que
provavelmente nos será mais vantajoso no conjunto obedecer aos seus
comandos do que transgredi-los, especialmente se a obediência for
acompanhada de prudência, ainda assim a autoridade de seus preceitos na
qualidade de comandos não é baseada nessas considerações. Ao invés
disso, ela os utiliza (como conselhos) somente como um contrapeso contra
induzimentos para o contrário(...). (Kant, 2003, p. 58-59).
no que se refere à função da norma moral, ambos os autores opõem-se
radicalmente. Ao passo que, para Kant, a norma moral ordena de forma categórica,
pois impõe um dever que incondicionalmente deve ser cumprido, para Bobbio a
norma moral tem a simples função de aconselhar, uma vez que não impõe uma
obrigação tal como a norma jurídica. O jusfilósofo sustenta que a norma moral não
obriga como a jurídica porque não possui uma eficácia tal como aquela.
Contudo, Bobbio abre uma ressalva às normas do Direito no que se refere ao
fato de que a estas nem sempre cabe a função de ordenar, mas, em alguns casos,
também aconselhar. O autor se refere, aqui, aos órgãos consultivos existentes no
99
Direito, prezando pelo caráter prescritivo de tais órgãos, assim como as normas
deles emanadas, porém deixando claro que sua eficácia não é garantida como a de
outras normas. Aqui, tais órgãos e, conseqüentemente, suas normas possuem um
status inferior aos órgãos e as normas que ordenam, posto que, como as normas da
Moral, não garantem que a ação do indivíduo seja conforme o que ele prescreve.
Com outras palavras, Bobbio (2007, p. 80) diz que os conselhos “(...) têm, sim, a
função de guiar ou dirigir o comportamento alheio, mas a sua orientação não é tão
eficaz quanto à dos comandos, e essa menor eficácia revela-se no fato de que a
pessoa ou as pessoas a quem se destinam não são obrigadas a segui-los (...)”.
Entendemos, contudo, que ambos os autores, ao se referirem à função da
norma, têm como ponto de apoio âmbitos distintos. Enquanto para Bobbio o que
garante, ou melhor, o que expressa a função de uma norma é a sua eficácia dentro
de um ordenamento, para Kant é simplesmente a forma como o imperativo é
expresso (obedecendo a idéia do puro dever). Kant ainda está expondo, neste
ditame, uma fundamentação das normas, e neste caso específico, de que forma
temos a sua função e não sua aplicabilidade, tal como em Bobbio.
3.3.3 Crítica à noção de sanção
Finalmente, buscamos agora, como mencionado anteriormente, uma breve
análise da problemática em torno do conceito de sanção. Tal problema Bobbio
levanta através de uma reflexão por Kant mesmo suscitada, a da existência de uma
possível incompatibilidade entre a coação (tipo de sanção, ou melhor, forma da
sanção) e a liberdade no Direito.
Apoiando-nos na leitura de Joaquim Carlos Salgado entendemos que a ação
livre dos sujeitos preserva um ideal de justiça, na medida em que não é impedida
por outros por meio de uma coação a estes imposta, como bem aduz Salgado sobre
a reflexão de Kant:
Kant desenvolve o seu pensamento, demonstrando que, se a minha ação
pode conviver com a liberdade de todos, segundo leis universais, é ela
justa; injusta (unrecht) é a ação do outro que me impeça de praticá-la
(Salgado, 1986, p. 282).
100
Sendo assim, o problema pode ser entendido, da seguinte maneira: uma vez
que a definição do Direito dada por Kant apóia-se na noção de liberdade entre os
arbítrios dos sujeitos, a coação pode parecer um meio de inibir tal liberdade, no
sentido de que por meio dela somos injustos. Como se resolve tal questão?
Entendendo que a liberdade jurídica para Kant também possui caráter universal, ou
seja, é dada a todo indivíduo de forma igual, a coação surge como um meio de
constranger a transgressão de uma liberdade, ou então, a coação é um meio de
inibir uma não liberdade, usando as palavras de Bobbio.
O jusfilósofo solidariza-se à resposta kantiana e a corrobora com as seguintes
palavras:
A coação é, pois, um conceito antitético com relação à liberdade, mas,
enquanto surge como remédio contra uma não liberdade anterior, é
negação da negação e, então, afirmação. Portanto, ainda que seja
antitética com relação à liberdade, a coação é necessária para a
conservação da liberdade (Bobbio, 2000, p. 125-126)
Entende-se com isso, que a coação se torna necessária para o Direito, uma
vez que ela mesma enquanto mecanismo de conservação da licitude corrobora a
noção kantiana de Direito enquanto liberdade, e não se contradiz com esta, pois
funciona como meio de “corrigir” sua transgressão. Sendo assim, é justo o uso da
coação, desde que esta efetive o tolimento da transgressão de uma liberdade. Nas
palavras de Salgado (1986, p. 288): “A coação é a contrafação da inclinação
contrária à lei racional”.
Por final, temos de destacar uma diferença notável entre os jusfilósofos.
Enquanto Bobbio toma suas análises do mero ponto de vista empírico da questão, a
partir de uma perspectiva exclusiva da aplicabilidade do Direito, Kelsen, embora em
alguns momentos também o faça, propõe uma metafísica do Direito.
Temos que tais diferenças podem ser fundamentais e até mesmo
problemáticas já que suas críticas em alguns pontos têm mesmo foco.
101
CONCLUSÃO
As principais noções que determinam tanto o campo da Moral, como o
campo do Direito, no Sistema Ético kantiano, foram tratadas de modo a, por um
lado, explorar os elementos básicos propostos pelo autor, e por outro lado, tratar da
recepção dos mesmos no âmbito jurídico através das concepções de Kelsen e
Bobbio.
É importante lembrar que optamos por trabalhar com as concepções de tais
jusfilósofos pelo fato de serem, além de grandes figuras no meio jurídico, exemplos
de pensadores que tomam como apoio a concepção de Kant, no sentido de serem
fortemente influenciados por ela. Nesse sentido, temos como salientada a
importância de estudar a concepção kantiana que, além de seu caráter sui generis
na tradição filosófica, serve de base para outras teorias, estendendo-se para além
do campo estritamente filosófico.
Na medida em que se mostrou necessário, o trabalho iniciou com a exposição
dos preceitos fundamentais que Kant remete à Moral e o Direito, mesmo que, dentre
esses, alguns não servirem propriamente como distinguidores daqueles âmbitos.
Estes preceitos básicos preparam o terreno às futuras críticas que, embora
destaquem os elementos que dizem respeito às distinções em foco, dirigem-se,
também, a outros elementos igualmente importantes no sistema prático kantiano
como um todo. Exemplo disso é a noção de razão prática, questionada por Kelsen.
No primeiro capítulo ficou evidente que a proposta prática kantiana, mesmo
que se destine, em um primeiro momento (na Fundamentação da Metafísica dos
Costumes) à moralidade, delimita, mesmo que implicitamente, os passos
fundamentais para a distinção visada por nós (que é tratada com uma maior gama
de elementos na Metafísica dos Costumes), muito embora não tenhamos explorado
todos os elementos de ambas as áreas, destacados por Kant. Através das
elucidações kantianas de seus pressupostos básicos foram estabelecidas as bases
102
para as críticas posteriormente examinadas, e, mesmo que enfatizada a distinção
entre os imperativos hipotéticos e categóricos (conceitos chaves para a
diferenciação entre Moral e Direito) através de suas implicações quanto, não a
forma, mas ao conteúdo, possibilidade e, inclusive necessidade, também foram
expostos, outros meios para distinguir a Moral e o Direito.
Evidenciou-se, e é isso o que se procurou expor, que o próprio Kant
estabeleceu diferentes meios para a distinção em foco, o que foi confirmado através
da leitura de Bobbio apoiado no par conceitual: interno/ externo. É importante
destacar que, não as diferentes formas de distinguir ambos os âmbitos se
caracterizam pela dicotomia internalidade e externalidade, mas isso ocorre até
mesmo com os próprios imperativos quando apoiados nas noções de motivo/ móbil
da ação, a qual em Kant parece, dentre outras maneiras, cumprir a tarefa da referida
distinção. Pode-se pensar também que, nesse sentido, a distinção vital kantiana
entre mundo sensível e mundo inteligível endereça-se para tal caracterização.
No segundo capítulo, que é destinado a Kelsen, uma tentativa de
fundamentar a vinculação entre sua teoria e a teoria kantiana parece-nos, de
início, estar brevemente amparada na medida em que são expostas algumas das
influências do pensamento kantiano na concepção do jusfilósofo. Tal idéia é
exemplificada através de uma analogia entre a metodologia utilizada por ambos os
autores com vistas à fundamentação de um princípio universal de validação das
normas para uma legislação.
Na segunda parte de tal capítulo se torna evidente a fundamentação dos
alicerces que justificam as principais críticas lançadas à teoria kantiana. Aqui se
torna evidente que, na medida em que Kelsen fundamenta sua distinção da
realidade em Ordem do Ser e do Dever-ser, baseado, em especial, na relação
subsistente em cada ordem, causal e imputativa, respectivamente, o
questionamento acerca de qual âmbito pertence o imperativo hipotético kantiano,
que este apresenta relações de causa e efeito, e não de puro dever (como o deveria
ser pela ótica kelseniana), parece-nos, à primeira vista, justificado e aceito. Olhando-
se, porém, de forma mais atenta e respeitando as argumentações kantianas
percebe-se que alguns conceitos, como: querer (racional), a noção de Direito
Racional, causalidade por liberdade, razão prática, podem nos levar a ter razões
103
para defendê-lo, na medida em que dizem respeito à idéia de ação devida, de
obrigatoriedade, de ação imputável, e, portanto, têm caráter deôntico.
Essas idéias parecem ser fundamentais no âmbito do dever-ser e são
perfeitamente encontráveis no âmbito dos imperativos hipotéticos, expressões das
normas jurídicas. Poderíamos ainda argumentar a favor de Kant notando que a
crítica de Kelsen leva em consideração a “forma” como tal imperativo é expresso por
Kant, a da condicionalidade, mas que em função dos conceitos acima expostos, e,
outros encontrados no texto, a sua identificação como lei que impõe um dever, e que
conseqüentemente, pertence ao âmbito do dever-ser é aceita.
Com relação ao imperativo moral, defendemos Kant com base unicamente
num argumento: o de que a perspectiva kelseniana utilizada para atacar Kant quanto
a não existência da incondicionalidade é outra que a da fundamentação a priori, tal
como encontrada em Kant, mas uma perspectiva do âmbito da aplicação de tal
norma, uma perspectiva a posteriori, o que nos parece transpor níveis, não de
argumentação, mas de possibilidade e até mesmo de uso da norma em questão.
Mesmo que Kelsen também sustente um imperativo categórico, mas que possa ser
aplicado também ao âmbito do Direito, ele sustenta a definição de tal imperativo
justamente na forma por ele apresentada e não na forma apresentada por Kant.
Enfatizamos, ainda, que a noção de sanção, à qual Kelsen propõe diferentes
características e usos, tanto na Moral, quanto no Direito, é elemento chave para
distinguir estes dois âmbitos. Parece-nos de relevância, também, apontar que as
vinculações estabelecidas por Kelsen entre os âmbitos da Moral e do Direito tomam
um pano de fundo diferente da visão kantiana que fundamenta, tanto o Direito,
quanto a Moral, em um fundamento que é comum. Embora Kelsen admita a
validação das normas jurídicas em um princípio comum, semelhante ao proposto por
Kant para o campo geral da Ética, o jusfilósofo não aceita que o Direito deva, por
isso, fundamentar-se em princípios comuns aos morais.
no que concerne aos posicionamentos de Bobbio frente ao sistema prático
kantiano, uma visão menos crítica nos parece ser lançada. Isso se torna evidente
no primeiro capítulo do trabalho por meio da leitura do próprio Bobbio dos diferentes
meios de distinguir Direito e Moral.
104
A vinculação entre Bobbio e Kant, no entanto, é reforçada quando da
exposição, na primeira seção do terceiro capítulo da dissertação, de uma simpatia
de Bobbio por alguns dos elementos da concepção jusnaturalista kantiana. Isso
também se torna patente em alguns elementos adotados como característicos da
normatividade e de suas implicações, o que, porém, não descaracteriza sua
concepção jurídica positivista, como já enfatizado.
No que diz respeito ao conteúdo crítico, a primeira questão levantada, a da
noção de Direito e a relação daí estabelecida, tem como pano de fundo, de um lado,
o caráter prático do Direito em Bobbio e, de outro lado, o caráter fundamentador do
plano jurídico, ressaltado por Kant. Tal característica é salientada na medida em que
Bobbio apóia-se na aplicação das normas como garantias do que é de direito e
dever para o estabelecimento da relação jurídica, ao passo que Kant o faz através
de um acordo estritamente fundamentado num princípio transcendental, possível
pela relação entre arbítrios, e não pelas normas. Se para Bobbio a relação jurídica
existente na concepção kantiana pende para um individualismo, carecendo, assim,
de um caráter social, proposto pela sua concepção jurídica, Kant o supera apoiado
na sua noção de princípio universal, enquanto fundamento, inclusive, das normas e
relações jurídicas.
Os questionamentos de Bobbio sobre o imperativo hipotético, mais
especificamente o imperativo técnico, que pela sua ótica, é o que representa em
Kant uma norma jurídica, têm como base o mesmo questionamento de Kelsen
acerca da estrutura da norma, se é o tipo de entidade que expressa uma relação
causal, de meio e fim. Bobbio, porém, não se mostra contrário a Kant, na medida em
que sustenta uma defesa do caráter deôntico de tal imperativo, tal como o é
defendido por Kant através da relação de imputação imposta pelo imperativo e pela
sua função: a de ordenar o comportamento em sociedade.
Além disso, o imperativo hipotético e também o categórico, tal como estão
classificados em Kant, são questionados quanto ao âmbito a que pertencem com
base no conceito de sanção, que é para Bobbio, a expressão da condicionalidade.
O jusfilósofo argumenta que, se por um lado, os imperativos categóricos são
incondicionados, e pertencem à moralidade, a existência de normas jurídicas não
sancionadas também as situa no âmbito da moralidade. Por outro lado, ocorre que,
105
se as normas hipotéticas são condicionadas, apresentam sanção, o fato de haver
normas morais sancionadas as situa, também, no âmbito da legalidade.
A função de tais imperativos, porém, é totalmente oposta em cada
concepção. Ao passo que para Bobbio as normas jurídicas ordenam, pois
apresentam eficácia maior que as morais que aconselham, para Kant as normas
morais tem um caráter ordenador mais forte com vistas à motivação ser unicamente
a idéia do dever. Aqui, o mesmo ponto é tratado de maneiras diametralmente
opostas.
Outro questionamento de Bobbio trata da possibilidade da coação jurídica ser
um meio para o tolhimento da liberdade, e assim incompatível com ela, já que esta é
elemento fundamental no âmbito jurídico, segundo Kant. A proposta bobbiana, que é
solidária a Kant, acaba por entender que o que a coação inibe não é a liberdade,
mas sim a transgressão desta.
Para finalizar, lembramos que pode ser problemático no trabalho o fato de
que os preceitos básicos adotados como apoio para as críticas, principalmente em
Bobbio, já que Kelsen em alguns pontos apóia-se em uma metafísica do Direito, são
baseados em um plano muito mais destinado à aplicação do conteúdo jurídico e
também moral, do que à mera fundamentação como o é proposto por Kant. Isso
pode, em alguma medida, dificultar o embasamento das críticas, embora não
desmereça os questionamentos que, por si só, expressam o vínculo entre as
concepções tratadas.
No que diz respeito ao conteúdo, parecem incertos três pontos, e aqui nos
ocupamos simplesmente de destacá-los:
1) Da possibilidade de compreender a norma jurídica como uma meta-regra e
nesse sentido, fazer analogia entre esta e as normas de competência (em Bobbio) e
a norma fundamental (em Kelsen), uma vez que parece, para nós, haver
semelhanças entre as mesmas.
2)Sobre a crítica de Kelsen ao conceito de autonomia, que ainda nesta
Conclusão não foi destacada, em função da problemática daí levantada a partir de
uma possível transposição de âmbitos, na medida em que parece relacionar o
campo religioso kantiano a uma “teologia jurídica” em Kelsen, que notoriamente têm
fundamentos distintos;
106
3) a) Em que medida há, se há, uma relação de interdependência entre os
positivismos de Kelsen e Bobbio e a concepção jusnaturalista kantiana;
b) Se ao contrário, um Direito natural que seja dependente do Positivo,
para tais autores, talvez não tanto quanto à fundamentação, mas quanto à eficácia.
Dito isso, parece-nos justificado um trabalho que enfatizou as questões não
tratadas por importantes teorias, mas, na medida em que também são questões
atuais, e servem de estímulo e caminho para pesquisas futuras.
107
BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ALQUIÉ, Ferdinand. Introduction a la Lecture de la Critique de la Raison
Pratique. En Critique de la Raison Pratique, 6. ed. Paris: Presses Universitaires de
France, 1971.
BECKENKAMP, Joãosinho. O Direito como Exterioridade da Legislação Prática
em Kant. Florianópolis: ethic@ Florianópolis v.2 n.2 p.151-171, Dez.2003
BOBBIO, Norberto. Teoria geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
1.
_____. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Editora
Ícone, 1995.
_____. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 3. ed. São Paulo:
Editora Mandarim, 2000.
CAYGILL, Howard l. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
COELHO, Fábio Ulhoa. Para Entender Kelsen. 4.ed. São Paulo: Editora Saraiva,
2001.
DELBOS, Victor. La Philosophie Pratique de Kant. Troisième Édition. Paris:
Presses Universitaires de France, 1969.
GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito: Kant e
Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
GOYARD-FABRE. Simone. L’ispiration kantienne de Hans Kelsen. Paris: in
Revue de Métaphysique et de Morale, 1979, pp. 204-233.
HECK, José. Direito e Moral: Duas Lições sobre Kant. Goiânia: Editora UFG,
2000.
____. Direito Subjetivo e Dever Jurídico Interno em Kant. Kant-e Prints,
Campinas, Vol. 1, n. 4, 2002. Disponível em http://www.cle.unicamp.br/kant-e-
prints/index_arquivos/htm. Acesso em 12 de março de 2006.
HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
108
____.O imperativo Categórico do Direito: uma interpretação da Introdução à
Doutrina do Direito. Rio de Janeiro: Studia Kantiana, vol. I, n.I, 1998.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições
70, 2002.
____. La Metafísica de las Costumbres. Tercera Edicion.Madrid: Editorial Tecnos,
1999.
____. A Metafísica dos Costumes. São Paulo: EDIPRO, 2003.
____. Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 1994.
____. Methaphysical Elements of justice. Second Edition.Cambridge/Indianápolis:
Hacket Publishing Company, 1999.
KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Porto Alegre: Fabris, 1968
____. Teoria Pura do Direito. 6.ed. Martins Fontes: São Paulo, 2003.
PASCAL, Georges. Compreender Kant. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.
PATON, H.J. The Categorical Imperative A study in Kant’s Moral philosophy.
Pensilvania: University of Pensilvania Press, 1971.
PAULSON, Stanley L.. El periodo posterior a 1960 de Kelsen: ¿ruptura o
continuidad?. Doxa, Alicante, n. 2, 1985, p. 153-157. Disponível em
http://www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA/. Acesso em 24 de junho de 2006.
_____La distinción entre hecho y valor: la doctrina de los dos mundos y el sentido
inmanente. Kelsen como neokantiano. Doxa, Alicante, n. 26, 2003, p. 547-582.
Disponível em http://www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA/. Acesso em 24 de junho
2006.
PIMENTA, Pedro Paulo. Reflexão e Moral em Kant. Rio de janeiro: Azougue
Editorial, 2004.
RAWLS, John. Lectures on the History of Moral Philosophy. London:Harward
Univerity Press, 2000.
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de Justiça em Kant - Seu fundamento na
liberdade e igualdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1986.
SCHMILL, Ulisses. Jurisprudencia y teología en Kelsen. Disponível em:
http://www.giuri.unige.it/intro/dipist/digita/filo/testi/analisi_1999/schmill.rtf.
109
SCHNEEWIND, B.J. A Invenção da Autonomia. São Leopoldo: Editora da
Unisinos, 2001.
SOARES, Evanna. A norma jurídica em Kelsen. Concepção de sanção na norma
primária e na norma secundária. Doutrina jus navigandi. Disponível em:
http://www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3269. Acesso em 18 de abril de
2007.
TERRA, Ricardo. Kant e o Direito. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
TERRA, Ricardo Ribeiro. A distinção entre direito e ética na filosofia kantiana.
In: PEREZ, Daniel Omar (Org.). Kant no Brasil. São Paulo: Escuta, 2005, p. 87-109.
WEBER, Thadeu. Ética e Filosofia Política: Hegel e o Formalismo kantiano.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
110